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Isabelly
O Pensamento Iluminista, a sistematização do conhecimento a ...
O Pensamento Iluminista, a sistematização do conhecimento a busca da
autonomia humana
José Roberto Silva de Oliveira1
Figura 1 - El Conjuro - Goya
1 Mestre em História da Filosofia Contemporânea, pela PUC de São Paulo. Doutor em Análise Cognitiva, pelo
Programa Pós-Graduação Multi-Institucional em Difusão do Conhecimento (PPGDC/UFBA). Professor de Filosofia
do Ensino Básico Técnico, Tecnológico (EBTT) do Instituto Federal da Bahia (IFBA), campus Eunápolis. É membro
dos grupos de pesquisa Enlace e Núcleo de Estudos em Educação Profissional. Atua nas seguintes áreas: Educação
Profissional, Análise Cognitiva, Filosofia da Educação, Filosofia da Tecnologia, Tecnologia Social.
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“São necessários vinte anos para se trazer o homem do estado de uma
planta, no qual ele existe no ventre de sua mãe, e do estado de um animal,
que é a sua condição na infância, para um estado em que a maturidade da
razão começa a se fazer sentir. Trinta séculos são necessários para se
descobrir mesmo um pouco de sua estrutura. Seria necessária uma
eternidade para saber qualquer coisa sobre a sua alma. Mas basta um
momento para matá-lo.”
Voltaire, do verbete “Homem”, in Dicionário.
“[...] Compreenderam que a razão só entende o que produz, seguindo seus
próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios que
determinem seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a
responder suas interrogações, em vez de deixar guiar por esta.”
Emanuel Kant (Prefácio à Crítica da Razão Pura)
“... a credulidade, a aversão à dúvida, a temeridade no responder, o vangloriar-se com o saber, a
timidez no contradizer, o agir por interesse, a preguiça nas investigações pessoais, o fetichismo
verbal, o deter-se em conhecimentos parciais: isto e coisas semelhantes impediram um casamento
feliz do entendimento humano com a natureza das coisas e o acasalaram, em vez disso, a conceitos
vãos e experimentos erráticos: o fruto e a posteridade de tão gloriosa união pode-se facilmente
imaginar. A imprensa não passou de uma invenção grosseira; o canhão era uma invenção que já
estava praticamente assegurada; a bússola já era, até certo ponto, conhecida. Mas que mudança essas
três invenções produziram – uma na ciência, a outra na guerra, a terceira nas finanças, no comércio e
na navegação! E foi apenas por acaso, digo eu, que a gente tropeçou e caiu sobre elas. Portanto, a
superioridade do homem está no saber, disso não há dúvida. Nele muitas coisas estão guardadas que
os reis, com todos os seus tesouros, não podem comprar, sobre as quis sua vontade não impera, das
quais seus espias e informantes nenhuma notícia trazem, e que provêm de países que seus
navegantes e descobridores não podem alcançar. Hoje, apenas presumimos dominar a natureza, mas,
de fato, estamos submetidos à sua necessidade; se, contudo, nos deixássemos guiar por ela na
invenção, nós a comandaríamos na prática”.
Adorno e Horkheimer – Dialética do Esclarecimento, pp. 19-20.
Os pensadores do século das luzes herdaram dos séculos precedentes – XVI e XVII – um
profundo rigor, um gosto pelo “encadeamento histórico” e uma confiança incomensurável na
razão. O encadeamento histórico encontra-se vinculado principalmente às transformações
históricas que se efetivaram entre os séculos XV e XVII e que, de acordo com o seu nível de
“progresso”, prometia continuidade ou, até mesmo, uma superação. Quando à confiança na razão,
os pensadores do Esclarecimento acreditavam que ela era una, imutável e universal: a razão é una
2
e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura (cf.
CASSIRER, 1994, p. 23).
Sem se posicionarem como pensadores capazes de apresentar um conteúdo doutrinal e
dogmático inteiramente desvinculado da história da filosofia, eles preferiram reconhecer o
importante caminho que foi traçado pelo pensamento filosófico moderno, quando adquiriu a
certeza de seus juízos referentes à realidade e à autoconfiança em sua consciência. Por tudo isso,
os pensadores desse período foram denominados de “Pensadores Iluministas”. O vínculo
existente entre tais pensadores e a herança que lhes foi passada é tão marcante, a ponto de passar
a impressão de não haver nenhuma novidade gerada por eles. Por exemplo, em sua obra A
Filosofia do Iluminismo, Cassirer (1994) afirma que “[...] ainda que não tenha tomado plena
consciência desse fato, a Época das Luzes permaneceu, no tocante ao conteúdo de seu
pensamento, muito mais dependente dos séculos precedentes. Apropriou-se da herança desses
séculos e ordenou, examinou, sistematizou, desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na
verdade, contribuiu com ideias originais e sua demonstração” (CASSIRER, 1994, p. 09).
No entanto, aquilo que parece ser apenas uma fidelidade e a marca de um movimento
desprovido de caráter original, no fundo representou a própria originalidade desse período. Essa
afirmação se sustenta principalmente sobre o seguinte argumento: mais do que inovar ou tentar a
criação de um pensamento inédito foi no fato de poder ordenar, examinar, sistematizar e
esclarecer aquilo que já havia sido percebido e experienciado por pensadores de outras épocas,
que os pensadores iluministas conquistaram sua originalidade. É isso que vai fazer com que o
Iluminismo apresente uma nova visão e um novo destino ao movimento que busca a
universalização do pensamento filosófico, para se atingir a maturidade humana. Portanto, esse
período buscou ordenar o conhecimento e examinar a origem daquilo que representa suas
condições de possibilidade – o intelecto –, além de tentar sistematizá-lo, sem que, com isso,
caísse novamente no engano dos sistemas predominantes do século XVII. Como consequência, o
Iluminismo implantou sua grande originalidade: o estabelecimento de limites para a razão, a
política, as práticas humanas e a religião. Esta foi a sua principal originalidade.
Ao reconhecer a necessidade de uma sistematização do conhecimento sem reduzi-lo a um
sistema, os pensadores do século das luzes estavam rejeitando simultaneamente tanto uma prática
da elaboração de grandes arquiteturas sistemáticas comumente aceitas pelos pensadores do século
XVII, quanto uma forma de fundamentar o conhecimento, em última instância, em um ser
supremo (Deus), cujo reconhecimento era efetivado através do método dedutivo.
Na verdade, esta rejeição gerou um profundo deslocamento naquilo que, até então,
fundamentava a razão ocidental: ao invés de buscar sustentação para a verdade na metafísica
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(uma realidade que se encontra além da matéria), os iluministas preferiram apoiar-se nas próprias
bases do intelecto e nos fenômenos oferecidos pelos sentidos humanos. Mas isso não significa
dizer que esses pensadores teriam retirado a figura de Deus do universo do conhecimento; melhor
seria afirmar que eles já não esperavam mais pela legitimação de uma divindade para que a
verdade assumisse um posicionamento perante o mundo.
Mais do que a possibilidade ou a não-possibilidade da existência de um ser superior capaz
de dar garantia à verdade, o que estava em jogo eram as próprias noções de filosofia e de razão;
ou seja, os iluministas já não podiam mais conceber essas noções como realidades dependentes de
uma divindade. Insistir nessa perspectiva seria distanciá-las ainda mais de seu verdadeiro sujeito
– o homem. Sobre isso, Cassirer afirma:
“As ideias teóricas elaboradas pela metafísica do século XVII ainda estão fortemente
lastradas no pensamento teológico, com toda sua originalidade e independência. Para
Descartes e Malebranche, para Espinosa e Leibniz, não existe nenhuma solução do
problema da verdade que não tenha a mediação do problema de Deus: o conhecimento da
essência divina constitui o princípio supremo do conhecimento donde decorrem, por via
dedutiva, todas as outras certezas. Ora, no pensamento do século XVIII, o centro de
gravidade da questão desloca-se: a física, a história, o direito, o Estado, a arte escapam
cada vez mais à dominação e à tutela da metafísica e da teologia tradicionais. Essas
disciplinas deixaram de esperar que a ideia de Deus as ratifique e legitime; pelo contrário,
são propensas a modelar essa ideia segundo a forma específica de cada uma delas, a
contribuir para sua determinação com uma participação decisiva. Portanto, não se rompeu
totalmente a relação entre a ideia de Deus, por uma parte, e por outra, as ideias de verdade,
moralidade e direito, mas o sentido dessa relação foi mudado. Produziu-se, de certo modo,
uma ‘mudança de sinal’: a ideia fundadora passa à condição de fundada e o que até então
servia para justificar é agora o que exige uma justificação [...]” (CASSIRER, 1994, p.
217).
Já que o saber do século XVII aparecia aos olhos dos pensadores iluministas como sendo
uma realidade aparentemente distante da condição humana, então era necessário aproximar a
razão de seu verdadeiro sujeito, para fazê-la descer ao mundo dos fenômenos e dos fatos
terrestres, ainda que para isso fosse preciso reduzir seu poder de apreensão. A solução encontrada
por esses pensadores foi o abandono do método dedutivo, como via fundamental percorrida pela
filosofia, em busca da verdade, para um outro método menos ambicioso, porém que trazia
resultado mais seguro: o método analítico. É assim que Newton ganha um lugar preferencial nessa
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nova forma de filosofar.2 É nela também que os fatos terão prioridade, em relação às hipóteses e
às conjecturas. Isso significa a recusa da lógica escolástica e da lógica puramente matemática,
para deixar falar a “lógica dos fatos”. Com essa nova postura, o espírito racional penetra cada vez
mais “nas riquezas dos fenômenos” e se mede constantemente a partir dessa perspectiva,
recusando, com isso, a imaginação, o pensamento intuitivo e principalmente a força dos
sentimentos e da fé como elementos que atingem a verdade.
Resta saber como se deu a intensificação da crença na razão e como tal atitude
transformou a noção de homem até então existente.
- O Espírito humano do século XVIII
D’Alembert iniciou seus Elementos de filosofia com um painel onde procura definir a
situação do espírito humano em meados do século XVIII. Segundo ele, no decorrer dos três
séculos anteriores, foi possível observar que em meados de cada um desses séculos ocorreu
sempre uma transformação importante no conjunto da vida intelectual. Assim, em meados do
2
- A era do Iluminismo não outorga esse ideal de pensamento às doutrinas filosóficas do passado; prefere formá-lo
tomando, por exemplo, a física contemporânea, cujo modelo tem sob seus olhos. Em vez do Discurso do método de
Descartes, apoia-se nas Regulae philosophandi de Newton para resolver o problema central do método da filosofia. E
essa solução logo encaminha a investigação para uma direção inteiramente diferente. A via newtoniana não é a da
dedução pura, mas a da análise”, p. 24.
5
século XV inicia-se o movimento literário e intelectual do Renascimento; em meados do século
XVI, a Reforma religiosa está no apogeu; e no século XVII é a vitória da filosofia cartesiana que
provoca uma revolução radical na imagem do mundo. E então ele pergunta se será possível
descortinar um movimento análogo no século XVIII e determinar sua direção e seu alcance? E o
filósofo prossegue:
“Por muita pouca atenção que se preste aos meados do século em que vivemos, aos
acontecimentos que nos agitam ou que, pelo menos, nos ocupam, aos nossos costumes, às
nossas obras e até às nossas conversas, é muito difícil passar despercebida a extraordinária
mudança que, sob múltiplos aspectos, ocorreu em nossas ideias; mudança essa que, por sua
rapidez parece prometer-nos uma ainda maior. Cabe ao tempo fixar o objeto, a natureza e
os limites dessa revolução, cujos inconvenientes e cujas vantagens a nossa posteridade
conhecerá melhor do que nós. O nosso século é chamado o Século da Filosofia por
excelência. Se examinarmos sem prevenção o estado atual dos nossos conhecimentos, não
se pode deixar de convir que a filosofia registrou grandes progressos entre nós. A ciência
da natureza adquire a cada dia novas riquezas; a geometria, ao ampliar os seus limites,
transportou seu fecho para as regiões da física que se encontravam mais perto dela; o
verdadeiro sistema do mundo ficou conhecido, foi desenvolvido e aperfeiçoado. Desde a
Terra até Saturno, desde a história dos céus à dos insetos, a ciência da natureza mudou de
feições. Com ela, quase todas as outras ciências adquirem novas formas e, com efeito, era
imprescindível que o fizessem. A busca racional agindo em todos os sentidos por sua
natureza, envolveu com uma espécie de violência tudo o que se lhe deparou, como um rio
que tivesse rompido seus diques. Assim, desde os princípios das ciências profundas até os
fundamentos da Revelação, desde a metafísica até as questões de gosto, desde a música à
moral, desde as disputas escolásticas dos teólogos até os objetos de comércio, desde os
direitos dos príncipes aos direitos dos povos, desde a lei natural até as leis arbitrárias das
nações, numa palavra, desde as questões que mais profundamente nos tocam até as que só
superficialmente nos interessam, tudo foi discutido e, no mínimo, agitado”.3
O homem que usa essa linguagem é um dos cientistas mais respeitáveis do seu tempo.
Suas palavras fornecem-nos, portanto, uma ideia da índole e da direção de toda a vida intelectual
de sua época. Uma época que sente a força do pensamento, ou seja, o pensamento quer agora
saber para onde o seu curso o leva e quer, sobretudo, dirigir o seu próprio curso. Ele aborda o
mundo com a nova alegria de descobrir e com um novo espírito de descoberta; contudo, a sua
sede de saber volta-se também para a sua própria natureza e o seu próprio poder. É nesse sentido
que se apresenta, para o conjunto do século XVIII, o problema do “progresso” intelectual. Não
existe um século que tenha sido tão profundamente penetrado e empolgado pela ideia de
3
- D’Alembert, Eléments de philosophie I. In: CASSIRER, 1994, p. 19.
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progresso intelectual quanto o Século das Luzes. Dessa forma, os intelectuais dessa época,
concebiam que, objetivamente considerados, os caminhos divergem, mas essa divergência nada
tem de dispersão. Todas as energias do espírito permanecem ligadas a um centro motor comum. A
diversidade, a variedade das formas é tão somente o desenvolvimento e o desdobramento de uma
forma criadora única, de natureza homogênea. Assim, quando o século XVIII quer designar essa
força, sintetizar numa palavra a sua natureza, recorre ao nome “razão”. A “razão” é o ponto de
encontro e o centro de expansão do século, a expansão de todos os seus desejos, de todo os seus
esforços, de seu querer e de suas realizações. O século XVIII está impregnado de fé na unidade e
imutabilidade da razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a
nação, toda a época e toda a cultura. A razão é concebida como o foco de luz fundamental para
dissolver todas as ilusões que assolam a humanidade.
Assim, à semelhança dos humanistas da Antiguidade, como Sócrates e os estóicos, a
maioria dos filósofos do esclarecimento (Aufklärung) tinha uma crença inabalável na razão
humana. Isto era algo tão evidente que muitos chamam esse período simplesmente de
“racionalismo”. A nova ciência natural deixava claro que tudo na natureza era racional. De modo
que os filósofos iluminstas consideravam sua tarefa a criação de um alicerce para a moral, a ética
e a religião e a política, que estivesse em sintonia com a razão imutável do homem.
Os filósofos que melhor representam o Iluminismo são John Locke, George Berkeley e
David Hume (Inglaterra), Immanuel Kant (Alemanha) e Denis Diderot, François Marie Arouet
(Voltaire), Jean le Rond D’Alembert, Montesquieu e Jean Jacques Rousseau (França). Estes
últimos e outros pensadores que a eles se uniram, buscaram empreender uma suma filosófica que
deveria abranger com seus verbetes todos os segmentos do Saber na filosofia, na ciência, na
política e nas artes. Esta suma ganha o nome de Enciclopédia.
A Razão racionalista entende que o lumen naturale – a compreensão natural ou luz da
razão – é suficiente para penetrar na ordem da Criação, a fim de harmonizar a vida humana com a
natureza, tanto no mundo externo quanto no interior do ser do homem. Assim, se a Igreja defendia
a capacidade, o direito e o dever de ensinar as pessoas como o mundo havia sido criado, qual sua
finalidade e como deveriam se comportar; também a filosofia podia muito bem defender a
capacidade, o direito e o dever da mente de descobrir a natureza das coisas e derivar desta
compreensão os modos corretos da atividade humana. Acreditando na possibilidade de aumentar a
felicidade humana, o Esclarecimento (Iluminismo) recomendava princípios simples e tão gerais de
que todos pudessem desfrutar. Como, por exemplo, só aceitar a cultura da Razão Universal. Para
os iluministas, se a força era o principal auxiliar do obscurantismo, a discussão devia fazer nascer
a luz. Essa crença na razão e a confiança no homem resultam na liberdade do pensamento.
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Tornando-se livre de qualquer tutela, sabendo-se capaz de procurar soluções para seus
problemas como base em princípios racionais, o homem estende o uso da razão a todos os
domínios. E tal exaltação do poder do homem decorre, segundo Desné (1975), do fato de que “a
segurança do filósofo é a segurança do burguês que deve à sua inteligência, ao seu espírito de
iniciativa e de previdência, o lugar que tem na sociedade (...) A emancipação do homem, na qual
Kant vê o traço distintivo do Iluminismo, é a emancipação de uma classe, a burguesa, que atinge
sua maioridade” (DESNÉ, 1975, p. 87).
E o século XVIII é realmente o século das revoluções burguesas: ainda no final do século
anterior, em 1688, a Revolução Gloriosa na Inglaterra destrona os Stuart absolutistas e, em 1789,
os Bourbon são depostos com a Revolução Francesa. Ecos desses acontecimentos chegam ao
Novo Mundo, em movimentos de emancipação como a Independência dos Estados Unidos
(1776), a Inconfidência Mineira (1789) e a Conjuração Baiana (1798). Aqui se encontra um
conceito chave do Iluminismo: a revolta contra as autoridades do antigo sistema. “Muitos dos
filósofos do Iluminismo francês tinham visitado a Inglaterra, que em certo sentido era mais liberal
do que a própria França. A ciência natural inglesa, principalmente a partir de Newton com sua
física universal, fascinou esses filósofos franceses. Outros filósofos ingleses foram fonte de
inspiração para eles, principalmente Locke e sua filosofia política. De volta à sua pátria, a França,
eles começaram pouco a pouco a se rebelar contra o velho autoritarismo. Eles achavam que era
muito importante permanecer céticos a todas as verdades herdadas e acreditavam que o próprio
indivíduo deveria encontrar respostas para suas perguntas. Nesse ponto, a fonte de inspiração era a
tradição de Descartes” (GAARDER, 1995, p. 63).
Os filósofos iluministas diziam que a humanidade faria grandes progressos somente
quando a razão e o conhecimento se tivessem difundido entre todos. Para eles, era apenas questão
de tempo para que a irracionalidade a ignorância e a superstição desaparecessem e desse lugar a
uma humanidade iluminada e esclarecida.
- A conciliação entre ciência e filosofia
Outra característica do Iluminismo é a conciliação que se tenta realizar entre o “o positivo”
e o “racional”. Tal conciliação não é uma exigência puramente teórica; trata-se antes de um ideal
realizável: o pensamento setecentista vê aí a prova concreta, imediatamente convincente no curso
que as ciências efetivamente adotaram, desde seu renascimento. Nos progressos da física, na
sucessão das etapas percorridas por essa ciência, uma por uma, tem-se a certeza da realização de
um ideal. Por isso, o pensamento do século XVIII está, em todas as suas partes, vinculado ao
paradigma metodológico da física newtoniana; logo sua aplicação foi generalizada. Não se
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contenta em compreender a análise com a grande ferramenta intelectual do conhecimento físico-
matemático e vê aí o instrumento necessário e indispensável de todo o pensamento em geral. Em
meados do século, o triunfo de tal concepção já está assegurado. Se for verdade que certos
pensadores e certas escolas divergem em seus resultados, há, não obstante, uma concordância
unânime quanto a essas premissas da teoria do conhecimento. O Tratado de metafísica de
Voltaire; o “Discurso preliminar” da Enciclopedia, de D’Alembert e as Investigações sobre a
clareza dos princípios da teologia e da moral de Kant, falam a mesma linguagem: todos
proclamam que o verdadeiro método da metafísica se harmoniza, basicamente, com o que foi
introduzido por Newton na física e proporcionou tão copiosos frutos.
Voltaire declara que o homem que se desconhece a ponto de pretender penetrar a essência
interior das coisas, conhecê-las na pureza do seu “em si”, não demora em adquirir consciência do
limite de suas faculdades: “ele se vê na posição de um cego que tivesse de julgar a natureza das
cores. Mas a benevolência da natureza colocou uma bengala nas mãos do cego, que é a análise.
Munido dessa bengala ele vai poder abrir caminho entre as aparências, ser informado dos seus
efeitos e de seu ordenamento, de nada mais necessitando para orientar-nos intelectualmente, para
organizar sua vida e a ciência. É claro que jamais se deve formular hipóteses; não se deve dizer:
comecemos por inventar princípios com os quais trataremos de explicar tudo. Mas temos de dizer:
façamos exatamente a análise das coisas” (VOLTAIRE, p. 218). Assim, conclui Voltaire,
devemos renunciar à esperança de arrancar alguma vez às coisas o seu segredo, de penetrar no ser
absoluto da matéria ou da alma humana. Mas o seio da natureza nos está francamente aberto se
entendermos por isso a ordem e a legalidade empíricas. É nesse ponto central que vamos nos
estabelecer a fim de avançarmos em todas as direções. A potência da razão humana não está em
romper os limites do mundo da experiência para encontrar um caminho de saída para o domínio
da transcendência, mas em ensinar-nos a percorrer esse domínio empírico com toda a segurança.
- Kant e o problema do conhecimento
Essa confiança implantada no mundo do conhecimento pelo novo método científico gerou
um tipo de crença na plena realização da ciência, bem como do lugar que esta iria ocupar no
conhecimento ocidental. Este lugar era nada menos que aquele ocupado há séculos pela filosofia.
Assim, ao ver-se independente da filosofia através do método empírico que havia criado, a ciência
começou a seguir o seu rumo a passo célere; enquanto a filosofia mantinha-se presa a questões
que diziam respeito muito mais à teologia que à epistemologia. Por mais que buscasse, a filosofia
não conseguia avançar nem atingir um conhecimento que lhe desse um caráter científico, ou seja,
verdadeiro. É como se ela estivesse cada vez mais caminhando para o seu fim. Acreditou-se até
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mesmo que ela já não teria mais respostas necessárias a dar ao mundo moderno. Aliás, essa ideia
do fim da filosofia, segundo Heidegger (1983), não surgiu da Idade Moderna; seu germe já pode
ser encontrado no mundo grego, especificamente no período do helenismo. Heidegger, porém,
está fazendo no século XX, uma leitura cuja perspectiva dá ao termo “fim”, não a ideia negativa
concebida por alguns dos Iluministas (sobretudo os empiristas) de “dissolução”, de “cessação”;
para Heidegger, “quando falamos de fim da filosofia queremos significar o ‘acabamento’”;, isto é,
muito mais um estado de completude, do que uma dissolução. Há aí, então, a ideia de que a
ciência é uma espécie de fim último da filosofia. Eis como ele apresenta essa ideia:
“Fim é, como acabamento, a concentração nas possibilidades supremas. Pensamos estas
possibilidades de maneira muito estreita enquanto apenas esperamos o desdobramento de
novas filosofias do estilo até agora vigente. Esquecemos que já na época da filosofia grega
se manifesta um traço decisivo da Filosofia: é o desenvolvimento das ciências em meio ao
horizonte aberto pela Filosofia. O desenvolvimento das ciências é, ao mesmo tempo, sua
independência da Filosofia e a inauguração de sua autonomia. Este fenômeno faz parte do
acabamento da Filosofia. Seu desdobramento está hoje em plena marcha, em todas as
esferas do ente. Parece a pura dissolução da Filosofia; é, no entanto, precisamente seu
acabamento” (HEIDEGGER, 1983, p. 17).
No entanto, longe dessa leitura do século XX, que se apresenta muito mais como uma
forma de justificar a predominância da ciência frente à filosofia, a preocupação que possuíam os
racionalistas do Iluminismo era a de reservar um lugar para a filosofia, no mesmo espaço onde a
ciência se estabeleceu. Não se tratava apenas de uma tácita aceitação da realidade, mas de uma
tentativa de posicionar a filosofia em um lugar de direito. Ou seja, buscava lhe dar o mesmo
caráter positivo que foi outorgado à ciência, sem que com isso ela perdesse suas características
mais peculiares.
O filósofo que mais se empenhou nessa tarefa foi Kant. Mas para que ele pudesse dar à
filosofia um conhecimento universal e necessário, isto é, um conhecimento capaz de posicioná-la
na categoria de ciência, era preciso, antes, estabelecer as condições de possibilidade do
conhecimento produzido pela própria filosofia. Segundo Marilena Chauí, “desde o final do século
XVIII, com o filósofo Immanuel Kant, passou-se a considerar que a filosofia, durante todos os
séculos anteriores, tivera uma pretensão irrealizável. Que pretensão fora essa? A de que nossa
razão pode conhecer as coisas tais como são em si mesmas. Esse conhecimento da realidade em
si, dos princípios e das primeiras causas de todas as coisas chama-se metafísica. Kant negou que a
razão humana tivesse tal poder de conhecimento e afirmou que só conhecemos as coisas tais
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como são organizadas pela estrutura interna e universal de nossa razão, mas nunca saberemos se
tal organização corresponde ou não à organização em si da própria realidade” (CHAUI, 1997).
Porém, para entender a trajetória que Kant realizou, precisaremos, antes, entender como se
encontrava a polêmica sobre o entendimento humano, entre os empiristas e racionalistas. Para
isso, seguiremos alguns trechos da História da Filosofia de Will Durant, através dos quais ele
apresenta a crítica ao racionalismo feita por Locke, Berkeley e Hume. Após essa compreensão,
iremos perceber como Kant realiza a síntese dessas duas correntes filosóficas e apresenta a sua
Revolução Copernicana:
John Locke (1632-1704) propusera-se a aplicar à psicologia os testes e
métodos indutivos de F. Bacon; no seu Ensaio Sobre a Compreensão
Humana. A razão, pela primeira vez no pensamento moderno, voltara-se
para sim mesma, e a filosofia começa a examinar minuciosamente o
instrumento em que confiara durante tanto tempo.
Como surge o conhecimento? Será que, como supõem pessoas simples,
temos ideias inatas como, por exemplo, do certo e do errado, e de Deus –
inerentes à mente desde o nascimento, anteriores a qualquer experiência?
Locke rejeita as ideias inatas e afirma que todo nosso conhecimento
provém da experiência e vem através de nossos sentidos – que ‘nada
existe na mente que não tenha estado, primeiro, nos sentidos.’ A mente é,
ao nascer, uma folha em branco, uma tábula rasa; e a experiência dos sentidos, escreve nela de mil maneiras, até que
sensação gera memória, e memória gera ideias. Tudo isso parecia levar à surpreendente conclusão de que, já que só
as coisas materiais podem afetar os nossos sentidos, só conhecemos matéria e temos de aceitar uma filosofia
materialista. Se as sensações são a substância do pensamento, alegravam os apressados, a matéria deve ser a matéria-
prima da mente.
Nada disso, disse o bispo Berkeley (1664-1753); essa concepção de Locke
sobre a origem do conhecimento prova, isso sim, que a matéria não existe,
exceto como uma modalidade da mente. [...] Locke não nos disse que todo o
conhecimento é derivado das sensações? Portanto, todo o nosso
conhecimento de qualquer coisa é meramente a sensação que temos dela, e as
ideias derivadas dessas sensações. Uma “coisa” é meramente um feixe de
percepções– isto é, sensações classificadas e interpretadas. Você protesta que
o seu café da manhã é muito mais substancial do que um feixe de percepções;
e que um martelo que lhe ensina carpintaria através do seu polegar tem uma
materialidade muitíssimo magnífica. Mas o seu café da manhã é, a princípio,
nada mais do que um amontoado de sensações de visão, olfato e tato; e
depois, de paladar; e depois, de conforto e calor interno. Da mesma forma, o
martelo é um feixe de sensações de cor, tamanho, forma, peso, tato, etc.; a realidade dele para você não está na
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materialidade, mas nas sensações que vêm do seu polegar. Se você não tivesse sentidos, o martelo não existiria para
você de forma alguma; ele poderia atingir seu polegar insensível sem parar e, no entanto, não merecer de você a
menor atenção. É apenas um feixe de sensações, ou um feixe de memórias; é uma condição da mente. Toda matéria,
pelo que sabemos, é uma condição mental; e a única realidade que conhecemos diretamente é a mente. Era o que se
tinha a dizer sobre o materialismo.
Mas Berkeley não contara com o cético David Hume (1711-1776).
Com a idade de 26 anos, ele chocou a cristandade com o seu altamente
herético Tratado sobre a Natureza Humana – um dos clássicos e uma
das maravilhas da filosofia moderna. Só conhecemos a mente, disse
Hume, como conhecemos a matéria: pela percepção, embora nesse caso
ela seja interna. Nunca percebemos qualquer entidade como a ‘mente’;
percebemos meramente ideias, memórias, sentimentos etc., separados. A
mente não é uma substância, um órgão que tenha ideias; trata-se apenas
de um nome abstrato para a série de ideias; as percepções, memórias e
sentimentos são a mente; não existe uma ‘alma’ observável por detrás
dos processos de pensamento. O resultado parecia ser que Hume havia
destruído a mente com a mesma eficiência com que Berkeley destruíra a
matéria. Não sobrara nada; e a filosofia se viu em meio às ruínas que ela mesma provocara.
Todavia, Hume não se contentou em destruir a religião ortodoxa, desfazendo o conceito de alma; ele propunha
também a destruir a ciência, ao acabar com o conceito de lei. Tanto a ciência como a filosofia, desde Bruno e
Galileu, vinham dando muito valor à lei natural, à ‘necessidade’ na seqüência do efeito sobre a causa; Spinoza havia
erguido sua majestosa metafísica sobre essa orgulhosa concepção, Mas observem, disse Hume, que nós nunca
percebemos causas, ou leis; percebemos eventos e seqüências, e inferimos causação e necessidade; uma lei não é um
decreto eterno e necessário ao qual os eventos estejam sujeitos, mas meramente um sumário mental de nossa
caledoscópica experiência; não temos garantia de que as seqüências até aqui observadas irão reaparecer inalteradas
numa experiência futura. ‘Lei’ é um costume, um hábito observado na seqüência dos eventos; mas não há
‘necessidade’ no hábito (DURANT, 1996: 274-9).
O ceticismo de Hume contesta a validade de que algumas verdades relacionadas tanto à
filosofia quanto à ciência. No fundo, Hume nega a possibilidade de qualquer conhecimento
universal e necessário, além do conhecimento matemático. Ele mostra que a razão que se costuma
honrar como a faculdade soberana do homem, desempenha afinal um papel inteiramente
secundário no conjunto da vida psíquica. Os seus poderes são tão fracos que ela precisa estar
durante todo o tempo voltada para as faculdades “inferiores” da alma. De modo que a razão não
saberia dar um só passo sem a colaboração da sensibilidade e da imaginação. Para Hume, todo o
saber racional se reduz exclusivamente à inferência da causa a partir da observação do efeito; ora
essa inferência, em si mesma, é justamente aleatória, incerta, e jamais poderá ser estabelecida por
via puramente lógica. Eis como Hume apresenta algumas das suas ideias:
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Suponha-se que uma pessoa, embora dotada das mais vigorosas faculdades de razão e reflexão, seja trazida
repentinamente a este mundo. É certo que tal pessoa observaria de imediato uma sucessão contínua de
objetos e um fato sucedendo-se a outro; não seria, porém, capaz de descobrir nada mais. A princípio, não
haveria raciocínio que a conduzisse à ideia de causa e efeito, já que os poderes particulares graças aos quais
se realizam todas as operações naturais não se manifestam aos sentidos; nem é razoável concluir,
simplesmente porque um acontecimento em determinado coso precede um outro, que o primeiro é a causa e
o segundo é o efeito, a conjunção dos dois pode ser arbitrária e casual. Talvez não haja razão para inferir a
existência de um do aparecimento do outro. Numa palavra: sem mais experiência, tal pessoa não poderia
fazer uso de conjectura ou de raciocínio a respeito de qualquer questão de fato ou ter certeza de qualquer
coisa além do que estivesse imediatamente presente à sua memória e aos seus sentidos.
Suponha-se agora que esse homem adquiriu mais experiência e viveu no mundo o tempo suficiente para ter
observado uma conjunção constante entre objetos ou acontecimentos familiares: qual é o resultado dessa
experiência? Ele infere imediatamente a existência de um objeto do aparecimento do outro. E, ainda assim,
sem que toda a sua experiência lhe tenha dado qualquer ideia ou conhecimento do poder secreto pelo qual
um objeto produz o outro; e tampouco tenha sido levado a fazer essa inferência por qualquer processo de
raciocínio. No entanto, é levado a fazê-la; e ainda que esteja convencido de que o seu raciocínio nada tem
que ver com essa operação persiste na mesma linha de pensamento. Há algum outro princípio que determina
a tirar essa conclusão.
Esse princípio é o costume ou hábito. Com efeito, sempre que a repetição de algum ato ou operação
particular produz uma propensão de renovar o mesmo ato ou operação sem que sejamos impelidos por
qualquer raciocínio ou processo do entendimento, dizemos que essa propensão é um efeito do hábito. Ao
empregar esta palavra, não pretendemos dar a razão primária de uma tal propensão. Limitamo-nos a apontar
um princípio da natureza humana universalmente admitido e bem conhecido pelos seus efeitos. Talvez não
seja possível levar mais avante as nossas indagações ou pretender indicar a causa dessa causa; talvez
devamos contentar-nos com ela como o princípio básico deduzido de todas as nossas conclusões da
experiência. Demo-nos por satisfeitos em ter chegado até aí e não nos queixemos da estreiteza de nossas
faculdades, que não nos podem levar mais longe. E é certo que aqui avançamos uma proposição muito
inteligível, pelo menos, se não verdadeira, ao afirmar que após a conjunção constante de dois objetos – por
exemplo, calor e chama, peso e solidez – somos levados tão somente pelo costume a esperar, após um deles,
o aparecimento do outro. Esta hipótese parece ser, mesmo, a única que resolve a dificuldade: por que
tiramos de mil exemplos uma inferência que não podemos tirar de um só exemplo, a todos os respeitos
iguais aos outros? A razão é incapaz de variar desse modo. As conclusões que tira da consideração de um
círculo são as mesmas que tiraria da observação de todos os círculos do universo. Mas ninguém, ao ver um
único corpo mover-se depois de ser impelido por outro, poderia inferir que todos os corpos se moverão sob
um impulso semelhante. Todas as inferências derivadas da experiência, por conseguinte, são efeitos do
costume e não do raciocínio.
O Hábito é, pois, o grande guia da vida humana. É aquele princípio único que faz com que nossa
experiência nos seja útil e nos leve a esperar, no futuro, uma seqüência de acontecimentos semelhantes às
que se verificam no passado. Sem a ação do hábito, ignoraríamos completamente toda questão de fato além
do que está imediatamente presente à memória ou aos sentidos. Jamais saberíamos como adequar os meios
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aos fins ou como utilizar os nossos poderes naturais na produção de um efeito qualquer. Seria o fim
imediato de toda ação, assim como da maior parte da especulação”.4
- O criticismo kantiano e a síntese do racionalismo e do empirismo
Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência;
efetivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a nossa faculdade
de conhecer senão os objetos que afetam os sentidos e que, por um lado, originam
por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa
faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las,
transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento
que se denomina experiência? Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento
precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu
início.
Se, porém, todo conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que
todo ele derive da experiência. Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento
por experiência ser um composto do que recebemos através das impressões
sensíveis e daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em
ação por impressões sensíveis) produz por si mesma; acréscimo esse que não
distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar por um
longo exercício que no torne aptos a separá-los. (KANT, Introdução à Crítica da
Razão Pura).
4
- HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano, Col. Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1973,
pp. 145-6.
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Kuno Fischer (1996), um dos maiores e mais conceituados comentadores da filosofia
kantiana, prefere atribuir pouca afinidade entre o sistema kantiano e os outros sistemas anteriores.
Para ele, há muito mais oposição que analogia na relação desses sistemas. O que contribui para
que ele tenha esse tipo de pensamento é a relação existente entre os fundadores da ciência
moderna com as teorias da Antiguidade, sobretudo, com aquelas de Demócrito, de Platão e de
Aristóteles. Em sua História das Origens da Filosofia Crítica, podemos encontrar afirmações
bastante contundentes, como, por exemplo, as que apresentamos a seguir:
“Bacon, o inimigo mais enfurecido da filosofia da Antiguidade, se faz defensor de um dos sistemas
antigos, a saber: da teoria atômica de Demócrito, Leibniz, que é contra seus antecessores mais
próximos – Bacon, Descartes e Espinosa – restabeleceu a teoria teleológica e tratou de aproximá-la
da mecânica, tem pontos de contato com Platão e Aristóteles e tratou principalmente de restabelecer
a filosofia de ambos na sua” (FISCHER, 1996, 73).
Outro fator que o comentador garante provar a diferença entre o pensamento kantiano e os
sistemas de pensamento anteriores, refere-se ao verdadeiro objeto de conhecimento da filosofia:
antes de Kant não havia um objeto distinto, próprio da filosofia, que fosse capaz de atribuir-lhe
autonomia como acontece com as outras ciências: a lógica, a matemática e a física. Segundo
Kuno Fischer (1996), a filosofia não possuía um objeto específico, nem mesmo no período em
que os pensadores da modernidade tentavam estabelecer um novo sistema filosófico. Por
exemplo, ao se ocupar da explicação das coisas, a filosofia dividia com a física o mesmo objeto
de análise. Essa postura impossibilitava qualquer caráter científico na filosofia especulativa e a
impedia de apresentar-se como uma verdadeira ciência frente às ciências exatas. Desta forma,
“somente quando se encontrasse em possessão de um objeto que não é, ao mesmo tempo, das
outras ciências, que nenhuma delas pode investigar, e que não é menos evidente que qualquer
outro objeto das ciências exatas e das investigações empíricas” (Idem); seria possível que ela se
tornasse uma ciência com seu posto firme e inabalável. Assim, a filosofia poderia restabelecer
definitivamente o seu lugar de direito no universo do conhecimento.
Deixando de lado a polêmica sobre a originalidade existente na primeira parte dos
argumentos desse comentador, preferimos, antes, aceitar a segunda ideia que diz respeito ao
objeto da filosofia. Porém, para entender melhor em que consiste essa novidade, a qual dará um
novo rumo à filosofia e será a sua grande contribuição para o surgimento das ciências humanas, é
preciso perceber quais são as bases de sua fundamentação.
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- Kant e a Revolução Copernicana.
Fala-se sempre da influência de Hume sobre Kant. Aliás, foi o próprio Kant quem
confessou ter sido despertado por Hume do seu sono dogmático.5 Hume afirmou a
impossibilidade da existência de uma entidade como a “mente” e negou também qualquer
conhecimento universal e necessário conseguido através da ciência, pois as nossas verdades sobre
as coisas não estão fundamentadas em constatações, mas em julgamentos inferidos. Assim,
segundo Hume, o nosso conhecimento é resultante de um “passo além” dado pela razão a partir
de algumas repetições sensíveis. Para ele, o nosso conhecimento implicava em princípios
subjetivos. Ora, agindo assim, não é possível ao ser humano possuir um conhecimento universal e
necessário; e a ciência, tal como a filosofia, estava fadada a peregrinar nos caminhos do erro e da
incerteza.
No racionalismo dogmático, a teoria do conhecimento fundava-se sobre a ideia de uma
correspondência entre o sujeito e o objeto; de um acordo entre a ordem das ideias e a ordem das
coisas. Esse acordo, em última instância, estava sustentado pelo princípio teleológico, como fonte
e garantia dessa harmonia. Ora, até então, sabia-se que esta era uma das principais características
desse racionalismo. O que Kant vai nos revelar, no entanto, é que o empirismo de Hume estava
enveredado nessa mesma perspectiva: “... para explicar que os princípios da natureza estivessem
de acordo com os da natureza humana, Hume foi forçado a invocar explicitamente uma harmonia
preestabelecida” (DELEUZE, 1984, p. 22).
É a partir dessa “falha” presente tanto nos racionalistas como nos empiristas, que Kant irá
realizar a “Revolução copernicana” na filosofia. Ele vai substituir a ideia de uma harmonia entre
o sujeito e o objeto, pelo princípio de uma submissão necessária do objeto em relação ao sujeito.
A descoberta essencial diz respeito à ideia de que há algo de legislador na faculdade do
conhecimento. Segundo Deleuze, “a primeira coisa que a revolução copernicana nos ensina é que
somos nós que comandamos. Por isso há uma inversão da concepção antiga de sabedoria: o sábio
se definia, ao mesmo tempo, por sua própria submissão e por seu acordo final com a Natureza.
Kant opõe à sabedoria, a imagem crítica: nós somos os legisladores da Natureza” (Idem).
Então, qual é a garantia de que o sujeito do conhecimento possui uma predominância em
relação ao objeto? Kant vai afirmar que o sujeito – a razão universal – possui, antes mesmo de
receber algum dado sensível, formas a priori e categorias universais. Ou seja, há algo no sujeito
do conhecimento que prescinde de toda e qualquer experiência, mas que se encontra presente no
5
- “Confesso abertamente ter sido a advertência de Hume que, já vão muitos anos, pela primeira vez me despertou de
meu sono dogmático e incutiu minhas pesquisas no domínio da filosofia especulativa orientação inteiramente
diferente.”, I. Kant., Prolegômenos, prefácio, p. 28.
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momento mesmo da efetivação do conhecimento. Trata-se do espaço e do tempo.6 Essas formas a
priori permitem fundar a distinção entre a sensibilidade e o entendimento; dar a requerida
oposição conceitual entre a ordem lógica e a ordem real. A partir de agora, espaço e tempo serão
concebidos como “intuições puras”, por serem representados ao mesmo tempo como a priori e
como próprios da sensibilidade, que não procuram por si só um acesso ao existente, mas, ao
contrário, exibem as estruturas nas quais o existente tem necessariamente que se enquadrar para
que possa se apresentar ao sujeito. Nessa concepção se pode fundar imediatamente a distinção
entre a mera possibilidade lógica de uma coisa e sua possibilidade real.
Esclarecendo melhor: a possibilidade lógica do objeto está fundada no princípio de
contradição, que permite pensar sua existência a partir do seu conceito e, então, garantir ou não
essa existência, através da existência real. Quanto à possibilidade real de um objeto, é preciso que
ele se enquadre na estrutura formal espaço/tempo. Se o objeto pensado não se ajustar nessa nova
estrutura, a razão humana não tem como conhecê-lo e representá-lo como real ou tampouco como
uma existência lógica. As intuições puras vão, então, nos oferecer uma “consciência das
condições de possibilidade a que se ajusta todo o existente”. Isso vai implicar nos limites que a
crítica estabelece à razão para garantir-lhe aquilo que ela pode pensar. Esses limites são, ao
mesmo tempo, a possibilidade da metafísica e sua restrição, em que o seu conhecimento a priori
só se efetivará se estiver condicionado ao real, o qual precisa, por outro lado, enquadrar-se nas
estruturas mencionadas acima. Eis como Roberto Torretti apresenta esse problema:
“A possibilidade real supõe, segundo Kant, que a coisa pensada possa enquadrar-se nas estruturas
mencionadas. Nossa capacidade de representar-nos essas estruturas nos submete a uma consciência
das condições de possibilidade a que se ajusta todo o existente – pelo menos enquanto é capaz de se
apresentar a nós. Essa consciência é a base do conhecimento do real, que não depende de sua
apreensão efetiva. Deste modo, a possibilidade do conhecimento a priori dos entes realmente
existentes descansa na consciência das condições a que está sujeita a possibilidade real desse
acontecimento, entes. A possibilidade da metafísica se fundamenta, mas ao mesmo tempo se
restringe por esta via: o entendimento só pode conhecer a priori o real, enquanto está referido à
sensibilidade, da qual depende a consciência do espaço e do tempo; a ontologia assim apresentada,
não é uma ciência do ente enquanto coisa em si, mas do ente enquanto pode apresentar-se ao
6
- Eis como Marilena Chauí fala das formas a priori: “não interessa se cada um de nós vê cores de uma maneira,
gosta mais de uma cor do que de outra, ouve sons de uma certa maneira, gosta mais de certos sons do que de outros,
etc. O que importa é que nada pode ser percebido por nós se não possuir propriedades espaciais; por isso, o espaço
não é algo percebido, mas é o que permite haver percepção (percebemos lugares, posições, situações, mas não
percebermos o próprio espaço. Assim, o espaço é uma forma a priori da sensibilidade e existe em nossa razão antes e
sem a experiência. Também só podemos perceber as coisas como simultâneas ou sucessivas: percebemos as coisas
como se dando num só instante ou em instantes sucessivos. Ou seja, percebemos as coisas como realidades temporais.
Não percebemos o tempo (temos experiência do passado, do presente e do futuro, porém, não temos percepção do
próprio tempo), mas ele é a condição de possibilidade da percepção das coisas e é a outra forma a priori da
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homem. Isto significa uma recusa da pretensão de um conhecimento seguro dos três ramos da
metafísica especial – a teologia (Deus), a psicologia (a alma) e a cosmologia (o infinito) – cujos
objetos não são entes que possam apresentar-se ao homem” (TORRETTI, 1980, p. 50).
Com o limite do entendimento humano estabelecido, tem-se também como consequência a
garantia da própria possibilidade da metafísica – a filosofia – como ciência, ou seja, como um
conhecimento universal e necessário; a metafísica passa a ter, assim, o seu próprio objeto que será
diferente daquele da física ou da matemática. Assim, se o objeto da física, por exemplo, são as
coisas, o objeto da filosofia é o conhecimento mesmo das coisas. Ou, aprofundando ainda mais,
poderíamos dizer que o objeto da filosofia é o conhecimento humano, logo, a matemática, a física
e toda forma empírica do conhecimento.
Para concluir, vejamos um texto de Kuno Fischer (1996) sobre a questão do objeto de
estudo da filosofia. Ele evidencia ainda mais a autonomia epistemológica da filosofia e todo o seu
distanciamento daquilo que, no início, apresentava-se como um problema da filosofia e que, ao
mesmo tempo, lhe impossibilitava de firmar-se como uma ciência por não possuir bases sólidas
onde pudesse edificar o seu monumento, posto que tanto o seu objeto, quanto o seu método, eram
tomados de empréstimo de outras ciências: “somente quando se encontre em possessão de um
objeto que não é, ao mesmo tempo, das outras ciências, que nenhuma desta pode investigar, e que
ao mesmo tempo não seja menos evidente que qualquer outro das ciências exatas e das
investigações empíricas (...) esta questão decide também a questão de vida ou morte da filosofia”.
E ele continua: “As ciências exatas não podem negar a existência efetiva que têm, e nisso consiste
sua importância e a causa do seu progresso diariamente e o aumento de sua influência. Não é,
então, necessária uma ciência que tenha por objeto a explicação desses fatos, uma ciência que
considere como seus objetos as matemáticas, a física e a experiência, da mesma maneira que as
matemáticas consideram a quantidade, a física, os corpos, e a experiência, as coisas em geral?”
(FISCHER, 1996, p. 83).
sensibilidade que existe em nossa razão antes da experiência e sem a experiência”. Marilena CHAUI. Convite à
Filosofia... pp. 78-9.
18
Referência
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- CASSIRER, Ernest. A Filosofia do Iluminismo. 2a edição. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
DELEUZE, Gilles. La Philosophie Critique de Kant. Paris: PUF, 1987.
DESNÉ, In, Filosofando: Introdução à Filosofia. 2a edição, São Paulo: Editora Moderna,
DURANT, Will. A História da Filosofia. Col. Os Pensadores, São Paulo: Editora Nova Cultural,
1996.
FISCHER, Kuno. História de los Orígens de la Filosofía Crítica. In: Prefacio à Crítica de la Razón
Pura, décima edición, Bueno Aires: Editorial Losada, 1996.
GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo:
CIA. das Letras, 1995.
TORRETTI, Roberto. Manuel Kant – estúdio sobre los fundamentos de la Filosofia Crítica. 2ª.
Edition, Buenos Aires: Editorial Charcas, 1980.
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Separar a parte do texto em que fala sobre o filosofo berkey
O Pensamento Iluminista, a sistematização do conhecimento a busca da autonomia humana José Roberto Silva de Oliveira1 Figura 1 - El Conjuro - Goya 1 Mestre em História da Filosofia Contemporânea, pela PUC de São Paulo. Doutor em Análise Cognitiva, pelo Programa Pós-Graduação Multi-Institucional em Difusão do Conhecimento (PPGDC/UFBA). Professor de Filosofia do Ensino Básico Técnico, Tecnológico (EBTT) do Instituto Federal da Bahia (IFBA), campus Eunápolis. É membro dos grupos de pesquisa Enlace e Núcleo de Estudos em Educação Profissional. Atua nas seguintes áreas: Educação Profissional, Análise Cognitiva, Filosofia da Educação, Filosofia da Tecnologia, Tecnologia Social. 1 “São necessários vinte anos para se trazer o homem do estado de uma planta, no qual ele existe no ventre de sua mãe, e do estado de um animal, que é a sua condição na infância, para um estado em que a maturidade da razão começa a se fazer sentir. Trinta séculos são necessários para se descobrir mesmo um pouco de sua estrutura. Seria necessária uma eternidade para saber qualquer coisa sobre a sua alma. Mas basta um momento para matá-lo.” Voltaire, do verbete “Homem”, in Dicionário. “[...] Compreenderam que a razão só entende o que produz, seguindo seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios que determinem seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder suas interrogações, em vez de deixar guiar por esta.” Emanuel Kant (Prefácio à Crítica da Razão Pura) “... a credulidade, a aversão à dúvida, a temeridade no responder, o vangloriar-se com o saber, a timidez no contradizer, o agir por interesse, a preguiça nas investigações pessoais, o fetichismo verbal, o deter-se em conhecimentos parciais: isto e coisas semelhantes impediram um casamento feliz do entendimento humano com a natureza das coisas e o acasalaram, em vez disso, a conceitos vãos e experimentos erráticos: o fruto e a posteridade de tão gloriosa união pode-se facilmente imaginar. A imprensa não passou de uma invenção grosseira; o canhão era uma invenção que já estava praticamente assegurada; a bússola já era, até certo ponto, conhecida. Mas que mudança essas três invenções produziram – uma na ciência, a outra na guerra, a terceira nas finanças, no comércio e na navegação! E foi apenas por acaso, digo eu, que a gente tropeçou e caiu sobre elas. Portanto, a superioridade do homem está no saber, disso não há dúvida. Nele muitas coisas estão guardadas que os reis, com todos os seus tesouros, não podem comprar, sobre as quis sua vontade não impera, das quais seus espias e informantes nenhuma notícia trazem, e que provêm de países que seus navegantes e descobridores não podem alcançar. Hoje, apenas presumimos dominar a natureza, mas, de fato, estamos submetidos à sua necessidade; se, contudo, nos deixássemos guiar por ela na invenção, nós a comandaríamos na prática”. Adorno e Horkheimer – Dialética do Esclarecimento, pp. 19-20. Os pensadores do século das luzes herdaram dos séculos precedentes – XVI e XVII – um profundo rigor, um gosto pelo “encadeamento histórico” e uma confiança incomensurável na razão. O encadeamento histórico encontra-se vinculado principalmente às transformações históricas que se efetivaram entre os séculos XV e XVII e que, de acordo com o seu nível de “progresso”, prometia continuidade ou, até mesmo, uma superação. Quando à confiança na razão, os pensadores do Esclarecimento acreditavam que ela era una, imutável e universal: a razão é una 2 e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura (cf. CASSIRER, 1994, p. 23). Sem se posicionarem como pensadores capazes de apresentar um conteúdo doutrinal e dogmático inteiramente desvinculado da história da filosofia, eles preferiram reconhecer o importante caminho que foi traçado pelo pensamento filosófico moderno, quando adquiriu a certeza de seus juízos referentes à realidade e à autoconfiança em sua consciência. Por tudo isso, os pensadores desse período foram denominados de “Pensadores Iluministas”. O vínculo existente entre tais pensadores e a herança que lhes foi passada é tão marcante, a ponto de passar a impressão de não haver nenhuma novidade gerada por eles. Por exemplo, em sua obra A Filosofia do Iluminismo, Cassirer (1994) afirma que “[...] ainda que não tenha tomado plena consciência desse fato, a Época das Luzes permaneceu, no tocante ao conteúdo de seu pensamento, muito mais dependente dos séculos precedentes. Apropriou-se da herança desses séculos e ordenou, examinou, sistematizou, desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na verdade, contribuiu com ideias originais e sua demonstração” (CASSIRER, 1994, p. 09). No entanto, aquilo que parece ser apenas uma fidelidade e a marca de um movimento desprovido de caráter original, no fundo representou a própria originalidade desse período. Essa afirmação se sustenta principalmente sobre o seguinte argumento: mais do que inovar ou tentar a criação de um pensamento inédito foi no fato de poder ordenar, examinar, sistematizar e esclarecer aquilo que já havia sido percebido e experienciado por pensadores de outras épocas, que os pensadores iluministas conquistaram sua originalidade. É isso que vai fazer com que o Iluminismo apresente uma nova visão e um novo destino ao movimento que busca a universalização do pensamento filosófico, para se atingir a maturidade humana. Portanto, esse período buscou ordenar o conhecimento e examinar a origem daquilo que representa suas condições de possibilidade – o intelecto –, além de tentar sistematizá-lo, sem que, com isso, caísse novamente no engano dos sistemas predominantes do século XVII. Como consequência, o Iluminismo implantou sua grande originalidade: o estabelecimento de limites para a razão, a política, as práticas humanas e a religião. Esta foi a sua principal originalidade. Ao reconhecer a necessidade de uma sistematização do conhecimento sem reduzi-lo a um sistema, os pensadores do século das luzes estavam rejeitando simultaneamente tanto uma prática da elaboração de grandes arquiteturas sistemáticas comumente aceitas pelos pensadores do século XVII, quanto uma forma de fundamentar o conhecimento, em última instância, em um ser supremo (Deus), cujo reconhecimento era efetivado através do método dedutivo. Na verdade, esta rejeição gerou um profundo deslocamento naquilo que, até então, fundamentava a razão ocidental: ao invés de buscar sustentação para a verdade na metafísica 3 (uma realidade que se encontra além da matéria), os iluministas preferiram apoiar-se nas próprias bases do intelecto e nos fenômenos oferecidos pelos sentidos humanos. Mas isso não significa dizer que esses pensadores teriam retirado a figura de Deus do universo do conhecimento; melhor seria afirmar que eles já não esperavam mais pela legitimação de uma divindade para que a verdade assumisse um posicionamento perante o mundo. Mais do que a possibilidade ou a não-possibilidade da existência de um ser superior capaz de dar garantia à verdade, o que estava em jogo eram as próprias noções de filosofia e de razão; ou seja, os iluministas já não podiam mais conceber essas noções como realidades dependentes de uma divindade. Insistir nessa perspectiva seria distanciá-las ainda mais de seu verdadeiro sujeito – o homem. Sobre isso, Cassirer afirma: “As ideias teóricas elaboradas pela metafísica do século XVII ainda estão fortemente lastradas no pensamento teológico, com toda sua originalidade e independência. Para Descartes e Malebranche, para Espinosa e Leibniz, não existe nenhuma solução do problema da verdade que não tenha a mediação do problema de Deus: o conhecimento da essência divina constitui o princípio supremo do conhecimento donde decorrem, por via dedutiva, todas as outras certezas. Ora, no pensamento do século XVIII, o centro de gravidade da questão desloca-se: a física, a história, o direito, o Estado, a arte escapam cada vez mais à dominação e à tutela da metafísica e da teologia tradicionais. Essas disciplinas deixaram de esperar que a ideia de Deus as ratifique e legitime; pelo contrário, são propensas a modelar essa ideia segundo a forma específica de cada uma delas, a contribuir para sua determinação com uma participação decisiva. Portanto, não se rompeu totalmente a relação entre a ideia de Deus, por uma parte, e por outra, as ideias de verdade, moralidade e direito, mas o sentido dessa relação foi mudado. Produziu-se, de certo modo, uma ‘mudança de sinal’: a ideia fundadora passa à condição de fundada e o que até então servia para justificar é agora o que exige uma justificação [...]” (CASSIRER, 1994, p. 217). Já que o saber do século XVII aparecia aos olhos dos pensadores iluministas como sendo uma realidade aparentemente distante da condição humana, então era necessário aproximar a razão de seu verdadeiro sujeito, para fazê-la descer ao mundo dos fenômenos e dos fatos terrestres, ainda que para isso fosse preciso reduzir seu poder de apreensão. A solução encontrada por esses pensadores foi o abandono do método dedutivo, como via fundamental percorrida pela filosofia, em busca da verdade, para um outro método menos ambicioso, porém que trazia resultado mais seguro: o método analítico. É assim que Newton ganha um lugar preferencial nessa 4 nova forma de filosofar.2 É nela também que os fatos terão prioridade, em relação às hipóteses e às conjecturas. Isso significa a recusa da lógica escolástica e da lógica puramente matemática, para deixar falar a “lógica dos fatos”. Com essa nova postura, o espírito racional penetra cada vez mais “nas riquezas dos fenômenos” e se mede constantemente a partir dessa perspectiva, recusando, com isso, a imaginação, o pensamento intuitivo e principalmente a força dos sentimentos e da fé como elementos que atingem a verdade. Resta saber como se deu a intensificação da crença na razão e como tal atitude transformou a noção de homem até então existente.
- O Espírito humano do século XVIII D’Alembert iniciou seus Elementos de filosofia com um painel onde procura definir a situação do espírito humano em meados do século XVIII. Segundo ele, no decorrer dos três séculos anteriores, foi possível observar que em meados de cada um desses séculos ocorreu sempre uma transformação importante no conjunto da vida intelectual. Assim, em meados do 2
- A era do Iluminismo não outorga esse ideal de pensamento às doutrinas filosóficas do passado; prefere formá-lo tomando, por exemplo, a física contemporânea, cujo modelo tem sob seus olhos. Em vez do Discurso do método de Descartes, apoia-se nas Regulae philosophandi de Newton para resolver o problema central do método da filosofia. E essa solução logo encaminha a investigação para uma direção inteiramente diferente. A via newtoniana não é a da dedução pura, mas a da análise”, p. 24. 5 século XV inicia-se o movimento literário e intelectual do Renascimento; em meados do século XVI, a Reforma religiosa está no apogeu; e no século XVII é a vitória da filosofia cartesiana que provoca uma revolução radical na imagem do mundo. E então ele pergunta se será possível descortinar um movimento análogo no século XVIII e determinar sua direção e seu alcance? E o filósofo prossegue: “Por muita pouca atenção que se preste aos meados do século em que vivemos, aos acontecimentos que nos agitam ou que, pelo menos, nos ocupam, aos nossos costumes, às nossas obras e até às nossas conversas, é muito difícil passar despercebida a extraordinária mudança que, sob múltiplos aspectos, ocorreu em nossas ideias; mudança essa que, por sua rapidez parece prometer-nos uma ainda maior. Cabe ao tempo fixar o objeto, a natureza e os limites dessa revolução, cujos inconvenientes e cujas vantagens a nossa posteridade conhecerá melhor do que nós. O nosso século é chamado o Século da Filosofia por excelência. Se examinarmos sem prevenção o estado atual dos nossos conhecimentos, não se pode deixar de convir que a filosofia registrou grandes progressos entre nós. A ciência da natureza adquire a cada dia novas riquezas; a geometria, ao ampliar os seus limites, transportou seu fecho para as regiões da física que se encontravam mais perto dela; o verdadeiro sistema do mundo ficou conhecido, foi desenvolvido e aperfeiçoado. Desde a Terra até Saturno, desde a história dos céus à dos insetos, a ciência da natureza mudou de feições. Com ela, quase todas as outras ciências adquirem novas formas e, com efeito, era imprescindível que o fizessem. A busca racional agindo em todos os sentidos por sua natureza, envolveu com uma espécie de violência tudo o que se lhe deparou, como um rio que tivesse rompido seus diques. Assim, desde os princípios das ciências profundas até os fundamentos da Revelação, desde a metafísica até as questões de gosto, desde a música à moral, desde as disputas escolásticas dos teólogos até os objetos de comércio, desde os direitos dos príncipes aos direitos dos povos, desde a lei natural até as leis arbitrárias das nações, numa palavra, desde as questões que mais profundamente nos tocam até as que só superficialmente nos interessam, tudo foi discutido e, no mínimo, agitado”.3 O homem que usa essa linguagem é um dos cientistas mais respeitáveis do seu tempo. Suas palavras fornecem-nos, portanto, uma ideia da índole e da direção de toda a vida intelectual de sua época. Uma época que sente a força do pensamento, ou seja, o pensamento quer agora saber para onde o seu curso o leva e quer, sobretudo, dirigir o seu próprio curso. Ele aborda o mundo com a nova alegria de descobrir e com um novo espírito de descoberta; contudo, a sua sede de saber volta-se também para a sua própria natureza e o seu próprio poder. É nesse sentido que se apresenta, para o conjunto do século XVIII, o problema do “progresso” intelectual. Não existe um século que tenha sido tão profundamente penetrado e empolgado pela ideia de 3
- D’Alembert, Eléments de philosophie I. In: CASSIRER, 1994, p. 19. 6 progresso intelectual quanto o Século das Luzes. Dessa forma, os intelectuais dessa época, concebiam que, objetivamente considerados, os caminhos divergem, mas essa divergência nada tem de dispersão. Todas as energias do espírito permanecem ligadas a um centro motor comum. A diversidade, a variedade das formas é tão somente o desenvolvimento e o desdobramento de uma forma criadora única, de natureza homogênea. Assim, quando o século XVIII quer designar essa força, sintetizar numa palavra a sua natureza, recorre ao nome “razão”. A “razão” é o ponto de encontro e o centro de expansão do século, a expansão de todos os seus desejos, de todo os seus esforços, de seu querer e de suas realizações. O século XVIII está impregnado de fé na unidade e imutabilidade da razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época e toda a cultura. A razão é concebida como o foco de luz fundamental para dissolver todas as ilusões que assolam a humanidade. Assim, à semelhança dos humanistas da Antiguidade, como Sócrates e os estóicos, a maioria dos filósofos do esclarecimento (Aufklärung) tinha uma crença inabalável na razão humana. Isto era algo tão evidente que muitos chamam esse período simplesmente de “racionalismo”. A nova ciência natural deixava claro que tudo na natureza era racional. De modo que os filósofos iluminstas consideravam sua tarefa a criação de um alicerce para a moral, a ética e a religião e a política, que estivesse em sintonia com a razão imutável do homem. Os filósofos que melhor representam o Iluminismo são John Locke, George Berkeley e David Hume (Inglaterra), Immanuel Kant (Alemanha) e Denis Diderot, François Marie Arouet (Voltaire), Jean le Rond D’Alembert, Montesquieu e Jean Jacques Rousseau (França). Estes últimos e outros pensadores que a eles se uniram, buscaram empreender uma suma filosófica que deveria abranger com seus verbetes todos os segmentos do Saber na filosofia, na ciência, na política e nas artes. Esta suma ganha o nome de Enciclopédia. A Razão racionalista entende que o lumen naturale – a compreensão natural ou luz da razão – é suficiente para penetrar na ordem da Criação, a fim de harmonizar a vida humana com a natureza, tanto no mundo externo quanto no interior do ser do homem. Assim, se a Igreja defendia a capacidade, o direito e o dever de ensinar as pessoas como o mundo havia sido criado, qual sua finalidade e como deveriam se comportar; também a filosofia podia muito bem defender a capacidade, o direito e o dever da mente de descobrir a natureza das coisas e derivar desta compreensão os modos corretos da atividade humana. Acreditando na possibilidade de aumentar a felicidade humana, o Esclarecimento (Iluminismo) recomendava princípios simples e tão gerais de que todos pudessem desfrutar. Como, por exemplo, só aceitar a cultura da Razão Universal. Para os iluministas, se a força era o principal auxiliar do obscurantismo, a discussão devia fazer nascer a luz. Essa crença na razão e a confiança no homem resultam na liberdade do pensamento. 7 Tornando-se livre de qualquer tutela, sabendo-se capaz de procurar soluções para seus problemas como base em princípios racionais, o homem estende o uso da razão a todos os domínios. E tal exaltação do poder do homem decorre, segundo Desné (1975), do fato de que “a segurança do filósofo é a segurança do burguês que deve à sua inteligência, ao seu espírito de iniciativa e de previdência, o lugar que tem na sociedade (...) A emancipação do homem, na qual Kant vê o traço distintivo do Iluminismo, é a emancipação de uma classe, a burguesa, que atinge sua maioridade” (DESNÉ, 1975, p. 87). E o século XVIII é realmente o século das revoluções burguesas: ainda no final do século anterior, em 1688, a Revolução Gloriosa na Inglaterra destrona os Stuart absolutistas e, em 1789, os Bourbon são depostos com a Revolução Francesa. Ecos desses acontecimentos chegam ao Novo Mundo, em movimentos de emancipação como a Independência dos Estados Unidos (1776), a Inconfidência Mineira (1789) e a Conjuração Baiana (1798). Aqui se encontra um conceito chave do Iluminismo: a revolta contra as autoridades do antigo sistema. “Muitos dos filósofos do Iluminismo francês tinham visitado a Inglaterra, que em certo sentido era mais liberal do que a própria França. A ciência natural inglesa, principalmente a partir de Newton com sua física universal, fascinou esses filósofos franceses. Outros filósofos ingleses foram fonte de inspiração para eles, principalmente Locke e sua filosofia política. De volta à sua pátria, a França, eles começaram pouco a pouco a se rebelar contra o velho autoritarismo. Eles achavam que era muito importante permanecer céticos a todas as verdades herdadas e acreditavam que o próprio indivíduo deveria encontrar respostas para suas perguntas. Nesse ponto, a fonte de inspiração era a tradição de Descartes” (GAARDER, 1995, p. 63). Os filósofos iluministas diziam que a humanidade faria grandes progressos somente quando a razão e o conhecimento se tivessem difundido entre todos. Para eles, era apenas questão de tempo para que a irracionalidade a ignorância e a superstição desaparecessem e desse lugar a uma humanidade iluminada e esclarecida.
- A conciliação entre ciência e filosofia Outra característica do Iluminismo é a conciliação que se tenta realizar entre o “o positivo” e o “racional”. Tal conciliação não é uma exigência puramente teórica; trata-se antes de um ideal realizável: o pensamento setecentista vê aí a prova concreta, imediatamente convincente no curso que as ciências efetivamente adotaram, desde seu renascimento. Nos progressos da física, na sucessão das etapas percorridas por essa ciência, uma por uma, tem-se a certeza da realização de um ideal. Por isso, o pensamento do século XVIII está, em todas as suas partes, vinculado ao paradigma metodológico da física newtoniana; logo sua aplicação foi generalizada. Não se 8 contenta em compreender a análise com a grande ferramenta intelectual do conhecimento físico- matemático e vê aí o instrumento necessário e indispensável de todo o pensamento em geral. Em meados do século, o triunfo de tal concepção já está assegurado. Se for verdade que certos pensadores e certas escolas divergem em seus resultados, há, não obstante, uma concordância unânime quanto a essas premissas da teoria do conhecimento. O Tratado de metafísica de Voltaire; o “Discurso preliminar” da Enciclopedia, de D’Alembert e as Investigações sobre a clareza dos princípios da teologia e da moral de Kant, falam a mesma linguagem: todos proclamam que o verdadeiro método da metafísica se harmoniza, basicamente, com o que foi introduzido por Newton na física e proporcionou tão copiosos frutos. Voltaire declara que o homem que se desconhece a ponto de pretender penetrar a essência interior das coisas, conhecê-las na pureza do seu “em si”, não demora em adquirir consciência do limite de suas faculdades: “ele se vê na posição de um cego que tivesse de julgar a natureza das cores. Mas a benevolência da natureza colocou uma bengala nas mãos do cego, que é a análise. Munido dessa bengala ele vai poder abrir caminho entre as aparências, ser informado dos seus efeitos e de seu ordenamento, de nada mais necessitando para orientar-nos intelectualmente, para organizar sua vida e a ciência. É claro que jamais se deve formular hipóteses; não se deve dizer: comecemos por inventar princípios com os quais trataremos de explicar tudo. Mas temos de dizer: façamos exatamente a análise das coisas” (VOLTAIRE, p. 218). Assim, conclui Voltaire, devemos renunciar à esperança de arrancar alguma vez às coisas o seu segredo, de penetrar no ser absoluto da matéria ou da alma humana. Mas o seio da natureza nos está francamente aberto se entendermos por isso a ordem e a legalidade empíricas. É nesse ponto central que vamos nos estabelecer a fim de avançarmos em todas as direções. A potência da razão humana não está em romper os limites do mundo da experiência para encontrar um caminho de saída para o domínio da transcendência, mas em ensinar-nos a percorrer esse domínio empírico com toda a segurança.
- Kant e o problema do conhecimento Essa confiança implantada no mundo do conhecimento pelo novo método científico gerou um tipo de crença na plena realização da ciência, bem como do lugar que esta iria ocupar no conhecimento ocidental. Este lugar era nada menos que aquele ocupado há séculos pela filosofia. Assim, ao ver-se independente da filosofia através do método empírico que havia criado, a ciência começou a seguir o seu rumo a passo célere; enquanto a filosofia mantinha-se presa a questões que diziam respeito muito mais à teologia que à epistemologia. Por mais que buscasse, a filosofia não conseguia avançar nem atingir um conhecimento que lhe desse um caráter científico, ou seja, verdadeiro. É como se ela estivesse cada vez mais caminhando para o seu fim. Acreditou-se até 9 mesmo que ela já não teria mais respostas necessárias a dar ao mundo moderno. Aliás, essa ideia do fim da filosofia, segundo Heidegger (1983), não surgiu da Idade Moderna; seu germe já pode ser encontrado no mundo grego, especificamente no período do helenismo. Heidegger, porém, está fazendo no século XX, uma leitura cuja perspectiva dá ao termo “fim”, não a ideia negativa concebida por alguns dos Iluministas (sobretudo os empiristas) de “dissolução”, de “cessação”; para Heidegger, “quando falamos de fim da filosofia queremos significar o ‘acabamento’”;, isto é, muito mais um estado de completude, do que uma dissolução. Há aí, então, a ideia de que a ciência é uma espécie de fim último da filosofia. Eis como ele apresenta essa ideia: “Fim é, como acabamento, a concentração nas possibilidades supremas. Pensamos estas possibilidades de maneira muito estreita enquanto apenas esperamos o desdobramento de novas filosofias do estilo até agora vigente. Esquecemos que já na época da filosofia grega se manifesta um traço decisivo da Filosofia: é o desenvolvimento das ciências em meio ao horizonte aberto pela Filosofia. O desenvolvimento das ciências é, ao mesmo tempo, sua independência da Filosofia e a inauguração de sua autonomia. Este fenômeno faz parte do acabamento da Filosofia. Seu desdobramento está hoje em plena marcha, em todas as esferas do ente. Parece a pura dissolução da Filosofia; é, no entanto, precisamente seu acabamento” (HEIDEGGER, 1983, p. 17). No entanto, longe dessa leitura do século XX, que se apresenta muito mais como uma forma de justificar a predominância da ciência frente à filosofia, a preocupação que possuíam os racionalistas do Iluminismo era a de reservar um lugar para a filosofia, no mesmo espaço onde a ciência se estabeleceu. Não se tratava apenas de uma tácita aceitação da realidade, mas de uma tentativa de posicionar a filosofia em um lugar de direito. Ou seja, buscava lhe dar o mesmo caráter positivo que foi outorgado à ciência, sem que com isso ela perdesse suas características mais peculiares. O filósofo que mais se empenhou nessa tarefa foi Kant. Mas para que ele pudesse dar à filosofia um conhecimento universal e necessário, isto é, um conhecimento capaz de posicioná-la na categoria de ciência, era preciso, antes, estabelecer as condições de possibilidade do conhecimento produzido pela própria filosofia. Segundo Marilena Chauí, “desde o final do século XVIII, com o filósofo Immanuel Kant, passou-se a considerar que a filosofia, durante todos os séculos anteriores, tivera uma pretensão irrealizável. Que pretensão fora essa? A de que nossa razão pode conhecer as coisas tais como são em si mesmas. Esse conhecimento da realidade em si, dos princípios e das primeiras causas de todas as coisas chama-se metafísica. Kant negou que a razão humana tivesse tal poder de conhecimento e afirmou que só conhecemos as coisas tais 10 como são organizadas pela estrutura interna e universal de nossa razão, mas nunca saberemos se tal organização corresponde ou não à organização em si da própria realidade” (CHAUI, 1997). Porém, para entender a trajetória que Kant realizou, precisaremos, antes, entender como se encontrava a polêmica sobre o entendimento humano, entre os empiristas e racionalistas. Para isso, seguiremos alguns trechos da História da Filosofia de Will Durant, através dos quais ele apresenta a crítica ao racionalismo feita por Locke, Berkeley e Hume. Após essa compreensão, iremos perceber como Kant realiza a síntese dessas duas correntes filosóficas e apresenta a sua Revolução Copernicana: John Locke (1632-1704) propusera-se a aplicar à psicologia os testes e métodos indutivos de F. Bacon; no seu Ensaio Sobre a Compreensão Humana. A razão, pela primeira vez no pensamento moderno, voltara-se para sim mesma, e a filosofia começa a examinar minuciosamente o instrumento em que confiara durante tanto tempo. Como surge o conhecimento? Será que, como supõem pessoas simples, temos ideias inatas como, por exemplo, do certo e do errado, e de Deus – inerentes à mente desde o nascimento, anteriores a qualquer experiência? Locke rejeita as ideias inatas e afirma que todo nosso conhecimento provém da experiência e vem através de nossos sentidos – que ‘nada existe na mente que não tenha estado, primeiro, nos sentidos.’ A mente é, ao nascer, uma folha em branco, uma tábula rasa; e a experiência dos sentidos, escreve nela de mil maneiras, até que sensação gera memória, e memória gera ideias. Tudo isso parecia levar à surpreendente conclusão de que, já que só as coisas materiais podem afetar os nossos sentidos, só conhecemos matéria e temos de aceitar uma filosofia materialista. Se as sensações são a substância do pensamento, alegravam os apressados, a matéria deve ser a matéria- prima da mente. Nada disso, disse o bispo Berkeley (1664-1753); essa concepção de Locke sobre a origem do conhecimento prova, isso sim, que a matéria não existe, exceto como uma modalidade da mente. [...] Locke não nos disse que todo o conhecimento é derivado das sensações? Portanto, todo o nosso conhecimento de qualquer coisa é meramente a sensação que temos dela, e as ideias derivadas dessas sensações. Uma “coisa” é meramente um feixe de percepções– isto é, sensações classificadas e interpretadas. Você protesta que o seu café da manhã é muito mais substancial do que um feixe de percepções; e que um martelo que lhe ensina carpintaria através do seu polegar tem uma materialidade muitíssimo magnífica. Mas o seu café da manhã é, a princípio, nada mais do que um amontoado de sensações de visão, olfato e tato; e depois, de paladar; e depois, de conforto e calor interno. Da mesma forma, o martelo é um feixe de sensações de cor, tamanho, forma, peso, tato, etc.; a realidade dele para você não está na 11 materialidade, mas nas sensações que vêm do seu polegar. Se você não tivesse sentidos, o martelo não existiria para você de forma alguma; ele poderia atingir seu polegar insensível sem parar e, no entanto, não merecer de você a menor atenção. É apenas um feixe de sensações, ou um feixe de memórias; é uma condição da mente. Toda matéria, pelo que sabemos, é uma condição mental; e a única realidade que conhecemos diretamente é a mente. Era o que se tinha a dizer sobre o materialismo. Mas Berkeley não contara com o cético David Hume (1711-1776). Com a idade de 26 anos, ele chocou a cristandade com o seu altamente herético Tratado sobre a Natureza Humana – um dos clássicos e uma das maravilhas da filosofia moderna. Só conhecemos a mente, disse Hume, como conhecemos a matéria: pela percepção, embora nesse caso ela seja interna. Nunca percebemos qualquer entidade como a ‘mente’; percebemos meramente ideias, memórias, sentimentos etc., separados. A mente não é uma substância, um órgão que tenha ideias; trata-se apenas de um nome abstrato para a série de ideias; as percepções, memórias e sentimentos são a mente; não existe uma ‘alma’ observável por detrás dos processos de pensamento. O resultado parecia ser que Hume havia destruído a mente com a mesma eficiência com que Berkeley destruíra a matéria. Não sobrara nada; e a filosofia se viu em meio às ruínas que ela mesma provocara. Todavia, Hume não se contentou em destruir a religião ortodoxa, desfazendo o conceito de alma; ele propunha também a destruir a ciência, ao acabar com o conceito de lei. Tanto a ciência como a filosofia, desde Bruno e Galileu, vinham dando muito valor à lei natural, à ‘necessidade’ na seqüência do efeito sobre a causa; Spinoza havia erguido sua majestosa metafísica sobre essa orgulhosa concepção, Mas observem, disse Hume, que nós nunca percebemos causas, ou leis; percebemos eventos e seqüências, e inferimos causação e necessidade; uma lei não é um decreto eterno e necessário ao qual os eventos estejam sujeitos, mas meramente um sumário mental de nossa caledoscópica experiência; não temos garantia de que as seqüências até aqui observadas irão reaparecer inalteradas numa experiência futura. ‘Lei’ é um costume, um hábito observado na seqüência dos eventos; mas não há ‘necessidade’ no hábito (DURANT, 1996: 274-9). O ceticismo de Hume contesta a validade de que algumas verdades relacionadas tanto à filosofia quanto à ciência. No fundo, Hume nega a possibilidade de qualquer conhecimento universal e necessário, além do conhecimento matemático. Ele mostra que a razão que se costuma honrar como a faculdade soberana do homem, desempenha afinal um papel inteiramente secundário no conjunto da vida psíquica. Os seus poderes são tão fracos que ela precisa estar durante todo o tempo voltada para as faculdades “inferiores” da alma. De modo que a razão não saberia dar um só passo sem a colaboração da sensibilidade e da imaginação. Para Hume, todo o saber racional se reduz exclusivamente à inferência da causa a partir da observação do efeito; ora essa inferência, em si mesma, é justamente aleatória, incerta, e jamais poderá ser estabelecida por via puramente lógica. Eis como Hume apresenta algumas das suas ideias: 12 Suponha-se que uma pessoa, embora dotada das mais vigorosas faculdades de razão e reflexão, seja trazida repentinamente a este mundo. É certo que tal pessoa observaria de imediato uma sucessão contínua de objetos e um fato sucedendo-se a outro; não seria, porém, capaz de descobrir nada mais. A princípio, não haveria raciocínio que a conduzisse à ideia de causa e efeito, já que os poderes particulares graças aos quais se realizam todas as operações naturais não se manifestam aos sentidos; nem é razoável concluir, simplesmente porque um acontecimento em determinado coso precede um outro, que o primeiro é a causa e o segundo é o efeito, a conjunção dos dois pode ser arbitrária e casual. Talvez não haja razão para inferir a existência de um do aparecimento do outro. Numa palavra: sem mais experiência, tal pessoa não poderia fazer uso de conjectura ou de raciocínio a respeito de qualquer questão de fato ou ter certeza de qualquer coisa além do que estivesse imediatamente presente à sua memória e aos seus sentidos. Suponha-se agora que esse homem adquiriu mais experiência e viveu no mundo o tempo suficiente para ter observado uma conjunção constante entre objetos ou acontecimentos familiares: qual é o resultado dessa experiência? Ele infere imediatamente a existência de um objeto do aparecimento do outro. E, ainda assim, sem que toda a sua experiência lhe tenha dado qualquer ideia ou conhecimento do poder secreto pelo qual um objeto produz o outro; e tampouco tenha sido levado a fazer essa inferência por qualquer processo de raciocínio. No entanto, é levado a fazê-la; e ainda que esteja convencido de que o seu raciocínio nada tem que ver com essa operação persiste na mesma linha de pensamento. Há algum outro princípio que determina a tirar essa conclusão. Esse princípio é o costume ou hábito. Com efeito, sempre que a repetição de algum ato ou operação particular produz uma propensão de renovar o mesmo ato ou operação sem que sejamos impelidos por qualquer raciocínio ou processo do entendimento, dizemos que essa propensão é um efeito do hábito. Ao empregar esta palavra, não pretendemos dar a razão primária de uma tal propensão. Limitamo-nos a apontar um princípio da natureza humana universalmente admitido e bem conhecido pelos seus efeitos. Talvez não seja possível levar mais avante as nossas indagações ou pretender indicar a causa dessa causa; talvez devamos contentar-nos com ela como o princípio básico deduzido de todas as nossas conclusões da experiência. Demo-nos por satisfeitos em ter chegado até aí e não nos queixemos da estreiteza de nossas faculdades, que não nos podem levar mais longe. E é certo que aqui avançamos uma proposição muito inteligível, pelo menos, se não verdadeira, ao afirmar que após a conjunção constante de dois objetos – por exemplo, calor e chama, peso e solidez – somos levados tão somente pelo costume a esperar, após um deles, o aparecimento do outro. Esta hipótese parece ser, mesmo, a única que resolve a dificuldade: por que tiramos de mil exemplos uma inferência que não podemos tirar de um só exemplo, a todos os respeitos iguais aos outros? A razão é incapaz de variar desse modo. As conclusões que tira da consideração de um círculo são as mesmas que tiraria da observação de todos os círculos do universo. Mas ninguém, ao ver um único corpo mover-se depois de ser impelido por outro, poderia inferir que todos os corpos se moverão sob um impulso semelhante. Todas as inferências derivadas da experiência, por conseguinte, são efeitos do costume e não do raciocínio. O Hábito é, pois, o grande guia da vida humana. É aquele princípio único que faz com que nossa experiência nos seja útil e nos leve a esperar, no futuro, uma seqüência de acontecimentos semelhantes às que se verificam no passado. Sem a ação do hábito, ignoraríamos completamente toda questão de fato além do que está imediatamente presente à memória ou aos sentidos. Jamais saberíamos como adequar os meios 13 aos fins ou como utilizar os nossos poderes naturais na produção de um efeito qualquer. Seria o fim imediato de toda ação, assim como da maior parte da especulação”.4
- O criticismo kantiano e a síntese do racionalismo e do empirismo Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência; efetivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a nossa faculdade de conhecer senão os objetos que afetam os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que se denomina experiência? Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início. Se, porém, todo conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência. Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser um composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em ação por impressões sensíveis) produz por si mesma; acréscimo esse que não distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar por um longo exercício que no torne aptos a separá-los. (KANT, Introdução à Crítica da Razão Pura). 4
- HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano, Col. Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1973, pp. 145-6. 14 Kuno Fischer (1996), um dos maiores e mais conceituados comentadores da filosofia kantiana, prefere atribuir pouca afinidade entre o sistema kantiano e os outros sistemas anteriores. Para ele, há muito mais oposição que analogia na relação desses sistemas. O que contribui para que ele tenha esse tipo de pensamento é a relação existente entre os fundadores da ciência moderna com as teorias da Antiguidade, sobretudo, com aquelas de Demócrito, de Platão e de Aristóteles. Em sua História das Origens da Filosofia Crítica, podemos encontrar afirmações bastante contundentes, como, por exemplo, as que apresentamos a seguir: “Bacon, o inimigo mais enfurecido da filosofia da Antiguidade, se faz defensor de um dos sistemas antigos, a saber: da teoria atômica de Demócrito, Leibniz, que é contra seus antecessores mais próximos – Bacon, Descartes e Espinosa – restabeleceu a teoria teleológica e tratou de aproximá-la da mecânica, tem pontos de contato com Platão e Aristóteles e tratou principalmente de restabelecer a filosofia de ambos na sua” (FISCHER, 1996, 73). Outro fator que o comentador garante provar a diferença entre o pensamento kantiano e os sistemas de pensamento anteriores, refere-se ao verdadeiro objeto de conhecimento da filosofia: antes de Kant não havia um objeto distinto, próprio da filosofia, que fosse capaz de atribuir-lhe autonomia como acontece com as outras ciências: a lógica, a matemática e a física. Segundo Kuno Fischer (1996), a filosofia não possuía um objeto específico, nem mesmo no período em que os pensadores da modernidade tentavam estabelecer um novo sistema filosófico. Por exemplo, ao se ocupar da explicação das coisas, a filosofia dividia com a física o mesmo objeto de análise. Essa postura impossibilitava qualquer caráter científico na filosofia especulativa e a impedia de apresentar-se como uma verdadeira ciência frente às ciências exatas. Desta forma, “somente quando se encontrasse em possessão de um objeto que não é, ao mesmo tempo, das outras ciências, que nenhuma delas pode investigar, e que não é menos evidente que qualquer outro objeto das ciências exatas e das investigações empíricas” (Idem); seria possível que ela se tornasse uma ciência com seu posto firme e inabalável. Assim, a filosofia poderia restabelecer definitivamente o seu lugar de direito no universo do conhecimento. Deixando de lado a polêmica sobre a originalidade existente na primeira parte dos argumentos desse comentador, preferimos, antes, aceitar a segunda ideia que diz respeito ao objeto da filosofia. Porém, para entender melhor em que consiste essa novidade, a qual dará um novo rumo à filosofia e será a sua grande contribuição para o surgimento das ciências humanas, é preciso perceber quais são as bases de sua fundamentação. 15
- Kant e a Revolução Copernicana. Fala-se sempre da influência de Hume sobre Kant. Aliás, foi o próprio Kant quem confessou ter sido despertado por Hume do seu sono dogmático.5 Hume afirmou a impossibilidade da existência de uma entidade como a “mente” e negou também qualquer conhecimento universal e necessário conseguido através da ciência, pois as nossas verdades sobre as coisas não estão fundamentadas em constatações, mas em julgamentos inferidos. Assim, segundo Hume, o nosso conhecimento é resultante de um “passo além” dado pela razão a partir de algumas repetições sensíveis. Para ele, o nosso conhecimento implicava em princípios subjetivos. Ora, agindo assim, não é possível ao ser humano possuir um conhecimento universal e necessário; e a ciência, tal como a filosofia, estava fadada a peregrinar nos caminhos do erro e da incerteza. No racionalismo dogmático, a teoria do conhecimento fundava-se sobre a ideia de uma correspondência entre o sujeito e o objeto; de um acordo entre a ordem das ideias e a ordem das coisas. Esse acordo, em última instância, estava sustentado pelo princípio teleológico, como fonte e garantia dessa harmonia. Ora, até então, sabia-se que esta era uma das principais características desse racionalismo. O que Kant vai nos revelar, no entanto, é que o empirismo de Hume estava enveredado nessa mesma perspectiva: “... para explicar que os princípios da natureza estivessem de acordo com os da natureza humana, Hume foi forçado a invocar explicitamente uma harmonia preestabelecida” (DELEUZE, 1984, p. 22). É a partir dessa “falha” presente tanto nos racionalistas como nos empiristas, que Kant irá realizar a “Revolução copernicana” na filosofia. Ele vai substituir a ideia de uma harmonia entre o sujeito e o objeto, pelo princípio de uma submissão necessária do objeto em relação ao sujeito. A descoberta essencial diz respeito à ideia de que há algo de legislador na faculdade do conhecimento. Segundo Deleuze, “a primeira coisa que a revolução copernicana nos ensina é que somos nós que comandamos. Por isso há uma inversão da concepção antiga de sabedoria: o sábio se definia, ao mesmo tempo, por sua própria submissão e por seu acordo final com a Natureza. Kant opõe à sabedoria, a imagem crítica: nós somos os legisladores da Natureza” (Idem). Então, qual é a garantia de que o sujeito do conhecimento possui uma predominância em relação ao objeto? Kant vai afirmar que o sujeito – a razão universal – possui, antes mesmo de receber algum dado sensível, formas a priori e categorias universais. Ou seja, há algo no sujeito do conhecimento que prescinde de toda e qualquer experiência, mas que se encontra presente no 5
- “Confesso abertamente ter sido a advertência de Hume que, já vão muitos anos, pela primeira vez me despertou de meu sono dogmático e incutiu minhas pesquisas no domínio da filosofia especulativa orientação inteiramente diferente.”, I. Kant., Prolegômenos, prefácio, p. 28. 16 momento mesmo da efetivação do conhecimento. Trata-se do espaço e do tempo.6 Essas formas a priori permitem fundar a distinção entre a sensibilidade e o entendimento; dar a requerida oposição conceitual entre a ordem lógica e a ordem real. A partir de agora, espaço e tempo serão concebidos como “intuições puras”, por serem representados ao mesmo tempo como a priori e como próprios da sensibilidade, que não procuram por si só um acesso ao existente, mas, ao contrário, exibem as estruturas nas quais o existente tem necessariamente que se enquadrar para que possa se apresentar ao sujeito. Nessa concepção se pode fundar imediatamente a distinção entre a mera possibilidade lógica de uma coisa e sua possibilidade real. Esclarecendo melhor: a possibilidade lógica do objeto está fundada no princípio de contradição, que permite pensar sua existência a partir do seu conceito e, então, garantir ou não essa existência, através da existência real. Quanto à possibilidade real de um objeto, é preciso que ele se enquadre na estrutura formal espaço/tempo. Se o objeto pensado não se ajustar nessa nova estrutura, a razão humana não tem como conhecê-lo e representá-lo como real ou tampouco como uma existência lógica. As intuições puras vão, então, nos oferecer uma “consciência das condições de possibilidade a que se ajusta todo o existente”. Isso vai implicar nos limites que a crítica estabelece à razão para garantir-lhe aquilo que ela pode pensar. Esses limites são, ao mesmo tempo, a possibilidade da metafísica e sua restrição, em que o seu conhecimento a priori só se efetivará se estiver condicionado ao real, o qual precisa, por outro lado, enquadrar-se nas estruturas mencionadas acima. Eis como Roberto Torretti apresenta esse problema: “A possibilidade real supõe, segundo Kant, que a coisa pensada possa enquadrar-se nas estruturas mencionadas. Nossa capacidade de representar-nos essas estruturas nos submete a uma consciência das condições de possibilidade a que se ajusta todo o existente – pelo menos enquanto é capaz de se apresentar a nós. Essa consciência é a base do conhecimento do real, que não depende de sua apreensão efetiva. Deste modo, a possibilidade do conhecimento a priori dos entes realmente existentes descansa na consciência das condições a que está sujeita a possibilidade real desse acontecimento, entes. A possibilidade da metafísica se fundamenta, mas ao mesmo tempo se restringe por esta via: o entendimento só pode conhecer a priori o real, enquanto está referido à sensibilidade, da qual depende a consciência do espaço e do tempo; a ontologia assim apresentada, não é uma ciência do ente enquanto coisa em si, mas do ente enquanto pode apresentar-se ao 6
- Eis como Marilena Chauí fala das formas a priori: “não interessa se cada um de nós vê cores de uma maneira, gosta mais de uma cor do que de outra, ouve sons de uma certa maneira, gosta mais de certos sons do que de outros, etc. O que importa é que nada pode ser percebido por nós se não possuir propriedades espaciais; por isso, o espaço não é algo percebido, mas é o que permite haver percepção (percebemos lugares, posições, situações, mas não percebermos o próprio espaço. Assim, o espaço é uma forma a priori da sensibilidade e existe em nossa razão antes e sem a experiência. Também só podemos perceber as coisas como simultâneas ou sucessivas: percebemos as coisas como se dando num só instante ou em instantes sucessivos. Ou seja, percebemos as coisas como realidades temporais. Não percebemos o tempo (temos experiência do passado, do presente e do futuro, porém, não temos percepção do próprio tempo), mas ele é a condição de possibilidade da percepção das coisas e é a outra forma a priori da 17 homem. Isto significa uma recusa da pretensão de um conhecimento seguro dos três ramos da metafísica especial – a teologia (Deus), a psicologia (a alma) e a cosmologia (o infinito) – cujos objetos não são entes que possam apresentar-se ao homem” (TORRETTI, 1980, p. 50). Com o limite do entendimento humano estabelecido, tem-se também como consequência a garantia da própria possibilidade da metafísica – a filosofia – como ciência, ou seja, como um conhecimento universal e necessário; a metafísica passa a ter, assim, o seu próprio objeto que será diferente daquele da física ou da matemática. Assim, se o objeto da física, por exemplo, são as coisas, o objeto da filosofia é o conhecimento mesmo das coisas. Ou, aprofundando ainda mais, poderíamos dizer que o objeto da filosofia é o conhecimento humano, logo, a matemática, a física e toda forma empírica do conhecimento. Para concluir, vejamos um texto de Kuno Fischer (1996) sobre a questão do objeto de estudo da filosofia. Ele evidencia ainda mais a autonomia epistemológica da filosofia e todo o seu distanciamento daquilo que, no início, apresentava-se como um problema da filosofia e que, ao mesmo tempo, lhe impossibilitava de firmar-se como uma ciência por não possuir bases sólidas onde pudesse edificar o seu monumento, posto que tanto o seu objeto, quanto o seu método, eram tomados de empréstimo de outras ciências: “somente quando se encontre em possessão de um objeto que não é, ao mesmo tempo, das outras ciências, que nenhuma desta pode investigar, e que ao mesmo tempo não seja menos evidente que qualquer outro das ciências exatas e das investigações empíricas (...) esta questão decide também a questão de vida ou morte da filosofia”. E ele continua: “As ciências exatas não podem negar a existência efetiva que têm, e nisso consiste sua importância e a causa do seu progresso diariamente e o aumento de sua influência. Não é, então, necessária uma ciência que tenha por objeto a explicação desses fatos, uma ciência que considere como seus objetos as matemáticas, a física e a experiência, da mesma maneira que as matemáticas consideram a quantidade, a física, os corpos, e a experiência, as coisas em geral?” (FISCHER, 1996, p. 83). sensibilidade que existe em nossa razão antes da experiência e sem a experiência”. Marilena CHAUI. Convite à Filosofia... pp. 78-9. 18 Referência
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- CASSIRER, Ernest. A Filosofia do Iluminismo. 2a edição. Campinas: Editora da Unicamp, 1994. DELEUZE, Gilles. La Philosophie Critique de Kant. Paris: PUF, 1987. DESNÉ, In, Filosofando: Introdução à Filosofia. 2a edição, São Paulo: Editora Moderna,
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DURANT, Will. A História da Filosofia. Col. Os Pensadores, São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. FISCHER, Kuno. História de los Orígens de la Filosofía Crítica. In: Prefacio à Crítica de la Razón Pura, décima edición, Bueno Aires: Editorial Losada, 1996. GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: CIA. das Letras, 1995. TORRETTI, Roberto. Manuel Kant – estúdio sobre los fundamentos de la Filosofia Crítica. 2ª. Edition, Buenos Aires: Editorial Charcas, 1980. 19
Separar a parte do texto em que fala sobre o filosofo berkey