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24 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje UM OLHAR SOBRE O CORPO O CORPO ONTEM E HOjE A GLANCE INTO THE BODY YESTERDAYS AND TODAYS BODY Maria Raquel Barbosa Paula Mena Matos e Maria Emília Costa Universidade do Porto Porto Portugal RESUMO o entendimento dos sentidos construídos para o corpo na actualidade requer uma caminhada ainda que breve pela história pela forma como o corpo foi pensado e sentido deste modo neste ensaio em torno do tema do corpo propomos pensar nalguns aspectos sociais e culturais que contribuíram para a construção do corpo na nossa sociedade a forma como ele tem sido e pode ser olhado e representado Palavraschave significados do corpo representações sociedade ABSTRACT to understand the ways in which people make meaning out of the body nowadays it is necessary to go back in time even if briefly through history through the ways in which the body has been experienced Thus it is the aim of these structured reflections having the body as its focus to think about some of the social and cultural aspects influencing its construction in our society how it has been and can be seen and perceived Keywords body meanings perceptions society 1 O corpo na história ou a história do corpo No corpo estão inscritas todas as regras todas as normas e todos os valores de uma sociedade específica por ser ele o meio de contacto primário do indivíduo com o ambiente que o cerca daolio 1995 p 105 a história do corpo humano é a história da ci vilização Cada sociedade cada cultura age sobre o corpo determinandoo constrói as particularidades do seu corpo enfatizando determinados atributos em detrimento de outros cria os seus próprios padrões Surgem então os padrões de beleza de sensualidade de saúde de postura que dão referências aos indivíduos para se construírem como homens e como mulheres ao longo do tempo esses modelos produziram a história corporal funcionando como mecanismos codificadores de sentido e produtores da história corporal rosário 2006 percebendose que as mudanças que foram acontecendo na noção de corpo foram oriundas das mudanças no discurso assistese actualmente a uma espécie de reinven ção da cultura onde o cyberespaço e a realidade virtual põem em questão a própria existência do real e do seu sentido Podemos viver afectivamente essa perda mas ter em atenção que o virtual não se opõe ao real ha vendo entre eles uma relação entre o actual e o virtual um modo próprio de ser do real que se associa a um processo de desterritorializaçãoe a novos fenómenos espaçotemporais tucherman 2004 p13 de facto perplexidade parece ser o sentimento mais frequente experienciado nos nossos dias vemonos incapazes de ou mal preparados para entendermos o que constituía a nossa sensação de realidade aquilo que éramos e o que somos Surgem então outras questões Quem somos nós humanos o que é ser um corpo o que é ter um corpo o que é hoje a nossa corporeidade Que possibilidades nos são abertas e que experiências nos são possíveis assim para se conhecer os sentidos construídos para o corpo humano no presente será necessário fazer uma caminhada ainda que breve pela História e observar as diferentes formas de tratar o corpo a sexualidade os géneros Modificase o ambiente os afectos e é a pensar num corpo dinâmico construído pela cultura e pela sociedade que tentaremos falar do corpo e da sua história entendendo que o mais importante não será a delimitação de datas e épocas mas a descrição dos traços que se destacaram em determinados períodos visando compreender melhor o corpo de hoje É im portante salientar que os períodos considerados não se constituem de forma independente uns dos outros mas vãose encadeando uns nos outros ao longo do tempo 25 Psicologia Sociedade 23 1 2434 2011 Começamos por uma breve passagem pela ex periência da polis grega seguindo pelo cristianismo e suas contrariedades pela idade Média e pelos tempos modernos e do corpo em crise terminando com as novas noções de corpo e cybercorpo levantando e discutindo alguns dos traços mais marcantes do corpo na pós modernidade sempre com a ideia de que falamos de uma história ainda em aberto e em constante devir 11 A idealização do corpo a Grécia antiga a imagem do corpo grego ainda hoje atraente e considerada uma referência é bastante revelador da existência e dos ideais estéticos veiculados na altura Na verdade este corpo era radicalmente idealizado treina do produzido em função do seu aprimoramento o que nos indica que ele era contrariamente a uma natureza qualquer que ela fosse um artifício a ser criado numa civilização que alguns helenistas chamam de civili zação da vergonha por oposição à judaicocristã que será uma civilização da culpa dodds 1988 citado por tucherman 2004 assim a imagem idealizada cor responderia ao conceito de cidadão que deveria tentar realizála modelando e produzindo o seu corpo a partir de exercícios e meditações o corpo era visto como elemento de glorificação e de interesse do Estado o corpo nu é objecto de admiração a expressão e a exibição de um corpo nu representava a sua saúde e os Gregos apreciavam a beleza de um corpo saudável e bem proporcionado o corpo era valorizado pela sua saúde capacidade atlética e fertilidade Para os gregos cada idade tinha a sua própria beleza e o estético o físico e o intelecto faziam parte de uma busca para a perfeição sendo que o corpo belo era tão importante quanto uma mente brilhante a moral quanto ao corpo e ao sexo não era rigi damente organizada e autoritária apenas estabelecia algumas normas de conduta para evitar os excessos que significavam a falta de controlo do indivíduo so bre si mesmo prescrevendo o bom uso dos prazeres bebida comida sexo rosário 2006 Estes porém eram considerados apenas para os cidadãos isto é para os homens livres estando excluídos tanto os escravos como as mulheres a estas cabia cumprir funções como obediência e fidelidade aos seus pais e maridos e a re produção os prazeres eram do domínio masculino não do feminino de facto a civilização grega não incluía as mulheres na sua concepção de corpo perfeito que era pensado e produzido no masculino as normas para os homens eram mais soltas permitindo a bigamia e a homossexualidade como práticas naturais rosário 2006 as leis da cidade aplicavam inclusive normas diferentes aos corpos masculinos e femininos sendo que aos primeiros corresponderia o andarem nus nos ginásios e o andar na cidade com vestes soltas por serem capazes de absorver calor e manter o equilíbrio térmico dispensando o uso da protecção das roupas aos corpos femininos impunhase o uso de roupas em casa considerandose que estas seriam suficientes e para a saída à rua os seus corpos deviam ser cobertos tucherman 20041 Vemos hoje as figuras humanas expostas no Par ténon nuas simbolismo de juventude da perfeição Cada cidadão era livre de atingir o corpo perfeito ide alizado e depois expôlo os corpos eram trabalhados e construídos como objectos de admiração que come çavam a ser esculpidos e modelados nos ginásios fundamentais nas polis gregas e que acabavam por ser mostrados muitas vezes nos jogos olímpicos a saúde a expressão e exibição de um corpo nu estavam associadas os Gregos apreciavam a beleza de um corpo saudável e bem proporcionado o grego desconhecia o pudor físico o corpo era uma prova da criatividade dos deuses era para ser exibido adestrado treinado perfumado e referenciado pronto a arrancar olhares de admiração e inveja dos demais mortais Mas não se tratava apenas de narcisismo de pai xão desmedida por si mesmo os corpos não existiam apenas para mostrarse eles eram também instrumentos de combate tudo na natureza era luta era obstáculo a ser transposto era espaço ou terra a conquistar a vida diziam os deuses não era uma graça mas sim um dom a ser mantido as corridas os saltos os halteres os discos os dardos os carros eram as provas que as divindades exigiam deles para que se mostrassem dignos de terem sido premiados Os deuses pagãos afinal não passavam de seres humanos melhorados eram a excelência do que era possível alcançar Salientese que através desta forma idealizada de pensar e viver o corpo se definem também formas de estar na sociedade e princípios filosóficos e sociais que assentam na visão como sentido primordial no olhar no espelho como fundamentais para o funcionamento de uma sociedade Cunha 2004 É interessante verificar como esta forma de ler a realidade ainda hoje se man tém esta primazia do olhar Segundo Foucault 1994 nos séculos I e II os filósofos enfatizavam a necessidade dos indivíduos terem cuidado consigo mesmos pois seria dessa forma que alcançariam uma vida plena Eles cuidavam tanto do corpo como da alma recomendando a leitura as meditações e regimes rigorosos de activi dade física e dietas ressalva ainda que esse cuidar de si provocou no mundo helenístico e romano um individualismo no sentido em que as pessoas valorizavam as regras de condutas pessoais e voltavamse para os próprios inte resses tornandose menos dependentes uns dos outros e mais subordinadas a si mesmas instaurase então o que Foucault chama de cultura de si 26 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje Sabemos que os Gregos se expunham e celebra vam os seus corpos à luz do dia enquanto que os romanos já não o faziam o poder de roma e mais concretamente do imperador deveria ser evidenciado e exibido através dos grandiosos monumentos construídos para que todos olhassem acreditassem e obedecessem o que se prendia com o malestar com o corpo tucherman 2004 roma acolheu as formas artísticas gregas mas tornouas mais pesadas embora sólidas com uma robustez que lhes dava duração apesar da banalização em que caíram könig 1969 as representações artís ticas adquiriram maior dramaticidade evidenciando um contraste entre o nu e o vestido a vida e a morte a força e a debilidade física a força física demonstrada pelos gladiadores estava agora associada ao seu destino à morte à escuridão assim enquanto que os Gregos celebravam a exposição a força os romanos por seu lado não se expunham à luz todavia no momento em que o domínio político do império romano se impôs a construção do pensamento filosófico e por conseguinte as acepções corporais instituídas por ele foram altera das Pelegrini 2006 de facto embora tenha sido atri buído ao culto do corpo um valor pagão a arte romana mantevese orientada pela expressão do ideal de beleza grego Nos períodos posteriores as representações do corpo adquiriram outras dimensões subjugandoo a temas que potencializavam as questões místicas e reli giosas Gombrich 1999 in Pelegrini 2006 12 Um corpo em silêncio proibido o cristianismo Com o cristianismo assistese a uma nova percep ção de corpo o corpo passa da expressão da beleza para fonte de pecado passa a ser proibido o cristianismo e a teologia por muito tempo foram reticentes na interpre tação crítica e transformação das imagens veiculadas do corpo Uma das razões será porque o cristianismo possui uma história própria e de difícil relação com o corpo durante muito tempo foi central a espiritualização e o controle de tudo o que é material Foi um morador do deserto Santo agostinho o bispo de Hipona a tunísia de hoje quem lançou o mais pesado manto da vergonha sobre a nudez do paganismo Perante o deus cristão o deus que estava em toda a parte os homens e as mulheres deviam ocultar o cor po Nem entre os casais na intimidade ele deveria ser inteiramente desvelado o pecado rondava tudo o cristianismo reprime constantemente o corpo o corpo é a abominável vestimenta da alma diz o papa Gregório Magno Por outro lado é glorificado nomeadamente através do corpo sofredor de Cristo a dor física teria um valor espiritual a lição divulgada era a morte de Cristo o lidar bem com a dor do corpo que seria mais importante do que saber lidar com os prazeres tucherman 2004 Evidenciase a separação do corpo e da alma prevalecendo a força da segunda sobre o primeiro2 o cristianismo resume a atitude de recusa cabia ao homem descobrirse como mais do que o seu corpo descobrirse como alma que deve lutar contra os desejos para escapar da morte e conquistar a eternidade e a salvação vaz 2006 o bemestar da alma deveria prevalecer acima dos desejos e prazeres da carne o corpo prisão da alma era pois um vexame devia ser escondido Então durante os mil e quinhentos anos seguintes do decreto de teodósio suprimindo em 393 com os jogos olímpicos até à sua restauração pelo Barão de Coubertin em 1896 o ocidente vexado de si mesmo carregado de culpas por ser feito de carne e de sexo assaltado por pudores encobriu os seus membros e os seus músculos assistimos também à renúncia da alimentação por largos períodos de tempo com um quadro seme lhante àquilo a que hoje denominamos de anorexia nervosa Contudo esta recusa da comida prendiase essencialmente com a vontade de abandonar o material e alcançar o espiritual Carmo 1997 Não será errado afirmar que nestas culturas assim como em muitas religiões orientais por oposição à nossa tradição ocidental produzse uma cultura para o corpo tucherman 2004 tal como nos mostram os trabalhos de Michel Foucault a experiência religiosa de uma época e a sua história social reenviam a um centro uma espécie de código subtil que restringe certas formas de expe rienciar estimula outras e transforma em sentido amplo o contexto social modificando não apenas a tensão ou diferença entre espaço público e o privado mas também a relação com a natureza e desta com a cultura 13 O desprezo e mortificação do corpo o corpo paradoxal a Idade Média Na idade Média o corpo serviu mais uma vez como instrumento de consolidação das relações sociais a característica essencialmente agrária da sociedade feudal justificava o poder da presença corporal sobre a vida quotidiana características físicas como a altura a cor da pele e peso corporal associadas ao vínculo que o indivíduo mantinha com a terra eram determinantes na distribuição das funções sociais o homem medieval era extremamente contido a presença da instituição religiosa restringia qualquer manifestação mais criativa o cristianismo dominou durante a Idade Média influenciando portanto as no ções e vivências de corpo da época a união da igreja e Monarquia trouxe maior rigidez dos valores morais e uma nova percepção de corpo a preocupação com o corpo era proibida começandose a delinear claramente a concepção de separação de corpo e alma prevalecendo a força da segunda sobre o primeiro rosário 2006 o corpo ao estar relacionado com o terreno o material 27 Psicologia Sociedade 23 1 2434 2011 seria a prisão da alma tornase culpado perverso necessitado de ser dominado e purificado através da punição Para o cristianismo o corpo sempre teve uma característica de fé é o corpo crucificado glorificado e que é comungado por todos os cristãos Como sabemos as técnicas coercitivas sobre o corpo como os castigos e execuções públicas as condenações pelo tribunal do Santo Ofício a Inquisição oficializada pelo papa Gregório IX o autoflagelo marcam a Idade Média A inquisição inicialmente com o intuito de salvar a alma aos hereges passou a empregar mais tarde a tortura e a fogueira como forma de punição com autorização do Papa inocêncio iv em 1254 Estes eram acontecimentos e cerimónias públicas cujo objectivo era o de expor à população a sentença recebida pelo réu era um verda deiro acto festivo assistido não só pela população mas pelas autoridades religiosas Uma boa visualização deste período da nossa história pode ser vista no filme eou livro O Nome da Rosa de Umberto Eco realizado por jeanjacques annaud 1986 Um outro exemplo de per cepção do corpo no final da Idade Média dos sécs XIV a meados de Xviii está nos processos de bruxaria3 foram mortas e reprimidas milhares de mulheres a ideia central da bruxaria era a de que o demónio procurava fazer mal aos homens para se apropriar das suas almas E isto era feito essencialmente através do corpo e esse domínio seria efectuado através da sexualidade Pela sexualidade o demónio apropriavase primeiro do corpo e depois da alma do homem Como as mulheres estão ligadas essencialmente à sexualidade e porque nasce ram de uma costela de adão nenhuma mulher poderia ser correcta elas tornavamse agentes do demónio feiticeiras de facto os processos inquisicionais so bre acusações de bruxaria enfocavam principalmente os corpos das bruxas elas eram despidas os cabelos e pêlos eram rapados e todo o corpo era examinado à procura de um sinal que as pudesse comprometer É também na idade Média que aparece a nova figura literária do cavaleiro andante do amor cortês reflectindo deste modo uma visão muito diferente do corpo e das suas relações Embora a medicina e a erótica cortês concordassem com a definição de dualismo sobre o qual se construía toda a representação do mundo discordam no entanto quanto ao seu tratamento tu cherman 2004 assim não se duvidava que a pessoa fosse formada por um corpo e por uma alma portanto partilhada entre a carne e o espírito Encontramos assim uma visão dupla do corpo na idade Média que se prende essencialmente na forma como encara o corpo feminino de facto embora ambas as noções de corpo estejam ligadas ao mundo material a versão feudal ligada aos princípios cristãos considera isso bastante negativo daí a persistência das mulheres em viver uma vida religiosa e em transcender o corpo material Por outro lado numa versão mais popular da poesia trovadoresca e do amor cortês o valor da mu lher é ampliado havia um corpo a exaltar objecto de experiências que o libertam Cunha 2004 tucherman 2004 o amor provençal opunhase a todas as morais e basicamente moral cristã criando um sistema de valores independente que libertava o corpo para uma experiên cia de intensidade e artifício Como nos diz tucherman 2004 p 67 em diferentes épocas e em diferentes sociedades o amor foi inventado e reinventado assim como o corpo que o suporta e o experimenta Finalmente e no que se refere ao corpo de me ados da Idade Média até ao final do séc XVIII não parece haver uma modificação profunda do seu signi ficado o que não indica que não tenha sido submetida a diferentes vivências e movimentos o Cristianismo por possuir uma história difícil e paradoxal na sua relação com o corpo foi por muito tempo reticente na interpretação crítica e transforma ção destas imagens duplamente globalizadas do corpo independentemente e para além do discurso do pecado e do controle do corpo este é um tema essencial da teologia e da espiritualidade cristã 14 O novo corpo a Era Moderna No renascimento as acções humanas passaram a ser guiadas pelo método científico começa a haver uma maior preocupação com a liberdade do ser humano e a concepção de corpo é consequência disso o avanço científico e técnico produziram nos indivíduos do perí odo moderno um apreço sobre o uso da razão científica como única forma de conhecimento Pelegrini 2006 o corpo agora sob um olhar científico serviu de objecto de estudos e experiências Passase do teocentrismo ao antropocentrismo O conhecimento científico a matemá tica enfim o ideal renascentista O corpo investigado descrito e analisado o corpo anatómico e biomecânico Gaya 2005 a redescoberta do corpo nessa época aparece principalmente nas obras de arte como as pin turas de da vinci e Michelangelo valorizandose deste modo o trabalho artesão juntamente com o pensamento científico e o estudo do corpo Rosário 2006 a disciplina e controle corporais eram preceitos básicos todas as actividades físicas eram prescritas por um sistema de regras rígidas visando a saúde cor poral Agora com o declínio final dos sacerdotes que condenavam a vida na terra vemos a sua redenção Um neopaganismo ressurge e a carne intensa activa ainda carregando cicatrizes do estigma volta a ser soberana quer mostrarse a obtenção do corpo sadio dominava o indivíduo a prática física domava a vontade contri buindo para tornar o praticante subserviente ao Estado Pelegrini 2006 o dualismo corpoalma norteava a concepção corporal do período demonstrando a 28 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje influência das concepções da antiguidade clássica Na realidade o filósofo Descartes parece ter instalado definitivamente a divisão corpomente o homem era constituído por duas substâncias uma pensante a alma a razão e outra material o corpo como algo comple tamente distinto da alma Mesmo se já se pensasse o ser humano como constituído por um corpo físico e uma outra parte subjectiva a partir de descartes essa divisão foi realmente instituída e o físico passou a estar ao serviço da razão de facto no século Xviii também os ideais iluministas acabaram por acentuar a depreciação do corpo dissociandoo da alma retomando a dicotomia corpoalma arquitectada na antiguidade clássica o pensamento iluminista negou a vivência sensorial e corporal atribuindo ao corpo um plano inferior Para lelamente as necessidades de manipulação e domínio do corpo concorreram para a delimitação do Homem como ser moldável e passível de exploração o corpo passa a servir a razão Com o crescimento e aperfeiçoamento da pro dução agrícola e dos meios de transporte da sociedade feudal assim como o acréscimo da produtividade agrícola aliado à expansão comercial promovemse algumas das condições necessárias para o desenvolvi mento da indústria moderna Estas modificações aliadas a mudanças sociais desembocaram no surgimento do sistema capitalista a forma de produção do sistema capitalista a partir do século Xvii causou uma mudança drástica nas relações com os trabalhadores Com o início da re volução industrial a divisão técnica do trabalho acabou por reduzir o trabalho a uma simples acção fisiológica desprovida de criatividade o trabalho em série Nesta lógica de produção capitalista o corpo mostrouse tanto oprimido como manipulável Era percebido como uma máquina de acumulo de capi tal deste modo os movimentos corporais passaram a ser regidos por uma nova forma de poder o poder disciplinar Esta nova forma de poder instalouse nas principais instituições sociais como nos refere Foucault na sua obra Microfísica do Poder 19792002 com o objectivo de submeter o corpo de exercer um controle sobre ele actuando de forma coerciva sobre o espaço o tempo e a articulação dos movimentos corporais assim o movimento mecânico reacções nervosas e fluxo sanguíneo deu origem a uma compreensão secular do corpo contestando a antiga noção de que a fonte de energia era a alma Com a expansão do capitalismo no século XiX propagase a forma de produção industrial a padroniza ção dos gestos e movimentos instaurouse nas manifes tações corporais as novas tecnologias de produção em massa desencadearam um processo de homogeneização de gestos e hábitos que se estendeu a outras esferas sociais entre elas a educação do corpo que passou a identificarse não só com as técnicas mas também com os interesses da produção Hobsbawm 1996 in Pelegrini 2006 assim o ser humano é colocado ao serviço da economia e da produção gerando um corpo produtor que portanto precisa de ter saúde para melhor produzir e precisa de adaptarse aos padrões de beleza para melhor consumir rosário 2006 a evolução da sociedade industrial propiciou um elevado desenvolvimento técnicocientífico As novas possibilidades tecnológicas propiciaram à elite burguesa moderna um crescimento de técnicas e práticas sobre o corpo o aumento da expectativa de vida os novos meios de transporte e comunicação expandiram as formas de interacção e realização de actividades corporais de facto o fácil acesso à informação trouxe infinitas possibilidades ao conhecimento Com efeito nos séculos Xviii e iX o saber passa a ocupar um papel de destaque havendo a preocupação com a formação de indivíduos activos e livres com ênfase na liberdade do corpo contrariando as práticas mecanicistas Paim Strey 2004 No entanto a padronização dos conceitos de beleza ancorada pela necessidade de consumo criada pelas novas tecnologias e homogeneizada pela lógica da produção foi responsável por uma diminuição sig nificativa na quantidade e na qualidade das vivências corporais do homem contemporâneo de facto com a comunicação de massas a reprodução do corpo não se reduz agora ao âmbito da pintura ou do desenho mas pode atingir um vasto número de indivíduos o corpo pode ser reproduzido em série através da fotografia do cinema da televisão Como refere tucherman Chegando ao século XiX temos uma sociedade anónima uma vasta população de gente que não se conhece o trabalho o lazer o convívio com a família são actividades separadas vividas em compartimentos a ela destinados o homem procura protegerse do olhar dos outros 2004 p 69 Parece surgir uma nova forma de solidão o sen timento do próprio corpo um novo isolamento que não é protegido pelo espaço privado mas posto à prova no meio da multidão um corpo que deve administrar a ausência de contactos Esta vivência passiva e defensiva é notória na forma como as pessoas caminham no modo como se movem e evitam o contacto físico criando guetos individuais 15 A crise do corpo os nossos dias Como refere agostinho ribeiro o corpo pós moderno passou do mundo dos objectos para a esfera do sujeito assumido e cultivado como um eucarne 29 Psicologia Sociedade 23 1 2434 2011 credor de reconhecimento e de glorificação e mesmo objectosujeito de culto ribeiro 2003 p7 de facto cada vez mais pessoas investem no seu corpo com o intuito de obter dele mais prazer sensual e de lhe au mentar o poder de estimulação social assistindose a um mercado crescente de produtos serviços os media veiculam maioritariamente corpos que se encaixam num padrão estético inacessível para grande parte das pesso as mediados pelos interesses da indústria de consumo Modelos corporais são evidenciados como indicativo de beleza num jogo de sedução e imagens veiculase a representação da beleza estética associada a determi nados ideais de saúde magreza e atitude deste modo a publicidade apoderase da subjectividade de cada indivíduo incitandoo a recriarse segundo o modo ou estilo de vida que ela propaga Pelegrini 2006 Esta lógica mercantil actua com mecanismos semelhantes nas nossas carências mais profundas como o medo da morte ou da velhice que poderão ser aparentemente combatidos ou amenizados com produtos e técnicas estéticas o que se vende é a possibilidade de se per manecer vivo e belo a necessidade humana nos nossos dias de se encaixar neste padrão estético parece desencadear uma imagem em crise demonstrandose através de uma série de sintomas como o aumento das próteses a criação do cyborg o cibercorpo a clonagem as intervenções da engenharia genética a biologia molecular ou as novas técnicas cirúrgicas ou ainda o uso de substâncias quí micas assim as indústrias da beleza e da saúde têm no corpo o seu maior consumidor vejamse o crescente número de ginásios salões de beleza spas clínicas médicas estilistas etc É claro que esta crise do corpo será consequente da crise dos fundamentos da nossa cul tura associandose também à crise do próprio sujeito É interessante notar como os discursos que normalizam o corpo sejam eles científico tecnológico publicitário médico estético vão tomando conta da vida simbóli ca subjectiva do indivíduo invadindo as dimensões expressivas e simbólicas da corporeidade fornecendo imagens e informações que reconfiguram o próprio âmbito da vivência corporal Novaes 2006 Com efeito os cuidados físicos revelamse invariavelmente como uma forma de estar preparado para enfrentar os julgamentos e expectativas sociais disciplinamos o corpo para que consigamos reconhecimento social e aprovação estando o prazer associado ao esforço o sucesso à determinação e a intensidade do esforço será proporcional à angústia provocada pelo olhar do outro Novaes 2006 Nada é gratuito tudo é obtido num sistema de regulação de trocas de facto enquanto que no capitalismo de produção o corpo entrava no mercado como força de trabalho como força a ser domada e preservada já actualmente assistese a um capitalismo da super produção onde o problema é consumir o que se produz em excesso comparativamente às necessidades o corpo entra no mercado como capacidade de consumir e ser consumido vaz 2006 Segundo o sociólogo Bryan turner 1992 enquanto que no início do capitalismo havia uma relação entre a disciplina o ascetismo o corpo e a produção no capitalismo tardio séc XX existe uma ênfase comple tamente diferente e corrosiva no hedonismo no desejo e no divertimento o corpo é construído decorado e expressase individualmente é um projecto pessoal flexível e adaptável aos desejos do indivíduo Estas novas noções de corpo estão também rela cionadas com as alterações sociais provocadas pelos estudos feministas das décadas de 60 e 70 sobre as diferenças entre homens e mulheres serem baseadas em factores históricos e culturais e não como até então em factores exclusivamente biológicos e sexuais Com efeito são as propostas sociobiológicas que se impõem na definição de corpo no século XX Com a busca da produção homens e mulheres tentam adaptarse como indivíduos ao grupo social nem que para isso desistam inúmeras vezes da sua liberdade de acção e expressivi dade Paim Strey 2004 Como refere a historiadora Nísia do rosário 2006 o ser humano temse constituído numa duplici dade que só se consegue perceber em posições distintas corpo e alma razão e emoção feminino e masculino construindo o sentido dos seus corpos numa lógica de produção economia mercado consumo que têm regido a sociedade ocidental desde a diferenciação sexual no século Xviii daí instituirse um corpo sexual e produ tivo masculino reprodução do modelo capitalista do valor mercantil limitando em demasia o espaço sedutor feminino rosário 2006 Em todo este processo todos os mecanismos instituídos pelo poder que reprimem o corpo parecem por seu lado reforçar a importância da sexualidade começando pela repressão imposta na idade Média de facto este estímulo ao consumo material provocará necessariamente uma atenção redobrada ao corpo ao prazer e consequentemente à estimulação da sexualidade o próprio discurso psicanalítico vem reforçar esta ligação do corpo à sexualidade o sexual passa a ser em grande parte a representação do corpo todo ainda no campo da sexualidade o corpo é ou deve tornarse um objecto de desejo para os outros é reduzido a um mero corpo a ser consumido na fantasia de alguém Mo Sung 2003 Um exemplo de como a fetichização ou a coisificação das relações pessoais e sociais não se restringe ao campo da produção e consumo de bens económicos mas também se estende a outras dimensões da vida é o notório consumo ávido de revistas ou de programas de televisão que vendem ou utilizam o corpo para vender objectos de desejo Nesta sociedade 30 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje de consumo o corpo é por um lado objecto de ideali zação mas por outro potencial alvo de estigmatização caso não corresponda aos padrões expressos na própria publicidade turner 1992 Por outro lado a natureza do individualismo e da identidade relacionada com as alterações sociais está também relacionada com o avanço científico Na dimensão produtiva da era moderna o corpo passa a depender da nossa acção tecnologicamente avançada o corpo em forma apresentase como um sucesso pessoal ao qual homens e mulheres podem aspirar de facto as tecnologias pesquisam e propõem aos indivíduos que há formas para se regrar a forma do corpo reduzir a distância entre o que quer o pensamento e o que quer o corpo moderadores de apetite alimentação saudável sem colesterol ou calorias4 drogas para controlar a im potência sexual a insónia a angústia a depressão além disso as novas tecnologias médicas como a fertilização in vitro a indústria de transplante de órgãos o desenvol vimento da cibernética trouxeram novos problemas no respeitante à relação entre o corpo e a alma a consciência e a identidade a este respeito turner 1994 refere que se criou no séc XX uma sociedade somática uma sociedade na qual os nossos maiores problemas políti cos e morais são expressos através da conduta do corpo humano p 6 todavia todo este cuidado com o corpo e todas as técnicas que se desenvolvem no interesse da sua preservação não fazem mais do que demonstrar a crise do corpo a crise da Modernidade Por outro lado as novas técnicas de comunicação afectam a experiência do corpo ao promover a mediação generalizada Hoje é tanta a mediação tecnológica das relações dos homens com o mundo dos homens entre si e de cada um consigo mesmo que como refere Paulo vaz 2006 tornouse concebível pensar que nunca houve experiência imediata existem apenas diferentes experiências da presença segundo as diferentes media ções tecnológicas viáveis em cada momento histórico de facto toda a experiência do corpo parece estar a ser posta em questão a definição de espaço e de tempo a distinção entre o real e o imaginário todas estas fron teiras estão a ser questionadas pelas novas tecnologias especialmente a internet e a realidade virtual Como refere ieda tucherman 2004 p 94 Este corpo está a desaparecer por motivos que se rela cionam com a crise do sujeito moderno perplexo diante das simulações e dos duplos que põem em questão a sua principal noção de realidade tradicionalmente associada à presença tangível e ao suporte material Cibercorpo que futuro O corpo pósmoderno A dificuldade de tecer considerações sobre os sentidos construídos para o corpo pósmoderno tem a ver justamente com o facto de se estar a vivenciar o momento que se pretende analisar Por este facto referi remos alguns traços que marcam o corpo pósmoderno não os considerando no entanto definitivos acabados prontos Com efeito o corpo que se começa a delinear pode ser apenas uma releitura sobre o corpo de outrora mas pode ser também uma nova construção do presente rosário 2006 Se anteriormente o corpo foi dividido em dois matéria física e a parte abstracta representada pela alma na pósmodernidade o corpo é a própria fragmentação partese em pedaços dividese e adquire sentido pró prio rosário 2006 o físico agora decompõese em músculos glúteos coxas seios boca olhos cabelos órgãos genitais etc a publicidade ou os avanços da medicina parecem transformar cada um destes pedaços num potencial alvo de consumo e de tratamento ex reconstrução do nariz implantação de cabelo preen chimento de rugas cirurgia correctiva das mamas e já decorre uma fragmentação maior a descodificação do código genético do corpo humano as transformações que marcam a passagem da modernidade para a pósmodernidade trazem a ten dência da separação entre o saber e o poder que na modernidade estavam interligados Foucault 1994 o objectivo agora é a autonomia nos mais variados cam pos e diferentes graus estético social político ro sário 2006 desta forma os indivíduos deixam de ser regidos por padrões a serem seguidos assumindo cada um as suas escolhas e identidades Contudo esta espécie de autonomia corporal funcionará apenas como uma tendência já que na prática apesar da variabilidade dos adereços e estilos estes não parecem estar desvincula dos de uma cadeia de produção e da identificação com um determinado grupo de referência Como ilustração desta multiplicidade de estilos vemos por exemplo o aumento dos corpos tatuados dos cabelos pintados das mais diversas cores os piercings ou o vestuário que vai desde a moda mais clássica à moda hippie dos anos 70 punk funk rapper surfista entre outros Uma outra característica desta época é assistirmos a um corpo construído numa espécie de simulação uma aparência sem realidade de facto a roupa os adereços a maquilhagem associados a técnicas como a cirurgia plástica a lipoaspiração os tratamentos de beleza mesmo fazendo parte de um processo de produção voltamse para o imaginário ajudam homens e mulheres a mascararem o próprio corpo escondendo detalhes e ressaltando outros rosário 20065 o conceito de be leza assenta deste modo na criação e na inovação assim parece ter havido uma radical mudança de referência passando de uma identidade firme estável centrada totalizável e constante proposta do homem moderno para uma nova relação connosco mesmos com o mundo e com os outros que se manifesta numa 31 Psicologia Sociedade 23 1 2434 2011 identidade frágil instável descentrada mutante pro cessual e inconstante à qual corresponde um corpo fragmentado tucherman 2004 Poderseá dizer que o corpo pósmoderno não se desvincula da modernidade mas é capaz de recriar de inovar e fazer rupturas Na realidade como referem Cristina Paim e Marlene Strey 2004 o corpo ocidental encontrase em plena metamorfose Não se trata mais de aceitálo como ele é mas sim de corrigilo e reconstruílo actu almente o indivíduo procura no seu corpo uma verdade sobre si mesmo que a sociedade não lhe consegue proporcionar o contexto social e histórico instável e em constante mudança associado ao enfraquecimento dos principais meios de construção da identidade como a família a religião a política o trabalho parece levar os indivíduos a apropriaremse cada vez mais do corpo como meio de expressão do eu Como vimos a cultura centrada na valorização da imagem do corpo encontra na publicidade a disseminação da sua imagem norma lizando um determinado modelo de corpo além de um conjunto de práticas necessárias à sua manutenção o corpo tornase um objecto virtual mas agora saturado de estereótipos ele aparece como um quadro inacaba do e transformase em imagem do corpo tornase um objecto de autoplastia Goldenberg ramos 2002 citados por Paim Strey 2004 Por outro lado à medida que mergulhamos num mundo cada vez mais virtual assistimos também à crescente aproximação homemmáquinatecnologia o computador por exemplo não é aqui um mero ins trumento que ajuda no estudo e na análise dos corpos nem uma simples tecnologia que nos permite uma vi sualização mais própria do objecto de estudo É ainda um produtor de biomateriais processos e experiências humanas impossíveis anteriormente trabalha nos cor pos construindoos à sua imagem levy 2004 Surgem então conquistas importantes como os marcapassos aparelhos de respiração e monitorização artificiais aparelhos que ajudam os portadores de deficiências a locomoveremse ou a falar tucherman 2004 Neste contexto surgem também os cyborgs6 cyber body ou corpomáquina também chamado de biotécnico por kerckove 1997 organismos híbridos cujas funções fisiológicas são realizadas com a ajuda de máquinas relacionada com a nova imagem da era tecnológica7 assistese a um corpo completamente manejável pela tecnociência desenhado para superar todos os defeitos do corpo biológico o desenvolvimento tecnológico por seu lado e como refere o sociólogo le Brenton 1999 faz com que nunca como hoje nas sociedades ocidentais os homens utilizaram tão pouco o seu corpo a sua mo bilidade a sua resistência de facto utilizamos cada vez menos os nossos recursos musculares com o uso e abuso de próteses técnicas cada vez mais eficazes o auto móvel as escadas mecânicas as passadeiras rolantes etc a nossa existência está a perder progressivamente a sua ancoragem corporal ribeiro 2003 Mas se por um lado a possibilidade das próteses e das nanotecnologias aumentam a sobrevivência isto tem também implicações no nosso estatuto de sermos singulares e únicos Por exemplo nesta simbiose homemmáquina certos comportamentos passam a ser explicados pela simples presença de determinada quantidade de substâncias químicas a violência por exemplo será uma questão de excesso de serotonina e os comportamentos já se tornaram passíveis de uma descrição em termos de reacções bioquímicas em de terminadas localizações cerebrais Como refere teresa levy 2004 a partir daqui está criado o ambiente para a aceitação de descrições e justificações em ter mos biológicos das desigualdades hierárquicas das sociedades modernas as explicações assentam deste modo na química do cérebro e nos genes de cada um O carácter aparentemente científico destes pressupostos tem também a função política de afastar ou desviar a atenção das análises sociais conduzindo à substituição de soluções sociais por soluções de engenharia genética Beck 1992 citado por levy 2004 Por outro lado é importante realçar que o me canicismo da genética moderna é significativamente diferente do mecanicismo desenvolvido pelos físicos no século Xvii e Xviii a nova concepção da célula baseiase num materialismo cibernético descrito em termos de transferência de informação energia retro acção síntese de moléculas replicação e reprodução levy 20048 Esta convergência da cibernética e da biologia molecular foi crucial para a nova imagem de corpo num mundo onde a interacção homem e máquina é cada vez mais intensa como referimos Como temos vindo a referir experiência do cor po é sempre modificada pela experiência da cultura é um conceito construído mas actualmente é como se o homem deixasse de ser um ser da cultura de facto o surgimento da ideia de ciberespaço e infoesfera tornam o mundo como a informação a ser tratada por sistemas a experiência passa a prescindir de tempo e espaço podemos ver cheirar e tocar à distância assim se por um lado ganhamos com novas possibilidades é importante estarmos atentos também às consequências destas novas formas de tecnologia e de pensamento essencialmente em termos éticos e políticos São as máquinas que pensam ou somos nós que as operamos Quem é mais eficiente É bem ver dade que ao longo da história nas filosofias dualistas e mecanicistas o corpo humano já foi relegado para segundo plano É a prisão da alma em Platão um relógio em descartes uma tábua rasa em lock No entanto em nenhuma época como na actual filósofos cientistas 32 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje e artistas anunciam com tanta convicção a obsolência do corpo humano É o póshumanismo corrente do pensamento que não relega apenas o corpo humano a um segundo plano mas anuncia a sua necessária substituição por máquinas inteligentes Gaya 2005 de facto a pergunta não é apenas que corpo quero ter como forma mas que funções quero poder exercer o que desloca a questão de um projecto estético que não é abandonado para um projecto pragmáticofuncional tucherman 2004 Finalmente salientamos que os desenvolvimentos biotecnológicos a que temos vindo a assistir vão sendo acompanhados por processos culturais de redefinição da vida e do corpo processos esses que explicam em parte a ambivalência produzida em relação à própria tecnologização da vida vejase por exemplo os deba tes à volta da clonagem ou dos alimentos geneticamente modificados reflexos da controvérsia que acompanha a produção de tipos nãonaturais do futuro e da re gulação desse futuro Levy 2004 Enfim como refere adroaldo Gaya 2005 p 335 será que a partir do século XXI filosofar sobre o corpo humano significará radicalizar os dualismos de Platão descartes e dos neoidealistas póshumanistas como Newel Simon ou Moravec ou ainda há esperanças de filosofar na trilha de Espinosa MerleauPonty Heideg ger ou contemporâneos como Morin Maturana e varela josé Gil damásio deryfuss dennet le doux Gard ner deveremos anunciar a morte do corpo humano ou haverá espaço para recuperar a sua dignidade Conclusão o conceito de corpo remete à questão da natureza e da cultura e abre assim um leque diferenciado de posicionamentos teóricos filosóficos e antropológicos o corpo não se revela apenas enquanto componente de elementos orgânicos mas também enquanto facto social psicológico cultural religioso Está dentro da vida quotidiana nas relações é um meio de comunica ção pois através de signos ligados à linguagem gestos roupas instituições às quais pertencemos permite a nossa comunicação com o outro Braunstein Pépin 1999 Na sua subjectividade está sempre a produzir sentidos que representam a sua cultura desejos afectos emoções enfim o seu mundo simbólico de facto como qualquer outra realidade do mundo o corpo é socialmente construído Como vimos não há sociedade que não modifique de alguma forma o corpo cada uma produzindo determinado tipo de corpo que servirá como insígnia da identidade grupal Paim Strey 2004 Falar sobre o corpo implica à priori pensarmos o corpo enquanto signo como um ente que reproduz uma estrutura social de forma a darlhe um sentido particular que certamente irá variar de acordo com os mais dife rentes sistemas sociais as pessoas aprendem a avaliar os seus corpos através da interacção com o ambiente com os outros assim a sua imagem corporal é desenvolvida e reavaliada continuamente durante a vida inteira isto ilustra a forma como Lyon e Barbalet definem incorpo ração Eu sou o meu corpo 1994 p 56 Como vimos hoje vivese a revolução do corpo valores relativos à beleza saúde higiene lazer alimen tação exercício físico têm reorientado um conjunto de comportamentos na sociedade imprimindo um novo estilo de vida mais aberto à diversidade por um lado mas mais narcísico e hedonista no que diz respeito à experiência do corpo Percebese então que vivemos uma época de contradições no que diz respeito às nossas escolhas uma vez que hoje não há uma obrigação das pessoas se vestirem de acordo com a classe social de que fazem parte como ocorria noutras épocas porém a moda dita as regras dita as tendências e aquilo que devemos escolher É através do nosso corpo que expressamos o efeito e significados que as relações tiveram ou têm em nós a nossa existência corporal está imbuída num contexto relacional e cultural sendo este o canal pelo qual as nossas relações são construídas e vivenciadas Na verdade quer queiramos quer não assistimos a um processo de exaustão do corpo na sociedade ocidental contemporânea processo que envolve um mito supos tamente libertador mas que na realidade penetra e transforma a nossa experiência pessoal ao introduzir na nossa subjectividade o peso alheio dos imperativos sociais Bernard 1985 Nesta reflexão propusemonos demonstrar e explicar precisamente que a nossa experi ência corporal que cremos muitas vezes ser individual e uma força invencível está invadida e modelada desde o início pela sociedade em que vive e pelas relações que experiencia Queremos desta forma desmitificar a ideia de um corpo frequentemente entendido como uma realidade cerrada e íntima e sublinhar por seu lado a sua condição aberta e dinâmica em função da sua mediação social Notas Estudo financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecno logia Portugal 1 Como refere ieda tucherman 2004 na Grécia antiga a nudez tinha um outro e curioso valor o imaginário do interior do corpo humano na época de Péricles marcado pelo calor corporal que antecederia o próprio nascimento determinando que fetos bem aquecidos desde o início da gravidez deveriam tornarse machos e que fetos carentes de aquecimento seriam fêmeas acreditavase que macho 33 Psicologia Sociedade 23 1 2434 2011 e fêmea eram dois pólos de um continuum corporal sendo a diferença entre ambos uma diferença de grau e não de natureza sendo o grau referente ao calor corporal o corpo teria um único sexo de modo que fetos masculinos preca riamente aquecidos tornarseiam homens afeminados e fetos femininos muito aquecidos tornarseiam mulheres masculinizadas tucherman 2004 o próprio aristóteles mais tarde distingue o sangue menstrual frio do esperma sangue quente superior porque gera vida 2 Esta divisão é agora mais acentuada embora tivesse sido já determinada por Sócrates Platão e aristóteles no século viv aC aquando da sua proposta de divisão entre dois mundos o material e o ideal o corpo e a alma o desejo e o pensamento até então o indivíduo era pensado de forma una e integrada ramminger 2000 citado por Paim Strey 2004 3 Em 1486 com as bênçãos do Papa inocêncio viii Heirich kramer e james Sprenger escreveram aquele que seria o livro de referência dos inquisidores e torturadores dos séculos se guintes o Malleus Maleficarum o Martelo das Feiticeiras ensinava como reconhecer uma bruxa e principalmente técnicas de tortura que deviam ser aplicadas para obter confissões O livro consolidava definitivamente o desprezo pela figura da mulher 4 a este propósito às doenças da sociedade moderna como a anorexia e a bulimia juntase agora outra mais recente a ortorexia ou obsessão por uma alimentação saudável Em Portugal a sua prevalência ainda é desconhecida Notícias Magazine 26 Fev 2006 5 Como refere a mesma autora Michael jackson é um simulacro de si mesmo mas é também a resignificação do ser original e a consequente confirmação do sentido estético ocidental pele clara linhas do rosto afiladas cabelo liso olhos amendoados Inúmeras cirurgias plásticas fizeram com que o original ficasse perdido foise reconstruindo rosário 2006 6 Cyborg cybernetic organism é o organismo humano hi bridado com a máquina com vista a um aumento de eficácia num domínio particular le Breton 1999 p 1415 7 No mundo da tecnociência surge entre outras expressões corporais a bodyart vendo no artista de vanguarda radicado na austrália Stelarc o exemplo máximo do corpo híbrido o corpo suspenso do solo através de ganchos metálicos atravessados na sua pele ou ainda o implante de uma terceira mão robótica que activada por impulsos eléctricos provenientes da sua musculatura abdominal após 3 meses de treino permitiu a utilização das suas 3 mãos para assinar o próprio nome Gaya 2005 o artista pretende deste modo declarar a insuficiência da anatomia humana e a necessária implementação de próteses artificiais Um outro exemplo que tem estado nos holofotes da imprensa tem sido o inglês kevin Warwick dirigente do departamento de Cibernética da Universidade de reading e já cognominado do cientista ciborg por causa de um implante que aplicou em si próprio em agosto de 1998 rodrigues 2001 8 Um outro passo já demonstrado em 1996 é a criação de redes pessoais as chamadas PaN em inglês personal area networks que permitem gerar uma rede de comunicações usando uma tecnologia sem fios de baixa frequência que passa sinais directamente através do corpo humano no raio de um metro thomas Zimmerman do Centro de investigação de almaden da iBM em San josé no Silicon valley é o pai do PaN tendo trocado cartões de visita digitalmente através do simples contacto entre dedos rodrigues 2001 Referências Bernard M 1985 El cuerpo Barcelona Paidós Edição original francesa publicada em 1976 Braunstein F Pépin jF 1999 O lugar do corpo na cultura ocidental lisboa Piaget Editora Carmo i 1997 Magros gordinhos e assimassim perturba ções alimentares dos jovens Porto Edinter Cunha Mj 2004 A imagem corporal Uma abordagem sociológica à importância do corpo e da magreza para as adolescentes azeitão autonomia 27 daolio j 1995 Da cultura do corpo Campinas SP Papi rus Foucault M 1994 História da sexualidade II O cuidado de si lisboa relógio dágua Foucault M 2002 Microfísica do poder 17ª Edição rio de janeiro Ed Graal Edição original de 1979 Gaya a 2005 Será o corpo humano obsoleto Sociologias 13 324337 Mo Sung j 2003 Corpo cristianismo e capitalismo versão online acesso em 16 de janeiro 2006 em wwwservicio skoinoniaorg kerckove d 1997 A pele da cultura lisboa relógio dÀgua könig r 1969 Sociologie de la mode Paris Petite Biblio tèque Payot le Breton d 1999 L adieu au corps Paris Métaillié levy t 2004 o corpo à superfície Revista de comunicação e linguagem corpo técnica e subjectividade 83 104135 lyon M l Barbalet j M 1994 Societys body emotion and the somatization of the social theory in t j Csordas Ed Embodiment and experience The existential ground of culture and self pp 4866 Cambridge University Press Novaes j v 2006 Ser mulher ser feia ser excluída versão online acesso em 11 de fevereiro 2006 em httpwww psicologiacomptartigostextosa0237pdf Paim M C C Strey M N 2004 Corpos em metamorphose um breve olhar sobre os corpos na história e novas confi gurações de corpos na actualidade versão online Revista Digital Buenos Aires 79 acesso em 26 de janeiro 2006 em httpwwwefdeportescomefd133culturadetempolivre dotrabalhadorhtm Pelegrini T 2006 Imagens do corpo reflexões sobre as acep ções corporais construídas pelas sociedades ocidentais ver são online Revista Urutágua 08 acesso em 12 de janeiro 2006 em wwwurutaguauembr00808edupelegrinihtm ribeiro a 2003 O corpo que somos aparência sensualidade comunicação lisboa Editorial Notícias rodrigues j N 2001 O século da vida artificial versão online acesso em 12 de janeiro 2006 em httpwww janelanawebcomdigitaisvidaartificialhtml rosário N M 2006 Mundo contemporâneo corpo em meta morphose versão online Acesso em 12 de janeiro 2006 em httpwwwcomunicaunisinosbrsemioticanisiasemiotica conteudoscorpohtm tucherman i 2004 Breve história do corpo e de seus mons tros lisboa veja turner B 1992 recent developments in the theory of the body in M Featherstone M Hepworth B turner Eds The Body Social process and cultural theory pp 135 london Sage Publications turner B 1994 Preface in P Falk Ed The Consuming Body pp vii xvii london Sage Publications 34 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje vaz P 2006 Corpo e risco versão online Acesso em 12 de janeiro em httpwwwangelfirecommboencantador paulovaziNdEXhtml recebido em 21102009 aceite em 13122009 Maria Raquel Barbosa é Professora auxiliar na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Portugal Endereço Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto rua do dr Manuel Pereira da Silva Porto Portugal CEP 4200392 Email raquelfpceuppt Paula Mena Matos é Professora auxiliar na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Portugal Maria Emília Costa é Professora Catedrática na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Portugal Como citar Barbosa M r Matos P M Costa M E 2011 Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje Psicologia Sociedade 231 2434
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24 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje UM OLHAR SOBRE O CORPO O CORPO ONTEM E HOjE A GLANCE INTO THE BODY YESTERDAYS AND TODAYS BODY Maria Raquel Barbosa Paula Mena Matos e Maria Emília Costa Universidade do Porto Porto Portugal RESUMO o entendimento dos sentidos construídos para o corpo na actualidade requer uma caminhada ainda que breve pela história pela forma como o corpo foi pensado e sentido deste modo neste ensaio em torno do tema do corpo propomos pensar nalguns aspectos sociais e culturais que contribuíram para a construção do corpo na nossa sociedade a forma como ele tem sido e pode ser olhado e representado Palavraschave significados do corpo representações sociedade ABSTRACT to understand the ways in which people make meaning out of the body nowadays it is necessary to go back in time even if briefly through history through the ways in which the body has been experienced Thus it is the aim of these structured reflections having the body as its focus to think about some of the social and cultural aspects influencing its construction in our society how it has been and can be seen and perceived Keywords body meanings perceptions society 1 O corpo na história ou a história do corpo No corpo estão inscritas todas as regras todas as normas e todos os valores de uma sociedade específica por ser ele o meio de contacto primário do indivíduo com o ambiente que o cerca daolio 1995 p 105 a história do corpo humano é a história da ci vilização Cada sociedade cada cultura age sobre o corpo determinandoo constrói as particularidades do seu corpo enfatizando determinados atributos em detrimento de outros cria os seus próprios padrões Surgem então os padrões de beleza de sensualidade de saúde de postura que dão referências aos indivíduos para se construírem como homens e como mulheres ao longo do tempo esses modelos produziram a história corporal funcionando como mecanismos codificadores de sentido e produtores da história corporal rosário 2006 percebendose que as mudanças que foram acontecendo na noção de corpo foram oriundas das mudanças no discurso assistese actualmente a uma espécie de reinven ção da cultura onde o cyberespaço e a realidade virtual põem em questão a própria existência do real e do seu sentido Podemos viver afectivamente essa perda mas ter em atenção que o virtual não se opõe ao real ha vendo entre eles uma relação entre o actual e o virtual um modo próprio de ser do real que se associa a um processo de desterritorializaçãoe a novos fenómenos espaçotemporais tucherman 2004 p13 de facto perplexidade parece ser o sentimento mais frequente experienciado nos nossos dias vemonos incapazes de ou mal preparados para entendermos o que constituía a nossa sensação de realidade aquilo que éramos e o que somos Surgem então outras questões Quem somos nós humanos o que é ser um corpo o que é ter um corpo o que é hoje a nossa corporeidade Que possibilidades nos são abertas e que experiências nos são possíveis assim para se conhecer os sentidos construídos para o corpo humano no presente será necessário fazer uma caminhada ainda que breve pela História e observar as diferentes formas de tratar o corpo a sexualidade os géneros Modificase o ambiente os afectos e é a pensar num corpo dinâmico construído pela cultura e pela sociedade que tentaremos falar do corpo e da sua história entendendo que o mais importante não será a delimitação de datas e épocas mas a descrição dos traços que se destacaram em determinados períodos visando compreender melhor o corpo de hoje É im portante salientar que os períodos considerados não se constituem de forma independente uns dos outros mas vãose encadeando uns nos outros ao longo do tempo 25 Psicologia Sociedade 23 1 2434 2011 Começamos por uma breve passagem pela ex periência da polis grega seguindo pelo cristianismo e suas contrariedades pela idade Média e pelos tempos modernos e do corpo em crise terminando com as novas noções de corpo e cybercorpo levantando e discutindo alguns dos traços mais marcantes do corpo na pós modernidade sempre com a ideia de que falamos de uma história ainda em aberto e em constante devir 11 A idealização do corpo a Grécia antiga a imagem do corpo grego ainda hoje atraente e considerada uma referência é bastante revelador da existência e dos ideais estéticos veiculados na altura Na verdade este corpo era radicalmente idealizado treina do produzido em função do seu aprimoramento o que nos indica que ele era contrariamente a uma natureza qualquer que ela fosse um artifício a ser criado numa civilização que alguns helenistas chamam de civili zação da vergonha por oposição à judaicocristã que será uma civilização da culpa dodds 1988 citado por tucherman 2004 assim a imagem idealizada cor responderia ao conceito de cidadão que deveria tentar realizála modelando e produzindo o seu corpo a partir de exercícios e meditações o corpo era visto como elemento de glorificação e de interesse do Estado o corpo nu é objecto de admiração a expressão e a exibição de um corpo nu representava a sua saúde e os Gregos apreciavam a beleza de um corpo saudável e bem proporcionado o corpo era valorizado pela sua saúde capacidade atlética e fertilidade Para os gregos cada idade tinha a sua própria beleza e o estético o físico e o intelecto faziam parte de uma busca para a perfeição sendo que o corpo belo era tão importante quanto uma mente brilhante a moral quanto ao corpo e ao sexo não era rigi damente organizada e autoritária apenas estabelecia algumas normas de conduta para evitar os excessos que significavam a falta de controlo do indivíduo so bre si mesmo prescrevendo o bom uso dos prazeres bebida comida sexo rosário 2006 Estes porém eram considerados apenas para os cidadãos isto é para os homens livres estando excluídos tanto os escravos como as mulheres a estas cabia cumprir funções como obediência e fidelidade aos seus pais e maridos e a re produção os prazeres eram do domínio masculino não do feminino de facto a civilização grega não incluía as mulheres na sua concepção de corpo perfeito que era pensado e produzido no masculino as normas para os homens eram mais soltas permitindo a bigamia e a homossexualidade como práticas naturais rosário 2006 as leis da cidade aplicavam inclusive normas diferentes aos corpos masculinos e femininos sendo que aos primeiros corresponderia o andarem nus nos ginásios e o andar na cidade com vestes soltas por serem capazes de absorver calor e manter o equilíbrio térmico dispensando o uso da protecção das roupas aos corpos femininos impunhase o uso de roupas em casa considerandose que estas seriam suficientes e para a saída à rua os seus corpos deviam ser cobertos tucherman 20041 Vemos hoje as figuras humanas expostas no Par ténon nuas simbolismo de juventude da perfeição Cada cidadão era livre de atingir o corpo perfeito ide alizado e depois expôlo os corpos eram trabalhados e construídos como objectos de admiração que come çavam a ser esculpidos e modelados nos ginásios fundamentais nas polis gregas e que acabavam por ser mostrados muitas vezes nos jogos olímpicos a saúde a expressão e exibição de um corpo nu estavam associadas os Gregos apreciavam a beleza de um corpo saudável e bem proporcionado o grego desconhecia o pudor físico o corpo era uma prova da criatividade dos deuses era para ser exibido adestrado treinado perfumado e referenciado pronto a arrancar olhares de admiração e inveja dos demais mortais Mas não se tratava apenas de narcisismo de pai xão desmedida por si mesmo os corpos não existiam apenas para mostrarse eles eram também instrumentos de combate tudo na natureza era luta era obstáculo a ser transposto era espaço ou terra a conquistar a vida diziam os deuses não era uma graça mas sim um dom a ser mantido as corridas os saltos os halteres os discos os dardos os carros eram as provas que as divindades exigiam deles para que se mostrassem dignos de terem sido premiados Os deuses pagãos afinal não passavam de seres humanos melhorados eram a excelência do que era possível alcançar Salientese que através desta forma idealizada de pensar e viver o corpo se definem também formas de estar na sociedade e princípios filosóficos e sociais que assentam na visão como sentido primordial no olhar no espelho como fundamentais para o funcionamento de uma sociedade Cunha 2004 É interessante verificar como esta forma de ler a realidade ainda hoje se man tém esta primazia do olhar Segundo Foucault 1994 nos séculos I e II os filósofos enfatizavam a necessidade dos indivíduos terem cuidado consigo mesmos pois seria dessa forma que alcançariam uma vida plena Eles cuidavam tanto do corpo como da alma recomendando a leitura as meditações e regimes rigorosos de activi dade física e dietas ressalva ainda que esse cuidar de si provocou no mundo helenístico e romano um individualismo no sentido em que as pessoas valorizavam as regras de condutas pessoais e voltavamse para os próprios inte resses tornandose menos dependentes uns dos outros e mais subordinadas a si mesmas instaurase então o que Foucault chama de cultura de si 26 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje Sabemos que os Gregos se expunham e celebra vam os seus corpos à luz do dia enquanto que os romanos já não o faziam o poder de roma e mais concretamente do imperador deveria ser evidenciado e exibido através dos grandiosos monumentos construídos para que todos olhassem acreditassem e obedecessem o que se prendia com o malestar com o corpo tucherman 2004 roma acolheu as formas artísticas gregas mas tornouas mais pesadas embora sólidas com uma robustez que lhes dava duração apesar da banalização em que caíram könig 1969 as representações artís ticas adquiriram maior dramaticidade evidenciando um contraste entre o nu e o vestido a vida e a morte a força e a debilidade física a força física demonstrada pelos gladiadores estava agora associada ao seu destino à morte à escuridão assim enquanto que os Gregos celebravam a exposição a força os romanos por seu lado não se expunham à luz todavia no momento em que o domínio político do império romano se impôs a construção do pensamento filosófico e por conseguinte as acepções corporais instituídas por ele foram altera das Pelegrini 2006 de facto embora tenha sido atri buído ao culto do corpo um valor pagão a arte romana mantevese orientada pela expressão do ideal de beleza grego Nos períodos posteriores as representações do corpo adquiriram outras dimensões subjugandoo a temas que potencializavam as questões místicas e reli giosas Gombrich 1999 in Pelegrini 2006 12 Um corpo em silêncio proibido o cristianismo Com o cristianismo assistese a uma nova percep ção de corpo o corpo passa da expressão da beleza para fonte de pecado passa a ser proibido o cristianismo e a teologia por muito tempo foram reticentes na interpre tação crítica e transformação das imagens veiculadas do corpo Uma das razões será porque o cristianismo possui uma história própria e de difícil relação com o corpo durante muito tempo foi central a espiritualização e o controle de tudo o que é material Foi um morador do deserto Santo agostinho o bispo de Hipona a tunísia de hoje quem lançou o mais pesado manto da vergonha sobre a nudez do paganismo Perante o deus cristão o deus que estava em toda a parte os homens e as mulheres deviam ocultar o cor po Nem entre os casais na intimidade ele deveria ser inteiramente desvelado o pecado rondava tudo o cristianismo reprime constantemente o corpo o corpo é a abominável vestimenta da alma diz o papa Gregório Magno Por outro lado é glorificado nomeadamente através do corpo sofredor de Cristo a dor física teria um valor espiritual a lição divulgada era a morte de Cristo o lidar bem com a dor do corpo que seria mais importante do que saber lidar com os prazeres tucherman 2004 Evidenciase a separação do corpo e da alma prevalecendo a força da segunda sobre o primeiro2 o cristianismo resume a atitude de recusa cabia ao homem descobrirse como mais do que o seu corpo descobrirse como alma que deve lutar contra os desejos para escapar da morte e conquistar a eternidade e a salvação vaz 2006 o bemestar da alma deveria prevalecer acima dos desejos e prazeres da carne o corpo prisão da alma era pois um vexame devia ser escondido Então durante os mil e quinhentos anos seguintes do decreto de teodósio suprimindo em 393 com os jogos olímpicos até à sua restauração pelo Barão de Coubertin em 1896 o ocidente vexado de si mesmo carregado de culpas por ser feito de carne e de sexo assaltado por pudores encobriu os seus membros e os seus músculos assistimos também à renúncia da alimentação por largos períodos de tempo com um quadro seme lhante àquilo a que hoje denominamos de anorexia nervosa Contudo esta recusa da comida prendiase essencialmente com a vontade de abandonar o material e alcançar o espiritual Carmo 1997 Não será errado afirmar que nestas culturas assim como em muitas religiões orientais por oposição à nossa tradição ocidental produzse uma cultura para o corpo tucherman 2004 tal como nos mostram os trabalhos de Michel Foucault a experiência religiosa de uma época e a sua história social reenviam a um centro uma espécie de código subtil que restringe certas formas de expe rienciar estimula outras e transforma em sentido amplo o contexto social modificando não apenas a tensão ou diferença entre espaço público e o privado mas também a relação com a natureza e desta com a cultura 13 O desprezo e mortificação do corpo o corpo paradoxal a Idade Média Na idade Média o corpo serviu mais uma vez como instrumento de consolidação das relações sociais a característica essencialmente agrária da sociedade feudal justificava o poder da presença corporal sobre a vida quotidiana características físicas como a altura a cor da pele e peso corporal associadas ao vínculo que o indivíduo mantinha com a terra eram determinantes na distribuição das funções sociais o homem medieval era extremamente contido a presença da instituição religiosa restringia qualquer manifestação mais criativa o cristianismo dominou durante a Idade Média influenciando portanto as no ções e vivências de corpo da época a união da igreja e Monarquia trouxe maior rigidez dos valores morais e uma nova percepção de corpo a preocupação com o corpo era proibida começandose a delinear claramente a concepção de separação de corpo e alma prevalecendo a força da segunda sobre o primeiro rosário 2006 o corpo ao estar relacionado com o terreno o material 27 Psicologia Sociedade 23 1 2434 2011 seria a prisão da alma tornase culpado perverso necessitado de ser dominado e purificado através da punição Para o cristianismo o corpo sempre teve uma característica de fé é o corpo crucificado glorificado e que é comungado por todos os cristãos Como sabemos as técnicas coercitivas sobre o corpo como os castigos e execuções públicas as condenações pelo tribunal do Santo Ofício a Inquisição oficializada pelo papa Gregório IX o autoflagelo marcam a Idade Média A inquisição inicialmente com o intuito de salvar a alma aos hereges passou a empregar mais tarde a tortura e a fogueira como forma de punição com autorização do Papa inocêncio iv em 1254 Estes eram acontecimentos e cerimónias públicas cujo objectivo era o de expor à população a sentença recebida pelo réu era um verda deiro acto festivo assistido não só pela população mas pelas autoridades religiosas Uma boa visualização deste período da nossa história pode ser vista no filme eou livro O Nome da Rosa de Umberto Eco realizado por jeanjacques annaud 1986 Um outro exemplo de per cepção do corpo no final da Idade Média dos sécs XIV a meados de Xviii está nos processos de bruxaria3 foram mortas e reprimidas milhares de mulheres a ideia central da bruxaria era a de que o demónio procurava fazer mal aos homens para se apropriar das suas almas E isto era feito essencialmente através do corpo e esse domínio seria efectuado através da sexualidade Pela sexualidade o demónio apropriavase primeiro do corpo e depois da alma do homem Como as mulheres estão ligadas essencialmente à sexualidade e porque nasce ram de uma costela de adão nenhuma mulher poderia ser correcta elas tornavamse agentes do demónio feiticeiras de facto os processos inquisicionais so bre acusações de bruxaria enfocavam principalmente os corpos das bruxas elas eram despidas os cabelos e pêlos eram rapados e todo o corpo era examinado à procura de um sinal que as pudesse comprometer É também na idade Média que aparece a nova figura literária do cavaleiro andante do amor cortês reflectindo deste modo uma visão muito diferente do corpo e das suas relações Embora a medicina e a erótica cortês concordassem com a definição de dualismo sobre o qual se construía toda a representação do mundo discordam no entanto quanto ao seu tratamento tu cherman 2004 assim não se duvidava que a pessoa fosse formada por um corpo e por uma alma portanto partilhada entre a carne e o espírito Encontramos assim uma visão dupla do corpo na idade Média que se prende essencialmente na forma como encara o corpo feminino de facto embora ambas as noções de corpo estejam ligadas ao mundo material a versão feudal ligada aos princípios cristãos considera isso bastante negativo daí a persistência das mulheres em viver uma vida religiosa e em transcender o corpo material Por outro lado numa versão mais popular da poesia trovadoresca e do amor cortês o valor da mu lher é ampliado havia um corpo a exaltar objecto de experiências que o libertam Cunha 2004 tucherman 2004 o amor provençal opunhase a todas as morais e basicamente moral cristã criando um sistema de valores independente que libertava o corpo para uma experiên cia de intensidade e artifício Como nos diz tucherman 2004 p 67 em diferentes épocas e em diferentes sociedades o amor foi inventado e reinventado assim como o corpo que o suporta e o experimenta Finalmente e no que se refere ao corpo de me ados da Idade Média até ao final do séc XVIII não parece haver uma modificação profunda do seu signi ficado o que não indica que não tenha sido submetida a diferentes vivências e movimentos o Cristianismo por possuir uma história difícil e paradoxal na sua relação com o corpo foi por muito tempo reticente na interpretação crítica e transforma ção destas imagens duplamente globalizadas do corpo independentemente e para além do discurso do pecado e do controle do corpo este é um tema essencial da teologia e da espiritualidade cristã 14 O novo corpo a Era Moderna No renascimento as acções humanas passaram a ser guiadas pelo método científico começa a haver uma maior preocupação com a liberdade do ser humano e a concepção de corpo é consequência disso o avanço científico e técnico produziram nos indivíduos do perí odo moderno um apreço sobre o uso da razão científica como única forma de conhecimento Pelegrini 2006 o corpo agora sob um olhar científico serviu de objecto de estudos e experiências Passase do teocentrismo ao antropocentrismo O conhecimento científico a matemá tica enfim o ideal renascentista O corpo investigado descrito e analisado o corpo anatómico e biomecânico Gaya 2005 a redescoberta do corpo nessa época aparece principalmente nas obras de arte como as pin turas de da vinci e Michelangelo valorizandose deste modo o trabalho artesão juntamente com o pensamento científico e o estudo do corpo Rosário 2006 a disciplina e controle corporais eram preceitos básicos todas as actividades físicas eram prescritas por um sistema de regras rígidas visando a saúde cor poral Agora com o declínio final dos sacerdotes que condenavam a vida na terra vemos a sua redenção Um neopaganismo ressurge e a carne intensa activa ainda carregando cicatrizes do estigma volta a ser soberana quer mostrarse a obtenção do corpo sadio dominava o indivíduo a prática física domava a vontade contri buindo para tornar o praticante subserviente ao Estado Pelegrini 2006 o dualismo corpoalma norteava a concepção corporal do período demonstrando a 28 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje influência das concepções da antiguidade clássica Na realidade o filósofo Descartes parece ter instalado definitivamente a divisão corpomente o homem era constituído por duas substâncias uma pensante a alma a razão e outra material o corpo como algo comple tamente distinto da alma Mesmo se já se pensasse o ser humano como constituído por um corpo físico e uma outra parte subjectiva a partir de descartes essa divisão foi realmente instituída e o físico passou a estar ao serviço da razão de facto no século Xviii também os ideais iluministas acabaram por acentuar a depreciação do corpo dissociandoo da alma retomando a dicotomia corpoalma arquitectada na antiguidade clássica o pensamento iluminista negou a vivência sensorial e corporal atribuindo ao corpo um plano inferior Para lelamente as necessidades de manipulação e domínio do corpo concorreram para a delimitação do Homem como ser moldável e passível de exploração o corpo passa a servir a razão Com o crescimento e aperfeiçoamento da pro dução agrícola e dos meios de transporte da sociedade feudal assim como o acréscimo da produtividade agrícola aliado à expansão comercial promovemse algumas das condições necessárias para o desenvolvi mento da indústria moderna Estas modificações aliadas a mudanças sociais desembocaram no surgimento do sistema capitalista a forma de produção do sistema capitalista a partir do século Xvii causou uma mudança drástica nas relações com os trabalhadores Com o início da re volução industrial a divisão técnica do trabalho acabou por reduzir o trabalho a uma simples acção fisiológica desprovida de criatividade o trabalho em série Nesta lógica de produção capitalista o corpo mostrouse tanto oprimido como manipulável Era percebido como uma máquina de acumulo de capi tal deste modo os movimentos corporais passaram a ser regidos por uma nova forma de poder o poder disciplinar Esta nova forma de poder instalouse nas principais instituições sociais como nos refere Foucault na sua obra Microfísica do Poder 19792002 com o objectivo de submeter o corpo de exercer um controle sobre ele actuando de forma coerciva sobre o espaço o tempo e a articulação dos movimentos corporais assim o movimento mecânico reacções nervosas e fluxo sanguíneo deu origem a uma compreensão secular do corpo contestando a antiga noção de que a fonte de energia era a alma Com a expansão do capitalismo no século XiX propagase a forma de produção industrial a padroniza ção dos gestos e movimentos instaurouse nas manifes tações corporais as novas tecnologias de produção em massa desencadearam um processo de homogeneização de gestos e hábitos que se estendeu a outras esferas sociais entre elas a educação do corpo que passou a identificarse não só com as técnicas mas também com os interesses da produção Hobsbawm 1996 in Pelegrini 2006 assim o ser humano é colocado ao serviço da economia e da produção gerando um corpo produtor que portanto precisa de ter saúde para melhor produzir e precisa de adaptarse aos padrões de beleza para melhor consumir rosário 2006 a evolução da sociedade industrial propiciou um elevado desenvolvimento técnicocientífico As novas possibilidades tecnológicas propiciaram à elite burguesa moderna um crescimento de técnicas e práticas sobre o corpo o aumento da expectativa de vida os novos meios de transporte e comunicação expandiram as formas de interacção e realização de actividades corporais de facto o fácil acesso à informação trouxe infinitas possibilidades ao conhecimento Com efeito nos séculos Xviii e iX o saber passa a ocupar um papel de destaque havendo a preocupação com a formação de indivíduos activos e livres com ênfase na liberdade do corpo contrariando as práticas mecanicistas Paim Strey 2004 No entanto a padronização dos conceitos de beleza ancorada pela necessidade de consumo criada pelas novas tecnologias e homogeneizada pela lógica da produção foi responsável por uma diminuição sig nificativa na quantidade e na qualidade das vivências corporais do homem contemporâneo de facto com a comunicação de massas a reprodução do corpo não se reduz agora ao âmbito da pintura ou do desenho mas pode atingir um vasto número de indivíduos o corpo pode ser reproduzido em série através da fotografia do cinema da televisão Como refere tucherman Chegando ao século XiX temos uma sociedade anónima uma vasta população de gente que não se conhece o trabalho o lazer o convívio com a família são actividades separadas vividas em compartimentos a ela destinados o homem procura protegerse do olhar dos outros 2004 p 69 Parece surgir uma nova forma de solidão o sen timento do próprio corpo um novo isolamento que não é protegido pelo espaço privado mas posto à prova no meio da multidão um corpo que deve administrar a ausência de contactos Esta vivência passiva e defensiva é notória na forma como as pessoas caminham no modo como se movem e evitam o contacto físico criando guetos individuais 15 A crise do corpo os nossos dias Como refere agostinho ribeiro o corpo pós moderno passou do mundo dos objectos para a esfera do sujeito assumido e cultivado como um eucarne 29 Psicologia Sociedade 23 1 2434 2011 credor de reconhecimento e de glorificação e mesmo objectosujeito de culto ribeiro 2003 p7 de facto cada vez mais pessoas investem no seu corpo com o intuito de obter dele mais prazer sensual e de lhe au mentar o poder de estimulação social assistindose a um mercado crescente de produtos serviços os media veiculam maioritariamente corpos que se encaixam num padrão estético inacessível para grande parte das pesso as mediados pelos interesses da indústria de consumo Modelos corporais são evidenciados como indicativo de beleza num jogo de sedução e imagens veiculase a representação da beleza estética associada a determi nados ideais de saúde magreza e atitude deste modo a publicidade apoderase da subjectividade de cada indivíduo incitandoo a recriarse segundo o modo ou estilo de vida que ela propaga Pelegrini 2006 Esta lógica mercantil actua com mecanismos semelhantes nas nossas carências mais profundas como o medo da morte ou da velhice que poderão ser aparentemente combatidos ou amenizados com produtos e técnicas estéticas o que se vende é a possibilidade de se per manecer vivo e belo a necessidade humana nos nossos dias de se encaixar neste padrão estético parece desencadear uma imagem em crise demonstrandose através de uma série de sintomas como o aumento das próteses a criação do cyborg o cibercorpo a clonagem as intervenções da engenharia genética a biologia molecular ou as novas técnicas cirúrgicas ou ainda o uso de substâncias quí micas assim as indústrias da beleza e da saúde têm no corpo o seu maior consumidor vejamse o crescente número de ginásios salões de beleza spas clínicas médicas estilistas etc É claro que esta crise do corpo será consequente da crise dos fundamentos da nossa cul tura associandose também à crise do próprio sujeito É interessante notar como os discursos que normalizam o corpo sejam eles científico tecnológico publicitário médico estético vão tomando conta da vida simbóli ca subjectiva do indivíduo invadindo as dimensões expressivas e simbólicas da corporeidade fornecendo imagens e informações que reconfiguram o próprio âmbito da vivência corporal Novaes 2006 Com efeito os cuidados físicos revelamse invariavelmente como uma forma de estar preparado para enfrentar os julgamentos e expectativas sociais disciplinamos o corpo para que consigamos reconhecimento social e aprovação estando o prazer associado ao esforço o sucesso à determinação e a intensidade do esforço será proporcional à angústia provocada pelo olhar do outro Novaes 2006 Nada é gratuito tudo é obtido num sistema de regulação de trocas de facto enquanto que no capitalismo de produção o corpo entrava no mercado como força de trabalho como força a ser domada e preservada já actualmente assistese a um capitalismo da super produção onde o problema é consumir o que se produz em excesso comparativamente às necessidades o corpo entra no mercado como capacidade de consumir e ser consumido vaz 2006 Segundo o sociólogo Bryan turner 1992 enquanto que no início do capitalismo havia uma relação entre a disciplina o ascetismo o corpo e a produção no capitalismo tardio séc XX existe uma ênfase comple tamente diferente e corrosiva no hedonismo no desejo e no divertimento o corpo é construído decorado e expressase individualmente é um projecto pessoal flexível e adaptável aos desejos do indivíduo Estas novas noções de corpo estão também rela cionadas com as alterações sociais provocadas pelos estudos feministas das décadas de 60 e 70 sobre as diferenças entre homens e mulheres serem baseadas em factores históricos e culturais e não como até então em factores exclusivamente biológicos e sexuais Com efeito são as propostas sociobiológicas que se impõem na definição de corpo no século XX Com a busca da produção homens e mulheres tentam adaptarse como indivíduos ao grupo social nem que para isso desistam inúmeras vezes da sua liberdade de acção e expressivi dade Paim Strey 2004 Como refere a historiadora Nísia do rosário 2006 o ser humano temse constituído numa duplici dade que só se consegue perceber em posições distintas corpo e alma razão e emoção feminino e masculino construindo o sentido dos seus corpos numa lógica de produção economia mercado consumo que têm regido a sociedade ocidental desde a diferenciação sexual no século Xviii daí instituirse um corpo sexual e produ tivo masculino reprodução do modelo capitalista do valor mercantil limitando em demasia o espaço sedutor feminino rosário 2006 Em todo este processo todos os mecanismos instituídos pelo poder que reprimem o corpo parecem por seu lado reforçar a importância da sexualidade começando pela repressão imposta na idade Média de facto este estímulo ao consumo material provocará necessariamente uma atenção redobrada ao corpo ao prazer e consequentemente à estimulação da sexualidade o próprio discurso psicanalítico vem reforçar esta ligação do corpo à sexualidade o sexual passa a ser em grande parte a representação do corpo todo ainda no campo da sexualidade o corpo é ou deve tornarse um objecto de desejo para os outros é reduzido a um mero corpo a ser consumido na fantasia de alguém Mo Sung 2003 Um exemplo de como a fetichização ou a coisificação das relações pessoais e sociais não se restringe ao campo da produção e consumo de bens económicos mas também se estende a outras dimensões da vida é o notório consumo ávido de revistas ou de programas de televisão que vendem ou utilizam o corpo para vender objectos de desejo Nesta sociedade 30 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje de consumo o corpo é por um lado objecto de ideali zação mas por outro potencial alvo de estigmatização caso não corresponda aos padrões expressos na própria publicidade turner 1992 Por outro lado a natureza do individualismo e da identidade relacionada com as alterações sociais está também relacionada com o avanço científico Na dimensão produtiva da era moderna o corpo passa a depender da nossa acção tecnologicamente avançada o corpo em forma apresentase como um sucesso pessoal ao qual homens e mulheres podem aspirar de facto as tecnologias pesquisam e propõem aos indivíduos que há formas para se regrar a forma do corpo reduzir a distância entre o que quer o pensamento e o que quer o corpo moderadores de apetite alimentação saudável sem colesterol ou calorias4 drogas para controlar a im potência sexual a insónia a angústia a depressão além disso as novas tecnologias médicas como a fertilização in vitro a indústria de transplante de órgãos o desenvol vimento da cibernética trouxeram novos problemas no respeitante à relação entre o corpo e a alma a consciência e a identidade a este respeito turner 1994 refere que se criou no séc XX uma sociedade somática uma sociedade na qual os nossos maiores problemas políti cos e morais são expressos através da conduta do corpo humano p 6 todavia todo este cuidado com o corpo e todas as técnicas que se desenvolvem no interesse da sua preservação não fazem mais do que demonstrar a crise do corpo a crise da Modernidade Por outro lado as novas técnicas de comunicação afectam a experiência do corpo ao promover a mediação generalizada Hoje é tanta a mediação tecnológica das relações dos homens com o mundo dos homens entre si e de cada um consigo mesmo que como refere Paulo vaz 2006 tornouse concebível pensar que nunca houve experiência imediata existem apenas diferentes experiências da presença segundo as diferentes media ções tecnológicas viáveis em cada momento histórico de facto toda a experiência do corpo parece estar a ser posta em questão a definição de espaço e de tempo a distinção entre o real e o imaginário todas estas fron teiras estão a ser questionadas pelas novas tecnologias especialmente a internet e a realidade virtual Como refere ieda tucherman 2004 p 94 Este corpo está a desaparecer por motivos que se rela cionam com a crise do sujeito moderno perplexo diante das simulações e dos duplos que põem em questão a sua principal noção de realidade tradicionalmente associada à presença tangível e ao suporte material Cibercorpo que futuro O corpo pósmoderno A dificuldade de tecer considerações sobre os sentidos construídos para o corpo pósmoderno tem a ver justamente com o facto de se estar a vivenciar o momento que se pretende analisar Por este facto referi remos alguns traços que marcam o corpo pósmoderno não os considerando no entanto definitivos acabados prontos Com efeito o corpo que se começa a delinear pode ser apenas uma releitura sobre o corpo de outrora mas pode ser também uma nova construção do presente rosário 2006 Se anteriormente o corpo foi dividido em dois matéria física e a parte abstracta representada pela alma na pósmodernidade o corpo é a própria fragmentação partese em pedaços dividese e adquire sentido pró prio rosário 2006 o físico agora decompõese em músculos glúteos coxas seios boca olhos cabelos órgãos genitais etc a publicidade ou os avanços da medicina parecem transformar cada um destes pedaços num potencial alvo de consumo e de tratamento ex reconstrução do nariz implantação de cabelo preen chimento de rugas cirurgia correctiva das mamas e já decorre uma fragmentação maior a descodificação do código genético do corpo humano as transformações que marcam a passagem da modernidade para a pósmodernidade trazem a ten dência da separação entre o saber e o poder que na modernidade estavam interligados Foucault 1994 o objectivo agora é a autonomia nos mais variados cam pos e diferentes graus estético social político ro sário 2006 desta forma os indivíduos deixam de ser regidos por padrões a serem seguidos assumindo cada um as suas escolhas e identidades Contudo esta espécie de autonomia corporal funcionará apenas como uma tendência já que na prática apesar da variabilidade dos adereços e estilos estes não parecem estar desvincula dos de uma cadeia de produção e da identificação com um determinado grupo de referência Como ilustração desta multiplicidade de estilos vemos por exemplo o aumento dos corpos tatuados dos cabelos pintados das mais diversas cores os piercings ou o vestuário que vai desde a moda mais clássica à moda hippie dos anos 70 punk funk rapper surfista entre outros Uma outra característica desta época é assistirmos a um corpo construído numa espécie de simulação uma aparência sem realidade de facto a roupa os adereços a maquilhagem associados a técnicas como a cirurgia plástica a lipoaspiração os tratamentos de beleza mesmo fazendo parte de um processo de produção voltamse para o imaginário ajudam homens e mulheres a mascararem o próprio corpo escondendo detalhes e ressaltando outros rosário 20065 o conceito de be leza assenta deste modo na criação e na inovação assim parece ter havido uma radical mudança de referência passando de uma identidade firme estável centrada totalizável e constante proposta do homem moderno para uma nova relação connosco mesmos com o mundo e com os outros que se manifesta numa 31 Psicologia Sociedade 23 1 2434 2011 identidade frágil instável descentrada mutante pro cessual e inconstante à qual corresponde um corpo fragmentado tucherman 2004 Poderseá dizer que o corpo pósmoderno não se desvincula da modernidade mas é capaz de recriar de inovar e fazer rupturas Na realidade como referem Cristina Paim e Marlene Strey 2004 o corpo ocidental encontrase em plena metamorfose Não se trata mais de aceitálo como ele é mas sim de corrigilo e reconstruílo actu almente o indivíduo procura no seu corpo uma verdade sobre si mesmo que a sociedade não lhe consegue proporcionar o contexto social e histórico instável e em constante mudança associado ao enfraquecimento dos principais meios de construção da identidade como a família a religião a política o trabalho parece levar os indivíduos a apropriaremse cada vez mais do corpo como meio de expressão do eu Como vimos a cultura centrada na valorização da imagem do corpo encontra na publicidade a disseminação da sua imagem norma lizando um determinado modelo de corpo além de um conjunto de práticas necessárias à sua manutenção o corpo tornase um objecto virtual mas agora saturado de estereótipos ele aparece como um quadro inacaba do e transformase em imagem do corpo tornase um objecto de autoplastia Goldenberg ramos 2002 citados por Paim Strey 2004 Por outro lado à medida que mergulhamos num mundo cada vez mais virtual assistimos também à crescente aproximação homemmáquinatecnologia o computador por exemplo não é aqui um mero ins trumento que ajuda no estudo e na análise dos corpos nem uma simples tecnologia que nos permite uma vi sualização mais própria do objecto de estudo É ainda um produtor de biomateriais processos e experiências humanas impossíveis anteriormente trabalha nos cor pos construindoos à sua imagem levy 2004 Surgem então conquistas importantes como os marcapassos aparelhos de respiração e monitorização artificiais aparelhos que ajudam os portadores de deficiências a locomoveremse ou a falar tucherman 2004 Neste contexto surgem também os cyborgs6 cyber body ou corpomáquina também chamado de biotécnico por kerckove 1997 organismos híbridos cujas funções fisiológicas são realizadas com a ajuda de máquinas relacionada com a nova imagem da era tecnológica7 assistese a um corpo completamente manejável pela tecnociência desenhado para superar todos os defeitos do corpo biológico o desenvolvimento tecnológico por seu lado e como refere o sociólogo le Brenton 1999 faz com que nunca como hoje nas sociedades ocidentais os homens utilizaram tão pouco o seu corpo a sua mo bilidade a sua resistência de facto utilizamos cada vez menos os nossos recursos musculares com o uso e abuso de próteses técnicas cada vez mais eficazes o auto móvel as escadas mecânicas as passadeiras rolantes etc a nossa existência está a perder progressivamente a sua ancoragem corporal ribeiro 2003 Mas se por um lado a possibilidade das próteses e das nanotecnologias aumentam a sobrevivência isto tem também implicações no nosso estatuto de sermos singulares e únicos Por exemplo nesta simbiose homemmáquina certos comportamentos passam a ser explicados pela simples presença de determinada quantidade de substâncias químicas a violência por exemplo será uma questão de excesso de serotonina e os comportamentos já se tornaram passíveis de uma descrição em termos de reacções bioquímicas em de terminadas localizações cerebrais Como refere teresa levy 2004 a partir daqui está criado o ambiente para a aceitação de descrições e justificações em ter mos biológicos das desigualdades hierárquicas das sociedades modernas as explicações assentam deste modo na química do cérebro e nos genes de cada um O carácter aparentemente científico destes pressupostos tem também a função política de afastar ou desviar a atenção das análises sociais conduzindo à substituição de soluções sociais por soluções de engenharia genética Beck 1992 citado por levy 2004 Por outro lado é importante realçar que o me canicismo da genética moderna é significativamente diferente do mecanicismo desenvolvido pelos físicos no século Xvii e Xviii a nova concepção da célula baseiase num materialismo cibernético descrito em termos de transferência de informação energia retro acção síntese de moléculas replicação e reprodução levy 20048 Esta convergência da cibernética e da biologia molecular foi crucial para a nova imagem de corpo num mundo onde a interacção homem e máquina é cada vez mais intensa como referimos Como temos vindo a referir experiência do cor po é sempre modificada pela experiência da cultura é um conceito construído mas actualmente é como se o homem deixasse de ser um ser da cultura de facto o surgimento da ideia de ciberespaço e infoesfera tornam o mundo como a informação a ser tratada por sistemas a experiência passa a prescindir de tempo e espaço podemos ver cheirar e tocar à distância assim se por um lado ganhamos com novas possibilidades é importante estarmos atentos também às consequências destas novas formas de tecnologia e de pensamento essencialmente em termos éticos e políticos São as máquinas que pensam ou somos nós que as operamos Quem é mais eficiente É bem ver dade que ao longo da história nas filosofias dualistas e mecanicistas o corpo humano já foi relegado para segundo plano É a prisão da alma em Platão um relógio em descartes uma tábua rasa em lock No entanto em nenhuma época como na actual filósofos cientistas 32 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje e artistas anunciam com tanta convicção a obsolência do corpo humano É o póshumanismo corrente do pensamento que não relega apenas o corpo humano a um segundo plano mas anuncia a sua necessária substituição por máquinas inteligentes Gaya 2005 de facto a pergunta não é apenas que corpo quero ter como forma mas que funções quero poder exercer o que desloca a questão de um projecto estético que não é abandonado para um projecto pragmáticofuncional tucherman 2004 Finalmente salientamos que os desenvolvimentos biotecnológicos a que temos vindo a assistir vão sendo acompanhados por processos culturais de redefinição da vida e do corpo processos esses que explicam em parte a ambivalência produzida em relação à própria tecnologização da vida vejase por exemplo os deba tes à volta da clonagem ou dos alimentos geneticamente modificados reflexos da controvérsia que acompanha a produção de tipos nãonaturais do futuro e da re gulação desse futuro Levy 2004 Enfim como refere adroaldo Gaya 2005 p 335 será que a partir do século XXI filosofar sobre o corpo humano significará radicalizar os dualismos de Platão descartes e dos neoidealistas póshumanistas como Newel Simon ou Moravec ou ainda há esperanças de filosofar na trilha de Espinosa MerleauPonty Heideg ger ou contemporâneos como Morin Maturana e varela josé Gil damásio deryfuss dennet le doux Gard ner deveremos anunciar a morte do corpo humano ou haverá espaço para recuperar a sua dignidade Conclusão o conceito de corpo remete à questão da natureza e da cultura e abre assim um leque diferenciado de posicionamentos teóricos filosóficos e antropológicos o corpo não se revela apenas enquanto componente de elementos orgânicos mas também enquanto facto social psicológico cultural religioso Está dentro da vida quotidiana nas relações é um meio de comunica ção pois através de signos ligados à linguagem gestos roupas instituições às quais pertencemos permite a nossa comunicação com o outro Braunstein Pépin 1999 Na sua subjectividade está sempre a produzir sentidos que representam a sua cultura desejos afectos emoções enfim o seu mundo simbólico de facto como qualquer outra realidade do mundo o corpo é socialmente construído Como vimos não há sociedade que não modifique de alguma forma o corpo cada uma produzindo determinado tipo de corpo que servirá como insígnia da identidade grupal Paim Strey 2004 Falar sobre o corpo implica à priori pensarmos o corpo enquanto signo como um ente que reproduz uma estrutura social de forma a darlhe um sentido particular que certamente irá variar de acordo com os mais dife rentes sistemas sociais as pessoas aprendem a avaliar os seus corpos através da interacção com o ambiente com os outros assim a sua imagem corporal é desenvolvida e reavaliada continuamente durante a vida inteira isto ilustra a forma como Lyon e Barbalet definem incorpo ração Eu sou o meu corpo 1994 p 56 Como vimos hoje vivese a revolução do corpo valores relativos à beleza saúde higiene lazer alimen tação exercício físico têm reorientado um conjunto de comportamentos na sociedade imprimindo um novo estilo de vida mais aberto à diversidade por um lado mas mais narcísico e hedonista no que diz respeito à experiência do corpo Percebese então que vivemos uma época de contradições no que diz respeito às nossas escolhas uma vez que hoje não há uma obrigação das pessoas se vestirem de acordo com a classe social de que fazem parte como ocorria noutras épocas porém a moda dita as regras dita as tendências e aquilo que devemos escolher É através do nosso corpo que expressamos o efeito e significados que as relações tiveram ou têm em nós a nossa existência corporal está imbuída num contexto relacional e cultural sendo este o canal pelo qual as nossas relações são construídas e vivenciadas Na verdade quer queiramos quer não assistimos a um processo de exaustão do corpo na sociedade ocidental contemporânea processo que envolve um mito supos tamente libertador mas que na realidade penetra e transforma a nossa experiência pessoal ao introduzir na nossa subjectividade o peso alheio dos imperativos sociais Bernard 1985 Nesta reflexão propusemonos demonstrar e explicar precisamente que a nossa experi ência corporal que cremos muitas vezes ser individual e uma força invencível está invadida e modelada desde o início pela sociedade em que vive e pelas relações que experiencia Queremos desta forma desmitificar a ideia de um corpo frequentemente entendido como uma realidade cerrada e íntima e sublinhar por seu lado a sua condição aberta e dinâmica em função da sua mediação social Notas Estudo financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecno logia Portugal 1 Como refere ieda tucherman 2004 na Grécia antiga a nudez tinha um outro e curioso valor o imaginário do interior do corpo humano na época de Péricles marcado pelo calor corporal que antecederia o próprio nascimento determinando que fetos bem aquecidos desde o início da gravidez deveriam tornarse machos e que fetos carentes de aquecimento seriam fêmeas acreditavase que macho 33 Psicologia Sociedade 23 1 2434 2011 e fêmea eram dois pólos de um continuum corporal sendo a diferença entre ambos uma diferença de grau e não de natureza sendo o grau referente ao calor corporal o corpo teria um único sexo de modo que fetos masculinos preca riamente aquecidos tornarseiam homens afeminados e fetos femininos muito aquecidos tornarseiam mulheres masculinizadas tucherman 2004 o próprio aristóteles mais tarde distingue o sangue menstrual frio do esperma sangue quente superior porque gera vida 2 Esta divisão é agora mais acentuada embora tivesse sido já determinada por Sócrates Platão e aristóteles no século viv aC aquando da sua proposta de divisão entre dois mundos o material e o ideal o corpo e a alma o desejo e o pensamento até então o indivíduo era pensado de forma una e integrada ramminger 2000 citado por Paim Strey 2004 3 Em 1486 com as bênçãos do Papa inocêncio viii Heirich kramer e james Sprenger escreveram aquele que seria o livro de referência dos inquisidores e torturadores dos séculos se guintes o Malleus Maleficarum o Martelo das Feiticeiras ensinava como reconhecer uma bruxa e principalmente técnicas de tortura que deviam ser aplicadas para obter confissões O livro consolidava definitivamente o desprezo pela figura da mulher 4 a este propósito às doenças da sociedade moderna como a anorexia e a bulimia juntase agora outra mais recente a ortorexia ou obsessão por uma alimentação saudável Em Portugal a sua prevalência ainda é desconhecida Notícias Magazine 26 Fev 2006 5 Como refere a mesma autora Michael jackson é um simulacro de si mesmo mas é também a resignificação do ser original e a consequente confirmação do sentido estético ocidental pele clara linhas do rosto afiladas cabelo liso olhos amendoados Inúmeras cirurgias plásticas fizeram com que o original ficasse perdido foise reconstruindo rosário 2006 6 Cyborg cybernetic organism é o organismo humano hi bridado com a máquina com vista a um aumento de eficácia num domínio particular le Breton 1999 p 1415 7 No mundo da tecnociência surge entre outras expressões corporais a bodyart vendo no artista de vanguarda radicado na austrália Stelarc o exemplo máximo do corpo híbrido o corpo suspenso do solo através de ganchos metálicos atravessados na sua pele ou ainda o implante de uma terceira mão robótica que activada por impulsos eléctricos provenientes da sua musculatura abdominal após 3 meses de treino permitiu a utilização das suas 3 mãos para assinar o próprio nome Gaya 2005 o artista pretende deste modo declarar a insuficiência da anatomia humana e a necessária implementação de próteses artificiais Um outro exemplo que tem estado nos holofotes da imprensa tem sido o inglês kevin Warwick dirigente do departamento de Cibernética da Universidade de reading e já cognominado do cientista ciborg por causa de um implante que aplicou em si próprio em agosto de 1998 rodrigues 2001 8 Um outro passo já demonstrado em 1996 é a criação de redes pessoais as chamadas PaN em inglês personal area networks que permitem gerar uma rede de comunicações usando uma tecnologia sem fios de baixa frequência que passa sinais directamente através do corpo humano no raio de um metro thomas Zimmerman do Centro de investigação de almaden da iBM em San josé no Silicon valley é o pai do PaN tendo trocado cartões de visita digitalmente através do simples contacto entre dedos rodrigues 2001 Referências Bernard M 1985 El cuerpo Barcelona Paidós Edição original francesa publicada em 1976 Braunstein F Pépin jF 1999 O lugar do corpo na cultura ocidental lisboa Piaget Editora Carmo i 1997 Magros gordinhos e assimassim perturba ções alimentares dos jovens Porto Edinter Cunha Mj 2004 A imagem corporal Uma abordagem sociológica à importância do corpo e da magreza para as adolescentes azeitão autonomia 27 daolio j 1995 Da cultura do corpo Campinas SP Papi rus Foucault M 1994 História da sexualidade II O cuidado de si lisboa relógio dágua Foucault M 2002 Microfísica do poder 17ª Edição rio de janeiro Ed Graal Edição original de 1979 Gaya a 2005 Será o corpo humano obsoleto Sociologias 13 324337 Mo Sung j 2003 Corpo cristianismo e capitalismo versão online acesso em 16 de janeiro 2006 em wwwservicio skoinoniaorg kerckove d 1997 A pele da cultura lisboa relógio dÀgua könig r 1969 Sociologie de la mode Paris Petite Biblio tèque Payot le Breton d 1999 L adieu au corps Paris Métaillié levy t 2004 o corpo à superfície Revista de comunicação e linguagem corpo técnica e subjectividade 83 104135 lyon M l Barbalet j M 1994 Societys body emotion and the somatization of the social theory in t j Csordas Ed Embodiment and experience The existential ground of culture and self pp 4866 Cambridge University Press Novaes j v 2006 Ser mulher ser feia ser excluída versão online acesso em 11 de fevereiro 2006 em httpwww psicologiacomptartigostextosa0237pdf Paim M C C Strey M N 2004 Corpos em metamorphose um breve olhar sobre os corpos na história e novas confi gurações de corpos na actualidade versão online Revista Digital Buenos Aires 79 acesso em 26 de janeiro 2006 em httpwwwefdeportescomefd133culturadetempolivre dotrabalhadorhtm Pelegrini T 2006 Imagens do corpo reflexões sobre as acep ções corporais construídas pelas sociedades ocidentais ver são online Revista Urutágua 08 acesso em 12 de janeiro 2006 em wwwurutaguauembr00808edupelegrinihtm ribeiro a 2003 O corpo que somos aparência sensualidade comunicação lisboa Editorial Notícias rodrigues j N 2001 O século da vida artificial versão online acesso em 12 de janeiro 2006 em httpwww janelanawebcomdigitaisvidaartificialhtml rosário N M 2006 Mundo contemporâneo corpo em meta morphose versão online Acesso em 12 de janeiro 2006 em httpwwwcomunicaunisinosbrsemioticanisiasemiotica conteudoscorpohtm tucherman i 2004 Breve história do corpo e de seus mons tros lisboa veja turner B 1992 recent developments in the theory of the body in M Featherstone M Hepworth B turner Eds The Body Social process and cultural theory pp 135 london Sage Publications turner B 1994 Preface in P Falk Ed The Consuming Body pp vii xvii london Sage Publications 34 Barbosa M r Matos P M Costa M E Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje vaz P 2006 Corpo e risco versão online Acesso em 12 de janeiro em httpwwwangelfirecommboencantador paulovaziNdEXhtml recebido em 21102009 aceite em 13122009 Maria Raquel Barbosa é Professora auxiliar na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Portugal Endereço Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto rua do dr Manuel Pereira da Silva Porto Portugal CEP 4200392 Email raquelfpceuppt Paula Mena Matos é Professora auxiliar na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Portugal Maria Emília Costa é Professora Catedrática na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Portugal Como citar Barbosa M r Matos P M Costa M E 2011 Um olhar sobre o corpo o corpo ontem e hoje Psicologia Sociedade 231 2434