- (Enem 2023) Passado muito tempo, resolvi tentar falar, porque estava sozinha me
embrenhando na mesma vereda que Donana costumava entrar. Ainda recordo da
palavra que escolhi: arado. Me deleitava vendo meu pai conduzindo o arado velho da
fazenda carregado pelo boi, rasgando a terra para depois lançar grãos de arroz em
torrões marrons e vermelhos revolvidos.
Gostava do som redondo, fácil e ruidoso que tinha ao ser enunciado. "Vou trabalhar no
arado." "Vou arar a terra." "Seria bom ter um arado novo, esse arado tá troncho e velho."
O som que deixou minha boca era uma aberração, uma desordem, como se no lugar do
pedaço perdido da lingua tivesse um ovo quente. Era um arado torto, deformado, que
penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada.
VIEIRA JR.; I. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019.
Com a perda de parte da língua na infância, a narradora tenta voltar a falar. Essa
tentativa revela uma experiência que
A. reflete o olhar do pai sobre as etapas do plantio.
B. metaforiza a linguagem como ferramenta de lavoura.
C. explicita, na busca pela palavra, o medo da solidão.
D. confirma a frustração da narradora com relação à terra.
E. sugere, na ausência da linguagem, a estagnação do tempo.
- (Enem 2023) Alguém muito recentemente cortara o mato, que na época das chuvas
crescia e rodeava a casa da mãe de Ponciá Vicêncio e de Luandi. Havia também
vestígios de que a terra fora revolvida, como se ali fosse plantar uma pequena roça.
Luandi sorriu.
A mãe devia estar bastante forte, pois ainda labutava a terra. Cantou alto uma cantiga
que aprendera com o pai, quando eles trabalhavam na terra dos brancos. Era uma
canção que os negros mais velhos ensinavam aos mais novos. Eles diziam ser uma
cantiga de voltar, que os homens, lá na África, entoavam sempre, quando estavam
regressando da pesca, da caça ou de algum lugar.
O pai de Luandi, no dia em que queria agradar à mulher, costumava entoar aquela
cantiga ao se aproximar de casa. Luandi não entendia as palavras do canto; sabia,
porém, que era uma língua que alguns negros falavam ainda, principalmente os velhos.
Era uma cantiga alegre. Luandi, além de cantar, acompanhava o ritmo batendo com as
palmas das mãos em um atabaque imaginário.
Estava de regresso à terra. Voltava em casa. Chegava cantando, dançando a doce e v
itoriosa cantiga de regressar.
EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.
A leitura do texto permite reconhecer a "cantiga de voltar' como patrimônio
linguístico que
A. representa a memória de uma língua africana extinta.