O menino que escrevia versos
De que vale ter voz se quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que sonhei? (Verso do menino que fazia versos).
Ele escreve versos! - Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra.
O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com esforço alpinista em topo de montanha.
- Há antecedentes na família? Desculpe, doutor?
O médico destruiu-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca empreitava uma página. Lia motores, interpretava chaparia. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a docura mais requintada que conseguiria tinha sido em noite de núpcias.
- Serafina, você hoje cheira a óleo castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela tinha sido lua de mel. Para ele, não fora se não período de rodagem. O filho fora confeccionado nesse namoro de unha suja, resto de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
- Não importa - respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes se senta no recanto do quarto onde está encerrado o menino. Quem passa pode escutar o vazio causado do olho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico abreviando corações. E o médico abreviando silêncios.