O trecho a seguir foi retirado do livro A hora da estrela, de Clarice Lispector. Leia-o e, depois, responda ao que se pede.
Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose. Neurose de guerra. E tinha um luxo, além de uma vez por ir ao cinema: pintava de vermelho grossieramente escarlate as unhas das mãos. Mas como as quase até o sabugo, o vermelho berrante era desagradável e via-se o sujo preto por baixo.
E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser. Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas ai que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não marcharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsa uma vida parca como a da datilógrafa. Durante o dia eu faço, como todos, gestos despercebidos por mim mesmo. Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não culpo a que sai como sair. A datilógrafa vivia numa espécie de atolamento noivo, entre eu e o inferno. Nunca pensara em 'eu sou eu'. Acho que julgava.