Burro-sem-rabo
São dez horas da manhã. O carreto que contratei
para transportar minhas coisas acaba de chegar.
Vejo sair a mesa, a cadeira, o arquivo, uma
estante, meia dúzia de livros, a máquina de escrever.
Quatro retratos de criança emoldurados. Um desenho
de Portinari, outro de Pancetti. Levo também este
cinzeiro. E este tapete, aqui em casa ele não tem
serventia.
E esta outra fotografia, ela pode fazer falta lá.
A mesa é velha, me acompanha desde menino:
destas antigas, com uma gradinha de madeira em volta,
como as do tabelião do interior. Gosto dela: curti na sua
superfície muita hora de estudo para fazer prova no
ginásio; finquei cotovelos em cima dela noites
seguidas, à procura de uma ideia. Foi de meu pai. É
austera, simpática, discreta, acolhedora e digna:
lembra meu pai.
Esta cadeira foi de Hélio Pellegrino, que também
me acompanha desde menino: é giratória e de
palhinha. Velha também, mas confortável como as
amizades duradouras.
Mandei reformá-la e tem prestado serviços,
inspirando-me sempre a sábia definição de Sinclair
Lewis sobre o ato de escrever: é a arte de sentar-se
numa cadeira.
E lá vai ele, puxando a sua carroça, no
cumprimento da humilde profissão que lhe vale o
injusto designativo de burro-sem-rabo. Não tenho mais
nada a fazer, vou atrás.
Vou atrás das coisas que ele carrega, as minhas
coisas; parte de minha vida, pelo menos parte material,
no que sobrou de tanta atividade dispersa: o meu
cabedal. [...]
SABINO, Fernando. A mulher do vizinho. Rio de Janeiro: Ed. do autor, 1962,
p. 10-12.
No trecho “... que também me acompanha desde
menino:...” (5° parágrafo), a palavra destacada referese a
A) arquivo.
B) cadeira.
C) estante.
D) mesa.
E) tapete