Catar feijão
Catar feijão se limita com escrever:
Jogam-se os grãos na água do alguidar
E as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo;
pois catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco,
o de que, entre os grãos pesados, entre
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e outros poemas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2008.
A poesia é marcada pela recriação de objetos por meio da linguagem figurada, sem necessariamente explicá-los. Nesse fragmento da poesia de João Cabral de Melo Neto, o eu lírico
compara o ato de escrever com a ação de catar feijão, a partir de uma perspectiva antilírica.
faz uma analogia entre o ato de escrever e jogar uma pedra no feijão.
apresenta uma visão lírica e subjetiva sobre o fazer poético, já que o feijão é a metáfora da poesia.
considera o ato de escrever algo cotidiano e emotivo, assim como cozinhar.
eleva o grão de feijão e a pedra a níveis etéreos, tornando o poema hermético.