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SUJEITO E HISTÓRIA Organização de Joel Birman A coleção Sujeito e História tem caráter interdisciplinar As obras nela incluídas estabelecem um diálogo vivo entre a psicanálise e as demais ciências humanas buscando compreender o sujeito nas suas dimensões histórica política e social Títulos publicados A crueldade melancólica Jacques Hassoun A psicanálise e o feminino Regina Neri Arquivos do malestar e da resistência Joel Birman Cadernos sobre o mal Joel Birman Cartografias do avesso Joel Birman Cartãopostal Jacques Derrida Deleuze e a psicanálise Monique DavidMénard Foucault Paul Veyne Gramáticas do erotismo Joel Birman Lacan com Derrida Rene Major Lacan e LéviStrauss Marcos Zafiropoulos Malestar na atualidade Joel Birman Metamorfoses entre o sexual e o social Carlos Augusto Peixoto Jr Manifesto pela psicanálise Erik Porge Franck Chaumon Guy Lérès Michel Plon Pierre Bruno e Sophie Aouillé O aberto Giorgio Agamben O desejo frio Michel Tort O olhar do poder Maria Izabel O Szpacenkopf O sujeito na contemporaneidade Joel Birman Ousar rir Daniel Kupermann Problemas de gênero Judith Butler Rumo equivocado Elisabeth Badinter B521s 3ª ed 115756 Copyright 2012 Joel Birman PROJETO GRÁFICO DE MIOLO Evelyn Grumach e João de Souza Leite CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ Birman Joel 1946 O sujeito na contemporaneidade espaço dor e desalento na atualidade Joel Birman 3ª ed ampliada Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2020 recurso digital Formato epub Requisitos do sistema adobe digital editions Modo de acesso world wide web ISBN 9786558020028 recurso eletrônico 1 Subjetividade 2 Sujeito Filosofia Aspectos psicológicos 3 O contemporâneo Aspectos psicológicos 4 Espaço e tempo Aspectos psicológicos 5 Psicanálise I Título CDD 150195 CDU 1599642 Meri Gleice Rodrigues de Souza Bibliotecária CRB76439 Todos os direitos reservados Proibida a reprodução armazenamento ou transmissão de partes deste livro através de quaisquer meios sem prévia autorização por escrito Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Direitos desta edição adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA Rua Argentina 171 20921380 Rio de Janeiro RJ Tel 21 25852000 Seja um leitor preferencial Record Cadastrese em wwwrecordcombr e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções Atendimento e venda direta ao leitor sacrecordcombr Produzido no Brasil 2020 Sumário Introdução CAPÍTULO 1 Do sonho ao pesadelo I Sonho e percepção II Tempo e subjetivação III Bordas do sonhar IV Sonho silenciado CAPÍTULO 2 No deserto do real I Olhos e ouvidos bem fechados II Desejo e fantasma III O sujeito em questão CAPÍTULO 3 Subjetividades contemporâneas I Coordenadas da atualidade II Malestar III Transformações IV Cartografia do percurso CAPÍTULO 4 Corpo e excesso CAPÍTULO 5 Ação e compulsão I Hiperatividade violência criminalidade II Compulsões e cultura das drogas III Festins comestíveis e outras orgias CAPÍTULO 6 O tempo vai para o espaço I Passagem ao ato e actingout II Encenação e somatização III Translação IV Ação coartada V Primórdios da transformação CAPÍTULO 7 O vazio no existir I Intensidade afetação sentimento II A despossessão de si III Desencantamento fadiga e corrosão de si CAPÍTULO 8 Pensamento e linguagem em negativo I Derrocada do pensamento II Retórica instrumental e suspensão da poiesis CAPÍTULO 9 Do sofrimento à dor I Pontuações metodológicas II Solipsismo e alteridade CAPÍTULO 10 Mundo e negacionismo na vida nua Pósfacio Bibliografia citada Introdução A contemporaneidade se revela como uma fonte permanente de surpresa para o sujeito que não consegue se regular nem se antecipar aos acontecimentos que como turbilhões jorram de maneira disseminada ao seu redor Onde quase tudo se revela de maneira imprevisível e intempestiva o efeito mais evidente disso no sujeito é a vertigem e a ameaça do abismo Como o improvável acaba quase sempre por acontecer subvertendonos isso nos faz vacilar em nossas certezas Assim as mais diversas escalas e dimensões da experiência são permanentemente perpassadas pela surpresa e pelo improvável Nos registros da economia da política das ciências das artes e da cotidianidade o sujeito se choca com o imprevisível que o desorienta Assim podemos dizer que tanto no registro coletivo como no individual nas escalas local e global a subjetividade foi virada de pontacabeça Se compararmos de maneira superficial e impressionista o campo social da contemporaneidade com o que ocorria poucas décadas atrás a transformação em pauta é certamente radical Os signos que nos orientavam no mundo e nos direcionavam na existência assim como seus códigos de interpretação foram deslocados de suas posições e lugares simbólicos Muitos deles desapareceram Outros em contrapartida perderam a força e a valência de que eram investidos sendo realocados em outros conjuntos que passaram então a ser dominados por outros signos considerados agora como hierarquicamente superiores Com isso outros códigos foram forjados sem que seus enunciados sejam sempre patentes Entretanto numa leitura sutil das entrelinhas desse processo social e histórico as coisas não ocorreram exatamente desta forma Deslocandonos da superfície patente e literal do sistema de signos e dos códigos para a dinâmica de forças que os impulsionam agora no registro latente podemos encontrar já a marca de algumas fendas e desordenações no quadro anterior tomado até então como referência Nessa leitura as indicações de ruptura e a emergência das descontinuidades aparecem como rastros podendo então assumir corpo e forma rompendo enfim a paisagem plácida do horizonte impressionista inicial A intenção deste ensaio é indicar e empreender uma interpretação dessa transformação em curso no registro estrito do sujeito Para tanto propõe uma leitura deste pela delimitação das formas de malestar que o acomete e o acossa em sua existência Pretendo assim destacar que da modernidade à atualidade algo de fundamental aconteceu nas categorias constitutivas daquele redirecionando então as linhas de força do seu malestar É no quadro estrito desse contraste entre modernidade e contemporaneidade que se inscreve a espinha dorsal deste livro Pretendo sublinhar assim como a categoria de espaço assume uma prevalência e dominância cada vez maior na constituição da experiência subjetiva a expensas da categoria de tempo Com isso não apenas é atingido o registro do desejo como também a expectativa de um futuro possível que incide na possibilidade de remanejar as coordenadas estritas do presente Tudo se passa como se a subjetividade acreditasse que estivesse vivendo num eterno presente no qual a repetição do mesmo fosse tão poderosa que não anunciasse mais qualquer possibilidade de ruptura e de descontinuidade Ao lado disso essa espacialização da experiência psíquica seria o correlato da dominância no psiquismo da sensação de dor a expensas do sofrimento considerando que este pressuporia sempre a temporalização daquela experiência De fato se a dor evidencia uma posição solipsista do sujeito e o seu fechamento em face do outro o sofrimento seria algo de ordem alteritária que pressuporia o apelo e a demanda endereçada ao outro Portanto o sofrimento como marca das tormentas do sujeito implicaria uma transformação do registro da dor que seria sempre permeada pela simbolização e temporalização desta Na opacidade da dor enfim seria a espacialização na experiência do sujeito que dominaria as coordenadas deste Porém se o sujeito atado na dolorida posição solipsista não pode fazer qualquer apelo ao outro é o desalento que se impõe como pathos destinandoo então à paralisia Em contrapartida o desamparo como correlato que é da experiência do sofrimento possibilitaria ao sujeito um movimento desejante que seria a condição primordial para a simbolização e a temporalidade Enfim é essa transformação essa virada de pontacabeça nas coordenadas constituintes do sujeito num contraste tenso entre modernidade e contemporaneidade que pretendo tratar ao longo deste ensaio percorrendo as dinâmicas espaçotempo dorsofrimento e desamparodesalento CAPÍTULO 1 Do sonho ao pesadelo I Sonho e percepção Este ensaio pretende colocar em evidência a configuração predominante e progressivamente espacial assumida pela experiência do sujeito na contemporaneidade Porém vou me centrar no começo deste percurso na leitura da experiência do sonho na sua diferença em relação à experiência da percepção Portanto é a lógica imanente deste contraste e da oposição entre estes dois registros psíquicos que veremos agora A indagação primeira que se impõe aqui é a razão desse destaque conferido ao sonho num ensaio que se propõe a analisar a configuração marcadamente espacial evidenciada pela experiência da subjetividade na atualidade Por que enfatizar a leitura do sonhos Por diversas razões como vou indicar de maneira sumária para condensar e antecipar as diferentes dimensões do meu argumento fundamental que desenvolverei ao longo do livro Antes de mais nada o sonhar é uma experiência psíquica regular que se tece numa relação bem estabelecida entre os registros do espaço e do tempo Experiência regular pois ocorre todas as noites e diversas vezes durante o sono mesmo que o sonhador não se recorde sempre do que sonhou quando se encontra no estado de vigília1 De acordo com Freud isso se deve à resistência do sujeito em estabelecer contato com o desejo inconsciente2 A prova disso seria dada pela experiência psicanalítica na qual os supostos maus sonhadores e aqueles que não se recordam facilmente de seus sonhos passam tanto a sonhar quanto a se lembrar de seus sonhos com mais facilidade3 Isso porque pela mobilização transferencial do desejo realizada pela análise e pelas fendas abertas na resistência que são assim produzidas o sujeito passa a circular melhor na sua realidade psíquica4 Do ponto de vista estritamente fenomenológico o sonho é representado e vivenciado pelo sonhador como um amontoado de imagens Nem sempre essas imagens se apresentam de maneira concatenada mas marcadas principalmente pela disseminação e pela dispersão Em decorrência disso o sonhador se confronta passivamente e como espectador com um cenário caracterizado pela anarquia que provoca nele como efeito privilegiado a sensação de se defrontar com algo que é irreal e até mesmo fantasmagórico Este efeito de irrealidade se deve não apenas ao aparecimento de imagens estranhas e aparentemente fora de lugar mas principalmente à transfiguração da ordem da percepção visual Essa se caracteriza pela boa forma e pela sequência regular das imagens nas quais a oposição entre os registros da figura e do fundo se articulam devidamente5 Não obstante o estilo marcadamente impressionista que caracteriza a experiência perceptiva esta evidencia o mundo que podemos conhecer na sua objetividade Não existe qualquer dúvida no que concerne a isso Este mundo cognoscível supõe no entanto que os registros do espaço e do tempo sejam as dimensões a priori de nossa experiência na impossibilidade que teríamos de apreender a coisa em si isto é o númeno como nos ensinou Kant na sua estética transcendental6 Vale dizer poderíamos captar apenas a coisa para nós como ela nos parece fundados nessas condições a priori da experiência Seria esta enfim a objetividade possível de nossa condição antropológica delineada que é pela experiência perceptiva O sonho no entanto delineia uma outra ordem possível para a experiência humana Isso porque pelo sonhar se configura uma experiência efetiva de transgressão que subverte a ordem da percepção Uma outra dimensão do mundo se abre assim para o sujeito indicando a existência de outros mundos possíveis Podese dizer parodiando e invertendo ao mesmo tempo a célebre proposição de Leibniz que se Deus nos ofereceu o melhor dos mundos possíveis7 o sonho no entanto ao subverter a lógica e a ética da escolha de Deus nos abre uma janela para a experiência de outros mundos possíveis Em decorrência dessa transgressão e subversão da experiência perceptiva o surrealismo erigiu o sonho nos rastros indicados pelo discurso freudiano como o paradigma da experiência estética8 9 Com efeito as janelas entreabertas para a visão de outros mundos possíveis indicavam a existência pregnante da surrealidade na nossa experiência noturna de maneira ao mesmo tempo regular e cotidiana Com isso os registros da razão e do entendimento tiveram que abrir uma fenda no campo da sua hegemonia cognitiva sobre o sujeito delineando uma dobra para o reconhecimento de outros mundos possíveis regulados agora pelo que Freud denominou de desejo10 Seria este enfim que direcionaria as linhas de força para a governabilidade desses outros mundos possíveis Contudo se o sonho é uma das modalidades para a realização do desejo que se concretiza de maneira alucinatória ainda segundo Freud outras modalidades também existem para isso como o lapso11 o ato falho12 o humor13 o chiste14 e os sintomas15 A existência dessa psicopatologia da vida cotidiana16 indica portanto que o desejo pode se realizar tanto na experiência diurna quanto na noturna mas apresentandose nesta e naquela com diferentes configurações Foi por essa senda teórica que o discurso surrealista tomou seu atalho estético de forma a erigir o desejo em aguilhão para a experiência da criação artística que produziria então uma ruptura radical com a realidade da percepção A criação como ato implicaria portanto uma descontinuidade com a ordem perceptiva que deveria ser transfigurada de pontacabeça Nesta perspectiva o método psicanalítico da livre associação17 foi então deslocado para o registro do discurso poético e neste contexto tal procedimento foi denominado como escrita automática18 O mesmo procedimento foi também inscrito enfim no ato pictórico de criação19 Portanto se o registro do sonho se opõe ao da percepção visual nos seus menores detalhes não obstante a importância para ambos da categoria do espaço para suas respectivas configurações podese afirmar que Freud e MerleauPonty foram os teóricos que mais se destacaram no estabelecimento dessas experiências opostas Assim se Freud nos legou a obra magistral sobre os sonhos intitulada justamente A interpretação dos sonhos20 constituindo uma retórica para enunciar a gramática presente na experiência do sonhar MerleauPonty em contrapartida nos legou a sua leitura sistemática sobre a sintaxe da experiência perceptiva em Fenomenologia da percepção21 Destacamse aqui duas referências fundamentais que sintetizam todas as diferenças acima assinaladas pois a gramática do desejo inconsciente se opõe radicalmente à sintaxe da intencionalidade que regularia a ordem da percepção Entretanto a experiência do sonho implica também a categoria do tempo e não apenas a do espaço como ocorre com a experiência da percepção visual Kant já nos dizia isso no que concerne à percepção ainda na sua estética transcendental22 Como destacar esta regulação no que concerne à experiência onírica É o que se verá abaixo de forma bastante resumida II Tempo e subjetivação A evocação do sonho pelo sonhador não corresponde precisamente ao que foi efetivamente sonhado por este Isso porque a evocação coloca em marcha de maneira ostensiva a categoria do tempo A evocação inscreve o sonho numa sequência e uma ordenação das imagens o que implica uma concatenação e seriação destas A temporalidade da experiência se impõe então aqui na cadência que se estabelece entre os diferentes momentos do antes do agora e do depois Portanto o instante pontual das imagens se transforma numa sequência regulada pela categoria da temporalidade mediante a qual a experiência produzida pelo sonho pode ser efetivamente inscrita como forma de subjetivação Não existiria subjetivação possível do sonho sem a incidência da dimensão temporal Logo sem a experiência da evocação tudo aquilo que foi efetivamente sonhado se perderia pois o sujeito não poderia se apropriar das imagens que sonhou Isso porque na suposta experiência originária do sonhar o sujeito se encontra numa posição de exterioridade em face das imagens como se estivesse diante de uma tela que como fundo permite a visualização e o enquadramento das diferentes figuras representadas pelas imagens pontuais Esta posição de exterioridade do sonhador colocao numa posição de espectador de seu próprio sonho O suposto sonho originário teria assim o estatuto de um corpo estranho para o sonhador que passivamente recebe a sua incidência na configuração da experiência onírica A evocação implicaria então a mudança de posição psíquica do sonhador que se deslocaria assim do polo passivo da experiência para o polo ativo Em decorrência disso a apropriação psíquica do que lhe aconteceu poderia então se realizar com a experiência de subjetivação correlata que seria a consequência necessária daquela A narrativa do sonho realizada pelo sonhador para um outro enfatiza mais ainda a incidência desta dimensão da temporalidade na experiência onírica Porque pela narração do que lhe ocorreu a categoria de tempo se impõe agora necessariamente pela incidência efetiva do discurso23 Porque não existe discursividade possível sem a articulação da temporalidade que marca tanto a sua sintaxe e gramática quanto a sua semântica Não existiria portanto a ordem do discurso sem a participação ostensiva da categoria do tempo Numa célebre leitura crítica que realizou de A interpretação dos sonhos de Freud Wittgenstein nos mostrou de maneira aguda que a totalidade do procedimento interpretativo sobre a formação dos sonhos proposta por Freud estaria fundada nos registros da narração e do discurso Assim os diferentes mecanismos e procedimentos que foram por ele descritos como se fossem especificamente psíquicos seriam inseparáveis da narração do sonho para um outro realizado pelo sonhador24 Vale dizer a experiência da evocação do sonho já implicaria a incidência do discurso no qual a categoria de tempo estaria incidindo diretamente sobre o sujeito Enfim não existiria nessa suposição qualquer diferença entre o sonho sonhado e a narração do sonho pois se o primeiro seria da ordem do númeno a coisa em si de Kant incognoscível portanto o segundo seria a única experiência possível para o sujeito Na suposição de Freud no entanto a categoria de tempo já incidiria na produção da experiência onírica A ordem do númeno estaria já presente no que existe de não passível de captura pelo sujeito na origem do seu sonho Existiria então com efeito aquilo que Freud denominou umbigo do sonho isto é algo que seria de ordem pulsional que originaria o sonho e que não seria passível de ser apreendido pelo procedimento das livres associações25 Não obstante isso a temporalidade se faria presente também na ordenação das imagens mesmo que isso se realizasse de maneira tosca As imagens do sonho implicariam o trabalho dos mecanismos da condensação e do deslocamento que estariam no registro psíquico do inconsciente26 Portanto os signos da percepção seriam objeto de ordenação ao mesmo tempo espacial e temporal independentemente da narração que se realizaria apenas posteriormente27 A representaçãocoisa inscrita no registro do inconsciente seria a matériaprima do sonho enfim e não a representação palavra que se inscreveria no registro de préconsciente28 Seria deste lugar psíquico que a narrativa do sonho se realizaria Não resta qualquer dúvida no entanto de que a evocação e a narrativa do sonho enfatizam mais ainda a dimensão temporal presente na experiência onírica implicando assim tanto a apropriação quanto a subjetivação desta experiência Não obstante a polêmica estabelecida entre Wittgenstein e Freud podese certamente afirmar isso Porém se tudo isso nos conduz a pensar na interrupção do sono e do sonho pela figura do sonhador o que se impõe para mim agora é explicitar a função de sonhar O que estará em questão aqui são as bordas da experiência onírica III Bordas do sonhar Na experiência do pesadelo o sujeito é sempre despertado de maneira abrupta e assustada num pathos marcado pelo terror que se evidencia no sonho O pesadelo seria assim uma experiência de angústia nos seus menores detalhes que conduz o sonhador ao despertar e à vigília com a intenção de retomar ativamente o controle sobre o seu psiquismo A posição ativa do sujeito se impõe então em face da posição passiva que lhe dominava na experiência onírica para cortar assim o impacto da angústia que já se disseminava no psiquismo Ainda de acordo com Freud a função do sonho é a proteção do sono Numa formulação célebre Freud nos disse que o sonho seria o guardião do sono sem o qual este não poderia se manter29 Isso porque se a produção desejante se mantém como um motocontínuo não apenas na vigília mas também no sono seria preciso criar destinos psíquicos para a incidência do desejo sem o qual o sono não seria então possível Porém o desejo não poderia se explicitar de maneira direta e brutal sem qualquer rodeio como ocorre igualmente na vigília senão o sujeito despertaria para empreender ativamente o controle direto sobre o seu psiquismo Assim apesar de estar bem mais desprevenido durante o sono do que no estado de vigília em função do descontrole relativo do eu o sujeito procura regular os sonhos pela ação ostensiva da censura Por isso mesmo o tecido do sonho aparece sempre permeado por disfarces travestismos e ornamentações indicando o trabalho simbólico realizado pela censura que impediria então a manifestação direta da realização do desejo Quando isso ocorre é o pesadelo que se impõe inevitavelmente no psiquismo despertando efetivamente o sujeito Portanto se no pesadelo a realização do desejo se impõe de forma direta e brutal pela composição de imagens pontuais e fulgurantes isso indica como é a categoria de tempo que se suspende em face da do espaço O trabalho da temporalização é de fato o correlato das formas de simbolização que marcam a produção do sonho sem as quais a temporalidade desaparece diante da pregnância quase absoluta assumida pela espacialização O desejo se impõe assim em sua atemporalidade abissal sem evidenciar qualquer outra cadência temporal num impacto marcado pelo instante fulgurante Assim a temporalidade seria a condição de possibilidade dos processos de simbolização presentes no sonho inscrevendo este então no registro da representaçãocoisa30 ao passo que a espacialidade se evidencia pelos signos de percepção31 Logo se a temporalidade inscreve o sonho no registro da representação Vorstellung a espacialidade produziria as imagens no registro da apresentação ou da presentação Darstellung Na experiência do pesadelo portanto o sonho se transfiguraria perdendo suas marcas temporalizantes e se imporia ao sujeito na fulguração instantânea da realização atemporal do desejo Se insisto aqui em tudo isso com um certo vagar apesar desta apresentação condensada é apenas para começar a indicar como a oposição entre o sonho e o pesadelo pode se transformar historicamente não sendo pois essas duas formações psíquicas configurações atemporais É o que se verá agora IV Sonho silenciado Existe na atualidade uma transformação importante no que concerne à experiência do sonhar na tradição do Ocidente A bibliografia psicanalítica dos últimos anos nos indica isso Num dos números iniciais da Nouvelle Revue de Psychanalyse do início dos anos 1970 dedicada exclusivamente à temática do sonho isso se evidencia já com certa clareza32 assim como a publicação na mesma época de uma coletânea de ensaios de Pontalis intitulada justamente Entre le rêve et la douleur33 revela que a dita transformação estava em curso O título dessa obra de Pontalis ao mesmo tempo instigante e provocativo enuncia o que estaria em pauta nesta mudança crucial A ênfase foi colocada de fato no deslocamento da problemática do sonho para a da dor Se Pontalis quis destacar principalmente a transformação radical que se realizou tanto na história da experiência psicanalítica quanto na teorização dos psicanalistas sobre isso de Freud à contemporaneidade ele evidencia também uma mudança fundamental nas modalidades de subjetivação no Ocidente Vale dizer o sonhar como experiência crucial que seria do sujeito se apaga cada vez mais sendo substituído progressivamente pela presença pregnante disseminante e assustadora da dor Enfim são os impasses crescentes ao sonhar que se colocaram aqui em cena Isso não quer dizer que não se sonha mais evidentemente o que seria inverídico empiricamente falando Porém dois aspectos devem ser aqui destacados Primeiro constituiuse uma modalidade de subjetividade que sonha pouco ou mesmo não sonha em função da impossibilidade de sustentação do desejo e da simbolização daí decorrente Segundo que o sonho perde a sua posição destacada enquanto modalidade de subjetivação na tradição do Ocidente Dito isso o que está implicado nesta transformação radical Antes de mais nada a perda do potencial de simbolização da subjetividade contemporânea Esta com efeito se empobrece a olhos vistos no que concerne aos seus recursos simbólicos Por isso mesmo a experiência do sonhar perde a posição crucial de revelação do sujeito que ocupava ainda ao longo do século XIX e numa parcela significativa do século XX A escrita de A interpretação dos sonhos na virada do século XIX para o século XX foi o monumento simbólico desta ascensão da experiência do sonhar na economia psíquica Enfim o sonho ocupava nesse contexto e momento uma posição privilegiada nas formas de subjetivação34 Freud retomou aqui a tradição do romantismo alemão que enfatizava a dimensão de revelação presente na experiência do sonhar Esta tradição retomava em contrapartida uma longa tradição popular na leitura do sonho35 que sempre destacara a potência de revelação presente nele Tanto na tradição bíblica quanto na grecoromana a experiência do sonhar foi valorizada na sua potencialidade simbólica Em decorrência disso foram forjados nessas diferentes tradições respectivamente o método simbólico e o do deciframento para a interpretação dos sonhos36 O Velho Testamento nos fala do primeiro e a tradição romana do segundo O método de interpretação proposto por Freud pretendeu ser uma transformação e ao mesmo tempo uma inovação daquele formulado na tradição romana colocando a ênfase na singularidade do sujeito na experiência do sonhar e criticando a ideia da existência de um código de signos oníricos preestabelecido chamado justamente de chave dos sonhos37 Porém foi a esta então já longa tradição do deciframento que a psicanálise se filiou e se inscreveu para se constituir historicamente como saber propondo a sua leitura específica sobre os sonhos No entanto como o próprio Freud nos disse essa longa tradição já vinha sendo criticada durante todo o século XIX de maneira sistemática pela crescente leitura cientificista sobre a experiência do sonhar38 Afirmavase assim cada vez mais que o sonhar não era revelador de nada seja do sujeito seja do mundo sendo apenas o subproduto da degradação da atividade cerebral em decorrência do estado do sono O sonho seria então não apenas um texto silencioso mas principalmente um antitexto consequência das transformações neurofisiológicas do sistema nervoso central ocorridas durante o adormecimento Não existiria portanto qualquer atividade psíquica no sonho sendo esta restrita ao estado de vigília Assim a experiência de sonhar foi sendo progressivamente o alvo e o objeto do processo de imensa medicalização do Ocidente iniciado na passagem do século XVIII para o século XIX que incidiu sobre a totalidade dos discursos e dos saberes39 Esse processo social se incrementou bastante desde então transformando nossas coordenadas antropológica epistemológica ética e política No que concerne à experiência do sonhar o que importa ressaltar é que a leitura cientificista do sonho se opunha nos seus menores detalhes à leitura que enfatizava a dimensão de revelação que estaria presente naquela experiência Além disso tal leitura cientificista e o seu correlato qual seja o esvaziamento da dimensão temporal presente na experiência onírica têm como desdobramento crucial a ênfase conferida à espacialização dessa experiência Isso porque dessa perspectiva o sonho perdeu sua estatura teórica de ser algo da ordem da linguagem seja esta compreendida no registro da fala seja no da escrita40 A biologização presente na leitura cientificista do sonhar enfatizava apenas a dimensão do sonho no registro da imagem na qual a dimensão espacial se sobrepujaria à dimensão temporal que tende então ao desaparecimento O discurso atual das neurociências e o desenvolvimento da medicina centrada cada vez mais nas imagens evidenciam a continuidade dessa transformação cognitiva fundamental O que se assiste hoje contudo com a medicina das imagens é já o ponto de chegada de uma longa marcha iniciada na segunda metade do século XIX na qual a espacialização da experiência se contrapunha à temporalização Porém se o discurso freudiano se opunha a essa leitura cientificista e espacializante pelo duplo enunciado de que o sonho era uma modalidade de pensamento e uma produção plena de sentido41 por um lado e que mediante o sonho o sujeito realizava desejos42 por outro o próprio Freud destacava já uma transformação crucial que estava se processando na experiência onírica Com efeito se pela proposição axial de que o sonho era uma realização do desejo o discurso freudiano articulava o sonhar à dominância ao princípio do prazer no psiquismo com a ênfase sendo progressivamente colocada posteriormente no pesadelo e na compulsão à repetição o que se impunha era a presença avassaladora de além do princípio do prazer43 Enfim com a dominância de um dos princípios sobre o outro certas formações psíquicas se impunham necessariamente em face de outras Assim desde o início dos anos 1920 no ensaio intitulado Além do princípio do prazer o discurso freudiano já destacava na leitura dos sonhos presentes nas neuroses traumáticas a dominância das experiências de desprazer e não mais a de prazer como afirmara anteriormente Vale dizer o que emergia na experiência do sonhar era agora a dor e não mais a realização do desejo pela mediação e inflexão da compulsão à repetição A dor se impunha então ao psiquismo de maneira ao mesmo tempo incontrolável e compulsiva mas como um movimento estruturante do psiquismo no entanto para dominar a dor resultante de um trauma44 Portanto se pela repetição o psiquismo buscava compulsivamente realizar a simbolização de um trauma procurando transformar a dor num símbolo o que importa ressaltar é que neste registro tanto o símbolo se encontrava inexistente nos sonhos da neurose traumática quanto não ocorria a realização do desejo nesta modalidade de sonho cara e coroa que seriam da mesma moeda Se a dor se faz assim pregnante no entanto isso evidencia que é a espacialização que ocupa agora a totalidade da experiência psíquica que perderia então sua potência temporalizante É apenas o espaço que ocupa agora o campo da experiência e não mais o tempo pela repetição compulsiva do mesmo isto é pelo retorno terrorífico das imagens traumáticas Estas então não mais se temporalizam e se simbolizam permanecendo atadas à imobilidade do acontecimento traumático É a imagem na sua dimensão estática e espacial ao mesmo tempo na sua ataraxia enfim o que se impõe no psiquismo É importante sublinhar que em 1914 poucos anos antes da publicação de Além do princípio do prazer o discurso freudiano já esboçava essa mesma problemática mas a inscrevia num outro contexto teórico O que estava em pauta em Rememoração repetição elaboração45 era a impossibilidade de rememorar da figura do analisante no espaço da experiência psicanalítica e a imposição da repetição daquele sob a forma de atos na relação com a figura do analista Como a rememoração era uma operação psíquica essencial no paradigma teórico constituído pelo discurso psicanalítico desde A interpretação dos sonhos contrapartida que era da interpretação e da dimensão desejante do psiquismo Freud procurou evitar a dificuldade que já então se impunha afirmando que repetir seria uma outra forma de se recordar46 Seria no entanto uma recordação que se faria sob a forma de atos e não mais em palavras o que definiria a sua especificidade psíquica Posteriormente contudo Freud teve que retificar tal formulação teórica com o que enunciou sobre o estatuto da compulsão à repetição em Além do princípio do prazer como destaquei acima Para o que nos interessa sublinhar aqui no entanto é preciso dizer que a recordação é uma experiência inscrita no registro da temporalidade como ressaltei no início deste capítulo ao me referir à evocação A compulsão à repetição em contrapartida como repetição em atos que se realizam no campo da experiência da transferência se reduz principalmente à dimensão do espaço Portanto enquanto repetição do mesmo a compulsão à repetição não se inscreve no registro do tempo e no registro simbólico como ocorre com a evocação e a rememoração O que se coloca aqui em evidência é que a transformação nas formas de subjetivação já se faziam presentes nos anos 1914 e 1920 no discurso psicanalítico Neste com efeito a dor já se impunha como problemática em oposição ao registro do desejo de maneira que a compulsão à repetição se impunha inequivocamente no psiquismo em face da recordação Com o registro da apresentaçãopresentação se impondo ao da representação seria a ordem da espacialização que se fazia então presente enfim em face do registro do tempo Assim o discurso freudiano transformou a sua concepção da experiência psicanalítica Se essa foi concebida inicialmente como fundada na interpretação e em seguida como uma analítica da resistência neste novo contexto a experiência psicanalítica estaria centrada na repetição Isso porque a compulsão à repetição se disseminava pelo espaço analítico sem qualquer limite e fronteira impondose agora como a sua problemática fundamental47 Desde então no entanto esta predominância do registro do espaço sobre o do tempo vem se incrementando cada vez mais na nossa tradição de maneira que a dimensão de dor ocupa cada vez mais um lugar privilegiado no psiquismo em face do registro do desejo Daí a pertinência do título do livro de Pontalis que enfatizou o deslocamento do registro do sonho para o da dor Ao lado disso o pesadelo se torna então cada vez mais presente conforme a referência do discurso freudiano ao traumático já evidenciara Assim fazendo um contraponto entre modernidade e atualidade que se pode denominar pósmodernidade modernidade avançada ou hipermodernidade como se queira48 podese dizer que se o registro do sonho se apaga cada vez mais diante do da dorpesadelo isso implica a pregnância assumida progressivamente pela categoria do espaço na experiência psíquica e a rarefação correlata da categoria de tempo É claro que essa transformação não se deu numa descontinuidade abrupta e cortante entre estes dois momentos históricos mas foi se produzindo progressivamente no campo da experiência psíquica como já indiquei acima destacando as próprias mudanças ocorridas no discurso freudiano sobre a experiência do sonhar No entanto como vou ainda indicar e analisar ao longo deste ensaio uma transformação histórica maior da subjetividade ocorreu na nossa tradição que estaria no fundamento dessa transformação psíquica no registro do sonho Enfim é a condição do sujeito que está em questão nessa transformação radical Para evidenciar essa transformação faremos no capítulo a seguir a leitura crítica de um filme com a intenção de ressaltar por meio de um de seus personagens alguns traços cruciais que se encontram presentes nas subjetividades da atualidade O que pretendo com isso é procurar mostrar pela retórica artística seja esta literária ou cinematográfica como tais subjetividades se apresentam hoje e se impõem no registro estético no intuito de representar artisticamente o que acontece na contemporaneidade Notas 1 S Freud Linterprétation des rêves 2 Ibidem 3 Ibidem 4 Ibidem capítulo VII 5 W Köhter Psychologie de la forme 6 E Kant Critique de la raison pure 7 G W Leibniz Le droit de la raison G Grua Jurisprudence universelle et theodicée selon Leibniz 8 A Breton Manifestes du surréalisme 9 S Alexandrian Le surréalisme et le rêve 10 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 11 S Freud Psychopathologie de la vie quotidienne 12 Ibidem 13 S Freud Le mot desprit et sa relation à linconscient 14 Ibidem 15 S Freud Linterprétation des rêves Introdução 16 S Freud Psychopathologie de la vie quotidienne 17 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 18 H Behar M Carasson Le surréalisme 19 Ibidem Sobre isso ver também R Passeron Histoire de la peinture surrealiste 20 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 21 M MerleauPonty Phénoménologie de la perception 22 E Kant Critique de la raison pure 23 Sobre isso ver E Benveniste Catégories de pensée et catégories de langue In E Benveniste Problèmes de linguistique générale p 6374 E Benveniste Structure des relations de personne dans le verbe In op cit p 225236 24 L Wittgenstein Conversaciones sobre Freud In L Wittgenstein Estética Psicoanalisis y Religión 25 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 26 Ibidem capítulos IV V VI 27 Ibidem capítulo VII 28 Ibidem 29 Ibidem 30 Ibidem 31 Ibidem 32 J B Pontalis org Nouvelle Revue de Psychanalyse nº 5 33 J B Pontalis Entre le rêve et la douleur 34 M Foucault Les techniques de soimême In M Foucault Dits et écrits Volume IV 35 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 36 Ibidem 37 Ibidem 38 Ibidem capítulo I 39 M Foucault Il faut défendre la société Idem Naissance de la clinique Idem La volonté du savoir 40 J Lacan Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse In J Lacan Écrits J Derrida Freud et la scène de lécriture In J Derrida Écriture et difference 41 S Freud Linterprétation des rêves 42 Ibidem Introdução 43 Ibidem capítulo II 44 S Freud Audelà du principe de plaisir In S Freud Essais de psychanalyse 45 Ibidem 46 S Freud Remémoration répètition et élaboration In S Freud La technique psychanalytique 47 S Freud Audelà du principe de plaisir In S Freud Essais de psychanalyse 48 No que concerne a isso é preciso considerar o seguinte Os teóricos norteamericanos em geral preferem se referir à pósmodernidade para descrever os novos tempos em oposição à modernidade Não se deve contudo ser esquemático em relação a isso já que encontramos entre os europeus não apenas o acento incidindo sobre a ruptura como também a caracterização dessa ruptura como algo positivo Não obstante a leitura negativa da ruptura o cientista social Zigmunt Bauman O malestar na pósmodernidade enuncia a existência negativa da pósmodernidade De um outro ponto de vista o filósofo francês JeanFrançois Lyotard La condition postmoderne Paris Minuit 1979 também reconhece a existência da ruptura e o fim da modernidade sublinhando a impossibilidade teórica atual de as grandes narrativas serem realizadas O italiano Gianni Vattimo La fin de la modernité La société transparente não apenas insiste na ruptura radical como é um entusiasta dos tempos pósmodernos baseandose para isso em outros critérios filosóficos Em contrapartida o cientista social francês Gilles Lipovetsky Lère du vide destaca a ruptura mas de maneira negativa referindose à pósmodernidade como o império do vazio e do efêmero marcado pela frivolidade Posição essa que não é muito distante da posição expressa pelo sociólogo Jean Baudrillard Amérique que também a considera de maneira negativa Por sua vez alguns europeus ainda insistem na existência da modernidade hoje sublinhando a radicalização de seus pressupostos Assim Anthony Giddens As consequências da modernidade sociólogo inglês prefere se referir à existência de uma modernidade tardia estando próximo dos caminhos teóricos do cientista social alemão Ulrich Beck Risk society towards a new modernity destacando Giddens a existência de uma modernidade reflexiva Da mesma forma o cientista social francês Georges Balandier Le grand dérangement insiste na existência de uma supermodernidade na qual os fundamentos da modernidade ainda permaneceriam O filósofo alemão Jürgen Habermas Le discours philosophique de la modernité destacase como um defensor implacável do projeto da modernidade Tudo isso para nos referirmos apenas aos campos das ciências sociais e da filosofia deixando de lado o campo da estética onde teóricos como H Meschonnic Modernité Modernité destacavam ainda a presença viva do ideário da modernidade Além desses existem autores franceses nos campos das ciências sociais das ciências humanas e da filosofia que enunciam o conceito de hipermodernidade Sobre isso pode ser consultado Actes du Colloque Lindividu Hypermoderne vols 1 e 2 Para um comentário crítico e de conjunto sobre estas diferentes linhas de interpretação pode ser consultado Joel Birman La psychanalyse et la critique de la modernité In C Boukobza Où en est la psychanalyse Psychanalyse et figures de la modernité p 4157 Neste ensaio o autor procura diferenciar a modernidade e o modernismo considerando este como uma crítica daquele CAPÍTULO 2 No deserto do real I Olhos e ouvidos bem fechados No filme De olhos bem fechados 1999 do cineasta Stanley Kubrick a trama começa se tece e se fecha em torno de um sonho Podese até mesmo afirmar que toda a narrativa em questão se constrói entre a possibilidade e a impossibilidade da experiência do sonhar tanto nos seus desdobramentos estruturantes quanto nas consequências trágicas disso para seus personagens principais De qualquer maneira é a função do sonhar para a existência humana que está sempre em questão nesta narrativa fílmica exemplar que evidencia de maneira paradigmática a condição da subjetividade na atualidade A principal personagem feminina Alice interpretada por Nicole Kidman esposa de um médico bemsucedido Bill interpretado por Tom Cruise e que circula socialmente nas altasrodas da sociedade de Nova York conta para o marido após uma festa como se sentira provocativamente olhada e atraída por um homem num hotel em que a família passara as férias no último verão Ficara fascinada pelo desejo que o marinheiro expressava em seu olhar penetrante e pelo desejo que se apossara de seu corpo Tivera em seguida um sonho erótico com o tal homem Recordara esse sonho repetidas vezes pelo desejo ardente que isso lhe provocava Afirmara ainda que se aquele marinheiro naquele dia a tivesse convidado para transar e ir embora com ele para sempre ela não teria hesitado Feliz ou infelizmente isso não ocorrera Esse relato contrasta completamente com uma sequência inicial do filme na festa de Natal a que fora com o marido na qual um homem tenta seduzila de todas as maneiras possíveis numa dança prolongada em que ela apesar de flagrantemente provocativa e sedutora não responde aos apelos lúbricos do seu parceiro de dança A revelação ao marido foi feita numa conversa insinuante na intimidade do casal entre a muitas baforadas de maconha e regada a álcool na qual ela interpela o desejo do marido de maneira frontal Diz tudo isso com diferentes insinuações e numa postura bem lânguida Perguntalhe o que sentia quando examinava suas pacientes Como ficava diante delas nuas e quando lhes apalpava os seios Indaga então de forma desafiadora Você não sente nada Não gostaria de transar com elas Diante do silêncio inquieto e atônito do marido afirma ainda de maneira mais peremptória Não consigo acreditar Você não sente nada diz a mulher que se cala e se mantém então num silêncio provocante procurando assim despertar o desejo do marido O marido entre perturbado e perplexo não entende absolutamente nada do que se passa com a esposa Responde então literalmente à mulher com declarações de amor eterno Por isso mesmo não desejava outras mulheres que sempre o seduziam ostensivamente como ocorrera aliás na festa em que foram juntos Além disso diz à esposa que ela é linda e deslumbrante e portanto ele não queria saber de outras mulheres em sua vida mas apenas dela A conversa é interrompida abruptamente por uma urgência médica a morte de um paciente tendo o marido que se retirar Na casa do morto a filha deste faz a Bill juras de amor que o deixam entre embaraçado e indiferente mas ele a trata com a delicadeza e cortesia de sempre Não era a primeira vez que isso acontecia mas ele interpreta aquelas declarações de amor como um signo flagrante do desamparo da jovem mulher em decorrência do falecimento do pai Trataa então de forma cuidadosa e profissional de médico do pai sempre numa distância polida Porém o sonho e o desejo por um outro homem revelados pela mulher o perturbam intensamente tirandoo de seu fio de prumo Suas existências profissional e conjugal construídas meticulosamente como se fossem um feliz conto de fadas caem então inteiramente por terra O médico figura esmeradamente bemcomportada levando uma vida asséptica e cercado por uma rica clientela se sente efetivamente ferido de morte Seu corpo está dilacerado Nada mais poderia ser como era antes após a brutal revelação da esposa No decorrer do filme essa cena do sonho o acossa lanhando seu corpo e produzindo uma dor lancinante na tentativa angustiada de controlar o sonho e o desejo de sua mulher Como teriam sido as cenas eróticas sonhadas pela esposa Imagina ele de maneira repetida as mais diversas sequências eróticas dela com o outro homem que não tinha face nem tampouco nome Tratavase apenas de um marinheiro que era evocado fantasmaticamente no seu uniforme nas tentativas que faz de imaginar o sonho da mulher Era apenas isso que sabia do ilustre desconhecido Como teria sido Imagina e varia incansavelmente as sequências do sonho sem parar e recomeça novamente a seriação desbotada das imagens O filme se desdobra em torno dessa sequência como efeitos em cascata a partir dessa problemática fundamental Perturbado o marido quer saber algo sobre seu próprio desejo pois fora nisso que se centrara a interpelação da esposa O que ele deseja afinal Nada sabe efetivamente sobre isso Está em face de uma verdadeira incógnita já que nunca se perguntara sobre isso ao longo da vida O silêncio paira sobre esta questão crucial de sua existência Nenhuma revelação enfim se evidencia para ele pois passara a existência de olhos bem fechados olhando para a ponta de seu nariz e sem enxergar nada sobre as questões fundamentais de sua vida Não enxergara nada do que se passava no mundo à sua volta colado que ficara à sua imagem de médico bemsucedido e de seu conto de fadas familiar e matrimonial Diante do silêncio e da incógnita sobre o seu desejo passa então a perseguilo no campo da realidade guiado por sua vontade mas sem muita convicção interior Continua cego e surdo certamente pois seus olhos e ouvidos permanecem bem fechados Restalhe somente a possibilidade de agir empurrado por sua férrea força de vontade Se o pensamento não o ajuda em nada é preciso agir custe o que custar mesmo que faça isso de uma maneira cega Encontra então uma prostituta por acaso andando pela rua à noite a esmo que lhe oferece seus serviços eróticos Aceita então ir à casa dela Porém nada acontece pela impossibilidade dele de transar Contudo como bom moço que é paga generosamente a conta apesar de a mulher não querer lhe cobrar Afinal não trabalhara para isso dizia ela Mas você perdeu o seu tempo comigo dizia ele sempre excessivamente correto aplicando as regras da polidez literalmente sem qualquer rasura e nuance Sai angustiado da casa da prostituta e continua a andar a esmo sem destino Encontra um bar e entra para tomar um drinque Logo em seguida vê um antigo colega de faculdade que desistira dos estudos médicos para ser pianista Este estivera também na festa inicial do filme tocando piano quando se reencontraram após tantos anos O colega lhe fala então sobre uma festa privada na qual iria tocar ainda naquela noite e onde já estivera outras vezes e de como nunca conhecera nada igual na sua vida Fustigado pela curiosidade e pelo que se impunha a ele como proposta existencial acaba por tirar a contragosto do amigo o endereço da festa e a senha de entrada apesar do segredo absoluto que cercava a tal festa íntima Decide então ir custasse o que fosse mas para isso teria que vestir uma fantasia Esta era a exigência básica da festa secreta Começa a procurar desesperadamente uma loja pela madrugada e consegue por fim alugar um traje Sua fantasia é muito simples despojada e descolorida ao máximo compatível com a forma de ser de Bill Somente o uso de uma máscara sugere se tratar de uma fantasia Porém o uso daquela era fundamental no código da festa para que não fosse revelada a identidade dos convidados Enfim o segredo se impunha como já lhe dissera o amigo pianista Ao chegar à festa fica chocado com o que vê Não obstante a advertência do amigo de que nunca vira nada igual na vida a surpresa é enorme Descobre que está numa grande suruba dançante hétero e homossexual todos nus e seminus todos usando máscaras O cenário é muito impactante no que contém de grotesco e macabro Apesar da surpresa não vai embora mas circula pelo ambiente procurando mostrar naturalidade e tranquilidade Acaba então por ser reconhecido como intruso e ameaçado de morte O milionário que o convidara para a festa inicial do filme o reconhece e avisa os demais Ao ser ameaçado de morte safase de maneira inesperada alguém se oferece para morrer em seu lugar Uma mulher que ele tinha salvado de uma overdose na festa inicial do filme oferecese em sacrifício Foi assim poupado em decorrência de uma dívida e sai da festa na condição de expulso e como persona non grata bastante assustado com o que viu e com o que lhe aconteceu evidentemente Porém a saga terrorífica não termina Intrigado com o que lhe acontecera resolve procurar o pianista no hotel em que este estava hospedado Descobre que o colega tinha sido levado por homens estranhos e suspeitos Imagina que possa ter sido morto pelos organizadores da festa Resolve ir então ao necrotério de Nova York apresentandose com sua carteira de médico Vê então o corpo da mulher que se sacrificara em seu lugar Mas não encontra o do colega pianista Chocado volta à casa da prostituta Descobre então pela amiga com quem ela divide o apartamento que a moça fora embora porque descobrira que estava com Aids No fim de tudo volta para casa angustiado e aterrorizado com o que lhe acontecera Compartilha então com a esposa tudo o que experimentara com lágrimas e soluços de ambas as partes A narrativa deixa entrever que Bill percorreu todas essas peripécias e sequências praticamente sem dormir como se tivesse sido lançado num pesadelo interminável Contudo entremeando esse pesadelo as cenas do sonho de sua mulher transando com outro homem o obcecavam e não o abandonaram em nenhum momento A evocação do sonho lhe vem de maneira compulsiva como um pesadelo Portanto a narrativa do filme se polariza entre o sonho erótico de Alice regado a desejo narrado sem detalhes e o pesadelo de Bill mergulhado no abismo da dor apegado obsessivamente à sua única identidade a da figura do médico bemapessoado e bemsucedido Na narrativa fílmica Bill repete como um refrão um mesmo gesto apresentase com a sua carteira de identidade de médico em todos os lugares aonde vai Tudo isso se passa no tão valorizado cenário do Natal norteamericano no qual a família é erigida como signo e instituição maior do American way of life O suposto amor da cristandade se articula intimamente às requintadas árvores de Natal no cenário das casas e na rica decoração da cidade de Nova York na qual circula um desenfreado consumo pela compra de presentes O filme termina aliás numa famosa loja de brinquedos onde o casal ainda aturdido com tudo o que ocorrera passeia com a filha para que esta escolha seus presentes natalinos Porém uma última fala de Alice enuncia o que para ela estaria em questão em todo o filme nas suas desventuras com o marido Nós precisamos transar Relança então o que já estava colocado em surdina no início do percurso trágico de Bill na interpelação que lhe fez Alice Onde está o seu desejo e erotismo afinal II Desejo e fantasma Essa narrativa fílmica de Kubrick foi baseada num conto do escritor austríaco Arthur Schnitzler psiquiatra por formação mas literato por ofício O conto se intitula Traumnovelle traduzido no Brasil por Breve romance de sonho O conto e toda a obra de Schnitzler se passa em Viena no início do século XX descrevendo criticamente a existência de uma alta sociedade corrupta e hipócrita Mas o conto em questão se baseia no famoso caso Redl ocorrido em 1913 em que se descobriu que Alfred Redl apesar de ser casado era homossexual Um grande escândalo para a sociedade vienense Redl era um alto funcionário do exército austríaco ao mesmo tempo muito admirado e elogiado pelo imperador Schnitzler introduziu no conto as questões da sexualidade e do sonho que lhe interessaram bastante ao longo de toda a sua obra Schnitzler foi contemporâneo de Freud que tinha aliás muito respeito e admiração por sua obra literária Freud chegou mesmo a dizer que Schnitzler tinha conseguido enunciar com a simplicidade poética da ficção literária coisas que lhe haviam exigido muito tempo de árduo trabalho científico muitas proposições teóricas da psicanálise Estas encantavam Schnitzler como se evidencia fartamente nesse conto Antes de mais nada Schnitzler reconhece que existe uma dimensão real no sonho que tem um efeito poderoso sobre o sujeito Não apenas sobre o sujeito sonhador mas também sobre aquele a quem o sonho é narrado ou mais fundamentalmente ainda endereçado Ser personagem do sonho de alguém implica certamente muita coisa pela densidade existencial presente na narrativa onírica Pagase um preço em geral muito alto por isso mesmo que o endereçado nem sempre o saiba Além do mais sonhase frequentemente para alguém sem que este apareça necessariamente de maneira patente na narrativa onírica Assim o sonho não é um faz de conta nem um simples devaneio inconsequente pois remete o sujeito para algo da ordem do real No filme que analisamos esse efeito se evidencia não apenas na sonhadora mas também em seu marido que fica inteiramente subvertido com o relato da esposa Porque o sonho é uma realização do desejo do sonhador1 conforme nos ensinou Freud Esta realização se inscreve na realidade psíquica mesmo que não aconteça literalmente na realidade material2 Vale dizer o cenário do sonho se passa numa Outra cena que não é o espaço da consciência e do eu que estariam então descentrados em relação ao registro desejante do sujeito Foi esse desejo que efetivamente tomou conta de Alice que se pudesse o teria realizado no campo concreto da realidade material O disparador disso foi o olhar penetrante de um marinheiro que pôde incidir sobre o seu corpo apenas porque Alice mantinha sempre os olhos bem abertos e estendidos os poros de sua pele Porém o fato de ter sido possuída por tal intensidade do desejo dirigido a outro homem teve um efeito traumático sobre o marido que se reconheceu assim como despossuído de potência e destituído da possibilidade de desejar Rigorosamente falando o marido não esperava por isso Não imaginara jamais que tal coisa pudesse lhe acontecer Daí o efeito traumático do relato da esposa Foi tomado de surpresa por esse relato pois vivia tão centrado em si próprio cultivando sua identidade de médico bemsucedido da burguesia e da elite de Nova York que não mantinha os olhos bem abertos para o que ocorria à sua volta e em si mesmo Não podendo então fazer qualquer previsão e se antecipar ao pior foi tomado pelo choque da revelação da mulher e virado de pontacabeça3 Porém se tal antecipação não foi possível para o personagem isso se deve a um limite de sua possibilidade de temporalização e de seu apoio ostensivo no aqui e agora de suas coordenadas espaciais O apego ostensivo aos seus signos identitários e ao seu eu indica justamente isso A antecipação de um perigo possível de ocorrer no futuro como nos disse Freud em Inibições sintomas e angústia implica tornar presente algo que é ainda ausente pois se encontra adiante num futuro possível4 Essa temporalização antecipante pressupõe a simbolização de uma ausência pela mediação de uma presença isto é de tornar patente algo que é de ordem apenas virtual Tratase daquilo que Freud denominou angústiasinal ou sinal de angústia que seria o motor da antecipação e da proteção do psiquismo em face dos perigos possíveis Se o sujeito não pode realizar isso preso que fica em sua autossuficiência narcísica e excessivamente autocentrado será sem dúvida pego de surpresa por um acontecimento inesperado e lançado então no turbilhão abissal de uma experiência traumática Assim a angústia do real5 se impõe no psiquismo com o seu cortejo de dor e de gosto amargo de morte lançando o sujeito na posição do desamparo6 Porém a dita antecipação e simbolização de um acontecimento ainda ausente e virtual pois somente referido ao futuro possível e não ao presente supõe que o sujeito possa fantasmar algo que é ainda inexistente Esse fantasmar implica ainda a categoria do tempo e ambos se articulam reciprocamente intimamente com os registros da antecipação e da simbolização Tudo isso nos indica portanto que para o sujeito desejar é preciso também que possa fantasmar7 sem o que o desejo não se ordena e não se encorpa A possibilidade de fantasmatização se inscreve no registro psíquico da imaginação que implica em contrapartida a antecipação e a categoria de tempo na experiência psíquica O limite existencial do personagem do marido se evidencia então nesse ponto isto é na pobreza de sua possibilidade de fantasmar Não foi justamente isso que a mulher disse na interpelação dirigida a ele Não lhe perguntou o que sentia concretamente e o que imaginava ao examinar suas pacientes Por isso mesmo o marido foi buscar o seu desejo na realidade material pela impossibilidade de captálo no registro da realidade psíquica Isso ocorreu inicialmente com a figura da prostituta e se repetiu na festa pós moderna O que o sujeito não encontra na realidade psíquica tenta capturar no registro do real Não encontrou no psiquismo pela impossibilidade que evidenciava de fantasmar pela imaginação Assim para entrar na festa teve de ir em busca de uma fantasia para se enfarpelar condição para a sua entrada Entretanto usar uma fantasia e alugar uma fantasia não é a mesma coisa de têla incorporada a seu ser isto é de ser por ela habitado mas uma mímese do fantasmar e uma simples miseenscène isto é uma forma de como se Portanto a fantasia que transveste o personagem em questão não tem a potência de realização do desejo que sem a do fantasma encorpado não sustenta então o erotismo Por que não tem a mesma potência Ora a razão de ser do erotismo é a afirmação da vida contra a morte sendo essa o fundamento do último dualismo pulsional concebido pelo discurso freudiano em 1920 com Além do princípio do prazer8 Com efeito ao opor a pulsão de vida à pulsão de morte o discurso freudiano estava em face do incremento clínico e histórico da experiência do traumatismo na qual a possibilidade da morte se afirma contra a potência da vida Portanto pela mediação do fantasma e do desejo o sujeito constrói o erotismo como contraponto insistente à iminência aterrorizante da morte que se realiza pelo trabalho da pulsão de morte Porém se a morte não pode ser efetivamente mantida a distância pela ação permanente da pulsão de vida aquela se impõe triunfalmente sobre o psiquismo sob a forma da dor e do trauma Não foi justamente isso que ocorreu com o personagem do marido ao escutar o relato do sonho erótico da esposa Assim não foram por obra e capricho do acaso as diversas mortes que ocorreram em torno da figura do médico nas duas noites e um dia que teve de experiências estranhas Tais mortes foram a consequência e o desdobramento daquela lógica implacável acima descrita que as articula de maneira íntima De fato a figura trágica da morte como emanação que é do real se impõe ao psiquismo sob a forma da dor e do trauma quando o sujeito não pode se contrapor a isso pelo desejo e pelo fantasmar A morte como metáfora é a representação do espaço absoluto figurada pelo corpo imóvel enrijecido e descolorido do cadáver Dessa maneira é justamente o oposto da metáfora da vida representada pelo fluxo e pela afirmação do desejo permeados pela temporalização do corpo móvel e dançante da existência Em seu volume endurecido e em sua imobilidade o cadáver é uma escultura espacial da carne transformada em pedra em oposição à mobilidade do corpo do vivente no qual o tempo cadencia seus ritmos Portanto nessa surpreendente e inquietante retórica ficcional de Schnitzler se condensa de maneira magistral não apenas o que é fundamental na concepção do sonho formulada pelo discurso freudiano como também o que estava em pauta no projeto da modernidade O que se impõe agora é indicar e esboçar como este projeto começou a se esboroar e a ser transformado de maneira radical na atualidade Tudo isso também nos foi delineado pela narrativa fílmica de Kubrick E será o que colocarei em destaque para concluir este capítulo antes de empreender uma leitura mais detalhada da espacialização da experiência psíquica na contemporaneidade nos capítulos que se seguem III O sujeito em questão A interpretação dos sonhos foi uma das obras maiores que inaugurou o século XX sendo além disso emblemática do projeto da modernidade Isso porque desde a virada do século XVIII para o século XIX com a Revolução Francesa passouse a acreditar que a sociedade poderia ser reinventada em outras bases pela transformação efetiva da antiga virando a de pontacabeça Iniciouse assim o ideário da revolução que marcou a modernidade de maneira indelével O século XIX e parte do século XX foram marcados por revoluções que transformaram radicalmente a paisagem do mundo Nada mais foi igual ao que era antes iniciandose então uma outra história de longa duração que Hobsbawm chamou justamente de era das revoluções9 Além disso com o romantismo surgiram novas linguagens e retóricas nos registros da literatura e das artes plásticas que logo se disseminaram também para o teatro e o cinema Em decorrência disso foram constituídos diferentes movimentos de avantgarde nos quais as mais diversas retóricas todas sempre originais tomavam corpo e forma rompendo com as tradições até então estabelecidas O que o discurso psicanalítico formulou num outro registro foi apenas o alicerce e o motor dessas potencialidades de mudança Com efeito com a tese de que o sonho é uma realização do desejo Freud nos disse ser ele o desejo o que nos move e nos dá alento para existir impelindonos para a transformação do mundo para a invenção de outros mundos possíveis e para a criação de novas modalidades da linguagem Vale dizer o que o discurso freudiano enunciou foi a possibilidade efetiva de produção de descontinuidade provocando inflexões cruciais no registro da continuidade Tudo isso seria forjado pela antecipação do futuro e tomaria forma e corpo pela mediação do desejo e pelo fantasma Com efeito tanto a espacialidade das formas e instituições sociais estabelecidas poderiam ser relançadas pelo registro do tempo quanto a temporalidade tomaria outro volume e seria redirecionada pela promoção da descontinuidade Porém é preciso destacar agora que Kubrick não é Schnitzler mesmo que o primeiro tenha se baseado no conto do segundo para forjar sua narrativa cinematográfica O argumento do filme não é só o da ficção literária pois Kubrick introduziu mudanças significativas na narrativa de Schnitzler para a construção de seu argumento Foram introduzidas então pinceladas e pontuações na narrativa literária inicial que a transformaram radicalmente Quais foram essas transformações A primeira delas já referida é que a cena da trama se deslocou da Europa para os Estados Unidos na cidade de Nova York Ao lado disso tudo se passa na época do Natal isto é a festa que ritualiza o familiarismo presente na tradição norteamericana Portanto Kubrick se deslocou da hipocrisia vienense do começo do século XX para a hipocrisia norteamericana do fin du siècle e do início do século XXI condensando no fundamental o modelo da sociedade de consumo contemporânea Enfim é o mundo da modernidade avançada ou da pós modernidade que é efetivamente delineado pela sua narrativa cinematográfica O que se destaca agora na atualidade Os impasses e até mesmo a impossibilidade tanto na circulação quanto na realização do desejo Se olharmos o filme pelo viés da personagem da mulher o que se destaca é a dimensão do impasse Entretanto se percorrermos a narrativa pelo olhar do marido é a impossibilidade que se inscreve então no primeiro plano De qualquer maneira o desejo se encontra sempre em questão em qualquer uma destas direções Em decorrência disso o registro do erotismo perde a sua potência de afirmação da vida signo e resultante que é dessa afirmação articulada por Eros Portanto o erotismo como potência se reduz ao registro banal do sexo Não é justamente isso que enuncia Alice na loja de brinquedos na última fala do filme quando diz para Bill que para resolver as suas impossibilidades seria preciso transar Não é isso igualmente que nos apresenta Kubrick nas imagens da festa e da suruba pósmoderna nas quais o sexo aparece completamente destituído de erotismo Ao lado disso o sonho se apresenta e se coloca como algo no limite de uma realização impossível justamente pelos impasses colocados para a realização e construção do desejo No que concerne a isso o personagem do marido é paradigmática das diferentes modalidades de subjetividade presentes na contemporaneidade Com efeito a dor e a morte se tornam presenças aterrorizantes na sua existência perseguindoo nos seus menores atos e gestos de maneira que é o pesadelo o que se impõe efetivamente no seu imaginário Além disso quando Bill evoca o suposto sonho da mulher o que lhe vem ao espírito são cenas da transa sexual da esposa marcadas pela repetição onde o mesmo se repõe sempre e se evidencia na falta de qualquer colorido Kubrick aliás retira propositalmente o colorido dessas imagens colocandoas como esmaecidas e desbotadas Insiste portanto na equação imaginária entre a mesmidade e a falta de colorido Como já mencionado Bill é autocentrado colandose sempre à sua imagem e à sua identidade profissional É o médico fulltime que mostra sua carteira profissional o tempo todo e age também como tal sem qualquer interrupção É a sua performance na realidade portanto o que se destaca na sua existência efetiva sem qualquer brecha ou fenda que possa lançálo para as vertigens de um outro registro do real Sua imaginação é descolorida e pobre calcinada pelo silêncio e pela ausência do fantasmar A festa com sua suruba pósmoderna indica também a redução do erotismo ao registro do sexo movido seja a drogas seja à religiosidade e ao misticismo exóticos Com efeito tanto as drogas quanto a religiosidade e o misticismo orientais são ingredientes utilizados fartamente na atualidade como antídotos que seriam em face da miséria circulante e da dor que cadencia o malestar na contemporaneidade Porém tudo isso tem um efeito marcante sobre a curiosidade intelectual e o saber na atualidade na medida em que esses são também efeitos do desejo e da sua produção simbólica correlata O desejo de saber é antes de mais nada desejo isto é uma produção desejante Por isso as condições simbólicas de produção da sociedade contemporânea não são jamais interpeladas pelos diversos personagens do filme de maneira crítica evidentemente pois tomam tudo aquilo que ocorre de novidade como se fossem coisas naturalizadas Assim no centro do poder social e nas suas festividades onde se inscrevem os personagens importantes dessa óperabufa não existe qualquer curiosidade intelectual e envolvimento com o mundo do saber Na periferia no entanto algo se passa mesmo que seja de forma pontual e episódica Não é um acaso certamente que o único livro que aparece no filme que é do campo das ciências sociais esteja na casa da prostituta Isso nos sugere que apenas os despossuídos de poder social e supostamente de dignidade moral se questionam sobre as condições do mundo em que existimos hoje O que se configura no cenário descrito pela narrativa de Kubrick portanto é que na atualidade estaríamos no mundo do informe sem poder sonhar e desejar mutilados que estamos de nossas possibilidades de fantasmar sendo engolidos pela dor de existir e pelo pesadelo É o real no que existe de mais desértico que sintetizaria a nossa atualidade na sua nudez É o deserto do real que delineia o campo do sujeito hoje na ausência de qualquer horizonte possível Em tudo isso é o espaço que engole a possibilidade de temporalização da experiência psíquica que se cola assim no aqui e no agora do que nos é dado sem que esbocemos qualquer gesto e intenção seja de transcendência seja de pretensão utópica É esse o malestar na atualidade condensado magistralmente nessa narrativa cinematográfica que vou começar a analisar de maneira mais detalhada no capítulo que se segue Notas 1 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 2 Ibidem capítulo VII 3 S Freud Inhibition symptôme et angoisse 4 Ibidem 5 Ibidem 6 S Freud Malaise dans la civilisation 7 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 8 S Freud Audelà du principe de plaisir In S Freud Essais sur psychanalyse 9 E J Hobsbawm Las revoluciones burguesas CAPÍTULO 3 Subjetividades contemporâneas I Coordenadas da atualidade Tudo o que foi dito anteriormente converge para uma leitura acurada das subjetividades na contemporaneidade Para isso no entanto é preciso delineálas nas suas especificidades e marcar ao mesmo tempo as suas diferenças em face das formas pelas quais as subjetividades se configuraram na modernidade As relações entre as categorias do espaço e do tempo na estruturação da experiência do sujeito nos fornecerão a direção interpretativa que nos propomos a realizar aqui A espacialização da experiência toma efetivamente a dianteira desse processo de transformação em pauta pelo qual a temporalidade progressivamente se apaga e no limite quase se suprime Dessa perspectiva não é um acaso que Fukuyama tenha elaborado seu discurso sobre o fim da história com base justamente neste contexto histórico numa leitura sobre a funcionalidade da sociedade contemporânea e em defesa dos pressupostos do neoliberalismo1 O equilíbrio e o desequilíbrio de mercado se inscrevem no primeiro plano dessa leitura numa interpretação em que a sociedade se reduz no limite à condição de mercado de bens e serviços Ao lado disso não é também um acaso que outros teóricos como Lasch enunciem criticamente a constituição da cultura do narcisismo na atualidade2 neste contexto histórico pela qual a problemática da imagem se inscreve no primeiro plano na preocupação dos agentes sociais Para Fukuyama e Lasch o que está em questão de forma explícita e implícita é a mudança crucial nas relações dos sujeitos com o espaço e o tempo pela qual o primeiro tende a englobar o segundo Assim enunciar criticamente a emergência do fim da história e formular a perda de potência da temporalização na existência social com a consequente impossibilidade na realização de rupturas e na inflexão de descontinuidades na experiência social implica necessariamente o silenciamento da temporalidade e a expansão conferida à espacialidade Ao mesmo tempo a suposta hegemonia do narcisismo nos destina às miragens do eterno presente na sua repetição do mesmo no aqui e agora Com isso enfim a experiência também se espacializa condenada que fica à inexistência de qualquer horizonte de futuro Num momento histórico anterior a essas formulações teóricas mas que as delineavam já como possibilidades teóricas numa leitura retrospectiva Debord enunciou o conceito de sociedade do espetáculo na qual os registros do olhar da visibilidade da cena e da exibição se destacavam na configuração das novas modalidades de sociabilidade3 Os laços sociais se restringiriam então ao campo da imagem de maneira que a cena social se reduziria à retórica do narcisismo Seria a produção e a exaltação desenfreada das imagens de si mesmo para o deleite do outro num campo sempre imantado pela sedução o que passaria a dar as cartas do jogo na estética performática do espetáculo Essa transformação fundamental pressupõe uma mudança nas formas de malestar presentes na contemporaneidade A leitura do malestar é o leme que nos indica uma direção segura para as transformações que estão aqui em pauta Ao lado disso nos permite contrastar o malestar que se evidenciava na modernidade e aquele que ocorre na contemporaneidade Isso porque o malestar é o signo privilegiado e a caixa de ressonância daquilo que se configura nas relações do sujeito consigo mesmo e com o outro revelando assim as coordenadas cruciais que seriam constitutivas da experiência subjetiva Vale dizer é preciso delinear diferencialmente a condição do sujeito na modernidade e na atualidade pela leitura de suas respectivas modalidades de malestar Enfim as formas de estruturação do sujeito se evidenciam melhor pela captação de suas formas de padecimento O que é que estou denominando aqui de malestar II Malestar O malestar é um conceito eminentemente psicanalítico que foi enunciado por Freud em O malestar na civilização4em 1930 Como indiquei em outros livros5 o que está em jogo no discurso freudiano neste ensaio não é o malestar do sujeito no sentido lato do termo ao se inscrever em qualquer ordem social e em diferentes contextos históricos mas o malestar na modernidade no sentido estrito Foi a condição e o estatuto específicos do sujeito na modernidade que Freud procurou destacar delineando o campo do malestar como o seu correlato Isso porque o sujeito foi esboçado como necessariamente histórico não obstante a sua condição pulsional de base Seriam os destinos psíquicos das pulsões6 delineados na relação destas com os outros e com os dispositivos sociais que constituiriam tanto o sujeito quanto o malestar correlato Sobre isso é preciso destacar algumas questões preliminares para localizar devidamente a problemática do malestar No discurso freudiano a interpretação ahistórica e sem referência rigorosa a qualquer contexto social na leitura da palavra civilização foi a resultante tanto de uma leitura evolucionista inicial quanto de uma leitura estruturalista posterior desse discurso Dessas perspectivas o imperativo civilizatório produziria inevitavelmente o malestar no psiquismo ao deslocar o homem do registro da natureza para o da cultura Não obstante suas múltiplas diferenças seria essa oposição fundamental que direcionaria as interpretações em pauta de maneira que a pulsão como ser de natureza seria irredutível à ordem da cultura Daí o malestar decorrente desse conflito insuperável O que essas interpretações não consideraram devidamente foi não apenas a novidade da palavra civilização na tradição do Ocidente como também do seu conceito A emergência histórica desta palavra assim como sua inscrição em nosso vocabulário e sua circulação social corrente evidenciam a produção de processos sociais e políticos que lhe são fundantes e correlatos Relativamente recente na tradição ocidental e inexistente na Antiguidade e no mundo medieval a palavra civilização constituiuse apenas no século XVIII na França e na Inglaterra Essa constatação foi a resultante da pesquisa inicial realizada por Lucien Febvre7 em 1930 e retomada num comentário arguto empreendido por Benveniste8 em 1954 Na leitura realizada por este ficava em aberto a indagação se a palavra tinha sido inventada duas vezes nessas diferentes tradições independentemente e na mesma época ou se fora a tradição francesa que a introduzira no vocabulário da Europa moderna As investigações realizadas posteriormente conseguiram trilhar a pré história desta palavra desde o Renascimento e enfatizar como se disseminou pela Europa desde o século XVII Foi esta a contribuição dada tanto por Norbert Elias9quanto por Starobinski10 em tempos e contextos sociais diferentes Foi apenas então que se constituíram os jogos de linguagem11 iniciais para o seu uso assim como os seus correlatos jogos de verdade12 No século XVIII os discursos antropológico político e ético fundados todos no Iluminismo fixaram outras regras de linguagem e de verdade para o seu uso13 Em decorrência disso a categoria de civilização passou a ser oposta à de barbárie sendo ambas assim fartamente incorporadas pela retórica e pelo imaginário social no século XIX Foi certamente desse solo antropológico no qual foram opostas as categorias de civilização e de barbárie que se constituiu o paradigma evolucionista na antropologia Ao lado disso no registro estritamente político foi ainda do campo dessa oposição que se legitimou o colonialismo europeu no século XIX Assim quando Freud se valeu da palavra civilização para cunhar o conceito de malestar na civilização estava efetivamente inscrito neste solo arqueológico Em decorrência disso incorporou esses jogos de linguagem e de verdade que foram aí produzidos e que foram apenas recentemente sedimentados Estaria bastante distante assim do uso atemporal dessa palavra e conceito Vale dizer o discurso freudiano estava sempre referido ao discurso do iluminismo francês assim como ao do romantismo alemão ao manejar esta problemática da civilização Portanto a categoria de civilização se identificava decididamente com a de modernidade declinandose então de maneira orgânica com essa O conceito de malestar na civilização implicava sempre o enunciado da existência do malestar na modernidade Seria essa assim a condição concreta de possibilidade para a produção do dito malestar tal como foi finalmente formulado pelo discurso freudiano Contudo ao articular e declinar a palavra malestar com a palavra civilização acoplando agora intimamente uma na outra e forjando com isso um sintagma o discurso freudiano provocava então uma evidente dissonância na concepção de civilização implodindo radicalmente o sentido original dessa É a originalidade teórica disso que deve ser então destacada Revelase assim no discurso freudiano uma crítica da modernidade e de seus pressupostos pelo malestar subjetivo que essa seria capaz de engendrar Com efeito as perturbações do espírito seriam disso resultantes em decorrência das interdições eróticas que a modernidade constituiu para os indivíduos a fim de se fundar enquanto tal Seria justamente esta crítica da modernidade que estaria então no fundamento do discurso freudiano e no enunciado do conceito de malestar O que implica afirmar que este discurso é a contraface do malestar presente na modernidade e a denúncia de sua dimensão grotesca sendo então a modernidade sua condição histórica de possibilidade Portanto a psicanálise como saber constituído no fim do século XIX foi uma tentativa de resposta e de solução para o malestar existente na modernidade Assim em A moral sexual civilizada e a doença nervosa dos tempos modernos14 ensaio publicado em 1908 Freud indicava que o que estava em questão nesta problemática era a moral presente na modernidade que seria a condição de possibilidade das perturbações nervosas Isso porque a dita moral incidiria efetivamente sobre a existência erótica das individualidades impondo assim restrições e imperativos tão insuportáveis que seriam capazes de perturbar de maneira indelével o funcionamento do espírito Inaugurando então sua crítica sistemática da modernidade o discurso freudiano retomou os pressupostos enunciados nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade15 segundo os quais a sexualidade humana seria originariamente perversopolimorfa tendo que ser recalcada em nome do imperativo da reprodução da espécie16 Além disso a bissexualidade originária da condição humana seria também recalcada em função do estabelecimento da ordem familiar17 Esta de fato assumiu uma versão não apenas nuclear mas sobretudo monogâmica que teria afetado psiquicamente homens e mulheres18 com nítida desvantagem para estas certamente em decorrência dos valores do patriarcado que as submetiam aos homens19 A racionalidade científica e tecnológica do Ocidente que se encontrava presente na fundação histórica da modernidade não era certamente alheia a tudo isso tendo também efeitos decisivos no registro ético O estilo presente no discurso freudiano é sempre o da crítica nunca o do elogio seguramente não obstante os compromissos sempre renovados deste discurso teórico com a tradição da racionalidade ocidental20 É preciso ficar sempre atento a isso para que não percamos de vista o horizonte ético e político que está em pauta na crítica do discurso freudiano da modernidade Por isso mesmo em Considerações atuais sobre a guerra e a morte ensaio escrito em 1915 no calor sangrento da Primeira Guerra Mundial Freud revela sua perplexidade diante dos efeitos devastadores produzidos pela civilização ocidental21 Isso porque os representantes maiores desta isto é a Alemanha a França e a Inglaterra que deveriam justamente se regular pela razão científica utilizavamna em contrapartida para finalidades destrutivas e no limite anticivilizatórias22 As então denominadas sociedades primitivas mostravamse assim ser bem mais civilizadas que as do Ocidente não obstante serem por estas consideradas não evoluídas e até mesmo próximas da barbárie23 Isso porque revelavam um respeito ético pela vida e pela morte no qual a alteridade como valor ético fundamental estaria sempre no centro de suas práticas sociais mesmo na experiêncialimite da morte e da guerra24 A alteridade como valor fundante do discurso ético enfim teria sido silenciada e entrado em franco eclipse na modernidade ocidental O célebre ensaio sobre o malestar na civilização25 escrito na aurora dos anos 1930 foi o desaguadouro crítico a que conduziram esses comentários anteriores O discurso freudiano sistematizou aqui os impasses do projeto da modernidade indicando como o narcisismo solapava por dentro a máxima ética do Iluminismo centrada na felicidade no culto do eu e no prazer26 Seria o narcisismo ainda que implodiria o pressuposto ético do cristianismo tornandose este então insustentável na medida em que segundo a lógica daquele seria impossível amar o próximo como a si mesmo conforme enunciado por Cristo Porém a tese fundamental sobre o malestar na modernidade se condensou agora em torno da experiência psíquica do desamparo27 A presença trágica da sua experiência na subjetividade moderna e os destinos terroríficos construídos por essa subjetividade para lidar com o desamparo conduziram as individualidades insofismavelmente ao narcisismo à violência à crueldade e à destruição28 O desamparo no entanto foi articulado precisamente aqui à nostalgia da figura do pai29 que como ausência nos registros simbólico e real se fazia presença aterrorizante pela severidade implacável do supereu Seria isso então o que conduziria as subjetividades na modernidade às diferentes perturbações do espírito articuladas sempre pelo narcisismo pela violência pela crueldade e pela destruição30 III Transformações Não existem mais dúvidas sobre as mudanças nas formas de malestar na contemporaneidade em contraste patente ao que nos descrevia de maneira cortante o discurso freudiano O quadro hoje é outro francamente diferente Todos estão de acordo quanto a isso Existe com efeito uma transformação nas formas de malestar que é reconhecida pelos discursos psiquiátrico e psicanalítico No entanto as divergências existem mas não concernem ao reconhecimento das mudanças em pauta e sim à sua interpretação pelas implicações que disso decorrem A psicanálise certamente foi surpreendida pelas transformações em curso não sabendo ainda como se confrontar com o que existe aqui de inédito Com isso seu discurso derrapa nas múltiplas tentativas de pontuar as transformações com as consequências inevitáveis que isso provoca na escuta clínica A psiquiatria em contrapartida se vangloria de tudo isso acreditando orientarse agora por discursos científicos que poderiam explicitar melhor as novas modalidades de malestar Baseandose nas neurociências a psiquiatria supõe dominar os melhores e rigorosos instrumentos científicos para regular com mais eficácia o dito malestar Em decorrência disso a psiquiatria se coloca agora num outro limiar discursivo pois poderia tornar se finalmente livre da referência à psicanálise que marcou sua história durante décadas Enfim fundada nas neurociências a psiquiatria seria então biológica inscrevendose no campo da racionalidade e da institucionalidade médicas Não se pode perder de vista no entanto que as novas formas de mal estar foram a condição histórica que possibilitou a oposição entre psicanálise e psiquiatria biológica Com efeito se desde o início dos anos 1950 este confronto foi iniciado com a descoberta farmacológica da clorpromazina foi apenas pela mediação das novas formas de malestar que se processou uma outra partilha no campo dos saberes sobre o psíquico opondo definitivamente os discursos psicanalítico e psiquiátrico Assim se as novas modalidades de malestar começavam já a indicar sua diferença nos anos 1970 e 1980 foi nos anos 1990 que todos os seus signos se exibiram com pompa Como uma verdadeira prima donna da sociedade contemporânea as novas formas de malestar se apresentaram com todo o barulho a que tinham direito No lugar das antigas modalidades de sofrimentos centrados no conflito psíquico nos quais se opunham os imperativos das pulsões e os das interdições morais o malestar se evidencia agora como dor inscrevendose nos registros do corpo da ação e das intensidades Foi em decorrência dessa viragem no ser da subjetividade que a nova partilha no campo dos saberes sobre o psíquico se fundou Em consequência disso o horizonte dos poderes foi então redistribuído em torno das valências outorgadas pelo campo dos saberes31 A psicanálise perdeu assim parcela significativa do poder social que usufruía até então na nossa tradição cultural como discurso teórico de referência que era no campo dos saberes sobre o psíquico A psiquiatria em contrapartida passou a ocupar uma outra posição no espaço social deslocandose decisivamente de seu lugar de subalternidade em relação à psicanálise Enfim o campo em questão foi virado de pontacabeça de maneira imprevisível poucas décadas atrás Sem querer desmerecer os esforços teóricos de uns e de outros é preciso reconhecer como uma questão preliminar a esta discussão que a problemática em pauta não se restringe ao mero registro da clínica Ao contrário o que se processa hoje nesse registro é o ponto de chegada de um longo processo de mudança da subjetividade que é preciso reconhecer devidamente Seria essa a condição concreta de possibilidade para não se debruçar sobre a clínica de maneira ingênua Tal transformação histórica se funda em operadores políticos sociais e simbólicos que subverteram o campo dos saberes e dos valores de forma radical De tudo isso resulta uma outra problemática ética que se impõe na leitura do malestar É por esse viés que o malestar se transformou numa indagação ética para a leitura das subjetividades contemporâneas Estamos aqui diante de uma caixapreta que deve ser cuidadosamente aberta para que se possam decifrar as surpresas que revela sobre a atualidade IV Cartografia do percurso Desta perspectiva minha intenção aqui é partir daquilo que é patente e ostensivo que se manifesta no registro eminentemente clínico isto é as queixas e as maneiras pelas quais o malestar é descrito nos discursos psicanalítico e psiquiátrico para me indagar em seguida sobre os registros antropológicos nos quais o malestar se inscreve É necessária no entanto uma leitura crítica desses registros a fim de avaliar as escolhas realizadas Vale dizer é preciso descobrir as razões pelas quais são tais os registros onde se inscreve o malestar e não outros na medida em que isso não é óbvio Isso implica a sinalização das mudanças apresentadas pelas subjetividades contemporâneas em face do passado recente Ao lado disso é preciso sustentar algumas interpretações que nos permitam caminhar nesta leitura é claro Para começar a desenovelar esses enunciados podese formular que o malestar contemporâneo se inscreve positivamente em três registros psíquicos quais sejam o do corpo o da ação e o da intensidade Foi pela mediação desses que o malestar foi classificado e hierarquizado Evidentemente tais registros podem aparecer de forma combinada numa mesma individualidade Ou então enunciamse de maneira independente na descrição do malestar A combinação é a forma mais comum de apresentação Porém na descrição um dos registros pode assumir maior pregnância que os demais que ficam então numa posição subalterna De qualquer maneira é na prevalência dos registros do corpo da ação e da intensidade que o malestar se faz patente na atualidade sendo estes que orientam suas descrições nas quais se particularizam as muitas narrativas clínicas Em contrapartida outros registros antropológicos tendem a ser francamente negativizados na descrição do malestar na contemporaneidade enquanto assumiam uma posição destacada na expressão do malestar num passado recente Com efeito o pensamento e a linguagem tendem a desaparecer como eixos ordenadores do malestar na atualidade enquanto assumiam anteriormente uma posição nobre na descrição do malestar Qual a razão da perda de privilégio desses registros em face dos demais que ganham então a dianteira na configuração das subjetividades contemporâneas É o que pretendo responder nos capítulos que se seguem Notas 1 F Fukuyama O fim da história e o último homem 2 C Lasch The culture of narcissism 3 G Debord La société du spectacle 4 S Freud Malaise dans la civilisation 5 J Birman O malestar na atualidade Idem Arquivos do malestar e da resistência 6 S Freud Pulsions et destins des pulsions In S Freud Métapsychologie 7 L Febvre Civilisation Le mot et lidée 8 E Benveniste Civilisation Contribution à lhistoire du mot 1954 In E Benveniste Problèmes de linguistique générale tomo 1 p 336345 9 N Elias La civilisation des moeurs 10 J Starobinski Le mot civilisation In J Starobinski Le reméde dans le mal 11 L Wittgenstein Investigations philosophiques In L Wittgenstein Tractatus logico philosophicus suivi de investigations philosophiques 12 M Foucault Les technologies de soimême In M Foucault Dits et Écrits vol IV 13 M Duchet Anthropologie et histoire au siècle des lumières 14 S Freud La morale sexuelle civilisée et la maladie nerveuse des temps modernes 1908 In S Freud La vie sexuelle 15 S Freud Trois essais sur la théorie de la sexualité 1º ensaio 16 S Freud La morale sexuelle civilisée et la maladie nerveuse des temps modernes In S Freud La vie sexuelle 17 Ibidem 18 Ibidem 19 Ibidem 20 S Freud Lavenir dune illusion 21 S Freud Considérations actuelles sur la guerre et sur la mort In S Freud Essais de psychanalyse 22 Ibidem 23 Ibidem 24 Ibidem 25 S Freud Malaise dans la civilisation 26 Ibidem 27 Ibidem 28 Ibidem 29 Ibidem 30 Ibidem CAPÍTULO 4 Corpo e excesso O corpo é o registro antropológico mais eminente no qual se enuncia na atualidade o malestar Todo mundo hoje se queixa de que o corpo não funciona a contento Algo não está bem com o corpo que se transforma na caixa de ressonância privilegiada do malestar Imaginase sempre que algo deve ser feito para que a performance corpórea possa melhorar pois essa se encontra sempre aquém do desejado Sentimonos sempre faltosos deixando de fazer tudo o que deveríamos considerando as múltiplas possibilidades oferecidas para o cuidado do corpo Enfim estamos sempre culpados ainda que levemente e numa franca posição de dívida em relação a isso As queixas corporais se inscrevem numa discursividade ao mesmo tempo naturalista e naturista que constitui a nossa atmosfera cultural Vale dizer não é possível separar de maneira artificial as queixas que temos em relação ao nosso corpo das diversas estratégias publicitárias que nos envolvem que sob a forma do naturismo e de naturalismo nos enviam permanentemente às práticas exóticas e à medicina Podese dizer que estas nas suas diferenças constituem as duas faces de uma mesma moeda Qual a razão desse prestígio conferido ao corpo Podese afirmar que o corpo para nós cidadãos do mundo contemporâneo é nosso único bem Todos os outros desapareceram ou foram relativizados no seu valor Numa inversão marcante em relação à Antiguidade podese dizer que o corpo se transformou no nosso bem supremo Nem Deus nem tampouco a alma ocupam mais este lugar de destaque na cosmologia íntima do sujeito na contemporaneidade apenas o corpo Portanto se o bem supremo se aloja no corpo a saúde se transformou no nosso ideal supremo Estamos assim num estado de estresse permanente Este é o fundo sempre presente nas narrativas sobre o malestar e permanentemente reiterado nos discursos sobre o tema Os diversos discursos médicos falam disso sem parar como um estribilho que se repete ao infinito Em última instância o estresse é designado como o maior malestar permanente na contemporaneidade que pode se manifestar de múltiplas e infinitas maneiras É o maior malestar já que está no fundamento de todos os demais pois passando pela elevação da pressão arterial da dispneia e da aceleração do ritmo cardíaco tudo é passível de lhe ser atribuído O conceito de estresse formulado por Seyle pretendia circunscrever os perigos para a ordem vital na qual estes seriam sempre reconhecidos no registro da totalidade psicossomática pela mediação do medo Em decorrência disso seriam produzidas defesas para garantir a ordem vital a manutenção da homeostase vital seria imprescindível desta perspectiva regulatória do organismo Tratase portanto de uma concepção holística das relações entre o organismo o psiquismo e o meio ambiente de maneira que o estresse é o efeito de uma poderosa descarga neurovegetativa no organismo As glândulas suprarrenais produziriam hormônios adrenérgicos para colocar o organismo numa posição de alerta Esse conceito evidencia uma leitura sistêmica do indivíduo que por meio do psiquismo inscreve o organismo no meio ambiente1 Não foi por acaso que LéviStrauss se referiu à reação do estresse para interpretar os possíveis efeitos mortais da feitiçaria quando os presumidos alvos dessa acreditam nos imperativos maléficos de seus enunciados isto é quando se inscrevem efetivamente nos pressupostos simbólicos que caucionam estes2 As reações neurovegetativas seriam então disparadas pelos terrores promovidos numa subjetividade que acredita nos imperativos mágicos dos enunciados da feitiçaria3 A cura xamanística consistiria então neste contexto em contrapor o poder simbólico do xamã ao poder mágico do feiticeiro para suspender os efeitos mortais da reação neurovegetativa4 O estresse está no centro do malestar atual produzindo diferentes sintomas psicossomáticos Já mencionei uma série desses sintomas mas cabe ressaltar ainda que a psicossomática como especialidade ao mesmo tempo médica psiquiátrica e psicanalítica se expandiu muito desde os anos 1980 apesar de os seus primórdios se superporem aos da psicanálise tendo em Groddeck e Ferenczi seus fundadores5 Porém foi apenas no contexto atual de transformação do campo do malestar que a psicossomática como disciplina se consolidou na nossa tradição No entanto isso não é tudo Além dos sintomas destacados é preciso evocar alguns outros Antes de mais nada a síndrome de fadiga crônica mediante a qual os indivíduos se referem à presença de um cansaço absoluto que se manifesta pela ausência de impulso vital e pela imobilidade corporal A medicina clínica atribui isso a certas viroses e à falta de algumas vitaminas na dieta A psiquiatria em contrapartida atribui isso a processos de natureza depressiva supondo uma disfunção na economia bioquímica dos neurohormônios Porém o estresse estaria sempre lá como base subjacente dessas leituras provocando então tais efeitos psicossomáticos Em seguida é preciso evocar o pânico que se transformou hoje numa modalidade destacada de malestar Na síndrome do pânico as pessoas se queixam de uma angústia iminente de morte que as paralisa pois são incapazes de reação Os indivíduos são enredados num ataque de angústia que os impossibilita de agir A taquicardia se conjuga com a dispneia e o aumento da pressão arterial seguida também de sudorese excessiva Neste contexto o fantasma da morte se impõe como uma certeza iminente Daí o pânico que toma corpo literalmente no sujeito A síndrome do pânico é desencadeada frequentemente em situações sociais nas quais o sujeito supõe que será avaliado O olhar do outro ocupa então toda a cena psíquica do sujeito como um intruso que o invade e perfura com suas exigências diante das quais ele se sente impotente e sem os instrumentos capazes de responder àquelas demandas A espacialização domina inteiramente a experiência subjetiva em pauta produzindo então um curtocircuito nos processos de temporalização da dita experiência e conduzindo o sujeito ao colapso psíquico e à certeza da morte súbita Ainda no fim do século XIX Freud descreveu a síndrome do pânico sob o nome de neurose de angústia Esta seria uma modalidade de neurose atual causada pela disfunção libidinal na qual o psiquismo não conseguiria inscrever a excitabilidade sexual numa série simbólica capaz de poder interpretar o incremento da excitação6 Tudo se passaria aqui numa direção oposta às neuroses de transferência nas quais tal inscrição ocorreria e o registro da representação fundaria os seus sintomas7 Nessa impossibilidade a excitabilidade se descarregaria imediatamente sobre o corpo e provocaria então a neurose de angústia Freud enunciou que esta como as demais neuroses atuais não seria passível de ser psicanalisada porque à diferença das neuroses de transferência não constituía liames simbólicos capazes de tornar possível a interpretação8 O discurso freudiano indicava enfim a fragilidade das formações simbólicas em causa as únicas que poderiam articular o registro da pulsionalidade com o da simbolização Portanto de forma diferente da fobia na qual o psiquismo se protegeria da disseminação da angústia pela construção de signos de evitamento quais sejam os objetos fóbicos na neurose de angústia o psiquismo não constituiria tal proteção9 Assim na neurose de angústia não existiria a possibilidade de se constituir um objeto contrafóbico Depreendese disso que um excesso de excitação se instala então no psiquismo ao qual este fica submetido Em decorrência disso o trauma se estabelece de maneira inequívoca e inevitável O trauma seria então a contrapartida do excesso que paralisa o psiquismo na sua mobilidade Isso porque o eu não consegue se precaver dos perigos materializados por acontecimentos imprevisíveis pela sua antecipação sob a forma de angústiasinal10 Portanto os acontecimentos não pressentidos se impõem com violência provocando a angústia do real e não mais a angústia do desejo isso é o excesso de excitação que se impõe e a experiência traumática consequente11 Seria isso enfim que estaria em pauta na síndrome do pânico Isso nos indica que a pregnância assumida hoje pelo registro do corpo revela a presença de uma falha crucial no mecanismo de angústiasinal no psiquismo e a fragilidade simbólica na antecipação do perigo Isso porque seriam tais mecanismos que constituiriam a angústiasinal e que protegeriam o psiquismo do imprevisível Ou seja se os sintomas acima referidos dominam a experiência contemporânea do malestar algo de fundamental se produziu na subjetividade que a tornou incapaz de antecipar o perigo e regular assim suas relações com o mundo Dito de uma outra maneira parece que tal ruptura indica que os feitiços do mundo ficaram tão insinuantes e ganharam tanta maledicência em decorrência da perda de eficácia dos mecanismos de proteção simbólica culturalmente instituídos Consequentemente a figura do xamã perde autoridade diante da do feiticeiro na medida em que suas interpretações perdem prestígio diante do mal Quem é essa autoridade que perde prestígio diante do mal na contemporaneidade afinal de contas Podese entrever aqui que a psicanálise está em crise hoje perdendo terreno para a magia das drogas psicofarmacológicas que pretendem agir sobre o malestar no próprio corpo em estado nascente regulando diretamente os humores deste O código simbólico construído pela psicanálise não consegue mais fazer obstáculo à disseminação do mal como aconteceu historicamente do fim do século XIX aos anos 1990 Os humores mostramse assim rebeldes e incontroláveis pelos símbolos e pelo discurso mantendose então barulhentos em face desses Uma transformação crucial na economia política dos signos produziuse no Ocidente incidindo de maneira frontal sobre o discurso psicanalítico que se inscrevia nessa economia política Em decorrência disso os discursos naturista e naturalista se alastram no campo do imaginário social impondo sua hegemonia numa outra economia dos signos Nesse contexto os tratamentos corporais assumem um lugar cada vez mais importante Das massagens ao spa passando pelos exercícios ginásticas e danças orientais tais tratamentos dispararam na preferência dos usuários sem esquecer é claro os suplementos vitamínicos e os sais minerais que têm virtudes antioxidantes e rejuvenescedoras O risco como sensação polivalente nas suas figurações está sempre presente no imaginário contemporâneo Com isso o envelhecimento se transforma numa enfermidade e a morte deve ser sempre exorcizada Nesse contexto a medicina ortomolecular ganha notoriedade científica por suas promessas relacionadas com a longevidade As fórmulas que inventa são personalizadas baseadas nas idiossincrasias e nas singularidades de cada um Daí o fascínio e a eficácia imaginária que promovem nos usuários A reposição hormonal se banaliza por razões terapêuticas e preventivas tanto para os homens quanto para as mulheres É o ideal da juventude e do parecer jovem que se impõe como imperativo de saúde associado ao ideal estético da beleza No entanto é a longevidade que está sempre em causa no caldeirão da bruxa das novas alquimias propostas pela farmacopeia na atualidade As caminhadas diárias visam às mesmas coisas Evitamse assim o estresse e os efeitos maléficos sobre o sistema cardiovascular Além disso as gorduras são queimadas e os perigos mortais do colesterol exorcizados Consequentemente as academias de ginástica se transformam num dos templos seculares mais prestigiados na atualidade aonde os usuários vão comungar como fiéis em nome da longevidade e da beleza Em cada quarteirão das grandes cidades se acumulam e se alastram diversas academias de ginástica que transformaram a cartografia das cidades Não se pode separar tais práticas do amplo processo de medicalização do Ocidente iniciado no século XIX Uma separação dessa ordem implicaria um equívoco interpretativo desse imaginário corporal O que se empreende na atualidade é já uma frente bastante avançada do processo de medicalização iniciado há duzentos anos Assim iniciado com a polícia médica12 e a higiene social13 na Alemanha na França e na Inglaterra a medicalização do espaço social passou a promover o ideário da saúde no lugar anteriormente conferido à salvação no espaço social pósmoderno permeado que aquele era pelo imperativo da religião14 Constituiuse então a clínica e a medicina social15 frente e verso que são da mesma folha isto é do mesmo processo de medicalização do espaço social As categorias de normal anormal e patológico passaram a dominar os discursos médicos e as políticas públicas16 que visavam normalizar as populações Porque se a qualidade de vida da população passou a ser considerada o signo maior de riqueza das nações17 isso implicaria não apenas uma população bemeducada mas antes de tudo saudável A modernização ocidental se fundou nesse projeto de medicalização do social de forma que os discursos médicos permeados sempre pelas categorias do normal do anormal e do patológico foram os modelos arqueológicos para a constituição dos diferentes discursos das ciências humanas18 A biopolítica se estruturou precisamente nesse contexto histórico19 tendo como seu correlato a constituição da biohistória20 O que estava em questão era a conjugação rigorosa dos registros do corpo disciplinar e do corpoespécie matériasprimas por excelência do poder disciplinar21 e do biopoder22 de maneira que o adestramento corporal era a contrapartida para a programação eugênica da população saudável e com boas possibilidades de reprodução biológica e social23 O imaginário corporal presente na atualidade se inscreve nesse projeto maior do biopoder sendo o seu desdobramento na contemporaneidade Assim a genética médica e as pesquisas sobre o genoma inscrevemse neste imaginário fazendo crer que a longevidade e principalmente a imortalidade poderiam ser conseguidas mediante as clonagens terapêutica e reprodutiva Mesmo que a segunda ainda seja repudiada pela comunidade científica internacional e que se aposte cientificamente agora apenas na primeira isso não quer dizer que não se busque no futuro a imortalidade pela via da clonagem reprodutiva desde que a tecnologia para isso se torne finalmente possível Não são razões de ordem ética o que conduz a comunidade científica ao repúdio atual da clonagem reprodutiva mas apenas simples impasses de ordem estritamente científica Ao lado disso o discurso psiquiátrico se vangloria de poder manejar drogas que poderiam regular o malestar corpóreo estando assim na vanguarda da pesquisa médica Isso porque os medicamentos oferecidos pela psiquiatria biológica e pela psicofarmacologia seriam capazes de incidir no metabolismo dos neurohormônios não ficando então a regulação do malestar restrito à imprecisão das psicoterapias O discurso deve ser assim colocado de lado na relação médicopaciente e psiquiatrapaciente em prol da eficácia bioquímica dos medicamentos psicotrópicos Portanto o xamã na atualidade assume decididamente a feição de um mago que manipula a alquimia psicofarmacológica com a qual pretende se opor e combater as novas modalidades negras de feitiçaria Assim o naturalismo o orientalismo e as novas formas de terapias exóticas que estão francamente na moda convivem muito bem com a medicalização em pauta não existindo pois nenhuma oposição fundamental entre esta e aquelas Isso porque todos têm no malestar do corpo o ponto de apoio para as suas diferentes estratégias de cuidados Notas 1 F Alexander T French Studies in psychossomatic medicine P Lain Entralgo Historia de la medicina moderna y contemporánea J Souhterland Evolution of psychosomatic concepts E Weiss O English PsychosomaticMedicine 2 C LéviStrauss Lefficacité symbolique In C LéviStrauss Anthropologie structurale p 213 234 3 Ibidem 4 Ibidem Sobre isso ver também C LéviStrauss Le sorcier et sa magie In C LéviStrauss Anthropologie structurale p 191212 5 G Groddeck Le livre du ça G Groddeck La maladie lart et le symbole S Ferenczi Psychanalyse 2 S Ferenczi Psychanalyse 3 J Birman Enfermidade e loucura Sobre a medicina das interrelações 6 S Freud Psychothérapie de lhystérie In S Freud J Breuer Études sur lhystérie 7 Ibidem 8 Ibidem 9 S Freud Quil est justifié de séparer de la neurasthénie un certain complexe symptomatique sous le nom de névrose dangoisse In S Freud Névrose psychose et perversion S Freud Obsessions et phobies In S Freud op cit 10 S Freud Inhibition symptôme et angoisse 11 Ibidem 12 G Rosen Da política médica à medicina social 13 M Foucault Naissance de la clinique 14 Ibidem 15 Ibidem 16 Ibidem 17 M Foucault La volonté de savoir Histoire de la sexualité Vol 1 18 M Foucault Naissance de la clinique 19 M Foucault Il faut defendre la société 20 M Foucault La volonté de savoir 21 M Foucault Surveiller et punir 22 M Foucault La volonté de savoir 23 Ibidem M Foucault Il faut defendre la société CAPÍTULO 5 Ação e compulsão I Hiperatividade violência criminalidade É preciso destacar agora que o malestar incide também no registro da ação Reencontramos aqui alguns dos ingredientes presentes no registro do corpo Entretanto suas especificidades devem ser sublinhadas não obstante suas complementaridades evidentes Antes de mais nada é preciso reconhecer que as individualidades contemporâneas ultrapassam um certo limiar vigente anteriormente no registro estrito da ação Algumas novidades se fazem aqui presentes caracterizando um certo estilo de ser do sujeito na contemporaneidade1em oposição ao momento histórico que o precedeu na longa duração Se a condição de ser ao mesmo tempo pausada e reflexiva delineava o estilo de ser na modernidade não obstante as descontinuidades e as rupturas intempestivas que o marcaram e caracterizaram a aceleração do sujeito é o que se destaca na contemporaneidade O ser interiorizado no registro do pensamento se transforma no ser exteriorizado e performático que quer agir antes de mais nada Assim a hiperatividade se impõe Agese frequentemente sem que se pense naquilo a que se visa com a ação de forma que os indivíduos nem sempre sabem dizer o que os leva a agir O sujeito da ação tem a marca da indeterminação No cogito da atualidade o que se enuncia ostensivamente é agir logo existir O agir é o imperativo categórico na contemporaneidade2 Retomando o que já enunciei acima podese dizer que as individualidades seriam marcadas pelo excesso que as impele inequivocamente para a ação Isso porque esta seria a melhor forma para se ver livre daquele e poder então eliminálo Caso não façam isso as individualidades seriam possuídas pelo excesso que as inundaria pela angústia3 É desse fundo difuso e indeterminado que se pode depreender algumas das modalidades específicas de ação nas subjetividades contemporâneas A explosividade antes de tudo Tudo se passa como se essas não conseguissem mais conter o excesso no seu território interior para em seguida simbolizálo e transformálo naquilo que Freud denominou ação específica4 isto é numa ação adequada ao contexto em que uma dada afetação foi colocada para o psiquismo Diante dessa impossibilidade a descarga de excitabilidade se impõe sob a forma de manifestações emocionais incontroláveis Com isso a irritabilidade é uma constante na forma de ser das individualidades atuais marca insofismável do seu ser Um dos maiores problemas sociopolíticos da atualidade é a violência Esta se impõe como uma invariante sempre presente nas subjetividades que se mostram cada vez mais violentas se as compararmos com as de décadas atrás Com efeito a violência sem causa aparente e a violência gratuita se banalizaram no nosso mundo de forma inquietante e já se transformaram em lugarcomum5 Mesmo que a violência não seja gratuita e que tenha boas motivações para existir o que se destaca aqui é a disparidade entre o motivo e a violência desencadeada como se esta fosse a única possibilidade que se impõe no horizonte do sujeito diante de um impasse e de um obstáculo Tudo se passa como se ele tivesse perdido a crença na possibilidade de resolver e superar os obstáculos que se colocam para si pelo discurso e pela retórica isto é pela negociação com os outros Uma das consequências da violência é o incremento da delinquência Ao lado disso a criminalidade se intensifica em todos os quadrantes do planeta sem exceção Assume assim a cada dia novas modalidades de ser e de se apresentar evidenciando feições frequentemente imprevisíveis As diversas publicações sociológicas e criminológicas em escala internacional dão testemunho disso e procuram interpretar o que se passa a partir de diferentes perspectivas A publicação da obra de Rusche e Kirchheimer sobre punição e estrutura social6 assim como a de Foucault sobre a genealogia do poder e da punição7 procuraram reavaliar tudo isso de uma perspectiva crítica e histórica No entanto uma marca se destaca na criminalidade atual de forma inconfundível e interessa diretamente à problemática da subjetividade Estou me referindo à crueldade que colore cada vez mais os crimes na contemporaneidade O refinamento assumido pela crueldade deve ser devidamente sublinhado pois ultrapassa os limiares anteriormente estabelecidos no gesto de matar Atingimos novos níveis até então impensáveis A possibilidade de tirar a vida de outro se dissemina tornandose natural assim o assassinato e o genocídio em que a crueldade delineia frequentemente a cena do crime com pinceladas grotescas e anti humanas II Compulsões e cultura das drogas Veremos agora a compulsão em suas diversas modalidades de ser na contemporaneidade A compulsão é uma modalidade de agir caracterizada pela repetição já que o alvo da ação não é jamais alcançado Daí a sua repetição incansável sem variações e modulações que assume o caráter de imperativo isto é impõese ao psiquismo sem que o eu possa deliberar sobre o impulso que inevitavelmente se impõe É necessário destacar algumas das modalidades de compulsão que se banalizaram na contemporaneidade e que estão disseminadas no espaço social Algumas são mais comuns em adolescentes em jovens ou em adultos Outras em contrapartida atravessam as diferentes idades e se alastram por toda parte Antes de mais nada a compulsão presente no uso de drogas As toxicomanias constituem hoje uma das formas dominantes do malestar inscrevendose em diferentes faixas etárias e classes sociais Impõemse como um dos flagelos da atualidade e se transformaram num dos alvos privilegiados das políticas de saúde pública Isso porque como os adolescentes e adultos jovens são os grandes consumidores de drogas o fenômeno provoca efeitos perigosos na performance escolar além dos efeitos danosos sobre a saúde física e a saúde mental Tratase hoje de um fenômeno de massa em larga escala disseminado em amplos setores da população É preciso no entanto não confundir o consumidor de drogas seja esse consumo regular ou irregular com os toxicômanos Encontramos aqui dois segmentos heterogêneos da população que não podem ser superpostos nem do ponto de vista psicanalítico nem do psiquiátrico nem do médico A toxicomania implica uma dependência física e psíquica à droga caracterizada pela impossibilidade do sujeito de poder viver sem ela Seria isso que conduziria o sujeito à compulsão propriamente dita como traço característico do funcionamento psíquico dos ditos toxicômanos Nos demais consumidores de droga não existiria rigorosamente falando a dependência física Com isso a compulsão não se encontra presente8 Estabelecida esta diferença é preciso não ser ingênuo na leitura dessas compulsões As toxicomanias não se restringem ao uso das drogas ilegais produzidas e comercializadas pelo narcotráfico mas incluem também as drogas legais e ditas medicinais legitimadas cientificamente pela medicina clínica e pela psiquiatria Refirome aos psicotrópicos que são receitados fartamente pelos clínicos de diferentes especialidades e pelos psiquiatras a fim de regular bioquimicamente o malestar dos indivíduos além é claro dos diversos analgésicos de potência variável Com efeito dos ansiolíticos aos antidepressivos passando pelos diversos estimulantes a farmacopeia médica oferece um vasto e diversificado cardápio de possibilidades para a prescrição dos clínicos e psiquiatras Por que estas últimas são também drogas poderia alguém me interpelar Alguns desses medicamentos são drogas porque podem engendrar dependência física e psíquica Além disso devese reconhecer que vivemos numa cultura das drogas da qual não se pode excluir também o fumo e as bebidas alcoólicas Enfim vivemos intoxicados mesmo que não saibamos disso pois esses diferentes fármacos e estimulantes se inscrevem no estilo contemporâneo de existência Alguns comentários suplementares devem ser feitos aqui Antes de mais nada a substituição de uma droga pela outra realizada pelos usuários Assim as bebidas alcoólicas substituem as drogas medicamentosas às vezes e reciprocamente como se o sujeito acreditasse que desta maneira estaria se protegendo mais de uma ou de outra em seus efeitos nefastos Ou então trocase uma droga ilegal pelos medicamentos acreditando estar promovendo a saúde Com a onda antitabagista na qual o cigarro foi considerado maléfico à saúde e seria politicamente incorreto as pessoas pararam de fumar e passaram a se drogar com outras coisas como as drogas pesadas e o álcool De fato se os adolescentes hoje fumam menos do que as gerações anteriores em contrapartida eles bebem e se drogam muito mais com o álcool e as drogas pesadas Enfim é sempre a cultura das drogas que se dissemina mesmo que os usuários alimentem a hipocrisia de estarem promovendo a saúde como o seu bem supremo É preciso sublinhar também que os médicos clínicos são aqueles que prescrevem mais psicotrópicos hoje muito mais do que os psiquiatras Isso porque não apenas as pessoas procuram muito os clínicos quando são acometidas por algum malestar no registro corporal de forma que estes recebem grande parte das demandas de cuidados como também porque com a prática médica assumindo cada vez mais uma versão técnica o clínico não acolhe mais psiquicamente os pacientes mas tenta suavizar o desamparo destes Assim diante do esvaziamento da relação médico paciente os clínicos medicam os pacientes com os mais diversos psicotrópicos e antidepressivos As dores e os sofrimentos dos pacientes são assim medicalizados ostensivamente Não obstante a medicalização os clínicos não dominam corretamente o uso daqueles medicamentos de forma que os pacientes são medicalizados no seu sofrimento e dor por um lado e mal medicados pelo outro Alguns autores destacam que mesmo na psiquiatria clínica a experiência se repete Isso porque não existiria ainda uma psicofarmacologia clínica isto é uma utilização ponderada e cientificamente bem fundada no uso dos psicofármacos mas apenas a utilização destes a partir de conhecimentos genéricos da psicofarmacologia experimental que os psiquiatras clínicos possuem9 Enfim a psiquiatrização do sofrimento pelos psicofármacos alimenta a cultura das drogas sem que a eficácia daqueles seja devidamente conhecida pelos psiquiatras no registro estritamente clínico Não se pode deixar de destacar que a constituição de uma cultura das drogas nas últimas décadas no Ocidente no que se refere às drogas pesadas trouxe como consequência uma sofisticada indústria de produção e de refino das suas matériasprimas que as coloca posteriormente em circulação no mercado internacional Portanto o narcotráfico nesta larga escala supõe tal infraestrutura industrial que apenas se tornou possível pela utilização dos saberes e dos dispositivos laboratoriais proporcionados pelo discurso da ciência Vale dizer a produção de drogas pesadas supõe a existência e a produção de dispositivos técnicos construídos pelos laboratórios de pesquisa para que possam ser transpostos para lugares inóspitos como a floresta amazônica os Andes e algumas regiões longínquas da Ásia Portanto sem estas aparelhagens científicas seria quase impossível produzir a droga na escala industrial em que é hoje produzida de forma que o cartel de drogas e o narcotráfico supõem necessariamente os instrumentos e dispositivos forjados pelas novas tecnologias médico biológicas10 Além disso é importante destacar ainda que a cultura das drogas propriamente dita se constituiu apenas na tradição do Ocidente nos anos 1970 Foi nesse tempo e contexto que ocorreu uma ruptura significativa e uma descontinuidade histórica Por que afirmo isso Entre as décadas de 1930 e 1960 o uso da droga estava intimamente articulado a uma gramática específica e a uma ritualidade bem caracterizada Com efeito o sujeito buscava na experiência com a droga a possibilidade de descobrir e de inventar outros mundos possíveis A busca da invenção guiada pelo desejo e pelo projeto de provocar rupturas no mundo social instituído estava sempre em pauta Um trabalho de interiorização e de reflexão sobre estas experiências era o seu correlato não existindo pois um sem o outro Enfim a proposição de romper com o mundo existente para novos mundos possíveis fazia parte deste projeto existencial11 Daí por que se inscrevia fartamente tal uso na comunidade artística aliás desde a primeira metade do século XIX Foi isso que mudou a partir dos anos 1970 quando o uso da droga passou a ser cultivado por si mesmo sem se inscrever em qualquer projeto existencial que lhe transcendesse Buscavase assim o prazer pelo próprio prazer num festim hedonista que valia por si mesmo Com efeito a experiência com a droga se transformou numa evasão do sujeito para fugir então de um mundo intolerável e não para construir novos mundos possíveis a partir da experiência com as drogas Portanto a sensorialidade hedonista buscada por si mesma seria uma maneira de o sujeito fugir de uma realidade que seria insuportável e que ao mesmo tempo ele se sentia impotente para transformar Enfim a experiência com a droga se fazia agora fora de um projeto existencial de transformação do mundo sem qualquer gramática e ritualização simbólica pela qual o sujeito se evade do mundo instituído pela impotência e impossibilidade de fazer algo que o modifique efetivamente A cultura da droga seria assim uma resposta ao malestar na atualidade pela qual o sujeito despossuído da possibilidade de acreditar que possa fazer algo busca pelo hedonismo e pela sensorialidade prazerosa produzir algum gozo diante de tanta dor Foi isso que constituiu uma cultura da droga propriamente dita na contemporaneidade Foi nesse contexto histórico que a compulsão pelas drogas se disseminou como modalidade de ação não se restringindo mais ao campo do consumo das drogas III Festins comestíveis e outras orgias Se o consumo de drogas não é o único registro da compulsão no mundo contemporâneo é preciso enunciar agora os outros campos nos quais essa também se realiza A comida e o consumo se transformaram também em objetos e alvos privilegiados da compulsividade do sujeito Assim a comida se destaca nas compulsões atuais impondose ao mesmo tempo como fascinante e mortífera já que é atraente e repelida num mesmo movimento pelas pessoas A relação do sujeito com a comida é ambígua e ambivalente pois esta é objeto de desejo e de repulsa de maneira que a voracidade e o vomitar se declinam quase que num mesmo gesto Os efeitos e destinos dessa polaridade são opostos certamente mas a comida como fetiche12 está sempre presente nessa experiência compulsiva Entre a magia e o gozo portanto a comida é um objeto certeiro de sedução mas pela qual a magia pode se transformar num feitiço e num canibalismo mortífero que deve ser prontamente repelido Por que objeto de sedução Nunca se comeu tanto e tão bem como hoje no Ocidente tal a oferta a quantidade e a variedade de bens comestíveis Tudo isso contrasta com uma longa história anterior marcada pela carência e pela carestia como ainda hoje ocorre em amplas regiões do planeta O trágico cenário africano contrasta com a pujança e o brilho comestível existente na Europa e nos Estados Unidos Porém nestes também as regiões de consumo alimentar de luxo contrastam com a penúria de outras regiões de maneira que o cenário de luxúria comestível convive lado a lado com o que existe de padrão africano numa mesma cidade Nesse contexto a voracidade atinge níveis espetaculares engendrando uma cultura desenfreada do preenchimento e do mau gosto Os festins comestíveis se transformaram numa das marcas da contemporaneidade não obstante a presença do estilo culinário fast food que é disseminado em segmentos das classes médias e das classes populares É nesse quadro de referência que se inscrevem as compulsões alimentares As bulimias são um dos monumentos sintomáticos disso Comese de maneira excessiva e mesmo obscena predominando aqui a dimensão do preenchimento corporal advindo deste o prazer alimentar O gosto polivalente sempre presente na comida e na boa culinária se apaga destacandose apenas a devoração para preencher o vazio dos interstícios do corpo O vazio corporal seria assim a condição de possibilidade para a canibalização dos bens comestíveis numa orgia que busca preencher todos os espaços e fendas corporais É claro que o preenchimento do vazio se realiza também com outras compulsões como com as drogas e o consumo Porém no que concerne às bulimias a obesidade se transformou hoje num problema maior de saúde pública nos países desenvolvidos A União Europeia e os Estados Unidos se preocupam com isso e nos últimos anos formularam novas políticas de saúde coletiva de propaganda e de entretenimento a fim de superar a catástrofe que já se faz presente em seus espaços sociais Se a catástrofe já se instalou neste registro de nosso estilo de existência isso revela que a impossibilidade da experiência do vazio se colocou de maneira trágica pois como se sabe a obesidade é uma encruzilhada perigosa para a emergência de diversas enfermidades muitas delas fatais No entanto como a magreza é um dos nossos códigos de beleza já que quem é gordo não tem qualquer sensualidade e na sua feiura não tem qualquer poder de sedução a voracidade tem que ser controlada custe o que custar Foi nesse contexto que o gordo foi transformado não apenas num doente mas também num monstro A obesidade é um dos signos da monstruosidade na atualidade condensando em si as representações da deformidade da feiura e do antierotismo Assim para evitar o estigma da obesidade é preciso evitar a comida Surgem então modalidades grotescas de relação com esta Existem pessoas que se sentem seduzidas pelos festins comestíveis e que comem vorazmente a boa comida mas que a vomitam imediatamente antes de digerir para que possam manter a bela magreza Cultivase assim uma forma de sensorialidade sem corporeidade pela qual as sensações se desenraízam radicalmente do registro do corpo constituindo uma das originalidades antropológicas da contemporaneidade Isso porque na tradição ocidental os registros da sensação e do corpo se declinaram sempre num mesmo plano e eixo inseparáveis que eram no mesmo comprimento de onda O paroxismo disso é a anorexia na qual o indivíduo recusa o alimento que se transforma então de objeto fascinante em nojento por ser capaz de destruir a beleza e envenenar o corpo Assim a magia comestível se transforma em um feitiço e a comida em veneno contra as ordens da vida e da saúde No entanto tudo isso convive com os regimes e as dietas nos quais as individualidades ingerem apenas os nutrientes essenciais para não digerir calorias excessivas que perturbem a saúde e a beleza A ingestão alimentar passa pelo crivo estrito das racionalidades médica e científica de maneira que no limite nos alimentamos de fórmulas bioquímicas que aprendemos na Internet nas páginas científicas dos jornais e nas notícias divulgadas pela televisão sem esquecer é claro as prescrições dos médicos e dos nutricionistas13 Não se pode esquecer do consumo que também se transformou numa verdadeira compulsão Com efeito os mais diversos objetos da indumentária passando pelo perfume e pela maquiagem são objetos de compulsões propriamente ditas Ao lado disso os livros e os CDs são consumidos compulsivamente comprados pela notoriedade dos autores compositores e músicos14 Tudo isso é amealhado mesmo que as pessoas não tenham tempo para lêlos e escutálos As pessoas olham com gula e saliva nos lábios para as ricas vitrines das lojas sempre prontas que estão para o ato canibalístico de consumir No entanto se não é sempre possível usar todas as vestimentas que são adquiridas nem tampouco ler e escutar todos os livros e CDs comprados pela falta de tempo numa cultura marcadamente acelerada possuir tudo isso é fundamental inscrevendose isso também na nova economia política dos signos Nesta com efeito a posse de bens é um signo de poder na medida em que define o status do indivíduo É preciso portanto possuir os bens para ostentálos para ser reconhecido enfim em seu poder social Assim qualquer mercadoria é passível de inscreverse no circuito do consumo sendo pois a condição de possibilidade para o engendramento da compulsão O gozo seria então direcionado pelo fetichismo das mercadorias numa fetichização ampla geral e irrestrita do universo do consumo Isso porque o ter para preencher o vazio corporal e psíquico é um signo que confere segurança para o indivíduo pois o faz acreditar ser detentor de algum poder pelo status que pode exibir É neste contexto que o shopping center se transformou num outro templo da sociedade pósmoderna onde as peregrinações dos consumidores fiéis ocorrem todos os dias Nesse espaço antissagrado saturado de mercadorias nos quais os objetos são sofisticadamente revestidos pelos designers requintadamente empacotados e exibidos em vitrines luxuosas a compulsão do ter se evidencia revelando assim a face mortífera da sedução Notas 1 J Birman Por uma estilística da existência J Birman Estilo e modernidade em psicanálise 2 E Kant Critique de la raison pratique 3 S Freud Inhibition symptôme et angoisse 4 S Freud Esquisses dune psychologie scientifique In S Freud La naissance de la psychanalyse 5 J Baudrillard La société de consommation 6 G Rusche O Kirchheimer Punição e estrutura social 7 M Foucault Surveiller et punir 8 J Birman Malestar na atualidade G Sissa Le plaisir et le mal philosophie de la drogue 9 G Swain Chimie cerveau esprit et société Paradoxes epistémologiques des psychotropes en médicine mentale In Le Débat nº 47 10 J Birman Que droga In J Birman Malestar na atualidade 11 J Birman Dionísio desencantado In J Birman op cit A Huxley As portas da percepção o céu e o inferno 12 S Freud Le fetichisme In S Freud La vie sexuelle 13 T Vincent Direction La jeune fille et la mort E Kestemberg J Kestemberg S Decobert La faim et le corps G Pirlot Les passions du corps la Psyche dans les addictions et les maladies autoimmunes possessions et conflits dalterité 14 J Baudrillard La société de consommation CAPÍTULO 6 O tempo vai para o espaço Vou fazer agora uma pequena parada na leitura dos registros onde o mal estar na atualidade se materializa antes de retomar o percurso com a descrição do registro das intensidades Isso porque pretendo colocar em evidência que a dominância da categoria do espaço sobre a do tempo está no fundamento das diferentes modalidades de expressão do malestar É essa mesma dominância que estará igualmente em pauta na leitura do registro das intensidades O que significa dizer que a relação entre estas duas dimensões constituintes da experiência do sujeito com a predominância agora do espaço sobre o tempo é a encruzilhada fundamental por onde se realiza e se operacionaliza a constituição das formas de subjetivação hoje I Passagem ao ato e actingout Podese afirmar sem qualquer dúvida e vacilação que em tudo o que foi delineado até agora é sempre o excesso que se encontra subjacente Ao promover a hiperatividade ele é a condição de possibilidade da agressividade da violência da criminalidade e da compulsão Porque o excesso está no fundamento do malestar contemporâneo Em face do excesso que invade e se alastra sem limites o psíquico procura dele se livrar pela ação para não correr o risco de ficar paralisado pela disseminação da angústia do real Porque se o excesso não for descartado e descarregado pela ação o psiquismo procura se desembaraçar daquele pelas vias corporais Com efeito o estresse o pânico e as perturbações psicossomáticas seriam disso as resultantes no registro do corpo porque o excesso não se esvai pela ação Seria então o excesso no psiquismo que conduziria a essas duas séries e eixos sintomáticos isto é as que incidem nos registros do corpo e da ação na medida em que aquele ficaria retido no corpo quando não pudesse ser eliminado como ação Por que tal hierarquia entre os registros do corpo e da ação Esta indagação é fundamental pois para uma leitura ingênua deste processo não deveria existir qualquer hierarquia entre os caminhos para o escoamento das excitações que se faria de maneira indiferente e indiscriminada Porém se de um ponto de vista biológico esta formulação poderia se sustentar teoricamente com certa facilidade o mesmo não poderia ser dito do ponto de vista psíquico O que estaria em causa afinal de contas na dominância da ação sobre a descarga corporal Podese afirmar que o que estaria aqui em questão seria a economia psíquica do narcisismo1 Assim como ele é uma instância crucial para a integridade do eu e para a manutenção da ordem vital a sua preservação é fundamental para o psiquismo Com efeito para a preservação do narcisismo o eu prefere explodir do que implodir mantendo então a autoconservação do organismo e a homeostasia do prazer Porém diante da impossibilidade da explosão a implosão se impõe necessariamente colocando em questão a ordem da vida Isso porque os interstícios e as fendas do somático seriam as únicas linhas de fuga disponíveis para a materialização da implosão Para que se compreenda melhor ainda as modalidades de ação que estão presentes nas formações sintomáticas do malestar hoje podese enunciar valendose da metapsicologia psicanalítica que o psiquismo lança mão cada vez mais da passagem ao ato e não do actingout Esta distinção teórica nos leva ao centro da problemática aqui em questão diferenciando devidamente as diversas modalidades de ação Assim essa diferença conceitual se refere à fragilidade e à ausência de processos de simbolização na passagem ao ato enquanto estas estariam presentes no actingout atuação Vale dizer neste a simbolização se inscreve na ação e como ação que se manifesta então como uma miseen scène Podese afirmar portanto que na miseenacte existiria ainda uma encenação no psiquismo2 O inconsciente se realizaria assim como ato e em ato como ocorre no lapso e no ato falho3 como nos descreveu Freud em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana No que concerne a isso Lacan enunciou que existiria ainda o sujeito na atuação colocando este na Outra cena numa dupla posição como encenador e como personagem4 Em contrapartida na passagem ao ato a ação é rude e brutal não revelando mais qualquer rastro de simbolização5 No que se refere a isso Lacan formulou o apagamento e o silenciamento do sujeito na passagem ao ato6 No registro eminentemente clínico as diferenças são patentes Na conversão presente na histeria existe a presença de formas de simbolização no psiquismo que delineiam as linhas de fuga da encenação na corporeidade Em contrapartida no estresse no pânico e nas perturbações psicossomáticas nos defrontamos com a ausência destas de forma que o excesso implode no psiquismo e no organismo7 Enfim é o silêncio simbólico que se manifesta sob o fundo do ruído pela perturbação produzida no registro do somático II Encenação e somatização No entanto a analogia existente entre o excesso que incide sobre o corpo e a ação indica como ambos são equivalentes em suas respectivas dinâmicas Esta equivalência evidencia mais ainda o que está aqui em questão no processo de engendramento do malestar Podese afirmar assim que se age igualmente sobre o corpo e sobre o mundo na medida em que esses são considerados apenas na sua dimensão espacial como lugar para a descarga das intensidades De fato seria o corpo na sua dimensão estritamente somática que seria afetado aqui pela descarga nos registros do volume e da profundidade e não no de sua superfície Isso porque enquanto volume e profundidade é que a corporeidade se torna indiscriminada nas suas possibilidades de significação já que seria apenas na superfície do corpo que as encenações se inscrevem numa gramática e numa sintaxe simbólicas O discurso freudiano procurou delinear isso no início do seu percurso estabelecendo a diferença entre as paralisias orgânica e histérica isto é entre as paralisias produzidas por causas orgânicas e as que tinham uma causalidade psíquica8 Seria justamente por isso que a conversão histérica se realiza na superfície do corpo nas bordas existentes entre os registros do somático e do outro nas quais as trocas do sujeito com o mundo se estabeleceriam apoiadas9 na pele nos órgãos sensoriais e nas mucosas Estas seriam as dobras entre os registros do somático e do psíquico que funcionariam como bordas para que as pulsões pudessem constituir as zonas erógenas e o autoerotismo10 Seria pelo autoerotismo sustentado pelo investimento do outro que o registro do somático seria transformado em corpo propriamente dito11 Em contrapartida a somatização psicossomática toma decididamente a direção delineada pelas linhas de fuga da massa do somático na qual não existe mais qualquer diálogo do psiquismo com o mundo12 Podese delinear assim as relações existentes entre as categorias de forma e de visível assim como do seu oposto qual seja as relações íntimas que existem entre o informe e a invisibilidade Se a encenação empreendida pela conversão histérica se faz sempre em imagens pela quais se dramatizam a relação do sujeito com o outro isso evidencia como a formalidade presente nas imagens se inscreve no registro do visível Em contrapartida a descarga da somatização psicossomática se realiza no registro do invisível na profundidade e no volume da massa somática informe Da mesma forma o corpo espacializado no registro do somático implica um mundo que se delineia e se restringe também às coordenadas estritamente espaciais O mundo se reduz ao espaço do aqui e do agora sem expansão sem escansão e sem qualquer horizonte possíveis pois é a pontualidade da sua presença que aqui se impõe Porque é o registro do tempo que abre as janelas do mundo para outras possibilidades de existência fazendo entrever outras temporalidades existenciais além do que eclode pontualmente nos momentos descontínuos dos diversos instantes Para transformar o instante numa continuidade modulada é necessária a incidência dos processos de temporalização na experiência psíquica Para isso o instante tem que ser inscrito numa sequência marcada pela diferença do agora do antes e do depois e ser realizado por uma operação de translação III Translação Essas diferenças foram delineadas pelo discurso freudiano no início do seu percurso ao lado de outros critérios distintivos Foi este o caso da diferença que procurou estabelecer entre as neuroses atuais e as neuroses de transferência duas modalidades de existência do malestar como disse no capítulo inicial deste livro Assim as neuroses atuais implicariam pura descarga da excitação para o registro do somático em decorrência da impossibilidade do processo de simbolização Seria o que ocorreria na neurose de angústia e na neurastenia Se no caso da primeira a descarga seria provocada pelo excesso de excitação que deságua no registro do somático a segunda seria provocada pelo esgotamento da excitabilidade que esvaziaria a vitalidade do organismo13 O efeito da espacialização seria aqui imediato pois a excitação que conduziria à descarga assume a condição de estase da excitabilidade Essa perderia então a possibilidade de mobilidade e se estancaria Enfim é o movimento que não poderia efetivamente acontecer reduzido que é à condição de ser um simples ponto no qual se condensa o espaço Essa ausência de movimento indica que o tempo é que seria a condição de possibilidade para a produção do movimento Além disso o tempo pressuporia ainda a simbolização para lhe conferir suporte e possibilidade de existir Seriam pois o tempo e a simbolização que ofereceriam mobilidade para a excitabilidade na falta dos quais é o espaço que se faz presente na estase e na descarga Com isso o corpo ficaria reduzido ao registro do somático pelas linhas de fuga do volume e da profundidade Em contrapartida nas neuroses de transferência o tempo e a simbolização estariam presentes de maneira que a temporalidade se ordenaria pela relação entre o presente o passado e o futuro na experiência do sujeito14 Seria isso enfim que possibilitaria a transferência propriamente dita15 Foi em decorrência disso que o discurso freudiano estabeleceu uma relação íntima entre as neuroses atuais e as de transferência O enunciado desta relação fundamenta o argumento acima formulado e possibilita a sua demonstração Assim a neurose de angústia seria a neurose atual da histeria enquanto a neurastenia seria a da neurose obsessiva16 Vale dizer qualquer neurose de transferência seria iniciada por uma modificação na economia das pulsões que seria materializada pelas neuroses atuais Esta transformação contudo dependeria da presença de mecanismos de simbolização que numa translação decisiva deslocaria o registro da neurose atual para o da neurose de transferência Enfim esta simbolização pressuporia a categoria de tempo é claro pois o tempo é o correlato da simbolização Posteriormente quando o discurso freudiano enunciou a existência de uma terceira neurose atual denominada hipocondria continuou a insistir na existência do liame entre as neuroses atuais e as neuroses de transferência17 A hipocondria seria assim a neurose atual da psicose18 tal como Freud descreveu especificamente as transformações corporais que ocorrem na experiência psicótica e que seriam prévias à organização do delírio na sua leitura de Schreber19 IV Ação coartada Por todos esses caminhos fica claro como o malestar na atualidade centrado nos registros do corpo e da ação indica uma ruptura entre os registros do espaço e do tempo nos quais o espaço passa a dominar todo o território do psiquismo Com isso o corpo assume a forma do somático materializandose como volume e profundidade perdendo qualquer dimensão significante A imobilidade a informidade e a invisibilidade são suas formas de ser justamente pela ausência dos mecanismos de simbolização e da incidência da temporalidade Seriam essas em contrapartida que possibilitariam a constituição da mobilidade da forma e da visibilidade na experiência psíquica inscrevendo a conflitualidade psíquica na superfície corporal sob a forma de encenações e enunciando então o embate pulsional sob a forma de retóricas que se inscrevem no corpo propriamente dito Fica evidente assim a existência de um impasse na dinâmica psíquica que se refere à fragilização do registro do tempo no malestar hoje que se materializa concretamente nos registros do corpo e da ação Não existiria aqui nem simbolização nem tampouco antecipação das afetações20 O que se evidencia é a marca eminentemente traumática21 pela qual se delineia o malestar na contemporaneidade É o trauma que está então sempre em questão num mundo marcado pela imprevisibilidade e pela instabilidade dos códigos simbólicos estabelecidos O malestar se apresenta hoje tanto no corpo quanto na ação pela pregnância assumida pela categoria do espaço no psiquismo a expensas da categoria do tempo É nesse sentido portanto que podemos dizer de maneira ao mesmo tempo rigorosa e literal que o tempo vai para o espaço na nova cartografia do mal Além disso o que se evidencia aqui é que a ação coartada está sempre em questão no malestar atual mesmo quando o corpo é o alvo e o objeto da descarga do excesso das intensidades Portanto a ação coartada indica a impossibilidade do movimento assim como a da visibilidade e da formalidade No entanto a ação coartada é uma ação fracassada que não atinge seu alvo nem sua finalidade que seria a de produzir uma mudança no mundo que deveria envolver o sujeito da ação Não é isso que se evidencia de forma eloquente com a compulsão que precisa ser permanentemente lançada e repetida em sua mesmidade pois seria uma ação frustrada e fracassada em suma coartada na sua finalidade de transformar o mundo V Primórdios da transformação Contudo a transformação radical nas modalidades de malestar já estava ocorrendo nos anos 1930 Podese comprovar isso não apenas pelo novo estatuto do traumático que já foi aqui destacado na metapsicologia freudiana mas também pelo trabalho teórico de outros autores que pertencem à tradição psicopatológica psicológica e psicanalítica francesa Assim em sua brilhante descrição e na interpretação fenomenológica que realizou da esquizofrenia Minkowski já colocava em destaque a presença da geometrização da experiência psíquica na produção dos sintomas esquizofrênicos22 Enunciar o conceito de geometrização para dar conta das múltiplas produções sintomáticas da esquizofrenia implica colocar em evidência a dominação absoluta da categoria do espaço sobre a do tempo na experiêncialimite da psicose Com efeito lançando mão dos conceitos fundamentais da filosofia de Bergson na qual as categorias do espaço e do tempo são cruciais onde o sujeito e a ordem vital estariam no registro do tempo inscritos no registro do élan vital enquanto o espaço seria constitutivo da ordem mecânica da natureza inorgânica23 Minkowski mostra como o processo esquizofrênico afetaria as dimensões mais nobres da ordem vital pela qual a temporalidade se perderia de maneira absoluta na experiência psíquica e a espacialização mecânica assumiria o domínio total no psiquismo O élan vital estaria então afetado e subvertido atingindo a mobilidade do sujeito que ficaria reduzido à geometrização das formas presentes na natureza bruta24 Lacan em contrapartida enunciou em 1936 o conceito do estádio do espelho durante a apresentação de um trabalho que não foi publicado no Congresso Internacional de Psicanálise realizado em Marienbad Em 1938 começou a escrever regularmente sobre isso como no ensaio sobre os complexos familiares25 vindo a realizar plenamente a sistematização do conceito nos ensaios sobre a causalidade psíquica 194626 a agressividade em psicanálise 194827 e o estádio do espelho propriamente dito 194928 Com isso pretendia colocar em evidência como a espacialidade dominaria a experiência psíquica nos seus primórdios e que a ordem do tempo seria posterior Baseouse para tanto num ensaio inicial de H Wallon e num livro posterior que descreveu o estádio do espelho no desenvolvimento infantil29 Porém Lacan deu ao conceito uma extensão que estava ausente na psicologia de Wallon O que Lacan pretendeu dizer com isso Seu ponto de partida foi a constatação da prematuridade biológica do organismo humano tal como esse viria ao mundo como já apontava a biologia de então Isso seria devido à desmielinização das fibras nervosas que provocaria em contrapartida uma impossibilidade de coordenação do sistema nervoso Sem essa coordenação nos primórdios da vida o infante estaria entregue a uma experiência quase absoluta de deiscência corporal e psíquica Com isso o medo da morte e da dissolução corporal estariam permanentemente presentes na experiência do infante No entanto entre os oito e os dezoito meses o estádio do espelho se constituiria sem que o infante tivesse ainda qualquer mielinização das fibras nervosas Um descompasso entre os registros nervoso e psíquico se produziria assim provocando uma autonomia do segundo em relação ao primeiro de forma que a imagem corporal que seria então constituída não teria nada a ver com o esquema corporal constituído apenas aos dois anos de vida do infante com a maturação mielínica do sistema nervoso30 Porém tal autonomia do psiquismo se faria pela presença da imago do corpo próprio que seria constituído pela experiência especular31 Pela mediação dessa imago o infante adquiriria uma forma corporal e uma imagem de si constituindo uma verdadeira armadura corpórea que lhe provocaria uma experiência originária de alienação32 Isso porque na formação do estádio do espelho o infante vê uma imagem projetada no espelho mas seria o olhar materno que confirmaria que essa imagem seria uma projeção do infante Vale dizer o reconhecimento da existência do infante seria realizado pela figura da mãe o que provocaria a tal alienação de si do infante a que já me referi Porém essa experiência seria estruturante para o infante que se ordenaria como forma contra o fundo da deiscência corporal constituindo então o eu e a imagem corporal como o seu correlato33 Por isso mesmo Lacan enunciou enfaticamente que essa experiência seria jubilatória Seriam constituídos assim a identificação e o narcisismo primários no sentido freudiano desses conceitos34 Essa construção seria contudo muito frágil ameaçando permanentemente o infante com a fragmentação corporal e psíquica que se anuncia com o fantasma de um retorno possível à experiência originária de deiscência corpórea Formarseiam assim os diferentes fantasmas do corpo fragmentado que povoariam posteriormente o imaginário humano na experiência da angústia35 Fica evidente com isso como o psiquismo seria originalmente espacializado sendo uma unidade tecida em torno de uma imago que pode se fragmentar contudo a qualquer momento desde que o infante não seja reconhecido pelo outro repetindo o gesto materno inaugural que constituiu a sua imagem especular Lacan evoca assim as experiências infantis de transitivismo formuladas por Bühler Com efeito se duas crianças com pequena diferença de idade são colocadas juntas uma se confunde com a outra e o terror que cada uma delas sente de perder a imagem especular faz com que uma ataque a outra com violência para não perder essa identificação36 A violência e a agressividade humanas seriam então produzidas nesse contexto pela imagem especular que estabelece uma relação dual entre os indivíduos e os corpos para manter sua integridade narcísica esses indivíduos precisam se atacar e se destruir mutuamente37 Dessa perspectiva seria apenas com a triangulação edipiana com a emergência da imago do pai no psiquismo que o infante sairia da servidão da imago materna e da imago fraterna que o condenariam à relação dual e violenta com o outro Com efeito os horizontes do outro e da alteridade se constituiriam pela mediação da imago paterna que possibilitaria a ascensão à ordem simbólica38 Posteriormente Lacan reformulou essa introdução da figura do pai que remanejaria então o registro da especularidade Pela introdução do registro da fala e da linguagem em psicanálise em 195339 a figura do pai introduziria a lei da interdição do incesto como sendo a lei simbólica e a figura do pai foi reformulada pelo conceito de Nomedopai De qualquer forma podese reconhecer que seja pela mediação da imago paterna seja pela mediação da linguagem e da lei simbólica o que Lacan pretendia com a dita mediação era inscrever o psiquismo no registro do tempo a fim de relativizar a pregnância do registro do espaço na construção psíquica originária Seria necessário colocar uma distância do sujeito em face da captura especular pois essa o destinaria à fragmentação sempre possível e iminente no horizonte de sua experiência Se essa espacialização fosse dominante seria a violência a agressividade e a criminalidade que se imporiam na experiência psíquica e social tal como Lacan mostrou em seu ensaio sobre a agressividade em psicanálise40 Por isso mesmo Lacan fez aqui a releitura da problemática do malestar em Freud destacando que o que caracterizaria o malestar na modernidade seria a humilhação da figura paterna de forma que a experiência psicanalítica visaria a inscrever tal imago do pai no psiquismo para regular o malestar em questão41 Não foi por acaso que Lacan se concentrou tanto no seu percurso inicial na psicanálise na pesquisa da violência e da criminalidade pois essas como modalidades básicas do malestar de então estariam condensadas no registro dual da especularidade42 Com isso a base de construção psíquica seria eminentemente paranoica em decorrência da espacialidade primordial e da alienação do sujeito ao outro Na leitura de Lacan a paranoia seria o modelo clínico por excelência para a leitura do psiquismo pela dominância do espaço sobre o tempo substituindo então o modelo clínico freudiano centrado na histeria Dessa perspectiva a agressividade seria anterior ao erotismo na experiência psíquica de acordo com a transformação já existente no campo social do malestar Portanto tanto com Minkowski quanto com Wallon e Lacan na geometrização da experiência psíquica na esquizofrenia e com o estádio do espelho seria sempre a espacialização primeira do psiquismo o que estaria em pauta de forma que com a fragilização da temporalidade seria aquela que presidiria e regularia a experiência do malestar Delineiase já assim um quadro que se desdobrará futuramente nas formas contemporâneas do malestar Estaríamos aqui num contexto e tempo bastante avançado da modernidade que se evidencia pela dissolução da categoria do tempo ante a do espaço que começa então a dominar o território do psiquismo A viragem teórica do discurso freudiano nos anos 1920 com a compulsão à repetição e o novo estatuto atribuído ao traumático já indicava isso No entanto no contexto histórico dos anos 1930 a inflexão é ainda mais decisiva esboçando o quadro em que se configurará o malestar na contemporaneidade Estaríamos enfim no registro da modernidade avançada propriamente dita Notas 1 S Freud Pour introduire le narcissisme In S Freud La vie sexuelle 2 J Laplanche J B Pontalis Vocabulaire de la Psychanalyse J Rouart Agir et processus psychanalytique J Birman Arqueologia da passagem ao ato In A Bastos Psicanalisar hoje 3 S Freud Psychopathologie de la vie quotidienne 4 J Lacan Langoisse Le Séminaire Livro X 5 J Rouart Agir et processus psychanalytique J Birman Arqueologia da passagem ao ato In A Bastos Psicanalisar hoje 6 J Lacan Langoisse Le Séminaire Livro X 7 J Birman Enfermidade e loucura 8 S Freud Quelques considerations pour une étude comparative des paralysies motrises organiques et hystériques In S Freud Résultats idées problèmes 9 S Freud Trois essais sur la théorie de la sexualité 10 Ibidem 11 J Birman Le corp et laffect en psychanalyse In Che Vuoi Revue de Psychanalyse p 1326 12 Ibidem J Birman Enfermidade e loucura 13 S Freud Psychothérapie de lhystérie 1895 In S Freud J Breuer Études sur lhystérie 14 Ibidem 15 Ibidem 16 Ibidem 17 S Freud Pour introduire le narcissisme In S Freud La vie sexuelle 18 Ibidem 19 S Freud Remarques psychanalytiques sur lautobiographie dum cas de paranoia Dementia Paranoides Le President Schreber In S Freud Cinq psychanalyses 20 S Freud Inhibition symptôme et angoisse 21 Ibidem 22 E Minkowski La schizophrénie Psychopathologie des schizoïdes et des schizophrènes 23 H Bergson Matière et Mémoire Essais sur la relation du corps à lesprit In H Bergson Oeuvres H Bergson Levolution créatrice In H bergson op cit 24 E Minkowski La schizophrénie Psychopathologie des schizoïdes et des schizophrènes 25 J Lacan Les complexes familiaux dans la formation de lindividu In Encyclopédie française sur la vie mentale 26 J Lacan Propos sur la causalité psychique In J Lacan Écrits 27 J Lacan Lagressivité en psychanalyse In J Lacan op cit 28 J Lacan Le stade du miroir comme formateur de la function du je In J Lacan op cit 29 H Wallon Comment se développe chez lenfant la notion de corps propre In Journal de Psychologie p 705748 H Wallon Les origines du caractère chez lenfant 30 J Lacan Le stade du miroir comme formateur de la function du je In J Lacan Écrits 31 Ibidem 32 Ibidem 33 Ibidem 34 S Freud Pour introduire le narcissisme In S Freud La vie sexuelle 35 J Lacan Le stade du miroir comme formateur de la function du je In J Lacan Écrits 36 Ibidem 37 Ibidem 38 J Lacan Les complexes familiaux dans la formation de lindividu In Encyclopédie française sur la vie mentale Volume VII 39 J Lacan Fonction et champ de la parole et du langage em psychanalyse In J Lacan Écrits 40 J Lacan Lagressivité en psychanalyse In J Lacan op cit 41 J Lacan Les complexes familiaux In Encyclopédie française sur la vie mentale 42 J Lacan De la psychose paranoïaque dans sés rapports avec la personalité suivi de premiers écrits sur la paranoïa J Lacan Motifs du crime paranoïaque J Lacan M Cénac Pressuposés à tout développement de la criminologie 1950 In J Lacan Écrits CAPÍTULO 7 O vazio no existir I Intensidade afetação sentimento É preciso considerar agora o terceiro registro do malestar contemporâneo o das intensidades A articulação entre os diferentes registros é realizada sempre pelo excesso Podese compreender facilmente no registro das intensidades a incidência imediata do excesso que se apresenta como afetação e se expressa como sentimento Assim a equação é relativamente simples pois é possível reconhecer como o excesso transborda no psiquismo como humor e pathos antes de se deslocar para os registros do corpo e da ação Dito de outra maneira o excesso é imediatamente afetação e sentimento antes de mais nada Somos assim afetados inicialmente pelo excesso que nos toma e que se expressa como sentimento num segundo momento de maneira que passamos então a sentir a afetação O excesso seria então o regulador das afetações e dos sentimentos delineando a valência das suas intensidades O colorido destas estaria na dependência daquelas de forma a modulálas na sua expressividade Da exaltação à depressão todas as matizações das intensidades são aqui possíveis de se plasmar como sentimento A despeito de tais matizações no entanto o excesso é sempre irrupção de algo que escapole ao controle e à regulação da vontade e que se impõe no psiquismo como um corpo estranho Seria isso pois a marca do excesso que se caracteriza por ser incontrolável Isso porque o que o caracteriza especificamente é o afastamento e a ruptura com a regularidade estabelecida na experiência subjetiva indo além das fronteiras estabelecidas nas intensidades das sensações e das afetações Enfim não se pode perder de vista que estamos situados aqui nas bordas da experiência do sensível que são transformadas nas suas regularidades e que os excessos afetam as suas fronteiras até então bemestabelecidas É fundamental considerar aqui no entanto a questão do limiar que define as fronteiras das regularidades das afetações no que concerne às dimensões da irrupção e do incontrolável na experiência do excesso para que se possa compreender devidamente o que está em causa nas subjetividades contemporâneas Podese afirmar assim que os limiares de irrupção e de falta de controle da vontade diminuíram sensivelmente nas individualidades que ficaram então cada vez mais assujeitadas e à deriva das imposições do excesso Com isso o psiquismo não mais o regula como deveria que se presentifica necessariamente então no psiquismo de maneira incoercível Algumas das resultantes disso nós já destacamos ao longo deste ensaio Antes de mais nada a presença da angústia do real e do seu corolário isto é o efeito traumático Isso porque o eu não tem o poder de antecipação dos acontecimentos para poder circunscrever devidamente o impacto das intensidades1 Por isso mesmo o limiar de irrupção do excesso diminui de maneira significativa e decresce assim ainda mais a possibilidade de regulação das intensidades A resultante disso é que a subjetividade fica diante de algo que a ultrapassa e que não pode dar conta Diante disso a posição do sujeito é de impotência defrontado que está com algo muito maior do que ele Enfim uma das consequênciaslimite deste processo é a paralisia psíquica Para tentar circunscrever a experiência traumática o psiquismo lança mão da compulsão à repetição como Freud a descreveu para isolar e procurar controlar desesperadamente a irrupção inesperada2 A repetição pretende realizar ativamente a recriação do trauma para que o psiquismo possa anteciparse agora ao que não pôde fazer quando este se produziu3 Com esse deslocamento da posição passiva para a ativa o sujeito busca transformar a sua relação com o acontecimento inesperado tentando transmutar o inesperado e o imprevisível em esperado e previsível submetido que seria ao controle do eu e da vontade Deslocamonos decididamente assim do registro das intensidades para o da ação como se viu com as diferentes modalidades de compulsão Tais compulsões são contudo fadadas ao fracasso Porque são ações coartadas não conseguem remodelar o contexto intensivo que as colocou em funcionamento Vale dizer o disparador do processo não seria atingido e capturado pelo sujeito que continua assim assujeitado àquele Ao lado disso é preciso considerar ainda o contexto atual em que a compulsão à repetição opera que não é o mesmo de décadas atrás quando Freud enunciou tal mecanismo psíquico A compulsão à repetição não é efetiva pela ampliação assumida hoje pelo campo do traumático Ou seja o trabalho psíquico da compulsão à repetição não pode operar com efetividade e eficácia em tantas frentes ao mesmo tempo limitando então as possibilidades de simbolização do psiquismo Constituise dessa maneira um círculo vicioso pois a limitação das possibilidades psíquicas de simbolização provoca em contrapartida uma diminuição efetiva na possibilidade de antecipação dos acontecimentos Enfim novos acontecimentos traumáticos se perfilam no horizonte do sujeito que fica cada vez mais restrito nas suas possibilidades de antecipação e regulação dos acontecimentos Ao lado disso depreendese como o pânico se inscreve diretamente nesse contexto na medida em que a subjetividade fica impotente em face dos acontecimentos irruptivos Assim a subjetividade é tomada pelo sentimento de horror O que se impõe aqui é o fantasma da iminência da morte já que incapacitado de agir o eu entra em estado de suspensão pois como instância psíquica não pode mais regular as relações entre o corpo e o mundo O estresse inscrevese nesse mesmo contexto caracterizado pelo colapso do psiquismo A totalidade desse processo incide nas formas de subjetivação que seria assim virada de pontacabeça subvertendo inteiramente a economia psíquica Devese indicar tudo isso agora nos seus diferentes e diversos níveis isto é nas suas múltiplas complexidades Antes de mais nada nessa cena catastrófica a autoestima se dissolve A desqualificação e a desvalorização do sujeito em relação a si mesmo se incrementa de maneira vertiginosa acompanhando as afetações com as sensações de abismo e de vertigem que passam a possuir inteiramente o sujeito O sentimento de segurança psíquica isto é de que o eu pode dar conta das relações entre o corpo e o mundo se esvazia de maneira flagrante O eu e o psiquismo perdem efetivamente a sua potência É a potencialidade de ser que é assim atingida no seu âmago mas que se manifesta inicialmente pela impossibilidade de fazer e de agir No entanto é a certeza de ser na sua totalidade que é atingida na sua potência esvaziando então o sujeito II A despossessão de si Desta perspectiva o terror de se perder apoderase do eu que se agarra a si mesmo como pode para não se desprender definitivamente O fantasma da perda de si se coloca em cena com toda a eloquência possível A despossessão de si se anuncia assim como uma problemática crucial no malestar contemporâneo Da corporificação passando pelas desregulações da ação e atingindo a suspensão do eu a despossessão de si se apresenta sob diferentes figuras e se evidencia por diversos signos Entretanto a variabilidade destes e daquelas não deve silenciar e nos fazer esquecer da invariância que atravessa a despossessão No que concerne especificamente ao registro das intensidades a despossessão de si se apresenta inicialmente como distimia O discurso psiquiátrico se refere à distimia como variações súbitas do humor nas quais o sujeito oscila rapidamente entre os polos da exaltação e da apatia sem que se possa determinar especificamente as razões e os motivos de suas oscilações A exaltação está frequentemente associada à irritabilidade e a explosões repentinas de raiva pelo indivíduo que procura sempre racionalizar suas reações por algum motivo contextual e situacional Porém suas reações ultrapassam em muito a motivação aludida pela desproporção existente entre aquilo que presumivelmente desencadeia a ação e a reação propriamente dita Em contrapartida indica um esvaziamento radical na possibilidade de resposta do sujeito De qualquer maneira a distimia tem se incrementado bastante como signo de perturbação das intensidades na contemporaneidade Indica além disso uma evidente modalidade de despossessão subjetiva pois o sujeito não consegue dar conta de suas variações de humor que oscilam numa gama múltipla de matizações Contudo não resta dúvida de que a depressão é a modalidade mais importante em que a despossessão de si se apresenta na atualidade As distimias como formas de alteração de humor são frequentemente articuladas no discurso psiquiátrico seja à mania seja à depressão signo insofismável que seria do distúrbio bipolar antigamente denominado psicose maníacodepressiva De qualquer maneira a despossessão de si atingiria na depressão o seu nível mais patente e ostensivo sendo a experiêncialimite em que aquela se processa na atualidade Podese afirmar que as depressões se transformaram num dos males maiores da atualidade na medida em que evidenciam as tormentas da despossessão de si no seu limite máximo Falase de depressão hoje como nunca se falou antes ao lado das toxicomanias e do pânico A Organização Mundial da Saúde coloca a depressão nas suas várias formas e manifestações como a segunda enfermidade médica mais frequente na atualidade A previsão é de que num futuro próximo aumentem mais ainda suas taxas epidemiológicas de incidência e de prevalência Esse é enfim o quadro referencial de base para que se aquilate devidamente a extensão do processo que está aqui em causa Porém se as depressões de hoje têm algumas das marcas apresentadas no passado outras são evidentemente novas caracterizadas por signos nunca mencionados antes Tais signos eram inscritos em outras formações psicopatológicas Ou então não tinham qualquer valor diagnóstico e patognomônico sendo considerados parte da normalidade Isso indica que se expandiu bastante o campo da existência do que se nomeia depressão hoje em relação ao passado sendo este processo a resultante da psiquiatrização do social e da correlata utilização massiva dos psicofármacos legitimados pelas neurociências As bordas do processo de normalização psiquiátrica romperam as fronteiras anteriormente traçadas no espaço social produzindo rupturas fundamentais A expansão do campo clínico das depressões é uma das resultantes disso A culpa era um dos sintomas maiores que se destacavam no quadro clínico da melancolia Assim sob a forma de autoacusações bastante pesadas sobre si mesmo o melancólico se flagelava de maneira ostensiva e violenta num processo marcado pela evidente crueldade Por isso mesmo o discurso psicopatológico dava a isso o devido destaque no que foi seguido de maneira mais sutil e refinada pelas leituras metapsicológicas advindas do discurso psicanalítico Podese dizer que a culpa foi indiretamente destacada no discurso psicopatológico de Kraepelin4 que descreveu inicialmente a melancolia no quadro da psicose maníaco depressiva e que foi retomada posteriormente por Abraham5 e por Freud6 com bastante engenhosidade interpretativa Entretanto no que concerne à depressão hoje não é a culpa que se encontra inscrita na cena principal das narrativas psicopatológica e psicanalítica mas o vazio7 É esse o signo por excelência da depressão na contemporaneidade As pessoas se queixam cada vez mais que estão vazias que não têm nada dentro de si isto é que perderam uma certa vitalidade e o envolvimento com as coisas e as pessoas Com efeito para tais pessoas sua existência e o mundo perderam absolutamente o sentido não tendo pois mais qualquer razão para existir É a potência de ser que se esvaiu secando quase definitivamente a gana pela vida Enfim é a impotência e a apatia que se impõem como resultantes disso III Desencantamento fadiga e corrosão de si Pareceme que em decorrência disso as pessoas foram em busca das drogas de maneira indiscriminada procurando algo que pudesse provocar preenchimento e excitação diante da experiência radical e limite da despossessão de si Seria necessário assim que novas sensações prazerosas fossem produzidas que pudessem dar um alento e um colorido existencial a uma forma de ser que se tornou francamente descolorida e na melhor das hipóteses cinzenta Foi nesse contexto que a cultura das drogas encontrou a sua condição concreta de possibilidades para oferecer alento a essas formas desérticas de existência É claro que o que as drogas oferecem é apenas uma experiência ilusória provisória e fugidia de curta duração pois o vazio se repõe e é relançado no campo do psiquismo Porém diante do vazio cravado na ordem da existência o sujeito insiste na cultura das drogas quando não se inscreve no circuito da psiquiatrização que se expande neste canteiro de obras promissor e mortífero da experiência do vazio na contemporaneidade É enraizado nesse vazio que a cultura das drogas se desenvolve tanto as legitimadas pela medicina e pela psiquiatria quanto as ilegais e ilegítimas disseminadas pelo narcotráfico Foi por esse viés que se constituiu a figura típica da cultura de drogas na contemporaneidade qual seja a de Dionísio desencantado8 Este é o personagem mítico atual que vive na eloquência do vazio como contrapartida crucial ao mundo desencantado9 da contemporaneidade Nesse com efeito os deuses não mais nos protegem e nos inscrevemos num mundo permeado totalmente pelos discursos da ciência e do consumo de mercadorias Tudo isso nos dá algumas pistas importantes para podermos interpretar devidamente os signos evidenciados pela eloquência gritante e desesperada desse vazio Ele pode ser articulado diretamente com o violento processo do desmapeamento do mercado de trabalho produzido pela mundialização que produz nas subjetividades aquilo que Sennett denominou corrosão do caráter signo presente de maneira eloquente na sociedade pósmoderna Obrigados a uma flexibilização ao extremo da forma de ser de si próprios para se adaptarem às flutuações do mercado de trabalho os indivíduos perdem sua espinha dorsal isto é o caráter que como invariante deveria fornecerlhes uma potência de ser e de agir na existência de forma a se direcionarem no mundo10 É nesse turbilhão e vertigem provocados pela luta desesperada pela vida que as pessoas perdem seu fio de prumo esvaziandose e se despotencializando Enfim o vazio e a despossessão de si deixam de ser assim tão enigmáticos como poderiam parecer para um olhar ingênuo sobre a atualidade Nesse contexto o sujeito também começa a se esgotar de maneira trágica se esvaindo de seu desejo de ser de viver e de agir Sua potência se perde obviamente assim como suas certezas Se o caráter como invariante que é da subjetividade se dilui e mesmo desaparece o sujeito não possui mais qualquer projeto de existência Deve apenas se adaptar às oscilações e variações do mercado de trabalho procurando apenas sua sobrevivência Com isso acaba por ser tragado pela fadiga de si mesmo tal como Ehrenberg procurou interpretar a disseminação da depressão na contemporaneidade11 Seria esta fadiga de si mesmo uma outra figura crucial para se falar do vazio e da despossessão de si na contemporaneidade Podese depreender facilmente disso tudo como a despossessão de si é o processo fundamental na produção do sentimento de vazio que como vazio do e no existir é a marca paradigmática que se encontra presente nas depressões contemporâneas Evidentemente o vazio é uma figura de retórica que remete à categoria do espaço Poderseia mesmo dizer que o vazio é o espaço em negativo pois não contém mais qualquer figura no seu interior Porém como potência em negativo da espacialidade o vazio é ainda o espaço contraído e condensado num ponto evanescente que provoca vertigens e lança o sujeito inapelavelmente nas bordas da sensação de abismo Notas 1 S Freud Inhibitiom symptôme et angoisse 2 S Freud Audelà du principe de plaisir In S Freud Essais de psychanalyse 3 Ibidem 4 E Kraepelin Introduction à la psychiatrie clinique 5 K Abraham Préliminaires à linvestigation et au traitement psychanalytique de la folie maniaco depressive et des états voisins 1912 In K Abraham Rêve et mythe 6 S Freud Deuil et melancolie In S Freud Métapsychologie 7 J B Pontalis org Nouvelle Revue de Psychanalyse Figures du vide n 11 8 J Birman Dionísio desencantado In J Birman Malestar na atualidade 9 M Weber Léthique protestante et lesprit du capitalisme M Weber Sociologie et religions 10 R Sennett A corrosão do caráter 11 A Ehrenberg La fatigue dêtre soi CAPÍTULO 8 Pensamento e linguagem em negativo Como afirmo desde o início deste percurso algumas ausências significativas se destacam na descrição do malestar na atualidade na medida em que a ênfase da descrição tem recaído nos registros do corpo da ação e das intensidades Refirome aos registros do pensamento e da linguagem Estes estão ausentes nas descrições do malestar contemporâneo tanto no discurso psiquiátrico quanto no psicanalítico o que não deixa de ser surpreendente visto que são registros nobres do psiquismo A questão fundamental que se coloca aqui é a razão de tal ausência e dessa quase inexistência Para se indagar sobre isso é preciso situar o que está em pauta I Derrocada do pensamento Falarei aqui sobre a inversão no psíquico entre o registro do pensamento por um lado e os registros do corpo da ação e das intensidades por outro Digo inversão porque na Idade clássica1 e na psicologia do século XIX2 numa tradição inaugurada por Descartes3 o pensamento definia o ser do homem Pelo cogito cartesiano o pensamento era a condição de existência para o sujeito de maneira que para ser e existir antes de mais nada seria necessário pensar No entanto a psicologia moderna se construiu mediante uma operação teórica decisiva pela qual se realizou a limitação do lugar destacado e até então oferecido ao registro do pensamento4 Nesse contexto a imaginação foi positivada visto que tinha um aspecto negativo na psicologia da Idade Clássica exatamente porque desviava a razão do caminho reto em direção ao conhecimento Era o ato de conhecer enquanto tal que era valorizado na psicologia clássica5 Daí porque tudo aquilo que propiciasse a produção e a reprodução do conhecimento era valorizado Em contrapartida tudo que o impossibilitasse era devidamente desvalorizado Se as faculdades sensoriais a memória o entendimento e a razão eram destacados a imaginação era negativamente avaliada Isso porque se as primeiras podiam fundamentar o processo de produção do conhecimento a segunda desviava a razão desta finalidade maior6 Esse mapeamento eminentemente cognitivo das faculdades anímicas realizado pela psicologia da Idade Clássica foi a contrapartida no discurso filosófico da emergência histórica das Revoluções Científicas ocorridas nos séculos XVII e XVIII7 Foi o imperativo teórico e ético para a produção dos discursos científicos que exigiu em contrapartida uma reflexão teórica acurada do ato de conhecer que foi então realizada pelo discurso filosófico A psicologia da Idade Clássica deu corpo e fundamento a essa preocupação e imperativo cruciais No entanto no fim do século XVIII e início do século XIX começou um processo teórico e ético decisivo que deu positividade à imaginação Essa foi então transformada numa encruzilhada crucial para que se pudesse melhor compreender o pensamento A filosofia kantiana principalmente com a Crítica da razão pura8 e a Crítica do juízo9 foi a condição histórica para a positivação da imaginação na filosofia moderna Heidegger deu a isso o devido destaque na leitura que empreendeu da filosofia kantiana em Kant e o problema da metafísica10 Isso porque a retomada e a positivação da imaginação implicou a produção de uma fenda crucial na longa tradição metafísica que possibilitou que a problemática do ser pudesse então ser enunciada Assim com a posição conferida aos esquemas da imaginação inscritos entre o registro sensorial e o do entendimento a imaginação passou a ocupar um lugar fundamental na produção do conhecimento11 Não existiriam portanto os enunciados do entendimento sem que a imaginação realizasse a ordenação prévia daquilo que fosse proveniente do registro da sensorialidade Além disso na Crítica do juízo Kant conferiu à imaginação uma posição fundamental na produção da experiência estética12 É claro que a positivação conferida à imaginação trouxe como consequência um deslocamento da problemática da filosofia do registro do conhecimento para os registros da ética da política e da estética As transformações sociais radicais ocorridas com o advento da Revolução Francesa viraram a cena do mundo de pontacabeça de maneira que o que estava então em pauta não se restringia mais ao campo do conhecimento Foucault nos fala que a problemática da finitude humana se colocou justamente nesse contexto histórico valorando a posição crucial ocupada pela filosofia kantiana nesta passagem13 Constituiuse então a episteme centrada na história que deixou a episteme centrada na representação como algo da ordem do passado No âmago da finitude humana a imaginação passou a ocupar uma posição estratégica14 Em decorrência disso seria fundamental delinear a dimensão afetiva do psiquismo para que se pudesse circunscrever as figuras do pensamento Assim seria pela mediação da imaginação que a afetividade incidiria sobre o pensamento e a vontade Esses passariam a ser imantados por aqueles nas suas operações O pensamento enfim perdeu a autonomia absoluta que desfrutava na Idade Clássica ficando agora numa relação de dependência dos registros da imaginação e da afetividade A psicanálise ocupou uma posição crucial nessa transformação epistemológica constituindo uma nova leitura do psiquismo Ao atribuir à pulsão15 ao inconsciente16 e ao fantasma17 um lugar fundamental no psiquismo o discurso freudiano colocou os registros do pensamento e da vontade subsumidos a esses outros registros psíquicos Promoveu assim o descentramento do sujeito dos registros do eu e da consciência de maneira a renovar a crítica ao livrearbítrio da razão e do pensamento O cogito cartesiano enfim foi desalojado da sua posição primordial18 Não foi apenas a psicanálise que realizou tal transformação epistemológica é claro A psicologia moderna foi totalmente refundada retirando a autonomia absoluta conferida ao pensamento e a onipotência que se conferia à vontade Para me referir a outros discursos é preciso evocar aqui que as psicologias existencial e fenomenológica realizaram o mesmo movimento teórico As contribuições de Sartre para a psicologia centraramse nessas problemáticas de maneira que os registros da imaginação19 e do afeto20 passaram a ser destacados Da mesma forma as contribuições de MerleauPonty se fizeram retomando o registro da percepção para reconstruir a psicologia em outros fundamentos e criticar o lugar crucial conferido até então ao entendimento21 A investigação de MerleauPonty caminhou enfim para a construção de uma outra leitura para a estrutura do comportamento22 Considerando esse percurso teórico no entanto não se pode depreender disso que o pensamento tenha perdido sua importância na modernidade Afirmar isso seria um contrassenso O que se formulou na modernidade foi um quadro bem mais complexo no qual o pensamento foi inscrito retirando dos registros da razão e do entendimento a posição onipotente que ocupavam anteriormente no discurso filosófico Não obstante sua inscrição num campo psíquico bem mais complexo que o existente na Idade Clássica o pensamento continuava a ocupar uma posição decisiva na descrição da subjetividade Assim seria sempre pela mediação do pensamento que o sujeito poderia não apenas colocar e levantar questões delineando então problemas mas também encontrar soluções que fossem efetivas Pensar seria então fundamental uma das marcas da condição humana Podemos enunciar que na passagem da Idade Clássica para a modernidade a razão foi certamente limitada em sua onipotência mas o pensamento imantado agora pela imaginação e pela afetividade era um registro cabal no psiquismo Este contudo na modernidade passou a ser marcado pela divisão e pela fragmentação pelas quais a conflitualidade constituía o seu ser O discurso freudiano indica isso tanto na sua primeira tópica inconsciente préconsciente e consciência23 quanto na segunda isso eu e supereu24 Da mesma forma nas duas teorias de pulsão pulsão sexual versus pulsão do eu25 e pulsão da vida versus pulsão de morte26 Freud se manteve sempre dualista reafirmando e insistindo com isso na exigência da conflitualidade no psiquismo Enfim o pensamento se inscrevia numa lógica da conflitualidade sem perder sua posição estratégica Desaparecem contudo as referências ao pensamento no malestar na atualidade Isso não quer dizer é claro que as teorias psicológicas e psicopatológicas contemporâneas tenham abolido o pensamento como função e instância psíquicas Porém sua suspensão se revela na descrição do campo clínico do malestar Isso evidencia algo fundamental e surpreendente na caracterização atual da subjetividade a suspensão do pensamento Se o malestar se apresenta nos registros do corpo da ação e das intensidades isso evidencia a anulação da ordem do pensamento Tudo se passa como se a incidência do excesso sobre tais registros do psiquismo produzisse um ataque e um curtocircuito no registro do pensamento que não pode assim funcionar devidamente O pensamento se paralisa pela própria impotência e pelo vazio que passa a ocupar o campo psíquico Além disso no malestar atual o modelo conflitual da subjetividade tal como foi delineado no discurso freudiano tende ao desaparecimento Isso porque teria no pensamento um polo ativo capaz de superar o malestar produzido pela própria conflitualidade Com isso as pessoas se queixam de que algo as incomoda no corpo e que são tomadas por intensidades que as esvaziam mas de maneira passiva e não implicada no que lhes acontece Tudo se passa como se o que lhes ocorresse fossem coisas estranhas a elas mesmas que não poderiam ter qualquer acesso ao que lhes acontece Por isso mesmo não levantam qualquer questão a respeito Nessa inexistência de indagação o registro do pensamento se evidencia na sua ausência e suspensão Em contrapartida esperam que o outro faça algo por elas e no lugar delas incapazes que são de saber e de fazer algo sobre si Quando consultam o psiquiatra o psicólogo e o psicanalista a única pergunta que fazem é reveladora desta condição de suspensão da possibilidade de pensar O que devo fazer Se nesta indagação se evidencia como o pensamento está anulado como possibilidade de resolver problemas e superar conflitos o que vem ao primeiro plano é algo que se inscreve no registro estrito da ação Enfim é o fazer que insiste reiterando o lugar do registro da ação na subjetividade contemporânea Assim a fragmentação psíquica foi tão incrementada hoje em decorrência do excesso intensivo que a conflitualidade como possibilidade simbólica não mais se sustenta Ao lado disso a imaginação se esmaece enquanto lugar psíquico para a indagação sobre o possível isto é daquilo que é ainda ausência no aqui e agora mas que poderia se tornar presença no futuro Nesse contexto o pensamento se suspende e os registros do corpo da ação e das intensidades passam a avolumarse no psiquismo impossibilitando as simbolizações II Retórica instrumental e suspensão da poiesis Disso decorrem diversas consequências na economia psíquica Antes de mais nada o empobrecimento da linguagem que marca de maneira indelével as subjetividades contemporâneas A linguagem perde o seu poder metafórico sendo permeada cada vez mais por imagens que se consubstanciam no corpo e na ação O discurso dos adolescentes é paradigmático disso na medida em que é perpassado todo o tempo não apenas por imagens mas também por imagens de ação Tudo se passa como se fosse impossível para eles sustentar algo no pensamento e falar sobre isso sem colocar entre parênteses o imperativo do agir Em decorrência disso a discursividade assume uma direção marcadamente horizontal sem os cortes que poderiam lançála na verticalidade Vale dizer a linguagem e o discurso assumem uma feição marcadamente metonímica e não mais metafórica27 Isso evidencia que o discurso percorre a sua rota se sustentando apenas num dos eixos da linguagem não articulando mais devidamente os eixos paradigmático e sintagmático A dominância da metonímia na ordem do discurso indica a presença de um desejo à deriva e sem cortes significativos capazes de relançálo e inscrevêlo no registro da metáfora Por isso mesmo o desejo tende à descarga e se evapora como ação imediata não se constituindo como polo conflitual e lugar de tensão como ocorria ainda na modernidade Tudo isso se passa com pessoas que têm um domínio razoável da língua e que foram bem escolarizadas Não obstante a linguagem perde seu poder simbólico de maneira marcante A ausência de cortes significativos na discursividade metonímica indica ainda a espacialidade da experiência que não pode ascender a uma sequência temporal na medida em que o desejo à deriva se evapora na pontualidade da descarga Seria esta ação precipitada e interrompida que impediria a constituição de uma temporalização da experiência entregue ao aqui e agora da experiência isto é ao instante evanescente Destaquemos um pouco mais os efeitos desse processo sobre a temporalidade Isso porque as mudanças nos registros do pensamento e da linguagem implicam a transformação daquela Com efeito tais registros estão articulados de maneira que cada um desses remete aos demais Assim podese melhor compreender agora a impossibilidade de antecipação dos acontecimentos nas subjetividades contemporâneas O excesso toma consistência assim como suas derivações e efeitos traumáticos porque a angústiasinal pressupõe a presença no psiquismo não apenas da riqueza simbólica mas também da temporalização Na fragilização desse o psiquismo fica restrito à espacialização Em decorrência disso a linguagem se transforma perdendo progressivamente suas marcas simbólicas e transmutandose em retórica instrumental Vale dizer a linguagem se esvazia na sua dimensão de poiesis Daí a pregnância assumida pelas imagens A linguagem instrumental passa a dominar a cena psíquica e não pode mais regular as intensidades e os excessos Poderseia dizer que essa transformação evidencia os efeitos e a incidência dos discursos da razão e das ciências sobre a linguagem e o discurso retirando desses suas dimensões simbólicas Adorno e Horkheimer nos sugerem isso na leitura que realizaram sobre o domínio do paradigma do Iluminismo na história da tradição ocidental que nos conduziu inapelavelmente ao empobrecimento simbólico como contrapartida do domínio da razão instrumental28 Marcuse em O homem unidimensional retoma essa leitura por um outro viés nos anos 1960 Destaca como a pregnância assumida pelos modelos lógico e lógicomatemático nos discursos científicos e na filosofia conduziu ao desenvolvimento dos discursos da filosofia analítica e da lógica simbólica na tradição anglosaxônica29 Em tudo isso se evidenciariam a configuração da unidimensionalidade na condição humana em curso de se constituir e a configuração das formas atuais do malestar na subjetividade contemporânea Notas 1 M Foucault Les mots et les choses Une archéologie des sciences humaines 2 G Canguilhem Questce que la psychologie In G Canguilhem Études dHistoire et de philosophie de la science J Lacan Audelà du principe de realité In J Lacan Écrits 3 R Descartes Méditations In Oeuvres et lettres de Descartes 4 J Lacan Audelà du principe de realité In J Lacan Écrits G Canguilhem Questce que la psychologie In G Canguilhem Études dHistoire et de Philosophie de la Science 5 Ibidem 6 Ibidem 7 A Koyré Du monde clos à lunivers infini A Koyré De la mystique à la science A Koyré Études dhistoire de la pensée scientifique 8 E Kant Critique de la raison pure 9 E Kant Critique de la faculté de juger 10 M Heidegger Kant et le problème de la métaphysique 11 E Kant Critique de la raison pure 12 E Kant Critique de la faculté de juger 13 M Foucault Les mots et les choses 14 Ibidem M Foucault Questce que les Lumières 1984 In M Foucault Dits et écrits vol IV 15 S Freud Pulsions et destins des pulsions In S Freud Métapsychologie 16 S Freud Linconscient In S Freud Metapsychologie 17 S Freud Trois essais sur la théorie de la sexualité 18 J Lacan Le stade du miroir comme formateur de la function du je In J Lacan Écrits 19 J P Sartre A imaginação J P Sartre Limaginaire 20 J P Sartre Esquisse dune théorie des émotions 21 M MerleauPonty Phenomenologie de la perception 22 M MerleauPonty La structure du comportement 23 S Freud Linconscient In S Freud Metapsychologie 24 S Freud Le moi et le ça In S Freud Essais de psychanalyse 25 S Freud Trois essais sur la théorie de la sexualité 26 S Freud Audelà du principe de plaisir In S Freud Essais de psychanalyse 27 J Lacan Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse Linstance de la lettre dans linconscient où la raison depuis Freud La chose freudienne 1956 In J Lacan Écrits 28 T W Adorno M Horkheimer La dialectique de la raison 29 H Marcuse Lhomme unidimensionnel CAPÍTULO 9 Do sofrimento à dor I Pontuações metodológicas Depois de todo esse percurso é preciso alinhavar agora a multiplicidade de enunciados que foram aqui formulados para dar conta das minhas indagações fundamentais De que maneira é possível costurar todos esses signos do malestar Por que o espaço foi se tornando francamente dominante a expensas do tempo no campo desse É claro que algumas interpretações parciais já foram empreendidas mas impõese agora uma leitura de conjunto que possa englobar as interpretações parciais realizadas Para definir devidamente as posições teórica e metodológica por mim assumidas é preciso dizer que todos esses signos podem ser interpretados de diferentes maneiras Em seguida é possível afirmar que tais interpretações não seriam excludentes mas poderiam conjugarse nas suas linhas de fuga Vale dizer tais interpretações seriam complementares na medida em que operariam em diferentes níveis de discursividade teórica e de escalas de grandeza Por isso mesmo prefiro insistir numa direção interpretativa mas que seja ampla o bastante para poder inscrever em seu campo outras leituras suplementares II Solipsismo e alteridade O malestar contemporâneo se caracteriza principalmente como dor e não como sofrimento Desde o começo deste percurso eu já vinha sugerindo esta hipótese de trabalho de forma indireta mas de maneira progressiva A transformação ocorrida no discurso onírico que se deslocou do registro da realização do desejo para o do trauma e do pesadelo já era uma alusão ostensiva a essa hipótese Ao lado disso a marca estritamente traumática do malestar na contemporaneidade indicava também a mesma leitura dessa transformação O que é preciso realizar agora no entanto é conferir maior consistência argumentativa a essa hipótese A subjetividade contemporânea não consegue mais transformar facilmente dor em sofrimento Estaria justamente aqui a marca específica pela qual a subjetividade metabolizava o malestar na modernidade de maneira que a dor se interiorizava pelo sofrimento e com ele No entanto a dor passou a ser o traço insofismável e inconfundível pelo qual o sujeito se confronta com o malestar hoje Os leitores podem ficar espantados com o que estou afirmando na medida em que não reconhecem qualquer diferença entre dor e sofrimento Com efeito no vocabulário cotidiano as pessoas costumam usar tais palavras como se fossem sinônimos como se não existisse qualquer diferença conceitual entre elas Porém é justamente isso que estou afirmando aqui O que quero dizer afinal de contas Qual a diferença para a subjetividade entre sentir dor e sofrer Além disso os leitores podem ficar ainda mais perplexos com a articulação da oposição já referida com os mundos da modernidade e da contemporaneidade Certamente poderiam argumentar que sentir dor e sofrer são modalidades de malestar que marcam a experiência humana desde sempre sendo pois formas ahistóricas de sentir Entretanto a interpretação que estou propondo aqui inscrevese numa outra tradição teórica na qual as marcas antropológicas da subjetividade são eminentemente históricas Não existiria portanto a natureza humana no sentido abstrato do termo que funcionaria como uma invariante ahistórica e que ficaria incólume aos valores engendrados ao longo da história das sociedades Assim foi dessa perspectiva antropológica que Mauss analisou a categoria do eu e sua relação com a da pessoa destacando devidamente suas transformações históricas1 Ao mesmo tempo enunciava para o discurso da psicologia científica que seria necessário realizar a leitura diferencial e antropológica de um conjunto de categorias psicológicas que eram apresentadas por aquele discurso como invariantes atemporais tais como corpo instinto emoção vontade percepção e intelecção2 Foi nessa mesma trilha teórica que se realizou também o trabalho de Dumont quando enunciou a transformação da categoria de indivíduo nas diferentes modalidades de sociedade holísticas e modernas formulando que apenas nessa o individualismo como valor efetivamente se constituiu3 De uma outra perspectiva teórica Foucault empreendeu as leituras arqueológica e genealógica de algumas categorias que até então eram consideradas como invariantes históricas tais como a loucura4 a enfermidade5 o crime6 e a sexualidade7 Destacou não apenas a complexidade inscrita no campo dessas diferentes problemáticas mas também a continuidade e a ruptura de sentido presente na constituição histórica destas problemáticas Dito isso podemos retomar a interpretação do malestar Contudo é preciso diferenciar devidamente dor e sofrimento Antes de mais nada é necessário reconhecer que a dor é uma experiência em que a subjetividade se fecha sobre si mesma não existindo qualquer lugar para o outro no horizonte do seu malestar Com efeito a dor é uma experiência eminentemente solipsista restringindose o indivíduo apenas a si mesmo não revelando qualquer dimensão alteritária A interlocução com o outro fica assim coartada na dor que se restringe ao murmúrio e ao lamento por mais intensa que seja a dor em questão Daí a passividade que sempre domina o indivíduo quando algo dói esperando que alguém tome uma atitude em seu lugar Se isso não ocorre a dor pode mortificar o corpo do indivíduo minando intensamente o registro do somático de forma a retirar e até esvaziar a potência do indivíduo Este se solapa e se desqualifica em sua autoestima Ou então a dor pode paradoxalmente fomentar a irritabilidade as compulsões e a violência formas paroxísticas e explosivas que são de descarga daquilo que dói Assim é preciso evocar que a dor é também uma maneira de se falar do ressentimento que perpassa hoje todos os humilhados e ofendidos disseminados pelos quatro quadrantes do planeta Imersa na dor do ressentimento portanto a subjetividade contemporânea se evidencia como essencialmente narcísica não se abrindo para o outro de quem em princípio desconfia e rivaliza Com isso não pode se lançar e fazer um apelo Porque pega mal precisar do outro pois isso revelaria as falhas e faltas do demandante Na cultura do narcisismo triunfante as insuficiências não podem jamais existir e ser exibidas já que essas desqualificam a subjetividade que deve ser antes de tudo autossuficiente Em contrapartida o sofrimento é uma experiência eminentemente alteritária O outro está sempre presente para o sujeito sofrente a quem este se dirige com o seu apelo Daí a presença da dimensão da alteridade que inscreve a interlocução no centro da experiência do sofrimento Em decorrência disso podese depreender que a categoria de espaço está para a dor da mesma forma que a de sofrimento está para o tempo No solipsismo da subjetividade na dor esta se espacializa sendo a dor uma materialização sensorial marcadamente espacial na qual corpo e imagem se amalgamam de maneira indissolúvel Em contrapartida no sofrimento o espaço se fende e do seu abismo a temporalidade tem forma e movimento lançando o sujeito para dentro e fora de si ao mesmo tempo Se pelo adentramento em si o sujeito se interioriza rompendo com a carcaça espacializada presente no registro do somático e se faz então corpo vibrátil e desejante ao se lançar para fora de si ele se dirige ao outro com o seu apelo A interlocução do sujeito com o outro evidencia uma experiência eminentemente temporal pela qual o discurso assume formas eminentemente simbólicas Depreendese disso que se o corpo a ação e as intensidades são os registros do malestar hoje isso é o correlato da condição solipsista da subjetividade coartada da interlocução com o mundo Este se restringe cada vez mais ao registro supostamente pragmático perdendo sua dimensão simbólica Daí por que a linguagem como poiesis se empobrece perdendo seu poder metafórico O desejo fica então à deriva nas cadeias metonímicas do discurso não sendo relançado mais pelas rupturas que são promovidas pela simbolização metaforizante A instrumentalização do corpo pela medicalização e pelo naturismo encontra aqui seu canteiro de obras na medida em que se inscreve assim quase que diretamente a matériaprima para a disseminação dos discursos sobre a saúde Podese compreender então como e por que a psicanálise se encontra agora num impasse e numa encruzilhada histórica pois pressupõe o modelo alteritário de subjetividade no qual os indivíduos sofrentes possam dirigir ao outro sua demanda de cuidados para poderem se inscrever na experiência da transferência Em contrapartida a psiquiatria biológica pode florescer já que com os psicofármacos pode realizar o curtocircuito do sofrimento e atender diretamente aos reclamos da dor sem qualquer mediação e apelo A animalidade dolorida pode então ser atendida sem ter que pedir nada no jardim das delícias escatológico que é promovido pela medicalização da dor Entretanto a experiência do sofrimento tendo a interiorização como seu correlato implica o desamparo do sujeito É essa a condição de possibilidade da subjetivação e da simbolização pois em ambas o apelo ao outro também se faz presente Se o discurso freudiano atribuiu tanta importância ao masoquismo no fim do seu percurso teórico8 ao ponto de esse ser uma forma básica do tormento que atravessaria as diferentes estruturas psicopatológicas neurose psicose e perversão isso se deve ao fato de que o masoquismo seria a forma de subjetivação pela qual a dor é transformada em sofrimento Vale dizer seria pela posição masoquista originária cadenciada pelo desamparo que o sujeito faria um apelo ao outro para transformar efetivamente a dor em sofrimento Em contrapartida na experiência da dor o sujeito sem abertura para o outro fica entregue ao desolamento não tendo qualquer possibilidade de realizar uma subjetivação possível para aquela experiência Entregue ao seu solipsismo o sujeito definha na sua autossuficiência que o paralisa quase que completamente Seriam essas a posição e a condição do sujeito na contemporaneidade ficando à deriva nos fluxos e refluxos dos novos códigos de existência forjados pela mundialização Notas 1 M Mauss Une catégorie de lesprit humain la notion de personne celle de moi In M Mauss Sociologie et anthropologie 2 M Mauss Rapports réels et pratiques de la psychologie et de la sociologie op cit In M Mauss op cit p 280310 3 L Dumont Essais sur lindividualisme Une perspective anthropologique sur lideologie moderne 4 M Foucault Histoire de la folie à lâge classique 5 M Foucault Naissance de la clinique une archéologie du regard medical 6 M Foucault Surveiller et punir 7 M Foucault La volonté de savoir M Foucault Lusage des plaisirs M Foucault Le souci de soi 8 S Freud Le problème économique du masochisme In S Freud Névrose psychose perversion CAPÍTULO 10 Mundo e negacionismo na vida nua Em decorrência do conjunto de marcas destacadas que caracterizam a atualidade alguns autores afirmam que assistimos hoje ao retorno da barbárie no contexto agora triunfante da sociedade industrial e da mundialização Retomam assim o mesmo significante de que se valeram Adorno e Horkheimer para caracterizar os efeitos do domínio da razão instrumental na tradição ocidental no contexto do pósguerra1 Esse mesmo significante já tinha sido utilizado anteriormente por Benjamin para qualificar a configuração eminentemente contraditória do processo da modernidade no ensaio Sobre o conceito da história2 pela qual a ideia de progresso implicava a presença paradoxal da barbárie Nossos contemporâneos formulam assim o retorno à barbárie com a mesma radicalidade que a tragicidade da situação atual exige tal como ocorreu com Adorno Horkheimer e Benjamin Assim numa leitura criativa do conceito foucaultiano de biopoder e de biohistória Agamben indica como esses são os agenciadores e os operadores para a promoção da vida nua Zoe que apaga e silencia progressivamente as marcas da vida qualificada Bios3 na contemporaneidade A biologização da vida seria a resultante maior disso Dessa maneira a medicalização da vida produz consequências imprevisíveis na sociedade contemporânea ao autorizar a legitimidade de uma biologia cada vez mais sem limites Os laboratórios eugênicos promovidos pelo nazismo correlatos da experiência concentracionária foram as condições históricas de possibilidade desta viragem crucial na nossa tradição4 Outros teóricos na linhagem filosófica de Heidegger enunciam que existimos hoje num imundo e não mais num mundo pelas impossibilidades em que nos encontramos de efetivamente produzir sentido Nancy formulou isso de maneira literal e peremptória numa obra recente5 e Mattei sugere a mesma coisa de maneira indireta6 Não obstante suas múltiplas diferenças teóricas para ambos os autores a problemática da mundialização seria crucial na transformação que está em curso Esta com efeito promoveu desmapeamentos ostensivos do mundo não nos oferecendo até agora pelo menos outras cartografias de sentido para nos orientar num planeta sem fronteiras7 De qualquer forma se a subjetividade contemporânea não consegue transformar mais dor em sofrimento com facilidade isso se deve à impossibilidade de interlocução pois os códigos desta foram também totalmente transformados Com isso o sujeito é lançado impiedosamente na vida nua e no mundo sem sentido de maneira a se tornar impotente nesse cenário e vazio na sua interioridade Destituído do impulso para a afirmação da vida chafurda assim no abismo da depressão Isso porque o gesto da interlocução pressupõe a existência de um outro a quem se possa fazer um apelo e ser então o suporte efetivo para a produção do sentido Contudo numa cultura narcísica como a nossa permeada pela moral do individualismo como valor levada ao seu exagero cada qual trata apenas da sua vida e considera o outro como o inimigo e o rival seja isso real seja potencial A desconfiança se dissemina em todos os interstícios do tecido social constituindo uma atmosfera opressiva do salvese quem puder A solidariedade como valor que amalgamava ainda os laços sociais na modernidade desapareceu inteiramente do cenário na contemporaneidade O vazio da subjetividade atual é o correlato do mundo que perdeu o sentido pois as regras e os códigos anteriormente estabelecidos para a promoção da sociabilidade foram subvertidos Porém nos registros sociológico e político podese caracterizar esse solipsismo e essa perda de alteridade pela quebra da mediação no espaço social Seria apenas pela presença neste de mediadores seguros e consistentes que fossem insofismáveis em sua autoridade simbólica que a linguagem poderia fluir como discurso Se a mediação implica institucionalidade por um lado seria a mediação também a condição de possibilidade da discursividade por outro Isso porque o discurso pressupõe a operação da negatividade como nos disse Lacan8 retomando aqui Hegel9 Portanto sem a presença da mediação no espaço social a subjetividade na contemporaneidade se restringe à pura negação abstrata e vazia afirmandose apenas pelo murmúrio do negacionismo que é ao mesmo tempo impotente e melancólico Essa postura pode ser devidamente figurada pelo personagem de Bartleby do famoso conto de Melville10 fartamente comentado por Deleuze11 que sempre preferia dizer não diante da impossibilidade de realizar qualquer ato e gesto efetivo de afirmação da vida Assim de tanto dizer eu preferiria não tal personagem acaba finalmente por ser preso e parar de comer morrendo de fome na prisão por insistir na sua estranha forma de se enunciar Alguns psicanalistas como Lambotte se referem a Bartleby como um personagem que desconhece a presença do desejo do Outro desde a sua origem12 Outros como Hassoun13 afirmam que aquele personagem cortaria toda a demanda vinda do outro Para ambos contudo o que estaria em pauta seria um processo de melancolização radical do sujeito Em contrapartida para Negri e Hardt a incondicionalidade da recusa de Bartleby se inscreveria numa longa tradição de recusa ao trabalho no capitalismo14 Para Deleuze Bartleby provocaria um estrago nas teses tradicionais da pragmática da linguagem pelas quais os enunciados se dividiriam entre as ações performativas autorreferenciais e constatativas referidas a outras palavras ou coisas15 Enfim para Deleuze Bartleby não seria o doente mas o médico de uma América doente o medicareman o novo Cristo ou o irmão de todos nós16 Porém seja como se queira interpretar tal personagem não resta qualquer dúvida de que Bartleby é uma outra versão agora contemporânea e radicalizada de o homem sem qualidades de Musil17 Esse romance publicado nos anos 1920 na mesma Viena de Freud e Schinitzler esboça algumas das coordenadas do sujeito sem qualidade paradigmático do mal estar na atualidade Em decorrência de todos esses impasses e encruzilhadas ficamos enfim amesquinhados como sujeitos mas nos exercitando nas ginásticas e massagens exóticas atribuindo valores mágicos às dietas ou quando não francamente intoxicados por drogas incapazes de inventar mediações num mundo dolorosamente medicalizado e desencantado Notas 1 T W Adorno M Horkheimer Dialectique de la raison 2 W Benjamin Sur le concept dhistoire 1940 In W Benjamín Écrits français 3 G Agamben Homo Sacer Le pouvoir souverain et la vie nue 4 Ibidem 5 J L Nancy La création du monde ou la mondialisation 6 J F Mattei A barbárie interior 7 Les temps modernes nº 610 Le théatre de la mundialisation acteurs victimes laissezpour compte Z Bauman Globalisation The Human Consequences 8 J Lacan Fonction et champ de la parole et du langage em psychanalyse In J Lacan Écrits J Lacan Les écrits techniques de Freud Le Séminaire Vol I J Lacan Introduction au commentaire de Jean Hyppolite sur la Verneinung de Freud Réponse au commentaire de Jean Hyppolite sur la Verneinung de Freud In J Lacan Écrits p 369399 9 G W F Hegel La phénomenologie de lesprit 1807 Volumes I e II 10 H Malville Bartleby and Benito Cereno 11 G Deleuze Bartleby ou la formule In G Deleuze Critique et clinique 12 M C Lambotte Le discours melancolique De la phénomenologie à la metapsychologie 13 J Hassoun La cruauté melancolique 14 A Negri M Hardt Empire 15 G Deleuze Bartleby ou la formule In G Deleuze Critique et clinique 16 Ibidem 17 R Musil O homem sem qualidades Posfácio à 4ª edição O sujeito do exílio e a heterotopia Com esta nova publicação em 4ª edição O sujeito na contemporaneidade se evidencia mais ainda na sua atualidade no horizonte delineado pelas novas coordenadas presentes no espaço social de hoje Com efeito o estado de coisas que foi figurado e descrito na edição inicial atingiu novos patamares e limiares inesperados de emergência de forma que as condições de então assumiram as dimensões de verdadeira caricatura Em decorrência disso as linhas de força em pauta no espaço social daquela época foram enfatizadas e o colorido do mundo se forjou de forma ainda mais sombria Assim se em 2013 data da 1ª edição deste livro o espaço social procurava se reerguer de maneira desesperada da crise global do neoliberalismo ocorrida em 2008 restaurando as prerrogativas e os imperativos do sistema financeiro internacional pela intervenção do Estado para salvar a sociedade neoliberal do seu colapso iminente em 2020 em contrapartida o sistema foi restaurado em pleno vapor mas o preço a pagar é certamente gigantesco e catastrófico Portanto a ordem neoliberal é marcada por paradoxos flagrantes pois se demanda o Estado mínimo para que o mercado possa se disseminar e se dilatar ao infinito no momento crucial da crise em contrapartida o Estado intervencionista foi restaurado em toda a sua plenitude para impedir a desordem do sistema à custa dos cidadãos que não usufruem das benesses do festim da ordem neoliberal Quais foram as consequências e os efeitos dessa restauração Antes de tudo a desigualdade social em escala global aumentou ainda mais vertiginosamente em relação ao que ocorria outrora A crise dos refugiados é o seu sintoma mais flagrante pois a população de exilados se incrementou no campo internacional Com efeito as populações miseráveis oriundas da África do Oriente médio da Ásia e da América Latina buscaram refúgio nos territórios europeu e norteamericano diante da impossibilidade de viver e de existir com dignidade no seu país de origem Nesse contexto o desenraizamento atingiu níveis assustadores já que o sujeito em exílio passou a existir numa mans land caracterizada pela ausência de fronteiras e de contornos estabelecidos Portanto o sujeito em exílio se inscreve numa heterotopia radical não podendo contar assim com qualquer possibilidade de reconhecimento perdendo não apenas a cidadania que mantinha parcialmente em seu país de nascimento mas também as práticas linguísticas culinárias e religiosas que regulavam outrora o seu modo de existir e o seu mundo Enfim o desfazer de si do sujeito assume contornos trágicos Em decorrência disso a ausência de projeto de futuro caracteriza efetivamente essas populações de humilhados e ofendidos na medida em que o sujeito de exílio não pode contar com qualquer instância social a quem possa demandar algo entregue que está ao deusdará Portanto nessa perda da temporalidade da experiência do sujeito que implica a ausência do futuro a existência se restringe ao eterno presente Com isso a experiência do sujeito se limita à dimensão do espaço colado que fica aos momentos do presente Enfim com essa perda vertiginosa da temporalidade é também a alteridade que fica silenciada para o sujeito de forma que em consequência é o desejo que se abole para o sujeito no exílio Nessa perspectiva o que está em pauta para o sujeito em exílio não é o que Freud denominou de desamparo como condição de possibilidade do desejo e da alteridade para o sujeito1 mas o desalento na medida em que inscrito na terra de ninguém o sujeito não disporia mais de qualquer instância de apelo Com efeito essa seria a forma de subjetivação2 que delineia o sujeito na contemporaneidade e o sujeito do exílio como sua derivação maior na atualidade Esse desalento se evidencia assim pela dor lancinante uma vez que pela ausência do desejo do tempo e da alteridade a subjetivação em questão é inconsistente de modo que o sofrimento não poderia então ser promovido pelo sujeito Com isso o sujeito se esvai de maneira hemorrágica de forma radical Portanto as categorias que foram colocadas em destaque em O sujeito na contemporaneidade o deslocamento do registro do tempo para o espaço do sofrimento para a dor e do desamparo para o desalento se intensificaram bastante nas coordenadas sociais e políticas da atualidade o que se evidencia radicalmente na condição do sujeito em exílio Em consequência disso o malestar na contemporaneidade atinge dimensões apocalípticas no contexto de novo exodus que se evidencia na atualidade Se a vergonha e a culpa regulam o sujeito em desalento a melancolia e o trauma insistentes são ainda os signos mais eloquentes do dito malestar na contemporaneidade Com efeito a hemorragia do sujeito a que aludi anteriormente evidencia a presença permanente das perdas3 que acossam o sujeito no seu nomadismo Nesse contexto o narcisismo das pequenas diferenças que foi enunciado por Freud como conceito em 1921 no ensaio Psicologia das massas e análise do eu para descrever a condição do sujeito e dos laços sociais após o fim da Primeira Guerra Mundial se mostra ser assim de grande atualidade4 Com efeito na impossibilidade de reconhecer a diferença nas escalas individual e coletiva o sujeito na modernidade avançada e na contemporaneidade transforma o diferente em adversário e inimigo de forma a poder assim ser eliminado de maneira direta e frontal Em decorrência disso o genocídio se normaliza e se perfila como estratégia política do Estado contemporâneo maneira pela qual o Leviatã contemporâneo procura lidar com os humilhados e ofendidos em ascensão vertiginosa que não encontram mais lugar na ordem neoliberal O sujeito do exílio inscrito numa condição radical marcada pela heterotopia é a formalimite e a derivação que assume o sujeito da contemporaneidade nas condições delineadas pelo malestar hoje Com efeito as formas de experiência psíquica que foram destacadas para caracterizar o sujeito na contemporaneidade a saber a espacialização a dor e o desalento se encontram assim intensificados nas condições sociais e políticas de existência do sujeito em exílio Enfim ontem como hoje é a transformação radical dessas linhas de força com a constituição ativa das linhas de fuga nesse cenário catastrófico que precisa ser promovida como uma aposta para sairmos dos tempos sombrios que estamos vivendo Joel Birman Notas 1 Freud S Esquisses dune psychologie scientifique 1895 In Freud S La Naissance de la psychanalyse Paris PUF 1970 2 Foucault M La Volonté de savoir Paris Gallimard 1976 3 Freud S Deuil et Melancolie 1917 In Freud S Métapsychologie Paris Gallimard 1968 4 Freud S Psychologie des Foules et analyse du moi 1921 In Freud S Essais de Psychanalyse Paris Payot 1981 Bibliografia citada ABRAHAM K Préliminaires à linvestigation et au traitement psychanalytique de la folie maniaco depressive et des états voisins 1912 In Rêve et Mythe Oeuvres Complètes Vol I Paris Payot 1973 Actes du Colloque Lindividu Hypermoderne Vols 1 e 2 Paris ESCPEAP Laboratoire de Changement SocialUniversité Paris 7 setembro de 2003 ADORNO T W HORKHEIMER M Dialectique de la raison Paris Gallimard 1994 ALEXANDER F FRENCH T Studies in psychossomatic medicine Nova York Ronald Press 1948 ALEXANDER S Le surrealisme et le rêve Paris Gallimard 1974 BALANDIER G Le grand dérangement Paris PUF 2005 BAUDRILLARD J La société de consommation Paris Denöel 1970 BAUDRILLARD J Amérique Paris Grasset 1986 BAUMAN Z Globalization The Human Consequences Cambridge Oxford Polity Press Blackwell Publishers 1998 BAUMAN Z O malestar na pósmodernidade Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 BECK U Risk society towards a new modernity Londres Stage Publications 1992 BEHAR H CARASSON M Le surréalisme Paris Libraire Générale Française 1992 BENJAMIN W Sur le concept dhistoire 1940 In Écrits français Paris Gallimard 1991 BENVENISTE E Catégories de pensée et catégories de langue 1958 In Problèmes de linguistique générale 1 Paris Gallimard 1966 BENVENISTE E Civilisation Contribution à lhistoire du mot 1954 In Problèmes de linguistique générale1 Paris Gallimard 1966 BENVENISTE W Structure des relations de personne dans le verbe 1946 In Problèmes de linguistique générale Paris Gallimard 1966 BERGSON H Levolution créatrice In Oeuvres Paris PUF 1959 BERGSON H Matière et Mémoire Essais sur la relation du corps à lesprit In Oeuvres Paris PUF 1959 BIRMAN J Enfermidade e loucura Sobre a medicina das interrelações Rio de Janeiro Campus 1980 BIRMAN J Por uma estilística da existência São Paulo Editora 34 1996 BIRMAN J Estilo e modernidade em psicanálise São Paulo Editora 34 1997 BIRMAN J Le corp et laffect en psychanalyse In Che Vuoi Revue de Psychanalyse nº 7 Paris LHarmattan 1997 BIRMAN J La Psychanalyse et la critique de la modernité In Boukobza C Où en est la psychanalyse Psychanalyse et figures de la modernité Paris Érès 2000 BIRMAN J Dionísio desencantado In Malestar na atualidade Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2005 5ª ed BIRMAN J Que droga In Malestar na atualidade Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2005 5ª edição BIRMAN J Arquivos do malestar e da resistência Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2006 BIRMAN J Arqueologia da passagem ao ato In Bastos A Psicanalisar hoje Rio de Janeiro Contra Capa 2007 BRETON A Manifestes du surréalisme Paris Gallimard 1985 CANGUILHEM G Questce que la psychologie In Études dhistoire et de philosophie de la science Paris Vrin 1969 DEBORD G La société du spectacle Paris Gallimard 1992 DELEUZE G Bartleby ou la formule In Critique et clinique Paris Minuit 1993 DERRIDA J Freud et la scène de lécriture In Écriture et différence Paris Senil 1968 DESCARTES R Méditations 1641 In Oeuvres et lettres de Descartes Paris Gallimard 1949 DUCHET M Anthropologie et histoire au siècle des lumières Paris Albon Michel 1995 DUMONT L Essais sur lindividualisme Une perspective anthropologique sur lideologie moderne Paris Seuil 1983 EHRENBERG A La fatigue dêtre soi Dépression et société Paris Odile Jacob 1998 ELIAS N La civilisation des moeurs Paris Fayard 1995 FEBVRE L Civilisation Le mot et lidée Paris Centre International de Synthèse 1930 FERENCZI S Psychanalyse 2 Oeuvres Completes Vol II Paris Payot 1970 FERENCZI S Psychanalyse 3 Oeuvres Complètes Vol III Paris Payot 1974 FOUCAULT M Histoire de la folie à lâge classique 1960 Paris Gallimard 1971 FOUCAULT M Naissance de la clinique Paris PUF 1963 FOUCAULT M Les mots et les choses Une archéologie des sciences humaines Paris Gallimard 1966 FOUCAULT M Surveiller et punir Paris Gallimard 1974 FOUCAULT M Il faut defendre la société 1976 Paris Gallimard Seuil 1997 FOUCAULT M La volonté de savoir Histoire de la sexualité Vol I Paris Gallimard 1976 FOUCAULT M Questce que les lumières 1984 In Dits et écrits Vol IV Paris Gallinard 1994 FOUCAULT M Le souci de soi Paris Gallimard 1984 FOUCAULT M Lusage des plaisirs Paris Gallimard 1984 FOUCAULT M Les techniques de soimême In Dits et écrits Vol IV Paris Gallimard 1994 FREUD S Le problème économique du masochisme 1924 In Névrose psychose perversion Paris PUF 1973 FREUD S Remémoration répétition et élaboration 1914 In La technique psychanalytique Paris PUF 1972 FREUD S Audelà du principe de plaisir 1920 In Essais de psychanalyse Paris Payot 1981 FREUD S Considérations actuelles sur la guerre et sur la mort 1915 In Essais de psychanalyse Paris PUF 1981 FREUD S Deuil et melancolie 1917 In Métapsychologie Paris Gallimard 1968 FREUD S Esquisse dune psychologie scientifique 1895 In La naissance de la psychanalyse Paris PUF 1973 FREUD S Linconscient In Metapsychologie Paris Gallimard 1960 FREUD S La morale sexuelle civilisée et la maladie nerveuse des temps modernes 1908 In Freud S La vie sexuelle Paris PUF 1973 FREUD S Le fetichisme 1927 In La vie sexuelle Paris PUF 1973 FREUD S Le moi et le ça 1923 In Essais de psychanalyse Paris Payot 1981 FREUD S Obsessions et phobies 1895 In Névrose psychose perversion Paris PUF 1973 FREUD S Pour introduire le narcissisme 1914 In La vie sexuelle Paris PUF 1973 FREUD S Psychothérapie de lhystérie In Freud S Breuer J Études sur lhystérie 1895 Paris PUF 1971 FREUD S Pulsions et destins des pulsions 1915 In Métapsychologie Paris Gallimard 1968 FREUD S Quil est justifié de séparer de la neurasthénie un certain complexe symptomatique sous le nom de névrose dangoisse 1895 In Névrose psychose et perversion Paris PUF 1973 FREUD S Quelques considerations pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et hystériques In Résultats Idées Problèmes 18901920 Vol I Paris PUF 1984 FREUD S Remarques psychanalytiques sur lautobiographie dun cas de paranoia Dementia Paranoides Le President Schreber 1911 In Cinq Psychanalyses Paris PUF 1975 FREUD S Inhibition symptôme et angoisse 1926 Paris PUF 1973 FREUD S Lavenir dune illusion 1927 Paris PUF 1973 FREUD S Linterprétation des rêves 1900 Paris PUF 1976 FREUD S Psychopathologie de la vie quotidienne 1901 Paris Payot 1973 FREUD S Le mot desprit et sa relation à linconscient 1905 Paris Gallimard 1980 FREUD S Malaise dans la civilisation 1930 Paris PUF 1971 FREUD S Trois essais sur la théorie de la sexualité 1905 1º ensaio Paris Gallimard 1962 FUKUYAMA F O fim da história e o último homem Rio de Janeiro Rocco 1992 GIDDENS A As consequências da modernidade São Paulo UNESP 1991 GRODDECK G La maladie lart et le symbole Paris Gallimard 1969 GRODDECK G Le livre du ça Paris Gallimard 1973 GRUA G Jurisprudence Universelle et Theodicée selon Leibniz Paris Presses Universitaires de France 1953 HABERMAS Jürgen Le discours philosophique de la modernité Paris Gallimard 1988 HASSOUN J La cruauté mélancolique Paris Aubier 1995 HEIDEGGER M Kant et le problème de la métaphysique Paris Gallimard 1953 HEGEL G W F La phénoménologie de lesprit Paris Aubier 1941 Vol I e II HOBSBAWM E J Las revoluciones burguesas Vol I e II Madri Labor 1976 HUXLEY A As portas da percepção o céu e o inferno Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1960 KANT E Critique de la raison pratique Paris PUF 1943 KANT E Critique de la raison pure Paris PUF 1971 KANT E Critique de la faculté de juger Paris Vrin 1995 KESTEMBERG E KESTEMBERG J DECOBERT S La faim et le corps Paris PUF 1972 KÖHTER W Psychologie de la forme Paris Gallimard 1964 KOYRÉ A Du monde clos à lunivers infini Paris PUF 1962 KOYRÉ A Études dhistoire de la pensée scientifique Paris Gallimard 1973 KOYRÉ A De la mystique à la science Paris École des Hautes Études en Sciences Sociales 1986 KRAEPELIN E Introduction à la psychiatrie clinique Paris Navarin 1984 LACAN J La chose freudienne 1956 In Écrits Paris Seuil 1966 LACAN J Audelà du principe de realité 1936 In Écrits Paris Seuil 1966 LACAN J Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse 1953 In Écrits Paris Seuil 1966 LACAN J Lagressivité en psychanalyse1948 In Lacan J Écrits Paris Seuil 1966 LACAN J Linstance de la lettre dans linconscient où la raison depuis Freud 1957 In Écrits Paris Seuil 1966 LACAN J Le stade du miroir comme formateur de la function du je telle quelle nous est révélée dans lexpérience psychanalytique 1949 In Écrits Paris Seuil 1966 LACAN J Les complexes familiaux dans la formation de lindividu In Encyclopédie française sur la vie mentale Vol VII Paris 1936 LACAN J Motifs du crime paranoïaque le crime des soeurs Papin 1933 In De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personalité suivi de Prémiers Écrits sur la paranoia Paris Seuil 1975 LACAN J Propos sur la causalité psychique 1946 In Écrits Paris Seuil 1966 LACAN J Cénac M Pressuposés à tout développement de la criminologie 1950 In Lacan J Écrits Paris Seuil 1966 LACAN J De la psychose paranoïaque dans leurs ses rapports avec la personalité suivi de Premiers écrits sur la paranoïa 1932 Paris Seuil 1975 LACAN J Langoisse Le Séminaire Livre X Paris Seuil 2004 LAÍN ENTRALGO P Historia de la medicina moderna y contemporánea Madrid Científicomédica 1963 2ª ed LAMBOTTE M C O discurso melancólico Da fenomenologia à metapsicologia Rio de Janeiro Companhia de Freud 1997 LAPLANCHE J PONTALIS J B Vocabulaire de la Psychanalyse Paris PUF 1973 4ª ed LASCH C The culture of narcissism Nova York Warner Barner Books 1979 LEIBNIZ G W Le droit de la raison Paris Vrin 1994 Les Temps Modernes nº 607 Le théatre de la mundialisation acteurs victimes et laissezpour compte Paris Gallimard jan e fev 2000 LÉVISTRAUSS C Lefficacité symbolique In Anthropologie structurale Paris Plon 1958 LÉVISTRAUSS C Le sorcier et sa magie 1949 In Anthropologie structurale Paris Plon 1958 LIPOVETSKY G Lère du vide Paris Gallimard 1973 LYOTARD JeanFrançois La condition postmoderne Paris Minuit 1979 MALVILLE H Bartleby and Benito Cereno Nova York Dover Publications 1990 MARCUSE H Lhomme unidimensionnel 1964 Paris Minuit 1969 MAUSS M Rapports reels et pratiques de la psychologie et de la sociologie 1924 In Sociologie et anthropologie Paris PUF 1950 MAUSS M Une catégorie de lesprit humain la notion de personne celle de moi 1938 In Sociologie et anthropologie Paris PUF 1950 MERLEAUPONTY M La structure du comportement Paris PUF 1942 MERLEAUPONTY M Phénoménologie de la perception Paris Gallimard 1946 MESCHONNIC H Modernité Modernité Paris Gallimard 1983 MINKOWSKI E La schizophrénie Psychopathologie des schizoïdes et des schizophrènes Paris Desclée de Brouwer 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Odile Jacob 1997 SOUTHERLAND J Evolution of psychosomatic concepts Londres Hogart Press 1965 STAROBINSKI J Le mot civilisation In Le reméde dans le mal Paris Gallimard 1989 SWAIN G Chimie cerveau esprit et société Paradoxes epistémologiques des psychotropes en médicine mentale In Le Débat nº 47 novembrodezembro Paris Gallimard 1987 VATTIMO G La fin de la modernité Paris Seuil 1987 VATTIMO G La société transparente Paris Desclée de Brouwer 1990 VINCENT Th Direction La jeune fille et la mort Paris Arcanes 2000 WALLON H Comment se développe chez lenfant la notion de corps propre Journal de Psychologie Paris novembrodezembro 1931 WALLON H Les origines du caractère chez lenfant 1934 Paris PUF 1993 WEBER M Léthique protestante et lesprit du capitalisme Paris Plon 1964 WEBER M Sociologie et religions Paris Gallimard 1996 WEISS E ENGLISH O Psychosomatic Medicine Filadelfia W B Saunders 1949 WITTGENSTEIN L Investigations philosophiques In Tractatus logicophilosophicus suivi de investigations philosophiques Paris Gallimard 1961 WITTGENSTEIN L Conversaciones sobre Freud In Estética Psicoanalisis y Religión Buenos Aires Sudamerica 1976 Este ebook foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa SA O sujeito na contemporaneidade Wikipédia do autor httpsptwikipediaorgwikiJoelBirman Livros do autor httpswwwrecordcombrautoresjoelbirman Malestar na atualidade Birman Joel 9788520012376 304 páginas Compre agora e leia A psicanálise precisa repensar alguns de seus fundamentos para se tornar mais sensível às diferentes formas do malestar na sociedade atual Esta é a motivação central de Joel Birman no livro Malestar na atualidade a psicanálise e as novas formas de subjetivação O livro que inaugura a coleção Sujeito e história dirigida pelo próprio Joel Birman e que terá como próximos títulos Metamorfoses entre o sexual e o social de Carlos Augusto Peixoto Júnior e O prazer e o mal a filosofia das drogas de Giulia Sissa é o resultado de uma linha universitária de pesquisa desenvolvida pelo autor nos últimos três anos e tem por objetivo esboçar uma leitura preliminar do malestar na atualidade tendo como referência os problemas da subjetividade Compre agora e leia Histeria Maurano Denise 9788520013564 140 páginas Compre agora e leia Obra que trata de um dos temas fundamentais para o desenvolvimento da teoria de Freud A partir do estudo das histéricas e com a ajuda de algumas delas Freud abandonou o método sugestivo e a hipnose e desenvolveu sua metodologia para acessar o inconsciente Em Histeria Denise Maurano se baseia nas observações de Jacques Lacan sobre obra de Freud para analisar este tema que ainda hoje é um enigma Na antiguidade e ainda hoje a histeria ainda é relacionada com o feminino Por meio da contextualização da histeria na obra do psicanalista vienense a autora oferece chaves para a interpretação da obra freudiana Compre agora e leia Pacientes que curam Rocha Julia 9786558020158 304 páginas Compre agora e leia Em Pacientes que curam a médica Julia Rocha conta seu cotidiano no Sistema Único de Saúde brasileiro o SUS onde trabalha há dez anos desde que se formou Os textos de Pacientes que curam apresentam o que Julia uma mulher negra médica de família e comunidade mãe e cantora vivenciou no plantão no hospital em seu consultório na Unidade Básica de Saúde na UPA ou em visita a pacientes em casa E ao fazer isso traçam um retrato de um Brasil periférico que vive mal desde sempre Ao mesmo tempo revelam o que há de universal de sensível no humano No livro vemos como saúde é muito mais do que não estar doente é ter garantido o direito ao trabalho à moradia à alimentação à educação ao lazer e aos demais componentes do Estado de bemestar social Mas como proporcionar direitos às pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social Como fazer cumprir os artigos da Constituição que estabelecem acesso universal e igualitário à saúde A saúde é direito de todos e dever do Estado O SUS criado em 1986 é resultado de lutas dos movimentos sociais e engloba políticas de assistência e programas para a promoção da saúde da democracia e da cidadania para todos os brasileiros de forma gratuita É considerado um dos maiores e melhores sistemas de saúde públicos do mundo Graças ao SUS e a sua rede de profissionais dedicados ao atendimento humanizado dos pacientes temos a chance de conhecer a dra Julia e os pacientespersonagens deste livro Histórias como as de Juliana e Juraci que sofriam de uma das piores doenças que a sociedade pôde transmitir o racismo e a escravidão de Ruth que buscava um remédio para dormir e saiu com diagnóstico de opressão por machismo E também como a da mulher que queria uma solução para diminuir o desejo sexual e descobriu que estava saudável e de seu André que quase morreu e encontrou o amor Pacientes que curam é um livro para se emocionar para rir É diversão e é alimento para a luta Um livro para pessoas que sentem muito pelas injustiças e que teimam em mudar o mundo Compre agora e leia Justiça Sandel Michael J 9788520010976 350 páginas Compre agora e leia O curso Justice de Michael J Sandel é um dos mais populares e influentes de Harvard Quase mil alunos aglomeramse no anfiteatro do campus da universidade para ouvir Sandel relacionar grandes problemas da filosofia a prosaicos assuntos do cotidiano São temas instigantes que reunidos neste livro oferecem ao leitor a mesma jornada empolgante que atrai os alunos de Harvard casamento entre pessoas do mesmo sexo suicídio assistido aborto imigração impostos o lugar da religião na política os limites morais dos mercados Sandel dramatiza o desafio de meditar sobre esses conflitos e mostra como uma abordagem mais segura da filosofia pode nos ajudar a entender a política a moralidade e também a rever nossas convicções Justiça é o ao mesmo tempo estimulante e sensato uma nova e essencial contribuição para a pequena prateleira dos livros que abordam de forma convincente as questões mais difíceis de nossa vida cívica Um convite aos leitores de todas as doutrinas políticas a considerar controvérsias que já nos são familiares de maneira nova e iluminada Compre agora e leia O trauma na pandemia do Coronavírus Birman Joel 9786558020110 168 páginas Compre agora e leia Fruto das pesquisas do autor e da urgência do momento O trauma na pandemia do Coronavírus desenha as impressões e experiências da crise do Covid19 especialmente da perspectiva brasileira O psicanalista Joel Birman analisa em O trauma na pandemia do Coronavírus a dimensão psíquica da pandemia da Covid19 colocando em destaque as suas dimensões política social econômica ecológica cultural ética e científica Escrito a quente o livro chama a atenção para a problemática do trauma intimamente relacionada à noção de catástrofe humanitária subjetiva e nacional em que particularmente a população brasileira está inserida É um livro necessário a todas as pessoas que desejam compreender e processar subjetivamente esse período brutal Para Luis David Castiel professor e pesquisador do Departamento de Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio AroucaFiocruz Joel fez um ensaio com uma síntese factual da pandemia no Brasil e traz um precioso estudo psicanalítico sobre a repercussão em termos da dimensão catástrofetrauma Decerto irá servir sobretudo para proporcionar sentidos capazes de viabilizar formas consistentes para decifrar as razões de sofrimentos subjetivos provocados pelos enigmas covidianos de cada dia Trecho do livro A assunção do imperativo da bolsa no lugar do imperativo da vida por alguns governantes implicou em um ato perverso e cruel De acordo com seus cálculos políticos e eleitorais preferiram sacrificar milhares de vidas e empilhar os cadáveres dos seus cidadãos a se importar com o que é de fato digno de valor a vida de cada um em sua singularidade inigualável e incomparável Compre agora e leia
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SUJEITO E HISTÓRIA Organização de Joel Birman A coleção Sujeito e História tem caráter interdisciplinar As obras nela incluídas estabelecem um diálogo vivo entre a psicanálise e as demais ciências humanas buscando compreender o sujeito nas suas dimensões histórica política e social Títulos publicados A crueldade melancólica Jacques Hassoun A psicanálise e o feminino Regina Neri Arquivos do malestar e da resistência Joel Birman Cadernos sobre o mal Joel Birman Cartografias do avesso Joel Birman Cartãopostal Jacques Derrida Deleuze e a psicanálise Monique DavidMénard Foucault Paul Veyne Gramáticas do erotismo Joel Birman Lacan com Derrida Rene Major Lacan e LéviStrauss Marcos Zafiropoulos Malestar na atualidade Joel Birman Metamorfoses entre o sexual e o social Carlos Augusto Peixoto Jr Manifesto pela psicanálise Erik Porge Franck Chaumon Guy Lérès Michel Plon Pierre Bruno e Sophie Aouillé O aberto Giorgio Agamben O desejo frio Michel Tort O olhar do poder Maria Izabel O Szpacenkopf O sujeito na contemporaneidade Joel Birman Ousar rir Daniel Kupermann Problemas de gênero Judith Butler Rumo equivocado Elisabeth Badinter B521s 3ª ed 115756 Copyright 2012 Joel Birman PROJETO GRÁFICO DE MIOLO Evelyn Grumach e João de Souza Leite CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ Birman Joel 1946 O sujeito na contemporaneidade espaço dor e desalento na atualidade Joel Birman 3ª ed ampliada Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2020 recurso digital Formato epub Requisitos do sistema adobe digital editions Modo de acesso world wide web ISBN 9786558020028 recurso eletrônico 1 Subjetividade 2 Sujeito Filosofia Aspectos psicológicos 3 O contemporâneo Aspectos psicológicos 4 Espaço e tempo Aspectos psicológicos 5 Psicanálise I Título CDD 150195 CDU 1599642 Meri Gleice Rodrigues de Souza Bibliotecária CRB76439 Todos os direitos reservados Proibida a reprodução armazenamento ou transmissão de partes deste livro através de quaisquer meios sem prévia autorização por escrito Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Direitos desta edição adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA Rua Argentina 171 20921380 Rio de Janeiro RJ Tel 21 25852000 Seja um leitor preferencial Record Cadastrese em wwwrecordcombr e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções Atendimento e venda direta ao leitor sacrecordcombr Produzido no Brasil 2020 Sumário Introdução CAPÍTULO 1 Do sonho ao pesadelo I Sonho e percepção II Tempo e subjetivação III Bordas do sonhar IV Sonho silenciado CAPÍTULO 2 No deserto do real I Olhos e ouvidos bem fechados II Desejo e fantasma III O sujeito em questão CAPÍTULO 3 Subjetividades contemporâneas I Coordenadas da atualidade II Malestar III Transformações IV Cartografia do percurso CAPÍTULO 4 Corpo e excesso CAPÍTULO 5 Ação e compulsão I Hiperatividade violência criminalidade II Compulsões e cultura das drogas III Festins comestíveis e outras orgias CAPÍTULO 6 O tempo vai para o espaço I Passagem ao ato e actingout II Encenação e somatização III Translação IV Ação coartada V Primórdios da transformação CAPÍTULO 7 O vazio no existir I Intensidade afetação sentimento II A despossessão de si III Desencantamento fadiga e corrosão de si CAPÍTULO 8 Pensamento e linguagem em negativo I Derrocada do pensamento II Retórica instrumental e suspensão da poiesis CAPÍTULO 9 Do sofrimento à dor I Pontuações metodológicas II Solipsismo e alteridade CAPÍTULO 10 Mundo e negacionismo na vida nua Pósfacio Bibliografia citada Introdução A contemporaneidade se revela como uma fonte permanente de surpresa para o sujeito que não consegue se regular nem se antecipar aos acontecimentos que como turbilhões jorram de maneira disseminada ao seu redor Onde quase tudo se revela de maneira imprevisível e intempestiva o efeito mais evidente disso no sujeito é a vertigem e a ameaça do abismo Como o improvável acaba quase sempre por acontecer subvertendonos isso nos faz vacilar em nossas certezas Assim as mais diversas escalas e dimensões da experiência são permanentemente perpassadas pela surpresa e pelo improvável Nos registros da economia da política das ciências das artes e da cotidianidade o sujeito se choca com o imprevisível que o desorienta Assim podemos dizer que tanto no registro coletivo como no individual nas escalas local e global a subjetividade foi virada de pontacabeça Se compararmos de maneira superficial e impressionista o campo social da contemporaneidade com o que ocorria poucas décadas atrás a transformação em pauta é certamente radical Os signos que nos orientavam no mundo e nos direcionavam na existência assim como seus códigos de interpretação foram deslocados de suas posições e lugares simbólicos Muitos deles desapareceram Outros em contrapartida perderam a força e a valência de que eram investidos sendo realocados em outros conjuntos que passaram então a ser dominados por outros signos considerados agora como hierarquicamente superiores Com isso outros códigos foram forjados sem que seus enunciados sejam sempre patentes Entretanto numa leitura sutil das entrelinhas desse processo social e histórico as coisas não ocorreram exatamente desta forma Deslocandonos da superfície patente e literal do sistema de signos e dos códigos para a dinâmica de forças que os impulsionam agora no registro latente podemos encontrar já a marca de algumas fendas e desordenações no quadro anterior tomado até então como referência Nessa leitura as indicações de ruptura e a emergência das descontinuidades aparecem como rastros podendo então assumir corpo e forma rompendo enfim a paisagem plácida do horizonte impressionista inicial A intenção deste ensaio é indicar e empreender uma interpretação dessa transformação em curso no registro estrito do sujeito Para tanto propõe uma leitura deste pela delimitação das formas de malestar que o acomete e o acossa em sua existência Pretendo assim destacar que da modernidade à atualidade algo de fundamental aconteceu nas categorias constitutivas daquele redirecionando então as linhas de força do seu malestar É no quadro estrito desse contraste entre modernidade e contemporaneidade que se inscreve a espinha dorsal deste livro Pretendo sublinhar assim como a categoria de espaço assume uma prevalência e dominância cada vez maior na constituição da experiência subjetiva a expensas da categoria de tempo Com isso não apenas é atingido o registro do desejo como também a expectativa de um futuro possível que incide na possibilidade de remanejar as coordenadas estritas do presente Tudo se passa como se a subjetividade acreditasse que estivesse vivendo num eterno presente no qual a repetição do mesmo fosse tão poderosa que não anunciasse mais qualquer possibilidade de ruptura e de descontinuidade Ao lado disso essa espacialização da experiência psíquica seria o correlato da dominância no psiquismo da sensação de dor a expensas do sofrimento considerando que este pressuporia sempre a temporalização daquela experiência De fato se a dor evidencia uma posição solipsista do sujeito e o seu fechamento em face do outro o sofrimento seria algo de ordem alteritária que pressuporia o apelo e a demanda endereçada ao outro Portanto o sofrimento como marca das tormentas do sujeito implicaria uma transformação do registro da dor que seria sempre permeada pela simbolização e temporalização desta Na opacidade da dor enfim seria a espacialização na experiência do sujeito que dominaria as coordenadas deste Porém se o sujeito atado na dolorida posição solipsista não pode fazer qualquer apelo ao outro é o desalento que se impõe como pathos destinandoo então à paralisia Em contrapartida o desamparo como correlato que é da experiência do sofrimento possibilitaria ao sujeito um movimento desejante que seria a condição primordial para a simbolização e a temporalidade Enfim é essa transformação essa virada de pontacabeça nas coordenadas constituintes do sujeito num contraste tenso entre modernidade e contemporaneidade que pretendo tratar ao longo deste ensaio percorrendo as dinâmicas espaçotempo dorsofrimento e desamparodesalento CAPÍTULO 1 Do sonho ao pesadelo I Sonho e percepção Este ensaio pretende colocar em evidência a configuração predominante e progressivamente espacial assumida pela experiência do sujeito na contemporaneidade Porém vou me centrar no começo deste percurso na leitura da experiência do sonho na sua diferença em relação à experiência da percepção Portanto é a lógica imanente deste contraste e da oposição entre estes dois registros psíquicos que veremos agora A indagação primeira que se impõe aqui é a razão desse destaque conferido ao sonho num ensaio que se propõe a analisar a configuração marcadamente espacial evidenciada pela experiência da subjetividade na atualidade Por que enfatizar a leitura do sonhos Por diversas razões como vou indicar de maneira sumária para condensar e antecipar as diferentes dimensões do meu argumento fundamental que desenvolverei ao longo do livro Antes de mais nada o sonhar é uma experiência psíquica regular que se tece numa relação bem estabelecida entre os registros do espaço e do tempo Experiência regular pois ocorre todas as noites e diversas vezes durante o sono mesmo que o sonhador não se recorde sempre do que sonhou quando se encontra no estado de vigília1 De acordo com Freud isso se deve à resistência do sujeito em estabelecer contato com o desejo inconsciente2 A prova disso seria dada pela experiência psicanalítica na qual os supostos maus sonhadores e aqueles que não se recordam facilmente de seus sonhos passam tanto a sonhar quanto a se lembrar de seus sonhos com mais facilidade3 Isso porque pela mobilização transferencial do desejo realizada pela análise e pelas fendas abertas na resistência que são assim produzidas o sujeito passa a circular melhor na sua realidade psíquica4 Do ponto de vista estritamente fenomenológico o sonho é representado e vivenciado pelo sonhador como um amontoado de imagens Nem sempre essas imagens se apresentam de maneira concatenada mas marcadas principalmente pela disseminação e pela dispersão Em decorrência disso o sonhador se confronta passivamente e como espectador com um cenário caracterizado pela anarquia que provoca nele como efeito privilegiado a sensação de se defrontar com algo que é irreal e até mesmo fantasmagórico Este efeito de irrealidade se deve não apenas ao aparecimento de imagens estranhas e aparentemente fora de lugar mas principalmente à transfiguração da ordem da percepção visual Essa se caracteriza pela boa forma e pela sequência regular das imagens nas quais a oposição entre os registros da figura e do fundo se articulam devidamente5 Não obstante o estilo marcadamente impressionista que caracteriza a experiência perceptiva esta evidencia o mundo que podemos conhecer na sua objetividade Não existe qualquer dúvida no que concerne a isso Este mundo cognoscível supõe no entanto que os registros do espaço e do tempo sejam as dimensões a priori de nossa experiência na impossibilidade que teríamos de apreender a coisa em si isto é o númeno como nos ensinou Kant na sua estética transcendental6 Vale dizer poderíamos captar apenas a coisa para nós como ela nos parece fundados nessas condições a priori da experiência Seria esta enfim a objetividade possível de nossa condição antropológica delineada que é pela experiência perceptiva O sonho no entanto delineia uma outra ordem possível para a experiência humana Isso porque pelo sonhar se configura uma experiência efetiva de transgressão que subverte a ordem da percepção Uma outra dimensão do mundo se abre assim para o sujeito indicando a existência de outros mundos possíveis Podese dizer parodiando e invertendo ao mesmo tempo a célebre proposição de Leibniz que se Deus nos ofereceu o melhor dos mundos possíveis7 o sonho no entanto ao subverter a lógica e a ética da escolha de Deus nos abre uma janela para a experiência de outros mundos possíveis Em decorrência dessa transgressão e subversão da experiência perceptiva o surrealismo erigiu o sonho nos rastros indicados pelo discurso freudiano como o paradigma da experiência estética8 9 Com efeito as janelas entreabertas para a visão de outros mundos possíveis indicavam a existência pregnante da surrealidade na nossa experiência noturna de maneira ao mesmo tempo regular e cotidiana Com isso os registros da razão e do entendimento tiveram que abrir uma fenda no campo da sua hegemonia cognitiva sobre o sujeito delineando uma dobra para o reconhecimento de outros mundos possíveis regulados agora pelo que Freud denominou de desejo10 Seria este enfim que direcionaria as linhas de força para a governabilidade desses outros mundos possíveis Contudo se o sonho é uma das modalidades para a realização do desejo que se concretiza de maneira alucinatória ainda segundo Freud outras modalidades também existem para isso como o lapso11 o ato falho12 o humor13 o chiste14 e os sintomas15 A existência dessa psicopatologia da vida cotidiana16 indica portanto que o desejo pode se realizar tanto na experiência diurna quanto na noturna mas apresentandose nesta e naquela com diferentes configurações Foi por essa senda teórica que o discurso surrealista tomou seu atalho estético de forma a erigir o desejo em aguilhão para a experiência da criação artística que produziria então uma ruptura radical com a realidade da percepção A criação como ato implicaria portanto uma descontinuidade com a ordem perceptiva que deveria ser transfigurada de pontacabeça Nesta perspectiva o método psicanalítico da livre associação17 foi então deslocado para o registro do discurso poético e neste contexto tal procedimento foi denominado como escrita automática18 O mesmo procedimento foi também inscrito enfim no ato pictórico de criação19 Portanto se o registro do sonho se opõe ao da percepção visual nos seus menores detalhes não obstante a importância para ambos da categoria do espaço para suas respectivas configurações podese afirmar que Freud e MerleauPonty foram os teóricos que mais se destacaram no estabelecimento dessas experiências opostas Assim se Freud nos legou a obra magistral sobre os sonhos intitulada justamente A interpretação dos sonhos20 constituindo uma retórica para enunciar a gramática presente na experiência do sonhar MerleauPonty em contrapartida nos legou a sua leitura sistemática sobre a sintaxe da experiência perceptiva em Fenomenologia da percepção21 Destacamse aqui duas referências fundamentais que sintetizam todas as diferenças acima assinaladas pois a gramática do desejo inconsciente se opõe radicalmente à sintaxe da intencionalidade que regularia a ordem da percepção Entretanto a experiência do sonho implica também a categoria do tempo e não apenas a do espaço como ocorre com a experiência da percepção visual Kant já nos dizia isso no que concerne à percepção ainda na sua estética transcendental22 Como destacar esta regulação no que concerne à experiência onírica É o que se verá abaixo de forma bastante resumida II Tempo e subjetivação A evocação do sonho pelo sonhador não corresponde precisamente ao que foi efetivamente sonhado por este Isso porque a evocação coloca em marcha de maneira ostensiva a categoria do tempo A evocação inscreve o sonho numa sequência e uma ordenação das imagens o que implica uma concatenação e seriação destas A temporalidade da experiência se impõe então aqui na cadência que se estabelece entre os diferentes momentos do antes do agora e do depois Portanto o instante pontual das imagens se transforma numa sequência regulada pela categoria da temporalidade mediante a qual a experiência produzida pelo sonho pode ser efetivamente inscrita como forma de subjetivação Não existiria subjetivação possível do sonho sem a incidência da dimensão temporal Logo sem a experiência da evocação tudo aquilo que foi efetivamente sonhado se perderia pois o sujeito não poderia se apropriar das imagens que sonhou Isso porque na suposta experiência originária do sonhar o sujeito se encontra numa posição de exterioridade em face das imagens como se estivesse diante de uma tela que como fundo permite a visualização e o enquadramento das diferentes figuras representadas pelas imagens pontuais Esta posição de exterioridade do sonhador colocao numa posição de espectador de seu próprio sonho O suposto sonho originário teria assim o estatuto de um corpo estranho para o sonhador que passivamente recebe a sua incidência na configuração da experiência onírica A evocação implicaria então a mudança de posição psíquica do sonhador que se deslocaria assim do polo passivo da experiência para o polo ativo Em decorrência disso a apropriação psíquica do que lhe aconteceu poderia então se realizar com a experiência de subjetivação correlata que seria a consequência necessária daquela A narrativa do sonho realizada pelo sonhador para um outro enfatiza mais ainda a incidência desta dimensão da temporalidade na experiência onírica Porque pela narração do que lhe ocorreu a categoria de tempo se impõe agora necessariamente pela incidência efetiva do discurso23 Porque não existe discursividade possível sem a articulação da temporalidade que marca tanto a sua sintaxe e gramática quanto a sua semântica Não existiria portanto a ordem do discurso sem a participação ostensiva da categoria do tempo Numa célebre leitura crítica que realizou de A interpretação dos sonhos de Freud Wittgenstein nos mostrou de maneira aguda que a totalidade do procedimento interpretativo sobre a formação dos sonhos proposta por Freud estaria fundada nos registros da narração e do discurso Assim os diferentes mecanismos e procedimentos que foram por ele descritos como se fossem especificamente psíquicos seriam inseparáveis da narração do sonho para um outro realizado pelo sonhador24 Vale dizer a experiência da evocação do sonho já implicaria a incidência do discurso no qual a categoria de tempo estaria incidindo diretamente sobre o sujeito Enfim não existiria nessa suposição qualquer diferença entre o sonho sonhado e a narração do sonho pois se o primeiro seria da ordem do númeno a coisa em si de Kant incognoscível portanto o segundo seria a única experiência possível para o sujeito Na suposição de Freud no entanto a categoria de tempo já incidiria na produção da experiência onírica A ordem do númeno estaria já presente no que existe de não passível de captura pelo sujeito na origem do seu sonho Existiria então com efeito aquilo que Freud denominou umbigo do sonho isto é algo que seria de ordem pulsional que originaria o sonho e que não seria passível de ser apreendido pelo procedimento das livres associações25 Não obstante isso a temporalidade se faria presente também na ordenação das imagens mesmo que isso se realizasse de maneira tosca As imagens do sonho implicariam o trabalho dos mecanismos da condensação e do deslocamento que estariam no registro psíquico do inconsciente26 Portanto os signos da percepção seriam objeto de ordenação ao mesmo tempo espacial e temporal independentemente da narração que se realizaria apenas posteriormente27 A representaçãocoisa inscrita no registro do inconsciente seria a matériaprima do sonho enfim e não a representação palavra que se inscreveria no registro de préconsciente28 Seria deste lugar psíquico que a narrativa do sonho se realizaria Não resta qualquer dúvida no entanto de que a evocação e a narrativa do sonho enfatizam mais ainda a dimensão temporal presente na experiência onírica implicando assim tanto a apropriação quanto a subjetivação desta experiência Não obstante a polêmica estabelecida entre Wittgenstein e Freud podese certamente afirmar isso Porém se tudo isso nos conduz a pensar na interrupção do sono e do sonho pela figura do sonhador o que se impõe para mim agora é explicitar a função de sonhar O que estará em questão aqui são as bordas da experiência onírica III Bordas do sonhar Na experiência do pesadelo o sujeito é sempre despertado de maneira abrupta e assustada num pathos marcado pelo terror que se evidencia no sonho O pesadelo seria assim uma experiência de angústia nos seus menores detalhes que conduz o sonhador ao despertar e à vigília com a intenção de retomar ativamente o controle sobre o seu psiquismo A posição ativa do sujeito se impõe então em face da posição passiva que lhe dominava na experiência onírica para cortar assim o impacto da angústia que já se disseminava no psiquismo Ainda de acordo com Freud a função do sonho é a proteção do sono Numa formulação célebre Freud nos disse que o sonho seria o guardião do sono sem o qual este não poderia se manter29 Isso porque se a produção desejante se mantém como um motocontínuo não apenas na vigília mas também no sono seria preciso criar destinos psíquicos para a incidência do desejo sem o qual o sono não seria então possível Porém o desejo não poderia se explicitar de maneira direta e brutal sem qualquer rodeio como ocorre igualmente na vigília senão o sujeito despertaria para empreender ativamente o controle direto sobre o seu psiquismo Assim apesar de estar bem mais desprevenido durante o sono do que no estado de vigília em função do descontrole relativo do eu o sujeito procura regular os sonhos pela ação ostensiva da censura Por isso mesmo o tecido do sonho aparece sempre permeado por disfarces travestismos e ornamentações indicando o trabalho simbólico realizado pela censura que impediria então a manifestação direta da realização do desejo Quando isso ocorre é o pesadelo que se impõe inevitavelmente no psiquismo despertando efetivamente o sujeito Portanto se no pesadelo a realização do desejo se impõe de forma direta e brutal pela composição de imagens pontuais e fulgurantes isso indica como é a categoria de tempo que se suspende em face da do espaço O trabalho da temporalização é de fato o correlato das formas de simbolização que marcam a produção do sonho sem as quais a temporalidade desaparece diante da pregnância quase absoluta assumida pela espacialização O desejo se impõe assim em sua atemporalidade abissal sem evidenciar qualquer outra cadência temporal num impacto marcado pelo instante fulgurante Assim a temporalidade seria a condição de possibilidade dos processos de simbolização presentes no sonho inscrevendo este então no registro da representaçãocoisa30 ao passo que a espacialidade se evidencia pelos signos de percepção31 Logo se a temporalidade inscreve o sonho no registro da representação Vorstellung a espacialidade produziria as imagens no registro da apresentação ou da presentação Darstellung Na experiência do pesadelo portanto o sonho se transfiguraria perdendo suas marcas temporalizantes e se imporia ao sujeito na fulguração instantânea da realização atemporal do desejo Se insisto aqui em tudo isso com um certo vagar apesar desta apresentação condensada é apenas para começar a indicar como a oposição entre o sonho e o pesadelo pode se transformar historicamente não sendo pois essas duas formações psíquicas configurações atemporais É o que se verá agora IV Sonho silenciado Existe na atualidade uma transformação importante no que concerne à experiência do sonhar na tradição do Ocidente A bibliografia psicanalítica dos últimos anos nos indica isso Num dos números iniciais da Nouvelle Revue de Psychanalyse do início dos anos 1970 dedicada exclusivamente à temática do sonho isso se evidencia já com certa clareza32 assim como a publicação na mesma época de uma coletânea de ensaios de Pontalis intitulada justamente Entre le rêve et la douleur33 revela que a dita transformação estava em curso O título dessa obra de Pontalis ao mesmo tempo instigante e provocativo enuncia o que estaria em pauta nesta mudança crucial A ênfase foi colocada de fato no deslocamento da problemática do sonho para a da dor Se Pontalis quis destacar principalmente a transformação radical que se realizou tanto na história da experiência psicanalítica quanto na teorização dos psicanalistas sobre isso de Freud à contemporaneidade ele evidencia também uma mudança fundamental nas modalidades de subjetivação no Ocidente Vale dizer o sonhar como experiência crucial que seria do sujeito se apaga cada vez mais sendo substituído progressivamente pela presença pregnante disseminante e assustadora da dor Enfim são os impasses crescentes ao sonhar que se colocaram aqui em cena Isso não quer dizer que não se sonha mais evidentemente o que seria inverídico empiricamente falando Porém dois aspectos devem ser aqui destacados Primeiro constituiuse uma modalidade de subjetividade que sonha pouco ou mesmo não sonha em função da impossibilidade de sustentação do desejo e da simbolização daí decorrente Segundo que o sonho perde a sua posição destacada enquanto modalidade de subjetivação na tradição do Ocidente Dito isso o que está implicado nesta transformação radical Antes de mais nada a perda do potencial de simbolização da subjetividade contemporânea Esta com efeito se empobrece a olhos vistos no que concerne aos seus recursos simbólicos Por isso mesmo a experiência do sonhar perde a posição crucial de revelação do sujeito que ocupava ainda ao longo do século XIX e numa parcela significativa do século XX A escrita de A interpretação dos sonhos na virada do século XIX para o século XX foi o monumento simbólico desta ascensão da experiência do sonhar na economia psíquica Enfim o sonho ocupava nesse contexto e momento uma posição privilegiada nas formas de subjetivação34 Freud retomou aqui a tradição do romantismo alemão que enfatizava a dimensão de revelação presente na experiência do sonhar Esta tradição retomava em contrapartida uma longa tradição popular na leitura do sonho35 que sempre destacara a potência de revelação presente nele Tanto na tradição bíblica quanto na grecoromana a experiência do sonhar foi valorizada na sua potencialidade simbólica Em decorrência disso foram forjados nessas diferentes tradições respectivamente o método simbólico e o do deciframento para a interpretação dos sonhos36 O Velho Testamento nos fala do primeiro e a tradição romana do segundo O método de interpretação proposto por Freud pretendeu ser uma transformação e ao mesmo tempo uma inovação daquele formulado na tradição romana colocando a ênfase na singularidade do sujeito na experiência do sonhar e criticando a ideia da existência de um código de signos oníricos preestabelecido chamado justamente de chave dos sonhos37 Porém foi a esta então já longa tradição do deciframento que a psicanálise se filiou e se inscreveu para se constituir historicamente como saber propondo a sua leitura específica sobre os sonhos No entanto como o próprio Freud nos disse essa longa tradição já vinha sendo criticada durante todo o século XIX de maneira sistemática pela crescente leitura cientificista sobre a experiência do sonhar38 Afirmavase assim cada vez mais que o sonhar não era revelador de nada seja do sujeito seja do mundo sendo apenas o subproduto da degradação da atividade cerebral em decorrência do estado do sono O sonho seria então não apenas um texto silencioso mas principalmente um antitexto consequência das transformações neurofisiológicas do sistema nervoso central ocorridas durante o adormecimento Não existiria portanto qualquer atividade psíquica no sonho sendo esta restrita ao estado de vigília Assim a experiência de sonhar foi sendo progressivamente o alvo e o objeto do processo de imensa medicalização do Ocidente iniciado na passagem do século XVIII para o século XIX que incidiu sobre a totalidade dos discursos e dos saberes39 Esse processo social se incrementou bastante desde então transformando nossas coordenadas antropológica epistemológica ética e política No que concerne à experiência do sonhar o que importa ressaltar é que a leitura cientificista do sonho se opunha nos seus menores detalhes à leitura que enfatizava a dimensão de revelação que estaria presente naquela experiência Além disso tal leitura cientificista e o seu correlato qual seja o esvaziamento da dimensão temporal presente na experiência onírica têm como desdobramento crucial a ênfase conferida à espacialização dessa experiência Isso porque dessa perspectiva o sonho perdeu sua estatura teórica de ser algo da ordem da linguagem seja esta compreendida no registro da fala seja no da escrita40 A biologização presente na leitura cientificista do sonhar enfatizava apenas a dimensão do sonho no registro da imagem na qual a dimensão espacial se sobrepujaria à dimensão temporal que tende então ao desaparecimento O discurso atual das neurociências e o desenvolvimento da medicina centrada cada vez mais nas imagens evidenciam a continuidade dessa transformação cognitiva fundamental O que se assiste hoje contudo com a medicina das imagens é já o ponto de chegada de uma longa marcha iniciada na segunda metade do século XIX na qual a espacialização da experiência se contrapunha à temporalização Porém se o discurso freudiano se opunha a essa leitura cientificista e espacializante pelo duplo enunciado de que o sonho era uma modalidade de pensamento e uma produção plena de sentido41 por um lado e que mediante o sonho o sujeito realizava desejos42 por outro o próprio Freud destacava já uma transformação crucial que estava se processando na experiência onírica Com efeito se pela proposição axial de que o sonho era uma realização do desejo o discurso freudiano articulava o sonhar à dominância ao princípio do prazer no psiquismo com a ênfase sendo progressivamente colocada posteriormente no pesadelo e na compulsão à repetição o que se impunha era a presença avassaladora de além do princípio do prazer43 Enfim com a dominância de um dos princípios sobre o outro certas formações psíquicas se impunham necessariamente em face de outras Assim desde o início dos anos 1920 no ensaio intitulado Além do princípio do prazer o discurso freudiano já destacava na leitura dos sonhos presentes nas neuroses traumáticas a dominância das experiências de desprazer e não mais a de prazer como afirmara anteriormente Vale dizer o que emergia na experiência do sonhar era agora a dor e não mais a realização do desejo pela mediação e inflexão da compulsão à repetição A dor se impunha então ao psiquismo de maneira ao mesmo tempo incontrolável e compulsiva mas como um movimento estruturante do psiquismo no entanto para dominar a dor resultante de um trauma44 Portanto se pela repetição o psiquismo buscava compulsivamente realizar a simbolização de um trauma procurando transformar a dor num símbolo o que importa ressaltar é que neste registro tanto o símbolo se encontrava inexistente nos sonhos da neurose traumática quanto não ocorria a realização do desejo nesta modalidade de sonho cara e coroa que seriam da mesma moeda Se a dor se faz assim pregnante no entanto isso evidencia que é a espacialização que ocupa agora a totalidade da experiência psíquica que perderia então sua potência temporalizante É apenas o espaço que ocupa agora o campo da experiência e não mais o tempo pela repetição compulsiva do mesmo isto é pelo retorno terrorífico das imagens traumáticas Estas então não mais se temporalizam e se simbolizam permanecendo atadas à imobilidade do acontecimento traumático É a imagem na sua dimensão estática e espacial ao mesmo tempo na sua ataraxia enfim o que se impõe no psiquismo É importante sublinhar que em 1914 poucos anos antes da publicação de Além do princípio do prazer o discurso freudiano já esboçava essa mesma problemática mas a inscrevia num outro contexto teórico O que estava em pauta em Rememoração repetição elaboração45 era a impossibilidade de rememorar da figura do analisante no espaço da experiência psicanalítica e a imposição da repetição daquele sob a forma de atos na relação com a figura do analista Como a rememoração era uma operação psíquica essencial no paradigma teórico constituído pelo discurso psicanalítico desde A interpretação dos sonhos contrapartida que era da interpretação e da dimensão desejante do psiquismo Freud procurou evitar a dificuldade que já então se impunha afirmando que repetir seria uma outra forma de se recordar46 Seria no entanto uma recordação que se faria sob a forma de atos e não mais em palavras o que definiria a sua especificidade psíquica Posteriormente contudo Freud teve que retificar tal formulação teórica com o que enunciou sobre o estatuto da compulsão à repetição em Além do princípio do prazer como destaquei acima Para o que nos interessa sublinhar aqui no entanto é preciso dizer que a recordação é uma experiência inscrita no registro da temporalidade como ressaltei no início deste capítulo ao me referir à evocação A compulsão à repetição em contrapartida como repetição em atos que se realizam no campo da experiência da transferência se reduz principalmente à dimensão do espaço Portanto enquanto repetição do mesmo a compulsão à repetição não se inscreve no registro do tempo e no registro simbólico como ocorre com a evocação e a rememoração O que se coloca aqui em evidência é que a transformação nas formas de subjetivação já se faziam presentes nos anos 1914 e 1920 no discurso psicanalítico Neste com efeito a dor já se impunha como problemática em oposição ao registro do desejo de maneira que a compulsão à repetição se impunha inequivocamente no psiquismo em face da recordação Com o registro da apresentaçãopresentação se impondo ao da representação seria a ordem da espacialização que se fazia então presente enfim em face do registro do tempo Assim o discurso freudiano transformou a sua concepção da experiência psicanalítica Se essa foi concebida inicialmente como fundada na interpretação e em seguida como uma analítica da resistência neste novo contexto a experiência psicanalítica estaria centrada na repetição Isso porque a compulsão à repetição se disseminava pelo espaço analítico sem qualquer limite e fronteira impondose agora como a sua problemática fundamental47 Desde então no entanto esta predominância do registro do espaço sobre o do tempo vem se incrementando cada vez mais na nossa tradição de maneira que a dimensão de dor ocupa cada vez mais um lugar privilegiado no psiquismo em face do registro do desejo Daí a pertinência do título do livro de Pontalis que enfatizou o deslocamento do registro do sonho para o da dor Ao lado disso o pesadelo se torna então cada vez mais presente conforme a referência do discurso freudiano ao traumático já evidenciara Assim fazendo um contraponto entre modernidade e atualidade que se pode denominar pósmodernidade modernidade avançada ou hipermodernidade como se queira48 podese dizer que se o registro do sonho se apaga cada vez mais diante do da dorpesadelo isso implica a pregnância assumida progressivamente pela categoria do espaço na experiência psíquica e a rarefação correlata da categoria de tempo É claro que essa transformação não se deu numa descontinuidade abrupta e cortante entre estes dois momentos históricos mas foi se produzindo progressivamente no campo da experiência psíquica como já indiquei acima destacando as próprias mudanças ocorridas no discurso freudiano sobre a experiência do sonhar No entanto como vou ainda indicar e analisar ao longo deste ensaio uma transformação histórica maior da subjetividade ocorreu na nossa tradição que estaria no fundamento dessa transformação psíquica no registro do sonho Enfim é a condição do sujeito que está em questão nessa transformação radical Para evidenciar essa transformação faremos no capítulo a seguir a leitura crítica de um filme com a intenção de ressaltar por meio de um de seus personagens alguns traços cruciais que se encontram presentes nas subjetividades da atualidade O que pretendo com isso é procurar mostrar pela retórica artística seja esta literária ou cinematográfica como tais subjetividades se apresentam hoje e se impõem no registro estético no intuito de representar artisticamente o que acontece na contemporaneidade Notas 1 S Freud Linterprétation des rêves 2 Ibidem 3 Ibidem 4 Ibidem capítulo VII 5 W Köhter Psychologie de la forme 6 E Kant Critique de la raison pure 7 G W Leibniz Le droit de la raison G Grua Jurisprudence universelle et theodicée selon Leibniz 8 A Breton Manifestes du surréalisme 9 S Alexandrian Le surréalisme et le rêve 10 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 11 S Freud Psychopathologie de la vie quotidienne 12 Ibidem 13 S Freud Le mot desprit et sa relation à linconscient 14 Ibidem 15 S Freud Linterprétation des rêves Introdução 16 S Freud Psychopathologie de la vie quotidienne 17 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 18 H Behar M Carasson Le surréalisme 19 Ibidem Sobre isso ver também R Passeron Histoire de la peinture surrealiste 20 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 21 M MerleauPonty Phénoménologie de la perception 22 E Kant Critique de la raison pure 23 Sobre isso ver E Benveniste Catégories de pensée et catégories de langue In E Benveniste Problèmes de linguistique générale p 6374 E Benveniste Structure des relations de personne dans le verbe In op cit p 225236 24 L Wittgenstein Conversaciones sobre Freud In L Wittgenstein Estética Psicoanalisis y Religión 25 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 26 Ibidem capítulos IV V VI 27 Ibidem capítulo VII 28 Ibidem 29 Ibidem 30 Ibidem 31 Ibidem 32 J B Pontalis org Nouvelle Revue de Psychanalyse nº 5 33 J B Pontalis Entre le rêve et la douleur 34 M Foucault Les techniques de soimême In M Foucault Dits et écrits Volume IV 35 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 36 Ibidem 37 Ibidem 38 Ibidem capítulo I 39 M Foucault Il faut défendre la société Idem Naissance de la clinique Idem La volonté du savoir 40 J Lacan Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse In J Lacan Écrits J Derrida Freud et la scène de lécriture In J Derrida Écriture et difference 41 S Freud Linterprétation des rêves 42 Ibidem Introdução 43 Ibidem capítulo II 44 S Freud Audelà du principe de plaisir In S Freud Essais de psychanalyse 45 Ibidem 46 S Freud Remémoration répètition et élaboration In S Freud La technique psychanalytique 47 S Freud Audelà du principe de plaisir In S Freud Essais de psychanalyse 48 No que concerne a isso é preciso considerar o seguinte Os teóricos norteamericanos em geral preferem se referir à pósmodernidade para descrever os novos tempos em oposição à modernidade Não se deve contudo ser esquemático em relação a isso já que encontramos entre os europeus não apenas o acento incidindo sobre a ruptura como também a caracterização dessa ruptura como algo positivo Não obstante a leitura negativa da ruptura o cientista social Zigmunt Bauman O malestar na pósmodernidade enuncia a existência negativa da pósmodernidade De um outro ponto de vista o filósofo francês JeanFrançois Lyotard La condition postmoderne Paris Minuit 1979 também reconhece a existência da ruptura e o fim da modernidade sublinhando a impossibilidade teórica atual de as grandes narrativas serem realizadas O italiano Gianni Vattimo La fin de la modernité La société transparente não apenas insiste na ruptura radical como é um entusiasta dos tempos pósmodernos baseandose para isso em outros critérios filosóficos Em contrapartida o cientista social francês Gilles Lipovetsky Lère du vide destaca a ruptura mas de maneira negativa referindose à pósmodernidade como o império do vazio e do efêmero marcado pela frivolidade Posição essa que não é muito distante da posição expressa pelo sociólogo Jean Baudrillard Amérique que também a considera de maneira negativa Por sua vez alguns europeus ainda insistem na existência da modernidade hoje sublinhando a radicalização de seus pressupostos Assim Anthony Giddens As consequências da modernidade sociólogo inglês prefere se referir à existência de uma modernidade tardia estando próximo dos caminhos teóricos do cientista social alemão Ulrich Beck Risk society towards a new modernity destacando Giddens a existência de uma modernidade reflexiva Da mesma forma o cientista social francês Georges Balandier Le grand dérangement insiste na existência de uma supermodernidade na qual os fundamentos da modernidade ainda permaneceriam O filósofo alemão Jürgen Habermas Le discours philosophique de la modernité destacase como um defensor implacável do projeto da modernidade Tudo isso para nos referirmos apenas aos campos das ciências sociais e da filosofia deixando de lado o campo da estética onde teóricos como H Meschonnic Modernité Modernité destacavam ainda a presença viva do ideário da modernidade Além desses existem autores franceses nos campos das ciências sociais das ciências humanas e da filosofia que enunciam o conceito de hipermodernidade Sobre isso pode ser consultado Actes du Colloque Lindividu Hypermoderne vols 1 e 2 Para um comentário crítico e de conjunto sobre estas diferentes linhas de interpretação pode ser consultado Joel Birman La psychanalyse et la critique de la modernité In C Boukobza Où en est la psychanalyse Psychanalyse et figures de la modernité p 4157 Neste ensaio o autor procura diferenciar a modernidade e o modernismo considerando este como uma crítica daquele CAPÍTULO 2 No deserto do real I Olhos e ouvidos bem fechados No filme De olhos bem fechados 1999 do cineasta Stanley Kubrick a trama começa se tece e se fecha em torno de um sonho Podese até mesmo afirmar que toda a narrativa em questão se constrói entre a possibilidade e a impossibilidade da experiência do sonhar tanto nos seus desdobramentos estruturantes quanto nas consequências trágicas disso para seus personagens principais De qualquer maneira é a função do sonhar para a existência humana que está sempre em questão nesta narrativa fílmica exemplar que evidencia de maneira paradigmática a condição da subjetividade na atualidade A principal personagem feminina Alice interpretada por Nicole Kidman esposa de um médico bemsucedido Bill interpretado por Tom Cruise e que circula socialmente nas altasrodas da sociedade de Nova York conta para o marido após uma festa como se sentira provocativamente olhada e atraída por um homem num hotel em que a família passara as férias no último verão Ficara fascinada pelo desejo que o marinheiro expressava em seu olhar penetrante e pelo desejo que se apossara de seu corpo Tivera em seguida um sonho erótico com o tal homem Recordara esse sonho repetidas vezes pelo desejo ardente que isso lhe provocava Afirmara ainda que se aquele marinheiro naquele dia a tivesse convidado para transar e ir embora com ele para sempre ela não teria hesitado Feliz ou infelizmente isso não ocorrera Esse relato contrasta completamente com uma sequência inicial do filme na festa de Natal a que fora com o marido na qual um homem tenta seduzila de todas as maneiras possíveis numa dança prolongada em que ela apesar de flagrantemente provocativa e sedutora não responde aos apelos lúbricos do seu parceiro de dança A revelação ao marido foi feita numa conversa insinuante na intimidade do casal entre a muitas baforadas de maconha e regada a álcool na qual ela interpela o desejo do marido de maneira frontal Diz tudo isso com diferentes insinuações e numa postura bem lânguida Perguntalhe o que sentia quando examinava suas pacientes Como ficava diante delas nuas e quando lhes apalpava os seios Indaga então de forma desafiadora Você não sente nada Não gostaria de transar com elas Diante do silêncio inquieto e atônito do marido afirma ainda de maneira mais peremptória Não consigo acreditar Você não sente nada diz a mulher que se cala e se mantém então num silêncio provocante procurando assim despertar o desejo do marido O marido entre perturbado e perplexo não entende absolutamente nada do que se passa com a esposa Responde então literalmente à mulher com declarações de amor eterno Por isso mesmo não desejava outras mulheres que sempre o seduziam ostensivamente como ocorrera aliás na festa em que foram juntos Além disso diz à esposa que ela é linda e deslumbrante e portanto ele não queria saber de outras mulheres em sua vida mas apenas dela A conversa é interrompida abruptamente por uma urgência médica a morte de um paciente tendo o marido que se retirar Na casa do morto a filha deste faz a Bill juras de amor que o deixam entre embaraçado e indiferente mas ele a trata com a delicadeza e cortesia de sempre Não era a primeira vez que isso acontecia mas ele interpreta aquelas declarações de amor como um signo flagrante do desamparo da jovem mulher em decorrência do falecimento do pai Trataa então de forma cuidadosa e profissional de médico do pai sempre numa distância polida Porém o sonho e o desejo por um outro homem revelados pela mulher o perturbam intensamente tirandoo de seu fio de prumo Suas existências profissional e conjugal construídas meticulosamente como se fossem um feliz conto de fadas caem então inteiramente por terra O médico figura esmeradamente bemcomportada levando uma vida asséptica e cercado por uma rica clientela se sente efetivamente ferido de morte Seu corpo está dilacerado Nada mais poderia ser como era antes após a brutal revelação da esposa No decorrer do filme essa cena do sonho o acossa lanhando seu corpo e produzindo uma dor lancinante na tentativa angustiada de controlar o sonho e o desejo de sua mulher Como teriam sido as cenas eróticas sonhadas pela esposa Imagina ele de maneira repetida as mais diversas sequências eróticas dela com o outro homem que não tinha face nem tampouco nome Tratavase apenas de um marinheiro que era evocado fantasmaticamente no seu uniforme nas tentativas que faz de imaginar o sonho da mulher Era apenas isso que sabia do ilustre desconhecido Como teria sido Imagina e varia incansavelmente as sequências do sonho sem parar e recomeça novamente a seriação desbotada das imagens O filme se desdobra em torno dessa sequência como efeitos em cascata a partir dessa problemática fundamental Perturbado o marido quer saber algo sobre seu próprio desejo pois fora nisso que se centrara a interpelação da esposa O que ele deseja afinal Nada sabe efetivamente sobre isso Está em face de uma verdadeira incógnita já que nunca se perguntara sobre isso ao longo da vida O silêncio paira sobre esta questão crucial de sua existência Nenhuma revelação enfim se evidencia para ele pois passara a existência de olhos bem fechados olhando para a ponta de seu nariz e sem enxergar nada sobre as questões fundamentais de sua vida Não enxergara nada do que se passava no mundo à sua volta colado que ficara à sua imagem de médico bemsucedido e de seu conto de fadas familiar e matrimonial Diante do silêncio e da incógnita sobre o seu desejo passa então a perseguilo no campo da realidade guiado por sua vontade mas sem muita convicção interior Continua cego e surdo certamente pois seus olhos e ouvidos permanecem bem fechados Restalhe somente a possibilidade de agir empurrado por sua férrea força de vontade Se o pensamento não o ajuda em nada é preciso agir custe o que custar mesmo que faça isso de uma maneira cega Encontra então uma prostituta por acaso andando pela rua à noite a esmo que lhe oferece seus serviços eróticos Aceita então ir à casa dela Porém nada acontece pela impossibilidade dele de transar Contudo como bom moço que é paga generosamente a conta apesar de a mulher não querer lhe cobrar Afinal não trabalhara para isso dizia ela Mas você perdeu o seu tempo comigo dizia ele sempre excessivamente correto aplicando as regras da polidez literalmente sem qualquer rasura e nuance Sai angustiado da casa da prostituta e continua a andar a esmo sem destino Encontra um bar e entra para tomar um drinque Logo em seguida vê um antigo colega de faculdade que desistira dos estudos médicos para ser pianista Este estivera também na festa inicial do filme tocando piano quando se reencontraram após tantos anos O colega lhe fala então sobre uma festa privada na qual iria tocar ainda naquela noite e onde já estivera outras vezes e de como nunca conhecera nada igual na sua vida Fustigado pela curiosidade e pelo que se impunha a ele como proposta existencial acaba por tirar a contragosto do amigo o endereço da festa e a senha de entrada apesar do segredo absoluto que cercava a tal festa íntima Decide então ir custasse o que fosse mas para isso teria que vestir uma fantasia Esta era a exigência básica da festa secreta Começa a procurar desesperadamente uma loja pela madrugada e consegue por fim alugar um traje Sua fantasia é muito simples despojada e descolorida ao máximo compatível com a forma de ser de Bill Somente o uso de uma máscara sugere se tratar de uma fantasia Porém o uso daquela era fundamental no código da festa para que não fosse revelada a identidade dos convidados Enfim o segredo se impunha como já lhe dissera o amigo pianista Ao chegar à festa fica chocado com o que vê Não obstante a advertência do amigo de que nunca vira nada igual na vida a surpresa é enorme Descobre que está numa grande suruba dançante hétero e homossexual todos nus e seminus todos usando máscaras O cenário é muito impactante no que contém de grotesco e macabro Apesar da surpresa não vai embora mas circula pelo ambiente procurando mostrar naturalidade e tranquilidade Acaba então por ser reconhecido como intruso e ameaçado de morte O milionário que o convidara para a festa inicial do filme o reconhece e avisa os demais Ao ser ameaçado de morte safase de maneira inesperada alguém se oferece para morrer em seu lugar Uma mulher que ele tinha salvado de uma overdose na festa inicial do filme oferecese em sacrifício Foi assim poupado em decorrência de uma dívida e sai da festa na condição de expulso e como persona non grata bastante assustado com o que viu e com o que lhe aconteceu evidentemente Porém a saga terrorífica não termina Intrigado com o que lhe acontecera resolve procurar o pianista no hotel em que este estava hospedado Descobre que o colega tinha sido levado por homens estranhos e suspeitos Imagina que possa ter sido morto pelos organizadores da festa Resolve ir então ao necrotério de Nova York apresentandose com sua carteira de médico Vê então o corpo da mulher que se sacrificara em seu lugar Mas não encontra o do colega pianista Chocado volta à casa da prostituta Descobre então pela amiga com quem ela divide o apartamento que a moça fora embora porque descobrira que estava com Aids No fim de tudo volta para casa angustiado e aterrorizado com o que lhe acontecera Compartilha então com a esposa tudo o que experimentara com lágrimas e soluços de ambas as partes A narrativa deixa entrever que Bill percorreu todas essas peripécias e sequências praticamente sem dormir como se tivesse sido lançado num pesadelo interminável Contudo entremeando esse pesadelo as cenas do sonho de sua mulher transando com outro homem o obcecavam e não o abandonaram em nenhum momento A evocação do sonho lhe vem de maneira compulsiva como um pesadelo Portanto a narrativa do filme se polariza entre o sonho erótico de Alice regado a desejo narrado sem detalhes e o pesadelo de Bill mergulhado no abismo da dor apegado obsessivamente à sua única identidade a da figura do médico bemapessoado e bemsucedido Na narrativa fílmica Bill repete como um refrão um mesmo gesto apresentase com a sua carteira de identidade de médico em todos os lugares aonde vai Tudo isso se passa no tão valorizado cenário do Natal norteamericano no qual a família é erigida como signo e instituição maior do American way of life O suposto amor da cristandade se articula intimamente às requintadas árvores de Natal no cenário das casas e na rica decoração da cidade de Nova York na qual circula um desenfreado consumo pela compra de presentes O filme termina aliás numa famosa loja de brinquedos onde o casal ainda aturdido com tudo o que ocorrera passeia com a filha para que esta escolha seus presentes natalinos Porém uma última fala de Alice enuncia o que para ela estaria em questão em todo o filme nas suas desventuras com o marido Nós precisamos transar Relança então o que já estava colocado em surdina no início do percurso trágico de Bill na interpelação que lhe fez Alice Onde está o seu desejo e erotismo afinal II Desejo e fantasma Essa narrativa fílmica de Kubrick foi baseada num conto do escritor austríaco Arthur Schnitzler psiquiatra por formação mas literato por ofício O conto se intitula Traumnovelle traduzido no Brasil por Breve romance de sonho O conto e toda a obra de Schnitzler se passa em Viena no início do século XX descrevendo criticamente a existência de uma alta sociedade corrupta e hipócrita Mas o conto em questão se baseia no famoso caso Redl ocorrido em 1913 em que se descobriu que Alfred Redl apesar de ser casado era homossexual Um grande escândalo para a sociedade vienense Redl era um alto funcionário do exército austríaco ao mesmo tempo muito admirado e elogiado pelo imperador Schnitzler introduziu no conto as questões da sexualidade e do sonho que lhe interessaram bastante ao longo de toda a sua obra Schnitzler foi contemporâneo de Freud que tinha aliás muito respeito e admiração por sua obra literária Freud chegou mesmo a dizer que Schnitzler tinha conseguido enunciar com a simplicidade poética da ficção literária coisas que lhe haviam exigido muito tempo de árduo trabalho científico muitas proposições teóricas da psicanálise Estas encantavam Schnitzler como se evidencia fartamente nesse conto Antes de mais nada Schnitzler reconhece que existe uma dimensão real no sonho que tem um efeito poderoso sobre o sujeito Não apenas sobre o sujeito sonhador mas também sobre aquele a quem o sonho é narrado ou mais fundamentalmente ainda endereçado Ser personagem do sonho de alguém implica certamente muita coisa pela densidade existencial presente na narrativa onírica Pagase um preço em geral muito alto por isso mesmo que o endereçado nem sempre o saiba Além do mais sonhase frequentemente para alguém sem que este apareça necessariamente de maneira patente na narrativa onírica Assim o sonho não é um faz de conta nem um simples devaneio inconsequente pois remete o sujeito para algo da ordem do real No filme que analisamos esse efeito se evidencia não apenas na sonhadora mas também em seu marido que fica inteiramente subvertido com o relato da esposa Porque o sonho é uma realização do desejo do sonhador1 conforme nos ensinou Freud Esta realização se inscreve na realidade psíquica mesmo que não aconteça literalmente na realidade material2 Vale dizer o cenário do sonho se passa numa Outra cena que não é o espaço da consciência e do eu que estariam então descentrados em relação ao registro desejante do sujeito Foi esse desejo que efetivamente tomou conta de Alice que se pudesse o teria realizado no campo concreto da realidade material O disparador disso foi o olhar penetrante de um marinheiro que pôde incidir sobre o seu corpo apenas porque Alice mantinha sempre os olhos bem abertos e estendidos os poros de sua pele Porém o fato de ter sido possuída por tal intensidade do desejo dirigido a outro homem teve um efeito traumático sobre o marido que se reconheceu assim como despossuído de potência e destituído da possibilidade de desejar Rigorosamente falando o marido não esperava por isso Não imaginara jamais que tal coisa pudesse lhe acontecer Daí o efeito traumático do relato da esposa Foi tomado de surpresa por esse relato pois vivia tão centrado em si próprio cultivando sua identidade de médico bemsucedido da burguesia e da elite de Nova York que não mantinha os olhos bem abertos para o que ocorria à sua volta e em si mesmo Não podendo então fazer qualquer previsão e se antecipar ao pior foi tomado pelo choque da revelação da mulher e virado de pontacabeça3 Porém se tal antecipação não foi possível para o personagem isso se deve a um limite de sua possibilidade de temporalização e de seu apoio ostensivo no aqui e agora de suas coordenadas espaciais O apego ostensivo aos seus signos identitários e ao seu eu indica justamente isso A antecipação de um perigo possível de ocorrer no futuro como nos disse Freud em Inibições sintomas e angústia implica tornar presente algo que é ainda ausente pois se encontra adiante num futuro possível4 Essa temporalização antecipante pressupõe a simbolização de uma ausência pela mediação de uma presença isto é de tornar patente algo que é de ordem apenas virtual Tratase daquilo que Freud denominou angústiasinal ou sinal de angústia que seria o motor da antecipação e da proteção do psiquismo em face dos perigos possíveis Se o sujeito não pode realizar isso preso que fica em sua autossuficiência narcísica e excessivamente autocentrado será sem dúvida pego de surpresa por um acontecimento inesperado e lançado então no turbilhão abissal de uma experiência traumática Assim a angústia do real5 se impõe no psiquismo com o seu cortejo de dor e de gosto amargo de morte lançando o sujeito na posição do desamparo6 Porém a dita antecipação e simbolização de um acontecimento ainda ausente e virtual pois somente referido ao futuro possível e não ao presente supõe que o sujeito possa fantasmar algo que é ainda inexistente Esse fantasmar implica ainda a categoria do tempo e ambos se articulam reciprocamente intimamente com os registros da antecipação e da simbolização Tudo isso nos indica portanto que para o sujeito desejar é preciso também que possa fantasmar7 sem o que o desejo não se ordena e não se encorpa A possibilidade de fantasmatização se inscreve no registro psíquico da imaginação que implica em contrapartida a antecipação e a categoria de tempo na experiência psíquica O limite existencial do personagem do marido se evidencia então nesse ponto isto é na pobreza de sua possibilidade de fantasmar Não foi justamente isso que a mulher disse na interpelação dirigida a ele Não lhe perguntou o que sentia concretamente e o que imaginava ao examinar suas pacientes Por isso mesmo o marido foi buscar o seu desejo na realidade material pela impossibilidade de captálo no registro da realidade psíquica Isso ocorreu inicialmente com a figura da prostituta e se repetiu na festa pós moderna O que o sujeito não encontra na realidade psíquica tenta capturar no registro do real Não encontrou no psiquismo pela impossibilidade que evidenciava de fantasmar pela imaginação Assim para entrar na festa teve de ir em busca de uma fantasia para se enfarpelar condição para a sua entrada Entretanto usar uma fantasia e alugar uma fantasia não é a mesma coisa de têla incorporada a seu ser isto é de ser por ela habitado mas uma mímese do fantasmar e uma simples miseenscène isto é uma forma de como se Portanto a fantasia que transveste o personagem em questão não tem a potência de realização do desejo que sem a do fantasma encorpado não sustenta então o erotismo Por que não tem a mesma potência Ora a razão de ser do erotismo é a afirmação da vida contra a morte sendo essa o fundamento do último dualismo pulsional concebido pelo discurso freudiano em 1920 com Além do princípio do prazer8 Com efeito ao opor a pulsão de vida à pulsão de morte o discurso freudiano estava em face do incremento clínico e histórico da experiência do traumatismo na qual a possibilidade da morte se afirma contra a potência da vida Portanto pela mediação do fantasma e do desejo o sujeito constrói o erotismo como contraponto insistente à iminência aterrorizante da morte que se realiza pelo trabalho da pulsão de morte Porém se a morte não pode ser efetivamente mantida a distância pela ação permanente da pulsão de vida aquela se impõe triunfalmente sobre o psiquismo sob a forma da dor e do trauma Não foi justamente isso que ocorreu com o personagem do marido ao escutar o relato do sonho erótico da esposa Assim não foram por obra e capricho do acaso as diversas mortes que ocorreram em torno da figura do médico nas duas noites e um dia que teve de experiências estranhas Tais mortes foram a consequência e o desdobramento daquela lógica implacável acima descrita que as articula de maneira íntima De fato a figura trágica da morte como emanação que é do real se impõe ao psiquismo sob a forma da dor e do trauma quando o sujeito não pode se contrapor a isso pelo desejo e pelo fantasmar A morte como metáfora é a representação do espaço absoluto figurada pelo corpo imóvel enrijecido e descolorido do cadáver Dessa maneira é justamente o oposto da metáfora da vida representada pelo fluxo e pela afirmação do desejo permeados pela temporalização do corpo móvel e dançante da existência Em seu volume endurecido e em sua imobilidade o cadáver é uma escultura espacial da carne transformada em pedra em oposição à mobilidade do corpo do vivente no qual o tempo cadencia seus ritmos Portanto nessa surpreendente e inquietante retórica ficcional de Schnitzler se condensa de maneira magistral não apenas o que é fundamental na concepção do sonho formulada pelo discurso freudiano como também o que estava em pauta no projeto da modernidade O que se impõe agora é indicar e esboçar como este projeto começou a se esboroar e a ser transformado de maneira radical na atualidade Tudo isso também nos foi delineado pela narrativa fílmica de Kubrick E será o que colocarei em destaque para concluir este capítulo antes de empreender uma leitura mais detalhada da espacialização da experiência psíquica na contemporaneidade nos capítulos que se seguem III O sujeito em questão A interpretação dos sonhos foi uma das obras maiores que inaugurou o século XX sendo além disso emblemática do projeto da modernidade Isso porque desde a virada do século XVIII para o século XIX com a Revolução Francesa passouse a acreditar que a sociedade poderia ser reinventada em outras bases pela transformação efetiva da antiga virando a de pontacabeça Iniciouse assim o ideário da revolução que marcou a modernidade de maneira indelével O século XIX e parte do século XX foram marcados por revoluções que transformaram radicalmente a paisagem do mundo Nada mais foi igual ao que era antes iniciandose então uma outra história de longa duração que Hobsbawm chamou justamente de era das revoluções9 Além disso com o romantismo surgiram novas linguagens e retóricas nos registros da literatura e das artes plásticas que logo se disseminaram também para o teatro e o cinema Em decorrência disso foram constituídos diferentes movimentos de avantgarde nos quais as mais diversas retóricas todas sempre originais tomavam corpo e forma rompendo com as tradições até então estabelecidas O que o discurso psicanalítico formulou num outro registro foi apenas o alicerce e o motor dessas potencialidades de mudança Com efeito com a tese de que o sonho é uma realização do desejo Freud nos disse ser ele o desejo o que nos move e nos dá alento para existir impelindonos para a transformação do mundo para a invenção de outros mundos possíveis e para a criação de novas modalidades da linguagem Vale dizer o que o discurso freudiano enunciou foi a possibilidade efetiva de produção de descontinuidade provocando inflexões cruciais no registro da continuidade Tudo isso seria forjado pela antecipação do futuro e tomaria forma e corpo pela mediação do desejo e pelo fantasma Com efeito tanto a espacialidade das formas e instituições sociais estabelecidas poderiam ser relançadas pelo registro do tempo quanto a temporalidade tomaria outro volume e seria redirecionada pela promoção da descontinuidade Porém é preciso destacar agora que Kubrick não é Schnitzler mesmo que o primeiro tenha se baseado no conto do segundo para forjar sua narrativa cinematográfica O argumento do filme não é só o da ficção literária pois Kubrick introduziu mudanças significativas na narrativa de Schnitzler para a construção de seu argumento Foram introduzidas então pinceladas e pontuações na narrativa literária inicial que a transformaram radicalmente Quais foram essas transformações A primeira delas já referida é que a cena da trama se deslocou da Europa para os Estados Unidos na cidade de Nova York Ao lado disso tudo se passa na época do Natal isto é a festa que ritualiza o familiarismo presente na tradição norteamericana Portanto Kubrick se deslocou da hipocrisia vienense do começo do século XX para a hipocrisia norteamericana do fin du siècle e do início do século XXI condensando no fundamental o modelo da sociedade de consumo contemporânea Enfim é o mundo da modernidade avançada ou da pós modernidade que é efetivamente delineado pela sua narrativa cinematográfica O que se destaca agora na atualidade Os impasses e até mesmo a impossibilidade tanto na circulação quanto na realização do desejo Se olharmos o filme pelo viés da personagem da mulher o que se destaca é a dimensão do impasse Entretanto se percorrermos a narrativa pelo olhar do marido é a impossibilidade que se inscreve então no primeiro plano De qualquer maneira o desejo se encontra sempre em questão em qualquer uma destas direções Em decorrência disso o registro do erotismo perde a sua potência de afirmação da vida signo e resultante que é dessa afirmação articulada por Eros Portanto o erotismo como potência se reduz ao registro banal do sexo Não é justamente isso que enuncia Alice na loja de brinquedos na última fala do filme quando diz para Bill que para resolver as suas impossibilidades seria preciso transar Não é isso igualmente que nos apresenta Kubrick nas imagens da festa e da suruba pósmoderna nas quais o sexo aparece completamente destituído de erotismo Ao lado disso o sonho se apresenta e se coloca como algo no limite de uma realização impossível justamente pelos impasses colocados para a realização e construção do desejo No que concerne a isso o personagem do marido é paradigmática das diferentes modalidades de subjetividade presentes na contemporaneidade Com efeito a dor e a morte se tornam presenças aterrorizantes na sua existência perseguindoo nos seus menores atos e gestos de maneira que é o pesadelo o que se impõe efetivamente no seu imaginário Além disso quando Bill evoca o suposto sonho da mulher o que lhe vem ao espírito são cenas da transa sexual da esposa marcadas pela repetição onde o mesmo se repõe sempre e se evidencia na falta de qualquer colorido Kubrick aliás retira propositalmente o colorido dessas imagens colocandoas como esmaecidas e desbotadas Insiste portanto na equação imaginária entre a mesmidade e a falta de colorido Como já mencionado Bill é autocentrado colandose sempre à sua imagem e à sua identidade profissional É o médico fulltime que mostra sua carteira profissional o tempo todo e age também como tal sem qualquer interrupção É a sua performance na realidade portanto o que se destaca na sua existência efetiva sem qualquer brecha ou fenda que possa lançálo para as vertigens de um outro registro do real Sua imaginação é descolorida e pobre calcinada pelo silêncio e pela ausência do fantasmar A festa com sua suruba pósmoderna indica também a redução do erotismo ao registro do sexo movido seja a drogas seja à religiosidade e ao misticismo exóticos Com efeito tanto as drogas quanto a religiosidade e o misticismo orientais são ingredientes utilizados fartamente na atualidade como antídotos que seriam em face da miséria circulante e da dor que cadencia o malestar na contemporaneidade Porém tudo isso tem um efeito marcante sobre a curiosidade intelectual e o saber na atualidade na medida em que esses são também efeitos do desejo e da sua produção simbólica correlata O desejo de saber é antes de mais nada desejo isto é uma produção desejante Por isso as condições simbólicas de produção da sociedade contemporânea não são jamais interpeladas pelos diversos personagens do filme de maneira crítica evidentemente pois tomam tudo aquilo que ocorre de novidade como se fossem coisas naturalizadas Assim no centro do poder social e nas suas festividades onde se inscrevem os personagens importantes dessa óperabufa não existe qualquer curiosidade intelectual e envolvimento com o mundo do saber Na periferia no entanto algo se passa mesmo que seja de forma pontual e episódica Não é um acaso certamente que o único livro que aparece no filme que é do campo das ciências sociais esteja na casa da prostituta Isso nos sugere que apenas os despossuídos de poder social e supostamente de dignidade moral se questionam sobre as condições do mundo em que existimos hoje O que se configura no cenário descrito pela narrativa de Kubrick portanto é que na atualidade estaríamos no mundo do informe sem poder sonhar e desejar mutilados que estamos de nossas possibilidades de fantasmar sendo engolidos pela dor de existir e pelo pesadelo É o real no que existe de mais desértico que sintetizaria a nossa atualidade na sua nudez É o deserto do real que delineia o campo do sujeito hoje na ausência de qualquer horizonte possível Em tudo isso é o espaço que engole a possibilidade de temporalização da experiência psíquica que se cola assim no aqui e no agora do que nos é dado sem que esbocemos qualquer gesto e intenção seja de transcendência seja de pretensão utópica É esse o malestar na atualidade condensado magistralmente nessa narrativa cinematográfica que vou começar a analisar de maneira mais detalhada no capítulo que se segue Notas 1 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 2 Ibidem capítulo VII 3 S Freud Inhibition symptôme et angoisse 4 Ibidem 5 Ibidem 6 S Freud Malaise dans la civilisation 7 S Freud Linterprétation des rêves capítulo II 8 S Freud Audelà du principe de plaisir In S Freud Essais sur psychanalyse 9 E J Hobsbawm Las revoluciones burguesas CAPÍTULO 3 Subjetividades contemporâneas I Coordenadas da atualidade Tudo o que foi dito anteriormente converge para uma leitura acurada das subjetividades na contemporaneidade Para isso no entanto é preciso delineálas nas suas especificidades e marcar ao mesmo tempo as suas diferenças em face das formas pelas quais as subjetividades se configuraram na modernidade As relações entre as categorias do espaço e do tempo na estruturação da experiência do sujeito nos fornecerão a direção interpretativa que nos propomos a realizar aqui A espacialização da experiência toma efetivamente a dianteira desse processo de transformação em pauta pelo qual a temporalidade progressivamente se apaga e no limite quase se suprime Dessa perspectiva não é um acaso que Fukuyama tenha elaborado seu discurso sobre o fim da história com base justamente neste contexto histórico numa leitura sobre a funcionalidade da sociedade contemporânea e em defesa dos pressupostos do neoliberalismo1 O equilíbrio e o desequilíbrio de mercado se inscrevem no primeiro plano dessa leitura numa interpretação em que a sociedade se reduz no limite à condição de mercado de bens e serviços Ao lado disso não é também um acaso que outros teóricos como Lasch enunciem criticamente a constituição da cultura do narcisismo na atualidade2 neste contexto histórico pela qual a problemática da imagem se inscreve no primeiro plano na preocupação dos agentes sociais Para Fukuyama e Lasch o que está em questão de forma explícita e implícita é a mudança crucial nas relações dos sujeitos com o espaço e o tempo pela qual o primeiro tende a englobar o segundo Assim enunciar criticamente a emergência do fim da história e formular a perda de potência da temporalização na existência social com a consequente impossibilidade na realização de rupturas e na inflexão de descontinuidades na experiência social implica necessariamente o silenciamento da temporalidade e a expansão conferida à espacialidade Ao mesmo tempo a suposta hegemonia do narcisismo nos destina às miragens do eterno presente na sua repetição do mesmo no aqui e agora Com isso enfim a experiência também se espacializa condenada que fica à inexistência de qualquer horizonte de futuro Num momento histórico anterior a essas formulações teóricas mas que as delineavam já como possibilidades teóricas numa leitura retrospectiva Debord enunciou o conceito de sociedade do espetáculo na qual os registros do olhar da visibilidade da cena e da exibição se destacavam na configuração das novas modalidades de sociabilidade3 Os laços sociais se restringiriam então ao campo da imagem de maneira que a cena social se reduziria à retórica do narcisismo Seria a produção e a exaltação desenfreada das imagens de si mesmo para o deleite do outro num campo sempre imantado pela sedução o que passaria a dar as cartas do jogo na estética performática do espetáculo Essa transformação fundamental pressupõe uma mudança nas formas de malestar presentes na contemporaneidade A leitura do malestar é o leme que nos indica uma direção segura para as transformações que estão aqui em pauta Ao lado disso nos permite contrastar o malestar que se evidenciava na modernidade e aquele que ocorre na contemporaneidade Isso porque o malestar é o signo privilegiado e a caixa de ressonância daquilo que se configura nas relações do sujeito consigo mesmo e com o outro revelando assim as coordenadas cruciais que seriam constitutivas da experiência subjetiva Vale dizer é preciso delinear diferencialmente a condição do sujeito na modernidade e na atualidade pela leitura de suas respectivas modalidades de malestar Enfim as formas de estruturação do sujeito se evidenciam melhor pela captação de suas formas de padecimento O que é que estou denominando aqui de malestar II Malestar O malestar é um conceito eminentemente psicanalítico que foi enunciado por Freud em O malestar na civilização4em 1930 Como indiquei em outros livros5 o que está em jogo no discurso freudiano neste ensaio não é o malestar do sujeito no sentido lato do termo ao se inscrever em qualquer ordem social e em diferentes contextos históricos mas o malestar na modernidade no sentido estrito Foi a condição e o estatuto específicos do sujeito na modernidade que Freud procurou destacar delineando o campo do malestar como o seu correlato Isso porque o sujeito foi esboçado como necessariamente histórico não obstante a sua condição pulsional de base Seriam os destinos psíquicos das pulsões6 delineados na relação destas com os outros e com os dispositivos sociais que constituiriam tanto o sujeito quanto o malestar correlato Sobre isso é preciso destacar algumas questões preliminares para localizar devidamente a problemática do malestar No discurso freudiano a interpretação ahistórica e sem referência rigorosa a qualquer contexto social na leitura da palavra civilização foi a resultante tanto de uma leitura evolucionista inicial quanto de uma leitura estruturalista posterior desse discurso Dessas perspectivas o imperativo civilizatório produziria inevitavelmente o malestar no psiquismo ao deslocar o homem do registro da natureza para o da cultura Não obstante suas múltiplas diferenças seria essa oposição fundamental que direcionaria as interpretações em pauta de maneira que a pulsão como ser de natureza seria irredutível à ordem da cultura Daí o malestar decorrente desse conflito insuperável O que essas interpretações não consideraram devidamente foi não apenas a novidade da palavra civilização na tradição do Ocidente como também do seu conceito A emergência histórica desta palavra assim como sua inscrição em nosso vocabulário e sua circulação social corrente evidenciam a produção de processos sociais e políticos que lhe são fundantes e correlatos Relativamente recente na tradição ocidental e inexistente na Antiguidade e no mundo medieval a palavra civilização constituiuse apenas no século XVIII na França e na Inglaterra Essa constatação foi a resultante da pesquisa inicial realizada por Lucien Febvre7 em 1930 e retomada num comentário arguto empreendido por Benveniste8 em 1954 Na leitura realizada por este ficava em aberto a indagação se a palavra tinha sido inventada duas vezes nessas diferentes tradições independentemente e na mesma época ou se fora a tradição francesa que a introduzira no vocabulário da Europa moderna As investigações realizadas posteriormente conseguiram trilhar a pré história desta palavra desde o Renascimento e enfatizar como se disseminou pela Europa desde o século XVII Foi esta a contribuição dada tanto por Norbert Elias9quanto por Starobinski10 em tempos e contextos sociais diferentes Foi apenas então que se constituíram os jogos de linguagem11 iniciais para o seu uso assim como os seus correlatos jogos de verdade12 No século XVIII os discursos antropológico político e ético fundados todos no Iluminismo fixaram outras regras de linguagem e de verdade para o seu uso13 Em decorrência disso a categoria de civilização passou a ser oposta à de barbárie sendo ambas assim fartamente incorporadas pela retórica e pelo imaginário social no século XIX Foi certamente desse solo antropológico no qual foram opostas as categorias de civilização e de barbárie que se constituiu o paradigma evolucionista na antropologia Ao lado disso no registro estritamente político foi ainda do campo dessa oposição que se legitimou o colonialismo europeu no século XIX Assim quando Freud se valeu da palavra civilização para cunhar o conceito de malestar na civilização estava efetivamente inscrito neste solo arqueológico Em decorrência disso incorporou esses jogos de linguagem e de verdade que foram aí produzidos e que foram apenas recentemente sedimentados Estaria bastante distante assim do uso atemporal dessa palavra e conceito Vale dizer o discurso freudiano estava sempre referido ao discurso do iluminismo francês assim como ao do romantismo alemão ao manejar esta problemática da civilização Portanto a categoria de civilização se identificava decididamente com a de modernidade declinandose então de maneira orgânica com essa O conceito de malestar na civilização implicava sempre o enunciado da existência do malestar na modernidade Seria essa assim a condição concreta de possibilidade para a produção do dito malestar tal como foi finalmente formulado pelo discurso freudiano Contudo ao articular e declinar a palavra malestar com a palavra civilização acoplando agora intimamente uma na outra e forjando com isso um sintagma o discurso freudiano provocava então uma evidente dissonância na concepção de civilização implodindo radicalmente o sentido original dessa É a originalidade teórica disso que deve ser então destacada Revelase assim no discurso freudiano uma crítica da modernidade e de seus pressupostos pelo malestar subjetivo que essa seria capaz de engendrar Com efeito as perturbações do espírito seriam disso resultantes em decorrência das interdições eróticas que a modernidade constituiu para os indivíduos a fim de se fundar enquanto tal Seria justamente esta crítica da modernidade que estaria então no fundamento do discurso freudiano e no enunciado do conceito de malestar O que implica afirmar que este discurso é a contraface do malestar presente na modernidade e a denúncia de sua dimensão grotesca sendo então a modernidade sua condição histórica de possibilidade Portanto a psicanálise como saber constituído no fim do século XIX foi uma tentativa de resposta e de solução para o malestar existente na modernidade Assim em A moral sexual civilizada e a doença nervosa dos tempos modernos14 ensaio publicado em 1908 Freud indicava que o que estava em questão nesta problemática era a moral presente na modernidade que seria a condição de possibilidade das perturbações nervosas Isso porque a dita moral incidiria efetivamente sobre a existência erótica das individualidades impondo assim restrições e imperativos tão insuportáveis que seriam capazes de perturbar de maneira indelével o funcionamento do espírito Inaugurando então sua crítica sistemática da modernidade o discurso freudiano retomou os pressupostos enunciados nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade15 segundo os quais a sexualidade humana seria originariamente perversopolimorfa tendo que ser recalcada em nome do imperativo da reprodução da espécie16 Além disso a bissexualidade originária da condição humana seria também recalcada em função do estabelecimento da ordem familiar17 Esta de fato assumiu uma versão não apenas nuclear mas sobretudo monogâmica que teria afetado psiquicamente homens e mulheres18 com nítida desvantagem para estas certamente em decorrência dos valores do patriarcado que as submetiam aos homens19 A racionalidade científica e tecnológica do Ocidente que se encontrava presente na fundação histórica da modernidade não era certamente alheia a tudo isso tendo também efeitos decisivos no registro ético O estilo presente no discurso freudiano é sempre o da crítica nunca o do elogio seguramente não obstante os compromissos sempre renovados deste discurso teórico com a tradição da racionalidade ocidental20 É preciso ficar sempre atento a isso para que não percamos de vista o horizonte ético e político que está em pauta na crítica do discurso freudiano da modernidade Por isso mesmo em Considerações atuais sobre a guerra e a morte ensaio escrito em 1915 no calor sangrento da Primeira Guerra Mundial Freud revela sua perplexidade diante dos efeitos devastadores produzidos pela civilização ocidental21 Isso porque os representantes maiores desta isto é a Alemanha a França e a Inglaterra que deveriam justamente se regular pela razão científica utilizavamna em contrapartida para finalidades destrutivas e no limite anticivilizatórias22 As então denominadas sociedades primitivas mostravamse assim ser bem mais civilizadas que as do Ocidente não obstante serem por estas consideradas não evoluídas e até mesmo próximas da barbárie23 Isso porque revelavam um respeito ético pela vida e pela morte no qual a alteridade como valor ético fundamental estaria sempre no centro de suas práticas sociais mesmo na experiêncialimite da morte e da guerra24 A alteridade como valor fundante do discurso ético enfim teria sido silenciada e entrado em franco eclipse na modernidade ocidental O célebre ensaio sobre o malestar na civilização25 escrito na aurora dos anos 1930 foi o desaguadouro crítico a que conduziram esses comentários anteriores O discurso freudiano sistematizou aqui os impasses do projeto da modernidade indicando como o narcisismo solapava por dentro a máxima ética do Iluminismo centrada na felicidade no culto do eu e no prazer26 Seria o narcisismo ainda que implodiria o pressuposto ético do cristianismo tornandose este então insustentável na medida em que segundo a lógica daquele seria impossível amar o próximo como a si mesmo conforme enunciado por Cristo Porém a tese fundamental sobre o malestar na modernidade se condensou agora em torno da experiência psíquica do desamparo27 A presença trágica da sua experiência na subjetividade moderna e os destinos terroríficos construídos por essa subjetividade para lidar com o desamparo conduziram as individualidades insofismavelmente ao narcisismo à violência à crueldade e à destruição28 O desamparo no entanto foi articulado precisamente aqui à nostalgia da figura do pai29 que como ausência nos registros simbólico e real se fazia presença aterrorizante pela severidade implacável do supereu Seria isso então o que conduziria as subjetividades na modernidade às diferentes perturbações do espírito articuladas sempre pelo narcisismo pela violência pela crueldade e pela destruição30 III Transformações Não existem mais dúvidas sobre as mudanças nas formas de malestar na contemporaneidade em contraste patente ao que nos descrevia de maneira cortante o discurso freudiano O quadro hoje é outro francamente diferente Todos estão de acordo quanto a isso Existe com efeito uma transformação nas formas de malestar que é reconhecida pelos discursos psiquiátrico e psicanalítico No entanto as divergências existem mas não concernem ao reconhecimento das mudanças em pauta e sim à sua interpretação pelas implicações que disso decorrem A psicanálise certamente foi surpreendida pelas transformações em curso não sabendo ainda como se confrontar com o que existe aqui de inédito Com isso seu discurso derrapa nas múltiplas tentativas de pontuar as transformações com as consequências inevitáveis que isso provoca na escuta clínica A psiquiatria em contrapartida se vangloria de tudo isso acreditando orientarse agora por discursos científicos que poderiam explicitar melhor as novas modalidades de malestar Baseandose nas neurociências a psiquiatria supõe dominar os melhores e rigorosos instrumentos científicos para regular com mais eficácia o dito malestar Em decorrência disso a psiquiatria se coloca agora num outro limiar discursivo pois poderia tornar se finalmente livre da referência à psicanálise que marcou sua história durante décadas Enfim fundada nas neurociências a psiquiatria seria então biológica inscrevendose no campo da racionalidade e da institucionalidade médicas Não se pode perder de vista no entanto que as novas formas de mal estar foram a condição histórica que possibilitou a oposição entre psicanálise e psiquiatria biológica Com efeito se desde o início dos anos 1950 este confronto foi iniciado com a descoberta farmacológica da clorpromazina foi apenas pela mediação das novas formas de malestar que se processou uma outra partilha no campo dos saberes sobre o psíquico opondo definitivamente os discursos psicanalítico e psiquiátrico Assim se as novas modalidades de malestar começavam já a indicar sua diferença nos anos 1970 e 1980 foi nos anos 1990 que todos os seus signos se exibiram com pompa Como uma verdadeira prima donna da sociedade contemporânea as novas formas de malestar se apresentaram com todo o barulho a que tinham direito No lugar das antigas modalidades de sofrimentos centrados no conflito psíquico nos quais se opunham os imperativos das pulsões e os das interdições morais o malestar se evidencia agora como dor inscrevendose nos registros do corpo da ação e das intensidades Foi em decorrência dessa viragem no ser da subjetividade que a nova partilha no campo dos saberes sobre o psíquico se fundou Em consequência disso o horizonte dos poderes foi então redistribuído em torno das valências outorgadas pelo campo dos saberes31 A psicanálise perdeu assim parcela significativa do poder social que usufruía até então na nossa tradição cultural como discurso teórico de referência que era no campo dos saberes sobre o psíquico A psiquiatria em contrapartida passou a ocupar uma outra posição no espaço social deslocandose decisivamente de seu lugar de subalternidade em relação à psicanálise Enfim o campo em questão foi virado de pontacabeça de maneira imprevisível poucas décadas atrás Sem querer desmerecer os esforços teóricos de uns e de outros é preciso reconhecer como uma questão preliminar a esta discussão que a problemática em pauta não se restringe ao mero registro da clínica Ao contrário o que se processa hoje nesse registro é o ponto de chegada de um longo processo de mudança da subjetividade que é preciso reconhecer devidamente Seria essa a condição concreta de possibilidade para não se debruçar sobre a clínica de maneira ingênua Tal transformação histórica se funda em operadores políticos sociais e simbólicos que subverteram o campo dos saberes e dos valores de forma radical De tudo isso resulta uma outra problemática ética que se impõe na leitura do malestar É por esse viés que o malestar se transformou numa indagação ética para a leitura das subjetividades contemporâneas Estamos aqui diante de uma caixapreta que deve ser cuidadosamente aberta para que se possam decifrar as surpresas que revela sobre a atualidade IV Cartografia do percurso Desta perspectiva minha intenção aqui é partir daquilo que é patente e ostensivo que se manifesta no registro eminentemente clínico isto é as queixas e as maneiras pelas quais o malestar é descrito nos discursos psicanalítico e psiquiátrico para me indagar em seguida sobre os registros antropológicos nos quais o malestar se inscreve É necessária no entanto uma leitura crítica desses registros a fim de avaliar as escolhas realizadas Vale dizer é preciso descobrir as razões pelas quais são tais os registros onde se inscreve o malestar e não outros na medida em que isso não é óbvio Isso implica a sinalização das mudanças apresentadas pelas subjetividades contemporâneas em face do passado recente Ao lado disso é preciso sustentar algumas interpretações que nos permitam caminhar nesta leitura é claro Para começar a desenovelar esses enunciados podese formular que o malestar contemporâneo se inscreve positivamente em três registros psíquicos quais sejam o do corpo o da ação e o da intensidade Foi pela mediação desses que o malestar foi classificado e hierarquizado Evidentemente tais registros podem aparecer de forma combinada numa mesma individualidade Ou então enunciamse de maneira independente na descrição do malestar A combinação é a forma mais comum de apresentação Porém na descrição um dos registros pode assumir maior pregnância que os demais que ficam então numa posição subalterna De qualquer maneira é na prevalência dos registros do corpo da ação e da intensidade que o malestar se faz patente na atualidade sendo estes que orientam suas descrições nas quais se particularizam as muitas narrativas clínicas Em contrapartida outros registros antropológicos tendem a ser francamente negativizados na descrição do malestar na contemporaneidade enquanto assumiam uma posição destacada na expressão do malestar num passado recente Com efeito o pensamento e a linguagem tendem a desaparecer como eixos ordenadores do malestar na atualidade enquanto assumiam anteriormente uma posição nobre na descrição do malestar Qual a razão da perda de privilégio desses registros em face dos demais que ganham então a dianteira na configuração das subjetividades contemporâneas É o que pretendo responder nos capítulos que se seguem Notas 1 F Fukuyama O fim da história e o último homem 2 C Lasch The culture of narcissism 3 G Debord La société du spectacle 4 S Freud Malaise dans la civilisation 5 J Birman O malestar na atualidade Idem Arquivos do malestar e da resistência 6 S Freud Pulsions et destins des pulsions In S Freud Métapsychologie 7 L Febvre Civilisation Le mot et lidée 8 E Benveniste Civilisation Contribution à lhistoire du mot 1954 In E Benveniste Problèmes de linguistique générale tomo 1 p 336345 9 N Elias La civilisation des moeurs 10 J Starobinski Le mot civilisation In J Starobinski Le reméde dans le mal 11 L Wittgenstein Investigations philosophiques In L Wittgenstein Tractatus logico philosophicus suivi de investigations philosophiques 12 M Foucault Les technologies de soimême In M Foucault Dits et Écrits vol IV 13 M Duchet Anthropologie et histoire au siècle des lumières 14 S Freud La morale sexuelle civilisée et la maladie nerveuse des temps modernes 1908 In S Freud La vie sexuelle 15 S Freud Trois essais sur la théorie de la sexualité 1º ensaio 16 S Freud La morale sexuelle civilisée et la maladie nerveuse des temps modernes In S Freud La vie sexuelle 17 Ibidem 18 Ibidem 19 Ibidem 20 S Freud Lavenir dune illusion 21 S Freud Considérations actuelles sur la guerre et sur la mort In S Freud Essais de psychanalyse 22 Ibidem 23 Ibidem 24 Ibidem 25 S Freud Malaise dans la civilisation 26 Ibidem 27 Ibidem 28 Ibidem 29 Ibidem 30 Ibidem CAPÍTULO 4 Corpo e excesso O corpo é o registro antropológico mais eminente no qual se enuncia na atualidade o malestar Todo mundo hoje se queixa de que o corpo não funciona a contento Algo não está bem com o corpo que se transforma na caixa de ressonância privilegiada do malestar Imaginase sempre que algo deve ser feito para que a performance corpórea possa melhorar pois essa se encontra sempre aquém do desejado Sentimonos sempre faltosos deixando de fazer tudo o que deveríamos considerando as múltiplas possibilidades oferecidas para o cuidado do corpo Enfim estamos sempre culpados ainda que levemente e numa franca posição de dívida em relação a isso As queixas corporais se inscrevem numa discursividade ao mesmo tempo naturalista e naturista que constitui a nossa atmosfera cultural Vale dizer não é possível separar de maneira artificial as queixas que temos em relação ao nosso corpo das diversas estratégias publicitárias que nos envolvem que sob a forma do naturismo e de naturalismo nos enviam permanentemente às práticas exóticas e à medicina Podese dizer que estas nas suas diferenças constituem as duas faces de uma mesma moeda Qual a razão desse prestígio conferido ao corpo Podese afirmar que o corpo para nós cidadãos do mundo contemporâneo é nosso único bem Todos os outros desapareceram ou foram relativizados no seu valor Numa inversão marcante em relação à Antiguidade podese dizer que o corpo se transformou no nosso bem supremo Nem Deus nem tampouco a alma ocupam mais este lugar de destaque na cosmologia íntima do sujeito na contemporaneidade apenas o corpo Portanto se o bem supremo se aloja no corpo a saúde se transformou no nosso ideal supremo Estamos assim num estado de estresse permanente Este é o fundo sempre presente nas narrativas sobre o malestar e permanentemente reiterado nos discursos sobre o tema Os diversos discursos médicos falam disso sem parar como um estribilho que se repete ao infinito Em última instância o estresse é designado como o maior malestar permanente na contemporaneidade que pode se manifestar de múltiplas e infinitas maneiras É o maior malestar já que está no fundamento de todos os demais pois passando pela elevação da pressão arterial da dispneia e da aceleração do ritmo cardíaco tudo é passível de lhe ser atribuído O conceito de estresse formulado por Seyle pretendia circunscrever os perigos para a ordem vital na qual estes seriam sempre reconhecidos no registro da totalidade psicossomática pela mediação do medo Em decorrência disso seriam produzidas defesas para garantir a ordem vital a manutenção da homeostase vital seria imprescindível desta perspectiva regulatória do organismo Tratase portanto de uma concepção holística das relações entre o organismo o psiquismo e o meio ambiente de maneira que o estresse é o efeito de uma poderosa descarga neurovegetativa no organismo As glândulas suprarrenais produziriam hormônios adrenérgicos para colocar o organismo numa posição de alerta Esse conceito evidencia uma leitura sistêmica do indivíduo que por meio do psiquismo inscreve o organismo no meio ambiente1 Não foi por acaso que LéviStrauss se referiu à reação do estresse para interpretar os possíveis efeitos mortais da feitiçaria quando os presumidos alvos dessa acreditam nos imperativos maléficos de seus enunciados isto é quando se inscrevem efetivamente nos pressupostos simbólicos que caucionam estes2 As reações neurovegetativas seriam então disparadas pelos terrores promovidos numa subjetividade que acredita nos imperativos mágicos dos enunciados da feitiçaria3 A cura xamanística consistiria então neste contexto em contrapor o poder simbólico do xamã ao poder mágico do feiticeiro para suspender os efeitos mortais da reação neurovegetativa4 O estresse está no centro do malestar atual produzindo diferentes sintomas psicossomáticos Já mencionei uma série desses sintomas mas cabe ressaltar ainda que a psicossomática como especialidade ao mesmo tempo médica psiquiátrica e psicanalítica se expandiu muito desde os anos 1980 apesar de os seus primórdios se superporem aos da psicanálise tendo em Groddeck e Ferenczi seus fundadores5 Porém foi apenas no contexto atual de transformação do campo do malestar que a psicossomática como disciplina se consolidou na nossa tradição No entanto isso não é tudo Além dos sintomas destacados é preciso evocar alguns outros Antes de mais nada a síndrome de fadiga crônica mediante a qual os indivíduos se referem à presença de um cansaço absoluto que se manifesta pela ausência de impulso vital e pela imobilidade corporal A medicina clínica atribui isso a certas viroses e à falta de algumas vitaminas na dieta A psiquiatria em contrapartida atribui isso a processos de natureza depressiva supondo uma disfunção na economia bioquímica dos neurohormônios Porém o estresse estaria sempre lá como base subjacente dessas leituras provocando então tais efeitos psicossomáticos Em seguida é preciso evocar o pânico que se transformou hoje numa modalidade destacada de malestar Na síndrome do pânico as pessoas se queixam de uma angústia iminente de morte que as paralisa pois são incapazes de reação Os indivíduos são enredados num ataque de angústia que os impossibilita de agir A taquicardia se conjuga com a dispneia e o aumento da pressão arterial seguida também de sudorese excessiva Neste contexto o fantasma da morte se impõe como uma certeza iminente Daí o pânico que toma corpo literalmente no sujeito A síndrome do pânico é desencadeada frequentemente em situações sociais nas quais o sujeito supõe que será avaliado O olhar do outro ocupa então toda a cena psíquica do sujeito como um intruso que o invade e perfura com suas exigências diante das quais ele se sente impotente e sem os instrumentos capazes de responder àquelas demandas A espacialização domina inteiramente a experiência subjetiva em pauta produzindo então um curtocircuito nos processos de temporalização da dita experiência e conduzindo o sujeito ao colapso psíquico e à certeza da morte súbita Ainda no fim do século XIX Freud descreveu a síndrome do pânico sob o nome de neurose de angústia Esta seria uma modalidade de neurose atual causada pela disfunção libidinal na qual o psiquismo não conseguiria inscrever a excitabilidade sexual numa série simbólica capaz de poder interpretar o incremento da excitação6 Tudo se passaria aqui numa direção oposta às neuroses de transferência nas quais tal inscrição ocorreria e o registro da representação fundaria os seus sintomas7 Nessa impossibilidade a excitabilidade se descarregaria imediatamente sobre o corpo e provocaria então a neurose de angústia Freud enunciou que esta como as demais neuroses atuais não seria passível de ser psicanalisada porque à diferença das neuroses de transferência não constituía liames simbólicos capazes de tornar possível a interpretação8 O discurso freudiano indicava enfim a fragilidade das formações simbólicas em causa as únicas que poderiam articular o registro da pulsionalidade com o da simbolização Portanto de forma diferente da fobia na qual o psiquismo se protegeria da disseminação da angústia pela construção de signos de evitamento quais sejam os objetos fóbicos na neurose de angústia o psiquismo não constituiria tal proteção9 Assim na neurose de angústia não existiria a possibilidade de se constituir um objeto contrafóbico Depreendese disso que um excesso de excitação se instala então no psiquismo ao qual este fica submetido Em decorrência disso o trauma se estabelece de maneira inequívoca e inevitável O trauma seria então a contrapartida do excesso que paralisa o psiquismo na sua mobilidade Isso porque o eu não consegue se precaver dos perigos materializados por acontecimentos imprevisíveis pela sua antecipação sob a forma de angústiasinal10 Portanto os acontecimentos não pressentidos se impõem com violência provocando a angústia do real e não mais a angústia do desejo isso é o excesso de excitação que se impõe e a experiência traumática consequente11 Seria isso enfim que estaria em pauta na síndrome do pânico Isso nos indica que a pregnância assumida hoje pelo registro do corpo revela a presença de uma falha crucial no mecanismo de angústiasinal no psiquismo e a fragilidade simbólica na antecipação do perigo Isso porque seriam tais mecanismos que constituiriam a angústiasinal e que protegeriam o psiquismo do imprevisível Ou seja se os sintomas acima referidos dominam a experiência contemporânea do malestar algo de fundamental se produziu na subjetividade que a tornou incapaz de antecipar o perigo e regular assim suas relações com o mundo Dito de uma outra maneira parece que tal ruptura indica que os feitiços do mundo ficaram tão insinuantes e ganharam tanta maledicência em decorrência da perda de eficácia dos mecanismos de proteção simbólica culturalmente instituídos Consequentemente a figura do xamã perde autoridade diante da do feiticeiro na medida em que suas interpretações perdem prestígio diante do mal Quem é essa autoridade que perde prestígio diante do mal na contemporaneidade afinal de contas Podese entrever aqui que a psicanálise está em crise hoje perdendo terreno para a magia das drogas psicofarmacológicas que pretendem agir sobre o malestar no próprio corpo em estado nascente regulando diretamente os humores deste O código simbólico construído pela psicanálise não consegue mais fazer obstáculo à disseminação do mal como aconteceu historicamente do fim do século XIX aos anos 1990 Os humores mostramse assim rebeldes e incontroláveis pelos símbolos e pelo discurso mantendose então barulhentos em face desses Uma transformação crucial na economia política dos signos produziuse no Ocidente incidindo de maneira frontal sobre o discurso psicanalítico que se inscrevia nessa economia política Em decorrência disso os discursos naturista e naturalista se alastram no campo do imaginário social impondo sua hegemonia numa outra economia dos signos Nesse contexto os tratamentos corporais assumem um lugar cada vez mais importante Das massagens ao spa passando pelos exercícios ginásticas e danças orientais tais tratamentos dispararam na preferência dos usuários sem esquecer é claro os suplementos vitamínicos e os sais minerais que têm virtudes antioxidantes e rejuvenescedoras O risco como sensação polivalente nas suas figurações está sempre presente no imaginário contemporâneo Com isso o envelhecimento se transforma numa enfermidade e a morte deve ser sempre exorcizada Nesse contexto a medicina ortomolecular ganha notoriedade científica por suas promessas relacionadas com a longevidade As fórmulas que inventa são personalizadas baseadas nas idiossincrasias e nas singularidades de cada um Daí o fascínio e a eficácia imaginária que promovem nos usuários A reposição hormonal se banaliza por razões terapêuticas e preventivas tanto para os homens quanto para as mulheres É o ideal da juventude e do parecer jovem que se impõe como imperativo de saúde associado ao ideal estético da beleza No entanto é a longevidade que está sempre em causa no caldeirão da bruxa das novas alquimias propostas pela farmacopeia na atualidade As caminhadas diárias visam às mesmas coisas Evitamse assim o estresse e os efeitos maléficos sobre o sistema cardiovascular Além disso as gorduras são queimadas e os perigos mortais do colesterol exorcizados Consequentemente as academias de ginástica se transformam num dos templos seculares mais prestigiados na atualidade aonde os usuários vão comungar como fiéis em nome da longevidade e da beleza Em cada quarteirão das grandes cidades se acumulam e se alastram diversas academias de ginástica que transformaram a cartografia das cidades Não se pode separar tais práticas do amplo processo de medicalização do Ocidente iniciado no século XIX Uma separação dessa ordem implicaria um equívoco interpretativo desse imaginário corporal O que se empreende na atualidade é já uma frente bastante avançada do processo de medicalização iniciado há duzentos anos Assim iniciado com a polícia médica12 e a higiene social13 na Alemanha na França e na Inglaterra a medicalização do espaço social passou a promover o ideário da saúde no lugar anteriormente conferido à salvação no espaço social pósmoderno permeado que aquele era pelo imperativo da religião14 Constituiuse então a clínica e a medicina social15 frente e verso que são da mesma folha isto é do mesmo processo de medicalização do espaço social As categorias de normal anormal e patológico passaram a dominar os discursos médicos e as políticas públicas16 que visavam normalizar as populações Porque se a qualidade de vida da população passou a ser considerada o signo maior de riqueza das nações17 isso implicaria não apenas uma população bemeducada mas antes de tudo saudável A modernização ocidental se fundou nesse projeto de medicalização do social de forma que os discursos médicos permeados sempre pelas categorias do normal do anormal e do patológico foram os modelos arqueológicos para a constituição dos diferentes discursos das ciências humanas18 A biopolítica se estruturou precisamente nesse contexto histórico19 tendo como seu correlato a constituição da biohistória20 O que estava em questão era a conjugação rigorosa dos registros do corpo disciplinar e do corpoespécie matériasprimas por excelência do poder disciplinar21 e do biopoder22 de maneira que o adestramento corporal era a contrapartida para a programação eugênica da população saudável e com boas possibilidades de reprodução biológica e social23 O imaginário corporal presente na atualidade se inscreve nesse projeto maior do biopoder sendo o seu desdobramento na contemporaneidade Assim a genética médica e as pesquisas sobre o genoma inscrevemse neste imaginário fazendo crer que a longevidade e principalmente a imortalidade poderiam ser conseguidas mediante as clonagens terapêutica e reprodutiva Mesmo que a segunda ainda seja repudiada pela comunidade científica internacional e que se aposte cientificamente agora apenas na primeira isso não quer dizer que não se busque no futuro a imortalidade pela via da clonagem reprodutiva desde que a tecnologia para isso se torne finalmente possível Não são razões de ordem ética o que conduz a comunidade científica ao repúdio atual da clonagem reprodutiva mas apenas simples impasses de ordem estritamente científica Ao lado disso o discurso psiquiátrico se vangloria de poder manejar drogas que poderiam regular o malestar corpóreo estando assim na vanguarda da pesquisa médica Isso porque os medicamentos oferecidos pela psiquiatria biológica e pela psicofarmacologia seriam capazes de incidir no metabolismo dos neurohormônios não ficando então a regulação do malestar restrito à imprecisão das psicoterapias O discurso deve ser assim colocado de lado na relação médicopaciente e psiquiatrapaciente em prol da eficácia bioquímica dos medicamentos psicotrópicos Portanto o xamã na atualidade assume decididamente a feição de um mago que manipula a alquimia psicofarmacológica com a qual pretende se opor e combater as novas modalidades negras de feitiçaria Assim o naturalismo o orientalismo e as novas formas de terapias exóticas que estão francamente na moda convivem muito bem com a medicalização em pauta não existindo pois nenhuma oposição fundamental entre esta e aquelas Isso porque todos têm no malestar do corpo o ponto de apoio para as suas diferentes estratégias de cuidados Notas 1 F Alexander T French Studies in psychossomatic medicine P Lain Entralgo Historia de la medicina moderna y contemporánea J Souhterland Evolution of psychosomatic concepts E Weiss O English PsychosomaticMedicine 2 C LéviStrauss Lefficacité symbolique In C LéviStrauss Anthropologie structurale p 213 234 3 Ibidem 4 Ibidem Sobre isso ver também C LéviStrauss Le sorcier et sa magie In C LéviStrauss Anthropologie structurale p 191212 5 G Groddeck Le livre du ça G Groddeck La maladie lart et le symbole S Ferenczi Psychanalyse 2 S Ferenczi Psychanalyse 3 J Birman Enfermidade e loucura Sobre a medicina das interrelações 6 S Freud Psychothérapie de lhystérie In S Freud J Breuer Études sur lhystérie 7 Ibidem 8 Ibidem 9 S Freud Quil est justifié de séparer de la neurasthénie un certain complexe symptomatique sous le nom de névrose dangoisse In S Freud Névrose psychose et perversion S Freud Obsessions et phobies In S Freud op cit 10 S Freud Inhibition symptôme et angoisse 11 Ibidem 12 G Rosen Da política médica à medicina social 13 M Foucault Naissance de la clinique 14 Ibidem 15 Ibidem 16 Ibidem 17 M Foucault La volonté de savoir Histoire de la sexualité Vol 1 18 M Foucault Naissance de la clinique 19 M Foucault Il faut defendre la société 20 M Foucault La volonté de savoir 21 M Foucault Surveiller et punir 22 M Foucault La volonté de savoir 23 Ibidem M Foucault Il faut defendre la société CAPÍTULO 5 Ação e compulsão I Hiperatividade violência criminalidade É preciso destacar agora que o malestar incide também no registro da ação Reencontramos aqui alguns dos ingredientes presentes no registro do corpo Entretanto suas especificidades devem ser sublinhadas não obstante suas complementaridades evidentes Antes de mais nada é preciso reconhecer que as individualidades contemporâneas ultrapassam um certo limiar vigente anteriormente no registro estrito da ação Algumas novidades se fazem aqui presentes caracterizando um certo estilo de ser do sujeito na contemporaneidade1em oposição ao momento histórico que o precedeu na longa duração Se a condição de ser ao mesmo tempo pausada e reflexiva delineava o estilo de ser na modernidade não obstante as descontinuidades e as rupturas intempestivas que o marcaram e caracterizaram a aceleração do sujeito é o que se destaca na contemporaneidade O ser interiorizado no registro do pensamento se transforma no ser exteriorizado e performático que quer agir antes de mais nada Assim a hiperatividade se impõe Agese frequentemente sem que se pense naquilo a que se visa com a ação de forma que os indivíduos nem sempre sabem dizer o que os leva a agir O sujeito da ação tem a marca da indeterminação No cogito da atualidade o que se enuncia ostensivamente é agir logo existir O agir é o imperativo categórico na contemporaneidade2 Retomando o que já enunciei acima podese dizer que as individualidades seriam marcadas pelo excesso que as impele inequivocamente para a ação Isso porque esta seria a melhor forma para se ver livre daquele e poder então eliminálo Caso não façam isso as individualidades seriam possuídas pelo excesso que as inundaria pela angústia3 É desse fundo difuso e indeterminado que se pode depreender algumas das modalidades específicas de ação nas subjetividades contemporâneas A explosividade antes de tudo Tudo se passa como se essas não conseguissem mais conter o excesso no seu território interior para em seguida simbolizálo e transformálo naquilo que Freud denominou ação específica4 isto é numa ação adequada ao contexto em que uma dada afetação foi colocada para o psiquismo Diante dessa impossibilidade a descarga de excitabilidade se impõe sob a forma de manifestações emocionais incontroláveis Com isso a irritabilidade é uma constante na forma de ser das individualidades atuais marca insofismável do seu ser Um dos maiores problemas sociopolíticos da atualidade é a violência Esta se impõe como uma invariante sempre presente nas subjetividades que se mostram cada vez mais violentas se as compararmos com as de décadas atrás Com efeito a violência sem causa aparente e a violência gratuita se banalizaram no nosso mundo de forma inquietante e já se transformaram em lugarcomum5 Mesmo que a violência não seja gratuita e que tenha boas motivações para existir o que se destaca aqui é a disparidade entre o motivo e a violência desencadeada como se esta fosse a única possibilidade que se impõe no horizonte do sujeito diante de um impasse e de um obstáculo Tudo se passa como se ele tivesse perdido a crença na possibilidade de resolver e superar os obstáculos que se colocam para si pelo discurso e pela retórica isto é pela negociação com os outros Uma das consequências da violência é o incremento da delinquência Ao lado disso a criminalidade se intensifica em todos os quadrantes do planeta sem exceção Assume assim a cada dia novas modalidades de ser e de se apresentar evidenciando feições frequentemente imprevisíveis As diversas publicações sociológicas e criminológicas em escala internacional dão testemunho disso e procuram interpretar o que se passa a partir de diferentes perspectivas A publicação da obra de Rusche e Kirchheimer sobre punição e estrutura social6 assim como a de Foucault sobre a genealogia do poder e da punição7 procuraram reavaliar tudo isso de uma perspectiva crítica e histórica No entanto uma marca se destaca na criminalidade atual de forma inconfundível e interessa diretamente à problemática da subjetividade Estou me referindo à crueldade que colore cada vez mais os crimes na contemporaneidade O refinamento assumido pela crueldade deve ser devidamente sublinhado pois ultrapassa os limiares anteriormente estabelecidos no gesto de matar Atingimos novos níveis até então impensáveis A possibilidade de tirar a vida de outro se dissemina tornandose natural assim o assassinato e o genocídio em que a crueldade delineia frequentemente a cena do crime com pinceladas grotescas e anti humanas II Compulsões e cultura das drogas Veremos agora a compulsão em suas diversas modalidades de ser na contemporaneidade A compulsão é uma modalidade de agir caracterizada pela repetição já que o alvo da ação não é jamais alcançado Daí a sua repetição incansável sem variações e modulações que assume o caráter de imperativo isto é impõese ao psiquismo sem que o eu possa deliberar sobre o impulso que inevitavelmente se impõe É necessário destacar algumas das modalidades de compulsão que se banalizaram na contemporaneidade e que estão disseminadas no espaço social Algumas são mais comuns em adolescentes em jovens ou em adultos Outras em contrapartida atravessam as diferentes idades e se alastram por toda parte Antes de mais nada a compulsão presente no uso de drogas As toxicomanias constituem hoje uma das formas dominantes do malestar inscrevendose em diferentes faixas etárias e classes sociais Impõemse como um dos flagelos da atualidade e se transformaram num dos alvos privilegiados das políticas de saúde pública Isso porque como os adolescentes e adultos jovens são os grandes consumidores de drogas o fenômeno provoca efeitos perigosos na performance escolar além dos efeitos danosos sobre a saúde física e a saúde mental Tratase hoje de um fenômeno de massa em larga escala disseminado em amplos setores da população É preciso no entanto não confundir o consumidor de drogas seja esse consumo regular ou irregular com os toxicômanos Encontramos aqui dois segmentos heterogêneos da população que não podem ser superpostos nem do ponto de vista psicanalítico nem do psiquiátrico nem do médico A toxicomania implica uma dependência física e psíquica à droga caracterizada pela impossibilidade do sujeito de poder viver sem ela Seria isso que conduziria o sujeito à compulsão propriamente dita como traço característico do funcionamento psíquico dos ditos toxicômanos Nos demais consumidores de droga não existiria rigorosamente falando a dependência física Com isso a compulsão não se encontra presente8 Estabelecida esta diferença é preciso não ser ingênuo na leitura dessas compulsões As toxicomanias não se restringem ao uso das drogas ilegais produzidas e comercializadas pelo narcotráfico mas incluem também as drogas legais e ditas medicinais legitimadas cientificamente pela medicina clínica e pela psiquiatria Refirome aos psicotrópicos que são receitados fartamente pelos clínicos de diferentes especialidades e pelos psiquiatras a fim de regular bioquimicamente o malestar dos indivíduos além é claro dos diversos analgésicos de potência variável Com efeito dos ansiolíticos aos antidepressivos passando pelos diversos estimulantes a farmacopeia médica oferece um vasto e diversificado cardápio de possibilidades para a prescrição dos clínicos e psiquiatras Por que estas últimas são também drogas poderia alguém me interpelar Alguns desses medicamentos são drogas porque podem engendrar dependência física e psíquica Além disso devese reconhecer que vivemos numa cultura das drogas da qual não se pode excluir também o fumo e as bebidas alcoólicas Enfim vivemos intoxicados mesmo que não saibamos disso pois esses diferentes fármacos e estimulantes se inscrevem no estilo contemporâneo de existência Alguns comentários suplementares devem ser feitos aqui Antes de mais nada a substituição de uma droga pela outra realizada pelos usuários Assim as bebidas alcoólicas substituem as drogas medicamentosas às vezes e reciprocamente como se o sujeito acreditasse que desta maneira estaria se protegendo mais de uma ou de outra em seus efeitos nefastos Ou então trocase uma droga ilegal pelos medicamentos acreditando estar promovendo a saúde Com a onda antitabagista na qual o cigarro foi considerado maléfico à saúde e seria politicamente incorreto as pessoas pararam de fumar e passaram a se drogar com outras coisas como as drogas pesadas e o álcool De fato se os adolescentes hoje fumam menos do que as gerações anteriores em contrapartida eles bebem e se drogam muito mais com o álcool e as drogas pesadas Enfim é sempre a cultura das drogas que se dissemina mesmo que os usuários alimentem a hipocrisia de estarem promovendo a saúde como o seu bem supremo É preciso sublinhar também que os médicos clínicos são aqueles que prescrevem mais psicotrópicos hoje muito mais do que os psiquiatras Isso porque não apenas as pessoas procuram muito os clínicos quando são acometidas por algum malestar no registro corporal de forma que estes recebem grande parte das demandas de cuidados como também porque com a prática médica assumindo cada vez mais uma versão técnica o clínico não acolhe mais psiquicamente os pacientes mas tenta suavizar o desamparo destes Assim diante do esvaziamento da relação médico paciente os clínicos medicam os pacientes com os mais diversos psicotrópicos e antidepressivos As dores e os sofrimentos dos pacientes são assim medicalizados ostensivamente Não obstante a medicalização os clínicos não dominam corretamente o uso daqueles medicamentos de forma que os pacientes são medicalizados no seu sofrimento e dor por um lado e mal medicados pelo outro Alguns autores destacam que mesmo na psiquiatria clínica a experiência se repete Isso porque não existiria ainda uma psicofarmacologia clínica isto é uma utilização ponderada e cientificamente bem fundada no uso dos psicofármacos mas apenas a utilização destes a partir de conhecimentos genéricos da psicofarmacologia experimental que os psiquiatras clínicos possuem9 Enfim a psiquiatrização do sofrimento pelos psicofármacos alimenta a cultura das drogas sem que a eficácia daqueles seja devidamente conhecida pelos psiquiatras no registro estritamente clínico Não se pode deixar de destacar que a constituição de uma cultura das drogas nas últimas décadas no Ocidente no que se refere às drogas pesadas trouxe como consequência uma sofisticada indústria de produção e de refino das suas matériasprimas que as coloca posteriormente em circulação no mercado internacional Portanto o narcotráfico nesta larga escala supõe tal infraestrutura industrial que apenas se tornou possível pela utilização dos saberes e dos dispositivos laboratoriais proporcionados pelo discurso da ciência Vale dizer a produção de drogas pesadas supõe a existência e a produção de dispositivos técnicos construídos pelos laboratórios de pesquisa para que possam ser transpostos para lugares inóspitos como a floresta amazônica os Andes e algumas regiões longínquas da Ásia Portanto sem estas aparelhagens científicas seria quase impossível produzir a droga na escala industrial em que é hoje produzida de forma que o cartel de drogas e o narcotráfico supõem necessariamente os instrumentos e dispositivos forjados pelas novas tecnologias médico biológicas10 Além disso é importante destacar ainda que a cultura das drogas propriamente dita se constituiu apenas na tradição do Ocidente nos anos 1970 Foi nesse tempo e contexto que ocorreu uma ruptura significativa e uma descontinuidade histórica Por que afirmo isso Entre as décadas de 1930 e 1960 o uso da droga estava intimamente articulado a uma gramática específica e a uma ritualidade bem caracterizada Com efeito o sujeito buscava na experiência com a droga a possibilidade de descobrir e de inventar outros mundos possíveis A busca da invenção guiada pelo desejo e pelo projeto de provocar rupturas no mundo social instituído estava sempre em pauta Um trabalho de interiorização e de reflexão sobre estas experiências era o seu correlato não existindo pois um sem o outro Enfim a proposição de romper com o mundo existente para novos mundos possíveis fazia parte deste projeto existencial11 Daí por que se inscrevia fartamente tal uso na comunidade artística aliás desde a primeira metade do século XIX Foi isso que mudou a partir dos anos 1970 quando o uso da droga passou a ser cultivado por si mesmo sem se inscrever em qualquer projeto existencial que lhe transcendesse Buscavase assim o prazer pelo próprio prazer num festim hedonista que valia por si mesmo Com efeito a experiência com a droga se transformou numa evasão do sujeito para fugir então de um mundo intolerável e não para construir novos mundos possíveis a partir da experiência com as drogas Portanto a sensorialidade hedonista buscada por si mesma seria uma maneira de o sujeito fugir de uma realidade que seria insuportável e que ao mesmo tempo ele se sentia impotente para transformar Enfim a experiência com a droga se fazia agora fora de um projeto existencial de transformação do mundo sem qualquer gramática e ritualização simbólica pela qual o sujeito se evade do mundo instituído pela impotência e impossibilidade de fazer algo que o modifique efetivamente A cultura da droga seria assim uma resposta ao malestar na atualidade pela qual o sujeito despossuído da possibilidade de acreditar que possa fazer algo busca pelo hedonismo e pela sensorialidade prazerosa produzir algum gozo diante de tanta dor Foi isso que constituiu uma cultura da droga propriamente dita na contemporaneidade Foi nesse contexto histórico que a compulsão pelas drogas se disseminou como modalidade de ação não se restringindo mais ao campo do consumo das drogas III Festins comestíveis e outras orgias Se o consumo de drogas não é o único registro da compulsão no mundo contemporâneo é preciso enunciar agora os outros campos nos quais essa também se realiza A comida e o consumo se transformaram também em objetos e alvos privilegiados da compulsividade do sujeito Assim a comida se destaca nas compulsões atuais impondose ao mesmo tempo como fascinante e mortífera já que é atraente e repelida num mesmo movimento pelas pessoas A relação do sujeito com a comida é ambígua e ambivalente pois esta é objeto de desejo e de repulsa de maneira que a voracidade e o vomitar se declinam quase que num mesmo gesto Os efeitos e destinos dessa polaridade são opostos certamente mas a comida como fetiche12 está sempre presente nessa experiência compulsiva Entre a magia e o gozo portanto a comida é um objeto certeiro de sedução mas pela qual a magia pode se transformar num feitiço e num canibalismo mortífero que deve ser prontamente repelido Por que objeto de sedução Nunca se comeu tanto e tão bem como hoje no Ocidente tal a oferta a quantidade e a variedade de bens comestíveis Tudo isso contrasta com uma longa história anterior marcada pela carência e pela carestia como ainda hoje ocorre em amplas regiões do planeta O trágico cenário africano contrasta com a pujança e o brilho comestível existente na Europa e nos Estados Unidos Porém nestes também as regiões de consumo alimentar de luxo contrastam com a penúria de outras regiões de maneira que o cenário de luxúria comestível convive lado a lado com o que existe de padrão africano numa mesma cidade Nesse contexto a voracidade atinge níveis espetaculares engendrando uma cultura desenfreada do preenchimento e do mau gosto Os festins comestíveis se transformaram numa das marcas da contemporaneidade não obstante a presença do estilo culinário fast food que é disseminado em segmentos das classes médias e das classes populares É nesse quadro de referência que se inscrevem as compulsões alimentares As bulimias são um dos monumentos sintomáticos disso Comese de maneira excessiva e mesmo obscena predominando aqui a dimensão do preenchimento corporal advindo deste o prazer alimentar O gosto polivalente sempre presente na comida e na boa culinária se apaga destacandose apenas a devoração para preencher o vazio dos interstícios do corpo O vazio corporal seria assim a condição de possibilidade para a canibalização dos bens comestíveis numa orgia que busca preencher todos os espaços e fendas corporais É claro que o preenchimento do vazio se realiza também com outras compulsões como com as drogas e o consumo Porém no que concerne às bulimias a obesidade se transformou hoje num problema maior de saúde pública nos países desenvolvidos A União Europeia e os Estados Unidos se preocupam com isso e nos últimos anos formularam novas políticas de saúde coletiva de propaganda e de entretenimento a fim de superar a catástrofe que já se faz presente em seus espaços sociais Se a catástrofe já se instalou neste registro de nosso estilo de existência isso revela que a impossibilidade da experiência do vazio se colocou de maneira trágica pois como se sabe a obesidade é uma encruzilhada perigosa para a emergência de diversas enfermidades muitas delas fatais No entanto como a magreza é um dos nossos códigos de beleza já que quem é gordo não tem qualquer sensualidade e na sua feiura não tem qualquer poder de sedução a voracidade tem que ser controlada custe o que custar Foi nesse contexto que o gordo foi transformado não apenas num doente mas também num monstro A obesidade é um dos signos da monstruosidade na atualidade condensando em si as representações da deformidade da feiura e do antierotismo Assim para evitar o estigma da obesidade é preciso evitar a comida Surgem então modalidades grotescas de relação com esta Existem pessoas que se sentem seduzidas pelos festins comestíveis e que comem vorazmente a boa comida mas que a vomitam imediatamente antes de digerir para que possam manter a bela magreza Cultivase assim uma forma de sensorialidade sem corporeidade pela qual as sensações se desenraízam radicalmente do registro do corpo constituindo uma das originalidades antropológicas da contemporaneidade Isso porque na tradição ocidental os registros da sensação e do corpo se declinaram sempre num mesmo plano e eixo inseparáveis que eram no mesmo comprimento de onda O paroxismo disso é a anorexia na qual o indivíduo recusa o alimento que se transforma então de objeto fascinante em nojento por ser capaz de destruir a beleza e envenenar o corpo Assim a magia comestível se transforma em um feitiço e a comida em veneno contra as ordens da vida e da saúde No entanto tudo isso convive com os regimes e as dietas nos quais as individualidades ingerem apenas os nutrientes essenciais para não digerir calorias excessivas que perturbem a saúde e a beleza A ingestão alimentar passa pelo crivo estrito das racionalidades médica e científica de maneira que no limite nos alimentamos de fórmulas bioquímicas que aprendemos na Internet nas páginas científicas dos jornais e nas notícias divulgadas pela televisão sem esquecer é claro as prescrições dos médicos e dos nutricionistas13 Não se pode esquecer do consumo que também se transformou numa verdadeira compulsão Com efeito os mais diversos objetos da indumentária passando pelo perfume e pela maquiagem são objetos de compulsões propriamente ditas Ao lado disso os livros e os CDs são consumidos compulsivamente comprados pela notoriedade dos autores compositores e músicos14 Tudo isso é amealhado mesmo que as pessoas não tenham tempo para lêlos e escutálos As pessoas olham com gula e saliva nos lábios para as ricas vitrines das lojas sempre prontas que estão para o ato canibalístico de consumir No entanto se não é sempre possível usar todas as vestimentas que são adquiridas nem tampouco ler e escutar todos os livros e CDs comprados pela falta de tempo numa cultura marcadamente acelerada possuir tudo isso é fundamental inscrevendose isso também na nova economia política dos signos Nesta com efeito a posse de bens é um signo de poder na medida em que define o status do indivíduo É preciso portanto possuir os bens para ostentálos para ser reconhecido enfim em seu poder social Assim qualquer mercadoria é passível de inscreverse no circuito do consumo sendo pois a condição de possibilidade para o engendramento da compulsão O gozo seria então direcionado pelo fetichismo das mercadorias numa fetichização ampla geral e irrestrita do universo do consumo Isso porque o ter para preencher o vazio corporal e psíquico é um signo que confere segurança para o indivíduo pois o faz acreditar ser detentor de algum poder pelo status que pode exibir É neste contexto que o shopping center se transformou num outro templo da sociedade pósmoderna onde as peregrinações dos consumidores fiéis ocorrem todos os dias Nesse espaço antissagrado saturado de mercadorias nos quais os objetos são sofisticadamente revestidos pelos designers requintadamente empacotados e exibidos em vitrines luxuosas a compulsão do ter se evidencia revelando assim a face mortífera da sedução Notas 1 J Birman Por uma estilística da existência J Birman Estilo e modernidade em psicanálise 2 E Kant Critique de la raison pratique 3 S Freud Inhibition symptôme et angoisse 4 S Freud Esquisses dune psychologie scientifique In S Freud La naissance de la psychanalyse 5 J Baudrillard La société de consommation 6 G Rusche O Kirchheimer Punição e estrutura social 7 M Foucault Surveiller et punir 8 J Birman Malestar na atualidade G Sissa Le plaisir et le mal philosophie de la drogue 9 G Swain Chimie cerveau esprit et société Paradoxes epistémologiques des psychotropes en médicine mentale In Le Débat nº 47 10 J Birman Que droga In J Birman Malestar na atualidade 11 J Birman Dionísio desencantado In J Birman op cit A Huxley As portas da percepção o céu e o inferno 12 S Freud Le fetichisme In S Freud La vie sexuelle 13 T Vincent Direction La jeune fille et la mort E Kestemberg J Kestemberg S Decobert La faim et le corps G Pirlot Les passions du corps la Psyche dans les addictions et les maladies autoimmunes possessions et conflits dalterité 14 J Baudrillard La société de consommation CAPÍTULO 6 O tempo vai para o espaço Vou fazer agora uma pequena parada na leitura dos registros onde o mal estar na atualidade se materializa antes de retomar o percurso com a descrição do registro das intensidades Isso porque pretendo colocar em evidência que a dominância da categoria do espaço sobre a do tempo está no fundamento das diferentes modalidades de expressão do malestar É essa mesma dominância que estará igualmente em pauta na leitura do registro das intensidades O que significa dizer que a relação entre estas duas dimensões constituintes da experiência do sujeito com a predominância agora do espaço sobre o tempo é a encruzilhada fundamental por onde se realiza e se operacionaliza a constituição das formas de subjetivação hoje I Passagem ao ato e actingout Podese afirmar sem qualquer dúvida e vacilação que em tudo o que foi delineado até agora é sempre o excesso que se encontra subjacente Ao promover a hiperatividade ele é a condição de possibilidade da agressividade da violência da criminalidade e da compulsão Porque o excesso está no fundamento do malestar contemporâneo Em face do excesso que invade e se alastra sem limites o psíquico procura dele se livrar pela ação para não correr o risco de ficar paralisado pela disseminação da angústia do real Porque se o excesso não for descartado e descarregado pela ação o psiquismo procura se desembaraçar daquele pelas vias corporais Com efeito o estresse o pânico e as perturbações psicossomáticas seriam disso as resultantes no registro do corpo porque o excesso não se esvai pela ação Seria então o excesso no psiquismo que conduziria a essas duas séries e eixos sintomáticos isto é as que incidem nos registros do corpo e da ação na medida em que aquele ficaria retido no corpo quando não pudesse ser eliminado como ação Por que tal hierarquia entre os registros do corpo e da ação Esta indagação é fundamental pois para uma leitura ingênua deste processo não deveria existir qualquer hierarquia entre os caminhos para o escoamento das excitações que se faria de maneira indiferente e indiscriminada Porém se de um ponto de vista biológico esta formulação poderia se sustentar teoricamente com certa facilidade o mesmo não poderia ser dito do ponto de vista psíquico O que estaria em causa afinal de contas na dominância da ação sobre a descarga corporal Podese afirmar que o que estaria aqui em questão seria a economia psíquica do narcisismo1 Assim como ele é uma instância crucial para a integridade do eu e para a manutenção da ordem vital a sua preservação é fundamental para o psiquismo Com efeito para a preservação do narcisismo o eu prefere explodir do que implodir mantendo então a autoconservação do organismo e a homeostasia do prazer Porém diante da impossibilidade da explosão a implosão se impõe necessariamente colocando em questão a ordem da vida Isso porque os interstícios e as fendas do somático seriam as únicas linhas de fuga disponíveis para a materialização da implosão Para que se compreenda melhor ainda as modalidades de ação que estão presentes nas formações sintomáticas do malestar hoje podese enunciar valendose da metapsicologia psicanalítica que o psiquismo lança mão cada vez mais da passagem ao ato e não do actingout Esta distinção teórica nos leva ao centro da problemática aqui em questão diferenciando devidamente as diversas modalidades de ação Assim essa diferença conceitual se refere à fragilidade e à ausência de processos de simbolização na passagem ao ato enquanto estas estariam presentes no actingout atuação Vale dizer neste a simbolização se inscreve na ação e como ação que se manifesta então como uma miseen scène Podese afirmar portanto que na miseenacte existiria ainda uma encenação no psiquismo2 O inconsciente se realizaria assim como ato e em ato como ocorre no lapso e no ato falho3 como nos descreveu Freud em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana No que concerne a isso Lacan enunciou que existiria ainda o sujeito na atuação colocando este na Outra cena numa dupla posição como encenador e como personagem4 Em contrapartida na passagem ao ato a ação é rude e brutal não revelando mais qualquer rastro de simbolização5 No que se refere a isso Lacan formulou o apagamento e o silenciamento do sujeito na passagem ao ato6 No registro eminentemente clínico as diferenças são patentes Na conversão presente na histeria existe a presença de formas de simbolização no psiquismo que delineiam as linhas de fuga da encenação na corporeidade Em contrapartida no estresse no pânico e nas perturbações psicossomáticas nos defrontamos com a ausência destas de forma que o excesso implode no psiquismo e no organismo7 Enfim é o silêncio simbólico que se manifesta sob o fundo do ruído pela perturbação produzida no registro do somático II Encenação e somatização No entanto a analogia existente entre o excesso que incide sobre o corpo e a ação indica como ambos são equivalentes em suas respectivas dinâmicas Esta equivalência evidencia mais ainda o que está aqui em questão no processo de engendramento do malestar Podese afirmar assim que se age igualmente sobre o corpo e sobre o mundo na medida em que esses são considerados apenas na sua dimensão espacial como lugar para a descarga das intensidades De fato seria o corpo na sua dimensão estritamente somática que seria afetado aqui pela descarga nos registros do volume e da profundidade e não no de sua superfície Isso porque enquanto volume e profundidade é que a corporeidade se torna indiscriminada nas suas possibilidades de significação já que seria apenas na superfície do corpo que as encenações se inscrevem numa gramática e numa sintaxe simbólicas O discurso freudiano procurou delinear isso no início do seu percurso estabelecendo a diferença entre as paralisias orgânica e histérica isto é entre as paralisias produzidas por causas orgânicas e as que tinham uma causalidade psíquica8 Seria justamente por isso que a conversão histérica se realiza na superfície do corpo nas bordas existentes entre os registros do somático e do outro nas quais as trocas do sujeito com o mundo se estabeleceriam apoiadas9 na pele nos órgãos sensoriais e nas mucosas Estas seriam as dobras entre os registros do somático e do psíquico que funcionariam como bordas para que as pulsões pudessem constituir as zonas erógenas e o autoerotismo10 Seria pelo autoerotismo sustentado pelo investimento do outro que o registro do somático seria transformado em corpo propriamente dito11 Em contrapartida a somatização psicossomática toma decididamente a direção delineada pelas linhas de fuga da massa do somático na qual não existe mais qualquer diálogo do psiquismo com o mundo12 Podese delinear assim as relações existentes entre as categorias de forma e de visível assim como do seu oposto qual seja as relações íntimas que existem entre o informe e a invisibilidade Se a encenação empreendida pela conversão histérica se faz sempre em imagens pela quais se dramatizam a relação do sujeito com o outro isso evidencia como a formalidade presente nas imagens se inscreve no registro do visível Em contrapartida a descarga da somatização psicossomática se realiza no registro do invisível na profundidade e no volume da massa somática informe Da mesma forma o corpo espacializado no registro do somático implica um mundo que se delineia e se restringe também às coordenadas estritamente espaciais O mundo se reduz ao espaço do aqui e do agora sem expansão sem escansão e sem qualquer horizonte possíveis pois é a pontualidade da sua presença que aqui se impõe Porque é o registro do tempo que abre as janelas do mundo para outras possibilidades de existência fazendo entrever outras temporalidades existenciais além do que eclode pontualmente nos momentos descontínuos dos diversos instantes Para transformar o instante numa continuidade modulada é necessária a incidência dos processos de temporalização na experiência psíquica Para isso o instante tem que ser inscrito numa sequência marcada pela diferença do agora do antes e do depois e ser realizado por uma operação de translação III Translação Essas diferenças foram delineadas pelo discurso freudiano no início do seu percurso ao lado de outros critérios distintivos Foi este o caso da diferença que procurou estabelecer entre as neuroses atuais e as neuroses de transferência duas modalidades de existência do malestar como disse no capítulo inicial deste livro Assim as neuroses atuais implicariam pura descarga da excitação para o registro do somático em decorrência da impossibilidade do processo de simbolização Seria o que ocorreria na neurose de angústia e na neurastenia Se no caso da primeira a descarga seria provocada pelo excesso de excitação que deságua no registro do somático a segunda seria provocada pelo esgotamento da excitabilidade que esvaziaria a vitalidade do organismo13 O efeito da espacialização seria aqui imediato pois a excitação que conduziria à descarga assume a condição de estase da excitabilidade Essa perderia então a possibilidade de mobilidade e se estancaria Enfim é o movimento que não poderia efetivamente acontecer reduzido que é à condição de ser um simples ponto no qual se condensa o espaço Essa ausência de movimento indica que o tempo é que seria a condição de possibilidade para a produção do movimento Além disso o tempo pressuporia ainda a simbolização para lhe conferir suporte e possibilidade de existir Seriam pois o tempo e a simbolização que ofereceriam mobilidade para a excitabilidade na falta dos quais é o espaço que se faz presente na estase e na descarga Com isso o corpo ficaria reduzido ao registro do somático pelas linhas de fuga do volume e da profundidade Em contrapartida nas neuroses de transferência o tempo e a simbolização estariam presentes de maneira que a temporalidade se ordenaria pela relação entre o presente o passado e o futuro na experiência do sujeito14 Seria isso enfim que possibilitaria a transferência propriamente dita15 Foi em decorrência disso que o discurso freudiano estabeleceu uma relação íntima entre as neuroses atuais e as de transferência O enunciado desta relação fundamenta o argumento acima formulado e possibilita a sua demonstração Assim a neurose de angústia seria a neurose atual da histeria enquanto a neurastenia seria a da neurose obsessiva16 Vale dizer qualquer neurose de transferência seria iniciada por uma modificação na economia das pulsões que seria materializada pelas neuroses atuais Esta transformação contudo dependeria da presença de mecanismos de simbolização que numa translação decisiva deslocaria o registro da neurose atual para o da neurose de transferência Enfim esta simbolização pressuporia a categoria de tempo é claro pois o tempo é o correlato da simbolização Posteriormente quando o discurso freudiano enunciou a existência de uma terceira neurose atual denominada hipocondria continuou a insistir na existência do liame entre as neuroses atuais e as neuroses de transferência17 A hipocondria seria assim a neurose atual da psicose18 tal como Freud descreveu especificamente as transformações corporais que ocorrem na experiência psicótica e que seriam prévias à organização do delírio na sua leitura de Schreber19 IV Ação coartada Por todos esses caminhos fica claro como o malestar na atualidade centrado nos registros do corpo e da ação indica uma ruptura entre os registros do espaço e do tempo nos quais o espaço passa a dominar todo o território do psiquismo Com isso o corpo assume a forma do somático materializandose como volume e profundidade perdendo qualquer dimensão significante A imobilidade a informidade e a invisibilidade são suas formas de ser justamente pela ausência dos mecanismos de simbolização e da incidência da temporalidade Seriam essas em contrapartida que possibilitariam a constituição da mobilidade da forma e da visibilidade na experiência psíquica inscrevendo a conflitualidade psíquica na superfície corporal sob a forma de encenações e enunciando então o embate pulsional sob a forma de retóricas que se inscrevem no corpo propriamente dito Fica evidente assim a existência de um impasse na dinâmica psíquica que se refere à fragilização do registro do tempo no malestar hoje que se materializa concretamente nos registros do corpo e da ação Não existiria aqui nem simbolização nem tampouco antecipação das afetações20 O que se evidencia é a marca eminentemente traumática21 pela qual se delineia o malestar na contemporaneidade É o trauma que está então sempre em questão num mundo marcado pela imprevisibilidade e pela instabilidade dos códigos simbólicos estabelecidos O malestar se apresenta hoje tanto no corpo quanto na ação pela pregnância assumida pela categoria do espaço no psiquismo a expensas da categoria do tempo É nesse sentido portanto que podemos dizer de maneira ao mesmo tempo rigorosa e literal que o tempo vai para o espaço na nova cartografia do mal Além disso o que se evidencia aqui é que a ação coartada está sempre em questão no malestar atual mesmo quando o corpo é o alvo e o objeto da descarga do excesso das intensidades Portanto a ação coartada indica a impossibilidade do movimento assim como a da visibilidade e da formalidade No entanto a ação coartada é uma ação fracassada que não atinge seu alvo nem sua finalidade que seria a de produzir uma mudança no mundo que deveria envolver o sujeito da ação Não é isso que se evidencia de forma eloquente com a compulsão que precisa ser permanentemente lançada e repetida em sua mesmidade pois seria uma ação frustrada e fracassada em suma coartada na sua finalidade de transformar o mundo V Primórdios da transformação Contudo a transformação radical nas modalidades de malestar já estava ocorrendo nos anos 1930 Podese comprovar isso não apenas pelo novo estatuto do traumático que já foi aqui destacado na metapsicologia freudiana mas também pelo trabalho teórico de outros autores que pertencem à tradição psicopatológica psicológica e psicanalítica francesa Assim em sua brilhante descrição e na interpretação fenomenológica que realizou da esquizofrenia Minkowski já colocava em destaque a presença da geometrização da experiência psíquica na produção dos sintomas esquizofrênicos22 Enunciar o conceito de geometrização para dar conta das múltiplas produções sintomáticas da esquizofrenia implica colocar em evidência a dominação absoluta da categoria do espaço sobre a do tempo na experiêncialimite da psicose Com efeito lançando mão dos conceitos fundamentais da filosofia de Bergson na qual as categorias do espaço e do tempo são cruciais onde o sujeito e a ordem vital estariam no registro do tempo inscritos no registro do élan vital enquanto o espaço seria constitutivo da ordem mecânica da natureza inorgânica23 Minkowski mostra como o processo esquizofrênico afetaria as dimensões mais nobres da ordem vital pela qual a temporalidade se perderia de maneira absoluta na experiência psíquica e a espacialização mecânica assumiria o domínio total no psiquismo O élan vital estaria então afetado e subvertido atingindo a mobilidade do sujeito que ficaria reduzido à geometrização das formas presentes na natureza bruta24 Lacan em contrapartida enunciou em 1936 o conceito do estádio do espelho durante a apresentação de um trabalho que não foi publicado no Congresso Internacional de Psicanálise realizado em Marienbad Em 1938 começou a escrever regularmente sobre isso como no ensaio sobre os complexos familiares25 vindo a realizar plenamente a sistematização do conceito nos ensaios sobre a causalidade psíquica 194626 a agressividade em psicanálise 194827 e o estádio do espelho propriamente dito 194928 Com isso pretendia colocar em evidência como a espacialidade dominaria a experiência psíquica nos seus primórdios e que a ordem do tempo seria posterior Baseouse para tanto num ensaio inicial de H Wallon e num livro posterior que descreveu o estádio do espelho no desenvolvimento infantil29 Porém Lacan deu ao conceito uma extensão que estava ausente na psicologia de Wallon O que Lacan pretendeu dizer com isso Seu ponto de partida foi a constatação da prematuridade biológica do organismo humano tal como esse viria ao mundo como já apontava a biologia de então Isso seria devido à desmielinização das fibras nervosas que provocaria em contrapartida uma impossibilidade de coordenação do sistema nervoso Sem essa coordenação nos primórdios da vida o infante estaria entregue a uma experiência quase absoluta de deiscência corporal e psíquica Com isso o medo da morte e da dissolução corporal estariam permanentemente presentes na experiência do infante No entanto entre os oito e os dezoito meses o estádio do espelho se constituiria sem que o infante tivesse ainda qualquer mielinização das fibras nervosas Um descompasso entre os registros nervoso e psíquico se produziria assim provocando uma autonomia do segundo em relação ao primeiro de forma que a imagem corporal que seria então constituída não teria nada a ver com o esquema corporal constituído apenas aos dois anos de vida do infante com a maturação mielínica do sistema nervoso30 Porém tal autonomia do psiquismo se faria pela presença da imago do corpo próprio que seria constituído pela experiência especular31 Pela mediação dessa imago o infante adquiriria uma forma corporal e uma imagem de si constituindo uma verdadeira armadura corpórea que lhe provocaria uma experiência originária de alienação32 Isso porque na formação do estádio do espelho o infante vê uma imagem projetada no espelho mas seria o olhar materno que confirmaria que essa imagem seria uma projeção do infante Vale dizer o reconhecimento da existência do infante seria realizado pela figura da mãe o que provocaria a tal alienação de si do infante a que já me referi Porém essa experiência seria estruturante para o infante que se ordenaria como forma contra o fundo da deiscência corporal constituindo então o eu e a imagem corporal como o seu correlato33 Por isso mesmo Lacan enunciou enfaticamente que essa experiência seria jubilatória Seriam constituídos assim a identificação e o narcisismo primários no sentido freudiano desses conceitos34 Essa construção seria contudo muito frágil ameaçando permanentemente o infante com a fragmentação corporal e psíquica que se anuncia com o fantasma de um retorno possível à experiência originária de deiscência corpórea Formarseiam assim os diferentes fantasmas do corpo fragmentado que povoariam posteriormente o imaginário humano na experiência da angústia35 Fica evidente com isso como o psiquismo seria originalmente espacializado sendo uma unidade tecida em torno de uma imago que pode se fragmentar contudo a qualquer momento desde que o infante não seja reconhecido pelo outro repetindo o gesto materno inaugural que constituiu a sua imagem especular Lacan evoca assim as experiências infantis de transitivismo formuladas por Bühler Com efeito se duas crianças com pequena diferença de idade são colocadas juntas uma se confunde com a outra e o terror que cada uma delas sente de perder a imagem especular faz com que uma ataque a outra com violência para não perder essa identificação36 A violência e a agressividade humanas seriam então produzidas nesse contexto pela imagem especular que estabelece uma relação dual entre os indivíduos e os corpos para manter sua integridade narcísica esses indivíduos precisam se atacar e se destruir mutuamente37 Dessa perspectiva seria apenas com a triangulação edipiana com a emergência da imago do pai no psiquismo que o infante sairia da servidão da imago materna e da imago fraterna que o condenariam à relação dual e violenta com o outro Com efeito os horizontes do outro e da alteridade se constituiriam pela mediação da imago paterna que possibilitaria a ascensão à ordem simbólica38 Posteriormente Lacan reformulou essa introdução da figura do pai que remanejaria então o registro da especularidade Pela introdução do registro da fala e da linguagem em psicanálise em 195339 a figura do pai introduziria a lei da interdição do incesto como sendo a lei simbólica e a figura do pai foi reformulada pelo conceito de Nomedopai De qualquer forma podese reconhecer que seja pela mediação da imago paterna seja pela mediação da linguagem e da lei simbólica o que Lacan pretendia com a dita mediação era inscrever o psiquismo no registro do tempo a fim de relativizar a pregnância do registro do espaço na construção psíquica originária Seria necessário colocar uma distância do sujeito em face da captura especular pois essa o destinaria à fragmentação sempre possível e iminente no horizonte de sua experiência Se essa espacialização fosse dominante seria a violência a agressividade e a criminalidade que se imporiam na experiência psíquica e social tal como Lacan mostrou em seu ensaio sobre a agressividade em psicanálise40 Por isso mesmo Lacan fez aqui a releitura da problemática do malestar em Freud destacando que o que caracterizaria o malestar na modernidade seria a humilhação da figura paterna de forma que a experiência psicanalítica visaria a inscrever tal imago do pai no psiquismo para regular o malestar em questão41 Não foi por acaso que Lacan se concentrou tanto no seu percurso inicial na psicanálise na pesquisa da violência e da criminalidade pois essas como modalidades básicas do malestar de então estariam condensadas no registro dual da especularidade42 Com isso a base de construção psíquica seria eminentemente paranoica em decorrência da espacialidade primordial e da alienação do sujeito ao outro Na leitura de Lacan a paranoia seria o modelo clínico por excelência para a leitura do psiquismo pela dominância do espaço sobre o tempo substituindo então o modelo clínico freudiano centrado na histeria Dessa perspectiva a agressividade seria anterior ao erotismo na experiência psíquica de acordo com a transformação já existente no campo social do malestar Portanto tanto com Minkowski quanto com Wallon e Lacan na geometrização da experiência psíquica na esquizofrenia e com o estádio do espelho seria sempre a espacialização primeira do psiquismo o que estaria em pauta de forma que com a fragilização da temporalidade seria aquela que presidiria e regularia a experiência do malestar Delineiase já assim um quadro que se desdobrará futuramente nas formas contemporâneas do malestar Estaríamos aqui num contexto e tempo bastante avançado da modernidade que se evidencia pela dissolução da categoria do tempo ante a do espaço que começa então a dominar o território do psiquismo A viragem teórica do discurso freudiano nos anos 1920 com a compulsão à repetição e o novo estatuto atribuído ao traumático já indicava isso No entanto no contexto histórico dos anos 1930 a inflexão é ainda mais decisiva esboçando o quadro em que se configurará o malestar na contemporaneidade Estaríamos enfim no registro da modernidade avançada propriamente dita Notas 1 S Freud Pour introduire le narcissisme In S Freud La vie sexuelle 2 J Laplanche J B Pontalis Vocabulaire de la Psychanalyse J Rouart Agir et processus psychanalytique J Birman Arqueologia da passagem ao ato In A Bastos Psicanalisar hoje 3 S Freud Psychopathologie de la vie quotidienne 4 J Lacan Langoisse Le Séminaire Livro X 5 J Rouart Agir et processus psychanalytique J Birman Arqueologia da passagem ao ato In A Bastos Psicanalisar hoje 6 J Lacan Langoisse Le Séminaire Livro X 7 J Birman Enfermidade e loucura 8 S Freud Quelques considerations pour une étude comparative des paralysies motrises organiques et hystériques In S Freud Résultats idées problèmes 9 S Freud Trois essais sur la théorie de la sexualité 10 Ibidem 11 J Birman Le corp et laffect en psychanalyse In Che Vuoi Revue de Psychanalyse p 1326 12 Ibidem J Birman Enfermidade e loucura 13 S Freud Psychothérapie de lhystérie 1895 In S Freud J Breuer Études sur lhystérie 14 Ibidem 15 Ibidem 16 Ibidem 17 S Freud Pour introduire le narcissisme In S Freud La vie sexuelle 18 Ibidem 19 S Freud Remarques psychanalytiques sur lautobiographie dum cas de paranoia Dementia Paranoides Le President Schreber In S Freud Cinq psychanalyses 20 S Freud Inhibition symptôme et angoisse 21 Ibidem 22 E Minkowski La schizophrénie Psychopathologie des schizoïdes et des schizophrènes 23 H Bergson Matière et Mémoire Essais sur la relation du corps à lesprit In H Bergson Oeuvres H Bergson Levolution créatrice In H bergson op cit 24 E Minkowski La schizophrénie Psychopathologie des schizoïdes et des schizophrènes 25 J Lacan Les complexes familiaux dans la formation de lindividu In Encyclopédie française sur la vie mentale 26 J Lacan Propos sur la causalité psychique In J Lacan Écrits 27 J Lacan Lagressivité en psychanalyse In J Lacan op cit 28 J Lacan Le stade du miroir comme formateur de la function du je In J Lacan op cit 29 H Wallon Comment se développe chez lenfant la notion de corps propre In Journal de Psychologie p 705748 H Wallon Les origines du caractère chez lenfant 30 J Lacan Le stade du miroir comme formateur de la function du je In J Lacan Écrits 31 Ibidem 32 Ibidem 33 Ibidem 34 S Freud Pour introduire le narcissisme In S Freud La vie sexuelle 35 J Lacan Le stade du miroir comme formateur de la function du je In J Lacan Écrits 36 Ibidem 37 Ibidem 38 J Lacan Les complexes familiaux dans la formation de lindividu In Encyclopédie française sur la vie mentale Volume VII 39 J Lacan Fonction et champ de la parole et du langage em psychanalyse In J Lacan Écrits 40 J Lacan Lagressivité en psychanalyse In J Lacan op cit 41 J Lacan Les complexes familiaux In Encyclopédie française sur la vie mentale 42 J Lacan De la psychose paranoïaque dans sés rapports avec la personalité suivi de premiers écrits sur la paranoïa J Lacan Motifs du crime paranoïaque J Lacan M Cénac Pressuposés à tout développement de la criminologie 1950 In J Lacan Écrits CAPÍTULO 7 O vazio no existir I Intensidade afetação sentimento É preciso considerar agora o terceiro registro do malestar contemporâneo o das intensidades A articulação entre os diferentes registros é realizada sempre pelo excesso Podese compreender facilmente no registro das intensidades a incidência imediata do excesso que se apresenta como afetação e se expressa como sentimento Assim a equação é relativamente simples pois é possível reconhecer como o excesso transborda no psiquismo como humor e pathos antes de se deslocar para os registros do corpo e da ação Dito de outra maneira o excesso é imediatamente afetação e sentimento antes de mais nada Somos assim afetados inicialmente pelo excesso que nos toma e que se expressa como sentimento num segundo momento de maneira que passamos então a sentir a afetação O excesso seria então o regulador das afetações e dos sentimentos delineando a valência das suas intensidades O colorido destas estaria na dependência daquelas de forma a modulálas na sua expressividade Da exaltação à depressão todas as matizações das intensidades são aqui possíveis de se plasmar como sentimento A despeito de tais matizações no entanto o excesso é sempre irrupção de algo que escapole ao controle e à regulação da vontade e que se impõe no psiquismo como um corpo estranho Seria isso pois a marca do excesso que se caracteriza por ser incontrolável Isso porque o que o caracteriza especificamente é o afastamento e a ruptura com a regularidade estabelecida na experiência subjetiva indo além das fronteiras estabelecidas nas intensidades das sensações e das afetações Enfim não se pode perder de vista que estamos situados aqui nas bordas da experiência do sensível que são transformadas nas suas regularidades e que os excessos afetam as suas fronteiras até então bemestabelecidas É fundamental considerar aqui no entanto a questão do limiar que define as fronteiras das regularidades das afetações no que concerne às dimensões da irrupção e do incontrolável na experiência do excesso para que se possa compreender devidamente o que está em causa nas subjetividades contemporâneas Podese afirmar assim que os limiares de irrupção e de falta de controle da vontade diminuíram sensivelmente nas individualidades que ficaram então cada vez mais assujeitadas e à deriva das imposições do excesso Com isso o psiquismo não mais o regula como deveria que se presentifica necessariamente então no psiquismo de maneira incoercível Algumas das resultantes disso nós já destacamos ao longo deste ensaio Antes de mais nada a presença da angústia do real e do seu corolário isto é o efeito traumático Isso porque o eu não tem o poder de antecipação dos acontecimentos para poder circunscrever devidamente o impacto das intensidades1 Por isso mesmo o limiar de irrupção do excesso diminui de maneira significativa e decresce assim ainda mais a possibilidade de regulação das intensidades A resultante disso é que a subjetividade fica diante de algo que a ultrapassa e que não pode dar conta Diante disso a posição do sujeito é de impotência defrontado que está com algo muito maior do que ele Enfim uma das consequênciaslimite deste processo é a paralisia psíquica Para tentar circunscrever a experiência traumática o psiquismo lança mão da compulsão à repetição como Freud a descreveu para isolar e procurar controlar desesperadamente a irrupção inesperada2 A repetição pretende realizar ativamente a recriação do trauma para que o psiquismo possa anteciparse agora ao que não pôde fazer quando este se produziu3 Com esse deslocamento da posição passiva para a ativa o sujeito busca transformar a sua relação com o acontecimento inesperado tentando transmutar o inesperado e o imprevisível em esperado e previsível submetido que seria ao controle do eu e da vontade Deslocamonos decididamente assim do registro das intensidades para o da ação como se viu com as diferentes modalidades de compulsão Tais compulsões são contudo fadadas ao fracasso Porque são ações coartadas não conseguem remodelar o contexto intensivo que as colocou em funcionamento Vale dizer o disparador do processo não seria atingido e capturado pelo sujeito que continua assim assujeitado àquele Ao lado disso é preciso considerar ainda o contexto atual em que a compulsão à repetição opera que não é o mesmo de décadas atrás quando Freud enunciou tal mecanismo psíquico A compulsão à repetição não é efetiva pela ampliação assumida hoje pelo campo do traumático Ou seja o trabalho psíquico da compulsão à repetição não pode operar com efetividade e eficácia em tantas frentes ao mesmo tempo limitando então as possibilidades de simbolização do psiquismo Constituise dessa maneira um círculo vicioso pois a limitação das possibilidades psíquicas de simbolização provoca em contrapartida uma diminuição efetiva na possibilidade de antecipação dos acontecimentos Enfim novos acontecimentos traumáticos se perfilam no horizonte do sujeito que fica cada vez mais restrito nas suas possibilidades de antecipação e regulação dos acontecimentos Ao lado disso depreendese como o pânico se inscreve diretamente nesse contexto na medida em que a subjetividade fica impotente em face dos acontecimentos irruptivos Assim a subjetividade é tomada pelo sentimento de horror O que se impõe aqui é o fantasma da iminência da morte já que incapacitado de agir o eu entra em estado de suspensão pois como instância psíquica não pode mais regular as relações entre o corpo e o mundo O estresse inscrevese nesse mesmo contexto caracterizado pelo colapso do psiquismo A totalidade desse processo incide nas formas de subjetivação que seria assim virada de pontacabeça subvertendo inteiramente a economia psíquica Devese indicar tudo isso agora nos seus diferentes e diversos níveis isto é nas suas múltiplas complexidades Antes de mais nada nessa cena catastrófica a autoestima se dissolve A desqualificação e a desvalorização do sujeito em relação a si mesmo se incrementa de maneira vertiginosa acompanhando as afetações com as sensações de abismo e de vertigem que passam a possuir inteiramente o sujeito O sentimento de segurança psíquica isto é de que o eu pode dar conta das relações entre o corpo e o mundo se esvazia de maneira flagrante O eu e o psiquismo perdem efetivamente a sua potência É a potencialidade de ser que é assim atingida no seu âmago mas que se manifesta inicialmente pela impossibilidade de fazer e de agir No entanto é a certeza de ser na sua totalidade que é atingida na sua potência esvaziando então o sujeito II A despossessão de si Desta perspectiva o terror de se perder apoderase do eu que se agarra a si mesmo como pode para não se desprender definitivamente O fantasma da perda de si se coloca em cena com toda a eloquência possível A despossessão de si se anuncia assim como uma problemática crucial no malestar contemporâneo Da corporificação passando pelas desregulações da ação e atingindo a suspensão do eu a despossessão de si se apresenta sob diferentes figuras e se evidencia por diversos signos Entretanto a variabilidade destes e daquelas não deve silenciar e nos fazer esquecer da invariância que atravessa a despossessão No que concerne especificamente ao registro das intensidades a despossessão de si se apresenta inicialmente como distimia O discurso psiquiátrico se refere à distimia como variações súbitas do humor nas quais o sujeito oscila rapidamente entre os polos da exaltação e da apatia sem que se possa determinar especificamente as razões e os motivos de suas oscilações A exaltação está frequentemente associada à irritabilidade e a explosões repentinas de raiva pelo indivíduo que procura sempre racionalizar suas reações por algum motivo contextual e situacional Porém suas reações ultrapassam em muito a motivação aludida pela desproporção existente entre aquilo que presumivelmente desencadeia a ação e a reação propriamente dita Em contrapartida indica um esvaziamento radical na possibilidade de resposta do sujeito De qualquer maneira a distimia tem se incrementado bastante como signo de perturbação das intensidades na contemporaneidade Indica além disso uma evidente modalidade de despossessão subjetiva pois o sujeito não consegue dar conta de suas variações de humor que oscilam numa gama múltipla de matizações Contudo não resta dúvida de que a depressão é a modalidade mais importante em que a despossessão de si se apresenta na atualidade As distimias como formas de alteração de humor são frequentemente articuladas no discurso psiquiátrico seja à mania seja à depressão signo insofismável que seria do distúrbio bipolar antigamente denominado psicose maníacodepressiva De qualquer maneira a despossessão de si atingiria na depressão o seu nível mais patente e ostensivo sendo a experiêncialimite em que aquela se processa na atualidade Podese afirmar que as depressões se transformaram num dos males maiores da atualidade na medida em que evidenciam as tormentas da despossessão de si no seu limite máximo Falase de depressão hoje como nunca se falou antes ao lado das toxicomanias e do pânico A Organização Mundial da Saúde coloca a depressão nas suas várias formas e manifestações como a segunda enfermidade médica mais frequente na atualidade A previsão é de que num futuro próximo aumentem mais ainda suas taxas epidemiológicas de incidência e de prevalência Esse é enfim o quadro referencial de base para que se aquilate devidamente a extensão do processo que está aqui em causa Porém se as depressões de hoje têm algumas das marcas apresentadas no passado outras são evidentemente novas caracterizadas por signos nunca mencionados antes Tais signos eram inscritos em outras formações psicopatológicas Ou então não tinham qualquer valor diagnóstico e patognomônico sendo considerados parte da normalidade Isso indica que se expandiu bastante o campo da existência do que se nomeia depressão hoje em relação ao passado sendo este processo a resultante da psiquiatrização do social e da correlata utilização massiva dos psicofármacos legitimados pelas neurociências As bordas do processo de normalização psiquiátrica romperam as fronteiras anteriormente traçadas no espaço social produzindo rupturas fundamentais A expansão do campo clínico das depressões é uma das resultantes disso A culpa era um dos sintomas maiores que se destacavam no quadro clínico da melancolia Assim sob a forma de autoacusações bastante pesadas sobre si mesmo o melancólico se flagelava de maneira ostensiva e violenta num processo marcado pela evidente crueldade Por isso mesmo o discurso psicopatológico dava a isso o devido destaque no que foi seguido de maneira mais sutil e refinada pelas leituras metapsicológicas advindas do discurso psicanalítico Podese dizer que a culpa foi indiretamente destacada no discurso psicopatológico de Kraepelin4 que descreveu inicialmente a melancolia no quadro da psicose maníaco depressiva e que foi retomada posteriormente por Abraham5 e por Freud6 com bastante engenhosidade interpretativa Entretanto no que concerne à depressão hoje não é a culpa que se encontra inscrita na cena principal das narrativas psicopatológica e psicanalítica mas o vazio7 É esse o signo por excelência da depressão na contemporaneidade As pessoas se queixam cada vez mais que estão vazias que não têm nada dentro de si isto é que perderam uma certa vitalidade e o envolvimento com as coisas e as pessoas Com efeito para tais pessoas sua existência e o mundo perderam absolutamente o sentido não tendo pois mais qualquer razão para existir É a potência de ser que se esvaiu secando quase definitivamente a gana pela vida Enfim é a impotência e a apatia que se impõem como resultantes disso III Desencantamento fadiga e corrosão de si Pareceme que em decorrência disso as pessoas foram em busca das drogas de maneira indiscriminada procurando algo que pudesse provocar preenchimento e excitação diante da experiência radical e limite da despossessão de si Seria necessário assim que novas sensações prazerosas fossem produzidas que pudessem dar um alento e um colorido existencial a uma forma de ser que se tornou francamente descolorida e na melhor das hipóteses cinzenta Foi nesse contexto que a cultura das drogas encontrou a sua condição concreta de possibilidades para oferecer alento a essas formas desérticas de existência É claro que o que as drogas oferecem é apenas uma experiência ilusória provisória e fugidia de curta duração pois o vazio se repõe e é relançado no campo do psiquismo Porém diante do vazio cravado na ordem da existência o sujeito insiste na cultura das drogas quando não se inscreve no circuito da psiquiatrização que se expande neste canteiro de obras promissor e mortífero da experiência do vazio na contemporaneidade É enraizado nesse vazio que a cultura das drogas se desenvolve tanto as legitimadas pela medicina e pela psiquiatria quanto as ilegais e ilegítimas disseminadas pelo narcotráfico Foi por esse viés que se constituiu a figura típica da cultura de drogas na contemporaneidade qual seja a de Dionísio desencantado8 Este é o personagem mítico atual que vive na eloquência do vazio como contrapartida crucial ao mundo desencantado9 da contemporaneidade Nesse com efeito os deuses não mais nos protegem e nos inscrevemos num mundo permeado totalmente pelos discursos da ciência e do consumo de mercadorias Tudo isso nos dá algumas pistas importantes para podermos interpretar devidamente os signos evidenciados pela eloquência gritante e desesperada desse vazio Ele pode ser articulado diretamente com o violento processo do desmapeamento do mercado de trabalho produzido pela mundialização que produz nas subjetividades aquilo que Sennett denominou corrosão do caráter signo presente de maneira eloquente na sociedade pósmoderna Obrigados a uma flexibilização ao extremo da forma de ser de si próprios para se adaptarem às flutuações do mercado de trabalho os indivíduos perdem sua espinha dorsal isto é o caráter que como invariante deveria fornecerlhes uma potência de ser e de agir na existência de forma a se direcionarem no mundo10 É nesse turbilhão e vertigem provocados pela luta desesperada pela vida que as pessoas perdem seu fio de prumo esvaziandose e se despotencializando Enfim o vazio e a despossessão de si deixam de ser assim tão enigmáticos como poderiam parecer para um olhar ingênuo sobre a atualidade Nesse contexto o sujeito também começa a se esgotar de maneira trágica se esvaindo de seu desejo de ser de viver e de agir Sua potência se perde obviamente assim como suas certezas Se o caráter como invariante que é da subjetividade se dilui e mesmo desaparece o sujeito não possui mais qualquer projeto de existência Deve apenas se adaptar às oscilações e variações do mercado de trabalho procurando apenas sua sobrevivência Com isso acaba por ser tragado pela fadiga de si mesmo tal como Ehrenberg procurou interpretar a disseminação da depressão na contemporaneidade11 Seria esta fadiga de si mesmo uma outra figura crucial para se falar do vazio e da despossessão de si na contemporaneidade Podese depreender facilmente disso tudo como a despossessão de si é o processo fundamental na produção do sentimento de vazio que como vazio do e no existir é a marca paradigmática que se encontra presente nas depressões contemporâneas Evidentemente o vazio é uma figura de retórica que remete à categoria do espaço Poderseia mesmo dizer que o vazio é o espaço em negativo pois não contém mais qualquer figura no seu interior Porém como potência em negativo da espacialidade o vazio é ainda o espaço contraído e condensado num ponto evanescente que provoca vertigens e lança o sujeito inapelavelmente nas bordas da sensação de abismo Notas 1 S Freud Inhibitiom symptôme et angoisse 2 S Freud Audelà du principe de plaisir In S Freud Essais de psychanalyse 3 Ibidem 4 E Kraepelin Introduction à la psychiatrie clinique 5 K Abraham Préliminaires à linvestigation et au traitement psychanalytique de la folie maniaco depressive et des états voisins 1912 In K Abraham Rêve et mythe 6 S Freud Deuil et melancolie In S Freud Métapsychologie 7 J B Pontalis org Nouvelle Revue de Psychanalyse Figures du vide n 11 8 J Birman Dionísio desencantado In J Birman Malestar na atualidade 9 M Weber Léthique protestante et lesprit du capitalisme M Weber Sociologie et religions 10 R Sennett A corrosão do caráter 11 A Ehrenberg La fatigue dêtre soi CAPÍTULO 8 Pensamento e linguagem em negativo Como afirmo desde o início deste percurso algumas ausências significativas se destacam na descrição do malestar na atualidade na medida em que a ênfase da descrição tem recaído nos registros do corpo da ação e das intensidades Refirome aos registros do pensamento e da linguagem Estes estão ausentes nas descrições do malestar contemporâneo tanto no discurso psiquiátrico quanto no psicanalítico o que não deixa de ser surpreendente visto que são registros nobres do psiquismo A questão fundamental que se coloca aqui é a razão de tal ausência e dessa quase inexistência Para se indagar sobre isso é preciso situar o que está em pauta I Derrocada do pensamento Falarei aqui sobre a inversão no psíquico entre o registro do pensamento por um lado e os registros do corpo da ação e das intensidades por outro Digo inversão porque na Idade clássica1 e na psicologia do século XIX2 numa tradição inaugurada por Descartes3 o pensamento definia o ser do homem Pelo cogito cartesiano o pensamento era a condição de existência para o sujeito de maneira que para ser e existir antes de mais nada seria necessário pensar No entanto a psicologia moderna se construiu mediante uma operação teórica decisiva pela qual se realizou a limitação do lugar destacado e até então oferecido ao registro do pensamento4 Nesse contexto a imaginação foi positivada visto que tinha um aspecto negativo na psicologia da Idade Clássica exatamente porque desviava a razão do caminho reto em direção ao conhecimento Era o ato de conhecer enquanto tal que era valorizado na psicologia clássica5 Daí porque tudo aquilo que propiciasse a produção e a reprodução do conhecimento era valorizado Em contrapartida tudo que o impossibilitasse era devidamente desvalorizado Se as faculdades sensoriais a memória o entendimento e a razão eram destacados a imaginação era negativamente avaliada Isso porque se as primeiras podiam fundamentar o processo de produção do conhecimento a segunda desviava a razão desta finalidade maior6 Esse mapeamento eminentemente cognitivo das faculdades anímicas realizado pela psicologia da Idade Clássica foi a contrapartida no discurso filosófico da emergência histórica das Revoluções Científicas ocorridas nos séculos XVII e XVIII7 Foi o imperativo teórico e ético para a produção dos discursos científicos que exigiu em contrapartida uma reflexão teórica acurada do ato de conhecer que foi então realizada pelo discurso filosófico A psicologia da Idade Clássica deu corpo e fundamento a essa preocupação e imperativo cruciais No entanto no fim do século XVIII e início do século XIX começou um processo teórico e ético decisivo que deu positividade à imaginação Essa foi então transformada numa encruzilhada crucial para que se pudesse melhor compreender o pensamento A filosofia kantiana principalmente com a Crítica da razão pura8 e a Crítica do juízo9 foi a condição histórica para a positivação da imaginação na filosofia moderna Heidegger deu a isso o devido destaque na leitura que empreendeu da filosofia kantiana em Kant e o problema da metafísica10 Isso porque a retomada e a positivação da imaginação implicou a produção de uma fenda crucial na longa tradição metafísica que possibilitou que a problemática do ser pudesse então ser enunciada Assim com a posição conferida aos esquemas da imaginação inscritos entre o registro sensorial e o do entendimento a imaginação passou a ocupar um lugar fundamental na produção do conhecimento11 Não existiriam portanto os enunciados do entendimento sem que a imaginação realizasse a ordenação prévia daquilo que fosse proveniente do registro da sensorialidade Além disso na Crítica do juízo Kant conferiu à imaginação uma posição fundamental na produção da experiência estética12 É claro que a positivação conferida à imaginação trouxe como consequência um deslocamento da problemática da filosofia do registro do conhecimento para os registros da ética da política e da estética As transformações sociais radicais ocorridas com o advento da Revolução Francesa viraram a cena do mundo de pontacabeça de maneira que o que estava então em pauta não se restringia mais ao campo do conhecimento Foucault nos fala que a problemática da finitude humana se colocou justamente nesse contexto histórico valorando a posição crucial ocupada pela filosofia kantiana nesta passagem13 Constituiuse então a episteme centrada na história que deixou a episteme centrada na representação como algo da ordem do passado No âmago da finitude humana a imaginação passou a ocupar uma posição estratégica14 Em decorrência disso seria fundamental delinear a dimensão afetiva do psiquismo para que se pudesse circunscrever as figuras do pensamento Assim seria pela mediação da imaginação que a afetividade incidiria sobre o pensamento e a vontade Esses passariam a ser imantados por aqueles nas suas operações O pensamento enfim perdeu a autonomia absoluta que desfrutava na Idade Clássica ficando agora numa relação de dependência dos registros da imaginação e da afetividade A psicanálise ocupou uma posição crucial nessa transformação epistemológica constituindo uma nova leitura do psiquismo Ao atribuir à pulsão15 ao inconsciente16 e ao fantasma17 um lugar fundamental no psiquismo o discurso freudiano colocou os registros do pensamento e da vontade subsumidos a esses outros registros psíquicos Promoveu assim o descentramento do sujeito dos registros do eu e da consciência de maneira a renovar a crítica ao livrearbítrio da razão e do pensamento O cogito cartesiano enfim foi desalojado da sua posição primordial18 Não foi apenas a psicanálise que realizou tal transformação epistemológica é claro A psicologia moderna foi totalmente refundada retirando a autonomia absoluta conferida ao pensamento e a onipotência que se conferia à vontade Para me referir a outros discursos é preciso evocar aqui que as psicologias existencial e fenomenológica realizaram o mesmo movimento teórico As contribuições de Sartre para a psicologia centraramse nessas problemáticas de maneira que os registros da imaginação19 e do afeto20 passaram a ser destacados Da mesma forma as contribuições de MerleauPonty se fizeram retomando o registro da percepção para reconstruir a psicologia em outros fundamentos e criticar o lugar crucial conferido até então ao entendimento21 A investigação de MerleauPonty caminhou enfim para a construção de uma outra leitura para a estrutura do comportamento22 Considerando esse percurso teórico no entanto não se pode depreender disso que o pensamento tenha perdido sua importância na modernidade Afirmar isso seria um contrassenso O que se formulou na modernidade foi um quadro bem mais complexo no qual o pensamento foi inscrito retirando dos registros da razão e do entendimento a posição onipotente que ocupavam anteriormente no discurso filosófico Não obstante sua inscrição num campo psíquico bem mais complexo que o existente na Idade Clássica o pensamento continuava a ocupar uma posição decisiva na descrição da subjetividade Assim seria sempre pela mediação do pensamento que o sujeito poderia não apenas colocar e levantar questões delineando então problemas mas também encontrar soluções que fossem efetivas Pensar seria então fundamental uma das marcas da condição humana Podemos enunciar que na passagem da Idade Clássica para a modernidade a razão foi certamente limitada em sua onipotência mas o pensamento imantado agora pela imaginação e pela afetividade era um registro cabal no psiquismo Este contudo na modernidade passou a ser marcado pela divisão e pela fragmentação pelas quais a conflitualidade constituía o seu ser O discurso freudiano indica isso tanto na sua primeira tópica inconsciente préconsciente e consciência23 quanto na segunda isso eu e supereu24 Da mesma forma nas duas teorias de pulsão pulsão sexual versus pulsão do eu25 e pulsão da vida versus pulsão de morte26 Freud se manteve sempre dualista reafirmando e insistindo com isso na exigência da conflitualidade no psiquismo Enfim o pensamento se inscrevia numa lógica da conflitualidade sem perder sua posição estratégica Desaparecem contudo as referências ao pensamento no malestar na atualidade Isso não quer dizer é claro que as teorias psicológicas e psicopatológicas contemporâneas tenham abolido o pensamento como função e instância psíquicas Porém sua suspensão se revela na descrição do campo clínico do malestar Isso evidencia algo fundamental e surpreendente na caracterização atual da subjetividade a suspensão do pensamento Se o malestar se apresenta nos registros do corpo da ação e das intensidades isso evidencia a anulação da ordem do pensamento Tudo se passa como se a incidência do excesso sobre tais registros do psiquismo produzisse um ataque e um curtocircuito no registro do pensamento que não pode assim funcionar devidamente O pensamento se paralisa pela própria impotência e pelo vazio que passa a ocupar o campo psíquico Além disso no malestar atual o modelo conflitual da subjetividade tal como foi delineado no discurso freudiano tende ao desaparecimento Isso porque teria no pensamento um polo ativo capaz de superar o malestar produzido pela própria conflitualidade Com isso as pessoas se queixam de que algo as incomoda no corpo e que são tomadas por intensidades que as esvaziam mas de maneira passiva e não implicada no que lhes acontece Tudo se passa como se o que lhes ocorresse fossem coisas estranhas a elas mesmas que não poderiam ter qualquer acesso ao que lhes acontece Por isso mesmo não levantam qualquer questão a respeito Nessa inexistência de indagação o registro do pensamento se evidencia na sua ausência e suspensão Em contrapartida esperam que o outro faça algo por elas e no lugar delas incapazes que são de saber e de fazer algo sobre si Quando consultam o psiquiatra o psicólogo e o psicanalista a única pergunta que fazem é reveladora desta condição de suspensão da possibilidade de pensar O que devo fazer Se nesta indagação se evidencia como o pensamento está anulado como possibilidade de resolver problemas e superar conflitos o que vem ao primeiro plano é algo que se inscreve no registro estrito da ação Enfim é o fazer que insiste reiterando o lugar do registro da ação na subjetividade contemporânea Assim a fragmentação psíquica foi tão incrementada hoje em decorrência do excesso intensivo que a conflitualidade como possibilidade simbólica não mais se sustenta Ao lado disso a imaginação se esmaece enquanto lugar psíquico para a indagação sobre o possível isto é daquilo que é ainda ausência no aqui e agora mas que poderia se tornar presença no futuro Nesse contexto o pensamento se suspende e os registros do corpo da ação e das intensidades passam a avolumarse no psiquismo impossibilitando as simbolizações II Retórica instrumental e suspensão da poiesis Disso decorrem diversas consequências na economia psíquica Antes de mais nada o empobrecimento da linguagem que marca de maneira indelével as subjetividades contemporâneas A linguagem perde o seu poder metafórico sendo permeada cada vez mais por imagens que se consubstanciam no corpo e na ação O discurso dos adolescentes é paradigmático disso na medida em que é perpassado todo o tempo não apenas por imagens mas também por imagens de ação Tudo se passa como se fosse impossível para eles sustentar algo no pensamento e falar sobre isso sem colocar entre parênteses o imperativo do agir Em decorrência disso a discursividade assume uma direção marcadamente horizontal sem os cortes que poderiam lançála na verticalidade Vale dizer a linguagem e o discurso assumem uma feição marcadamente metonímica e não mais metafórica27 Isso evidencia que o discurso percorre a sua rota se sustentando apenas num dos eixos da linguagem não articulando mais devidamente os eixos paradigmático e sintagmático A dominância da metonímia na ordem do discurso indica a presença de um desejo à deriva e sem cortes significativos capazes de relançálo e inscrevêlo no registro da metáfora Por isso mesmo o desejo tende à descarga e se evapora como ação imediata não se constituindo como polo conflitual e lugar de tensão como ocorria ainda na modernidade Tudo isso se passa com pessoas que têm um domínio razoável da língua e que foram bem escolarizadas Não obstante a linguagem perde seu poder simbólico de maneira marcante A ausência de cortes significativos na discursividade metonímica indica ainda a espacialidade da experiência que não pode ascender a uma sequência temporal na medida em que o desejo à deriva se evapora na pontualidade da descarga Seria esta ação precipitada e interrompida que impediria a constituição de uma temporalização da experiência entregue ao aqui e agora da experiência isto é ao instante evanescente Destaquemos um pouco mais os efeitos desse processo sobre a temporalidade Isso porque as mudanças nos registros do pensamento e da linguagem implicam a transformação daquela Com efeito tais registros estão articulados de maneira que cada um desses remete aos demais Assim podese melhor compreender agora a impossibilidade de antecipação dos acontecimentos nas subjetividades contemporâneas O excesso toma consistência assim como suas derivações e efeitos traumáticos porque a angústiasinal pressupõe a presença no psiquismo não apenas da riqueza simbólica mas também da temporalização Na fragilização desse o psiquismo fica restrito à espacialização Em decorrência disso a linguagem se transforma perdendo progressivamente suas marcas simbólicas e transmutandose em retórica instrumental Vale dizer a linguagem se esvazia na sua dimensão de poiesis Daí a pregnância assumida pelas imagens A linguagem instrumental passa a dominar a cena psíquica e não pode mais regular as intensidades e os excessos Poderseia dizer que essa transformação evidencia os efeitos e a incidência dos discursos da razão e das ciências sobre a linguagem e o discurso retirando desses suas dimensões simbólicas Adorno e Horkheimer nos sugerem isso na leitura que realizaram sobre o domínio do paradigma do Iluminismo na história da tradição ocidental que nos conduziu inapelavelmente ao empobrecimento simbólico como contrapartida do domínio da razão instrumental28 Marcuse em O homem unidimensional retoma essa leitura por um outro viés nos anos 1960 Destaca como a pregnância assumida pelos modelos lógico e lógicomatemático nos discursos científicos e na filosofia conduziu ao desenvolvimento dos discursos da filosofia analítica e da lógica simbólica na tradição anglosaxônica29 Em tudo isso se evidenciariam a configuração da unidimensionalidade na condição humana em curso de se constituir e a configuração das formas atuais do malestar na subjetividade contemporânea Notas 1 M Foucault Les mots et les choses Une archéologie des sciences humaines 2 G Canguilhem Questce que la psychologie In G Canguilhem Études dHistoire et de philosophie de la science J Lacan Audelà du principe de realité In J Lacan Écrits 3 R Descartes Méditations In Oeuvres et lettres de Descartes 4 J Lacan Audelà du principe de realité In J Lacan Écrits G Canguilhem Questce que la psychologie In G Canguilhem Études dHistoire et de Philosophie de la Science 5 Ibidem 6 Ibidem 7 A Koyré Du monde clos à lunivers infini A Koyré De la mystique à la science A Koyré Études dhistoire de la pensée scientifique 8 E Kant Critique de la raison pure 9 E Kant Critique de la faculté de juger 10 M Heidegger Kant et le problème de la métaphysique 11 E Kant Critique de la raison pure 12 E Kant Critique de la faculté de juger 13 M Foucault Les mots et les choses 14 Ibidem M Foucault Questce que les Lumières 1984 In M Foucault Dits et écrits vol IV 15 S Freud Pulsions et destins des pulsions In S Freud Métapsychologie 16 S Freud Linconscient In S Freud Metapsychologie 17 S Freud Trois essais sur la théorie de la sexualité 18 J Lacan Le stade du miroir comme formateur de la function du je In J Lacan Écrits 19 J P Sartre A imaginação J P Sartre Limaginaire 20 J P Sartre Esquisse dune théorie des émotions 21 M MerleauPonty Phenomenologie de la perception 22 M MerleauPonty La structure du comportement 23 S Freud Linconscient In S Freud Metapsychologie 24 S Freud Le moi et le ça In S Freud Essais de psychanalyse 25 S Freud Trois essais sur la théorie de la sexualité 26 S Freud Audelà du principe de plaisir In S Freud Essais de psychanalyse 27 J Lacan Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse Linstance de la lettre dans linconscient où la raison depuis Freud La chose freudienne 1956 In J Lacan Écrits 28 T W Adorno M Horkheimer La dialectique de la raison 29 H Marcuse Lhomme unidimensionnel CAPÍTULO 9 Do sofrimento à dor I Pontuações metodológicas Depois de todo esse percurso é preciso alinhavar agora a multiplicidade de enunciados que foram aqui formulados para dar conta das minhas indagações fundamentais De que maneira é possível costurar todos esses signos do malestar Por que o espaço foi se tornando francamente dominante a expensas do tempo no campo desse É claro que algumas interpretações parciais já foram empreendidas mas impõese agora uma leitura de conjunto que possa englobar as interpretações parciais realizadas Para definir devidamente as posições teórica e metodológica por mim assumidas é preciso dizer que todos esses signos podem ser interpretados de diferentes maneiras Em seguida é possível afirmar que tais interpretações não seriam excludentes mas poderiam conjugarse nas suas linhas de fuga Vale dizer tais interpretações seriam complementares na medida em que operariam em diferentes níveis de discursividade teórica e de escalas de grandeza Por isso mesmo prefiro insistir numa direção interpretativa mas que seja ampla o bastante para poder inscrever em seu campo outras leituras suplementares II Solipsismo e alteridade O malestar contemporâneo se caracteriza principalmente como dor e não como sofrimento Desde o começo deste percurso eu já vinha sugerindo esta hipótese de trabalho de forma indireta mas de maneira progressiva A transformação ocorrida no discurso onírico que se deslocou do registro da realização do desejo para o do trauma e do pesadelo já era uma alusão ostensiva a essa hipótese Ao lado disso a marca estritamente traumática do malestar na contemporaneidade indicava também a mesma leitura dessa transformação O que é preciso realizar agora no entanto é conferir maior consistência argumentativa a essa hipótese A subjetividade contemporânea não consegue mais transformar facilmente dor em sofrimento Estaria justamente aqui a marca específica pela qual a subjetividade metabolizava o malestar na modernidade de maneira que a dor se interiorizava pelo sofrimento e com ele No entanto a dor passou a ser o traço insofismável e inconfundível pelo qual o sujeito se confronta com o malestar hoje Os leitores podem ficar espantados com o que estou afirmando na medida em que não reconhecem qualquer diferença entre dor e sofrimento Com efeito no vocabulário cotidiano as pessoas costumam usar tais palavras como se fossem sinônimos como se não existisse qualquer diferença conceitual entre elas Porém é justamente isso que estou afirmando aqui O que quero dizer afinal de contas Qual a diferença para a subjetividade entre sentir dor e sofrer Além disso os leitores podem ficar ainda mais perplexos com a articulação da oposição já referida com os mundos da modernidade e da contemporaneidade Certamente poderiam argumentar que sentir dor e sofrer são modalidades de malestar que marcam a experiência humana desde sempre sendo pois formas ahistóricas de sentir Entretanto a interpretação que estou propondo aqui inscrevese numa outra tradição teórica na qual as marcas antropológicas da subjetividade são eminentemente históricas Não existiria portanto a natureza humana no sentido abstrato do termo que funcionaria como uma invariante ahistórica e que ficaria incólume aos valores engendrados ao longo da história das sociedades Assim foi dessa perspectiva antropológica que Mauss analisou a categoria do eu e sua relação com a da pessoa destacando devidamente suas transformações históricas1 Ao mesmo tempo enunciava para o discurso da psicologia científica que seria necessário realizar a leitura diferencial e antropológica de um conjunto de categorias psicológicas que eram apresentadas por aquele discurso como invariantes atemporais tais como corpo instinto emoção vontade percepção e intelecção2 Foi nessa mesma trilha teórica que se realizou também o trabalho de Dumont quando enunciou a transformação da categoria de indivíduo nas diferentes modalidades de sociedade holísticas e modernas formulando que apenas nessa o individualismo como valor efetivamente se constituiu3 De uma outra perspectiva teórica Foucault empreendeu as leituras arqueológica e genealógica de algumas categorias que até então eram consideradas como invariantes históricas tais como a loucura4 a enfermidade5 o crime6 e a sexualidade7 Destacou não apenas a complexidade inscrita no campo dessas diferentes problemáticas mas também a continuidade e a ruptura de sentido presente na constituição histórica destas problemáticas Dito isso podemos retomar a interpretação do malestar Contudo é preciso diferenciar devidamente dor e sofrimento Antes de mais nada é necessário reconhecer que a dor é uma experiência em que a subjetividade se fecha sobre si mesma não existindo qualquer lugar para o outro no horizonte do seu malestar Com efeito a dor é uma experiência eminentemente solipsista restringindose o indivíduo apenas a si mesmo não revelando qualquer dimensão alteritária A interlocução com o outro fica assim coartada na dor que se restringe ao murmúrio e ao lamento por mais intensa que seja a dor em questão Daí a passividade que sempre domina o indivíduo quando algo dói esperando que alguém tome uma atitude em seu lugar Se isso não ocorre a dor pode mortificar o corpo do indivíduo minando intensamente o registro do somático de forma a retirar e até esvaziar a potência do indivíduo Este se solapa e se desqualifica em sua autoestima Ou então a dor pode paradoxalmente fomentar a irritabilidade as compulsões e a violência formas paroxísticas e explosivas que são de descarga daquilo que dói Assim é preciso evocar que a dor é também uma maneira de se falar do ressentimento que perpassa hoje todos os humilhados e ofendidos disseminados pelos quatro quadrantes do planeta Imersa na dor do ressentimento portanto a subjetividade contemporânea se evidencia como essencialmente narcísica não se abrindo para o outro de quem em princípio desconfia e rivaliza Com isso não pode se lançar e fazer um apelo Porque pega mal precisar do outro pois isso revelaria as falhas e faltas do demandante Na cultura do narcisismo triunfante as insuficiências não podem jamais existir e ser exibidas já que essas desqualificam a subjetividade que deve ser antes de tudo autossuficiente Em contrapartida o sofrimento é uma experiência eminentemente alteritária O outro está sempre presente para o sujeito sofrente a quem este se dirige com o seu apelo Daí a presença da dimensão da alteridade que inscreve a interlocução no centro da experiência do sofrimento Em decorrência disso podese depreender que a categoria de espaço está para a dor da mesma forma que a de sofrimento está para o tempo No solipsismo da subjetividade na dor esta se espacializa sendo a dor uma materialização sensorial marcadamente espacial na qual corpo e imagem se amalgamam de maneira indissolúvel Em contrapartida no sofrimento o espaço se fende e do seu abismo a temporalidade tem forma e movimento lançando o sujeito para dentro e fora de si ao mesmo tempo Se pelo adentramento em si o sujeito se interioriza rompendo com a carcaça espacializada presente no registro do somático e se faz então corpo vibrátil e desejante ao se lançar para fora de si ele se dirige ao outro com o seu apelo A interlocução do sujeito com o outro evidencia uma experiência eminentemente temporal pela qual o discurso assume formas eminentemente simbólicas Depreendese disso que se o corpo a ação e as intensidades são os registros do malestar hoje isso é o correlato da condição solipsista da subjetividade coartada da interlocução com o mundo Este se restringe cada vez mais ao registro supostamente pragmático perdendo sua dimensão simbólica Daí por que a linguagem como poiesis se empobrece perdendo seu poder metafórico O desejo fica então à deriva nas cadeias metonímicas do discurso não sendo relançado mais pelas rupturas que são promovidas pela simbolização metaforizante A instrumentalização do corpo pela medicalização e pelo naturismo encontra aqui seu canteiro de obras na medida em que se inscreve assim quase que diretamente a matériaprima para a disseminação dos discursos sobre a saúde Podese compreender então como e por que a psicanálise se encontra agora num impasse e numa encruzilhada histórica pois pressupõe o modelo alteritário de subjetividade no qual os indivíduos sofrentes possam dirigir ao outro sua demanda de cuidados para poderem se inscrever na experiência da transferência Em contrapartida a psiquiatria biológica pode florescer já que com os psicofármacos pode realizar o curtocircuito do sofrimento e atender diretamente aos reclamos da dor sem qualquer mediação e apelo A animalidade dolorida pode então ser atendida sem ter que pedir nada no jardim das delícias escatológico que é promovido pela medicalização da dor Entretanto a experiência do sofrimento tendo a interiorização como seu correlato implica o desamparo do sujeito É essa a condição de possibilidade da subjetivação e da simbolização pois em ambas o apelo ao outro também se faz presente Se o discurso freudiano atribuiu tanta importância ao masoquismo no fim do seu percurso teórico8 ao ponto de esse ser uma forma básica do tormento que atravessaria as diferentes estruturas psicopatológicas neurose psicose e perversão isso se deve ao fato de que o masoquismo seria a forma de subjetivação pela qual a dor é transformada em sofrimento Vale dizer seria pela posição masoquista originária cadenciada pelo desamparo que o sujeito faria um apelo ao outro para transformar efetivamente a dor em sofrimento Em contrapartida na experiência da dor o sujeito sem abertura para o outro fica entregue ao desolamento não tendo qualquer possibilidade de realizar uma subjetivação possível para aquela experiência Entregue ao seu solipsismo o sujeito definha na sua autossuficiência que o paralisa quase que completamente Seriam essas a posição e a condição do sujeito na contemporaneidade ficando à deriva nos fluxos e refluxos dos novos códigos de existência forjados pela mundialização Notas 1 M Mauss Une catégorie de lesprit humain la notion de personne celle de moi In M Mauss Sociologie et anthropologie 2 M Mauss Rapports réels et pratiques de la psychologie et de la sociologie op cit In M Mauss op cit p 280310 3 L Dumont Essais sur lindividualisme Une perspective anthropologique sur lideologie moderne 4 M Foucault Histoire de la folie à lâge classique 5 M Foucault Naissance de la clinique une archéologie du regard medical 6 M Foucault Surveiller et punir 7 M Foucault La volonté de savoir M Foucault Lusage des plaisirs M Foucault Le souci de soi 8 S Freud Le problème économique du masochisme In S Freud Névrose psychose perversion CAPÍTULO 10 Mundo e negacionismo na vida nua Em decorrência do conjunto de marcas destacadas que caracterizam a atualidade alguns autores afirmam que assistimos hoje ao retorno da barbárie no contexto agora triunfante da sociedade industrial e da mundialização Retomam assim o mesmo significante de que se valeram Adorno e Horkheimer para caracterizar os efeitos do domínio da razão instrumental na tradição ocidental no contexto do pósguerra1 Esse mesmo significante já tinha sido utilizado anteriormente por Benjamin para qualificar a configuração eminentemente contraditória do processo da modernidade no ensaio Sobre o conceito da história2 pela qual a ideia de progresso implicava a presença paradoxal da barbárie Nossos contemporâneos formulam assim o retorno à barbárie com a mesma radicalidade que a tragicidade da situação atual exige tal como ocorreu com Adorno Horkheimer e Benjamin Assim numa leitura criativa do conceito foucaultiano de biopoder e de biohistória Agamben indica como esses são os agenciadores e os operadores para a promoção da vida nua Zoe que apaga e silencia progressivamente as marcas da vida qualificada Bios3 na contemporaneidade A biologização da vida seria a resultante maior disso Dessa maneira a medicalização da vida produz consequências imprevisíveis na sociedade contemporânea ao autorizar a legitimidade de uma biologia cada vez mais sem limites Os laboratórios eugênicos promovidos pelo nazismo correlatos da experiência concentracionária foram as condições históricas de possibilidade desta viragem crucial na nossa tradição4 Outros teóricos na linhagem filosófica de Heidegger enunciam que existimos hoje num imundo e não mais num mundo pelas impossibilidades em que nos encontramos de efetivamente produzir sentido Nancy formulou isso de maneira literal e peremptória numa obra recente5 e Mattei sugere a mesma coisa de maneira indireta6 Não obstante suas múltiplas diferenças teóricas para ambos os autores a problemática da mundialização seria crucial na transformação que está em curso Esta com efeito promoveu desmapeamentos ostensivos do mundo não nos oferecendo até agora pelo menos outras cartografias de sentido para nos orientar num planeta sem fronteiras7 De qualquer forma se a subjetividade contemporânea não consegue transformar mais dor em sofrimento com facilidade isso se deve à impossibilidade de interlocução pois os códigos desta foram também totalmente transformados Com isso o sujeito é lançado impiedosamente na vida nua e no mundo sem sentido de maneira a se tornar impotente nesse cenário e vazio na sua interioridade Destituído do impulso para a afirmação da vida chafurda assim no abismo da depressão Isso porque o gesto da interlocução pressupõe a existência de um outro a quem se possa fazer um apelo e ser então o suporte efetivo para a produção do sentido Contudo numa cultura narcísica como a nossa permeada pela moral do individualismo como valor levada ao seu exagero cada qual trata apenas da sua vida e considera o outro como o inimigo e o rival seja isso real seja potencial A desconfiança se dissemina em todos os interstícios do tecido social constituindo uma atmosfera opressiva do salvese quem puder A solidariedade como valor que amalgamava ainda os laços sociais na modernidade desapareceu inteiramente do cenário na contemporaneidade O vazio da subjetividade atual é o correlato do mundo que perdeu o sentido pois as regras e os códigos anteriormente estabelecidos para a promoção da sociabilidade foram subvertidos Porém nos registros sociológico e político podese caracterizar esse solipsismo e essa perda de alteridade pela quebra da mediação no espaço social Seria apenas pela presença neste de mediadores seguros e consistentes que fossem insofismáveis em sua autoridade simbólica que a linguagem poderia fluir como discurso Se a mediação implica institucionalidade por um lado seria a mediação também a condição de possibilidade da discursividade por outro Isso porque o discurso pressupõe a operação da negatividade como nos disse Lacan8 retomando aqui Hegel9 Portanto sem a presença da mediação no espaço social a subjetividade na contemporaneidade se restringe à pura negação abstrata e vazia afirmandose apenas pelo murmúrio do negacionismo que é ao mesmo tempo impotente e melancólico Essa postura pode ser devidamente figurada pelo personagem de Bartleby do famoso conto de Melville10 fartamente comentado por Deleuze11 que sempre preferia dizer não diante da impossibilidade de realizar qualquer ato e gesto efetivo de afirmação da vida Assim de tanto dizer eu preferiria não tal personagem acaba finalmente por ser preso e parar de comer morrendo de fome na prisão por insistir na sua estranha forma de se enunciar Alguns psicanalistas como Lambotte se referem a Bartleby como um personagem que desconhece a presença do desejo do Outro desde a sua origem12 Outros como Hassoun13 afirmam que aquele personagem cortaria toda a demanda vinda do outro Para ambos contudo o que estaria em pauta seria um processo de melancolização radical do sujeito Em contrapartida para Negri e Hardt a incondicionalidade da recusa de Bartleby se inscreveria numa longa tradição de recusa ao trabalho no capitalismo14 Para Deleuze Bartleby provocaria um estrago nas teses tradicionais da pragmática da linguagem pelas quais os enunciados se dividiriam entre as ações performativas autorreferenciais e constatativas referidas a outras palavras ou coisas15 Enfim para Deleuze Bartleby não seria o doente mas o médico de uma América doente o medicareman o novo Cristo ou o irmão de todos nós16 Porém seja como se queira interpretar tal personagem não resta qualquer dúvida de que Bartleby é uma outra versão agora contemporânea e radicalizada de o homem sem qualidades de Musil17 Esse romance publicado nos anos 1920 na mesma Viena de Freud e Schinitzler esboça algumas das coordenadas do sujeito sem qualidade paradigmático do mal estar na atualidade Em decorrência de todos esses impasses e encruzilhadas ficamos enfim amesquinhados como sujeitos mas nos exercitando nas ginásticas e massagens exóticas atribuindo valores mágicos às dietas ou quando não francamente intoxicados por drogas incapazes de inventar mediações num mundo dolorosamente medicalizado e desencantado Notas 1 T W Adorno M Horkheimer Dialectique de la raison 2 W Benjamin Sur le concept dhistoire 1940 In W Benjamín Écrits français 3 G Agamben Homo Sacer Le pouvoir souverain et la vie nue 4 Ibidem 5 J L Nancy La création du monde ou la mondialisation 6 J F Mattei A barbárie interior 7 Les temps modernes nº 610 Le théatre de la mundialisation acteurs victimes laissezpour compte Z Bauman Globalisation The Human Consequences 8 J Lacan Fonction et champ de la parole et du langage em psychanalyse In J Lacan Écrits J Lacan Les écrits techniques de Freud Le Séminaire Vol I J Lacan Introduction au commentaire de Jean Hyppolite sur la Verneinung de Freud Réponse au commentaire de Jean Hyppolite sur la Verneinung de Freud In J Lacan Écrits p 369399 9 G W F Hegel La phénomenologie de lesprit 1807 Volumes I e II 10 H Malville Bartleby and Benito Cereno 11 G Deleuze Bartleby ou la formule In G Deleuze Critique et clinique 12 M C Lambotte Le discours melancolique De la phénomenologie à la metapsychologie 13 J Hassoun La cruauté melancolique 14 A Negri M Hardt Empire 15 G Deleuze Bartleby ou la formule In G Deleuze Critique et clinique 16 Ibidem 17 R Musil O homem sem qualidades Posfácio à 4ª edição O sujeito do exílio e a heterotopia Com esta nova publicação em 4ª edição O sujeito na contemporaneidade se evidencia mais ainda na sua atualidade no horizonte delineado pelas novas coordenadas presentes no espaço social de hoje Com efeito o estado de coisas que foi figurado e descrito na edição inicial atingiu novos patamares e limiares inesperados de emergência de forma que as condições de então assumiram as dimensões de verdadeira caricatura Em decorrência disso as linhas de força em pauta no espaço social daquela época foram enfatizadas e o colorido do mundo se forjou de forma ainda mais sombria Assim se em 2013 data da 1ª edição deste livro o espaço social procurava se reerguer de maneira desesperada da crise global do neoliberalismo ocorrida em 2008 restaurando as prerrogativas e os imperativos do sistema financeiro internacional pela intervenção do Estado para salvar a sociedade neoliberal do seu colapso iminente em 2020 em contrapartida o sistema foi restaurado em pleno vapor mas o preço a pagar é certamente gigantesco e catastrófico Portanto a ordem neoliberal é marcada por paradoxos flagrantes pois se demanda o Estado mínimo para que o mercado possa se disseminar e se dilatar ao infinito no momento crucial da crise em contrapartida o Estado intervencionista foi restaurado em toda a sua plenitude para impedir a desordem do sistema à custa dos cidadãos que não usufruem das benesses do festim da ordem neoliberal Quais foram as consequências e os efeitos dessa restauração Antes de tudo a desigualdade social em escala global aumentou ainda mais vertiginosamente em relação ao que ocorria outrora A crise dos refugiados é o seu sintoma mais flagrante pois a população de exilados se incrementou no campo internacional Com efeito as populações miseráveis oriundas da África do Oriente médio da Ásia e da América Latina buscaram refúgio nos territórios europeu e norteamericano diante da impossibilidade de viver e de existir com dignidade no seu país de origem Nesse contexto o desenraizamento atingiu níveis assustadores já que o sujeito em exílio passou a existir numa mans land caracterizada pela ausência de fronteiras e de contornos estabelecidos Portanto o sujeito em exílio se inscreve numa heterotopia radical não podendo contar assim com qualquer possibilidade de reconhecimento perdendo não apenas a cidadania que mantinha parcialmente em seu país de nascimento mas também as práticas linguísticas culinárias e religiosas que regulavam outrora o seu modo de existir e o seu mundo Enfim o desfazer de si do sujeito assume contornos trágicos Em decorrência disso a ausência de projeto de futuro caracteriza efetivamente essas populações de humilhados e ofendidos na medida em que o sujeito de exílio não pode contar com qualquer instância social a quem possa demandar algo entregue que está ao deusdará Portanto nessa perda da temporalidade da experiência do sujeito que implica a ausência do futuro a existência se restringe ao eterno presente Com isso a experiência do sujeito se limita à dimensão do espaço colado que fica aos momentos do presente Enfim com essa perda vertiginosa da temporalidade é também a alteridade que fica silenciada para o sujeito de forma que em consequência é o desejo que se abole para o sujeito no exílio Nessa perspectiva o que está em pauta para o sujeito em exílio não é o que Freud denominou de desamparo como condição de possibilidade do desejo e da alteridade para o sujeito1 mas o desalento na medida em que inscrito na terra de ninguém o sujeito não disporia mais de qualquer instância de apelo Com efeito essa seria a forma de subjetivação2 que delineia o sujeito na contemporaneidade e o sujeito do exílio como sua derivação maior na atualidade Esse desalento se evidencia assim pela dor lancinante uma vez que pela ausência do desejo do tempo e da alteridade a subjetivação em questão é inconsistente de modo que o sofrimento não poderia então ser promovido pelo sujeito Com isso o sujeito se esvai de maneira hemorrágica de forma radical Portanto as categorias que foram colocadas em destaque em O sujeito na contemporaneidade o deslocamento do registro do tempo para o espaço do sofrimento para a dor e do desamparo para o desalento se intensificaram bastante nas coordenadas sociais e políticas da atualidade o que se evidencia radicalmente na condição do sujeito em exílio Em consequência disso o malestar na contemporaneidade atinge dimensões apocalípticas no contexto de novo exodus que se evidencia na atualidade Se a vergonha e a culpa regulam o sujeito em desalento a melancolia e o trauma insistentes são ainda os signos mais eloquentes do dito malestar na contemporaneidade Com efeito a hemorragia do sujeito a que aludi anteriormente evidencia a presença permanente das perdas3 que acossam o sujeito no seu nomadismo Nesse contexto o narcisismo das pequenas diferenças que foi enunciado por Freud como conceito em 1921 no ensaio Psicologia das massas e análise do eu para descrever a condição do sujeito e dos laços sociais após o fim da Primeira Guerra Mundial se mostra ser assim de grande atualidade4 Com efeito na impossibilidade de reconhecer a diferença nas escalas individual e coletiva o sujeito na modernidade avançada e na contemporaneidade transforma o diferente em adversário e inimigo de forma a poder assim ser eliminado de maneira direta e frontal Em decorrência disso o genocídio se normaliza e se perfila como estratégia política do Estado contemporâneo maneira pela qual o Leviatã contemporâneo procura lidar com os humilhados e ofendidos em ascensão vertiginosa que não encontram mais lugar na ordem neoliberal O sujeito do exílio inscrito numa condição radical marcada pela heterotopia é a formalimite e a derivação que assume o sujeito da contemporaneidade nas condições delineadas pelo malestar hoje Com efeito as formas de experiência psíquica que foram destacadas para caracterizar o sujeito na contemporaneidade a saber a espacialização a dor e o desalento se encontram assim intensificados nas condições sociais e políticas de existência do sujeito em exílio Enfim ontem como hoje é a transformação radical dessas linhas de força com a constituição ativa das linhas de fuga nesse cenário catastrófico que precisa ser promovida como uma aposta para sairmos dos tempos sombrios que estamos vivendo Joel Birman Notas 1 Freud S Esquisses dune psychologie scientifique 1895 In Freud S La Naissance de la psychanalyse Paris PUF 1970 2 Foucault M La Volonté de savoir Paris Gallimard 1976 3 Freud S Deuil et Melancolie 1917 In Freud S Métapsychologie Paris Gallimard 1968 4 Freud S Psychologie des Foules et analyse du moi 1921 In Freud S Essais de Psychanalyse Paris Payot 1981 Bibliografia citada ABRAHAM K Préliminaires à linvestigation et au traitement psychanalytique de la folie maniaco depressive et des états voisins 1912 In Rêve et Mythe Oeuvres Complètes Vol I Paris Payot 1973 Actes du Colloque Lindividu Hypermoderne Vols 1 e 2 Paris ESCPEAP Laboratoire de Changement SocialUniversité Paris 7 setembro de 2003 ADORNO T W HORKHEIMER M Dialectique de la raison Paris Gallimard 1994 ALEXANDER F FRENCH T Studies in psychossomatic medicine Nova York Ronald Press 1948 ALEXANDER S Le surrealisme et le rêve Paris 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philosophiques Paris Gallimard 1961 WITTGENSTEIN L Conversaciones sobre Freud In Estética Psicoanalisis y Religión Buenos Aires Sudamerica 1976 Este ebook foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa SA O sujeito na contemporaneidade Wikipédia do autor httpsptwikipediaorgwikiJoelBirman Livros do autor httpswwwrecordcombrautoresjoelbirman Malestar na atualidade Birman Joel 9788520012376 304 páginas Compre agora e leia A psicanálise precisa repensar alguns de seus fundamentos para se tornar mais sensível às diferentes formas do malestar na sociedade atual Esta é a motivação central de Joel Birman no livro Malestar na atualidade a psicanálise e as novas formas de subjetivação O livro que inaugura a coleção Sujeito e história dirigida pelo próprio Joel Birman e que terá como próximos títulos Metamorfoses entre o sexual e o social de Carlos Augusto Peixoto Júnior e O prazer e o mal a filosofia das drogas de Giulia Sissa é o resultado de uma linha universitária de pesquisa desenvolvida pelo autor nos últimos três anos e tem por objetivo esboçar uma leitura preliminar do malestar na atualidade tendo como referência os problemas da subjetividade Compre agora e leia Histeria Maurano Denise 9788520013564 140 páginas Compre agora e leia Obra que trata de um dos temas fundamentais para o desenvolvimento da teoria de Freud A partir do estudo das histéricas e com a ajuda de algumas delas Freud abandonou o método sugestivo e a hipnose e desenvolveu sua metodologia para acessar o inconsciente Em Histeria Denise Maurano se baseia nas observações de Jacques Lacan sobre obra de Freud para analisar este tema que ainda hoje é um enigma Na antiguidade e ainda hoje a histeria ainda é relacionada com o feminino Por meio da contextualização da histeria na obra do psicanalista vienense a autora oferece chaves para a interpretação da obra freudiana Compre agora e leia Pacientes que curam Rocha Julia 9786558020158 304 páginas Compre agora e leia Em Pacientes que curam a médica Julia Rocha conta seu cotidiano no Sistema Único de Saúde brasileiro o SUS onde trabalha há dez anos desde que se formou Os textos de Pacientes que curam apresentam o que Julia uma mulher negra médica de família e comunidade mãe e cantora vivenciou no plantão no hospital em seu consultório na Unidade Básica de Saúde na UPA ou em visita a pacientes em casa E ao fazer isso traçam um retrato de um Brasil periférico que vive mal desde sempre Ao mesmo tempo revelam o que há de universal de sensível no humano No livro vemos como saúde é muito mais do que não estar doente é ter garantido o direito ao trabalho à moradia à alimentação à educação ao lazer e aos demais componentes do Estado de bemestar social Mas como proporcionar direitos às pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social Como fazer cumprir os artigos da Constituição que estabelecem acesso universal e igualitário à saúde A saúde é direito de todos e dever do Estado O SUS criado em 1986 é resultado de lutas dos movimentos sociais e engloba políticas de assistência e programas para a promoção da saúde da democracia e da cidadania para todos os brasileiros de forma gratuita É considerado um dos maiores e melhores sistemas de saúde públicos do mundo Graças ao SUS e a sua rede de profissionais dedicados ao atendimento humanizado dos pacientes temos a chance de conhecer a dra Julia e os pacientespersonagens deste livro Histórias como as de Juliana e Juraci que sofriam de uma das piores doenças que a sociedade pôde transmitir o racismo e a escravidão de Ruth que buscava um remédio para dormir e saiu com diagnóstico de opressão por machismo E também como a da mulher que queria uma solução para diminuir o desejo sexual e descobriu que estava saudável e de seu André que quase morreu e encontrou o amor Pacientes que curam é um livro para se emocionar para rir É diversão e é alimento para a luta Um livro para pessoas que sentem muito pelas injustiças e que teimam em mudar o mundo Compre agora e leia Justiça Sandel Michael J 9788520010976 350 páginas Compre agora e leia O curso Justice de Michael J Sandel é um dos mais populares e influentes de Harvard Quase mil alunos aglomeramse no anfiteatro do campus da universidade para ouvir Sandel relacionar grandes problemas da filosofia a prosaicos assuntos do cotidiano São temas instigantes que reunidos neste livro oferecem ao leitor a mesma jornada empolgante que atrai os alunos de Harvard casamento entre pessoas do mesmo sexo suicídio assistido aborto imigração impostos o lugar da religião na política os limites morais dos mercados Sandel dramatiza o desafio de meditar sobre esses conflitos e mostra como uma abordagem mais segura da filosofia pode nos ajudar a entender a política a moralidade e também a rever nossas convicções Justiça é o ao mesmo tempo estimulante e sensato uma nova e essencial contribuição para a pequena prateleira dos livros que abordam de forma convincente as questões mais difíceis de nossa vida cívica Um convite aos leitores de todas as doutrinas políticas a considerar controvérsias que já nos são familiares de maneira nova e iluminada Compre agora e leia O trauma na pandemia do Coronavírus Birman Joel 9786558020110 168 páginas Compre agora e leia Fruto das pesquisas do autor e da urgência do momento O trauma na pandemia do Coronavírus desenha as impressões e experiências da crise do Covid19 especialmente da perspectiva brasileira O psicanalista Joel Birman analisa em O trauma na pandemia do Coronavírus a dimensão psíquica da pandemia da Covid19 colocando em destaque as suas dimensões política social econômica ecológica cultural ética e científica Escrito a quente o livro chama a atenção para a problemática do trauma intimamente relacionada à noção de catástrofe humanitária subjetiva e nacional em que particularmente a população brasileira está inserida É um livro necessário a todas as pessoas que desejam compreender e processar subjetivamente esse período brutal Para Luis David Castiel professor e pesquisador do Departamento de Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio AroucaFiocruz Joel fez um ensaio com uma síntese factual da pandemia no Brasil e traz um precioso estudo psicanalítico sobre a repercussão em termos da dimensão catástrofetrauma Decerto irá servir sobretudo para proporcionar sentidos capazes de viabilizar formas consistentes para decifrar as razões de sofrimentos subjetivos provocados pelos enigmas covidianos de cada dia Trecho do livro A assunção do imperativo da bolsa no lugar do imperativo da vida por alguns governantes implicou em um ato perverso e cruel De acordo com seus cálculos políticos e eleitorais preferiram sacrificar milhares de vidas e empilhar os cadáveres dos seus cidadãos a se importar com o que é de fato digno de valor a vida de cada um em sua singularidade inigualável e incomparável Compre agora e leia