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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA MAURICIO RODRIGUES DE SOUZA Experiência do Outro Estranhamento de Si dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise SÃO PAULO 2007 MAURICIO RODRIGUES DE SOUZA Experiência do Outro Estranhamento de Si dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Psicologia Área de Concentração Psicologia Experimental Orientador Prof Dr Luís Claudio Mendonça Figueiredo SÃO PAULO 2007 AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA DESDE QUE CITADA A FONTE Catalogação na publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Souza Mauricio Rodrigues de Experiência do outro estranhamento de si dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise Mauricio Rodrigues de Souza orientador Luís Claudio Mendonça Figueiredo São Paulo 2007 211 p Tese Doutorado Programa de PósGraduação em Psicologia Área de Concentração Psicologia Experimental Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo 1 Psicanálise 2 Antropologia 3 Alteridade I Título RC504 FOLHA DE APROVAÇÃO Mauricio Rodrigues de Souza Experiência do outro estranhamento de si dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor Área de Concentração Psicologia Experimental Aprovado em Banca Examinadora Profa Dra Instituição Assinatura Profa Dra Instituição Assinatura Profa Dra Instituição Assinatura Profa Dra Instituição Assinatura Profa Dra Instituição Assinatura DEDICATÓRIA Aos meus pais Ana Lúcia e Nivaldo por todo o seu precioso generoso e incondicional apoio ao longo da longa gestação desta tese Também dedico este trabalho à memória de Raymundo Messias meu querido Tio Ray AGRADECIMENTOS Aos meus familiares e amigos em Belém e Recife pelo seu carinho e interesse particularmente quando da minha estada em São Paulo Ao Prof Luís Claudio Figueiredo da Universidade de São Paulo por suas generosas orientação confiança paciência e disponibilidade quando solicitado Ao Yannick e ao Marcos amigos de todas as horas Ao Prof Ernani Chaves da Universidade Federal do Pará exorientador mas jamais um examigo pela sua escuta carinho e também pela sugestão de que curiosamente residiria no inquietante a possibilidade de um caminho para apaziguar as inquietações impostas pela escrita desta tese À Maria Tereza pelo carinho e pela nossa bela amizade desta e de outras vidas Aos primos Izavan Celina Mariana e Carolina pelo apoio e generosas acolhida e hospitalidade quando da minha chegada a São Paulo Ao Diego pela amizade pela acolhida na terra da garoa e pelas nossas elucubrações metafísicas acerca do funcionamento de uma máquina de lavar roupas À Isolda Carol Vanessa e toda a comunidade da Bartira por tudo que vivemos juntos Ao Prof Nelson da Silva Junior da Universidade de São Paulo pela amiga compreensão das angústias do desterro e por sua grande generosidade intelectual Aos Profs Nelson Coelho Júnior e Eunice Durham da Universidade de São Paulo pela leitura deste trabalho e por sua paciência e orientações quando do exame de qualificação desta tese Aos colegas de orientação da USP pelas sugestões de idéias e leitura de diversas partes deste trabalho Aos Profs Emmanuel Tourinho e Ana Cleide Moreira da Universidade Federal do Pará pela atenção e indicação do caminho das pedras que levava à USP Ao Prof Heraldo Maués da Universidade Federal do Pará meu exorientador no campo da Antropologia pela leitura do projeto desta tese e apoio quando da minha estada em São Paulo Aos Profs André Barretto Ricardo Pimentel e Marilu Campelo da Universidade Federal do Pará por seu interesse leitura e comentários acerca do projeto desta tese À Profa Monique Augras da PUCRio pela leitura do projeto e indicações bibliográficas Ao Prof Benedito Nunes pela simpática gentileza com que dispôs do seu precioso tempo para ler e comentar o projeto desta tese Aos Profs Antonio Berenice e demais colegas do Sedes Sapientiae pela acolhida incentivo e por me mostrarem o quanto o psicanalista também pode e deve ser humano demasiado humano À Profa Caterina Koltai pela atenção que dispensou a este estrangeiro e pelo empréstimo de alguns textos citados aqui Às Profas Marisa Peirano e Rita Laura Segatto da Universidade de Brasília pelas indicações bibliográficas no campo da antropologia Ao Prof José Sávio da Universidade Federal Fluminense pelo seu interesse e sugestões quanto ao contraponto entre as atividades do antropólogo e do analista Ao Depto de Psicologia Experimental da Universidade de São Paulo e ao CNPQ pela confiança e pela bolsa de estudos com a qual pude desenvolver o presente trabalho Hoje quando o pensamento não aspira mais ao universal quando sua melhor história seria a dos seus arrependimentos sabemos que o sistema quando é válido não se separa de seu autor O pensamento abstrato reencontra enfim seu suporte de carne Albert Camus O Mito de Sísifo RESUMO SOUZA M R de Experiência do Outro Estranhamento de Si dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise 2006 211 f Tese Doutorado Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo São Paulo 2007 O presente trabalho consiste em um estudo acerca do impacto psíquico provocado pela experiência da alteridade Com efeito enfatizando a dimensão inconsciente que permeia tanto a prática clínica quanto a pesquisa com grupos das mais diversas naturezas visa estabelecer pontos de contato entre a antropologia e a psicanálise no terreno interpretativo e político da negociação de sentido Para tanto realizou um percurso histórico por algumas das principais escolas da antropologia para em tal movimento localizar um contraponto nas matrizes dessa disciplina que pode ser qualificado como explicação versus compreensão Ou seja tratase da maior ou menor afirmação da capacidade de traduzir ou representar objetivamente as diferenças expostas por culturas alheias Visando propor saídas para tal dilema ao mesmo tempo ético e epistemológico este estudo ampliou tal discussão para nela incluir um outro ramo do saber a psicanálise Então pela via de leituras pormenorizadas dos conceitos de inquietante e de construção alcançou a idéia de que a diferença imposta pelo outro no contexto da clínica é inseparável da diferença do Inconsciente dono de uma narrativa e de uma temporalidade particulares que se recusam a obedecer aos ditames do pensamento representacional Em decorrência disso o estranho e o negativo do encontro analítico passam a aparecer como lugares do possível ampliando o conceito de alteridade e as capacidades da interpretação agora um meio termo entre a produção de sentido e a experiência do vazio Eis a lição da nãolição proposta por este inquietante outro do Inconsciente à etnografia e mesmo às chamadas Ciências Humanas como um todo admitir a possibilidade do sentido mas não necessariamente o seu encerramento fornecendo assim uma expressão menos comprometida a um estrangeiro agora irredutível a códigos préestabelecidos Isso significa a admissão de que o movimento do conhecimento não pode prescindir da criação de espaços para o novo e mesmo para o desconcertante incluindose aí tudo aquilo que escapa à procura racional como os afetos as surpresas e com eles uma por vezes dolorosa mas ao mesmo tempo potencialmente criativa sensação de incompletude PalavrasChave Psicanálise Antropologia Alteridade ABSTRACT SOUZA M R de Experience of the Other Strangeness of the Self dimensions of otherness in anthropology and psychoanalysis 2007 211 f Thesis Doctoral Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo São Paulo 2007 This work studies the psyquic impact provoked by the experience of otherness Furthermore emphasizing the unconscious dimension that is present in clinical practice and in researches concerning groups of different natures it intends to establish points of contact between anthropology and psychoanalysis in the political and interpretative field of negotiation of meaning To pursue this aim it performed an historical review of the contributions of some of the most important anthropological schools locating in the matrix of this discipline a counterpoint that can be qualified as explication versus comprehension In other words the problem here is to affirm the major or minor capacity to traduce or represent objectively the differences exposed by alien cultures In a way to propose some possibilities for this ethical and epistemological dilemma the present study extended this discussion to include on it the knowledge brought by psychoanalysis Therefore by detailed readings of the concepts of uncanny and construction it reached the idea that the difference imposed by the other in the clinics is not separated from the difference of the Unconscious owner of particulars narrative and temporality that refuse to obey the principles of representational thought Because of that the strangeness and the negative of the analytic encounter become places of possibility amplifying the concept of otherness and the capacities of interpretation now placed in a midpoint between the production of sense and the experience of emptiness Thats the lesson of nonlesson proposed by this uncanny other of the Unconscious to ethnography and even to Human Sciences as a whole to admit the possibility of sense but not necessarily its ending offering a less compromised expression to a stranger that now cannot be reduced to previously set codes This means to admit that the movement of knowledge cannot give up the creation of spaces to the new and even to what is disconcerting including all that escapes a rational search like feelings surprises and together with them a sometimes painful but also potentially creative sensation of incompleteness Keywords Psychoanalysis Anthropology Otherness SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 12 2 A CONSTITUIÇÃO DE UM PATHOS REALIDADE E FICÇÃO NA PRÁTICA ANTROPOLÓGICA 23 21 EVOLUCIONISMO SOCIAL E TEORIA ANTROPOLÓGICA 26 22 ANTROPOLOGIA E DIFUSIONISMO CULTURAL 28 23 A PERSPECTIVA FUNCIONALISTA DE MALINOWSKI E OS NOVOS RUMOS DA ETNOGRAFIA 33 24 A ANTROPOLOGIA BRITÂNICA DO INÍCIO DO SÉCULO XX E OS PRIMÓRDIOS DA PESQUISA DE CAMPO 39 25 COM A PALAVRA OS ARGONAUTAS A GÊNESE DA OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ENTRE OS NATIVOS DA NOVA GUINÉ 41 26 A VIRADA HERMENÊUTICA E O NOVO PARADIGMA ANTROPOLÓGICO 54 27 CLIFFORD GEERTZ A ANTROPOLOGIA POR SOBRE OS OMBROS DO NATIVO 60 28 DO PONTO DE VISTA DE GEERTZ O PONTO DE VISTA DOS NATIVOS 64 29 OS PÓSMODERNOS A ANTROPOLOGIA POR SOBRE OS OMBROS DO ANTROPÓLOGO 70 210 JAMES CLIFFORD A IDENTIDADE E A AUTORIDADE ETNOGRÁFICAS EM XEQUE 86 3 A PSICANÁLISE DIANTE DO OUTRO REVISITANDO O INQUIETANTE FREUDIANO 104 31 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ALIADAS A UM BREVE PERCURSO PELO ESTRANGEIRO EM FREUD 105 32 ACERCA DE O INQUIETANTE DAS UNHEIMLICHE 112 33 MAS O QUE É O UNHEIMLICHE AFINAL 114 34 O TEXTO EM SI REFLEXÕES A PARTIR DO DAS UNHEIMLICHE FREUDIANO 116 35 A ALTERIDADE DO INCONSCIENTE E A ESTRANHEZA DA SITUAÇÃO ANALÍTICA COMENTÁRIOS A PARTIR DA OBRA DE PIERRE FÉDIDA 140 4 O JOGO DOS SENTIDOS EM PSICANÁLISE CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE CONSTRUÇÃO 149 41 O QUE SIGNIFICA CONSTRUÇÃO EM ANÁLISE 150 42 REALISMO VERSUS CONSTRUTIVISMO EM PSICANÁLISE PRIMEIRA PARTE O SENTIDO DE UM RETORNO A FREUD 151 SEGUNDA PARTE SERGE VIDERMAN E A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO ANALÍTICO 160 TERCEIRA PARTE TEMPO E NARRATIVA EM FREUD E HEIDEGGER UM ENCONTRO NA OBRA DE LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO 172 QUARTA PARTE DE VOLTA ÀS CONSTRUÇÕES EM ANÁLISE 179 5 CONCLUSÃO 187 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 199 INTRODUÇÃO Crise de paradigmas pósmodernidade e o amplo questionamento da razão Estes são alguns dos termos com os quais se defronta a atividade científica contemporânea Neste sentido um breve olhar histórico aponta o importante papel de duas áreas do saber que a despeito de uma trajetória de contatos marcada pela ambigüidade de uma certa luta armada e também da mútua admiração enfatizaram sempre a possibilidade e mesmo a necessidade da desconfiança quanto às possibilidades do sujeito cognoscente e seu apelo por uma suposta neutralidade axiológica Tratase da Psicanálise e da Antropologia que conforme Rinaldi seguindo Michel Foucault são produtos da modernidade onde nasceram e proliferaram sob os parâmetros que constituem o saber moderno Razão e sujeito baluartes da ciência moderna são imprescindíveis para se pensar tanto uma quanto a outra Entretanto elas assumiram no espaço geral da episteme uma posição crítica de contestação do saber adquirido Isto lhes permitiu colocar em questão o império da consciência e da racionalidade ocidental Assim como na psicanálise a descoberta do inconsciente veio a quebrar a unidade do sujeito racional na antropologia a descoberta de outras racionalidades presentes em outros universos culturais veio contestar a universalidade dos princípios ordenadores da racionalidade ocidental moderna RINALDI 1996 p 113 Além disso ambas remetem à fundamental importância da alteridade na constituição do saber seja na antropologia onde o encontro com o diferente acaba por transportar o pesquisador de volta à sua própria cultura seja na clínica psicanalítica onde como nos mostra Mezan O paciente acede à sua verdade mediante o Outro isto é o analista 1998 p 242 A crise da razão científica e a sua relação com o inconsciente e com a alteridade se constituem portanto em pontoschave para a discussão que permeia este trabalho onde tomando por base a perspectiva acima adotase a premissa de que mais do que a teoria que comporta um projeto de pesquisa certamente também carrega consigo as experiências prévias e subjetivas do seu autor Assim no que se refere aos variados aspectos da prática antropológica um certamente merece destaque especial aquele das interrelações entre pesquisadores e grupos estudados permeadas pela cumplicidade e por uma constante trocas de experiências e mesmo de favores entre ambas as partes Quanto a este tema particularmente a área de 13 estudos da antropologia da religião chama atenção pela freqüência com que nela ocorre uma certa inversão da tradicional relação epistemológica entre sujeito e objeto Em outros termos é relativamente comum a conversão de pesquisadores que encantados pelas ofertas simbólicas dos grupos religiosos que estudam acabam por aderir a estes últimos ofuscando assim a pretensa neutralidade que supostamente caracterizaria o trabalho científico Por outro lado não é menos comum verificar o fato de que também os agentes religiosos mais e mais freqüentam cursos e seminários acerca da opção religiosa que professam chegando mesmo em vários casos a se tornarem acadêmicos e autoridades cientificamente reconhecidas em seu métier Cf POLLAKELTZ 1995 SILVA 1991 2000 Cientes desta aparente inversão de valores as Ciências Sociais e mais particularmente a antropologia dita pósmoderna vêm dedicando um espaço cada vez maior ao estudo de tais relações de reciprocidade entre pesquisadores e grupos estudados Quanto a isso bons exemplos podem ser encontrados em trabalhos como os de Becker 1977 DaMatta 1978 Brandão 1981 Velho 1987 e mais recentemente Cardoso 1997 Já no que se refere aos interesses religiosos dos estudiosos da religião cabe um destaque particular aos textos de Pierucci 1997 1999 Pois bem ocorre que também a psicanálise embasada na já centenária experiência da sua prática clínica ocupase e mesmo deve boa parte da sua tradição a um estudo semelhante o da troca de afetos entre as figuras do analista e do analisando Assim longe de negar a importância das relações intersubjetivas acabou por tomálas como uma das suas maiores ferramentas terapêuticas elevandoa ainda à qualidade de fértil campo de pesquisas Com isso o presente trabalho de natureza eminentemente teórica e transdisciplinar ocuparseá do impacto psíquico provocado pela experiência da alteridade Neste sentido enfatizando a dimensão inconsciente que permeia tanto a prática clínica quanto a pesquisa com grupos ou tribos das mais diversas naturezas propõese a estabelecer pontos de contato entre a psicanálise e a antropologia no terreno interpretativo e político da imposiçãonegociação de sentido1 1 Não faz parte das nossas intenções aqui traçar um histórico do contato entre as duas disciplinas que em maior ou menor escala acompanhou tanto o desenvolvimento da psicanálise quanto de diversas escolas do pensamento antropológico De qualquer forma uma análise mais detalhada deste processo pode ser 14 Uma vez que as Ciências Humanas adotam como objeto privilegiado as relações sociais enfatizamos aqui a transferência de afetos entre pesquisadores e seus grupos de estudo como condição básica para esta modalidade de pesquisa Afinal antes mesmo dos primeiros contatos entendemos que o antropólogo já carrega consigo expectativas prévias em caráter duplo em relação à alteridade nativa e ao mesmo tempo à familiaridade dos seus pares acadêmicos para os quais terá a tarefa de traduzir especificidades alheias Estas por seu turno possivelmente serão transformadas ao longo do tempo e da convivência junto ao outro em um movimento que também mobilizará novas respostas por parte do pesquisador Destarte nossa perspectiva norteadora aqui é a de que assim como na clínica psicanalítica cabe ao antropólogo utilizar sabiamente os sentimentos que mobiliza Ou seja nesta dimensão ao mesmo tempo ética e técnica nem invadir o outro em demasia com uma visão de mundo que na verdade não lhe pertence mas que serviria ao propósito de melhor traduzilo para a academia e nem tampouco se deixar seduzir e inundar por sistemas simbólicos estranhos e que comprometeriam um necessário afastamento entre o cientista e o fiel por exemplo Tal escolha se justifica uma vez que além de implicações metodológicas as inquietações que permeiam este estudo detém em última análise um caráter epistemológico Isso porque apostam no valor da confrontação conceitual entre a antropologia e a psicanálise como um exercício útil ao redimensionamento do alcance das próprias Ciências Humanas no contexto do saber contemporâneo cada vez mais ciente senão do fim da dicotomia sujeitoobjeto pelo menos das possíveis interferências do primeiro em relação ao segundo De maneira a tentar viabilizar tal proposta dividimos a nossa argumentação em três momentos específicos Primeiramente tomando como referência os domínios da Psicopatologia Fundamental e a sua definição do conceito de pathos a partir da Grécia antiga Cf BERLINCK 2000 efetuaremos uma reconstituição histórica que forneça ao leitor particularmente aquele oriundo da psicologia ou de outras áreas do saber não necessariamente familiarizadas com as ciências sociais elementos suficientes para a encontrada em trabalhos relativamente novos como os de Micela 1984 Obeyesekere 1990 Musumeci 1991 Heald e Deluz 1994 Rinaldi 1996 e Souza 2003 15 compreensão dos novos rumos tomados pela disciplina antropológica a partir das primeiras décadas do século XX Aqui vale adiantar ganha enorme ênfase a progressiva adoção de uma nova modalidade intensiva de estudos de campo que propondo uma revisão do cartesianismo relativo a uma clara separação entre sujeito e objeto de pesquisa acabou por tornar imprescindível um maior vínculo do etnógrafo com os grupos dos quais se ocupa O aperfeiçoamento de tal procedimento conduziu por fim à criação do que se convencionou chamar de a ferramentamor da antropologia a observação participante que toma o intenso convívio com os nativos enquanto condição sine qua non para um bom trabalho de descrição e análise das culturas Cf MALINOWSKI 1978 DURHAM 1978 CARDOSO DE OLIVEIRA 1991b GEERTZ 1997 e CLIFFORD 1998 Neste sentido passaremos em revista as principais contribuições e limitações do evolucionismo social e do difusionismo cultural enquanto duas escolas do pensamento antropológico que embora pioneiras na organização de sistemas explicativos razoavelmente integrados e voltados ao estudo da cultura careciam ainda de uma metodologia de trabalho convincente e que para além do mero preconceito ou conjectura desse conta do nativo de carne e osso Isto é compreendendoo a partir da sua própria lógica ou visão de mundo a mesma que fornece sentido às suas manifestações culturais Ao chegarmos a uma terceira e não menos importante escola a do funcionalismo britânico adotaremos um procedimento análogo expondo algumas das suas idéias fundamentais acrescidas de uma discussão acerca da sua relação particular com aquelas mudanças operacionais descritas há pouco Para tanto tornase impossível não fazer uma referência ao nome de Bronislaw Kaspar Malinowski 18841942 considerado o verdadeiro precursor desta renovação no terreno das humanidades Com isso misturando elementos biográficos históricos e filosóficos dividiremos a nossa exposição em três partes distintas A primeira abordará as premissas essenciais do funcionalismo a partir da formação acadêmica inicial de Malinowski ainda na Polônia e em seguida na sua definição do conceito de cultura A segunda situada em território inglês colocará o leitor em contato com o mainstream da discussão antropológica da época a qual proporcionou a realização efetiva dos trabalhos de campo que mudariam os rumos da disciplina Finalmente condensando em termos de teoria e prática os elementos destes momentos anteriores um terceiro esforço será dedicado à análise do tipo de pesquisa 16 empreendida por Malinowski conforme a introdução metodológica proposta pelo próprio autor em um dos seus mais famosos livros Argonautas do Pacífico Ocidental Cf MALINOWSKI 1978 Após percorrermos um pouco desta história da antropologia moderna particularmente no que se refere à construção do que mais especificamente a partir da década de 1920 viria a se constituir em uma espécie de modelo do trabalho etnográfico convidamos o leitor a um salto no tempo de aproximadamente 40 anos Isso porque é a partir do contexto específico da década de 1960 a qual presenciou tanto a descolonização das colônias inglesas e francesas até então etnografáveis quanto a rebelião dos tradicionais objetos destas etnografias que seria preparado o terreno para algumas das discussões que evidenciando o pathos por nós associado à antropologia contemporânea fundamentam o presente estudo O seguinte trecho do artigo de Montero 1991 engloba tal processo de forma bastante acurada Filha do encontro entre a civilização e a barbárie ela a antropologia se funda na afirmação da identidade universal da psique humana e na promessa da explicação das diferenças No entanto o humanismo antropológico deve enfrentar agora um novo desafio A dura realidade da descolonização traz no seu bojo a crise do humanismo peçachave do edifício epistemológico das ciências humanas Não é mais possível esquecer que o princípio da identidade subjetiva do espírito humano garantia da transparência da cultura tribal para o pensamento antropológico foi postulado pelo colonizador para desvendar o coração do colonizado A pretendida imanência acabou por revelarse uma afirmação da universalidade do logos ocidental e como tal se tornou inaceitável para o colonizado MONTERO 1991 p 109112 Nestes termos passaremos a abordar o atual momento da Antropologia Qual seja aquele da mudança de paradigmas em uma disciplina que após adotar anteriormente a proposta epistemológica de um funcionalismo cuja função era predominantemente explicativa percorre novos rumos ao se aproximar da perspectiva mais artesanal e compreensiva que caracteriza a teoria hermenêutica Para melhor ilustrar esta transição iremos nos valer inicialmente tanto de uma breve leitura de alguns dos princípios básicos deste ramo da filosofia quanto já no terreno da antropologia das idéias desenvolvidas por Cardoso de Oliveira 1988a 1988b 2000 preciosas fontes de informação ao abordarem precisamente o tipo e a qualidade da mudança paradigmática que caracteriza o presente antropológico 17 Em seguida conferiremos um destaque particular a alguns trechos da obra de Clifford Geertz figura verdadeiramente central na constituição deste foco interpretativo da antropologia Neste sentido de maneira a fornecer uma visualização mais adequada do contraponto estabelecido pelo antropólogo norteamericano entre a sua proposta e o tipo de orientação teóricometodológica até então validada no campo da pesquisa antropológica utilizaremos o mesmo expediente anteriormente válido no percurso que fizemos pelo trabalho de Malinowski 1978 A saber elegeremos um texto particular e representativo das idéias de Geertz para a partir dele esmiuçar nossa análise com base em um exemplo de natureza mais prática buscando situar o leitor no terreno das principais contribuições e limitações do projeto geertziano De forma a cumprir esta espécie de anamnese dedicaremos um terceiro momento à análise dos esforços de alguns outros herdeiros norteamericanos desta perspectiva hermenêutica os chamados antropólogos pósmodernos Estes a partir do referencial inaugurado por Geertz propõem novos experimentos ao questionarem o tipo de identidade e autoridade construídas nos aproximadamente cem anos da constituição da antropologia enquanto disciplina científica qualificando ainda a atividade etnográfica como eminentemente reflexiva dialógica ou mesmo polifônica Em outros termos ao adotarem como válida a metáfora geertziana da cultura como um texto a ser interpretado e a partir daí questionarem a própria possibilidade epistemológica do conhecimento etnográfico tais teóricos simultaneamente tomaram para si a tarefa de desvendar desmascarar ou desconstruir as práticas retóricodiscursivas que segundo eles seriam responsáveis pela construção tanto da identidade quanto da autoridade do etnógrafo enquanto tradutor referendado de outras visões de mundo Daí elegerem como seus nativos ou informantes os antropólogos do passado e do presente os quais agora são também eles observados e descritos por sobre os seus próprios ombros Dada a sua notabilidade podese vincular a tal contexto trabalhos como os de Marcus e Cushman 1982 Marcus e Fischer 1986 Clifford e Marcus 1986 e Clifford 1998 autor esse do qual também nos ocuparemos mais pormenorizadamente Assim esperamos haver atingido o fundamento desta revisão histórica conduzindo o leitor a uma definição cada vez mais clara do tipo de malestar presente na contemporaneidade antropológica malestar esse que permitirá uma intervenção de ordem 18 psicanalítica Tratase da ênfase pósmoderna na dimensão retórica da etnografia o que resultou em um questionamento epistemológico acerca da própria natureza e limites desta atividade aliado a uma perigosa aproximação entre si e a ficção literária Ocorre porém que nem todos os antropólogos da atualidade são partidários desta polêmica criada pela escola norteamericana Com efeito será no terreno das ressalvas a este pósmodernismo etnográfico que finalizando este primeiro momento alcançaremos a perspectiva que mais diretamente influenciou na proposta desta tese Ela se apresentará no escrito de Peirano 1995 que partindo em defesa da etnografia sugere que um saber específico como o da psicanálise poderia avaliar satisfatoriamente aquela que talvez seja a maior riqueza da atividade etnográfica sua qualidade fenomenológica de encontro intersubjetivo incluindose aí as dores e delícias provocadas pela vivência de um confronto tão direto com o outro O presente trabalho acolhe de bom grado tal sugestão de um diálogo produtivo entre a antropologia e a psicanálise no terreno da alteridade Mas de que forma seria possível realizálo Buscando respostas para esta questão voltarnosemos em nosso segundo capítulo a uma discussão sobre o outro a partir do referencial teórico inaugurado por Freud Para melhor preparar o leitor e a nós mesmos para esta nova etapa optamos por realizar em primeiro lugar um percurso pela questão do estrangeiro no pensamento do pai da psicanálise histórico esse que incluiu ainda que brevemente comentários que se estenderam desde os Estudos sobre a Histeria Cf FREUD e BREUER 18931996 até A Negação Cf FREUD 1925a1996 Neste sentido valemonos da preciosa ajuda de trabalhos como os de Kristeva 1994 e Koltai 2000 A partir daí passaremos a direcionar o nosso foco rumo a um texto específico do mestre de Viena Tratase de O Inquietante Cf FREUD 19191976 o qual representa um importante momento de transição na metapsicologia freudiana precedendo a reorientação teórica da psicanálise rumo a uma nova teoria das pulsões agora balizada no postulado de que a vida psíquica seria regida por dois princípios simultaneamente antitéticos e complementares Eros e Thanatos as pulsões de vida e morte Curiosamente todo este movimento será feito a partir dos domínios da estética Assim no artigo em questão encontraremos Freud 19191976 às voltas com aquela capacidade da obra de arte de causar em nós a sensação de uma desconfortável 19 inquietude Das Unheimliche experiência essa relativa àquilo que seduz e ao mesmo tempo aterroriza O que porém de mais específico caracterizará a abordagem freudiana de tal fenômeno do sinistro é o fato de remeter o leitor a uma dimensão última permeada pela familiaridade Desta maneira há aqui a afirmação de que sob o aparentemente incompreensível eou atemorizante escondese algo originalmente muito próximo ainda que afastado da consciência um estranho de nós mesmos por assim dizer muito bem expresso por Kristeva 1994 nos seguintes termos Estranhamente o estrangeiro habita em nós ele é a face oculta da nossa identidade o espaço que arruína a nossa morada o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia Por reconhecêlo em nós poupamosnos de ter que detestálo em si mesmo Sintoma que torna o nós precisamente problemático talvez impossível o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros rebeldes aos vínculos e às comunidades KRISTEVA 1994 p 09 Ocorre que a despeito do tipo de análise que se faz presente em O Inquietante haver se voltado principalmente ao reino da criação artística em particular a ficção literária suas implicações em muito extrapolam este domínio estendendose também para aquele outro tão caro à prática clínica Diante disso complementaremos a linha de raciocínio presente neste segundo capítulo e seguindo uma perspectiva anteriormente defendida por Kofman 1973 Chnaiderman 1997 e Silva Junior 2001 teceremos algumas considerações acerca da abertura e fragmentação de sentido presentes na hipótese da pulsão de morte levando em conta aqui as suas possibilidades no que se refere ao papel desempenhado pelo analista no cotidiano da sua prática profissional Eis quando prestaremos uma merecida homenagem ao pensamento de Fédida 1988 1991a 1991b 1996 para o qual a escuta analítica se situa estrategicamente em um lugar do nãolugar caracterizado como sítio do estrangeiro Afinal sugere o autor francês se o estranho abordado por Freud 19191976 reside no Inconsciente ou seja naquilo que temos de mais íntimo é somente pela via de um outro estranho aquele da transferência que na clínica poderemos travar contato com essa alteridade que nos é constitutiva2 Nestes termos enfatizando os temas da linguagem da familiaridade e da distância 2 Outro esse da linguagem do negativo e de uma ausência da transferência que vale a pena adiantar não se confunde ou não deveria jamais se confundir com a própria pessoa do analista 20 encerraremos esta segunda etapa do nosso trabalho esmiuçando o sinuoso e desafiador caminho que vai do silêncio do analista à interpretação enquanto campo do possível Então em um terceiro momento após travarmos um contato mais íntimo com este forasteiro de nós mesmos denominado Inconsciente dedicaremos todo um capítulo à complementação da discussão psicanalítica sobre alteridade iniciada anteriormente Desta feita utilizando um outro conceito advindo da obra freudiana aquele de construção em análise Cf FREUD 19371976 Mediante este recurso buscaremos saídas para o dilema pósmoderno que parece assombrar tanto o trabalho de campo do antropólogo quanto a prática clínica do analista ambos vítimas de uma querela que como apontam autores como Figueiredo 1998b e Ahumada 1999 envolve os partidários das chamadas alas realista e construcionista destas duas áreas Nossa abordagem do tema se dará sob três óticas distintas ainda que complementares Em primeiro lugar privilegiaremos aquela que se faz presente no texto original em que Freud 19371976 debate as construções em análise a partir das críticas de que em seu cotidiano a clínica por ele inaugurada não teria se livrado de todo da prática da sugestão Neste sentido ou seja na procura de argumentos que fornecessem garantias quanto à seriedade e utilidade do tratamento analítico nosso autor relativizará a noção de verdade com a qual lidava em seus atendimentos demonstrando por exemplo a precariedade de se tomar as respostas diretas dos pacientes como critério único ou mesmo principal para a validação de hipóteses Com efeito o mesmo Freud 19371976 apontará a necessidade da observação de reações outras de caráter mais sutil como estados de humor lembranças eou associações que inseparáveis do fenômeno transferencial viessem a complementar as deduções há pouco referidas Finalmente e isso adquire suma importância através da proposta de uma divisão entre realidade psíquica e material o mestre de Viena nos mostrará que os fatos com os quais trabalha o analista são aqueles referentes às leis do desejo e não necessariamente acontecimentos traumáticos dos quais pudéssemos derivar uma correlação imediata do tipo causa e efeito Ainda assim tornase possível perceber no escrito de Freud 19371976 os resquícios da presença de um certo realismo e com ele a crença tanto na adequação entre a metapsicologia e os conteúdos inconscientes quanto na neutralidade do analista em sua 21 tarefa de recuperar eou traduzir estes elementos da outra cena Eis o mote para que reorientemos a nossa aproximação do tema das construções e com ela da questão da alteridade em psicanálise rumo a uma segunda abordagem Como veremos nas páginas seguintes esta será defendida por Viderman 1990 1995 cujos trabalhos se constituem na qualidade de marcos do construcionismo em psicanálise ao discordarem amplamente de Freud 19371976 quanto à possibilidade do estabelecimento da neutralidade do analista no desempenho de uma atividade de resgate de supostas verdades enterradas no Inconsciente Assim o autor francês apostará as suas fichas na tese de que o sentido em psicanálise é construído no e pelo espaço do setting clínico pouco importando a verdade do Inconsciente em si mesma insubmissa e refratária por excelência mas a verossimilhança moldada pela interpretação Em decorrência serão a linguagem teórica do analista e a susceptibilidade imposta pelo amor da transferência que aparecerão como responsáveis por trazer à tona os supostos vividos inconscientes no presente da situação analítica fornecendo ainda dependendo do caso maiores ou menores garantias para que o par analítico siga em frente ou não E então qual das duas linhas de raciocínio escolher Talvez nenhuma delas exatamente É o que nos diz Figueiredo 1994a 1994b 1996a 1998b autor esse que a partir de uma série de diálogos com a filosofia heideggeriana romperá as barreiras impostas pelo entrechoque entre realistas e construtivistas ou seja entre o resgate e a criação de sentido em psicanálise Com efeito apontará o quanto ambos ao permanecerem tomando a noção de experiência sob a primazia da presentificação leiase também da representação revelamse incompatíveis com as exigências da atividade clínica do analista marcada pelo contato direto com o caráter extemporâneo fragmentado e sobredeterminado do Inconsciente Os reflexos de tal orientação aparecerão mais claramente na leitura empreendida por Figueiredo 1996a de Construções em Análise Cf FREUD 19371976 a qual adotará a perspectiva de que já ali seria possível encontrar certos modos de ver escutar e pensar não necessariamente atrelados nem a uma metafísica da presença e nem tampouco às exigências representativas do chamado Princípio de Razão Nestes termos nosso autor observará ainda que embora teorias como aquela proposta por Freud inevitavelmente detenham princípios ordenadores do tipo realizador no momento do encontro analítico podem e 22 devem funcionar como dispositivos desrealizantes3 exigindo do analista a capacidade nada desprezível de sustentar uma hermenêutica de resposta em que cada um deixouse fazer pelo outro acolhendo em si a alteridade do outro e permitindo que se despertem em si as próprias alteridades ressoantes FIGUEIREDO 1994b p 20 Na prática isso significa buscar um meio termo entre a pressa de realizar uma completa tradução do discurso alheio e a tentação de se deixar influenciar demasiadamente por ele Assim ao contrário da tradição que acabou por se impor ao longo da história do pensamento ocidental o conhecimento obtido na clínica analítica não aparece tomado como estado ou ente acabado metafísica da adequação ou correspondência entre representação e representado mas enquanto acontecimento Por conseguinte resgatando a sua forma grega de aletheia a verdade adquire ou melhor readquire a qualidade de drama ou encenação conservando uma reserva que lhe permite manter a atividade interpretativa em perpétuo movimento Eis as principais idéias que permearão as inconclusões deste trabalho onde resgatando o fio condutor do nosso raciocínio debateremos o interesse da psicanálise para a antropologia e em escala mais ampla para as próprias Ciências Humanas Como veremos ele reside no terreno da ética mas não de uma ética qualquer Tratase daquela que ao evitar reduzir o outro a códigos semânticos prédefinidos admita a íntima e assim inquietante relação que se estabelece entre conhecimento e alteridade Assim e somente assim poderá nos servir de guia em um passeio rumo ao estrangeiro que não tem hora e nem tampouco lugar para acabar E que façamos uma boa viagem 3 Como nos mostra Figueiredo 1994a a fala aqui é expropriada de uma atividade interpretativa que limitandose ao estabelecimento de relações como as de causa e efeito concentrase no que aparece explicitado no discurso Então ao invés do decifrar ela adquire um outro movimento de aproximação e ao mesmo tempo recuo circundando de silêncio o dito para que ele ressoe no lugar que o precede reserva e rege o lugar do nãodito Somente assim fornecerá a este mesmo Inconsciente do qual falamos há pouco um espaço de figurabilidade em que possa se expressar o mais livremente possível Isto é no luscofusco na diferença e na estranheza que lhe são constituintes CAPÍTULO 01 A Constituição de um Pathos realidade e ficção na prática antropológica Desde a sua fundação por Sigmund Freud a psicanálise é tradicionalmente convocada a partir de um malestar Ou seja advinda da prática clínica do seu criador configurase enquanto uma ética e uma técnica eminentemente ligadas à dimensão trágica da vida que na sua persistência teima em lembrar a humanidade acerca do caráter finito e imperfeito da sua existência na terra ocasionando assim um estado ou sentimento muito bem expresso pela sabedoria grega através do termo pathos Em um rico trabalho que visa situar o leitor brasileiro quanto à posição da Psicopatologia Fundamental no campo da clínica psicanalítica Berlinck 2000 faz uma viagem ao classicismo da cultura greco romana para daí extrair detalhes sobre este conceito que tanto nos interessará a partir de agora Assim o texto em questão funcionará como um bom ponto de partida para o presente capítulo Vejamos o que tem a nos dizer Inicialmente Berlinck 2000 prima por situar seu leitor quanto às matizes de sentido da expressão posição tanto no contexto romano quanto no grego Posição que se origina no vocabulário militar romano quer dizer inicialmente lugar onde uma pessoa ou coisa está colocada Uma vez ocupado um território conquistada uma posição o exército romano o integrava com tudo que continha Os gregos por sua vez não tinham essa preocupação colonizadora Na civilização grega especialmente na Atenas de Péricles a noção de posição tendo também uma referência territorial é de natureza muito mais relacional As posições em Atenas referemse à postura do corpo à maneira à pose como os moradores da polis cidadãos e escravos autóctones e estrangeiros se relacionam numa trama discursiva que se realiza por excelência na ágora ou seja no espaço da retórica BERLINCK 2000 p 1112 Com isso a leitura do trabalho de Berlinck 2000 nos mostra ainda como uma noção mais clara do significado de pathos enquanto paixão sofrimento ou passividade originalmente ligados ao teatro pode ser obtida mediante a sua comparação com duas outras posições bastante caras à Grécia de Péricles orthos e historiè Quanto à primeira que 24 inclusive daria origem mais tarde à ortopedia e a ortodoxia esta se associa a uma irrepreensibilidade na conduta dos habitantes da polis particularmente no que diz respeito à postura corporal Neste sentido um andar calmo firme e com o corpo ereto denotava civilidade correção e uma postura ativa diante da vida e das relações sociais Já no que se refere a historiè a posição e o discurso do historiador não estão necessariamente associados a uma postura irrepreensível no contexto da ágora mas sim a viagens e visitas que por intermédio do próprio olhar daquele que reportava ou ainda através da utilização de testemunhas serviam para registrar o que ocorria lá e em outros lugares cada vez mais freqüentados por estrangeiros Em outras palavras também se constituía em importante função do historiador aquela de garantir aos cidadãos gregos o reconhecimento de si mesmos diante da crescente ameaça oferecida pelo outro pelo diferente pelo conquistado e assim incorporado De qualquer forma segue Berlinck 2000 tanto orthos quanto historiè pressupunham a mobilidade o movimento corporal quer seja daquele que se expõe quer seja daquele que registra Tal não ocorria na terceira das posições manifestas na polis aquela do teatro onde devido à própria natureza das encenações e da distribuição dos lugares destinados ao público este último permanecia sentado relativamente imóvel e importante obrigado a dobrar o torso para melhor ver e ouvir o espetáculo que lhe era oferecido abandonando desta forma aquela postura ereta que como vimos há pouco seria recomendada ao cidadão Mas as diferenças não param por aí assumindo maiores proporções ao penetrarem na esfera da própria qualidade do discurso ou do tipo de experiência proporcionada pela linguagem falada Enquanto no terreno da ágora a oratória produzida devia necessariamente se vincular à razão lógica uma vez que visava o convencimento de uma audiência crítica a situação mítica do teatro possibilitava a emergência de um outro tipo de falante aquele que livre das amarras da verdade conduzia a sua performance de maneira a provocar em seu público uma experiência A posição do teatro se opõe assim à do orthos porque aquele não pretende convencer o interlocutor da irrepreensibilidade de sua posição e sim apresentar um discurso mitopoiético epopéico que produza experiência BERLINCK 2000 p 17 25 Por derivação é este afastamento de um ideal de força correção e integridade que acabaria por permitir ao teatro grego exibir um outro tipo de corpo que desligado da sua condição natural revelaria ao público o seu pathos Ou seja o seu sofrimento e limitação ontológicas diante da inexorabilidade trágica da vida e do destino Mais uma vez nos esclarecedores termos de Berlinck Este sujeito que não é nem racional nem agente e senhor de suas ações encontra sua mais sublime representação na tragédia grega Nesse sentido quando pathos acontece algo da ordem do excesso da desmesura se põe em marcha sem que o eu possa se assenhorar desse acontecimento a não ser como paciente Nessa inferioridade do padecer encontrase assim a desqualificação própria dos clássicos gregos da mobilidade relativamente à imobilidade É por conter matéria isto é indeterminação que um ser se move O fato de ter de mudar de lugar ou de quantidade ou de qualidade para receber uma nova determinação mostra que ela não possui todas as qualidades de uma só vez e que a aparição dessas depende da intervenção de um agente exterior Portanto não existe pathos no sentido mais amplo senão onde houver mobilidade imperfeição ontológica Se assim for pathos é um dado do mundo sublunar e da existência humana Devemos contar com pathos Devemos até aprender a tirar proveito dele Tirar proveito de pathos significa transformálo em experiência ou seja não só considerar pathos como estado transitório mas também como algo que alarga ou enriquece o pensamento 2000 p 1820 Uma vez configurado em maiores detalhes o sentido original da expressão grega pathos é chegada a hora de estabelecermos uma ligação entre esta e os objetivos deste primeiro capítulo Neste sentido considerandose a validade da nossa sentença de abertura segundo a qual a psicanálise é tradicionalmente convocada a partir de um desconforto pretendemos traçar nas páginas seguintes um perfil ou enquadre do malestar presente na discussão antropológica contemporânea possibilitando assim um contato fecundo entre estas duas áreas do saber Para tanto realizaremos um percurso histórico que seguindo a dinâmica proposta por Berlinck 2000 buscará localizar na sucessão de algumas das principais escolas da antropologia moderna um momento específico Qual seja aquele da transição da posição de orthos a pathos da passagem de um discurso caracterizado pela certeza quanto à fidedignidade da representação de outras culturas rumo a uma diferente modalidade discursiva marcada pelo reconhecimento das limitações do projeto etnográfico Seriam kafkianas as conseqüências deste processo Retornemos no tempo para a partir daí buscar respostas a esta pergunta 26 Evolucionismo Social e Teoria Antropológica Autores como Voget 1975 ou EvansPritchard 1981 buscaram traçar prelúdios do pensamento antropológico respectivamente na cultura grecoromana e em filósofos como Montesquieu No entanto parece haver certo consenso conforme sugere DaMatta 1987 que os primeiros passos da antropologia enquanto saber verdadeiramente científico tenham se dado com alguns hoje criticados eruditos do séc XIX os quais caracterizaram uma escola que se convencionou chamar de evolucionista Observemos então algumas das suas principais características Um primeiro ponto a ser ressaltado é evitarmos a confusão entre o evolucionismo sóciocultural e a teoria darwinista da evolução biológica Neste sentido devemos tomar a ambas como reflexos simultâneos de um mesmo momento histórico do pensamento ocidental Nas palavras de Harris A explosão de atividade na Antropologia cultural depois de 1860 não foi engatilhada pelo livro de Darwin mas antes o acompanhou enquanto um produto das mesmas influências geradoras 1968 p 1424 É Herskovits contudo quem explicita um pouco mais esta idéia ressaltando o vínculo do pensamento evolucionista à especificidade de uma Inglaterra vitoriana e colonialista Sua hipótese representava uma afirmação positiva das aspirações dos tempos da rainha Vitória encarnadas na palavra progresso 1952 p 5025 De fato o século XIX corresponde a um período de grande conquista colonial e é exatamente neste contexto que toma forma a moderna antropologia e a teoria evolutiva Afinal é exatamente a rede de informações criada nas novas colônias que acabou por fornecer o material de análise das hoje clássicas obras de eruditos do vulto de Frazer ou Morgan Entretanto como nos mostra EvansPritchard 1978 nenhum destes notáveis teóricos evolucionistas jamais efetivara uma verdadeira pesquisa de campo entre os povos 4 No original inglês The burst of activity in cultural anthropology after 1860 was not triggered by Darwins book but rather accompanied it as a product of the same generative influences trad nossa MRS 5 No original espanhol Su hipótesis representaba una positiva afirmación de las aspiraciones de los tiempos de la reina Victoria enncarnadas en la palabra progreso trad nossa MRS 27 dos quais se ocupavam6 Assim da confiança em relatos de cronistas e viajantes é que acabaram resultando análises sobre dados por vezes imprecisos e incorretos Além do mais bastante seletivos uma vez que tanto os informantes quanto os teóricos de que falamos deitavam no papel particularmente os aspectos que mais lhes chamavam a atenção enquanto sensacionais ou exóticos Daí a excessiva ênfase no que supunham serem as populações mais arcaicas do mundo os aborígines australianos com seus diferenciados sistemas de parentesco rituais mágicos e crenças religiosas Quanto a estas últimas é interessante notar que geralmente detinham prioridade sobre outros afazeres domésticos ou mais cotidianos Conforme EvansPritchard por dar excessiva importância ao que consideravam como superstições curiosas fatos misteriosos e ocultos os observadores tendiam a pintar um quadro em que o místico ganhava na tela uma porção muito maior do que ocupava na vida real dos povos primitivos 1978 p 21 Como conseqüência tendiase a formar uma imagem no mínimo caricatural da mente primitiva enquanto supersticiosa infantil ou incapaz Ainda neste sentido da análise e disposição dos dados obtidos vários autores são unânimes em afirmar que na falta de provas científicas convincentes o que preenchia os volumosos livros da época era mais uma compilação de dados manipulados e isolados de seus contextos do que verdadeiras etnografias HERSKOVITS 1952 HARRIS 1968 EVANSPRITCHARD 1978 LAPLANTINE 1991 Tudo isso em nome de um método comparativo que tomando por base sociedades primitivas do presente evidenciaria através destas o que a vida deveria ter sido em etapas evolutivas anteriores Vemos assim que esta preocupação com um saber sobretudo acumulativo mais visava demonstrar a veracidade de uma tese previamente formulada do que a verificação de uma hipótese genuinamente científica Para além de todos estes aspectos porém destacase nestas obras uma enorme ambição Diferentemente da antropologia contemporânea mais comedida em analisar as particularidades de contextos locais específicos o que se via no século XIX eram verdadeiros tratados etnográficos sobre a humanidade como um todo Desta forma buscavam categorizála em uma escala evolutiva unilinear que iniciada pelos povos ditos 6 É bem verdade que se deve conceder a Tylor o mérito de haver sido um crítico arguto desses relatos LARAIA 1993 No entanto mesmo ele não escaparia ao rótulo de pesquisador de gabinete tomandose por base o modelo de pesquisa instaurado com o funcionalismo de Malinowski 28 primitivos culminaria nas nações européias Para Laraia Etnocentrismo e ciência marchavam então de mãos juntas 1993 p 34 É claro que não houve uma plena uniformidade destas idéias até porque nem todos os teóricos evolucionistas foram tão generalistas contentandose alguns em aplicar suas idéias sobre aspectos específicos da cultura como a arte o Estado ou a Religião7 Embora sejam numerosos os representantes desta escola como Lubbock e MacLennan na Inglaterra Bastian e Wundt na Alemanha e Comte na França destacamos neste trabalho as figuras de Morgan Tylor e Frazer tanto por sua importância para a antropologia quando pela atração que viriam a exercer em outras disciplinas como por exemplo a então embrionária psicanálise MUSUMECI 1991 SOUZA 2003 Após estas observações analisemos a seguir uma nova etapa do processo histórico de constituição da antropologia como disciplina Desta feita construída pelos chamados difusionistas que ainda que contemporâneos e em certo sentido colaboradores dos antropólogos de gabinete estudados há pouco seguramente deram um passo adiante rumo a uma crescente valorização da pesquisa de campo Ou seja de um contato efetivamente mais próximo junto ao outro Antropologia e Difusionismo Cultural Se seguirmos de perto o estudo de Barbosa 1986 reconheceremos o ano de 1930 como aquele da primeira utilização em língua inglesa do substantivo diffusionism enquanto algo usado para designar a corrente antropológica que procurava explicar o desenvolvimento cultural através do processo de difusão de elementos culturais de uma cultura para outra enfatizando a relativa raridade de novas invenções e a importância dos constantes empréstimos culturais na história da humanidade BARBOSA 1986 p 348 7 Desta forma propõe Herskovits 1952 que autores ditos evolucionistas como Haddon e outros trataram da evolução nas obras de arte desde o realismo ao convencionalismo enquanto Maine por exemplo concedeu mais atenção ao Estado inicialmente em sua organização em termos de parentesco e mais tarde no aspecto territorial Mesmo Tylor que concentrou sua atenção em tantos aspectos da cultura mereceria assim uma menção honrosa no campo da religião desenvolvendo sua teoria sobre um conceito original de espírito baseado inicialmente na crença em almas e fantasmas para em seguida chegar a sistemas mono e politeístas 29 Entretanto ao prosseguir em sua análise a autora citada faz duas ponderações importantes Primeiro que o período de maior alcance da perspectiva difusionista teria se dado um pouco antes ao longo de toda a década de 20 Em segundo lugar corroborando com o pensamento de outros cientistas sociais como Harris 1968 e Richaudeau 1972 que a origem de tais idéias já se faria presente nos escritos de Edward B Tylor o qual como vimos há pouco é hoje considerado um dos mais famosos evolucionistas sociais do século XIX8 Neste sentido é o trabalho de Harris 1968 que vai mais fundo nesta discussão ao destacar a falácia na sua opinião divulgada pelos difusionistas de que o evolucionismo antropológico teria menosprezado a possibilidade da ocorrência de empréstimos culturais Sob a influência dos particularistas históricos e das escolas difusionistas alemã e inglesa cresceu o mito de que os evolucionistas sociais do século dezenove negaram a importância da difusão Os difusionistas não somente estabeleceram a dicotomia entre empréstimo e invenção mas também dogmaticamente negaram que invenções semelhantes poderiam dar conta da similaridade ao redor do mundo Esta dicotomia é falsa em dois sentidos Primeiro ela não reflete apropriadamente a posição dos evolucionistas nenhum dos quais propôs em termos de princípios que as similaridades teriam se desenvolvido mais freqüentemente da invenção independente que da difusão E a dicotomia é também lógica e empiricamente falsa pois se apóia na insustentável noção de que a invenção independente e a difusão seriam processos fundamentalmente diferentes HARRIS 1968 p 173174 De volta à nossa discussão o que verdadeiramente interessa enfatizar aqui é malgré elles uma aproximação entre estas duas escolas do pensamento antropológico tanto no que se refere a um certo etnocentrismo quanto no que tange à utilização de metodologias de 8 Nascido em Londres o contexto intelectual da formação de Edward Burnett Tylor 18321917 não foi outro senão o de uma Inglaterra vitoriana e progressista repleta de ideais evolucionistas como os de Darwin e Spencer Assim a particularidade do seu pensamento residia em situar a Cultura como ramo de uma ciência natural histórica e total conferindo importância não ao estudo de nações ou tribos específicas mas a categorias gerais como o conhecimento a religião e a arte destes povos Segundo Tylor 1970 um primeiro passo no estudo da cultura seria dissecar a civilização em detalhes classificandoa em grupos apropriados Exemplos de elementos classificatórios seriam as armas arte têxtil mitos ritos e cerimônias A função do etnógrafo seria então classificar estes detalhes distribuindoos histórica e geograficamente mas ao mesmo tempo demonstrando as relações entre eles Com isso ainda utilizando como referencial as ciências naturais é que Tylor introduz a noção de dois tipos de difusionismo aquele realizado em uma escala maior ou seja em regiões afastadas e além desse o difusionismo em um mesmo país Ambos porém corroborando com a noção de uma única natureza humana seja pela suposta ocorrência de fenômenos culturais semelhantes simultâneos ou não em diferentes partes do mundo seja pela ocorrência de consensos ou acordos gerais quanto à utilização de elementos culturais semelhantes por diferentes populações Este todo cultural embora em diversos graus de evolução poderia então ser medido por uma estatística comparativa onde os artefatos sobreviventes enquadrariam cada povo nos diferentes pontos de uma escala evolutivocultural 30 pesquisa insuficientes e baseadas por sua vez mais na especulação teórica do que na evidência empírica Sem porém nos alongarmos nestas ressalvas as quais serão retomadas mais adiante passemos a uma panorâmica dos pressupostos essenciais do difusionismo bem como das principais escolas representativas deste movimento que conforme Herskovits 1955 e Harris 1968 seriam basicamente três a inglesa a alemã e a norte americana Sob a liderança do anatomista Sir Elliot Smith a hipótese apresentada pelo grupo inglês também conhecido como hiperdifusionista ou heliocêntrico era a de que há 4000 anos atrás o antigo Egito teria se constituído na fonte única de todos os aperfeiçoamentos culturais mais tarde espalhados pelo mundo quer se tratasse da África da Índia da Polinésia ou das Américas Desnecessário dizer que a arbitrariedade de tal postulado elevando às últimas conseqüências a idéia da predominância dos empréstimos culturais sobre a pouca quase inexistente inventividade humana carecia totalmente de dados etnográficos concretos baseandose muito mais nas conjecturas pessoais dos seus autores os quais negavam não somente a chance da ocorrência de múltiplas difusões mas também a possibilidade de criações culturais independentes e simultâneas9 Já a escola difusionista alemã também conhecida como históricocultural inspirou se nas idéias da antropogeografia de Friedrich Ratzel tendo nas figuras de F Graebner e W Schmidt os seus principais teóricos Embora em certo sentido associados aos seus colegas ingleses tanto pelo descrédito conferido à capacidade inventiva da humanidade quanto pela adoção de explicações arbitrárias para as diferenças entre os povos devese conferir aos alemães o mérito de um maior refinamento e ponderação nas suas idéias Em primeiro lugar pelo reconhecimento de variados centros de difusão denominados círculos culturais Kulturkreise mesmo que a partir de algum lugar incerto no interior da Ásia10 9 Ao fazermos referência ao difusionismo inglês cabe destacar também como o faz Barbosa 1986 o importante papel desempenhado por W H Rivers cujas principais contribuições residiram ao contrário na importância conferida à pesquisa de campo particularmente nos estudos do parentesco Na qualidade de profissional da saúde Rivers efetivou a aplicação de testes psicológicos entre nativos da Nova Guiné e ainda propôs o que considerava ser uma frutífera aproximação entre a etnologia e a psicanálise Para um contato mais próximo com a sua obra uma boa indicação é a coletânea de artigos organizada no Brasil por Cardoso de Oliveira 1991a 10 Segundo Schmidt a chave para a compreensão do mapa de distribuição da cultura contemporânea residiria na definição precisa dos seus círculos originais de difusão grandes complexos de traços culturais que teriam perdido a sua unidade geográfica original e desde então estariam espalhados pelo mundo Contudo cada círculo Kreise estaria associado a uma fase anterior da história da humanidade primitiva primária 31 Finalmente por uma preocupação metodológica refletida na melhor qualidade da sua documentação e das regras utilizados para avaliar a pertinência dos empréstimos culturais11 De qualquer forma as deficiências desta escola se revelam pela ausência de um trabalho de campo sistemático pela manipulação de dados e pela natureza hipotética das suas conclusões ainda dependentes do instrumento fundamental dos evolucionistas o método comparativo Sim aquele mesmo que como vimos anteriormente buscava traçar origens e modificações experimentadas pela cultura através da análise de certos povos contemporâneos supostamente selvagens os quais representariam de maneira relativamente intacta o passado da nossa espécie HARRIS 1968 Boa parte da perspectiva exposta acima pode também ser aplicada ao difusionismo norteamericano cuja influência recebida de Franz Boas alemão de nascimento mas posteriormente radicado nos Estados Unidos fez com que fossem adotados na América pressupostos oriundos da escola germânica como a noção de círculos culturais Tal processo culminou na criação do conceito de áreas culturais culturalareas definidas por Harris como unidades geográficas relativamente pequenas e baseadas na distribuição contígua de elementos culturais 1968 p 37312 Estas partindo de um hipotético círculo central rumo à periferia serviriam basicamente para precisar os avanços de traços culturais específicos Para além desta herança entretanto o movimento americano inovou ao realizar diversas pesquisas de campo junto às tribos indígenas de seu país Neste sentido ao invés de adotar como princípio metodológico os estudos comparativos em larga escala optou por secundária e terciária por sua vez ligadas respectivamente às atividades de caça horticultura pastoreio e por último à sociedade estratificada HARRIS 1968 11 Neste sentido Graebner desenvolveu os critérios de forma e quantidade cujo significado é consideravelmente simples dadas as similaridades entre as características de dois diferentes grupos a probabilidade de tais traços derivarem de uma única fonte seria diretamente proporcional ao número e complexidade da sua ocorrência Assim quanto maiores e mais imbricadas as similitudes maior seria também a chance de haver ocorrido um empréstimo cultural HERSKOVITS 1955 12 relatively small geographical units based on the contiguous distribution of cultural elements trad nossa MRS Ainda de acordo com a análise empregada por Harris 1968 tal conceito teria se originado de exigências de ordem prática enquanto um instrumento heurístico para o mapeamento das tribos norte americanas visando ainda uma classificação mais adequada dos utensílios daqueles povos nas então emergentes coleções etnográficas de instituições como o American Museum of Natural History e o Chicago Field Museum 32 uma linha de pesquisa de caráter mais estrito e localizado que não priorizava as reconstruções históricas dos contatos em si mas a dinâmica cultural deles resultante13 Contudo tal proposta de trabalho também detém algumas limitações a serem assinaladas Por exemplo a rigidez da noção de área cultural a qual não acompanha adequadamente as transformações pelas quais pode passar um determinado local com a adoção de novos costumes por parte dos seus habitantes processo esse que ao longo do tempo pode inclusive motivar tanto uma inversão entre centro e periferia quanto a ocorrência de diferentes culturas dentro de um mesmo espaço previamente delimitado Em outros termos temos aí o grave problema do determinismo geográfico particularmente relevante se considerarmos que o fato de estarem situados em contextos ambientais semelhantes certamente não se torna um empecilho para que os inúmeros conglomerados humanos ao redor do planeta adotem costumes rigorosamente distintos Ou seja não só o meio físico deve ser levado em conta na pesquisa antropológica mas também a sua fundamental interação com a tecnologia empregada no cotidiano de cada grupo HARRIS 1968 Uma vez realizada esta breve exposição do que consideramos serem as principais características do legado difusionista é chegado o momento de finalizar este tópico Para tanto contamos com a ajuda dos precisos termos de Barbosa 1996 que ao descortinarem alguns pontoschave para uma aproximação entre as idéias do evolucionismo social e do difusionismo cultural sintetizam boa parte do conteúdo das páginas anteriores e nos fornecem ainda um ótimo ponto de partida para uma compreensão adequada do alcance e dimensão epistemológica da mudança operada pelo funcionalismo de Malinowski no terreno da antropologia contemporânea Tendo surgido na época como uma oposição ao evolucionismo e à sua simplificação da história humana tal oposição do difusionismo é hoje considerada mais aparente do que real Autores difusionistas como é o caso de W Schmidt e F Graebner não conseguiram desvincularse de certas noções do pensamento evolucionista do séc XIX e impregnaram suas obras de conceitos característicos dessa escola Ademais ambas as correntes do pensamento antropológico adotaram os métodos comparativo e de reconstituição histórica como tema central das suas formulações E ao adotarem essa perspectiva 13 Segundo Herskovits 1955 Boas teria reconhecido desde cedo que o objeto fundamental da antropologia não seria necessariamente a ocorrência das trocas entre os povos mas sim os efeitos destas no que se refere à mudança cultural 33 diacrônica em pouco divergiram entre si pois ao se deterem na reconstituição do passado não perceberam a complexidade do presente BARBOSA 1986 p 349 Antes de encerrarmos porém cabe aqui uma última observação ainda que destacadas estas semelhanças entre evolucionismo social e difusionismo cultural enquanto análises da cultura permeadas simultaneamente pelo pioneirismo mas também pela conjectura e pelo dogmatismo acreditamos que a exposição separada destas duas escolas do pensamento antropológico se torne interessante para os nossos propósitos aqui uma vez que a sua caracterização permite ao leitor notar uma gradativa mudança de procedimentos Em que sentido Sobretudo no crescimento da importância conferida à coleta de dados etnográficos in loco14 Com isso alcançamos a perspectiva funcionalista inaugurada por Malinowski onde mais do que um imperativo técnico a presença do antropólogo junto ao outro adquire uma dimensão verdadeiramente ética na busca do significado do costume de um determinado povo dentro do próprio contexto cultural em que este se insere uma imbricação portanto entre manifestações culturais e circunstâncias históricas particulares Para tanto temos a utilização de um instrumento metodológico como aquele da observação participante a qual como veremos a seguir viria a fornecer maior credibilidade às conclusões resultantes deste contato A Perspectiva Funcionalista de Malinowski e os Novos Rumos da Etnografia Polonês de nascimento foi na Universidade da Cracóvia onde inclusive realizou seu doutoramento que Malinowski traçou boa parte da formação acadêmica que o tornaria um dos mais influentes antropólogos do século XX15 Neste sentido o artigo de Paluch 14 Particularmente com a escola difusionista norteamericana que a despeito das deficiências anteriormente relatadas acabaria por antecipar alguns dos princípios norteadores da antropologia contemporânea Em primeiro lugar ao considerar a descrição como um prérequisito para a análise interpretativa da cultura Nesta mesma linha de raciocínio por privilegiar o estudo de grupos particulares ao invés de propor grandes tratados gerais sobre a humanidade Mais ainda por buscar compreender os traços culturais segundo relações e significados ditados não pelo pesquisador mas pelo próprio nativo HERSKOVITS 1955 15 Relevantes apreciações da vida e obra de Malinowski podem ser encontradas em variados trabalhos razoavelmente conhecidos do público brasileiro como os de Firth 1960 Kuper 1978 e particularmente Durham 1978 1986 Gostaríamos porém de destacar aqui o valor histórico do artigo de Richards 1943 que publicado logo após a morte do antropólogo polonês destaca entre outras coisas a formação original de cunho naturalista do autor de Argonautas do Pacífico Ocidental 1978 bem como a sua posterior dedicação à 34 1981 nos oferece algumas reflexões bastante relevantes para uma avaliação da influência deste período na carreira de um dos futuros expoentes máximos do funcionalismo cultural inglês Vejamos algumas das principais idéias do trabalho em questão Segundo Paluch 1981 já na tese de Malinowski intitulada On the Principle of the Economy of Thought haveria uma clara presença da filosofia positivista tal como esta se dava ao final do século XIX Afinal no trabalho em questão Malinowski defendia a economia do pensamento como uma metodologia não explicável somente em termos de leis psicológicas mas essencialmente no relacionamento concreto do homem com o mundo sendo tal relação definida em termos de necessidades biológicas16 Ainda conforme Paluch 1981 poderseia vislumbrar em tal monografia dois princípios fundamentais do que viria a se tornar a antropologia do autor dos Argonautas do Pacífico Ocidental a ênfase nas explicações funcionais e a noção de cultura enquanto todo instrumental Entretanto afirma Paluch 1981 a presença destas orientações não restringe Malinowski à qualidade de um positivista stricto senso Isso porque em sua obra o etnógrafo polonês opta por adotar apenas parcialmente uma radicalização do empiricismo muito em voga na comunidade intelectual da Cracóvia da época Tratase do princípio do experimento puro ou pura descrição o qual rejeitava qualquer expressão inverificável enquanto sentença descritiva da realidade Para Paluch 1981 Malinowski tinha consciência da impossibilidade de um tal apelo descritivo até mesmo porque tanto a vida em sociedade quanto a própria ciência empírica são prédeterminadas por sistemas teóricos de orientação da realidade antropologia permeada por uma vasta experiência de campo repleta de variados interesses como a religião o direito e a sexualidade Ao tomar como principal contribuição de Malinowski a instauração de uma nova modalidade de pesquisa de campo baseada na empiria do contato íntimo e prolongado com os grupos nativos Richards 1943 reconhece ainda a qualidade literária dos escritos do mestre os quais inaugurariam também um novo tipo de retórica antropológica aquela do estar lá Finalmente na opinião do autor o nome de Malinowski deveria ser lembrado ainda pela formação de uma nova geração de antropólogos de língua inglesa fornecendo assim um novo fôlego à disciplina 16 Como aponta Kolakowski 1974 a economia do pensamento aparece na história da filosofia enquanto um conjunto de hipóteses diversas e que abarcaram uma variedade de temas como a física e mesmo a teologia mas que diretamente associadas à empiria do positivismo lógico portanto avessas a qualquer metafísica guardariam sempre uma certa proximidade na defesa do conhecimento como uma experiência economicamente ordenada cujo conteúdo não iria além da experiência Em sua vertente biológica consiste na regra metodológica segundo a qual o acúmulo do saber humano seria compreensível enquanto uma exigência de ordem funcional imposta ao cérebro pela sua relação com o meioambiente Nestes termos a economia do pensamento em si mesma não diria nada sobre a verdade do conhecimento descrevendo somente as leis orgânicas que regulariam a assimilação de conteúdos pela consciência 35 Esta divergência segue Paluch 1981 ao mesmo tempo em que afasta a perspectiva de Malinowski da filosofia positivista da época acaba por aproximála de uma outra tradição do pensamento ocidental a do neokantismo que vale lembrar postulava a necessidade da adoção de formas cognitivas a priori como recurso necessário ao estudo da realidade Com isso em termos conciliatórios Paluch 1981 sustenta a hipótese de que o positivismo teria sim se constituído em um ponto de partida para a proposta antropológica de Malinowski o que inclusive poderia ser atestado pela insistência na qualidade empírica do trabalho de campo Entretanto a vivência de situações reais entre os nativos teria revelado ao etnógrafo polonês que especialmente nos estudos da cultura os princípios elaborados por Comte e seus discípulos também detinham as suas limitações Assim apesar destas diferentes origens ou melhor exatamente devido a elas aposta Paluch 1981 que as questões fundamentais na obra de Malinowski residem na oposição entre uma visão humanista e outra naturalista da realidade social permeadas por uma concepção holística integrada e funcional da cultura A leitura deste artigo nos fornece portanto duas lições importantes a primeira delas é que a ciência social funcionalista teria nascido não em campo nas ilhas Trobriand da Nova Guiné mas nos estudos teóricos de Malinowski ainda na Cracóvia Finalmente que a moderna antropologia seria filha da discussão filosófica presente na virada do século XIX dividida entre humanistas e naturalistas aprioristas e empiricistas Portanto de forma alguma livre de pré conceitos e das suas conseqüências17 Este é um quadro que anos mais tarde poderia ser bem visualizado nos princípios básicos do funcionalismo Malinowskiano expostos por exemplo no seu conceito de Cultura vista na qualidade de um todo integral constituído por implementos e bens de consumo por cartas constitucionais para os vários agrupamentos sociais por idéias e ofícios humanos por crenças e costumes Quer consideremos uma cultura muito simples ou primitiva ou uma extremamente complexa e desenvolvida deparamonos com 17 Ainda segundo Paluch 1981 este confronto nem sempre bem resolvido é verdade motivou em boa parte da comunidade antropológica contemporânea um certo consenso de que Malinowski seria um brilhante etnógrafo mas um teórico desinteressante ou pouco inspirador Neste ponto o autor parte em defesa do seu conterrâneo afirmando que o verdadeiro problema de Malinowski residiu não na carência de teorias convincentes algo facilmente atestado pela qualidade do seu trabalho de campo inviável sem precisas decisões metodológicas ou reformulações técnicas por sua vez impossíveis de serem realizadas sem um amplo lastro teórico mas na adoção de certos pressupostos positivistas não suficientemente desenvolvidos posteriormente 36 uma vasta aparelhagem em parte material em parte humana em parte espiritual com a ajuda da qual o homem é capaz de lidar com os problemas concretos específicos com que se defronta Esses problemas surgem do fato de que o homem tem um corpo sujeito a várias necessidades orgânicas e que ele vive num ambiente que é o seu melhor amigo visto que ele fornece as matériasprimas para o seu trabalho manual e é também um seu perigoso inimigo porquanto abriga muitas forças hostis MALINOWSKI 1970 p 42 Ou seja eis aí uma teoria que em primeiro lugar vincula a criação dos recursos culturais à satisfação de necessidades básicas ditadas pela biologia visando a manutenção da espécie humana aqui tomada na sua condição animal necessidades instrumentais Tal necessidade por sua vez geraria novos padrões culturais que imporiam ao homem em sociedade novos e secundários tipos de determinismo aqueles de caráter simbólico necessidades integrativas De posse de tais definições para Malinowski além de tomar uma cultura particular como todo coerente o etnógrafo deveria também especificar os determinantes gerais aos quais seu objeto de estudo deveria se conformar Esta metodologia poderia leválo também a uma série de predições normativas para a pesquisa de campo Notese aqui a busca de padrões de pesquisa verdadeiramente científicos para uma nova antropologia social que não mais considerava a cultura como colcha de retalhos leiase costumes dispersos e coletados pelos evolucionistas sociais como exemplos do primitivo ainda que não relacionados às realidades culturais específicas dos quais faziam parte Como vimos há pouco essencial nesta ciência proposta por Malinowski é a definição de relações claras entre realizações culturais e necessidades humanas biologicamente determinadas Precisamente aqui reside a importância do conceito de função enquanto satisfação de tais necessidades pela via de uma atividade instrumental e realizada em conjunto Aliás levando em conta este último aspecto para Malinowski a análise científica da cultura estaria incompleta se prescindisse de um outro conceito o de organização um esquema aplicável à totalidade dos grupos organizados Eis aqui exemplificada uma pretensão evolucionista que conforme propõe um autor como Kuper 1978 não teria sido totalmente abandonada por Malinowski a de alcançar universais do comportamento Desta feita visualizáveis nas instituições como unidades de cooperação humana 37 Neste sentido Malinowski insistia na necessidade de um acordo por parte da comunidade antropológica da época acerca da definição de uma unidade cultural concreta isto é visualizável no cotidiano dos povos estudados prérequisito para uma análise científica da cultura Isso não significaria apressase em dizer sugerir que todas as culturas seriam necessariamente idênticas ou que o antropólogo devesse desprezar as diferenças para se concentrar unicamente em padrões estáveis de conduta mas sim que a fim de compreender divergências é indispensável uma medida de comparação clara e comum 1970 p 45 Portanto cria Malinowski somente as análises funcional e institucional dariam conta de uma definição mais precisa exaustiva e concreta da cultura enquanto conjunto integrado de instituições parcialmente coordenadas e parcialmente autônomas mas unidas por princípios como o sangue comunitário o espaço geográfico a especialização de atividades e não menos importante o uso do poder político E mais tais princípios possibilitariam ao investigador relativizar a estranheza em geral atribuída às culturas diferentes da sua passando então a vislumbrar nestas últimas a existência de elementos culturais universais e constitutivos da espécie humana Enfim um movimento que iria do particular ao geral e do estranho ao universal mas cujo reconhecimento garantiria tanto a descrição quanto a explicação do exótico Em tal processo pondera Malinowski haveria ainda a necessidade de incluir a variável tempo enquanto elemento associado à mudança Com isso a evolução social e o difusionismo cultural passam agora a ser caracterizados como mudanças institucionais ou readaptações funcionais Neste sentido uma outra característica da análise funcional da cultura é a demonstração de que nenhuma invenção ou revolução cultural se dá à revelia leiase independentemente da criação de novas necessidades Em última análise a antropologia científica de Malinowski repousa no estudo concreto das instituições enquanto manifestações reais cotidianas e importante integrativas representando amplamente uma determinada organização social Nestes termos conforme seu autor não negaria totalmente a validade das pesquisas históricas ou evolucionistas mas as suplementaria através da incorporação de um referencial científico Toda esta reconstituição históricofilosófica se torna interessante na medida em que fornecendo ao leitor um quadro epistemológico geral pode lhe proporcionar ainda uma 38 compreensão adequada do principal objetivo do funcionalismo de Malinowski a partir da adoção de uma nova modalidade de pesquisa antropológica baseada na empiria de um contato efetivo íntimo e prolongado junto aos grupos estudados propor novos rumos para o desenvolvimento da análise da cultura até então permeada pelo preconceito especulativo que em larga escala caracterizou boa parte das escolas antropológicas anteriores18 Notese desde já a preocupação com o respeito ao outro em seus próprios termos sem inferências etnocêntricas princípio este que acabaria por demarcar sobremaneira o desenvolvimento de toda a antropologia posterior Conforme Laplantine a etnografia propriamente dita só começa a existir a partir do momento no qual se percebe que o pesquisador deve ele mesmo efetuar no campo sua própria pesquisa e que esse trabalho de observação direta é parte integrante da pesquisa A revolução que ocorrerá na nossa disciplina durante o primeiro terço do século XX é considerável ela põe fim à repartição das tarefas até então habitualmente divididas entre o observador viajante missionário administrador entregue ao papel subalterno de provedor de informações e o pesquisador erudito que tendo permanecido na metrópole recebe analisa e interpreta atividade nobre essas informações O pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve como aluno atento não apenas viver entre eles os nativos mas a viver como eles a falar sua língua e a pensar nessa língua a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo Em suma a antropologia se torna pela primeira vez uma atividade ao ar livre 1991 p 7576 Tal perspectiva que acabará por significar uma considerável reformulação na pesquisa antropológica até então desenvolvida responde pelo nome de uma orientação teórica específica o chamado Funcionalismo Como apontam Kuper 1978 Paluch 1981 e Durham 1978 1986 um conjunto coerente de idéias que embora os anteceda somente adquiriria consistência após os hoje famosos trabalhos de campo de Malinowski nas ilhas Trobriand os quais por sua vez somente se tornariam possíveis por intermédio da London 18 Para uma apreciação mais detalhada dos contrastes entre as perspectivas antropológicas evolucionista e funcionalista particularmente centradas nas figuras de James Frazer e Bronislaw Malinowski consultar o artigo de Leach 1966 Nele a partir de uma polêmica discussão acerca da real validade ou qualidade científicoliterária dos escritos de Frazer o autor passa em revista a vida e carreira do evolucionista inglês para ao mesmo tempo contestar tanto os seus métodos de trabalho quanto a relativa importância conferida à sua obra ainda na década de 1960 A partir daí como um contraponto imediato realiza um percurso semelhante desta feita voltado à biografia de Malinowski Neste sentido ressalta tanto a qualidade empírica da pesquisa de campo empreendida por este último quanto diretamente associada a esta o novo paradigma antropológico por ela instalado aquele do respeito à alteridade em que cada cultura somente faria sentido se considerada em seu contexto particular e não em comparação com outras sociedades supostamente mais ou menos evoluídas pois a humanidade enquanto espécie portadora de idênticas necessidades biológicas seria a mesma em todo lugar 39 School of Economics nova morada do então estudante polonês a partir de 191019 Vejamos como se passou esta história um pouco mais de perto A Antropologia Britânica do Início do Século XX e os Primórdios da Pesquisa de Campo Segundo autores como Kuper 1978 Durham 1986 e Stocking Jr 1992 a principal característica da antropologia britânica das primeiras décadas do século XX residiu em um esforço no sentido do acúmulo de dados haja vista que as generalizações conceituais evolucionistas e difusionistas até então vigentes começavam a se revelar inadequadas Daí o ressurgimento do empirismo inglês naquele contexto onde os fatos que deveriam ser coletados antes do completo extermínio dos povos primitivos falariam mais que as teorias A partir daí podemos melhor compreender a crescente necessidade da constituição de um trabalho de campo cientificamente consolidado no que contribuiu por exemplo a expedição organizada pela Universidade de Cambridge ao Estreito de Torres em 189899 onde cientistas como Haddon Rivers e Seligman ainda que parcialmente dependentes das opiniões de informantes davam um passo à frente em relação aos pesquisadores de gabinete no sentido da pesquisa in loco aquela orientada pelo contato efetivo junto aos povos estudados Para além do terreno inglês contudo também a antropologia norte americana influenciada pela meticulosidade das pesquisas etnográficas operadas pelo difusionismo de Boas passava por um processo semelhante Como nos mostra Durham É importante notar que todo esse período em que Malinowski inicia a sua carreira está marcado por uma enorme efervescência intelectual na antropologia A publicação no final do século XIX da obra de Spencer e Gillin sobre a Austrália baseada em material colhido diretamente com os nativos e a organização na mesma época da Expedição Cambridge ao Estreito de Torres abriram novas fronteiras para a antropologia Nessa mesma época nos Estados Unidos Boas promovia igualmente a pesquisa de campo construindo 19 Ainda em termos biográficos após haver deixado a Polônia e antes de chegar à Inglaterra Malinowski se fixou por aproximadamente dois anos em Leipzig Alemanha Segundo Kuper 1978 a influência deste período não deveria ser subestimada uma vez que lá além de aprofundar seus conhecimentos da sociologia durkheimiana Malinowski se tornou aluno de Wundt cuja Volkerpsychologie sumamente interessada pelas manifestações culturais forneceria em estado embrionário um princípio integrativo mais tarde adotado pelo funcionalismo 40 uma outra abordagem culturalista A experiência desses pioneiros acrescida da reflexão teórica de Durkheim formou uma nova geração de antropólogos que transformou profundamente a antropologia Malinowski é uma das figuras centrais dessa geração 1986 p 08 Com isso podemos deduzir que acompanhando a nova tendência o investigador de campo tinha de cada vez mais tornarse um especialista ou scholar verdadeiramente treinado em seu ofício Estava então configurado o contexto intelectual propício ao desenvolvimento das futuras pesquisas de Malinowski o qual como se pode notar embora não um pioneiro nos trabalhos de campo acabaria por estabelecer a particularidade da etnografia em termos de um contato tanto íntimo quanto prolongado com o nativo em seu próprio meio a ponto de ser classificado por Kuper 1978 como o primeiro antropólogo social britânico profissionalmente treinado a executar pesquisas intensivas dessa espécie p 18 Ainda assim a grande chance de Malinowski iniciar seus estudos de campo somente apareceu em 1914 quando então com 30 anos de idade este foi contemplado com uma bolsa de estudos que lhe possibilitou trabalhar por algumas semanas junto aos Mailu da Melanésia Na qualidade de súdito austríaco porém o início da primeira guerra mundial acabou por inviabilizar o seu retorno ao Reino Unido Assim aliando a isso uma certa insatisfação com os resultados da pesquisa anterior tanto em termos de método quanto de resultados Malinowski após uma breve retorno à Austrália aportou nas ilhas Trobriand da Nova Guiné em junho de 1915 lá permanecendo até maio de 1916 e depois retornando em outubro de 1917 para uma nova estada de um ano A experiência de campo realizada ao longo deste período acabou por se revelar crucial para o desenvolvimento da metodologia de trabalho que mais tarde tornaria Malinowski famoso graças à publicação de nada menos que sete monografias entre 1922 e 1935 Como veremos a seguir Argonautas do Pacífico Ocidental 1978 desempenhou um papel fundamental neste processo Antes porém de nos dedicarmos especificamente a este livro guardemos conosco outros dos ensinamentos de Durham Mas embora não se possa dizer que a experiência do trabalho de campo entre os trobriandeses tenha sido responsável pela orientação metodológica desenvolvida por Malinowski não resta dúvida que sua longa permanência entre os nativos e a enorme riqueza do material que coletou tiveram uma importância decisiva em toda a obra posterior E se os problemas básicos que marcam sua reflexão já se 41 encontravam esboçados nos trabalhos mais antigos é a vivência da situação da pesquisa de campo e a própria natureza da sociedade trobriandesa que forneceram os materiais sobre os quais desenvolveu no decorrer dos anos sua visão particular do objeto e dos métodos da Antropologia 1978 p 45 Com a Palavra os Argonautas a gênese da observação participante entre os nativos da Nova Guiné Ao iniciar esta análise do texto de Malinowski 1978 uma observação se faz necessária em se tratando de um trabalho riquíssimo em termos de dados etnográficos e de sugestões para reflexão não temos aqui a pretensão de abarcar todo o seu conteúdo Assim como exposto no início deste capítulo nosso olhar estará orientado para dois pontos específicos que são o estabelecimento e a exposição de princípios metodológicos regulares para a realização de um trabalho de campo verdadeiramente eficaz incluindose aí o papel da observação participante e estritamente associada a este aspecto a importância concedida à subjetividade do pesquisador em tal atividade Enfim questões de ordem metodológica mas que de forma alguma aparecem separadas de um contorno ético Com isso evidenciam ainda as idéias particulares de um autor que recusava ao cientista um papel de suposta neutralidade fornecendonos algumas pistas úteis Vamos a elas então É claro que podemos remontar por exemplo a Descartes 16371989 a utilização de autobriografias de cunho metodológico como um recurso retórico bastante útil em termos de propagação de idéias Contudo é inegável também que o esforço de Malinowski 1978 neste sentido guarda lá os seus encantos Desta maneira este último autor inicia sua introdução aos Argonautas por uma breve descrição das populações da costa e ilhas periféricas da NovaGuiné enquanto exímios navegadores comerciantes e artesãos Em seguida dada a natureza econômica ao menos a priori da pesquisa que deu origem ao livro em questão expõe ao leitor o tipo específico de comércio do qual se ocupará ao longo das páginas seguintes Tratase do Kula um sistema de trocas nativas que segundo Malinowski 1978 assumiria na cultura trobriandesa o estatuto de fenômeno central e que na perspectiva funcionalista e integradora adotada pelo etnógrafo polonês acabará por ser analisado em termos globalizantes Porém antes de se voltar prioritariamente à descrição do Kula em si Malinowski 1978 enfatiza um aspecto que muito nos interessa no momento a absoluta necessidade da 42 probidade etnográfica devendo o pesquisador de maneira didática tornar claros os métodos de coleta e obtenção de dados utilizados em seu trabalho Afinal pensa ele Os resultados da pesquisa científica em qualquer ramo do conhecimento humano devem ser apresentados de maneira clara e absolutamente honesta A etnografia ciência em que o relato honesto de todos os dados é talvez ainda mais necessário que em outras ciências infelizmente nem sempre contou no passado com um grau suficiente deste tipo de generosidade Muitos dos seus autores não utilizam plenamente o recurso da sinceridade metodológica ao manipular os fatos e apresentamnos ao leitor como que extraídos do nada Em obras deste tipo não há nenhum capítulo ou parágrafo destinado ao relato das condições sob as quais foram feitas as observações e coletadas as informações A meu ver um trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se nos permitir distinguir claramente de um lado os resultados da observação direta das declarações e interpretações nativas e de outro as inferências do autor baseadas em seu próprio bomsenso e intuição psicológica MALINOWSKI 1978 p 18 Cabe aqui nos remetermos ao contexto da época em que tais palavras foram escritas segunda década do século XX para com isso enfatizar a intenção de Malinowski 1978 em garantir um status científico a então embrionária pesquisa antropológica Aqui é tomado como referência o caráter controlado e replicável do método de trabalho utilizado pelas ciências naturais então mais consagradas junto aos cânones acadêmicos Tal preocupação vale lembrar advém de uma espécie de má reputação adquirida pela antropologia graças aos procedimentos adotados pelos primeiros teóricos da disciplina ainda no século XIX em pleno período da expansão imperialista européia Neste sentido a virulência crítica do trecho acima destacado tem um endereço certo É a chamada Escola Evolucionista que como vimos precedeu o particularismo funcionalista de Malinowski preocupandose em obter conclusões bastante generalistas as quais para os padrões da antropologia contemporânea além de carecerem de uma base empírica convincente refletiam certos posicionamentos etnocêntricos de seus autores baseados na noção de que a sua própria sociedade do tipo vitoriano situarseia no topo de uma suposta escala evolutiva da humanidade De volta ao trabalho de Malinowski 1978 alcançamos um trecho que seguramente pode ser tomado como clássico no métier antropológico Tratase de uma descrição em certo sentido poética e bastante sedutora acerca da grande aventura proporcionada pela pesquisa etnográfica que ao mesmo tempo brinda o pesquisador com deliciosas expectativas e descobertas mas também com recorrentes desânimos e frustrações 43 Interessante notar ainda duas outras presenças simultâneas e absolutamente imbricadas no texto do nosso scholar o rigor metodológico aliado à consciência do dever e à confissão subjetiva e autobiográfica Com a palavra o próprio autor O resto é por conta da imaginação Imaginese o leitor sozinho rodeado apenas de seu equipamento numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastarse no mar até desaparecer de vista Tendo encontrado um lugar para morar no alojamento de algum homem branco negociante ou missionário você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente seu trabalho etnográfico Suponhamos além disso que você seja apenas um principiante sem nenhuma experiência sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar pois o homem branco está temporariamente ausente ou então não se dispõe a perder tempo com você Isso descreve exatamente minha iniciação na pesquisa de campo no litoral sul da Nova Guiné Lembrome bem das longas visitas que fiz às aldeias durante as primeiras semanas do sentimento de desespero e desalento após inúmeras tentativas obstinadas mas inúteis para tentar estabelecer contato real com os nativos e deles conseguir material para a minha pesquisa Passei por fases de grande desânimo quando então me entregava à leitura de um romance qualquer exatamente como um homem que numa crise de depressão e tédio tropical se entrega à bebida MALINOWSKI 1978 p 19 Bronislaw Malinowski foi entre outras coisas um grande contador de histórias no melhor sentido do termo Assim prossegue descrevendo momentos outros da sua jornada como a chegada efetiva na aldeia os contatos com os nativos e os primeiros ensaios interpretativos acerca daquele todo aparentemente tão coerente em si mas tão estranho para um outsider como ele Entretanto para não se ater somente às dificuldades nosso guia discorre também sobre as saídas por ele encontradas para tentar alcançar uma coleta de dados minimamente satisfatória Com isso já que problemas de comunicação e linguagem impossibilitavam em um primeiro momento a obtenção de material vivo aquele proveniente das declarações da própria comunidade local acerca dos seus hábitos culturais surge a alternativa da procura por dados concretos e viabilizáveis por meio de recenseamentos genealogias esboços desenhos etc Uma outra aposta de Malinowski 1978 que apesar de supostamente promissora no início acabou por se revelar deveras frustrante foi o apelo por informações junto a alguns moradores brancos do distrito os quais por desinteresse ignorância ou preconceito pouco ou nada sabiam sobre as atividades aborígines Daí a constatação de que paradoxalmente os maiores progressos do antropólogo se dariam em meio ao isolamento transformandoo 44 em uma espécie de solitário em meio à multidão Tal afirmação contudo ao invés de significar um problema aparece aqui como apenas mais uma das características do que Malinowski denominou de a magia do etnógrafo aquela que lhe permitiria a surpreendente capacidade adaptativa e empática de evocar o verdadeiro espírito dos nativos 1978 p 20 20 É bem verdade que o sucesso dos mágicos profissionais depende de pelo menos dois aspectos um certo carisma e mística pessoais aliados à curiosidade do expectador e fundamentalmente a manutenção do segredo quanto ao pulo do gato Ou seja a obediência à regra de um estrito silêncio quanto às técnicas de ilusionismo que lhe conferem uma qualidade de ser quase sobrenatural Malinowski 1978 porém é mais generoso com seus leitores preocupandose nos parágrafos seguintes em revelar em alto e bom som ou melhor em palavras simples e didáticas as três unidades que segundo ele comporiam os princípios metodológicos de uma boa etnografia Em primeiro lugar o pesquisador deveria obter condições adequadas ao estudo etnográfico Isso seria viável mediante o afastamento dos seus próprios pares em um contato o mais próximo e íntimo possível com os grupos dos quais se ocupará em seu trabalho Por exemplo acampando dentro das aldeias destes últimos Para Malinowski 1978 uma atitude dessas forneceria a vantagem de um conhecimento e familiarização com a vida nativa bem superiores àqueles conseguidos via informantes pagos e estrangeiros à cultura local os quais como vimos há pouco em muitos casos agiriam de má vontade ou repletos de preconceitos Como exemplo desta proposta eis um trecho extraído dos Argonautas É enorme a diferença entre o relacionarse esporadicamente com os nativos e estar efetivamente em contato com eles Que significa estar em contato Para o etnógrafo significa que sua vida na aldeia no começo uma estranha aventura por vezes desagradável por vezes interessantíssima logo assume um caráter natural em plena harmonia com o ambiente que o rodeia Pouco depois de me haver 20 Há uma certa discussão acerca das eventuais diferenças entre os termos etnógrafo e etnólogo Aliás em uma nota de rodapé o próprio Malinowski 1978 p 22 precisa melhor o sentido destas expressões classificando o primeiro como empírico e descritivo ao passo que o segundo seguiria o rumo da teoria especulativa Já Kuper 1978 acrescenta ainda que estas divergências terminológicas refletiriam diferentes orientações teóricas com os etnólogos se aproximando da perspectiva difusionista ao contrário dos etnógrafos mais influenciados pelo funcionalismo Para os propósitos deste trabalho porém tais adjetivos serão utilizados de maneira basicamente indistinta o que acreditamos não prejudique o conteúdo geral do texto 45 fixado em Omarakana ilhas Trobriand comecei de certo modo a tomar parte na vida da aldeia a antecipar com prazer os acontecimentos importantes e festivos a assumir um interesse pessoal nas maledicências e no desenvolvimento dos pequenos acontecimentos da aldeia a acordar todas as manhãs para um dia em que minhas expectativas eram mais ou menos as mesmas que as dos nativos Com o passar do tempo acostumados a verme constantemente dia após dia os nativos deixaram de demonstrar curiosidade ou alarma em relação à minha pessoa nem se sentiam tolhidos com minha presença MALINOWSKI 1978 p 21 Apesar do seu otimismo quanto à possibilidade de uma real imersão identificação ou empatia com a cultura alheia o próprio Malinowski 1978 parece perceber também que em última instância este ideal é inalcançável Ou seja um sujeito socializado nos moldes acadêmicos ocidentais jamais poderia se tornar verdadeiramente um nativo das ilhas Trobriand e nem ser aceito por tal comunidade de uma maneira absolutamente plena O trecho a seguir também retirado dos Argonautas ilustra bem esta ponderação Sabendo que eu metia o nariz em tudo até mesmo nos assuntos em que um nativo bem educado jamais ousaria intrometerse os nativos acabaram por aceitarme como parte de sua vida como um mal necessário como um aborrecimento mitigado por doações de tabaco MALINOWSKI 1978 p 2122 Como podemos perceber é fundamental e recorrente esta relação entre subjetividade e pesquisa empírica a qual permeia variados trechos da introdução de Malinowski 1978 Assim passemos agora à segunda exigência feita pelo nosso autor para a constituição de uma pesquisa de campo satisfatória De cunho eminentemente fenomenológico ela reside na problematização da relação entre conhecimento teórico e práxis Em outros termos nosso autor evidentemente reconhece que o domínio sobre critérios cientificamente validados se constitui em condição sine qua non para um trabalho que pretenda ser levado a sério pela comunidade acadêmica Entretanto mais uma vez utilizando o exemplo dos evolucionistas sociais que o precederam Malinowski 1978 alerta para a necessidade da recusa a uma total submissão a este enquadramento enquanto idéia preconcebida Isso porque como mencionado anteriormente uma das maiores críticas hoje feitas aos primeiros antropólogos do século XIX é a de que de posse de um esquema previamente formulado acerca de como deveriam ser a vida e o pensamento dos nativos 46 utilizavase os relatos imprecisos de informantes e missionários muito mais para comprovar uma tese anterior do que para verificar a sua real plausibilidade Assim ainda que destacando os trabalhos de relevantes teóricos do seu tempo como Sir James Frazer e Émile Durkheim Malinowski 1978 insiste que no caso da pesquisa etnográfica caberia separar bem o joio do trigo ou seja a empiria da especulação Neste sentido insiste o etnógrafo polonês para além do preconceito a ciência antropológica deveria resgatar em sua análise a lógica da visão de mundo própria ao nativo e ainda a coerência da sua organização social relativizando com isso a suposta condição de primitivos ou selvagens para povos simplesmente diferentes Conhecer bem a teoria científica e estar a par de suas últimas descobertas não significa estar sobrecarregado de idéias preconcebidas Se um homem parte numa expedição decidido a provar certas hipóteses e é incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente abandonandoos sem hesitar ante a pressão da evidência sem dúvida seu trabalho será inútil Mas quanto maior for o número de problemas que leve consigo para o trabalho de campo quanto mais esteja habituado a moldar suas teorias aos fatos e a decidir quão relevantes eles são às suas teorias tanto mais estará bem equipado para o seu trabalho de pesquisa As idéias preconcebidas são perniciosas a qualquer estudo científico a capacidade de levantar problemas no entanto constitui uma das maiores virtudes do cientista MALINOWSKI 1978 p 22 Mais adiante é ainda dialogando com os evolucionistas que Malinowski 1978 defende a premissa fundamental que caracteriza a sua própria abordagem funcionalista um ideal de pesquisa baseado na totalidade e na completude sem conferir privilégios a características específicas ainda que exóticas da vida nativa mas sim partindo em busca de leis e padrões gerais que fornecessem um contorno claro e firme das culturas estudadas Enfim uma espécie de gestalt integrativa entre o todo e as partes Precisamente aqui tem início a terceira das recomendações feitas pelo etnógrafo polonês para a obtenção de uma química que garantisse a consistência da poção mágica a ser utilizada pelo antropólogo em seu ofício a aplicação de métodos específicos de coleta manipulação e registro de evidências Quanto a este aspecto uma perguntachave passa a ser a de como tentar estabelecer leis culturais se tais parâmetros não se encontram formulados ou cristalizados entre os nativos A resposta de Malinowski é clara coletando dados concretos sobre os fatos observados formulando a partir daí inferências gerais 47 Desta forma ao invés de questionamentos gerais e abstratos mais valeria tomar como referência um acontecimento concreto como um crime por exemplo para a partir daí interpelar a comunidade sobre quais os mandamentos ditados pela sua tradição Então uma vez que as reações individuais seriam orientadas pelo fato social coercitivo poderse ia em um movimento indutivo juntar opiniões e organizandoas em um todo coerente organizar princípios ordenadores da cultura21 Em tal processo que vale lembrar deveria abarcar não somente alguns fatos isolados mas todos os eventos que estivessem ao alcance do antropólogo seria mais bem sucedido pensa Malinowski 1978 aquele cujo esquema mental organizado sempre a partir da experiência empírica do contato etnográfico melhor pudesse ser encarnado em um esquema real com quadros sinóticos mapas planos e diagramas Estes por sua vez também deveriam dar conta do maior número possível de aspectos da vida dos grupos estudados incluindose aí a sua economia política religião etc Temos assim o método de documentação estatística por evidência concreta Neste ponto um aspecto interessante a ser destacado é a cobrança de Malinowski 1978 no sentido da utilização prévia deste novo método de apresentação de dados primeiramente no próprio etnógrafo separando assim os resultados obtidos pela via da observação direta daqueles outros que aquele porventura recebesse indiretamente no diálogo com os nativos Embora tal recomendação possa até nos fazer recordar a saga de Dr Jekyll Mr Hyde seguramente não contém em si nenhuma loucura Ao contrário aparece aqui como uma clara preocupação com a autenticidade dos variados elementos pertinentes ao trabalho de campo inclusive no que se refere à subjetividade do pesquisador a qual também deveria ser levada em conta na separação entre evidências concretas e inferências interpretativas Ao defender a construção de uma etnografia genuinamente científica porém Malinowski 1978 parece mais uma vez reconhecer os limites da empiria e da observação controlada ao procurar associar àquela uma característica que considera positiva nos trabalhos amadores a apresentação dos fatos íntimos do cotidiano nativo traço este menos 21 Interessante notar aqui o esforço de Malinowski em demonstrar a partir do seu próprio exemplo etnográfico a imbricada relação entre empiria e construção teórica Nestes termos a experiência vivida da alteridade o eu estive lá garantiria a validade científica tanto da tese escrita quanto das proposições metodológicas nela contidas surgidas não de especulações mas de problemas reais enfrentados e solucionados em campo 48 permeado pela objetividade e somente alcançável através de uma vivência estreita e prolongada junto ao outro Tratase portanto de transformar o verbo em carne e sangue preenchendo o esqueleto teórico e abstrato com a realidade proporcionada pelos risos e lágrimas característicos das relações humanas Aprendemos muito a respeito da estrutura social nativa mas não conseguimos perceber ou imaginar a realidade da vida humana o fluxo regular dos acontecimentos cotidianos as ocasionais demonstrações de excitação em relação a uma festa cerimônia ou fato peculiar Ao desvendar as regras e regularidades dos costumes nativos e ao obter do conjunto de fatos e de asserções nativas uma fórmula exata que os traduza verificamos que esta própria precisão é estranha à vida real a qual jamais adere rigidamente a nenhuma regra Os princípios precisam ser suplementados por dados referentes ao modo como um determinado costume é seguido ao comportamento dos nativos na obediência às regras que o etnógrafo formulou com tanta precisão e às próprias exceções tão comuns nos fenômenos sociológicos MALINOWSKI 1978 p 2729 Malinowski 1978 denomina de imponderáveis da vida real a estes acima referidos fenômenos impassíveis de registro estatístico mas cuja importância residiria na sua qualidade de cimento social Daí o clamor pela atenção do pesquisador aos aspectos íntimos da vida grupal diferente do quadro frio das relações sociais apresentadas em separado do seu contexto fenomênico original Com isso também atos aparentemente prosaicos como os rituais e confraternizações deveriam ser apresentados segundo o seu próprio tom e detalhes específicos e não somente enquanto esboços gerais Subjacente a estas afirmações aparece a sua intenção última atingir a atitude mental que neles se expressa 1978 p 2930 Mais uma vez portanto parece surgir no texto de Malinowski 1978 a crença em uma capacidade empática e camaleônica do antropólogo Sim aquele que vivendo junto ao diferente identificarseia com ele sentindo o que este sente e assim deixando de lado toda uma socialização prévia e moldada conforme o padrão acadêmico seria capaz de novamente se dirigindo aos seus pares traduzir a cultura alheia conforme expressa nas mentes individuais que a viabilizam Associado a esta proposta aparece um outro tema importante e que também muito interessa aos nossos propósitos aqui Em Malinowski 1978 tal exigência científica vem acompanhada de um novo reconhecimento o de que dificilmente seria possível brincar tão próximo ao fogo e permanecer incólume Em outras palavras para além da personalidade 49 nativa per se há aqui um retorno ao tema da inevitável influência da constituição psíquica do etnógrafo sua educação preferências anseios medos etc na realização de uma pesquisa de campo desta natureza a qual exigiria uma exposição e implicação consideravelmente maiores do que coletas de dados cristalizados como as do tipo survey Ainda assim preconiza Malinowski todo um esforço deveria ser feito no sentido de deixar que os dados falem por si mesmos 1978 p 31 De que maneira Registrando por escrito a observação dos fatos etnográficos logo em seguida à sua ocorrência e desde os primeiros contatos pois mesmo que certas manifestações culturais somente se tornassem perceptíveis após um certo tempo de convivência e adaptação junto aos costumes locais outras poderiam deixar de ser notadas conforme o grau com que nos familiarizamos com elas Paralelamente às anotações sobre os comportamentos mais típicos ditados pelas regras da tradição deverseia ainda registrar aqueles ligeira ou acentuadamente desviantes determinando assim os dois pólos de uma escala da normalidade Para a realização desta tarefa nada mais apropriado do que o diário etnográfico exaltado aqui como instrumento ideal e companheiro de viagem Agora fundamentalmente embora pondere que tal atitude de pesquisa orientada por um verdadeiro mergulho na vida nativa possa vir a não ser uniformemente bem sucedida permanecendo válida porém enquanto tentativa possível Malinowski 1978 recomenda aos seus leitores aprendizes de antropólogos que vez ou outra deixando de lado caderno lápis e máquina fotográfica objetos que caracterizam uma clara separação entre o universo do pesquisador e aquele dos povos que estuda entregassemse a uma verdadeira participação pessoal nas cerimônias brincadeiras jogos ou conversas comunitárias Desta maneira graças a tal interação poderiam obter uma visão mais clara do jeito de ser dos nativos em variados tipos de transações sociais Como já deve haver notado o leitor atento precisamente neste ponto da introdução de Malinowski aos Argonautas do Pacífico Ocidental 1978 chegamos à gênese do conceito de observação participante Em outras palavras o movimento do etnógrafo em termos de uma interação efetiva e profunda com o nativo de maneira a obter pela via de uma espécie de contato empático entre subjetividades uma reconstrução da realidade alheia a mais verossímil possível 50 De volta à nossa análise após passarmos em revista as preocupações metodológicas de Malinowski 1978 no sentido do registro e apreensão tanto do esqueleto estrutural da vida tribal representado pela sua tradição e por atos culturais previamente fixados quanto da sua carne e sangue referentes por sua vez a padrões mais ou menos variáveis de respostas comportamentais e cotidianas àquelas prescrições alcançamos o que se constituiria segundo nosso autor no terceiro e último objetivo da etnografia É o estabelecimento do espírito local A saber as idéias e definições dos nativos acerca do seu próprio sistema cultural Afinal em todo ato da vida tribal existe primeiro a rotina estabelecida pela tradição e pelos costumes em seguida a maneira como se desenvolve essa rotina e finalmente o comentário a respeito dela contido na mente dos nativos Tais idéias sentimentos e impulsos são moldados e condicionados pela cultura em que os encontramos e são portanto uma peculiaridade étnica da sociedade em questão Devese portanto empenhar em seu estudo e registro MALINOWSKI 1978 p 32 Assim como em suas propostas metodológicas anteriores mais uma vez Malinowski 1978 parece se mostrar consciente dos riscos embutidos nesta última sentença cujo objeto poderia soar demasiado vago ou indefinido Em sua defesa o autor dos Argonautas sustenta uma argumentação que já pode ser prévisualizada no trecho acima a da estereotipia dos pensamentos e emoções individuais os quais seriam antecipadamente configurados segundo os ditames da cultura Enquanto sociólogos não nos interessamos pelo que A ou B possam sentir como indivíduos no curso acidental de suas próprias experiências interessamonos sim apenas por aquilo que eles sentem e pensam enquanto membros de uma dada comunidade Sob esse ponto de vista seus estados mentais recebem um certo timbre formamse estereotipados pelas instituições em que vivem pela influência da tradição e do folclore pelo próprio veículo do pensamento ou seja pela língua O ambiente social e cultural em que se movem forçaos a pensar e a sentir de maneira específica MALINOWSKI 1978 p 32 É assim portanto que deveria ser compreendido o terceiro mandamento da pesquisa de campo em sua procura pela correspondência entre modos de pensar e sentir individuais e seus determinantes em termos de instituições sócioculturais Tomando por base o contorno verbal do pensamento nativo oferecido por trabalhos anteriores de colegas da Escola de Cambridge como Rivers e Seligman Malinowski 1978 sugere como método 51 útil para a viabilização desta empreitada a apresentação de termos de classificação advindos dos próprios nativos e ainda a citação literal de asserções importantes também produzidas por eles Em seguida porém demonstrando uma preocupação de contorno hermenêutico referendada pela sua própria experiência etnográfica e bem de acordo com o tipo de raciocínio metodológico que adota Malinowski 1978 enfatiza a necessidade do etnógrafo dar um passo adiante nesta linha de ação Afinal a tradução em muitos casos destituiria o termo nativo de várias das suas características essenciais Já a sua preservação ao contrário dependeria da familiarização e aprendizado da língua nativa por parte do pesquisador os quais habilitariamno a ser capaz de escrevendo e mesmo raciocinando em tal idioma utilizar este corpus inscriptionum como instrumento investigativo reproduzindo assim de forma a mais fidedigna possível a mentalidade e o espírito estrangeiros A introdução subjetivometodológica de Malinowski 1978 alcança então o seu fim com um resumo dos três caminhos viáveis para a obtenção de uma boa etnografia aquela que conforme a metáfora funcionalista incluiria o esqueleto a carnesangue e o espírito nativos Neste sentido temos primeiramente a exposição das regras culturais determinantes e solidamente constituídas pelos povos estudados o que poderia ser obtido por intermédio do método de documentação concreta e estatística Em termos complementares vem a análise da vivência cotidiana e efetiva destas prescrições marcada pelos imponderáveis da vida real e pelos tipos de comportamento mais ou menos desviantes devidamente registrados com o auxílio do diário etnográfico Finalmente a coleta das opiniões individuais acerca da incoerência deste todo tornada possível graças ao corpus inscriptionum e seu apanhado de asserções narrativas e fórmulas mágicas por exemplo Tudo isso visando aquela que se constituiria na finalidade última da pesquisa etnográfica sem esquecer toda a sua enorme carga subjetiva Em breves palavras esse objetivo é o de apreender o ponto de vista dos nativos seu relacionamento com a vida sua visão de seu mundo Estudar as instituições costumes e códigos ou estudar o comportamento e mentalidade do homem sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos quais ele vive e sem o intuito de compreender o que é para ele a essência de sua felicidade é em minha opinião perder a maior recompensa que se possa esperar do estudo do homem MALINOWSKI 1978 p 3334 52 Eis a tarefa certamente desafiadora proposta por Malinowski conciliar subjetividade e método em uma pesquisa etnográfica cuja pretensão totalizante visava abarcar não só a estrutura social mas o próprio espírito nativo Como interpretála Seria coerente em si mesma ou mostrarseia perdida a meio caminho entre influências românticas e positivistas ao reconhecer a unicidade das emoções e sentimentos tanto do nativo quanto do próprio cientista e simultaneamente parecer buscar cientificizálas cristalizandoas em esboços e quadros sinóticos generalizantes Como exposto no início deste capítulo a perspectiva funcionalista é bastante rica em seu caráter inovador principalmente se considerarmos a ideologia evolucionista ainda vigente à época início do século XX Precisamente por isso permanece viva e homenageada com sempre renovadas críticas As mais recorrentes dizem respeito a uma dificuldade de generalização teórica decorrente do tipo de metodologia adotada por Malinowski Neste sentido embora deixando de lado o método comparativo tradicionalmente desenvolvido pelos evolucionistas para propor descrições minuciosas de sociedades particulares autores como Durham 1978 demonstram que o etnógrafo polonês não abandona de todo uma pretensão universalista ao reduzir em grande parte as manifestações culturais à qualidade de respostas a necessidades de cunho biológico opção esta que empobrece o fértil solo aberto pelos seus trabalhos de campo Ou seja ainda conforme Durham 1978 a despeito dos avanços do funcionalismo como uma tentativa de análise sistemática da cultura que preserva as particularidades de cada grupo estudado esta teoria detém um caráter naturalista exageradamente otimista que em sua rigidez e finalismo biológico privilegia o equilíbrio e a estabilidade por intermédio das instituições Desta forma defrontase com grandes dificuldades no que se refere a temas como a mudança cultural e a patologia social Assim é que para DaMatta 1986 o grande perigo da sua utilização reside em tomar a forma pelo seu conteúdo desde que o pesquisador fique contente em apenas dizer que tudo tem de fato uma função e neste esquema acabe encaixando todos os costumes humanos dos mais patéticos aos mais cruéis Nessa perspectiva e distância correse o risco de deixar de lado o estudo do específico que afinal cada instituição também contém Por causa desta confusão B K Malinowski acaba por sucumbir às tentações do universalismo formalista propondo uma teoria da cultura onde o cultural surge como resposta funcional a certos impulsos eou motivações biológicas DAMATTA 1986 p 504 53 Finalmente para além do campo teórico é em termos éticos que Laplantine 1991 condena tal perspectiva científica da cultura por ocultar a realidade colonialista da década de 1920 Quanto a este aspecto as seguintes palavras de Richards 1943 acerca da relação entre a teoria funcionalista e o trabalho desenvolvido por Malinowski na África a partir de 1934 parecem bem representativas para ir de encontro às necessidades dos estudantes indo a trabalho nas sociedades em rápida transformação na moderna África ele adaptou seu approach teórico para o estudo dos contatos culturais e foi largamente responsável pela rápida difusão do interesse nas aplicações práticas da antropologia no terreno da administração colonial RICHARDS 1943 p 0222 Sem nos aprofundarmos na discussão quanto ao maior ou menor teor de verdade contido em tamanhas ressalvas esperamos haver realizado a contento a tarefa de percorrer junto ao leitor as trilhas que levaram os antropólogos a um contato cada vez mais efetivo e intenso com os seus grupos de estudo desde os primeiros teóricos de gabinete até o trabalho desenvolvido pelo autor de Argonautas do Pacífico Ocidental 1978 Mais do que isso esperamos haver tornado claro que o estabelecimento de tal técnica de trabalho não se deu ao acaso mas enquanto parte integrante de toda uma nova ética embutida na perspectiva de Bronislaw Malinowski Como enfatiza Durham 1978 tratase daquela que considera como principal tarefa da antropologia a reconstrução da realidade cultural alheia em seus próprios termos alcançando assim como vimos o ponto de vista do nativo Conforme demonstrado nos parágrafos anteriores a viabilidade de tal pretensão dependeria de um reconhecimento tanto da integração quanto da interdependência dos vários componentes e múltiplas determinações do chamado comportamento real Afinal neste estariam contidas não somente as leis reguladores da sociedade mas também a realização ou não destes mandamentos em termos de uma prática efetiva e ainda a reflexão por parte daqueles que vivem sob a sua tutela do significado destes princípios ordenadores para a vida cotidiana Eis aí definido o contexto favorável à compreensão da importância da observação participante do antropólogo uma vez que 22 No original in order to meet the needs of students going to work in the rapidly changing societies of modern Africa he adapted his theoretical approach to the study of culture contacts and was largely responsible for the rapid spread of interest in the practical applications of anthropology in the field of colonial administration trad nossa MRS 54 nesta abordagem o próprio observador é parte da observação pois é em si o instrumento capaz de recriar subjetivamente para analisar objetivamente a experiência subjetiva do observado A observação participante preconizada por Malinowski constitui justamente uma técnica destinada a promover este processo DURHAM 1978 p 167 Pois bem ocorre que a despeito de fornecer as bases metodológicas da antropologia moderna ou precisamente por isso este observar participando acabaria por adquirir ao longo dos anos um duplo caráter proporcionando também a margem para a crítica pós moderna aos pressupostos desta disciplina próximo objeto do nosso estudo Antes porém cabe fazermos um breve passeio pelos campos da Hermenêutica ramo da filosofia que incorporado sobremaneira pela atual discussão antropológica muito nos interessará a partir de agora A Virada Hermenêutica e o novo Paradigma Antropológico Do grego hermeneutikós declarar interpretar traduzir a Hermenêutica surgiu como uma área do saber originalmente ligada à exegese dos textos sagrados que mais tarde no século XIX sob a influência inicial de Schleiermacher e Dilthey alcançaria o status de importante vertente da filosofia englobando o sentido mais amplo de uma completa metodologia visando o entendimento da produção humana em geral verbal e não verbal antiga e contemporânea Neste sentido de forma a estabelecer um contraponto imediato em relação ao iluminismo de Kant o qual isolava o conhecimento da sua dimensão vivida em busca de uma razão pura Dilthey resgata a consciência metafísica do homem expressa por sua vez em uma dimensão histórica que englobaria componentes vitais como o sentimento e o desejo de ação Assim este último autor construiu seu método pela fundamental distinção entre a maneira como compreendemos um objeto e uma outra pessoa resumindo ainda tal distinção com duas categorias de contraste baseadas na explicação e compreensão as chamadas Naturwissenschaft ciências da natureza e as Geistswissenschaft ou ciências do espírito PALMER 1969 Tal saber gerou uma série de conceitos particulares Dentre eles podemos citar o foco no contexto histórico e psicológico do autor ou agente a ênfase na individualidade do objeto a ser estudado a delimitação do objeto como alguma forma de expressão humana a 55 análise do texto ou documento enquanto totalidade de significado na qual a parte e o todo são compreendidos de forma interdependente círculo hermenêutico além da noção de que o entendimento somente se configuraria enquanto um diálogo entre intérprete autor e texto ou agente DILTHEY 1976 Entretanto a despeito do avanço em relação a Kant dada a inclusão da variável histórica no âmbito do conhecimento humano a perspectiva de Dilthey ainda permaneceria partidária da busca de um objetivismo que no seu caso específico acabaria por se revelar incongruente Isso graças à conceituação da tarefa hermenêutica como reconstituição de uma verdade interpretativa supostamente contida na intenção original de um autor Em tal contexto a chamada experiência vivida funcionaria como algo dado à observação empírica e o conceito de reviver acabaria por se assemelhar ao da observação praticada pelas ciências naturais Nestes termos garantirseia ao conhecimento interpretativo fornecido pelas ciências do espírito a veracidade de uma cópia reproduzida por uma consciência isolada e isenta de subjetivismos A seguinte passagem extraída do trabalho de Bleicher 1992 ilustra bem o conteúdo desta ressalva à teoria hermenêutica clássica de Dilthey Considerando as objectivações históricas como aquisições que podem ser decifradas com o auxílio de técnicas hermenêuticas Dilthey não conseguiu fazer jus à sua caracterização da relação intérpretetexto como uma relação sujeitosujeito estilizandoa na familiar relação sujeitoobjeto O preço da garantia de um grau de objectividade no estudo das expressões de uma outra mente é a incapacidade de dar o passo do conhecimento histórico para a experiência histórica ou conhecimento hermenêutico quer dizer Dilthey estava demasiado preocupado em salientar a necessidade e o valor de assumir uma posição crítica em relação ao passado e também em tentar garantir uma posição objectiva para esta realização Esta posição revelanos Dilthey como filho do Iluminismo e na senda da tradição cartesiana mas ela levao a ignorar o desafio que um objecto histórico pode lançar às concepções e valores do intérprete e a fechar os olhos à necessidade de autoreflexão em que o sujeito se compenetra da sua dívida para com a tradição e a linguagem como bases e meios do seu pensamento BLEICHER 1992 p 40 Assim é que já no século XX a Hermenêutica voltaria a se tornar alvo das reflexões de importantes figuras do pensamento contemporâneo como Martin Heidegger e seu discípulo direto HansGeorg Gadamer Porém não mais aprisionada pela busca da reconstituição objetiva da experiência vivida e sim revitalizada pela perspectiva do restabelecimento de uma abertura de sentido entre o mundo científicotecnológico e aquela 56 outra dimensão da nossa experiência que menos manipulável ou controlável demandaria simplesmente respeito Com isso levandose em conta a fundamental importância da linguagem e da tradição no âmbito do processo interpretativo buscouse evitar um aprisionamento do movimento criativo de cada nova interpretação resgatando ainda a dimensão préontológica do conhecimento em detrimento da tentação apofântica da adequação entre sujeito e predicado ou seja entre o que se propõe e o que é Para Gadamer 1992 por exemplo não restariam dúvidas de que o horizonte geral do passado enquanto fonte dos parâmetros orientadores da cultura do presente influenciaria os nossos desejos e esperanças do futuro Eis uma dívida para com Heidegger a história só se faria presente em nós em face da nossa futuridade É desta forma que Gadamer se preocupa em reabilitar a noção de preconceito do caráter negativo a ela atribuído pelo Iluminismo do século XVIII Ainda segundo Gadamer 1992 porém reconhecer o valor dos preconceitos não significa necessariamente submeter a eles o potencial criativo e inovador da experiência Portanto não se trata de propor uma anticiência mas sim um resgate da imaginação phantasie e do desejo do conhecimento como os pilares do trabalho investigativo Em outros termos para além da repetição e certeza buscadas e ao mesmo tempo impostas pelo método caberia ao investigador saber apreciar o benefício oferecido pela dúvida combustível e motor do pensamento Eis portanto a consciência produzida pela história aparecendo aqui na qualidade de uma construção lingüística articuladora do mundo que proporciona a esquematização inicial para as nossas possibilidades cognitivas Neste sentido para além da mera repetição essa mesma história aparece ainda como possibilidade de vida e produtividade A Hermenêutica assim inserirseia em um contexto dialógico entre a nossa imersão em um mundo já previamente interpretado papel da linguagem e o potencial reorganizador desta tradição representado pela nossa própria experiência de vida Com isso deduzse que tal reconhecimento da necessária vinculação entre compreensão Verstehen e linguagem jamais nos deveria conduzir a uma posição dogmática que trata esta última como um sistema hermético de sinais com função unicamente comunicativa já que assim 57 acabaríamos com o seu infinito potencial criativo por sua vez associado à nossa experiência do mundo enquanto movimento e liberdade23 Mas deve estar se perguntando o leitor como se deu a apropriação deste saber pelos antropólogos Uma visão histórica e panorâmica deste processo nos é fornecida por Cardoso de Oliveira 1988a que inspirado na reflexão heideggeriana acerca do SER da Filosofia postula que também a antropologia na sua costumeira prática etnográfica rumo ao outro seria portadora de um instrumental que lhe permitiria alcançar uma tal compreensão de si mesma somente acessível mediante o espanto ou o auto estranhamento24 Neste sentido Cardoso de Oliveira 1988a nos convida a refletir sobre as seguintes questões o que é a antropologia O que torna possível aos antropólogos se espantarem com o próprio saber Teria o seu já secular estranhamento diante do outro embotado historicamente a possibilidade do confronto consigo mesmos A resposta do nosso autor para esta última pergunta vem na forma de uma sonora negativa e é neste sentido que ele adota como objeto de estudo a própria disciplina antropológica enquanto uma espécie de cultura ditada pela formação profissional Com isso pretende captar a essência das tradições que cultivamos e muitas vezes cultuamos inscrita nos paradigmas quem sabe nossos mitos que conformam aquilo que se poderia chamar de matriz disciplinar da antropologia 1988a p 15 De forma a realizar tal tarefa Cardoso de Oliveira 1988a recorre inicialmente a uma técnica estrutural de constituição de campos semânticos caracterizando preliminarmente duas tradições antropológicas distintas as quais denomina de intelectualista e empirista Em seguida realiza um cruzamento entre estas e a categoria tempo em termos de sincronia ou diacronia Segundo o autor em sua associação binária e 23 Novamente segundo Bleicher 1992 um terceiro movimento interpretativo a Hermenêutica Crítica daria prosseguimento a algumas destas preocupações Porém rumo a uma crítica ideológica orientada pelo Marxismo e pela Psicanálise O esmiuçamento desta e de outras tendências mais recentes contudo excede as pretensões do presente estudo De qualquer forma em termos de referências bibliográficas além do trabalho de Bleicher 1992 há pouco citado uma outra boa introdução ao pensamento hermenêutico está disponível ao leitor de língua portuguesa em Coreth 1975 24 Tratase da hoje relativamente conhecida conferência de Martin Heidegger intitulada Que é isto a Filosofia proferida na Normandia em 1955 e que pode ser encontrada pelo leitor brasileiro em HEIDEGGER M Coleção Os Pensadores 2ª Ed São Paulo Abril Cultural 1983 Dentre outros aspectos este texto chama atenção pelo seu caráter delimitador quanto à nova démarche que dali em diante ditaria o rumo das idéias do filósofo alemão em direção a uma hermenêutica orientada para o esmiuçamento dos temas da tradição e da linguagem o chamado segundo Heidegger 58 antinômica estas duas perspectivas englobariam todas as possibilidades paradigmáticas inscritas na matriz No caso a antropológica O resultado desta combinação seria a demarcação de quatro paradigmas básicos por sua vez associáveis aos nomes de pelo menos quatro figuras centrais da antropologia moderna 1 Do cruzamento entre a tradição intelectualista e a perspectiva sincrônica teríamos enquanto um primeiro domínio o paradigma racionalista representado pela chamada Escola Francesa de Sociologia Durkheim 2 Já esta mesma sincronia desta feita cruzada com a tradição empiricista resultaria no paradigma estruturalfuncionalista característico da Escola Britânica de Antropologia Rivers 3 O empiricismo porém em se aliando à diacronia causaria o paradigma culturalista em geral associado à Escola HistóricoCultural Norte Americana Boas 4 Fechando este círculo a prole do casamento entre o intelectualismo e a diacronia antropológicos responderia pelo nome de paradigma hermenêutico um caçula também com nacionalidade americana Geertz Conforme Cardoso de Oliveira 1988a em maior ou menor escala os três primeiros paradigmas representariam os princípios norteadores de uma razão iluminista que sem levar em conta a dimensão histórica que abarca o encontro etnográfico orientaria os seus esforços na busca de um conhecimento científico pretensamente objetivo Nestes termos o recurso cartesiano ao método fecharia as portas a uma maior intromissão da subjetividade na atividade da pesquisa antropológica Já o quarto e último paradigma se constituiria como reação àquela mesma razão Alfklärer esclarecida sendo responsável inclusive por uma certa desordem na matriz disciplinar da antropologia Isso ocorreria graças a um processo de transformação do tempo em categoria interiorizada e bilateral válida portanto e simultaneamente para os universos do pesquisador e do pesquisado o que acarretaria no fim da anulação da posição histórica do hermeneuta agora pensada como condição inerente ao próprio percurso do 59 conhecimento antropológico Como nos mostra novamente Cardoso de Oliveira 1998b desta feita em um outro trabalho O quarto paradigma de nossa matriz disciplinar que chamei de hermenêutico abre seu espaço na antropologia primeiramente por uma negação radical daquele discurso cientificista exercitado pelos três outros paradigmas em segundo lugar por uma reformulação daqueles três elementos que haviam sido domesticados pelos paradigmas da ordem a subjetividade que liberada da coerção da objetividade toma sua forma socializada assumindose como inter subjetividade o indivíduo igualmente liberado das tentações do psicologismo toma sua forma personalizada portanto o indivíduo socializado e não teme assumir sua individualidade e a história desvencilhada das peias naturalistas que a tornavam totalmente exterior ao sujeito cognoscente pois dela se esperava fosse objetiva toma sua forma interiorizada e se assume como historicidade Esses três elementos assim reformulados passam a atuar como fatores de desordem daquela antropologia que os interpretativistas tendem a chamar de antropologia tradicional sustentada pelos paradigmas da ordem CARDOSO DE OLIVEIRA 1988b p 97 Contudo apesar do que pode parecer à primeira vista Cardoso de Oliveira 2000 estabelecendo uma diferença entre a sua proposta e aquela anteriormente feita por Kuhn 1962 sustenta que em se tratando da antropologia um paradigma o hermenêutico compreensivo não necessariamente substitui o outro o racionalistaexplicativo Na verdade ambos sobreviveriam em simultaneidade E mais mantendo cada um a sua validade e maneira própria de apreensão da realidade social Com isso o mútuo reconhecimento e a tensão dele resultante é pensado aqui como benéfico à atualização da disciplina como um todo Com a introdução pelo paradigma hermenêutico de alguma desordem na matriz disciplinar constituída originalmente pelos paradigmas orientados pelas ciências naturais o que se viu foi uma sorte de rejuvenescimento da disciplina e isso graças ao aumento da tensão entre os paradigmas circunscritos na matriz se já havia essa tensão entre os primeiros paradigmas com a inclusão do último ela aumentou em escala dinamizando extraordinariamente a antropologia de nossos dias Portanto nunca é demais insistir que a hermenêutica não veio para erradicar os paradigmas hoje chamados tradicionais mas para conviver junto a eles tensamente constituindo uma matriz disciplinar efetivamente viva e produtiva CARDOSO DE OLIVEIRA 2000 p 64 Ainda assim é bem verdade Cardoso de Oliveira 1988a 1988b alerta para o dever de mantermos nossos olhos sempre abertos a eventuais distorções e modismos que poderiam ocasionar um desenvolvimento perverso deste processo como por exemplo 60 um certo interpretativismo também qualificado como pósmoderno recentemente desenvolvido pela antropologia norteamericana a partir do quarto paradigma Este porém é um outro tópico a ser abordado mais adiante Antes devemos nos ater ao próprio Clifford Geertz figura a qual como sugerido há pouco coube o papel principal na tarefa de buscar adaptar o tipo de orientação filosófica que caracteriza a teoria hermenêutica ao campo de estudos próprio à antropologia sóciocultural Neste sentido as seguintes palavras de Michael Fischer também ele um representante contemporâneo desta antropologia interpretativa servem como um bom preâmbulo para a nossa tarefa seguinte que é a de nos situarmos no projeto geertziano Antropologia interpretativa é um rótulo recente e talvez uma tendência substantiva que corresponde a uma iniciativa aparentemente cristalizada na Universidade de Chicago no anos 60 sob a liderança de David M Schneider e Clifford Geertz mas que interessou ativamente quase todo corpo docente Na época tendiase a chamar essa iniciativa de várias maneiras antropologia cultural em oposição a social ou antropologia simbólica Simbólica cultural interpretativa todas essas denominações se reportam ao debate do século dezenove na Alemanha sobre o papel da Verstehen compreensão na metodologia das ciências sociais A questão inicial era a já eterna há em princípio uma diferença entre os métodos das ciências naturais e os das ciências humanas ou sociais Faziase o esforço de combinar através da noção de Verstehen as metas científicas de objetividade com o reconhecimento de que pelo fato de os homens refletirem sobre o que fazem e agirem de acordo com essas reflexões é difícil tratálos meramente como objetos FISCHER 1985 p 56 Clifford Geertz a antropologia por sobre os ombros do nativo A reviravolta teóricometodológica operada por Clifford Geertz muito provavelmente o antropólogo mais lido da atualidade começou a ganhar projeção ao longo da década de 60 tendo como singular companhia o processo de descolonização que como vimos há pouco acabaria por minar o tipo de etnografia colonial até então constituída Seguramente a antropologia não saiu ilesa deste encontro Assim vale a pena nos determos em algumas das principais características da obra deste antropólogo norteamericano Ou dito de outra forma do modo como este se apropriou dos princípios fundamentais da teoria hermenêutica que expomos anteriormente diferenciando assim a sua perspectiva do tipo de antropologia anteriormente preconizada por Malinowski Neste sentido a leitura de alguns textos do próprio Geertz 1989a 1989b 1997a 1997b bem como dos trabalhos de 61 comentadores da sua obra como Shankman 1984 e Azzan Jr 1993 certamente nos fornecerá um bom material de análise Em primeiro lugar podemos destacar a pretensão de Geertz em efetuar uma verdadeira mudança paradigmática no terreno da antropologia de forma que esta e por derivação a própria ciência social mais ampla passasse a se ocupar não mais de leis e instâncias como totalidades explicativas mas sim de casos culturais específicos enquanto possibilidades de interpretações particulares microscópicas Eis um movimento que vai da explicação à compreensão e do objetivismo ao intersubjetivismo Com relação às ciências sociais o que isto significa é que a falta de personalidade que lhes era atribuída e freqüentemente lamentada não as separa mais das outras ciências Mas tudo isto é para o bem geral livre da obrigação de erguerse às custas da taxonomia já que ninguém mais os ergue os indivíduos que se consideram cientistas sociais ou comportamentais ou humanos ou culturais podem agora moldar seu trabalho de acordo com as necessidades que estes apresentem e não para satisfazer percepções externas sobre aquilo que devem ou não fazer muitos deles adotaram uma abordagem essencialmente hermenêutica Os bosques estão hoje repletos de intérpretes entusiasmados GEERTZ 1997a p 3537 Tal reorientação teóricometodológica vem necessariamente acompanhada de um novo conceito de cultura agora uma atividade simbólica significativa e não analisável simplesmente pela via dos comportamentos apresentados pelos seus personagens em si mesmos mas pelas teias de significado que a permeiam de maneira particular Mais uma vez nos termos de Geertz O conceito de cultura que eu defendo e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar é essencialmente semiótico Acreditando como Max Weber que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise portanto não como uma ciência experimental em busca de leis mas como uma ciência interpretativa à procura do significado 1989a p 15 Nesta perspectiva um grande valor passa a ser concedido às metáforas e analogias particularmente as retiradas das humanidades em detrimento daquelas outras oriundas das ciências naturais O conhecimento antropológico portanto adquire novo status A explicação interpretativa concentrase no significado que instituições ações imagens elocuções eventos costumes ou seja todos os objetos que 62 normalmente interessam aos cientistas sociais têm para seus proprietários Por esta razão seus instrumentos de trabalho não são leis como as de Boyle nem forças como as de Volta ou ainda mecanismos como os de Darwin mas sim construções como as de Burckhardt Weber ou Freud Todas elas no entanto representam esforços para formular conceitos que expliquem como este ou aquele povo este ou aquele período esta ou aquela pessoa fazem sentido para si mesmos e quando este processo tornase claro buscam explicações para a ordem social para mudanças históricas ou para o funcionamento psíquico de um modo geral Os instrumentos do raciocínio estão se modificando Representa se a sociedade cada vez menos como uma máquina complicada ou como um quaseorganismo e cada vez mais como um jogo sério um drama de rua ou um texto sobre comportamento GEERTZ 1997a p 3738 No trabalho de Geertz em particular a metáfora privilegiada é a literária com a cultura sendo tomada na qualidade de uma espécie de texto ou contexto a ser interpretado Assim a tarefa do antropólogo se aproxima daquela pertinente às atividades do exegeta ou do filólogo Quais as implicações deste postulado Fundamentalmente a determinação do caráter histórico e situacional portanto interessado da compreensão humana a qual se constitui apenas na e pela tradição Em outros termos a interpretação aparece aqui sempre como uma interpretaçãopara Vale a pena chamar atenção a este aspecto porque precisamente ele nos conduz a uma outra importante talvez a principal daí figurar no subtítulo com qual inauguramos esta seção característica da antropologia interpretativa de Geertz o reconhecimento da impossibilidade de uma leitura absolutamente clara ou objetiva acerca da cultura do outro Em outros termos não interessa à descrição densa de Geertz a dimensão última do comportamento humano ou seja o que este representaria de fato Ao invés disso sugere o nosso autor vale mais a pena levarmos em conta o significado a ele atribuído pelos membros de uma determinada comunidade inclusive porque aquela primeira tarefa de natureza ontológica está inelutavelmente interditada ao antropólogo já que somente o próprio nativo aquele que verdadeiramente experiencia a sua cultura deteria desta última uma interpretação de primeira mão25 Ao etnógrafo restaria então uma compreensão de natureza no mínimo secundária Portanto por sobre os ombros do nativo 25 É neste sentido que podemos compreender a crítica de Geertz ao que considera como as falácias behaviorista e cognitivista No caso da primeira particularmente a psicologia comportamental do tipo skinneriano a sua falha residiria em seu caráter simplista ao considerar o valor do comportamento em si mesmo tomandoo ao pé da letra Já a segunda pecaria por uma crença exacerbada na capacidade empática da ciência tomando as práticas culturais como fenômenos mentais acessíveis ao pesquisador através de métodos formais e emprestados da lógica e da matemática Ao antropólogo interpretativista caberia então a tarefa de se situar na cultura do outro não com o objetivo de alcançar causas determinantes para o comportamento 63 A cultura de um povo é um conjunto de textos eles mesmos conjuntos que o antropólogo tenta ler por sobre os ombros daqueles a quem eles pertencem Existem enormes dificuldades em tal empreendimento abismos metodológicos que abalariam um freudiano além de algumas perplexidades morais Esta não é a única maneira de se lidar sociologicamente com as formas simbólicas O funcionalismo ainda vive e o mesmo acontece com o psicologismo Mas olhar essas formas como dizer alguma coisa sobre algo e dizer isso a alguém é pelo menos entrever a possibilidade de uma análise que atenda à sua substância em vez de fórmulas redutivas que professam dar conta dela as sociedades como as vidas contêm suas próprias interpretações É preciso apenas descobrir o acesso a elas GEERTZ 1989b p 321 Sem dúvida esta é uma decorrência bastante importante da perspectiva desenvolvida por Geertz Resta ainda o seu complemento imediato a assunção de que considerandose que o antropólogo jamais alcançaria verdadeiramente o ponto de vista do nativo uma vez que sua análise já estaria necessariamente orientada por conceitos previamente definidos pela sua própria cultura ou tradição não restaria então à monografia etnográfica uma qualidade outra que não a de ficção Conforme Geertz 1989a Resumindo os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e na verdade de segunda e terceira mão por definição somente um nativo faz a interpretação em primeira mão é a sua cultura Tratase portanto de ficções ficções no sentido de que são algo construído algo modelado o sentido original de fictio não que sejam falsas nãofatuais ou apenas experimentos de pensamento Convencerse disso é compreender que a linha entre o modo de representação e o conteúdo substantivo é tão intraçável na análise cultural como é na pintura GEERTZ 1989a p 26 Mas podese perguntar como exatamente Geertz lida com todas estas questões Como ainda assim pretende alcançar qualquer tipo de objetividade repudiando ao mesmo tempo as explicações antropológicas que o precederam e as falácias cognitivista e psicologista Em outros termos temos aqui mais uma vez diante de nós a famosa discussão acerca do ponto de vista dos nativos alheio e nem de tornarse nativo penetrando em seu universo mental mas sim buscar uma espécie de alargamento discursivo Aqui as seguintes passagens se tornam bastante elucidativas Situarnos um negócio enervante que só é bemsucedido parcialmente eis no que consiste a pesquisa etnográfica como experiência pessoal Não estamos procurando pelo menos eu não estou tornarnos nativos O que procuramos no sentido mais amplo do termo que compreende muito mais do que simplesmente falar é conversar com eles o que é muito mais difícil Visto sob esse ângulo o objetivo da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano GEERTZ 1989a p 2324 64 Cabe guardarmos conosco tal expressão pois ela confere parte do título de um outro trabalho de Clifford Geertz do qual nos ocuparemos a seguir de maneira mais detalhada Sua escolha se justifica a nosso ver por se tratar de uma exposição clara de vários dos temas que vimos debatendo até aqui Na verdade uma reflexão posterior do próprio Geertz sobre questões pertinentes à sua obra que inclusive guarda uma certa proximidade com a psicanálise O que entretanto torna o trabalho em questão mais interessante aos nossos propósitos é o fato de este estabelecer um contraponto direto entre a proposta geertziana e o tipo de antropologia anteriormente difundida por Malinowski Do Ponto de Vista de Geertz o Ponto de Vista dos Nativos Ao iniciar seu texto nosso autor adota como ponto de partida a seguinte indagação de cunho epistemológico se não é graças a algum tipo de sensibilidade extraordinária a uma capacidade quase sobrenatural de pensar sentir e perceber o mundo como um nativo como é possível que antropólogos cheguem a conhecer a maneira como um nativo pensa sente e percebe o mundo GEERTZ 1997b p 86 Para Geertz 1997b a melhor forma de colocar o problema é vêlo pela ótica de dois conceitos ambos elaborados pelo psicanalista Heinz Kohut experiênciapróxima e experiênciadistante O primeiro deles corresponde àquilo que podemos denominar de uma visão de dentro Ou seja a definição usada sem esforço por um nativo para qualificar o que seus semelhantes sentem Já o segundo é a ferramenta utilizada pelos especialistas de qualquer tipo de forma a organizar seus objetivos científicos filosóficos ou práticos Por exemplo amor pertence ao reino da experiência próxima Já catexia em um objeto de experiência distante Portanto tratase aqui de uma oposição em termos de grau mas não de mútua exclusão Assim de acordo com a antropologia interpretativa um conceito não aparece como necessariamente melhor do que o outro Tomálos desta maneira seria por um lado aprisionarse em um emaranhado vernacular Por outro perderse em abstrações Com isso Geertz 1997b propõe que reflitamos sobre os papéis desempenhados pelos dois conceitos na análise antropológica Enfim como utilizálos de forma que nossa interpretação de um 65 modus vivendi não se torne nem limitada pelos horizontes mentais daquele povo nem que fique sistematicamente surda às tonalidades de sua existência GEERTZ 1997b p 88 Desta forma diznos Geertz 1997b fazse mister que passemos a uma outra ordem de questões ao invés de conjeturarmos acerca de que tipo de constituição psíquica camaleônica inclusive seria ideal para os antropólogos que nos perguntemos qual a melhor maneira de levar adiante uma pesquisa antropológica e de organizar seus resultados Tratase enfim de abandonarmos a possibilidade de qualquer espécie de empatia espiritual para com outras almas que para si mesmas são absolutamente singulares e que a partir daí tentemos simplesmente descobrir que diabos eles acham que estão fazendo GEERTZ 1997b p 89 Em última análise ninguém sabe isso melhor do que o próprio nativo Só que esse pensamento não nos confere o direito à ilusão de querer nadar na corrente das suas experiências nem de achar que algum dia fizemos tal coisa Neste sentido ainda segundo Geertz 1997b para estes mesmos nativos as idéias e as realidades que elas representam estão naturalmente unidas a experiência próxima Porém o etnógrafo não consegue perceber exatamente aquilo que seus informantes percebem O que ele percebe ou pode vir a perceber mesmo que com certa insegurança é o com o que ou através de que os outros percebem Em decorrência disso afirma Geertz 1997b não cabe ao antropólogo buscar entender o que as pessoas sentem mas como ou seja graças a que teias simbólicas elas constroem a sua visão de mundo e de si mesmas Portanto para entender os outros se faz necessário que ao invés de tentarmos encaixar as experiências e concepções destes na moldura das nossas deixemos de lado as nossas concepções e busquemos ver as experiências dos outros em si mesmas ou melhor relacionandoas com a própria rede simbólica que as concebe Com isso criase uma oposição entre teia simbólica observável e espírito nativo a ser incorporado Porém retornando à nossa questão principal vejamos o que esta discussão nos diz sobre o ponto de vista nativo Ou nas palavras do próprio Geertz O que é exatamente que afirmamos quando declaramos compreender os meios semióticos através dos quais nesses casos as pessoas se definem e são definidas pelas outras que 66 entendemos as palavras ou que entendemos as mentes 1997b p 105 Respondendo a esta pergunta nosso autor observa que o movimento intelectual característico e o ritmo conceptual interno de cada uma dessas análises é um bordejar dialético contínuo entre o menor detalhe nos locais menores e a mais global das estruturas globais de tal forma que ambos possam ser observados simultaneamente GEERTZ 1997b p 105 Aqui saltamos de uma visão da totalidade através das partes sinédoque para o seu inverso buscando que uma seja a explicação para a outra naquilo que Dilthey 1976 chamou de círculo hermenêutico Neste sentido Geertz 1997b se esforça em demonstrar que tal raciocínio é tão essencial em etnografia quanto em interpretações literárias psicanalíticas ou bíblicas aproximando mais uma vez a análise cultural da leitura e interpretação de textos Eis o porquê do nosso autor se intitular um etnógrafo de significados e símbolos que tem sempre em mente duas perguntas básicas como é a sua maneira de viver e quais são os veículos através dos quais tal maneira de viver se manifesta De maneira conclusiva vêse que o interpretativismo geertziano sugere um entendimento do outro um relato de subjetividades que não necessariamente oblitera o ego alheio e nem tampouco toma o seu lugar sentindo o que este sente Isso porque em tal proposta a compreensão Verstehen depende da análise de modos de expressão de sistemas simbólicos e não de almas O caminho de Geertz 1997b vai portanto da recusa à tese da empatia antropológica especial marca constituinte do tipo de autoridade etnográfica instituída por Malinowski à proposta de uma análise da teia simbólica e textual das culturas evidenciada em variadas posturas e instituições que forneceria ao nativo a sua concepção de mundo e de si mesmo Assim após passarmos em revista este trabalho particular de Geertz 1997b tomado aqui como um bom exemplo da natureza do seu pensamento é chegado o momento de fazermos uma espécie de balanço geral das suas idéiasCom efeito tornase impossível não enfatizar o caráter inovador e a sedutora lógica própria desta nova modalidade de antropologia Entretanto como veremos adiante também ela é passível de algumas ressalvas 67 Desta forma autores como Shankman 1984 questionam a dubiedade da pretensão gnoseológica de Geertz seria a teoria interpretativa uma ciência ou o que Em caso afirmativo haveria aí muitos problemas a solucionar em termos da elucidação de critérios para a verificação de um boa ou má interpretação Como enfim afirmar algo verdadeiro sobre o outro ou mesmo escolher entre duas ou mais propostas contrárias sobre um mesmo povo Tratase portanto de critérios obscuros de verificação Quanto a este aspecto prossegue Shankman 1984 Geertz parece apelar à peculiaridade de cada caso o que resultaria em uma confusa mistura entre descrição e explicação Que tipo de generalizações podemos esperar daí Como alcançar um conhecimento acumulativo Eis as questões sugeridas em passagens como a seguinte Embora Geertz seja bem claro quanto às diferenças entre a teoria interpretativa e a ciência normal leiase natural o vocabulário por ele empregado permanece uma fonte de preocupação Argumentando que uma completa objetividade seja impossível mas também que não se pode simplesmente deixar os sentimentos fluírem livremente Geertz deixa em aberto uma área talvez mais ampla sobre a qual a imaginação intelectual pode vagar Ao mesmo tempo não nos oferece nenhuma clarificação acerca do status ontológico do conhecimento obtido pela via do exercício da interpretação cultural qualificando este assunto como pouco importante Geertz parece mais interessado em sugerir uma ciência da interpretação do que em desenvolvêla de um modo rigorosamente sistemático SHANKMAN 1984 p 26426 Ontologia portanto aparece aqui como uma palavrachave É precisamente com base nela que Shankman 1984 talvez de uma maneira exageradamente pessimista prevê um futuro pouco promissor para o projeto intelectual desenvolvido por Geertz Segundo aquele autor a antropologia interpretativa padeceria já na atualidade do mesmo câncer por ela diagnosticado nas teorias antropológicas do tipo explicativo pretender realizar um estudo da cultura com base em padrões ou modelos de análise previamente estabelecidos e que não dariam conta do caráter fenomenológico da vida enquanto movimento 26 No original Although Geertz is quite clear about the differences between interpretive theory and normal science the vocabulary that he employs remains a source of concern Arguing that complete objectivity is impossible but that one cannot simply let ones sentiments run loose Geertz leaves a rather large area over which the intellectual imagination can roam At the same time he offers no clarification of the ontological status of knowledge gained in the exercise of cultural interpretation regarding this issue as unimportant Geertz seems more concerned with suggesting a science of interpretation than with developing it in a systematic rigorous fashion trad nossa MRS 68 O que parece estar ocorrendo no desenvolvimento do trabalho de Geertz é dificilmente surpreendente Ao se tornar mais criptográfica a análise do significado parece ter adquirido o mesmo caráter elusivo que a teoria funcional detinha 20 anos atrás e que a análise estrutural portava há pouco mais de uma década Há mais e mais descrições exóticas etnografias mais densas e detalhadas mas estas não parecem produzir um maior desenvolvimento teórico Ao invés disso conduzem à intensificação de um padrão préexistente um padrão que está se tornando progressivamente involuído Garantidos às idéias os adjetivos de atraentes excitantes e até mesmo glamourosas a avaliação da teoria não é simplesmente uma questão de gosto Há a possibilidade de que a teoria interpretativa permaneça como pouco mais que um estilo uma moda um gênero SHANKMAN 1984 p 26927027 Já segundo Azzan Jr 1993 que apoiandose em autores consagrados como P Ricoeur e J L Austin analisa as antropologias estruturalista e interpretativa através de trechos das obras dos seus principais representantes LéviStrauss e Clifford Geertz toda hermenêutica que se pretenda autêntica deveria alcançar obrigatoriamente três instâncias significativas a do autor a do objeto e a do leitor Todavia a proposta de Geertz falharia nestes dois últimos aspectos e tal fracasso remontaria a uma contradição primeva e relativa à sua própria constituição enquanto projeto intelectual a pretensão em se apoiar simultaneamente na semiótica de Pierce e na hermenêutica tomando neste caso a tradição alemã de Dilthey como principal influência Desta maneira tal interpretação da cultura não levaria a hermenêutica às últimas conseqüências porque a despeito de se ocupar dos temas do significado e da interpretação a semiótica pelo menos em certa medida psicologizaria a busca do significado preocupada que estaria com a subjetividade do intérprete Já a hermenêutica na sua acepção moderna enquanto teoria do sentido e da ação não seguiria este mesmo caminho libertando o significado agora objetivado daquele que o originou Deixemos o próprio Azzan Jr 1993 esclarecer a sua hipótese Qualquer teoria que se coloque a tarefa de interpretar e se pretenda caudatária de uma hermenêutica cultural não pode resvalar nos perigos do psicologismo 27 No original What seems to be happening in the development of Geertzs work is hardly unexpected As the analysis of meaning has become more cryptographic it seems to have acquired the same elusiveness that functional analysis had 20 years ago and that structural analysis had a little over a decade ago There are more and more exotic descriptions denser more detailed ethnographies but they do not seem to yield greater theoretical development Instead they lead to an intensification of an already existing pattern a pattern that is becoming increasingly involuted Granted that the ideas are alluring exciting and even glamorous the assessment of theory is not merely a matter of taste There is the possibility that interpretive theory will remain little more than a style a fashion a genre trad nossa MRS 69 Como a semiótica peirciana coloca essa problemática pois o psicologismo é aí recuperado com função explicativa não parece muito adequado à antropologia interpretativa de Geertz Chegase à conclusão de que Geertz inspirase numa hermenêutica declaraa em seus princípios interpretativos assumindo algumas de suas características mas não leva adiante seu projeto inclusive por não haver adequação quanto à linguagem em que expressa suas conclusões Parece de fato trabalhar intenções hermenêuticas mas com um léxico semiótico A semiótica peirciana que ele toma como base como léxico não coteja teoricamente as características necessárias a uma hermenêutica Seria necessário para tal uma teoria da ação AZZAN JR 1993 p 148153 Neste sentido ainda na perspectiva de Azzan Jr 1993 o texto geertziano acabaria utilizando a descrição como um recurso empírico excessivo visando com isso atenuar a falta de uma sustentação teórica mais adequada O tiro no entanto sairia pela culatra porque desta maneira Geertz demasiadamente atrelado ao campo do significado desprezaria a ação enquanto importante elemento hermenêutico Com isso além de conferir pouca voz ao ator ou nativo o antropólogo norteamericano deixaria ainda de provocar em seu leitor terceiro componente da tríade hermenêutica o outro seria o autor no caso o próprio Geertz a possibilidade de novas interpretações Em outros termos faltaria à teoria geertziana o sentido de uma ação interativa que verdadeiramente permitisse ao leitor a liberdade de um movimento que o conduzisse à perpetuação da infindável tarefa hermenêutica da busca pelo significado Finalmente ainda no campo teórico Azzan Jr 1993 sustenta que ao seguir a tradição inaugurada por Dilthey Geertz aposta na diferença e mútua exclusão entre a explicação e a compreensão Desta forma seu projeto careceria ainda de uma maior maleabilidade como aquela obtida por representantes mais modernos da filosofia hermenêutica como P Ricoeur o qual trataria os conceitos em questão como pólos complementares É precisamente neste terreno das críticas ao projeto geertziano que pode ser compreendida a chamada antropologia pósmoderna próximo objeto do nosso estudo Em uma espécie de relação edipiana seus principais representantes a grande maioria norteamericanos a despeito de terem as suas idéias inspiradas na antropologia interpretativa de Geertz parecem pretender assassinar o pai totêmico demarcando os limites do tipo de análise da cultura proposta por este autor e simultaneamente estabelecendo os rumos de uma nova etnografia de cunho experimental Ouçamos a seguir o que têm a nos dizer estas vozes emergentes qual o tipo de relação que estabelecem entre 70 si mesmas e as modalidades antropológicas das quais tratamos até o momento e principalmente até que ponto são responsáveis pela constituição deste pathos etnográfico que objeto maior do nosso interesse convoca a psicanálise para um encontro possivelmente produtivo Os PósModernos a antropologia por sobre os ombros do antropólogo Como insinua o título deste capítulo o contraponto entre realidade e ficção parece mesmo se constituir na molamestra de boa parte das discussões antropológicas da atualidade onde é bem verdade a modalidade etnográfica desenvolvida por pioneiros como Malinowski volta ao centro das atenções Porém não mais associada ao glamour da construção de heróis da cultura Ao contrário disso a nova postura vem marcada pela iconoclastia de destruir aqueles ídolos do passado que supostamente se sustentariam em pés feitos de barro Dentre eles o próprio Geertz Eis aí portanto plenamente configurado o pathos que associamos à discussão antropológica contemporânea Neste sentido a irrepreensibilidade da conduta etnográfica que caracterizava por exemplo o funcionalismo de Malinowski e sua pretensão cientificizante de uma explicação completa e fidedigna dos diferentes universos culturais cede ao menos em parte lugar a um outro tipo de discurso que consciente das suas limitações ontológicas promove o afastamento de um ideal de correção e integridade visando não exatamente o convencimento do seu público mas conduzilo a uma espécie de experiência de natureza mitopoética onde o explicar é substituído pelo evocar28 As seguintes palavras de Marcus e Fischer 1986 dois dos maiores representantes desta antropologia crítica podem nos oferecer uma idéia mais clara deste processo O atual escopo dos experimentos contemporâneos na escrita etnográfica deriva do impacto que a revisão da antropologia interpretativa vem tendo no processo da pesquisa etnográfica A tensão essencial que preenche este tipo de 28 Há vários trabalhos em língua portuguesa voltados ao pósmodernismo etnográfico cada um deles enfatizando pontos específicos desta nova tendência da discussão antropológica Cf FISCHER 1985 TEDLOCK 1986 PEIRANO 1986 1992 e 1995 TRAJANO FILHO 1988 CARDOSO DE OLIVEIRA 1988a 1988b e 1991 MARCUS 1991 e 1994 MONTERO 1991 e 1993 SILVA 1991 e 2000 DAMATTA 1992 e 1993 CLIFFORD 1998 SAHLINS 2004 Contudo àquele leitor interessado em textos que abordem o tema de uma maneira mais panorâmica boas opções podem ser encontradas na abrangente revisão bibliográfica efetuada por Caldeira 1988 e também no artigo de Canclini 1993 71 experimentação reside no fato de que a experiência tem sido sempre mais complexa do que permite a sua representação pelas tradicionais técnicas de descrição e análise da escrita sóciocientífica A tarefa deste tipo de experimentação é assim a de expandir as fronteiras existentes no gênero etnográfico de maneira a escrever mais completas e mais ricas descrições evocativas de uma outra experiência cultural MARCUS e FISCHER 1986 p 434429 Uma vez minimamente caracterizada a natureza do empreendimento etnográfico pósmodernista resta ainda situar o leitor no terreno das suas principais propostas Para tanto como se pode notar pela citação acima será necessário efetuar um contraponto entre esta nova tendência da antropologia contemporânea e as outras orientações teórico metodológicas que acompanhamos até o momento Neste sentido uma revisão bibliográfica como a de Marcus e Cushman 1982 merece destaque ao evidenciar a particular atenção fornecida pela contemporaneidade antropológica norteamericana à escrita do texto etnográfico e à própria etnografia agora vista como atividade que ultrapassa o trabalho de campo como um produto da pesquisa que não se restringe a uma simples questão de método Em outros termos tratase de uma reação às convenções etnográficas sobre as quais parece haver se estabelecido um certo consenso tácito por aproximadamente 60 anos Trata se ainda de uma experimentação que visa provocar a reestruturação da natureza da etnografia em termos de ambições teóricas e práticas de pesquisa É neste sentido que se pode também associar o pósmodernismo etnográfico a uma preocupação de ordem epistemológica que opera com a consciência da construção textual do outro Como expresso na seguinte citação A maior característica compartilhada pelas etnografias experimentais é que elas integram no interior das suas interpretações uma explícita preocupação epistemológica acerca de como elas construíram tais interpretações e de como as estão representando textualmente enquanto um discurso objetivo acerca dos indivíduos entre os quais a pesquisa foi conduzida a meta de explorar temas epistemológicos enquanto parte integral e vital da análise da cultura distingue estes textos e em decorrência está tornando seus autores bem como seus 29 No texto original The actual scope of contemporary experiments in ethnographic writing follows from the impact that the revision of interpretive anthropology is having on the ethnographic research process The essential tension fueling this kind of experimentation resides in the fact that experience has always been more complex than the representation of it that is permitted by traditional techniques of description and analysis in socialscientific writing The task of this trend of experimentation is thus to expand the existing boundaries of the ethnographic genre in order to write fuller and more richly evoked accounts of other cultural experience trad nossa MRS 72 leitores progressivamente conscientes das suas estruturas narrativas e retórica MARCUS e CUSHMAN 1982 p 252630 Neste contexto a representação das experiências de campo se torna uma técnica vital para a estruturação de narrativas de descrição e análise com trabalhos orientados por uma escrita pessoal com maior presença do autor e em busca de novas metas e convenções retóricas mais plausíveis Por exemplo ao invés dos grandes projetos explicativos que englobavam vários volumes característicos do pioneirismo do realismo etnográfico à la Malinowski as pesquisas contemporâneas pretendem se revelar menos pretensiosas e mais voltadas a problemas específicos acrescentando à atividade do etnógrafo contudo uma gama extra de tarefas descritivas e interpretativas Ao darem prosseguimento à sua análise Marcus e Cushman 1982 enfatizam entretanto o caráter nãohomogêneo dos experimentos contemporâneos o que se reflete em diferentes aproximações dos princípios básicos da etnografia enquanto descrição e interpretação das culturas Em outras palavras vemos que há entre os próprios representantes do pósmodernismo antropológico diferenças de abertura quanto às convenções de gênero até então aceitas como determinantes na escrita sobre o outro Que tipo de convenções são essas Bem para melhor compreendêlas e também o próprio movimento da etnografia pósmoderna Marcus e Cushman 1982 nos propõem um retorno aos clássicos da antropologia período constituído sobretudo a partir da década de 1920 e que em uma referência direta ao tipo de literatura que caracterizou o século XIX nossos autores denominam de realismo etnográfico O que o determina bem como as suas convenções textuais Estes são alguns dos tópicos abordados a seguir quando o artigo dos antropólogos norteamericanos traça um paralelo histórico do desenvolvimento do realismo etnográfico enquanto conjunto de convenções retóricas que marcaram a antropologia de uma época até a contemporaneidade de uma veemente reação a estes mesmos gêneros de escrita 30 Conforme o original The major characteristic shared by experimental ethnographies is that they integrate within their interpretations an explicit epistemological concern for how they have constructed such interpretations and how they are representing them textually as objective discourse about subjects among whom research was conducted the goal of exploring epistemological issues as an integral vital part of cultural analysis distinguishes these texts and in addition is making their authors as well as their readers increasingly conscious of their narrative structures and rhetoric trad nossa MRS 73 Neste sentido ao buscarem no diálogo com a crítica literária uma ampla fonte de inspiração podemos perceber que as ressalvas dos antropólogos pósmodernistas vão de encontro a alguns temas específicos da prática etnográfica como a questão da identidade e da autoridade do etnógrafo Além disso problematizam as garantias de plausibilidade e autenticidade das interpretações feitas acerca de outras culturas e a sua receptividade por diferentes tipos de leitores Finalmente visam ainda o fornecimento de modalidades alternativas para a escrita antropológica de acordo com novas perspectivas acerca da teoria e do trabalho de campo De volta ao texto de Marcus e Cushman 1982 vale a pena chamar atenção para o fato de os autores apontarem como principal característica do chamado realismo etnográfico a pretensão de representar universos culturais específicos em termos globais fornecendo ao leitor uma descrição fechada e completa do cotidiano nativo e das suas relações pessoais e institucionais Para tanto utilizavase como recurso uma divisão da sociedade em setores específicos política religião economia etc e a partir daí propunhase a alusão ao todo por intermédio das partes enfatizandose ainda uma grande quantidade de detalhes e demonstrações redundantes de que o autor realmente esteve lá Ainda segundo Marcus e Cushman 1982 a emergência de tal etnografia de cunho realista enquanto um gênero de escrita plenamente estabelecido teria sido resultante da fusão de dois eventos históricos particulares A saber o estabelecimento da antropologia como disciplina acadêmica e por uma questão de legitimação em termos de objeto e método de trabalho a instituição da pesquisa de campo profissional a qual alcançou o status de prérequisito necessário para a obtenção de dados culturais A partir daí Marcus e Cushman 1982 passam à tarefa de uma identificação detalhada das convenções de gênero que segundo eles caracterizam o tipo de escrita da etnografia realista Dentre os vários tipos listados nove ao todo podemos citar a narrativa global totalitária e generalista a ausência da escrita na primeira pessoa visando a objetividade científica sustentada pela distância entre sujeitos e objetos da pesquisa a substituição do nativo particular de carne e osso por uma criação homogênea e representativa do grupo como unidade mais ampla e a descrição detalhada das situações e experiências de campo uma questão de legitimação da prática etnográfica pela via do estar lá Além destes predicados sugerem os nossos autores havia ainda uma busca 74 autoritária e autoconfiante no sentido de alcançar o ponto de vista dos nativos já que representar uma outra realidade seria também ter acesso à qualidade dos pensamentos dos seus membros o uso de jargões específicos que confeririam a determinado texto o título de etnografia e finalmente uma exegese contextual dos conceitos e discursos nativos evidenciando a competência lingüística do etnógrafo31 Diante disso Marcus e Cushman 1982 utilizando o contraste como recurso didático passam a se ater às características específicas dos novos experimentos etnográficos Neles um aspecto seguramente merece destaque especial a preocupação com o exame explícito dos bias ou preconceitos do antropólogo que refletidos na sua escrita e na sua retórica teriam sido responsáveis pela construção do tipo de autoridade profissional à qual nos referimos nos parágrafos anteriores Desta maneira para os autores em questão o que caracteriza o pósmodernismo etnográfico é fundamentalmente a busca por um outro tipo de autoridade agora construída em um contexto hermenêutico e pautado pela reflexão e pela autoconsciência autorais Aqui a experimentação se evidencia pela maior inclusão do etnógrafo em seu próprio texto inclusão essa que equivale a situar o pesquisador historicamente tanto em relação aos seus leitores e pares acadêmicos quanto no que se refere aos próprios objetos do seu saber os nativos Neste contexto a nova autoridade etnográfica e os novos tipos de organização textual escolhidos não mais visam seduzir ou instruir pela organização e pelo detalhe Ao invés disso utilizandose de uma perspectiva desconstrucionista propõem uma certa 31 Ao leitor interessado nesta discussão acerca da dimensão retórica contida na prática etnográfica duas boas outras fontes de informação podem ser encontradas em Stocking Jr 1992 e Clifford 1988 Segundo este último um contato como o de Malinowski junto aos nativos da Nova Guiné teria revelado ao antropólogo polonês textos culturais de natureza frouxa retalhos do mundo que incongruentes em si mesmos deveriam ser transformados em cenas coerentes e prováveis Assim para unificar seria preciso combinar selecionar e reescrever tais textos caóticos Nesta perspectiva a etnografia de Malinowski seria exemplar enquanto processo de automodelagem ficcional em um sistema relativo de cultura processo este encarnado na monografia dos Argonautas resultando tanto na produção de uma ficção quanto na emergência de uma persona cultural o próprio Malinowski enquanto representante de um novo estilo antropológico Ainda conforme Clifford 1988 importaria chamar atenção ao fato de que tal persona aquela dotada da chamada magia do etnógrafo não seria exatamente construída no campo mas sim posteriormente Em outros termos não representaria mas sim racionalizaria a pesquisa junto ao outro contando para isso talvez mais com a ajuda da escrita do que com a sua experiência etnográfica propriamente dita Portanto já nos termos de Stocking Jr 1992 a validação do estilo de trabalho de campo proposto por Malinowski estaria ligada a uma qualidade literária e figurativa aquela de conseguir transportar o leitor a um lugar mágico e determinado pela fenomenologia da experiência etnográfica ao mesmo tempo repleta de riscos e de promessas utilizando o recurso literário da magia do etnógrafo para suprimir em seu texto lacunas de ordem epistemológica 75 anarquia ou embaralhamento das cartas com textos menos formais ou assépticos que na sua necessária incompletude exigem do leitor um papel ativo na interpretação do outro Assim seguindo Marcus e Cushman 1982 tornase possível pensar atualmente em pelo menos dois estilos de apresentação de dados mais ou menos combináveis entre si ambos vale dizer diretamente relacionados à maneira como o próprio autor se insere no texto etnográfico Falamos do modo textual e do modo dialógico O primeiro típico do realismo etnográfico e partidário de um modelo purista de ciência social seria marcado pela abstração com o etnógrafo interessado em performances nativas mas sem levar em conta contextos performáticos específicos onde ele mesmo estaria presente enquanto participante direto alterando assim em maior ou menor escala a realização do evento original Já o modelo dialógico mais próximo do que Marcus e Cushman 1982 classificam como um tipo de mentalidade associada não exatamente à Ciência mas às humanidades primaria pela maior concretude na ligação entre o texto etnográfico e o dado bruto agora situado e contextualizado na própria interpretação que dele se faz Neste sentido temos aqui a imagem de um antropólogo mais atento ao fato de que o bojo da análise etnográfica residiria em uma negociação de verdades entre o pesquisador e o nativo Exemplo de um trabalho especificamente voltado a esta temática pode ser encontrado no pioneirismo de Crapanzano 1977 o qual toma a etnografia como um confronto gerador de ansiedade uma inevitável perturbação em termos de self entre o etnógrafo e seus informantes permanecendo a escrita etnográfica como uma continuação deste confronto Ou seja em seu retorno para casa seria inevitável ao antropólogo sentir um choque intercultural tão ou mais difícil que o próprio encontro inicial com a alteridade Daí a necessidade de uma reafirmação reconstituição do próprio self tarefa a ser cumprida precisamente pela escrita etnográfica Para Crapanzano 1977 qualquer escrita incluindose aí a etnográfica seria em si um ato de comunicação Portanto um apelo ao reconhecimento por parte do outro o qual inclusive constituiria o sentido do self daquele que escreve confirmando a sua significação dono mundo Em contrapartida também este outro seria constituído através do ato comunicativo Assim no caso específico da escrita 76 a evocação da resposta do outro e portanto a constituição do self e do seu mundo de significado é reificada no seu produto a palavra escrita O self é objetivado na palavra escrita e enquanto o self é objetivado também o é o outro CRAPANZANO 1977 p 7132 De acordo com esta perspectiva propõe Crapanzano 1977 que em se tratando da etnografia o escritor usaria as palavras para falar a si mesmo ainda que pretendendo ser ouvido O ato da escrita etnográfica seria então uma tentativa de constituição do self uma disposição rumo à sua objetivação ainda que sob o peso da alienação Aliás teríamos nesta última na alienação uma característica inevitavelmente associada à escrita que mais do que a criação objetivação ou constituição seria em sua natureza um ato de exorcismo da figura do etnógrafo do confronto estabelecido pelo encontro etnográfico Diante de tal argumento perguntase Crapanzano 1977 quem seria este outro utilizado pelo etnógrafo como uma espécie de espelho ou contraponto para a constituição do seu próprio self de escritor Admitindose como correta a afirmação anterior acerca do caráter multidimensional do outro prossegue Crapanzano 1977 este representaria mais do que o nativo ao qual supostamente se voltaram os esforços do etnógrafo mas também não figuraria entre a platéia leiga ou profissional para a qual se dirigiria o etnógrafo ao retornar ao seio da sua comunidade acadêmica O predicado deste outro seria mais complexo Na verdade bifurcado O outro da etnografia é sugiro eu um outro essencialmente mais complexo um outro bifurcado Ele é de uma só vez o outro significante do próprio mundo cultural do etnógrafo e o outro do confronto etnográfico O escritor de etnografias escreve e cria uma dupla audiência a da sua própria gente e aquela das outras pessoas às quais ele se refere em um ato de suposição ou mesmo presunçosa incorporação como minha gente A escrita da etnografia e isso deve ter um efeito na objetividade senão na validade científica do trabalho é essencialmente uma formação de compromisso CRAPANZANO 1977 p 7233 32 No original the evocation of the response of the other and the constitution thereby of the self and his meaningful world is reified in its product the written word The self is objectivated in the written word and insofar as the self is objectivated the other is also trad nossa MRS 33 No original The other of ethnography is I suggest an essentially more complex other a bifurcate other He is at once the significant other of the ethnographers own cultural world and the other of the ethnographic confrontation The writer of ethnography writes and creates a double audience the audience of his own people and the audience of those other people whom he refers to in an act of presumptive if not patronizing incorporation as my people The writing of ethnography and this must have an effect upon the objectivity if not the scientific validity of the work is essentially a compromise formation trad nossa MRS 77 Com isso em um diálogo com a psicanálise Crapanzano 1977 atinge o que parece se constituir no ponto alto do seu trabalho como vimos esta atribuição da qualidade de formação de compromisso à escrita etnográfica Neste sentido nosso autor propõe que a ambivalência do etnógrafo em relação às suas duas outras audiências a nativa e a dos seus próprios pares acadêmicos bem como em relação a si mesmo enquanto personalidade afetada pelo encontro etnográfico e que agora retorna para casa seria trabalhada precisamente no texto etnográfico em uma espécie de dialética entre a criação e a destruição o encantamento e o exorcismo a qual por seu turno precisaria ser desvelada assim como se faz com as estruturas míticas e oníricas objetos privilegiados pela psicanálise Em última análise sugere Crapanzano 1977 caberia ao etnógrafo reconhecer o seu produto etnográfico a própria monografia pelo que este seria de fato o sintoma de um confronto extremo com a alteridade que somente seria melhor aclarado pela via de uma leitura verdadeiramente corajosa daquilo que ele mesmo o etnógrafo deita sobre o papel Ao dar prosseguimento a esta perspectiva Dwyer 1977 questiona o tipo de objetivação dos outros e de si mesmos criada pelos antropólogos em suas monografias particularmente no que se refere àqueles momentos em que a qualidade da interação social com os nativos poderia ser posta sob suspeita em termos de relações de poder Neste sentido o foco do trabalho deste autor recai sobre o tema da criação antropológica da alteridade partindo em busca de uma nova orientação etnográfica onde não mais se distorcesse a relação entre o self e o outro violentando assim a prática de ambos já que a insistência etnográfica no respeito à particularidade paradoxalmente criaria tanto um outro quanto um self antropológicos congelados e já previamente definidos Na sua crítica ao que qualifica como o típico encontro etnográfico aquele cego à natureza criativa da interação humana ao seu status ontológico de comunicação crescente entre pessoas Dwyer 1977 parte em defesa de uma historicidade e diálogo próprios à pesquisa de campo Ou seja respeitados na sua particularidade temporal e não generalizáveis despersonalizados em absoluto Esta seria a condição básica para uma aproximação com a natureza criativa do encontro intercultural Logo contra os tipos até então criados pela prática antropológica o outro como uma abstração universal ou abstração particular Dwyer 1977 propõe um novo tipo de interação entre antropólogo e nativo a qual denomina de outro como concretude singular 78 Há aqui um apelo à concretude da experiência mútua sem reduzila a um lugar ditado pela atemporalidade ou pela abstração que conforme este autor caracterizaram a antropologia que até então se pretendeu científica Nestes termos não caberia negar a diferença singularidade mas antes afirmála elaborála e articulála na monografia antropológica Conforme Dwyer 1977 a possibilidade de uma reconciliação entre o antropólogo e o nativo seria gerada a partir do encontro etnográfico e não de maneira independente a este Com isso um retardamento da reconciliação com a diferença expressa no outro adquiriria um grande potencial criativo em termos da realização do próprio self do antropólogo e da transcendência do self do outro Para Dwyer 1977 tal articulação da alteridade através de uma experiência criada em conjunto evitaria tanto a justaposição conceitualizada de exemplos ou espécimes de diferentes culturas visão relativista quanto a idéia de um projeto comum entre o eu e o outro que graças a uma imagem de absoluta transparência permitiria ao etnógrafo a ilusão da verdadeira partilha de um universo simbólico diferente do seu A emergência de um modo concreto e singular de alteridade chama atenção às suas próprias origens na relação entre centro e periferia e nos permite conceber um projeto que encorajando a destruição das antinomias da ação antropológica possa informar a ação dentro da esfera efetiva do cotidiano do antropólogo Ele também trabalha no sentido de erodir a barreira que talvez seja a mais básica para a manutenção do centro e da periferia aquela entre o conhecimento e a ação entre a teoria e a prática DWYER 1977 p 15034 Já Tedlock 1986 também ele um outro representante deste dialogismo etnográfico inicia seu trabalho chamando atenção para as variadas vozes que se esconderiam por detrás da etnografia aqui tomada como gênero de ficção Neste sentido sugere o autor caberia ao antropólogo manter o espaço intermediário originalmente criado pelo diálogo etnográfico enquanto atividade voltada a uma compreensão das diferenças entre os mundos de pessoas anteriormente distantes Tal tarefa contudo permaneceria inviável caso a antropologia permanecesse insistindo em simular as ciências naturais utilizando o espaço do gabinete acadêmico aquele para onde se retorna após o trabalho de 34 No original The emergence of a concrete singular mode of otherness calls attention to its own origins in the relationship between center and periphery and allows us to conceive a project which encouraging the destruction of the antinomies of anthropological action can inform action within the effective sphere of the anthropologists daily life It thus works to erode de barrier which is perhaps most basic to the maintenance of center and periphery that between knowledge and action between theory and practice trad nossa MRS 79 campo para uma assepsia do conteúdo experiencial ou fenomenológico decorrente do confronto com a alteridade visando com isso um ideal de objetividade e neutralidade científicas Diante disso Tedlock 1986 atinge o fundamento do seu trabalho o qual reside na contraposição entre dois tipos distintos de antropologia qualificados como analógica e dialógica Nas suas palavras a objetividade que normalmente se atribui às ciências sociais não é nada mais que a subjetividade do observador fazendo suas próprias afirmações além daquelas do sujeito observado Aqui nós deixamos de lado a possibilidade de uma antropologia que permanece fiel à situação dialógica e entramos no domínio do que chamo de antropologia analógica Uma antropologia dialógica seria conversar de um lado para o outro ou alternadamente o que é algo que todos nós fazemos durante o trabalho de campo se não somos apenas cientistas naturais A antropologia analógica por outro lado envolve a substituição de um discurso por outro Afirmase que esse novo discurso por mais à parte que pareça estar é equivalente ou proporcional num sentido quasematemático ao discurso anterior O diálogo é um processo que continua e por si só indica processo e mudança o que se chama de análogo por outro lado é um produto um resultado TEDLOCK 1986 p 185 Como se pode perceber a idéia geral que trespassa a noção de antropologia dialógica de Tedlock 1986 é a de um movimento interpretativo Contudo tratase aqui de uma mobilidade hermenêutica que não necessariamente abdicasse da lógica metódica mas que ao contrário visando maior fidedignidade optasse por incluila entre os temas privilegiados pela sua discussão35 Mas não é certo que o caminho dialógico requer o abandono geral da metodologia existente E não é o caso de o diálogo ser em si um método no sentido de que possa suplantar outros métodos ou métodos anteriores O diálogo não é um método mas uma forma uma forma de discurso dentro da qual podem existir momentos metódicos de qualquer um dos lados e dentro da qual os métodos podem se contar entre os possíveis assuntos em discussão tanto no campo quanto no gabinete dentro do campo dialógico as conversas vão durar ou cair por terra segundo seus próprios méritos como o ponto de encontro entre dois mundos mas não com base na possibilidade de o investigador ter conseguido o que afirma ter procurado e a qualquer preço O perigo se encontra em qualquer dos lados do diálogo e está sempre por perto tanto no gabinete quanto no campo TEDLOCK 1986 p 194195 35 Seguramente podese afirmar aqui uma inspiração gadameriana no texto de Tedlock 1986 Basta lembrarmos do resgate da noção de preconceito proposto pela hermenêutica do filósofo alemão Cf GADAMER 1992 80 É em tal crítica a um tipo de etnografia que supostamente apresenta o nativo como produto final acabado e indubitavelmente representável que podemos compreender a relação edipiana que anteriormente apontamos como característica do vínculo entre os pósmodernos e a antropologia interpretativa de Clifford Geertz36 Neste sentido o texto de Tedlock 1986 se revela tipicamente partidário desta nova tendência ao sugerir que assim como na etnografia clássica ou realista os relatos de campo construídos por Geertz forneceriam muito pouca margem a falas genuinamente nativas as quais nas escassas vezes em que podiam se expressar em sua própria língua o fariam apenas coletivamente ou seja enquanto um todo integrado que serviria como sustentáculo para teorias ou conclusões previamente definidas Pelo menos em teoria Clifford Geertz chega perto de defender uma volta ao diálogo mas quando nos instiga a conversar com eles ele aparentemente se refere a uma conversa puramente metafórica com um eles coletivo e a julgar pela escassez de citações em seu próprio trabalho a prática daquilo que ele denomina descrição densa equivale a uma gag rule ou lei de restrições ao discurso nativo TEDLOCK 1986 p 198199 Nesta nossa breve revisão bibliográfica vale a pena analisarmos ainda a contribuição de Tyler 1986 outro grande representante desta atual antropologia crítica norteamericana Ao privilegiar o discurso e não o texto este autor enfatiza o valor do diálogo ao invés do monólogo sustentando ainda que a situação etnográfica deteria uma natureza eminentemente cooperativa que contrastaria com a ideologia científica da observação transcendente Na verdade ainda segundo Tyler 1986 o pósmodernismo etnográfico rejeitaria mesmo a clássica divisão entre observadores e observados sujeitos e 36 Um outro trabalho que segue esta mesma linha em termos de ressalvas ao projeto etnográfico de Geertz é o de Crapanzano 1992 também este último um dos principais nomes da antropologia dialógica contemporânea O texto em questão compara o ofício do antropólogo à figura mítica de Hermes um mensageiro que para traduzir o texto de uma cultura alheia precisaria primeiro produzilo Ou seja ele o interpretaria Em seguida para cumprir a sua função necessitaria também de recursos retóricos para se fazer ouvido Com isso Crapanzano 1992 enfatiza sempre a validade da proposição de que qualquer transação social envolveria necessariamente uma negociação de sentido Isto é uma tentativa de determinar pragmaticamente os termos pelos quais tal transação poderia ou deveria ser entendida Apostando portanto na afirmação de que o discurso racional não está separado de conteúdos valorativos este autor enfatiza as várias estratégias retóricas do texto etnográfico geertziano mascaradas pela ênfase convencional na sua dimensão puramente semântica Desta maneira a linguagem é percebida não só como instrumento mas como articuladora de desejos com o poder institucional intervindo indiretamente sobre os limites interpretativos da escrita ou na forma como esta pode ser lida Assim também é questionado o fosso que separa a observação etnográfica das conclusões efetivamente publicadas e problematizado o papel da subjetividade do antropólogo neste processo 81 objetos do conhecimento em prol do ideal de uma produção dialógica do discurso enquanto história cooperativa ou texto polifônico Desta maneira o próprio sentido de uma forma ou função simbólica precisa e fixada no texto etnográfico perderia a sua importância primordial Esta a forma acabaria por emergir do trabalho em conjunto do etnógrafo com os seus parceiros nativos e o texto etnográfico perderia o seu caráter objetal assumindo assim a qualidade de meio ou veículo mediador para uma transcendência do discurso em termos de espaço e tempo A ênfase é no caráter emergente da textualização enquanto apenas o movimento interpretativo inicial que provê um texto negociado do leitor ao intérprete O processo hermenêutico não permanece restrito à relação do leitor com o texto mas inclui também as práticas interpretativas dos participantes do diálogo original TYLER 1986 p 12737 Na perspectiva de Tyler 1986 o atual significado do texto etnográfico não estaria contido em si mesmo ou seja na representação mas sim na compreensão da qual inclusive aquele nada mais seria que um fragmento Neste contexto a evocação aparece como uma palavrachave já que este termo não precisaria representar o que evoca mas servir como meio para uma outra representação O evocar de Tyler 1986 serve portanto não como uma presença que invocaria algo ausente no texto mas como um vira ser daquilo que não estaria nem presente e nem ausente Em outros termos tratase aqui do caráter único unicidade da evocação que deveria ser compreendida em si mesma e não como ligação entre diferenças de espaço e tempo o evocado e o que evoca Com o evocar aposta Tyler 1986 a etnografia se libertaria da mimesis e do modo inapropriado utilizado pela retórica científica a qual trabalha com os conceitos de sujeito objeto e verdade Conforme nosso autor tais conceitos não teriam validade ou equivalência no campo etnográfico ou na sua escrita pois aqui não haveria coisas estáticas ou congeladas a serem representadas mas sim um discurso que não seria nem um objeto representável e nem tampouco a representação de um objeto Assim continua Tyler 1986 toda ideologia da significação representativa equivaleria também a uma ideologia de poder Quebrar o seu encanto exigiria um ataque à 37 No original The emphasis is on the emergent character of textualization textualization being just the initial interpretive move that provides a negotiated text for the reader to interpret The hermeneutic process is not restricted to the readers relationship to the text but includes as well the interpretive practices of the parties to the originating dialogue trad nossa MRS 82 escrita enquanto representação totalitária mas também ao tipo de autoridade até então atribuída à figura do autor38 Tyler 1986 vê na chamada etnografia pósmoderna a possibilidade da desconstrução de tais pressupostos textuais e autorais Assim desconfiando de grandes sistemas explicativos como o funcionalismo e o estruturalismo o tipo de escrita característico da contemporaneidade etnográfica não apresenta um caráter organizado mas ao contrário um gênero necessariamente fragmentado a exemplo da própria vida que tenta descrever Nós confirmamos em nossas etnografias a nossa consciência da natureza fragmentária do mundo pósmoderno uma vez que nada define melhor o nosso mundo do que a ausência de uma alegoria sintetizante Nós sabemos que estes transcendentes textuais estas invocações de holismo de sistemas funcionalmente integrados são tropos literários veículos que conduzem a imaginação da parte ao todo do concreto ao abstrato e conhecêlos pelo que eles são sejam mecânicos ou organicistas faznos suspeitar da ordem racional que eles prometem TYLER 1986 p 13239 Ao dar prosseguimento à sua leitura desconstrutiva da etnografia enquanto escrita científicorepresentativa Tyler 1986 decreta ainda a caducidade da busca por um momento holista ou nas suas palavras trânsitotranscendental o qual seria determinado pelo texto ou por um suposto direito exclusivo do seu autor Em outros termos no que se refere à etnografia desconfiase aqui de verdades culturais secretamente escondidas no texto em si ou entre textos na mente do autor ou mesmo na interpretação do leitor apostandose em um conhecimento derivado do diálogo em um tipo de mente emergente e com infinitos locus possíveis que inclusive deteria a capacidade paradoxal de evocar a transcendência sem a síntese sem criar dentro de si mesma recursos formais e estratégias conceituais de ordem transcendente TYLER 1986 p 13240 38 Neste ponto referências explícitas são feitas por Tyler 1986 à ideologia fragmentária de Theodor Adorno e Walter Benjamin bem como à proposta desconstrutiva que caracteriza o projeto filosófico de Derrida 39 No original We confirm in our ethnographies our consciousness of the fragmentary nature of the post modern world for nothing so well defines our world as the absence of a synthesizing allegory We know that these textual transcendentals these invocations of holism of functionally integrated systems are literary tropes the vehicles that carry imagination from the part to the whole the concrete to the abstract and knowing them for what they are whether mechanismic or organismic makes us suspect the rational order they promise trad nossa MRS 40 No original paradoxical capacity to evoke transcendence without syntesis without creating within itself formal devices and conceptual strategies of transcendental order trad nossa MRS 83 É desta maneira que Tyler 1986 propõe uma outra espécie de holismo aquele que ao invés de ser simplesmente fornecido como dado traria em si mesmo uma qualidade emergente a partir da reflexividade contida na relação textoautorleitor sem privilegiar nenhuma destas três instâncias como local exclusivo do significado E mais seguindo esta linha de raciocínio nosso autor aposta ainda que este todo emergente não seria caracterizável enquanto objeto permanecendo portanto inacessível às características do método simbólicosintético eis o porquê da etnografia pósmoderna ser um documento oculto é uma enigmática paradoxal e esotérica conjunção de realidade e fantasia que evoca a simultaneidade construída que nós conhecemos como realismo ingênuo Ela conjuga realidade e fantasia uma vez que fala do oculto na linguagem do realismo ingênuo e do cotidiano na linguagem oculta fazendo assim da razão de uma a razoabilidade da outra A etnografia pósmoderna é um objeto de meditação que provoca a ruptura com o mundo do senso comum e evoca uma integração estética cujo efeito terapêutico é trabalhado na restauração deste mesmo mundo do senso comum Diferentemente da ciência ela não é um instrumento de imortalidade pois ela não sustenta a falsa esperança de uma transcendência permanente utópica a qual só pode ser adquirida pela desvalorização e falsificação do mundo do senso comum criando em nós desta forma um sentido de permanente alienação da vida cotidiana Ao invés disso ela adota como ponto de partida o mundo do senso comum somente como uma forma de o confirmar e nos retornar a ele renovados e conscientes da nossa renovação TYLER 1986 p 13441 De volta ao trabalho de Marcus e Cushman 1982 vemos que além deste questionamento da autoridade do antropólogo ou mais precisamente associado a ele também faz parte do rol de preocupações pósmodernas a questão da autenticidadeplausibilidade etnográficas Com efeito ao mesmo tempo em que assumem as dificuldades impostas pela tarefa da tradução de culturais alheias os representantes da antropologia crítica contemporânea conferem ao tema da retórica uma dimensão bastante privilegiada discutindo o etnocentrismo presente na linguagem com a qual se representa o 41 No original that is why the postmodern ethnography is an occult document it is an enigmatic paradoxical and esoteric conjunction of reality and fantasy that evokes the constructed simultaneity we know as naïve realism It conjoins reality and fantasy for it speaks of the occult in the language of naïve realism and of the everyday in occult language and makes the reason of the one the reasonableness of the other Postmodern ethnography is an object of meditation that provokes a rupture with the commonsense world and evokes an aesthetic integration whose therapeutic effect is worked out in the restoration of the commonsense world Unlike science it is not an instrument of immortality for it does not hold out the false hope of a permanent utopian transcendence which can only be achieved by devaluing and falsifying the commonsense world and thereby creating in us a sense of permanent alienation from everyday life Instead it departs from the commonsense world only in order to reconfirm it and to return us to it renewed and mindful of our renewal trad nossa MRS 84 outro Afinal pensam eles não é porque uma certa dimensão comparativa se apresenta como parte constituinte da própria escrita etnográfica que esta não poderia ser problematizada em si mesma Conforme o trecho a seguir O contraste comparativo nas etnografias adotou novos contornos e vem sendo visto como a encarnação do problema da tradução cultural Este é o dilema de expressar as diferenças culturais pelo uso de uma linguagem e de conceitos sutilmente enviesados os quais os antropólogos tomaram emprestados do uso cotidiano em sua própria cultura ou de disciplinas especializadas como a economia e o direito voltadas ao estudo de instituições ocidentais MARCUS e CUSHMAN 1982 p 495042 Assim a comparação intercultural pela via de uma linguagem mais direta nós versus eles característica da etnografia realista assume na pósmodernidade etnográfica o papel de um importante tópico para reflexão Com isso partese em busca de um novo e menos ambicioso plano representativo da alteridade agora pautado pela individualidade da análise caso a caso o eu e eles onde o leitor seguiria mais de perto o sinuoso percurso do antropólogo em sua partilha de significados culturais pela via do confronto com a diferença Entretanto ao enfatizarem o valor conferido à retórica na contemporaneidade da discussão antropológica Marcus e Cushman 1982 destacam também que o estilo da escrita por si só a despeito de alcançar uma dimensão relativamente autônoma em termos da avaliação crítica da etnografia não ocuparia o lugar nem da lógica e nem tampouco da evidência argumentativa atuando de maneira complementar Ainda segundo nossos autores a atenção pósmoderna ao problema retórico também não teria como finalidade última a construção de modelos de como ler ou escrever monografias já que estes acabariam por reificar o caráter eminentemente criativo da prática etnográfica Nestes termos a efetividade da análise retórica residiria menos em um método congelado do que na proposta de renovados tópicos para discussão destacando sempre a importância fundamental da escrita na construção da autoria e da autoridade de um texto como o etnográfico Como vimos tal aspecto fora até então deixado mais de lado pelas 42 No original Comparative contrast in ethnographies has taken an additional turn and has come to be seen as the embodiment of the key problem of cultural translation This is the conundrum of expressing cultural differences through the use of subtly biased language and concepts which anthropologists borrowed either from everyday usage in their own culture or else from specialized disciplines such as economics and law oriented toward the study of Western institutions trad nossa MRS 85 etnografias de cunho realista as quais tradicionalmente destacavam o valor comprobatório da experiência de campo do estar lá como atributo de legitimidade tanto da pesquisa quanto da escrita antropológicas Agora porém dado o questionamento das convenções realistas a ênfase recai não somente no trabalho de campo em si mas também na sua teorização e representação intelectual Desta forma podese dizer que através do refinamento teórico das diferentes possibilidades de textualização da experiência etnográfica a crítica antropológica contemporânea busca aproximar a prática a teoria e a escrita É neste sentido que coloca em xeque a mera busca frenética por dados empíricos aqui percebida como justificativa para as pretensões explicativas de grandes sistemas comparativos que a precederam como o funcionalismo malinowskiano ou mesmo a própria antropologia interpretativa de Geertz Eis aí portanto uma revisão sem precedentes que perturba o consenso rumo ao maior desenvolvimento não só da análise do conteúdo mas também da forma como se representa o outro A virtude da tendência da experimentação etnográfica é que ela está encorajando se não forçando esta conscientização crítica por parte dos leitores da etnografia não pela imposição de métodos críticos mas através de uma verdadeira ruptura com as convenções que há muito vinham constituindo o senso comum e profissional de leitores e escritores de etnografia MARCUS e CUSHMAN 1982 p 6643 Com isso tendo em mente este panorama geral do pósmodernismo etnográfico norteamericano sigamos agora os exemplos anteriormente válidos para os comentários que fizemos acerca do pensamento de Malinowski e Clifford Geertz e passemos à análise específica de um dos textos mais representativos desta reconfiguração do pensamento antropológico contemporâneo Tratase do trabalho Clifford 1998 43 No original The virtue of the trend of ethnographic experimentation is that it is encouraging if not forcing this critical awareness on the part of readers of ethnography not by the imposition of methods of criticism but by a de facto disruption of the conventions which have long been the professional common sense of readers and writers of ethnography trad nossa MRS 86 James Clifford a identidade e a autoridade etnográficas em xeque O estudo de Clifford 1998 tem como objetivo traçar a formação e a desintegração da autoridade etnográfica na antropologia social do séc XX Para este autor com a constituição de um mundo globalizado como o atual não cabe mais somente ao europeu o direito à interpretação Há diversidade de idiomas e como conseqüência deve haver também uma etnografia generalizada pautada pela heteroglossia É com base em tal perspectiva que Clifford 1998 problematiza a real possibilidade de uma representação fidedigna do outro Neste sentido perguntanos como evitar a parcialidade e o etnocentrismo já que as imagens que construímos de culturas diferentes das nossas não são neutras mas construídas em meio a relações históricas Como um encontro intercultural sobredeterminado e atravessado por relações pessoais e de poder pode ser circunscrito a uma só versão adequada do mundo alheio versão essa composta por um único autor individual Enfim como padronizar uma experiência tão particular e de que visão falamos A partir destes questionamentos Clifford 1998 ressalta o valor do trabalho de campo como método útil para uma análisereflexão de natureza prática sobre a representação cultural Isso porque o exercício da observação participante obrigaria seus praticantes a experimentar as vicissitudes físicas e intelectuais da tradução Com efeito a etnografia alcançaria um status exemplar uma vez que nela a produção de conhecimento estaria associada a um intenso envolvimento subjetivo Após estas considerações iniciais Clifford 1998 passa a um traçado histórico do desenvolvimento da ciência etnográfica no século XX com a emergência do trabalho antropológico de campo institucionalizado e padronizado leiase realizado por especialistas treinados Neste sentido nosso autor descreve a criação do status mais competente e diferenciado do etnógrafo como autoridade da representação intercultural tarefa para a qual a experiência pessoal de Malinowski contribuiu sobremaneira44 Em conseqüência disso acrescenta Clifford 1998 teria emergido daí uma fusão entre teoria 44 Como vimos na parte inicial deste capítulo adquire fundamental importância neste contexto a iniciativa da observação participante com a convivência prolongada do antropólogo junto aos povos que estuda dominando a sua língua e sendo por eles iniciado em um outro universo cultural Assim nos termos de Clifford 1998 além de uma narrativa sobre aspectos particulares da vida trobriandesa os Argonautas do Pacífico Ocidental ganha ares de arquétipo do novo status científico da etnografia 87 geral e pesquisa empírica etnologia e etnografia tendo o agora teóricopesquisador de campo substituído a antiga divisão entre o informanteviajante em contato com o exótico e o sociólogo ou antropólogo de gabinete Nesta perspectiva prossegue Clifford 1998 a década de 1920 trouxe consigo um novo e poderoso gênero científicoliterário a etnografia agora um estilo de representação que baseado na observação participante contornaria os obstáculos ao rápido conhecimento e apreensão de culturas estranhas Com isso nosso autor propõe uma lista de inovações institucionais e metodológicas que segundo ele garantiram esta há pouco mencionada cientificidade da etnografia 1 em primeiro lugar houve necessariamente a legitimação da própria persona do pesquisador de campo que agora suficientemente treinado poderia ter um acesso de natureza mais profunda e imparcial ao cerne das culturas alheias questão de rapidez e totalidade 2 com efeito o etnógrafo do novo estilo estava agora autorizado a utilizar as línguas nativas ainda que sem dominálas adequadamente uma justificativa para a legitimidade de estudos que detinham como prérequisito o aprendizado da língua mas que teriam sido realizados com pouco tempo de convívio 3 nesta etnografia marcada por uma acentuada ênfase no poder de observação primazia do visual a cultura passou a ser pensada como conjunto de cerimônias e gestos característicos algo passível de observação e registro ao observador treinado 4 associada a este aspecto havia a crença em poderosos esquemas e abstrações teóricas que possibilitariam alcançar mais rapidamente a estrutura ou esqueleto da vida nativa 5 e mais ainda que a cultura como um todo estivesse além do alcance de uma pesquisa de curta duração o novo etnógrafo poderia focalizar algumas instituições específicas Assim pela via da sinédoque análise das partes específicas de um conjunto fatalmente chegaria a uma ampla compreensão da cultura alheia 88 6 por fim na sua busca pelo traçado de um presente etnográfico a nova etnografia operava de maneira sincrônica Ou seja abdicando da utilização de uma pesquisa histórica extensiva e diacrônica Segundo Clifford 1998 para além de tais inovações uma análise eficiente deste contexto da formação da autoridade etnográfica na década de 1920 deveria levar em conta ainda o estabelecimento da junção estratégica e legitimadora entre a análise abstrata e a experiência concreta do observador que esteve lá A observação participante apareceria assim como uma espécie de fusão entre a objetividade científica e a subjetividade do pesquisador teoria prévia mais experiência própria autorizando portanto as afirmações do etnógrafo este novo herói da cultura Entretanto novamente conforme Clifford 1998 significativas mudanças ocorreram no rumo das discussões antropológicas ao longo destes aproximadamente setenta anos que nos separam da era de pioneiros como Malinowski Destarte nosso autor aposta que na contemporaneidade a autoridade do etnógrafo mais e mais se constituiria sobre outras bases com a ênfase no conteúdo interpretativo da antropologia equilibrando um jogo de forças que até então pendera bem mais para o lado da experiência empírica Assim é que nas próximas páginas o texto de Clifford 1998 explorará as atuais formas de interrelação entre experiência e interpretação nos terrenos da pesquisa de campo e da escrita etnográfica De maneira a viabilizar esta tarefa retoma sinteticamente algumas das idéias desenvolvidas até aqui acerca do processo de legitimação do trabalho antropológico de campo inicialmente centrado na experiência do scholar treinado que observava e participava Afinal para Clifford 1998 foram construídas a partir daí tanto a imagem quanto a narrativa da entrada e da iniciação de um estranho nas desconhecidas e potencialmente perigosas florestas de símbolos de outros povos um tipo de odisséia que prosseguia com o estabelecimento de relações com a alteridade e que finalmente possibilitava a emergência de um texto representacional sobre este outro Então ainda nos termos de Clifford 1998 o pressuposto a ser questionado passa a ser aquele segundo o qual em etnografia anterior a qualquer teoria ou método haveria sempre o incontestável argumento do eu estava lá com a experiência do antropólogo funcionando como plena justificativa para a sua autoridade de pesquisador Todavia 89 perguntase o nosso autor até onde a experiência não seria já em si mesma uma interpretação É com base neste argumento que o texto de Clifford 1998 resgatará as idéias da teoria hermenêutica de Dilthey 1976 para em seguida qualificar a etnografia como a construção de um mundo comum de significados a partir de intuições e inferências sentimentos e percepções fazendo ainda uso de traços e pistas de sentido antes de desenvolver interpretações estáveis Com isso pensa Clifford 1998 tornarseia fácil perceber a vulnerabilidade da observação participante em seu caráter vago e excessivamente confiante por exemplo nos miraculosos poderes da empatia do antropólogo em relação aos grupos que estuda Eis portanto sustenta Clifford 1998 o segundo momento desta dialética antropológica a vez da interpretação a qual inclusive teria surgido precisamente como alternativa à afirmação hoje ingênua de uma autoridade etnográfica absolutamente baseada na experiência Porém o que significa exatamente tomar a cultura como uma série de textos a serem interpretados Para responder esta indagação o autor norteamericano se utiliza do referencial da filosofia de Ricoeur 1971 onde a textualização é entendida como processo onde o comportamento não escrito vem a ser demarcado enquanto um corpus Ou seja um conjunto potencialmente significativo separado de uma situação discursiva ou performativa imediata CLIFFORD 1998 p 39 Assim na experiência etnográfica de Clifford 1998 textualizar é separar um conjunto uma teia de significados das suas expressões nos comportamentos cotidianos Portanto um processo que vai do latente ao corpus e do corpus ao contexto interpretativo onde este mesmo corpus pode posteriormente retornar e vir a ser particularizado Em última análise tratase do isolamento de padrões posteriormente contextualizados em instituições ou comportamentos De tudo isso propõe Clifford 1998 o importante é percebermos que na atualidade antropológica há uma transferência de autoridade da experiência rumo à interpretação Para entendermos esta mudança prossegue Clifford 1998 há que compreendermos também que para ser interpretado enquanto texto um discurso como o da cultura de natureza eminentemente contextual deve necessariamente ser transformado em algo autônomo Com isso certos rituais ou eventos por exemplo quando textualizados 90 e apartados tanto de uma locução particular quanto de uma intenção autoral passam a não mais guardar ligação alguma com a sua produção por pessoas específicas tornandose meras evidências de uma realidade cultural maior A relevância disso para a etnografia é óbvia já que Em última análise o etnógrafo sempre vai embora levando com ele textos para posterior interpretação Se muito da escrita etnográfica é produzido no campo a real elaboração de uma etnografia é feita em outro lugar A realidade das situações discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada Os aspectos dialógicos situacionais da interpretação etnográfica tendem a ser banidos do texto representativo final CLIFFORD 1998 p 4042 Neste ponto a crítica de Clifford 1998 vai mais além ao sustentar que mesmo tendo trazido grandes inovações particularmente em termos de uma contribuição para o caráter autoreflexivo da discussão antropológica contemporânea também a antropologia interpretativa divulgada por Geertz 1989 não estaria de todo livre de um certo colonialismo uma vez que também ela separaria o processo da pesquisa dos textos que produz Trocando em miúdos nem a experiência e nem tampouco a interpretação poderiam ser consideradas digamos assim autoritariamente inocentes Para tentar sanar este problema sugere Clifford 1998 podese propor uma negociação construtiva em etnografia que envolvendo mais de um sujeito consciente e politicamente significativo transforme paradigmas de experiência e interpretação em paradigmas discursivos com diálogo e polifonia Afinal da maneira como é pensado aqui o trabalho de campo é composto por eventos de linguagem mas a linguagem repousa entre o eu e o outro impedindo assim que as palavras da escrita etnográfica possam ser tomadas como a legítima declaração ou interpretação acerca de outras culturas Em outros termos pensa Clifford 1998 hoje não haveria mais vez para a pretensa neutralidade do observadorparticipante Neste sentido ao se pautar no dialogismo o novo modus operandi etnográfico negocia uma visão compartilhada da realidade modificando a antes intocável autoridade do etnógrafo como narrador e intérprete Com isso rejeita ainda qualquer separação nítida entre um eu que interpreta e um outro textualizado CLIFFORD 1998 p 45 Assim ao dar continuidade à sua discussão Clifford 1998 persiste no alerta aos antropólogos quanto aos perigos da tendência tipificadora de se transformar o outro falante 91 em um representante da sua cultura Deverseia então resistir ao impulso de representar a alteridade de forma autolegitimadora tendose a habilidade de manter sempre a estranheza da sua voz Porém levandose em conta esta crescente importância conferida à voz nativa poderia mesmo vir a acontecer da balança acabar pesando mais para o outro lado Ou seja desta mesma voz nativa acabar por direcionar ou circunscrever em demasia o trabalho etnográfico Assim sendo perguntase hoje quem é na verdade o autor da pesquisa de campo De quem é a autoridade De quem é a autoria do texto etnográfico Como a presença autoral do nativo pode se manifestar no texto de gabinete Se levarmos em conta tais questões diznos Clifford 1998 a etnografia debater seia entre duas alternativas claras A primeira delas seria retratar o que os nativos pensam à maneira do flaubertiano estilo indireto livre um estilo que suprime a citação direta em favor de um discurso controlador CLIFFORD 1998 p 50 Ou será que o retrato de outros modos de subjetividade requereria uma segunda versão menos homogênea Novamente para o nosso autor ainda que fosse inevitável ao etnógrafo fazer um certo uso do estilo indireto não caberia a este atribuir estados subjetivos aos povos dos quais se ocupa misturando a sua voz a de outras culturas Da mesma forma não seria cabível fornecer a palavra somente a certos informantes privilegiados Vemos portanto que as dificuldades da antropologia contemporânea ultrapassam o tema da compreensão da cultura nativa para alcançar também a encenação do discurso dos seus membros Desta maneira ao caminhar para o seu final o trabalho de Clifford 1998 sustenta que se etnografar é inventar culturas esta atividade escapa ao controle de um único indivíduo sendo então necessariamente regida pela polifonia Com isso embora reconheça o caráter utópico de tal posição nosso autor propõe uma partilha da responsabilidade etnográfica mediante a estratégia textual alternativa da atribuição também ao nativo de direitos autorais sobre a escrita da sua cultura Tal ruptura pressupõe ainda um redirecionamento da etnografia agora voltada para vários leitores inclusive o autóctone Neste caso o poder interpretativo passaria do autor ao leitor que também deteria um enorme poder sobre o texto já que o reinterpretaria de maneira pessoal fornecendo inclusive a sua própria coerência Dado o caráter ostensivamente polêmico que notabiliza a empreitada do pós modernismo etnográfico já era de se esperar a torrente de ressalvas que nos últimos anos 92 recai sobre si advinda de tradições antropológicas tão distintas quanto a norteamericana a francesa e a brasileira45 Neste sentido o foco de um autor como Rabinow 1985 reside no que qualifica como o exagero de se tomar a produção textual como a metáforaguia do encontro etnográfico Assim pensa ele devemos desconfiar de tais textos polifônicos pois a inserção do discurso nativo pode já em si mesma funcionar como uma falsa autenticação realista ou interpretativa inclusive porque no fim das contas geralmente cabe ao próprio etnógrafo a seleção prévia das falas daqueles com os quais dialoga46 Então prossegue Rabinow 1985 para além do nível textual formal cabe ainda ao antropólogo indagar a si mesmo acerca das variáveis políticas e sócioestruturais que influenciam no produto final da etnografia Isso porque também esta última se insere em um contexto maior em termos de práticas sóciohistóricas institucionalizadas incluindose aí as relações de poder inter e intradepartamentais nas universidades47 Com isso Rabinow 1985 chama a nossa atenção para níveis mais amplos de interseção entre discurso e poder em termos micro e marco relacionais No caso dos primeiros além das relações etnógrafonativo proporcionadas pelo trabalho de campo objetos como vimos de grande parte dos trabalhos pósmodernos haveria ainda as 45 Aliás como veremos mais adiante é exatamente no terreno da antropologia tupiniquim que encontraremos uma boa sugestão para levandose em conta o pathos que associamos a esta disciplina estabelecer uma ponte oxalá firme com a psicanálise 46 Outras observações consistentes quanto aos exageros do pósmodernismo etnográfico podem ser encontradas no artigo de Peirano 1986 que a partir da leitura do livro de Crapanzano 1985 postula que diante da atual busca por uma total ausência do autor na etnografia faltaria reconstituir a totalidade desta conversa já que agora nela somente se faria presente um representante o nativo Neste sentido ainda segundo Peirano 1986 em nome da reflexão dialógica Crapanzano 1985 abriu mão da interlocução e do contexto paralisando a si mesmo enquanto pesquisador ator etnográfico e mais grave ainda enquanto sujeito teórico Ao se posicionar desta maneira prossegue Peirano 1986 Crapanzano 1985 não estaria levando em conta que já a ausência teórica em si mesma também atuaria como uma posição teórica Nestes termos a perspectiva moral tem necessariamente de contribuir para uma discussão no terreno antropológico De outra forma perde a sua validade 47 Corroboram com tal perspectiva trabalhos como os de Caldeira 1988 Montero 1991 DaMatta 1992 e Peirano 1992 Em se tratando de textos produzidos no Brasil e assim cercados pelas particularidades tanto do nosso sistema universitário mais amplo quanto do tipo de antropologia produzida aqui nos trópicos estes esforços acrescentam a toda esta discussão um outro dado seguramente importante a imperiosa necessidade de se contextualizar diferentes antropologias incluindose aí as periféricas sob o risco de uma importação de teorias balizada pela absoluta ausência de critérios Nas palavras de Trajano Filho Repito Writing Culture faz mais sentido nos Estados Unidos na realidade ele é um produto da academia americana em crise causada por problemas na produção da demanda Embora pareça apontar para questões gerais da Antropologia e de certo modo assim o faz devo lembrar que o mais saliente e o mais real ista é afirmar a existência de antropologias E aquelas feitas no Brasil Índia Nigéria Méxiconão são exatamente idênticas e não dividem as mesmas questões daquela feita na América do Norte Temos sempre que perguntar até onde chegou o pósmoderno 1988 p 150 93 relações internas à antropologia enquanto disciplina as quais por sua vez compreenderiam os próprios membros acadêmicos da comunidade interpretativa Ao destacar estas últimas Rabinow 1985 ressalta ainda o fato de que na sua trajetória ascendente o atual pósmodernismo antropológico teria se beneficiado de movimentos outros não necessariamente ligados ao texto etnográfico como por exemplo uma fragmentação ocorrida na antropologia desde a década de 70 aliada à transposição de fronteiras intelectuais até então bem demarcadas dentro do sistema universitário norteamericano Já em termos de macroanálises que dessem conta da imbricação entre o discurso etnográfico e os momentos históricos que o condicionam Rabinow 1985 sustenta que hoje teríamos melhores condições de avaliar o contexto do surgimento da antropologia e de outras ciências descritivas do outro aproximando as condições locais das mundiais Neste sentido nosso autor qualifica como verdade apenas parcial a associação comumente feita entre a proposta de uma nova escrita etnográfica e o contexto da descolonização Para Rabinow 1985 além de tal aspecto deveríamos levar em conta as transformações ocorridas na própria academia como um todo particularmente nos EUA ao longo das décadas de 70 e 80 Com isso perguntase o mesmo Rabinow 1985 por que não explorar mais profundamente a política que se encontra por detrás da própria comunidade interpretativa em antropologia quebrando a cumplicidade de um silêncio que até hoje se manteria sobre este assunto Dito de outra maneira caberia observarmos com mais atenção os modismos acadêmicos inclusive aquele proporcionado pela própria desconstrução tão em voga na atualidade antropológica já que todo este apelo textual estaria situado de acordo com condições materiais fornecidas por trocas e micropolíticas universitárias Enfim na sua crítica a leituras que privilegiam sobremaneira a dimensão retórico textual da escrita etnográfica fazse presente o interesse genealógico de Rabinow 1985 pelo lugar ocupado por políticas como a acadêmica na descrição social do outro Daí a proposta de um questionamento mais amplo da escrita em termos sóciohistóricos concretamente definidos Portanto uma espécie de apelo pela volta da linguagem ao mundo Minha aposta é que olhar para as condições sob as quais as pessoas são contratadas tornadas catedráticas publicadas creditadas e festejadas dentro da 94 academia americana compensaria nossos esforços Não há dúvida de que um dos maiores desenvolvimentos na academia americana nos últimos dez anos é a explosão da análise textual agrupada de maneira geral sob o rótulo da desconstrução Como as carreiras são construídas na atualidade Como as carreiras são destruídas na atualidade Quais são as fronteiras entre o bom e o mau gosto Vamos transformar esta conversa de corredor em discurso Tais questões são definidas como pequenas e sem importância mas essas são as dimensões das relações de poder às quais Nietzsche corretamente nos exortou a estarmos escrupulosamente atentos Isso promove um número de questões genealógicas acerca do lugar das formas de descrição social e das estratégias políticas Isso coloca espero eu um meio para questionarmos o lugar da escrita em termos históricosociais concretos RABINOW 1985 p 111248 Ainda privilegiando uma dimensão política desta feita mais abrangente por enquadrar em seu foco a própria história recente da sociedade norteamericana a crítica ao pósmodernismo etnográfico efetuada por Augé 1997 seguramente faz jus a uma tradição que pelo menos desde Voltaire garante um caráter verdadeiramente cítrico à verve francesa Assim para aquele autor tal movimento não é nem majoritário e nem tampouco intelectualmente importante aparecendo mais como uma espécie de novo filão acadêmico e mercadológico a ser explorado por sob influência das teorias desconstrutivistas deter como uma das suas características fundamentais a preconização do fim da capacidade explicativa de grandes teorias sociais como por exemplo o marxismo ou o estruturalismo Segundo o mesmo Augé 1997 o problema é que tal modalidade de argumentação pósmoderna corre o sério risco de relativizar a si mesma ao sabor das vagas da atualidade Conforme os trechos a seguir Realmente ora a mudança do paradigma antropológico é atribuída a considerações globais e ao ar do tempo ora ela é atribuída a modificações no objeto específico da antropologia a saber um ethnographic other definido de forma inicialmente tão vaga que se pode desejar sem medo boa e longa estada àqueles que não acabaram de descobrir sua diversidade e de notar que ele muda com o resto Esta última atribuição repousa de fato numa definição muito tradicional do outro etnográfico o conjunto daqueles que os etnógrafos estudam 48 No original My wager is that looking at the conditions under which people are hired tenured published granted and fêted within the American academy would repay our efforts There is no doubt that one of the major developments in the American Academy in the last ten years is the explosion of textual analysis loosely grouped under the banner of deconstruction How are careers made now How are careers destroyed now What are the boundaries of good and bad taste Lets turn this corridor talk into discourse These questions are defined as small and petty but those are the dimensions of power relations to which Nietzsche rightly exhorted us to be scrupulously attentive This raises a number of genealogical questions about the place of forms of social description and political strategies This poses I hope a means for questioning the place of writing in concrete historical and social terms trad nossa MRS 95 tradicionalmente e numa definição ainda por cima conservadora porque exclui precisamente o fato de eles poderem estudar outros AUGÉ 1997 p 57 Então ao prosseguir em seus argumentos Augé 1997 pergunta o que se faz necessário estudar deste outro tão clássico a ponto de nos permitirmos o questionamento da prática da pesquisa de campo antropológica mas simultaneamente ainda o mantermos o outro o selvagem o exótico na condição de ser etnografável A resposta mais freqüente parecer ser a sua cultura Entretanto sugere o nosso autor grandes expoentes do pósmodernismo etnográfico americano como James Clifford hesitam em problematizar a fundo esta complicada noção e mesmo a própria análise cultural em si mesma enquanto prática recorrente Disso resulta que O fim da grande partilha hoje pareceria assim ligado ao fato de que os etnologizados aprenderam a ler e a escrever novas diferenças surgem deste fato e se está claro no espírito de Clifford elas criarem as condições de um diálogo mais igual está igualmente bastante claro que de certa maneira o outro etnográfico persevera em seu ser ele se transforma permanecendo diferente É surpreendente ter de ressaltar que para o antropólogo pósmoderno a cultura singularmente substantivada reificada só se transforma no interior de seus próprios limites nunca sai de sua reserva tomemos o termo metaforicamente ou não AUGÉ 1997 p 58 É assim que Augé 1997 atinge um dos pontos altos da sua crítica acusando os pósmodernos norteamericanos de contraditórios em pelo menos dois pontos Por um lado tomam como objeto não mais a cultura como texto mas o próprio texto etnográfico enquanto artifício retoricamente construído e nisso além de não atribuírem outra realidade à prática etnográfica senão a textual trazem a reboque nesta generalização apressada também a própria noção de cultura produto necessário desta mesma prática Por outro lado permanecem obcecados pela escrita etnográfica como se a tarefa da tradução fosse o único problema válido e ofertado pelas transformações contemporâneas em termos de tecnologia e globalização Para Augé 1997 porém tal preocupação além de não conter nada de verdadeiramente novo já é em si mesma reificadora pois permanece tomando os outros como culturas de véspera Novamente nos próprios termos do autor francês A diversidade destas descrições tomada numa história em movimento que redistribui os papéis proibiria assim qualquer generalização e qualquer 96 comparação Empirismo estreito e relativismo cultural são assim reempregados para legitimar um projeto que associa sob o nome de pósmodernismo uma conceituação conservadora a uma escritura estetizante AUGÉ 1997 p 5960 Augé 1997 finaliza então observando que caberia distinguir claramente alguns questionamentos fornecidos pela própria existência deste pósmodernismo Neste sentido propõe um considerável abismo entre considerações de ordem epistemológica que poderiam invalidar desde o início todo o esforço interpretativo dos antropólogos e flutuações históricas que afetariam realidades ou grupos existentes e criariam novos fenômenos como os meios de comunicação ou os tipos de urbanização Assim ainda que válida esta ênfase em uma pluralidade étnicocultural não se constituiria no único problema da nossa contemporaneidade já que também ela possibilitaria uma situação inédita pela primeira vez todos os homens poderiam pensar a si mesmos como contemporâneos Eis aí um novo objeto para uma nova antropologia Muito bem A partir de agora para além do apelo à natureza sóciopolítica do encontro etnográfico presente nos trabalhos de Rabinow 1985 e Augé 1997 observemos mais de perto a crítica totêmica de Geertz 1988 a estes mesmos pós modernos a qual privilegiará uma outra dimensão a artística Nestes termos cabe destacar inicialmente que Geertz 1988 adota como ponto de partida para as suas considerações o fato de que não obstante as enormes distâncias físicogeográficas percorridas pelos antropólogos na sua tarefa de coleta de dados é no being here no aqui e agora do conhecido e assim confortável território acadêmico que tais informações ganham seu corpo final enquanto monografia Segundo o próprio Geertz 1988 tal constatação em si mesma não representa nenhuma novidade Entretanto a questão é que na atualidade da antropologia particularmente a norteamericana o paradoxo da existência desta duplarealidade do trabalho de campo dividida entre o estar lá e o estar aqui alcança uma importância mais acentuada Neste sentido o que antes era apenas uma dificuldade técnica de tradução agora ganha contornos morais políticos e mesmo epistemológicos Ou seja a pergunta da ordem do dia é o que acontece com a realidade quando ela embarca para longe Afinal com o processo de descolonização da década de 1960 uma série de transformações ocorreu tanto no mundo de lá antes primitivo quanto no de cá antes civilizado balançando inclusive as estruturas do próprio lugar etnográfico 97 Em tal processo pensa Geertz 1988 cabe ainda levar em conta o seguinte e importante agravante o progresso tecnológico seja nas telecomunicações seja nos meios de transporte em outros termos a chamada globalização faz cada vez mais cair por terra um dos pressupostos fundamentais do tipo de antropologia praticada por exemplo no tempo de Malinowski A saber que os sujeitos e os objetos etnográficos estariam não só geográfica mas moralmente separados o que conferiria àqueles pioneiros da tradução cultural a prerrogativa de uma descrição praticamente impune eou incontestável Este desequilíbrio prossegue Geertz 1988 conduziu vários antropólogos da contemporaneidade a uma série de questionamentos que adotam o tema da retórica como objeto privilegiado de análise Desta forma a própria escrita etnográfica se tornou uma atividade de risco com o apelo antropológico agora facilmente tomado como palco para as lutas de grupos de variadas espécies como os que clamam por representação e os que outrora representados jazem agora insatisfeitos com o tipo de imagem de si mesmos construída no e pelo Ocidente49 Para Geertz 1988 tão ou mais curiosa que todo este movimento histórico em si mesmo é a reação por ele provocada em antropólogos do presente que embora tenham adotado uma profissão largamente formada no contexto do colonialismo deste último praticamente não tiveram experiência alguma Qual o teor da reação em questão Uma busca por absoluta distância da assimetria de poder que de acordo com o discurso pós moderno teria sempre caracterizado o encontro etnográfico Novamente conforme Geertz 1988 o problema é que isto acaba por produzir na atualidade uma atitude ambivalente em relação à própria idéia de etnografia seria ela uma ciência ou um instrumento de dominação Com tudo isso continua Geertz 1988 criouse um clima de incerteza quanto ao futuro de uma etnografia que anteriormente a despeito do seu realismo colonialista detinha o indubitável mérito de ampliar os horizontes conceituais dos seus leitores 49 Em termos de Brasil uma apresentação mais pormenorizada deste tema pode ser encontrada no artigo de Montero 1993 A partir da interrelação entre religião e alteridade em nosso país o trabalho em questão debate a diminuição das distâncias entre pesquisador e pesquisado e neste sentido a apropriação nãoerudita do patrimônio conceitual do antropólogo chamando ainda a nossa atenção para a possibilidade da própria antropologia se tornar um discurso legitimador na luta entre diversos agentes pelo controle de estratégias culturais de integraçãoseparação uma transformação da realidade a partir da teoria A partir daí Montero 1993 atenta para a necessidade de uma etnografia que simultaneamente abarque a encarnação das lógicas universais nas vivências locais e que para além da ficção recupere a intenção científicoexplicativa dos seus conceitos 98 convencendoos acerca da riqueza expressa na diversidade dos costumes Hoje porém que tipo de trabalho restaria aos antropólogos Enfim o que seria possível fazer diante deste quadro atual onde ao mesmo tempo em que os alicerces morais da etnografia foram chacoalhados pela descolonização em termos do Estar Lá seus fundamentos epistemológicos foram sacudidos por uma perda geral de fé em estórias recebidas sobre a natureza da representação etnográfica ou qualquer outra em termos do Estar Aqui GEERTZ 1988 p 13550 Conforme Geertz 1988 podese pensar tais questões a partir de uma perspectiva artística literária para sermos mais exatos Mas o que isso significa Antes de mais nada que em se tratando de etnografia a responsabilidade autoral jamais pode ser evitada em nome do método da linguagem ou de uma pretensa relação de coautoria com os informantes Isso porque a atividade da escrita e da tradução de culturas alheias está inevitavelmente ligada ao trabalho da imaginação do pesquisador Desta forma ainda segundo Geertz 1988 o pontochave aqui reside na busca por um intermezzo entre os textos etnográficos demasiadamente saturados em termos autorais e aqueles outros onde o escritor visando um tipo de objetividade como a das Ciências Naturais simplesmente desaparecia nos traços da sua própria obra É exatamente a construção de tal lugar que surge como uma espécie de desafio proposto por Geertz 1988 aos pósmodernos Sua tarefa ainda é a de demonstrar ou mais exatamente demonstrar novamente em distintos tempos e de diferentes maneiras que relatos de como outros vivem que não são apresentados nem como estórias sobre coisas que não ocorreram de fato e nem tampouco como descrições de fenômenos mesuráveis produzidos por forças calculáveis podem guardar convicção GEERTZ 1988 p 14114251 É bem verdade que o próprio Geertz 1988 reconhece os riscos da sua proposta de associar em importantes aspectos a vocação etnográfica à literária Dentre eles podese 50 No original at the same time as the moral foundations of ethnography have been shaken by decolonization on the Being There side its epistemological foundations have been shaken by a general loss of faith in received stories about the nature of representation ethnographic of any other on the Being Here side trad nossa MRS 51 No original Their task is still to demonstrate or more exactly to demonstrate again in different times and with different means that accounts of how others live that are presented neither as tales about things that did not actually happen nor as reports of measurable phenomena produced by calculable forces can carry conviction trad nossa MRS 99 citar o perigo de que tal empreitada seja tomada como uma variante da filosofia lingüística em suas intermináveis discussões conceptuais acerca dos significados das palavras ou mesmo como um simples jogo de sedução verbal Finalmente há ainda a ingrata possibilidade de cairmos em um esteticismo estéril onde os etnógrafos e seu público passam a analisar o valor da escrita etnográfica unicamente com base nos prazeres provocados pelo texto pela leitura em si Ainda assim sustenta Geertz 1988 todos estes riscos valem a pena Entre outras razões por uma em particular eles nos conduzem a uma saudável revisão das idéias que temos acerca do que seja a tarefa de alargar a consciência de um determinado grupo sobre as formas de vida de outros grupos diferentes do seu e que de maneira especular têm muito a dizer acerca de si mesmos portanto um caminho da alteridade rumo à identidade É nestes termos que Geertz 1988 define a atividade etnográfica como tradução ou performance dos fatos um tipo de vitalidade fraseada cristalizada no papel que detém na persuasão a sua ferramenta última Esta capacidade de persuadir os leitores de que o conteúdo da sua leitura reside em um autêntico relato de alguém pessoalmente familiarizado com o modo segundo o qual a vida procede em algum lugar em algum tempo entre algum grupo é a base sobre a qual repousa em última escala qualquer coisa a mais que a etnografia procure fazer analisar explicar divertir desconcertar celebrar edificar justificar surpreender subverter GEERTZ 1988 p 14314452 Portanto avança Geertz 1988 longe das certezas hierárquicas e retóricas de outrora e a despeito das tentativas contemporâneas de coautoria ou análise da subjetividade etnográfica a construção deste novo terreno para a prática antropológica ainda está longe de ser concluída se é que o será um dia De qualquer forma enfatiza o nosso autor cabe manter sempre em mente o inelutável fato de que toda descrição etnográfica é feita em casa homemade permanecendo sempre como a palavra daquele que descreve mas não daquele que é descrito Então de volta à pergunta que norteia o seu texto o que afinal seria possível fazer Geertz 1988 sugere que evidentemente não há uma única resposta a ser 52 No original This capacity to persuade readers that what they are reading is an authentic account by someone personally acquainted with how life proceeds in some place at some time among some group is the basis upon which anything else ethnography seeks to do analyze explain amuse disconcert celebrate edify excuse astonish subvert finally rests trad nossa MRS 100 oferecida Contudo para si mais que a eventual constituição de uma cultura universal do tipo esperanto e também para além da possibilidade da construção de uma ampla tecnologia de gerenciamento humano resta a busca por aquele já mencionado alargamento da inteligibilidade discursiva entre povos com diferentes interesses mas que na atual sociedade globalizada permanecem em inevitável e ininterrupta conexão De acordo com o que foi exposto até aqui podese notar que tanto o movimento pósmoderno em antropologia quanto a crítica a este último privilegiam um diálogo de natureza transdisciplinar com áreas do saber tão diversas quanto a filosofia a sociologia ou a literatura É exatamente ao perpetuar tal perspectiva da quebra de fronteiras departamentais que o texto de Peirano 1995 atinge a razão última desta nossa revisão históricobibliográfica ao propor que diante das incertezas e ansiedades provocadas pelo atual questionamento da prática etnográfica poderseia obter um auxílio bastante interessante precisamente no campo da psicanálise Mas cabe perguntar de que maneira Para tentarmos responder esta pergunta vale a pena destacarmos alguns dos pontos principais do trabalho em questão Por exemplo a sua afirmação de que o ruído produzido pelo pósmodernismo etnográfico se baseia em um processo de reinvenção da história teórica da antropologia que além de repetir antigas fórmulas revive dicotomias que já deveriam estar ultrapassadas Velhos debates como iluminismo vs romantismo ciência vs arte etc renascem e na versão atual assumem a formafórmula positivismo vs interpretativismo cânone vs pósetnografia PEIRANO 1995 p 3334 Na análise de Peirano 1995 tal reinvenção do percurso teórico da antropologia está associada à denúncia de um suposto modelo canônico e positivista de etnografia que formularia generalizações totalizadoras a partir de eventos exóticos locais problema esse cuja solução demandaria uma nova antropologia comparativa seguida por sua vez de uma também nova escrita etnográfica Contudo perguntase a nossa autora em quem caberia tal carapuça Assim é que provando não estar convencida da plena veracidade deste diagnóstico Peirano 1995 parte em defesa ou como ela mesma diz a favor da etnografia enquanto uma ferramenta artesanal e por isso mesmo verdadeiramente insubstituível no estudo das diferenças culturais tarefa para a qual convoca o auxílio das obras de dois antropólogos clássicos Malinowski e EvansPritchard 101 Desta maneira Peirano 1995 sustenta que já nos trabalhos destes pesquisadores ou seja há décadas atrás farseiam presentes tópicos pósmodernos como os da co autoria etnográfica além desta hoje tão festejada discussão sobre a interrelação entre etnografia e tradução Quanto ao primeiro caso um exemplo seria a postura de Malinowski em não traduzir o termo nativo Kula para o inglês de maneira a preservar a fidelidade de uma noção trobriandesa que não conhecia equivalência ocidental Já o segundo aspecto se revelaria na dimensão comparativa logo tradutora defendida por EvansPritchard como característica essencial ao trabalho do antropólogo incluindose toda a carga afetiva presente no confronto com o outro Novamente segundo Peirano 1995 poderíamos deduzir daí as seguintes implicações 1ª o processo de descoberta antropológica resulta de um diálogo comparativo não entre pesquisador e nativo como indivíduos mas entre a teoria acumulada da disciplina e a observação etnográfica que traz novos desafios para ser entendida e interpretada Esse é um exercício de estranhamento existencial e teórico que passa por vivências múltiplas e pelo pressuposto da universalidade da experiência humana que o antropólogo aprendeu a reconhecer de início longe de casa 2ª não há cânones possíveis na pesquisa de campo embora haja certamente algumas rotinas comuns além do modelo ideal Na antropologia a pesquisa depende entre outras coisas da biografia do pesquisador das opções teóricas da disciplina em determinado momento histórico mais amplo e não menos das imprevisíveis situações que se configuram no diaadia local da pesquisa 3ª na medida em que se renova por intermédio da pesquisa de campo a antropologia repele e resiste aos modelos rígidos Seu perfil portanto dificilmente se adequa a um modelo positivista como se tenta caracterizála atualmente em certos setores PEIRANO 1995 p 4445 A leitura do trecho acima torna clara a aproximação proposta por Peirano 1995 entre teoria pesquisa e trajetórias individuais biográficas no campo da antropologia Com isso evidencia também a sua preocupação em eliminar dicotomias infundadas como aquelas do tipo antespositivismohojeinterpretação resgatando ainda o caráter eminentemente criativo da prática antropológica cuja riqueza última apareceria nos resíduos provocados por uma tensão ótima entre os ensinamentos dos livros e a coleta empírica de dados in loco Sem o impacto existencial e psíquico da pesquisa de campo parece que o material etnográfico embora presente se tornou frio distante e mudo Os dados transformaramse com o passar do tempo em meras ilustrações Isto significa em outras palavras que o diálogo entre as teorias dos antropólogos no caso ocidentais e as teorias nativas sejam elas Ndembu trobriandesas 102 islâmicas ou outras diálogo este que se dá no antropólogo desapareceu O pesquisador agora sozinho sem interlocutores interiorizados voltou a ser apenas ocidental PEIRANO 1995 p 5152 É neste sentido que Peirano 1995 deixando de lado rivalidades do passado convoca a psicanálise como uma preciosa aliada Afinal pensa esta autora através do estudo da carga afetiva mobilizada pelo encontro do antropólogo com o nativo tal saber corroboraria na constatação do caráter único e imprescindível da atividade etnográfica enquanto recurso exemplar para se pensar um estudo do outro e da sua visão de mundo particular A meu ver o impacto profundo da pesquisa de campo sobre o etnólogo ainda não recebeu a atenção devida Uma evidência da sua complexidade está na freqüência com que antropólogos renunciam à pesquisa antes ou logo após o seu início Tais ocorrências apontam para um impacto psíquico de tal dimensão que em algumas circunstâncias se transforma em um desconforto insuportável No entanto acredito que vale a pena em qualquer das circunstâncias propor que o instrumental de uma outra disciplina no caso a psicanálise talvez ajude a esclarecer certos processos de descoberta etnográfica Seria o momento então de aproveitar esse vínculo entre as duas áreas Penso especificamente na idéia de transferência e seu potencial de criatividade no processo de descoberta antropológica e na relação entre a transferência analítica e o impacto que Evans Pritchard identificou como constitutivo da pesquisa de campo PEIRANO 1995 p 5354 Como vimos ainda na introdução que precedeu este primeiro capítulo o presente trabalho aceita a proposta deste diálogo entre antropologia e psicanálise Eis na verdade seu fundamento último Aliás foi precisamente visando estabelecer um ponto de contato entre estas duas áreas do conhecimento que nos dedicamos a um percurso histórico por algumas das principais escolas antropológicas com o intuito último de situar o leitor neste que consideramos como o pathos da antropologia contemporânea Qual seja a ênfase na dimensão retóricotextual do estudo das culturas acompanhada de uma crítica radical quanto aos limites epistemológicos da etnografia Desta maneira apostamos aqui na validade do recurso à psicanálise enquanto uma mediadora útil nesta discussão pósmoderna acerca do tipo de identidade eou autoridade exercidos pelo antropólogo Inclusive como nos mostra um autor como Ahumada 1999 pelo fato de que tal questionamento atinge diretamente a configuração do próprio encontro analítico o qual também ele encontrase em meio a um certo fogo cruzado que envolve 103 correntes empiristas e narrativas No limite a partir da postura lingüística pósmoderna afirmase que o psicanalítico não é senão uma modalidade peculiar do literário AHUMADA 1999 p 309 Com efeito artigos outros como os de Leary 1994 Elliott e Spezzano 1996 Mitchell 1998 Shapiro 2000 e Hirsch 2002 nos confrontam hoje com as seguintes perguntas até onde vai a propalada neutralidade do analista que direitos tem ele de contar uma história sobre o outro E mais a partir de que bases teóricas Temos portanto no trato com a alteridade um assunto de fundamental importância na contemporaneidade tanto da prática antropológica quanto da psicanalítica Vejamos então nos próximos capítulos o que o saber inaugurado por Freud tem a nos dizer sobre o tema iniciando por um trabalho publicado pelo pai da psicanálise ainda em 1919 e que traz consigo o instigante título de O Inquietante Das Unheimliche CAPÍTULO 02 A Psicanálise diante do Outro revisitando o inquietante freudiano Conforme sugerido ainda no capítulo anterior voltarnosemos a partir de agora à questão da alteridade em psicanálise incluindose aí as suas implicações em termos clínicos e metapsicológicos Neste sentido privilegiando a originalidade do referencial freudiano iniciaremos por um breve percurso pelo tema do estrangeiro na obra do mestre de Viena tarefa para a qual contaremos com o precioso auxílio de trabalhos como os de Kristeva 1994 e Koltai 2000 Como veremos em um segundo momento tratase da própria alteridade do Inconsciente analisada por Freud 19191976 em O Inquietante Das Unheimliche texto do qual nos ocuparemos mais detalhadamente Aqui além de situar o trabalho em questão no contexto em que se insere aquela da transição da primeira para a segunda tópica procuraremos demonstrar como sob o pano de fundo da estética literária o pai da psicanálise nos brinda com uma inovadora abordagem do outro que ao invés de rechaçálo ou projetálo alhures qualificao como inerente a tudo que é humano cindido por excelência Desta forma partiremos em busca do potencial criativo presente nessa cisão e em um dos seus correlatos imediatos o conceito de pulsão de morte acompanhando assim a perspectiva de autores como Kofman 1973 Chnaiderman 1997 e Silva Junior 2001 Em seguida alcançaremos nosso terceiro e último foco de interesse relacionando o tema da alteridade em psicanálise às particularidades da atividade clínica Assim através da leitura pormenorizada de alguns trechos da obra de Fédida 1988 1991a 1991b 1996 articularemos este estranho de nós mesmos representado pelo Inconsciente à estranheza característica da própria função do analista profissional regido por uma ética bastante particular O que a singulariza O fato de ser regida não por princípios impostos de fora a despeito da teoria mas pela abertura de sentido própria ainda que tantas vezes estranha ao desejo daquele que a partir do divã ousa perguntar 105 Algumas Considerações Preliminares aliadas a um breve percurso pelo estrangeiro em Freud Uma boa maneira de iniciar esta aproximação junto ao tema da alteridade em Freud nos é fornecida por Kristeva 1994 autora que curiosa e simultaneamente estabelece uma filiação e um contraponto entre a perspectiva do outro inaugurada pelo pai da psicanálise e o contexto mais amplo do humanismo e romantismo alemães dos séculos XVIII e XIX Passemoslhe a palavra Com a noção freudiana de inconsciente a involução do estranho no psiquismo perde o seu aspecto patológico e integra no seio da unidade presumida dos homens uma alteridade ao mesmo tempo biológica e simbólica que se torna parte integrante do mesmo A partir de então o estrangeiro não é nem uma raça nem uma nação O estrangeiro não é magnificado como Volksgeist secreto nem banido como perturbador da urbanidade racionalista Inquietante o estranho está em nós somos nós próprios estrangeiros somos divididos KRISTEVA 1994 p 190 Além disso voltandose ao atendimento clínico a generosidade intelectual da psicanalista búlgara nos presenteia ainda com um interessante material para reflexão ao destacar o quanto é pela via da transferência logo a partir do outro que o sujeito poderia se reconciliar com a clivagem ou estranheza constitutivas da sua própria subjetividade Mais uma vez nos termos de Kristeva 1994 É por desatar a transferência dinâmica maior da alteridade do amoródio pelo outro da estranheza constitutiva do nosso psiquismo que a partir do outro eu me reconcilio com a minha própria alteridadeestranheza que jogo com ela e vivo com ela A psicanálise sentese então como uma viagem na estraneidade do outro e de si mesma em direção a uma ética do respeito pelo inconciliável Como poderíamos tolerar um estrangeiro se não nos soubermos estrangeiros para nós mesmos Inquietarse ou sorrir esta é a escolha quando o estranho nos assalta ele depende de nossa familiaridade com os nossos próprios fantasmas KRISTEVA 1994 p 191200 Se seguirmos esta linha de raciocínio avança Kristeva 1994 veremos que o caráter inovador da reflexão freudiana sobre a nossa própria desintegração se reveste de grande importância ao alertar sobre os perigos de projetarmos o estrangeiro alhures Assim para além da reificação totalizante da integração apressada e da perseguição irracional tornase possível pensar um outro desfecho neste trato com o outro o acolhimento advindo 106 da consciência de que a sua aflitiva estranheza é também a nossa Nestes termos podese apostar na psicanálise como uma política cosmopolita de tipo novo Afinal sua solidariedade aparece fundada na consciência do Inconsciente não como apelo à fraternidade mas como reconhecimento do desamparo enquanto condição última do nosso ser conosco e do nosso ser com os outros Também o livro de Koltai 2000 adota esta premissa ao representar o estrangeiro como figura limítrofe entre a subjetividade e o contexto sóciopolítico mais amplo Assim toma a alteridade como ponto de partida para uma análise do racismo enquanto sintoma em nossa própria civilização Como se pode perceber temos aí um tema bastante propício ao diálogo transdisciplinar entre a psicanálise e as chamadas ciências humanas Afinal lembranos a autora a modernidade dá à luz não só ao conceito sociopolítico do estrangeiro como também ao sujeito que se vive como estrangeiro ancorado nesse significante para nomear a ausência de um nome KOLTAI 2000 p 22 Com efeito Koltai 2000 constrói um trabalho instigante e que destaca o quanto o questionamento acerca do outro invariavelmente atravessa a psicanálise e remete à cena do Inconsciente com as variadas implicações desta última em termos da constituição da subjetividade Assim tornase digna de nota por exemplo a relação estabelecida pela autora entre o estranho enquanto forasteiro Fremd e aquele outro o do unheimlich privilegiado por Freud 19191976 aproximandoos no movediço e assim inquietante terreno do inominável podemos dizer que se num primeiro momento apenas estamos diante de reações de recuo perante o rosto desconhecido num momento mais tardio da socialização surgirá um nós que situará o estrangeiro para a criança maior e que já fala numa categoria significante que até então estava à procura de um nome A criança aos poucos vai nomeando e reconhecendo o que é familiar que separa do resto do mundo e aquilo que lhe é desconhecido e que não pode nomear Persiste nela algo do nãoseparado que não entra em nenhuma representação Persistem esses restos de imagos esse objetopulsão não identificado o estranho que permanece à espera de ser figurado O estrangeiro surge então como a figura ideal para fixar esse objeto nãoidentificado Essa é a origem da xenofobia ordinária em que o outrora se transforma em alhures e o estranho em estrangeiro KOLTAI 2000 p 2324 É contudo mais adiante que Koltai 2000 atinge em cheio um aspecto que muito nos interessa em seu trabalho Isso por tornar ainda mais clara a idéia de que no imigrante repousa o estatuto por excelência do sujeito psicanalítico um estrangeiro para si mesmo já 107 que definido a partir do Inconsciente este Outro que o habita mas que ao mesmo tempo tão pouco lhe é familiar Em outros termos este Outro que assusta mas que é necessário acolher Qual a grande descoberta de Freud Justamente a de que o homem é impelido por algo que lhe é estrangeiro que ele não é integrado em si mesmo E é no interior de si mesmo em seu aparelho psíquico que o homem vive com inquietação o sofrimento do que lhe é estrangeiro Quanto a uma psicanálise o mínimo que se pode esperar dela é que nos familiarize com o estrangeiro em nós mesmos uma vez que só assim poderemos modificar em profundidade nossa relação singular com o outro Afinal o que pode ser mais estrangeiro do que aquilo que nos acontece sem que possamos nos reconhecer nele Lapsos atos falhos sonhos esquecimentos se apresentam a nós como enigmas que devem ser decifrados e pedem resposta à questão o que é mesmo que isso quer dizer KOLTAI 2000 p 2728 Destarte mantendose fiel à sua proposta Koltai 2000 esmiuçará posteriormente os significados do termo estrangeiro Primeiro no campo do social leiase da política graças a um breve histórico que contraporá os contextos da Grécia antiga e da Modernidade passando por algumas particularidades do povo judeu enquanto representante privilegiado da diferença Em segundo lugar no próprio terreno da psicanálise freudiana Neste sentido nossa autora destaca como muito embora uma das maiores virtudes do trabalho de Freud tenha sido a de demonstrar que o homem é regido por algo que lhe é ao mesmo tempo íntimo e estranho o Inconsciente o conceito de estrangeiro não teria merecido por parte do mestre de Viena senão uma qualificação negativa e assustadora Assim levando em conta ainda o fato de que o mesmo termo estrangeiro aparece em Freud tanto nos textos mais notadamente clínicos quanto naqueles relativos à cultura bem como no que se refere ao próprio lugar do analista nossa autora parte rumo a uma sucinta reconstituição histórica do percurso deste conceito na obra do pai da psicanálise53 Considerando os nossos propósitos aqui vale a pena acompanhála nesta viagem Koltai 2000 inicia sua análise do estrangeiro em Freud pelos Estudos sobre a Histeria onde o adjetivo apareceria pela primeira vez aqui associado ao trauma psíquico e posteriormente à sua rememoração os quais agiriam como uma espécie de corpo estranho Cf FREUD e BREUER 18931996 Este último por seu turno seria 53 Com ligeiras modificações tal histórico seria posteriormente retomado por esta autora em um outro trabalho Cf KOLTAI 2002 108 equivalente a um material patógeno que conforme as orientações médicoanatômicas deveria ser extirpado do corpo do paciente Em se tratando do contexto psíquico porém tal tarefa ganharia outros contornos e estaria mesmo fadada ao fracasso pois aqui a invasão do elemento estranho acabaria por se arraigar à própria estrutura do aparelho mental não permitindo portanto uma clara separação entre o joio e o trigo Ou seja entre o patológico e o não patológico Aqui Koltai 2000 faz uma referência explícita ao trabalho de Zygouris 1983 segundo o qual já então seria possível perceber a totalidade do problema do estrangeiro na obra de Freud Em termos gerais tratarseia primeiramente da necessidade de uma assimilação que uma vez impossível provocaria um segundo movimento voltado à extração Diante da inviabilidade também deste último ocorreria então um obrigatório retorno daquele mesmo material patógeno Para além destes aspectos porém Koltai 2000 chama nossa atenção para o seguinte fato É importante notar que já nesta primeira teoria para Freud a sexualidade implica sempre a relação do sujeito com o outro Notese também que nesse contexto muito freqüentemente o caráter traumático das primeiras experiências sublinha o fato de que elas têm algo do desencontro do malvindo de precoce ou tardio como se a sexualidade se apresentasse imediatamente como um corpo estranho em relação ao conjunto da vida sexual Resumindo podemos dizer que nesse momento Freud identifica dois tempos um primeiro no qual a sexualidade irrompe do exterior perturbando o inocente mundo infantil e um segundo no qual o acontecimento se transforma em acontecimento interno corpo estrangeiro KOLTAI 2000 p 81 O momento seguinte da retrospectiva de Koltai 2000 aparece voltado ao Projeto para uma Psicologia Científica FREUD 18951996 onde o estrangeiro se relaciona à descrição do primeiro encontro da criança com o outro ser humano designado pelo espaço que ocupa de acordo com a equação entre proximidade e amparo Em outros termos uma ajuda exterior marcada pela ambigüidade entre as possibilidades de satisfação e hostilidade Logo inauguradora de uma clivagem que diz respeito à chamada das Ding algo entre um perto e um distante que remete nossa majestade o bebê à própria imagem de seu eu Segundo o referencial freudiano eis aí a divisão do próximo fundando uma outra relativa à subjetividade configurada portanto no enigma do gozo alheio Já em As Pulsões e suas Vicissitudes continua Koltai 2000 o tema do estrangeiro aparece associado pelo pai da psicanálise ao mundo externo tomado aqui enquanto uma 109 espécie de inimigo hostil ao eu em suas diversas fases de desenvolvimento Com efeito pensava Freud 19151996 à época o início da vida psíquica seria marcado por um narcisismo primário onde o investimento pulsional estaria focalizado no próprio sujeito capaz de pelo menos em parte satisfazer a si mesmo autoeroticamente Logo diante desta relação entre o eu e o prazer não haveria necessidade de uma atenção particular ao exterior considerado indiferente ou mesmo desprazível Entretanto novamente para Koltai 2000 Uma Dificuldade no Caminho da Psicanálise trabalho publicado dois anos depois já inaugurava uma perspectiva diferente e menos radical quanto à oposição entre o eu e o outro Isso porque ao apontar as idéias súbitas e impulsos involuntários como hóspedes alienígenas que mostravam não ser o ego o legítimo dono de sua própria casa Freud 19171996 acabaria também por tornar mais claro o estatuto do estrangeiro como uma parte considerável do psiquismo que mesmo alijada da consciência promoveria um embate entre duas forças distintas dentro de um mesmo sujeito Eis aí portanto o sujeito da clivagem o sujeito do Inconsciente ou se preferirmos o próprio sujeito da psicanálise É assim que o histórico proposto por Koltai 2000 alcança O Inquietante excursão do mestre de Viena pelo terreno da estética literária que afirma a perturbadora estranheza da familiaridade Ou seja enfatiza a presença do inusitado mesmo em terrenos aparentemente tão sólidos quanto o da consciência e ao fazêlo incorpora alguns dos temas discutidos até aqui Por exemplo a qualificação do Inconsciente como um estrangeiro tão próximo em termos de vida mental Mais ainda o texto de Freud 19191976 nos remete de volta ao infantilismo psíquico para estabelecer uma ponte entre este e o contexto da chamada segunda tópica ligada por sua vez aos temas da pulsão de morte e compulsão à repetição54 Isso porque segundo o pai da psicanálise a angústia e o terror associados à desconfortável sensação do sinistro do inominável e do incontrolável estariam intimamente vinculados a uma sensação de indiferenciação entre o eu e o outro entre o sujeito e o mundo externo 54 Ou seja para além da linguagem para além do limite da compreensão e inclusive para além da continência possível em termos do próprio aparelho psíquico Entramos portanto já dizia GarciaRoza 1986 1990 no terreno do pulsional por excelência Voltaremos a isso bem como ao texto de Freud 19191976 oportunamente 110 De volta à análise de Koltai 2002 um outro trabalho que aparece como relevante neste histórico acerca do tema do estrangeiro em psicanálise é A Negação Cf FREUD 1925a1996 Aqui será retomada a questão das possibilidades da representação a partir dos conceitos de bom e ruim ambos subordinados ao dualismo pulsional da segunda tópica pulsões de vida e morte enquanto o primeiro seria introjetado o segundo ao contrário acabaria expulso do psiquismo constituindo o nãoeu o estrangeiro Ainda para Koltai 2000 mais um ponto importante no artigo em questão é a relação que nele se pode perceber entre o euestrangeiro e o estrangeiro ao eu Por sua vez tal relação estaria ligada à transição entre diferentes tipos de representação psíquica de um lado objetos percebidos em si mesmos ou somente de acordo com a sua qualidade mais ou menos agradável De outro a diferenciação entre tais objetos e os humanos enquanto figuras potencialmente identificatórias Nestes termos prossegue Koltai 2000 Inibição Sintoma e Angústia acabaria por revelar o seguinte percurso o estrangeiro se configuraria inicialmente enquanto algo incômodo ou desagradável e estaria vinculado às sensações corpóreas Mais adiante alcançaria o status de objeto parcial e finalmente o de figura paterna primeiro sinal de alteridade genuinamente humana A esta última se seguiriam tipos outros como os membros externos à família grupo social país etnia ou mesmo ideologia Cf FREUD 19261996 É precisamente tal contato entre o indivíduo e os diferentes grupos sociais que motiva um retorno de Koltai 2000 aos anos de 1918 e 1921 quando Freud publicaria respectivamente O Tabu da Virgindade e Psicologia de Massas e Análise do Ego Ambos os trabalhos aparecem unidos pelo tema do narcisismo das pequenas diferenças a partir do qual poderia se pensado tanto o estrangeiro quanto a sempre recorrente hostilidade que o acompanha Neste sentido a repulsa do outro é tomada como expressão de um amor de si particularmente quando confrontado com a ameaça de uma reatualização do desamparo infantil Este último por seu turno seria motivado por um semelhante que não é idêntico ou imediatamente assimilável e que por isso mesmo apareceria como a projeção externa de algo interior e constituinte em termos de subjetividade a própria cena do Inconsciente Cf FREUD 19181996 19211996 111 O esforço empenhado na realização deste histórico serve para que Koltai 2000 enalteça o caráter subversivo da psicanálise a qual nos revela que em termos psíquicos a unidade não é mais que um fantasma e que para além do efeito de superfície representado pela razão instrumental o homem não é senhor em sua própria casa Corroborando com esta perspectiva é que nossa autora aposta que nada haveria de mais estrangeiro ao sujeito do que a sua própria e inquietante exterioridade Nestes termos enfatizando o tema do racismo foco último do seu interesse Koltai 2000 sustenta ainda que a forma como cada um de nós lida com essa alteridade constituinte determinaria sobremaneira qualquer relação com o Outro enquanto estrangeiro Afinal As manifestações racistas surgem justamente quando o sujeito se nega a ver a própria divisão se recusa a ver que traz em si mesmo esse Outro gozo KOLTAI 2000 p 123 Como se pode perceber do que vimos até o momento tanto Kristeva 1994 quanto Koltai 2000 conferem à figura do emigrante o lugar de estatuto do sujeito psicanalítico sempre definido a partir do seu lugar perante o outro Logo temos que na especificidade do seu saber a prática psicanalítica inevitavelmente põe em jogo os desabores do confronto com a alteridade percebida não somente enquanto presença ou afirmação mas também na qualidade de ausência e negatividade É o que bem resume Koltai 2002 em um outro trabalho Uma psicanálise pode ser definida como um trabalho de reintegração à esfera consciente da produção heterogênea decorrente da exclusão interna da outra cena Afinal o que pode ser mais estrangeiro do que aquilo que nos acontece sem que nos possamos reconhecer nele As chamadas formações do inconsciente incluindo aí o sintoma analítico apresentamse como produções nas quais no mais íntimo familiar existe um estrangeiro um ser do qual nada queremos saber KOLTAI 2002 p 6970 Em uma palavra afirmase diante de nós a própria alteridade do Inconsciente lugar do não lugar terreno da sombra do excesso e da diferença explorado em maiores detalhes por Freud 19191976 em O Inquietante Das Unheimliche É deste texto que nos ocuparemos mais detalhadamente a seguir fazendo nossa a perspectiva de Kristeva 1994 a qual valoriza o trabalho em questão por considerar que foi por esta via que o mestre de Viena introduziu uma ética bastante peculiar à psicanálise aquela que ao tratar do 112 estranho não aborda exatamente um estrangeiro mas detecta a estranheza do Inconsciente enquanto inominável de nós mesmos Acerca de O Inquietante Das Unheimliche Originalmente publicado por Freud em 1919 na quinta edição da revista Imago O Inquietante detém entre outras pelo menos uma característica que o individualiza sobremaneira Como bem lembra Cesarotto 1996 tratase do texto que funciona como dobradiça entre as chamadas primeira e segunda tópicas freudianas Considerado um fruto tardio da Metapsicologia esse trabalho encerra a década de 10 concluindo também uma etapa teórica marcada pelo tema do narcisismo cujo pano de fundo era o primeiro modelo pulsional Por outro lado O sinistro projetase num futuro próximo ao anunciar e de certa forma resumir o que embora já escrito só seria publicado no ano seguinte Além do princípio do prazer CESAROTTO 1996 p 109 Neste sentido vale lembrar há aqui reformulações teóricas ocorridas em dois planos o tópico e o econômico Em relação ao primeiro organização do aparelho psíquico em instâncias a grande mudança se fez uma vez que citando GarciaRoza Enquanto a primeira tópica voltava sua atenção para a economia libidinal a segunda está voltada para o confronto da libido com algo que lhe é externo a exigência de renúncia imposta pela cultura 1995 p 206 Em outras palavras foi incluído entre as instâncias psíquicas o conceito de Superego Quanto ao plano econômico jogo das cargas energéticas do funcionamento psíquico Freud havia proposto inicialmente a dominância do princípio de prazer o qual postulava que todo organismo visaria alcançar um grau estável de tensão mínima No entanto Se tal dominância existisse a imensa maioria de nossos processos mentais teria de ser acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele ao passo que a experiência geral contradiz completamente uma conclusão desse tipo FREUD 19201996 p 20 Este é o paradoxo que atormentou o mestre de Viena levandoo a questionar suas idéias iniciais e a elas acrescentar o que denominou de compulsão à repetição ou seja uma tendência do psiquismo à reprodução de experiências desagradáveis e inviabilizadoras de satisfação Isso possibilitou uma reorientação da teoria psicanalítica agora equilibrada 113 na força de dois conceitos específicos Eros e Tanatos responsáveis respectivamente pelas pulsões de vida e morte Novamente segundo GarciaRoza 1995 porém este novo posicionamento não teria representado a completa refutação dos escritos anteriores de Freud mas somente uma espécie de mudança de rumo Com Além de Princípio do Prazer tem início o que se costuma chamar de viragem dos anos 1920 Essa viragem não representa propriamente uma ruptura com a primeira tópica O que ocorre a partir de 1920 é muito mais um deslocamento temático do que uma restruturação teórica Tratase de uma outra ordem de questões 1995 p 205206 Uma perspectiva semelhante é adotada por Figueiredo 1999 para o qual o problema das leituras canônicas de Além do Princípio de Prazer residiria na sua ênfase exagerada e simplificadora quanto a um dualismo pulsional de natureza estática Tal postura exclusivista pensa nosso autor reduziria a alteridade do próprio texto aproximandose ainda de uma certa metafísica Com isso para Figueiredo 1999 a despeito talvez da própria intenção do pai da psicanálise seria possível perceber uma lógica da suplementaridade no que se refere aos pólos compostos por Eros e Tanatos o que Freud nos oferece é uma sinuosa argumentação na qual a sociedade a natureza o indivíduo e as relações entre indivíduo e cultura longe de formarem sistema são surpreendidos em seus movimentos nos processos extremamente complexos em que se opõem e se conciliam se diferenciam e se reúnem segundo uma lógica nãoidentitária uma lógica da suplementaridade FIGUEIREDO 1999 p 34 Neste mesmo sentido tornase interessante mencionar aqui os trabalhos de Kofman 1973 e Chnaiderman 1997 os quais convidandonos a um retorno a O Inquietante apontam a ocorrência desta ação complementar entre as pulsões de vida e morte no próprio texto freudiano Em primeiro lugar pela sua estrutura fragmentada marcada simultaneamente pelo desejo de unidade e pela necessidade da introdução de variadas rupturas e distinções55 Em segundo pela conjunção de temas aparentemente tão díspares como a estética e a angústia a beleza e o terror 55 Aspecto esse também destacado por Cesarotto 1996 nos seguintes termos Chama a atenção nesta obra o teor dos argumentos esgrimidos para fundamentar as teses expostas Freud não hesita em utilizar elementos dos mais variados discursos montando uma estrutura lógica que se sustenta pelo acúmulo de referências em detrimento da profundidade A pertinência dos temas em jogo é legitimada pela sua articulação apesar de 114 É interessante observar que o texto que prenuncia a última elaboração freudiana da teoria das pulsões tenha como horizonte o sentimento estético unindo a questão do belo à indagação sobre a morte O que seria o sentimento negativo fornece prazer um prazer do além do princípio do prazer Eros e pulsão de morte passam a se implicar CHNAIDERMAN 1997 p 219 Uma vez exposto em linhas gerais o contexto histórico da publicação de O Inquietante passaremos agora a uma breve pesquisa de natureza etimológica a qual pensamos além de auxiliar o leitor na compreensão dos meandros do texto freudiano servirá ainda para demarcar os limites das concepções antropológica e psicanalítica acerca da alteridade Para tanto como se verá adiante contaremos com a preciosa ajuda de Hanns 1996 Mas o que é o Unheimliche afinal É o que nos responde com maestria Hanns 1996 para quem o substantivo alemão Das Unheimliche título original do artigo de Freud 19191976 publicado em português com o nome de O Estranho significa algo inquietante macabro assustador esquisito ou misterioso Após esta definição primária do termo nosso autor passará a um aprofundamento da sua análise esmiuçando a interrelação entre a língua germânica e os pormenores da escrita freudiana Desta forma traçando o mesmo percurso de Freud no artigo em questão FREUD 19191976 Hanns 1996 abordará inicialmente os significados do adjetivo heimlich para em seguida aterse mais especificamente ao substantivo das Unheimliche mencionado acima Assim vemos que dentre os possíveis sentidos de heimlich aparecem as noções de a familiar conhecido b secreto oculto e c inquietante estranho Mais uma vez de acordo com Hanns 1996 o ponto de torção onde o adjetivo alemão passaria de familiar e conhecido para inquietante e estranho se daria no sentido b uma vez que dependendo do ponto de vista seja ele o de quem participa de um segredo ou daquele outro sujeito que dele é excluído uma mesma coisa poderia ser tomada de diferentes maneiras Ou seja conhecida ou oculta Logo os sentidos a b e c formam uma serem ocasionalmente de ordens diferentes Numa sorte de colagem teórica em que o menor traço de surrealismo é esquivado abolido por uma assumida postura racional são incorporadas à perspectiva psicanalítica desde citações literárias até evocações mitológicas numa abordagem intertextual CESAROTTO 1996 p 110 115 seqüência que começa com o mais conhecido e chega ao mais estranho justamente por uma contigüidade que pode percorrer gradações que se iniciam no familiar passam pelo íntimosecretofurtivo e conduzem ao estranho HANNS 1996 p 231 Em seguida Hanns 1996 passa a se ater aos sentidos do adjetivo unheimlich que como se pode notar ainda que derivado de heimlich comporta na sua estrutura o prefixo de negação caracterizado pelo un próximo ao des ou ainda ao in de desconhecido ou incomum da língua portuguesa Com isso seguindo o exemplo anterior nosso autor aponta os seguintes significados para unheimlich d levemente estranho levemente assustador inquietante sinistro esquisito incômodo malestar e enorme grandioso gigantesco fantástico f muito incrivelmente e g indefinível indeterminado ansiógeno inquietante É desta maneira que enriquecendo a sua descrição Hanns 1996 estabelece algumas pequenas distinções demonstrando por exemplo como em termos conotativos unheimlich diz respeito a algo insidioso sussurrado insuspeitado ou mesmo grandioso que pairando no ar representa uma sorrateira ameaça ao sujeito Mais ainda nosso autor aponta como o adjetivo mantém nas acepções d e g um caráter indefinível eou desconfortável diferente de uma situação de pânico relativa a um determinado perigo ou catástrofe que embora de súbita emergência revelese bem delineada Finalmente mantendo o unheimlich no cerne da sua discussão Hanns 1996 tece ainda um interessante contraponto entre a concepção lingüística e a freudiana do fenômeno Do ponto de vista estritamente lingüístico a palavra unheimlich e a substantivação das Unheimlich possuem somente os sentidos c e d inquietante sinistro Não há no emprego das palavras unheimlich e das Unheimliche as ambigüidades de sentido encontradas em heimlich As palavras unheimlich e das Unheimliche não possuem ligação com o sentido a ou seja com a vertente de sentido ligada ao conceito de familiar Entretanto do ponto de vista psicanalítico Freud procura demonstrar que tal ambigüidade também se faz presente em das Unheimliche HANNS 1996 p 232 Já no que se refere à análise do substantivo das Unheimliche segundo foco do interesse de Hanns 1996 podemos perceber aí a sua evidente complementaridade em relação aos sentidos d e g do há pouco destacado adjetivo unheimlich Isso porque em termos gerais também aquele o substantivo alemão nos remete a uma sensação de 116 desamparo diante do imprevisível inapreensível ou nãolocalizável aos quais acrescenta Hanns 1996 juntarseia mesmo um certo conteúdo fantasmagórico Mais adiante o trabalho de Hanns 1996 avança rumo a uma questão que concerne diretamente aos nossos propósitos aqui Tratase da comparação direta entre o das Unheimlich alemão e o estranho sua mais freqüente tradução em língua portuguesa Neste sentido Hanns 1996 enfatiza que a adaptação do termo para o nosso idioma acrescenta à sua dimensão original um novo significado o de estrangeiro questão de alteridade perdendo por outro lado o quê de sobrenatural predominante em sua acepção germânica Daí inclusive a nossa opção aqui por O Inquietante ao invés do habitual O Estranho Em português o estranho pode evocar a idéia de alguma alteridade de um outro externo forasteiro que seja diferente e esquisito Em alemão esta idéia está mais presente no termo Fremd freqüentemente utilizado por Freud Unheimlich também é externo e estranho mas centrase na origem fantasmagórica e sinistra Ao traduzirse o termo das Unheimlich por o estranho perdemse as conotações inquietante e fantasmagórica de que algo cerca o sujeito sorrateiramente HANNS 1996 p 234235 Diante disso restanos agora passar ao fundamento do presente capítulo Qual seja a realização de uma leitura pormenorizada de O Inquietante utilizandoa como precioso material para reflexão acerca do tipo de alteridade de que nos fala a psicanálise aquela própria ao Inconsciente Sem mais preâmbulos mãos à obra O texto em Si reflexões a partir do Das Unheimliche freudiano Freud 19191976 abre seu trabalho com algumas considerações de ordem estética ainda que saliente não ser este um terreno muito comum para intervenções psicanalíticas Para si contudo estas se justificariam quando da abordagem de temas um tanto quanto obscuros ou mesmo negligenciados já que pouco afeitos a aproximações com o que se convenciona chamar de belo ou grandioso Dentre estes teríamos aquela 117 capacidade da obra de arte na literatura por exemplo de provocar em seus apreciadores sentimentos como o de uma desconfortável inquietude das Unheimliche 56 Ou seja tratase da experiência daquilo que atrai e seduz mas que ao mesmo tempo também choca eou aterroriza provocando repulsa Portanto subvertendo a lógica da nãocontradição característica da filosofia aristotélica entramos aqui no curioso terreno de uma espécie de fascínio exercido pela liminaridade do sentimento do negativo Este por seu turno relativo a uma fratura à dissonância de uma intensidade sem palavras à angústia do que não pode ser descrito circunscrito e principalmente controlado mas apenas vivenciado Neste sentido contrastando a aproximação freudiana do fenômeno do inquietante com aquela outra própria aos especialistas em estética da época do pai da psicanálise Kofman 1973 destaca como o trabalho de Freud 19191976 provaria que aqueles últimos se manteriam prisioneiros de préconceitos metafísicos que os conduziriam a uma oposição radical entre os terrenos do belo e do feio da atração e da repulsa privilegiando os primeiros em relação aos segundos Ainda para Kofman 1973 tal recusa e sintomático privilégio teriam servido como motivação para que Freud 19191976 demonstrasse como a psicanálise teria algo a dizer sobre o tema da estética associandoa a um caso particular de retorno do reprimido onde ficaria subentendida uma não separação entre o inquietante e os sentimentos ditos positivos Assim já que também o prazer implicaria um retorno de fantasmas infantis Toda obra de arte deveria fazer nascer o inquietante se o artista não se utilizasse do sedutor artifício da beleza para desviar a atenção do eu impedindoo de se manter alerta ao retorno dos fantasmas reprimidos KOFMAN 1973 p 14057 Assim sugere Kofman 1973 pode ser depreendida aqui a oposta de uma relação entre o inquietante a satisfação estética e a pulsão de morte todos associados pela emergência de conteúdos infantis anteriormente reprimidos Ou seja conforme nossa autora a despeito da clivagem proposta pela estética tradicional uma importante mensagem presente no texto de Freud 19191976 é aquela de um estranhamento dos 56 Tal perspectiva leva uma autora como Kristeva 1994 a elevar o trabalho do pai da psicanálise a um patamar mais amplo que o da estética literária Para si poderseia perceber no texto freudiano uma pesquisa que englobaria também o tema da angústia em geral e ainda o próprio dinamismo do Inconsciente Efetivamente é o que constataremos de agora em diante 57 No original francês Toute oeuvre dart devrait faire naître linquiétante étrangeté si lartiste nusait de lartifice séducteur de la beauté pour détourner lattention du moi et lempêcher de prendre garde au retour des fantasmes refoulés trad nossa MRS 118 limites entre positivo e negativo Todo prazer seria então misturado heterogêneo mêlé De volta ao texto de Freud 19191976 este sugere duas vias possíveis para um estudo apropriado da acima referida sensação de desassossego despertada pela criação artística Primeiro uma pesquisa históricocomparativa voltada ao desenvolvimento lingüístico desta palavra no contexto de variadas culturas Em segundo lugar a procura da elucidação de uma essência do sinistro a partir da reunião de características particulares de coisas pessoas e vivências com poder suficiente para despertarem em nós essa impressão Ambos os caminhos porém revela nosso autor de antemão acabarão por nos conduzir a um mesmo resultado o inquietante é aquela variedade do aterrorizante que remonta ao há muito conhecido ao há muito familiar FREUD 19191976 p 22058 Eis a hipótese freudiana que orientará seu pensamento ao longo do texto Com efeito há aqui a aposta de que por detrás do aparentemente incompreensível ou atemorizante esconderse ia algo há muito conhecido ainda que reprimido e digamos assim deslocado para uma penumbra não contemplada pela luz do dia leiase afastado da consciência Mas podese perguntar de que maneira o mestre de Viena alcança tal conclusão Enfim como constrói a sua linha de raciocínio É o que veremos a partir de agora Ao dar início à primeira das abordagens que propôs para o estudo do unheimlich Freud 19191976 nos remete à etimologia desta palavra na língua alemã Assim demonstra como em princípio poderíamos deduzir uma relação direta e inequívoca entre a inquietude e a nãofamiliaridade em termos de incerteza intelectual Entretanto apoiando se no fato de que nem toda novidade é necessariamente amedrontadora significando portanto que algo a mais deveria ser acrescido ao inusitado para tornálo digno de medo o texto do pai da psicanálise alcança uma interessante virada ao procurar ir mais além desta relação Neste sentido Freud 19191976 parte rumo à análise das diferentes expressões deste mesmo sentimento do inquietante em outros idiomas como o latim o grego o inglês o francês e o espanhol Tal esforço acabaria por revelar um interessante paradoxo dentre os 58 Na versão castelhana feita a partir do alemão de Freud lo ominoso es aquella variedad de lo terrorífico que se remonta a lo consabido de antiguo a lo familiar desde hace largo tiempo trad nossa MRS 119 variados matizes da palavra heimlich pelo menos um em específico coincidiria com o seu oposto imediato unheimlich59 Eis o que conduz nosso autor à afirmação de uma constante presença do inominável na sombra do aparentemente conhecido Então heimlich é uma palavra que desenvolveu seu significado seguindo uma ambivalência que por fim coincide com seu oposto unheimlich De alguma forma unheimlich é uma variedade de heimlich FREUD 1919197660 Aliás esta mesma idéia já havia sido pelo menos parcialmente desenvolvida em trabalhos anteriores do próprio Freud Exemplos são A Interpretação dos Sonhos FREUD 19001996 notável pela sua demonstração de que a lógica própria aos processos primários a lógica do Inconsciente não conhece nem a oposição e nem tampouco a contradição e ainda Sobre o Significado Antitético das Palavras Primitivas FREUD 19101996 o qual aponta a ocorrência de significados diferentes e mesmo excludentes em palavras específicas de línguas antigas como a egípcia Com isso de maneira complementar Freud acabaria por comprovar o caráter regressivo arcaico da expressão de pensamentos no sonhos Em sua origem a linguagem estabelecia conexões entre objetos que depois eram obliterados mas que reapareciam no simbolismo onírico CHNAIDERMAN 1997 p 223 Conforme anunciado anteriormente após esta incursão pelo terreno da lingüística Freud 19191976 alcança a segunda parte da sua pesquisa quando passará em revista algumas impressões eou experiências particularmente ligadas ao inquietante Assim o primeiro exemplo utilizado por ele para discutir a vivência concreta deste sentimento recai sobre os autômatos ou bonecos de cera enquanto possíveis causadores da dúvida sobre um ser animado estar realmente vivo ou ao contrário se um objeto aparentemente inerte não seria na verdade um ser portador de vida É precisamente tal questionamento que nos reconduzirá ao universo das obras de arte particularmente ao campo da literatura Afinal Freud 19191976 adotará como 59 O que Freud 19191976 faz aqui é apontar a relatividade de uma expressão Logo também de uma situação já que determinado conteúdo pode ser ao mesmo tempo amplamente conhecido por um grupo específico ou iniciado e desconhecido por outras pessoas leigas digamos assim Por exemplo a chamada Cosanostra da máfia italiana que gerou gângsteres como o famoso Al Capone tratava sem dúvida de assuntos bastante heimlich familiares para seus membros mas que eram simultaneamente unheimlich escusos para as autoridades federais norteamericanas 60 Na versão castelhana Entonces heimlich es uma palabra que há desarrollado su significado siguiendo una ambivalencia hasta coincidir al fin con su opuesto unheimlich De algún modo unheimlich es una variedade de heimlich trad nossa MRS 120 exemplo privilegiado da sua análise o conto O Homem da Areia de autoria de ETA Hoffmann 1817199361 relativamente famoso entre outras coisas por uma de suas personagens Olímpia Em dado momento da narrativa esta última dada a sua graça beleza e aparente vivacidade tornase objeto da paixão de Natanael um homem assombrado por fantasmas do passado O desenrolar da história porém revela ao nosso candidato a Romeu o fato de que Olímpia não passa na verdade de uma boneca descoberta essa que provoca no leitor uma certa estranheza Entretanto como vimos anteriormente Freud 19191976 não se satisfaz com esta associação entre o sentimento do unheimlich e a nãofamiliaridade em termos de incerteza intelectual É assim que voltará sua atenção a um outro personagem que também presente no conto de Hoffmann 18171993 conferelhe inclusive o próprio título Tratase do há pouco mencionado homem da areia Para alcançálo porém Freud 19191976 retorna ao há pouco referido Natanael alguém que tal qual as pacientes histéricas atendidas pelo pai da psicanálise em sua clínica vienense sofria terrivelmente em sua vida adulta de reminiscências ligadas à infância as quais o tornavam confuso e incapaz de amar plenamente Ao esmiuçar as origens da desventura de Natanael Freud 19191976 verifica a ocorrência de um antigo trauma Tratase da morte do pai do personagem associada por sua vez a duas outras figuras Coppelius soturno e assustador advogado que costumava fazer visitas noturnas ao falecido e finalmente o homem da areia espécie de bicho papão que na cultura alemã servia para auxiliar as mães a mandarem seus filhos para a cama Isso sob a ameaça de terem seus olhos primeiramente feridos com um punhado de areia e depois roubados para todo o sempre Pois bem a análise freudiana do conto de Hoffmann 18171993 aborda esta angustiante possibilidade da perda dos olhos enquanto um terror em estado bruto logo sem representação psíquica Assim ainda no campo do olhar porém simultaneamente para além dele poderseia notar em tal história um contato de Natanael com o limite da palavra o que o incapacitaria ainda que momentaneamente de constituir uma imagem 61 Escritor alemão nascido no século XVIII e que alcançou considerável notoriedade por um estilo narrativo bastante peculiar e que remetia o leitor ao universo do fantástico eou sobrenatural mesclando em suas histórias os terrenos da fantasia e da realidade confusão esta particularmente capaz de promover o inquietante de que nos fala Freud 19191976 Para maiores detalhes acerca da biografia de Hoffmann consultar o livro de Cesarotto 1996 121 concreta do mundo Em decorrência teríamos ainda presentes no drama do personagem uma confusão de identidades uma espécie de fim dos limites entre o eu e o outro com a ficção avançando demasiadamente a ponto de sobrepujar a própria vida trazendo consigo a loucura e por fim a morte Como se pode notar a experiência do inquietante nos remete a uma série de elementos como o susto e a perda de sentido e realidade suspensão do juízo da existência Segundo Chnaiderman 1997 tratase de emoções internas e relativas ao desamparo infantil as quais não se ligariam a nenhuma significação daí o surgimento da angústia enquanto representante pulsional afetivo indeterminado No conto de Hoffmann há uma circulação de eus nunca ficamos sabendo de quem é o olho que olha O Eu é despojado de suas fontes narcísicas A queda da imagem é a queda da máscara levando à falta de forma no Eu Na experiência do estranhamente familiar o mundo objetivo desaparece o objeto cai desaba Surge a angústia enquanto representante pulsional afetivo indeterminado Angústia que tem a ver com o traumático da constituição do sujeito Instaurase o limite da palavra colocando o intervalo do que não pode ser dito o inapreensível entre a percepção e a marca mnêmica portanto não recalcável É o momento de origem da representação ou do que é da ordem do irrepresentável CHNAIDERMAN 1997 p 225226 Estritamente associada a estes aspectos temos a essência da interpretação freudiana de O Homem da Areia a qual privilegia o conceito psicanalítico de Complexo de Castração62 Neste contexto em termos edipianos tal entidade sobrenatural apareceria como uma reedição da figura paterna que estrangeira por excelência ao se interpor em meio à ilusão de completude que inicialmente caracterizaria a relação mãebebê imprimiria no psiquismo infantil a ambivalência de sentimentos como amor ódio e temor Nos termos do próprio Freud A partir de uma mentalidade racionalista é claro podese desautorizar este redirecionamento da angústia pelos olhos à angústia pela castração No entanto deixarseá assim sem explicação a substituição recíproca que no sonho 62 Para Laplanche e Pontalis este se qualifica enquanto um Complexo centrado na fantasia de castração que proporciona uma resposta ao enigma que a diferença anatômica dos sexos presença ou ausência de pênis coloca para a criança Essa diferença é atribuída à amputação do pênis na menina A estrutura e os efeitos do complexo de castração são diferentes no menino e na menina O menino teme a castração como realização de uma ameaça paterna em resposta às suas atividades sexuais surgindo daí uma intensa angústia de castração Na menina a ausência do pênis é sentida como um dano sofrido que ela procura negar compensar ou reparar O complexo de castração está em estreita relação com o complexo de Édipo e mais especialmente com a função interditória e normativa 1992 p 73 122 na fantasia e no mito se dá entre o olho e o membro masculino e não se poderá contradizer a impressão de que por detrás da ameaça de ser privado da genitália se produz um sentimento particularmente intenso e obscuro e que é esse sentimento que empresta seu eco à representação de perder outros órgãos Finalmente qualquer outra dúvida desaparece quando a partir da análise dos neuróticos averiguase o Complexo de Castração em todos os seus detalhes e se toma conhecimento do enorme papel que desempenha na vida anímica de tais pacientes Estes traços do conto como muitos outros parecem caprichosos e carentes de significado se é desautorizado o nexo da angústia pelos olhos com a castração mas fazem pleno sentido com a substituição do Homem da Areia pelo pai temido de quem se espera a castração Portanto arriscarnosemos a associar o inquietante do Homem da Areia à angústia do complexo infantil de castração FREUD 19191976 p 23123363 Bem mais recentemente toda esta problemática seria aprofundada de maneira exaustiva por Kofman 1973 que partindo do inquietante freudiano retorna ao conto de Hoffmann 18171993 para nele analisar a passagem da morte do pai de Natanael como uma espécie de réplica diabólica leiase também uma formação de compromisso relativa à cena primitiva do ato sexual parental Segundo Kofman 1973 corroborariam com tal interpretação certos aspectos da cena em questão a qual se passa à noite em um mesmo horário e de maneira um tanto quanto ritual sendo ainda permeada por sons específicos etc Assim como no trabalho do sonho observa Kofman 1973 tornase interessante notar a inversão dos elementos aqui presentes Por exemplo tratase de dois homens e não de um homem e uma mulher os personagens particularmente envolvidos no encontro particular que vitima o pai de Natanael ainda que é bem verdade o relato deste último apontasse uma atitude passiva por parte de seu genitor diante da estranha visita noturna de Coppelius Nos termos da autora Tudo se passa como se Natanael curioso em deter o saber supremo aquele da fabricação das crianças produzisse uma resposta na fantasia de 63 Na versão castelhana Dentro de una mentalidad racionalista claro está se puede desautorizar esta reconducción de la angustia por los ojos a la angustia ante la castración Sin embargo así se dejará sin explicar el nexo de recíproca sustitución que en el sueño la fantasía y el mito se da a conocer entre ojo y miembro masculino y no se podrá contradecir la impresión de que tras la amenaza de ser privado del miembro genital se produce un sentimiento particularmente intenso y oscuro y que es ese sentimiento el que presta su eco a la representación de perder otros órganos Y en definitiva toda duda ulterior desaparece cuando a partir de los análisis de neuróticos se averigua el complejo de castración en todos sus detalles y se toma conocimiento del grandioso papel que desempeña en su vida anímica Estos rasgos del cuento como otros muchos parecen caprichosos y carentes de significado si uno desautoriza el nexo de la angustia por los ojos con la castración pero cobran pleno sentido si se remplaza al Hombre de la Arena por el padre temido de quien se espera la castración Por tanto nos atreveríamos a reconducir lo ominoso del Hombre de la Arena a la angustia del complejo infantil de castración trad nossa MRS 123 uma criação mágica do tipo prometéica da qual a mulher se mantém excluída KOFMAN 1973 p 16764 Neste mesmo sentido sustenta Kofman 1973 tal movimento rumo ao saber proibido não poderia permanecer impune algo pressentido pelo próprio Natanael e sua reação de medo acompanhada de tremedeira Teríamos aí pensa a autora a deixa para a inferência quanto à emergência de um sentimento mais antigo aquele da angústia de castração particularmente associado conforme o referencial freudiano ao Complexo de Édipo FREUD 19241996 1925b1996 No caso de Natanael como vimos algo evidenciado pelo pavor quanto a perder os olhos para o homem da areia Com efeito sugere Kofman 1973 na fantasia do jovem menino poderia ser lido um desejo de aniquilamento e tomada do lugar do pai desejo este exemplificado pela sua representação enquanto figura marcadamente passiva Assim a cena mágica descrita por Natanael possivelmente representaria o retorno real de uma outra cena somente fantasiada o que inclusive ocasionaria uma sobredeterminação do sentimento inquietante Portanto de acordo com a interpretação que lhe confere Kofman 1973 a partir do referencial freudiano o conto de Hoffmann poderia ser tomado como uma lembrança encobridora destinada a camuflar um desejo proibido já que incestuoso pela mãe bem como a ameaça de morte daí resultante Kofman 1973 porém ainda não encerrou as suas considerações Prova disso é que um pouco mais adiante retomando alguns dos seus postulados anteriores nossa autora propõe que além da angústia de castração o medo da perda dos olhos por parte de Natanael obedeceria ainda mais diretamente à lei de talião já que ligado a uma falta que teria por princípio uma compulsão escópica Por sinal origem dos demais atos culpas e problemas do jovem ao longo da história65 Nos termos de Kofman Porque Nathanaël não é o pai graças também a uma imaturidade biológica do prazer sexual ele não pode ter senão uma representação e uma representação interdita A importância do duplo no restante da sua vida remete a esta primeira substituição do ato pela representação representação original que toma o lugar de uma presença desde sempre interdita O olho de Nathanaël se torna daí em diante diabólico já que desde muito cedo ele foi desviado da sua função natural 64 No original Tout se passe comme si Nathanaël curieux de détenir le savoir suprême celui de la fabrique des enfants y trouvait une réponse en fantasmant une création magique de type prométhéen doù la femme se trouve exclue trad nossa MRS 65 Quanto a este aspecto conferir também Cesarotto 1996 e Mezan 2002 124 para se transformar em um órgão de prazer Ou quando um órgão é desviado simbolicamente da sua função ele acaba sempre por não poder mais exercêla corretamente o voyeur de uma maneira ou de outra perderá sua visão KOFMAN 1973 p 17066 Tal deficiência do olhar de Natanael segue Kofman 1973 poderia ser observada na sua incapacidade em distinguir o animado do inanimado e conseqüentemente o real do imaginário Ou seja nosso herói enxergaria tudo dobrado uma referência ao tema do duplo que marca toda a trama em questão ao que seria possível acrescer a importância simbólica dos óculos e lunetas no decorrer da história Kofman 1973 avança em sua análise ressaltando um tema que acabará por deter considerável importância nas observações finais feitas por nossa autora acerca do trabalho de Freud 19191976 Tratase da pouca ênfase conferida pela leitura do pai da psicanálise à figura feminina da mãe em O Homem da Areia redução aliás presente no próprio escrito de Hoffmann 18171993 Voltaremos a isso Por hora ainda no campo das relações parentais resta destacar que Kofman 1973 chama nossa atenção para uma espécie de herança no que se refere a esta há pouco referida clivagem ou duplicidade da qual Natanael é vítima Isso porque também o pai deste personagem oscilaria entre a segurança e a fraqueza a atividade e a passividade a bondade e a maldade o que dificultaria uma identificação do filho com a sua figura e assim com o próprio eu67 Neste sentido o terror da castração poderia ser pensado como algo ligado a tal dificuldade em se identificar com uma figura estável Aqui vale dizer seguindo uma perspectiva inaugurada por Freud 1922231996 Kofman 1973 estabelece uma interessante relação entre o diabo representado pelo malévolo homem da areia e o pai de Natanael ambos ligados em sua divisão ou duplicidade Em outros termos as metamorfoses do mal no decorrer da história seriam um 66 Ibidem Parce que Nathanaël nest pás le père à cause aussi de limmaturité biologique de la jouissance sexuelle il na pu avoir quune représentation et une représentation interdite Limportance du double dans la vie ultérieure renvoie à cette première substitution de lacte par la représentation représentation originaire qui tient lieu dune présence toujours déjà interdite Loeil de Nathanaël est devenu diabolique parce que très tôt il a été détourné de sa fonction naturelle pour se transformer en un organe de jouissance or lorsquun organe est détourné symboliquement de sa fonction il finit toujours par ne plus pouvoir sexercer correctement le voyeur dune manière ou dune autre perdra la vue trad nossa MRS 67 Com efeito pensa Kofman 11973 Natanael aparece como um prisioneiro do duplo pois sempre dividido em si mesmo Neste sentido sua postura um tanto quanto narcísea eou ensimesmada ao longo do conto funcionaria como meio para tentar conquistar um mínimo de unidade em termos de identidade 125 reflexo das transformações desta figura paterna nunca percebida enquanto coincidente consigo mesma especialmente após as visitas do misterioso Coppelius Tornase possível então sugere Kofman 1973 unir os três personagens acima como representantes de uma única alteridade fundamental desde que lembremos o quanto em termos psicanalíticos leiase edipianos a figura paterna é em geral associada a de um intruso que romperia com a ilusão de completude característica da relação inicial do bebê com sua mãe Portanto um homem que desde a sua introdução na intimidade e aparente completude familiares passa a ser sinônimo de divisão e diferença assim como Coppélius o homem da areia Conforme Kofman O homem da areia é desde sempre o intruso que põe fim à segurança familiar que rompe a intimidade do próprio e do próximo figura do estrangeiro da alteridade que traz consigo a tristeza e o abandono privando de todos os prazeres já que privando do pai Que a separação do pai e a angústia que ela provoca lembram a aflição mais antiga experimentada logo que a criança foi privada da mãe quando das relações sexuais entre seus pais não há dúvida mesma curiosidade mesma angústia nos dois casos KOFMAN 1973 p 17368 De volta ao caráter bipartido do olhar de Natanael em relação a seu pai Kofman 1973 destaca o quanto aí se faria presente uma clivagem entre bom e mal com o objetivo de eliminar a mistura tendendo a conservar a imagem de um pai inicialmente benevolente mas que posteriormente teria sido corrompido pelo diabo O problema diz nossa autora é que tal separação não se daria de uma maneira perfeita pelo próprio fato do pai ser corruptível podendo se transformar em seu contrário Eis a essência do dilema que definiria Natanael e importante aproximáloia do rei Édipo a impossibilidade de deter limites garantidos confundindo o animado e inanimado o homem e a mulher O que o angustia não é tanto a dualidade dos caracteres mas a passagem de um a outro que o mesmo possa se tornar outro A ambivalência atribuída a Édipo se inscreve em uma incapacidade de suportar a ambivalência desde sempre existente em seu pai Ela recobre já uma divisão anterior ela dissimula que o outro separe sempre o mesmo de si mesmo KOFMAN 1973 p 17569 68 No original Lhomme au sable cest dabord lintrus qui met fin à la sécurité familiale qui rompt lintimité du propre et du proche figure de létranger de lalterité qui apporte chagrin et détresse privant de tous les plaisirs parce que privant du père Que la séparation avec le père et langoisse quelle provoque rappelle langoisse plus ancienne éprouvée lorsque lenfant était prive de la mère lors des relations sexuelles nul doute même curiosité mêmes angoisses dans les deux cas trad nossa MRS 69 Ibidem limpossibilité davoir des limites assurées de confondre lanimé et linanimé lhomme et la femme Ce qui langoisse ce nest pas tant la dualité des caractères que le passage de lun dans lautre que le 126 Como vimos no percurso do estrangeiro em Freud realizado por Koltai 2000 o mestre de Viena acabaria por esclarecer melhor tal relação entre a alteridade e a função paterna alguns anos depois da publicação de O Inquietante em Inibição Sintoma e Angústia FREUD 19261996 Há pouco tempo porém este mesmo tema voltaria à baila no trabalho de Viviani 2002 o qual chama nossa atenção para o valor do pai como um desconhecido que incide sobre o mesmo ou seja a pretensa unidade mãebebê produzindo com tal movimento um sujeito singular que livre do olhar materno poderia dar conta do seu próprio desejo Assim temos que a própria emergência da subjetividade coincidiria com a inauguração da condição de estranho de estrangeiro É neste sentido que se torna possível pensar a relação entre a função do pai e esta outra do Unheimliche do inquietante ou estranhamente familiar nosso atual foco de interesse O pai é um estrangeiro Não é um igual A função do pai mutatis mutandis lembremse de Cronos é exercer a castração Quer dizer uma função de separação de uma unidade e nessa separação realizase um segundo nascimento o nascimento para o desejo e para a sexuação para a sexualidade O filho agora não é o que pensava ser Há uma falta no ser A partir do dois temos o três Na realidade o pai será o terceiro termo a posição e função do estrangeiro Como vemos a intervenção paterna a função paterna torna possível que o sujeito possa se contar não como Um da totalidade do universo mas como um da singularidade identificado com esse traço que o caracteriza enquanto sujeito dividido O pai então é o estrangeiro que põe limite ao gozo obsceno da célula narcisista VIVIANI 2002 p 149150 Feitos estes acréscimos é hora de retornarmos a Freud 19191976 que após se ocupar de O Homem da Areia buscará em seguida testar a plausibilidade da associação entre o sentimento do sinistro e um fator de ordem infantil pela possibilidade ou não de aplicála a outros contextos Assim será a partir de Os Elixires do Diabo também uma novela de ETA Hoffmann 1815161983 que o pai da psicanálise nos remeterá ao tema do duplo Com isso ainda que não nos forneça maiores detalhes sobre o conteúdo da obra em questão Freud 19191976 destaca nela a ocorrência de uma grande semelhança entre os personagens em termos de conhecimentos e experiências comuns Enfim uma confusão de identidades pautada pela mútua identificação entre os sujeitos da même puísse devenir lautre Lambivalence due à LOedipe se greffe sur une incapacité à supporter lambivalence toujours déjà existante dans le père elle recouvre là encore une division plus originaire elle dissimule que lautre écarte toujours le même de luimême trad nossa MRS 127 trama aliada à duplicação divisão e intercâmbio do eu processos estes acentuados inclusive pela ocorrência de manifestações telepáticas Aqui o texto freudiano toma como referência um trabalho prévio de Rank 19141976 que acabaria por se revelar bastante útil tanto por propor uma reflexão acerca da interrelação entre o duplo as sombras o animismo e a morte quanto de maneira complementar por buscar traçar a própria evolução desta idéia Como bem resume Chnaiderman Nele Rank procurou entender a origem dessa questão na história da humanidade pensando as várias relações entre a própria imagem vista no espelho e a sombra o espírito tutelar a doutrina da alma e o medo da morte O duplo foi na sua origem uma segurança contra o sepultamento do eu enérgico desmentir do poder da morte sendo provável que a alma seja uma duplicação para defenderse do aniquilamento CHNAIDERMAN 1997 p 224 Freud 19191976 se utiliza de tal quadro para a partir dele sustentar a opinião de que em pleno contexto do século XX teríamos ainda um espaço reduzido para a representação da morte70 Assim interpreta também entre nós a ocorrência do duplo em termos da crença em uma alma imortal por exemplo apareceria como uma medida de segurança diante das sempre eminentes ameaças de destruição da vida por intermédio da doença da velhice ou mesmo pelas forças da natureza Com efeito aponta nosso autor a persistência destas superstições explicaria a ligação entre o sentimento do inquietante Das Unheimliche e os temas da magia do animismo e da onipotência do pensamento Neste processo segue Freud 19191976 poderseia verificar um reflexo direto do narcisismo primário o qual caracterizaria tanto a mente da criança quanto a do homem primitivo71 70 Anacronismo este que leva uma autora como Kristeva 1994 a destacar o inquietante como o reflexo do próprio modus operandi do Inconsciente em sua íntima relação com a repressão Nestes termos partindo da constatação freudiana de que a sensação de sobrenatural se ligaria à angústia de um retorno do reprimido nossa autora enfatiza que poucos seriam os casos onde se apresentaria a completa repressão de um conteúdo qualquer Logo este mesmo retorno do reprimido sob a forma de angústia apareceria como uma metáfora do próprio funcionamento psíquico constituído não somente pela retenção mas também por uma necessária travessia ou permeabilidade todos elementos indispensáveis quer seja para a construção do sobrenatural quer seja para a construção do próprio outro Com isso para Kristeva 1994 orientaria o texto de Freud 19191976 ainda que sutilmente o desejo de revelar as circunstâncias que possibilitariam tal travessia do conteúdo reprimido 71 Para além da menção ao caráter digamos assim politicamente incorreto da associação freudiana entre as figuras do selvagem e da criança no que se refere aos temas do narcisismo e da onipotência do pensamento anteriormente presente em Sobre o Narcisismo uma introdução FREUD 19141996 e derivada das 128 Entretanto novamente para Freud 19191976 uma vez superada esta etapa do desenvolvimento humano ocorreria uma interessante mudança no status do duplo que de garantia de imortalidade passaria à condição de ameaçador arauto de mauspresságios72 Para justificar tal afirmação o mestre de Viena nos remete a uma ocorrência outrora já debatida em Sobre o Narcisismo uma introdução e Luto e Melancolia FREUD 19141996 e 1915171996 respectivamente Tratase da progressiva formação de uma instância psíquica que embora gerada a partir do Ego dele se apartaria exercendo sobre este uma atividade de observação e censura Ainda que denominada aqui consciência moral temos na verdade o prenúncio do Superego que pouco depois vale lembrar alcançaria grande importância em Além do Princípio de Prazer sendo mais tarde retomado em trabalhos como O Ego e o Id FREUD 19201996 e 19231996 respectivamente Neste ponto da nossa leitura tornase importante relembrar o fio condutor proposto pelo próprio Freud 19191976 para a sua análise do inquietante Qual seja o de que este fenômeno seria aquela variedade do aterrorizante que remontaria ao familiar ao há muito conhecido porém reprimido Afinal é com esta perspectiva que podemos compreender a seguinte afirmação com a qual nosso autor encerra seus comentários sobre o duplo enquanto possível representante de uma vivência unheimlich o caráter inquietante só pode se apoiar no fato de que o duplo é uma formação oriunda de épocas primevas e já superadas da vida anímica sendo que naquele tempo ele o duplo possuiu sem dúvida um sentido mais benigno O duplo se tornou uma figura aterrorizante assim como os deuses que com a ruína da sua religião convertemse em demônios FREUD 1919197673 idéias do chamado Evolucionismo Social que marcou a transição do século XIX ao XX SOUZA 2003 cabe aqui definir o narcisismo primário Neste sentido vejamos o que mais uma vez nos dizem Laplanche e Pontalis Em Freud o narcisismo primário designa de um modo geral o primeiro narcisismo o da criança que toma a si mesma como objeto de amor antes de escolher objetos exteriores Esse estado corresponderia à crença da criança na onipotência dos seus pensamentos quer se aceite ou se recuse a noção designase sempre assim um estado rigorosamente anobjetal ou pelo menos indiferenciado sem clivagem entre um sujeito e um mundo exterior 1992 p 290 72 Aliás também quanto a este aspecto O homem da areia de Hoffmann 18171993 parece exemplar nas metáforas que utiliza É o que nos lembra Fuks A saída de Natanael para o mundo levao a um confronto com uma experiência de repetição percebida como tal sob a forma do fatídico personagem que representa o que para Freud 1919 é um duplo do pai Esse encontro reinstala o sinistro 1997 p 206 207 73 Em castelhano el carácter de lo ominoso solo puede estribar en que el doble es una formación oriunda de las épocas primordiales del alma ya superadas que en aquele tiempo poseyó sin duda un sentido más benigno El doble ha devenido una figura terrorífica del mismo modo como los dioses tras la ruina de su religión se convierten en demonios trad nossa MRS 129 O mote da repetição do igual porém permanecerá na ordem do dia para Freud 19191976 sendo inclusive privilegiado como um novo material para a análise da experiência do inquietante É assim que somos remetidos a situações que embora vinculadas ao cotidiano acabariam por extrapolar este contexto tornandose inusitadas por se aproximarem de certos estados oníricos onde se estabeleceria uma certa confusão entre realidade psíquica e realidade material A título de ilustração Freud 19191976 nos conta como em viagem a uma pequena cidade italiana subitamente flagrou a si mesmo perdido e caminhando por uma zona de prostituição Embaraçado rapidamente buscou deixar o local mas seus esforços foram seguidamente frustrados pelo retorno à mesma rua suspeita o que lhe causou uma sensação unheimlich somente dissipada quando finalmente reencontrou a pitoresca piazza da região objeto original do seu interesse No parágrafo seguinte vemos Freud 19191976 empenhado em complementar a sua descrição chamando nossa atenção para outros momentos que a seu ver evidenciariam o papel da repetição involuntária em tornar sinistro o que de outra maneira permaneceria inofensivo e corriqueiro Como exemplo cita a coincidência de em um curto espaço de tempo depararmonos com situações ligadas a um mesmo número ou nome de pessoa algo que sobretudo para os indivíduos mais supersticiosos certamente poderia adquirir um ar secreto de sina ou maldição Aqui embora reafirme a vinculação do inquietante retorno do igual a elementos da psicologia infantil Freud 19191976 se isenta de comentários mais aprofundados sobre o assunto sugerindo aos eventuais leitores interessados a leitura de Além do Princípio de Prazer FREUD 19201996 Ainda assim presenteianos com a seguinte e esclarecedora sentença na qual lemos que a vida psíquica é essencialmente pulsional Ou seja dominada por um excesso de sentido intimamente vinculado por sua vez a um impulso de repetição impassível de simbolização pela via da linguagem e que portanto teima em reaparecer sob a inquietante forma do sinistro No inconsciente psíquico com efeito discernese o império de uma compulsão à repetição que provavelmente depende por seu turno da natureza mais íntima das pulsões tem poder suficiente para subjugar o princípio do prazer confere um caráter demoníaco a certos aspectos da vida mental e todavia exteriorizase com muita nitidez nos impulsos infantis governando ainda uma parte do discurso dos neuróticos Todas as elucidações anteriores nos fazem esperar que se sinta como 130 inquietante justamente o que for capaz de recordar essa compulsão à repetição interior FREUD 19191976 p 23874 Nosso autor escolhe então mais uma vez se voltar à coleta de casos que comprovassem a hipótese anteriormente mencionada de que o Unheimliche diria respeito a um tipo de medo ou angústia que aludiria ao anteriormente familiar75 Com isso convida nos a um passeio por terrenos aparentemente tão distintos quanto os versos de Schiller a neurose obsessiva e o popular mauolhado para deles extrair um único elemento em comum a chamada onipotência de pensamento No primeiro exemplo representada pela pronta realização dos desejos de Polícrates personagem do poeta alemão No segundo pelo relato de pressentimentos que mais tarde acabariam por se tornar realidade76 Finalmente no que se refere ao mau olhado pelo receio da efetividade de uma suposta intenção secreta e invejosa de fazer o mal Para Freud 19191976 estes exemplos nos possibilitariam um retorno teórico ao animismo como sistema de crenças derivado de uma incapacidade do selvagem em suportar as proibições impostas pela realidade Tal condição o levaria a em certo sentido confundirse com ela povoando o mundo de almas desencarnadas e preconizando assim uma supervalorização narcísica do sujeito e dos seus processos mentais Isso pela atribuição 74 Ibidem En lo inconciente anímico en efecto se discierne el imperio de una compulsión de repetición que probablemente depende a su vez de la naturaleza más íntima de las pulsiones tiene suficiente poder para doblegar al principio de placer confiere carácter demoníaco a ciertos aspectos de la vida anímica se exterioriza todavía con mucha nitidez en las aspiraciones del niño pequeño y gobierna el psicoanálisis de los neuróticos en una parte de su decurso Todas las elucidaciones anteriores nos hacen esperar que se sienta como ominoso justamente aquello capaz de recordar a esa compulsión interior de repetición trad nossa MRS 75 Embora estes pormenores excedam as pretensões do presente estudo não deixa de ser interessante mencionar aqui o contraponto estabelecido por Pereira 2004 entre as definições de angústia por derivação do Unheimliche presentes nas obras de Freud e Lacan Segundo a autora para o primeiro a angústia apareceria originalmente ligada à ameaça de castração ou perda de um objeto anteriormente presente e particularmente investido logo familiar como a mãe por exemplo Já em Lacan apesar de ainda significar um afeto a angústia não estaria exatamente associada a um sinal de perigo externo ou interno mas à própria posição do sujeito frente a um Outro preexistente exterior e determinante de si do sujeito Neste sentido conforme o aporte lacaniano para além da imagem da qual é feito o homem encontraria a sua casa em um ponto situado no Outro lugar representativo de uma ausência fundamental e constituinte do humano Com efeito segundo o psicanalista francês a angústia somente poderia ser compreendida se levássemos em conta a constituição do sujeito pela via de uma falta estrutural e estruturante sendo que qualquer objeto que parecesse ocupar o lugar desta ausência dispararia o sinal de alarme representado pelo sinistro relação entre falta desejo e vida enquanto movimento 76 Para aquele leitor menos familiarizado com a teoria freudiana este e outros aspectos da estrutura obsessiva são discutidos detalhadamente no relato clínico do chamado homem dos ratos FREUD 19091996 131 a pessoas ou objetos específicos de poderosas qualidades mágicas que influenciariam as ações dos supostos espíritos que governariam a nossa existência Neste momento do texto o pai da psicanálise retoma aquela associação anteriormente feita entre as mentes primitiva e infantil como se todo ser humano houvesse um dia passado por um período do seu desenvolvimento individual semelhante ao animismo enquanto negação narcísica do princípio de realidade E mais preservando certos resquícios desta fase que posteriormente encontrariam sua expressão justamente no sentimento do inquietante77 Eis quando de maneira sintética Freud 19191976 novamente retoma a perspectiva norteadora do seu trabalho expondoa ao leitor através das seguintes observações Em primeiro lugar se a teoria psicanalítica está certa quando assevera que todo afeto de um impulso emocional de qualquer classe que seja se transforma em angústia por obra da repressão entre os casos daquilo que provoca angústia deve haver um grupo em que se possa demonstrar que este angustiante é algo reprimido que retorna Esta variedade do que provoca angústia seria justamente o inquietante sendo indiferente se em sua origem fora algo angustiante ou então se foi substituído por algum outro afeto Em segundo lugar se esta é na verdade a natureza secreta do inquietante podemos compreender que os usos da língua tenham transformado o Heimliche o familiar em seu oposto o Unheimliche pois este inquietante não é efetivamente algo novo ou alheio mas sim algo há muito familiar ao psiquismo somente alijado dele pelo processo da repressão Esse nexo com a repressão ilumina agora também a definição de Schelling segundo a qual o inquietante é algo que embora destinado a permanecer oculto teria vindo à tona FREUD 1919197678 77 Em nota de rodapé Freud 19191976 faz aqui referência a um trabalho anterior que de certa maneira já prenunciava estas idéias Tratase de Animismo Magia e a Onipotência de Pensamentos terceiro dos ensaios contidos em seu famoso e polêmico livro Totem e Tabu FREUD 1912131996 78 Na versão castelhana La primera Si la teoría psicoanalítica acierta cuando asevera que todo afecto de una moción de sentimientos de cualquier clase que sea se trasmuda en angustia por obra de la represión entre los casos de lo que provoca angustia existirá por fuerza un grupo en que pueda demostrarse que eso angustioso es algo reprimido que retorna Esta variedad de lo que provoca angustia sería justamente lo ominoso resultando indiferente que en su origem fuera a sua vez algo angustioso o tuviese como portador algún otro afecto La segunda Si esta es de hecho la naturaleza secreta de lo ominoso comprendemos que los usos de la lengua hagan pasar lo Heimliche lo familiar a su opuesto lo Unheimliche pues esto ominoso no es efectivamente algo nuevo o ajeno sino algo familiar de antiguo a la vida anímica sólo enajenado de ella por el proceso de la represión Ese nexo com la represión nos ilumina ahora también la definición de Schelling según la cual lo ominoso es algo que destinado a permanecer en lo oculto ha salido a la luz trad nossa MRS Aqui a despeito do caráter central desta citação para o entendimento do rumo tomado pelo trabalho de Freud 19191976 vale a pena a título de curiosidade chamar atenção para a última frase onde nosso autor utiliza como argumento para as suas idéias uma citação de Schelling Isso porque segundo um estudioso do filósofo alemão como Carvalho 1989 tratarseia de um uso absolutamente indevido Neste sentido é o mesmo Carvalho 1989 quem enfatiza como ao contrário de Freud 19191976 para o qual a perda do limite entre o eu e o outro significaria algo próximo ao terror tal ocorrência adquiriria em Schelling uma conotação bastante positiva e associada à mitologia Logo o unheimlich do filósofo alemão apareceria como 132 Insatisfeito com a quantidade de exemplos até aqui utilizados para a sua discussão da vivência do inquietante Freud 19191976 escolhe alguns outros como o confronto com a morte e seus conteúdos Para si eis um terreno certamente marcado pela superstição e pelo conservadorismo intelectual relativos por sua vez à recusa do Inconsciente quanto à idéia da própria mortalidade Neste sentido uma das imagens em geral apresentadas como mais freqüentemente assustadoras a de ser enterrado vivo por engano é explicada pelo nosso autor como a transformação de uma outra fantasia originalmente inofensiva aquela da existência intra uterina Aliás sugere Kristeva 1994 tal conteúdo nos remeteria a mais uma das fontes do sinistro catalogadas por Freud 19191976 o feminino representado por uma certa inquietude neurótica em relação à vagina mistura entre terra natal e terra do desconhecido Para além da origem e do fim avança Freud 19191976 teríamos ainda completando este quadro o encontro com o próprio homem enquanto outro potencialmente ameaçador Isso devido à sua suposta qualidade de representante de forças inauditas ou maléficas que ao se tornarem visíveis por exemplo na epilepsia ou na loucura levarnos iam a pressentir a sua presença sorrateira também em cada um de nós79 Antes de seguirmos adiante rumo às últimas páginas do texto de Freud 19191976 cabe enfatizar um outro foco utilizado por ele para discutir a experiência do inquietante exemplo este que dada a sua natureza mais ampla englobando aspectos anteriormente discutidos aqui como a perspectiva freudiana do animismo merece encerrar esta parte da nossa análise Diz respeito ao caráter unhemlich provocado por qualquer sensação de um fim da distinção entre imaginação e realidade Ou seja tratase de uma confusão entre o eu e o mundo para além do campo da linguagem representacional quando aparece diante de nós como real algo que havíamos tomado por fantástico quando um símbolo assume a plena operação e significado do simbolizado FREUD 19191976 p 244 Segundo o pai da psicanálise poderíamos perceber aí a presença de uma supervalorização da realidade psíquica em contraponto à realidade material associada por seu turno à chamada onipotência dos pensamentos resultado imediato da perda do mito enquanto indiferenciação com o mundo ao passo que o estranhamente familiar do mestre de Viena adviria precisamente dos riscos identificados por ele nesta mesma comunhão 79 Novamente para Kristeva 1994 poderseia perceber em tais poderes uma possível manifestação da pulsão como entrecruzamento do simbólico e do orgânico do psíquico e do biológico 133 Eis um tema seguramente importante e que vem sendo homenageado por uma série de reflexões contemporâneas Por exemplo a de Fuks 1997 que estabelece uma interessante relação entre tal discussão e o conceito de recusa Verleugnung proposto por Freud 19271996 em seu trabalho acerca do fetiche enquanto forma de preservação mesmo que inconsciente da crença no falo materno recusa de castração Fuks 1997 lembra ainda que o texto citado trazia também o relato de casos onde a recusa se estabelecia no que se refere à morte do pai De qualquer forma ambas as situações teriam pelo menos um importante ponto em comum produzse uma cisão da vida psíquica em duas correntes uma que aceita a realidade da castração e da morte ou seja a diferença fálicocastrado e a diferença vivomorto e outra corrente ou parte da vida psíquica em que essas diferenças não existem A ausência da corrente que está de acordo com a realidade abre a possibilidade da psicose FUKS 1997 p 20820980 Já para Kristeva 1994 tal coisificação dos signos resultante por seu turno de uma falha do significante arbitrário imposto pela realidade material testemunharia a fragilidade da repressão e o papel do Unheimliche como indício simultâneo das nossas latências psicóticas e da inconsistência da linguagem enquanto barreira simbólica e estruturante do reprimido81 Com efeito na qualidade de perda do limite entre imaginação e realidade o inquietante significaria o desmoronamento das defesas conscientes a partir dos conflitos do ego com o outro com o qual aquele manteria uma relação conflitante e que deslizaria entre os pólos do medo e da identificação 80 Neste mesmo sentido um outro texto de Freud mencionado por Fuks 1997 é o que se refere ao tema dos três escrínios FREUD 19131996 o qual embora anterior guarda uma relação próxima com os temas do duplo e do inquietante e assim interessa de perto à nossa discussão Nele vale lembrar o mestre de Viena se refere à mitologia grega para evidenciar a seguinte compreensão a criação das Moiras deusas do destino e da morte certamente significou um avanço no reconhecimento de que enquanto parte da natureza também o homem estaria sujeito ao mesmo processo de amadurecimento envelhecimento e morte pelo qual passam os demais seres vivos Entretanto este mesmo homem parece se rebelar contra tal reconhecimento pela criação de outros mitos nos quais tanto o amor quanto outras figuras humanas são tornados divindades driblando ou substituindo assim a força inexorável do destino Mais uma vez nos termos de Fuks A mais bela e a melhor das mulheres a mais cobiçada e mais digna de ser amada virá ocupar esse lugar A escolha da mulher esse é o tema do material mitológico ou literário vem dessa maneira substituir a fatalidade A morte admitida no pensamento é superada na fantasia O que não impede que a mais bela e a melhor conserve certos traços inquietantes FUKS 1997 p 209 81 Em tal caso porém o retorno deste reprimido não se manifestaria pela via da atuação ou do sintoma mas pela inquietante sensação do sobrenatural 134 Quantas implicações possíveis deste encontro com o outro pensa Kristeva 1994 principalmente se nos remetem ao outro de nós mesmos Afinal tratase de uma experiência permeada pela introjeção e pela projeção a qual pode ser percebida pelos sentidos mas não necessariamente enquadrada pela consciência clivandonos e deslocando sensações e julgamentos para além dos seguros limites de uma suposta mas como vemos enganosa coerência Eis portanto o abismo imposto pela alteridade revelando um inquietante que põe em cheque a nossa própria ilusão de autonomia Mais uma vez de volta à nossa leitura alcançamos então a terceira e última parte do texto de Freud 19191976 marcada pela defesa do grande papel desempenhado pela repressão Verdrängung na experiência do inquietante Assim aponta nosso autor fazendo também as vezes da promotoria de um júri imaginário um forte argumento a ser superado é o seguinte nem tudo que ao ressurgir evocando consigo desejos supostamente reprimidos eou modos aparentemente superados de pensamento causa necessariamente uma sensação de desassossego Neste sentido os contos de fadas estão repletos de elementos ligados ao animismo e à onipotência dos pensamentos assim como o Novo Testamento traz a marca da ressurreição dos mortos Entretanto tais fenômenos não provocam em seus leitores a angústia do Unheimliche Diante de tal constatação Freud 19191976 pondera que os exemplos contrários à sua tese adviriam em termos gerais dos domínios da ficção literária Daí a necessidade de distinguir o inquietante apenas lido ou vislumbrado daquele outro efetivamente vivenciado ao qual se ajustaria a solução psicanalítica baseada na relação entre o efeito do sinistro e a repressão Todavia acrescenta o mestre de Viena também no que se refere a esse último caberia fazer uma diferenciação psicologicamente importante quanto ao material utilizado na presente discussão em termos da sua superação ou repressão Afinal o desassossego relativo à onipotência dos pensamentos que engloba como vimos o imediato cumprimento de desejos a crença em secretas forças maléficas e o retorno dos mortos nasce de uma condição específica a aparente confirmação de crenças anteriormente superadas pelo teste de realidade da razão objetiva Enquanto isso algo diverso ocorre com o inquietante proveniente de complexos infantis reprimidos do complexo de castração ou das fantasias intrauterinas onde 135 não entra em cena o problema da realidade material substituída pela realidade psíquica Tratase da efetiva repressão desalojamento de um conteúdo e do retorno do reprimido e não do fim da crença na realidade deste conteúdo Então alcançamos o seguinte resultado o inquietante experiencial se produz quando complexos infantis reprimidos são revividos por uma impressão ou quando parecem ser confirmadas convicções primitivas superadas FREUD 19191976 p 24724882 Ainda que nem sempre seja viável estabelecer uma completa distinção entre tais processos avança Freud 19191976 essa nova diferenciação relativa ao inquietante experiencial tornase importante porque o contraste que estabelece entre o superado e o reprimido não poderia ser transposto para o reino da fantasia sem sensíveis modificações Isso porque o inquietante ficcional mais fértil e mais amplo que o anterior dependeria para causar seu efeito precisamente de uma insubmissão do seu conteúdo ao teste imposto pela realidade Logo coisas que caso ocorressem na vida real seriam inquietantes não o são na criação literária onde existem muitas possibilidades de alcançar efeitos inquietantes ausentes na vida real FREUD 19191976 p 24883 Neste mesmo sentido conviria não esquecer que Entre as muitas liberdades do criador literário se encontra também a de escolher ao seu belprazer o universo figurativo que adota de maneira que coincida com a realidade que nos é familiar ou se distancie dela de algum modo E nós o seguimos em qualquer dos casos FREUD 19191976 p 24824984 Estes são em termos gerais os argumentos utilizados por Freud 19191976 em defesa da aplicabilidade da sua hipótese a qual como vimos ao longo desta exposição associa a sensação de unheimlich ao retorno de um conteúdo familiar anteriormente reprimido Agora ao alcançarmos o final do texto paira no ar o sentimento de uma certa onipotência não necessariamente inquietante mas nem por isso menos curiosa É aquela 82 No castelhano no entra en cuenta el problema de la realidad material remplazada aquí por la realidad psíquica Se trata de una efectiva represión desalojo de un contenido y del retorno de lo reprimido no de la cancelación de la creencia en la realidad de ese contenido Entonces nuestro resultado reza Lo ominoso del vivenciar se produce cuando unos complejos infantiles reprimidos son reanimados por una impresión o cuando parecen ser refirmadas unas convicciones primitivas superadas trad nossa MRS 83 Ibidem cosas que si ocurrieran en la vida serían ominosas no lo son en la creación literaria y en esta existen muchas posibilidades de alcanzar efectos ominosos que están ausentes en la vida real trad nossa MRS 84 Ibidem Entre las muchas libertades del creador literario se cuenta también la de escoger a sua albedrío su universo figurativo de suerte que coincida con la realidad que nos es familiar o se distancie de ella de algún modo Y nosotros lo seguimos en cualquiera de esos casos trad nossa MRS 136 proporcionada pelo fato de que tendo se aventurado pelo terreno da estética avaliando os recursos literários de autores como ETA Hoffmann é a retórica do próprio mestre de Viena que ora se submete à nossa apreciação enquanto leitores E então fomos mais ou menos convencidos Que cada intérprete tire as suas próprias conclusões Atendendo a esta solicitação Kofman 1973 por exemplo a despeito de qualificar como salutar a proposta freudiana de tratar personagens fictícios como se fossem de carne e osso o que estabeleceria uma importante ligação entre o real e o imaginário entre o desejo e a obra de arte abolindo assim o caráter sagrado desta última aponta um certo furor objetivante como o limite da inquietante incursão do pai da psicanálise pelo campo literário Nas suas palavras Freud por outro lado ao fazer do texto uma leitura temática daí retirando um significado fundamental o complexo de castração o qual se torna responsável pelo efeito produzido parece se fazer refém da lógica tradicional do signo tornando a obra a ilustração paradigmática de uma verdade exterior e anterior KOFMAN 1973 p 17717885 Como alternativa frente ao impasse representado pelo que considera uma hermenêutica de causa única Kofman 1973 propõe maior ênfase na multiplicidade presente na hipótese da pulsão de morte uma vez que com esta a obra não será mais a ilustração segunda de um modelo original último pois uma tal hipótese fere toda identidade e plenitude de sentido fazendo do texto um duplo original Com a noção de pulsão de morte compreendida enquanto um princípio de economia geral à distinção entre imaginário e real se contrapõe uma problemática do simulacro sem modelo original ela introduz no interior do texto uma estrutura de duplicidade que não se deixa mais apropriar por uma problemática da verdade ou da mentira e nem tampouco se submete a ela KOFMAN 1973 p 17886 85 Ibidem Freud dun autre côté en faisant du texte une lecture thématique en dégageant un signifié fondamental le complexe de castration qui serait responsable de leffet produit semble être pris dans la logique traditionnelle du signe faire de loeuvre une illustration paradigmatique dune vérité qui lui serait extérieure et antérieure trad nossa MRS 86 Ibidem loeuvre ne saurait plus être lillustration seconde dun modèle originaire au sens plein car une telle hypothèse entame toute identité et plénitude de sens et fait du texte un double originaire Avec la notion de pulsion de mort comprise comme un principe déconomie générale à la distinction de limaginaire et du réel se substitue une problématique du simulacre sans modèle originaire elle introduit à lintérieur du texte une structure de duplicité qui ne se laisse plus réapproprier dans une problématique de la vérité ou du mensonge ni maîtriser par elle trad nossa MRS 137 Assim para Kofman 1973 ainda que por um lado o conto de Hoffmann 18171993 autorizasse uma leitura analítica como a de Freud 19191976 por outro ao estabelecer uma infinita proliferação das variadas formas do duplo a inquietante desventura do jovem Natanael impediria que se buscasse nela um sentido pleno do texto a ser alcançado pelo Complexo de Castração Com efeito pensa nossa autora tal multiplicação do duplo para além de dificultar a compreensão da história graças a uma mistura ou confusão de temas faria da própria desordem a regente do texto aspecto este obliterado pelo mestre de Viena Tudo se passa como se Freud não pudesse suportar a importância concernente às pulsões de morte ficando O Inquietante com as suas anulações sucessivas e seu andamento tortuoso como um último esforço para recobrir o retorno do reprimido que emerge na teoria esforço esse que prova uma vez mais o caractere insuportável da hipótese das pulsões de morte KOFMAN 1973 p 17987 Eis o mote para que Kofman 1973 retorne à pouca expressão concedida tanto por Hoffmann 18171993 quanto por Freud 19191976 à figura materna ao longo de O Homem da Areia Para nossa autora teria sido impossível a ambos suportar a proximidade do pequeno Natanael com uma mãe proibida e portanto mensageira do aniquilamento É precisamente tal identificação porém que é tomada por Kofman 1973 como análoga à pulsão de morte Desta forma o trabalho de Kofman 1973 estabelece um contraponto entre duas atitudes disponíveis a todo escritor permanecer na defensiva maquiando seu texto ou por outro lado deter a coragem necessária à abertura de sentido Mais uma vez nas palavras da própria autora tratase para todo escritor de uma defesa vital travestir seu texto recobrilo protegelo por todo um buquê de temas ou se interrogar indefinidamente acerca da fabricação do texto esta que pode ser ainda uma maneira de tentar estabelecer domínio sobre ele KOFMAN 1973 p 18188 87 Ibidem Tout se passe comme si Freud ne pouvait supporter limportance de la découverte concernant les pulsions de mort et que LInquiétante étrangeté avec ses annulations successives sa démarche tortueuse soit comme um dernier effort pour recouvrir le retour du refoulé que emerge dans la théorie effort qui pouve une fois de plus le caractère insoutenable de lhyphothèse des pulsions de mort trad nossa MRS 88 No original il est peutêtre pour tout écrivain une défense vitale travestir son texte le recouvrir le protéger par tout un faisceau de thèmes ou bien sinterroger indéfiniment sur la fabrique du texte ce qui peut être encore une manière de tenter de le maîtriser trad nossa MRS 138 Tal privilégio às relações entre psicanálise e arte bem como a ênfase na dimensão criativa inerente ao conceito de pulsão de morte une o texto de Kofman 1973 a dois outros bem mais recentes cujo conteúdo também nos fornece um interessante material para reflexão Em primeiro lugar temos o trabalho de Chnaiderman 1997 que vê na sublimação uma alternativa para a recomposição psíquica diante da angústia relativa ao inominável do outro Neste sentido a autora retoma algumas observações de Freud em Além do Princípio do Prazer 19201996 particularmente as que se referem a uma qualidade específica da pulsão aquela de para além do campo representacional demarcar intensidades que acabam por desarrumar códigos ou circuitos préestabelecidos para com elas afirmar a possível origem da criação e da própria subjetivação na colisão das pulsões de vida e morte89 Entre os destinos da pulsão é a sublimação que marca de forma nítida a questão da morte O horrível emerge inapreensível para logo resplandecer na função do belo Tratase da pulsão de morte sempre desordenando qualquer ordem representacional É o corte transgressivo da pulsão de morte que fecunda o erotismo obrigando a uma reconciliação criadora A vida é recuperada enquanto potência criativa Na colisão pulsional no choque fabricase a matériaprima para um possível processo de subjetivação Emergem inscrições absolutamente primárias circuitos originários da pulsão É a partir desse desmanchamento que novos circuitos podem ser instaurados e a criação pode ocorrer Surge uma nova noção de sujeito psíquico sujeito em permanente desfazimento sujeito como lugar de colisão pulsional A relação com o mundo é de incerteza surgindo um sujeito ao mesmo tempo exterior e submetido a uma força estranha demoníaca mas que pode criar CHNAIDERMAN 1997 p 229230 Já Silva Junior 2001 analisando em conjunto O Inquietante freudiano e alguns trechos da obra de Fernando Pessoa enfatiza o potencial inovador de ambos em termos de ficcionalidade expressão cunhada para designar o poder de suspensão da ficção no sentido de colocar entre parênteses tanto a realidade como os conteúdos imaginários SILVA JUNIOR 2001 p 290 Com isso a aposta de Silva Junior 2001 reside em que contrariando uma certa reserva por parte do seu criador também a psicanálise possuiria uma capacidade semelhante a ponto de podermos pensar em um efeito inquietante do próprio saber inaugurado por Freud 89 Interessante notarmos que em tal processo diznos Chnaiderman 1997 a sublimação não aboliria o desejo mas possibilitaria sim o rearranjo de um campo de tensões permitindo ainda que com outros instrumentos uma nova vivência do traumático enquanto constituinte do ser em movimento 139 Neste sentido Silva Junior 2001 afirma a familiaridade da segunda tópica freudiana com a ficcionalidade enquanto capacidade artística de suspender os registros tanto da fantasia quanto da realidade o que em última análise significaria uma potência criativa em direção ao novo Mais ainda seguindo esta mesma linha argumentativa somos apresentados à proposta de um novo tipo de inquietante aquele produzido pela ficcionalidade da heteronímia e pela psicanálise enquanto duas esferas complementares da experiência humana A heteronímia pessoana e as noções freudianas a partir de Além do Princípio do Prazer 1920 privilegiam o ponto de vista de uma eficácia do negativo anterior às causalidades tanto da realidade quanto da imaginação A noção de pulsão de morte se constitui assim como um conceito fundamental para a ficcionalidade da psicanálise enquanto conceito de uma tendência do organismo de retorno ao estado que o nega enquanto organismo a pulsão de morte representa o único poder do psiquismo de liberdade diante da realidade enquanto necessidade e da ficção como realização de desejos Assim a psicanálise seria inquietante não somente por causa da sua familiaridade com a ficção mas também por causa de sua familiaridade com a ficcionalidade e com a abertura entre a ficção realizadora de desejos e a realidade SILVA JUNIOR 2001 p 318319 Para além dos contextos filosófico e literário destaca Silva Junior 2001 resta mencionar a considerável implicação destas idéias em termos clínicos Afinal diferentes modos de apreensão da relação entre a psicanálise e a ficção podem significar também distintas escutas do Inconsciente É o que sugere a seguinte passagem Se a ficção é inquietante pelos conteúdos imaginários que esconde em seu interior a ficcionalidade o é pelo desvelamento da ausência como origem do psiquismo A ficcionalidade tem a estrutura de uma abertura onde a negatividade isto é a ruptura do espaço sob risco da catástrofe permite uma passagem Essas duas abordagens da ficção geram diferentes escutas no analista e portanto diferentes disposições da situação analítica enquanto a ficção como formação de compromisso engaja o analista numa pesquisa estática do arqueólogo a ficção enquanto área intermediária lhe oferece o silêncio móvel de Gradiva SILVA JUNIOR 2001 p 319 Vemos portanto que as leituras de O Inquietante realizadas tanto por Kofman 1973 quanto por Chnaiderman 1997 e Silva Junior 2001 nos remetem a uma abertura de sentido que se estende da relação entre a psicanálise e a ficção literária à própria atividade clínica Em outras palavras convidamnos a refletir sobre a alteridade ou estranheza inerentes à função do psicanalista alguém que se em termos espaciais 140 geralmente se localiza por detrás do divã detém uma função que seguramente demanda a ocupação de uma outra posição bastante estratégica Tratase do lugar ou sítio do estrangeiro perspectiva inaugurada por Fédida 1988 1991 1996 autor do qual nos ocuparemos a seguir encerrando assim o presente capítulo A Alteridade do Inconsciente e a Estranheza da Situação Analítica comentários a partir da obra de Pierre Fédida Assim como os demais autores que privilegiamos anteriormente também Fédida 1988 adota o texto de Freud 19191976 como inspiração para as suas idéias Neste caso voltadas a uma discussão que aponta algumas características partilhadas pelo inquietante e pelo amor transferencial mobilizado na clínica psicanalítica Uma delas é que em ambos os casos farseia presente a manifestação de um retorno do reprimido Além disso também se tornaria viável pensar o caráter unheimlich nada transferência pelo seu poderio psicóticoalucinatório que a partir do analista possibilitaria a emergência de um duplo deste último Com isso sugere Fédida 1988 para que estivesse apto a lidar com o sinistro da transferência caberia ao analista manter a si mesmo no chamado sítio do estrangeiro Afinal é a neutralidade deste lugar de silêncio e nãoresposta que poderia garantir ao outro ao analisando travar contato com a alteridade do seu próprio Inconsciente Com efeito entre as dificuldades de nossa prática de analistas não é das menores a de se manter neste sítio do estranho ou como diria Freud numa cena radicalmente diferente da do paciente o analista ocupa o sítio constitutivo e fundante dos lugares de uma fala cujo destinatário não pode ser ele mesmo O destinatário é alucinatoriamente o objeto interno de transferência enquanto for significado para a fala pela nãoresposta por esta recusa em responder que é a condição de reserva da linguagem enquanto possa pertencer à cena psíquica mas estando ausente FÉDIDA 1988 p 80 83 Fédida 1988 prossegue alertando para os riscos da saída do sítio do estrangeiro pela via da identificação do analista com o lugar a ele sugerido pela fala do analisando fala de resposta Isso geraria a desinstauração da situação analítica e conseqüentemente a condição para a emergência de um outro sinistro ou inquietante Tratase daquele presente 141 na contratransferência enquanto retorno sobre o analista das sombras transferenciais que este não teria conseguido conter após produzilas a partir da sua própria pessoa toda fala de resposta isto é toda fala que tende a fazer com que o analista se identifique ainda que momentaneamente ao destinatário da fala ou a se implicar no papel do objeto transferencial da fala desinstaura a situação analítica e produz as condições do sinistro da transferência na contratransferência o visual da manifestação o retorno do recalcado ensurdece ou aniquila temporariamente a linguagem na sua função de des fascinar as imagens de produzir ao nomear o figurável e de constituir a forma dos lugares possíveis da interpretação FÉDIDA 1988 p 8389 Como se pode notar os temas da linguagem da familiaridade e da distância se apresentam na ordem do dia Assim é que em um trabalho posterior Fédida 1991a destacará a capacidade da língua em ao nomear as coisas delas determinar uma distância justa distância essa aliás necessária para que o nomeado revele a si mesmo Neste mesmo sentido Fédida 1991a aponta ainda o quanto a habitual ênfase na função comunicativa da língua significaria uma considerável perda já que Descrever ou representar aquilo que se vê provoca uma dissociação entre olhar e fala e assim a perda do olhar que a língua porta em si FÉDIDA 1991a p 52 Em tal perspectiva o ato poético aparece como uma apropriação do próprio a partir de um sítio definido pelo estrangeiro tradução metáfora e importante transferência de sentido para além daqueles que a função descritiva ou comunicativa da língua aplaina e com isso simplifica Com efeito teríamos neste mesmo estrangeiro o fundo de silêncio solicitado pelas coisas para que essas sempre a partir do seu desenho próprio pudessem se deixar traduzir pela língua É desta forma que Fédida 1991a aproxima os terrenos da língua da poesia e do sonho repleto de imagens férteis em possibilidades O seguinte trecho resume bem muito do que dissemos até agora auxiliandonos a pensar a escuta analítica não em termos de uma intenção pragmática ou metacomunicativa da língua mas no estrangeiro que nela reside É certamente a partir da experiência adquirida pelos artistas e poetas que podemos ter acesso a esse duplo movimento de tradução e de transferência ao qual as palavras nos convidam O uso que fazemos de nossa língua dita moderna geralmente permanece prisioneiro das intenções conscientes de significar e de um saber daquilo que queremos dizer para nos fazer compreender 142 O próprio é possessão do eu ávido por resposta O sítio do estrangeiro fica então soterrado sob a funcionalidade exacerbada da comunicação a partir do modelo de interlocução A língua ameaça então fazernos esquecer que apenas o estrangeiro que nela reside torna possível a escuta FÉDIDA 1991a p 58 Ainda com base nestas idéias Fédida 1991a enfatizará um pouco mais adiante a natureza particular da ética que regulamenta o encontro analítico Segundo ele esta pressuporia uma neutralidade que permitisse a escuta de uma fala transferencial cujo destinatário é um ausente que deveria ser significado ao analisando pela via da interpretação e que sob nenhuma hipótese deveria ser confundido com a própria pessoa do analista Em outros termos mantendose fiel à linha de raciocínio que adota o psicanalista francês mais uma vez legitima o lugar ou mais precisamente o nãolugar do analista como um sítio do estrangeiro cuja fala será ambígua graças à virtude das palavras de ressoar segundo a ambigüidade essencial que o amor lhes confere FÉDIDA 1991a p 59 De volta ao tema da linguagem Fédida 1991a nos propõe que esta mesma ambigüidade essencial que orientaria o fenômeno transferencial e o lugar de estrangeiro do analista apareceria no discurso do analisando qualificado pelo nosso autor como sintoma e conseqüentemente formação de compromisso entre a consciência e o Inconsciente Qual a implicação disso Ora que faria parte da função do analista possibilitar a separação da intenção presente no enunciado consciente daquela outra mensagem subliminar que a partir daí poderia ser lida enquanto manifestação de um desejo reprimido de natureza infantil Dito de outra forma Fédida 1991a chama a nossa atenção para que o poder de ressonância das palavras proferidas na situação transferencial seja despertado e se manifeste portanto seja escutado a partir do silêncio do analista Enfim que a não resposta deste estrangeiro mobilize uma por vezes ensurdecedora ressonância a ser produzida e identificada pelo próprio paciente Ou ainda que na manutenção da justa distância da qual falamos há pouco o discurso atual do paciente possa permitir a escuta de um desejo inatual Com isso ao mesmo tempo em que propõe que a instalação de uma análise somente ocorreria na quebra da estrutura da língua enquanto recurso metacomunicativo papel da regra fundamental e livreassociativa Fédida 1991a reafirma os riscos embutidos na confusão da função do analista com a sua própria pessoa Ou seja alertanos 143 para a necessidade da alteridade em psicanálise frente aos perigos representados por uma ilusão de simetria que anularia tanto as potencialidades da fala quanto a emergência do terceiro ausente a quem as palavras do analisando se dirigiriam Em outras palavras não somente a nãoresposta solicita a palavra em sua liberdade de falar mas ela significa que o analista não deve se tomar pelo terceiro ausente ao qual ela se dirige A dificuldade de qualquer prática analítica principalmente se ela se especificar enquanto psicoterapia está ligada às ameaças de anulação desse terceiro ausente Se a comunicação entre o analista e seu paciente transformarse em diálogo de implicação recíproca e participação intercompreensiva as palavras deixarão de possuir o recurso de espírito que a língua lhes confere É o estrangeiro que dá direito ao terceiro ausente FÉDIDA 1991a p 62 Desta maneira constituiriam o ofício do psicanalista a permanente vigilância em relação aos recobrimentos potencialmente produzidos pela presença do familiar e associada a esta tarefa a manutenção do silêncio do neutro como a vertical do estrangeiro própria à dissimetria da situação analítica Aliás prossegue Fédida 1991b é desta mesma verticalidade em si mesma um ato de revelação e de linguagem em termos de construção e de interpretação que dependeria a atemporalidade do encontro analítico eminentemente marcado pelo anacronismo próprio aos registros do sonho e do Inconsciente Em tal contexto o silêncio da neutralidade do analistaestrangeiro aparece como pano de fundo para a ressonância da fala daquele que sofre libertandoo para que pouco a pouco vá se tornando mais íntimo do que diz Mais uma vez conforme nosso autor Se ao falar o analisando entra nos tempos implicados de sua fala e pressente suas significâncias transferenciais o pano de fundo é o silêncio do neutro E embora o analistaestrangeiro não seja um tradutor seu silêncio não deixa de ser atividade de linguagem na qual a escritura invisível da colocação em figuras forma a memória da fala escutada Em outros termos o estrangeiro é o fundo de surgimento e de insurgência que a fala descobre em contato com o silêncio E é justamente sob esta condição que a interpretação por excelência ato de manifestação do estrangeiro no coração do íntimo é mudança de vista e abertura dos possíveis em um processo de historização FÉDIDA 1991b p 7273 Uma boa parte destas questões viria a ser retomada por Fédida 1996 em O Interlocutor Como sugere o próprio título tratase de um trabalho eminentemente voltado ao tema da alteridade em psicanálise e que nos interessa de perto por além de sintetizar 144 muito do que vimos até o momento retornar à inquietante estranheza constituinte da transferência Neste sentido o psicanalista francês se posiciona contra qualquer domesticação ou categorização formal do fenômeno sob o risco de banalizálo esvaziando assim a essência da própria situação analítica Com efeito ao mesmo tempo em que relembra a mensagem freudiana de que a escuta analítica deveria ser orientada pelo paradigma do sonho atemporal alucinatório e em perpétuo movimento e mudança Fédida 1996 demonstra como se torna difícil não tecer severas ressalvas ao estabelecimento de uma função metacomunicativa da contratransferência que em nome de uma pretensa técnica acabaria por privilegiar a pessoa do analista enquanto destinatário último das formações imaginárias do analisando Eis o que nosso autor qualifica como juridismo do raciocínio Ou seja a tentativa de um discurso explicativo logo nivelador da transferência fenômeno único e impassível de tradução ou reprodução exata Afinal Em análise o que vem ao pensamento não será mais o mesmo quando o mesmo pensamento retornar Esses movimentos que deslocam os lugares e talvez as linhas fazendo com que cada lugar seja transportado por seu deslocamento para tornarse um outro lugar são os movimentos transferenciais Resulta da presente exposição não somente a idéia de que qualquer discurso da comunicação e da relação qualquer metadiscurso é radicalmente inadequado para a expressão de uma transferência mas também de que em uma análise deve ser preservada para a transferência esta inquietante potência de memória da alma que age através das cópias de imago para as quais a pessoa do analista é nos dois sentidos do termo a tela FÉDIDA 1996 p 111113 São estes os pressupostos que conduzem o psicanalista francês à hipótese de que a transferência de hoje possuiria um valor semelhante ao da hipnose de outrora com a ressalva de que essa a hipnose não fosse desvinculada da sua relação íntima com o sonho Segundo Fédida 1996 tal valor hipnótico do fenômeno transferencial formaria a condição da escuta e da interpretação conforme o paradigma onírico Um efeito como este porém somente seria alcançável por um analista que transparente como o ar fosse capaz de não deter uma forma assumida assumindo as formas impressas na sua figura pelas palavras proferidas pelo analisando Enfim alguém que sabiamente preservasse o sítio do estrangeiro como o lugar da interlocução em psicanálise Na verdade como vimos anteriormente um lugar do nãolugar do vazio ou da ambigüidade que excluindo em seu princípio qualquer relação do tipo interpessoal farse 145 ia necessário para pôr em movimento a atividade silenciosa da linguagem aquela onde as palavras tornemse mágicas em sua própria pronúncia FÉDIDA 1996 p 139 Assim é que para Fédida 1996 a neutralidade do analista aparece como uma superfície de transparência que no campo transferencial viabilizaria a chamada alucinação negativa Tratase da formação e desaparecimento das imagens produzidas pelo paciente em sua relação imaginária com um terceiro absolutamente implicado e no entanto invariavelmente ausente da sessão Desnecessário ressaltar o valor destas últimas aspas já que a ausência física do destinatário último da transferência não impede que sua sombra sorrateiramente caia no espaço entre o divã onde deita o paciente e mais atrás a poltrona onde se recosta o analista Aliás é o postulado desta natureza essencialmente melancólica e mesmo totêmica da transferência que permite a Fédida 1996 utilizar o anacronismo próprio à situação analítica como justificativa para a proibição de que a interpretação do fenômeno transferencial se forme fora do contexto da interpretação onírica Fiel às suas idéias nosso autor retoma aqui o valor do sonho como paradigma formador da escuta do psicanalista e da fala interpretante para novamente criticar o juridismo dos discursos explicativos ligados por seu turno à ameaça de um engessamento da situação analítica pelos ditames da técnica normativa E se aqui a linguagem é sem dúvida o sítio da situação analítica sua existência significa que a neutralidade esse negativo do analista não poderia ser pensada como atitude técnica ou como comportamento no tratamento a menos que se queira afirmar como sua própria negação O inevitável narcisismo do analista muitas vezes esquece como a técnica facilmente se torna ridícula quando toma o lugar da linguagem ou seja quando se explicita fora do ato de interpretar FÉDIDA 1996 p 154 De acordo com esta perspectiva temos mais uma vez na linguagem e não no analista em si o verdadeiro interlocutor em psicanálise já que a este último caberia uma função de nome ou semelhança que vazia em termos de um conteúdo próprio remeteria à ausência de um ente denominado por Fédida 1996 de pai da transferência É com base em tais idéias que o psicanalista francês sugere uma vinculação entre o que qualifica como uma hodierna banalização da transferência e o esquecimento negligente da estranheza da 146 ausência Ou seja da estranheza da própria transferência enquanto presença de uma ausência Com isso Fédida 1996 retorna ao referencial freudiano o qual insistia em manter o estatuto da transferência nos limites de um ato de repetição do infantil para utilizálo como apoio a um argumento verdadeiramente central em seu trabalho Tratase da afirmação de que não haveria um fundamento fenomenológicoexistencial para a transferência neste caso pensada como relação intersubjetiva já que aquela amplificaria na presença do analista as projeções constitutivas do próprio eu do analisando enquanto aquele que sonha É o que pode ser depreendido do seguinte trecho a recusa psicanalítica de Freud é a recusa radical de ver retornar ainda uma vez em favor da questão da transferência a atitude filosófica pretendendo restabelecer aqui o direito de uma teoria do outro e da comunicação interpessoal inexoravelmente derivada da exorbitante prerrogativa da doutrina fenomenológica da consciência FÉDIDA 1996 p 162 Em seguida é ainda a ameaça de uma síntese filosófica que parece assombrar os pensamentos de Fédida 1996 o qual visando evitar possíveis malentendidos explicita o quanto a relação que propõe entre linguagem transferência e situação analítica não objetivaria a constituição ou apropriação de uma identidade unificada Ao contrário a manifestação do fenômeno transferencial tornada viável graças ao espaço poéticoonírico de criação de imagens possibilitado pela neutralidade da função do analista revelaria sempre a cisão fundamental do sujeito inaugurado por Freud Em outros termos e aqui temos uma afirmação importante para os nossos propósitos destacaria a clara ligação entre o lugar de estrangeiro do analista e a alteridade constitutiva do próprio eu daquele que sofre e por isso fala Os remanejamentos do Eu pelos movimentos que o deslocam na fala junto a um outro neutro cujo silêncio exige que ele se choque contra a brutalidade da linguagem tendem poderseia dizer a seu próprio reconhecimento como pessoa locutora Mas a análise não é um processo filosófico de apropriação Se a transferência revela sem dúvida algo essencial é que o Eu pronome em primeira pessoa instância concreta do locutor aqui e agora falando no divã faz desaparecer tal instância FÉDIDA 1996 p 169170 Como se pode notar toda a argumentação de Fédida 1996 aponta para a considerável dificuldade de falarmos em intersubjetividade no contexto da psicanálise 147 Bem a não ser que a utilização de tal conceito extrapolasse uma condição de diálogo de pessoa para pessoa levando em conta a referência de um outro transferencial que marcaria o tipo bastante peculiar de encontro que tem lugar na clínica Ou seja a não ser que se pudesse pensála como uma relação a dois necessariamente assimétrica e já que instanciada por um terceiro ausente Eis o quadro propício para que Fédida 1996 resgate a noção de Outro proposta pela topologia lacaniana Outro esse indispensável à transferência na sua qualidade de entidade não mais dotada de subjetividade e demasiadamente personalizada no plano da consciência mas sim pensada como lugar de linguagemsignificância um sítio do estrangeiro que por isso mesmo deveria se ver livre do antropomorfismo cartesiano Qual o objetivo do nosso autor em tudo isso Salientar o valor do espanto com a perene estranheza da transferência leiase do Inconsciente como uma espécie de antídoto diante dos perigos representados pelo esquecimento ou negligência da radical alteridade inerente à função do analista Assim enaltecer ainda a virtude da linguagem interlocutor último do fenômeno transferencial Logo da própria psicanálise Diante disso vale a pena encerrarmos com algumas poucas palavras que ao resumirem a essência do presente capítulo preparam o terreno para os nossos passos seguintes Neste sentido guardemos conosco que a alteridade em psicanálise está intimamente ligada a uma concepção da subjetividade marcada pela cisão Assim longe de se localizar em um exterior o estrangeiro inaugurado por Freud desconcerta por repousar naquilo que temos de mais íntimo ou melhor de estranhamente familiar o próprio Inconsciente Como aponta Figueiredo 1998a tal constatação certamente pode nos levar tanto ao repúdio quanto ao descaso duas saídas demasiadamente fáceis Por outro lado se considerarmos como faz o autor que em termos de psicanálise a diferença se revela na sua qualidade de emergência90 e não de entejáconstituído emergência essa que une simultaneamente o diferente e o si próprio como partes indissociáveis e mutuamente constituintes então se torna possível vislumbrar uma terceira atitude a tomar conservarse na proximidade do estranho neste espaço potencial em que acolhendoo e 90 Ou seja como um processo constituído ao mesmo tempo por uma falta e por um excesso de sentido FIGUEIREDO 1998a 148 hospedandoo podemos nos fazer e refazer com base em uma experiência que é sempre mais ou menos incômoda FIGUEIREDO 1998a p 74 Isso significa nem absorver o outro e nem tampouco rechaçálo mas manter diante de si um intermezzo entre a diferença e a indiferença um campo virtual de proximidade que forneça o espaço mesmo da emergência dos acontecimentos e do próprio pensamento Em outros termos tratase de garantir a abertura de sentido presente por exemplo em um conceito como o de construção Konstruktion em análise nosso próximo foco de estudos CAPÍTULO 03 O Jogo dos Sentidos em Psicanálise considerações acerca do conceito de construção No presente capítulo retomaremos sob uma ótica complementar a discussão psicanalítica sobre alteridade iniciada anteriormente quando debatemos em maiores detalhes o inquietante Das Unheimliche freudiano Para tanto utilizaremos um outro conceito também advindo da obra de Freud tratase daquele referente à construção em análise Então além de nos ocuparmos de uma breve definição do tema esmiuçaremos algumas importantes contribuições a ele relacionadas como a original freudiana Cf FREUD 19371976 e a de Viderman 1990 Neste sentido a nossa principal intenção aqui será a de demonstrar as ondulações as idas e vindas do conceito em questão e junto com elas discutir o por que não dizer espinhoso problema da imposiçãonegociação de sentido em psicanálise Assim deslocarnosemos entre os pólos definidos por duas abordagens distintas A primeira delas de cunho mais realista aparece balizada por um ideal de neutralidade do analista que traz consigo tanto a assertiva de uma equivalência entre as metapsicologias e as expressões do Inconsciente quanto a crença na existência de verdades soterradas a serem alcançadas pelo par analítico Já a segunda eminentemente construtivista ao mesmo tempo em que desconfia da possibilidade de correspondências bem definidas entre fenômenos clínicos e representações teóricas prédeterminadas enfatiza que a eficácia da psicanálise dependeria não exatamente da descoberta de traumas fixados no passado mas da geração de narrativas mais ou menos coerentes no aqui e agora do encontro analítico narrativas essas que levassem em conta a interação entre o arsenal teórico do analista e as histórias trazidas por cada sujeito que se submete ao tratamento Diante disso cabe perguntar qual destes caminhos devemos escolher Talvez nenhum dos dois já que como nos mostra Figueiredo 1996a 1998b a diferença que nos é imposta pelo outro no contexto da clínica é inseparável da diferença representada pelo 150 próprio Inconsciente dono de uma temporalidade e de uma narrativa particulares que recusam qualquer submissão ao pensamento representacional As implicações de tal afirmação são enormes e se estabelecem na observação de que a despeito da sua inegável qualidade de dispositivos realizadores no espaço virtual e potencial do encontro analítico as metapsicologias possam e devam funcionar como dispositivos desrealizantes Afinal somente assim fornecerão ao Inconsciente um espaço de abertura e figurabilidade onde este possa se expressar precisamente na sua extemporaneidade em uma estranha e radical alteridade que fundamenta a própria psicanálise Eis aí portanto os tópicos de estudo que orientarão os nossos passos nas páginas seguintes Para que cheguemos até eles porém tornase importante que primeiro observemos um pouco mais de perto os intrigantes contornos que o verbo construir adquire a partir do pensamento freudiano Passemos a eles O que significa construção em análise Segundo Laplanche e Pontalis tratase de um Termo proposto por Freud para designar uma elaboração do analista mais extensiva e mais distante do material que a interpretação e essencialmente destinada a reconstituir nos seus aspectos simultaneamente reais e fantasísticos uma parte da história infantil do sujeito 1992 p 97 Como se pode notar há aqui um caráter aparentemente mais abrangente e menos imediatista da construção a qual visando um resgate de elementos esquecidos leiase reprimidos da história primeva do sujeito levaria em conta elementos advindos de duas realidades distintas porém complementares a material e a psíquica Logo em seguida Laplanche e Pontalis 1992 acrescentam à sua descrição alguns comentários interessantes Por exemplo o de que seria complicado e mesmo pouco desejável procurar manter a definição de construção originalmente proposta por Freud 19371976 segundo eles um tanto quanto restrita em sua aproximação demasiada da técnica Assim para além do trabalho do analista em seu setting clínico os autores franceses incluem no conceito de construção as fantasias eou elaborações do próprio 151 analisando sugerindo a idéia de que mais do que a estruturação pelo tratamento tratarse ia aqui do problema mais amplo das estruturas inconscientes em si mesmas É também em uma relação direta com a interpretação que Kaufmann 1996 se refere ao conceito de construção em análise Neste sentido qualifica este último como uma ferramenta utilizada por Freud 19371976 visando um refreamento ou temperança da onipotência interpretativa que alguns estragos causara na história do movimento psicanalítico Cf FREUD 1910b1996 Corroborando com tal perspectiva um trabalho como o de Roudinesco e Plon 1998 acrescenta ainda outro dado importante que a potencialidade de tal instrumento não se restringiu ao contexto da clínica sendo utilizada pelo mestre de Viena também em suas discussões metapsicológicas e trabalhos sobre arte e cultura Conforme as seguintes passagens Nesse aspecto podese dizer que a construção é ao mesmo tempo a quintessência da interpretação e uma crítica da interpretação na medida em que permite restabelecer de modo coerente a significação global da história de um sujeito em vez de se ater à apreensão de alguns detalhes sintomáticos Freud usava permanentemente esse processo de construção tanto em suas análises quanto em suas hipóteses sobre a metapsicologia ou a pulsão de morte ou ainda em suas obras literárias sobre Leonardo da Vinci 14521519 ou Moisés ROUDINESCO e PLON 1998 p 389 Muito bem a despeito de tais observações funcionarem como uma breve introdução ao nosso tema elas certamente não substituem a leitura do texto original em que Freud 19371976 às voltas com as acusações de que o tratamento clínico por ele idealizado estaria diretamente associado à sugestão aborda de maneira direta o tema das construções do analista Ao fazêlo procura dentre outras coisas relativizar a noção e os critérios de verdade com os quais trabalha a psicanálise defendendoa das suspeitas dos seus detratores no campo da imposiçãonegociação de sentido É o que veremos a seguir Realismo versus Construtivismo em Psicanálise Primeira Parte o sentido de um retorno a Freud O artigo de Freud 19371976 tem início com uma réplica à afirmação de que em se tratando do trabalho do analista a razão estaria sempre ao lado deste último Afinal sugeriam à época os críticos da psicanálise qualquer interpretação prontamente aceita se 152 revelaria adequada em si mesma ao passo que as tentativas de oposição por parte do paciente significariam apenas resistências neuróticas Diante destes argumentos aliados à aceitação do fato de que uma negativa por parte do paciente em geral não demove o analista das suas escolhas interpretativas Freud 19371976 considera útil aprofundar como são apreciados o sim e o não enquanto possíveis respostas daquele que deita no divã Neste sentido recordando um pouco dos principais postulados da psicanálise destaca como tarefa fundamental do analista a condução do paciente rumo ao abandono das repressões infantis que resultariam em um sofrimento atual as quais deveriam ser substituídas por reações outras mais maduras em termos psíquicos Para tanto segue Freud 19371976 farseia necessário promover a recordação tanto de certas vivências momentaneamente esquecidas quanto das moções de afeto delas resultantes contando para tal tarefa com o precioso auxílio de uma série de materiais fornecidos pelo paciente Exemplos seriam certas idéias e fragmentos de sonho bem como a repetição de afetos obtida pela via da transferência Pois bem continua Freud 19371976 o interesse fundamental de tal labor rememorativo reside no estabelecimento de um quadro o máximo possível íntegro e confiável em termos de uma reconstituição dos eventos passados e agora aparentemente esquecidos da vida do paciente Em outros termos caberia ao analista deduzir o esquecido a partir dos indícios por ele deixados melhor dizendo tem que construílo FREUD 19371976 p 26091 Com isso nosso autor propõe uma interessante relação entre as atividades do analista e aquela outra do arqueólogo ocupado na escavação de antigos edifícios destruídos eou soterrados pelas areias do tempo ambas pautadas em larga escala por um processo de reconstituição Mas assim como o arqueólogo que a partir de restos de muros que ficaram em pé levanta paredes a partir de escavações no solo determina o número e a posição das colunas a partir de ruínas restabelece o que outrora foram adornos e pinturas murais do mesmo modo procede o analista quando extrai suas conclusões a partir de fragmentos de lembranças associações e comportamentos do analisando E é inquestionável o direito de ambos a reconstruir mediante a suplementação e 91 Em castelhano colegir lo olvidado desde los indicios que esto ha dejado tras sí mejor dicho tiene que construirlo trad nossa MRS 153 combinação dos restos que permaneceram conservados FREUD 19371976 p 26192 Um pouco mais adiante porém Freud 19371976 estabelecerá uma diferença entre a arqueologia e a psicanálise que acabará por se revelar importante considerando os nossos propósitos aqui É quando nos apresenta a sua crença tanto na preservação última de conteúdos psíquicos reprimidos e assim afastados da consciência quanto na capacidade do labor analítico no sentido de um resgate de tal material Ainda por cima possivelmente em sua forma completa Nos seus próprios termos Há que se levar em conta porém o fato de que aquele que exuma trata com objetos destruídos dos quais grandes e importantes fragmentos foram irremediavelmente perdidos Resta então única e exclusivamente a reconstrução que em virtude disso muito freqüentemente não pode alcançar mais que uma certa similitude Algo diverso ocorre com o objeto psíquico cuja préhistória o analista visa estabelecer Aqui se consegue regularmente o que em relação ao objeto arqueológico somente ocorre em felizes casos excepcionais Todo o essencial permanece conservado mesmo o que parece esquecido por completo está todavia presente de algum modo e em alguma parte só que soterrado inacessível ao indivíduo Depende somente da técnica analítica que se consiga ou não trazer à luz de maneira completa o escondido FREUD 19371976 p 26126293 O texto prossegue com algumas outras considerações bastante relevantes Por exemplo temos uma oportuna comparação entre as noções de interpretação e construção Neste sentido pondera Freud 19371976 a despeito da maior fama da primeira e também de uma certa confusão entre ambas é a segunda que efetivamente deveria ser mais levada em conta se quisermos descrever as qualidades da técnica psicanalítica Afinal ao invés de apontar para elementos isolados do material fornecido 92 Ibidem Pero así como el arqueólogo a partir de unos restos ruinosos restablece los que otrora fueron adornos y pinturas murales del mismo modo procede el analista cuando extrae sus conclusiones a partir de unos jirones de recuerdo una asociaciones y unas exteriorizaciones activas del analizado Y es incuestionable el derecho de ambos a reconstruir mediante el completamiento y ensambladura de los restos conservados trad nossa MRS 93 Ibidem Pero cuenta asimesmo el hecho de que el exhumador trata con objetos destruidos de los que grandes e importantes fragmentos se han perdido irremediablemente Uno se ve remitido única y exclusivamente a la reconstrucción que por eso con harta frecuencia no puede elevarse más allá de una cierta verosimilitud Diversamente ocurre con el objeto psíquico cuya prehistoria el analista quiere establecer Aquí se logra de una manera regular lo que en el objeto arqueológico sólo sucede en felices casos excepcionales Todo lo esencial se ha conservado aun lo que parece olvidado por completo está todavía presente de algún modo y en alguna parte sólo que soterrado inasequible al individuo Es sólo una cuestión de técnica analítica que se consiga o no traer a la luz de manera completa lo escondido trad nossa MRS 154 pelo paciente papel da interpretação a construção colocaria o sujeito diante de uma porção verdadeiramente maior ainda que fragmentada da sua história de vida Entretanto perguntase Freud 19371976 de que garantias disporíamos para asseverar a veracidade e mesmo a utilidade terapêutica de tais construtos Antes de buscar respostas para este questionamento o pai da psicanálise encontra um certo conforto que provém da sua própria prática clínica Segundo ele esta o autorizaria a sustentar que descontados um certo desperdício de tempo ou mesmo uma eventual má impressão causada sobre a pessoa do analista nenhuma outra conseqüência mais grave seria causada ao processo analítico pelo equívoco isolado representado por uma má construção Ainda para Freud 19371976 o que poderia ocorrer neste caso seria uma não resposta do paciente intocado pelo que acabara de ouvir Eis a deixa para a assunção do erro por parte do analista que sem perder a sua autoridade poderia em outra ocasião comunicar o erro ao paciente acrescentando ao seu relato uma construção mais apropriada Com efeito O perigo de desencaminharmos o paciente pela via da sugestão persuadindo o de coisas que nós próprios acreditamos ainda que jamais admitidas por ele certamente foi exagerado sobremaneira FREUD 19371976 p 26394 Sem perder de vista o fio condutor do seu raciocínio qual seja a defesa da psicanálise no que se refere à acusação de em última escala atuar pela via da sugestão negligenciando as respostas do paciente às construções que lhe são propostas Freud 19371976 passa a alguns comentários acerca da ambigüidade tanto do sim quanto do não que podem se seguir a uma construção do analista Isso porque a despeito de ambos certamente poderem conter em si mesmos um indiscutível grau de legitimidade não é possível descartar a hipótese de que estejam operando sob a batuta da resistência Além do mais Como toda construção desse tipo é incompleta uma vez que abarca só um pequeno fragmento do evento esquecido temos sempre a liberdade de supor que o analisando não desconhece propriamente o que lhe foi comunicado e sim que a sua contradição vem legitimada pelo fragmento ainda não descoberto Via de regra somente exteriorizará seu consentimento quando se houver interado de toda a verdade a qual pode ser bastante extensa A única interpretação segura do seu 94 Ibidem El peligro de descaminar al paciente por sugestión apalabrándole cosas en las que uno mismo cree pero que él no habría admitido nunca se ha exagerado sin duda por encima de toda medida trad nossa MRS 155 não é então que aquela a construção não é integral FREUD 19371976 p 26495 Por conseguinte uma vez demonstrada a precariedade das respostas diretas do paciente enquanto critério único para a validação ou não das construções em análise Freud 19371976 chama a atenção do leitor para as possibilidades oferecidas por algumas outras reações de caráter mais indireto Dentre elas cita como exemplos desde o nunca pensei ou nunca teria pensado nisso frase típica que para si seria equivalente a algo como sim o senhor tem razão desta vez acerca do meu inconsciente até a ocorrência no analisando de certas lembranças complementares eou associações com conteúdo notoriamente próximo àquele do construto proferido pelo analista Finalmente ainda no que se refere ao estabelecimento de parâmetros confiáveis em termos da maior ou menor eficácia de uma construção Freud 19371976 retoma a importância de se levar em conta os comportamentos do paciente associados por seu turno ao tipo de transferência positiva ou negativa estabelecida ao longo da relação terapêutica Assim Se a construção é falsa não modifica em nada o paciente mas se é correta ou se aproxima da verdade sua reação frente a ela será a de uma inequívoca piora dos sintomas e do seu estado geral FREUD 19371976 p 26696 É desta maneira que sempre reafirmando a sua argumentação em prol da psicanálise o mestre de Viena condensa o que disse até o presente momento Neste sentido aproveita ainda para defender a prática clínica de eventuais acusações quanto a uma ingênua pretensão de certezas últimas a serem alcançadas lembrando aos possíveis detratores que as construções em análise mereceriam a salvaguarda de também elas conterem em si mesmas uma natureza hipotética De maneira sintética podemos estabelecer que não merecemos a censura de desdenhar da posição adotada pelo analisando diante das nossas construções Nós 95 Ibidem Como toda construcción de esta índole es incompleta apresa sólo un pequeño fragmento del acaecer olvidado tenemos siempre la libertad de suponer que el analizado no desconoce propiamente lo que se le comunicó sino que su contradicción viene legitimada por el fragmento todavía no descubierto Por regla general sólo exteriorizará su aquiescencia cuando se haya enterado de la verdad íntegra y esta suele ser bastante extensa La única interpretación segura de su No es por ende que aquella no es integral trad nossa MRS 96 Ibidem Si la construcción es falsa no modifica nada en el paciente pero si es correcta o aporta una aproximación a la verdad él reacciona frente a ella con un inequívoco empeoramiento de sus síntomas y de su estado general trad nossa MRS 156 a tomamos em conta e freqüentemente extraímos dela valiosos pontos de apoio Contudo essas reações do paciente são muitas vezes ambíguas e não permitem uma decisão definitiva Somente a continuidade da análise pode decidir se a nossa construção é correta ou inviável Cada construção é tomada por nós apenas como uma conjectura que aguarda ser examinada confirmada ou descartada FREUD 19371976 p 26697 Já se encaminhando para o final da sua discussão Freud 19371976 ensaia alguns comentários sobre o fato de que nem sempre se tornava viável trilhar o caminho ideal e que levaria do construto do analista à recordação do paciente Interessante notar que logo em seguida assevera que uma análise bem feita deteria porém o poder de provocar uma convicção demasiado forte acerca da veracidade de determinadas construções o que na prática significaria um resultado terapêutico semelhante ao do resgate de uma lembrança reprimida Ou seja ainda que em outros termos parece haver aqui um certo reconhecimento do valor e mesmo da utilização da sugestão em psicanálise possibilidade essa vale lembrar eminentemente rechaçada ao longo dos parágrafos anteriores Lamentavelmente Freud 19371976 evita se aprofundar no tema optando por discorrer acerca de um outro fenômeno que na sua opinião traria em si questões de maior amplitude Tratase do curioso fato de determinadas construções acertadas evocarem nos pacientes recordações que embora bastante claras não estariam diretamente relacionadas ao evento que se buscava reconstruir Por exemplo um analisando descreve com certa riqueza de detalhes alguns rostos e móveis presentes quando de uma ocorrência possivelmente traumática Todavia jamais o acontecimento em si mesmo o que poderia ser tomado como a manifestação de uma poderosa resistência que deslocaria para objetos de menor significação a pulsão emergente posta em movimento ao se comunicar a construção A continuidade da leitura do texto de Freud 19371976 nos revelará a analogia proposta pelo autor entre as recordações supra mencionadas e as alucinações de cunho psicótico ambas possivelmente associadas à pressão exercida por um retorno de conteúdos psíquicos anteriormente reprimidos 97 Ibidem A modo de síntesis podemos establecer que no merecemos el reproche de desdeñar la posición que el analizado adopte ante nuestras construcciones La tomamos em cuenta y a menudo extraemos de ella valiosos puntos de apoyo Pero estas reacciones del paciente son las más de las veces multívocas y no consienten una decisión definitiva Sólo la continuación del análisis puede decidir si nuestra construcción es correcta o inviable Y a cada construcción la consideramos apenas una conjetura que aguarda ser examinada confirmada o desestimada trad nossa MRS 157 Talvez seja um traço universal da alucinação não apreciado suficientemente bem até agora que dentro dela retorne algo há muito vivenciado e logo esquecido algo que a criança viu ou ouviu na época em que mal detinha acesso à linguagem e que agora força sua emergência rumo à consciência provavelmente desfigurado e deslocado por efeito das forças que contrariam tal retorno E se a alucinação é tomada de uma maneira mais próxima a determinadas formas de psicose nossa dedução pode dar um passo a mais Quiçá as formações delirantes às quais com grande freqüência encontramos associadas estas alucinações não sejam tão independentes como supúnhamos anteriormente da pulsão emergente do inconsciente e do retorno do reprimido FREUD 19371976 p 26898 Com isso Freud 19371976 abre espaço para a tese de que a pulsão emergente do reprimido pudesse tirar partido do afastamento da realidade objetiva na tentativa de impor seu conteúdo à consciência cabendo às resistências e à tendência ao cumprimento do desejo o papel de mascarar eou deslocar o material a ser recordado Enfim poderseia pensar aqui mesmo no caso da psicose em uma formação de compromisso equivalente àquela produzida pelo mecanismo do sonho Enquanto uma decorrência imediata de tal linha de raciocínio chega a nós a proposta freudiana de que em meio à realidade psíquica seria possível alcançar o fragmento traumático de uma verdade históricovivencial99 Este último por seu turno fundamentaria 98 Ibidem Acaso sea un carácter universal de la alucinación no apreciado lo bastante hasta ahora que dentro de ella retorne algo vivenciado en la edad temprana y olvidado luego algo que el niño vio y oyó en la época en que apenas era capaz de lenguaje todavía y que ahora esfuerza su ascenso a la conciencia probablemente desfigurado y desplazado por efecto de las fuerzas que contrarían ese retorno Y si la alucinación es referida de manera más próxima a formas determinadas de psicosis nuestra ilación de pensamiento puede dar un passo más Quizá las formaciones delirantes en que con gran regularidad hallamos articuladas estas alucinaciones no sean tan independientes como de ordinario suponíamos de la pulsión emergente de lo inconciente y del retorno de lo reprimido trad nossa MRS 99 Diante do contraponto estabelecido por Freud 19371976 aprofundemonos um pouco mais no conceito de realidade psíquica Como apontam Laplanche e Pontalis 1992 e Roudinesco e Plon 1998 este detém sua história eminentemente ligada ao abandono da teoria da sedução explicação proposta pelo pai da psicanálise nos primórdios do seu trabalho clínico e que atribuía à lembrança de cenas reais de sedução por parte dos pais por exemplo um papel determinante na etiologia das neuroses Com o acúmulo de experiência porém Freud percebeu que para além da real ocorrência dos traumas infantis também deveria ser levada em conta no adoecimento mental a enorme importância do desejo e da fantasia inconscientes Com efeito A idéia de realidade psíquica está ligada à hipótese freudiana referente aos processos inconscientes não só eles não levam em conta a realidade exterior como a substituem Na sua acepção mais rigorosa a expressão realidade psíquica designaria o desejo inconsciente e a fantasia que lhe está ligada LAPLANCHE e PONTALIS 1992 p 427 Vale acrescentar ainda que uma outra interessante fonte de informações acerca deste tópico pode ser encontrada nos trabalhos de Coelho Junior 1995 2000 Aqui além de contextualizála o autor problematiza a oposição defendida pelo pensamento freudiano entre as noções de realidade material e realidade psíquica para em seguida nos propor o conceito de realidade clínica o qual segundo ele poderia melhor dar conta dos diferentes e simultâneos planos de realidade presentes em uma situação como aquela da clínica psicanalítica Nas suas palavras A realidade clínica constituise tanto a partir da presença da realidade psíquica como da realidade material Ao mesmo tempo possibilita um deslizamento constante entre diferentes tipos de realidade Desta forma posso afirmar que a realidade clínica é uma terceira zona ou uma terceira realidade Deve ser pensada como uma realidade particular 158 ao menos em certo sentido tanto a loucura quanto o próprio trabalho do analista o qual se voltaria a uma nova forma de abordagem terapêutica do delírio Conforme o trecho a seguir escrito não por Erasmo de Rotterdam mas pelo pai da psicanálise Eu não creio que esta concepção do delírio seja nova em sua totalidade mas o certo é que destaca um ponto de vista que não vem sendo trazido ao primeiro plano Sua essência reside na afirmação de que não somente há método na loucura mas que também esta última contém um fragmento de verdade históricovivencial historisch o qual nos leva a supor que a crença compulsiva presente no delírio derive a sua força justamente dessa fonte infantil Desta forma abandonarseia o vão empenho em convencer o enfermo do desvario de seu delírio do seu caráter contraditório no que diz respeito à realidade objetiva e ao contrário residiria no reconhecimento deste núcleo de verdade um solo comum sobre o qual poderia se desenvolver o trabalho terapêutico Esse trabalho consistiria em libertar o fragmento de verdade históricovivencial das suas desfigurações e ligações com o presente realobjetivo conduzindoo de volta aos lugares do passado aos quais pertence FREUD 19371976 p 268269100 Ainda sob a influência de tais idéias Freud 19371976 nos propõe uma última analogia Desta feita entre os delírios dos pacientes e as construções propostas pelos analistas ambos pensados como tentativas de cura eou explicação Haveria contudo limites para essa aproximação já que as primeiras não iriam além de uma substituição do fragmento de realidade rejeitado no passado Neste sentido como vimos há pouco caberia à psicanálise revelar os vínculos entre o material fornecido por essa rejeição atual e o conteúdo originalmente reprimido podendose inclusive conjeturar sobre o teor de reminiscência presente nos próprios conteúdos delirantes Eis aí a mensagem final de Freud 19371976 expressa por ele nos seguintes termos Assim como a nossa construção produz seu efeito por restituir um fragmento biográfico Lebengeschichte história objetiva de vida do passado também o delírio deve seu poder de convencimento à parte de verdade históricovivencial onde a tensão entre a realidade exterior e a realidade psíquica pode ser trabalhada COELHO JUNIOR 2000 p 8384 100 Ibidem Yo no creo que esta concepción del delirio sea nueva en todas sus partes pero lo cierto es que destaca un punto de vista que poe lo corriente no es situado en el primer plano Lo esencial en ella es la afirmación de que no sólo hay método en la locura sino que esta también contiene un fragmento de verdad históricovivencial historisch lo cual nos lleva a suponer que la creencia compulsiva que halla el delirio cobra su fuerza justamente de esa fuente infantil Así se resignaría el vano empeño por convencer al enfermo sobre el desvarío de su delirio su contradicción con la realidad objetiva y en cambio se hallaría en el reconocimiento de ese núcleo de verdad un suelo común sobre el cual pudiera desarrollarse el trabajo terapéutico Este trabajo consistiría en librar el fragmento de verdad históricovivencial de sus desfiguraciones y apuntalamientos en el presente realobjetivo y resituarlo en los lugares del pasado a los que pertenece trad nossa MRS 159 que põe no lugar da realidade rechaçada Com efeito também se aplicaria ao delírio a assertiva que há tempos atrás declarei como exclusiva da histeria A saber que o enfermo padece das suas reminiscências FREUD 19371976 p 269270101 Como se pode notar toda a argumentação de Freud 19371976 em prol da psicanálise frente às sempre recorrentes acusações de sugestão eou charlatanismo nos fornece uma considerável gama de temas para reflexão particularmente no que se refere ao estabelecimento de critérios para as verdades clínicas Por exemplo quando chama a nossa atenção para as ambigüidades do sim e do não advindos dos analisandos que muitas vezes associados a enormes resistências ao tratamento perdem assim o status de respostas claras e definitivas no que se refere aos avanços ou retrocessos do processo analítico102 Neste mesmo sentido da relativização de parâmetros que pudessem medir a maior ou menor eficácia da psicanálise vale lembrar ainda que Freud 19371976 salvaguarda a sua prática ao negar a pretensão de certezas últimas enfatizando ao contrário o caráter hipotético e aproximativo da construção analítica Aliás tratase aqui de uma incerteza constitutiva do trabalho do analista já que determinada pelo seu próprio objeto de estudos o Inconsciente tão arredio e refratário aos ditames da razão instrumental a ponto de nos forçar a reconhecer a existência de uma divisão na realidade agora bipartida em psíquica e material De qualquer forma a despeito destes importantes esclarecimentos não nos parece possível afastar definitivamente a impressão de que o iluminista em Freud ainda permanece prisioneiro da crença em verdades soterradas a serem alcançadas pelo par analítico Essa é a opinião de um autor como Viderman 1990 do qual nos ocuparemos a partir de agora Deixemonos então conduzir por ele ao menos momentaneamente e vejamos aonde isso irá nos levar 101 Ibidem Así como nuestra construcción produce su efecto por restituir un fragmento de biografía Lebengeschichte historia objetiva de vida del pasado así también el delirio debe su fuerza de convicción a la parte de verdad históricovivencial que pone en el lugar de la realidad rechazada De tal suerte también al delirio se aplicará el aserto que yo hace tiempo he declarado exclusivamennte para la histeria a saber que el enfermo padece por sus reminiscencias trad nossa MRS 102 Exigindo portanto como vimos há pouco um olhar atento para outros dados menos diretos como aqueles fornecidos pelas reações transferenciais e lembranças complementares dos analisandos após as construções do analista 160 Segunda Parte Serge Viderman e a construção do espaço analítico O trabalho de Viderman 1990 dá continuidade a este tema certamente controverso e que mobiliza diferentes perspectivas e mesmo paixões entre os defensores e opositores do tipo de saber inaugurado por Freud Tratase da discussão quanto a maior ou menor objetividade das construções eou interpretações em psicanálise no que se refere a um resgate de conteúdos anteriormente reprimidos Em outros termos temos diante de nós o questionamento da possibilidade de uma verdadeira tradução consciente do material psíquico da outra cena aquela do Inconsciente Tal problemática faz com que Viderman 1990 inicie um percurso por boa parte da obra de Freud para nela apontar um abandono apenas parcial da Neurótica ou teoria da sedução que relativa aos primórdios da psicanálise postulava a existência de um trauma infantil de natureza sexual como origem etiológica da neurose Com efeito pensa o psicanalista francês mesmo com a posterior ênfase no Complexo de Édipo que confere uma maior abertura à dimensão desejante e imaginária da sedução Freud jamais teria deixado de buscar as fontes do Nilo da psicopatologia Ou seja a delimitação de um acontecimento histórico irrecusável que inclusive fundamentasse o próprio edifício teórico da psicanálise103 Neste contexto A cura psicanalítica está ligada à temporalidade histórica e à sua inscrição em uma memória teoricamente inalterável fixada é certo em signos deformados mas sempre abertos ao sentido original indefinidamente reconversíveis A análise das forças de resistência que a isso se opõem e a interpretação dos conteúdos garantemnos que o que miramos por mais difícil que seja está à altura de nossos meios a continuidade da memória poderá ser restabelecida VIDERMAN 1990 p 29 Cabe porém perguntar seria mesmo possível reconstruir a história do sujeito Em caso afirmativo sob que bases É levando em conta questões dessa natureza que nas páginas seguintes Viderman 1990 se dedicará mais detalhadamente ao que denomina de 103 Segundo Viderman 1990 um esforço presente tanto no caso do homem dos lobos quanto em Totem e Tabu No primeiro pela interpretação de que a angústia do paciente em relação à figura do lobo seria relativa a um evento específico e traumático da infância a suposta visão do coito a tergo de seus pais também chamada cena primária No segundo pelo postulado do assassinato do líder de uma horda primitiva de hominídeos como fonte da neurose universal transmitida filogeneticamente Cf FREUD 191419181996 e 1912131996 respectivamente 161 difrações do espaço analítico Segundo ele estas últimas aparecem diretamente ligadas à dinâmica do fenômeno transferencial que vale lembrar de empecilho ao trabalho analítico galgaria posteriormente o status de ferramenta essencial para uma suposta recuperação de vividos regressivos até então inacessíveis à memória Como veremos a seguir o problema para Viderman 1990 é que de forma a manejar tal instrumento foi criado o ideal de um analista livre de ambigüidades que com a sua absoluta transparência recolheria a essência do passado projetado pelo paciente Alcançamos aqui um momento importante do trabalho de Viderman 1990 o qual nos lembra que a busca da verdade em psicanálise e neste sentido a constituição do setting analítico incluindose aí a delimitação de papéis o manejo da transferência e o supramencionado ideal da neutralidade do psicanalista não aparecem ao sabor do acaso mas balizadas por um arsenal teórico previamente definido Para traçar na realidade visível a via de um entendimento daquilo que ali é essencial é preciso inventar uma realidade de segundo grau puramente imaginária que deixe subsistir apenas o desenho abstrato invisível VIDERMAN 1990 p 3536 Esta constatação é decisiva Afinal serve para que nosso autor aponte uma progressiva reordenação em termos da transferência não mais associada à descoberta mas sim à criação Nossas intenções eram puras Mas um método racional aplicase a um objeto irracional O método e seu objeto não permanecerão numa relação de contigüidade passiva Instaurase uma contaminação dialética que modificará a ambos no exercício mesmo de suas funções próprias Havíamos imaginado um quadro ideal uma pura reflexão um espelho fiel e damonos conta de que no próprio movimento da cura criouse um sistema de espelhos deformantes Acreditáramos ter segura a realidade do passado temos as sombras sem forma que colocaremos em forma VIDERMAN 1990 p 43 Uma conseqüência natural de tal discussão é a ênfase na importância da contratransferência já que de acordo com este ponto de vista não somente a teoria delimitaria previamente o campo analítico mas também a própria pessoa do analista deteria relevante participação neste processo Conforme Viderman 1990 negar este fato significaria incorrer em grave erro pois Tal concepção não abstrai somente da evidência de que foi pela decisão unilateral do analista que tal quadro se impôs mas também e é igualmente o mais importante e mais carregado de conseqüências de que é de sua atitude e de suas decisões que dependerá de fato todo desenrolar da cura Nesse sentido não é 162 possível separar os meios do fim em outras palavras separar aquilo que se obteve daquilo pelo qual e por quem ele foi obtido Crer que o analista precisamente não responde é evitar colocar o problema problema de que depende o entendimento real do processo analítico VIDERMAN 1990 p 44 Temos portanto que o paradoxo da situação do analista residiria precisamente na dificuldade em encontrar uma espécie de ponto de Arquimedes capaz de sustentar o equilíbrio entre a observação e a participação Para Viderman 1990 isso somente confirmaria o coeficiente de incerteza ao qual estaria submetida qualquer descoberta do sentido em psicanálise inviabilizando assim a pureza da pretensão freudiana de um alcance da verdade por meio da neutralidade Diante desta aporia nosso autor destaca o problema da acentuação excessiva quer seja da interpretação quer seja daquele que a profere No segundo caso em particular com o perigo de que a tarefa do analista se reduzisse a um mero conjunto de regras normativas Dando prosseguimento a esta discussão Viderman 1990 esmiúça alguns pormenores da relação entre psicanálise e linguagem identificando esta última como uma rede de inteligibilidade que o analista lançaria sobre o Inconsciente organizando uma realidade de segundo grau que não equivaleria necessariamente às qualidades brutas da pulsão104 Desta maneira levandose em conta ainda o caráter sobredeterminado do sintoma tornarseia possível sustentar apenas conjeturas que por seu turno significariam não portos seguros mas novas ambigüidades para um sentido que não estaria em outra parte senão na própria leitura a qual por sinal acompanharia o caráter circular e 104 Interessante relembrar brevemente aqui a diferença proposta pela metapsicologia freudiana entre os conceitos de representaçãocoisa e representaçãopalavra O primeiro relativo à lógica do processo primário aquela própria ao Inconsciente deteria uma natureza eminentemente visual e imagética Já o segundo característico da parte consciente do psiquismo ou processo secundário significaria uma referência verbal à coisa supramencionada Disso decorrem pelo menos duas conseqüências importantes a proposição de que o acesso ao Inconsciente somente se daria mediante uma representação do próprio analisando logo anterior a qualquer outra e estritamente relacionada a esta a constatação da complexidade da atividade interpretativa haja visto que a tradução do psicanalista acerca do Inconsciente alheio será sempre a tradução de uma tradução É o que aponta Mahony 1990 problematizando a noção de tradução em psicanálise ao ressaltar o caráter ambíguo da fala no contexto do setting e por conseguinte os obstáculos enfrentados por Freud no terreno da comunicação Com efeito utilizandose de elementos presentes já na própria obra freudiana o autor nos lembra em primeiro lugar que as expressões do paciente aparecem como formações de compromisso entre a mobilização pulsional e a censura consciente Logo a linguagem não poderia ser tomada como uma expressão inequívoca da verdade Mais adiante corroborando com esta mesma perspectiva Mahony 1990 se remete ao terreno da filologia para destacar a aproximação etimológica entre os termos tradução metáfora e transferência Neste sentido observa que enquanto falsa ligação já a neurose de transferência poderia ser tomada como uma tradução ou metáfora Levandose isto em conta bem como o fato de que as palavras e gestos do paciente se remeteriam a este lugar deduzirseia a condição do tratamento analítico como a de uma espécie de semiótica de aproximações ou seja como a tradução de uma tradução 163 simultâneo do desejo Assim contrariando a perspectiva anteriormente defendida por Freud 19371976 eis aqui a clara proposta de que A história que se faz na situação analítica na caminhada da análise que o analista constrói por meio da linguagem não é a reconstituição arqueológica de um edifício devastado pelo tempo cujo conjunto desaparecido pudesse ser recolocado no lugar pela descoberta do vestígio de uma coluna Na interpretação da fantasia não existe laço algum convencionado entre significante e significado O significante contrariando todas as leis lingüísticas não nos leva a um conceito significado existindo independentemente ele o faz sim existir ao dizêlo VIDERMAN 1990 p 5859 Diante disso tornase possível compreender a enorme ênfase concedida pelo trabalho de Viderman 1990 ao aparato conceitual que precede a interpretação a qual aparece como uma representação artificial mas não absolutamente arbitrária já que balizada por uma teoria e que visaria reunir na palavra a pulsão estilhaçada pelas defesas do paciente Para tanto organizaria associações por vezes superficiais em uma ordem na qual se leria a estrutura de um modelo teórico que previamente estabelecido subverteria o que é dito a partir do divã Ou seja tratarseia inevitavelmente de uma escolha arbitrária do sentido mesmo que justificada por bons motivos técnicos É o utensílio conceitual que a teoria coloca à sua disposição que sensibiliza e abre a inteligência do analista para permitirlhe informar a realidade de acordo com as articulações préformadas do modelo teórico que fez para si mesmo Fora disso nada é visível Para ver outra coisa será preciso mudar a teoria Não é a tela que se parece com a paisagem é esta que acaba por parecerse com a tela VIDERMAN 1990 p 122123 Em se tratando da atividade clínica sustenta ainda Viderman 1990 não há separação rígida entre mentira e verdade mas sim uma dialética dos contrários onde a mentira à sua própria maneira também seria uma verdade a ser construída na e pela situação analítica Com efeito pergunta o psicanalista francês como buscar garantias científicas para sustentar a interpretação da palavra alheia Agindo desta maneira acabaríamos por incorrer no mesmo paradoxo que teria atormentado Freud Qual seja aquele de pretender fundamentar a construção de fantasias sobre elementos supostamente reais em termos históricos 164 Aliás um dos aspectos marcantes do texto de Viderman 1990 é exatamente o fato de apontar as contradições as idas e vindas do pensamento freudiano que ao mesmo tempo em que buscava verdades últimas e relacionadas por exemplo a uma cena primordial considerava a validade da proposição de que os sintomas e interpretações seriam inseparáveis do contexto em que se inserem No caso da especificidade da cena analítica Nestes termos Viderman 1990 contrapõe o que qualifica como duas etapas distintas da história da psicanálise Em primeiro lugar um tempo marcado pela intelectualidade da busca do sentido com o predomínio de uma situação balizada por um conjunto de regras que se pretendiam objetivas e experimentais Mais adiante um novo período caracterizado pela descoberta da transferência e de seus possíveis usos terapêuticos Dito de outra maneira tratase de uma passagem do sentido à força com a imposição de conjeturas pela via do afeto Tem início aqui um segundo momento também do texto de Viderman 1990 onde não somente a linguagem mas também a transferência aparece utilizada como suporte para a tese de que o sentido em psicanálise é construído na e pela própria situação analítica Corroborando com esta perspectiva o autor francês retoma alguns emblemáticos casos clínicos de Freud para a partir deles afirmar que também a cura não dependeria da mera exposição do Inconsciente alheio mas de algo mais a autoridade transferencial105 Conforme o trecho a seguir O fato de Freud considerar como necessidade o paciente conservar sua fé no analista cuja palavra deve ter a infalibilidade atribuída ao leão cujo bote não conhece a repetição é o anúncio de que a pura démarche do cirurgião que Freud em outra parte recomendava como devendo ser fria e objetiva preocupada apenas com o sentido não se pode manter a não ser que saiba aliarse a algo que não um sentido que possa alterála A simplificação da história da técnica psicanalítica indispensável para que o essencial se tornasse evidência mostraria que ela oscilou incessantemente entre dois pólos opostos o sentido e a força sem poder encontrar um ponto de equilíbrio onde o balancim pudesse estacionar VIDERMAN 1990 p 245 A despeito de Freud portanto destaca Viderman 1990 também na transferência seria possível perceber reflexos da sugestão e da hipnose anteriormente utilizadas pelo pai 105 Viderman 1990 se refere particularmente aos relatos sobre os tratamentos de Emmy Von N presente nos Estudos Sobre Histeria de Dora e também aquele do homem dos lobos Cf FREUD 18931996 190119051996 e 191419181996 respectivamente 165 da psicanálise106 Neste sentido a própria disposição espacial do setting incluindose aí a regra fundamental e livre associativa bem como os locais ocupados pelo par analítico invariavelmente reafirmaria a disparidade das forças que organizariam tal campo Destarte a autoridade onipotente do analista exercida sob a aparência de uma neutra inatividade apareceria como decorrente da indução de um deslocamento econômico da libido a qual se desligaria do eu rumo ao objeto transferencial eou ao espaço analítico Desta forma sustenta Viderman 1990 teríamos aqui uma evidente relação entre a criação pelo analista de uma neurose artificial a neurose de transferência a utilização da regressão em psicanálise e a imposição de um sentido previamente definido pela teoria a mesma que criara o próprio setting Dispostas as cartas na mesa acrescenta o autor francês desvelarseia diante de nós o caráter ambíguo da transferência unindo a significação e a energia e assim permitindo à interpretação o seu impacto e importante a sua credibilidade A situação é de tal maneira arranjada que facilita e provoca ao mesmo tempo a regressão temporal aos objetos primários projetados na transferência e a regressão narcisista do eu que como efeito tem o enfraquecer de suas atividades defensivas Essas analogias permitem um melhor entendimento metapsicológico do tratamento e melhor captar como duas exigências igualmente indispensáveis à completa realização do tratamento as do sentido e da força encontram chances de satisfação uma no relevo eidético da representação a outra no poder da relação afetiva tornados possíveis pelo movimento regressivo VIDERMAN 1990 p 276277 É com base nesta argumentação que Viderman 1990 retoma a idéia fundamental de seu estudo Qual seja a de uma anterioridade e prevalência da teoria no campo analítico Em outras palavras da força em relação ao sentido com a organização da fantasia permanecendo intrinsecamente vinculada à transferência portanto ao contexto específico 106 Tal consciência pensa Viderman 1990 teria motivado trabalhos como os de Rank 19241981 e Ferenczi 19301992 na defesa de uma técnica mais ativa e balizada pela manipulação transferencial em detrimento do antes privilegiado campo do sentido movimento este que acabaria por ocasionar a progressiva utilização intencional da contratransferência as novas tendências técnicas recebem seu acabamento o excesso de intelectualização a que chegava a busca do sentido da primeira maneira tendese a substituir por um método bem oposto Vemos aqui como que sob efeito de um aumento deslumbrante a relação analítica nua despojada das nuanças atenuadoras e mascaradoras da realidade das relações na situação analítica Será necessário fazer o que Freud se recusou a fazer com Dora desempenhar papéis A manifestação transferencial atuará abertamente e pela primeira vez a contratransferência será cientemente utilizada O campo analítico tornouse um campo cerrado onde se entrecruzam afetos e contraafetos VIDERMAN 1990 p 247249 166 de cada atendimento Assim uma nova situação transferencial representaria uma também nova significação do sonho pensado não como uma mensagem última a ser decifrada mas como portador de uma ou mais mensagens para cada transferência107 Mais adiante já se dirigindo ao final de seu trabalho Viderman 1990 direcionará para o campo da metapsicologia freudiana a discussão acerca da verdade em psicanálise Assim retomando boa parte dos temas abordados anteriormente como a importância da linguagem na estruturação do espaço analítico bem como da transferência na negociaçãoimposição de sentido o psicanalista francês resgatará também a sua tese de que o neurologista em Freud teria sido incapaz de se render totalmente ao papel determinante da fantasia e dos poderes do desejo edipiano na condução dos destinos da vida psíquica108 Diante disso Viderman 1990 nos propõe uma inversão do problema da relação entre o vivido e o hipotético como saída possível diante da aporia que se apresentaria à psicanálise Afinal para si o evento histórico não criou as condições e as conseqüências ulteriores daquilo que fez advir ele mesmo é a conseqüência dos desejos e fantasias inconscientes realizados VIDERMAN 1990 p 313 Complementando este raciocínio nosso autor sugere ainda que em se tratando do tipo de trabalho realizado no espaço analítico a construção do sentido se daria na articulação entre vida e teoria Estamos aqui no domínio das construções dominadas por elevado coeficiente de incerteza Sernosá preciso conseguir combinar a teoria traumática dos eventos vividos e de seu papel no desencadeamento da neurose com aquela da constituição sem alimentar ilusões demais sobre a solidez dos conceitos assim manipulados É na intersecção dos dois eixos onde as duas experiências entrecruzamse que a experiência histórica e a fantasia originária iluminamse e 107 Interessante destacar que Viderman 1990 se utiliza das Construções em Análise Cf FREUD 19371976 para neste trabalho em particular reafirmar o que considera um impasse entre os há pouco referidos pólos da força e do sentido Afinal avança o autor francês ali o pai da psicanálise tanto nos diz que o paciente não daria assentimento a uma construção a menos que esta estivesse completa ou seja que lhe dissesse tudo quanto pouco depois diznos ainda que poderia não restar ao analista outra saída senão provocar no paciente a firme convicção acerca do que lhe fora dito o que também poderia adquirir o mesmo efeito de uma construção que supostamente acertasse na mosca Em termos de Brasil uma perspectiva semelhante é adotada por Birman 1994 que destaca toda a cautela de Freud 19371976 na introdução do conceito de Construção haja vista que se a rememoração da figura do analisante permite a verificação pontual da interpretação do analista com a construção o psicanalista se defronta radicalmente com o que existe de arbitrariedade na função do intérprete BIRMAN 1994 p 20 108 Ou seja teriam permanecido necessários às exigências metapsicológicas e pessoais do pai da psicanálise tanto um evento quanto a permanência da sua transmissão inclusive filogenética vide a teoria do assassinato primordial que se faz originalmente presente em Totem e Tabu e que mais tarde seria retomada em Moisés e o Monoteísmo Cf FREUD 1912131996 e FREUD 19391996 respectivamente 167 estruturamse numa unidade de sentido que a interpretação acaba de saturar Sabemos outrossim que é entre a linha assintótica que seguimos e a curva ideal fora de alcance que está situado o espaço próprio da criação psicanalítica VIDERMAN 1990 p 316317 Com efeito percebese na obra de Viderman 1990 a idéia de que a psicanálise aparece como resultante do encontro entre uma teoria que baliza certas linhas de raciocínio e o procedimento clínico estritamente associado por sua vez ao fenômeno transferencial singular e relativo às particularidades de cada caso109 Da mistura ótima destes dois elementos é que advém a assertiva fundamental do autor francês segundo a qual não há uma verdade última uma espécie de metafísica do tipo platônico a ser alcançada pelo par analítico mas que o tipo de conhecimento inaugurado por Freud é invariavelmente construído no e pelo espaço restrito do setting A mais profunda função da interpretação não é dizer o que foi reproduzindoo mas fazer que no espaço analítico apareçam figuras que não estão visíveis em nenhuma outra parte porque não têm outra existência que não aquela que lhes dá o espaço que tornandoas visíveis as faz existir VIDERMAN 1990 p 320 321 Em tal contexto a história do sujeito se define como repetição e vivência na transferência Portanto na conjunção entre experiências passadas e elementos fantasiosos contidos no aqui e agora tanto da fala daquele que ocupa o divã quanto nas intervenções daquele outro que o escuta110 Assim longe de desmerecer a psicanálise a obra de Viderman 1990 parece nos mostrar que este predicado somente a torna absolutamente 109 Também Mezan 1993 corrobora com esta idéia ao abordar as relações entre a teoria e a clínica psicanalíticas da seguinte maneira Ela a teoria fornece assim classes infinitas de possíveis orienta a atenção do analista para certas questões mas não fornece nenhum método geral para encontrar a solução do problema específico que está sendo considerado naquele instante Na situação analítica a teoria funciona como a estrela polar para o navegante fornece coordenadas para o percurso permite alguma idéia do rumo a tomar mas não é o alvo que se quer atingir MEZAN 1993 p 58 110 Mais recentemente esta discussão viria a ser retomada por um trabalho como o de Celes 2000 que dentre outras coisas ocupase em apontar a crítica da psicanálise à concepção linear de tempo que caracteriza a experiência do cotidiano Neste sentido confere destaque ao que considera como a estranha contemporaneidade do saber e da prática freudianos marcados por uma simultaneidade e interrelação entre o mostrar e o ocultar e entre o retornar e o esquecer Ainda segundo Celes 2000 porém tal conciliação seria inseparável de uma outra aquela entre o acúmulo de conhecimentos e a singularidade do diaadia da prática clínica Afinal O trabalho psicanálise não é algo estabelecido de uma vez por todas desde seu início cujas psicanálises seguintes só fariam repetir O trabalho psicanálise também ele é algo a ser conquistado em cada análise como parte e pertencimento dele mesmo a cada vez de uma análise É porque a Psicanálise se faz em cada psicanálise que não há psicanálise anacrônica CELES 2000 p 74 Voltaremos porém à questão da temporalidade em psicanálise mais adiante 168 especial enquanto um exercício terapêutico que é ao mesmo tempo um contínuo exercício de criatividade Muito bem ocorre que o nosso passeio na companhia de Serge Viderman ainda não acabou Isso porque esta mesma discussão acerca da interrelação entre sentido e força no contexto da situação analítica viria a ser retomada pelo autor em um outro trabalho que também nos interessará aqui Nele destacando o duplo objetivo freudiano de construir uma teoria do funcionamento mental que fosse simultaneamente saber e ato Viderman 1995 afirma que em se tratando de psicanálise o conhecimento não é jamais uma espécie de luxo desinteressado adquirindo portanto os contornos de um instrumento de poder e legitimidade Estamos na presença de uma dupla dialética práticoteórica em que cada um dos termos da díade encontraria no outro seu apoio sua prova e sua justificação quer dizer que a aquisição dos conhecimentos que a teoria propõe deve operar uma modificação paralela dos objetos psíquicos ao menos na forma em que a teoria os supôs existentes e os descreveu É assim que a modificação dos objetos psíquicos e a relação de conjunto que une uns aos outros a transformação do sujeito submetido ao processo analítico e de suas relações com seus objetos internos se tornam ao mesmo tempo a meta do ato de interpretar e a única garantia de sua verdade VIDERMAN 1995 p 208209 Já o final da citação acima anuncia o tema a ser elaborado nas páginas seguintes Tratase da interpretação ou melhor dizendo da verdade interpretativa enquanto ato eficaz que ao menos teoricamente funcionaria como intermediário entre uma causa única em termos psicopatológicos e os efeitos supostamente derivados desta última O problema avança Viderman 1995 é que a despeito da teoria a prática clínica se revela inexorável em demonstrar que não há uma relação justa de reversibilidade entre efeitos e causas relação essa mediada pela interpretação Qual a implicação direta de um postulado como este Ora que a perspectiva de uma verdade sobre o Inconsciente alheio a ser descoberta pelo analista não passa de um mito Com efeito somos obrigados a nos deslocar do aparentemente sólido terreno da unicidade para aquele outro bem mais acidentado e talvez por isso mesmo mais interessante da multiplicidade Neste mesmo sentido ao invés de restringirmos o trabalho do analista à singularidade de um único ato interpretativo tornase mais coerente que pensemos na 169 dinâmica de um trabalho de interpretação Conforme expresso por Viderman 1995 nos seguintes termos Temse destas constatações o sentimento de que a pluralidade das causas agentes faz com que os efeitos escapem a toda linearidade que um ato interpretativo com sua conotação pontual bastaria para inverter Estamos ao invés disso na presença de um políptico de significações ambíguas plurais ao qual seria preciso aplicar não um ato interpretativo unívoco mas sim um trabalho de interpretação com o que está idéia conota de multiplicidade dos pontos de aplicação das forças que vão se exercer no campo da análise e o recurso na metaforização teórica não mais a uma geometria do ponto mas à intricação plural das causas agentes VIDERMAN 1995 p 210211 Estas são pensa Viderman 1995 as possibilidades oferecidas pelo substantivo alemão Durcharbeiten mais conhecido no círculo analítico brasileiro como perlaboração escolhido por Freud como representativo da atividade clínica em sua relação com o Inconsciente111 Ainda segundo o psicanalista francês podese deduzir de tal expressão que o objeto analítico em sua natureza eminentemente virtual não se constrói de uma única vez mas apenas fugazmente no espaço específico do setting e por conseguinte no entrecruzamento dos discursos nele contidos Daí a importância capital do tempo leiase da espera da maturação no desenrolar deste percurso onde a interpretação aparece não como o meio para a veiculação do sentido mas como um trabalho quase que artesanal de moldagem das sucessivas camadas do Inconsciente É nestes termos que Viderman 1995 problematiza qualquer tomada do sentido em psicanálise como sendo algo inscrito de uma vez por todas Afinal pensa ele desde que passamos a levar em conta noções como aquelas de Inconsciente e de transferência deveríamos considerar sempre a existência de uma barra oblíqua que separando o ser do não ser aponta o caráter eminentemente ambíguo e variável do próprio sujeito freudiano Por conseguinte caberia aceitarmos o fato de que o sentido não se apresenta como marca 111 Incidindo sobre as resistências pulsionais e podendo mesmo se apresentar como um momento de aparente estagnação característica essa que não deve encobrir a importância terapêutica deste trabalho a perlaboração permite a passagem da recusa ou da aceitação somente intelectual de uma interpretação para um tipo de convicção baseada na experiência analítica Neste sentido conforme Laplanche e Pontalis temos aqui o Processo pelo qual a análise integra uma interpretação e supera as resistências que ela suscita Seria uma espécie de trabalho psíquico que permitiria ao sujeito aceitar certos elementos recalcados e libertarse da influência dos mecanismos repetitivos 1992 p 339 170 indelével e assim identificável pela ação interpretativa do analista mas sim como uma manifestação na temporalidade e na espacialidade próprias de cada setting analítico112 Ainda para Viderman 1995 daí decorreriam tanto o paradoxo teórico do saber inaugurado por Freud quanto o dilema que aflige todo analista ambos derivados da distância e da inadequação entre o dito no aqui e agora e o anteriormente vivido em outro lugar O que fazer diante disso Segundo o nosso autor assumir a inexatidão como algo constitutivo da psicanálise inclusive porque até hoje não foi criado e muito provavelmente nunca o será um saber suficientemente coerente a ponto de realizar uma síntese bem sucedida entre sentido e nãosentido Afinal o que temos sim são teorias diversas mutantes e sempre à espera de sucessivas inovações que nos lembram o quanto A tragédia da interpretação e o drama do analista é que ele é a única medida das verdades que enuncia Fraca garantia para uma coisa tão grande VIDERMAN 1995 p 213 Mais adiante corroborando com esta argumentação Viderman 1995 realiza uma interessante aproximação entre ciência e psicanálise demonstrando como a despeito das pretensões totalizantes do passado ambas partilham mesmo de uma similar fragilidade ao operarem com recortes parciais da realidade que reduzindoa a modelos preconcebidos viabilizariam ações apenas sobre partes de um todo maior É neste sentido que tais modelos não atestariam verdades mas a coincidência entre uma determinada teoria e certos aspectos do seu objeto de estudo Dominados pelo ideal do rigor conceitualizante que triunfou nas ciências e tentados que estávamos em imitálos para aproximarmonos da comunidade científica e de seus sucessos deixamonos muito facilmente convencer que as associações livres a situação analítica iriam nos liberar o acesso a uma inteligibilidade total da psique O que se vê menos é que a escuta psicanalítica não mais que qualquer outro agenciamento instrumental científico não trabalha sobre totalidades da realidade mas sobre blocos parciais dos quais o 112 Levando em conta os nossos propósitos aqui detenhamonos um pouco mais no estatuto da temporalidade em psicanálise Como aponta Alonso isso não pode ser feito sem que primeiro levemos em conta o fato de que ao desfazer qualquer oposição radical entre fantasia e realidade o pensamento freudiano inaugura uma nova teoria da memória onde o passado fatual a realidade material não se encontra arquivado em lugar nenhum O presente é sempre reminiscente o passado ao qual temos acesso é fruto da resignificação 1997 p 87 Diante disso temos que embora apresentado de maneira seqüenciada no cotidiano da clínica vide o tempo das sessões o tempo total de uma análise e mesmo o encadeamento das descrições feitas pelo paciente regido pelo processo secundário ligado por sua vez à atividade consciente a temporalidade com a qual lida o analista aquela própria ao processo primário e ao Inconsciente é em última instância absolutamente atemporal desrespeitando limites preestabelecidos entre passado presente e futuro 171 modo de escuta específico do analista pára a errância e a desvia VIDERMAN 1995 p 218 É bem verdade pondera Viderman 1995 que uma linha de raciocínio como esta não se afirmou enquanto unanimidade Daí a insistente presença de movimentos como os da Psicologia do Ego norteamericana e também de certas correntes francesas ligadas ao estruturalismo as quais segundo o nosso autor a despeito de divergências teóricas unirse iam na busca de critérios menos maleáveis no que se refere ao modus operandi da clínica psicanalítica aproximandoa assim do chamado rigor científico em termos da observação e controle de dados e possibilidades Novamente para Viderman 1995 ocorre que a qualidade das paixões mobilizadas por um encontro como o analítico permaneceria irredutível a parâmetros do tipo formal inscrevendose mesmo no espaço próprio ao inefável e ao indizível Assim não seria possível pretender sublinhar o seu caráter extraordinário e de forma simultânea limitar esta força explosiva a um quadro fixo e previsível como o da situação experimental Como seguramente já notou o leitor atento eis que retornamos à tragédia da interpretação há pouco mencionada Entretanto finaliza Viderman 1995 é exatamente no enredo de tal drama incluindose aí a ambigüidade e em decorrência a permanentemente propagada crise do saber inaugurado por Freud que se localizam as férteis potencialidades da psicanálise tanto como modalidade terapêutica quanto na qualidade de um ramo de pesquisas Sua principal virtude Ampararse não no rigor técnico e formalista mas em um apreço ao individual que pronto a assumir o risco do erro adquire mesmo os ares de uma estética da criação113 113 Ainda em solo francês uma discussão semelhante aparece no escrito de Le Guen 1995 o qual em acréscimo problematiza os próprios conceitos de criação e produção de sentido em psicanálise No que se refere ao primeiro postula que este adquire uma conotação metafísica enquanto obra de um sujeito situado fora do mundo ou seja agindo para si mesmo Já o segundo situarseia sempre na relação Portanto um produto realizado com eou para alguém Tal diferenciação conduz Le Guen 1995 a opor os verbos reconstruir e construir questionando assim o estatuto da história em psicanálise Neste sentido esta última apareceria como uma coleção de acontecimentos mortos e enterrados ou como um movimento de vida que se refaria a cada cura Claramente se posicionando a favor da segunda opção o autor francês atesta a qualidade própria da temporalidade da experiência analítica ao conferir destaque a um atributo particular do desejo aquele de se constituir como o cimento que ligaria o passado à atualidade De acordo com este mesmo desejo portanto poderíamos pensar a atividade interpretativa em psicanálise como lugar de um inventivo fazer sentido 172 Diante disso parece que nos situamos em um impasse de proporções nada desprezíveis e que incide diretamente sobre o objeto do presente capítulo a questão da alteridade e da imposiçãonegociação de sentido em psicanálise Tratase de como conciliar os resquícios do realismo em Freud 19371976 ou seja a sua arqueologia presente na aposta quanto a possíveis origens históricovivenciais para o trauma psíquico com o absoluto construtivismo proposto por Viderman 1990 1995 segundo o qual o Inconsciente jamais um dado natural expressarseia unicamente por uma metalinguagem logo por uma cultura não meramente classificatória mas organizadora da experiência que ao dizer a fantasia também a criaria Pois bem qual destas duas partes tem razão nesta contenda Ou será que superando as dicotomias de caráter simplista haveria alguma outra maneira de se pensar essas questões Isto é exatamente o que sugere Figueiredo 1998b em um trabalho que de agora em diante merecerá a nossa particular atenção pois além de abranger os problemas do tempo e da narrativa em psicanálise objetos privilegiados da nossa discussão até aqui associaos à noção heideggeriana de experiência ampliando com isso o leque das nossas possibilidades de reflexão114 Neste sentido de volta ao campo da psicanálise abordaremos questões de ordem técnica sobre o material clínico como se deixar afetar por ele como responder ao seu apelo e ainda acerca dos estatutos e das eficácias das falas o que por derivação nos conduzirá rumo a questões epistemológicas referentes à noção de verdade no saber inaugurado por Freud Sem mais delongas avancemos então rumo a esta nova etapa do nosso capítulo Terceira Parte tempo e narrativa em Freud e Heidegger um encontro na obra de Luís Claudio Figueiredo Figueiredo 1998b inicia seu estudo por um contraponto entre duas tendências que como vimos há pouco demarcam sobremaneira o universo psicanalítico Falamos dos construtivistas e dos realistas Quanto aos primeiros aponta o nosso autor sua 114 Como veremos interessam a Figueiredo 1998b particularmente as meditações de Heidegger acerca da modernidade ou seja o chamado segundo Heidegger aquele que a partir da década de 1930 deixa mais de lado a analítica existencial tão presente em uma obra como Ser e Tempo para se dedicar a críticas ao humanismo e ao pensamento representacional 173 característica principal é grosso modo a de enfatizar a impossibilidade de garantias de correspondência entre a representação e a coisa representada Em termos clínicos isso significa uma perene inadequação entre as metapsicologias e o funcionamento do aparelho mental De maneira complementar temos ainda na perspectiva construtivista a frustração de qualquer expectativa de que as interpretações ou construções em análise se revelem adequadas enquanto instrumentos de contato com a verdadeira história do sujeito que se submete ao tratamento Ainda no que se refere aos construtivistas prossegue Figueiredo 1998b uma outra implicação de tal maneira de conceber a psicanálise é a de que se as teorias parecem perder pelo menos parte da sua confiabilidade ao capitularem da busca por critérios últimos de veracidade as práticas clínicas pelo contrário aparentemente preservam muito do seu valor enquanto viabilizadoras de transformações terapêuticas ou seja enquanto permanecerem eficazes Neste mesmo sentido para além de alguma noção previamente determinada tratase de enfatizar a coerência das histórias geradas pela interação entre postulados teóricos e material clínico Assim o passado por exemplo não é redescoberto e reconstruído não é isso o que importa e sim que seja efetivamente constituído a partir do presente ou seja da situação analítica e do jogo transferencial contratransferencial que se instala nela FIGUEIREDO 1998b p 273115 Diante disso Figueiredo 1998b chama a nossa atenção para os seguintes problemas se o passado perde em importância se comparado ao aqui e agora do encontro clínico como compreender a relação contratransferencial Como absoluto presente Aliás como sequer falar em transferência sem levar em conta as determinações inconscientes que a caracterizam sobremaneira determinações essas ligadas a um contexto prévio como aquele da infância Mais ainda como manter em movimento o processo analítico se um ou mais sentidos compartilhados ameaçam preencher as lacunas eou mal entendidos com os quais trabalha a escuta do analista leiase a escuta do Inconsciente Portanto aposta o nosso autor A miopia está em não reconhecer que nestas inconsistências como ocorre sempre que se trata da psicanálise revelase algo muito 115 No original Desde esta perspectiva el pasado por ejemplo no es redescubierto y reconstruido no es eso lo que importa sino que sea efectivamente constituido a partir del presente o sea de la situación analítica y del juego transferenciacontratransferencia que se instala en ella trad nossa MRS 174 valioso a presençaausência do que fora do tempo das narrativas faz a análise trabalhar FIGUEIREDO 1998b p 274116 Corroborando com estas questões relativas à técnica aponta Figueiredo 1998b o construtivismo em psicanálise levanta ainda polêmicas de ordem ética dada a chance que fornece de que se venha a tomar o passado relatado na clínica a realidade psíquica como uma versão entre outras versão essa passível de melhorias e assim potencialmente inconsistente em si mesma Somese a isso a possibilidade de que as metapsicologias acabem por se tornar meros recursos para a criação de boas ou más narrativas de acordo com uma liberdade quase absoluta potencialmente delirante eou autoritária inclusive das interpretações e construções do analista e teremos como resultado uma severa diminuição das chances de entrarmos em contato com a alteridade do paciente particularmente com aqueles traços tão caros ao Inconsciente que teimosamente resistem à ação descritiva das palavras Uma vez feitas estas considerações Figueiredo 1998b parte então para um segundo momento do seu trabalho quando passa a abordar as versões da psicanálise que buscam apoio em uma epistemologia do tipo realista Conforme o nosso autor o que as manteria unidas é a crença quanto à possibilidade da obtenção de um conhecimento seguro das coisas pela via da correspondência entre as construções teóricas e os fatos empiricamente observáveis Dito de outra maneira tratase aqui de conceber um conhecimento confiável e independente de contaminações subjetivas o que no caso do tipo de saber inaugurado por Freud significaria a adequação ou analogia entre o discurso metapsicológico e o funcionamento do aparato mental Pois bem ainda para Figueiredo 1998b a despeito talvez das boas intenções presentes em tal discurso o problema começa a aparecer quando observamos mais de perto esta questão do fatos particularmente no contexto da clínica analítica Afinal este é um terreno movediço onde a verdade adquire marcados contornos de precariedade já que aparece invariavelmente atravessada pelas artimanhas do Inconsciente Com efeito 116 Ibidem La miopía está en no reconocer que en estas inconsistencias como ocurre siempre que se trata del psicoanálisis se revela algo muy valioso la presenciaausencia de lo que fuera del tiempo de las narrativas hace trabajar al análisis trad nossa MRS 175 deve ser extremamente difícil senão impossível livrar a psicanálise da acusação de confundir sistematicamente fatos com artefatos Justamente o psicanalista que conduz seriamente as suas teorias e práticas sabe que elas têm um potencial desestabilizador em relação às posições realistas na medida em que as determinações inconscientes não pedem licença para atuar e nem tampouco anunciam a sua ação a não ser e sempre precariamente por uma escuta treinadapela própria psicanálise FIGUEIREDO 1998b p 276117 De qualquer forma esclarece Figueiredo 1998b logo em seguida o seu objetivo no trabalho em questão não é o de permanecer no âmbito de uma comparação descritiva entre realistas e construtivistas demolindo a falsa idéia de uma absoluta oposição entre si Ao invés disso interessalhe demonstrar que ambos são incompatíveis com o que sugere e mesmo exige a prática analítica uma vez que adotam uma concepção de experiência que esta sim deveria ser repensada118 Neste sentido Figueiredo 1998b aponta o problema de seguindo a tradição do pensamento ocidental permanecermos tomando esta mesma experiência sob a primazia da 117 No original debe ser extremadamente difícil si no imposible librar al psicoanálisis de la acusación de confundir sistemáticamente hechos con artefactos Justamente el psicoanalista que conduce seriamente sus teorías y prácticas clínicas sabe que ellas tienen un potencial desestabilizador en relación a las posiciones realistas en la medida en que las determinaciones inconscientes no piden licencia para actuar ni anuncian su acción sino y siempre precariamente por uma escucha educadapor el propio psicoanálisis trad nossa MRS 118 Para maiores detalhes acerca da noção de experiência com a qual trabalhamos aqui estritamente vinculada por seu turno aos diálogos de Heidegger com a modernidade consultar as reflexões de Figueiredo 1994a 1995 2002a Elas aparecem marcadas por uma problematização da chamada metafísica da presença segundo a qual haveria uma consistência eou permanência do ser no tempo e no espaço Ou seja tratase da crença em um perfeito agora como lugar do ser segundo Figueiredo 2002a a mais perfeita imitação humana da idéia de uma eternidade divina associada por seu turno à busca de uma identidade ou coincidência do si consigo mesmo Em tal quadro marcado por uma concepção linear onde o tempo aparece como algo recuperável eou previsível e com efeito presente e passado são postos à disposição do homem suposto sujeito do saber caberia às ciências da atualidade presentificar presenças ausentes por meio de sistemas teóricorepresentativos que além de trazerem de volta o que supostamente já foi antecipariam o que ainda será Diante disso ao mesmo tempo em que nos propõe a possibilidade de pensarmos o tempo como trânsito e diferenciação ao invés de um eterno de um ente supremo que agiria como fundamento de todos os entes Figueiredo 2002a nos convida a questionar o caráter supostamente integrado do presente fraturandoo ao apostar na sua heterogeneidade aquela que nos diz que cada identidade é composta por variadas alteridades constitutivas Em outros termos o desafio é o de deixarmos de lado a proteção narcísica garantindo um lugar no pensamento para a lacuna para uma imprevisível ruptura desubstancializando a subjetividade como nos diz Figueiredo 2002a e assim caminharmos para uma nova forma de conceber termos até então consagrados como origem e experiência os quais deixam de ser absolutamente fundantes eou elementares Neste mesmo sentido tratase ainda de suprimirmos a coincidência do sujeito consigo mesmo enquanto identidade presentificada no penso logo existo cartesiano e simultaneamente derrubarmos qualquer noção de agora que pudesse ser vivido revivido ou experienciado em sua pura autenticidade Com efeito temos aqui uma idéia de experiência como permanente construção devir e não obra completa comportando portanto a ameaça de destruição e luto não como fim em si mas como abertura ao novo à possibilidade Nesta nova concepção nãolinear o presente deixa de se constituir na qualidade de identidade para ser tomado como diferença de si e o agora passa a dividir a sua morada com o vazio com o instituinte e com o irrepresentável 176 presentificação ou seja como aquilo que se dá na presença restando à memória e à expectativa o predicado de modos deficientes de se encontrar algo que se revelaria em sua maior plenitude apenas ou preferencialmente na percepção do aqui e agora Em tal perspectiva vale notar o passado aparece como um foi presente e o futuro como um será presente enquanto à narração caberia o papel de reunilos passado e futuro em um único e verdadeiro presente119 Qual a implicação disso para a nossa discussão até agora Bem ela aparece claramente se considerarmos que neste entrechoque entre realistas e construtivistas tanto faz em última análise se a narrativa aparece tomada como reconstrução reprodução ou construção criação O que importa é ver que o sentido de experiência como presentificação é o mesmo em ambos os casos FIGUEIREDO 1998b p 277120 O mesmo já não ocorre contudo quando levamos em conta o caráter extemporâneo do Inconsciente a Nachträglichkeit freudiana enquanto elaboração teórica dos efeitos traumáticos de acontecimentos passados atualizados mediante certas condições proporcionadas por eventos posteriores121 Tratase aqui diznos Figueiredo 1998b do quê de indestrutível das emergências pulsionais da enorme resistência das representações recalcadas e dos efeitos devastadores do trauma particularmente quando da destruição dos recursos autoregenerativos do psiquismo o que impede o movimento do sentido na vida do sujeito experiência essa anteriormente denominada pelo nosso autor de acontecimento inconcluso FIGUEIREDO 1993122 119 Resumidamente portanto temos que a veracidade do passado e do futuro seria obtida unicamente pela sua presentificação narrativa 120 No original como reconstrucción reproducción o construcción creación Lo que importa es ver que el sentido de experiencia como presentificación es el mismo en ambas posiciones trad nossa MRS 121 Processo este de constituição e reconstituição do sentido da experiência que na comunidade psicanalítica francesa e também na brasileira aparece mais geralmente descrito como après coup 122 Portanto quer seja enquanto sistema delirante e fechado a qualquer alteração quer seja na qualidade de incurável ferida pósoperatória ao invés de abrir portas para a presença enquanto novidade ou para a novidade da presença o trauma acaba por encerrarreduzir drasticamente o campo da experiência e com ele a sensibilidade à alteridade Essa é a perspectiva que conduz o nosso autor à afirmação de que Não é o acontecimento passado que determina o presente embora o propicie ao abrir um campo novo de possibilidades e passibilidades o que determina absolutamente o presente é a fratura aberta do trauma enquanto acontecimento inconcluso FIGUEIREDO 1993 p 49 A partir destas observações tornase viável pensarmos na hipótese de um certo caráter melancólico do acontecimento traumático Isso porque em ambos os casos no trauma figueirediano e na melancolia freudiana parece ocorrer uma fixação do sujeito em objetos eou etapas específicas da sua vida sem que seja vislumbrada a possibilidade de um salutar deslocamento da libido rumo a outras pessoas os eventos leiase acontecimentos Cf FREUD 1915171996 177 A partir do referencial freudiano vemos portanto que a presença perde o seu status de fundamento da experiência Isso porque o fora do tempo passa a ser reconhecido como parte integrante e indissociável de tudo o que se dá como vivência presentificada Eis aí a diferença fundamental entre a temporalidade psicanalítica e a narrativa convencional aquela portadora de um ou mais sentidos e de um começo um meio e um final bem definidos Corroboram com esta argumentação os seguintes termos de Figueiredo Em psicanálise o extemporâneo se fará irromper sempre inevitavelmente porque são justamente nessas e a partir dessas irrupções que o tempo temporaliza Sempre recomeça mas jamais desde o começo Mas além disso jamais se saberá definitivamente onde estão o começo o meio e o fim das narrativas psicanalíticas e cada momento estará sempre remetendo ae sendo atraído por outros momentos na constituição de uma história fraturada e sobredeterminada pelos seus antes e depois FIGUEIREDO 1998b p 278123 Diante disso Figueiredo 1998b se desloca do terreno da temporalidade para aquele próprio à narrativa Então acrescenta às suas idéias o argumento de que se o tempo em psicanálise muda também o faz a fala que para adquirir verdadeira eficácia clínica ao invés de fabricar contos belamente acabados deve tornar possível de alguma forma o acolhimento do extemporâneo do Inconsciente ao qual nos referimos há pouco quer ele apareça de modo mais configurado ou então mais livre para que exerça a sua imprevisível mas impressionantemente efetiva atividade germinativa Como viabilizar esta acolhida Bem possíveis saídas para esta pergunta aparecem já em um trabalho anterior quando Figueiredo 1993 ocupandose dos estatutos da fala em psicanálise tomaa inicialmente na qualidade de dispositivo representacional ou seja como um agente nomeador dos fenômenos em isto ou aquilo No mesmo artigo porém o autor nos propõe logo em seguida uma fala acontecimental que complementando a primeira aparece marcada por uma palavra estranha indisponível e liberta das tarefas comunicativas eou representativas Segundo Figueiredo 1993 tal fala responde por si mesma e não de algum lugar preestabelecido pela linguagem ou por um autor específico 123 No original En el psicoanálisis lo extemporâneo se verá irrumpir siempre inevitablemente porque son justamente de esas y en esas irrupciones que el tiempo temporaliza Siempre recomienza pero jamás desde el comienzo Pero además nunca se sabrá definitivamente dónde están el comienzo el medio y el fin de las narrativas psicoanalíticas y cada momento estará siempre remitiendo ay siendo atraído por otros momentos en la constituición de una historia fracturada y sobre determinada por sus antes y después trad nossa MRS 178 Com isso chama à escuta aquele que fala e coloca à justa distância o enigma da própria fala para que este venha a ser algo124 Tal é o quadro propício para que Figueiredo 1993 aproximando as suas discussões anteriores do contexto próprio ao atendimento clínico brindenos com a sugestiva proposta de que a palavra em psicanálise funcione como fala acontecimental Ou seja que faça o acontecimento efetivamente acontecer disponibilizandoo então para a elaboração e para a representação de maneira a libertar a existência do sujeito ao reinstalar nela o movimento de uma história até então paralisada pelo trauma Conforme o próprio autor é preciso que a situação analítica reedite a condição do acontecimento inconcluso para que dela provenha uma pulsão tradutiva capaz de libertar uma palavra nomeadora que acontecendo efetue o trânsito e faça acontecer FIGUEIREDO 1993 p 50 Para tanto porém acrescenta Figueiredo 1993 o desenrolar do processo de acontecimento deve adquirir um caráter verdadeiramente fenomenológico entendendose com isso a anterioridade e distinção de qualquer movimento representativo Nestes termos tentativas apressadas de interpretação eou construção que desrespeitem uma solicitação de fala emergente do campo de forças instaurado no e pelo encontro analítico ou seja que atuem contra o movimento que é próprio ao acontecimento fatalmente poderão vir a ser tomadas como defesa eou sugestão de sentido125 Eis aí o princípio norteador da leitura feita por Figueiredo 1996a de Construções em Análise objeto último deste nosso percurso pelas suas idéias Sua principal virtude O fato de utilizar esta discussão acerca da fala e da escuta para então trazer à tona novas alternativas para o dilema realistas versus construtivistas leiase descoberta ou imposição de sentido em psicanálise Assim passemoslhe a palavra 124 Uma abordagem mais aprofundada desta temática pode ser encontrada em Figueiredo 1994a particularmente em um capítulo do livro em questão intitulado Poesia e fala 125 Mais uma vez aproximando a psicanálise do pensamento heideggeriano podese perceber no trabalho de Figueiredo 1993 a crítica à verdade ou fala como correspondência Ao mesmo tempo temos a busca de uma correlação entre a renúncia à representação plena e a aspiração pelo sentido A partir desta abertura e incompletude sugere o nosso autor abrese a possibilidade da emergência do acontecimento em uma fala que brote da escuta do ser como abismo FIGUEIREDO 1995 Enfim uma aproximação do real enquanto campo de possibilidades e não da realidade enquanto representação fechada Como se pode notar Figueiredo 1993 1995 parece portanto situar a palavra ou a verdade em psicanálise no momento na transição entre um a priori e um a posteriori do sentido diferindo assim de um construtivismo como aquele de Viderman 1991 Retornaremos a isso oportunamente 179 Quarta Parte de volta às Construções em Análise Figueiredo 1996a abre a sua discussão com um recuo no tempo em busca das teorias do filósofo G W Leibniz cuja importância reside entre outras coisas no estabelecimento do Princípio de Razão o qual tantos rastros deixou na história do Ocidente desde a chamada época das luzes séculos XVII e XVIII Quais as suas características Primeiramente uma coincidência entre o pensar e o manejo das representações considerandose que é por intermédio destas últimas que o sujeito reconhece os objetos do saber mantendoos a uma distância suficientemente boa em termos de manipulação e controle Para que todo este processo venha a se dar diznos Figueiredo 1996a temos de levar em conta ainda o papel da fala propositiva que na qualidade de expressão supostamente perfeita do há pouco mencionado pensamento representacional enlaçaria os sujeitos e predicados de uma determinada sentença tornandoa verdadeira ou seja adequada à realidade das coisas Entretanto o árduo percurso para o estabelecimento da objetividade de um fato não terminaria aí uma vez que necessitaria também da articulação não contraditória entre diversas proposições a ponto de formarem um sistema único e coerente capaz de conferir um lugar ou sentido específico a cada um dos objetos que comporta Quando isso ocorre cada fenômeno visado numa proposição adquire plena consistência vale dizer quando isso ocorre o sujeito sentese perfeitamente seguro de que lida com algo que realmente é com algo que integrado a um sistema de algos tem a consistência própria de um objeto Vêse portanto facilmente que é a objetidade de um objeto que garante para cada algo um ser verdadeiro real não ilusório ou meramente sonhado e que esta objetidade depende por seu turno da aptidão deste algo deixarse incorporar a um sistema representacional FIGUEIREDO 1996a p 82 Tais sistemas porém não brotam do nada pondera Figueiredo 1996a mas sim da imaginação de um sujeito do conhecimento que em última instância arbitraria sobre as noções de verdade e assim procedendo forneceria tanto as razões de um fenômeno quanto a garantia da sua objetividade Eis a função de dois tipos distintos ainda que potencialmente complementares de proposições as explicativas baseadas em relações 180 diretas de causa e efeito e aquelas outras de natureza hermenêutica que menos orientadas por um ideal de exatidão buscariam estabelecer sentidos para os enlaces entre eventos De qualquer maneira e aqui retornamos a Leibniz explicando ou interpretando o sujeito se submeteria ao Princípio de Razão onde nada é sem uma justificativa plausível e ditada por sistemas representativos Nesta perspectiva a realidade aparece como a totalidade dos fenômenos passíveis de integração a tramas de sentido anteriormente determinadas Em decorrência teríamos aí um espaço marcado pela previsão e pelo controle uma comodidade na qual dados os enlaces possíveis entre os diversos fenômenos poderemos sempre ir de um a outros sem quedas nem obstáculos insuperáveis Realidade em termos fenomenológicos é onde vivemos e nos apoiamos sem sobressaltos nem surpresas dada a solidez de seus objetos e dada a perfeita integração e harmonia entre eles FIGUEIREDO 1996a p 83 Mais adiante Figueiredo 1996a avança em sua argumentação apontando como atividades tão cotidianas quanto o ver e o escutar costumam ser exclusivamente balizadas por preceitos como aqueles expostos acima tornandose significativas à medida que provêm as razões de dado fenômeno e lhe garantem uma condição plenamente inteligível e portanto objetiva Nestes termos nosso aparelho sensoperceptivo se volta a uma busca espontânea e ao mesmo tempo reducionista por tornar o novo eou inesperado algo já conhecido para então recobrar a confiança na solidez daquilo que tomamos como realidade processo esse realizado de forma mais sistematizada pelas ciências Muito bem deve estar agora se perguntando aquele leitor mais impaciente mas qual a importância última desta incursão pela seara da filosofia e teoria do conhecimento Ao que cabe responder ela serve como preâmbulo necessário para que Figueiredo 1996a alcance certas questões essenciais ao seu trabalho São elas Em que medida a clínica psicanalítica está também ela submetida ao Princípio de Razão Em que medida a clínica psicanalítica realizase através do proferimento de proposições explicativas e interpretativas no sentido acima indicado FIGUEIREDO 1996a p 83 Este é o quadro que conduz Figueiredo 1996a a uma avaliação do próprio papel da interpretação no encontro analítico Estaria ela associada à reconstituição de um tecido de razões Em caso positivo qual seria a sua função esclarecer o material psíquico até então 181 disperso em manifestações do Inconsciente como aquelas representadas pelos sonhos sintomas ou atos falhos E mais ainda deveria o ato de interpretar ser tomado como um sinônimo do ato de convencer por meio de teorias aparentemente coerentes que uma vez incorporados reorganizariam a percepção do paciente acerca de si mesmo e da sua relação com o mundo Conforme Figueiredo 1996a a aceitação de tais hipóteses de cunho intelectualista implicaria na concordância com o ponto de vista segundo o qual as falas interpretativas em psicanálise agiriam como falas realizadoras leiase eficazes na constituição de uma nova realidade ortopédica ou abertamente substitutiva no que pouco ou nada difeririam da sugestão Assim posicionandose contra esta aproximação estreita entre a atividade clínica e o Princípio de Razão nosso autor procurará demonstrar nas próximas páginas que a fala em psicanálise não tem essencialmente uma função realizadora que interpretar em psicanálise não é essencialmente fazer ou refazer ligações e que o ver e o escutar em análise não são meramente acessórios da tarefa principal de dar esperar ou procurar razões FIGUEIREDO 1996a p 8485 Neste sentido tratase de afirmar primeiramente a possibilidade de que algo se imponha a nós de maneira prévia como um sendo experimentado sem necessariamente se subordinar à exigência da razão Em outras palavras como um enigma ou corpo estranho que irrompendo no pretensamente sólido tecido da realidade criaria o que Figueiredo 1996a chama de superreal ou espaço do heterogêneo o qual bem próximo ao sonho permaneceria impassível de qualquer determinação pelo nosso repertório conceitual Para dar conta do quê de surpresa presente nesta fratura segue nosso autor o pensamento representacional não seria de grande valia pois apenas nos reconduziria ao seguro terreno do já sabido Daí a necessidade de nos libertarmos da tutela da razão tal como pensada na tradição ocidental e com isso Ao invés de ver e escutar na expectativa e na procura de razões ver e escutar o que é ainda puro movimento de tornarse figura desde um fundo que é nada do ponto de vista dos entes já constituídos mas que é um nada pleno o nada é um vazio de entes de formas e figuras mas não é só vazio é também uma discreta plenitude FIGUEIREDO 1996a p 85126 126 Aqui o trabalho de Figueiredo 1996a revela a sua dívida para com as idéias de Heidegger 1989 1990 onde o ser aparece em um movimento de puro envio e retraimento fonte virtual de todas as coisas que brotaria entre o aqui e o acolá o som e o silêncio a exposição e a camuflagem 182 Mas as mudanças não param por aí exigindo ainda uma significativa transformação no status da própria fala que de propositiva passa a se configurar enquanto fenomenalizadora A fala é neste caso já não mais a da proposição considerada como aquilo que enlaça sujeitos e predicados e se enlaça a outras proposições É a fala fenomenalizadora que responde à escuta do inaudível e à visão do invisível dando uma figurabilidade mínima para que antes de qualquer objetivação e racionalização algo possa vir a ser para que algo se mostre Esta fala não é em absoluto uma fala realizadora no sentido acima mencionado Ao contrário é uma fala irrealizante que descontextualiza destece a realidade homogênea para acolher o heterogêneo o surpreendente FIGUEIREDO 1996a p 8586 Os reflexos de tal reorientação nos interessam de perto revelandose de grande valia tanto para o filósofo quanto para o analista É desta maneira que de volta ao contexto clínico Figueiredo 1996a considera a neurose um excesso de realidade diante do qual a interpretação somente se tornaria eficaz caso atuasse também ela na qualidade de fala surrealista e irrealizante abrindo espaços em meio à densa espessura de uma homogeneidade doente É para justificar esta proposta que Figueiredo 1996a na segunda e última parte do seu artigo empreende uma leitura de Construções em Análise Cf FREUD 19371976 procurando demonstrar como já ali seria possível encontrar certos modos de ver escutar e pensar não necessariamente atrelados às exigências do Princípio de Razão Assim obedecendo a seqüência do texto original nosso autor inicia pela seguinte questão como o analista deve lidar com o sim e o não do paciente após uma interpretação Neste mesmo sentido seria desejável que prevalecesse aqui a estrita obediência teórica e com ela a submissão a uma coerência de ordem intelectual sobre tais respostas e mesmo sobre a totalidade dos eventos clínicos Qualquer resposta afirmativa a estas perguntas sugere Figueiredo 1996a em nada diferiria a psicanálise de uma oferta de razões particularmente de natureza genética tornando o processo analítico uma tarefa meramente realizadora e sustentada na crença quanto à possibilidade da reconstituição de um suposto tecido da realidade127 Para o 127 Corroboram com esta suspeita destaca ainda Figueiredo 1996a tanto o próprio termo construção quanto a afirmação de Freud 19371976 de que o objetivo do analista é aquele de suplantando as lacunas impostas pela amnésia reconstituir a trama da história de vida do paciente 183 mesmo Figueiredo 1996a contudo um contraponto imediato a esta idéia seria oferecido pela metáfora freudiana que aproxima a atividade do analista àquela outra do arqueólogo Cf FREUD 19371976 Afinal a partir dela seria possível pensar que em seus esforços na busca de objetos perdidos ambos estes profissionais se dedicariam a peças que teriam valor em si mesmas destituídas portanto de uma necessária vinculação a determinadas tramas racionais O que porém autorizaria tal proposta de que a construção psicanalítica estaria fora dos domínios do razão Mais uma vez tomando por base o texto de Freud 19371976 Figueiredo 1996a nos diz que ela seria referendada pelo fato de que a eficácia da construção não se revelaria de maneira direta através de simples anuências ou discordâncias conscientes por parte do analisando mas sim pelos seus efeitos128 Por exemplo denegações associações ou lembranças adicionais cujo manejo influenciaria diretamente no desenrolar do tratamento mas que em si mesmas nada teriam a ver com qualquer intenção de um convencimento racional Conseqüentemente a construção não é boa ou má em termos de estar ou não contribuindo para a realização de uma história de vida Boas construções tocam o inconsciente do paciente e isto se revela nos efeitos índices de que a construção gerou algo no campo dos afetos produziu uma emergência pulsional Nada disso é obtido através de argumentos pró ou contra apenas cabe ao analista apresentar a construção mostrar a peça construída e deixála fazer seu caminho FIGUEIREDO 1996a p 88 Pois bem já próximos de encerrar o nosso passeio pelo trabalho de Figueiredo 1996a vemos de que maneira um outro destes mesmos efeitos terapêuticos da construção passa a servir aos propósitos do autor à medida que também ele referendaria a hipótese de uma insubmissão da psicanálise ao Princípio de Razão Comparado por Freud 19371976 ao delírio psicótico tratase do surgimento de imagens hipernítidas elementos fragmentados de cenas anteriores que embora irreconhecíveis ou apenas indiretamente relativos ao conteúdo da construção somarseiam a este último com todo o poder intempestivo de uma impressão ou experiência original a partir da fala do analista 128 Inclusive acrescenta ainda Figueiredo 1996a porque as recusas ou confirmações acerca das hipóteses construídas poderiam significar uma miríade de coisas distintas tornando inviável qualquer definição acerca da sua maior ou menor verdade 184 Mais uma vez de acordo com Figueiredo 1996a seria possível deduzir deste processo uma equivalência entre a força de convicção do delírio e a força de convicção da construção analítica o que por sua vez afastaria qualquer chance de confundirmos a eficácia racional de um argumento e aquela outra de natureza pulsional relativa às construções Afinal A primeira deriva do império do Princípio de Razão A segunda salta para fora deste território FIGUEIREDO 1996a p 88 Temos aqui uma espécie de coroamento de tudo o que foi dito até o presente momento com o poder da construção em análise aparecendo não na sua qualidade lógica e nem tampouco na sua correspondência objetiva com um passado esquecido mas na capacidade de fornecer uma figurabilidade a este mesmo passado Com efeito o que antes era um fragmento desligado poderia vir a ser reexperimentado na situação clínica de maneira bem mais elaborada tornando a construção e por derivação o próprio saber inaugurado por Freud uma ferramenta essencialmente fenomenalizadora ao invés de mera edificação teórica ou mesmo formulação retórica129 É o que podemos deduzir das seguintes passagens com as quais encerramos esta leitura Em conclusão não se trata portanto de que a construção convença racionalmente ou se incorpore pura e simplesmente a uma narrativa de si racionalizante não se trata de contar melhores histórias ou elaborar descrições mais convenientes da subjetividade mas de que o proposto na construção mobilize as pulsões toque o inconsciente e faça emergir ainda que de forma irreconhecível uma verdade históricovivencial Na situação clínica talvez esta experiência possa então ser refeita em condições de permitir que este passado desentranhado pela fala possa dissolverse à luz do dia Tratase assim muito mais de um mostrar do que de um raciocinar a fala do analista enquanto construção não dá razões ela fazse escutar dando a ver e a sentir FIGUEIREDO 1996a p 8889 Restanos então concluir ao menos momentaneamente Uma boa maneira de fazêlo é procurando respostas para a seguinte questão de que maneira este percurso que fizemos pelo conceito de construção pode efetivamente contribuir com a discussão acerca 129 Interessante notar como todos estes aspectos aparecem condensados na hipótese que Figueiredo 1996a nos oferece ao final de seu texto Segundo ela as construções poderiam ser tomadas como os elementos históricovivenciais do paciente delirados pelo analista já que as falas do primeiro forneceriam ao segundo fragmentos que poderiam ser vistos por ele Posteriormente transformado em palavras através da construção esse mesmo ver poderia ser apresentado na qualidade de uma peça hipernítida que fortemente investida em termos de afetos viabilizaria o resgate de elementos soterrados ou como vimos há pouco mesmo destituídos de forma Para Figueiredo 1996a tal hipótese traria a vantagem de aproximando a construção do trabalho do sonho retirar dela a dimensão intelectualista que até então a caracterizou 185 da alteridade em psicanálise que vem sendo privilegiada por nós nestes dois últimos capítulos Uma boa resposta nos é oferecida mais uma vez por Figueiredo 1996a para o qual a despeito das teorias inauguradas por Freud naturalmente obedecerem aos ditames de um intelectualismo realizador130 no visàvis do encontro analítico podem e devem funcionar como dispositivos desrealizantes favorecendo o sonho ao invés do cálculo e do controle Em assim procedendo sugere o autor adquirirem um estatuto cognitivo diferente daquele consagrado às teorias científicas stricto senso Neste sentido os dialetos metapsicológicos aparecem ou deveriam aparecer como os lugares e formas de acolhimento do nãohumano de uma familiar estranheza que funda a psicanálise a qual se ocupa de um homem habitado por aquilo que não é ele mesmo Temos aqui portanto a idéia de uma radical alteridade como tema e razão de ser do tipo de conhecimento inaugurado por Freud Em decorrência disso o bom serviço a ser prestado pelas metapsicologias se torna aquele de subtraindo a nossa escuta do familiar libertála para o estranhoemnós operação essa de descentramento verdadeiramente indispensável já que institui não só o espaço de uma outra escuta mas é a fonte de uma outra possibilidade de fala E não porque o estranhamento metapsicológico possa sem mais ser aplicado ao material clínico tudo explicando tudo interpretando Muito ao contrário porque ela abre neste material intervalos e desajustes rompendo a fluência das comunicações cotidianas e fazendo saltar para fora desta fluência as peças enigmáticas de que a vida é feita FIGUEIREDO 1996b p 50 Portanto podemos deduzir daí que o ideal interpretativo não se restringe nem à reconstrução de um conteúdo ou intenção última da obra ou de seu autor e nem tampouco a uma total imersão subjetiva do leitor visto como criador de um texto rigorosamente distinto da sua fonte mas sim a uma fabricação do estranho FIGUEIREDO 1994b Tal expressão ao mesmo tempo em que sugere ao analista um necessário afastamento de qualquer compreensão apressada a priori redutiva ou defensiva alicerçase em um outro importante conceito o de conservação Longe de qualquer conotação reacionária este último adquire sim um caráter renovador ao buscar perpetuar no processo interpretativo a sua estranheza originária aquela 130 Afinal funcionam como leis ordenadores de uma determinada visão de mundo e por derivação de uma também determinada técnica terapêutica e interpretativa 186 estranheza produzida pela surpresa causada precisamente pela diferença com a qual o outro exige que nos deparemos Assim mais do que conservar a distância cabe mesmo ampliála a ponto de atingirmos uma espécie de desfamiliarização não somente com o outro sobre o qual nos debruçamos mas em última análise de nós para conosco Com efeito se é que há uma conclusão que possa ser retirada do presente capítulo esta reside na recomendação de que na qualidade de intérprete o analista busque este intermezzo entre uma tradução que metabolize e incorpore totalmente a fala que lhe é dirigida e uma outra leitura que abdicando de si mesma deixese inundar pelo discurso alheio Para tanto para acompanhar as idas e vindas deste perpétuo emergir impõese um exercício muito especial aquele da espera de um deixarse afetar pelo inaudito como condição para a abertura ao conhecimento do outro enquanto possibilidade Em outros termos tratase de sustentar uma disponibilidade e não uma indiferença à diferença trata se de sustentar uma disponibilidade e não uma indiferença ao próprio movimento do pensamento Diante disso passemos a algumas inconclusivas considerações finais CONCLUSÃO Inconclusões talvez fosse a designação mais apropriada para as considerações com as quais de agora em diante encerraremos este trabalho uma vez que o título acima aparece muito mais como exigência formal para a apresentação de uma tese do que enquanto reflexo das idéias que exporemos aqui O que pretendemos dizer com isso Bem para tentarmos responder a esta pergunta devemos retornar ao problema que orientou o nosso percurso até o presente momento Tratase das dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise o que nos levou a sugerir pontos de contato entre estas duas áreas do saber no terreno interpretativo e político da imposiçãonegociação de sentido Assim a partir das inquietações do chamado pósmodernismo etnográfico um pathos que como vimos diz respeito aos temas da identidade e da autoridade do estudioso da cultura fizemos um passeio por algumas das principais escolas da antropologia Em tal movimento localizamos um contraponto nas matrizes desta disciplina que amparados na filosofia hermenêutica de Dilthey 1976 podemos qualificar como explicação versus compreensão ou seja tratase da maior ou menor afirmação da capacidade de traduzir eou representar objetivamente as diferenças expostas por culturas alheias Diante disso visando propor saídas para tal dilema de natureza ao mesmo tempo ética e epistemológica estendemos a discussão acerca da alteridade para nela incluir um outro ramo do saber a psicanálise Neste sentido realizamos uma leitura pormenorizada de O Inquietante texto em que ao propor uma instigante aproximação entre a psicanálise e o terreno da estética particularmente a literária Freud 19191976 nos apresenta a idéia de que é no desterro que repousa o sujeito psicanalítico este estrangeiro de si mesmo que assombra ao se definir a partir do Inconsciente Contudo para além do seu caráter assustador temos neste mesmo terreno movediço do Inconsciente uma lógica própria que ainda que inquietante ou precisamente por isso confere novos valores ao malestar ao negativo e ao silêncio do irrepresentável permitindo que pela corrosão de qualquer ordem representacional do tipo determinista a vida readquira sua dimensão de potência criativa Foi o que pudemos depreender das leituras de O Inquietante realizadas por Kofman 1973 Chnaiderman 1997 e Silva Junior 2001 188 todas pautadas pela aposta em uma abertura de sentido que se estende da relação entre a psicanálise e a ficção literária à própria atividade clínica Em decorrência disso iniciamos uma reflexão sobre a alteridade inerente à função do analista tarefa para a qual contamos com o auxílio de Fédida 1988 1991a 1991b 1996 Assim debatemos a idéia de que é somente a partir de um sítio do estrangeiro definido pela linguagem e não pelas pessoas que compõem o encontro analítico que o profissional da clínica pode agir como mediador no embate do paciente com o outro de si mesmo outro do Das Ding do nãosimbolizável do nãodito da transferência do pulsional por excelência Em outras palavras outro do Inconsciente enquanto Unheimlich mobilizado por uma psicanálise que por não querer induzir transformações no paciente nem situar a finalidade da análise em termos de mudança ou de cura visa criar condições para que o sujeito se depare como vindo de fora com o estranho nele mesmo NASIO apud KOLTAI 2000 p 127 Então de maneira complementar passamos a nos ocupar desta mesma alteridade de que nos falava Freud 19191976 aquela do Inconsciente a partir de uma nova entrada agora garantida pelo conceito de construção A partir do referencial clínico este nos conduziu a um enfrentamento direto do problema da diferença que o outro impõe ao analista o que na prática diz respeito à maior ou menor possibilidade ou disponibilidade de enquadrar a fala daquele que sofre em esquemas teóricos préestabelecidos Nestes termos a despeito da notável e então inovadora diferenciação quanto à existência de uma realidade histórica em contraponto a uma outra de natureza psíquica vimos em Freud 19371976 a persistência dos resquícios de um certo realismo metapsicológico ou seja da crença na adequação entre a teoria e o Inconsciente Logo em seguida ao analisarmos as nuances do pensamento de Viderman 1990 1995 percebemos a orientação do psicanalista francês rumo a uma outra perspectiva Qual a sua marca distintiva Apostar as suas fichas não na busca de verdades psíquicas enterradas no terreno do Inconsciente mas na construção destas mesmas verdades em contextos determinados por settings terapêuticos específicos incluindose aí as metapsicologias e os amores transferenciais que os orientam Foi quando alcançamos as idéias de Figueiredo 1996a 1998b autor esse que debruçandose sobre as duas hipóteses anteriores alertounos para que levássemos em 189 conta o fato de que a diferença que nos é imposta pelo outro no contexto da clínica é inseparável da diferença representada pelo próprio Inconsciente dono de uma temporalidade e uma narrativa bastante particulares Como tentamos demonstrar caracterizamnas a recusa em se submeterem aos ditames de um pensamento do tipo representacional aquele que presentifica qualquer noção de experiência em nome do chamado Princípio de Razão onde nada é sem que esteja inserido em tramas de sentido previamente determinadas Qual ou quais as implicações disso para a prática do analista Sobretudo a exigência de uma capacidade também ela peculiar aquela de colocar a si mesmo em resposta o que significa nem se perder no caos em potencial embutido na fala do paciente e nem tampouco se embebedar demasiadamente na ordenação previamente definida pela teoria Conforme nos diz o mesmo Figueiredo 1994a em um outro trabalho temos aqui o resgate da condição instituinte e original do logos grego não como verdade fechada ou última mas como dizer amparado em uma escuta que permita o livre aparecimento do ente enquanto campo repleto de possibilidades Aliás é ainda no contexto da Grécia antiga que encontraremos uma outra noção que corroborando com esta linha de raciocínio passa a interessar diretamente à nossa discussão Referimonos àquela de alétheia que associada à poesia à profecia e portanto à préhistória da verdade toma esta última não como certeza objetivada mas como filosofia do desvelamento Ou seja não como encerramento de uma adequação entre o pensamento e a coisa e sim enquanto jogo que inclui tanto o mostrar quanto o ocultar Com efeito destaca um autor como GarciaRoza 2001 diferentemente da transparência que acabaria por se tornar sinônimo da verdade na tradição ocidental a alétheia de que falava Parmênides aparecia como portadora de uma sombra que lhe era constitutiva Não por uma questão de imperfeição mas ao contrário pela exigência de completude que a acompanhava já que o poeta não se contentava em ouvir a palavra almejando também o próprio silêncio Temos aí portanto o elemento mais importante da sua sabedoria a plena consciência do desamparo a qual assume que a trilha do conhecimento comporta também a ausência de luz É assim que novamente seguindo GarciaRoza 2001 podemos aproximar o conceito de alétheia ao tipo de saber inaugurado por Freud cujo mérito fundamental reside 190 na demonstração de que a subjetividade detém seu fundamento na opacidade e não na transparência desfazendo assim a ilusão positivista de uma palavra plena Dito de outra maneira ao invés da tentativa de suplantálo cabe à psicanálise a importante tarefa de recuperar o lugar do desamparo como lugar do conhecimento Desta feita refletido na verdade do desejo enquanto enigma a ser decifrado e que não comporta a mútua exclusão entre acerto e engano permanecendo balizado por uma irredutível aura de complementaridade Daí decorre que assim como Parmênides poeta grego há pouco mencionado também o analista aparece como adepto da perspectiva de uma verdade no ocultamento da verdade Logo naquilo que a ultrapassa o indizível do silêncio leiase também o silêncio do indizível e a ruptura do discurso coerente Conforme as seguintes passagens Aquilo que Freud nos mostrou desde os seus primeiros escritos é que na prática psicanalítica a verdade se insinua não a partir do caráter formalizado do discurso mas precisamente quando o discurso falha quando é atropelado e violentado por um outro discurso que provoca no primeiro lacunas Se a inteligência científica percorre os caminhos da nãocontradição o inconsciente segundo Freud não obedece ao mesmo princípio Isto não quer dizer que ele seja ininteligível mas que seu princípio de inteligibilidade deve ser procurado em outro lugar GARCIAROZA 2001 p 20 Neste sentido podemos pensar no papel desempenhado por mecanismos psíquicos como aqueles da condensação Verdichtung da repressão Verdrängung e da denegação Verneinung fundamentais para qualquer discussão sobre o tema da verdade em psicanálise Afinal a despeito das suas especificidades todos eles se referem a um mesmo traço essencial a simultânea multiplicidade semântica com a qual o psicanalista convive diariamente em seus atendimentos clínicos Então diante das implicações que a alteridade do Inconsciente presente nos conceitos de inquietante e construção adquire para o labor analítico cabe agora retomando o diálogo transdisciplinar que orientou o presente trabalho fazermonos a seguinte pergunta qual o interesse dessa discussão para a prática profissional do antropólogo Afinal se é certo que tanto a psicanálise quanto a antropologia promovem descentramentos do homem o que os aproxima O que os afasta Qual a possível relação entre elesAo que parece boas respostas para tais questionamentos podem ser buscadas no contraponto entre os tipos de estranho priorizados pelas duas disciplinas Por derivação 191 também no detalhamento dos diferentes contextos representados pela pesquisa antropológica e pelo setting analítico É o que faremos nos parágrafos seguintes Antes porém vale a pena enfatizar um ponto importante constava no nosso projeto inicial a intenção de considerando que a antropologia não deteria um instrumental teórico suficiente para resolver as atuais questões que propõe acerca da identidade e da autoridade etnográficas inserir neste contexto as possibilidades abertas por um outro saber no caso aquele da psicanálise Porém o desenrolar do trabalho tornou claro o risco de incorrermos no mesmo problema ao qual fazemos ressalva aqui aquele da imposição de valores Assim ao nos posicionarmos radicalmente contra tal perspectiva o que estamos sugerindo são apenas possíveis pontos de contato e reflexão que podem ser úteis a ambas as disciplinas De volta à comparação que nos propomos a estabelecer entre os respectivos outros que orientam os movimentos de analistas e antropólogos uma bela forma de pensála já nos foi oferecida anteriormente por Hanns 1996 graças ao contraste proposto pelo autor entre o substantivo Das Unheimliche do qual se ocupou Freud 19191976 e a sua tradução mais comum para a língua portuguesa O Estranho Ali pudemos notar uma certa discrepância expressa no fato de que o inquietante alemão se refere a uma ameaça sorrateira desconhecida ou inominável um terror em estado bruto por assim dizer o qual não se sabe quando e nem tampouco de onde irá surgir ao passo que a sua versão brasileira comporta um outro significado aquele de forasteiro eou estrangeiro Mas o que podemos deduzir daí Ora que se trata de duas modalidades distintas de estranhos Afinal uma delas aparece pautada por um caráter indescritível e mesmo sobrenatural Já a seguinte apesar de manter o quê de assustador do termo original aproximao de um desconhecido mais humanizado que nesta condição pode ser melhor delimitado Com efeito tornase bastante tentador asseverar que é este mesmo quadro que diferencia a ética psicanalítica da antropológica no trato com a alteridade pois enquanto a primeira delas aborda um eu estrangeiro um desterro no em si a segunda faz referência a um estrangeiro ao eu um desterro no outro Neste sentido é certo que a pesquisa etnográfica e o setting clínico podem ser tomados como espaços do ao mesmo tempo familiar e estranho uma vez que em ambos os casos temos encontros com o outro que conduzem à consciência da dessemelhança consigo mesmo Todavia e aqui se estabelece um corte fundamental o nãofamiliar ao 192 qual o antropólogo costuma se remeter é o nãofamiliar da cultura Enquanto isso a alteridade da psicanálise aparece ligada a um registro distinto e que é geralmente desconsiderado pelo estudioso da vida em sociedade aquele do Inconsciente referente a um eu cindido e que não se confunde com qualquer antropomorfismo do tipo cartesiano Em uma palavra falamos aqui não de um forasteiro a ser conhecido mas de uma íntima e por isso mesmo inquietante estranheza a ser reconhecida As implicações disso são enormes e aparecem por exemplo na idéia de que a fronteira psicanalítica é eminentemente topológica e não topográfica131 Mas o que isso quer dizer Bem à medida que permanece orientada pelo olhar ou seja pelos ditames da empiria a análise topográfica não pode prescindir da presença e da positividade de entes previamente constituídos representados Já a topologia ao se referir não ao espaço físico mas ao campo da linguagem promove um outro tipo de relação com o conhecimento relação essa potencialmente acompanhada de um questionamento do presente como fundamento dos entes Como vimos anteriormente tal postura traz consigo a abertura para um pensamento que inclui a lacuna e o imprevisível em uma palavra o negativo e o irrepresentável e que assim pode se manifestar enquanto devir Nestes termos a despeito de privilegiar a linguagem como um dos seus principais instrumentos de trabalho a pesquisa antropológica parece necessariamente buscar a complementação fornecida pelo olhar empíricopositivista o qual pressupõe uma espacialidade e uma temporalidade específicas que se vinculam tanto ao princípio de razão quanto à chamada metafísica da presença Ocorre que a partir desta ética temos uma técnica que sugere ao etnógrafo um papel atuante no sentido de que os pressupostos da pesquisa são seus É ele quem define de maneira mais ou menos prévia os objetos as linhas teóricas do trabalho e o que é relevante saber tendo em vista esses pontos Isso por sua vez irá se refletir na qualidade das relações intersubjetivas que vier a estabelecer com os seus informantes privilegiando uns em detrimento de outros por exemplo Já a psicanálise ao se ocupar das artimanhas do desejo considera e muito a validade do invisível do espaço É precisamente por isso aliás que estabelece em seu setting um espaço para a emergência do invisível Nele embora o paciente possa vir a se expressar de acordo com a lógica do processo secundário aquele relativo à consciência e 131 Perspectiva essa presente nos trabalhos de Fédida 1988 1991a 1991b 1996 e Koltai 2000 193 portanto a uma seqüência concatenada de argumentos o psicanalista procurará vislumbrar uma outra desrazão Tratase daquela que subjacente à aparente coerência da fala diz respeito ao processo primário característico das formações do Inconsciente simultâneas fragmentárias e extemporâneas em sua natureza132 Para tanto para obter acesso a esta outra cena a clínica inaugurada por Freud institui uma quebra na vivência do cotidiano que se dá marcadamente em termos discursivos Afinal exige do analista uma escuta que não espere nada de antemão das falas do analisando Assim apesar de orientado por uma teoria específica a bruxa da metapsicologia o encontro analítico evita ou deveria evitar o papel de portador de uma intencionalidade prédefinida seja ela relativa a uma cura a uma medida educacional ou à busca de relações do tipo causa e efeito Cf FREUD 19121996 concedendo ao paciente o papel de sujeito já que todo o trabalho parte da sua dor e do questionamento que a acompanha por que sofro Isso por si só torna a psicanálise bastante diferente da Ciência e por conseguinte da antropologia enquanto herdeira desta Contudo tal ruptura com a fala e com a lógica cotidianas somente se torna possível mediante um outro rompimento aquele que ocorre no campo das chamadas relações intersubjetivas Para que possamos compreendêlo porém tornase imperativo que nos remetamos ao fato de que para além da dimensão cognitiva do contato com o outro mais enfatizada pela razão instrumental temos na cena analítica um destaque particular ao campo dos afetos com a transferência de sentimentos entre paciente e analista sendo utilizada como verdadeira força propulsora do tratamento Quanto a este aspecto cabe aqui uma observação importante não é que a transferência em análise seja qualitativamente distinta das outras transferências fora do setting Ocorre porém que neste último o uso dessa potência explosiva se dá de forma mais controlada estabelecendo o vínculo terapêutico mas simultaneamente mantendo a justa distância da linguagem e com ela a condição para a emergência de um ou mais terceiros ausentes que manifestandose através do analista confrontarão o paciente com o estranho de si 132 Como sugere Friedman 1991 podese pensar aqui em um instigante contraste entre as noções de discurso speech e perlaboração workingthrough 194 Dito de uma maneira distinta ainda que o analisando alcance a sua verdade mediante um outro esta alteridade não se encerra em si mesma remetendose ou melhor remetendo aquele que pergunta a uma série de figuras transferenciais133 Com efeito alcançamos mais uma diferença bastante relevante entre a experiência etnográfica e a experiência analítica Tratase do fato de que no tipo de clínica inaugurada por Freud não se exerce ou não se deveria exercer uma estrita intersubjetividade aqui tomada como simetria eou implicação entre as pessoas do analista e do paciente134 Afinal isso inviabilizaria o emprego de uma das mais genuínas ferramentas da psicanálise em seu trato com o Inconsciente o poder evocativo da transferência A partir de tais considerações tornase natural que se imponham a nós algumas instigantes perguntas Dentre elas destacamse as seguintes mas como ainda assim se torna possível pensar em um diálogo entre a psicanálise e a Ciência aqui representada pelo trabalho do antropólogo Neste sentido estaríamos nós afirmando o Inconsciente como mais um imponderável a ser levado em conta pelos estudos culturais Se este é o caso como admitir e dar testemunho do outro de si na pesquisa em humanidades Certamente temos aí questionamentos pouco ou nada simples de serem respondidos Ao mesmo tempo considerandose o nosso percurso até aqui tratase de discussões que nos parecem inevitáveis Então respiremos fundo e deixando de lado quaisquer receios enfrentemolas de peito aberto e seja o que Deus e a banca quiser Todavia de que armas dispomos para adentrar neste corpoacorpo Ao que parece um bom argumento pode ser encontrado na assertiva de que alcançamos o fim do presente trabalho final esse que vale lembrar longe de qualquer pretensão absolutista afirma a sua natureza eminentemente provisória com a sensação de que no que se refere a uma dimensão técnica em termos por exemplo de métodos ou instrumentos para a coleta e avaliação de dados a psicanálise nada tem a ensinar à antropologia ou mesmo às Ciências Humanas Primeiramente porque a despeito do ruído pósmoderno esta última e já centenária disciplina parece caminhar muito bem com o arsenal que lhe é próprio Em 133 Como vimos na leitura que fizemos do pensamento de Fédida 1988 1991a 1991b 1996 isso somente se torna possível graças ao exercício de uma função especular por parte do analista a mesma que o mantém em seu sítio do estrangeiro evitando ceder aos apelos sedutores que provêm do analisando e mesmo das próprias metapsicologias 134 Para tanto contribui um outro componente do setting que deve ser levado em conta nesta distinção Trata se da análise pessoal do analista a qual visa diminuir as chances de uma confusão entre as características pessoais deste e os outros transferenciais nele projetados pelo paciente 195 segundo lugar devido ao fato de o saber inaugurado por Freud não se confundir com uma pedagogia uma vez que pretende que o analisando alcance a verdade do seu próprio desejo e não visões de mundo previamente definidas eou impostas à força pela figura do analista Com efeito é mesmo no terreno da ética que um diálogo digamos assim mais interessante pode se dar entre os dois ramos do saber mencionados acima isto é desde que seja incluído nesta conversa um espaço para o estrangeiro que nos habita aquele Unheimlich do Inconsciente Nestes termos como vimos há pouco se o outro em psicanálise nos remete a um lugar da cisão a um ser do nãoser a verdade inaugurada por Freud somente pode vir à tona na qualidade de alétheia um desvelamento que necessariamente pressupõe um oculto uma sombra que lhe é constitutiva e importante teima em retornar e se fazer ouvir135 A adoção de uma lógica como esta a qual admite a possibilidade da simultaneidade entre o sim e o não e com ela o valor daquilo que se imprime pela ausência traz consigo conseqüências deveras importantes Por exemplo a necessidade de uma escuta afinada também para o que aparentemente escapa às malhas do sentido Isso por sua vez torna premente a transmutação do caráter da interpretação que passa a ser pensada enquanto processo revelandose na oscilação entre os pólos da familiaridade e da diferença para pôr em movimento a própria relação sujeitoobjeto Tal linha de raciocínio aliás orienta a afirmação de Laplanche 1992 de que a aproximação entre psicanálise e hermenêutica estaria perfeita se não fosse a ameaça de uma psicosíntese a qual tende a obliterar o movimento do processo primário Em uma palavra temos aí o problema da redução do projeto freudiano a um ou mais códigos teórico interpretativos o que leva o nosso autor a sustentar ainda que a psicanálise deve se livrar do estatuto de mito estruturante ao qual a hermenêutica tende a lhe reduzir ocultando assim a alteridade radical do Inconsciente Afinal para o mesmo Laplanche 1992 a relação analítica aparece como uma relação de demanda e não de oferta de sentido Eis aí uma concepção da psicanálise como detradução de forma que favoreça uma simbolização mais aberta e menos direcionada do que aquela proposta pela hermenêutica 135 Aqui se tornam bastante úteis os conceitos de Inquietante e de Construção em análise Cf FREUD 19191976 e 19371976 respectivamente como vimos ambos relativos à segunda tópica e com ela à abertura de sentido que pode ser deduzida tanto do modus operandi do Inconsciente quanto da noção de pulsão de morte uma potencialidade criativa que se instala a partir do caos 196 Com isso o estranho e o negativo da experiência analítica aparecem como lugares do possível ampliando o conceito de alteridade e com ele as capacidades da interpretação agora um meio termo entre a produção de sentido e a experiência do vazio Neste contexto vale acrescentar a mera multiplicidade de modelos não garante a abertura da escuta Então o que a garante Curiosamente o desentendimento diretamente associado à manutenção do outro nodo analista a sua inquietante estranheza como defesa contra a tentação de qualquer interpretação narcisicamente centrada Tratase portanto da busca de um apoio nas teorias precisamente para que se possa saltar para fora delas É o que nos diz Figueiredo 2002b para o qual as garantias fornecidas pelas metapsicologias e seus derivados a teoria clínica e a vida institucional podem se converter em grandes obstáculos caso optemos por nos refugiar definitivamente em tais lugares previamente configurados perdendo assim a essência da experiência do Inconsciente ou seja o seu caráter de viraser Destarte acrescenta ainda Figueiredo 2002b o knowhow do analista deve mediar os extremos entre a distância infinita alteridade irredutível e a proximidade absoluta aquela que o desejo de conhecer a pesquisa e a posição teórica tentam garantir mas jamais anular a dinâmica ou potencial pendular que se estabelece entre estas duas instâncias136 Com efeito ao abordar o que denomina de pesquisa com o método psicanalítico ou seja aquela que difere da pesquisa em psicanálise por exigir a presença de um analista o recente artigo de Figueiredo e Minerbo 2006 aponta o quanto essa aparece marcada pelo fim da distância tanto entre sujeito e objeto quanto entre pesquisador e referencial teórico promovendo transformações na própria psicanálise e nos seus meios ou 136 Parte importante dessa argumentação pode ser encontrada já em um trabalho anterior Nele Figueiredo 2000 afirma que uma escuta que se pretenda genuinamente psicanalítica aquela que próxima à poïesis revele a si mesma enquanto criativa abertura para um horizonte de possibilidades depende da manutenção por parte do analista de um bordejar dialético entre implicação presença e reserva ausência o que inclui a capacidade de suportar as idas e vindas bem como as vicissitudes do processo de cura Tal postura adquire especial importância se levarmos em conta o enorme impacto e as perigosas demandas transferenciais que se estabelecem na clínica Neste sentido já que se deve oferecer um espaço um tempo e um suporte para que os conteúdos psíquicos possam emergir a técnica em psicanálise longe de qualquer estrita submissão a um caráter superegóico e formalista deve sim se vincular a uma ética particular Qual seja aquela regida por um acolhimento e ao mesmo tempo por um desconhecimento absolutamente necessários ao estabelecimento da posição do analista lugar esse ambíguo e precário por conjugar a solicitude e a indiferença para com aquele que sofre transformandoas em disponibilidade para a decisão a cada nova sessão 197 instrumentos de investigação137 Em decorrência disso avançam os autores temos nesta mesma modalidade de pesquisa um movimento que não privilegia a replicação a demonstração ou o controle experimentais mas uma entrega pouco ou nada mediada do sujeito em relação ao objeto Considerandose então as importantes diferenças entre estes dois ramos de estudos o acadêmico e o que opera com o método psicanalítico vale a pena citarmos aqui a proposta de Minerbo 2000 segundo a qual a psicanálise não se constitui exatamente como um método de pesquisa mas como uma matriz de estratégias de investigação Qual a diferença entre ambas O fato de que a noção de método está pelo menos desde o cartesianismo comprometida com o ideal moderno de um pleno controle cognitivo e volitivo Enquanto isso as estratégias vão se formando e transformando engendrando táticas e propiciando sacadas em função das condições atuais em que são efetivadas estratégias deixam uma larga margem para o improviso e para os processos primários para as descobertas e para as invenções FIGUEIREDO e MINERBO 2006 p 07 Os reflexos diretos desta reorientação se fazem notar à medida que a atividade de pesquisa do analista procura efetuar recortes menos arbitrários já que solicitados e também transformados pelo andamento da própria análise Daí a importante observação de Figueiredo e Minerbo 2006 de que a despeito do seu potencial interpretativo se estender a qualquer campo do nosso universo simbólico o método psicanalítico ou como queira o leitor as estratégias em psicanálise não se presta por exemplo ao estabelecimento de relações de causa e efeito à transposição de conclusões de um campo para outro e ainda ao tratamento estatístico Afinal e isso é muito importante tratase aqui de uma verdade interpretativa inseparável do processo analítico transferencial que a produziu processo esse marcado pela absoluta singularidade Descortinase portanto diante de nós o caminho que vai do reconhecimento de uma alteridade que nos é constitutiva à inviabilidade de em psicanálise operarmos com discursos ou modelos teóricos de natureza hermética que no seu afã explicativo refreiem os movimentos de palavra e silêncio implicação e reserva vida e morte característicos da experiência analítica aquela pintada pelas cores do devir É neste sentido que a prática 137 Conforme exposto anteriormente são fundamentais aqui tanto a utilização do fenômeno contratransferencial quanto a operação simultânea das lógicas do processo primário e secundário ao mesmo tempo distintas e complementares ou suplementares 198 clínica do analista não pode prescindir do quê de serenidade Gelassenheit necessária para como já nos alertava Heidegger 19552001 deixar rolar Tun und Lassen a surpresa e o mistério que demarcam sobremaneira o método inaugurado por Freud Pois bem advém daí a proposital idéia de inconclusão com a qual inauguramos estas nossas palavras finais e com ela a lição da nãolição proposta pelo inquietante outro do Inconsciente à etnografia e mesmo às chamadas Ciências Humanas como um todo Ela reside em admitir a possibilidade do sentido mas não necessariamente o seu encerramento fornecendo assim uma expressão menos comprometida a um estrangeiro agora irredutível a códigos préestabelecidos Em última análise tratase de buscarmos um ideal interpretativo que se localize entre a ilusão das certezas narcísicas e a armadilha hermenêutica de um niilismo do tipo passivo Para tanto mais do que as condutas pautadas pela rigidez e pelo pragmatismo cabe a nós aprendermos a valorizar também e sobremaneira a arte da espera e do adiamento transformandonos e aos próprios instrumentos da pesquisa se a relação com o objeto assim o demandar Isso significa perceber que o conhecimento reside na alteridade na criação de espaços para o novo e mesmo para o desconcertante incluindose aí tudo aquilo que escapa à procura racional os afetos as surpresas e com eles a sensação de uma angustiante incompletude Como suportar o caráter por vezes corrosivo dessa dor Talvez pela consciência ou pela esperança de que ela possa nos fazer provar as delícias de um criativo fazer sentido Referências Bibliográficas AHUMADA J L Descobertas e Refutações a lógica do método psicanalítico Rio de Janeiro Imago 1999 ALONSO S L Considerações sobre a realidade e a temporalidade a partir de Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci In ALONSO S L LEAL A M Orgs Freud um ciclo de leituras São Paulo EscutaFAPESP 1997 p 107120 AUGÉ M Consenso e pósmodernidade a prova da contemporaneidade In Por uma Antropologia dos Mundos Contemporâneos Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1997 p 33 67 AZZAN JR C 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mundo de hoy Horizontes Antropológicos v 01 n 03 1995 p 8084 RABINOW P Discourse and power on the limits of ethnographic texts Dialectical Anthropology v 10 1985 p 0113 RANK O 1914 El Doble Buenos Aires Ediciones Orión 1976 1924 El Trauma del Nacimiento Buenos Aires Ediciones Paidós 1981 RICHARDS A Bronislaw Kaspar Malinowski Man v 43 n 114 1943 p 0104 RICHAUDEAU F Dicionário de Antropologia Viseu Editorial Verbo 1983 210 RICOEUR P The model of the text meaningful action considered as a text Social Research n 38 1971 p 529562 RINALDI D A Ética da Diferença Rio de Janeiro Zahar 1996 ROUDINESCO E PLON M Dicionário de Psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1998 SAHLINS M Esperando Foucault Ainda São Paulo Cosac Naify 2004 SHANKMAN P The thick and the thin on the interpretive theoretical program of Clifford Geertz Current Anthropology v 25 n 03 1984 p 261270 SHAPIRO R Power and attachment in the analytic relatioship Contemporary Psychoanalysis v 36 n 01 2000 p 91102 SILVA V G A crítica antropológica pósmoderna e a construção textual da etnografia religiosa afrobrasileira Cadernos de Campo v 01 n 01 1991 p 4760 O Antropólogo e sua Magia São Paulo EDUSP 2000 SILVA JUNIOR N A ficcionalidade da psicanálise Hipótese a partir do inquietante em Fernando Pessoa In BARTUCCI G Org Psicanálise Literatura e Estéticas de Subjetivação Rio de Janeiro Imago 2001 p 289320 SOUZA M R Teoria evolucionista e psicanálise ressonâncias Pulsional Revista de Psicanálise n 167 2003 p 5765 STOCKING JR G The ethnographers magic fieldwork in British anthropology from Tylor to Malinowski In The Ethnographers Magic and Other Essays in the History of Anthropology Madison The University of Wisconsin Press 1992 p 1259 STRATHERN M Out of context the persuasive fictions of anthropology Current Anthropology v 28 n 03 1987 p 251281 TEDLOCK D A tradição analógica e o surgimento de uma antropologia dialógica Anuário Antropológico 85 Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1986 p 183202 TRAJANO FILHO W Que barulho é esse o dos pósmodernos Anuário Antropológico 86 Brasília Editora da UNBTempo Brasileiro 1988 p 133151 TYLER S A Postmodern ethnography from document of the occult to occult document In CLIFFORD J MARCUS G Eds Writing culture the poetics and politics of ethnography Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 p 122140 211 TYLOR E B Primitive Culture Gloucester Peter Smith 1970 VELHO G Observando o familiar In Individualismo e Cultura notas para uma antropologia da sociedade contemporânea 3ª Ed Rio de Janeiro Zahar 1987 p 121 132 VIDERMAN S A Construção do Espaço Analítico São Paulo Escuta 1990 O sentimento trágico da interpretação In MAJOR R Org Como a Interpretação Vem ao Psicanalista São Paulo Escuta 1995 p 189223 VIVIANI A L O pai estrangeiro In CARIGNATO T ROSA M PACHECO FILHO R Orgs Psicanálise Cultura e Migração São Paulo YM 2002 p 143152 VOGET F A History of Ethnology New York Holt Rinehart and Winston 1975 ZYGOURIS R Lamour de létranger Imparfait n 01 Paris 1983 p 215227
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA MAURICIO RODRIGUES DE SOUZA Experiência do Outro Estranhamento de Si dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise SÃO PAULO 2007 MAURICIO RODRIGUES DE SOUZA Experiência do Outro Estranhamento de Si dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Psicologia Área de Concentração Psicologia Experimental Orientador Prof Dr Luís Claudio Mendonça Figueiredo SÃO PAULO 2007 AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA DESDE QUE CITADA A FONTE Catalogação na publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Souza Mauricio Rodrigues de Experiência do outro estranhamento de si dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise Mauricio Rodrigues de Souza orientador Luís Claudio Mendonça Figueiredo São Paulo 2007 211 p Tese Doutorado Programa de PósGraduação em Psicologia Área de Concentração Psicologia Experimental Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo 1 Psicanálise 2 Antropologia 3 Alteridade I Título RC504 FOLHA DE APROVAÇÃO Mauricio Rodrigues de Souza Experiência do outro estranhamento de si dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor Área de Concentração Psicologia Experimental Aprovado em Banca Examinadora Profa Dra Instituição Assinatura Profa Dra Instituição Assinatura Profa Dra Instituição Assinatura Profa Dra Instituição Assinatura Profa Dra Instituição Assinatura DEDICATÓRIA Aos meus pais Ana Lúcia e Nivaldo por todo o seu precioso generoso e incondicional apoio ao longo da longa gestação desta tese Também dedico este trabalho à memória de Raymundo Messias meu querido Tio Ray AGRADECIMENTOS Aos meus familiares e amigos em Belém e Recife pelo seu carinho e interesse particularmente quando da minha estada em São Paulo Ao Prof Luís Claudio Figueiredo da Universidade de São Paulo por suas generosas orientação confiança paciência e disponibilidade quando solicitado Ao Yannick e ao Marcos amigos de todas as horas Ao Prof Ernani Chaves da Universidade Federal do Pará exorientador mas jamais um examigo pela sua escuta carinho e também pela sugestão de que curiosamente residiria no inquietante a possibilidade de um caminho para apaziguar as inquietações impostas pela escrita desta tese À Maria Tereza pelo carinho e pela nossa bela amizade desta e de outras vidas Aos primos Izavan Celina Mariana e Carolina pelo apoio e generosas acolhida e hospitalidade quando da minha chegada a São Paulo Ao Diego pela amizade pela acolhida na terra da garoa e pelas nossas elucubrações metafísicas acerca do funcionamento de uma máquina de lavar roupas À Isolda Carol Vanessa e toda a comunidade da Bartira por tudo que vivemos juntos Ao Prof Nelson da Silva Junior da Universidade de São Paulo pela amiga compreensão das angústias do desterro e por sua grande generosidade intelectual Aos Profs Nelson Coelho Júnior e Eunice Durham da Universidade de São Paulo pela leitura deste trabalho e por sua paciência e orientações quando do exame de qualificação desta tese Aos colegas de orientação da USP pelas sugestões de idéias e leitura de diversas partes deste trabalho Aos Profs Emmanuel Tourinho e Ana Cleide Moreira da Universidade Federal do Pará pela atenção e indicação do caminho das pedras que levava à USP Ao Prof Heraldo Maués da Universidade Federal do Pará meu exorientador no campo da Antropologia pela leitura do projeto desta tese e apoio quando da minha estada em São Paulo Aos Profs André Barretto Ricardo Pimentel e Marilu Campelo da Universidade Federal do Pará por seu interesse leitura e comentários acerca do projeto desta tese À Profa Monique Augras da PUCRio pela leitura do projeto e indicações bibliográficas Ao Prof Benedito Nunes pela simpática gentileza com que dispôs do seu precioso tempo para ler e comentar o projeto desta tese Aos Profs Antonio Berenice e demais colegas do Sedes Sapientiae pela acolhida incentivo e por me mostrarem o quanto o psicanalista também pode e deve ser humano demasiado humano À Profa Caterina Koltai pela atenção que dispensou a este estrangeiro e pelo empréstimo de alguns textos citados aqui Às Profas Marisa Peirano e Rita Laura Segatto da Universidade de Brasília pelas indicações bibliográficas no campo da antropologia Ao Prof José Sávio da Universidade Federal Fluminense pelo seu interesse e sugestões quanto ao contraponto entre as atividades do antropólogo e do analista Ao Depto de Psicologia Experimental da Universidade de São Paulo e ao CNPQ pela confiança e pela bolsa de estudos com a qual pude desenvolver o presente trabalho Hoje quando o pensamento não aspira mais ao universal quando sua melhor história seria a dos seus arrependimentos sabemos que o sistema quando é válido não se separa de seu autor O pensamento abstrato reencontra enfim seu suporte de carne Albert Camus O Mito de Sísifo RESUMO SOUZA M R de Experiência do Outro Estranhamento de Si dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise 2006 211 f Tese Doutorado Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo São Paulo 2007 O presente trabalho consiste em um estudo acerca do impacto psíquico provocado pela experiência da alteridade Com efeito enfatizando a dimensão inconsciente que permeia tanto a prática clínica quanto a pesquisa com grupos das mais diversas naturezas visa estabelecer pontos de contato entre a antropologia e a psicanálise no terreno interpretativo e político da negociação de sentido Para tanto realizou um percurso histórico por algumas das principais escolas da antropologia para em tal movimento localizar um contraponto nas matrizes dessa disciplina que pode ser qualificado como explicação versus compreensão Ou seja tratase da maior ou menor afirmação da capacidade de traduzir ou representar objetivamente as diferenças expostas por culturas alheias Visando propor saídas para tal dilema ao mesmo tempo ético e epistemológico este estudo ampliou tal discussão para nela incluir um outro ramo do saber a psicanálise Então pela via de leituras pormenorizadas dos conceitos de inquietante e de construção alcançou a idéia de que a diferença imposta pelo outro no contexto da clínica é inseparável da diferença do Inconsciente dono de uma narrativa e de uma temporalidade particulares que se recusam a obedecer aos ditames do pensamento representacional Em decorrência disso o estranho e o negativo do encontro analítico passam a aparecer como lugares do possível ampliando o conceito de alteridade e as capacidades da interpretação agora um meio termo entre a produção de sentido e a experiência do vazio Eis a lição da nãolição proposta por este inquietante outro do Inconsciente à etnografia e mesmo às chamadas Ciências Humanas como um todo admitir a possibilidade do sentido mas não necessariamente o seu encerramento fornecendo assim uma expressão menos comprometida a um estrangeiro agora irredutível a códigos préestabelecidos Isso significa a admissão de que o movimento do conhecimento não pode prescindir da criação de espaços para o novo e mesmo para o desconcertante incluindose aí tudo aquilo que escapa à procura racional como os afetos as surpresas e com eles uma por vezes dolorosa mas ao mesmo tempo potencialmente criativa sensação de incompletude PalavrasChave Psicanálise Antropologia Alteridade ABSTRACT SOUZA M R de Experience of the Other Strangeness of the Self dimensions of otherness in anthropology and psychoanalysis 2007 211 f Thesis Doctoral Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo São Paulo 2007 This work studies the psyquic impact provoked by the experience of otherness Furthermore emphasizing the unconscious dimension that is present in clinical practice and in researches concerning groups of different natures it intends to establish points of contact between anthropology and psychoanalysis in the political and interpretative field of negotiation of meaning To pursue this aim it performed an historical review of the contributions of some of the most important anthropological schools locating in the matrix of this discipline a counterpoint that can be qualified as explication versus comprehension In other words the problem here is to affirm the major or minor capacity to traduce or represent objectively the differences exposed by alien cultures In a way to propose some possibilities for this ethical and epistemological dilemma the present study extended this discussion to include on it the knowledge brought by psychoanalysis Therefore by detailed readings of the concepts of uncanny and construction it reached the idea that the difference imposed by the other in the clinics is not separated from the difference of the Unconscious owner of particulars narrative and temporality that refuse to obey the principles of representational thought Because of that the strangeness and the negative of the analytic encounter become places of possibility amplifying the concept of otherness and the capacities of interpretation now placed in a midpoint between the production of sense and the experience of emptiness Thats the lesson of nonlesson proposed by this uncanny other of the Unconscious to ethnography and even to Human Sciences as a whole to admit the possibility of sense but not necessarily its ending offering a less compromised expression to a stranger that now cannot be reduced to previously set codes This means to admit that the movement of knowledge cannot give up the creation of spaces to the new and even to what is disconcerting including all that escapes a rational search like feelings surprises and together with them a sometimes painful but also potentially creative sensation of incompleteness Keywords Psychoanalysis Anthropology Otherness SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 12 2 A CONSTITUIÇÃO DE UM PATHOS REALIDADE E FICÇÃO NA PRÁTICA ANTROPOLÓGICA 23 21 EVOLUCIONISMO SOCIAL E TEORIA ANTROPOLÓGICA 26 22 ANTROPOLOGIA E DIFUSIONISMO CULTURAL 28 23 A PERSPECTIVA FUNCIONALISTA DE MALINOWSKI E OS NOVOS RUMOS DA ETNOGRAFIA 33 24 A ANTROPOLOGIA BRITÂNICA DO INÍCIO DO SÉCULO XX E OS PRIMÓRDIOS DA PESQUISA DE CAMPO 39 25 COM A PALAVRA OS ARGONAUTAS A GÊNESE DA OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ENTRE OS NATIVOS DA NOVA GUINÉ 41 26 A VIRADA HERMENÊUTICA E O NOVO PARADIGMA ANTROPOLÓGICO 54 27 CLIFFORD GEERTZ A ANTROPOLOGIA POR SOBRE OS OMBROS DO NATIVO 60 28 DO PONTO DE VISTA DE GEERTZ O PONTO DE VISTA DOS NATIVOS 64 29 OS PÓSMODERNOS A ANTROPOLOGIA POR SOBRE OS OMBROS DO ANTROPÓLOGO 70 210 JAMES CLIFFORD A IDENTIDADE E A AUTORIDADE ETNOGRÁFICAS EM XEQUE 86 3 A PSICANÁLISE DIANTE DO OUTRO REVISITANDO O INQUIETANTE FREUDIANO 104 31 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ALIADAS A UM BREVE PERCURSO PELO ESTRANGEIRO EM FREUD 105 32 ACERCA DE O INQUIETANTE DAS UNHEIMLICHE 112 33 MAS O QUE É O UNHEIMLICHE AFINAL 114 34 O TEXTO EM SI REFLEXÕES A PARTIR DO DAS UNHEIMLICHE FREUDIANO 116 35 A ALTERIDADE DO INCONSCIENTE E A ESTRANHEZA DA SITUAÇÃO ANALÍTICA COMENTÁRIOS A PARTIR DA OBRA DE PIERRE FÉDIDA 140 4 O JOGO DOS SENTIDOS EM PSICANÁLISE CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE CONSTRUÇÃO 149 41 O QUE SIGNIFICA CONSTRUÇÃO EM ANÁLISE 150 42 REALISMO VERSUS CONSTRUTIVISMO EM PSICANÁLISE PRIMEIRA PARTE O SENTIDO DE UM RETORNO A FREUD 151 SEGUNDA PARTE SERGE VIDERMAN E A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO ANALÍTICO 160 TERCEIRA PARTE TEMPO E NARRATIVA EM FREUD E HEIDEGGER UM ENCONTRO NA OBRA DE LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO 172 QUARTA PARTE DE VOLTA ÀS CONSTRUÇÕES EM ANÁLISE 179 5 CONCLUSÃO 187 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 199 INTRODUÇÃO Crise de paradigmas pósmodernidade e o amplo questionamento da razão Estes são alguns dos termos com os quais se defronta a atividade científica contemporânea Neste sentido um breve olhar histórico aponta o importante papel de duas áreas do saber que a despeito de uma trajetória de contatos marcada pela ambigüidade de uma certa luta armada e também da mútua admiração enfatizaram sempre a possibilidade e mesmo a necessidade da desconfiança quanto às possibilidades do sujeito cognoscente e seu apelo por uma suposta neutralidade axiológica Tratase da Psicanálise e da Antropologia que conforme Rinaldi seguindo Michel Foucault são produtos da modernidade onde nasceram e proliferaram sob os parâmetros que constituem o saber moderno Razão e sujeito baluartes da ciência moderna são imprescindíveis para se pensar tanto uma quanto a outra Entretanto elas assumiram no espaço geral da episteme uma posição crítica de contestação do saber adquirido Isto lhes permitiu colocar em questão o império da consciência e da racionalidade ocidental Assim como na psicanálise a descoberta do inconsciente veio a quebrar a unidade do sujeito racional na antropologia a descoberta de outras racionalidades presentes em outros universos culturais veio contestar a universalidade dos princípios ordenadores da racionalidade ocidental moderna RINALDI 1996 p 113 Além disso ambas remetem à fundamental importância da alteridade na constituição do saber seja na antropologia onde o encontro com o diferente acaba por transportar o pesquisador de volta à sua própria cultura seja na clínica psicanalítica onde como nos mostra Mezan O paciente acede à sua verdade mediante o Outro isto é o analista 1998 p 242 A crise da razão científica e a sua relação com o inconsciente e com a alteridade se constituem portanto em pontoschave para a discussão que permeia este trabalho onde tomando por base a perspectiva acima adotase a premissa de que mais do que a teoria que comporta um projeto de pesquisa certamente também carrega consigo as experiências prévias e subjetivas do seu autor Assim no que se refere aos variados aspectos da prática antropológica um certamente merece destaque especial aquele das interrelações entre pesquisadores e grupos estudados permeadas pela cumplicidade e por uma constante trocas de experiências e mesmo de favores entre ambas as partes Quanto a este tema particularmente a área de 13 estudos da antropologia da religião chama atenção pela freqüência com que nela ocorre uma certa inversão da tradicional relação epistemológica entre sujeito e objeto Em outros termos é relativamente comum a conversão de pesquisadores que encantados pelas ofertas simbólicas dos grupos religiosos que estudam acabam por aderir a estes últimos ofuscando assim a pretensa neutralidade que supostamente caracterizaria o trabalho científico Por outro lado não é menos comum verificar o fato de que também os agentes religiosos mais e mais freqüentam cursos e seminários acerca da opção religiosa que professam chegando mesmo em vários casos a se tornarem acadêmicos e autoridades cientificamente reconhecidas em seu métier Cf POLLAKELTZ 1995 SILVA 1991 2000 Cientes desta aparente inversão de valores as Ciências Sociais e mais particularmente a antropologia dita pósmoderna vêm dedicando um espaço cada vez maior ao estudo de tais relações de reciprocidade entre pesquisadores e grupos estudados Quanto a isso bons exemplos podem ser encontrados em trabalhos como os de Becker 1977 DaMatta 1978 Brandão 1981 Velho 1987 e mais recentemente Cardoso 1997 Já no que se refere aos interesses religiosos dos estudiosos da religião cabe um destaque particular aos textos de Pierucci 1997 1999 Pois bem ocorre que também a psicanálise embasada na já centenária experiência da sua prática clínica ocupase e mesmo deve boa parte da sua tradição a um estudo semelhante o da troca de afetos entre as figuras do analista e do analisando Assim longe de negar a importância das relações intersubjetivas acabou por tomálas como uma das suas maiores ferramentas terapêuticas elevandoa ainda à qualidade de fértil campo de pesquisas Com isso o presente trabalho de natureza eminentemente teórica e transdisciplinar ocuparseá do impacto psíquico provocado pela experiência da alteridade Neste sentido enfatizando a dimensão inconsciente que permeia tanto a prática clínica quanto a pesquisa com grupos ou tribos das mais diversas naturezas propõese a estabelecer pontos de contato entre a psicanálise e a antropologia no terreno interpretativo e político da imposiçãonegociação de sentido1 1 Não faz parte das nossas intenções aqui traçar um histórico do contato entre as duas disciplinas que em maior ou menor escala acompanhou tanto o desenvolvimento da psicanálise quanto de diversas escolas do pensamento antropológico De qualquer forma uma análise mais detalhada deste processo pode ser 14 Uma vez que as Ciências Humanas adotam como objeto privilegiado as relações sociais enfatizamos aqui a transferência de afetos entre pesquisadores e seus grupos de estudo como condição básica para esta modalidade de pesquisa Afinal antes mesmo dos primeiros contatos entendemos que o antropólogo já carrega consigo expectativas prévias em caráter duplo em relação à alteridade nativa e ao mesmo tempo à familiaridade dos seus pares acadêmicos para os quais terá a tarefa de traduzir especificidades alheias Estas por seu turno possivelmente serão transformadas ao longo do tempo e da convivência junto ao outro em um movimento que também mobilizará novas respostas por parte do pesquisador Destarte nossa perspectiva norteadora aqui é a de que assim como na clínica psicanalítica cabe ao antropólogo utilizar sabiamente os sentimentos que mobiliza Ou seja nesta dimensão ao mesmo tempo ética e técnica nem invadir o outro em demasia com uma visão de mundo que na verdade não lhe pertence mas que serviria ao propósito de melhor traduzilo para a academia e nem tampouco se deixar seduzir e inundar por sistemas simbólicos estranhos e que comprometeriam um necessário afastamento entre o cientista e o fiel por exemplo Tal escolha se justifica uma vez que além de implicações metodológicas as inquietações que permeiam este estudo detém em última análise um caráter epistemológico Isso porque apostam no valor da confrontação conceitual entre a antropologia e a psicanálise como um exercício útil ao redimensionamento do alcance das próprias Ciências Humanas no contexto do saber contemporâneo cada vez mais ciente senão do fim da dicotomia sujeitoobjeto pelo menos das possíveis interferências do primeiro em relação ao segundo De maneira a tentar viabilizar tal proposta dividimos a nossa argumentação em três momentos específicos Primeiramente tomando como referência os domínios da Psicopatologia Fundamental e a sua definição do conceito de pathos a partir da Grécia antiga Cf BERLINCK 2000 efetuaremos uma reconstituição histórica que forneça ao leitor particularmente aquele oriundo da psicologia ou de outras áreas do saber não necessariamente familiarizadas com as ciências sociais elementos suficientes para a encontrada em trabalhos relativamente novos como os de Micela 1984 Obeyesekere 1990 Musumeci 1991 Heald e Deluz 1994 Rinaldi 1996 e Souza 2003 15 compreensão dos novos rumos tomados pela disciplina antropológica a partir das primeiras décadas do século XX Aqui vale adiantar ganha enorme ênfase a progressiva adoção de uma nova modalidade intensiva de estudos de campo que propondo uma revisão do cartesianismo relativo a uma clara separação entre sujeito e objeto de pesquisa acabou por tornar imprescindível um maior vínculo do etnógrafo com os grupos dos quais se ocupa O aperfeiçoamento de tal procedimento conduziu por fim à criação do que se convencionou chamar de a ferramentamor da antropologia a observação participante que toma o intenso convívio com os nativos enquanto condição sine qua non para um bom trabalho de descrição e análise das culturas Cf MALINOWSKI 1978 DURHAM 1978 CARDOSO DE OLIVEIRA 1991b GEERTZ 1997 e CLIFFORD 1998 Neste sentido passaremos em revista as principais contribuições e limitações do evolucionismo social e do difusionismo cultural enquanto duas escolas do pensamento antropológico que embora pioneiras na organização de sistemas explicativos razoavelmente integrados e voltados ao estudo da cultura careciam ainda de uma metodologia de trabalho convincente e que para além do mero preconceito ou conjectura desse conta do nativo de carne e osso Isto é compreendendoo a partir da sua própria lógica ou visão de mundo a mesma que fornece sentido às suas manifestações culturais Ao chegarmos a uma terceira e não menos importante escola a do funcionalismo britânico adotaremos um procedimento análogo expondo algumas das suas idéias fundamentais acrescidas de uma discussão acerca da sua relação particular com aquelas mudanças operacionais descritas há pouco Para tanto tornase impossível não fazer uma referência ao nome de Bronislaw Kaspar Malinowski 18841942 considerado o verdadeiro precursor desta renovação no terreno das humanidades Com isso misturando elementos biográficos históricos e filosóficos dividiremos a nossa exposição em três partes distintas A primeira abordará as premissas essenciais do funcionalismo a partir da formação acadêmica inicial de Malinowski ainda na Polônia e em seguida na sua definição do conceito de cultura A segunda situada em território inglês colocará o leitor em contato com o mainstream da discussão antropológica da época a qual proporcionou a realização efetiva dos trabalhos de campo que mudariam os rumos da disciplina Finalmente condensando em termos de teoria e prática os elementos destes momentos anteriores um terceiro esforço será dedicado à análise do tipo de pesquisa 16 empreendida por Malinowski conforme a introdução metodológica proposta pelo próprio autor em um dos seus mais famosos livros Argonautas do Pacífico Ocidental Cf MALINOWSKI 1978 Após percorrermos um pouco desta história da antropologia moderna particularmente no que se refere à construção do que mais especificamente a partir da década de 1920 viria a se constituir em uma espécie de modelo do trabalho etnográfico convidamos o leitor a um salto no tempo de aproximadamente 40 anos Isso porque é a partir do contexto específico da década de 1960 a qual presenciou tanto a descolonização das colônias inglesas e francesas até então etnografáveis quanto a rebelião dos tradicionais objetos destas etnografias que seria preparado o terreno para algumas das discussões que evidenciando o pathos por nós associado à antropologia contemporânea fundamentam o presente estudo O seguinte trecho do artigo de Montero 1991 engloba tal processo de forma bastante acurada Filha do encontro entre a civilização e a barbárie ela a antropologia se funda na afirmação da identidade universal da psique humana e na promessa da explicação das diferenças No entanto o humanismo antropológico deve enfrentar agora um novo desafio A dura realidade da descolonização traz no seu bojo a crise do humanismo peçachave do edifício epistemológico das ciências humanas Não é mais possível esquecer que o princípio da identidade subjetiva do espírito humano garantia da transparência da cultura tribal para o pensamento antropológico foi postulado pelo colonizador para desvendar o coração do colonizado A pretendida imanência acabou por revelarse uma afirmação da universalidade do logos ocidental e como tal se tornou inaceitável para o colonizado MONTERO 1991 p 109112 Nestes termos passaremos a abordar o atual momento da Antropologia Qual seja aquele da mudança de paradigmas em uma disciplina que após adotar anteriormente a proposta epistemológica de um funcionalismo cuja função era predominantemente explicativa percorre novos rumos ao se aproximar da perspectiva mais artesanal e compreensiva que caracteriza a teoria hermenêutica Para melhor ilustrar esta transição iremos nos valer inicialmente tanto de uma breve leitura de alguns dos princípios básicos deste ramo da filosofia quanto já no terreno da antropologia das idéias desenvolvidas por Cardoso de Oliveira 1988a 1988b 2000 preciosas fontes de informação ao abordarem precisamente o tipo e a qualidade da mudança paradigmática que caracteriza o presente antropológico 17 Em seguida conferiremos um destaque particular a alguns trechos da obra de Clifford Geertz figura verdadeiramente central na constituição deste foco interpretativo da antropologia Neste sentido de maneira a fornecer uma visualização mais adequada do contraponto estabelecido pelo antropólogo norteamericano entre a sua proposta e o tipo de orientação teóricometodológica até então validada no campo da pesquisa antropológica utilizaremos o mesmo expediente anteriormente válido no percurso que fizemos pelo trabalho de Malinowski 1978 A saber elegeremos um texto particular e representativo das idéias de Geertz para a partir dele esmiuçar nossa análise com base em um exemplo de natureza mais prática buscando situar o leitor no terreno das principais contribuições e limitações do projeto geertziano De forma a cumprir esta espécie de anamnese dedicaremos um terceiro momento à análise dos esforços de alguns outros herdeiros norteamericanos desta perspectiva hermenêutica os chamados antropólogos pósmodernos Estes a partir do referencial inaugurado por Geertz propõem novos experimentos ao questionarem o tipo de identidade e autoridade construídas nos aproximadamente cem anos da constituição da antropologia enquanto disciplina científica qualificando ainda a atividade etnográfica como eminentemente reflexiva dialógica ou mesmo polifônica Em outros termos ao adotarem como válida a metáfora geertziana da cultura como um texto a ser interpretado e a partir daí questionarem a própria possibilidade epistemológica do conhecimento etnográfico tais teóricos simultaneamente tomaram para si a tarefa de desvendar desmascarar ou desconstruir as práticas retóricodiscursivas que segundo eles seriam responsáveis pela construção tanto da identidade quanto da autoridade do etnógrafo enquanto tradutor referendado de outras visões de mundo Daí elegerem como seus nativos ou informantes os antropólogos do passado e do presente os quais agora são também eles observados e descritos por sobre os seus próprios ombros Dada a sua notabilidade podese vincular a tal contexto trabalhos como os de Marcus e Cushman 1982 Marcus e Fischer 1986 Clifford e Marcus 1986 e Clifford 1998 autor esse do qual também nos ocuparemos mais pormenorizadamente Assim esperamos haver atingido o fundamento desta revisão histórica conduzindo o leitor a uma definição cada vez mais clara do tipo de malestar presente na contemporaneidade antropológica malestar esse que permitirá uma intervenção de ordem 18 psicanalítica Tratase da ênfase pósmoderna na dimensão retórica da etnografia o que resultou em um questionamento epistemológico acerca da própria natureza e limites desta atividade aliado a uma perigosa aproximação entre si e a ficção literária Ocorre porém que nem todos os antropólogos da atualidade são partidários desta polêmica criada pela escola norteamericana Com efeito será no terreno das ressalvas a este pósmodernismo etnográfico que finalizando este primeiro momento alcançaremos a perspectiva que mais diretamente influenciou na proposta desta tese Ela se apresentará no escrito de Peirano 1995 que partindo em defesa da etnografia sugere que um saber específico como o da psicanálise poderia avaliar satisfatoriamente aquela que talvez seja a maior riqueza da atividade etnográfica sua qualidade fenomenológica de encontro intersubjetivo incluindose aí as dores e delícias provocadas pela vivência de um confronto tão direto com o outro O presente trabalho acolhe de bom grado tal sugestão de um diálogo produtivo entre a antropologia e a psicanálise no terreno da alteridade Mas de que forma seria possível realizálo Buscando respostas para esta questão voltarnosemos em nosso segundo capítulo a uma discussão sobre o outro a partir do referencial teórico inaugurado por Freud Para melhor preparar o leitor e a nós mesmos para esta nova etapa optamos por realizar em primeiro lugar um percurso pela questão do estrangeiro no pensamento do pai da psicanálise histórico esse que incluiu ainda que brevemente comentários que se estenderam desde os Estudos sobre a Histeria Cf FREUD e BREUER 18931996 até A Negação Cf FREUD 1925a1996 Neste sentido valemonos da preciosa ajuda de trabalhos como os de Kristeva 1994 e Koltai 2000 A partir daí passaremos a direcionar o nosso foco rumo a um texto específico do mestre de Viena Tratase de O Inquietante Cf FREUD 19191976 o qual representa um importante momento de transição na metapsicologia freudiana precedendo a reorientação teórica da psicanálise rumo a uma nova teoria das pulsões agora balizada no postulado de que a vida psíquica seria regida por dois princípios simultaneamente antitéticos e complementares Eros e Thanatos as pulsões de vida e morte Curiosamente todo este movimento será feito a partir dos domínios da estética Assim no artigo em questão encontraremos Freud 19191976 às voltas com aquela capacidade da obra de arte de causar em nós a sensação de uma desconfortável 19 inquietude Das Unheimliche experiência essa relativa àquilo que seduz e ao mesmo tempo aterroriza O que porém de mais específico caracterizará a abordagem freudiana de tal fenômeno do sinistro é o fato de remeter o leitor a uma dimensão última permeada pela familiaridade Desta maneira há aqui a afirmação de que sob o aparentemente incompreensível eou atemorizante escondese algo originalmente muito próximo ainda que afastado da consciência um estranho de nós mesmos por assim dizer muito bem expresso por Kristeva 1994 nos seguintes termos Estranhamente o estrangeiro habita em nós ele é a face oculta da nossa identidade o espaço que arruína a nossa morada o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia Por reconhecêlo em nós poupamosnos de ter que detestálo em si mesmo Sintoma que torna o nós precisamente problemático talvez impossível o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros rebeldes aos vínculos e às comunidades KRISTEVA 1994 p 09 Ocorre que a despeito do tipo de análise que se faz presente em O Inquietante haver se voltado principalmente ao reino da criação artística em particular a ficção literária suas implicações em muito extrapolam este domínio estendendose também para aquele outro tão caro à prática clínica Diante disso complementaremos a linha de raciocínio presente neste segundo capítulo e seguindo uma perspectiva anteriormente defendida por Kofman 1973 Chnaiderman 1997 e Silva Junior 2001 teceremos algumas considerações acerca da abertura e fragmentação de sentido presentes na hipótese da pulsão de morte levando em conta aqui as suas possibilidades no que se refere ao papel desempenhado pelo analista no cotidiano da sua prática profissional Eis quando prestaremos uma merecida homenagem ao pensamento de Fédida 1988 1991a 1991b 1996 para o qual a escuta analítica se situa estrategicamente em um lugar do nãolugar caracterizado como sítio do estrangeiro Afinal sugere o autor francês se o estranho abordado por Freud 19191976 reside no Inconsciente ou seja naquilo que temos de mais íntimo é somente pela via de um outro estranho aquele da transferência que na clínica poderemos travar contato com essa alteridade que nos é constitutiva2 Nestes termos enfatizando os temas da linguagem da familiaridade e da distância 2 Outro esse da linguagem do negativo e de uma ausência da transferência que vale a pena adiantar não se confunde ou não deveria jamais se confundir com a própria pessoa do analista 20 encerraremos esta segunda etapa do nosso trabalho esmiuçando o sinuoso e desafiador caminho que vai do silêncio do analista à interpretação enquanto campo do possível Então em um terceiro momento após travarmos um contato mais íntimo com este forasteiro de nós mesmos denominado Inconsciente dedicaremos todo um capítulo à complementação da discussão psicanalítica sobre alteridade iniciada anteriormente Desta feita utilizando um outro conceito advindo da obra freudiana aquele de construção em análise Cf FREUD 19371976 Mediante este recurso buscaremos saídas para o dilema pósmoderno que parece assombrar tanto o trabalho de campo do antropólogo quanto a prática clínica do analista ambos vítimas de uma querela que como apontam autores como Figueiredo 1998b e Ahumada 1999 envolve os partidários das chamadas alas realista e construcionista destas duas áreas Nossa abordagem do tema se dará sob três óticas distintas ainda que complementares Em primeiro lugar privilegiaremos aquela que se faz presente no texto original em que Freud 19371976 debate as construções em análise a partir das críticas de que em seu cotidiano a clínica por ele inaugurada não teria se livrado de todo da prática da sugestão Neste sentido ou seja na procura de argumentos que fornecessem garantias quanto à seriedade e utilidade do tratamento analítico nosso autor relativizará a noção de verdade com a qual lidava em seus atendimentos demonstrando por exemplo a precariedade de se tomar as respostas diretas dos pacientes como critério único ou mesmo principal para a validação de hipóteses Com efeito o mesmo Freud 19371976 apontará a necessidade da observação de reações outras de caráter mais sutil como estados de humor lembranças eou associações que inseparáveis do fenômeno transferencial viessem a complementar as deduções há pouco referidas Finalmente e isso adquire suma importância através da proposta de uma divisão entre realidade psíquica e material o mestre de Viena nos mostrará que os fatos com os quais trabalha o analista são aqueles referentes às leis do desejo e não necessariamente acontecimentos traumáticos dos quais pudéssemos derivar uma correlação imediata do tipo causa e efeito Ainda assim tornase possível perceber no escrito de Freud 19371976 os resquícios da presença de um certo realismo e com ele a crença tanto na adequação entre a metapsicologia e os conteúdos inconscientes quanto na neutralidade do analista em sua 21 tarefa de recuperar eou traduzir estes elementos da outra cena Eis o mote para que reorientemos a nossa aproximação do tema das construções e com ela da questão da alteridade em psicanálise rumo a uma segunda abordagem Como veremos nas páginas seguintes esta será defendida por Viderman 1990 1995 cujos trabalhos se constituem na qualidade de marcos do construcionismo em psicanálise ao discordarem amplamente de Freud 19371976 quanto à possibilidade do estabelecimento da neutralidade do analista no desempenho de uma atividade de resgate de supostas verdades enterradas no Inconsciente Assim o autor francês apostará as suas fichas na tese de que o sentido em psicanálise é construído no e pelo espaço do setting clínico pouco importando a verdade do Inconsciente em si mesma insubmissa e refratária por excelência mas a verossimilhança moldada pela interpretação Em decorrência serão a linguagem teórica do analista e a susceptibilidade imposta pelo amor da transferência que aparecerão como responsáveis por trazer à tona os supostos vividos inconscientes no presente da situação analítica fornecendo ainda dependendo do caso maiores ou menores garantias para que o par analítico siga em frente ou não E então qual das duas linhas de raciocínio escolher Talvez nenhuma delas exatamente É o que nos diz Figueiredo 1994a 1994b 1996a 1998b autor esse que a partir de uma série de diálogos com a filosofia heideggeriana romperá as barreiras impostas pelo entrechoque entre realistas e construtivistas ou seja entre o resgate e a criação de sentido em psicanálise Com efeito apontará o quanto ambos ao permanecerem tomando a noção de experiência sob a primazia da presentificação leiase também da representação revelamse incompatíveis com as exigências da atividade clínica do analista marcada pelo contato direto com o caráter extemporâneo fragmentado e sobredeterminado do Inconsciente Os reflexos de tal orientação aparecerão mais claramente na leitura empreendida por Figueiredo 1996a de Construções em Análise Cf FREUD 19371976 a qual adotará a perspectiva de que já ali seria possível encontrar certos modos de ver escutar e pensar não necessariamente atrelados nem a uma metafísica da presença e nem tampouco às exigências representativas do chamado Princípio de Razão Nestes termos nosso autor observará ainda que embora teorias como aquela proposta por Freud inevitavelmente detenham princípios ordenadores do tipo realizador no momento do encontro analítico podem e 22 devem funcionar como dispositivos desrealizantes3 exigindo do analista a capacidade nada desprezível de sustentar uma hermenêutica de resposta em que cada um deixouse fazer pelo outro acolhendo em si a alteridade do outro e permitindo que se despertem em si as próprias alteridades ressoantes FIGUEIREDO 1994b p 20 Na prática isso significa buscar um meio termo entre a pressa de realizar uma completa tradução do discurso alheio e a tentação de se deixar influenciar demasiadamente por ele Assim ao contrário da tradição que acabou por se impor ao longo da história do pensamento ocidental o conhecimento obtido na clínica analítica não aparece tomado como estado ou ente acabado metafísica da adequação ou correspondência entre representação e representado mas enquanto acontecimento Por conseguinte resgatando a sua forma grega de aletheia a verdade adquire ou melhor readquire a qualidade de drama ou encenação conservando uma reserva que lhe permite manter a atividade interpretativa em perpétuo movimento Eis as principais idéias que permearão as inconclusões deste trabalho onde resgatando o fio condutor do nosso raciocínio debateremos o interesse da psicanálise para a antropologia e em escala mais ampla para as próprias Ciências Humanas Como veremos ele reside no terreno da ética mas não de uma ética qualquer Tratase daquela que ao evitar reduzir o outro a códigos semânticos prédefinidos admita a íntima e assim inquietante relação que se estabelece entre conhecimento e alteridade Assim e somente assim poderá nos servir de guia em um passeio rumo ao estrangeiro que não tem hora e nem tampouco lugar para acabar E que façamos uma boa viagem 3 Como nos mostra Figueiredo 1994a a fala aqui é expropriada de uma atividade interpretativa que limitandose ao estabelecimento de relações como as de causa e efeito concentrase no que aparece explicitado no discurso Então ao invés do decifrar ela adquire um outro movimento de aproximação e ao mesmo tempo recuo circundando de silêncio o dito para que ele ressoe no lugar que o precede reserva e rege o lugar do nãodito Somente assim fornecerá a este mesmo Inconsciente do qual falamos há pouco um espaço de figurabilidade em que possa se expressar o mais livremente possível Isto é no luscofusco na diferença e na estranheza que lhe são constituintes CAPÍTULO 01 A Constituição de um Pathos realidade e ficção na prática antropológica Desde a sua fundação por Sigmund Freud a psicanálise é tradicionalmente convocada a partir de um malestar Ou seja advinda da prática clínica do seu criador configurase enquanto uma ética e uma técnica eminentemente ligadas à dimensão trágica da vida que na sua persistência teima em lembrar a humanidade acerca do caráter finito e imperfeito da sua existência na terra ocasionando assim um estado ou sentimento muito bem expresso pela sabedoria grega através do termo pathos Em um rico trabalho que visa situar o leitor brasileiro quanto à posição da Psicopatologia Fundamental no campo da clínica psicanalítica Berlinck 2000 faz uma viagem ao classicismo da cultura greco romana para daí extrair detalhes sobre este conceito que tanto nos interessará a partir de agora Assim o texto em questão funcionará como um bom ponto de partida para o presente capítulo Vejamos o que tem a nos dizer Inicialmente Berlinck 2000 prima por situar seu leitor quanto às matizes de sentido da expressão posição tanto no contexto romano quanto no grego Posição que se origina no vocabulário militar romano quer dizer inicialmente lugar onde uma pessoa ou coisa está colocada Uma vez ocupado um território conquistada uma posição o exército romano o integrava com tudo que continha Os gregos por sua vez não tinham essa preocupação colonizadora Na civilização grega especialmente na Atenas de Péricles a noção de posição tendo também uma referência territorial é de natureza muito mais relacional As posições em Atenas referemse à postura do corpo à maneira à pose como os moradores da polis cidadãos e escravos autóctones e estrangeiros se relacionam numa trama discursiva que se realiza por excelência na ágora ou seja no espaço da retórica BERLINCK 2000 p 1112 Com isso a leitura do trabalho de Berlinck 2000 nos mostra ainda como uma noção mais clara do significado de pathos enquanto paixão sofrimento ou passividade originalmente ligados ao teatro pode ser obtida mediante a sua comparação com duas outras posições bastante caras à Grécia de Péricles orthos e historiè Quanto à primeira que 24 inclusive daria origem mais tarde à ortopedia e a ortodoxia esta se associa a uma irrepreensibilidade na conduta dos habitantes da polis particularmente no que diz respeito à postura corporal Neste sentido um andar calmo firme e com o corpo ereto denotava civilidade correção e uma postura ativa diante da vida e das relações sociais Já no que se refere a historiè a posição e o discurso do historiador não estão necessariamente associados a uma postura irrepreensível no contexto da ágora mas sim a viagens e visitas que por intermédio do próprio olhar daquele que reportava ou ainda através da utilização de testemunhas serviam para registrar o que ocorria lá e em outros lugares cada vez mais freqüentados por estrangeiros Em outras palavras também se constituía em importante função do historiador aquela de garantir aos cidadãos gregos o reconhecimento de si mesmos diante da crescente ameaça oferecida pelo outro pelo diferente pelo conquistado e assim incorporado De qualquer forma segue Berlinck 2000 tanto orthos quanto historiè pressupunham a mobilidade o movimento corporal quer seja daquele que se expõe quer seja daquele que registra Tal não ocorria na terceira das posições manifestas na polis aquela do teatro onde devido à própria natureza das encenações e da distribuição dos lugares destinados ao público este último permanecia sentado relativamente imóvel e importante obrigado a dobrar o torso para melhor ver e ouvir o espetáculo que lhe era oferecido abandonando desta forma aquela postura ereta que como vimos há pouco seria recomendada ao cidadão Mas as diferenças não param por aí assumindo maiores proporções ao penetrarem na esfera da própria qualidade do discurso ou do tipo de experiência proporcionada pela linguagem falada Enquanto no terreno da ágora a oratória produzida devia necessariamente se vincular à razão lógica uma vez que visava o convencimento de uma audiência crítica a situação mítica do teatro possibilitava a emergência de um outro tipo de falante aquele que livre das amarras da verdade conduzia a sua performance de maneira a provocar em seu público uma experiência A posição do teatro se opõe assim à do orthos porque aquele não pretende convencer o interlocutor da irrepreensibilidade de sua posição e sim apresentar um discurso mitopoiético epopéico que produza experiência BERLINCK 2000 p 17 25 Por derivação é este afastamento de um ideal de força correção e integridade que acabaria por permitir ao teatro grego exibir um outro tipo de corpo que desligado da sua condição natural revelaria ao público o seu pathos Ou seja o seu sofrimento e limitação ontológicas diante da inexorabilidade trágica da vida e do destino Mais uma vez nos esclarecedores termos de Berlinck Este sujeito que não é nem racional nem agente e senhor de suas ações encontra sua mais sublime representação na tragédia grega Nesse sentido quando pathos acontece algo da ordem do excesso da desmesura se põe em marcha sem que o eu possa se assenhorar desse acontecimento a não ser como paciente Nessa inferioridade do padecer encontrase assim a desqualificação própria dos clássicos gregos da mobilidade relativamente à imobilidade É por conter matéria isto é indeterminação que um ser se move O fato de ter de mudar de lugar ou de quantidade ou de qualidade para receber uma nova determinação mostra que ela não possui todas as qualidades de uma só vez e que a aparição dessas depende da intervenção de um agente exterior Portanto não existe pathos no sentido mais amplo senão onde houver mobilidade imperfeição ontológica Se assim for pathos é um dado do mundo sublunar e da existência humana Devemos contar com pathos Devemos até aprender a tirar proveito dele Tirar proveito de pathos significa transformálo em experiência ou seja não só considerar pathos como estado transitório mas também como algo que alarga ou enriquece o pensamento 2000 p 1820 Uma vez configurado em maiores detalhes o sentido original da expressão grega pathos é chegada a hora de estabelecermos uma ligação entre esta e os objetivos deste primeiro capítulo Neste sentido considerandose a validade da nossa sentença de abertura segundo a qual a psicanálise é tradicionalmente convocada a partir de um desconforto pretendemos traçar nas páginas seguintes um perfil ou enquadre do malestar presente na discussão antropológica contemporânea possibilitando assim um contato fecundo entre estas duas áreas do saber Para tanto realizaremos um percurso histórico que seguindo a dinâmica proposta por Berlinck 2000 buscará localizar na sucessão de algumas das principais escolas da antropologia moderna um momento específico Qual seja aquele da transição da posição de orthos a pathos da passagem de um discurso caracterizado pela certeza quanto à fidedignidade da representação de outras culturas rumo a uma diferente modalidade discursiva marcada pelo reconhecimento das limitações do projeto etnográfico Seriam kafkianas as conseqüências deste processo Retornemos no tempo para a partir daí buscar respostas a esta pergunta 26 Evolucionismo Social e Teoria Antropológica Autores como Voget 1975 ou EvansPritchard 1981 buscaram traçar prelúdios do pensamento antropológico respectivamente na cultura grecoromana e em filósofos como Montesquieu No entanto parece haver certo consenso conforme sugere DaMatta 1987 que os primeiros passos da antropologia enquanto saber verdadeiramente científico tenham se dado com alguns hoje criticados eruditos do séc XIX os quais caracterizaram uma escola que se convencionou chamar de evolucionista Observemos então algumas das suas principais características Um primeiro ponto a ser ressaltado é evitarmos a confusão entre o evolucionismo sóciocultural e a teoria darwinista da evolução biológica Neste sentido devemos tomar a ambas como reflexos simultâneos de um mesmo momento histórico do pensamento ocidental Nas palavras de Harris A explosão de atividade na Antropologia cultural depois de 1860 não foi engatilhada pelo livro de Darwin mas antes o acompanhou enquanto um produto das mesmas influências geradoras 1968 p 1424 É Herskovits contudo quem explicita um pouco mais esta idéia ressaltando o vínculo do pensamento evolucionista à especificidade de uma Inglaterra vitoriana e colonialista Sua hipótese representava uma afirmação positiva das aspirações dos tempos da rainha Vitória encarnadas na palavra progresso 1952 p 5025 De fato o século XIX corresponde a um período de grande conquista colonial e é exatamente neste contexto que toma forma a moderna antropologia e a teoria evolutiva Afinal é exatamente a rede de informações criada nas novas colônias que acabou por fornecer o material de análise das hoje clássicas obras de eruditos do vulto de Frazer ou Morgan Entretanto como nos mostra EvansPritchard 1978 nenhum destes notáveis teóricos evolucionistas jamais efetivara uma verdadeira pesquisa de campo entre os povos 4 No original inglês The burst of activity in cultural anthropology after 1860 was not triggered by Darwins book but rather accompanied it as a product of the same generative influences trad nossa MRS 5 No original espanhol Su hipótesis representaba una positiva afirmación de las aspiraciones de los tiempos de la reina Victoria enncarnadas en la palabra progreso trad nossa MRS 27 dos quais se ocupavam6 Assim da confiança em relatos de cronistas e viajantes é que acabaram resultando análises sobre dados por vezes imprecisos e incorretos Além do mais bastante seletivos uma vez que tanto os informantes quanto os teóricos de que falamos deitavam no papel particularmente os aspectos que mais lhes chamavam a atenção enquanto sensacionais ou exóticos Daí a excessiva ênfase no que supunham serem as populações mais arcaicas do mundo os aborígines australianos com seus diferenciados sistemas de parentesco rituais mágicos e crenças religiosas Quanto a estas últimas é interessante notar que geralmente detinham prioridade sobre outros afazeres domésticos ou mais cotidianos Conforme EvansPritchard por dar excessiva importância ao que consideravam como superstições curiosas fatos misteriosos e ocultos os observadores tendiam a pintar um quadro em que o místico ganhava na tela uma porção muito maior do que ocupava na vida real dos povos primitivos 1978 p 21 Como conseqüência tendiase a formar uma imagem no mínimo caricatural da mente primitiva enquanto supersticiosa infantil ou incapaz Ainda neste sentido da análise e disposição dos dados obtidos vários autores são unânimes em afirmar que na falta de provas científicas convincentes o que preenchia os volumosos livros da época era mais uma compilação de dados manipulados e isolados de seus contextos do que verdadeiras etnografias HERSKOVITS 1952 HARRIS 1968 EVANSPRITCHARD 1978 LAPLANTINE 1991 Tudo isso em nome de um método comparativo que tomando por base sociedades primitivas do presente evidenciaria através destas o que a vida deveria ter sido em etapas evolutivas anteriores Vemos assim que esta preocupação com um saber sobretudo acumulativo mais visava demonstrar a veracidade de uma tese previamente formulada do que a verificação de uma hipótese genuinamente científica Para além de todos estes aspectos porém destacase nestas obras uma enorme ambição Diferentemente da antropologia contemporânea mais comedida em analisar as particularidades de contextos locais específicos o que se via no século XIX eram verdadeiros tratados etnográficos sobre a humanidade como um todo Desta forma buscavam categorizála em uma escala evolutiva unilinear que iniciada pelos povos ditos 6 É bem verdade que se deve conceder a Tylor o mérito de haver sido um crítico arguto desses relatos LARAIA 1993 No entanto mesmo ele não escaparia ao rótulo de pesquisador de gabinete tomandose por base o modelo de pesquisa instaurado com o funcionalismo de Malinowski 28 primitivos culminaria nas nações européias Para Laraia Etnocentrismo e ciência marchavam então de mãos juntas 1993 p 34 É claro que não houve uma plena uniformidade destas idéias até porque nem todos os teóricos evolucionistas foram tão generalistas contentandose alguns em aplicar suas idéias sobre aspectos específicos da cultura como a arte o Estado ou a Religião7 Embora sejam numerosos os representantes desta escola como Lubbock e MacLennan na Inglaterra Bastian e Wundt na Alemanha e Comte na França destacamos neste trabalho as figuras de Morgan Tylor e Frazer tanto por sua importância para a antropologia quando pela atração que viriam a exercer em outras disciplinas como por exemplo a então embrionária psicanálise MUSUMECI 1991 SOUZA 2003 Após estas observações analisemos a seguir uma nova etapa do processo histórico de constituição da antropologia como disciplina Desta feita construída pelos chamados difusionistas que ainda que contemporâneos e em certo sentido colaboradores dos antropólogos de gabinete estudados há pouco seguramente deram um passo adiante rumo a uma crescente valorização da pesquisa de campo Ou seja de um contato efetivamente mais próximo junto ao outro Antropologia e Difusionismo Cultural Se seguirmos de perto o estudo de Barbosa 1986 reconheceremos o ano de 1930 como aquele da primeira utilização em língua inglesa do substantivo diffusionism enquanto algo usado para designar a corrente antropológica que procurava explicar o desenvolvimento cultural através do processo de difusão de elementos culturais de uma cultura para outra enfatizando a relativa raridade de novas invenções e a importância dos constantes empréstimos culturais na história da humanidade BARBOSA 1986 p 348 7 Desta forma propõe Herskovits 1952 que autores ditos evolucionistas como Haddon e outros trataram da evolução nas obras de arte desde o realismo ao convencionalismo enquanto Maine por exemplo concedeu mais atenção ao Estado inicialmente em sua organização em termos de parentesco e mais tarde no aspecto territorial Mesmo Tylor que concentrou sua atenção em tantos aspectos da cultura mereceria assim uma menção honrosa no campo da religião desenvolvendo sua teoria sobre um conceito original de espírito baseado inicialmente na crença em almas e fantasmas para em seguida chegar a sistemas mono e politeístas 29 Entretanto ao prosseguir em sua análise a autora citada faz duas ponderações importantes Primeiro que o período de maior alcance da perspectiva difusionista teria se dado um pouco antes ao longo de toda a década de 20 Em segundo lugar corroborando com o pensamento de outros cientistas sociais como Harris 1968 e Richaudeau 1972 que a origem de tais idéias já se faria presente nos escritos de Edward B Tylor o qual como vimos há pouco é hoje considerado um dos mais famosos evolucionistas sociais do século XIX8 Neste sentido é o trabalho de Harris 1968 que vai mais fundo nesta discussão ao destacar a falácia na sua opinião divulgada pelos difusionistas de que o evolucionismo antropológico teria menosprezado a possibilidade da ocorrência de empréstimos culturais Sob a influência dos particularistas históricos e das escolas difusionistas alemã e inglesa cresceu o mito de que os evolucionistas sociais do século dezenove negaram a importância da difusão Os difusionistas não somente estabeleceram a dicotomia entre empréstimo e invenção mas também dogmaticamente negaram que invenções semelhantes poderiam dar conta da similaridade ao redor do mundo Esta dicotomia é falsa em dois sentidos Primeiro ela não reflete apropriadamente a posição dos evolucionistas nenhum dos quais propôs em termos de princípios que as similaridades teriam se desenvolvido mais freqüentemente da invenção independente que da difusão E a dicotomia é também lógica e empiricamente falsa pois se apóia na insustentável noção de que a invenção independente e a difusão seriam processos fundamentalmente diferentes HARRIS 1968 p 173174 De volta à nossa discussão o que verdadeiramente interessa enfatizar aqui é malgré elles uma aproximação entre estas duas escolas do pensamento antropológico tanto no que se refere a um certo etnocentrismo quanto no que tange à utilização de metodologias de 8 Nascido em Londres o contexto intelectual da formação de Edward Burnett Tylor 18321917 não foi outro senão o de uma Inglaterra vitoriana e progressista repleta de ideais evolucionistas como os de Darwin e Spencer Assim a particularidade do seu pensamento residia em situar a Cultura como ramo de uma ciência natural histórica e total conferindo importância não ao estudo de nações ou tribos específicas mas a categorias gerais como o conhecimento a religião e a arte destes povos Segundo Tylor 1970 um primeiro passo no estudo da cultura seria dissecar a civilização em detalhes classificandoa em grupos apropriados Exemplos de elementos classificatórios seriam as armas arte têxtil mitos ritos e cerimônias A função do etnógrafo seria então classificar estes detalhes distribuindoos histórica e geograficamente mas ao mesmo tempo demonstrando as relações entre eles Com isso ainda utilizando como referencial as ciências naturais é que Tylor introduz a noção de dois tipos de difusionismo aquele realizado em uma escala maior ou seja em regiões afastadas e além desse o difusionismo em um mesmo país Ambos porém corroborando com a noção de uma única natureza humana seja pela suposta ocorrência de fenômenos culturais semelhantes simultâneos ou não em diferentes partes do mundo seja pela ocorrência de consensos ou acordos gerais quanto à utilização de elementos culturais semelhantes por diferentes populações Este todo cultural embora em diversos graus de evolução poderia então ser medido por uma estatística comparativa onde os artefatos sobreviventes enquadrariam cada povo nos diferentes pontos de uma escala evolutivocultural 30 pesquisa insuficientes e baseadas por sua vez mais na especulação teórica do que na evidência empírica Sem porém nos alongarmos nestas ressalvas as quais serão retomadas mais adiante passemos a uma panorâmica dos pressupostos essenciais do difusionismo bem como das principais escolas representativas deste movimento que conforme Herskovits 1955 e Harris 1968 seriam basicamente três a inglesa a alemã e a norte americana Sob a liderança do anatomista Sir Elliot Smith a hipótese apresentada pelo grupo inglês também conhecido como hiperdifusionista ou heliocêntrico era a de que há 4000 anos atrás o antigo Egito teria se constituído na fonte única de todos os aperfeiçoamentos culturais mais tarde espalhados pelo mundo quer se tratasse da África da Índia da Polinésia ou das Américas Desnecessário dizer que a arbitrariedade de tal postulado elevando às últimas conseqüências a idéia da predominância dos empréstimos culturais sobre a pouca quase inexistente inventividade humana carecia totalmente de dados etnográficos concretos baseandose muito mais nas conjecturas pessoais dos seus autores os quais negavam não somente a chance da ocorrência de múltiplas difusões mas também a possibilidade de criações culturais independentes e simultâneas9 Já a escola difusionista alemã também conhecida como históricocultural inspirou se nas idéias da antropogeografia de Friedrich Ratzel tendo nas figuras de F Graebner e W Schmidt os seus principais teóricos Embora em certo sentido associados aos seus colegas ingleses tanto pelo descrédito conferido à capacidade inventiva da humanidade quanto pela adoção de explicações arbitrárias para as diferenças entre os povos devese conferir aos alemães o mérito de um maior refinamento e ponderação nas suas idéias Em primeiro lugar pelo reconhecimento de variados centros de difusão denominados círculos culturais Kulturkreise mesmo que a partir de algum lugar incerto no interior da Ásia10 9 Ao fazermos referência ao difusionismo inglês cabe destacar também como o faz Barbosa 1986 o importante papel desempenhado por W H Rivers cujas principais contribuições residiram ao contrário na importância conferida à pesquisa de campo particularmente nos estudos do parentesco Na qualidade de profissional da saúde Rivers efetivou a aplicação de testes psicológicos entre nativos da Nova Guiné e ainda propôs o que considerava ser uma frutífera aproximação entre a etnologia e a psicanálise Para um contato mais próximo com a sua obra uma boa indicação é a coletânea de artigos organizada no Brasil por Cardoso de Oliveira 1991a 10 Segundo Schmidt a chave para a compreensão do mapa de distribuição da cultura contemporânea residiria na definição precisa dos seus círculos originais de difusão grandes complexos de traços culturais que teriam perdido a sua unidade geográfica original e desde então estariam espalhados pelo mundo Contudo cada círculo Kreise estaria associado a uma fase anterior da história da humanidade primitiva primária 31 Finalmente por uma preocupação metodológica refletida na melhor qualidade da sua documentação e das regras utilizados para avaliar a pertinência dos empréstimos culturais11 De qualquer forma as deficiências desta escola se revelam pela ausência de um trabalho de campo sistemático pela manipulação de dados e pela natureza hipotética das suas conclusões ainda dependentes do instrumento fundamental dos evolucionistas o método comparativo Sim aquele mesmo que como vimos anteriormente buscava traçar origens e modificações experimentadas pela cultura através da análise de certos povos contemporâneos supostamente selvagens os quais representariam de maneira relativamente intacta o passado da nossa espécie HARRIS 1968 Boa parte da perspectiva exposta acima pode também ser aplicada ao difusionismo norteamericano cuja influência recebida de Franz Boas alemão de nascimento mas posteriormente radicado nos Estados Unidos fez com que fossem adotados na América pressupostos oriundos da escola germânica como a noção de círculos culturais Tal processo culminou na criação do conceito de áreas culturais culturalareas definidas por Harris como unidades geográficas relativamente pequenas e baseadas na distribuição contígua de elementos culturais 1968 p 37312 Estas partindo de um hipotético círculo central rumo à periferia serviriam basicamente para precisar os avanços de traços culturais específicos Para além desta herança entretanto o movimento americano inovou ao realizar diversas pesquisas de campo junto às tribos indígenas de seu país Neste sentido ao invés de adotar como princípio metodológico os estudos comparativos em larga escala optou por secundária e terciária por sua vez ligadas respectivamente às atividades de caça horticultura pastoreio e por último à sociedade estratificada HARRIS 1968 11 Neste sentido Graebner desenvolveu os critérios de forma e quantidade cujo significado é consideravelmente simples dadas as similaridades entre as características de dois diferentes grupos a probabilidade de tais traços derivarem de uma única fonte seria diretamente proporcional ao número e complexidade da sua ocorrência Assim quanto maiores e mais imbricadas as similitudes maior seria também a chance de haver ocorrido um empréstimo cultural HERSKOVITS 1955 12 relatively small geographical units based on the contiguous distribution of cultural elements trad nossa MRS Ainda de acordo com a análise empregada por Harris 1968 tal conceito teria se originado de exigências de ordem prática enquanto um instrumento heurístico para o mapeamento das tribos norte americanas visando ainda uma classificação mais adequada dos utensílios daqueles povos nas então emergentes coleções etnográficas de instituições como o American Museum of Natural History e o Chicago Field Museum 32 uma linha de pesquisa de caráter mais estrito e localizado que não priorizava as reconstruções históricas dos contatos em si mas a dinâmica cultural deles resultante13 Contudo tal proposta de trabalho também detém algumas limitações a serem assinaladas Por exemplo a rigidez da noção de área cultural a qual não acompanha adequadamente as transformações pelas quais pode passar um determinado local com a adoção de novos costumes por parte dos seus habitantes processo esse que ao longo do tempo pode inclusive motivar tanto uma inversão entre centro e periferia quanto a ocorrência de diferentes culturas dentro de um mesmo espaço previamente delimitado Em outros termos temos aí o grave problema do determinismo geográfico particularmente relevante se considerarmos que o fato de estarem situados em contextos ambientais semelhantes certamente não se torna um empecilho para que os inúmeros conglomerados humanos ao redor do planeta adotem costumes rigorosamente distintos Ou seja não só o meio físico deve ser levado em conta na pesquisa antropológica mas também a sua fundamental interação com a tecnologia empregada no cotidiano de cada grupo HARRIS 1968 Uma vez realizada esta breve exposição do que consideramos serem as principais características do legado difusionista é chegado o momento de finalizar este tópico Para tanto contamos com a ajuda dos precisos termos de Barbosa 1996 que ao descortinarem alguns pontoschave para uma aproximação entre as idéias do evolucionismo social e do difusionismo cultural sintetizam boa parte do conteúdo das páginas anteriores e nos fornecem ainda um ótimo ponto de partida para uma compreensão adequada do alcance e dimensão epistemológica da mudança operada pelo funcionalismo de Malinowski no terreno da antropologia contemporânea Tendo surgido na época como uma oposição ao evolucionismo e à sua simplificação da história humana tal oposição do difusionismo é hoje considerada mais aparente do que real Autores difusionistas como é o caso de W Schmidt e F Graebner não conseguiram desvincularse de certas noções do pensamento evolucionista do séc XIX e impregnaram suas obras de conceitos característicos dessa escola Ademais ambas as correntes do pensamento antropológico adotaram os métodos comparativo e de reconstituição histórica como tema central das suas formulações E ao adotarem essa perspectiva 13 Segundo Herskovits 1955 Boas teria reconhecido desde cedo que o objeto fundamental da antropologia não seria necessariamente a ocorrência das trocas entre os povos mas sim os efeitos destas no que se refere à mudança cultural 33 diacrônica em pouco divergiram entre si pois ao se deterem na reconstituição do passado não perceberam a complexidade do presente BARBOSA 1986 p 349 Antes de encerrarmos porém cabe aqui uma última observação ainda que destacadas estas semelhanças entre evolucionismo social e difusionismo cultural enquanto análises da cultura permeadas simultaneamente pelo pioneirismo mas também pela conjectura e pelo dogmatismo acreditamos que a exposição separada destas duas escolas do pensamento antropológico se torne interessante para os nossos propósitos aqui uma vez que a sua caracterização permite ao leitor notar uma gradativa mudança de procedimentos Em que sentido Sobretudo no crescimento da importância conferida à coleta de dados etnográficos in loco14 Com isso alcançamos a perspectiva funcionalista inaugurada por Malinowski onde mais do que um imperativo técnico a presença do antropólogo junto ao outro adquire uma dimensão verdadeiramente ética na busca do significado do costume de um determinado povo dentro do próprio contexto cultural em que este se insere uma imbricação portanto entre manifestações culturais e circunstâncias históricas particulares Para tanto temos a utilização de um instrumento metodológico como aquele da observação participante a qual como veremos a seguir viria a fornecer maior credibilidade às conclusões resultantes deste contato A Perspectiva Funcionalista de Malinowski e os Novos Rumos da Etnografia Polonês de nascimento foi na Universidade da Cracóvia onde inclusive realizou seu doutoramento que Malinowski traçou boa parte da formação acadêmica que o tornaria um dos mais influentes antropólogos do século XX15 Neste sentido o artigo de Paluch 14 Particularmente com a escola difusionista norteamericana que a despeito das deficiências anteriormente relatadas acabaria por antecipar alguns dos princípios norteadores da antropologia contemporânea Em primeiro lugar ao considerar a descrição como um prérequisito para a análise interpretativa da cultura Nesta mesma linha de raciocínio por privilegiar o estudo de grupos particulares ao invés de propor grandes tratados gerais sobre a humanidade Mais ainda por buscar compreender os traços culturais segundo relações e significados ditados não pelo pesquisador mas pelo próprio nativo HERSKOVITS 1955 15 Relevantes apreciações da vida e obra de Malinowski podem ser encontradas em variados trabalhos razoavelmente conhecidos do público brasileiro como os de Firth 1960 Kuper 1978 e particularmente Durham 1978 1986 Gostaríamos porém de destacar aqui o valor histórico do artigo de Richards 1943 que publicado logo após a morte do antropólogo polonês destaca entre outras coisas a formação original de cunho naturalista do autor de Argonautas do Pacífico Ocidental 1978 bem como a sua posterior dedicação à 34 1981 nos oferece algumas reflexões bastante relevantes para uma avaliação da influência deste período na carreira de um dos futuros expoentes máximos do funcionalismo cultural inglês Vejamos algumas das principais idéias do trabalho em questão Segundo Paluch 1981 já na tese de Malinowski intitulada On the Principle of the Economy of Thought haveria uma clara presença da filosofia positivista tal como esta se dava ao final do século XIX Afinal no trabalho em questão Malinowski defendia a economia do pensamento como uma metodologia não explicável somente em termos de leis psicológicas mas essencialmente no relacionamento concreto do homem com o mundo sendo tal relação definida em termos de necessidades biológicas16 Ainda conforme Paluch 1981 poderseia vislumbrar em tal monografia dois princípios fundamentais do que viria a se tornar a antropologia do autor dos Argonautas do Pacífico Ocidental a ênfase nas explicações funcionais e a noção de cultura enquanto todo instrumental Entretanto afirma Paluch 1981 a presença destas orientações não restringe Malinowski à qualidade de um positivista stricto senso Isso porque em sua obra o etnógrafo polonês opta por adotar apenas parcialmente uma radicalização do empiricismo muito em voga na comunidade intelectual da Cracóvia da época Tratase do princípio do experimento puro ou pura descrição o qual rejeitava qualquer expressão inverificável enquanto sentença descritiva da realidade Para Paluch 1981 Malinowski tinha consciência da impossibilidade de um tal apelo descritivo até mesmo porque tanto a vida em sociedade quanto a própria ciência empírica são prédeterminadas por sistemas teóricos de orientação da realidade antropologia permeada por uma vasta experiência de campo repleta de variados interesses como a religião o direito e a sexualidade Ao tomar como principal contribuição de Malinowski a instauração de uma nova modalidade de pesquisa de campo baseada na empiria do contato íntimo e prolongado com os grupos nativos Richards 1943 reconhece ainda a qualidade literária dos escritos do mestre os quais inaugurariam também um novo tipo de retórica antropológica aquela do estar lá Finalmente na opinião do autor o nome de Malinowski deveria ser lembrado ainda pela formação de uma nova geração de antropólogos de língua inglesa fornecendo assim um novo fôlego à disciplina 16 Como aponta Kolakowski 1974 a economia do pensamento aparece na história da filosofia enquanto um conjunto de hipóteses diversas e que abarcaram uma variedade de temas como a física e mesmo a teologia mas que diretamente associadas à empiria do positivismo lógico portanto avessas a qualquer metafísica guardariam sempre uma certa proximidade na defesa do conhecimento como uma experiência economicamente ordenada cujo conteúdo não iria além da experiência Em sua vertente biológica consiste na regra metodológica segundo a qual o acúmulo do saber humano seria compreensível enquanto uma exigência de ordem funcional imposta ao cérebro pela sua relação com o meioambiente Nestes termos a economia do pensamento em si mesma não diria nada sobre a verdade do conhecimento descrevendo somente as leis orgânicas que regulariam a assimilação de conteúdos pela consciência 35 Esta divergência segue Paluch 1981 ao mesmo tempo em que afasta a perspectiva de Malinowski da filosofia positivista da época acaba por aproximála de uma outra tradição do pensamento ocidental a do neokantismo que vale lembrar postulava a necessidade da adoção de formas cognitivas a priori como recurso necessário ao estudo da realidade Com isso em termos conciliatórios Paluch 1981 sustenta a hipótese de que o positivismo teria sim se constituído em um ponto de partida para a proposta antropológica de Malinowski o que inclusive poderia ser atestado pela insistência na qualidade empírica do trabalho de campo Entretanto a vivência de situações reais entre os nativos teria revelado ao etnógrafo polonês que especialmente nos estudos da cultura os princípios elaborados por Comte e seus discípulos também detinham as suas limitações Assim apesar destas diferentes origens ou melhor exatamente devido a elas aposta Paluch 1981 que as questões fundamentais na obra de Malinowski residem na oposição entre uma visão humanista e outra naturalista da realidade social permeadas por uma concepção holística integrada e funcional da cultura A leitura deste artigo nos fornece portanto duas lições importantes a primeira delas é que a ciência social funcionalista teria nascido não em campo nas ilhas Trobriand da Nova Guiné mas nos estudos teóricos de Malinowski ainda na Cracóvia Finalmente que a moderna antropologia seria filha da discussão filosófica presente na virada do século XIX dividida entre humanistas e naturalistas aprioristas e empiricistas Portanto de forma alguma livre de pré conceitos e das suas conseqüências17 Este é um quadro que anos mais tarde poderia ser bem visualizado nos princípios básicos do funcionalismo Malinowskiano expostos por exemplo no seu conceito de Cultura vista na qualidade de um todo integral constituído por implementos e bens de consumo por cartas constitucionais para os vários agrupamentos sociais por idéias e ofícios humanos por crenças e costumes Quer consideremos uma cultura muito simples ou primitiva ou uma extremamente complexa e desenvolvida deparamonos com 17 Ainda segundo Paluch 1981 este confronto nem sempre bem resolvido é verdade motivou em boa parte da comunidade antropológica contemporânea um certo consenso de que Malinowski seria um brilhante etnógrafo mas um teórico desinteressante ou pouco inspirador Neste ponto o autor parte em defesa do seu conterrâneo afirmando que o verdadeiro problema de Malinowski residiu não na carência de teorias convincentes algo facilmente atestado pela qualidade do seu trabalho de campo inviável sem precisas decisões metodológicas ou reformulações técnicas por sua vez impossíveis de serem realizadas sem um amplo lastro teórico mas na adoção de certos pressupostos positivistas não suficientemente desenvolvidos posteriormente 36 uma vasta aparelhagem em parte material em parte humana em parte espiritual com a ajuda da qual o homem é capaz de lidar com os problemas concretos específicos com que se defronta Esses problemas surgem do fato de que o homem tem um corpo sujeito a várias necessidades orgânicas e que ele vive num ambiente que é o seu melhor amigo visto que ele fornece as matériasprimas para o seu trabalho manual e é também um seu perigoso inimigo porquanto abriga muitas forças hostis MALINOWSKI 1970 p 42 Ou seja eis aí uma teoria que em primeiro lugar vincula a criação dos recursos culturais à satisfação de necessidades básicas ditadas pela biologia visando a manutenção da espécie humana aqui tomada na sua condição animal necessidades instrumentais Tal necessidade por sua vez geraria novos padrões culturais que imporiam ao homem em sociedade novos e secundários tipos de determinismo aqueles de caráter simbólico necessidades integrativas De posse de tais definições para Malinowski além de tomar uma cultura particular como todo coerente o etnógrafo deveria também especificar os determinantes gerais aos quais seu objeto de estudo deveria se conformar Esta metodologia poderia leválo também a uma série de predições normativas para a pesquisa de campo Notese aqui a busca de padrões de pesquisa verdadeiramente científicos para uma nova antropologia social que não mais considerava a cultura como colcha de retalhos leiase costumes dispersos e coletados pelos evolucionistas sociais como exemplos do primitivo ainda que não relacionados às realidades culturais específicas dos quais faziam parte Como vimos há pouco essencial nesta ciência proposta por Malinowski é a definição de relações claras entre realizações culturais e necessidades humanas biologicamente determinadas Precisamente aqui reside a importância do conceito de função enquanto satisfação de tais necessidades pela via de uma atividade instrumental e realizada em conjunto Aliás levando em conta este último aspecto para Malinowski a análise científica da cultura estaria incompleta se prescindisse de um outro conceito o de organização um esquema aplicável à totalidade dos grupos organizados Eis aqui exemplificada uma pretensão evolucionista que conforme propõe um autor como Kuper 1978 não teria sido totalmente abandonada por Malinowski a de alcançar universais do comportamento Desta feita visualizáveis nas instituições como unidades de cooperação humana 37 Neste sentido Malinowski insistia na necessidade de um acordo por parte da comunidade antropológica da época acerca da definição de uma unidade cultural concreta isto é visualizável no cotidiano dos povos estudados prérequisito para uma análise científica da cultura Isso não significaria apressase em dizer sugerir que todas as culturas seriam necessariamente idênticas ou que o antropólogo devesse desprezar as diferenças para se concentrar unicamente em padrões estáveis de conduta mas sim que a fim de compreender divergências é indispensável uma medida de comparação clara e comum 1970 p 45 Portanto cria Malinowski somente as análises funcional e institucional dariam conta de uma definição mais precisa exaustiva e concreta da cultura enquanto conjunto integrado de instituições parcialmente coordenadas e parcialmente autônomas mas unidas por princípios como o sangue comunitário o espaço geográfico a especialização de atividades e não menos importante o uso do poder político E mais tais princípios possibilitariam ao investigador relativizar a estranheza em geral atribuída às culturas diferentes da sua passando então a vislumbrar nestas últimas a existência de elementos culturais universais e constitutivos da espécie humana Enfim um movimento que iria do particular ao geral e do estranho ao universal mas cujo reconhecimento garantiria tanto a descrição quanto a explicação do exótico Em tal processo pondera Malinowski haveria ainda a necessidade de incluir a variável tempo enquanto elemento associado à mudança Com isso a evolução social e o difusionismo cultural passam agora a ser caracterizados como mudanças institucionais ou readaptações funcionais Neste sentido uma outra característica da análise funcional da cultura é a demonstração de que nenhuma invenção ou revolução cultural se dá à revelia leiase independentemente da criação de novas necessidades Em última análise a antropologia científica de Malinowski repousa no estudo concreto das instituições enquanto manifestações reais cotidianas e importante integrativas representando amplamente uma determinada organização social Nestes termos conforme seu autor não negaria totalmente a validade das pesquisas históricas ou evolucionistas mas as suplementaria através da incorporação de um referencial científico Toda esta reconstituição históricofilosófica se torna interessante na medida em que fornecendo ao leitor um quadro epistemológico geral pode lhe proporcionar ainda uma 38 compreensão adequada do principal objetivo do funcionalismo de Malinowski a partir da adoção de uma nova modalidade de pesquisa antropológica baseada na empiria de um contato efetivo íntimo e prolongado junto aos grupos estudados propor novos rumos para o desenvolvimento da análise da cultura até então permeada pelo preconceito especulativo que em larga escala caracterizou boa parte das escolas antropológicas anteriores18 Notese desde já a preocupação com o respeito ao outro em seus próprios termos sem inferências etnocêntricas princípio este que acabaria por demarcar sobremaneira o desenvolvimento de toda a antropologia posterior Conforme Laplantine a etnografia propriamente dita só começa a existir a partir do momento no qual se percebe que o pesquisador deve ele mesmo efetuar no campo sua própria pesquisa e que esse trabalho de observação direta é parte integrante da pesquisa A revolução que ocorrerá na nossa disciplina durante o primeiro terço do século XX é considerável ela põe fim à repartição das tarefas até então habitualmente divididas entre o observador viajante missionário administrador entregue ao papel subalterno de provedor de informações e o pesquisador erudito que tendo permanecido na metrópole recebe analisa e interpreta atividade nobre essas informações O pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve como aluno atento não apenas viver entre eles os nativos mas a viver como eles a falar sua língua e a pensar nessa língua a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo Em suma a antropologia se torna pela primeira vez uma atividade ao ar livre 1991 p 7576 Tal perspectiva que acabará por significar uma considerável reformulação na pesquisa antropológica até então desenvolvida responde pelo nome de uma orientação teórica específica o chamado Funcionalismo Como apontam Kuper 1978 Paluch 1981 e Durham 1978 1986 um conjunto coerente de idéias que embora os anteceda somente adquiriria consistência após os hoje famosos trabalhos de campo de Malinowski nas ilhas Trobriand os quais por sua vez somente se tornariam possíveis por intermédio da London 18 Para uma apreciação mais detalhada dos contrastes entre as perspectivas antropológicas evolucionista e funcionalista particularmente centradas nas figuras de James Frazer e Bronislaw Malinowski consultar o artigo de Leach 1966 Nele a partir de uma polêmica discussão acerca da real validade ou qualidade científicoliterária dos escritos de Frazer o autor passa em revista a vida e carreira do evolucionista inglês para ao mesmo tempo contestar tanto os seus métodos de trabalho quanto a relativa importância conferida à sua obra ainda na década de 1960 A partir daí como um contraponto imediato realiza um percurso semelhante desta feita voltado à biografia de Malinowski Neste sentido ressalta tanto a qualidade empírica da pesquisa de campo empreendida por este último quanto diretamente associada a esta o novo paradigma antropológico por ela instalado aquele do respeito à alteridade em que cada cultura somente faria sentido se considerada em seu contexto particular e não em comparação com outras sociedades supostamente mais ou menos evoluídas pois a humanidade enquanto espécie portadora de idênticas necessidades biológicas seria a mesma em todo lugar 39 School of Economics nova morada do então estudante polonês a partir de 191019 Vejamos como se passou esta história um pouco mais de perto A Antropologia Britânica do Início do Século XX e os Primórdios da Pesquisa de Campo Segundo autores como Kuper 1978 Durham 1986 e Stocking Jr 1992 a principal característica da antropologia britânica das primeiras décadas do século XX residiu em um esforço no sentido do acúmulo de dados haja vista que as generalizações conceituais evolucionistas e difusionistas até então vigentes começavam a se revelar inadequadas Daí o ressurgimento do empirismo inglês naquele contexto onde os fatos que deveriam ser coletados antes do completo extermínio dos povos primitivos falariam mais que as teorias A partir daí podemos melhor compreender a crescente necessidade da constituição de um trabalho de campo cientificamente consolidado no que contribuiu por exemplo a expedição organizada pela Universidade de Cambridge ao Estreito de Torres em 189899 onde cientistas como Haddon Rivers e Seligman ainda que parcialmente dependentes das opiniões de informantes davam um passo à frente em relação aos pesquisadores de gabinete no sentido da pesquisa in loco aquela orientada pelo contato efetivo junto aos povos estudados Para além do terreno inglês contudo também a antropologia norte americana influenciada pela meticulosidade das pesquisas etnográficas operadas pelo difusionismo de Boas passava por um processo semelhante Como nos mostra Durham É importante notar que todo esse período em que Malinowski inicia a sua carreira está marcado por uma enorme efervescência intelectual na antropologia A publicação no final do século XIX da obra de Spencer e Gillin sobre a Austrália baseada em material colhido diretamente com os nativos e a organização na mesma época da Expedição Cambridge ao Estreito de Torres abriram novas fronteiras para a antropologia Nessa mesma época nos Estados Unidos Boas promovia igualmente a pesquisa de campo construindo 19 Ainda em termos biográficos após haver deixado a Polônia e antes de chegar à Inglaterra Malinowski se fixou por aproximadamente dois anos em Leipzig Alemanha Segundo Kuper 1978 a influência deste período não deveria ser subestimada uma vez que lá além de aprofundar seus conhecimentos da sociologia durkheimiana Malinowski se tornou aluno de Wundt cuja Volkerpsychologie sumamente interessada pelas manifestações culturais forneceria em estado embrionário um princípio integrativo mais tarde adotado pelo funcionalismo 40 uma outra abordagem culturalista A experiência desses pioneiros acrescida da reflexão teórica de Durkheim formou uma nova geração de antropólogos que transformou profundamente a antropologia Malinowski é uma das figuras centrais dessa geração 1986 p 08 Com isso podemos deduzir que acompanhando a nova tendência o investigador de campo tinha de cada vez mais tornarse um especialista ou scholar verdadeiramente treinado em seu ofício Estava então configurado o contexto intelectual propício ao desenvolvimento das futuras pesquisas de Malinowski o qual como se pode notar embora não um pioneiro nos trabalhos de campo acabaria por estabelecer a particularidade da etnografia em termos de um contato tanto íntimo quanto prolongado com o nativo em seu próprio meio a ponto de ser classificado por Kuper 1978 como o primeiro antropólogo social britânico profissionalmente treinado a executar pesquisas intensivas dessa espécie p 18 Ainda assim a grande chance de Malinowski iniciar seus estudos de campo somente apareceu em 1914 quando então com 30 anos de idade este foi contemplado com uma bolsa de estudos que lhe possibilitou trabalhar por algumas semanas junto aos Mailu da Melanésia Na qualidade de súdito austríaco porém o início da primeira guerra mundial acabou por inviabilizar o seu retorno ao Reino Unido Assim aliando a isso uma certa insatisfação com os resultados da pesquisa anterior tanto em termos de método quanto de resultados Malinowski após uma breve retorno à Austrália aportou nas ilhas Trobriand da Nova Guiné em junho de 1915 lá permanecendo até maio de 1916 e depois retornando em outubro de 1917 para uma nova estada de um ano A experiência de campo realizada ao longo deste período acabou por se revelar crucial para o desenvolvimento da metodologia de trabalho que mais tarde tornaria Malinowski famoso graças à publicação de nada menos que sete monografias entre 1922 e 1935 Como veremos a seguir Argonautas do Pacífico Ocidental 1978 desempenhou um papel fundamental neste processo Antes porém de nos dedicarmos especificamente a este livro guardemos conosco outros dos ensinamentos de Durham Mas embora não se possa dizer que a experiência do trabalho de campo entre os trobriandeses tenha sido responsável pela orientação metodológica desenvolvida por Malinowski não resta dúvida que sua longa permanência entre os nativos e a enorme riqueza do material que coletou tiveram uma importância decisiva em toda a obra posterior E se os problemas básicos que marcam sua reflexão já se 41 encontravam esboçados nos trabalhos mais antigos é a vivência da situação da pesquisa de campo e a própria natureza da sociedade trobriandesa que forneceram os materiais sobre os quais desenvolveu no decorrer dos anos sua visão particular do objeto e dos métodos da Antropologia 1978 p 45 Com a Palavra os Argonautas a gênese da observação participante entre os nativos da Nova Guiné Ao iniciar esta análise do texto de Malinowski 1978 uma observação se faz necessária em se tratando de um trabalho riquíssimo em termos de dados etnográficos e de sugestões para reflexão não temos aqui a pretensão de abarcar todo o seu conteúdo Assim como exposto no início deste capítulo nosso olhar estará orientado para dois pontos específicos que são o estabelecimento e a exposição de princípios metodológicos regulares para a realização de um trabalho de campo verdadeiramente eficaz incluindose aí o papel da observação participante e estritamente associada a este aspecto a importância concedida à subjetividade do pesquisador em tal atividade Enfim questões de ordem metodológica mas que de forma alguma aparecem separadas de um contorno ético Com isso evidenciam ainda as idéias particulares de um autor que recusava ao cientista um papel de suposta neutralidade fornecendonos algumas pistas úteis Vamos a elas então É claro que podemos remontar por exemplo a Descartes 16371989 a utilização de autobriografias de cunho metodológico como um recurso retórico bastante útil em termos de propagação de idéias Contudo é inegável também que o esforço de Malinowski 1978 neste sentido guarda lá os seus encantos Desta maneira este último autor inicia sua introdução aos Argonautas por uma breve descrição das populações da costa e ilhas periféricas da NovaGuiné enquanto exímios navegadores comerciantes e artesãos Em seguida dada a natureza econômica ao menos a priori da pesquisa que deu origem ao livro em questão expõe ao leitor o tipo específico de comércio do qual se ocupará ao longo das páginas seguintes Tratase do Kula um sistema de trocas nativas que segundo Malinowski 1978 assumiria na cultura trobriandesa o estatuto de fenômeno central e que na perspectiva funcionalista e integradora adotada pelo etnógrafo polonês acabará por ser analisado em termos globalizantes Porém antes de se voltar prioritariamente à descrição do Kula em si Malinowski 1978 enfatiza um aspecto que muito nos interessa no momento a absoluta necessidade da 42 probidade etnográfica devendo o pesquisador de maneira didática tornar claros os métodos de coleta e obtenção de dados utilizados em seu trabalho Afinal pensa ele Os resultados da pesquisa científica em qualquer ramo do conhecimento humano devem ser apresentados de maneira clara e absolutamente honesta A etnografia ciência em que o relato honesto de todos os dados é talvez ainda mais necessário que em outras ciências infelizmente nem sempre contou no passado com um grau suficiente deste tipo de generosidade Muitos dos seus autores não utilizam plenamente o recurso da sinceridade metodológica ao manipular os fatos e apresentamnos ao leitor como que extraídos do nada Em obras deste tipo não há nenhum capítulo ou parágrafo destinado ao relato das condições sob as quais foram feitas as observações e coletadas as informações A meu ver um trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se nos permitir distinguir claramente de um lado os resultados da observação direta das declarações e interpretações nativas e de outro as inferências do autor baseadas em seu próprio bomsenso e intuição psicológica MALINOWSKI 1978 p 18 Cabe aqui nos remetermos ao contexto da época em que tais palavras foram escritas segunda década do século XX para com isso enfatizar a intenção de Malinowski 1978 em garantir um status científico a então embrionária pesquisa antropológica Aqui é tomado como referência o caráter controlado e replicável do método de trabalho utilizado pelas ciências naturais então mais consagradas junto aos cânones acadêmicos Tal preocupação vale lembrar advém de uma espécie de má reputação adquirida pela antropologia graças aos procedimentos adotados pelos primeiros teóricos da disciplina ainda no século XIX em pleno período da expansão imperialista européia Neste sentido a virulência crítica do trecho acima destacado tem um endereço certo É a chamada Escola Evolucionista que como vimos precedeu o particularismo funcionalista de Malinowski preocupandose em obter conclusões bastante generalistas as quais para os padrões da antropologia contemporânea além de carecerem de uma base empírica convincente refletiam certos posicionamentos etnocêntricos de seus autores baseados na noção de que a sua própria sociedade do tipo vitoriano situarseia no topo de uma suposta escala evolutiva da humanidade De volta ao trabalho de Malinowski 1978 alcançamos um trecho que seguramente pode ser tomado como clássico no métier antropológico Tratase de uma descrição em certo sentido poética e bastante sedutora acerca da grande aventura proporcionada pela pesquisa etnográfica que ao mesmo tempo brinda o pesquisador com deliciosas expectativas e descobertas mas também com recorrentes desânimos e frustrações 43 Interessante notar ainda duas outras presenças simultâneas e absolutamente imbricadas no texto do nosso scholar o rigor metodológico aliado à consciência do dever e à confissão subjetiva e autobiográfica Com a palavra o próprio autor O resto é por conta da imaginação Imaginese o leitor sozinho rodeado apenas de seu equipamento numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastarse no mar até desaparecer de vista Tendo encontrado um lugar para morar no alojamento de algum homem branco negociante ou missionário você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente seu trabalho etnográfico Suponhamos além disso que você seja apenas um principiante sem nenhuma experiência sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar pois o homem branco está temporariamente ausente ou então não se dispõe a perder tempo com você Isso descreve exatamente minha iniciação na pesquisa de campo no litoral sul da Nova Guiné Lembrome bem das longas visitas que fiz às aldeias durante as primeiras semanas do sentimento de desespero e desalento após inúmeras tentativas obstinadas mas inúteis para tentar estabelecer contato real com os nativos e deles conseguir material para a minha pesquisa Passei por fases de grande desânimo quando então me entregava à leitura de um romance qualquer exatamente como um homem que numa crise de depressão e tédio tropical se entrega à bebida MALINOWSKI 1978 p 19 Bronislaw Malinowski foi entre outras coisas um grande contador de histórias no melhor sentido do termo Assim prossegue descrevendo momentos outros da sua jornada como a chegada efetiva na aldeia os contatos com os nativos e os primeiros ensaios interpretativos acerca daquele todo aparentemente tão coerente em si mas tão estranho para um outsider como ele Entretanto para não se ater somente às dificuldades nosso guia discorre também sobre as saídas por ele encontradas para tentar alcançar uma coleta de dados minimamente satisfatória Com isso já que problemas de comunicação e linguagem impossibilitavam em um primeiro momento a obtenção de material vivo aquele proveniente das declarações da própria comunidade local acerca dos seus hábitos culturais surge a alternativa da procura por dados concretos e viabilizáveis por meio de recenseamentos genealogias esboços desenhos etc Uma outra aposta de Malinowski 1978 que apesar de supostamente promissora no início acabou por se revelar deveras frustrante foi o apelo por informações junto a alguns moradores brancos do distrito os quais por desinteresse ignorância ou preconceito pouco ou nada sabiam sobre as atividades aborígines Daí a constatação de que paradoxalmente os maiores progressos do antropólogo se dariam em meio ao isolamento transformandoo 44 em uma espécie de solitário em meio à multidão Tal afirmação contudo ao invés de significar um problema aparece aqui como apenas mais uma das características do que Malinowski denominou de a magia do etnógrafo aquela que lhe permitiria a surpreendente capacidade adaptativa e empática de evocar o verdadeiro espírito dos nativos 1978 p 20 20 É bem verdade que o sucesso dos mágicos profissionais depende de pelo menos dois aspectos um certo carisma e mística pessoais aliados à curiosidade do expectador e fundamentalmente a manutenção do segredo quanto ao pulo do gato Ou seja a obediência à regra de um estrito silêncio quanto às técnicas de ilusionismo que lhe conferem uma qualidade de ser quase sobrenatural Malinowski 1978 porém é mais generoso com seus leitores preocupandose nos parágrafos seguintes em revelar em alto e bom som ou melhor em palavras simples e didáticas as três unidades que segundo ele comporiam os princípios metodológicos de uma boa etnografia Em primeiro lugar o pesquisador deveria obter condições adequadas ao estudo etnográfico Isso seria viável mediante o afastamento dos seus próprios pares em um contato o mais próximo e íntimo possível com os grupos dos quais se ocupará em seu trabalho Por exemplo acampando dentro das aldeias destes últimos Para Malinowski 1978 uma atitude dessas forneceria a vantagem de um conhecimento e familiarização com a vida nativa bem superiores àqueles conseguidos via informantes pagos e estrangeiros à cultura local os quais como vimos há pouco em muitos casos agiriam de má vontade ou repletos de preconceitos Como exemplo desta proposta eis um trecho extraído dos Argonautas É enorme a diferença entre o relacionarse esporadicamente com os nativos e estar efetivamente em contato com eles Que significa estar em contato Para o etnógrafo significa que sua vida na aldeia no começo uma estranha aventura por vezes desagradável por vezes interessantíssima logo assume um caráter natural em plena harmonia com o ambiente que o rodeia Pouco depois de me haver 20 Há uma certa discussão acerca das eventuais diferenças entre os termos etnógrafo e etnólogo Aliás em uma nota de rodapé o próprio Malinowski 1978 p 22 precisa melhor o sentido destas expressões classificando o primeiro como empírico e descritivo ao passo que o segundo seguiria o rumo da teoria especulativa Já Kuper 1978 acrescenta ainda que estas divergências terminológicas refletiriam diferentes orientações teóricas com os etnólogos se aproximando da perspectiva difusionista ao contrário dos etnógrafos mais influenciados pelo funcionalismo Para os propósitos deste trabalho porém tais adjetivos serão utilizados de maneira basicamente indistinta o que acreditamos não prejudique o conteúdo geral do texto 45 fixado em Omarakana ilhas Trobriand comecei de certo modo a tomar parte na vida da aldeia a antecipar com prazer os acontecimentos importantes e festivos a assumir um interesse pessoal nas maledicências e no desenvolvimento dos pequenos acontecimentos da aldeia a acordar todas as manhãs para um dia em que minhas expectativas eram mais ou menos as mesmas que as dos nativos Com o passar do tempo acostumados a verme constantemente dia após dia os nativos deixaram de demonstrar curiosidade ou alarma em relação à minha pessoa nem se sentiam tolhidos com minha presença MALINOWSKI 1978 p 21 Apesar do seu otimismo quanto à possibilidade de uma real imersão identificação ou empatia com a cultura alheia o próprio Malinowski 1978 parece perceber também que em última instância este ideal é inalcançável Ou seja um sujeito socializado nos moldes acadêmicos ocidentais jamais poderia se tornar verdadeiramente um nativo das ilhas Trobriand e nem ser aceito por tal comunidade de uma maneira absolutamente plena O trecho a seguir também retirado dos Argonautas ilustra bem esta ponderação Sabendo que eu metia o nariz em tudo até mesmo nos assuntos em que um nativo bem educado jamais ousaria intrometerse os nativos acabaram por aceitarme como parte de sua vida como um mal necessário como um aborrecimento mitigado por doações de tabaco MALINOWSKI 1978 p 2122 Como podemos perceber é fundamental e recorrente esta relação entre subjetividade e pesquisa empírica a qual permeia variados trechos da introdução de Malinowski 1978 Assim passemos agora à segunda exigência feita pelo nosso autor para a constituição de uma pesquisa de campo satisfatória De cunho eminentemente fenomenológico ela reside na problematização da relação entre conhecimento teórico e práxis Em outros termos nosso autor evidentemente reconhece que o domínio sobre critérios cientificamente validados se constitui em condição sine qua non para um trabalho que pretenda ser levado a sério pela comunidade acadêmica Entretanto mais uma vez utilizando o exemplo dos evolucionistas sociais que o precederam Malinowski 1978 alerta para a necessidade da recusa a uma total submissão a este enquadramento enquanto idéia preconcebida Isso porque como mencionado anteriormente uma das maiores críticas hoje feitas aos primeiros antropólogos do século XIX é a de que de posse de um esquema previamente formulado acerca de como deveriam ser a vida e o pensamento dos nativos 46 utilizavase os relatos imprecisos de informantes e missionários muito mais para comprovar uma tese anterior do que para verificar a sua real plausibilidade Assim ainda que destacando os trabalhos de relevantes teóricos do seu tempo como Sir James Frazer e Émile Durkheim Malinowski 1978 insiste que no caso da pesquisa etnográfica caberia separar bem o joio do trigo ou seja a empiria da especulação Neste sentido insiste o etnógrafo polonês para além do preconceito a ciência antropológica deveria resgatar em sua análise a lógica da visão de mundo própria ao nativo e ainda a coerência da sua organização social relativizando com isso a suposta condição de primitivos ou selvagens para povos simplesmente diferentes Conhecer bem a teoria científica e estar a par de suas últimas descobertas não significa estar sobrecarregado de idéias preconcebidas Se um homem parte numa expedição decidido a provar certas hipóteses e é incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente abandonandoos sem hesitar ante a pressão da evidência sem dúvida seu trabalho será inútil Mas quanto maior for o número de problemas que leve consigo para o trabalho de campo quanto mais esteja habituado a moldar suas teorias aos fatos e a decidir quão relevantes eles são às suas teorias tanto mais estará bem equipado para o seu trabalho de pesquisa As idéias preconcebidas são perniciosas a qualquer estudo científico a capacidade de levantar problemas no entanto constitui uma das maiores virtudes do cientista MALINOWSKI 1978 p 22 Mais adiante é ainda dialogando com os evolucionistas que Malinowski 1978 defende a premissa fundamental que caracteriza a sua própria abordagem funcionalista um ideal de pesquisa baseado na totalidade e na completude sem conferir privilégios a características específicas ainda que exóticas da vida nativa mas sim partindo em busca de leis e padrões gerais que fornecessem um contorno claro e firme das culturas estudadas Enfim uma espécie de gestalt integrativa entre o todo e as partes Precisamente aqui tem início a terceira das recomendações feitas pelo etnógrafo polonês para a obtenção de uma química que garantisse a consistência da poção mágica a ser utilizada pelo antropólogo em seu ofício a aplicação de métodos específicos de coleta manipulação e registro de evidências Quanto a este aspecto uma perguntachave passa a ser a de como tentar estabelecer leis culturais se tais parâmetros não se encontram formulados ou cristalizados entre os nativos A resposta de Malinowski é clara coletando dados concretos sobre os fatos observados formulando a partir daí inferências gerais 47 Desta forma ao invés de questionamentos gerais e abstratos mais valeria tomar como referência um acontecimento concreto como um crime por exemplo para a partir daí interpelar a comunidade sobre quais os mandamentos ditados pela sua tradição Então uma vez que as reações individuais seriam orientadas pelo fato social coercitivo poderse ia em um movimento indutivo juntar opiniões e organizandoas em um todo coerente organizar princípios ordenadores da cultura21 Em tal processo que vale lembrar deveria abarcar não somente alguns fatos isolados mas todos os eventos que estivessem ao alcance do antropólogo seria mais bem sucedido pensa Malinowski 1978 aquele cujo esquema mental organizado sempre a partir da experiência empírica do contato etnográfico melhor pudesse ser encarnado em um esquema real com quadros sinóticos mapas planos e diagramas Estes por sua vez também deveriam dar conta do maior número possível de aspectos da vida dos grupos estudados incluindose aí a sua economia política religião etc Temos assim o método de documentação estatística por evidência concreta Neste ponto um aspecto interessante a ser destacado é a cobrança de Malinowski 1978 no sentido da utilização prévia deste novo método de apresentação de dados primeiramente no próprio etnógrafo separando assim os resultados obtidos pela via da observação direta daqueles outros que aquele porventura recebesse indiretamente no diálogo com os nativos Embora tal recomendação possa até nos fazer recordar a saga de Dr Jekyll Mr Hyde seguramente não contém em si nenhuma loucura Ao contrário aparece aqui como uma clara preocupação com a autenticidade dos variados elementos pertinentes ao trabalho de campo inclusive no que se refere à subjetividade do pesquisador a qual também deveria ser levada em conta na separação entre evidências concretas e inferências interpretativas Ao defender a construção de uma etnografia genuinamente científica porém Malinowski 1978 parece mais uma vez reconhecer os limites da empiria e da observação controlada ao procurar associar àquela uma característica que considera positiva nos trabalhos amadores a apresentação dos fatos íntimos do cotidiano nativo traço este menos 21 Interessante notar aqui o esforço de Malinowski em demonstrar a partir do seu próprio exemplo etnográfico a imbricada relação entre empiria e construção teórica Nestes termos a experiência vivida da alteridade o eu estive lá garantiria a validade científica tanto da tese escrita quanto das proposições metodológicas nela contidas surgidas não de especulações mas de problemas reais enfrentados e solucionados em campo 48 permeado pela objetividade e somente alcançável através de uma vivência estreita e prolongada junto ao outro Tratase portanto de transformar o verbo em carne e sangue preenchendo o esqueleto teórico e abstrato com a realidade proporcionada pelos risos e lágrimas característicos das relações humanas Aprendemos muito a respeito da estrutura social nativa mas não conseguimos perceber ou imaginar a realidade da vida humana o fluxo regular dos acontecimentos cotidianos as ocasionais demonstrações de excitação em relação a uma festa cerimônia ou fato peculiar Ao desvendar as regras e regularidades dos costumes nativos e ao obter do conjunto de fatos e de asserções nativas uma fórmula exata que os traduza verificamos que esta própria precisão é estranha à vida real a qual jamais adere rigidamente a nenhuma regra Os princípios precisam ser suplementados por dados referentes ao modo como um determinado costume é seguido ao comportamento dos nativos na obediência às regras que o etnógrafo formulou com tanta precisão e às próprias exceções tão comuns nos fenômenos sociológicos MALINOWSKI 1978 p 2729 Malinowski 1978 denomina de imponderáveis da vida real a estes acima referidos fenômenos impassíveis de registro estatístico mas cuja importância residiria na sua qualidade de cimento social Daí o clamor pela atenção do pesquisador aos aspectos íntimos da vida grupal diferente do quadro frio das relações sociais apresentadas em separado do seu contexto fenomênico original Com isso também atos aparentemente prosaicos como os rituais e confraternizações deveriam ser apresentados segundo o seu próprio tom e detalhes específicos e não somente enquanto esboços gerais Subjacente a estas afirmações aparece a sua intenção última atingir a atitude mental que neles se expressa 1978 p 2930 Mais uma vez portanto parece surgir no texto de Malinowski 1978 a crença em uma capacidade empática e camaleônica do antropólogo Sim aquele que vivendo junto ao diferente identificarseia com ele sentindo o que este sente e assim deixando de lado toda uma socialização prévia e moldada conforme o padrão acadêmico seria capaz de novamente se dirigindo aos seus pares traduzir a cultura alheia conforme expressa nas mentes individuais que a viabilizam Associado a esta proposta aparece um outro tema importante e que também muito interessa aos nossos propósitos aqui Em Malinowski 1978 tal exigência científica vem acompanhada de um novo reconhecimento o de que dificilmente seria possível brincar tão próximo ao fogo e permanecer incólume Em outras palavras para além da personalidade 49 nativa per se há aqui um retorno ao tema da inevitável influência da constituição psíquica do etnógrafo sua educação preferências anseios medos etc na realização de uma pesquisa de campo desta natureza a qual exigiria uma exposição e implicação consideravelmente maiores do que coletas de dados cristalizados como as do tipo survey Ainda assim preconiza Malinowski todo um esforço deveria ser feito no sentido de deixar que os dados falem por si mesmos 1978 p 31 De que maneira Registrando por escrito a observação dos fatos etnográficos logo em seguida à sua ocorrência e desde os primeiros contatos pois mesmo que certas manifestações culturais somente se tornassem perceptíveis após um certo tempo de convivência e adaptação junto aos costumes locais outras poderiam deixar de ser notadas conforme o grau com que nos familiarizamos com elas Paralelamente às anotações sobre os comportamentos mais típicos ditados pelas regras da tradição deverseia ainda registrar aqueles ligeira ou acentuadamente desviantes determinando assim os dois pólos de uma escala da normalidade Para a realização desta tarefa nada mais apropriado do que o diário etnográfico exaltado aqui como instrumento ideal e companheiro de viagem Agora fundamentalmente embora pondere que tal atitude de pesquisa orientada por um verdadeiro mergulho na vida nativa possa vir a não ser uniformemente bem sucedida permanecendo válida porém enquanto tentativa possível Malinowski 1978 recomenda aos seus leitores aprendizes de antropólogos que vez ou outra deixando de lado caderno lápis e máquina fotográfica objetos que caracterizam uma clara separação entre o universo do pesquisador e aquele dos povos que estuda entregassemse a uma verdadeira participação pessoal nas cerimônias brincadeiras jogos ou conversas comunitárias Desta maneira graças a tal interação poderiam obter uma visão mais clara do jeito de ser dos nativos em variados tipos de transações sociais Como já deve haver notado o leitor atento precisamente neste ponto da introdução de Malinowski aos Argonautas do Pacífico Ocidental 1978 chegamos à gênese do conceito de observação participante Em outras palavras o movimento do etnógrafo em termos de uma interação efetiva e profunda com o nativo de maneira a obter pela via de uma espécie de contato empático entre subjetividades uma reconstrução da realidade alheia a mais verossímil possível 50 De volta à nossa análise após passarmos em revista as preocupações metodológicas de Malinowski 1978 no sentido do registro e apreensão tanto do esqueleto estrutural da vida tribal representado pela sua tradição e por atos culturais previamente fixados quanto da sua carne e sangue referentes por sua vez a padrões mais ou menos variáveis de respostas comportamentais e cotidianas àquelas prescrições alcançamos o que se constituiria segundo nosso autor no terceiro e último objetivo da etnografia É o estabelecimento do espírito local A saber as idéias e definições dos nativos acerca do seu próprio sistema cultural Afinal em todo ato da vida tribal existe primeiro a rotina estabelecida pela tradição e pelos costumes em seguida a maneira como se desenvolve essa rotina e finalmente o comentário a respeito dela contido na mente dos nativos Tais idéias sentimentos e impulsos são moldados e condicionados pela cultura em que os encontramos e são portanto uma peculiaridade étnica da sociedade em questão Devese portanto empenhar em seu estudo e registro MALINOWSKI 1978 p 32 Assim como em suas propostas metodológicas anteriores mais uma vez Malinowski 1978 parece se mostrar consciente dos riscos embutidos nesta última sentença cujo objeto poderia soar demasiado vago ou indefinido Em sua defesa o autor dos Argonautas sustenta uma argumentação que já pode ser prévisualizada no trecho acima a da estereotipia dos pensamentos e emoções individuais os quais seriam antecipadamente configurados segundo os ditames da cultura Enquanto sociólogos não nos interessamos pelo que A ou B possam sentir como indivíduos no curso acidental de suas próprias experiências interessamonos sim apenas por aquilo que eles sentem e pensam enquanto membros de uma dada comunidade Sob esse ponto de vista seus estados mentais recebem um certo timbre formamse estereotipados pelas instituições em que vivem pela influência da tradição e do folclore pelo próprio veículo do pensamento ou seja pela língua O ambiente social e cultural em que se movem forçaos a pensar e a sentir de maneira específica MALINOWSKI 1978 p 32 É assim portanto que deveria ser compreendido o terceiro mandamento da pesquisa de campo em sua procura pela correspondência entre modos de pensar e sentir individuais e seus determinantes em termos de instituições sócioculturais Tomando por base o contorno verbal do pensamento nativo oferecido por trabalhos anteriores de colegas da Escola de Cambridge como Rivers e Seligman Malinowski 1978 sugere como método 51 útil para a viabilização desta empreitada a apresentação de termos de classificação advindos dos próprios nativos e ainda a citação literal de asserções importantes também produzidas por eles Em seguida porém demonstrando uma preocupação de contorno hermenêutico referendada pela sua própria experiência etnográfica e bem de acordo com o tipo de raciocínio metodológico que adota Malinowski 1978 enfatiza a necessidade do etnógrafo dar um passo adiante nesta linha de ação Afinal a tradução em muitos casos destituiria o termo nativo de várias das suas características essenciais Já a sua preservação ao contrário dependeria da familiarização e aprendizado da língua nativa por parte do pesquisador os quais habilitariamno a ser capaz de escrevendo e mesmo raciocinando em tal idioma utilizar este corpus inscriptionum como instrumento investigativo reproduzindo assim de forma a mais fidedigna possível a mentalidade e o espírito estrangeiros A introdução subjetivometodológica de Malinowski 1978 alcança então o seu fim com um resumo dos três caminhos viáveis para a obtenção de uma boa etnografia aquela que conforme a metáfora funcionalista incluiria o esqueleto a carnesangue e o espírito nativos Neste sentido temos primeiramente a exposição das regras culturais determinantes e solidamente constituídas pelos povos estudados o que poderia ser obtido por intermédio do método de documentação concreta e estatística Em termos complementares vem a análise da vivência cotidiana e efetiva destas prescrições marcada pelos imponderáveis da vida real e pelos tipos de comportamento mais ou menos desviantes devidamente registrados com o auxílio do diário etnográfico Finalmente a coleta das opiniões individuais acerca da incoerência deste todo tornada possível graças ao corpus inscriptionum e seu apanhado de asserções narrativas e fórmulas mágicas por exemplo Tudo isso visando aquela que se constituiria na finalidade última da pesquisa etnográfica sem esquecer toda a sua enorme carga subjetiva Em breves palavras esse objetivo é o de apreender o ponto de vista dos nativos seu relacionamento com a vida sua visão de seu mundo Estudar as instituições costumes e códigos ou estudar o comportamento e mentalidade do homem sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos quais ele vive e sem o intuito de compreender o que é para ele a essência de sua felicidade é em minha opinião perder a maior recompensa que se possa esperar do estudo do homem MALINOWSKI 1978 p 3334 52 Eis a tarefa certamente desafiadora proposta por Malinowski conciliar subjetividade e método em uma pesquisa etnográfica cuja pretensão totalizante visava abarcar não só a estrutura social mas o próprio espírito nativo Como interpretála Seria coerente em si mesma ou mostrarseia perdida a meio caminho entre influências românticas e positivistas ao reconhecer a unicidade das emoções e sentimentos tanto do nativo quanto do próprio cientista e simultaneamente parecer buscar cientificizálas cristalizandoas em esboços e quadros sinóticos generalizantes Como exposto no início deste capítulo a perspectiva funcionalista é bastante rica em seu caráter inovador principalmente se considerarmos a ideologia evolucionista ainda vigente à época início do século XX Precisamente por isso permanece viva e homenageada com sempre renovadas críticas As mais recorrentes dizem respeito a uma dificuldade de generalização teórica decorrente do tipo de metodologia adotada por Malinowski Neste sentido embora deixando de lado o método comparativo tradicionalmente desenvolvido pelos evolucionistas para propor descrições minuciosas de sociedades particulares autores como Durham 1978 demonstram que o etnógrafo polonês não abandona de todo uma pretensão universalista ao reduzir em grande parte as manifestações culturais à qualidade de respostas a necessidades de cunho biológico opção esta que empobrece o fértil solo aberto pelos seus trabalhos de campo Ou seja ainda conforme Durham 1978 a despeito dos avanços do funcionalismo como uma tentativa de análise sistemática da cultura que preserva as particularidades de cada grupo estudado esta teoria detém um caráter naturalista exageradamente otimista que em sua rigidez e finalismo biológico privilegia o equilíbrio e a estabilidade por intermédio das instituições Desta forma defrontase com grandes dificuldades no que se refere a temas como a mudança cultural e a patologia social Assim é que para DaMatta 1986 o grande perigo da sua utilização reside em tomar a forma pelo seu conteúdo desde que o pesquisador fique contente em apenas dizer que tudo tem de fato uma função e neste esquema acabe encaixando todos os costumes humanos dos mais patéticos aos mais cruéis Nessa perspectiva e distância correse o risco de deixar de lado o estudo do específico que afinal cada instituição também contém Por causa desta confusão B K Malinowski acaba por sucumbir às tentações do universalismo formalista propondo uma teoria da cultura onde o cultural surge como resposta funcional a certos impulsos eou motivações biológicas DAMATTA 1986 p 504 53 Finalmente para além do campo teórico é em termos éticos que Laplantine 1991 condena tal perspectiva científica da cultura por ocultar a realidade colonialista da década de 1920 Quanto a este aspecto as seguintes palavras de Richards 1943 acerca da relação entre a teoria funcionalista e o trabalho desenvolvido por Malinowski na África a partir de 1934 parecem bem representativas para ir de encontro às necessidades dos estudantes indo a trabalho nas sociedades em rápida transformação na moderna África ele adaptou seu approach teórico para o estudo dos contatos culturais e foi largamente responsável pela rápida difusão do interesse nas aplicações práticas da antropologia no terreno da administração colonial RICHARDS 1943 p 0222 Sem nos aprofundarmos na discussão quanto ao maior ou menor teor de verdade contido em tamanhas ressalvas esperamos haver realizado a contento a tarefa de percorrer junto ao leitor as trilhas que levaram os antropólogos a um contato cada vez mais efetivo e intenso com os seus grupos de estudo desde os primeiros teóricos de gabinete até o trabalho desenvolvido pelo autor de Argonautas do Pacífico Ocidental 1978 Mais do que isso esperamos haver tornado claro que o estabelecimento de tal técnica de trabalho não se deu ao acaso mas enquanto parte integrante de toda uma nova ética embutida na perspectiva de Bronislaw Malinowski Como enfatiza Durham 1978 tratase daquela que considera como principal tarefa da antropologia a reconstrução da realidade cultural alheia em seus próprios termos alcançando assim como vimos o ponto de vista do nativo Conforme demonstrado nos parágrafos anteriores a viabilidade de tal pretensão dependeria de um reconhecimento tanto da integração quanto da interdependência dos vários componentes e múltiplas determinações do chamado comportamento real Afinal neste estariam contidas não somente as leis reguladores da sociedade mas também a realização ou não destes mandamentos em termos de uma prática efetiva e ainda a reflexão por parte daqueles que vivem sob a sua tutela do significado destes princípios ordenadores para a vida cotidiana Eis aí definido o contexto favorável à compreensão da importância da observação participante do antropólogo uma vez que 22 No original in order to meet the needs of students going to work in the rapidly changing societies of modern Africa he adapted his theoretical approach to the study of culture contacts and was largely responsible for the rapid spread of interest in the practical applications of anthropology in the field of colonial administration trad nossa MRS 54 nesta abordagem o próprio observador é parte da observação pois é em si o instrumento capaz de recriar subjetivamente para analisar objetivamente a experiência subjetiva do observado A observação participante preconizada por Malinowski constitui justamente uma técnica destinada a promover este processo DURHAM 1978 p 167 Pois bem ocorre que a despeito de fornecer as bases metodológicas da antropologia moderna ou precisamente por isso este observar participando acabaria por adquirir ao longo dos anos um duplo caráter proporcionando também a margem para a crítica pós moderna aos pressupostos desta disciplina próximo objeto do nosso estudo Antes porém cabe fazermos um breve passeio pelos campos da Hermenêutica ramo da filosofia que incorporado sobremaneira pela atual discussão antropológica muito nos interessará a partir de agora A Virada Hermenêutica e o novo Paradigma Antropológico Do grego hermeneutikós declarar interpretar traduzir a Hermenêutica surgiu como uma área do saber originalmente ligada à exegese dos textos sagrados que mais tarde no século XIX sob a influência inicial de Schleiermacher e Dilthey alcançaria o status de importante vertente da filosofia englobando o sentido mais amplo de uma completa metodologia visando o entendimento da produção humana em geral verbal e não verbal antiga e contemporânea Neste sentido de forma a estabelecer um contraponto imediato em relação ao iluminismo de Kant o qual isolava o conhecimento da sua dimensão vivida em busca de uma razão pura Dilthey resgata a consciência metafísica do homem expressa por sua vez em uma dimensão histórica que englobaria componentes vitais como o sentimento e o desejo de ação Assim este último autor construiu seu método pela fundamental distinção entre a maneira como compreendemos um objeto e uma outra pessoa resumindo ainda tal distinção com duas categorias de contraste baseadas na explicação e compreensão as chamadas Naturwissenschaft ciências da natureza e as Geistswissenschaft ou ciências do espírito PALMER 1969 Tal saber gerou uma série de conceitos particulares Dentre eles podemos citar o foco no contexto histórico e psicológico do autor ou agente a ênfase na individualidade do objeto a ser estudado a delimitação do objeto como alguma forma de expressão humana a 55 análise do texto ou documento enquanto totalidade de significado na qual a parte e o todo são compreendidos de forma interdependente círculo hermenêutico além da noção de que o entendimento somente se configuraria enquanto um diálogo entre intérprete autor e texto ou agente DILTHEY 1976 Entretanto a despeito do avanço em relação a Kant dada a inclusão da variável histórica no âmbito do conhecimento humano a perspectiva de Dilthey ainda permaneceria partidária da busca de um objetivismo que no seu caso específico acabaria por se revelar incongruente Isso graças à conceituação da tarefa hermenêutica como reconstituição de uma verdade interpretativa supostamente contida na intenção original de um autor Em tal contexto a chamada experiência vivida funcionaria como algo dado à observação empírica e o conceito de reviver acabaria por se assemelhar ao da observação praticada pelas ciências naturais Nestes termos garantirseia ao conhecimento interpretativo fornecido pelas ciências do espírito a veracidade de uma cópia reproduzida por uma consciência isolada e isenta de subjetivismos A seguinte passagem extraída do trabalho de Bleicher 1992 ilustra bem o conteúdo desta ressalva à teoria hermenêutica clássica de Dilthey Considerando as objectivações históricas como aquisições que podem ser decifradas com o auxílio de técnicas hermenêuticas Dilthey não conseguiu fazer jus à sua caracterização da relação intérpretetexto como uma relação sujeitosujeito estilizandoa na familiar relação sujeitoobjeto O preço da garantia de um grau de objectividade no estudo das expressões de uma outra mente é a incapacidade de dar o passo do conhecimento histórico para a experiência histórica ou conhecimento hermenêutico quer dizer Dilthey estava demasiado preocupado em salientar a necessidade e o valor de assumir uma posição crítica em relação ao passado e também em tentar garantir uma posição objectiva para esta realização Esta posição revelanos Dilthey como filho do Iluminismo e na senda da tradição cartesiana mas ela levao a ignorar o desafio que um objecto histórico pode lançar às concepções e valores do intérprete e a fechar os olhos à necessidade de autoreflexão em que o sujeito se compenetra da sua dívida para com a tradição e a linguagem como bases e meios do seu pensamento BLEICHER 1992 p 40 Assim é que já no século XX a Hermenêutica voltaria a se tornar alvo das reflexões de importantes figuras do pensamento contemporâneo como Martin Heidegger e seu discípulo direto HansGeorg Gadamer Porém não mais aprisionada pela busca da reconstituição objetiva da experiência vivida e sim revitalizada pela perspectiva do restabelecimento de uma abertura de sentido entre o mundo científicotecnológico e aquela 56 outra dimensão da nossa experiência que menos manipulável ou controlável demandaria simplesmente respeito Com isso levandose em conta a fundamental importância da linguagem e da tradição no âmbito do processo interpretativo buscouse evitar um aprisionamento do movimento criativo de cada nova interpretação resgatando ainda a dimensão préontológica do conhecimento em detrimento da tentação apofântica da adequação entre sujeito e predicado ou seja entre o que se propõe e o que é Para Gadamer 1992 por exemplo não restariam dúvidas de que o horizonte geral do passado enquanto fonte dos parâmetros orientadores da cultura do presente influenciaria os nossos desejos e esperanças do futuro Eis uma dívida para com Heidegger a história só se faria presente em nós em face da nossa futuridade É desta forma que Gadamer se preocupa em reabilitar a noção de preconceito do caráter negativo a ela atribuído pelo Iluminismo do século XVIII Ainda segundo Gadamer 1992 porém reconhecer o valor dos preconceitos não significa necessariamente submeter a eles o potencial criativo e inovador da experiência Portanto não se trata de propor uma anticiência mas sim um resgate da imaginação phantasie e do desejo do conhecimento como os pilares do trabalho investigativo Em outros termos para além da repetição e certeza buscadas e ao mesmo tempo impostas pelo método caberia ao investigador saber apreciar o benefício oferecido pela dúvida combustível e motor do pensamento Eis portanto a consciência produzida pela história aparecendo aqui na qualidade de uma construção lingüística articuladora do mundo que proporciona a esquematização inicial para as nossas possibilidades cognitivas Neste sentido para além da mera repetição essa mesma história aparece ainda como possibilidade de vida e produtividade A Hermenêutica assim inserirseia em um contexto dialógico entre a nossa imersão em um mundo já previamente interpretado papel da linguagem e o potencial reorganizador desta tradição representado pela nossa própria experiência de vida Com isso deduzse que tal reconhecimento da necessária vinculação entre compreensão Verstehen e linguagem jamais nos deveria conduzir a uma posição dogmática que trata esta última como um sistema hermético de sinais com função unicamente comunicativa já que assim 57 acabaríamos com o seu infinito potencial criativo por sua vez associado à nossa experiência do mundo enquanto movimento e liberdade23 Mas deve estar se perguntando o leitor como se deu a apropriação deste saber pelos antropólogos Uma visão histórica e panorâmica deste processo nos é fornecida por Cardoso de Oliveira 1988a que inspirado na reflexão heideggeriana acerca do SER da Filosofia postula que também a antropologia na sua costumeira prática etnográfica rumo ao outro seria portadora de um instrumental que lhe permitiria alcançar uma tal compreensão de si mesma somente acessível mediante o espanto ou o auto estranhamento24 Neste sentido Cardoso de Oliveira 1988a nos convida a refletir sobre as seguintes questões o que é a antropologia O que torna possível aos antropólogos se espantarem com o próprio saber Teria o seu já secular estranhamento diante do outro embotado historicamente a possibilidade do confronto consigo mesmos A resposta do nosso autor para esta última pergunta vem na forma de uma sonora negativa e é neste sentido que ele adota como objeto de estudo a própria disciplina antropológica enquanto uma espécie de cultura ditada pela formação profissional Com isso pretende captar a essência das tradições que cultivamos e muitas vezes cultuamos inscrita nos paradigmas quem sabe nossos mitos que conformam aquilo que se poderia chamar de matriz disciplinar da antropologia 1988a p 15 De forma a realizar tal tarefa Cardoso de Oliveira 1988a recorre inicialmente a uma técnica estrutural de constituição de campos semânticos caracterizando preliminarmente duas tradições antropológicas distintas as quais denomina de intelectualista e empirista Em seguida realiza um cruzamento entre estas e a categoria tempo em termos de sincronia ou diacronia Segundo o autor em sua associação binária e 23 Novamente segundo Bleicher 1992 um terceiro movimento interpretativo a Hermenêutica Crítica daria prosseguimento a algumas destas preocupações Porém rumo a uma crítica ideológica orientada pelo Marxismo e pela Psicanálise O esmiuçamento desta e de outras tendências mais recentes contudo excede as pretensões do presente estudo De qualquer forma em termos de referências bibliográficas além do trabalho de Bleicher 1992 há pouco citado uma outra boa introdução ao pensamento hermenêutico está disponível ao leitor de língua portuguesa em Coreth 1975 24 Tratase da hoje relativamente conhecida conferência de Martin Heidegger intitulada Que é isto a Filosofia proferida na Normandia em 1955 e que pode ser encontrada pelo leitor brasileiro em HEIDEGGER M Coleção Os Pensadores 2ª Ed São Paulo Abril Cultural 1983 Dentre outros aspectos este texto chama atenção pelo seu caráter delimitador quanto à nova démarche que dali em diante ditaria o rumo das idéias do filósofo alemão em direção a uma hermenêutica orientada para o esmiuçamento dos temas da tradição e da linguagem o chamado segundo Heidegger 58 antinômica estas duas perspectivas englobariam todas as possibilidades paradigmáticas inscritas na matriz No caso a antropológica O resultado desta combinação seria a demarcação de quatro paradigmas básicos por sua vez associáveis aos nomes de pelo menos quatro figuras centrais da antropologia moderna 1 Do cruzamento entre a tradição intelectualista e a perspectiva sincrônica teríamos enquanto um primeiro domínio o paradigma racionalista representado pela chamada Escola Francesa de Sociologia Durkheim 2 Já esta mesma sincronia desta feita cruzada com a tradição empiricista resultaria no paradigma estruturalfuncionalista característico da Escola Britânica de Antropologia Rivers 3 O empiricismo porém em se aliando à diacronia causaria o paradigma culturalista em geral associado à Escola HistóricoCultural Norte Americana Boas 4 Fechando este círculo a prole do casamento entre o intelectualismo e a diacronia antropológicos responderia pelo nome de paradigma hermenêutico um caçula também com nacionalidade americana Geertz Conforme Cardoso de Oliveira 1988a em maior ou menor escala os três primeiros paradigmas representariam os princípios norteadores de uma razão iluminista que sem levar em conta a dimensão histórica que abarca o encontro etnográfico orientaria os seus esforços na busca de um conhecimento científico pretensamente objetivo Nestes termos o recurso cartesiano ao método fecharia as portas a uma maior intromissão da subjetividade na atividade da pesquisa antropológica Já o quarto e último paradigma se constituiria como reação àquela mesma razão Alfklärer esclarecida sendo responsável inclusive por uma certa desordem na matriz disciplinar da antropologia Isso ocorreria graças a um processo de transformação do tempo em categoria interiorizada e bilateral válida portanto e simultaneamente para os universos do pesquisador e do pesquisado o que acarretaria no fim da anulação da posição histórica do hermeneuta agora pensada como condição inerente ao próprio percurso do 59 conhecimento antropológico Como nos mostra novamente Cardoso de Oliveira 1998b desta feita em um outro trabalho O quarto paradigma de nossa matriz disciplinar que chamei de hermenêutico abre seu espaço na antropologia primeiramente por uma negação radical daquele discurso cientificista exercitado pelos três outros paradigmas em segundo lugar por uma reformulação daqueles três elementos que haviam sido domesticados pelos paradigmas da ordem a subjetividade que liberada da coerção da objetividade toma sua forma socializada assumindose como inter subjetividade o indivíduo igualmente liberado das tentações do psicologismo toma sua forma personalizada portanto o indivíduo socializado e não teme assumir sua individualidade e a história desvencilhada das peias naturalistas que a tornavam totalmente exterior ao sujeito cognoscente pois dela se esperava fosse objetiva toma sua forma interiorizada e se assume como historicidade Esses três elementos assim reformulados passam a atuar como fatores de desordem daquela antropologia que os interpretativistas tendem a chamar de antropologia tradicional sustentada pelos paradigmas da ordem CARDOSO DE OLIVEIRA 1988b p 97 Contudo apesar do que pode parecer à primeira vista Cardoso de Oliveira 2000 estabelecendo uma diferença entre a sua proposta e aquela anteriormente feita por Kuhn 1962 sustenta que em se tratando da antropologia um paradigma o hermenêutico compreensivo não necessariamente substitui o outro o racionalistaexplicativo Na verdade ambos sobreviveriam em simultaneidade E mais mantendo cada um a sua validade e maneira própria de apreensão da realidade social Com isso o mútuo reconhecimento e a tensão dele resultante é pensado aqui como benéfico à atualização da disciplina como um todo Com a introdução pelo paradigma hermenêutico de alguma desordem na matriz disciplinar constituída originalmente pelos paradigmas orientados pelas ciências naturais o que se viu foi uma sorte de rejuvenescimento da disciplina e isso graças ao aumento da tensão entre os paradigmas circunscritos na matriz se já havia essa tensão entre os primeiros paradigmas com a inclusão do último ela aumentou em escala dinamizando extraordinariamente a antropologia de nossos dias Portanto nunca é demais insistir que a hermenêutica não veio para erradicar os paradigmas hoje chamados tradicionais mas para conviver junto a eles tensamente constituindo uma matriz disciplinar efetivamente viva e produtiva CARDOSO DE OLIVEIRA 2000 p 64 Ainda assim é bem verdade Cardoso de Oliveira 1988a 1988b alerta para o dever de mantermos nossos olhos sempre abertos a eventuais distorções e modismos que poderiam ocasionar um desenvolvimento perverso deste processo como por exemplo 60 um certo interpretativismo também qualificado como pósmoderno recentemente desenvolvido pela antropologia norteamericana a partir do quarto paradigma Este porém é um outro tópico a ser abordado mais adiante Antes devemos nos ater ao próprio Clifford Geertz figura a qual como sugerido há pouco coube o papel principal na tarefa de buscar adaptar o tipo de orientação filosófica que caracteriza a teoria hermenêutica ao campo de estudos próprio à antropologia sóciocultural Neste sentido as seguintes palavras de Michael Fischer também ele um representante contemporâneo desta antropologia interpretativa servem como um bom preâmbulo para a nossa tarefa seguinte que é a de nos situarmos no projeto geertziano Antropologia interpretativa é um rótulo recente e talvez uma tendência substantiva que corresponde a uma iniciativa aparentemente cristalizada na Universidade de Chicago no anos 60 sob a liderança de David M Schneider e Clifford Geertz mas que interessou ativamente quase todo corpo docente Na época tendiase a chamar essa iniciativa de várias maneiras antropologia cultural em oposição a social ou antropologia simbólica Simbólica cultural interpretativa todas essas denominações se reportam ao debate do século dezenove na Alemanha sobre o papel da Verstehen compreensão na metodologia das ciências sociais A questão inicial era a já eterna há em princípio uma diferença entre os métodos das ciências naturais e os das ciências humanas ou sociais Faziase o esforço de combinar através da noção de Verstehen as metas científicas de objetividade com o reconhecimento de que pelo fato de os homens refletirem sobre o que fazem e agirem de acordo com essas reflexões é difícil tratálos meramente como objetos FISCHER 1985 p 56 Clifford Geertz a antropologia por sobre os ombros do nativo A reviravolta teóricometodológica operada por Clifford Geertz muito provavelmente o antropólogo mais lido da atualidade começou a ganhar projeção ao longo da década de 60 tendo como singular companhia o processo de descolonização que como vimos há pouco acabaria por minar o tipo de etnografia colonial até então constituída Seguramente a antropologia não saiu ilesa deste encontro Assim vale a pena nos determos em algumas das principais características da obra deste antropólogo norteamericano Ou dito de outra forma do modo como este se apropriou dos princípios fundamentais da teoria hermenêutica que expomos anteriormente diferenciando assim a sua perspectiva do tipo de antropologia anteriormente preconizada por Malinowski Neste sentido a leitura de alguns textos do próprio Geertz 1989a 1989b 1997a 1997b bem como dos trabalhos de 61 comentadores da sua obra como Shankman 1984 e Azzan Jr 1993 certamente nos fornecerá um bom material de análise Em primeiro lugar podemos destacar a pretensão de Geertz em efetuar uma verdadeira mudança paradigmática no terreno da antropologia de forma que esta e por derivação a própria ciência social mais ampla passasse a se ocupar não mais de leis e instâncias como totalidades explicativas mas sim de casos culturais específicos enquanto possibilidades de interpretações particulares microscópicas Eis um movimento que vai da explicação à compreensão e do objetivismo ao intersubjetivismo Com relação às ciências sociais o que isto significa é que a falta de personalidade que lhes era atribuída e freqüentemente lamentada não as separa mais das outras ciências Mas tudo isto é para o bem geral livre da obrigação de erguerse às custas da taxonomia já que ninguém mais os ergue os indivíduos que se consideram cientistas sociais ou comportamentais ou humanos ou culturais podem agora moldar seu trabalho de acordo com as necessidades que estes apresentem e não para satisfazer percepções externas sobre aquilo que devem ou não fazer muitos deles adotaram uma abordagem essencialmente hermenêutica Os bosques estão hoje repletos de intérpretes entusiasmados GEERTZ 1997a p 3537 Tal reorientação teóricometodológica vem necessariamente acompanhada de um novo conceito de cultura agora uma atividade simbólica significativa e não analisável simplesmente pela via dos comportamentos apresentados pelos seus personagens em si mesmos mas pelas teias de significado que a permeiam de maneira particular Mais uma vez nos termos de Geertz O conceito de cultura que eu defendo e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar é essencialmente semiótico Acreditando como Max Weber que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise portanto não como uma ciência experimental em busca de leis mas como uma ciência interpretativa à procura do significado 1989a p 15 Nesta perspectiva um grande valor passa a ser concedido às metáforas e analogias particularmente as retiradas das humanidades em detrimento daquelas outras oriundas das ciências naturais O conhecimento antropológico portanto adquire novo status A explicação interpretativa concentrase no significado que instituições ações imagens elocuções eventos costumes ou seja todos os objetos que 62 normalmente interessam aos cientistas sociais têm para seus proprietários Por esta razão seus instrumentos de trabalho não são leis como as de Boyle nem forças como as de Volta ou ainda mecanismos como os de Darwin mas sim construções como as de Burckhardt Weber ou Freud Todas elas no entanto representam esforços para formular conceitos que expliquem como este ou aquele povo este ou aquele período esta ou aquela pessoa fazem sentido para si mesmos e quando este processo tornase claro buscam explicações para a ordem social para mudanças históricas ou para o funcionamento psíquico de um modo geral Os instrumentos do raciocínio estão se modificando Representa se a sociedade cada vez menos como uma máquina complicada ou como um quaseorganismo e cada vez mais como um jogo sério um drama de rua ou um texto sobre comportamento GEERTZ 1997a p 3738 No trabalho de Geertz em particular a metáfora privilegiada é a literária com a cultura sendo tomada na qualidade de uma espécie de texto ou contexto a ser interpretado Assim a tarefa do antropólogo se aproxima daquela pertinente às atividades do exegeta ou do filólogo Quais as implicações deste postulado Fundamentalmente a determinação do caráter histórico e situacional portanto interessado da compreensão humana a qual se constitui apenas na e pela tradição Em outros termos a interpretação aparece aqui sempre como uma interpretaçãopara Vale a pena chamar atenção a este aspecto porque precisamente ele nos conduz a uma outra importante talvez a principal daí figurar no subtítulo com qual inauguramos esta seção característica da antropologia interpretativa de Geertz o reconhecimento da impossibilidade de uma leitura absolutamente clara ou objetiva acerca da cultura do outro Em outros termos não interessa à descrição densa de Geertz a dimensão última do comportamento humano ou seja o que este representaria de fato Ao invés disso sugere o nosso autor vale mais a pena levarmos em conta o significado a ele atribuído pelos membros de uma determinada comunidade inclusive porque aquela primeira tarefa de natureza ontológica está inelutavelmente interditada ao antropólogo já que somente o próprio nativo aquele que verdadeiramente experiencia a sua cultura deteria desta última uma interpretação de primeira mão25 Ao etnógrafo restaria então uma compreensão de natureza no mínimo secundária Portanto por sobre os ombros do nativo 25 É neste sentido que podemos compreender a crítica de Geertz ao que considera como as falácias behaviorista e cognitivista No caso da primeira particularmente a psicologia comportamental do tipo skinneriano a sua falha residiria em seu caráter simplista ao considerar o valor do comportamento em si mesmo tomandoo ao pé da letra Já a segunda pecaria por uma crença exacerbada na capacidade empática da ciência tomando as práticas culturais como fenômenos mentais acessíveis ao pesquisador através de métodos formais e emprestados da lógica e da matemática Ao antropólogo interpretativista caberia então a tarefa de se situar na cultura do outro não com o objetivo de alcançar causas determinantes para o comportamento 63 A cultura de um povo é um conjunto de textos eles mesmos conjuntos que o antropólogo tenta ler por sobre os ombros daqueles a quem eles pertencem Existem enormes dificuldades em tal empreendimento abismos metodológicos que abalariam um freudiano além de algumas perplexidades morais Esta não é a única maneira de se lidar sociologicamente com as formas simbólicas O funcionalismo ainda vive e o mesmo acontece com o psicologismo Mas olhar essas formas como dizer alguma coisa sobre algo e dizer isso a alguém é pelo menos entrever a possibilidade de uma análise que atenda à sua substância em vez de fórmulas redutivas que professam dar conta dela as sociedades como as vidas contêm suas próprias interpretações É preciso apenas descobrir o acesso a elas GEERTZ 1989b p 321 Sem dúvida esta é uma decorrência bastante importante da perspectiva desenvolvida por Geertz Resta ainda o seu complemento imediato a assunção de que considerandose que o antropólogo jamais alcançaria verdadeiramente o ponto de vista do nativo uma vez que sua análise já estaria necessariamente orientada por conceitos previamente definidos pela sua própria cultura ou tradição não restaria então à monografia etnográfica uma qualidade outra que não a de ficção Conforme Geertz 1989a Resumindo os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e na verdade de segunda e terceira mão por definição somente um nativo faz a interpretação em primeira mão é a sua cultura Tratase portanto de ficções ficções no sentido de que são algo construído algo modelado o sentido original de fictio não que sejam falsas nãofatuais ou apenas experimentos de pensamento Convencerse disso é compreender que a linha entre o modo de representação e o conteúdo substantivo é tão intraçável na análise cultural como é na pintura GEERTZ 1989a p 26 Mas podese perguntar como exatamente Geertz lida com todas estas questões Como ainda assim pretende alcançar qualquer tipo de objetividade repudiando ao mesmo tempo as explicações antropológicas que o precederam e as falácias cognitivista e psicologista Em outros termos temos aqui mais uma vez diante de nós a famosa discussão acerca do ponto de vista dos nativos alheio e nem de tornarse nativo penetrando em seu universo mental mas sim buscar uma espécie de alargamento discursivo Aqui as seguintes passagens se tornam bastante elucidativas Situarnos um negócio enervante que só é bemsucedido parcialmente eis no que consiste a pesquisa etnográfica como experiência pessoal Não estamos procurando pelo menos eu não estou tornarnos nativos O que procuramos no sentido mais amplo do termo que compreende muito mais do que simplesmente falar é conversar com eles o que é muito mais difícil Visto sob esse ângulo o objetivo da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano GEERTZ 1989a p 2324 64 Cabe guardarmos conosco tal expressão pois ela confere parte do título de um outro trabalho de Clifford Geertz do qual nos ocuparemos a seguir de maneira mais detalhada Sua escolha se justifica a nosso ver por se tratar de uma exposição clara de vários dos temas que vimos debatendo até aqui Na verdade uma reflexão posterior do próprio Geertz sobre questões pertinentes à sua obra que inclusive guarda uma certa proximidade com a psicanálise O que entretanto torna o trabalho em questão mais interessante aos nossos propósitos é o fato de este estabelecer um contraponto direto entre a proposta geertziana e o tipo de antropologia anteriormente difundida por Malinowski Do Ponto de Vista de Geertz o Ponto de Vista dos Nativos Ao iniciar seu texto nosso autor adota como ponto de partida a seguinte indagação de cunho epistemológico se não é graças a algum tipo de sensibilidade extraordinária a uma capacidade quase sobrenatural de pensar sentir e perceber o mundo como um nativo como é possível que antropólogos cheguem a conhecer a maneira como um nativo pensa sente e percebe o mundo GEERTZ 1997b p 86 Para Geertz 1997b a melhor forma de colocar o problema é vêlo pela ótica de dois conceitos ambos elaborados pelo psicanalista Heinz Kohut experiênciapróxima e experiênciadistante O primeiro deles corresponde àquilo que podemos denominar de uma visão de dentro Ou seja a definição usada sem esforço por um nativo para qualificar o que seus semelhantes sentem Já o segundo é a ferramenta utilizada pelos especialistas de qualquer tipo de forma a organizar seus objetivos científicos filosóficos ou práticos Por exemplo amor pertence ao reino da experiência próxima Já catexia em um objeto de experiência distante Portanto tratase aqui de uma oposição em termos de grau mas não de mútua exclusão Assim de acordo com a antropologia interpretativa um conceito não aparece como necessariamente melhor do que o outro Tomálos desta maneira seria por um lado aprisionarse em um emaranhado vernacular Por outro perderse em abstrações Com isso Geertz 1997b propõe que reflitamos sobre os papéis desempenhados pelos dois conceitos na análise antropológica Enfim como utilizálos de forma que nossa interpretação de um 65 modus vivendi não se torne nem limitada pelos horizontes mentais daquele povo nem que fique sistematicamente surda às tonalidades de sua existência GEERTZ 1997b p 88 Desta forma diznos Geertz 1997b fazse mister que passemos a uma outra ordem de questões ao invés de conjeturarmos acerca de que tipo de constituição psíquica camaleônica inclusive seria ideal para os antropólogos que nos perguntemos qual a melhor maneira de levar adiante uma pesquisa antropológica e de organizar seus resultados Tratase enfim de abandonarmos a possibilidade de qualquer espécie de empatia espiritual para com outras almas que para si mesmas são absolutamente singulares e que a partir daí tentemos simplesmente descobrir que diabos eles acham que estão fazendo GEERTZ 1997b p 89 Em última análise ninguém sabe isso melhor do que o próprio nativo Só que esse pensamento não nos confere o direito à ilusão de querer nadar na corrente das suas experiências nem de achar que algum dia fizemos tal coisa Neste sentido ainda segundo Geertz 1997b para estes mesmos nativos as idéias e as realidades que elas representam estão naturalmente unidas a experiência próxima Porém o etnógrafo não consegue perceber exatamente aquilo que seus informantes percebem O que ele percebe ou pode vir a perceber mesmo que com certa insegurança é o com o que ou através de que os outros percebem Em decorrência disso afirma Geertz 1997b não cabe ao antropólogo buscar entender o que as pessoas sentem mas como ou seja graças a que teias simbólicas elas constroem a sua visão de mundo e de si mesmas Portanto para entender os outros se faz necessário que ao invés de tentarmos encaixar as experiências e concepções destes na moldura das nossas deixemos de lado as nossas concepções e busquemos ver as experiências dos outros em si mesmas ou melhor relacionandoas com a própria rede simbólica que as concebe Com isso criase uma oposição entre teia simbólica observável e espírito nativo a ser incorporado Porém retornando à nossa questão principal vejamos o que esta discussão nos diz sobre o ponto de vista nativo Ou nas palavras do próprio Geertz O que é exatamente que afirmamos quando declaramos compreender os meios semióticos através dos quais nesses casos as pessoas se definem e são definidas pelas outras que 66 entendemos as palavras ou que entendemos as mentes 1997b p 105 Respondendo a esta pergunta nosso autor observa que o movimento intelectual característico e o ritmo conceptual interno de cada uma dessas análises é um bordejar dialético contínuo entre o menor detalhe nos locais menores e a mais global das estruturas globais de tal forma que ambos possam ser observados simultaneamente GEERTZ 1997b p 105 Aqui saltamos de uma visão da totalidade através das partes sinédoque para o seu inverso buscando que uma seja a explicação para a outra naquilo que Dilthey 1976 chamou de círculo hermenêutico Neste sentido Geertz 1997b se esforça em demonstrar que tal raciocínio é tão essencial em etnografia quanto em interpretações literárias psicanalíticas ou bíblicas aproximando mais uma vez a análise cultural da leitura e interpretação de textos Eis o porquê do nosso autor se intitular um etnógrafo de significados e símbolos que tem sempre em mente duas perguntas básicas como é a sua maneira de viver e quais são os veículos através dos quais tal maneira de viver se manifesta De maneira conclusiva vêse que o interpretativismo geertziano sugere um entendimento do outro um relato de subjetividades que não necessariamente oblitera o ego alheio e nem tampouco toma o seu lugar sentindo o que este sente Isso porque em tal proposta a compreensão Verstehen depende da análise de modos de expressão de sistemas simbólicos e não de almas O caminho de Geertz 1997b vai portanto da recusa à tese da empatia antropológica especial marca constituinte do tipo de autoridade etnográfica instituída por Malinowski à proposta de uma análise da teia simbólica e textual das culturas evidenciada em variadas posturas e instituições que forneceria ao nativo a sua concepção de mundo e de si mesmo Assim após passarmos em revista este trabalho particular de Geertz 1997b tomado aqui como um bom exemplo da natureza do seu pensamento é chegado o momento de fazermos uma espécie de balanço geral das suas idéiasCom efeito tornase impossível não enfatizar o caráter inovador e a sedutora lógica própria desta nova modalidade de antropologia Entretanto como veremos adiante também ela é passível de algumas ressalvas 67 Desta forma autores como Shankman 1984 questionam a dubiedade da pretensão gnoseológica de Geertz seria a teoria interpretativa uma ciência ou o que Em caso afirmativo haveria aí muitos problemas a solucionar em termos da elucidação de critérios para a verificação de um boa ou má interpretação Como enfim afirmar algo verdadeiro sobre o outro ou mesmo escolher entre duas ou mais propostas contrárias sobre um mesmo povo Tratase portanto de critérios obscuros de verificação Quanto a este aspecto prossegue Shankman 1984 Geertz parece apelar à peculiaridade de cada caso o que resultaria em uma confusa mistura entre descrição e explicação Que tipo de generalizações podemos esperar daí Como alcançar um conhecimento acumulativo Eis as questões sugeridas em passagens como a seguinte Embora Geertz seja bem claro quanto às diferenças entre a teoria interpretativa e a ciência normal leiase natural o vocabulário por ele empregado permanece uma fonte de preocupação Argumentando que uma completa objetividade seja impossível mas também que não se pode simplesmente deixar os sentimentos fluírem livremente Geertz deixa em aberto uma área talvez mais ampla sobre a qual a imaginação intelectual pode vagar Ao mesmo tempo não nos oferece nenhuma clarificação acerca do status ontológico do conhecimento obtido pela via do exercício da interpretação cultural qualificando este assunto como pouco importante Geertz parece mais interessado em sugerir uma ciência da interpretação do que em desenvolvêla de um modo rigorosamente sistemático SHANKMAN 1984 p 26426 Ontologia portanto aparece aqui como uma palavrachave É precisamente com base nela que Shankman 1984 talvez de uma maneira exageradamente pessimista prevê um futuro pouco promissor para o projeto intelectual desenvolvido por Geertz Segundo aquele autor a antropologia interpretativa padeceria já na atualidade do mesmo câncer por ela diagnosticado nas teorias antropológicas do tipo explicativo pretender realizar um estudo da cultura com base em padrões ou modelos de análise previamente estabelecidos e que não dariam conta do caráter fenomenológico da vida enquanto movimento 26 No original Although Geertz is quite clear about the differences between interpretive theory and normal science the vocabulary that he employs remains a source of concern Arguing that complete objectivity is impossible but that one cannot simply let ones sentiments run loose Geertz leaves a rather large area over which the intellectual imagination can roam At the same time he offers no clarification of the ontological status of knowledge gained in the exercise of cultural interpretation regarding this issue as unimportant Geertz seems more concerned with suggesting a science of interpretation than with developing it in a systematic rigorous fashion trad nossa MRS 68 O que parece estar ocorrendo no desenvolvimento do trabalho de Geertz é dificilmente surpreendente Ao se tornar mais criptográfica a análise do significado parece ter adquirido o mesmo caráter elusivo que a teoria funcional detinha 20 anos atrás e que a análise estrutural portava há pouco mais de uma década Há mais e mais descrições exóticas etnografias mais densas e detalhadas mas estas não parecem produzir um maior desenvolvimento teórico Ao invés disso conduzem à intensificação de um padrão préexistente um padrão que está se tornando progressivamente involuído Garantidos às idéias os adjetivos de atraentes excitantes e até mesmo glamourosas a avaliação da teoria não é simplesmente uma questão de gosto Há a possibilidade de que a teoria interpretativa permaneça como pouco mais que um estilo uma moda um gênero SHANKMAN 1984 p 26927027 Já segundo Azzan Jr 1993 que apoiandose em autores consagrados como P Ricoeur e J L Austin analisa as antropologias estruturalista e interpretativa através de trechos das obras dos seus principais representantes LéviStrauss e Clifford Geertz toda hermenêutica que se pretenda autêntica deveria alcançar obrigatoriamente três instâncias significativas a do autor a do objeto e a do leitor Todavia a proposta de Geertz falharia nestes dois últimos aspectos e tal fracasso remontaria a uma contradição primeva e relativa à sua própria constituição enquanto projeto intelectual a pretensão em se apoiar simultaneamente na semiótica de Pierce e na hermenêutica tomando neste caso a tradição alemã de Dilthey como principal influência Desta maneira tal interpretação da cultura não levaria a hermenêutica às últimas conseqüências porque a despeito de se ocupar dos temas do significado e da interpretação a semiótica pelo menos em certa medida psicologizaria a busca do significado preocupada que estaria com a subjetividade do intérprete Já a hermenêutica na sua acepção moderna enquanto teoria do sentido e da ação não seguiria este mesmo caminho libertando o significado agora objetivado daquele que o originou Deixemos o próprio Azzan Jr 1993 esclarecer a sua hipótese Qualquer teoria que se coloque a tarefa de interpretar e se pretenda caudatária de uma hermenêutica cultural não pode resvalar nos perigos do psicologismo 27 No original What seems to be happening in the development of Geertzs work is hardly unexpected As the analysis of meaning has become more cryptographic it seems to have acquired the same elusiveness that functional analysis had 20 years ago and that structural analysis had a little over a decade ago There are more and more exotic descriptions denser more detailed ethnographies but they do not seem to yield greater theoretical development Instead they lead to an intensification of an already existing pattern a pattern that is becoming increasingly involuted Granted that the ideas are alluring exciting and even glamorous the assessment of theory is not merely a matter of taste There is the possibility that interpretive theory will remain little more than a style a fashion a genre trad nossa MRS 69 Como a semiótica peirciana coloca essa problemática pois o psicologismo é aí recuperado com função explicativa não parece muito adequado à antropologia interpretativa de Geertz Chegase à conclusão de que Geertz inspirase numa hermenêutica declaraa em seus princípios interpretativos assumindo algumas de suas características mas não leva adiante seu projeto inclusive por não haver adequação quanto à linguagem em que expressa suas conclusões Parece de fato trabalhar intenções hermenêuticas mas com um léxico semiótico A semiótica peirciana que ele toma como base como léxico não coteja teoricamente as características necessárias a uma hermenêutica Seria necessário para tal uma teoria da ação AZZAN JR 1993 p 148153 Neste sentido ainda na perspectiva de Azzan Jr 1993 o texto geertziano acabaria utilizando a descrição como um recurso empírico excessivo visando com isso atenuar a falta de uma sustentação teórica mais adequada O tiro no entanto sairia pela culatra porque desta maneira Geertz demasiadamente atrelado ao campo do significado desprezaria a ação enquanto importante elemento hermenêutico Com isso além de conferir pouca voz ao ator ou nativo o antropólogo norteamericano deixaria ainda de provocar em seu leitor terceiro componente da tríade hermenêutica o outro seria o autor no caso o próprio Geertz a possibilidade de novas interpretações Em outros termos faltaria à teoria geertziana o sentido de uma ação interativa que verdadeiramente permitisse ao leitor a liberdade de um movimento que o conduzisse à perpetuação da infindável tarefa hermenêutica da busca pelo significado Finalmente ainda no campo teórico Azzan Jr 1993 sustenta que ao seguir a tradição inaugurada por Dilthey Geertz aposta na diferença e mútua exclusão entre a explicação e a compreensão Desta forma seu projeto careceria ainda de uma maior maleabilidade como aquela obtida por representantes mais modernos da filosofia hermenêutica como P Ricoeur o qual trataria os conceitos em questão como pólos complementares É precisamente neste terreno das críticas ao projeto geertziano que pode ser compreendida a chamada antropologia pósmoderna próximo objeto do nosso estudo Em uma espécie de relação edipiana seus principais representantes a grande maioria norteamericanos a despeito de terem as suas idéias inspiradas na antropologia interpretativa de Geertz parecem pretender assassinar o pai totêmico demarcando os limites do tipo de análise da cultura proposta por este autor e simultaneamente estabelecendo os rumos de uma nova etnografia de cunho experimental Ouçamos a seguir o que têm a nos dizer estas vozes emergentes qual o tipo de relação que estabelecem entre 70 si mesmas e as modalidades antropológicas das quais tratamos até o momento e principalmente até que ponto são responsáveis pela constituição deste pathos etnográfico que objeto maior do nosso interesse convoca a psicanálise para um encontro possivelmente produtivo Os PósModernos a antropologia por sobre os ombros do antropólogo Como insinua o título deste capítulo o contraponto entre realidade e ficção parece mesmo se constituir na molamestra de boa parte das discussões antropológicas da atualidade onde é bem verdade a modalidade etnográfica desenvolvida por pioneiros como Malinowski volta ao centro das atenções Porém não mais associada ao glamour da construção de heróis da cultura Ao contrário disso a nova postura vem marcada pela iconoclastia de destruir aqueles ídolos do passado que supostamente se sustentariam em pés feitos de barro Dentre eles o próprio Geertz Eis aí portanto plenamente configurado o pathos que associamos à discussão antropológica contemporânea Neste sentido a irrepreensibilidade da conduta etnográfica que caracterizava por exemplo o funcionalismo de Malinowski e sua pretensão cientificizante de uma explicação completa e fidedigna dos diferentes universos culturais cede ao menos em parte lugar a um outro tipo de discurso que consciente das suas limitações ontológicas promove o afastamento de um ideal de correção e integridade visando não exatamente o convencimento do seu público mas conduzilo a uma espécie de experiência de natureza mitopoética onde o explicar é substituído pelo evocar28 As seguintes palavras de Marcus e Fischer 1986 dois dos maiores representantes desta antropologia crítica podem nos oferecer uma idéia mais clara deste processo O atual escopo dos experimentos contemporâneos na escrita etnográfica deriva do impacto que a revisão da antropologia interpretativa vem tendo no processo da pesquisa etnográfica A tensão essencial que preenche este tipo de 28 Há vários trabalhos em língua portuguesa voltados ao pósmodernismo etnográfico cada um deles enfatizando pontos específicos desta nova tendência da discussão antropológica Cf FISCHER 1985 TEDLOCK 1986 PEIRANO 1986 1992 e 1995 TRAJANO FILHO 1988 CARDOSO DE OLIVEIRA 1988a 1988b e 1991 MARCUS 1991 e 1994 MONTERO 1991 e 1993 SILVA 1991 e 2000 DAMATTA 1992 e 1993 CLIFFORD 1998 SAHLINS 2004 Contudo àquele leitor interessado em textos que abordem o tema de uma maneira mais panorâmica boas opções podem ser encontradas na abrangente revisão bibliográfica efetuada por Caldeira 1988 e também no artigo de Canclini 1993 71 experimentação reside no fato de que a experiência tem sido sempre mais complexa do que permite a sua representação pelas tradicionais técnicas de descrição e análise da escrita sóciocientífica A tarefa deste tipo de experimentação é assim a de expandir as fronteiras existentes no gênero etnográfico de maneira a escrever mais completas e mais ricas descrições evocativas de uma outra experiência cultural MARCUS e FISCHER 1986 p 434429 Uma vez minimamente caracterizada a natureza do empreendimento etnográfico pósmodernista resta ainda situar o leitor no terreno das suas principais propostas Para tanto como se pode notar pela citação acima será necessário efetuar um contraponto entre esta nova tendência da antropologia contemporânea e as outras orientações teórico metodológicas que acompanhamos até o momento Neste sentido uma revisão bibliográfica como a de Marcus e Cushman 1982 merece destaque ao evidenciar a particular atenção fornecida pela contemporaneidade antropológica norteamericana à escrita do texto etnográfico e à própria etnografia agora vista como atividade que ultrapassa o trabalho de campo como um produto da pesquisa que não se restringe a uma simples questão de método Em outros termos tratase de uma reação às convenções etnográficas sobre as quais parece haver se estabelecido um certo consenso tácito por aproximadamente 60 anos Trata se ainda de uma experimentação que visa provocar a reestruturação da natureza da etnografia em termos de ambições teóricas e práticas de pesquisa É neste sentido que se pode também associar o pósmodernismo etnográfico a uma preocupação de ordem epistemológica que opera com a consciência da construção textual do outro Como expresso na seguinte citação A maior característica compartilhada pelas etnografias experimentais é que elas integram no interior das suas interpretações uma explícita preocupação epistemológica acerca de como elas construíram tais interpretações e de como as estão representando textualmente enquanto um discurso objetivo acerca dos indivíduos entre os quais a pesquisa foi conduzida a meta de explorar temas epistemológicos enquanto parte integral e vital da análise da cultura distingue estes textos e em decorrência está tornando seus autores bem como seus 29 No texto original The actual scope of contemporary experiments in ethnographic writing follows from the impact that the revision of interpretive anthropology is having on the ethnographic research process The essential tension fueling this kind of experimentation resides in the fact that experience has always been more complex than the representation of it that is permitted by traditional techniques of description and analysis in socialscientific writing The task of this trend of experimentation is thus to expand the existing boundaries of the ethnographic genre in order to write fuller and more richly evoked accounts of other cultural experience trad nossa MRS 72 leitores progressivamente conscientes das suas estruturas narrativas e retórica MARCUS e CUSHMAN 1982 p 252630 Neste contexto a representação das experiências de campo se torna uma técnica vital para a estruturação de narrativas de descrição e análise com trabalhos orientados por uma escrita pessoal com maior presença do autor e em busca de novas metas e convenções retóricas mais plausíveis Por exemplo ao invés dos grandes projetos explicativos que englobavam vários volumes característicos do pioneirismo do realismo etnográfico à la Malinowski as pesquisas contemporâneas pretendem se revelar menos pretensiosas e mais voltadas a problemas específicos acrescentando à atividade do etnógrafo contudo uma gama extra de tarefas descritivas e interpretativas Ao darem prosseguimento à sua análise Marcus e Cushman 1982 enfatizam entretanto o caráter nãohomogêneo dos experimentos contemporâneos o que se reflete em diferentes aproximações dos princípios básicos da etnografia enquanto descrição e interpretação das culturas Em outras palavras vemos que há entre os próprios representantes do pósmodernismo antropológico diferenças de abertura quanto às convenções de gênero até então aceitas como determinantes na escrita sobre o outro Que tipo de convenções são essas Bem para melhor compreendêlas e também o próprio movimento da etnografia pósmoderna Marcus e Cushman 1982 nos propõem um retorno aos clássicos da antropologia período constituído sobretudo a partir da década de 1920 e que em uma referência direta ao tipo de literatura que caracterizou o século XIX nossos autores denominam de realismo etnográfico O que o determina bem como as suas convenções textuais Estes são alguns dos tópicos abordados a seguir quando o artigo dos antropólogos norteamericanos traça um paralelo histórico do desenvolvimento do realismo etnográfico enquanto conjunto de convenções retóricas que marcaram a antropologia de uma época até a contemporaneidade de uma veemente reação a estes mesmos gêneros de escrita 30 Conforme o original The major characteristic shared by experimental ethnographies is that they integrate within their interpretations an explicit epistemological concern for how they have constructed such interpretations and how they are representing them textually as objective discourse about subjects among whom research was conducted the goal of exploring epistemological issues as an integral vital part of cultural analysis distinguishes these texts and in addition is making their authors as well as their readers increasingly conscious of their narrative structures and rhetoric trad nossa MRS 73 Neste sentido ao buscarem no diálogo com a crítica literária uma ampla fonte de inspiração podemos perceber que as ressalvas dos antropólogos pósmodernistas vão de encontro a alguns temas específicos da prática etnográfica como a questão da identidade e da autoridade do etnógrafo Além disso problematizam as garantias de plausibilidade e autenticidade das interpretações feitas acerca de outras culturas e a sua receptividade por diferentes tipos de leitores Finalmente visam ainda o fornecimento de modalidades alternativas para a escrita antropológica de acordo com novas perspectivas acerca da teoria e do trabalho de campo De volta ao texto de Marcus e Cushman 1982 vale a pena chamar atenção para o fato de os autores apontarem como principal característica do chamado realismo etnográfico a pretensão de representar universos culturais específicos em termos globais fornecendo ao leitor uma descrição fechada e completa do cotidiano nativo e das suas relações pessoais e institucionais Para tanto utilizavase como recurso uma divisão da sociedade em setores específicos política religião economia etc e a partir daí propunhase a alusão ao todo por intermédio das partes enfatizandose ainda uma grande quantidade de detalhes e demonstrações redundantes de que o autor realmente esteve lá Ainda segundo Marcus e Cushman 1982 a emergência de tal etnografia de cunho realista enquanto um gênero de escrita plenamente estabelecido teria sido resultante da fusão de dois eventos históricos particulares A saber o estabelecimento da antropologia como disciplina acadêmica e por uma questão de legitimação em termos de objeto e método de trabalho a instituição da pesquisa de campo profissional a qual alcançou o status de prérequisito necessário para a obtenção de dados culturais A partir daí Marcus e Cushman 1982 passam à tarefa de uma identificação detalhada das convenções de gênero que segundo eles caracterizam o tipo de escrita da etnografia realista Dentre os vários tipos listados nove ao todo podemos citar a narrativa global totalitária e generalista a ausência da escrita na primeira pessoa visando a objetividade científica sustentada pela distância entre sujeitos e objetos da pesquisa a substituição do nativo particular de carne e osso por uma criação homogênea e representativa do grupo como unidade mais ampla e a descrição detalhada das situações e experiências de campo uma questão de legitimação da prática etnográfica pela via do estar lá Além destes predicados sugerem os nossos autores havia ainda uma busca 74 autoritária e autoconfiante no sentido de alcançar o ponto de vista dos nativos já que representar uma outra realidade seria também ter acesso à qualidade dos pensamentos dos seus membros o uso de jargões específicos que confeririam a determinado texto o título de etnografia e finalmente uma exegese contextual dos conceitos e discursos nativos evidenciando a competência lingüística do etnógrafo31 Diante disso Marcus e Cushman 1982 utilizando o contraste como recurso didático passam a se ater às características específicas dos novos experimentos etnográficos Neles um aspecto seguramente merece destaque especial a preocupação com o exame explícito dos bias ou preconceitos do antropólogo que refletidos na sua escrita e na sua retórica teriam sido responsáveis pela construção do tipo de autoridade profissional à qual nos referimos nos parágrafos anteriores Desta maneira para os autores em questão o que caracteriza o pósmodernismo etnográfico é fundamentalmente a busca por um outro tipo de autoridade agora construída em um contexto hermenêutico e pautado pela reflexão e pela autoconsciência autorais Aqui a experimentação se evidencia pela maior inclusão do etnógrafo em seu próprio texto inclusão essa que equivale a situar o pesquisador historicamente tanto em relação aos seus leitores e pares acadêmicos quanto no que se refere aos próprios objetos do seu saber os nativos Neste contexto a nova autoridade etnográfica e os novos tipos de organização textual escolhidos não mais visam seduzir ou instruir pela organização e pelo detalhe Ao invés disso utilizandose de uma perspectiva desconstrucionista propõem uma certa 31 Ao leitor interessado nesta discussão acerca da dimensão retórica contida na prática etnográfica duas boas outras fontes de informação podem ser encontradas em Stocking Jr 1992 e Clifford 1988 Segundo este último um contato como o de Malinowski junto aos nativos da Nova Guiné teria revelado ao antropólogo polonês textos culturais de natureza frouxa retalhos do mundo que incongruentes em si mesmos deveriam ser transformados em cenas coerentes e prováveis Assim para unificar seria preciso combinar selecionar e reescrever tais textos caóticos Nesta perspectiva a etnografia de Malinowski seria exemplar enquanto processo de automodelagem ficcional em um sistema relativo de cultura processo este encarnado na monografia dos Argonautas resultando tanto na produção de uma ficção quanto na emergência de uma persona cultural o próprio Malinowski enquanto representante de um novo estilo antropológico Ainda conforme Clifford 1988 importaria chamar atenção ao fato de que tal persona aquela dotada da chamada magia do etnógrafo não seria exatamente construída no campo mas sim posteriormente Em outros termos não representaria mas sim racionalizaria a pesquisa junto ao outro contando para isso talvez mais com a ajuda da escrita do que com a sua experiência etnográfica propriamente dita Portanto já nos termos de Stocking Jr 1992 a validação do estilo de trabalho de campo proposto por Malinowski estaria ligada a uma qualidade literária e figurativa aquela de conseguir transportar o leitor a um lugar mágico e determinado pela fenomenologia da experiência etnográfica ao mesmo tempo repleta de riscos e de promessas utilizando o recurso literário da magia do etnógrafo para suprimir em seu texto lacunas de ordem epistemológica 75 anarquia ou embaralhamento das cartas com textos menos formais ou assépticos que na sua necessária incompletude exigem do leitor um papel ativo na interpretação do outro Assim seguindo Marcus e Cushman 1982 tornase possível pensar atualmente em pelo menos dois estilos de apresentação de dados mais ou menos combináveis entre si ambos vale dizer diretamente relacionados à maneira como o próprio autor se insere no texto etnográfico Falamos do modo textual e do modo dialógico O primeiro típico do realismo etnográfico e partidário de um modelo purista de ciência social seria marcado pela abstração com o etnógrafo interessado em performances nativas mas sem levar em conta contextos performáticos específicos onde ele mesmo estaria presente enquanto participante direto alterando assim em maior ou menor escala a realização do evento original Já o modelo dialógico mais próximo do que Marcus e Cushman 1982 classificam como um tipo de mentalidade associada não exatamente à Ciência mas às humanidades primaria pela maior concretude na ligação entre o texto etnográfico e o dado bruto agora situado e contextualizado na própria interpretação que dele se faz Neste sentido temos aqui a imagem de um antropólogo mais atento ao fato de que o bojo da análise etnográfica residiria em uma negociação de verdades entre o pesquisador e o nativo Exemplo de um trabalho especificamente voltado a esta temática pode ser encontrado no pioneirismo de Crapanzano 1977 o qual toma a etnografia como um confronto gerador de ansiedade uma inevitável perturbação em termos de self entre o etnógrafo e seus informantes permanecendo a escrita etnográfica como uma continuação deste confronto Ou seja em seu retorno para casa seria inevitável ao antropólogo sentir um choque intercultural tão ou mais difícil que o próprio encontro inicial com a alteridade Daí a necessidade de uma reafirmação reconstituição do próprio self tarefa a ser cumprida precisamente pela escrita etnográfica Para Crapanzano 1977 qualquer escrita incluindose aí a etnográfica seria em si um ato de comunicação Portanto um apelo ao reconhecimento por parte do outro o qual inclusive constituiria o sentido do self daquele que escreve confirmando a sua significação dono mundo Em contrapartida também este outro seria constituído através do ato comunicativo Assim no caso específico da escrita 76 a evocação da resposta do outro e portanto a constituição do self e do seu mundo de significado é reificada no seu produto a palavra escrita O self é objetivado na palavra escrita e enquanto o self é objetivado também o é o outro CRAPANZANO 1977 p 7132 De acordo com esta perspectiva propõe Crapanzano 1977 que em se tratando da etnografia o escritor usaria as palavras para falar a si mesmo ainda que pretendendo ser ouvido O ato da escrita etnográfica seria então uma tentativa de constituição do self uma disposição rumo à sua objetivação ainda que sob o peso da alienação Aliás teríamos nesta última na alienação uma característica inevitavelmente associada à escrita que mais do que a criação objetivação ou constituição seria em sua natureza um ato de exorcismo da figura do etnógrafo do confronto estabelecido pelo encontro etnográfico Diante de tal argumento perguntase Crapanzano 1977 quem seria este outro utilizado pelo etnógrafo como uma espécie de espelho ou contraponto para a constituição do seu próprio self de escritor Admitindose como correta a afirmação anterior acerca do caráter multidimensional do outro prossegue Crapanzano 1977 este representaria mais do que o nativo ao qual supostamente se voltaram os esforços do etnógrafo mas também não figuraria entre a platéia leiga ou profissional para a qual se dirigiria o etnógrafo ao retornar ao seio da sua comunidade acadêmica O predicado deste outro seria mais complexo Na verdade bifurcado O outro da etnografia é sugiro eu um outro essencialmente mais complexo um outro bifurcado Ele é de uma só vez o outro significante do próprio mundo cultural do etnógrafo e o outro do confronto etnográfico O escritor de etnografias escreve e cria uma dupla audiência a da sua própria gente e aquela das outras pessoas às quais ele se refere em um ato de suposição ou mesmo presunçosa incorporação como minha gente A escrita da etnografia e isso deve ter um efeito na objetividade senão na validade científica do trabalho é essencialmente uma formação de compromisso CRAPANZANO 1977 p 7233 32 No original the evocation of the response of the other and the constitution thereby of the self and his meaningful world is reified in its product the written word The self is objectivated in the written word and insofar as the self is objectivated the other is also trad nossa MRS 33 No original The other of ethnography is I suggest an essentially more complex other a bifurcate other He is at once the significant other of the ethnographers own cultural world and the other of the ethnographic confrontation The writer of ethnography writes and creates a double audience the audience of his own people and the audience of those other people whom he refers to in an act of presumptive if not patronizing incorporation as my people The writing of ethnography and this must have an effect upon the objectivity if not the scientific validity of the work is essentially a compromise formation trad nossa MRS 77 Com isso em um diálogo com a psicanálise Crapanzano 1977 atinge o que parece se constituir no ponto alto do seu trabalho como vimos esta atribuição da qualidade de formação de compromisso à escrita etnográfica Neste sentido nosso autor propõe que a ambivalência do etnógrafo em relação às suas duas outras audiências a nativa e a dos seus próprios pares acadêmicos bem como em relação a si mesmo enquanto personalidade afetada pelo encontro etnográfico e que agora retorna para casa seria trabalhada precisamente no texto etnográfico em uma espécie de dialética entre a criação e a destruição o encantamento e o exorcismo a qual por seu turno precisaria ser desvelada assim como se faz com as estruturas míticas e oníricas objetos privilegiados pela psicanálise Em última análise sugere Crapanzano 1977 caberia ao etnógrafo reconhecer o seu produto etnográfico a própria monografia pelo que este seria de fato o sintoma de um confronto extremo com a alteridade que somente seria melhor aclarado pela via de uma leitura verdadeiramente corajosa daquilo que ele mesmo o etnógrafo deita sobre o papel Ao dar prosseguimento a esta perspectiva Dwyer 1977 questiona o tipo de objetivação dos outros e de si mesmos criada pelos antropólogos em suas monografias particularmente no que se refere àqueles momentos em que a qualidade da interação social com os nativos poderia ser posta sob suspeita em termos de relações de poder Neste sentido o foco do trabalho deste autor recai sobre o tema da criação antropológica da alteridade partindo em busca de uma nova orientação etnográfica onde não mais se distorcesse a relação entre o self e o outro violentando assim a prática de ambos já que a insistência etnográfica no respeito à particularidade paradoxalmente criaria tanto um outro quanto um self antropológicos congelados e já previamente definidos Na sua crítica ao que qualifica como o típico encontro etnográfico aquele cego à natureza criativa da interação humana ao seu status ontológico de comunicação crescente entre pessoas Dwyer 1977 parte em defesa de uma historicidade e diálogo próprios à pesquisa de campo Ou seja respeitados na sua particularidade temporal e não generalizáveis despersonalizados em absoluto Esta seria a condição básica para uma aproximação com a natureza criativa do encontro intercultural Logo contra os tipos até então criados pela prática antropológica o outro como uma abstração universal ou abstração particular Dwyer 1977 propõe um novo tipo de interação entre antropólogo e nativo a qual denomina de outro como concretude singular 78 Há aqui um apelo à concretude da experiência mútua sem reduzila a um lugar ditado pela atemporalidade ou pela abstração que conforme este autor caracterizaram a antropologia que até então se pretendeu científica Nestes termos não caberia negar a diferença singularidade mas antes afirmála elaborála e articulála na monografia antropológica Conforme Dwyer 1977 a possibilidade de uma reconciliação entre o antropólogo e o nativo seria gerada a partir do encontro etnográfico e não de maneira independente a este Com isso um retardamento da reconciliação com a diferença expressa no outro adquiriria um grande potencial criativo em termos da realização do próprio self do antropólogo e da transcendência do self do outro Para Dwyer 1977 tal articulação da alteridade através de uma experiência criada em conjunto evitaria tanto a justaposição conceitualizada de exemplos ou espécimes de diferentes culturas visão relativista quanto a idéia de um projeto comum entre o eu e o outro que graças a uma imagem de absoluta transparência permitiria ao etnógrafo a ilusão da verdadeira partilha de um universo simbólico diferente do seu A emergência de um modo concreto e singular de alteridade chama atenção às suas próprias origens na relação entre centro e periferia e nos permite conceber um projeto que encorajando a destruição das antinomias da ação antropológica possa informar a ação dentro da esfera efetiva do cotidiano do antropólogo Ele também trabalha no sentido de erodir a barreira que talvez seja a mais básica para a manutenção do centro e da periferia aquela entre o conhecimento e a ação entre a teoria e a prática DWYER 1977 p 15034 Já Tedlock 1986 também ele um outro representante deste dialogismo etnográfico inicia seu trabalho chamando atenção para as variadas vozes que se esconderiam por detrás da etnografia aqui tomada como gênero de ficção Neste sentido sugere o autor caberia ao antropólogo manter o espaço intermediário originalmente criado pelo diálogo etnográfico enquanto atividade voltada a uma compreensão das diferenças entre os mundos de pessoas anteriormente distantes Tal tarefa contudo permaneceria inviável caso a antropologia permanecesse insistindo em simular as ciências naturais utilizando o espaço do gabinete acadêmico aquele para onde se retorna após o trabalho de 34 No original The emergence of a concrete singular mode of otherness calls attention to its own origins in the relationship between center and periphery and allows us to conceive a project which encouraging the destruction of the antinomies of anthropological action can inform action within the effective sphere of the anthropologists daily life It thus works to erode de barrier which is perhaps most basic to the maintenance of center and periphery that between knowledge and action between theory and practice trad nossa MRS 79 campo para uma assepsia do conteúdo experiencial ou fenomenológico decorrente do confronto com a alteridade visando com isso um ideal de objetividade e neutralidade científicas Diante disso Tedlock 1986 atinge o fundamento do seu trabalho o qual reside na contraposição entre dois tipos distintos de antropologia qualificados como analógica e dialógica Nas suas palavras a objetividade que normalmente se atribui às ciências sociais não é nada mais que a subjetividade do observador fazendo suas próprias afirmações além daquelas do sujeito observado Aqui nós deixamos de lado a possibilidade de uma antropologia que permanece fiel à situação dialógica e entramos no domínio do que chamo de antropologia analógica Uma antropologia dialógica seria conversar de um lado para o outro ou alternadamente o que é algo que todos nós fazemos durante o trabalho de campo se não somos apenas cientistas naturais A antropologia analógica por outro lado envolve a substituição de um discurso por outro Afirmase que esse novo discurso por mais à parte que pareça estar é equivalente ou proporcional num sentido quasematemático ao discurso anterior O diálogo é um processo que continua e por si só indica processo e mudança o que se chama de análogo por outro lado é um produto um resultado TEDLOCK 1986 p 185 Como se pode perceber a idéia geral que trespassa a noção de antropologia dialógica de Tedlock 1986 é a de um movimento interpretativo Contudo tratase aqui de uma mobilidade hermenêutica que não necessariamente abdicasse da lógica metódica mas que ao contrário visando maior fidedignidade optasse por incluila entre os temas privilegiados pela sua discussão35 Mas não é certo que o caminho dialógico requer o abandono geral da metodologia existente E não é o caso de o diálogo ser em si um método no sentido de que possa suplantar outros métodos ou métodos anteriores O diálogo não é um método mas uma forma uma forma de discurso dentro da qual podem existir momentos metódicos de qualquer um dos lados e dentro da qual os métodos podem se contar entre os possíveis assuntos em discussão tanto no campo quanto no gabinete dentro do campo dialógico as conversas vão durar ou cair por terra segundo seus próprios méritos como o ponto de encontro entre dois mundos mas não com base na possibilidade de o investigador ter conseguido o que afirma ter procurado e a qualquer preço O perigo se encontra em qualquer dos lados do diálogo e está sempre por perto tanto no gabinete quanto no campo TEDLOCK 1986 p 194195 35 Seguramente podese afirmar aqui uma inspiração gadameriana no texto de Tedlock 1986 Basta lembrarmos do resgate da noção de preconceito proposto pela hermenêutica do filósofo alemão Cf GADAMER 1992 80 É em tal crítica a um tipo de etnografia que supostamente apresenta o nativo como produto final acabado e indubitavelmente representável que podemos compreender a relação edipiana que anteriormente apontamos como característica do vínculo entre os pósmodernos e a antropologia interpretativa de Clifford Geertz36 Neste sentido o texto de Tedlock 1986 se revela tipicamente partidário desta nova tendência ao sugerir que assim como na etnografia clássica ou realista os relatos de campo construídos por Geertz forneceriam muito pouca margem a falas genuinamente nativas as quais nas escassas vezes em que podiam se expressar em sua própria língua o fariam apenas coletivamente ou seja enquanto um todo integrado que serviria como sustentáculo para teorias ou conclusões previamente definidas Pelo menos em teoria Clifford Geertz chega perto de defender uma volta ao diálogo mas quando nos instiga a conversar com eles ele aparentemente se refere a uma conversa puramente metafórica com um eles coletivo e a julgar pela escassez de citações em seu próprio trabalho a prática daquilo que ele denomina descrição densa equivale a uma gag rule ou lei de restrições ao discurso nativo TEDLOCK 1986 p 198199 Nesta nossa breve revisão bibliográfica vale a pena analisarmos ainda a contribuição de Tyler 1986 outro grande representante desta atual antropologia crítica norteamericana Ao privilegiar o discurso e não o texto este autor enfatiza o valor do diálogo ao invés do monólogo sustentando ainda que a situação etnográfica deteria uma natureza eminentemente cooperativa que contrastaria com a ideologia científica da observação transcendente Na verdade ainda segundo Tyler 1986 o pósmodernismo etnográfico rejeitaria mesmo a clássica divisão entre observadores e observados sujeitos e 36 Um outro trabalho que segue esta mesma linha em termos de ressalvas ao projeto etnográfico de Geertz é o de Crapanzano 1992 também este último um dos principais nomes da antropologia dialógica contemporânea O texto em questão compara o ofício do antropólogo à figura mítica de Hermes um mensageiro que para traduzir o texto de uma cultura alheia precisaria primeiro produzilo Ou seja ele o interpretaria Em seguida para cumprir a sua função necessitaria também de recursos retóricos para se fazer ouvido Com isso Crapanzano 1992 enfatiza sempre a validade da proposição de que qualquer transação social envolveria necessariamente uma negociação de sentido Isto é uma tentativa de determinar pragmaticamente os termos pelos quais tal transação poderia ou deveria ser entendida Apostando portanto na afirmação de que o discurso racional não está separado de conteúdos valorativos este autor enfatiza as várias estratégias retóricas do texto etnográfico geertziano mascaradas pela ênfase convencional na sua dimensão puramente semântica Desta maneira a linguagem é percebida não só como instrumento mas como articuladora de desejos com o poder institucional intervindo indiretamente sobre os limites interpretativos da escrita ou na forma como esta pode ser lida Assim também é questionado o fosso que separa a observação etnográfica das conclusões efetivamente publicadas e problematizado o papel da subjetividade do antropólogo neste processo 81 objetos do conhecimento em prol do ideal de uma produção dialógica do discurso enquanto história cooperativa ou texto polifônico Desta maneira o próprio sentido de uma forma ou função simbólica precisa e fixada no texto etnográfico perderia a sua importância primordial Esta a forma acabaria por emergir do trabalho em conjunto do etnógrafo com os seus parceiros nativos e o texto etnográfico perderia o seu caráter objetal assumindo assim a qualidade de meio ou veículo mediador para uma transcendência do discurso em termos de espaço e tempo A ênfase é no caráter emergente da textualização enquanto apenas o movimento interpretativo inicial que provê um texto negociado do leitor ao intérprete O processo hermenêutico não permanece restrito à relação do leitor com o texto mas inclui também as práticas interpretativas dos participantes do diálogo original TYLER 1986 p 12737 Na perspectiva de Tyler 1986 o atual significado do texto etnográfico não estaria contido em si mesmo ou seja na representação mas sim na compreensão da qual inclusive aquele nada mais seria que um fragmento Neste contexto a evocação aparece como uma palavrachave já que este termo não precisaria representar o que evoca mas servir como meio para uma outra representação O evocar de Tyler 1986 serve portanto não como uma presença que invocaria algo ausente no texto mas como um vira ser daquilo que não estaria nem presente e nem ausente Em outros termos tratase aqui do caráter único unicidade da evocação que deveria ser compreendida em si mesma e não como ligação entre diferenças de espaço e tempo o evocado e o que evoca Com o evocar aposta Tyler 1986 a etnografia se libertaria da mimesis e do modo inapropriado utilizado pela retórica científica a qual trabalha com os conceitos de sujeito objeto e verdade Conforme nosso autor tais conceitos não teriam validade ou equivalência no campo etnográfico ou na sua escrita pois aqui não haveria coisas estáticas ou congeladas a serem representadas mas sim um discurso que não seria nem um objeto representável e nem tampouco a representação de um objeto Assim continua Tyler 1986 toda ideologia da significação representativa equivaleria também a uma ideologia de poder Quebrar o seu encanto exigiria um ataque à 37 No original The emphasis is on the emergent character of textualization textualization being just the initial interpretive move that provides a negotiated text for the reader to interpret The hermeneutic process is not restricted to the readers relationship to the text but includes as well the interpretive practices of the parties to the originating dialogue trad nossa MRS 82 escrita enquanto representação totalitária mas também ao tipo de autoridade até então atribuída à figura do autor38 Tyler 1986 vê na chamada etnografia pósmoderna a possibilidade da desconstrução de tais pressupostos textuais e autorais Assim desconfiando de grandes sistemas explicativos como o funcionalismo e o estruturalismo o tipo de escrita característico da contemporaneidade etnográfica não apresenta um caráter organizado mas ao contrário um gênero necessariamente fragmentado a exemplo da própria vida que tenta descrever Nós confirmamos em nossas etnografias a nossa consciência da natureza fragmentária do mundo pósmoderno uma vez que nada define melhor o nosso mundo do que a ausência de uma alegoria sintetizante Nós sabemos que estes transcendentes textuais estas invocações de holismo de sistemas funcionalmente integrados são tropos literários veículos que conduzem a imaginação da parte ao todo do concreto ao abstrato e conhecêlos pelo que eles são sejam mecânicos ou organicistas faznos suspeitar da ordem racional que eles prometem TYLER 1986 p 13239 Ao dar prosseguimento à sua leitura desconstrutiva da etnografia enquanto escrita científicorepresentativa Tyler 1986 decreta ainda a caducidade da busca por um momento holista ou nas suas palavras trânsitotranscendental o qual seria determinado pelo texto ou por um suposto direito exclusivo do seu autor Em outros termos no que se refere à etnografia desconfiase aqui de verdades culturais secretamente escondidas no texto em si ou entre textos na mente do autor ou mesmo na interpretação do leitor apostandose em um conhecimento derivado do diálogo em um tipo de mente emergente e com infinitos locus possíveis que inclusive deteria a capacidade paradoxal de evocar a transcendência sem a síntese sem criar dentro de si mesma recursos formais e estratégias conceituais de ordem transcendente TYLER 1986 p 13240 38 Neste ponto referências explícitas são feitas por Tyler 1986 à ideologia fragmentária de Theodor Adorno e Walter Benjamin bem como à proposta desconstrutiva que caracteriza o projeto filosófico de Derrida 39 No original We confirm in our ethnographies our consciousness of the fragmentary nature of the post modern world for nothing so well defines our world as the absence of a synthesizing allegory We know that these textual transcendentals these invocations of holism of functionally integrated systems are literary tropes the vehicles that carry imagination from the part to the whole the concrete to the abstract and knowing them for what they are whether mechanismic or organismic makes us suspect the rational order they promise trad nossa MRS 40 No original paradoxical capacity to evoke transcendence without syntesis without creating within itself formal devices and conceptual strategies of transcendental order trad nossa MRS 83 É desta maneira que Tyler 1986 propõe uma outra espécie de holismo aquele que ao invés de ser simplesmente fornecido como dado traria em si mesmo uma qualidade emergente a partir da reflexividade contida na relação textoautorleitor sem privilegiar nenhuma destas três instâncias como local exclusivo do significado E mais seguindo esta linha de raciocínio nosso autor aposta ainda que este todo emergente não seria caracterizável enquanto objeto permanecendo portanto inacessível às características do método simbólicosintético eis o porquê da etnografia pósmoderna ser um documento oculto é uma enigmática paradoxal e esotérica conjunção de realidade e fantasia que evoca a simultaneidade construída que nós conhecemos como realismo ingênuo Ela conjuga realidade e fantasia uma vez que fala do oculto na linguagem do realismo ingênuo e do cotidiano na linguagem oculta fazendo assim da razão de uma a razoabilidade da outra A etnografia pósmoderna é um objeto de meditação que provoca a ruptura com o mundo do senso comum e evoca uma integração estética cujo efeito terapêutico é trabalhado na restauração deste mesmo mundo do senso comum Diferentemente da ciência ela não é um instrumento de imortalidade pois ela não sustenta a falsa esperança de uma transcendência permanente utópica a qual só pode ser adquirida pela desvalorização e falsificação do mundo do senso comum criando em nós desta forma um sentido de permanente alienação da vida cotidiana Ao invés disso ela adota como ponto de partida o mundo do senso comum somente como uma forma de o confirmar e nos retornar a ele renovados e conscientes da nossa renovação TYLER 1986 p 13441 De volta ao trabalho de Marcus e Cushman 1982 vemos que além deste questionamento da autoridade do antropólogo ou mais precisamente associado a ele também faz parte do rol de preocupações pósmodernas a questão da autenticidadeplausibilidade etnográficas Com efeito ao mesmo tempo em que assumem as dificuldades impostas pela tarefa da tradução de culturais alheias os representantes da antropologia crítica contemporânea conferem ao tema da retórica uma dimensão bastante privilegiada discutindo o etnocentrismo presente na linguagem com a qual se representa o 41 No original that is why the postmodern ethnography is an occult document it is an enigmatic paradoxical and esoteric conjunction of reality and fantasy that evokes the constructed simultaneity we know as naïve realism It conjoins reality and fantasy for it speaks of the occult in the language of naïve realism and of the everyday in occult language and makes the reason of the one the reasonableness of the other Postmodern ethnography is an object of meditation that provokes a rupture with the commonsense world and evokes an aesthetic integration whose therapeutic effect is worked out in the restoration of the commonsense world Unlike science it is not an instrument of immortality for it does not hold out the false hope of a permanent utopian transcendence which can only be achieved by devaluing and falsifying the commonsense world and thereby creating in us a sense of permanent alienation from everyday life Instead it departs from the commonsense world only in order to reconfirm it and to return us to it renewed and mindful of our renewal trad nossa MRS 84 outro Afinal pensam eles não é porque uma certa dimensão comparativa se apresenta como parte constituinte da própria escrita etnográfica que esta não poderia ser problematizada em si mesma Conforme o trecho a seguir O contraste comparativo nas etnografias adotou novos contornos e vem sendo visto como a encarnação do problema da tradução cultural Este é o dilema de expressar as diferenças culturais pelo uso de uma linguagem e de conceitos sutilmente enviesados os quais os antropólogos tomaram emprestados do uso cotidiano em sua própria cultura ou de disciplinas especializadas como a economia e o direito voltadas ao estudo de instituições ocidentais MARCUS e CUSHMAN 1982 p 495042 Assim a comparação intercultural pela via de uma linguagem mais direta nós versus eles característica da etnografia realista assume na pósmodernidade etnográfica o papel de um importante tópico para reflexão Com isso partese em busca de um novo e menos ambicioso plano representativo da alteridade agora pautado pela individualidade da análise caso a caso o eu e eles onde o leitor seguiria mais de perto o sinuoso percurso do antropólogo em sua partilha de significados culturais pela via do confronto com a diferença Entretanto ao enfatizarem o valor conferido à retórica na contemporaneidade da discussão antropológica Marcus e Cushman 1982 destacam também que o estilo da escrita por si só a despeito de alcançar uma dimensão relativamente autônoma em termos da avaliação crítica da etnografia não ocuparia o lugar nem da lógica e nem tampouco da evidência argumentativa atuando de maneira complementar Ainda segundo nossos autores a atenção pósmoderna ao problema retórico também não teria como finalidade última a construção de modelos de como ler ou escrever monografias já que estes acabariam por reificar o caráter eminentemente criativo da prática etnográfica Nestes termos a efetividade da análise retórica residiria menos em um método congelado do que na proposta de renovados tópicos para discussão destacando sempre a importância fundamental da escrita na construção da autoria e da autoridade de um texto como o etnográfico Como vimos tal aspecto fora até então deixado mais de lado pelas 42 No original Comparative contrast in ethnographies has taken an additional turn and has come to be seen as the embodiment of the key problem of cultural translation This is the conundrum of expressing cultural differences through the use of subtly biased language and concepts which anthropologists borrowed either from everyday usage in their own culture or else from specialized disciplines such as economics and law oriented toward the study of Western institutions trad nossa MRS 85 etnografias de cunho realista as quais tradicionalmente destacavam o valor comprobatório da experiência de campo do estar lá como atributo de legitimidade tanto da pesquisa quanto da escrita antropológicas Agora porém dado o questionamento das convenções realistas a ênfase recai não somente no trabalho de campo em si mas também na sua teorização e representação intelectual Desta forma podese dizer que através do refinamento teórico das diferentes possibilidades de textualização da experiência etnográfica a crítica antropológica contemporânea busca aproximar a prática a teoria e a escrita É neste sentido que coloca em xeque a mera busca frenética por dados empíricos aqui percebida como justificativa para as pretensões explicativas de grandes sistemas comparativos que a precederam como o funcionalismo malinowskiano ou mesmo a própria antropologia interpretativa de Geertz Eis aí portanto uma revisão sem precedentes que perturba o consenso rumo ao maior desenvolvimento não só da análise do conteúdo mas também da forma como se representa o outro A virtude da tendência da experimentação etnográfica é que ela está encorajando se não forçando esta conscientização crítica por parte dos leitores da etnografia não pela imposição de métodos críticos mas através de uma verdadeira ruptura com as convenções que há muito vinham constituindo o senso comum e profissional de leitores e escritores de etnografia MARCUS e CUSHMAN 1982 p 6643 Com isso tendo em mente este panorama geral do pósmodernismo etnográfico norteamericano sigamos agora os exemplos anteriormente válidos para os comentários que fizemos acerca do pensamento de Malinowski e Clifford Geertz e passemos à análise específica de um dos textos mais representativos desta reconfiguração do pensamento antropológico contemporâneo Tratase do trabalho Clifford 1998 43 No original The virtue of the trend of ethnographic experimentation is that it is encouraging if not forcing this critical awareness on the part of readers of ethnography not by the imposition of methods of criticism but by a de facto disruption of the conventions which have long been the professional common sense of readers and writers of ethnography trad nossa MRS 86 James Clifford a identidade e a autoridade etnográficas em xeque O estudo de Clifford 1998 tem como objetivo traçar a formação e a desintegração da autoridade etnográfica na antropologia social do séc XX Para este autor com a constituição de um mundo globalizado como o atual não cabe mais somente ao europeu o direito à interpretação Há diversidade de idiomas e como conseqüência deve haver também uma etnografia generalizada pautada pela heteroglossia É com base em tal perspectiva que Clifford 1998 problematiza a real possibilidade de uma representação fidedigna do outro Neste sentido perguntanos como evitar a parcialidade e o etnocentrismo já que as imagens que construímos de culturas diferentes das nossas não são neutras mas construídas em meio a relações históricas Como um encontro intercultural sobredeterminado e atravessado por relações pessoais e de poder pode ser circunscrito a uma só versão adequada do mundo alheio versão essa composta por um único autor individual Enfim como padronizar uma experiência tão particular e de que visão falamos A partir destes questionamentos Clifford 1998 ressalta o valor do trabalho de campo como método útil para uma análisereflexão de natureza prática sobre a representação cultural Isso porque o exercício da observação participante obrigaria seus praticantes a experimentar as vicissitudes físicas e intelectuais da tradução Com efeito a etnografia alcançaria um status exemplar uma vez que nela a produção de conhecimento estaria associada a um intenso envolvimento subjetivo Após estas considerações iniciais Clifford 1998 passa a um traçado histórico do desenvolvimento da ciência etnográfica no século XX com a emergência do trabalho antropológico de campo institucionalizado e padronizado leiase realizado por especialistas treinados Neste sentido nosso autor descreve a criação do status mais competente e diferenciado do etnógrafo como autoridade da representação intercultural tarefa para a qual a experiência pessoal de Malinowski contribuiu sobremaneira44 Em conseqüência disso acrescenta Clifford 1998 teria emergido daí uma fusão entre teoria 44 Como vimos na parte inicial deste capítulo adquire fundamental importância neste contexto a iniciativa da observação participante com a convivência prolongada do antropólogo junto aos povos que estuda dominando a sua língua e sendo por eles iniciado em um outro universo cultural Assim nos termos de Clifford 1998 além de uma narrativa sobre aspectos particulares da vida trobriandesa os Argonautas do Pacífico Ocidental ganha ares de arquétipo do novo status científico da etnografia 87 geral e pesquisa empírica etnologia e etnografia tendo o agora teóricopesquisador de campo substituído a antiga divisão entre o informanteviajante em contato com o exótico e o sociólogo ou antropólogo de gabinete Nesta perspectiva prossegue Clifford 1998 a década de 1920 trouxe consigo um novo e poderoso gênero científicoliterário a etnografia agora um estilo de representação que baseado na observação participante contornaria os obstáculos ao rápido conhecimento e apreensão de culturas estranhas Com isso nosso autor propõe uma lista de inovações institucionais e metodológicas que segundo ele garantiram esta há pouco mencionada cientificidade da etnografia 1 em primeiro lugar houve necessariamente a legitimação da própria persona do pesquisador de campo que agora suficientemente treinado poderia ter um acesso de natureza mais profunda e imparcial ao cerne das culturas alheias questão de rapidez e totalidade 2 com efeito o etnógrafo do novo estilo estava agora autorizado a utilizar as línguas nativas ainda que sem dominálas adequadamente uma justificativa para a legitimidade de estudos que detinham como prérequisito o aprendizado da língua mas que teriam sido realizados com pouco tempo de convívio 3 nesta etnografia marcada por uma acentuada ênfase no poder de observação primazia do visual a cultura passou a ser pensada como conjunto de cerimônias e gestos característicos algo passível de observação e registro ao observador treinado 4 associada a este aspecto havia a crença em poderosos esquemas e abstrações teóricas que possibilitariam alcançar mais rapidamente a estrutura ou esqueleto da vida nativa 5 e mais ainda que a cultura como um todo estivesse além do alcance de uma pesquisa de curta duração o novo etnógrafo poderia focalizar algumas instituições específicas Assim pela via da sinédoque análise das partes específicas de um conjunto fatalmente chegaria a uma ampla compreensão da cultura alheia 88 6 por fim na sua busca pelo traçado de um presente etnográfico a nova etnografia operava de maneira sincrônica Ou seja abdicando da utilização de uma pesquisa histórica extensiva e diacrônica Segundo Clifford 1998 para além de tais inovações uma análise eficiente deste contexto da formação da autoridade etnográfica na década de 1920 deveria levar em conta ainda o estabelecimento da junção estratégica e legitimadora entre a análise abstrata e a experiência concreta do observador que esteve lá A observação participante apareceria assim como uma espécie de fusão entre a objetividade científica e a subjetividade do pesquisador teoria prévia mais experiência própria autorizando portanto as afirmações do etnógrafo este novo herói da cultura Entretanto novamente conforme Clifford 1998 significativas mudanças ocorreram no rumo das discussões antropológicas ao longo destes aproximadamente setenta anos que nos separam da era de pioneiros como Malinowski Destarte nosso autor aposta que na contemporaneidade a autoridade do etnógrafo mais e mais se constituiria sobre outras bases com a ênfase no conteúdo interpretativo da antropologia equilibrando um jogo de forças que até então pendera bem mais para o lado da experiência empírica Assim é que nas próximas páginas o texto de Clifford 1998 explorará as atuais formas de interrelação entre experiência e interpretação nos terrenos da pesquisa de campo e da escrita etnográfica De maneira a viabilizar esta tarefa retoma sinteticamente algumas das idéias desenvolvidas até aqui acerca do processo de legitimação do trabalho antropológico de campo inicialmente centrado na experiência do scholar treinado que observava e participava Afinal para Clifford 1998 foram construídas a partir daí tanto a imagem quanto a narrativa da entrada e da iniciação de um estranho nas desconhecidas e potencialmente perigosas florestas de símbolos de outros povos um tipo de odisséia que prosseguia com o estabelecimento de relações com a alteridade e que finalmente possibilitava a emergência de um texto representacional sobre este outro Então ainda nos termos de Clifford 1998 o pressuposto a ser questionado passa a ser aquele segundo o qual em etnografia anterior a qualquer teoria ou método haveria sempre o incontestável argumento do eu estava lá com a experiência do antropólogo funcionando como plena justificativa para a sua autoridade de pesquisador Todavia 89 perguntase o nosso autor até onde a experiência não seria já em si mesma uma interpretação É com base neste argumento que o texto de Clifford 1998 resgatará as idéias da teoria hermenêutica de Dilthey 1976 para em seguida qualificar a etnografia como a construção de um mundo comum de significados a partir de intuições e inferências sentimentos e percepções fazendo ainda uso de traços e pistas de sentido antes de desenvolver interpretações estáveis Com isso pensa Clifford 1998 tornarseia fácil perceber a vulnerabilidade da observação participante em seu caráter vago e excessivamente confiante por exemplo nos miraculosos poderes da empatia do antropólogo em relação aos grupos que estuda Eis portanto sustenta Clifford 1998 o segundo momento desta dialética antropológica a vez da interpretação a qual inclusive teria surgido precisamente como alternativa à afirmação hoje ingênua de uma autoridade etnográfica absolutamente baseada na experiência Porém o que significa exatamente tomar a cultura como uma série de textos a serem interpretados Para responder esta indagação o autor norteamericano se utiliza do referencial da filosofia de Ricoeur 1971 onde a textualização é entendida como processo onde o comportamento não escrito vem a ser demarcado enquanto um corpus Ou seja um conjunto potencialmente significativo separado de uma situação discursiva ou performativa imediata CLIFFORD 1998 p 39 Assim na experiência etnográfica de Clifford 1998 textualizar é separar um conjunto uma teia de significados das suas expressões nos comportamentos cotidianos Portanto um processo que vai do latente ao corpus e do corpus ao contexto interpretativo onde este mesmo corpus pode posteriormente retornar e vir a ser particularizado Em última análise tratase do isolamento de padrões posteriormente contextualizados em instituições ou comportamentos De tudo isso propõe Clifford 1998 o importante é percebermos que na atualidade antropológica há uma transferência de autoridade da experiência rumo à interpretação Para entendermos esta mudança prossegue Clifford 1998 há que compreendermos também que para ser interpretado enquanto texto um discurso como o da cultura de natureza eminentemente contextual deve necessariamente ser transformado em algo autônomo Com isso certos rituais ou eventos por exemplo quando textualizados 90 e apartados tanto de uma locução particular quanto de uma intenção autoral passam a não mais guardar ligação alguma com a sua produção por pessoas específicas tornandose meras evidências de uma realidade cultural maior A relevância disso para a etnografia é óbvia já que Em última análise o etnógrafo sempre vai embora levando com ele textos para posterior interpretação Se muito da escrita etnográfica é produzido no campo a real elaboração de uma etnografia é feita em outro lugar A realidade das situações discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada Os aspectos dialógicos situacionais da interpretação etnográfica tendem a ser banidos do texto representativo final CLIFFORD 1998 p 4042 Neste ponto a crítica de Clifford 1998 vai mais além ao sustentar que mesmo tendo trazido grandes inovações particularmente em termos de uma contribuição para o caráter autoreflexivo da discussão antropológica contemporânea também a antropologia interpretativa divulgada por Geertz 1989 não estaria de todo livre de um certo colonialismo uma vez que também ela separaria o processo da pesquisa dos textos que produz Trocando em miúdos nem a experiência e nem tampouco a interpretação poderiam ser consideradas digamos assim autoritariamente inocentes Para tentar sanar este problema sugere Clifford 1998 podese propor uma negociação construtiva em etnografia que envolvendo mais de um sujeito consciente e politicamente significativo transforme paradigmas de experiência e interpretação em paradigmas discursivos com diálogo e polifonia Afinal da maneira como é pensado aqui o trabalho de campo é composto por eventos de linguagem mas a linguagem repousa entre o eu e o outro impedindo assim que as palavras da escrita etnográfica possam ser tomadas como a legítima declaração ou interpretação acerca de outras culturas Em outros termos pensa Clifford 1998 hoje não haveria mais vez para a pretensa neutralidade do observadorparticipante Neste sentido ao se pautar no dialogismo o novo modus operandi etnográfico negocia uma visão compartilhada da realidade modificando a antes intocável autoridade do etnógrafo como narrador e intérprete Com isso rejeita ainda qualquer separação nítida entre um eu que interpreta e um outro textualizado CLIFFORD 1998 p 45 Assim ao dar continuidade à sua discussão Clifford 1998 persiste no alerta aos antropólogos quanto aos perigos da tendência tipificadora de se transformar o outro falante 91 em um representante da sua cultura Deverseia então resistir ao impulso de representar a alteridade de forma autolegitimadora tendose a habilidade de manter sempre a estranheza da sua voz Porém levandose em conta esta crescente importância conferida à voz nativa poderia mesmo vir a acontecer da balança acabar pesando mais para o outro lado Ou seja desta mesma voz nativa acabar por direcionar ou circunscrever em demasia o trabalho etnográfico Assim sendo perguntase hoje quem é na verdade o autor da pesquisa de campo De quem é a autoridade De quem é a autoria do texto etnográfico Como a presença autoral do nativo pode se manifestar no texto de gabinete Se levarmos em conta tais questões diznos Clifford 1998 a etnografia debater seia entre duas alternativas claras A primeira delas seria retratar o que os nativos pensam à maneira do flaubertiano estilo indireto livre um estilo que suprime a citação direta em favor de um discurso controlador CLIFFORD 1998 p 50 Ou será que o retrato de outros modos de subjetividade requereria uma segunda versão menos homogênea Novamente para o nosso autor ainda que fosse inevitável ao etnógrafo fazer um certo uso do estilo indireto não caberia a este atribuir estados subjetivos aos povos dos quais se ocupa misturando a sua voz a de outras culturas Da mesma forma não seria cabível fornecer a palavra somente a certos informantes privilegiados Vemos portanto que as dificuldades da antropologia contemporânea ultrapassam o tema da compreensão da cultura nativa para alcançar também a encenação do discurso dos seus membros Desta maneira ao caminhar para o seu final o trabalho de Clifford 1998 sustenta que se etnografar é inventar culturas esta atividade escapa ao controle de um único indivíduo sendo então necessariamente regida pela polifonia Com isso embora reconheça o caráter utópico de tal posição nosso autor propõe uma partilha da responsabilidade etnográfica mediante a estratégia textual alternativa da atribuição também ao nativo de direitos autorais sobre a escrita da sua cultura Tal ruptura pressupõe ainda um redirecionamento da etnografia agora voltada para vários leitores inclusive o autóctone Neste caso o poder interpretativo passaria do autor ao leitor que também deteria um enorme poder sobre o texto já que o reinterpretaria de maneira pessoal fornecendo inclusive a sua própria coerência Dado o caráter ostensivamente polêmico que notabiliza a empreitada do pós modernismo etnográfico já era de se esperar a torrente de ressalvas que nos últimos anos 92 recai sobre si advinda de tradições antropológicas tão distintas quanto a norteamericana a francesa e a brasileira45 Neste sentido o foco de um autor como Rabinow 1985 reside no que qualifica como o exagero de se tomar a produção textual como a metáforaguia do encontro etnográfico Assim pensa ele devemos desconfiar de tais textos polifônicos pois a inserção do discurso nativo pode já em si mesma funcionar como uma falsa autenticação realista ou interpretativa inclusive porque no fim das contas geralmente cabe ao próprio etnógrafo a seleção prévia das falas daqueles com os quais dialoga46 Então prossegue Rabinow 1985 para além do nível textual formal cabe ainda ao antropólogo indagar a si mesmo acerca das variáveis políticas e sócioestruturais que influenciam no produto final da etnografia Isso porque também esta última se insere em um contexto maior em termos de práticas sóciohistóricas institucionalizadas incluindose aí as relações de poder inter e intradepartamentais nas universidades47 Com isso Rabinow 1985 chama a nossa atenção para níveis mais amplos de interseção entre discurso e poder em termos micro e marco relacionais No caso dos primeiros além das relações etnógrafonativo proporcionadas pelo trabalho de campo objetos como vimos de grande parte dos trabalhos pósmodernos haveria ainda as 45 Aliás como veremos mais adiante é exatamente no terreno da antropologia tupiniquim que encontraremos uma boa sugestão para levandose em conta o pathos que associamos a esta disciplina estabelecer uma ponte oxalá firme com a psicanálise 46 Outras observações consistentes quanto aos exageros do pósmodernismo etnográfico podem ser encontradas no artigo de Peirano 1986 que a partir da leitura do livro de Crapanzano 1985 postula que diante da atual busca por uma total ausência do autor na etnografia faltaria reconstituir a totalidade desta conversa já que agora nela somente se faria presente um representante o nativo Neste sentido ainda segundo Peirano 1986 em nome da reflexão dialógica Crapanzano 1985 abriu mão da interlocução e do contexto paralisando a si mesmo enquanto pesquisador ator etnográfico e mais grave ainda enquanto sujeito teórico Ao se posicionar desta maneira prossegue Peirano 1986 Crapanzano 1985 não estaria levando em conta que já a ausência teórica em si mesma também atuaria como uma posição teórica Nestes termos a perspectiva moral tem necessariamente de contribuir para uma discussão no terreno antropológico De outra forma perde a sua validade 47 Corroboram com tal perspectiva trabalhos como os de Caldeira 1988 Montero 1991 DaMatta 1992 e Peirano 1992 Em se tratando de textos produzidos no Brasil e assim cercados pelas particularidades tanto do nosso sistema universitário mais amplo quanto do tipo de antropologia produzida aqui nos trópicos estes esforços acrescentam a toda esta discussão um outro dado seguramente importante a imperiosa necessidade de se contextualizar diferentes antropologias incluindose aí as periféricas sob o risco de uma importação de teorias balizada pela absoluta ausência de critérios Nas palavras de Trajano Filho Repito Writing Culture faz mais sentido nos Estados Unidos na realidade ele é um produto da academia americana em crise causada por problemas na produção da demanda Embora pareça apontar para questões gerais da Antropologia e de certo modo assim o faz devo lembrar que o mais saliente e o mais real ista é afirmar a existência de antropologias E aquelas feitas no Brasil Índia Nigéria Méxiconão são exatamente idênticas e não dividem as mesmas questões daquela feita na América do Norte Temos sempre que perguntar até onde chegou o pósmoderno 1988 p 150 93 relações internas à antropologia enquanto disciplina as quais por sua vez compreenderiam os próprios membros acadêmicos da comunidade interpretativa Ao destacar estas últimas Rabinow 1985 ressalta ainda o fato de que na sua trajetória ascendente o atual pósmodernismo antropológico teria se beneficiado de movimentos outros não necessariamente ligados ao texto etnográfico como por exemplo uma fragmentação ocorrida na antropologia desde a década de 70 aliada à transposição de fronteiras intelectuais até então bem demarcadas dentro do sistema universitário norteamericano Já em termos de macroanálises que dessem conta da imbricação entre o discurso etnográfico e os momentos históricos que o condicionam Rabinow 1985 sustenta que hoje teríamos melhores condições de avaliar o contexto do surgimento da antropologia e de outras ciências descritivas do outro aproximando as condições locais das mundiais Neste sentido nosso autor qualifica como verdade apenas parcial a associação comumente feita entre a proposta de uma nova escrita etnográfica e o contexto da descolonização Para Rabinow 1985 além de tal aspecto deveríamos levar em conta as transformações ocorridas na própria academia como um todo particularmente nos EUA ao longo das décadas de 70 e 80 Com isso perguntase o mesmo Rabinow 1985 por que não explorar mais profundamente a política que se encontra por detrás da própria comunidade interpretativa em antropologia quebrando a cumplicidade de um silêncio que até hoje se manteria sobre este assunto Dito de outra maneira caberia observarmos com mais atenção os modismos acadêmicos inclusive aquele proporcionado pela própria desconstrução tão em voga na atualidade antropológica já que todo este apelo textual estaria situado de acordo com condições materiais fornecidas por trocas e micropolíticas universitárias Enfim na sua crítica a leituras que privilegiam sobremaneira a dimensão retórico textual da escrita etnográfica fazse presente o interesse genealógico de Rabinow 1985 pelo lugar ocupado por políticas como a acadêmica na descrição social do outro Daí a proposta de um questionamento mais amplo da escrita em termos sóciohistóricos concretamente definidos Portanto uma espécie de apelo pela volta da linguagem ao mundo Minha aposta é que olhar para as condições sob as quais as pessoas são contratadas tornadas catedráticas publicadas creditadas e festejadas dentro da 94 academia americana compensaria nossos esforços Não há dúvida de que um dos maiores desenvolvimentos na academia americana nos últimos dez anos é a explosão da análise textual agrupada de maneira geral sob o rótulo da desconstrução Como as carreiras são construídas na atualidade Como as carreiras são destruídas na atualidade Quais são as fronteiras entre o bom e o mau gosto Vamos transformar esta conversa de corredor em discurso Tais questões são definidas como pequenas e sem importância mas essas são as dimensões das relações de poder às quais Nietzsche corretamente nos exortou a estarmos escrupulosamente atentos Isso promove um número de questões genealógicas acerca do lugar das formas de descrição social e das estratégias políticas Isso coloca espero eu um meio para questionarmos o lugar da escrita em termos históricosociais concretos RABINOW 1985 p 111248 Ainda privilegiando uma dimensão política desta feita mais abrangente por enquadrar em seu foco a própria história recente da sociedade norteamericana a crítica ao pósmodernismo etnográfico efetuada por Augé 1997 seguramente faz jus a uma tradição que pelo menos desde Voltaire garante um caráter verdadeiramente cítrico à verve francesa Assim para aquele autor tal movimento não é nem majoritário e nem tampouco intelectualmente importante aparecendo mais como uma espécie de novo filão acadêmico e mercadológico a ser explorado por sob influência das teorias desconstrutivistas deter como uma das suas características fundamentais a preconização do fim da capacidade explicativa de grandes teorias sociais como por exemplo o marxismo ou o estruturalismo Segundo o mesmo Augé 1997 o problema é que tal modalidade de argumentação pósmoderna corre o sério risco de relativizar a si mesma ao sabor das vagas da atualidade Conforme os trechos a seguir Realmente ora a mudança do paradigma antropológico é atribuída a considerações globais e ao ar do tempo ora ela é atribuída a modificações no objeto específico da antropologia a saber um ethnographic other definido de forma inicialmente tão vaga que se pode desejar sem medo boa e longa estada àqueles que não acabaram de descobrir sua diversidade e de notar que ele muda com o resto Esta última atribuição repousa de fato numa definição muito tradicional do outro etnográfico o conjunto daqueles que os etnógrafos estudam 48 No original My wager is that looking at the conditions under which people are hired tenured published granted and fêted within the American academy would repay our efforts There is no doubt that one of the major developments in the American Academy in the last ten years is the explosion of textual analysis loosely grouped under the banner of deconstruction How are careers made now How are careers destroyed now What are the boundaries of good and bad taste Lets turn this corridor talk into discourse These questions are defined as small and petty but those are the dimensions of power relations to which Nietzsche rightly exhorted us to be scrupulously attentive This raises a number of genealogical questions about the place of forms of social description and political strategies This poses I hope a means for questioning the place of writing in concrete historical and social terms trad nossa MRS 95 tradicionalmente e numa definição ainda por cima conservadora porque exclui precisamente o fato de eles poderem estudar outros AUGÉ 1997 p 57 Então ao prosseguir em seus argumentos Augé 1997 pergunta o que se faz necessário estudar deste outro tão clássico a ponto de nos permitirmos o questionamento da prática da pesquisa de campo antropológica mas simultaneamente ainda o mantermos o outro o selvagem o exótico na condição de ser etnografável A resposta mais freqüente parecer ser a sua cultura Entretanto sugere o nosso autor grandes expoentes do pósmodernismo etnográfico americano como James Clifford hesitam em problematizar a fundo esta complicada noção e mesmo a própria análise cultural em si mesma enquanto prática recorrente Disso resulta que O fim da grande partilha hoje pareceria assim ligado ao fato de que os etnologizados aprenderam a ler e a escrever novas diferenças surgem deste fato e se está claro no espírito de Clifford elas criarem as condições de um diálogo mais igual está igualmente bastante claro que de certa maneira o outro etnográfico persevera em seu ser ele se transforma permanecendo diferente É surpreendente ter de ressaltar que para o antropólogo pósmoderno a cultura singularmente substantivada reificada só se transforma no interior de seus próprios limites nunca sai de sua reserva tomemos o termo metaforicamente ou não AUGÉ 1997 p 58 É assim que Augé 1997 atinge um dos pontos altos da sua crítica acusando os pósmodernos norteamericanos de contraditórios em pelo menos dois pontos Por um lado tomam como objeto não mais a cultura como texto mas o próprio texto etnográfico enquanto artifício retoricamente construído e nisso além de não atribuírem outra realidade à prática etnográfica senão a textual trazem a reboque nesta generalização apressada também a própria noção de cultura produto necessário desta mesma prática Por outro lado permanecem obcecados pela escrita etnográfica como se a tarefa da tradução fosse o único problema válido e ofertado pelas transformações contemporâneas em termos de tecnologia e globalização Para Augé 1997 porém tal preocupação além de não conter nada de verdadeiramente novo já é em si mesma reificadora pois permanece tomando os outros como culturas de véspera Novamente nos próprios termos do autor francês A diversidade destas descrições tomada numa história em movimento que redistribui os papéis proibiria assim qualquer generalização e qualquer 96 comparação Empirismo estreito e relativismo cultural são assim reempregados para legitimar um projeto que associa sob o nome de pósmodernismo uma conceituação conservadora a uma escritura estetizante AUGÉ 1997 p 5960 Augé 1997 finaliza então observando que caberia distinguir claramente alguns questionamentos fornecidos pela própria existência deste pósmodernismo Neste sentido propõe um considerável abismo entre considerações de ordem epistemológica que poderiam invalidar desde o início todo o esforço interpretativo dos antropólogos e flutuações históricas que afetariam realidades ou grupos existentes e criariam novos fenômenos como os meios de comunicação ou os tipos de urbanização Assim ainda que válida esta ênfase em uma pluralidade étnicocultural não se constituiria no único problema da nossa contemporaneidade já que também ela possibilitaria uma situação inédita pela primeira vez todos os homens poderiam pensar a si mesmos como contemporâneos Eis aí um novo objeto para uma nova antropologia Muito bem A partir de agora para além do apelo à natureza sóciopolítica do encontro etnográfico presente nos trabalhos de Rabinow 1985 e Augé 1997 observemos mais de perto a crítica totêmica de Geertz 1988 a estes mesmos pós modernos a qual privilegiará uma outra dimensão a artística Nestes termos cabe destacar inicialmente que Geertz 1988 adota como ponto de partida para as suas considerações o fato de que não obstante as enormes distâncias físicogeográficas percorridas pelos antropólogos na sua tarefa de coleta de dados é no being here no aqui e agora do conhecido e assim confortável território acadêmico que tais informações ganham seu corpo final enquanto monografia Segundo o próprio Geertz 1988 tal constatação em si mesma não representa nenhuma novidade Entretanto a questão é que na atualidade da antropologia particularmente a norteamericana o paradoxo da existência desta duplarealidade do trabalho de campo dividida entre o estar lá e o estar aqui alcança uma importância mais acentuada Neste sentido o que antes era apenas uma dificuldade técnica de tradução agora ganha contornos morais políticos e mesmo epistemológicos Ou seja a pergunta da ordem do dia é o que acontece com a realidade quando ela embarca para longe Afinal com o processo de descolonização da década de 1960 uma série de transformações ocorreu tanto no mundo de lá antes primitivo quanto no de cá antes civilizado balançando inclusive as estruturas do próprio lugar etnográfico 97 Em tal processo pensa Geertz 1988 cabe ainda levar em conta o seguinte e importante agravante o progresso tecnológico seja nas telecomunicações seja nos meios de transporte em outros termos a chamada globalização faz cada vez mais cair por terra um dos pressupostos fundamentais do tipo de antropologia praticada por exemplo no tempo de Malinowski A saber que os sujeitos e os objetos etnográficos estariam não só geográfica mas moralmente separados o que conferiria àqueles pioneiros da tradução cultural a prerrogativa de uma descrição praticamente impune eou incontestável Este desequilíbrio prossegue Geertz 1988 conduziu vários antropólogos da contemporaneidade a uma série de questionamentos que adotam o tema da retórica como objeto privilegiado de análise Desta forma a própria escrita etnográfica se tornou uma atividade de risco com o apelo antropológico agora facilmente tomado como palco para as lutas de grupos de variadas espécies como os que clamam por representação e os que outrora representados jazem agora insatisfeitos com o tipo de imagem de si mesmos construída no e pelo Ocidente49 Para Geertz 1988 tão ou mais curiosa que todo este movimento histórico em si mesmo é a reação por ele provocada em antropólogos do presente que embora tenham adotado uma profissão largamente formada no contexto do colonialismo deste último praticamente não tiveram experiência alguma Qual o teor da reação em questão Uma busca por absoluta distância da assimetria de poder que de acordo com o discurso pós moderno teria sempre caracterizado o encontro etnográfico Novamente conforme Geertz 1988 o problema é que isto acaba por produzir na atualidade uma atitude ambivalente em relação à própria idéia de etnografia seria ela uma ciência ou um instrumento de dominação Com tudo isso continua Geertz 1988 criouse um clima de incerteza quanto ao futuro de uma etnografia que anteriormente a despeito do seu realismo colonialista detinha o indubitável mérito de ampliar os horizontes conceituais dos seus leitores 49 Em termos de Brasil uma apresentação mais pormenorizada deste tema pode ser encontrada no artigo de Montero 1993 A partir da interrelação entre religião e alteridade em nosso país o trabalho em questão debate a diminuição das distâncias entre pesquisador e pesquisado e neste sentido a apropriação nãoerudita do patrimônio conceitual do antropólogo chamando ainda a nossa atenção para a possibilidade da própria antropologia se tornar um discurso legitimador na luta entre diversos agentes pelo controle de estratégias culturais de integraçãoseparação uma transformação da realidade a partir da teoria A partir daí Montero 1993 atenta para a necessidade de uma etnografia que simultaneamente abarque a encarnação das lógicas universais nas vivências locais e que para além da ficção recupere a intenção científicoexplicativa dos seus conceitos 98 convencendoos acerca da riqueza expressa na diversidade dos costumes Hoje porém que tipo de trabalho restaria aos antropólogos Enfim o que seria possível fazer diante deste quadro atual onde ao mesmo tempo em que os alicerces morais da etnografia foram chacoalhados pela descolonização em termos do Estar Lá seus fundamentos epistemológicos foram sacudidos por uma perda geral de fé em estórias recebidas sobre a natureza da representação etnográfica ou qualquer outra em termos do Estar Aqui GEERTZ 1988 p 13550 Conforme Geertz 1988 podese pensar tais questões a partir de uma perspectiva artística literária para sermos mais exatos Mas o que isso significa Antes de mais nada que em se tratando de etnografia a responsabilidade autoral jamais pode ser evitada em nome do método da linguagem ou de uma pretensa relação de coautoria com os informantes Isso porque a atividade da escrita e da tradução de culturas alheias está inevitavelmente ligada ao trabalho da imaginação do pesquisador Desta forma ainda segundo Geertz 1988 o pontochave aqui reside na busca por um intermezzo entre os textos etnográficos demasiadamente saturados em termos autorais e aqueles outros onde o escritor visando um tipo de objetividade como a das Ciências Naturais simplesmente desaparecia nos traços da sua própria obra É exatamente a construção de tal lugar que surge como uma espécie de desafio proposto por Geertz 1988 aos pósmodernos Sua tarefa ainda é a de demonstrar ou mais exatamente demonstrar novamente em distintos tempos e de diferentes maneiras que relatos de como outros vivem que não são apresentados nem como estórias sobre coisas que não ocorreram de fato e nem tampouco como descrições de fenômenos mesuráveis produzidos por forças calculáveis podem guardar convicção GEERTZ 1988 p 14114251 É bem verdade que o próprio Geertz 1988 reconhece os riscos da sua proposta de associar em importantes aspectos a vocação etnográfica à literária Dentre eles podese 50 No original at the same time as the moral foundations of ethnography have been shaken by decolonization on the Being There side its epistemological foundations have been shaken by a general loss of faith in received stories about the nature of representation ethnographic of any other on the Being Here side trad nossa MRS 51 No original Their task is still to demonstrate or more exactly to demonstrate again in different times and with different means that accounts of how others live that are presented neither as tales about things that did not actually happen nor as reports of measurable phenomena produced by calculable forces can carry conviction trad nossa MRS 99 citar o perigo de que tal empreitada seja tomada como uma variante da filosofia lingüística em suas intermináveis discussões conceptuais acerca dos significados das palavras ou mesmo como um simples jogo de sedução verbal Finalmente há ainda a ingrata possibilidade de cairmos em um esteticismo estéril onde os etnógrafos e seu público passam a analisar o valor da escrita etnográfica unicamente com base nos prazeres provocados pelo texto pela leitura em si Ainda assim sustenta Geertz 1988 todos estes riscos valem a pena Entre outras razões por uma em particular eles nos conduzem a uma saudável revisão das idéias que temos acerca do que seja a tarefa de alargar a consciência de um determinado grupo sobre as formas de vida de outros grupos diferentes do seu e que de maneira especular têm muito a dizer acerca de si mesmos portanto um caminho da alteridade rumo à identidade É nestes termos que Geertz 1988 define a atividade etnográfica como tradução ou performance dos fatos um tipo de vitalidade fraseada cristalizada no papel que detém na persuasão a sua ferramenta última Esta capacidade de persuadir os leitores de que o conteúdo da sua leitura reside em um autêntico relato de alguém pessoalmente familiarizado com o modo segundo o qual a vida procede em algum lugar em algum tempo entre algum grupo é a base sobre a qual repousa em última escala qualquer coisa a mais que a etnografia procure fazer analisar explicar divertir desconcertar celebrar edificar justificar surpreender subverter GEERTZ 1988 p 14314452 Portanto avança Geertz 1988 longe das certezas hierárquicas e retóricas de outrora e a despeito das tentativas contemporâneas de coautoria ou análise da subjetividade etnográfica a construção deste novo terreno para a prática antropológica ainda está longe de ser concluída se é que o será um dia De qualquer forma enfatiza o nosso autor cabe manter sempre em mente o inelutável fato de que toda descrição etnográfica é feita em casa homemade permanecendo sempre como a palavra daquele que descreve mas não daquele que é descrito Então de volta à pergunta que norteia o seu texto o que afinal seria possível fazer Geertz 1988 sugere que evidentemente não há uma única resposta a ser 52 No original This capacity to persuade readers that what they are reading is an authentic account by someone personally acquainted with how life proceeds in some place at some time among some group is the basis upon which anything else ethnography seeks to do analyze explain amuse disconcert celebrate edify excuse astonish subvert finally rests trad nossa MRS 100 oferecida Contudo para si mais que a eventual constituição de uma cultura universal do tipo esperanto e também para além da possibilidade da construção de uma ampla tecnologia de gerenciamento humano resta a busca por aquele já mencionado alargamento da inteligibilidade discursiva entre povos com diferentes interesses mas que na atual sociedade globalizada permanecem em inevitável e ininterrupta conexão De acordo com o que foi exposto até aqui podese notar que tanto o movimento pósmoderno em antropologia quanto a crítica a este último privilegiam um diálogo de natureza transdisciplinar com áreas do saber tão diversas quanto a filosofia a sociologia ou a literatura É exatamente ao perpetuar tal perspectiva da quebra de fronteiras departamentais que o texto de Peirano 1995 atinge a razão última desta nossa revisão históricobibliográfica ao propor que diante das incertezas e ansiedades provocadas pelo atual questionamento da prática etnográfica poderseia obter um auxílio bastante interessante precisamente no campo da psicanálise Mas cabe perguntar de que maneira Para tentarmos responder esta pergunta vale a pena destacarmos alguns dos pontos principais do trabalho em questão Por exemplo a sua afirmação de que o ruído produzido pelo pósmodernismo etnográfico se baseia em um processo de reinvenção da história teórica da antropologia que além de repetir antigas fórmulas revive dicotomias que já deveriam estar ultrapassadas Velhos debates como iluminismo vs romantismo ciência vs arte etc renascem e na versão atual assumem a formafórmula positivismo vs interpretativismo cânone vs pósetnografia PEIRANO 1995 p 3334 Na análise de Peirano 1995 tal reinvenção do percurso teórico da antropologia está associada à denúncia de um suposto modelo canônico e positivista de etnografia que formularia generalizações totalizadoras a partir de eventos exóticos locais problema esse cuja solução demandaria uma nova antropologia comparativa seguida por sua vez de uma também nova escrita etnográfica Contudo perguntase a nossa autora em quem caberia tal carapuça Assim é que provando não estar convencida da plena veracidade deste diagnóstico Peirano 1995 parte em defesa ou como ela mesma diz a favor da etnografia enquanto uma ferramenta artesanal e por isso mesmo verdadeiramente insubstituível no estudo das diferenças culturais tarefa para a qual convoca o auxílio das obras de dois antropólogos clássicos Malinowski e EvansPritchard 101 Desta maneira Peirano 1995 sustenta que já nos trabalhos destes pesquisadores ou seja há décadas atrás farseiam presentes tópicos pósmodernos como os da co autoria etnográfica além desta hoje tão festejada discussão sobre a interrelação entre etnografia e tradução Quanto ao primeiro caso um exemplo seria a postura de Malinowski em não traduzir o termo nativo Kula para o inglês de maneira a preservar a fidelidade de uma noção trobriandesa que não conhecia equivalência ocidental Já o segundo aspecto se revelaria na dimensão comparativa logo tradutora defendida por EvansPritchard como característica essencial ao trabalho do antropólogo incluindose toda a carga afetiva presente no confronto com o outro Novamente segundo Peirano 1995 poderíamos deduzir daí as seguintes implicações 1ª o processo de descoberta antropológica resulta de um diálogo comparativo não entre pesquisador e nativo como indivíduos mas entre a teoria acumulada da disciplina e a observação etnográfica que traz novos desafios para ser entendida e interpretada Esse é um exercício de estranhamento existencial e teórico que passa por vivências múltiplas e pelo pressuposto da universalidade da experiência humana que o antropólogo aprendeu a reconhecer de início longe de casa 2ª não há cânones possíveis na pesquisa de campo embora haja certamente algumas rotinas comuns além do modelo ideal Na antropologia a pesquisa depende entre outras coisas da biografia do pesquisador das opções teóricas da disciplina em determinado momento histórico mais amplo e não menos das imprevisíveis situações que se configuram no diaadia local da pesquisa 3ª na medida em que se renova por intermédio da pesquisa de campo a antropologia repele e resiste aos modelos rígidos Seu perfil portanto dificilmente se adequa a um modelo positivista como se tenta caracterizála atualmente em certos setores PEIRANO 1995 p 4445 A leitura do trecho acima torna clara a aproximação proposta por Peirano 1995 entre teoria pesquisa e trajetórias individuais biográficas no campo da antropologia Com isso evidencia também a sua preocupação em eliminar dicotomias infundadas como aquelas do tipo antespositivismohojeinterpretação resgatando ainda o caráter eminentemente criativo da prática antropológica cuja riqueza última apareceria nos resíduos provocados por uma tensão ótima entre os ensinamentos dos livros e a coleta empírica de dados in loco Sem o impacto existencial e psíquico da pesquisa de campo parece que o material etnográfico embora presente se tornou frio distante e mudo Os dados transformaramse com o passar do tempo em meras ilustrações Isto significa em outras palavras que o diálogo entre as teorias dos antropólogos no caso ocidentais e as teorias nativas sejam elas Ndembu trobriandesas 102 islâmicas ou outras diálogo este que se dá no antropólogo desapareceu O pesquisador agora sozinho sem interlocutores interiorizados voltou a ser apenas ocidental PEIRANO 1995 p 5152 É neste sentido que Peirano 1995 deixando de lado rivalidades do passado convoca a psicanálise como uma preciosa aliada Afinal pensa esta autora através do estudo da carga afetiva mobilizada pelo encontro do antropólogo com o nativo tal saber corroboraria na constatação do caráter único e imprescindível da atividade etnográfica enquanto recurso exemplar para se pensar um estudo do outro e da sua visão de mundo particular A meu ver o impacto profundo da pesquisa de campo sobre o etnólogo ainda não recebeu a atenção devida Uma evidência da sua complexidade está na freqüência com que antropólogos renunciam à pesquisa antes ou logo após o seu início Tais ocorrências apontam para um impacto psíquico de tal dimensão que em algumas circunstâncias se transforma em um desconforto insuportável No entanto acredito que vale a pena em qualquer das circunstâncias propor que o instrumental de uma outra disciplina no caso a psicanálise talvez ajude a esclarecer certos processos de descoberta etnográfica Seria o momento então de aproveitar esse vínculo entre as duas áreas Penso especificamente na idéia de transferência e seu potencial de criatividade no processo de descoberta antropológica e na relação entre a transferência analítica e o impacto que Evans Pritchard identificou como constitutivo da pesquisa de campo PEIRANO 1995 p 5354 Como vimos ainda na introdução que precedeu este primeiro capítulo o presente trabalho aceita a proposta deste diálogo entre antropologia e psicanálise Eis na verdade seu fundamento último Aliás foi precisamente visando estabelecer um ponto de contato entre estas duas áreas do conhecimento que nos dedicamos a um percurso histórico por algumas das principais escolas antropológicas com o intuito último de situar o leitor neste que consideramos como o pathos da antropologia contemporânea Qual seja a ênfase na dimensão retóricotextual do estudo das culturas acompanhada de uma crítica radical quanto aos limites epistemológicos da etnografia Desta maneira apostamos aqui na validade do recurso à psicanálise enquanto uma mediadora útil nesta discussão pósmoderna acerca do tipo de identidade eou autoridade exercidos pelo antropólogo Inclusive como nos mostra um autor como Ahumada 1999 pelo fato de que tal questionamento atinge diretamente a configuração do próprio encontro analítico o qual também ele encontrase em meio a um certo fogo cruzado que envolve 103 correntes empiristas e narrativas No limite a partir da postura lingüística pósmoderna afirmase que o psicanalítico não é senão uma modalidade peculiar do literário AHUMADA 1999 p 309 Com efeito artigos outros como os de Leary 1994 Elliott e Spezzano 1996 Mitchell 1998 Shapiro 2000 e Hirsch 2002 nos confrontam hoje com as seguintes perguntas até onde vai a propalada neutralidade do analista que direitos tem ele de contar uma história sobre o outro E mais a partir de que bases teóricas Temos portanto no trato com a alteridade um assunto de fundamental importância na contemporaneidade tanto da prática antropológica quanto da psicanalítica Vejamos então nos próximos capítulos o que o saber inaugurado por Freud tem a nos dizer sobre o tema iniciando por um trabalho publicado pelo pai da psicanálise ainda em 1919 e que traz consigo o instigante título de O Inquietante Das Unheimliche CAPÍTULO 02 A Psicanálise diante do Outro revisitando o inquietante freudiano Conforme sugerido ainda no capítulo anterior voltarnosemos a partir de agora à questão da alteridade em psicanálise incluindose aí as suas implicações em termos clínicos e metapsicológicos Neste sentido privilegiando a originalidade do referencial freudiano iniciaremos por um breve percurso pelo tema do estrangeiro na obra do mestre de Viena tarefa para a qual contaremos com o precioso auxílio de trabalhos como os de Kristeva 1994 e Koltai 2000 Como veremos em um segundo momento tratase da própria alteridade do Inconsciente analisada por Freud 19191976 em O Inquietante Das Unheimliche texto do qual nos ocuparemos mais detalhadamente Aqui além de situar o trabalho em questão no contexto em que se insere aquela da transição da primeira para a segunda tópica procuraremos demonstrar como sob o pano de fundo da estética literária o pai da psicanálise nos brinda com uma inovadora abordagem do outro que ao invés de rechaçálo ou projetálo alhures qualificao como inerente a tudo que é humano cindido por excelência Desta forma partiremos em busca do potencial criativo presente nessa cisão e em um dos seus correlatos imediatos o conceito de pulsão de morte acompanhando assim a perspectiva de autores como Kofman 1973 Chnaiderman 1997 e Silva Junior 2001 Em seguida alcançaremos nosso terceiro e último foco de interesse relacionando o tema da alteridade em psicanálise às particularidades da atividade clínica Assim através da leitura pormenorizada de alguns trechos da obra de Fédida 1988 1991a 1991b 1996 articularemos este estranho de nós mesmos representado pelo Inconsciente à estranheza característica da própria função do analista profissional regido por uma ética bastante particular O que a singulariza O fato de ser regida não por princípios impostos de fora a despeito da teoria mas pela abertura de sentido própria ainda que tantas vezes estranha ao desejo daquele que a partir do divã ousa perguntar 105 Algumas Considerações Preliminares aliadas a um breve percurso pelo estrangeiro em Freud Uma boa maneira de iniciar esta aproximação junto ao tema da alteridade em Freud nos é fornecida por Kristeva 1994 autora que curiosa e simultaneamente estabelece uma filiação e um contraponto entre a perspectiva do outro inaugurada pelo pai da psicanálise e o contexto mais amplo do humanismo e romantismo alemães dos séculos XVIII e XIX Passemoslhe a palavra Com a noção freudiana de inconsciente a involução do estranho no psiquismo perde o seu aspecto patológico e integra no seio da unidade presumida dos homens uma alteridade ao mesmo tempo biológica e simbólica que se torna parte integrante do mesmo A partir de então o estrangeiro não é nem uma raça nem uma nação O estrangeiro não é magnificado como Volksgeist secreto nem banido como perturbador da urbanidade racionalista Inquietante o estranho está em nós somos nós próprios estrangeiros somos divididos KRISTEVA 1994 p 190 Além disso voltandose ao atendimento clínico a generosidade intelectual da psicanalista búlgara nos presenteia ainda com um interessante material para reflexão ao destacar o quanto é pela via da transferência logo a partir do outro que o sujeito poderia se reconciliar com a clivagem ou estranheza constitutivas da sua própria subjetividade Mais uma vez nos termos de Kristeva 1994 É por desatar a transferência dinâmica maior da alteridade do amoródio pelo outro da estranheza constitutiva do nosso psiquismo que a partir do outro eu me reconcilio com a minha própria alteridadeestranheza que jogo com ela e vivo com ela A psicanálise sentese então como uma viagem na estraneidade do outro e de si mesma em direção a uma ética do respeito pelo inconciliável Como poderíamos tolerar um estrangeiro se não nos soubermos estrangeiros para nós mesmos Inquietarse ou sorrir esta é a escolha quando o estranho nos assalta ele depende de nossa familiaridade com os nossos próprios fantasmas KRISTEVA 1994 p 191200 Se seguirmos esta linha de raciocínio avança Kristeva 1994 veremos que o caráter inovador da reflexão freudiana sobre a nossa própria desintegração se reveste de grande importância ao alertar sobre os perigos de projetarmos o estrangeiro alhures Assim para além da reificação totalizante da integração apressada e da perseguição irracional tornase possível pensar um outro desfecho neste trato com o outro o acolhimento advindo 106 da consciência de que a sua aflitiva estranheza é também a nossa Nestes termos podese apostar na psicanálise como uma política cosmopolita de tipo novo Afinal sua solidariedade aparece fundada na consciência do Inconsciente não como apelo à fraternidade mas como reconhecimento do desamparo enquanto condição última do nosso ser conosco e do nosso ser com os outros Também o livro de Koltai 2000 adota esta premissa ao representar o estrangeiro como figura limítrofe entre a subjetividade e o contexto sóciopolítico mais amplo Assim toma a alteridade como ponto de partida para uma análise do racismo enquanto sintoma em nossa própria civilização Como se pode perceber temos aí um tema bastante propício ao diálogo transdisciplinar entre a psicanálise e as chamadas ciências humanas Afinal lembranos a autora a modernidade dá à luz não só ao conceito sociopolítico do estrangeiro como também ao sujeito que se vive como estrangeiro ancorado nesse significante para nomear a ausência de um nome KOLTAI 2000 p 22 Com efeito Koltai 2000 constrói um trabalho instigante e que destaca o quanto o questionamento acerca do outro invariavelmente atravessa a psicanálise e remete à cena do Inconsciente com as variadas implicações desta última em termos da constituição da subjetividade Assim tornase digna de nota por exemplo a relação estabelecida pela autora entre o estranho enquanto forasteiro Fremd e aquele outro o do unheimlich privilegiado por Freud 19191976 aproximandoos no movediço e assim inquietante terreno do inominável podemos dizer que se num primeiro momento apenas estamos diante de reações de recuo perante o rosto desconhecido num momento mais tardio da socialização surgirá um nós que situará o estrangeiro para a criança maior e que já fala numa categoria significante que até então estava à procura de um nome A criança aos poucos vai nomeando e reconhecendo o que é familiar que separa do resto do mundo e aquilo que lhe é desconhecido e que não pode nomear Persiste nela algo do nãoseparado que não entra em nenhuma representação Persistem esses restos de imagos esse objetopulsão não identificado o estranho que permanece à espera de ser figurado O estrangeiro surge então como a figura ideal para fixar esse objeto nãoidentificado Essa é a origem da xenofobia ordinária em que o outrora se transforma em alhures e o estranho em estrangeiro KOLTAI 2000 p 2324 É contudo mais adiante que Koltai 2000 atinge em cheio um aspecto que muito nos interessa em seu trabalho Isso por tornar ainda mais clara a idéia de que no imigrante repousa o estatuto por excelência do sujeito psicanalítico um estrangeiro para si mesmo já 107 que definido a partir do Inconsciente este Outro que o habita mas que ao mesmo tempo tão pouco lhe é familiar Em outros termos este Outro que assusta mas que é necessário acolher Qual a grande descoberta de Freud Justamente a de que o homem é impelido por algo que lhe é estrangeiro que ele não é integrado em si mesmo E é no interior de si mesmo em seu aparelho psíquico que o homem vive com inquietação o sofrimento do que lhe é estrangeiro Quanto a uma psicanálise o mínimo que se pode esperar dela é que nos familiarize com o estrangeiro em nós mesmos uma vez que só assim poderemos modificar em profundidade nossa relação singular com o outro Afinal o que pode ser mais estrangeiro do que aquilo que nos acontece sem que possamos nos reconhecer nele Lapsos atos falhos sonhos esquecimentos se apresentam a nós como enigmas que devem ser decifrados e pedem resposta à questão o que é mesmo que isso quer dizer KOLTAI 2000 p 2728 Destarte mantendose fiel à sua proposta Koltai 2000 esmiuçará posteriormente os significados do termo estrangeiro Primeiro no campo do social leiase da política graças a um breve histórico que contraporá os contextos da Grécia antiga e da Modernidade passando por algumas particularidades do povo judeu enquanto representante privilegiado da diferença Em segundo lugar no próprio terreno da psicanálise freudiana Neste sentido nossa autora destaca como muito embora uma das maiores virtudes do trabalho de Freud tenha sido a de demonstrar que o homem é regido por algo que lhe é ao mesmo tempo íntimo e estranho o Inconsciente o conceito de estrangeiro não teria merecido por parte do mestre de Viena senão uma qualificação negativa e assustadora Assim levando em conta ainda o fato de que o mesmo termo estrangeiro aparece em Freud tanto nos textos mais notadamente clínicos quanto naqueles relativos à cultura bem como no que se refere ao próprio lugar do analista nossa autora parte rumo a uma sucinta reconstituição histórica do percurso deste conceito na obra do pai da psicanálise53 Considerando os nossos propósitos aqui vale a pena acompanhála nesta viagem Koltai 2000 inicia sua análise do estrangeiro em Freud pelos Estudos sobre a Histeria onde o adjetivo apareceria pela primeira vez aqui associado ao trauma psíquico e posteriormente à sua rememoração os quais agiriam como uma espécie de corpo estranho Cf FREUD e BREUER 18931996 Este último por seu turno seria 53 Com ligeiras modificações tal histórico seria posteriormente retomado por esta autora em um outro trabalho Cf KOLTAI 2002 108 equivalente a um material patógeno que conforme as orientações médicoanatômicas deveria ser extirpado do corpo do paciente Em se tratando do contexto psíquico porém tal tarefa ganharia outros contornos e estaria mesmo fadada ao fracasso pois aqui a invasão do elemento estranho acabaria por se arraigar à própria estrutura do aparelho mental não permitindo portanto uma clara separação entre o joio e o trigo Ou seja entre o patológico e o não patológico Aqui Koltai 2000 faz uma referência explícita ao trabalho de Zygouris 1983 segundo o qual já então seria possível perceber a totalidade do problema do estrangeiro na obra de Freud Em termos gerais tratarseia primeiramente da necessidade de uma assimilação que uma vez impossível provocaria um segundo movimento voltado à extração Diante da inviabilidade também deste último ocorreria então um obrigatório retorno daquele mesmo material patógeno Para além destes aspectos porém Koltai 2000 chama nossa atenção para o seguinte fato É importante notar que já nesta primeira teoria para Freud a sexualidade implica sempre a relação do sujeito com o outro Notese também que nesse contexto muito freqüentemente o caráter traumático das primeiras experiências sublinha o fato de que elas têm algo do desencontro do malvindo de precoce ou tardio como se a sexualidade se apresentasse imediatamente como um corpo estranho em relação ao conjunto da vida sexual Resumindo podemos dizer que nesse momento Freud identifica dois tempos um primeiro no qual a sexualidade irrompe do exterior perturbando o inocente mundo infantil e um segundo no qual o acontecimento se transforma em acontecimento interno corpo estrangeiro KOLTAI 2000 p 81 O momento seguinte da retrospectiva de Koltai 2000 aparece voltado ao Projeto para uma Psicologia Científica FREUD 18951996 onde o estrangeiro se relaciona à descrição do primeiro encontro da criança com o outro ser humano designado pelo espaço que ocupa de acordo com a equação entre proximidade e amparo Em outros termos uma ajuda exterior marcada pela ambigüidade entre as possibilidades de satisfação e hostilidade Logo inauguradora de uma clivagem que diz respeito à chamada das Ding algo entre um perto e um distante que remete nossa majestade o bebê à própria imagem de seu eu Segundo o referencial freudiano eis aí a divisão do próximo fundando uma outra relativa à subjetividade configurada portanto no enigma do gozo alheio Já em As Pulsões e suas Vicissitudes continua Koltai 2000 o tema do estrangeiro aparece associado pelo pai da psicanálise ao mundo externo tomado aqui enquanto uma 109 espécie de inimigo hostil ao eu em suas diversas fases de desenvolvimento Com efeito pensava Freud 19151996 à época o início da vida psíquica seria marcado por um narcisismo primário onde o investimento pulsional estaria focalizado no próprio sujeito capaz de pelo menos em parte satisfazer a si mesmo autoeroticamente Logo diante desta relação entre o eu e o prazer não haveria necessidade de uma atenção particular ao exterior considerado indiferente ou mesmo desprazível Entretanto novamente para Koltai 2000 Uma Dificuldade no Caminho da Psicanálise trabalho publicado dois anos depois já inaugurava uma perspectiva diferente e menos radical quanto à oposição entre o eu e o outro Isso porque ao apontar as idéias súbitas e impulsos involuntários como hóspedes alienígenas que mostravam não ser o ego o legítimo dono de sua própria casa Freud 19171996 acabaria também por tornar mais claro o estatuto do estrangeiro como uma parte considerável do psiquismo que mesmo alijada da consciência promoveria um embate entre duas forças distintas dentro de um mesmo sujeito Eis aí portanto o sujeito da clivagem o sujeito do Inconsciente ou se preferirmos o próprio sujeito da psicanálise É assim que o histórico proposto por Koltai 2000 alcança O Inquietante excursão do mestre de Viena pelo terreno da estética literária que afirma a perturbadora estranheza da familiaridade Ou seja enfatiza a presença do inusitado mesmo em terrenos aparentemente tão sólidos quanto o da consciência e ao fazêlo incorpora alguns dos temas discutidos até aqui Por exemplo a qualificação do Inconsciente como um estrangeiro tão próximo em termos de vida mental Mais ainda o texto de Freud 19191976 nos remete de volta ao infantilismo psíquico para estabelecer uma ponte entre este e o contexto da chamada segunda tópica ligada por sua vez aos temas da pulsão de morte e compulsão à repetição54 Isso porque segundo o pai da psicanálise a angústia e o terror associados à desconfortável sensação do sinistro do inominável e do incontrolável estariam intimamente vinculados a uma sensação de indiferenciação entre o eu e o outro entre o sujeito e o mundo externo 54 Ou seja para além da linguagem para além do limite da compreensão e inclusive para além da continência possível em termos do próprio aparelho psíquico Entramos portanto já dizia GarciaRoza 1986 1990 no terreno do pulsional por excelência Voltaremos a isso bem como ao texto de Freud 19191976 oportunamente 110 De volta à análise de Koltai 2002 um outro trabalho que aparece como relevante neste histórico acerca do tema do estrangeiro em psicanálise é A Negação Cf FREUD 1925a1996 Aqui será retomada a questão das possibilidades da representação a partir dos conceitos de bom e ruim ambos subordinados ao dualismo pulsional da segunda tópica pulsões de vida e morte enquanto o primeiro seria introjetado o segundo ao contrário acabaria expulso do psiquismo constituindo o nãoeu o estrangeiro Ainda para Koltai 2000 mais um ponto importante no artigo em questão é a relação que nele se pode perceber entre o euestrangeiro e o estrangeiro ao eu Por sua vez tal relação estaria ligada à transição entre diferentes tipos de representação psíquica de um lado objetos percebidos em si mesmos ou somente de acordo com a sua qualidade mais ou menos agradável De outro a diferenciação entre tais objetos e os humanos enquanto figuras potencialmente identificatórias Nestes termos prossegue Koltai 2000 Inibição Sintoma e Angústia acabaria por revelar o seguinte percurso o estrangeiro se configuraria inicialmente enquanto algo incômodo ou desagradável e estaria vinculado às sensações corpóreas Mais adiante alcançaria o status de objeto parcial e finalmente o de figura paterna primeiro sinal de alteridade genuinamente humana A esta última se seguiriam tipos outros como os membros externos à família grupo social país etnia ou mesmo ideologia Cf FREUD 19261996 É precisamente tal contato entre o indivíduo e os diferentes grupos sociais que motiva um retorno de Koltai 2000 aos anos de 1918 e 1921 quando Freud publicaria respectivamente O Tabu da Virgindade e Psicologia de Massas e Análise do Ego Ambos os trabalhos aparecem unidos pelo tema do narcisismo das pequenas diferenças a partir do qual poderia se pensado tanto o estrangeiro quanto a sempre recorrente hostilidade que o acompanha Neste sentido a repulsa do outro é tomada como expressão de um amor de si particularmente quando confrontado com a ameaça de uma reatualização do desamparo infantil Este último por seu turno seria motivado por um semelhante que não é idêntico ou imediatamente assimilável e que por isso mesmo apareceria como a projeção externa de algo interior e constituinte em termos de subjetividade a própria cena do Inconsciente Cf FREUD 19181996 19211996 111 O esforço empenhado na realização deste histórico serve para que Koltai 2000 enalteça o caráter subversivo da psicanálise a qual nos revela que em termos psíquicos a unidade não é mais que um fantasma e que para além do efeito de superfície representado pela razão instrumental o homem não é senhor em sua própria casa Corroborando com esta perspectiva é que nossa autora aposta que nada haveria de mais estrangeiro ao sujeito do que a sua própria e inquietante exterioridade Nestes termos enfatizando o tema do racismo foco último do seu interesse Koltai 2000 sustenta ainda que a forma como cada um de nós lida com essa alteridade constituinte determinaria sobremaneira qualquer relação com o Outro enquanto estrangeiro Afinal As manifestações racistas surgem justamente quando o sujeito se nega a ver a própria divisão se recusa a ver que traz em si mesmo esse Outro gozo KOLTAI 2000 p 123 Como se pode perceber do que vimos até o momento tanto Kristeva 1994 quanto Koltai 2000 conferem à figura do emigrante o lugar de estatuto do sujeito psicanalítico sempre definido a partir do seu lugar perante o outro Logo temos que na especificidade do seu saber a prática psicanalítica inevitavelmente põe em jogo os desabores do confronto com a alteridade percebida não somente enquanto presença ou afirmação mas também na qualidade de ausência e negatividade É o que bem resume Koltai 2002 em um outro trabalho Uma psicanálise pode ser definida como um trabalho de reintegração à esfera consciente da produção heterogênea decorrente da exclusão interna da outra cena Afinal o que pode ser mais estrangeiro do que aquilo que nos acontece sem que nos possamos reconhecer nele As chamadas formações do inconsciente incluindo aí o sintoma analítico apresentamse como produções nas quais no mais íntimo familiar existe um estrangeiro um ser do qual nada queremos saber KOLTAI 2002 p 6970 Em uma palavra afirmase diante de nós a própria alteridade do Inconsciente lugar do não lugar terreno da sombra do excesso e da diferença explorado em maiores detalhes por Freud 19191976 em O Inquietante Das Unheimliche É deste texto que nos ocuparemos mais detalhadamente a seguir fazendo nossa a perspectiva de Kristeva 1994 a qual valoriza o trabalho em questão por considerar que foi por esta via que o mestre de Viena introduziu uma ética bastante peculiar à psicanálise aquela que ao tratar do 112 estranho não aborda exatamente um estrangeiro mas detecta a estranheza do Inconsciente enquanto inominável de nós mesmos Acerca de O Inquietante Das Unheimliche Originalmente publicado por Freud em 1919 na quinta edição da revista Imago O Inquietante detém entre outras pelo menos uma característica que o individualiza sobremaneira Como bem lembra Cesarotto 1996 tratase do texto que funciona como dobradiça entre as chamadas primeira e segunda tópicas freudianas Considerado um fruto tardio da Metapsicologia esse trabalho encerra a década de 10 concluindo também uma etapa teórica marcada pelo tema do narcisismo cujo pano de fundo era o primeiro modelo pulsional Por outro lado O sinistro projetase num futuro próximo ao anunciar e de certa forma resumir o que embora já escrito só seria publicado no ano seguinte Além do princípio do prazer CESAROTTO 1996 p 109 Neste sentido vale lembrar há aqui reformulações teóricas ocorridas em dois planos o tópico e o econômico Em relação ao primeiro organização do aparelho psíquico em instâncias a grande mudança se fez uma vez que citando GarciaRoza Enquanto a primeira tópica voltava sua atenção para a economia libidinal a segunda está voltada para o confronto da libido com algo que lhe é externo a exigência de renúncia imposta pela cultura 1995 p 206 Em outras palavras foi incluído entre as instâncias psíquicas o conceito de Superego Quanto ao plano econômico jogo das cargas energéticas do funcionamento psíquico Freud havia proposto inicialmente a dominância do princípio de prazer o qual postulava que todo organismo visaria alcançar um grau estável de tensão mínima No entanto Se tal dominância existisse a imensa maioria de nossos processos mentais teria de ser acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele ao passo que a experiência geral contradiz completamente uma conclusão desse tipo FREUD 19201996 p 20 Este é o paradoxo que atormentou o mestre de Viena levandoo a questionar suas idéias iniciais e a elas acrescentar o que denominou de compulsão à repetição ou seja uma tendência do psiquismo à reprodução de experiências desagradáveis e inviabilizadoras de satisfação Isso possibilitou uma reorientação da teoria psicanalítica agora equilibrada 113 na força de dois conceitos específicos Eros e Tanatos responsáveis respectivamente pelas pulsões de vida e morte Novamente segundo GarciaRoza 1995 porém este novo posicionamento não teria representado a completa refutação dos escritos anteriores de Freud mas somente uma espécie de mudança de rumo Com Além de Princípio do Prazer tem início o que se costuma chamar de viragem dos anos 1920 Essa viragem não representa propriamente uma ruptura com a primeira tópica O que ocorre a partir de 1920 é muito mais um deslocamento temático do que uma restruturação teórica Tratase de uma outra ordem de questões 1995 p 205206 Uma perspectiva semelhante é adotada por Figueiredo 1999 para o qual o problema das leituras canônicas de Além do Princípio de Prazer residiria na sua ênfase exagerada e simplificadora quanto a um dualismo pulsional de natureza estática Tal postura exclusivista pensa nosso autor reduziria a alteridade do próprio texto aproximandose ainda de uma certa metafísica Com isso para Figueiredo 1999 a despeito talvez da própria intenção do pai da psicanálise seria possível perceber uma lógica da suplementaridade no que se refere aos pólos compostos por Eros e Tanatos o que Freud nos oferece é uma sinuosa argumentação na qual a sociedade a natureza o indivíduo e as relações entre indivíduo e cultura longe de formarem sistema são surpreendidos em seus movimentos nos processos extremamente complexos em que se opõem e se conciliam se diferenciam e se reúnem segundo uma lógica nãoidentitária uma lógica da suplementaridade FIGUEIREDO 1999 p 34 Neste mesmo sentido tornase interessante mencionar aqui os trabalhos de Kofman 1973 e Chnaiderman 1997 os quais convidandonos a um retorno a O Inquietante apontam a ocorrência desta ação complementar entre as pulsões de vida e morte no próprio texto freudiano Em primeiro lugar pela sua estrutura fragmentada marcada simultaneamente pelo desejo de unidade e pela necessidade da introdução de variadas rupturas e distinções55 Em segundo pela conjunção de temas aparentemente tão díspares como a estética e a angústia a beleza e o terror 55 Aspecto esse também destacado por Cesarotto 1996 nos seguintes termos Chama a atenção nesta obra o teor dos argumentos esgrimidos para fundamentar as teses expostas Freud não hesita em utilizar elementos dos mais variados discursos montando uma estrutura lógica que se sustenta pelo acúmulo de referências em detrimento da profundidade A pertinência dos temas em jogo é legitimada pela sua articulação apesar de 114 É interessante observar que o texto que prenuncia a última elaboração freudiana da teoria das pulsões tenha como horizonte o sentimento estético unindo a questão do belo à indagação sobre a morte O que seria o sentimento negativo fornece prazer um prazer do além do princípio do prazer Eros e pulsão de morte passam a se implicar CHNAIDERMAN 1997 p 219 Uma vez exposto em linhas gerais o contexto histórico da publicação de O Inquietante passaremos agora a uma breve pesquisa de natureza etimológica a qual pensamos além de auxiliar o leitor na compreensão dos meandros do texto freudiano servirá ainda para demarcar os limites das concepções antropológica e psicanalítica acerca da alteridade Para tanto como se verá adiante contaremos com a preciosa ajuda de Hanns 1996 Mas o que é o Unheimliche afinal É o que nos responde com maestria Hanns 1996 para quem o substantivo alemão Das Unheimliche título original do artigo de Freud 19191976 publicado em português com o nome de O Estranho significa algo inquietante macabro assustador esquisito ou misterioso Após esta definição primária do termo nosso autor passará a um aprofundamento da sua análise esmiuçando a interrelação entre a língua germânica e os pormenores da escrita freudiana Desta forma traçando o mesmo percurso de Freud no artigo em questão FREUD 19191976 Hanns 1996 abordará inicialmente os significados do adjetivo heimlich para em seguida aterse mais especificamente ao substantivo das Unheimliche mencionado acima Assim vemos que dentre os possíveis sentidos de heimlich aparecem as noções de a familiar conhecido b secreto oculto e c inquietante estranho Mais uma vez de acordo com Hanns 1996 o ponto de torção onde o adjetivo alemão passaria de familiar e conhecido para inquietante e estranho se daria no sentido b uma vez que dependendo do ponto de vista seja ele o de quem participa de um segredo ou daquele outro sujeito que dele é excluído uma mesma coisa poderia ser tomada de diferentes maneiras Ou seja conhecida ou oculta Logo os sentidos a b e c formam uma serem ocasionalmente de ordens diferentes Numa sorte de colagem teórica em que o menor traço de surrealismo é esquivado abolido por uma assumida postura racional são incorporadas à perspectiva psicanalítica desde citações literárias até evocações mitológicas numa abordagem intertextual CESAROTTO 1996 p 110 115 seqüência que começa com o mais conhecido e chega ao mais estranho justamente por uma contigüidade que pode percorrer gradações que se iniciam no familiar passam pelo íntimosecretofurtivo e conduzem ao estranho HANNS 1996 p 231 Em seguida Hanns 1996 passa a se ater aos sentidos do adjetivo unheimlich que como se pode notar ainda que derivado de heimlich comporta na sua estrutura o prefixo de negação caracterizado pelo un próximo ao des ou ainda ao in de desconhecido ou incomum da língua portuguesa Com isso seguindo o exemplo anterior nosso autor aponta os seguintes significados para unheimlich d levemente estranho levemente assustador inquietante sinistro esquisito incômodo malestar e enorme grandioso gigantesco fantástico f muito incrivelmente e g indefinível indeterminado ansiógeno inquietante É desta maneira que enriquecendo a sua descrição Hanns 1996 estabelece algumas pequenas distinções demonstrando por exemplo como em termos conotativos unheimlich diz respeito a algo insidioso sussurrado insuspeitado ou mesmo grandioso que pairando no ar representa uma sorrateira ameaça ao sujeito Mais ainda nosso autor aponta como o adjetivo mantém nas acepções d e g um caráter indefinível eou desconfortável diferente de uma situação de pânico relativa a um determinado perigo ou catástrofe que embora de súbita emergência revelese bem delineada Finalmente mantendo o unheimlich no cerne da sua discussão Hanns 1996 tece ainda um interessante contraponto entre a concepção lingüística e a freudiana do fenômeno Do ponto de vista estritamente lingüístico a palavra unheimlich e a substantivação das Unheimlich possuem somente os sentidos c e d inquietante sinistro Não há no emprego das palavras unheimlich e das Unheimliche as ambigüidades de sentido encontradas em heimlich As palavras unheimlich e das Unheimliche não possuem ligação com o sentido a ou seja com a vertente de sentido ligada ao conceito de familiar Entretanto do ponto de vista psicanalítico Freud procura demonstrar que tal ambigüidade também se faz presente em das Unheimliche HANNS 1996 p 232 Já no que se refere à análise do substantivo das Unheimliche segundo foco do interesse de Hanns 1996 podemos perceber aí a sua evidente complementaridade em relação aos sentidos d e g do há pouco destacado adjetivo unheimlich Isso porque em termos gerais também aquele o substantivo alemão nos remete a uma sensação de 116 desamparo diante do imprevisível inapreensível ou nãolocalizável aos quais acrescenta Hanns 1996 juntarseia mesmo um certo conteúdo fantasmagórico Mais adiante o trabalho de Hanns 1996 avança rumo a uma questão que concerne diretamente aos nossos propósitos aqui Tratase da comparação direta entre o das Unheimlich alemão e o estranho sua mais freqüente tradução em língua portuguesa Neste sentido Hanns 1996 enfatiza que a adaptação do termo para o nosso idioma acrescenta à sua dimensão original um novo significado o de estrangeiro questão de alteridade perdendo por outro lado o quê de sobrenatural predominante em sua acepção germânica Daí inclusive a nossa opção aqui por O Inquietante ao invés do habitual O Estranho Em português o estranho pode evocar a idéia de alguma alteridade de um outro externo forasteiro que seja diferente e esquisito Em alemão esta idéia está mais presente no termo Fremd freqüentemente utilizado por Freud Unheimlich também é externo e estranho mas centrase na origem fantasmagórica e sinistra Ao traduzirse o termo das Unheimlich por o estranho perdemse as conotações inquietante e fantasmagórica de que algo cerca o sujeito sorrateiramente HANNS 1996 p 234235 Diante disso restanos agora passar ao fundamento do presente capítulo Qual seja a realização de uma leitura pormenorizada de O Inquietante utilizandoa como precioso material para reflexão acerca do tipo de alteridade de que nos fala a psicanálise aquela própria ao Inconsciente Sem mais preâmbulos mãos à obra O texto em Si reflexões a partir do Das Unheimliche freudiano Freud 19191976 abre seu trabalho com algumas considerações de ordem estética ainda que saliente não ser este um terreno muito comum para intervenções psicanalíticas Para si contudo estas se justificariam quando da abordagem de temas um tanto quanto obscuros ou mesmo negligenciados já que pouco afeitos a aproximações com o que se convenciona chamar de belo ou grandioso Dentre estes teríamos aquela 117 capacidade da obra de arte na literatura por exemplo de provocar em seus apreciadores sentimentos como o de uma desconfortável inquietude das Unheimliche 56 Ou seja tratase da experiência daquilo que atrai e seduz mas que ao mesmo tempo também choca eou aterroriza provocando repulsa Portanto subvertendo a lógica da nãocontradição característica da filosofia aristotélica entramos aqui no curioso terreno de uma espécie de fascínio exercido pela liminaridade do sentimento do negativo Este por seu turno relativo a uma fratura à dissonância de uma intensidade sem palavras à angústia do que não pode ser descrito circunscrito e principalmente controlado mas apenas vivenciado Neste sentido contrastando a aproximação freudiana do fenômeno do inquietante com aquela outra própria aos especialistas em estética da época do pai da psicanálise Kofman 1973 destaca como o trabalho de Freud 19191976 provaria que aqueles últimos se manteriam prisioneiros de préconceitos metafísicos que os conduziriam a uma oposição radical entre os terrenos do belo e do feio da atração e da repulsa privilegiando os primeiros em relação aos segundos Ainda para Kofman 1973 tal recusa e sintomático privilégio teriam servido como motivação para que Freud 19191976 demonstrasse como a psicanálise teria algo a dizer sobre o tema da estética associandoa a um caso particular de retorno do reprimido onde ficaria subentendida uma não separação entre o inquietante e os sentimentos ditos positivos Assim já que também o prazer implicaria um retorno de fantasmas infantis Toda obra de arte deveria fazer nascer o inquietante se o artista não se utilizasse do sedutor artifício da beleza para desviar a atenção do eu impedindoo de se manter alerta ao retorno dos fantasmas reprimidos KOFMAN 1973 p 14057 Assim sugere Kofman 1973 pode ser depreendida aqui a oposta de uma relação entre o inquietante a satisfação estética e a pulsão de morte todos associados pela emergência de conteúdos infantis anteriormente reprimidos Ou seja conforme nossa autora a despeito da clivagem proposta pela estética tradicional uma importante mensagem presente no texto de Freud 19191976 é aquela de um estranhamento dos 56 Tal perspectiva leva uma autora como Kristeva 1994 a elevar o trabalho do pai da psicanálise a um patamar mais amplo que o da estética literária Para si poderseia perceber no texto freudiano uma pesquisa que englobaria também o tema da angústia em geral e ainda o próprio dinamismo do Inconsciente Efetivamente é o que constataremos de agora em diante 57 No original francês Toute oeuvre dart devrait faire naître linquiétante étrangeté si lartiste nusait de lartifice séducteur de la beauté pour détourner lattention du moi et lempêcher de prendre garde au retour des fantasmes refoulés trad nossa MRS 118 limites entre positivo e negativo Todo prazer seria então misturado heterogêneo mêlé De volta ao texto de Freud 19191976 este sugere duas vias possíveis para um estudo apropriado da acima referida sensação de desassossego despertada pela criação artística Primeiro uma pesquisa históricocomparativa voltada ao desenvolvimento lingüístico desta palavra no contexto de variadas culturas Em segundo lugar a procura da elucidação de uma essência do sinistro a partir da reunião de características particulares de coisas pessoas e vivências com poder suficiente para despertarem em nós essa impressão Ambos os caminhos porém revela nosso autor de antemão acabarão por nos conduzir a um mesmo resultado o inquietante é aquela variedade do aterrorizante que remonta ao há muito conhecido ao há muito familiar FREUD 19191976 p 22058 Eis a hipótese freudiana que orientará seu pensamento ao longo do texto Com efeito há aqui a aposta de que por detrás do aparentemente incompreensível ou atemorizante esconderse ia algo há muito conhecido ainda que reprimido e digamos assim deslocado para uma penumbra não contemplada pela luz do dia leiase afastado da consciência Mas podese perguntar de que maneira o mestre de Viena alcança tal conclusão Enfim como constrói a sua linha de raciocínio É o que veremos a partir de agora Ao dar início à primeira das abordagens que propôs para o estudo do unheimlich Freud 19191976 nos remete à etimologia desta palavra na língua alemã Assim demonstra como em princípio poderíamos deduzir uma relação direta e inequívoca entre a inquietude e a nãofamiliaridade em termos de incerteza intelectual Entretanto apoiando se no fato de que nem toda novidade é necessariamente amedrontadora significando portanto que algo a mais deveria ser acrescido ao inusitado para tornálo digno de medo o texto do pai da psicanálise alcança uma interessante virada ao procurar ir mais além desta relação Neste sentido Freud 19191976 parte rumo à análise das diferentes expressões deste mesmo sentimento do inquietante em outros idiomas como o latim o grego o inglês o francês e o espanhol Tal esforço acabaria por revelar um interessante paradoxo dentre os 58 Na versão castelhana feita a partir do alemão de Freud lo ominoso es aquella variedad de lo terrorífico que se remonta a lo consabido de antiguo a lo familiar desde hace largo tiempo trad nossa MRS 119 variados matizes da palavra heimlich pelo menos um em específico coincidiria com o seu oposto imediato unheimlich59 Eis o que conduz nosso autor à afirmação de uma constante presença do inominável na sombra do aparentemente conhecido Então heimlich é uma palavra que desenvolveu seu significado seguindo uma ambivalência que por fim coincide com seu oposto unheimlich De alguma forma unheimlich é uma variedade de heimlich FREUD 1919197660 Aliás esta mesma idéia já havia sido pelo menos parcialmente desenvolvida em trabalhos anteriores do próprio Freud Exemplos são A Interpretação dos Sonhos FREUD 19001996 notável pela sua demonstração de que a lógica própria aos processos primários a lógica do Inconsciente não conhece nem a oposição e nem tampouco a contradição e ainda Sobre o Significado Antitético das Palavras Primitivas FREUD 19101996 o qual aponta a ocorrência de significados diferentes e mesmo excludentes em palavras específicas de línguas antigas como a egípcia Com isso de maneira complementar Freud acabaria por comprovar o caráter regressivo arcaico da expressão de pensamentos no sonhos Em sua origem a linguagem estabelecia conexões entre objetos que depois eram obliterados mas que reapareciam no simbolismo onírico CHNAIDERMAN 1997 p 223 Conforme anunciado anteriormente após esta incursão pelo terreno da lingüística Freud 19191976 alcança a segunda parte da sua pesquisa quando passará em revista algumas impressões eou experiências particularmente ligadas ao inquietante Assim o primeiro exemplo utilizado por ele para discutir a vivência concreta deste sentimento recai sobre os autômatos ou bonecos de cera enquanto possíveis causadores da dúvida sobre um ser animado estar realmente vivo ou ao contrário se um objeto aparentemente inerte não seria na verdade um ser portador de vida É precisamente tal questionamento que nos reconduzirá ao universo das obras de arte particularmente ao campo da literatura Afinal Freud 19191976 adotará como 59 O que Freud 19191976 faz aqui é apontar a relatividade de uma expressão Logo também de uma situação já que determinado conteúdo pode ser ao mesmo tempo amplamente conhecido por um grupo específico ou iniciado e desconhecido por outras pessoas leigas digamos assim Por exemplo a chamada Cosanostra da máfia italiana que gerou gângsteres como o famoso Al Capone tratava sem dúvida de assuntos bastante heimlich familiares para seus membros mas que eram simultaneamente unheimlich escusos para as autoridades federais norteamericanas 60 Na versão castelhana Entonces heimlich es uma palabra que há desarrollado su significado siguiendo una ambivalencia hasta coincidir al fin con su opuesto unheimlich De algún modo unheimlich es una variedade de heimlich trad nossa MRS 120 exemplo privilegiado da sua análise o conto O Homem da Areia de autoria de ETA Hoffmann 1817199361 relativamente famoso entre outras coisas por uma de suas personagens Olímpia Em dado momento da narrativa esta última dada a sua graça beleza e aparente vivacidade tornase objeto da paixão de Natanael um homem assombrado por fantasmas do passado O desenrolar da história porém revela ao nosso candidato a Romeu o fato de que Olímpia não passa na verdade de uma boneca descoberta essa que provoca no leitor uma certa estranheza Entretanto como vimos anteriormente Freud 19191976 não se satisfaz com esta associação entre o sentimento do unheimlich e a nãofamiliaridade em termos de incerteza intelectual É assim que voltará sua atenção a um outro personagem que também presente no conto de Hoffmann 18171993 conferelhe inclusive o próprio título Tratase do há pouco mencionado homem da areia Para alcançálo porém Freud 19191976 retorna ao há pouco referido Natanael alguém que tal qual as pacientes histéricas atendidas pelo pai da psicanálise em sua clínica vienense sofria terrivelmente em sua vida adulta de reminiscências ligadas à infância as quais o tornavam confuso e incapaz de amar plenamente Ao esmiuçar as origens da desventura de Natanael Freud 19191976 verifica a ocorrência de um antigo trauma Tratase da morte do pai do personagem associada por sua vez a duas outras figuras Coppelius soturno e assustador advogado que costumava fazer visitas noturnas ao falecido e finalmente o homem da areia espécie de bicho papão que na cultura alemã servia para auxiliar as mães a mandarem seus filhos para a cama Isso sob a ameaça de terem seus olhos primeiramente feridos com um punhado de areia e depois roubados para todo o sempre Pois bem a análise freudiana do conto de Hoffmann 18171993 aborda esta angustiante possibilidade da perda dos olhos enquanto um terror em estado bruto logo sem representação psíquica Assim ainda no campo do olhar porém simultaneamente para além dele poderseia notar em tal história um contato de Natanael com o limite da palavra o que o incapacitaria ainda que momentaneamente de constituir uma imagem 61 Escritor alemão nascido no século XVIII e que alcançou considerável notoriedade por um estilo narrativo bastante peculiar e que remetia o leitor ao universo do fantástico eou sobrenatural mesclando em suas histórias os terrenos da fantasia e da realidade confusão esta particularmente capaz de promover o inquietante de que nos fala Freud 19191976 Para maiores detalhes acerca da biografia de Hoffmann consultar o livro de Cesarotto 1996 121 concreta do mundo Em decorrência teríamos ainda presentes no drama do personagem uma confusão de identidades uma espécie de fim dos limites entre o eu e o outro com a ficção avançando demasiadamente a ponto de sobrepujar a própria vida trazendo consigo a loucura e por fim a morte Como se pode notar a experiência do inquietante nos remete a uma série de elementos como o susto e a perda de sentido e realidade suspensão do juízo da existência Segundo Chnaiderman 1997 tratase de emoções internas e relativas ao desamparo infantil as quais não se ligariam a nenhuma significação daí o surgimento da angústia enquanto representante pulsional afetivo indeterminado No conto de Hoffmann há uma circulação de eus nunca ficamos sabendo de quem é o olho que olha O Eu é despojado de suas fontes narcísicas A queda da imagem é a queda da máscara levando à falta de forma no Eu Na experiência do estranhamente familiar o mundo objetivo desaparece o objeto cai desaba Surge a angústia enquanto representante pulsional afetivo indeterminado Angústia que tem a ver com o traumático da constituição do sujeito Instaurase o limite da palavra colocando o intervalo do que não pode ser dito o inapreensível entre a percepção e a marca mnêmica portanto não recalcável É o momento de origem da representação ou do que é da ordem do irrepresentável CHNAIDERMAN 1997 p 225226 Estritamente associada a estes aspectos temos a essência da interpretação freudiana de O Homem da Areia a qual privilegia o conceito psicanalítico de Complexo de Castração62 Neste contexto em termos edipianos tal entidade sobrenatural apareceria como uma reedição da figura paterna que estrangeira por excelência ao se interpor em meio à ilusão de completude que inicialmente caracterizaria a relação mãebebê imprimiria no psiquismo infantil a ambivalência de sentimentos como amor ódio e temor Nos termos do próprio Freud A partir de uma mentalidade racionalista é claro podese desautorizar este redirecionamento da angústia pelos olhos à angústia pela castração No entanto deixarseá assim sem explicação a substituição recíproca que no sonho 62 Para Laplanche e Pontalis este se qualifica enquanto um Complexo centrado na fantasia de castração que proporciona uma resposta ao enigma que a diferença anatômica dos sexos presença ou ausência de pênis coloca para a criança Essa diferença é atribuída à amputação do pênis na menina A estrutura e os efeitos do complexo de castração são diferentes no menino e na menina O menino teme a castração como realização de uma ameaça paterna em resposta às suas atividades sexuais surgindo daí uma intensa angústia de castração Na menina a ausência do pênis é sentida como um dano sofrido que ela procura negar compensar ou reparar O complexo de castração está em estreita relação com o complexo de Édipo e mais especialmente com a função interditória e normativa 1992 p 73 122 na fantasia e no mito se dá entre o olho e o membro masculino e não se poderá contradizer a impressão de que por detrás da ameaça de ser privado da genitália se produz um sentimento particularmente intenso e obscuro e que é esse sentimento que empresta seu eco à representação de perder outros órgãos Finalmente qualquer outra dúvida desaparece quando a partir da análise dos neuróticos averiguase o Complexo de Castração em todos os seus detalhes e se toma conhecimento do enorme papel que desempenha na vida anímica de tais pacientes Estes traços do conto como muitos outros parecem caprichosos e carentes de significado se é desautorizado o nexo da angústia pelos olhos com a castração mas fazem pleno sentido com a substituição do Homem da Areia pelo pai temido de quem se espera a castração Portanto arriscarnosemos a associar o inquietante do Homem da Areia à angústia do complexo infantil de castração FREUD 19191976 p 23123363 Bem mais recentemente toda esta problemática seria aprofundada de maneira exaustiva por Kofman 1973 que partindo do inquietante freudiano retorna ao conto de Hoffmann 18171993 para nele analisar a passagem da morte do pai de Natanael como uma espécie de réplica diabólica leiase também uma formação de compromisso relativa à cena primitiva do ato sexual parental Segundo Kofman 1973 corroborariam com tal interpretação certos aspectos da cena em questão a qual se passa à noite em um mesmo horário e de maneira um tanto quanto ritual sendo ainda permeada por sons específicos etc Assim como no trabalho do sonho observa Kofman 1973 tornase interessante notar a inversão dos elementos aqui presentes Por exemplo tratase de dois homens e não de um homem e uma mulher os personagens particularmente envolvidos no encontro particular que vitima o pai de Natanael ainda que é bem verdade o relato deste último apontasse uma atitude passiva por parte de seu genitor diante da estranha visita noturna de Coppelius Nos termos da autora Tudo se passa como se Natanael curioso em deter o saber supremo aquele da fabricação das crianças produzisse uma resposta na fantasia de 63 Na versão castelhana Dentro de una mentalidad racionalista claro está se puede desautorizar esta reconducción de la angustia por los ojos a la angustia ante la castración Sin embargo así se dejará sin explicar el nexo de recíproca sustitución que en el sueño la fantasía y el mito se da a conocer entre ojo y miembro masculino y no se podrá contradecir la impresión de que tras la amenaza de ser privado del miembro genital se produce un sentimiento particularmente intenso y oscuro y que es ese sentimiento el que presta su eco a la representación de perder otros órganos Y en definitiva toda duda ulterior desaparece cuando a partir de los análisis de neuróticos se averigua el complejo de castración en todos sus detalles y se toma conocimiento del grandioso papel que desempeña en su vida anímica Estos rasgos del cuento como otros muchos parecen caprichosos y carentes de significado si uno desautoriza el nexo de la angustia por los ojos con la castración pero cobran pleno sentido si se remplaza al Hombre de la Arena por el padre temido de quien se espera la castración Por tanto nos atreveríamos a reconducir lo ominoso del Hombre de la Arena a la angustia del complejo infantil de castración trad nossa MRS 123 uma criação mágica do tipo prometéica da qual a mulher se mantém excluída KOFMAN 1973 p 16764 Neste mesmo sentido sustenta Kofman 1973 tal movimento rumo ao saber proibido não poderia permanecer impune algo pressentido pelo próprio Natanael e sua reação de medo acompanhada de tremedeira Teríamos aí pensa a autora a deixa para a inferência quanto à emergência de um sentimento mais antigo aquele da angústia de castração particularmente associado conforme o referencial freudiano ao Complexo de Édipo FREUD 19241996 1925b1996 No caso de Natanael como vimos algo evidenciado pelo pavor quanto a perder os olhos para o homem da areia Com efeito sugere Kofman 1973 na fantasia do jovem menino poderia ser lido um desejo de aniquilamento e tomada do lugar do pai desejo este exemplificado pela sua representação enquanto figura marcadamente passiva Assim a cena mágica descrita por Natanael possivelmente representaria o retorno real de uma outra cena somente fantasiada o que inclusive ocasionaria uma sobredeterminação do sentimento inquietante Portanto de acordo com a interpretação que lhe confere Kofman 1973 a partir do referencial freudiano o conto de Hoffmann poderia ser tomado como uma lembrança encobridora destinada a camuflar um desejo proibido já que incestuoso pela mãe bem como a ameaça de morte daí resultante Kofman 1973 porém ainda não encerrou as suas considerações Prova disso é que um pouco mais adiante retomando alguns dos seus postulados anteriores nossa autora propõe que além da angústia de castração o medo da perda dos olhos por parte de Natanael obedeceria ainda mais diretamente à lei de talião já que ligado a uma falta que teria por princípio uma compulsão escópica Por sinal origem dos demais atos culpas e problemas do jovem ao longo da história65 Nos termos de Kofman Porque Nathanaël não é o pai graças também a uma imaturidade biológica do prazer sexual ele não pode ter senão uma representação e uma representação interdita A importância do duplo no restante da sua vida remete a esta primeira substituição do ato pela representação representação original que toma o lugar de uma presença desde sempre interdita O olho de Nathanaël se torna daí em diante diabólico já que desde muito cedo ele foi desviado da sua função natural 64 No original Tout se passe comme si Nathanaël curieux de détenir le savoir suprême celui de la fabrique des enfants y trouvait une réponse en fantasmant une création magique de type prométhéen doù la femme se trouve exclue trad nossa MRS 65 Quanto a este aspecto conferir também Cesarotto 1996 e Mezan 2002 124 para se transformar em um órgão de prazer Ou quando um órgão é desviado simbolicamente da sua função ele acaba sempre por não poder mais exercêla corretamente o voyeur de uma maneira ou de outra perderá sua visão KOFMAN 1973 p 17066 Tal deficiência do olhar de Natanael segue Kofman 1973 poderia ser observada na sua incapacidade em distinguir o animado do inanimado e conseqüentemente o real do imaginário Ou seja nosso herói enxergaria tudo dobrado uma referência ao tema do duplo que marca toda a trama em questão ao que seria possível acrescer a importância simbólica dos óculos e lunetas no decorrer da história Kofman 1973 avança em sua análise ressaltando um tema que acabará por deter considerável importância nas observações finais feitas por nossa autora acerca do trabalho de Freud 19191976 Tratase da pouca ênfase conferida pela leitura do pai da psicanálise à figura feminina da mãe em O Homem da Areia redução aliás presente no próprio escrito de Hoffmann 18171993 Voltaremos a isso Por hora ainda no campo das relações parentais resta destacar que Kofman 1973 chama nossa atenção para uma espécie de herança no que se refere a esta há pouco referida clivagem ou duplicidade da qual Natanael é vítima Isso porque também o pai deste personagem oscilaria entre a segurança e a fraqueza a atividade e a passividade a bondade e a maldade o que dificultaria uma identificação do filho com a sua figura e assim com o próprio eu67 Neste sentido o terror da castração poderia ser pensado como algo ligado a tal dificuldade em se identificar com uma figura estável Aqui vale dizer seguindo uma perspectiva inaugurada por Freud 1922231996 Kofman 1973 estabelece uma interessante relação entre o diabo representado pelo malévolo homem da areia e o pai de Natanael ambos ligados em sua divisão ou duplicidade Em outros termos as metamorfoses do mal no decorrer da história seriam um 66 Ibidem Parce que Nathanaël nest pás le père à cause aussi de limmaturité biologique de la jouissance sexuelle il na pu avoir quune représentation et une représentation interdite Limportance du double dans la vie ultérieure renvoie à cette première substitution de lacte par la représentation représentation originaire qui tient lieu dune présence toujours déjà interdite Loeil de Nathanaël est devenu diabolique parce que très tôt il a été détourné de sa fonction naturelle pour se transformer en un organe de jouissance or lorsquun organe est détourné symboliquement de sa fonction il finit toujours par ne plus pouvoir sexercer correctement le voyeur dune manière ou dune autre perdra la vue trad nossa MRS 67 Com efeito pensa Kofman 11973 Natanael aparece como um prisioneiro do duplo pois sempre dividido em si mesmo Neste sentido sua postura um tanto quanto narcísea eou ensimesmada ao longo do conto funcionaria como meio para tentar conquistar um mínimo de unidade em termos de identidade 125 reflexo das transformações desta figura paterna nunca percebida enquanto coincidente consigo mesma especialmente após as visitas do misterioso Coppelius Tornase possível então sugere Kofman 1973 unir os três personagens acima como representantes de uma única alteridade fundamental desde que lembremos o quanto em termos psicanalíticos leiase edipianos a figura paterna é em geral associada a de um intruso que romperia com a ilusão de completude característica da relação inicial do bebê com sua mãe Portanto um homem que desde a sua introdução na intimidade e aparente completude familiares passa a ser sinônimo de divisão e diferença assim como Coppélius o homem da areia Conforme Kofman O homem da areia é desde sempre o intruso que põe fim à segurança familiar que rompe a intimidade do próprio e do próximo figura do estrangeiro da alteridade que traz consigo a tristeza e o abandono privando de todos os prazeres já que privando do pai Que a separação do pai e a angústia que ela provoca lembram a aflição mais antiga experimentada logo que a criança foi privada da mãe quando das relações sexuais entre seus pais não há dúvida mesma curiosidade mesma angústia nos dois casos KOFMAN 1973 p 17368 De volta ao caráter bipartido do olhar de Natanael em relação a seu pai Kofman 1973 destaca o quanto aí se faria presente uma clivagem entre bom e mal com o objetivo de eliminar a mistura tendendo a conservar a imagem de um pai inicialmente benevolente mas que posteriormente teria sido corrompido pelo diabo O problema diz nossa autora é que tal separação não se daria de uma maneira perfeita pelo próprio fato do pai ser corruptível podendo se transformar em seu contrário Eis a essência do dilema que definiria Natanael e importante aproximáloia do rei Édipo a impossibilidade de deter limites garantidos confundindo o animado e inanimado o homem e a mulher O que o angustia não é tanto a dualidade dos caracteres mas a passagem de um a outro que o mesmo possa se tornar outro A ambivalência atribuída a Édipo se inscreve em uma incapacidade de suportar a ambivalência desde sempre existente em seu pai Ela recobre já uma divisão anterior ela dissimula que o outro separe sempre o mesmo de si mesmo KOFMAN 1973 p 17569 68 No original Lhomme au sable cest dabord lintrus qui met fin à la sécurité familiale qui rompt lintimité du propre et du proche figure de létranger de lalterité qui apporte chagrin et détresse privant de tous les plaisirs parce que privant du père Que la séparation avec le père et langoisse quelle provoque rappelle langoisse plus ancienne éprouvée lorsque lenfant était prive de la mère lors des relations sexuelles nul doute même curiosité mêmes angoisses dans les deux cas trad nossa MRS 69 Ibidem limpossibilité davoir des limites assurées de confondre lanimé et linanimé lhomme et la femme Ce qui langoisse ce nest pas tant la dualité des caractères que le passage de lun dans lautre que le 126 Como vimos no percurso do estrangeiro em Freud realizado por Koltai 2000 o mestre de Viena acabaria por esclarecer melhor tal relação entre a alteridade e a função paterna alguns anos depois da publicação de O Inquietante em Inibição Sintoma e Angústia FREUD 19261996 Há pouco tempo porém este mesmo tema voltaria à baila no trabalho de Viviani 2002 o qual chama nossa atenção para o valor do pai como um desconhecido que incide sobre o mesmo ou seja a pretensa unidade mãebebê produzindo com tal movimento um sujeito singular que livre do olhar materno poderia dar conta do seu próprio desejo Assim temos que a própria emergência da subjetividade coincidiria com a inauguração da condição de estranho de estrangeiro É neste sentido que se torna possível pensar a relação entre a função do pai e esta outra do Unheimliche do inquietante ou estranhamente familiar nosso atual foco de interesse O pai é um estrangeiro Não é um igual A função do pai mutatis mutandis lembremse de Cronos é exercer a castração Quer dizer uma função de separação de uma unidade e nessa separação realizase um segundo nascimento o nascimento para o desejo e para a sexuação para a sexualidade O filho agora não é o que pensava ser Há uma falta no ser A partir do dois temos o três Na realidade o pai será o terceiro termo a posição e função do estrangeiro Como vemos a intervenção paterna a função paterna torna possível que o sujeito possa se contar não como Um da totalidade do universo mas como um da singularidade identificado com esse traço que o caracteriza enquanto sujeito dividido O pai então é o estrangeiro que põe limite ao gozo obsceno da célula narcisista VIVIANI 2002 p 149150 Feitos estes acréscimos é hora de retornarmos a Freud 19191976 que após se ocupar de O Homem da Areia buscará em seguida testar a plausibilidade da associação entre o sentimento do sinistro e um fator de ordem infantil pela possibilidade ou não de aplicála a outros contextos Assim será a partir de Os Elixires do Diabo também uma novela de ETA Hoffmann 1815161983 que o pai da psicanálise nos remeterá ao tema do duplo Com isso ainda que não nos forneça maiores detalhes sobre o conteúdo da obra em questão Freud 19191976 destaca nela a ocorrência de uma grande semelhança entre os personagens em termos de conhecimentos e experiências comuns Enfim uma confusão de identidades pautada pela mútua identificação entre os sujeitos da même puísse devenir lautre Lambivalence due à LOedipe se greffe sur une incapacité à supporter lambivalence toujours déjà existante dans le père elle recouvre là encore une division plus originaire elle dissimule que lautre écarte toujours le même de luimême trad nossa MRS 127 trama aliada à duplicação divisão e intercâmbio do eu processos estes acentuados inclusive pela ocorrência de manifestações telepáticas Aqui o texto freudiano toma como referência um trabalho prévio de Rank 19141976 que acabaria por se revelar bastante útil tanto por propor uma reflexão acerca da interrelação entre o duplo as sombras o animismo e a morte quanto de maneira complementar por buscar traçar a própria evolução desta idéia Como bem resume Chnaiderman Nele Rank procurou entender a origem dessa questão na história da humanidade pensando as várias relações entre a própria imagem vista no espelho e a sombra o espírito tutelar a doutrina da alma e o medo da morte O duplo foi na sua origem uma segurança contra o sepultamento do eu enérgico desmentir do poder da morte sendo provável que a alma seja uma duplicação para defenderse do aniquilamento CHNAIDERMAN 1997 p 224 Freud 19191976 se utiliza de tal quadro para a partir dele sustentar a opinião de que em pleno contexto do século XX teríamos ainda um espaço reduzido para a representação da morte70 Assim interpreta também entre nós a ocorrência do duplo em termos da crença em uma alma imortal por exemplo apareceria como uma medida de segurança diante das sempre eminentes ameaças de destruição da vida por intermédio da doença da velhice ou mesmo pelas forças da natureza Com efeito aponta nosso autor a persistência destas superstições explicaria a ligação entre o sentimento do inquietante Das Unheimliche e os temas da magia do animismo e da onipotência do pensamento Neste processo segue Freud 19191976 poderseia verificar um reflexo direto do narcisismo primário o qual caracterizaria tanto a mente da criança quanto a do homem primitivo71 70 Anacronismo este que leva uma autora como Kristeva 1994 a destacar o inquietante como o reflexo do próprio modus operandi do Inconsciente em sua íntima relação com a repressão Nestes termos partindo da constatação freudiana de que a sensação de sobrenatural se ligaria à angústia de um retorno do reprimido nossa autora enfatiza que poucos seriam os casos onde se apresentaria a completa repressão de um conteúdo qualquer Logo este mesmo retorno do reprimido sob a forma de angústia apareceria como uma metáfora do próprio funcionamento psíquico constituído não somente pela retenção mas também por uma necessária travessia ou permeabilidade todos elementos indispensáveis quer seja para a construção do sobrenatural quer seja para a construção do próprio outro Com isso para Kristeva 1994 orientaria o texto de Freud 19191976 ainda que sutilmente o desejo de revelar as circunstâncias que possibilitariam tal travessia do conteúdo reprimido 71 Para além da menção ao caráter digamos assim politicamente incorreto da associação freudiana entre as figuras do selvagem e da criança no que se refere aos temas do narcisismo e da onipotência do pensamento anteriormente presente em Sobre o Narcisismo uma introdução FREUD 19141996 e derivada das 128 Entretanto novamente para Freud 19191976 uma vez superada esta etapa do desenvolvimento humano ocorreria uma interessante mudança no status do duplo que de garantia de imortalidade passaria à condição de ameaçador arauto de mauspresságios72 Para justificar tal afirmação o mestre de Viena nos remete a uma ocorrência outrora já debatida em Sobre o Narcisismo uma introdução e Luto e Melancolia FREUD 19141996 e 1915171996 respectivamente Tratase da progressiva formação de uma instância psíquica que embora gerada a partir do Ego dele se apartaria exercendo sobre este uma atividade de observação e censura Ainda que denominada aqui consciência moral temos na verdade o prenúncio do Superego que pouco depois vale lembrar alcançaria grande importância em Além do Princípio de Prazer sendo mais tarde retomado em trabalhos como O Ego e o Id FREUD 19201996 e 19231996 respectivamente Neste ponto da nossa leitura tornase importante relembrar o fio condutor proposto pelo próprio Freud 19191976 para a sua análise do inquietante Qual seja o de que este fenômeno seria aquela variedade do aterrorizante que remontaria ao familiar ao há muito conhecido porém reprimido Afinal é com esta perspectiva que podemos compreender a seguinte afirmação com a qual nosso autor encerra seus comentários sobre o duplo enquanto possível representante de uma vivência unheimlich o caráter inquietante só pode se apoiar no fato de que o duplo é uma formação oriunda de épocas primevas e já superadas da vida anímica sendo que naquele tempo ele o duplo possuiu sem dúvida um sentido mais benigno O duplo se tornou uma figura aterrorizante assim como os deuses que com a ruína da sua religião convertemse em demônios FREUD 1919197673 idéias do chamado Evolucionismo Social que marcou a transição do século XIX ao XX SOUZA 2003 cabe aqui definir o narcisismo primário Neste sentido vejamos o que mais uma vez nos dizem Laplanche e Pontalis Em Freud o narcisismo primário designa de um modo geral o primeiro narcisismo o da criança que toma a si mesma como objeto de amor antes de escolher objetos exteriores Esse estado corresponderia à crença da criança na onipotência dos seus pensamentos quer se aceite ou se recuse a noção designase sempre assim um estado rigorosamente anobjetal ou pelo menos indiferenciado sem clivagem entre um sujeito e um mundo exterior 1992 p 290 72 Aliás também quanto a este aspecto O homem da areia de Hoffmann 18171993 parece exemplar nas metáforas que utiliza É o que nos lembra Fuks A saída de Natanael para o mundo levao a um confronto com uma experiência de repetição percebida como tal sob a forma do fatídico personagem que representa o que para Freud 1919 é um duplo do pai Esse encontro reinstala o sinistro 1997 p 206 207 73 Em castelhano el carácter de lo ominoso solo puede estribar en que el doble es una formación oriunda de las épocas primordiales del alma ya superadas que en aquele tiempo poseyó sin duda un sentido más benigno El doble ha devenido una figura terrorífica del mismo modo como los dioses tras la ruina de su religión se convierten en demonios trad nossa MRS 129 O mote da repetição do igual porém permanecerá na ordem do dia para Freud 19191976 sendo inclusive privilegiado como um novo material para a análise da experiência do inquietante É assim que somos remetidos a situações que embora vinculadas ao cotidiano acabariam por extrapolar este contexto tornandose inusitadas por se aproximarem de certos estados oníricos onde se estabeleceria uma certa confusão entre realidade psíquica e realidade material A título de ilustração Freud 19191976 nos conta como em viagem a uma pequena cidade italiana subitamente flagrou a si mesmo perdido e caminhando por uma zona de prostituição Embaraçado rapidamente buscou deixar o local mas seus esforços foram seguidamente frustrados pelo retorno à mesma rua suspeita o que lhe causou uma sensação unheimlich somente dissipada quando finalmente reencontrou a pitoresca piazza da região objeto original do seu interesse No parágrafo seguinte vemos Freud 19191976 empenhado em complementar a sua descrição chamando nossa atenção para outros momentos que a seu ver evidenciariam o papel da repetição involuntária em tornar sinistro o que de outra maneira permaneceria inofensivo e corriqueiro Como exemplo cita a coincidência de em um curto espaço de tempo depararmonos com situações ligadas a um mesmo número ou nome de pessoa algo que sobretudo para os indivíduos mais supersticiosos certamente poderia adquirir um ar secreto de sina ou maldição Aqui embora reafirme a vinculação do inquietante retorno do igual a elementos da psicologia infantil Freud 19191976 se isenta de comentários mais aprofundados sobre o assunto sugerindo aos eventuais leitores interessados a leitura de Além do Princípio de Prazer FREUD 19201996 Ainda assim presenteianos com a seguinte e esclarecedora sentença na qual lemos que a vida psíquica é essencialmente pulsional Ou seja dominada por um excesso de sentido intimamente vinculado por sua vez a um impulso de repetição impassível de simbolização pela via da linguagem e que portanto teima em reaparecer sob a inquietante forma do sinistro No inconsciente psíquico com efeito discernese o império de uma compulsão à repetição que provavelmente depende por seu turno da natureza mais íntima das pulsões tem poder suficiente para subjugar o princípio do prazer confere um caráter demoníaco a certos aspectos da vida mental e todavia exteriorizase com muita nitidez nos impulsos infantis governando ainda uma parte do discurso dos neuróticos Todas as elucidações anteriores nos fazem esperar que se sinta como 130 inquietante justamente o que for capaz de recordar essa compulsão à repetição interior FREUD 19191976 p 23874 Nosso autor escolhe então mais uma vez se voltar à coleta de casos que comprovassem a hipótese anteriormente mencionada de que o Unheimliche diria respeito a um tipo de medo ou angústia que aludiria ao anteriormente familiar75 Com isso convida nos a um passeio por terrenos aparentemente tão distintos quanto os versos de Schiller a neurose obsessiva e o popular mauolhado para deles extrair um único elemento em comum a chamada onipotência de pensamento No primeiro exemplo representada pela pronta realização dos desejos de Polícrates personagem do poeta alemão No segundo pelo relato de pressentimentos que mais tarde acabariam por se tornar realidade76 Finalmente no que se refere ao mau olhado pelo receio da efetividade de uma suposta intenção secreta e invejosa de fazer o mal Para Freud 19191976 estes exemplos nos possibilitariam um retorno teórico ao animismo como sistema de crenças derivado de uma incapacidade do selvagem em suportar as proibições impostas pela realidade Tal condição o levaria a em certo sentido confundirse com ela povoando o mundo de almas desencarnadas e preconizando assim uma supervalorização narcísica do sujeito e dos seus processos mentais Isso pela atribuição 74 Ibidem En lo inconciente anímico en efecto se discierne el imperio de una compulsión de repetición que probablemente depende a su vez de la naturaleza más íntima de las pulsiones tiene suficiente poder para doblegar al principio de placer confiere carácter demoníaco a ciertos aspectos de la vida anímica se exterioriza todavía con mucha nitidez en las aspiraciones del niño pequeño y gobierna el psicoanálisis de los neuróticos en una parte de su decurso Todas las elucidaciones anteriores nos hacen esperar que se sienta como ominoso justamente aquello capaz de recordar a esa compulsión interior de repetición trad nossa MRS 75 Embora estes pormenores excedam as pretensões do presente estudo não deixa de ser interessante mencionar aqui o contraponto estabelecido por Pereira 2004 entre as definições de angústia por derivação do Unheimliche presentes nas obras de Freud e Lacan Segundo a autora para o primeiro a angústia apareceria originalmente ligada à ameaça de castração ou perda de um objeto anteriormente presente e particularmente investido logo familiar como a mãe por exemplo Já em Lacan apesar de ainda significar um afeto a angústia não estaria exatamente associada a um sinal de perigo externo ou interno mas à própria posição do sujeito frente a um Outro preexistente exterior e determinante de si do sujeito Neste sentido conforme o aporte lacaniano para além da imagem da qual é feito o homem encontraria a sua casa em um ponto situado no Outro lugar representativo de uma ausência fundamental e constituinte do humano Com efeito segundo o psicanalista francês a angústia somente poderia ser compreendida se levássemos em conta a constituição do sujeito pela via de uma falta estrutural e estruturante sendo que qualquer objeto que parecesse ocupar o lugar desta ausência dispararia o sinal de alarme representado pelo sinistro relação entre falta desejo e vida enquanto movimento 76 Para aquele leitor menos familiarizado com a teoria freudiana este e outros aspectos da estrutura obsessiva são discutidos detalhadamente no relato clínico do chamado homem dos ratos FREUD 19091996 131 a pessoas ou objetos específicos de poderosas qualidades mágicas que influenciariam as ações dos supostos espíritos que governariam a nossa existência Neste momento do texto o pai da psicanálise retoma aquela associação anteriormente feita entre as mentes primitiva e infantil como se todo ser humano houvesse um dia passado por um período do seu desenvolvimento individual semelhante ao animismo enquanto negação narcísica do princípio de realidade E mais preservando certos resquícios desta fase que posteriormente encontrariam sua expressão justamente no sentimento do inquietante77 Eis quando de maneira sintética Freud 19191976 novamente retoma a perspectiva norteadora do seu trabalho expondoa ao leitor através das seguintes observações Em primeiro lugar se a teoria psicanalítica está certa quando assevera que todo afeto de um impulso emocional de qualquer classe que seja se transforma em angústia por obra da repressão entre os casos daquilo que provoca angústia deve haver um grupo em que se possa demonstrar que este angustiante é algo reprimido que retorna Esta variedade do que provoca angústia seria justamente o inquietante sendo indiferente se em sua origem fora algo angustiante ou então se foi substituído por algum outro afeto Em segundo lugar se esta é na verdade a natureza secreta do inquietante podemos compreender que os usos da língua tenham transformado o Heimliche o familiar em seu oposto o Unheimliche pois este inquietante não é efetivamente algo novo ou alheio mas sim algo há muito familiar ao psiquismo somente alijado dele pelo processo da repressão Esse nexo com a repressão ilumina agora também a definição de Schelling segundo a qual o inquietante é algo que embora destinado a permanecer oculto teria vindo à tona FREUD 1919197678 77 Em nota de rodapé Freud 19191976 faz aqui referência a um trabalho anterior que de certa maneira já prenunciava estas idéias Tratase de Animismo Magia e a Onipotência de Pensamentos terceiro dos ensaios contidos em seu famoso e polêmico livro Totem e Tabu FREUD 1912131996 78 Na versão castelhana La primera Si la teoría psicoanalítica acierta cuando asevera que todo afecto de una moción de sentimientos de cualquier clase que sea se trasmuda en angustia por obra de la represión entre los casos de lo que provoca angustia existirá por fuerza un grupo en que pueda demostrarse que eso angustioso es algo reprimido que retorna Esta variedad de lo que provoca angustia sería justamente lo ominoso resultando indiferente que en su origem fuera a sua vez algo angustioso o tuviese como portador algún otro afecto La segunda Si esta es de hecho la naturaleza secreta de lo ominoso comprendemos que los usos de la lengua hagan pasar lo Heimliche lo familiar a su opuesto lo Unheimliche pues esto ominoso no es efectivamente algo nuevo o ajeno sino algo familiar de antiguo a la vida anímica sólo enajenado de ella por el proceso de la represión Ese nexo com la represión nos ilumina ahora también la definición de Schelling según la cual lo ominoso es algo que destinado a permanecer en lo oculto ha salido a la luz trad nossa MRS Aqui a despeito do caráter central desta citação para o entendimento do rumo tomado pelo trabalho de Freud 19191976 vale a pena a título de curiosidade chamar atenção para a última frase onde nosso autor utiliza como argumento para as suas idéias uma citação de Schelling Isso porque segundo um estudioso do filósofo alemão como Carvalho 1989 tratarseia de um uso absolutamente indevido Neste sentido é o mesmo Carvalho 1989 quem enfatiza como ao contrário de Freud 19191976 para o qual a perda do limite entre o eu e o outro significaria algo próximo ao terror tal ocorrência adquiriria em Schelling uma conotação bastante positiva e associada à mitologia Logo o unheimlich do filósofo alemão apareceria como 132 Insatisfeito com a quantidade de exemplos até aqui utilizados para a sua discussão da vivência do inquietante Freud 19191976 escolhe alguns outros como o confronto com a morte e seus conteúdos Para si eis um terreno certamente marcado pela superstição e pelo conservadorismo intelectual relativos por sua vez à recusa do Inconsciente quanto à idéia da própria mortalidade Neste sentido uma das imagens em geral apresentadas como mais freqüentemente assustadoras a de ser enterrado vivo por engano é explicada pelo nosso autor como a transformação de uma outra fantasia originalmente inofensiva aquela da existência intra uterina Aliás sugere Kristeva 1994 tal conteúdo nos remeteria a mais uma das fontes do sinistro catalogadas por Freud 19191976 o feminino representado por uma certa inquietude neurótica em relação à vagina mistura entre terra natal e terra do desconhecido Para além da origem e do fim avança Freud 19191976 teríamos ainda completando este quadro o encontro com o próprio homem enquanto outro potencialmente ameaçador Isso devido à sua suposta qualidade de representante de forças inauditas ou maléficas que ao se tornarem visíveis por exemplo na epilepsia ou na loucura levarnos iam a pressentir a sua presença sorrateira também em cada um de nós79 Antes de seguirmos adiante rumo às últimas páginas do texto de Freud 19191976 cabe enfatizar um outro foco utilizado por ele para discutir a experiência do inquietante exemplo este que dada a sua natureza mais ampla englobando aspectos anteriormente discutidos aqui como a perspectiva freudiana do animismo merece encerrar esta parte da nossa análise Diz respeito ao caráter unhemlich provocado por qualquer sensação de um fim da distinção entre imaginação e realidade Ou seja tratase de uma confusão entre o eu e o mundo para além do campo da linguagem representacional quando aparece diante de nós como real algo que havíamos tomado por fantástico quando um símbolo assume a plena operação e significado do simbolizado FREUD 19191976 p 244 Segundo o pai da psicanálise poderíamos perceber aí a presença de uma supervalorização da realidade psíquica em contraponto à realidade material associada por seu turno à chamada onipotência dos pensamentos resultado imediato da perda do mito enquanto indiferenciação com o mundo ao passo que o estranhamente familiar do mestre de Viena adviria precisamente dos riscos identificados por ele nesta mesma comunhão 79 Novamente para Kristeva 1994 poderseia perceber em tais poderes uma possível manifestação da pulsão como entrecruzamento do simbólico e do orgânico do psíquico e do biológico 133 Eis um tema seguramente importante e que vem sendo homenageado por uma série de reflexões contemporâneas Por exemplo a de Fuks 1997 que estabelece uma interessante relação entre tal discussão e o conceito de recusa Verleugnung proposto por Freud 19271996 em seu trabalho acerca do fetiche enquanto forma de preservação mesmo que inconsciente da crença no falo materno recusa de castração Fuks 1997 lembra ainda que o texto citado trazia também o relato de casos onde a recusa se estabelecia no que se refere à morte do pai De qualquer forma ambas as situações teriam pelo menos um importante ponto em comum produzse uma cisão da vida psíquica em duas correntes uma que aceita a realidade da castração e da morte ou seja a diferença fálicocastrado e a diferença vivomorto e outra corrente ou parte da vida psíquica em que essas diferenças não existem A ausência da corrente que está de acordo com a realidade abre a possibilidade da psicose FUKS 1997 p 20820980 Já para Kristeva 1994 tal coisificação dos signos resultante por seu turno de uma falha do significante arbitrário imposto pela realidade material testemunharia a fragilidade da repressão e o papel do Unheimliche como indício simultâneo das nossas latências psicóticas e da inconsistência da linguagem enquanto barreira simbólica e estruturante do reprimido81 Com efeito na qualidade de perda do limite entre imaginação e realidade o inquietante significaria o desmoronamento das defesas conscientes a partir dos conflitos do ego com o outro com o qual aquele manteria uma relação conflitante e que deslizaria entre os pólos do medo e da identificação 80 Neste mesmo sentido um outro texto de Freud mencionado por Fuks 1997 é o que se refere ao tema dos três escrínios FREUD 19131996 o qual embora anterior guarda uma relação próxima com os temas do duplo e do inquietante e assim interessa de perto à nossa discussão Nele vale lembrar o mestre de Viena se refere à mitologia grega para evidenciar a seguinte compreensão a criação das Moiras deusas do destino e da morte certamente significou um avanço no reconhecimento de que enquanto parte da natureza também o homem estaria sujeito ao mesmo processo de amadurecimento envelhecimento e morte pelo qual passam os demais seres vivos Entretanto este mesmo homem parece se rebelar contra tal reconhecimento pela criação de outros mitos nos quais tanto o amor quanto outras figuras humanas são tornados divindades driblando ou substituindo assim a força inexorável do destino Mais uma vez nos termos de Fuks A mais bela e a melhor das mulheres a mais cobiçada e mais digna de ser amada virá ocupar esse lugar A escolha da mulher esse é o tema do material mitológico ou literário vem dessa maneira substituir a fatalidade A morte admitida no pensamento é superada na fantasia O que não impede que a mais bela e a melhor conserve certos traços inquietantes FUKS 1997 p 209 81 Em tal caso porém o retorno deste reprimido não se manifestaria pela via da atuação ou do sintoma mas pela inquietante sensação do sobrenatural 134 Quantas implicações possíveis deste encontro com o outro pensa Kristeva 1994 principalmente se nos remetem ao outro de nós mesmos Afinal tratase de uma experiência permeada pela introjeção e pela projeção a qual pode ser percebida pelos sentidos mas não necessariamente enquadrada pela consciência clivandonos e deslocando sensações e julgamentos para além dos seguros limites de uma suposta mas como vemos enganosa coerência Eis portanto o abismo imposto pela alteridade revelando um inquietante que põe em cheque a nossa própria ilusão de autonomia Mais uma vez de volta à nossa leitura alcançamos então a terceira e última parte do texto de Freud 19191976 marcada pela defesa do grande papel desempenhado pela repressão Verdrängung na experiência do inquietante Assim aponta nosso autor fazendo também as vezes da promotoria de um júri imaginário um forte argumento a ser superado é o seguinte nem tudo que ao ressurgir evocando consigo desejos supostamente reprimidos eou modos aparentemente superados de pensamento causa necessariamente uma sensação de desassossego Neste sentido os contos de fadas estão repletos de elementos ligados ao animismo e à onipotência dos pensamentos assim como o Novo Testamento traz a marca da ressurreição dos mortos Entretanto tais fenômenos não provocam em seus leitores a angústia do Unheimliche Diante de tal constatação Freud 19191976 pondera que os exemplos contrários à sua tese adviriam em termos gerais dos domínios da ficção literária Daí a necessidade de distinguir o inquietante apenas lido ou vislumbrado daquele outro efetivamente vivenciado ao qual se ajustaria a solução psicanalítica baseada na relação entre o efeito do sinistro e a repressão Todavia acrescenta o mestre de Viena também no que se refere a esse último caberia fazer uma diferenciação psicologicamente importante quanto ao material utilizado na presente discussão em termos da sua superação ou repressão Afinal o desassossego relativo à onipotência dos pensamentos que engloba como vimos o imediato cumprimento de desejos a crença em secretas forças maléficas e o retorno dos mortos nasce de uma condição específica a aparente confirmação de crenças anteriormente superadas pelo teste de realidade da razão objetiva Enquanto isso algo diverso ocorre com o inquietante proveniente de complexos infantis reprimidos do complexo de castração ou das fantasias intrauterinas onde 135 não entra em cena o problema da realidade material substituída pela realidade psíquica Tratase da efetiva repressão desalojamento de um conteúdo e do retorno do reprimido e não do fim da crença na realidade deste conteúdo Então alcançamos o seguinte resultado o inquietante experiencial se produz quando complexos infantis reprimidos são revividos por uma impressão ou quando parecem ser confirmadas convicções primitivas superadas FREUD 19191976 p 24724882 Ainda que nem sempre seja viável estabelecer uma completa distinção entre tais processos avança Freud 19191976 essa nova diferenciação relativa ao inquietante experiencial tornase importante porque o contraste que estabelece entre o superado e o reprimido não poderia ser transposto para o reino da fantasia sem sensíveis modificações Isso porque o inquietante ficcional mais fértil e mais amplo que o anterior dependeria para causar seu efeito precisamente de uma insubmissão do seu conteúdo ao teste imposto pela realidade Logo coisas que caso ocorressem na vida real seriam inquietantes não o são na criação literária onde existem muitas possibilidades de alcançar efeitos inquietantes ausentes na vida real FREUD 19191976 p 24883 Neste mesmo sentido conviria não esquecer que Entre as muitas liberdades do criador literário se encontra também a de escolher ao seu belprazer o universo figurativo que adota de maneira que coincida com a realidade que nos é familiar ou se distancie dela de algum modo E nós o seguimos em qualquer dos casos FREUD 19191976 p 24824984 Estes são em termos gerais os argumentos utilizados por Freud 19191976 em defesa da aplicabilidade da sua hipótese a qual como vimos ao longo desta exposição associa a sensação de unheimlich ao retorno de um conteúdo familiar anteriormente reprimido Agora ao alcançarmos o final do texto paira no ar o sentimento de uma certa onipotência não necessariamente inquietante mas nem por isso menos curiosa É aquela 82 No castelhano no entra en cuenta el problema de la realidad material remplazada aquí por la realidad psíquica Se trata de una efectiva represión desalojo de un contenido y del retorno de lo reprimido no de la cancelación de la creencia en la realidad de ese contenido Entonces nuestro resultado reza Lo ominoso del vivenciar se produce cuando unos complejos infantiles reprimidos son reanimados por una impresión o cuando parecen ser refirmadas unas convicciones primitivas superadas trad nossa MRS 83 Ibidem cosas que si ocurrieran en la vida serían ominosas no lo son en la creación literaria y en esta existen muchas posibilidades de alcanzar efectos ominosos que están ausentes en la vida real trad nossa MRS 84 Ibidem Entre las muchas libertades del creador literario se cuenta también la de escoger a sua albedrío su universo figurativo de suerte que coincida con la realidad que nos es familiar o se distancie de ella de algún modo Y nosotros lo seguimos en cualquiera de esos casos trad nossa MRS 136 proporcionada pelo fato de que tendo se aventurado pelo terreno da estética avaliando os recursos literários de autores como ETA Hoffmann é a retórica do próprio mestre de Viena que ora se submete à nossa apreciação enquanto leitores E então fomos mais ou menos convencidos Que cada intérprete tire as suas próprias conclusões Atendendo a esta solicitação Kofman 1973 por exemplo a despeito de qualificar como salutar a proposta freudiana de tratar personagens fictícios como se fossem de carne e osso o que estabeleceria uma importante ligação entre o real e o imaginário entre o desejo e a obra de arte abolindo assim o caráter sagrado desta última aponta um certo furor objetivante como o limite da inquietante incursão do pai da psicanálise pelo campo literário Nas suas palavras Freud por outro lado ao fazer do texto uma leitura temática daí retirando um significado fundamental o complexo de castração o qual se torna responsável pelo efeito produzido parece se fazer refém da lógica tradicional do signo tornando a obra a ilustração paradigmática de uma verdade exterior e anterior KOFMAN 1973 p 17717885 Como alternativa frente ao impasse representado pelo que considera uma hermenêutica de causa única Kofman 1973 propõe maior ênfase na multiplicidade presente na hipótese da pulsão de morte uma vez que com esta a obra não será mais a ilustração segunda de um modelo original último pois uma tal hipótese fere toda identidade e plenitude de sentido fazendo do texto um duplo original Com a noção de pulsão de morte compreendida enquanto um princípio de economia geral à distinção entre imaginário e real se contrapõe uma problemática do simulacro sem modelo original ela introduz no interior do texto uma estrutura de duplicidade que não se deixa mais apropriar por uma problemática da verdade ou da mentira e nem tampouco se submete a ela KOFMAN 1973 p 17886 85 Ibidem Freud dun autre côté en faisant du texte une lecture thématique en dégageant un signifié fondamental le complexe de castration qui serait responsable de leffet produit semble être pris dans la logique traditionnelle du signe faire de loeuvre une illustration paradigmatique dune vérité qui lui serait extérieure et antérieure trad nossa MRS 86 Ibidem loeuvre ne saurait plus être lillustration seconde dun modèle originaire au sens plein car une telle hypothèse entame toute identité et plénitude de sens et fait du texte un double originaire Avec la notion de pulsion de mort comprise comme un principe déconomie générale à la distinction de limaginaire et du réel se substitue une problématique du simulacre sans modèle originaire elle introduit à lintérieur du texte une structure de duplicité qui ne se laisse plus réapproprier dans une problématique de la vérité ou du mensonge ni maîtriser par elle trad nossa MRS 137 Assim para Kofman 1973 ainda que por um lado o conto de Hoffmann 18171993 autorizasse uma leitura analítica como a de Freud 19191976 por outro ao estabelecer uma infinita proliferação das variadas formas do duplo a inquietante desventura do jovem Natanael impediria que se buscasse nela um sentido pleno do texto a ser alcançado pelo Complexo de Castração Com efeito pensa nossa autora tal multiplicação do duplo para além de dificultar a compreensão da história graças a uma mistura ou confusão de temas faria da própria desordem a regente do texto aspecto este obliterado pelo mestre de Viena Tudo se passa como se Freud não pudesse suportar a importância concernente às pulsões de morte ficando O Inquietante com as suas anulações sucessivas e seu andamento tortuoso como um último esforço para recobrir o retorno do reprimido que emerge na teoria esforço esse que prova uma vez mais o caractere insuportável da hipótese das pulsões de morte KOFMAN 1973 p 17987 Eis o mote para que Kofman 1973 retorne à pouca expressão concedida tanto por Hoffmann 18171993 quanto por Freud 19191976 à figura materna ao longo de O Homem da Areia Para nossa autora teria sido impossível a ambos suportar a proximidade do pequeno Natanael com uma mãe proibida e portanto mensageira do aniquilamento É precisamente tal identificação porém que é tomada por Kofman 1973 como análoga à pulsão de morte Desta forma o trabalho de Kofman 1973 estabelece um contraponto entre duas atitudes disponíveis a todo escritor permanecer na defensiva maquiando seu texto ou por outro lado deter a coragem necessária à abertura de sentido Mais uma vez nas palavras da própria autora tratase para todo escritor de uma defesa vital travestir seu texto recobrilo protegelo por todo um buquê de temas ou se interrogar indefinidamente acerca da fabricação do texto esta que pode ser ainda uma maneira de tentar estabelecer domínio sobre ele KOFMAN 1973 p 18188 87 Ibidem Tout se passe comme si Freud ne pouvait supporter limportance de la découverte concernant les pulsions de mort et que LInquiétante étrangeté avec ses annulations successives sa démarche tortueuse soit comme um dernier effort pour recouvrir le retour du refoulé que emerge dans la théorie effort qui pouve une fois de plus le caractère insoutenable de lhyphothèse des pulsions de mort trad nossa MRS 88 No original il est peutêtre pour tout écrivain une défense vitale travestir son texte le recouvrir le protéger par tout un faisceau de thèmes ou bien sinterroger indéfiniment sur la fabrique du texte ce qui peut être encore une manière de tenter de le maîtriser trad nossa MRS 138 Tal privilégio às relações entre psicanálise e arte bem como a ênfase na dimensão criativa inerente ao conceito de pulsão de morte une o texto de Kofman 1973 a dois outros bem mais recentes cujo conteúdo também nos fornece um interessante material para reflexão Em primeiro lugar temos o trabalho de Chnaiderman 1997 que vê na sublimação uma alternativa para a recomposição psíquica diante da angústia relativa ao inominável do outro Neste sentido a autora retoma algumas observações de Freud em Além do Princípio do Prazer 19201996 particularmente as que se referem a uma qualidade específica da pulsão aquela de para além do campo representacional demarcar intensidades que acabam por desarrumar códigos ou circuitos préestabelecidos para com elas afirmar a possível origem da criação e da própria subjetivação na colisão das pulsões de vida e morte89 Entre os destinos da pulsão é a sublimação que marca de forma nítida a questão da morte O horrível emerge inapreensível para logo resplandecer na função do belo Tratase da pulsão de morte sempre desordenando qualquer ordem representacional É o corte transgressivo da pulsão de morte que fecunda o erotismo obrigando a uma reconciliação criadora A vida é recuperada enquanto potência criativa Na colisão pulsional no choque fabricase a matériaprima para um possível processo de subjetivação Emergem inscrições absolutamente primárias circuitos originários da pulsão É a partir desse desmanchamento que novos circuitos podem ser instaurados e a criação pode ocorrer Surge uma nova noção de sujeito psíquico sujeito em permanente desfazimento sujeito como lugar de colisão pulsional A relação com o mundo é de incerteza surgindo um sujeito ao mesmo tempo exterior e submetido a uma força estranha demoníaca mas que pode criar CHNAIDERMAN 1997 p 229230 Já Silva Junior 2001 analisando em conjunto O Inquietante freudiano e alguns trechos da obra de Fernando Pessoa enfatiza o potencial inovador de ambos em termos de ficcionalidade expressão cunhada para designar o poder de suspensão da ficção no sentido de colocar entre parênteses tanto a realidade como os conteúdos imaginários SILVA JUNIOR 2001 p 290 Com isso a aposta de Silva Junior 2001 reside em que contrariando uma certa reserva por parte do seu criador também a psicanálise possuiria uma capacidade semelhante a ponto de podermos pensar em um efeito inquietante do próprio saber inaugurado por Freud 89 Interessante notarmos que em tal processo diznos Chnaiderman 1997 a sublimação não aboliria o desejo mas possibilitaria sim o rearranjo de um campo de tensões permitindo ainda que com outros instrumentos uma nova vivência do traumático enquanto constituinte do ser em movimento 139 Neste sentido Silva Junior 2001 afirma a familiaridade da segunda tópica freudiana com a ficcionalidade enquanto capacidade artística de suspender os registros tanto da fantasia quanto da realidade o que em última análise significaria uma potência criativa em direção ao novo Mais ainda seguindo esta mesma linha argumentativa somos apresentados à proposta de um novo tipo de inquietante aquele produzido pela ficcionalidade da heteronímia e pela psicanálise enquanto duas esferas complementares da experiência humana A heteronímia pessoana e as noções freudianas a partir de Além do Princípio do Prazer 1920 privilegiam o ponto de vista de uma eficácia do negativo anterior às causalidades tanto da realidade quanto da imaginação A noção de pulsão de morte se constitui assim como um conceito fundamental para a ficcionalidade da psicanálise enquanto conceito de uma tendência do organismo de retorno ao estado que o nega enquanto organismo a pulsão de morte representa o único poder do psiquismo de liberdade diante da realidade enquanto necessidade e da ficção como realização de desejos Assim a psicanálise seria inquietante não somente por causa da sua familiaridade com a ficção mas também por causa de sua familiaridade com a ficcionalidade e com a abertura entre a ficção realizadora de desejos e a realidade SILVA JUNIOR 2001 p 318319 Para além dos contextos filosófico e literário destaca Silva Junior 2001 resta mencionar a considerável implicação destas idéias em termos clínicos Afinal diferentes modos de apreensão da relação entre a psicanálise e a ficção podem significar também distintas escutas do Inconsciente É o que sugere a seguinte passagem Se a ficção é inquietante pelos conteúdos imaginários que esconde em seu interior a ficcionalidade o é pelo desvelamento da ausência como origem do psiquismo A ficcionalidade tem a estrutura de uma abertura onde a negatividade isto é a ruptura do espaço sob risco da catástrofe permite uma passagem Essas duas abordagens da ficção geram diferentes escutas no analista e portanto diferentes disposições da situação analítica enquanto a ficção como formação de compromisso engaja o analista numa pesquisa estática do arqueólogo a ficção enquanto área intermediária lhe oferece o silêncio móvel de Gradiva SILVA JUNIOR 2001 p 319 Vemos portanto que as leituras de O Inquietante realizadas tanto por Kofman 1973 quanto por Chnaiderman 1997 e Silva Junior 2001 nos remetem a uma abertura de sentido que se estende da relação entre a psicanálise e a ficção literária à própria atividade clínica Em outras palavras convidamnos a refletir sobre a alteridade ou estranheza inerentes à função do psicanalista alguém que se em termos espaciais 140 geralmente se localiza por detrás do divã detém uma função que seguramente demanda a ocupação de uma outra posição bastante estratégica Tratase do lugar ou sítio do estrangeiro perspectiva inaugurada por Fédida 1988 1991 1996 autor do qual nos ocuparemos a seguir encerrando assim o presente capítulo A Alteridade do Inconsciente e a Estranheza da Situação Analítica comentários a partir da obra de Pierre Fédida Assim como os demais autores que privilegiamos anteriormente também Fédida 1988 adota o texto de Freud 19191976 como inspiração para as suas idéias Neste caso voltadas a uma discussão que aponta algumas características partilhadas pelo inquietante e pelo amor transferencial mobilizado na clínica psicanalítica Uma delas é que em ambos os casos farseia presente a manifestação de um retorno do reprimido Além disso também se tornaria viável pensar o caráter unheimlich nada transferência pelo seu poderio psicóticoalucinatório que a partir do analista possibilitaria a emergência de um duplo deste último Com isso sugere Fédida 1988 para que estivesse apto a lidar com o sinistro da transferência caberia ao analista manter a si mesmo no chamado sítio do estrangeiro Afinal é a neutralidade deste lugar de silêncio e nãoresposta que poderia garantir ao outro ao analisando travar contato com a alteridade do seu próprio Inconsciente Com efeito entre as dificuldades de nossa prática de analistas não é das menores a de se manter neste sítio do estranho ou como diria Freud numa cena radicalmente diferente da do paciente o analista ocupa o sítio constitutivo e fundante dos lugares de uma fala cujo destinatário não pode ser ele mesmo O destinatário é alucinatoriamente o objeto interno de transferência enquanto for significado para a fala pela nãoresposta por esta recusa em responder que é a condição de reserva da linguagem enquanto possa pertencer à cena psíquica mas estando ausente FÉDIDA 1988 p 80 83 Fédida 1988 prossegue alertando para os riscos da saída do sítio do estrangeiro pela via da identificação do analista com o lugar a ele sugerido pela fala do analisando fala de resposta Isso geraria a desinstauração da situação analítica e conseqüentemente a condição para a emergência de um outro sinistro ou inquietante Tratase daquele presente 141 na contratransferência enquanto retorno sobre o analista das sombras transferenciais que este não teria conseguido conter após produzilas a partir da sua própria pessoa toda fala de resposta isto é toda fala que tende a fazer com que o analista se identifique ainda que momentaneamente ao destinatário da fala ou a se implicar no papel do objeto transferencial da fala desinstaura a situação analítica e produz as condições do sinistro da transferência na contratransferência o visual da manifestação o retorno do recalcado ensurdece ou aniquila temporariamente a linguagem na sua função de des fascinar as imagens de produzir ao nomear o figurável e de constituir a forma dos lugares possíveis da interpretação FÉDIDA 1988 p 8389 Como se pode notar os temas da linguagem da familiaridade e da distância se apresentam na ordem do dia Assim é que em um trabalho posterior Fédida 1991a destacará a capacidade da língua em ao nomear as coisas delas determinar uma distância justa distância essa aliás necessária para que o nomeado revele a si mesmo Neste mesmo sentido Fédida 1991a aponta ainda o quanto a habitual ênfase na função comunicativa da língua significaria uma considerável perda já que Descrever ou representar aquilo que se vê provoca uma dissociação entre olhar e fala e assim a perda do olhar que a língua porta em si FÉDIDA 1991a p 52 Em tal perspectiva o ato poético aparece como uma apropriação do próprio a partir de um sítio definido pelo estrangeiro tradução metáfora e importante transferência de sentido para além daqueles que a função descritiva ou comunicativa da língua aplaina e com isso simplifica Com efeito teríamos neste mesmo estrangeiro o fundo de silêncio solicitado pelas coisas para que essas sempre a partir do seu desenho próprio pudessem se deixar traduzir pela língua É desta forma que Fédida 1991a aproxima os terrenos da língua da poesia e do sonho repleto de imagens férteis em possibilidades O seguinte trecho resume bem muito do que dissemos até agora auxiliandonos a pensar a escuta analítica não em termos de uma intenção pragmática ou metacomunicativa da língua mas no estrangeiro que nela reside É certamente a partir da experiência adquirida pelos artistas e poetas que podemos ter acesso a esse duplo movimento de tradução e de transferência ao qual as palavras nos convidam O uso que fazemos de nossa língua dita moderna geralmente permanece prisioneiro das intenções conscientes de significar e de um saber daquilo que queremos dizer para nos fazer compreender 142 O próprio é possessão do eu ávido por resposta O sítio do estrangeiro fica então soterrado sob a funcionalidade exacerbada da comunicação a partir do modelo de interlocução A língua ameaça então fazernos esquecer que apenas o estrangeiro que nela reside torna possível a escuta FÉDIDA 1991a p 58 Ainda com base nestas idéias Fédida 1991a enfatizará um pouco mais adiante a natureza particular da ética que regulamenta o encontro analítico Segundo ele esta pressuporia uma neutralidade que permitisse a escuta de uma fala transferencial cujo destinatário é um ausente que deveria ser significado ao analisando pela via da interpretação e que sob nenhuma hipótese deveria ser confundido com a própria pessoa do analista Em outros termos mantendose fiel à linha de raciocínio que adota o psicanalista francês mais uma vez legitima o lugar ou mais precisamente o nãolugar do analista como um sítio do estrangeiro cuja fala será ambígua graças à virtude das palavras de ressoar segundo a ambigüidade essencial que o amor lhes confere FÉDIDA 1991a p 59 De volta ao tema da linguagem Fédida 1991a nos propõe que esta mesma ambigüidade essencial que orientaria o fenômeno transferencial e o lugar de estrangeiro do analista apareceria no discurso do analisando qualificado pelo nosso autor como sintoma e conseqüentemente formação de compromisso entre a consciência e o Inconsciente Qual a implicação disso Ora que faria parte da função do analista possibilitar a separação da intenção presente no enunciado consciente daquela outra mensagem subliminar que a partir daí poderia ser lida enquanto manifestação de um desejo reprimido de natureza infantil Dito de outra forma Fédida 1991a chama a nossa atenção para que o poder de ressonância das palavras proferidas na situação transferencial seja despertado e se manifeste portanto seja escutado a partir do silêncio do analista Enfim que a não resposta deste estrangeiro mobilize uma por vezes ensurdecedora ressonância a ser produzida e identificada pelo próprio paciente Ou ainda que na manutenção da justa distância da qual falamos há pouco o discurso atual do paciente possa permitir a escuta de um desejo inatual Com isso ao mesmo tempo em que propõe que a instalação de uma análise somente ocorreria na quebra da estrutura da língua enquanto recurso metacomunicativo papel da regra fundamental e livreassociativa Fédida 1991a reafirma os riscos embutidos na confusão da função do analista com a sua própria pessoa Ou seja alertanos 143 para a necessidade da alteridade em psicanálise frente aos perigos representados por uma ilusão de simetria que anularia tanto as potencialidades da fala quanto a emergência do terceiro ausente a quem as palavras do analisando se dirigiriam Em outras palavras não somente a nãoresposta solicita a palavra em sua liberdade de falar mas ela significa que o analista não deve se tomar pelo terceiro ausente ao qual ela se dirige A dificuldade de qualquer prática analítica principalmente se ela se especificar enquanto psicoterapia está ligada às ameaças de anulação desse terceiro ausente Se a comunicação entre o analista e seu paciente transformarse em diálogo de implicação recíproca e participação intercompreensiva as palavras deixarão de possuir o recurso de espírito que a língua lhes confere É o estrangeiro que dá direito ao terceiro ausente FÉDIDA 1991a p 62 Desta maneira constituiriam o ofício do psicanalista a permanente vigilância em relação aos recobrimentos potencialmente produzidos pela presença do familiar e associada a esta tarefa a manutenção do silêncio do neutro como a vertical do estrangeiro própria à dissimetria da situação analítica Aliás prossegue Fédida 1991b é desta mesma verticalidade em si mesma um ato de revelação e de linguagem em termos de construção e de interpretação que dependeria a atemporalidade do encontro analítico eminentemente marcado pelo anacronismo próprio aos registros do sonho e do Inconsciente Em tal contexto o silêncio da neutralidade do analistaestrangeiro aparece como pano de fundo para a ressonância da fala daquele que sofre libertandoo para que pouco a pouco vá se tornando mais íntimo do que diz Mais uma vez conforme nosso autor Se ao falar o analisando entra nos tempos implicados de sua fala e pressente suas significâncias transferenciais o pano de fundo é o silêncio do neutro E embora o analistaestrangeiro não seja um tradutor seu silêncio não deixa de ser atividade de linguagem na qual a escritura invisível da colocação em figuras forma a memória da fala escutada Em outros termos o estrangeiro é o fundo de surgimento e de insurgência que a fala descobre em contato com o silêncio E é justamente sob esta condição que a interpretação por excelência ato de manifestação do estrangeiro no coração do íntimo é mudança de vista e abertura dos possíveis em um processo de historização FÉDIDA 1991b p 7273 Uma boa parte destas questões viria a ser retomada por Fédida 1996 em O Interlocutor Como sugere o próprio título tratase de um trabalho eminentemente voltado ao tema da alteridade em psicanálise e que nos interessa de perto por além de sintetizar 144 muito do que vimos até o momento retornar à inquietante estranheza constituinte da transferência Neste sentido o psicanalista francês se posiciona contra qualquer domesticação ou categorização formal do fenômeno sob o risco de banalizálo esvaziando assim a essência da própria situação analítica Com efeito ao mesmo tempo em que relembra a mensagem freudiana de que a escuta analítica deveria ser orientada pelo paradigma do sonho atemporal alucinatório e em perpétuo movimento e mudança Fédida 1996 demonstra como se torna difícil não tecer severas ressalvas ao estabelecimento de uma função metacomunicativa da contratransferência que em nome de uma pretensa técnica acabaria por privilegiar a pessoa do analista enquanto destinatário último das formações imaginárias do analisando Eis o que nosso autor qualifica como juridismo do raciocínio Ou seja a tentativa de um discurso explicativo logo nivelador da transferência fenômeno único e impassível de tradução ou reprodução exata Afinal Em análise o que vem ao pensamento não será mais o mesmo quando o mesmo pensamento retornar Esses movimentos que deslocam os lugares e talvez as linhas fazendo com que cada lugar seja transportado por seu deslocamento para tornarse um outro lugar são os movimentos transferenciais Resulta da presente exposição não somente a idéia de que qualquer discurso da comunicação e da relação qualquer metadiscurso é radicalmente inadequado para a expressão de uma transferência mas também de que em uma análise deve ser preservada para a transferência esta inquietante potência de memória da alma que age através das cópias de imago para as quais a pessoa do analista é nos dois sentidos do termo a tela FÉDIDA 1996 p 111113 São estes os pressupostos que conduzem o psicanalista francês à hipótese de que a transferência de hoje possuiria um valor semelhante ao da hipnose de outrora com a ressalva de que essa a hipnose não fosse desvinculada da sua relação íntima com o sonho Segundo Fédida 1996 tal valor hipnótico do fenômeno transferencial formaria a condição da escuta e da interpretação conforme o paradigma onírico Um efeito como este porém somente seria alcançável por um analista que transparente como o ar fosse capaz de não deter uma forma assumida assumindo as formas impressas na sua figura pelas palavras proferidas pelo analisando Enfim alguém que sabiamente preservasse o sítio do estrangeiro como o lugar da interlocução em psicanálise Na verdade como vimos anteriormente um lugar do nãolugar do vazio ou da ambigüidade que excluindo em seu princípio qualquer relação do tipo interpessoal farse 145 ia necessário para pôr em movimento a atividade silenciosa da linguagem aquela onde as palavras tornemse mágicas em sua própria pronúncia FÉDIDA 1996 p 139 Assim é que para Fédida 1996 a neutralidade do analista aparece como uma superfície de transparência que no campo transferencial viabilizaria a chamada alucinação negativa Tratase da formação e desaparecimento das imagens produzidas pelo paciente em sua relação imaginária com um terceiro absolutamente implicado e no entanto invariavelmente ausente da sessão Desnecessário ressaltar o valor destas últimas aspas já que a ausência física do destinatário último da transferência não impede que sua sombra sorrateiramente caia no espaço entre o divã onde deita o paciente e mais atrás a poltrona onde se recosta o analista Aliás é o postulado desta natureza essencialmente melancólica e mesmo totêmica da transferência que permite a Fédida 1996 utilizar o anacronismo próprio à situação analítica como justificativa para a proibição de que a interpretação do fenômeno transferencial se forme fora do contexto da interpretação onírica Fiel às suas idéias nosso autor retoma aqui o valor do sonho como paradigma formador da escuta do psicanalista e da fala interpretante para novamente criticar o juridismo dos discursos explicativos ligados por seu turno à ameaça de um engessamento da situação analítica pelos ditames da técnica normativa E se aqui a linguagem é sem dúvida o sítio da situação analítica sua existência significa que a neutralidade esse negativo do analista não poderia ser pensada como atitude técnica ou como comportamento no tratamento a menos que se queira afirmar como sua própria negação O inevitável narcisismo do analista muitas vezes esquece como a técnica facilmente se torna ridícula quando toma o lugar da linguagem ou seja quando se explicita fora do ato de interpretar FÉDIDA 1996 p 154 De acordo com esta perspectiva temos mais uma vez na linguagem e não no analista em si o verdadeiro interlocutor em psicanálise já que a este último caberia uma função de nome ou semelhança que vazia em termos de um conteúdo próprio remeteria à ausência de um ente denominado por Fédida 1996 de pai da transferência É com base em tais idéias que o psicanalista francês sugere uma vinculação entre o que qualifica como uma hodierna banalização da transferência e o esquecimento negligente da estranheza da 146 ausência Ou seja da estranheza da própria transferência enquanto presença de uma ausência Com isso Fédida 1996 retorna ao referencial freudiano o qual insistia em manter o estatuto da transferência nos limites de um ato de repetição do infantil para utilizálo como apoio a um argumento verdadeiramente central em seu trabalho Tratase da afirmação de que não haveria um fundamento fenomenológicoexistencial para a transferência neste caso pensada como relação intersubjetiva já que aquela amplificaria na presença do analista as projeções constitutivas do próprio eu do analisando enquanto aquele que sonha É o que pode ser depreendido do seguinte trecho a recusa psicanalítica de Freud é a recusa radical de ver retornar ainda uma vez em favor da questão da transferência a atitude filosófica pretendendo restabelecer aqui o direito de uma teoria do outro e da comunicação interpessoal inexoravelmente derivada da exorbitante prerrogativa da doutrina fenomenológica da consciência FÉDIDA 1996 p 162 Em seguida é ainda a ameaça de uma síntese filosófica que parece assombrar os pensamentos de Fédida 1996 o qual visando evitar possíveis malentendidos explicita o quanto a relação que propõe entre linguagem transferência e situação analítica não objetivaria a constituição ou apropriação de uma identidade unificada Ao contrário a manifestação do fenômeno transferencial tornada viável graças ao espaço poéticoonírico de criação de imagens possibilitado pela neutralidade da função do analista revelaria sempre a cisão fundamental do sujeito inaugurado por Freud Em outros termos e aqui temos uma afirmação importante para os nossos propósitos destacaria a clara ligação entre o lugar de estrangeiro do analista e a alteridade constitutiva do próprio eu daquele que sofre e por isso fala Os remanejamentos do Eu pelos movimentos que o deslocam na fala junto a um outro neutro cujo silêncio exige que ele se choque contra a brutalidade da linguagem tendem poderseia dizer a seu próprio reconhecimento como pessoa locutora Mas a análise não é um processo filosófico de apropriação Se a transferência revela sem dúvida algo essencial é que o Eu pronome em primeira pessoa instância concreta do locutor aqui e agora falando no divã faz desaparecer tal instância FÉDIDA 1996 p 169170 Como se pode notar toda a argumentação de Fédida 1996 aponta para a considerável dificuldade de falarmos em intersubjetividade no contexto da psicanálise 147 Bem a não ser que a utilização de tal conceito extrapolasse uma condição de diálogo de pessoa para pessoa levando em conta a referência de um outro transferencial que marcaria o tipo bastante peculiar de encontro que tem lugar na clínica Ou seja a não ser que se pudesse pensála como uma relação a dois necessariamente assimétrica e já que instanciada por um terceiro ausente Eis o quadro propício para que Fédida 1996 resgate a noção de Outro proposta pela topologia lacaniana Outro esse indispensável à transferência na sua qualidade de entidade não mais dotada de subjetividade e demasiadamente personalizada no plano da consciência mas sim pensada como lugar de linguagemsignificância um sítio do estrangeiro que por isso mesmo deveria se ver livre do antropomorfismo cartesiano Qual o objetivo do nosso autor em tudo isso Salientar o valor do espanto com a perene estranheza da transferência leiase do Inconsciente como uma espécie de antídoto diante dos perigos representados pelo esquecimento ou negligência da radical alteridade inerente à função do analista Assim enaltecer ainda a virtude da linguagem interlocutor último do fenômeno transferencial Logo da própria psicanálise Diante disso vale a pena encerrarmos com algumas poucas palavras que ao resumirem a essência do presente capítulo preparam o terreno para os nossos passos seguintes Neste sentido guardemos conosco que a alteridade em psicanálise está intimamente ligada a uma concepção da subjetividade marcada pela cisão Assim longe de se localizar em um exterior o estrangeiro inaugurado por Freud desconcerta por repousar naquilo que temos de mais íntimo ou melhor de estranhamente familiar o próprio Inconsciente Como aponta Figueiredo 1998a tal constatação certamente pode nos levar tanto ao repúdio quanto ao descaso duas saídas demasiadamente fáceis Por outro lado se considerarmos como faz o autor que em termos de psicanálise a diferença se revela na sua qualidade de emergência90 e não de entejáconstituído emergência essa que une simultaneamente o diferente e o si próprio como partes indissociáveis e mutuamente constituintes então se torna possível vislumbrar uma terceira atitude a tomar conservarse na proximidade do estranho neste espaço potencial em que acolhendoo e 90 Ou seja como um processo constituído ao mesmo tempo por uma falta e por um excesso de sentido FIGUEIREDO 1998a 148 hospedandoo podemos nos fazer e refazer com base em uma experiência que é sempre mais ou menos incômoda FIGUEIREDO 1998a p 74 Isso significa nem absorver o outro e nem tampouco rechaçálo mas manter diante de si um intermezzo entre a diferença e a indiferença um campo virtual de proximidade que forneça o espaço mesmo da emergência dos acontecimentos e do próprio pensamento Em outros termos tratase de garantir a abertura de sentido presente por exemplo em um conceito como o de construção Konstruktion em análise nosso próximo foco de estudos CAPÍTULO 03 O Jogo dos Sentidos em Psicanálise considerações acerca do conceito de construção No presente capítulo retomaremos sob uma ótica complementar a discussão psicanalítica sobre alteridade iniciada anteriormente quando debatemos em maiores detalhes o inquietante Das Unheimliche freudiano Para tanto utilizaremos um outro conceito também advindo da obra de Freud tratase daquele referente à construção em análise Então além de nos ocuparmos de uma breve definição do tema esmiuçaremos algumas importantes contribuições a ele relacionadas como a original freudiana Cf FREUD 19371976 e a de Viderman 1990 Neste sentido a nossa principal intenção aqui será a de demonstrar as ondulações as idas e vindas do conceito em questão e junto com elas discutir o por que não dizer espinhoso problema da imposiçãonegociação de sentido em psicanálise Assim deslocarnosemos entre os pólos definidos por duas abordagens distintas A primeira delas de cunho mais realista aparece balizada por um ideal de neutralidade do analista que traz consigo tanto a assertiva de uma equivalência entre as metapsicologias e as expressões do Inconsciente quanto a crença na existência de verdades soterradas a serem alcançadas pelo par analítico Já a segunda eminentemente construtivista ao mesmo tempo em que desconfia da possibilidade de correspondências bem definidas entre fenômenos clínicos e representações teóricas prédeterminadas enfatiza que a eficácia da psicanálise dependeria não exatamente da descoberta de traumas fixados no passado mas da geração de narrativas mais ou menos coerentes no aqui e agora do encontro analítico narrativas essas que levassem em conta a interação entre o arsenal teórico do analista e as histórias trazidas por cada sujeito que se submete ao tratamento Diante disso cabe perguntar qual destes caminhos devemos escolher Talvez nenhum dos dois já que como nos mostra Figueiredo 1996a 1998b a diferença que nos é imposta pelo outro no contexto da clínica é inseparável da diferença representada pelo 150 próprio Inconsciente dono de uma temporalidade e de uma narrativa particulares que recusam qualquer submissão ao pensamento representacional As implicações de tal afirmação são enormes e se estabelecem na observação de que a despeito da sua inegável qualidade de dispositivos realizadores no espaço virtual e potencial do encontro analítico as metapsicologias possam e devam funcionar como dispositivos desrealizantes Afinal somente assim fornecerão ao Inconsciente um espaço de abertura e figurabilidade onde este possa se expressar precisamente na sua extemporaneidade em uma estranha e radical alteridade que fundamenta a própria psicanálise Eis aí portanto os tópicos de estudo que orientarão os nossos passos nas páginas seguintes Para que cheguemos até eles porém tornase importante que primeiro observemos um pouco mais de perto os intrigantes contornos que o verbo construir adquire a partir do pensamento freudiano Passemos a eles O que significa construção em análise Segundo Laplanche e Pontalis tratase de um Termo proposto por Freud para designar uma elaboração do analista mais extensiva e mais distante do material que a interpretação e essencialmente destinada a reconstituir nos seus aspectos simultaneamente reais e fantasísticos uma parte da história infantil do sujeito 1992 p 97 Como se pode notar há aqui um caráter aparentemente mais abrangente e menos imediatista da construção a qual visando um resgate de elementos esquecidos leiase reprimidos da história primeva do sujeito levaria em conta elementos advindos de duas realidades distintas porém complementares a material e a psíquica Logo em seguida Laplanche e Pontalis 1992 acrescentam à sua descrição alguns comentários interessantes Por exemplo o de que seria complicado e mesmo pouco desejável procurar manter a definição de construção originalmente proposta por Freud 19371976 segundo eles um tanto quanto restrita em sua aproximação demasiada da técnica Assim para além do trabalho do analista em seu setting clínico os autores franceses incluem no conceito de construção as fantasias eou elaborações do próprio 151 analisando sugerindo a idéia de que mais do que a estruturação pelo tratamento tratarse ia aqui do problema mais amplo das estruturas inconscientes em si mesmas É também em uma relação direta com a interpretação que Kaufmann 1996 se refere ao conceito de construção em análise Neste sentido qualifica este último como uma ferramenta utilizada por Freud 19371976 visando um refreamento ou temperança da onipotência interpretativa que alguns estragos causara na história do movimento psicanalítico Cf FREUD 1910b1996 Corroborando com tal perspectiva um trabalho como o de Roudinesco e Plon 1998 acrescenta ainda outro dado importante que a potencialidade de tal instrumento não se restringiu ao contexto da clínica sendo utilizada pelo mestre de Viena também em suas discussões metapsicológicas e trabalhos sobre arte e cultura Conforme as seguintes passagens Nesse aspecto podese dizer que a construção é ao mesmo tempo a quintessência da interpretação e uma crítica da interpretação na medida em que permite restabelecer de modo coerente a significação global da história de um sujeito em vez de se ater à apreensão de alguns detalhes sintomáticos Freud usava permanentemente esse processo de construção tanto em suas análises quanto em suas hipóteses sobre a metapsicologia ou a pulsão de morte ou ainda em suas obras literárias sobre Leonardo da Vinci 14521519 ou Moisés ROUDINESCO e PLON 1998 p 389 Muito bem a despeito de tais observações funcionarem como uma breve introdução ao nosso tema elas certamente não substituem a leitura do texto original em que Freud 19371976 às voltas com as acusações de que o tratamento clínico por ele idealizado estaria diretamente associado à sugestão aborda de maneira direta o tema das construções do analista Ao fazêlo procura dentre outras coisas relativizar a noção e os critérios de verdade com os quais trabalha a psicanálise defendendoa das suspeitas dos seus detratores no campo da imposiçãonegociação de sentido É o que veremos a seguir Realismo versus Construtivismo em Psicanálise Primeira Parte o sentido de um retorno a Freud O artigo de Freud 19371976 tem início com uma réplica à afirmação de que em se tratando do trabalho do analista a razão estaria sempre ao lado deste último Afinal sugeriam à época os críticos da psicanálise qualquer interpretação prontamente aceita se 152 revelaria adequada em si mesma ao passo que as tentativas de oposição por parte do paciente significariam apenas resistências neuróticas Diante destes argumentos aliados à aceitação do fato de que uma negativa por parte do paciente em geral não demove o analista das suas escolhas interpretativas Freud 19371976 considera útil aprofundar como são apreciados o sim e o não enquanto possíveis respostas daquele que deita no divã Neste sentido recordando um pouco dos principais postulados da psicanálise destaca como tarefa fundamental do analista a condução do paciente rumo ao abandono das repressões infantis que resultariam em um sofrimento atual as quais deveriam ser substituídas por reações outras mais maduras em termos psíquicos Para tanto segue Freud 19371976 farseia necessário promover a recordação tanto de certas vivências momentaneamente esquecidas quanto das moções de afeto delas resultantes contando para tal tarefa com o precioso auxílio de uma série de materiais fornecidos pelo paciente Exemplos seriam certas idéias e fragmentos de sonho bem como a repetição de afetos obtida pela via da transferência Pois bem continua Freud 19371976 o interesse fundamental de tal labor rememorativo reside no estabelecimento de um quadro o máximo possível íntegro e confiável em termos de uma reconstituição dos eventos passados e agora aparentemente esquecidos da vida do paciente Em outros termos caberia ao analista deduzir o esquecido a partir dos indícios por ele deixados melhor dizendo tem que construílo FREUD 19371976 p 26091 Com isso nosso autor propõe uma interessante relação entre as atividades do analista e aquela outra do arqueólogo ocupado na escavação de antigos edifícios destruídos eou soterrados pelas areias do tempo ambas pautadas em larga escala por um processo de reconstituição Mas assim como o arqueólogo que a partir de restos de muros que ficaram em pé levanta paredes a partir de escavações no solo determina o número e a posição das colunas a partir de ruínas restabelece o que outrora foram adornos e pinturas murais do mesmo modo procede o analista quando extrai suas conclusões a partir de fragmentos de lembranças associações e comportamentos do analisando E é inquestionável o direito de ambos a reconstruir mediante a suplementação e 91 Em castelhano colegir lo olvidado desde los indicios que esto ha dejado tras sí mejor dicho tiene que construirlo trad nossa MRS 153 combinação dos restos que permaneceram conservados FREUD 19371976 p 26192 Um pouco mais adiante porém Freud 19371976 estabelecerá uma diferença entre a arqueologia e a psicanálise que acabará por se revelar importante considerando os nossos propósitos aqui É quando nos apresenta a sua crença tanto na preservação última de conteúdos psíquicos reprimidos e assim afastados da consciência quanto na capacidade do labor analítico no sentido de um resgate de tal material Ainda por cima possivelmente em sua forma completa Nos seus próprios termos Há que se levar em conta porém o fato de que aquele que exuma trata com objetos destruídos dos quais grandes e importantes fragmentos foram irremediavelmente perdidos Resta então única e exclusivamente a reconstrução que em virtude disso muito freqüentemente não pode alcançar mais que uma certa similitude Algo diverso ocorre com o objeto psíquico cuja préhistória o analista visa estabelecer Aqui se consegue regularmente o que em relação ao objeto arqueológico somente ocorre em felizes casos excepcionais Todo o essencial permanece conservado mesmo o que parece esquecido por completo está todavia presente de algum modo e em alguma parte só que soterrado inacessível ao indivíduo Depende somente da técnica analítica que se consiga ou não trazer à luz de maneira completa o escondido FREUD 19371976 p 26126293 O texto prossegue com algumas outras considerações bastante relevantes Por exemplo temos uma oportuna comparação entre as noções de interpretação e construção Neste sentido pondera Freud 19371976 a despeito da maior fama da primeira e também de uma certa confusão entre ambas é a segunda que efetivamente deveria ser mais levada em conta se quisermos descrever as qualidades da técnica psicanalítica Afinal ao invés de apontar para elementos isolados do material fornecido 92 Ibidem Pero así como el arqueólogo a partir de unos restos ruinosos restablece los que otrora fueron adornos y pinturas murales del mismo modo procede el analista cuando extrae sus conclusiones a partir de unos jirones de recuerdo una asociaciones y unas exteriorizaciones activas del analizado Y es incuestionable el derecho de ambos a reconstruir mediante el completamiento y ensambladura de los restos conservados trad nossa MRS 93 Ibidem Pero cuenta asimesmo el hecho de que el exhumador trata con objetos destruidos de los que grandes e importantes fragmentos se han perdido irremediablemente Uno se ve remitido única y exclusivamente a la reconstrucción que por eso con harta frecuencia no puede elevarse más allá de una cierta verosimilitud Diversamente ocurre con el objeto psíquico cuya prehistoria el analista quiere establecer Aquí se logra de una manera regular lo que en el objeto arqueológico sólo sucede en felices casos excepcionales Todo lo esencial se ha conservado aun lo que parece olvidado por completo está todavía presente de algún modo y en alguna parte sólo que soterrado inasequible al individuo Es sólo una cuestión de técnica analítica que se consiga o no traer a la luz de manera completa lo escondido trad nossa MRS 154 pelo paciente papel da interpretação a construção colocaria o sujeito diante de uma porção verdadeiramente maior ainda que fragmentada da sua história de vida Entretanto perguntase Freud 19371976 de que garantias disporíamos para asseverar a veracidade e mesmo a utilidade terapêutica de tais construtos Antes de buscar respostas para este questionamento o pai da psicanálise encontra um certo conforto que provém da sua própria prática clínica Segundo ele esta o autorizaria a sustentar que descontados um certo desperdício de tempo ou mesmo uma eventual má impressão causada sobre a pessoa do analista nenhuma outra conseqüência mais grave seria causada ao processo analítico pelo equívoco isolado representado por uma má construção Ainda para Freud 19371976 o que poderia ocorrer neste caso seria uma não resposta do paciente intocado pelo que acabara de ouvir Eis a deixa para a assunção do erro por parte do analista que sem perder a sua autoridade poderia em outra ocasião comunicar o erro ao paciente acrescentando ao seu relato uma construção mais apropriada Com efeito O perigo de desencaminharmos o paciente pela via da sugestão persuadindo o de coisas que nós próprios acreditamos ainda que jamais admitidas por ele certamente foi exagerado sobremaneira FREUD 19371976 p 26394 Sem perder de vista o fio condutor do seu raciocínio qual seja a defesa da psicanálise no que se refere à acusação de em última escala atuar pela via da sugestão negligenciando as respostas do paciente às construções que lhe são propostas Freud 19371976 passa a alguns comentários acerca da ambigüidade tanto do sim quanto do não que podem se seguir a uma construção do analista Isso porque a despeito de ambos certamente poderem conter em si mesmos um indiscutível grau de legitimidade não é possível descartar a hipótese de que estejam operando sob a batuta da resistência Além do mais Como toda construção desse tipo é incompleta uma vez que abarca só um pequeno fragmento do evento esquecido temos sempre a liberdade de supor que o analisando não desconhece propriamente o que lhe foi comunicado e sim que a sua contradição vem legitimada pelo fragmento ainda não descoberto Via de regra somente exteriorizará seu consentimento quando se houver interado de toda a verdade a qual pode ser bastante extensa A única interpretação segura do seu 94 Ibidem El peligro de descaminar al paciente por sugestión apalabrándole cosas en las que uno mismo cree pero que él no habría admitido nunca se ha exagerado sin duda por encima de toda medida trad nossa MRS 155 não é então que aquela a construção não é integral FREUD 19371976 p 26495 Por conseguinte uma vez demonstrada a precariedade das respostas diretas do paciente enquanto critério único para a validação ou não das construções em análise Freud 19371976 chama a atenção do leitor para as possibilidades oferecidas por algumas outras reações de caráter mais indireto Dentre elas cita como exemplos desde o nunca pensei ou nunca teria pensado nisso frase típica que para si seria equivalente a algo como sim o senhor tem razão desta vez acerca do meu inconsciente até a ocorrência no analisando de certas lembranças complementares eou associações com conteúdo notoriamente próximo àquele do construto proferido pelo analista Finalmente ainda no que se refere ao estabelecimento de parâmetros confiáveis em termos da maior ou menor eficácia de uma construção Freud 19371976 retoma a importância de se levar em conta os comportamentos do paciente associados por seu turno ao tipo de transferência positiva ou negativa estabelecida ao longo da relação terapêutica Assim Se a construção é falsa não modifica em nada o paciente mas se é correta ou se aproxima da verdade sua reação frente a ela será a de uma inequívoca piora dos sintomas e do seu estado geral FREUD 19371976 p 26696 É desta maneira que sempre reafirmando a sua argumentação em prol da psicanálise o mestre de Viena condensa o que disse até o presente momento Neste sentido aproveita ainda para defender a prática clínica de eventuais acusações quanto a uma ingênua pretensão de certezas últimas a serem alcançadas lembrando aos possíveis detratores que as construções em análise mereceriam a salvaguarda de também elas conterem em si mesmas uma natureza hipotética De maneira sintética podemos estabelecer que não merecemos a censura de desdenhar da posição adotada pelo analisando diante das nossas construções Nós 95 Ibidem Como toda construcción de esta índole es incompleta apresa sólo un pequeño fragmento del acaecer olvidado tenemos siempre la libertad de suponer que el analizado no desconoce propiamente lo que se le comunicó sino que su contradicción viene legitimada por el fragmento todavía no descubierto Por regla general sólo exteriorizará su aquiescencia cuando se haya enterado de la verdad íntegra y esta suele ser bastante extensa La única interpretación segura de su No es por ende que aquella no es integral trad nossa MRS 96 Ibidem Si la construcción es falsa no modifica nada en el paciente pero si es correcta o aporta una aproximación a la verdad él reacciona frente a ella con un inequívoco empeoramiento de sus síntomas y de su estado general trad nossa MRS 156 a tomamos em conta e freqüentemente extraímos dela valiosos pontos de apoio Contudo essas reações do paciente são muitas vezes ambíguas e não permitem uma decisão definitiva Somente a continuidade da análise pode decidir se a nossa construção é correta ou inviável Cada construção é tomada por nós apenas como uma conjectura que aguarda ser examinada confirmada ou descartada FREUD 19371976 p 26697 Já se encaminhando para o final da sua discussão Freud 19371976 ensaia alguns comentários sobre o fato de que nem sempre se tornava viável trilhar o caminho ideal e que levaria do construto do analista à recordação do paciente Interessante notar que logo em seguida assevera que uma análise bem feita deteria porém o poder de provocar uma convicção demasiado forte acerca da veracidade de determinadas construções o que na prática significaria um resultado terapêutico semelhante ao do resgate de uma lembrança reprimida Ou seja ainda que em outros termos parece haver aqui um certo reconhecimento do valor e mesmo da utilização da sugestão em psicanálise possibilidade essa vale lembrar eminentemente rechaçada ao longo dos parágrafos anteriores Lamentavelmente Freud 19371976 evita se aprofundar no tema optando por discorrer acerca de um outro fenômeno que na sua opinião traria em si questões de maior amplitude Tratase do curioso fato de determinadas construções acertadas evocarem nos pacientes recordações que embora bastante claras não estariam diretamente relacionadas ao evento que se buscava reconstruir Por exemplo um analisando descreve com certa riqueza de detalhes alguns rostos e móveis presentes quando de uma ocorrência possivelmente traumática Todavia jamais o acontecimento em si mesmo o que poderia ser tomado como a manifestação de uma poderosa resistência que deslocaria para objetos de menor significação a pulsão emergente posta em movimento ao se comunicar a construção A continuidade da leitura do texto de Freud 19371976 nos revelará a analogia proposta pelo autor entre as recordações supra mencionadas e as alucinações de cunho psicótico ambas possivelmente associadas à pressão exercida por um retorno de conteúdos psíquicos anteriormente reprimidos 97 Ibidem A modo de síntesis podemos establecer que no merecemos el reproche de desdeñar la posición que el analizado adopte ante nuestras construcciones La tomamos em cuenta y a menudo extraemos de ella valiosos puntos de apoyo Pero estas reacciones del paciente son las más de las veces multívocas y no consienten una decisión definitiva Sólo la continuación del análisis puede decidir si nuestra construcción es correcta o inviable Y a cada construcción la consideramos apenas una conjetura que aguarda ser examinada confirmada o desestimada trad nossa MRS 157 Talvez seja um traço universal da alucinação não apreciado suficientemente bem até agora que dentro dela retorne algo há muito vivenciado e logo esquecido algo que a criança viu ou ouviu na época em que mal detinha acesso à linguagem e que agora força sua emergência rumo à consciência provavelmente desfigurado e deslocado por efeito das forças que contrariam tal retorno E se a alucinação é tomada de uma maneira mais próxima a determinadas formas de psicose nossa dedução pode dar um passo a mais Quiçá as formações delirantes às quais com grande freqüência encontramos associadas estas alucinações não sejam tão independentes como supúnhamos anteriormente da pulsão emergente do inconsciente e do retorno do reprimido FREUD 19371976 p 26898 Com isso Freud 19371976 abre espaço para a tese de que a pulsão emergente do reprimido pudesse tirar partido do afastamento da realidade objetiva na tentativa de impor seu conteúdo à consciência cabendo às resistências e à tendência ao cumprimento do desejo o papel de mascarar eou deslocar o material a ser recordado Enfim poderseia pensar aqui mesmo no caso da psicose em uma formação de compromisso equivalente àquela produzida pelo mecanismo do sonho Enquanto uma decorrência imediata de tal linha de raciocínio chega a nós a proposta freudiana de que em meio à realidade psíquica seria possível alcançar o fragmento traumático de uma verdade históricovivencial99 Este último por seu turno fundamentaria 98 Ibidem Acaso sea un carácter universal de la alucinación no apreciado lo bastante hasta ahora que dentro de ella retorne algo vivenciado en la edad temprana y olvidado luego algo que el niño vio y oyó en la época en que apenas era capaz de lenguaje todavía y que ahora esfuerza su ascenso a la conciencia probablemente desfigurado y desplazado por efecto de las fuerzas que contrarían ese retorno Y si la alucinación es referida de manera más próxima a formas determinadas de psicosis nuestra ilación de pensamiento puede dar un passo más Quizá las formaciones delirantes en que con gran regularidad hallamos articuladas estas alucinaciones no sean tan independientes como de ordinario suponíamos de la pulsión emergente de lo inconciente y del retorno de lo reprimido trad nossa MRS 99 Diante do contraponto estabelecido por Freud 19371976 aprofundemonos um pouco mais no conceito de realidade psíquica Como apontam Laplanche e Pontalis 1992 e Roudinesco e Plon 1998 este detém sua história eminentemente ligada ao abandono da teoria da sedução explicação proposta pelo pai da psicanálise nos primórdios do seu trabalho clínico e que atribuía à lembrança de cenas reais de sedução por parte dos pais por exemplo um papel determinante na etiologia das neuroses Com o acúmulo de experiência porém Freud percebeu que para além da real ocorrência dos traumas infantis também deveria ser levada em conta no adoecimento mental a enorme importância do desejo e da fantasia inconscientes Com efeito A idéia de realidade psíquica está ligada à hipótese freudiana referente aos processos inconscientes não só eles não levam em conta a realidade exterior como a substituem Na sua acepção mais rigorosa a expressão realidade psíquica designaria o desejo inconsciente e a fantasia que lhe está ligada LAPLANCHE e PONTALIS 1992 p 427 Vale acrescentar ainda que uma outra interessante fonte de informações acerca deste tópico pode ser encontrada nos trabalhos de Coelho Junior 1995 2000 Aqui além de contextualizála o autor problematiza a oposição defendida pelo pensamento freudiano entre as noções de realidade material e realidade psíquica para em seguida nos propor o conceito de realidade clínica o qual segundo ele poderia melhor dar conta dos diferentes e simultâneos planos de realidade presentes em uma situação como aquela da clínica psicanalítica Nas suas palavras A realidade clínica constituise tanto a partir da presença da realidade psíquica como da realidade material Ao mesmo tempo possibilita um deslizamento constante entre diferentes tipos de realidade Desta forma posso afirmar que a realidade clínica é uma terceira zona ou uma terceira realidade Deve ser pensada como uma realidade particular 158 ao menos em certo sentido tanto a loucura quanto o próprio trabalho do analista o qual se voltaria a uma nova forma de abordagem terapêutica do delírio Conforme o trecho a seguir escrito não por Erasmo de Rotterdam mas pelo pai da psicanálise Eu não creio que esta concepção do delírio seja nova em sua totalidade mas o certo é que destaca um ponto de vista que não vem sendo trazido ao primeiro plano Sua essência reside na afirmação de que não somente há método na loucura mas que também esta última contém um fragmento de verdade históricovivencial historisch o qual nos leva a supor que a crença compulsiva presente no delírio derive a sua força justamente dessa fonte infantil Desta forma abandonarseia o vão empenho em convencer o enfermo do desvario de seu delírio do seu caráter contraditório no que diz respeito à realidade objetiva e ao contrário residiria no reconhecimento deste núcleo de verdade um solo comum sobre o qual poderia se desenvolver o trabalho terapêutico Esse trabalho consistiria em libertar o fragmento de verdade históricovivencial das suas desfigurações e ligações com o presente realobjetivo conduzindoo de volta aos lugares do passado aos quais pertence FREUD 19371976 p 268269100 Ainda sob a influência de tais idéias Freud 19371976 nos propõe uma última analogia Desta feita entre os delírios dos pacientes e as construções propostas pelos analistas ambos pensados como tentativas de cura eou explicação Haveria contudo limites para essa aproximação já que as primeiras não iriam além de uma substituição do fragmento de realidade rejeitado no passado Neste sentido como vimos há pouco caberia à psicanálise revelar os vínculos entre o material fornecido por essa rejeição atual e o conteúdo originalmente reprimido podendose inclusive conjeturar sobre o teor de reminiscência presente nos próprios conteúdos delirantes Eis aí a mensagem final de Freud 19371976 expressa por ele nos seguintes termos Assim como a nossa construção produz seu efeito por restituir um fragmento biográfico Lebengeschichte história objetiva de vida do passado também o delírio deve seu poder de convencimento à parte de verdade históricovivencial onde a tensão entre a realidade exterior e a realidade psíquica pode ser trabalhada COELHO JUNIOR 2000 p 8384 100 Ibidem Yo no creo que esta concepción del delirio sea nueva en todas sus partes pero lo cierto es que destaca un punto de vista que poe lo corriente no es situado en el primer plano Lo esencial en ella es la afirmación de que no sólo hay método en la locura sino que esta también contiene un fragmento de verdad históricovivencial historisch lo cual nos lleva a suponer que la creencia compulsiva que halla el delirio cobra su fuerza justamente de esa fuente infantil Así se resignaría el vano empeño por convencer al enfermo sobre el desvarío de su delirio su contradicción con la realidad objetiva y en cambio se hallaría en el reconocimiento de ese núcleo de verdad un suelo común sobre el cual pudiera desarrollarse el trabajo terapéutico Este trabajo consistiría en librar el fragmento de verdad históricovivencial de sus desfiguraciones y apuntalamientos en el presente realobjetivo y resituarlo en los lugares del pasado a los que pertenece trad nossa MRS 159 que põe no lugar da realidade rechaçada Com efeito também se aplicaria ao delírio a assertiva que há tempos atrás declarei como exclusiva da histeria A saber que o enfermo padece das suas reminiscências FREUD 19371976 p 269270101 Como se pode notar toda a argumentação de Freud 19371976 em prol da psicanálise frente às sempre recorrentes acusações de sugestão eou charlatanismo nos fornece uma considerável gama de temas para reflexão particularmente no que se refere ao estabelecimento de critérios para as verdades clínicas Por exemplo quando chama a nossa atenção para as ambigüidades do sim e do não advindos dos analisandos que muitas vezes associados a enormes resistências ao tratamento perdem assim o status de respostas claras e definitivas no que se refere aos avanços ou retrocessos do processo analítico102 Neste mesmo sentido da relativização de parâmetros que pudessem medir a maior ou menor eficácia da psicanálise vale lembrar ainda que Freud 19371976 salvaguarda a sua prática ao negar a pretensão de certezas últimas enfatizando ao contrário o caráter hipotético e aproximativo da construção analítica Aliás tratase aqui de uma incerteza constitutiva do trabalho do analista já que determinada pelo seu próprio objeto de estudos o Inconsciente tão arredio e refratário aos ditames da razão instrumental a ponto de nos forçar a reconhecer a existência de uma divisão na realidade agora bipartida em psíquica e material De qualquer forma a despeito destes importantes esclarecimentos não nos parece possível afastar definitivamente a impressão de que o iluminista em Freud ainda permanece prisioneiro da crença em verdades soterradas a serem alcançadas pelo par analítico Essa é a opinião de um autor como Viderman 1990 do qual nos ocuparemos a partir de agora Deixemonos então conduzir por ele ao menos momentaneamente e vejamos aonde isso irá nos levar 101 Ibidem Así como nuestra construcción produce su efecto por restituir un fragmento de biografía Lebengeschichte historia objetiva de vida del pasado así también el delirio debe su fuerza de convicción a la parte de verdad históricovivencial que pone en el lugar de la realidad rechazada De tal suerte también al delirio se aplicará el aserto que yo hace tiempo he declarado exclusivamennte para la histeria a saber que el enfermo padece por sus reminiscencias trad nossa MRS 102 Exigindo portanto como vimos há pouco um olhar atento para outros dados menos diretos como aqueles fornecidos pelas reações transferenciais e lembranças complementares dos analisandos após as construções do analista 160 Segunda Parte Serge Viderman e a construção do espaço analítico O trabalho de Viderman 1990 dá continuidade a este tema certamente controverso e que mobiliza diferentes perspectivas e mesmo paixões entre os defensores e opositores do tipo de saber inaugurado por Freud Tratase da discussão quanto a maior ou menor objetividade das construções eou interpretações em psicanálise no que se refere a um resgate de conteúdos anteriormente reprimidos Em outros termos temos diante de nós o questionamento da possibilidade de uma verdadeira tradução consciente do material psíquico da outra cena aquela do Inconsciente Tal problemática faz com que Viderman 1990 inicie um percurso por boa parte da obra de Freud para nela apontar um abandono apenas parcial da Neurótica ou teoria da sedução que relativa aos primórdios da psicanálise postulava a existência de um trauma infantil de natureza sexual como origem etiológica da neurose Com efeito pensa o psicanalista francês mesmo com a posterior ênfase no Complexo de Édipo que confere uma maior abertura à dimensão desejante e imaginária da sedução Freud jamais teria deixado de buscar as fontes do Nilo da psicopatologia Ou seja a delimitação de um acontecimento histórico irrecusável que inclusive fundamentasse o próprio edifício teórico da psicanálise103 Neste contexto A cura psicanalítica está ligada à temporalidade histórica e à sua inscrição em uma memória teoricamente inalterável fixada é certo em signos deformados mas sempre abertos ao sentido original indefinidamente reconversíveis A análise das forças de resistência que a isso se opõem e a interpretação dos conteúdos garantemnos que o que miramos por mais difícil que seja está à altura de nossos meios a continuidade da memória poderá ser restabelecida VIDERMAN 1990 p 29 Cabe porém perguntar seria mesmo possível reconstruir a história do sujeito Em caso afirmativo sob que bases É levando em conta questões dessa natureza que nas páginas seguintes Viderman 1990 se dedicará mais detalhadamente ao que denomina de 103 Segundo Viderman 1990 um esforço presente tanto no caso do homem dos lobos quanto em Totem e Tabu No primeiro pela interpretação de que a angústia do paciente em relação à figura do lobo seria relativa a um evento específico e traumático da infância a suposta visão do coito a tergo de seus pais também chamada cena primária No segundo pelo postulado do assassinato do líder de uma horda primitiva de hominídeos como fonte da neurose universal transmitida filogeneticamente Cf FREUD 191419181996 e 1912131996 respectivamente 161 difrações do espaço analítico Segundo ele estas últimas aparecem diretamente ligadas à dinâmica do fenômeno transferencial que vale lembrar de empecilho ao trabalho analítico galgaria posteriormente o status de ferramenta essencial para uma suposta recuperação de vividos regressivos até então inacessíveis à memória Como veremos a seguir o problema para Viderman 1990 é que de forma a manejar tal instrumento foi criado o ideal de um analista livre de ambigüidades que com a sua absoluta transparência recolheria a essência do passado projetado pelo paciente Alcançamos aqui um momento importante do trabalho de Viderman 1990 o qual nos lembra que a busca da verdade em psicanálise e neste sentido a constituição do setting analítico incluindose aí a delimitação de papéis o manejo da transferência e o supramencionado ideal da neutralidade do psicanalista não aparecem ao sabor do acaso mas balizadas por um arsenal teórico previamente definido Para traçar na realidade visível a via de um entendimento daquilo que ali é essencial é preciso inventar uma realidade de segundo grau puramente imaginária que deixe subsistir apenas o desenho abstrato invisível VIDERMAN 1990 p 3536 Esta constatação é decisiva Afinal serve para que nosso autor aponte uma progressiva reordenação em termos da transferência não mais associada à descoberta mas sim à criação Nossas intenções eram puras Mas um método racional aplicase a um objeto irracional O método e seu objeto não permanecerão numa relação de contigüidade passiva Instaurase uma contaminação dialética que modificará a ambos no exercício mesmo de suas funções próprias Havíamos imaginado um quadro ideal uma pura reflexão um espelho fiel e damonos conta de que no próprio movimento da cura criouse um sistema de espelhos deformantes Acreditáramos ter segura a realidade do passado temos as sombras sem forma que colocaremos em forma VIDERMAN 1990 p 43 Uma conseqüência natural de tal discussão é a ênfase na importância da contratransferência já que de acordo com este ponto de vista não somente a teoria delimitaria previamente o campo analítico mas também a própria pessoa do analista deteria relevante participação neste processo Conforme Viderman 1990 negar este fato significaria incorrer em grave erro pois Tal concepção não abstrai somente da evidência de que foi pela decisão unilateral do analista que tal quadro se impôs mas também e é igualmente o mais importante e mais carregado de conseqüências de que é de sua atitude e de suas decisões que dependerá de fato todo desenrolar da cura Nesse sentido não é 162 possível separar os meios do fim em outras palavras separar aquilo que se obteve daquilo pelo qual e por quem ele foi obtido Crer que o analista precisamente não responde é evitar colocar o problema problema de que depende o entendimento real do processo analítico VIDERMAN 1990 p 44 Temos portanto que o paradoxo da situação do analista residiria precisamente na dificuldade em encontrar uma espécie de ponto de Arquimedes capaz de sustentar o equilíbrio entre a observação e a participação Para Viderman 1990 isso somente confirmaria o coeficiente de incerteza ao qual estaria submetida qualquer descoberta do sentido em psicanálise inviabilizando assim a pureza da pretensão freudiana de um alcance da verdade por meio da neutralidade Diante desta aporia nosso autor destaca o problema da acentuação excessiva quer seja da interpretação quer seja daquele que a profere No segundo caso em particular com o perigo de que a tarefa do analista se reduzisse a um mero conjunto de regras normativas Dando prosseguimento a esta discussão Viderman 1990 esmiúça alguns pormenores da relação entre psicanálise e linguagem identificando esta última como uma rede de inteligibilidade que o analista lançaria sobre o Inconsciente organizando uma realidade de segundo grau que não equivaleria necessariamente às qualidades brutas da pulsão104 Desta maneira levandose em conta ainda o caráter sobredeterminado do sintoma tornarseia possível sustentar apenas conjeturas que por seu turno significariam não portos seguros mas novas ambigüidades para um sentido que não estaria em outra parte senão na própria leitura a qual por sinal acompanharia o caráter circular e 104 Interessante relembrar brevemente aqui a diferença proposta pela metapsicologia freudiana entre os conceitos de representaçãocoisa e representaçãopalavra O primeiro relativo à lógica do processo primário aquela própria ao Inconsciente deteria uma natureza eminentemente visual e imagética Já o segundo característico da parte consciente do psiquismo ou processo secundário significaria uma referência verbal à coisa supramencionada Disso decorrem pelo menos duas conseqüências importantes a proposição de que o acesso ao Inconsciente somente se daria mediante uma representação do próprio analisando logo anterior a qualquer outra e estritamente relacionada a esta a constatação da complexidade da atividade interpretativa haja visto que a tradução do psicanalista acerca do Inconsciente alheio será sempre a tradução de uma tradução É o que aponta Mahony 1990 problematizando a noção de tradução em psicanálise ao ressaltar o caráter ambíguo da fala no contexto do setting e por conseguinte os obstáculos enfrentados por Freud no terreno da comunicação Com efeito utilizandose de elementos presentes já na própria obra freudiana o autor nos lembra em primeiro lugar que as expressões do paciente aparecem como formações de compromisso entre a mobilização pulsional e a censura consciente Logo a linguagem não poderia ser tomada como uma expressão inequívoca da verdade Mais adiante corroborando com esta mesma perspectiva Mahony 1990 se remete ao terreno da filologia para destacar a aproximação etimológica entre os termos tradução metáfora e transferência Neste sentido observa que enquanto falsa ligação já a neurose de transferência poderia ser tomada como uma tradução ou metáfora Levandose isto em conta bem como o fato de que as palavras e gestos do paciente se remeteriam a este lugar deduzirseia a condição do tratamento analítico como a de uma espécie de semiótica de aproximações ou seja como a tradução de uma tradução 163 simultâneo do desejo Assim contrariando a perspectiva anteriormente defendida por Freud 19371976 eis aqui a clara proposta de que A história que se faz na situação analítica na caminhada da análise que o analista constrói por meio da linguagem não é a reconstituição arqueológica de um edifício devastado pelo tempo cujo conjunto desaparecido pudesse ser recolocado no lugar pela descoberta do vestígio de uma coluna Na interpretação da fantasia não existe laço algum convencionado entre significante e significado O significante contrariando todas as leis lingüísticas não nos leva a um conceito significado existindo independentemente ele o faz sim existir ao dizêlo VIDERMAN 1990 p 5859 Diante disso tornase possível compreender a enorme ênfase concedida pelo trabalho de Viderman 1990 ao aparato conceitual que precede a interpretação a qual aparece como uma representação artificial mas não absolutamente arbitrária já que balizada por uma teoria e que visaria reunir na palavra a pulsão estilhaçada pelas defesas do paciente Para tanto organizaria associações por vezes superficiais em uma ordem na qual se leria a estrutura de um modelo teórico que previamente estabelecido subverteria o que é dito a partir do divã Ou seja tratarseia inevitavelmente de uma escolha arbitrária do sentido mesmo que justificada por bons motivos técnicos É o utensílio conceitual que a teoria coloca à sua disposição que sensibiliza e abre a inteligência do analista para permitirlhe informar a realidade de acordo com as articulações préformadas do modelo teórico que fez para si mesmo Fora disso nada é visível Para ver outra coisa será preciso mudar a teoria Não é a tela que se parece com a paisagem é esta que acaba por parecerse com a tela VIDERMAN 1990 p 122123 Em se tratando da atividade clínica sustenta ainda Viderman 1990 não há separação rígida entre mentira e verdade mas sim uma dialética dos contrários onde a mentira à sua própria maneira também seria uma verdade a ser construída na e pela situação analítica Com efeito pergunta o psicanalista francês como buscar garantias científicas para sustentar a interpretação da palavra alheia Agindo desta maneira acabaríamos por incorrer no mesmo paradoxo que teria atormentado Freud Qual seja aquele de pretender fundamentar a construção de fantasias sobre elementos supostamente reais em termos históricos 164 Aliás um dos aspectos marcantes do texto de Viderman 1990 é exatamente o fato de apontar as contradições as idas e vindas do pensamento freudiano que ao mesmo tempo em que buscava verdades últimas e relacionadas por exemplo a uma cena primordial considerava a validade da proposição de que os sintomas e interpretações seriam inseparáveis do contexto em que se inserem No caso da especificidade da cena analítica Nestes termos Viderman 1990 contrapõe o que qualifica como duas etapas distintas da história da psicanálise Em primeiro lugar um tempo marcado pela intelectualidade da busca do sentido com o predomínio de uma situação balizada por um conjunto de regras que se pretendiam objetivas e experimentais Mais adiante um novo período caracterizado pela descoberta da transferência e de seus possíveis usos terapêuticos Dito de outra maneira tratase de uma passagem do sentido à força com a imposição de conjeturas pela via do afeto Tem início aqui um segundo momento também do texto de Viderman 1990 onde não somente a linguagem mas também a transferência aparece utilizada como suporte para a tese de que o sentido em psicanálise é construído na e pela própria situação analítica Corroborando com esta perspectiva o autor francês retoma alguns emblemáticos casos clínicos de Freud para a partir deles afirmar que também a cura não dependeria da mera exposição do Inconsciente alheio mas de algo mais a autoridade transferencial105 Conforme o trecho a seguir O fato de Freud considerar como necessidade o paciente conservar sua fé no analista cuja palavra deve ter a infalibilidade atribuída ao leão cujo bote não conhece a repetição é o anúncio de que a pura démarche do cirurgião que Freud em outra parte recomendava como devendo ser fria e objetiva preocupada apenas com o sentido não se pode manter a não ser que saiba aliarse a algo que não um sentido que possa alterála A simplificação da história da técnica psicanalítica indispensável para que o essencial se tornasse evidência mostraria que ela oscilou incessantemente entre dois pólos opostos o sentido e a força sem poder encontrar um ponto de equilíbrio onde o balancim pudesse estacionar VIDERMAN 1990 p 245 A despeito de Freud portanto destaca Viderman 1990 também na transferência seria possível perceber reflexos da sugestão e da hipnose anteriormente utilizadas pelo pai 105 Viderman 1990 se refere particularmente aos relatos sobre os tratamentos de Emmy Von N presente nos Estudos Sobre Histeria de Dora e também aquele do homem dos lobos Cf FREUD 18931996 190119051996 e 191419181996 respectivamente 165 da psicanálise106 Neste sentido a própria disposição espacial do setting incluindose aí a regra fundamental e livre associativa bem como os locais ocupados pelo par analítico invariavelmente reafirmaria a disparidade das forças que organizariam tal campo Destarte a autoridade onipotente do analista exercida sob a aparência de uma neutra inatividade apareceria como decorrente da indução de um deslocamento econômico da libido a qual se desligaria do eu rumo ao objeto transferencial eou ao espaço analítico Desta forma sustenta Viderman 1990 teríamos aqui uma evidente relação entre a criação pelo analista de uma neurose artificial a neurose de transferência a utilização da regressão em psicanálise e a imposição de um sentido previamente definido pela teoria a mesma que criara o próprio setting Dispostas as cartas na mesa acrescenta o autor francês desvelarseia diante de nós o caráter ambíguo da transferência unindo a significação e a energia e assim permitindo à interpretação o seu impacto e importante a sua credibilidade A situação é de tal maneira arranjada que facilita e provoca ao mesmo tempo a regressão temporal aos objetos primários projetados na transferência e a regressão narcisista do eu que como efeito tem o enfraquecer de suas atividades defensivas Essas analogias permitem um melhor entendimento metapsicológico do tratamento e melhor captar como duas exigências igualmente indispensáveis à completa realização do tratamento as do sentido e da força encontram chances de satisfação uma no relevo eidético da representação a outra no poder da relação afetiva tornados possíveis pelo movimento regressivo VIDERMAN 1990 p 276277 É com base nesta argumentação que Viderman 1990 retoma a idéia fundamental de seu estudo Qual seja a de uma anterioridade e prevalência da teoria no campo analítico Em outras palavras da força em relação ao sentido com a organização da fantasia permanecendo intrinsecamente vinculada à transferência portanto ao contexto específico 106 Tal consciência pensa Viderman 1990 teria motivado trabalhos como os de Rank 19241981 e Ferenczi 19301992 na defesa de uma técnica mais ativa e balizada pela manipulação transferencial em detrimento do antes privilegiado campo do sentido movimento este que acabaria por ocasionar a progressiva utilização intencional da contratransferência as novas tendências técnicas recebem seu acabamento o excesso de intelectualização a que chegava a busca do sentido da primeira maneira tendese a substituir por um método bem oposto Vemos aqui como que sob efeito de um aumento deslumbrante a relação analítica nua despojada das nuanças atenuadoras e mascaradoras da realidade das relações na situação analítica Será necessário fazer o que Freud se recusou a fazer com Dora desempenhar papéis A manifestação transferencial atuará abertamente e pela primeira vez a contratransferência será cientemente utilizada O campo analítico tornouse um campo cerrado onde se entrecruzam afetos e contraafetos VIDERMAN 1990 p 247249 166 de cada atendimento Assim uma nova situação transferencial representaria uma também nova significação do sonho pensado não como uma mensagem última a ser decifrada mas como portador de uma ou mais mensagens para cada transferência107 Mais adiante já se dirigindo ao final de seu trabalho Viderman 1990 direcionará para o campo da metapsicologia freudiana a discussão acerca da verdade em psicanálise Assim retomando boa parte dos temas abordados anteriormente como a importância da linguagem na estruturação do espaço analítico bem como da transferência na negociaçãoimposição de sentido o psicanalista francês resgatará também a sua tese de que o neurologista em Freud teria sido incapaz de se render totalmente ao papel determinante da fantasia e dos poderes do desejo edipiano na condução dos destinos da vida psíquica108 Diante disso Viderman 1990 nos propõe uma inversão do problema da relação entre o vivido e o hipotético como saída possível diante da aporia que se apresentaria à psicanálise Afinal para si o evento histórico não criou as condições e as conseqüências ulteriores daquilo que fez advir ele mesmo é a conseqüência dos desejos e fantasias inconscientes realizados VIDERMAN 1990 p 313 Complementando este raciocínio nosso autor sugere ainda que em se tratando do tipo de trabalho realizado no espaço analítico a construção do sentido se daria na articulação entre vida e teoria Estamos aqui no domínio das construções dominadas por elevado coeficiente de incerteza Sernosá preciso conseguir combinar a teoria traumática dos eventos vividos e de seu papel no desencadeamento da neurose com aquela da constituição sem alimentar ilusões demais sobre a solidez dos conceitos assim manipulados É na intersecção dos dois eixos onde as duas experiências entrecruzamse que a experiência histórica e a fantasia originária iluminamse e 107 Interessante destacar que Viderman 1990 se utiliza das Construções em Análise Cf FREUD 19371976 para neste trabalho em particular reafirmar o que considera um impasse entre os há pouco referidos pólos da força e do sentido Afinal avança o autor francês ali o pai da psicanálise tanto nos diz que o paciente não daria assentimento a uma construção a menos que esta estivesse completa ou seja que lhe dissesse tudo quanto pouco depois diznos ainda que poderia não restar ao analista outra saída senão provocar no paciente a firme convicção acerca do que lhe fora dito o que também poderia adquirir o mesmo efeito de uma construção que supostamente acertasse na mosca Em termos de Brasil uma perspectiva semelhante é adotada por Birman 1994 que destaca toda a cautela de Freud 19371976 na introdução do conceito de Construção haja vista que se a rememoração da figura do analisante permite a verificação pontual da interpretação do analista com a construção o psicanalista se defronta radicalmente com o que existe de arbitrariedade na função do intérprete BIRMAN 1994 p 20 108 Ou seja teriam permanecido necessários às exigências metapsicológicas e pessoais do pai da psicanálise tanto um evento quanto a permanência da sua transmissão inclusive filogenética vide a teoria do assassinato primordial que se faz originalmente presente em Totem e Tabu e que mais tarde seria retomada em Moisés e o Monoteísmo Cf FREUD 1912131996 e FREUD 19391996 respectivamente 167 estruturamse numa unidade de sentido que a interpretação acaba de saturar Sabemos outrossim que é entre a linha assintótica que seguimos e a curva ideal fora de alcance que está situado o espaço próprio da criação psicanalítica VIDERMAN 1990 p 316317 Com efeito percebese na obra de Viderman 1990 a idéia de que a psicanálise aparece como resultante do encontro entre uma teoria que baliza certas linhas de raciocínio e o procedimento clínico estritamente associado por sua vez ao fenômeno transferencial singular e relativo às particularidades de cada caso109 Da mistura ótima destes dois elementos é que advém a assertiva fundamental do autor francês segundo a qual não há uma verdade última uma espécie de metafísica do tipo platônico a ser alcançada pelo par analítico mas que o tipo de conhecimento inaugurado por Freud é invariavelmente construído no e pelo espaço restrito do setting A mais profunda função da interpretação não é dizer o que foi reproduzindoo mas fazer que no espaço analítico apareçam figuras que não estão visíveis em nenhuma outra parte porque não têm outra existência que não aquela que lhes dá o espaço que tornandoas visíveis as faz existir VIDERMAN 1990 p 320 321 Em tal contexto a história do sujeito se define como repetição e vivência na transferência Portanto na conjunção entre experiências passadas e elementos fantasiosos contidos no aqui e agora tanto da fala daquele que ocupa o divã quanto nas intervenções daquele outro que o escuta110 Assim longe de desmerecer a psicanálise a obra de Viderman 1990 parece nos mostrar que este predicado somente a torna absolutamente 109 Também Mezan 1993 corrobora com esta idéia ao abordar as relações entre a teoria e a clínica psicanalíticas da seguinte maneira Ela a teoria fornece assim classes infinitas de possíveis orienta a atenção do analista para certas questões mas não fornece nenhum método geral para encontrar a solução do problema específico que está sendo considerado naquele instante Na situação analítica a teoria funciona como a estrela polar para o navegante fornece coordenadas para o percurso permite alguma idéia do rumo a tomar mas não é o alvo que se quer atingir MEZAN 1993 p 58 110 Mais recentemente esta discussão viria a ser retomada por um trabalho como o de Celes 2000 que dentre outras coisas ocupase em apontar a crítica da psicanálise à concepção linear de tempo que caracteriza a experiência do cotidiano Neste sentido confere destaque ao que considera como a estranha contemporaneidade do saber e da prática freudianos marcados por uma simultaneidade e interrelação entre o mostrar e o ocultar e entre o retornar e o esquecer Ainda segundo Celes 2000 porém tal conciliação seria inseparável de uma outra aquela entre o acúmulo de conhecimentos e a singularidade do diaadia da prática clínica Afinal O trabalho psicanálise não é algo estabelecido de uma vez por todas desde seu início cujas psicanálises seguintes só fariam repetir O trabalho psicanálise também ele é algo a ser conquistado em cada análise como parte e pertencimento dele mesmo a cada vez de uma análise É porque a Psicanálise se faz em cada psicanálise que não há psicanálise anacrônica CELES 2000 p 74 Voltaremos porém à questão da temporalidade em psicanálise mais adiante 168 especial enquanto um exercício terapêutico que é ao mesmo tempo um contínuo exercício de criatividade Muito bem ocorre que o nosso passeio na companhia de Serge Viderman ainda não acabou Isso porque esta mesma discussão acerca da interrelação entre sentido e força no contexto da situação analítica viria a ser retomada pelo autor em um outro trabalho que também nos interessará aqui Nele destacando o duplo objetivo freudiano de construir uma teoria do funcionamento mental que fosse simultaneamente saber e ato Viderman 1995 afirma que em se tratando de psicanálise o conhecimento não é jamais uma espécie de luxo desinteressado adquirindo portanto os contornos de um instrumento de poder e legitimidade Estamos na presença de uma dupla dialética práticoteórica em que cada um dos termos da díade encontraria no outro seu apoio sua prova e sua justificação quer dizer que a aquisição dos conhecimentos que a teoria propõe deve operar uma modificação paralela dos objetos psíquicos ao menos na forma em que a teoria os supôs existentes e os descreveu É assim que a modificação dos objetos psíquicos e a relação de conjunto que une uns aos outros a transformação do sujeito submetido ao processo analítico e de suas relações com seus objetos internos se tornam ao mesmo tempo a meta do ato de interpretar e a única garantia de sua verdade VIDERMAN 1995 p 208209 Já o final da citação acima anuncia o tema a ser elaborado nas páginas seguintes Tratase da interpretação ou melhor dizendo da verdade interpretativa enquanto ato eficaz que ao menos teoricamente funcionaria como intermediário entre uma causa única em termos psicopatológicos e os efeitos supostamente derivados desta última O problema avança Viderman 1995 é que a despeito da teoria a prática clínica se revela inexorável em demonstrar que não há uma relação justa de reversibilidade entre efeitos e causas relação essa mediada pela interpretação Qual a implicação direta de um postulado como este Ora que a perspectiva de uma verdade sobre o Inconsciente alheio a ser descoberta pelo analista não passa de um mito Com efeito somos obrigados a nos deslocar do aparentemente sólido terreno da unicidade para aquele outro bem mais acidentado e talvez por isso mesmo mais interessante da multiplicidade Neste mesmo sentido ao invés de restringirmos o trabalho do analista à singularidade de um único ato interpretativo tornase mais coerente que pensemos na 169 dinâmica de um trabalho de interpretação Conforme expresso por Viderman 1995 nos seguintes termos Temse destas constatações o sentimento de que a pluralidade das causas agentes faz com que os efeitos escapem a toda linearidade que um ato interpretativo com sua conotação pontual bastaria para inverter Estamos ao invés disso na presença de um políptico de significações ambíguas plurais ao qual seria preciso aplicar não um ato interpretativo unívoco mas sim um trabalho de interpretação com o que está idéia conota de multiplicidade dos pontos de aplicação das forças que vão se exercer no campo da análise e o recurso na metaforização teórica não mais a uma geometria do ponto mas à intricação plural das causas agentes VIDERMAN 1995 p 210211 Estas são pensa Viderman 1995 as possibilidades oferecidas pelo substantivo alemão Durcharbeiten mais conhecido no círculo analítico brasileiro como perlaboração escolhido por Freud como representativo da atividade clínica em sua relação com o Inconsciente111 Ainda segundo o psicanalista francês podese deduzir de tal expressão que o objeto analítico em sua natureza eminentemente virtual não se constrói de uma única vez mas apenas fugazmente no espaço específico do setting e por conseguinte no entrecruzamento dos discursos nele contidos Daí a importância capital do tempo leiase da espera da maturação no desenrolar deste percurso onde a interpretação aparece não como o meio para a veiculação do sentido mas como um trabalho quase que artesanal de moldagem das sucessivas camadas do Inconsciente É nestes termos que Viderman 1995 problematiza qualquer tomada do sentido em psicanálise como sendo algo inscrito de uma vez por todas Afinal pensa ele desde que passamos a levar em conta noções como aquelas de Inconsciente e de transferência deveríamos considerar sempre a existência de uma barra oblíqua que separando o ser do não ser aponta o caráter eminentemente ambíguo e variável do próprio sujeito freudiano Por conseguinte caberia aceitarmos o fato de que o sentido não se apresenta como marca 111 Incidindo sobre as resistências pulsionais e podendo mesmo se apresentar como um momento de aparente estagnação característica essa que não deve encobrir a importância terapêutica deste trabalho a perlaboração permite a passagem da recusa ou da aceitação somente intelectual de uma interpretação para um tipo de convicção baseada na experiência analítica Neste sentido conforme Laplanche e Pontalis temos aqui o Processo pelo qual a análise integra uma interpretação e supera as resistências que ela suscita Seria uma espécie de trabalho psíquico que permitiria ao sujeito aceitar certos elementos recalcados e libertarse da influência dos mecanismos repetitivos 1992 p 339 170 indelével e assim identificável pela ação interpretativa do analista mas sim como uma manifestação na temporalidade e na espacialidade próprias de cada setting analítico112 Ainda para Viderman 1995 daí decorreriam tanto o paradoxo teórico do saber inaugurado por Freud quanto o dilema que aflige todo analista ambos derivados da distância e da inadequação entre o dito no aqui e agora e o anteriormente vivido em outro lugar O que fazer diante disso Segundo o nosso autor assumir a inexatidão como algo constitutivo da psicanálise inclusive porque até hoje não foi criado e muito provavelmente nunca o será um saber suficientemente coerente a ponto de realizar uma síntese bem sucedida entre sentido e nãosentido Afinal o que temos sim são teorias diversas mutantes e sempre à espera de sucessivas inovações que nos lembram o quanto A tragédia da interpretação e o drama do analista é que ele é a única medida das verdades que enuncia Fraca garantia para uma coisa tão grande VIDERMAN 1995 p 213 Mais adiante corroborando com esta argumentação Viderman 1995 realiza uma interessante aproximação entre ciência e psicanálise demonstrando como a despeito das pretensões totalizantes do passado ambas partilham mesmo de uma similar fragilidade ao operarem com recortes parciais da realidade que reduzindoa a modelos preconcebidos viabilizariam ações apenas sobre partes de um todo maior É neste sentido que tais modelos não atestariam verdades mas a coincidência entre uma determinada teoria e certos aspectos do seu objeto de estudo Dominados pelo ideal do rigor conceitualizante que triunfou nas ciências e tentados que estávamos em imitálos para aproximarmonos da comunidade científica e de seus sucessos deixamonos muito facilmente convencer que as associações livres a situação analítica iriam nos liberar o acesso a uma inteligibilidade total da psique O que se vê menos é que a escuta psicanalítica não mais que qualquer outro agenciamento instrumental científico não trabalha sobre totalidades da realidade mas sobre blocos parciais dos quais o 112 Levando em conta os nossos propósitos aqui detenhamonos um pouco mais no estatuto da temporalidade em psicanálise Como aponta Alonso isso não pode ser feito sem que primeiro levemos em conta o fato de que ao desfazer qualquer oposição radical entre fantasia e realidade o pensamento freudiano inaugura uma nova teoria da memória onde o passado fatual a realidade material não se encontra arquivado em lugar nenhum O presente é sempre reminiscente o passado ao qual temos acesso é fruto da resignificação 1997 p 87 Diante disso temos que embora apresentado de maneira seqüenciada no cotidiano da clínica vide o tempo das sessões o tempo total de uma análise e mesmo o encadeamento das descrições feitas pelo paciente regido pelo processo secundário ligado por sua vez à atividade consciente a temporalidade com a qual lida o analista aquela própria ao processo primário e ao Inconsciente é em última instância absolutamente atemporal desrespeitando limites preestabelecidos entre passado presente e futuro 171 modo de escuta específico do analista pára a errância e a desvia VIDERMAN 1995 p 218 É bem verdade pondera Viderman 1995 que uma linha de raciocínio como esta não se afirmou enquanto unanimidade Daí a insistente presença de movimentos como os da Psicologia do Ego norteamericana e também de certas correntes francesas ligadas ao estruturalismo as quais segundo o nosso autor a despeito de divergências teóricas unirse iam na busca de critérios menos maleáveis no que se refere ao modus operandi da clínica psicanalítica aproximandoa assim do chamado rigor científico em termos da observação e controle de dados e possibilidades Novamente para Viderman 1995 ocorre que a qualidade das paixões mobilizadas por um encontro como o analítico permaneceria irredutível a parâmetros do tipo formal inscrevendose mesmo no espaço próprio ao inefável e ao indizível Assim não seria possível pretender sublinhar o seu caráter extraordinário e de forma simultânea limitar esta força explosiva a um quadro fixo e previsível como o da situação experimental Como seguramente já notou o leitor atento eis que retornamos à tragédia da interpretação há pouco mencionada Entretanto finaliza Viderman 1995 é exatamente no enredo de tal drama incluindose aí a ambigüidade e em decorrência a permanentemente propagada crise do saber inaugurado por Freud que se localizam as férteis potencialidades da psicanálise tanto como modalidade terapêutica quanto na qualidade de um ramo de pesquisas Sua principal virtude Ampararse não no rigor técnico e formalista mas em um apreço ao individual que pronto a assumir o risco do erro adquire mesmo os ares de uma estética da criação113 113 Ainda em solo francês uma discussão semelhante aparece no escrito de Le Guen 1995 o qual em acréscimo problematiza os próprios conceitos de criação e produção de sentido em psicanálise No que se refere ao primeiro postula que este adquire uma conotação metafísica enquanto obra de um sujeito situado fora do mundo ou seja agindo para si mesmo Já o segundo situarseia sempre na relação Portanto um produto realizado com eou para alguém Tal diferenciação conduz Le Guen 1995 a opor os verbos reconstruir e construir questionando assim o estatuto da história em psicanálise Neste sentido esta última apareceria como uma coleção de acontecimentos mortos e enterrados ou como um movimento de vida que se refaria a cada cura Claramente se posicionando a favor da segunda opção o autor francês atesta a qualidade própria da temporalidade da experiência analítica ao conferir destaque a um atributo particular do desejo aquele de se constituir como o cimento que ligaria o passado à atualidade De acordo com este mesmo desejo portanto poderíamos pensar a atividade interpretativa em psicanálise como lugar de um inventivo fazer sentido 172 Diante disso parece que nos situamos em um impasse de proporções nada desprezíveis e que incide diretamente sobre o objeto do presente capítulo a questão da alteridade e da imposiçãonegociação de sentido em psicanálise Tratase de como conciliar os resquícios do realismo em Freud 19371976 ou seja a sua arqueologia presente na aposta quanto a possíveis origens históricovivenciais para o trauma psíquico com o absoluto construtivismo proposto por Viderman 1990 1995 segundo o qual o Inconsciente jamais um dado natural expressarseia unicamente por uma metalinguagem logo por uma cultura não meramente classificatória mas organizadora da experiência que ao dizer a fantasia também a criaria Pois bem qual destas duas partes tem razão nesta contenda Ou será que superando as dicotomias de caráter simplista haveria alguma outra maneira de se pensar essas questões Isto é exatamente o que sugere Figueiredo 1998b em um trabalho que de agora em diante merecerá a nossa particular atenção pois além de abranger os problemas do tempo e da narrativa em psicanálise objetos privilegiados da nossa discussão até aqui associaos à noção heideggeriana de experiência ampliando com isso o leque das nossas possibilidades de reflexão114 Neste sentido de volta ao campo da psicanálise abordaremos questões de ordem técnica sobre o material clínico como se deixar afetar por ele como responder ao seu apelo e ainda acerca dos estatutos e das eficácias das falas o que por derivação nos conduzirá rumo a questões epistemológicas referentes à noção de verdade no saber inaugurado por Freud Sem mais delongas avancemos então rumo a esta nova etapa do nosso capítulo Terceira Parte tempo e narrativa em Freud e Heidegger um encontro na obra de Luís Claudio Figueiredo Figueiredo 1998b inicia seu estudo por um contraponto entre duas tendências que como vimos há pouco demarcam sobremaneira o universo psicanalítico Falamos dos construtivistas e dos realistas Quanto aos primeiros aponta o nosso autor sua 114 Como veremos interessam a Figueiredo 1998b particularmente as meditações de Heidegger acerca da modernidade ou seja o chamado segundo Heidegger aquele que a partir da década de 1930 deixa mais de lado a analítica existencial tão presente em uma obra como Ser e Tempo para se dedicar a críticas ao humanismo e ao pensamento representacional 173 característica principal é grosso modo a de enfatizar a impossibilidade de garantias de correspondência entre a representação e a coisa representada Em termos clínicos isso significa uma perene inadequação entre as metapsicologias e o funcionamento do aparelho mental De maneira complementar temos ainda na perspectiva construtivista a frustração de qualquer expectativa de que as interpretações ou construções em análise se revelem adequadas enquanto instrumentos de contato com a verdadeira história do sujeito que se submete ao tratamento Ainda no que se refere aos construtivistas prossegue Figueiredo 1998b uma outra implicação de tal maneira de conceber a psicanálise é a de que se as teorias parecem perder pelo menos parte da sua confiabilidade ao capitularem da busca por critérios últimos de veracidade as práticas clínicas pelo contrário aparentemente preservam muito do seu valor enquanto viabilizadoras de transformações terapêuticas ou seja enquanto permanecerem eficazes Neste mesmo sentido para além de alguma noção previamente determinada tratase de enfatizar a coerência das histórias geradas pela interação entre postulados teóricos e material clínico Assim o passado por exemplo não é redescoberto e reconstruído não é isso o que importa e sim que seja efetivamente constituído a partir do presente ou seja da situação analítica e do jogo transferencial contratransferencial que se instala nela FIGUEIREDO 1998b p 273115 Diante disso Figueiredo 1998b chama a nossa atenção para os seguintes problemas se o passado perde em importância se comparado ao aqui e agora do encontro clínico como compreender a relação contratransferencial Como absoluto presente Aliás como sequer falar em transferência sem levar em conta as determinações inconscientes que a caracterizam sobremaneira determinações essas ligadas a um contexto prévio como aquele da infância Mais ainda como manter em movimento o processo analítico se um ou mais sentidos compartilhados ameaçam preencher as lacunas eou mal entendidos com os quais trabalha a escuta do analista leiase a escuta do Inconsciente Portanto aposta o nosso autor A miopia está em não reconhecer que nestas inconsistências como ocorre sempre que se trata da psicanálise revelase algo muito 115 No original Desde esta perspectiva el pasado por ejemplo no es redescubierto y reconstruido no es eso lo que importa sino que sea efectivamente constituido a partir del presente o sea de la situación analítica y del juego transferenciacontratransferencia que se instala en ella trad nossa MRS 174 valioso a presençaausência do que fora do tempo das narrativas faz a análise trabalhar FIGUEIREDO 1998b p 274116 Corroborando com estas questões relativas à técnica aponta Figueiredo 1998b o construtivismo em psicanálise levanta ainda polêmicas de ordem ética dada a chance que fornece de que se venha a tomar o passado relatado na clínica a realidade psíquica como uma versão entre outras versão essa passível de melhorias e assim potencialmente inconsistente em si mesma Somese a isso a possibilidade de que as metapsicologias acabem por se tornar meros recursos para a criação de boas ou más narrativas de acordo com uma liberdade quase absoluta potencialmente delirante eou autoritária inclusive das interpretações e construções do analista e teremos como resultado uma severa diminuição das chances de entrarmos em contato com a alteridade do paciente particularmente com aqueles traços tão caros ao Inconsciente que teimosamente resistem à ação descritiva das palavras Uma vez feitas estas considerações Figueiredo 1998b parte então para um segundo momento do seu trabalho quando passa a abordar as versões da psicanálise que buscam apoio em uma epistemologia do tipo realista Conforme o nosso autor o que as manteria unidas é a crença quanto à possibilidade da obtenção de um conhecimento seguro das coisas pela via da correspondência entre as construções teóricas e os fatos empiricamente observáveis Dito de outra maneira tratase aqui de conceber um conhecimento confiável e independente de contaminações subjetivas o que no caso do tipo de saber inaugurado por Freud significaria a adequação ou analogia entre o discurso metapsicológico e o funcionamento do aparato mental Pois bem ainda para Figueiredo 1998b a despeito talvez das boas intenções presentes em tal discurso o problema começa a aparecer quando observamos mais de perto esta questão do fatos particularmente no contexto da clínica analítica Afinal este é um terreno movediço onde a verdade adquire marcados contornos de precariedade já que aparece invariavelmente atravessada pelas artimanhas do Inconsciente Com efeito 116 Ibidem La miopía está en no reconocer que en estas inconsistencias como ocurre siempre que se trata del psicoanálisis se revela algo muy valioso la presenciaausencia de lo que fuera del tiempo de las narrativas hace trabajar al análisis trad nossa MRS 175 deve ser extremamente difícil senão impossível livrar a psicanálise da acusação de confundir sistematicamente fatos com artefatos Justamente o psicanalista que conduz seriamente as suas teorias e práticas sabe que elas têm um potencial desestabilizador em relação às posições realistas na medida em que as determinações inconscientes não pedem licença para atuar e nem tampouco anunciam a sua ação a não ser e sempre precariamente por uma escuta treinadapela própria psicanálise FIGUEIREDO 1998b p 276117 De qualquer forma esclarece Figueiredo 1998b logo em seguida o seu objetivo no trabalho em questão não é o de permanecer no âmbito de uma comparação descritiva entre realistas e construtivistas demolindo a falsa idéia de uma absoluta oposição entre si Ao invés disso interessalhe demonstrar que ambos são incompatíveis com o que sugere e mesmo exige a prática analítica uma vez que adotam uma concepção de experiência que esta sim deveria ser repensada118 Neste sentido Figueiredo 1998b aponta o problema de seguindo a tradição do pensamento ocidental permanecermos tomando esta mesma experiência sob a primazia da 117 No original debe ser extremadamente difícil si no imposible librar al psicoanálisis de la acusación de confundir sistemáticamente hechos con artefactos Justamente el psicoanalista que conduce seriamente sus teorías y prácticas clínicas sabe que ellas tienen un potencial desestabilizador en relación a las posiciones realistas en la medida en que las determinaciones inconscientes no piden licencia para actuar ni anuncian su acción sino y siempre precariamente por uma escucha educadapor el propio psicoanálisis trad nossa MRS 118 Para maiores detalhes acerca da noção de experiência com a qual trabalhamos aqui estritamente vinculada por seu turno aos diálogos de Heidegger com a modernidade consultar as reflexões de Figueiredo 1994a 1995 2002a Elas aparecem marcadas por uma problematização da chamada metafísica da presença segundo a qual haveria uma consistência eou permanência do ser no tempo e no espaço Ou seja tratase da crença em um perfeito agora como lugar do ser segundo Figueiredo 2002a a mais perfeita imitação humana da idéia de uma eternidade divina associada por seu turno à busca de uma identidade ou coincidência do si consigo mesmo Em tal quadro marcado por uma concepção linear onde o tempo aparece como algo recuperável eou previsível e com efeito presente e passado são postos à disposição do homem suposto sujeito do saber caberia às ciências da atualidade presentificar presenças ausentes por meio de sistemas teóricorepresentativos que além de trazerem de volta o que supostamente já foi antecipariam o que ainda será Diante disso ao mesmo tempo em que nos propõe a possibilidade de pensarmos o tempo como trânsito e diferenciação ao invés de um eterno de um ente supremo que agiria como fundamento de todos os entes Figueiredo 2002a nos convida a questionar o caráter supostamente integrado do presente fraturandoo ao apostar na sua heterogeneidade aquela que nos diz que cada identidade é composta por variadas alteridades constitutivas Em outros termos o desafio é o de deixarmos de lado a proteção narcísica garantindo um lugar no pensamento para a lacuna para uma imprevisível ruptura desubstancializando a subjetividade como nos diz Figueiredo 2002a e assim caminharmos para uma nova forma de conceber termos até então consagrados como origem e experiência os quais deixam de ser absolutamente fundantes eou elementares Neste mesmo sentido tratase ainda de suprimirmos a coincidência do sujeito consigo mesmo enquanto identidade presentificada no penso logo existo cartesiano e simultaneamente derrubarmos qualquer noção de agora que pudesse ser vivido revivido ou experienciado em sua pura autenticidade Com efeito temos aqui uma idéia de experiência como permanente construção devir e não obra completa comportando portanto a ameaça de destruição e luto não como fim em si mas como abertura ao novo à possibilidade Nesta nova concepção nãolinear o presente deixa de se constituir na qualidade de identidade para ser tomado como diferença de si e o agora passa a dividir a sua morada com o vazio com o instituinte e com o irrepresentável 176 presentificação ou seja como aquilo que se dá na presença restando à memória e à expectativa o predicado de modos deficientes de se encontrar algo que se revelaria em sua maior plenitude apenas ou preferencialmente na percepção do aqui e agora Em tal perspectiva vale notar o passado aparece como um foi presente e o futuro como um será presente enquanto à narração caberia o papel de reunilos passado e futuro em um único e verdadeiro presente119 Qual a implicação disso para a nossa discussão até agora Bem ela aparece claramente se considerarmos que neste entrechoque entre realistas e construtivistas tanto faz em última análise se a narrativa aparece tomada como reconstrução reprodução ou construção criação O que importa é ver que o sentido de experiência como presentificação é o mesmo em ambos os casos FIGUEIREDO 1998b p 277120 O mesmo já não ocorre contudo quando levamos em conta o caráter extemporâneo do Inconsciente a Nachträglichkeit freudiana enquanto elaboração teórica dos efeitos traumáticos de acontecimentos passados atualizados mediante certas condições proporcionadas por eventos posteriores121 Tratase aqui diznos Figueiredo 1998b do quê de indestrutível das emergências pulsionais da enorme resistência das representações recalcadas e dos efeitos devastadores do trauma particularmente quando da destruição dos recursos autoregenerativos do psiquismo o que impede o movimento do sentido na vida do sujeito experiência essa anteriormente denominada pelo nosso autor de acontecimento inconcluso FIGUEIREDO 1993122 119 Resumidamente portanto temos que a veracidade do passado e do futuro seria obtida unicamente pela sua presentificação narrativa 120 No original como reconstrucción reproducción o construcción creación Lo que importa es ver que el sentido de experiencia como presentificación es el mismo en ambas posiciones trad nossa MRS 121 Processo este de constituição e reconstituição do sentido da experiência que na comunidade psicanalítica francesa e também na brasileira aparece mais geralmente descrito como après coup 122 Portanto quer seja enquanto sistema delirante e fechado a qualquer alteração quer seja na qualidade de incurável ferida pósoperatória ao invés de abrir portas para a presença enquanto novidade ou para a novidade da presença o trauma acaba por encerrarreduzir drasticamente o campo da experiência e com ele a sensibilidade à alteridade Essa é a perspectiva que conduz o nosso autor à afirmação de que Não é o acontecimento passado que determina o presente embora o propicie ao abrir um campo novo de possibilidades e passibilidades o que determina absolutamente o presente é a fratura aberta do trauma enquanto acontecimento inconcluso FIGUEIREDO 1993 p 49 A partir destas observações tornase viável pensarmos na hipótese de um certo caráter melancólico do acontecimento traumático Isso porque em ambos os casos no trauma figueirediano e na melancolia freudiana parece ocorrer uma fixação do sujeito em objetos eou etapas específicas da sua vida sem que seja vislumbrada a possibilidade de um salutar deslocamento da libido rumo a outras pessoas os eventos leiase acontecimentos Cf FREUD 1915171996 177 A partir do referencial freudiano vemos portanto que a presença perde o seu status de fundamento da experiência Isso porque o fora do tempo passa a ser reconhecido como parte integrante e indissociável de tudo o que se dá como vivência presentificada Eis aí a diferença fundamental entre a temporalidade psicanalítica e a narrativa convencional aquela portadora de um ou mais sentidos e de um começo um meio e um final bem definidos Corroboram com esta argumentação os seguintes termos de Figueiredo Em psicanálise o extemporâneo se fará irromper sempre inevitavelmente porque são justamente nessas e a partir dessas irrupções que o tempo temporaliza Sempre recomeça mas jamais desde o começo Mas além disso jamais se saberá definitivamente onde estão o começo o meio e o fim das narrativas psicanalíticas e cada momento estará sempre remetendo ae sendo atraído por outros momentos na constituição de uma história fraturada e sobredeterminada pelos seus antes e depois FIGUEIREDO 1998b p 278123 Diante disso Figueiredo 1998b se desloca do terreno da temporalidade para aquele próprio à narrativa Então acrescenta às suas idéias o argumento de que se o tempo em psicanálise muda também o faz a fala que para adquirir verdadeira eficácia clínica ao invés de fabricar contos belamente acabados deve tornar possível de alguma forma o acolhimento do extemporâneo do Inconsciente ao qual nos referimos há pouco quer ele apareça de modo mais configurado ou então mais livre para que exerça a sua imprevisível mas impressionantemente efetiva atividade germinativa Como viabilizar esta acolhida Bem possíveis saídas para esta pergunta aparecem já em um trabalho anterior quando Figueiredo 1993 ocupandose dos estatutos da fala em psicanálise tomaa inicialmente na qualidade de dispositivo representacional ou seja como um agente nomeador dos fenômenos em isto ou aquilo No mesmo artigo porém o autor nos propõe logo em seguida uma fala acontecimental que complementando a primeira aparece marcada por uma palavra estranha indisponível e liberta das tarefas comunicativas eou representativas Segundo Figueiredo 1993 tal fala responde por si mesma e não de algum lugar preestabelecido pela linguagem ou por um autor específico 123 No original En el psicoanálisis lo extemporâneo se verá irrumpir siempre inevitablemente porque son justamente de esas y en esas irrupciones que el tiempo temporaliza Siempre recomienza pero jamás desde el comienzo Pero además nunca se sabrá definitivamente dónde están el comienzo el medio y el fin de las narrativas psicoanalíticas y cada momento estará siempre remitiendo ay siendo atraído por otros momentos en la constituición de una historia fracturada y sobre determinada por sus antes y después trad nossa MRS 178 Com isso chama à escuta aquele que fala e coloca à justa distância o enigma da própria fala para que este venha a ser algo124 Tal é o quadro propício para que Figueiredo 1993 aproximando as suas discussões anteriores do contexto próprio ao atendimento clínico brindenos com a sugestiva proposta de que a palavra em psicanálise funcione como fala acontecimental Ou seja que faça o acontecimento efetivamente acontecer disponibilizandoo então para a elaboração e para a representação de maneira a libertar a existência do sujeito ao reinstalar nela o movimento de uma história até então paralisada pelo trauma Conforme o próprio autor é preciso que a situação analítica reedite a condição do acontecimento inconcluso para que dela provenha uma pulsão tradutiva capaz de libertar uma palavra nomeadora que acontecendo efetue o trânsito e faça acontecer FIGUEIREDO 1993 p 50 Para tanto porém acrescenta Figueiredo 1993 o desenrolar do processo de acontecimento deve adquirir um caráter verdadeiramente fenomenológico entendendose com isso a anterioridade e distinção de qualquer movimento representativo Nestes termos tentativas apressadas de interpretação eou construção que desrespeitem uma solicitação de fala emergente do campo de forças instaurado no e pelo encontro analítico ou seja que atuem contra o movimento que é próprio ao acontecimento fatalmente poderão vir a ser tomadas como defesa eou sugestão de sentido125 Eis aí o princípio norteador da leitura feita por Figueiredo 1996a de Construções em Análise objeto último deste nosso percurso pelas suas idéias Sua principal virtude O fato de utilizar esta discussão acerca da fala e da escuta para então trazer à tona novas alternativas para o dilema realistas versus construtivistas leiase descoberta ou imposição de sentido em psicanálise Assim passemoslhe a palavra 124 Uma abordagem mais aprofundada desta temática pode ser encontrada em Figueiredo 1994a particularmente em um capítulo do livro em questão intitulado Poesia e fala 125 Mais uma vez aproximando a psicanálise do pensamento heideggeriano podese perceber no trabalho de Figueiredo 1993 a crítica à verdade ou fala como correspondência Ao mesmo tempo temos a busca de uma correlação entre a renúncia à representação plena e a aspiração pelo sentido A partir desta abertura e incompletude sugere o nosso autor abrese a possibilidade da emergência do acontecimento em uma fala que brote da escuta do ser como abismo FIGUEIREDO 1995 Enfim uma aproximação do real enquanto campo de possibilidades e não da realidade enquanto representação fechada Como se pode notar Figueiredo 1993 1995 parece portanto situar a palavra ou a verdade em psicanálise no momento na transição entre um a priori e um a posteriori do sentido diferindo assim de um construtivismo como aquele de Viderman 1991 Retornaremos a isso oportunamente 179 Quarta Parte de volta às Construções em Análise Figueiredo 1996a abre a sua discussão com um recuo no tempo em busca das teorias do filósofo G W Leibniz cuja importância reside entre outras coisas no estabelecimento do Princípio de Razão o qual tantos rastros deixou na história do Ocidente desde a chamada época das luzes séculos XVII e XVIII Quais as suas características Primeiramente uma coincidência entre o pensar e o manejo das representações considerandose que é por intermédio destas últimas que o sujeito reconhece os objetos do saber mantendoos a uma distância suficientemente boa em termos de manipulação e controle Para que todo este processo venha a se dar diznos Figueiredo 1996a temos de levar em conta ainda o papel da fala propositiva que na qualidade de expressão supostamente perfeita do há pouco mencionado pensamento representacional enlaçaria os sujeitos e predicados de uma determinada sentença tornandoa verdadeira ou seja adequada à realidade das coisas Entretanto o árduo percurso para o estabelecimento da objetividade de um fato não terminaria aí uma vez que necessitaria também da articulação não contraditória entre diversas proposições a ponto de formarem um sistema único e coerente capaz de conferir um lugar ou sentido específico a cada um dos objetos que comporta Quando isso ocorre cada fenômeno visado numa proposição adquire plena consistência vale dizer quando isso ocorre o sujeito sentese perfeitamente seguro de que lida com algo que realmente é com algo que integrado a um sistema de algos tem a consistência própria de um objeto Vêse portanto facilmente que é a objetidade de um objeto que garante para cada algo um ser verdadeiro real não ilusório ou meramente sonhado e que esta objetidade depende por seu turno da aptidão deste algo deixarse incorporar a um sistema representacional FIGUEIREDO 1996a p 82 Tais sistemas porém não brotam do nada pondera Figueiredo 1996a mas sim da imaginação de um sujeito do conhecimento que em última instância arbitraria sobre as noções de verdade e assim procedendo forneceria tanto as razões de um fenômeno quanto a garantia da sua objetividade Eis a função de dois tipos distintos ainda que potencialmente complementares de proposições as explicativas baseadas em relações 180 diretas de causa e efeito e aquelas outras de natureza hermenêutica que menos orientadas por um ideal de exatidão buscariam estabelecer sentidos para os enlaces entre eventos De qualquer maneira e aqui retornamos a Leibniz explicando ou interpretando o sujeito se submeteria ao Princípio de Razão onde nada é sem uma justificativa plausível e ditada por sistemas representativos Nesta perspectiva a realidade aparece como a totalidade dos fenômenos passíveis de integração a tramas de sentido anteriormente determinadas Em decorrência teríamos aí um espaço marcado pela previsão e pelo controle uma comodidade na qual dados os enlaces possíveis entre os diversos fenômenos poderemos sempre ir de um a outros sem quedas nem obstáculos insuperáveis Realidade em termos fenomenológicos é onde vivemos e nos apoiamos sem sobressaltos nem surpresas dada a solidez de seus objetos e dada a perfeita integração e harmonia entre eles FIGUEIREDO 1996a p 83 Mais adiante Figueiredo 1996a avança em sua argumentação apontando como atividades tão cotidianas quanto o ver e o escutar costumam ser exclusivamente balizadas por preceitos como aqueles expostos acima tornandose significativas à medida que provêm as razões de dado fenômeno e lhe garantem uma condição plenamente inteligível e portanto objetiva Nestes termos nosso aparelho sensoperceptivo se volta a uma busca espontânea e ao mesmo tempo reducionista por tornar o novo eou inesperado algo já conhecido para então recobrar a confiança na solidez daquilo que tomamos como realidade processo esse realizado de forma mais sistematizada pelas ciências Muito bem deve estar agora se perguntando aquele leitor mais impaciente mas qual a importância última desta incursão pela seara da filosofia e teoria do conhecimento Ao que cabe responder ela serve como preâmbulo necessário para que Figueiredo 1996a alcance certas questões essenciais ao seu trabalho São elas Em que medida a clínica psicanalítica está também ela submetida ao Princípio de Razão Em que medida a clínica psicanalítica realizase através do proferimento de proposições explicativas e interpretativas no sentido acima indicado FIGUEIREDO 1996a p 83 Este é o quadro que conduz Figueiredo 1996a a uma avaliação do próprio papel da interpretação no encontro analítico Estaria ela associada à reconstituição de um tecido de razões Em caso positivo qual seria a sua função esclarecer o material psíquico até então 181 disperso em manifestações do Inconsciente como aquelas representadas pelos sonhos sintomas ou atos falhos E mais ainda deveria o ato de interpretar ser tomado como um sinônimo do ato de convencer por meio de teorias aparentemente coerentes que uma vez incorporados reorganizariam a percepção do paciente acerca de si mesmo e da sua relação com o mundo Conforme Figueiredo 1996a a aceitação de tais hipóteses de cunho intelectualista implicaria na concordância com o ponto de vista segundo o qual as falas interpretativas em psicanálise agiriam como falas realizadoras leiase eficazes na constituição de uma nova realidade ortopédica ou abertamente substitutiva no que pouco ou nada difeririam da sugestão Assim posicionandose contra esta aproximação estreita entre a atividade clínica e o Princípio de Razão nosso autor procurará demonstrar nas próximas páginas que a fala em psicanálise não tem essencialmente uma função realizadora que interpretar em psicanálise não é essencialmente fazer ou refazer ligações e que o ver e o escutar em análise não são meramente acessórios da tarefa principal de dar esperar ou procurar razões FIGUEIREDO 1996a p 8485 Neste sentido tratase de afirmar primeiramente a possibilidade de que algo se imponha a nós de maneira prévia como um sendo experimentado sem necessariamente se subordinar à exigência da razão Em outras palavras como um enigma ou corpo estranho que irrompendo no pretensamente sólido tecido da realidade criaria o que Figueiredo 1996a chama de superreal ou espaço do heterogêneo o qual bem próximo ao sonho permaneceria impassível de qualquer determinação pelo nosso repertório conceitual Para dar conta do quê de surpresa presente nesta fratura segue nosso autor o pensamento representacional não seria de grande valia pois apenas nos reconduziria ao seguro terreno do já sabido Daí a necessidade de nos libertarmos da tutela da razão tal como pensada na tradição ocidental e com isso Ao invés de ver e escutar na expectativa e na procura de razões ver e escutar o que é ainda puro movimento de tornarse figura desde um fundo que é nada do ponto de vista dos entes já constituídos mas que é um nada pleno o nada é um vazio de entes de formas e figuras mas não é só vazio é também uma discreta plenitude FIGUEIREDO 1996a p 85126 126 Aqui o trabalho de Figueiredo 1996a revela a sua dívida para com as idéias de Heidegger 1989 1990 onde o ser aparece em um movimento de puro envio e retraimento fonte virtual de todas as coisas que brotaria entre o aqui e o acolá o som e o silêncio a exposição e a camuflagem 182 Mas as mudanças não param por aí exigindo ainda uma significativa transformação no status da própria fala que de propositiva passa a se configurar enquanto fenomenalizadora A fala é neste caso já não mais a da proposição considerada como aquilo que enlaça sujeitos e predicados e se enlaça a outras proposições É a fala fenomenalizadora que responde à escuta do inaudível e à visão do invisível dando uma figurabilidade mínima para que antes de qualquer objetivação e racionalização algo possa vir a ser para que algo se mostre Esta fala não é em absoluto uma fala realizadora no sentido acima mencionado Ao contrário é uma fala irrealizante que descontextualiza destece a realidade homogênea para acolher o heterogêneo o surpreendente FIGUEIREDO 1996a p 8586 Os reflexos de tal reorientação nos interessam de perto revelandose de grande valia tanto para o filósofo quanto para o analista É desta maneira que de volta ao contexto clínico Figueiredo 1996a considera a neurose um excesso de realidade diante do qual a interpretação somente se tornaria eficaz caso atuasse também ela na qualidade de fala surrealista e irrealizante abrindo espaços em meio à densa espessura de uma homogeneidade doente É para justificar esta proposta que Figueiredo 1996a na segunda e última parte do seu artigo empreende uma leitura de Construções em Análise Cf FREUD 19371976 procurando demonstrar como já ali seria possível encontrar certos modos de ver escutar e pensar não necessariamente atrelados às exigências do Princípio de Razão Assim obedecendo a seqüência do texto original nosso autor inicia pela seguinte questão como o analista deve lidar com o sim e o não do paciente após uma interpretação Neste mesmo sentido seria desejável que prevalecesse aqui a estrita obediência teórica e com ela a submissão a uma coerência de ordem intelectual sobre tais respostas e mesmo sobre a totalidade dos eventos clínicos Qualquer resposta afirmativa a estas perguntas sugere Figueiredo 1996a em nada diferiria a psicanálise de uma oferta de razões particularmente de natureza genética tornando o processo analítico uma tarefa meramente realizadora e sustentada na crença quanto à possibilidade da reconstituição de um suposto tecido da realidade127 Para o 127 Corroboram com esta suspeita destaca ainda Figueiredo 1996a tanto o próprio termo construção quanto a afirmação de Freud 19371976 de que o objetivo do analista é aquele de suplantando as lacunas impostas pela amnésia reconstituir a trama da história de vida do paciente 183 mesmo Figueiredo 1996a contudo um contraponto imediato a esta idéia seria oferecido pela metáfora freudiana que aproxima a atividade do analista àquela outra do arqueólogo Cf FREUD 19371976 Afinal a partir dela seria possível pensar que em seus esforços na busca de objetos perdidos ambos estes profissionais se dedicariam a peças que teriam valor em si mesmas destituídas portanto de uma necessária vinculação a determinadas tramas racionais O que porém autorizaria tal proposta de que a construção psicanalítica estaria fora dos domínios do razão Mais uma vez tomando por base o texto de Freud 19371976 Figueiredo 1996a nos diz que ela seria referendada pelo fato de que a eficácia da construção não se revelaria de maneira direta através de simples anuências ou discordâncias conscientes por parte do analisando mas sim pelos seus efeitos128 Por exemplo denegações associações ou lembranças adicionais cujo manejo influenciaria diretamente no desenrolar do tratamento mas que em si mesmas nada teriam a ver com qualquer intenção de um convencimento racional Conseqüentemente a construção não é boa ou má em termos de estar ou não contribuindo para a realização de uma história de vida Boas construções tocam o inconsciente do paciente e isto se revela nos efeitos índices de que a construção gerou algo no campo dos afetos produziu uma emergência pulsional Nada disso é obtido através de argumentos pró ou contra apenas cabe ao analista apresentar a construção mostrar a peça construída e deixála fazer seu caminho FIGUEIREDO 1996a p 88 Pois bem já próximos de encerrar o nosso passeio pelo trabalho de Figueiredo 1996a vemos de que maneira um outro destes mesmos efeitos terapêuticos da construção passa a servir aos propósitos do autor à medida que também ele referendaria a hipótese de uma insubmissão da psicanálise ao Princípio de Razão Comparado por Freud 19371976 ao delírio psicótico tratase do surgimento de imagens hipernítidas elementos fragmentados de cenas anteriores que embora irreconhecíveis ou apenas indiretamente relativos ao conteúdo da construção somarseiam a este último com todo o poder intempestivo de uma impressão ou experiência original a partir da fala do analista 128 Inclusive acrescenta ainda Figueiredo 1996a porque as recusas ou confirmações acerca das hipóteses construídas poderiam significar uma miríade de coisas distintas tornando inviável qualquer definição acerca da sua maior ou menor verdade 184 Mais uma vez de acordo com Figueiredo 1996a seria possível deduzir deste processo uma equivalência entre a força de convicção do delírio e a força de convicção da construção analítica o que por sua vez afastaria qualquer chance de confundirmos a eficácia racional de um argumento e aquela outra de natureza pulsional relativa às construções Afinal A primeira deriva do império do Princípio de Razão A segunda salta para fora deste território FIGUEIREDO 1996a p 88 Temos aqui uma espécie de coroamento de tudo o que foi dito até o presente momento com o poder da construção em análise aparecendo não na sua qualidade lógica e nem tampouco na sua correspondência objetiva com um passado esquecido mas na capacidade de fornecer uma figurabilidade a este mesmo passado Com efeito o que antes era um fragmento desligado poderia vir a ser reexperimentado na situação clínica de maneira bem mais elaborada tornando a construção e por derivação o próprio saber inaugurado por Freud uma ferramenta essencialmente fenomenalizadora ao invés de mera edificação teórica ou mesmo formulação retórica129 É o que podemos deduzir das seguintes passagens com as quais encerramos esta leitura Em conclusão não se trata portanto de que a construção convença racionalmente ou se incorpore pura e simplesmente a uma narrativa de si racionalizante não se trata de contar melhores histórias ou elaborar descrições mais convenientes da subjetividade mas de que o proposto na construção mobilize as pulsões toque o inconsciente e faça emergir ainda que de forma irreconhecível uma verdade históricovivencial Na situação clínica talvez esta experiência possa então ser refeita em condições de permitir que este passado desentranhado pela fala possa dissolverse à luz do dia Tratase assim muito mais de um mostrar do que de um raciocinar a fala do analista enquanto construção não dá razões ela fazse escutar dando a ver e a sentir FIGUEIREDO 1996a p 8889 Restanos então concluir ao menos momentaneamente Uma boa maneira de fazêlo é procurando respostas para a seguinte questão de que maneira este percurso que fizemos pelo conceito de construção pode efetivamente contribuir com a discussão acerca 129 Interessante notar como todos estes aspectos aparecem condensados na hipótese que Figueiredo 1996a nos oferece ao final de seu texto Segundo ela as construções poderiam ser tomadas como os elementos históricovivenciais do paciente delirados pelo analista já que as falas do primeiro forneceriam ao segundo fragmentos que poderiam ser vistos por ele Posteriormente transformado em palavras através da construção esse mesmo ver poderia ser apresentado na qualidade de uma peça hipernítida que fortemente investida em termos de afetos viabilizaria o resgate de elementos soterrados ou como vimos há pouco mesmo destituídos de forma Para Figueiredo 1996a tal hipótese traria a vantagem de aproximando a construção do trabalho do sonho retirar dela a dimensão intelectualista que até então a caracterizou 185 da alteridade em psicanálise que vem sendo privilegiada por nós nestes dois últimos capítulos Uma boa resposta nos é oferecida mais uma vez por Figueiredo 1996a para o qual a despeito das teorias inauguradas por Freud naturalmente obedecerem aos ditames de um intelectualismo realizador130 no visàvis do encontro analítico podem e devem funcionar como dispositivos desrealizantes favorecendo o sonho ao invés do cálculo e do controle Em assim procedendo sugere o autor adquirirem um estatuto cognitivo diferente daquele consagrado às teorias científicas stricto senso Neste sentido os dialetos metapsicológicos aparecem ou deveriam aparecer como os lugares e formas de acolhimento do nãohumano de uma familiar estranheza que funda a psicanálise a qual se ocupa de um homem habitado por aquilo que não é ele mesmo Temos aqui portanto a idéia de uma radical alteridade como tema e razão de ser do tipo de conhecimento inaugurado por Freud Em decorrência disso o bom serviço a ser prestado pelas metapsicologias se torna aquele de subtraindo a nossa escuta do familiar libertála para o estranhoemnós operação essa de descentramento verdadeiramente indispensável já que institui não só o espaço de uma outra escuta mas é a fonte de uma outra possibilidade de fala E não porque o estranhamento metapsicológico possa sem mais ser aplicado ao material clínico tudo explicando tudo interpretando Muito ao contrário porque ela abre neste material intervalos e desajustes rompendo a fluência das comunicações cotidianas e fazendo saltar para fora desta fluência as peças enigmáticas de que a vida é feita FIGUEIREDO 1996b p 50 Portanto podemos deduzir daí que o ideal interpretativo não se restringe nem à reconstrução de um conteúdo ou intenção última da obra ou de seu autor e nem tampouco a uma total imersão subjetiva do leitor visto como criador de um texto rigorosamente distinto da sua fonte mas sim a uma fabricação do estranho FIGUEIREDO 1994b Tal expressão ao mesmo tempo em que sugere ao analista um necessário afastamento de qualquer compreensão apressada a priori redutiva ou defensiva alicerçase em um outro importante conceito o de conservação Longe de qualquer conotação reacionária este último adquire sim um caráter renovador ao buscar perpetuar no processo interpretativo a sua estranheza originária aquela 130 Afinal funcionam como leis ordenadores de uma determinada visão de mundo e por derivação de uma também determinada técnica terapêutica e interpretativa 186 estranheza produzida pela surpresa causada precisamente pela diferença com a qual o outro exige que nos deparemos Assim mais do que conservar a distância cabe mesmo ampliála a ponto de atingirmos uma espécie de desfamiliarização não somente com o outro sobre o qual nos debruçamos mas em última análise de nós para conosco Com efeito se é que há uma conclusão que possa ser retirada do presente capítulo esta reside na recomendação de que na qualidade de intérprete o analista busque este intermezzo entre uma tradução que metabolize e incorpore totalmente a fala que lhe é dirigida e uma outra leitura que abdicando de si mesma deixese inundar pelo discurso alheio Para tanto para acompanhar as idas e vindas deste perpétuo emergir impõese um exercício muito especial aquele da espera de um deixarse afetar pelo inaudito como condição para a abertura ao conhecimento do outro enquanto possibilidade Em outros termos tratase de sustentar uma disponibilidade e não uma indiferença à diferença trata se de sustentar uma disponibilidade e não uma indiferença ao próprio movimento do pensamento Diante disso passemos a algumas inconclusivas considerações finais CONCLUSÃO Inconclusões talvez fosse a designação mais apropriada para as considerações com as quais de agora em diante encerraremos este trabalho uma vez que o título acima aparece muito mais como exigência formal para a apresentação de uma tese do que enquanto reflexo das idéias que exporemos aqui O que pretendemos dizer com isso Bem para tentarmos responder a esta pergunta devemos retornar ao problema que orientou o nosso percurso até o presente momento Tratase das dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise o que nos levou a sugerir pontos de contato entre estas duas áreas do saber no terreno interpretativo e político da imposiçãonegociação de sentido Assim a partir das inquietações do chamado pósmodernismo etnográfico um pathos que como vimos diz respeito aos temas da identidade e da autoridade do estudioso da cultura fizemos um passeio por algumas das principais escolas da antropologia Em tal movimento localizamos um contraponto nas matrizes desta disciplina que amparados na filosofia hermenêutica de Dilthey 1976 podemos qualificar como explicação versus compreensão ou seja tratase da maior ou menor afirmação da capacidade de traduzir eou representar objetivamente as diferenças expostas por culturas alheias Diante disso visando propor saídas para tal dilema de natureza ao mesmo tempo ética e epistemológica estendemos a discussão acerca da alteridade para nela incluir um outro ramo do saber a psicanálise Neste sentido realizamos uma leitura pormenorizada de O Inquietante texto em que ao propor uma instigante aproximação entre a psicanálise e o terreno da estética particularmente a literária Freud 19191976 nos apresenta a idéia de que é no desterro que repousa o sujeito psicanalítico este estrangeiro de si mesmo que assombra ao se definir a partir do Inconsciente Contudo para além do seu caráter assustador temos neste mesmo terreno movediço do Inconsciente uma lógica própria que ainda que inquietante ou precisamente por isso confere novos valores ao malestar ao negativo e ao silêncio do irrepresentável permitindo que pela corrosão de qualquer ordem representacional do tipo determinista a vida readquira sua dimensão de potência criativa Foi o que pudemos depreender das leituras de O Inquietante realizadas por Kofman 1973 Chnaiderman 1997 e Silva Junior 2001 188 todas pautadas pela aposta em uma abertura de sentido que se estende da relação entre a psicanálise e a ficção literária à própria atividade clínica Em decorrência disso iniciamos uma reflexão sobre a alteridade inerente à função do analista tarefa para a qual contamos com o auxílio de Fédida 1988 1991a 1991b 1996 Assim debatemos a idéia de que é somente a partir de um sítio do estrangeiro definido pela linguagem e não pelas pessoas que compõem o encontro analítico que o profissional da clínica pode agir como mediador no embate do paciente com o outro de si mesmo outro do Das Ding do nãosimbolizável do nãodito da transferência do pulsional por excelência Em outras palavras outro do Inconsciente enquanto Unheimlich mobilizado por uma psicanálise que por não querer induzir transformações no paciente nem situar a finalidade da análise em termos de mudança ou de cura visa criar condições para que o sujeito se depare como vindo de fora com o estranho nele mesmo NASIO apud KOLTAI 2000 p 127 Então de maneira complementar passamos a nos ocupar desta mesma alteridade de que nos falava Freud 19191976 aquela do Inconsciente a partir de uma nova entrada agora garantida pelo conceito de construção A partir do referencial clínico este nos conduziu a um enfrentamento direto do problema da diferença que o outro impõe ao analista o que na prática diz respeito à maior ou menor possibilidade ou disponibilidade de enquadrar a fala daquele que sofre em esquemas teóricos préestabelecidos Nestes termos a despeito da notável e então inovadora diferenciação quanto à existência de uma realidade histórica em contraponto a uma outra de natureza psíquica vimos em Freud 19371976 a persistência dos resquícios de um certo realismo metapsicológico ou seja da crença na adequação entre a teoria e o Inconsciente Logo em seguida ao analisarmos as nuances do pensamento de Viderman 1990 1995 percebemos a orientação do psicanalista francês rumo a uma outra perspectiva Qual a sua marca distintiva Apostar as suas fichas não na busca de verdades psíquicas enterradas no terreno do Inconsciente mas na construção destas mesmas verdades em contextos determinados por settings terapêuticos específicos incluindose aí as metapsicologias e os amores transferenciais que os orientam Foi quando alcançamos as idéias de Figueiredo 1996a 1998b autor esse que debruçandose sobre as duas hipóteses anteriores alertounos para que levássemos em 189 conta o fato de que a diferença que nos é imposta pelo outro no contexto da clínica é inseparável da diferença representada pelo próprio Inconsciente dono de uma temporalidade e uma narrativa bastante particulares Como tentamos demonstrar caracterizamnas a recusa em se submeterem aos ditames de um pensamento do tipo representacional aquele que presentifica qualquer noção de experiência em nome do chamado Princípio de Razão onde nada é sem que esteja inserido em tramas de sentido previamente determinadas Qual ou quais as implicações disso para a prática do analista Sobretudo a exigência de uma capacidade também ela peculiar aquela de colocar a si mesmo em resposta o que significa nem se perder no caos em potencial embutido na fala do paciente e nem tampouco se embebedar demasiadamente na ordenação previamente definida pela teoria Conforme nos diz o mesmo Figueiredo 1994a em um outro trabalho temos aqui o resgate da condição instituinte e original do logos grego não como verdade fechada ou última mas como dizer amparado em uma escuta que permita o livre aparecimento do ente enquanto campo repleto de possibilidades Aliás é ainda no contexto da Grécia antiga que encontraremos uma outra noção que corroborando com esta linha de raciocínio passa a interessar diretamente à nossa discussão Referimonos àquela de alétheia que associada à poesia à profecia e portanto à préhistória da verdade toma esta última não como certeza objetivada mas como filosofia do desvelamento Ou seja não como encerramento de uma adequação entre o pensamento e a coisa e sim enquanto jogo que inclui tanto o mostrar quanto o ocultar Com efeito destaca um autor como GarciaRoza 2001 diferentemente da transparência que acabaria por se tornar sinônimo da verdade na tradição ocidental a alétheia de que falava Parmênides aparecia como portadora de uma sombra que lhe era constitutiva Não por uma questão de imperfeição mas ao contrário pela exigência de completude que a acompanhava já que o poeta não se contentava em ouvir a palavra almejando também o próprio silêncio Temos aí portanto o elemento mais importante da sua sabedoria a plena consciência do desamparo a qual assume que a trilha do conhecimento comporta também a ausência de luz É assim que novamente seguindo GarciaRoza 2001 podemos aproximar o conceito de alétheia ao tipo de saber inaugurado por Freud cujo mérito fundamental reside 190 na demonstração de que a subjetividade detém seu fundamento na opacidade e não na transparência desfazendo assim a ilusão positivista de uma palavra plena Dito de outra maneira ao invés da tentativa de suplantálo cabe à psicanálise a importante tarefa de recuperar o lugar do desamparo como lugar do conhecimento Desta feita refletido na verdade do desejo enquanto enigma a ser decifrado e que não comporta a mútua exclusão entre acerto e engano permanecendo balizado por uma irredutível aura de complementaridade Daí decorre que assim como Parmênides poeta grego há pouco mencionado também o analista aparece como adepto da perspectiva de uma verdade no ocultamento da verdade Logo naquilo que a ultrapassa o indizível do silêncio leiase também o silêncio do indizível e a ruptura do discurso coerente Conforme as seguintes passagens Aquilo que Freud nos mostrou desde os seus primeiros escritos é que na prática psicanalítica a verdade se insinua não a partir do caráter formalizado do discurso mas precisamente quando o discurso falha quando é atropelado e violentado por um outro discurso que provoca no primeiro lacunas Se a inteligência científica percorre os caminhos da nãocontradição o inconsciente segundo Freud não obedece ao mesmo princípio Isto não quer dizer que ele seja ininteligível mas que seu princípio de inteligibilidade deve ser procurado em outro lugar GARCIAROZA 2001 p 20 Neste sentido podemos pensar no papel desempenhado por mecanismos psíquicos como aqueles da condensação Verdichtung da repressão Verdrängung e da denegação Verneinung fundamentais para qualquer discussão sobre o tema da verdade em psicanálise Afinal a despeito das suas especificidades todos eles se referem a um mesmo traço essencial a simultânea multiplicidade semântica com a qual o psicanalista convive diariamente em seus atendimentos clínicos Então diante das implicações que a alteridade do Inconsciente presente nos conceitos de inquietante e construção adquire para o labor analítico cabe agora retomando o diálogo transdisciplinar que orientou o presente trabalho fazermonos a seguinte pergunta qual o interesse dessa discussão para a prática profissional do antropólogo Afinal se é certo que tanto a psicanálise quanto a antropologia promovem descentramentos do homem o que os aproxima O que os afasta Qual a possível relação entre elesAo que parece boas respostas para tais questionamentos podem ser buscadas no contraponto entre os tipos de estranho priorizados pelas duas disciplinas Por derivação 191 também no detalhamento dos diferentes contextos representados pela pesquisa antropológica e pelo setting analítico É o que faremos nos parágrafos seguintes Antes porém vale a pena enfatizar um ponto importante constava no nosso projeto inicial a intenção de considerando que a antropologia não deteria um instrumental teórico suficiente para resolver as atuais questões que propõe acerca da identidade e da autoridade etnográficas inserir neste contexto as possibilidades abertas por um outro saber no caso aquele da psicanálise Porém o desenrolar do trabalho tornou claro o risco de incorrermos no mesmo problema ao qual fazemos ressalva aqui aquele da imposição de valores Assim ao nos posicionarmos radicalmente contra tal perspectiva o que estamos sugerindo são apenas possíveis pontos de contato e reflexão que podem ser úteis a ambas as disciplinas De volta à comparação que nos propomos a estabelecer entre os respectivos outros que orientam os movimentos de analistas e antropólogos uma bela forma de pensála já nos foi oferecida anteriormente por Hanns 1996 graças ao contraste proposto pelo autor entre o substantivo Das Unheimliche do qual se ocupou Freud 19191976 e a sua tradução mais comum para a língua portuguesa O Estranho Ali pudemos notar uma certa discrepância expressa no fato de que o inquietante alemão se refere a uma ameaça sorrateira desconhecida ou inominável um terror em estado bruto por assim dizer o qual não se sabe quando e nem tampouco de onde irá surgir ao passo que a sua versão brasileira comporta um outro significado aquele de forasteiro eou estrangeiro Mas o que podemos deduzir daí Ora que se trata de duas modalidades distintas de estranhos Afinal uma delas aparece pautada por um caráter indescritível e mesmo sobrenatural Já a seguinte apesar de manter o quê de assustador do termo original aproximao de um desconhecido mais humanizado que nesta condição pode ser melhor delimitado Com efeito tornase bastante tentador asseverar que é este mesmo quadro que diferencia a ética psicanalítica da antropológica no trato com a alteridade pois enquanto a primeira delas aborda um eu estrangeiro um desterro no em si a segunda faz referência a um estrangeiro ao eu um desterro no outro Neste sentido é certo que a pesquisa etnográfica e o setting clínico podem ser tomados como espaços do ao mesmo tempo familiar e estranho uma vez que em ambos os casos temos encontros com o outro que conduzem à consciência da dessemelhança consigo mesmo Todavia e aqui se estabelece um corte fundamental o nãofamiliar ao 192 qual o antropólogo costuma se remeter é o nãofamiliar da cultura Enquanto isso a alteridade da psicanálise aparece ligada a um registro distinto e que é geralmente desconsiderado pelo estudioso da vida em sociedade aquele do Inconsciente referente a um eu cindido e que não se confunde com qualquer antropomorfismo do tipo cartesiano Em uma palavra falamos aqui não de um forasteiro a ser conhecido mas de uma íntima e por isso mesmo inquietante estranheza a ser reconhecida As implicações disso são enormes e aparecem por exemplo na idéia de que a fronteira psicanalítica é eminentemente topológica e não topográfica131 Mas o que isso quer dizer Bem à medida que permanece orientada pelo olhar ou seja pelos ditames da empiria a análise topográfica não pode prescindir da presença e da positividade de entes previamente constituídos representados Já a topologia ao se referir não ao espaço físico mas ao campo da linguagem promove um outro tipo de relação com o conhecimento relação essa potencialmente acompanhada de um questionamento do presente como fundamento dos entes Como vimos anteriormente tal postura traz consigo a abertura para um pensamento que inclui a lacuna e o imprevisível em uma palavra o negativo e o irrepresentável e que assim pode se manifestar enquanto devir Nestes termos a despeito de privilegiar a linguagem como um dos seus principais instrumentos de trabalho a pesquisa antropológica parece necessariamente buscar a complementação fornecida pelo olhar empíricopositivista o qual pressupõe uma espacialidade e uma temporalidade específicas que se vinculam tanto ao princípio de razão quanto à chamada metafísica da presença Ocorre que a partir desta ética temos uma técnica que sugere ao etnógrafo um papel atuante no sentido de que os pressupostos da pesquisa são seus É ele quem define de maneira mais ou menos prévia os objetos as linhas teóricas do trabalho e o que é relevante saber tendo em vista esses pontos Isso por sua vez irá se refletir na qualidade das relações intersubjetivas que vier a estabelecer com os seus informantes privilegiando uns em detrimento de outros por exemplo Já a psicanálise ao se ocupar das artimanhas do desejo considera e muito a validade do invisível do espaço É precisamente por isso aliás que estabelece em seu setting um espaço para a emergência do invisível Nele embora o paciente possa vir a se expressar de acordo com a lógica do processo secundário aquele relativo à consciência e 131 Perspectiva essa presente nos trabalhos de Fédida 1988 1991a 1991b 1996 e Koltai 2000 193 portanto a uma seqüência concatenada de argumentos o psicanalista procurará vislumbrar uma outra desrazão Tratase daquela que subjacente à aparente coerência da fala diz respeito ao processo primário característico das formações do Inconsciente simultâneas fragmentárias e extemporâneas em sua natureza132 Para tanto para obter acesso a esta outra cena a clínica inaugurada por Freud institui uma quebra na vivência do cotidiano que se dá marcadamente em termos discursivos Afinal exige do analista uma escuta que não espere nada de antemão das falas do analisando Assim apesar de orientado por uma teoria específica a bruxa da metapsicologia o encontro analítico evita ou deveria evitar o papel de portador de uma intencionalidade prédefinida seja ela relativa a uma cura a uma medida educacional ou à busca de relações do tipo causa e efeito Cf FREUD 19121996 concedendo ao paciente o papel de sujeito já que todo o trabalho parte da sua dor e do questionamento que a acompanha por que sofro Isso por si só torna a psicanálise bastante diferente da Ciência e por conseguinte da antropologia enquanto herdeira desta Contudo tal ruptura com a fala e com a lógica cotidianas somente se torna possível mediante um outro rompimento aquele que ocorre no campo das chamadas relações intersubjetivas Para que possamos compreendêlo porém tornase imperativo que nos remetamos ao fato de que para além da dimensão cognitiva do contato com o outro mais enfatizada pela razão instrumental temos na cena analítica um destaque particular ao campo dos afetos com a transferência de sentimentos entre paciente e analista sendo utilizada como verdadeira força propulsora do tratamento Quanto a este aspecto cabe aqui uma observação importante não é que a transferência em análise seja qualitativamente distinta das outras transferências fora do setting Ocorre porém que neste último o uso dessa potência explosiva se dá de forma mais controlada estabelecendo o vínculo terapêutico mas simultaneamente mantendo a justa distância da linguagem e com ela a condição para a emergência de um ou mais terceiros ausentes que manifestandose através do analista confrontarão o paciente com o estranho de si 132 Como sugere Friedman 1991 podese pensar aqui em um instigante contraste entre as noções de discurso speech e perlaboração workingthrough 194 Dito de uma maneira distinta ainda que o analisando alcance a sua verdade mediante um outro esta alteridade não se encerra em si mesma remetendose ou melhor remetendo aquele que pergunta a uma série de figuras transferenciais133 Com efeito alcançamos mais uma diferença bastante relevante entre a experiência etnográfica e a experiência analítica Tratase do fato de que no tipo de clínica inaugurada por Freud não se exerce ou não se deveria exercer uma estrita intersubjetividade aqui tomada como simetria eou implicação entre as pessoas do analista e do paciente134 Afinal isso inviabilizaria o emprego de uma das mais genuínas ferramentas da psicanálise em seu trato com o Inconsciente o poder evocativo da transferência A partir de tais considerações tornase natural que se imponham a nós algumas instigantes perguntas Dentre elas destacamse as seguintes mas como ainda assim se torna possível pensar em um diálogo entre a psicanálise e a Ciência aqui representada pelo trabalho do antropólogo Neste sentido estaríamos nós afirmando o Inconsciente como mais um imponderável a ser levado em conta pelos estudos culturais Se este é o caso como admitir e dar testemunho do outro de si na pesquisa em humanidades Certamente temos aí questionamentos pouco ou nada simples de serem respondidos Ao mesmo tempo considerandose o nosso percurso até aqui tratase de discussões que nos parecem inevitáveis Então respiremos fundo e deixando de lado quaisquer receios enfrentemolas de peito aberto e seja o que Deus e a banca quiser Todavia de que armas dispomos para adentrar neste corpoacorpo Ao que parece um bom argumento pode ser encontrado na assertiva de que alcançamos o fim do presente trabalho final esse que vale lembrar longe de qualquer pretensão absolutista afirma a sua natureza eminentemente provisória com a sensação de que no que se refere a uma dimensão técnica em termos por exemplo de métodos ou instrumentos para a coleta e avaliação de dados a psicanálise nada tem a ensinar à antropologia ou mesmo às Ciências Humanas Primeiramente porque a despeito do ruído pósmoderno esta última e já centenária disciplina parece caminhar muito bem com o arsenal que lhe é próprio Em 133 Como vimos na leitura que fizemos do pensamento de Fédida 1988 1991a 1991b 1996 isso somente se torna possível graças ao exercício de uma função especular por parte do analista a mesma que o mantém em seu sítio do estrangeiro evitando ceder aos apelos sedutores que provêm do analisando e mesmo das próprias metapsicologias 134 Para tanto contribui um outro componente do setting que deve ser levado em conta nesta distinção Trata se da análise pessoal do analista a qual visa diminuir as chances de uma confusão entre as características pessoais deste e os outros transferenciais nele projetados pelo paciente 195 segundo lugar devido ao fato de o saber inaugurado por Freud não se confundir com uma pedagogia uma vez que pretende que o analisando alcance a verdade do seu próprio desejo e não visões de mundo previamente definidas eou impostas à força pela figura do analista Com efeito é mesmo no terreno da ética que um diálogo digamos assim mais interessante pode se dar entre os dois ramos do saber mencionados acima isto é desde que seja incluído nesta conversa um espaço para o estrangeiro que nos habita aquele Unheimlich do Inconsciente Nestes termos como vimos há pouco se o outro em psicanálise nos remete a um lugar da cisão a um ser do nãoser a verdade inaugurada por Freud somente pode vir à tona na qualidade de alétheia um desvelamento que necessariamente pressupõe um oculto uma sombra que lhe é constitutiva e importante teima em retornar e se fazer ouvir135 A adoção de uma lógica como esta a qual admite a possibilidade da simultaneidade entre o sim e o não e com ela o valor daquilo que se imprime pela ausência traz consigo conseqüências deveras importantes Por exemplo a necessidade de uma escuta afinada também para o que aparentemente escapa às malhas do sentido Isso por sua vez torna premente a transmutação do caráter da interpretação que passa a ser pensada enquanto processo revelandose na oscilação entre os pólos da familiaridade e da diferença para pôr em movimento a própria relação sujeitoobjeto Tal linha de raciocínio aliás orienta a afirmação de Laplanche 1992 de que a aproximação entre psicanálise e hermenêutica estaria perfeita se não fosse a ameaça de uma psicosíntese a qual tende a obliterar o movimento do processo primário Em uma palavra temos aí o problema da redução do projeto freudiano a um ou mais códigos teórico interpretativos o que leva o nosso autor a sustentar ainda que a psicanálise deve se livrar do estatuto de mito estruturante ao qual a hermenêutica tende a lhe reduzir ocultando assim a alteridade radical do Inconsciente Afinal para o mesmo Laplanche 1992 a relação analítica aparece como uma relação de demanda e não de oferta de sentido Eis aí uma concepção da psicanálise como detradução de forma que favoreça uma simbolização mais aberta e menos direcionada do que aquela proposta pela hermenêutica 135 Aqui se tornam bastante úteis os conceitos de Inquietante e de Construção em análise Cf FREUD 19191976 e 19371976 respectivamente como vimos ambos relativos à segunda tópica e com ela à abertura de sentido que pode ser deduzida tanto do modus operandi do Inconsciente quanto da noção de pulsão de morte uma potencialidade criativa que se instala a partir do caos 196 Com isso o estranho e o negativo da experiência analítica aparecem como lugares do possível ampliando o conceito de alteridade e com ele as capacidades da interpretação agora um meio termo entre a produção de sentido e a experiência do vazio Neste contexto vale acrescentar a mera multiplicidade de modelos não garante a abertura da escuta Então o que a garante Curiosamente o desentendimento diretamente associado à manutenção do outro nodo analista a sua inquietante estranheza como defesa contra a tentação de qualquer interpretação narcisicamente centrada Tratase portanto da busca de um apoio nas teorias precisamente para que se possa saltar para fora delas É o que nos diz Figueiredo 2002b para o qual as garantias fornecidas pelas metapsicologias e seus derivados a teoria clínica e a vida institucional podem se converter em grandes obstáculos caso optemos por nos refugiar definitivamente em tais lugares previamente configurados perdendo assim a essência da experiência do Inconsciente ou seja o seu caráter de viraser Destarte acrescenta ainda Figueiredo 2002b o knowhow do analista deve mediar os extremos entre a distância infinita alteridade irredutível e a proximidade absoluta aquela que o desejo de conhecer a pesquisa e a posição teórica tentam garantir mas jamais anular a dinâmica ou potencial pendular que se estabelece entre estas duas instâncias136 Com efeito ao abordar o que denomina de pesquisa com o método psicanalítico ou seja aquela que difere da pesquisa em psicanálise por exigir a presença de um analista o recente artigo de Figueiredo e Minerbo 2006 aponta o quanto essa aparece marcada pelo fim da distância tanto entre sujeito e objeto quanto entre pesquisador e referencial teórico promovendo transformações na própria psicanálise e nos seus meios ou 136 Parte importante dessa argumentação pode ser encontrada já em um trabalho anterior Nele Figueiredo 2000 afirma que uma escuta que se pretenda genuinamente psicanalítica aquela que próxima à poïesis revele a si mesma enquanto criativa abertura para um horizonte de possibilidades depende da manutenção por parte do analista de um bordejar dialético entre implicação presença e reserva ausência o que inclui a capacidade de suportar as idas e vindas bem como as vicissitudes do processo de cura Tal postura adquire especial importância se levarmos em conta o enorme impacto e as perigosas demandas transferenciais que se estabelecem na clínica Neste sentido já que se deve oferecer um espaço um tempo e um suporte para que os conteúdos psíquicos possam emergir a técnica em psicanálise longe de qualquer estrita submissão a um caráter superegóico e formalista deve sim se vincular a uma ética particular Qual seja aquela regida por um acolhimento e ao mesmo tempo por um desconhecimento absolutamente necessários ao estabelecimento da posição do analista lugar esse ambíguo e precário por conjugar a solicitude e a indiferença para com aquele que sofre transformandoas em disponibilidade para a decisão a cada nova sessão 197 instrumentos de investigação137 Em decorrência disso avançam os autores temos nesta mesma modalidade de pesquisa um movimento que não privilegia a replicação a demonstração ou o controle experimentais mas uma entrega pouco ou nada mediada do sujeito em relação ao objeto Considerandose então as importantes diferenças entre estes dois ramos de estudos o acadêmico e o que opera com o método psicanalítico vale a pena citarmos aqui a proposta de Minerbo 2000 segundo a qual a psicanálise não se constitui exatamente como um método de pesquisa mas como uma matriz de estratégias de investigação Qual a diferença entre ambas O fato de que a noção de método está pelo menos desde o cartesianismo comprometida com o ideal moderno de um pleno controle cognitivo e volitivo Enquanto isso as estratégias vão se formando e transformando engendrando táticas e propiciando sacadas em função das condições atuais em que são efetivadas estratégias deixam uma larga margem para o improviso e para os processos primários para as descobertas e para as invenções FIGUEIREDO e MINERBO 2006 p 07 Os reflexos diretos desta reorientação se fazem notar à medida que a atividade de pesquisa do analista procura efetuar recortes menos arbitrários já que solicitados e também transformados pelo andamento da própria análise Daí a importante observação de Figueiredo e Minerbo 2006 de que a despeito do seu potencial interpretativo se estender a qualquer campo do nosso universo simbólico o método psicanalítico ou como queira o leitor as estratégias em psicanálise não se presta por exemplo ao estabelecimento de relações de causa e efeito à transposição de conclusões de um campo para outro e ainda ao tratamento estatístico Afinal e isso é muito importante tratase aqui de uma verdade interpretativa inseparável do processo analítico transferencial que a produziu processo esse marcado pela absoluta singularidade Descortinase portanto diante de nós o caminho que vai do reconhecimento de uma alteridade que nos é constitutiva à inviabilidade de em psicanálise operarmos com discursos ou modelos teóricos de natureza hermética que no seu afã explicativo refreiem os movimentos de palavra e silêncio implicação e reserva vida e morte característicos da experiência analítica aquela pintada pelas cores do devir É neste sentido que a prática 137 Conforme exposto anteriormente são fundamentais aqui tanto a utilização do fenômeno contratransferencial quanto a operação simultânea das lógicas do processo primário e secundário ao mesmo tempo distintas e complementares ou suplementares 198 clínica do analista não pode prescindir do quê de serenidade Gelassenheit necessária para como já nos alertava Heidegger 19552001 deixar rolar Tun und Lassen a surpresa e o mistério que demarcam sobremaneira o método inaugurado por Freud Pois bem advém daí a proposital idéia de inconclusão com a qual inauguramos estas nossas palavras finais e com ela a lição da nãolição proposta pelo inquietante outro do Inconsciente à etnografia e mesmo às chamadas Ciências Humanas como um todo Ela reside em admitir a possibilidade do sentido mas não necessariamente o seu encerramento fornecendo assim uma expressão menos comprometida a um estrangeiro agora irredutível a códigos préestabelecidos Em última análise tratase de buscarmos um ideal interpretativo que se localize entre a ilusão das certezas narcísicas e a armadilha hermenêutica de um niilismo do tipo passivo Para tanto mais do que as condutas pautadas pela rigidez e pelo pragmatismo cabe a nós aprendermos a valorizar também e sobremaneira a arte da espera e do adiamento transformandonos e aos próprios instrumentos da pesquisa se a relação com o objeto assim o demandar Isso significa perceber que o conhecimento reside na alteridade na criação de espaços para o novo e mesmo para o desconcertante incluindose aí tudo aquilo que escapa à procura racional os afetos as surpresas e com eles a sensação de uma angustiante incompletude Como suportar o caráter por vezes corrosivo dessa dor Talvez pela consciência ou pela esperança de que ela possa nos fazer provar as delícias de um criativo fazer sentido Referências Bibliográficas AHUMADA J L Descobertas e Refutações a lógica do método psicanalítico Rio de Janeiro Imago 1999 ALONSO S L Considerações sobre a realidade e a temporalidade a partir de Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci In ALONSO S L LEAL A M Orgs Freud um ciclo de leituras São Paulo EscutaFAPESP 1997 p 107120 AUGÉ M Consenso e pósmodernidade a prova da contemporaneidade In Por uma Antropologia dos Mundos Contemporâneos Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1997 p 33 67 AZZAN JR C 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