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Coleção ANTROPOLOGIA SOCIAL diretor Gilberto Velho O RISO E O RISÍVEL Verena Alberti MOVIMENTO PUNK NA CIDADE AUTORIDADE AFETO Janice Caiafa O ESPÍRITO MILITAR OS MILITARES E A REPÚBLICA Celso Castro VELHOS MILITANTES Ângela Castro Gomes Dora Flaksman Eduardo Stotz DA VIDA NERVOSA Luiz Fernando Duarte GAROTAS DE PROGRAMA Maria Dulce Gaspar NOVA LUZ SOBRE A ANTROPOLOGIA Clifford Geertz O COTIDIANO DA POLÍTICA Karina Kuschnir CULTURA UM CONCEITO ANTROPOLÓGICO Roque de Barros Laraia CARISMA Charles Lindholm ILHAS DE HISTÓRIA Marshall Sahlins OS MANDARINS MILAGROSOS Elizabeth Travassos ANTROPOLOGIA URBANA DESVIO E DIVERGÊNCIA INDIVIDUALISMO E CULTURA PROJETO E METAMORFOSE SUBJETIVIDADE E SOCIEDADE A UTOPIA URBANA Gilberto Velho O MUNDO FUNK CARIOCA O MISTÉRIO DO SAMBA Hermano Vianna BEZERRA DA SILVA PRODUTO DO MORRO Letícia Vianna O MUNDO DA ASTROLOGIA Luís Rodolfo Vilhena ARAWETÉ OS DEUSES CANIBAIS Eduardo Viveiros de Castro Roque de Barros Laraia CULTURA Um conceito antropológico 14ª edição Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro O livro está dividido em duas partes a primeira que se refere ao desenvolvimento do conceito de cultura a partir das manifestações iluministas até os autores modernos a segunda parte procura demonstrar como a cultura influencia o comportamento social e diversifica enormemente a humanidade apesar de sua comprovada unidade biológica A nossa intenção foi de atender às demandas das disciplinas iniciais dos cursos de graduação em antropologia e demais ciências sociais Para isto contamos com o apoio e o estímulo dos colegas do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília aos quais devemos nossos agradecimentos Mas um reconhecimento especial é devido a Júlio Cezar Melatti que tanto insistiu para que realizássemos este trabalho Primeira parte DA NATUREZA DA CULTURA OU DA NATUREZA À CULTURA Este volume trata da discussão de um dilema a conciliação da unidade biológica e a grande diversidade cultural da espécie humana1 Um dilema que permanece como o tema central de numerosas polémicas apesar de Confúcio ter quatro séculos antes de Cristo enunciado que A natureza dos homens é a mesma são os seus hábitos que os mantém separados Mesmo antes da aceitação do monogenismo os homens se preocupavam com a diversidade de modos de comportamento existentes entre os diferentes povos Até mesmo Heródoto 484424 aC o grande historiador grego preocupouse com o tema quando descreveu o sistema social dos lícios Eles têm um costume singular pelo qual diferem de todas as outras nações do mundo Tomam o nome da mãe e não o do pai Perguntese a um lício quem é e ele responde dando o seu próprio nome e o de sua mãe e assim por diante na linha feminina Além disso se uma mulher livre desposa um homem escravo seus filhos são cidadãos integrais mas se um homem livre desposaunia mulher estrangeira ou vive com uma concubina embora seja ele a primeira pessoa do Estado os filhos não terão qualquer direito à cidadania2 Ao considerar os costumes dos lícios diferentes de todas as outras nações do mundo Heródoto estava tomando como referência a sua própria sociedade patrilineal3 agindo de uma maneira etnocêntrica embora ele próprio tenha teoricamente renegado esta postura ao afirmar Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo aqueles que lhes parecessem melhor eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo os seus próprios costumes tão convencidos estão de que estes são melhores do que todos os outros A surpresa de Heródoto pela diversidade cultural dos lícios não é diferente da de Tácito 55120 cidadão romano em relação às tribos germânicas sobre as quais escreveu com admiração Por tudo isso o casamento na Alemanha é austero não há aspecto de sua moral que mereça maior elogio São quase únicos entre os bárbaros por se satisfazerem com uma mulher para cada As exceções que são extremamente raras constituemse de homens que recebem ofertas de muitas mulheres devido ao seu posto Não há questão de paixão sexual O dote é dado pelo marido à mulher e não por esta àquele4 Marco Polo o legendário viajante italiano que visitou a China e outras partes da Ásia entre os anos 1271 e 1296 assim descreveu os costumes dos tártaros Têm casas circulares de madeira e cobertas de feltro que levam consigo onde vão em carroças de quatro rodas assegurolhes que as mulheres compram vendem e fazem tudo o que é necessário para seus maridos e suas casas Os homens não se têm de preocupar com coisa alguma exceto a caça a guerra e a falcoaria Não têm objeções a que se coma a carne de cavalos e cães e se tome o leite de égua Coisa alguma no inundo os faria tocar na mulher do outro têm extrema consciência de que isto é um erro e unia desgraça5 O padre José de Anchieta 15341597 ao contrário de Heródoto se surpreendeu com os costumes patrilineares dos índios Tupinambá e escreveu aos seus superiores O terem respeito às filhas cios irmãos é porque lhes chamam filhas e nessa conta as têm e assim neque fornicare as conhecem porque têm para si que o parentesco verdadeiro vem pela parte dos pais que são agentes e que as mães não são mais que uns sacos em respeito dos pais em que se criam as crianças e por esta causa os filhos dos pais posto que sejam havidos de escravas e contrárias cativas são sempre livres e tão estimados como os outros e os filhos das fêmeas se são filhos de cativos os têm por escravos e os vendem e às vezes matam e comem ainda que sejam seus netos filhos de suas filhas e por isto também usam das filhas das irmãs sem nenhum pejo ad copulam mas não que haja obrigação e nem o costume universal de as terem por mulheres verdadeiras mais que as outras como dito é6 Montaigne 15331572 procurou não se espantar em demasia com os costumes dos Tupinambá de quem teve notícias e chegou mesmo a ter contato com três deles em Ruão afirmando não ver nada de bárbaro ou selvagem no que diziam a respeito deles porque na verdade cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra Imbuído de um pioneiro sentido de relativismo cultural Montaigne assim comentou a antropofagia dos Tupinambá Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos ou entregálo a cães e porcos a pretexto de devoção e fé como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos7 E terminou ironicamente após descrever diversos costumes daqueles índios Tupi Tudo isso é interessante mas que diabo essa gente não usa calças Desde a Antigüidade foram comuns as tentativas de explicar as diferenças de comportamento entre os homens a partir das variações dos ambientes físicos Marcus V Pollio arquiteto romano afirmou enfaticamente Os povos do sul têm uma inteligência aguda devido à raridade la atmosfera e ao calor enquanto os das nações do Norte tendo se desenvolvido numa atmosfera densa e esfriados pelos vapores dos ares carregados têm uma inteligência preguiçosa8 Ibn Khaldun filósofo árabe do século XVI tinha uma opinião semelhante pois também acreditava que os habitantes dos climas quentes tinham uma natureza passional enquanto aos dos climas frios faltava a vivacidade Jean Bodin filósofo francês do século XVI desenvolveu a teoria que os povos do norte têm como líquido dominante da vida o fleuma enquanto os do sul são dominados pela bílis negra Em decorrência disto os nórdicos são fiéis leais aos governantes cruéis e pouco interessados sexualmente enquanto os do sul são maliciosos engenhosos abertos orientados para as ciências mas mal adaptados para as atividades políticas Contudo explicações leste gênero não foram suficientes para resolver o dilema proposto tanto é que DHolbach replicava em 1774 Será que o sol que brilhou para os livres gregos e romanos emite hoje raios diferentes sobre os seus degenerados descendentes19 Qualquer um dos leitores que quiser constatar uma vez mais a existência dessas diferenças não necessita retornar ao passado nem mesmo empreender uma difícil viagem a um grupo indígena localizado nos confins da floresta amazônica ou em uma distante ilha do Pacífico Basta comparar os costumes de nossos contemporâneos que vivem no chamado mundo civilizado Esta comparação pode começar pelo sentido do trânsito na Inglaterra que segue a mão esquerda pelos hábitos culinários franceses onde rãs e escargots capazes de causar repulsa a muitos povos são considerados como iguarias até outros usos e costumes que chamam mais a atenção para as diferenças culturais No Japão por exemplo era costume que o devedor insolvente praticasse o suicídio na véspera do anonovo como uma maneira de limpar o seu nome e o de sua família O haraquiri suicídio ritual sempre foi considerado como uma forma de heroísmo Tal costume justificou o aparecimento dos pilotos suicidas durante a Segunda Guerra Mundial Entre os ciganos da Califórnia a obesidade é considerada como um indicador da virilidade mas também é utilizada para conseguir benefícios junto aos programas governamentais de bemestar social que a consideram como uma deficiência física A carne da vaca é proibida aos hindus da mesma forma que a de porco é interditada aos muçulmanos O nudismo é uma pratica tolerada em certas praias européias enquanto nos países islâmicos de orientação xiita as mulheres mal podem mostrar o rosto em público Nesses mesmos países o adultério é uma contravenção grave que pode ser punida com a morte ou longos anos de prisão Não é necessário ir tão longe nesta sequência de exemplos que poderia se estender infinitamente basta verificar que em algumas regiões do Norte do Brasil a gravidez é considerada como uma enfermidade e o ato de parir é denominado descansar Esta mesma palavra é utilizada no Sul do país para se referir à morte fulano descansou isto é morreu Ainda entre nós existe uma diversidade de interdições alimentares que consideram perigoso o consumo conjunto de certos alimentos que isoladamente são inofensivos como a manga com o leite etc Enfim todos estes exemplos e os que se seguem servem para mostrar que as diferenças de comportamento entre os homens não podem ser explicadas através das diversidades somatológicas ou mesológicas Tanto o determinismo geográfico como o determinismo biológico como mostraremos a seguir foram incapazes de resolver o dilema proposto no início deste trabalho 1 O DETERMINISMO BIOLÓGICO São velhas e persistentes as teorias que atribuem capacidades específicas inatas a raças ou a outros grupos humanos Muita gente ainda acredita que os nórdicos são mais inteligentes do que os negros que os alemães têm mais habilidade para a mecânica que os judeus são avarentos e negociantes que os norteamericanos são empreendedores e interesseiros que os portugueses são muito trabalhadores e pouco inteligentes que os japoneses são trabalhadores traiçoeiros e cruéis que os ciganos são nômades por instinto e finalmente que os brasileiros herdaram a preguiça dos negros a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses Os antropólogos estão totalmente convencidos de que as diferenças genéticas não são determinantes das diferenças culturais Segundo Felix Keesing não existe correlação significativa entre a distribuição dos caracteres genéticos e a distribuição dos comportamentos culturais Qualquer criança humana normal pode ser educada em qualquer cultura se for colocada desde o início em situação conveniente de aprendizado Em outras palavras se transportarnos para o Brasil logo após o seu nascimento uma criança sueca e a colocarmos sob os cuidados de uma família sertaneja ela crescerá como tal e não se diferenciará mentalmente em nada de seu irmãos de criação Ou ainda se retirarmos uma criança xinguana de seu meio e a educarmos como filha de uma família de alta classe média de Ipanema o mesmo acontecerá ela terá as mesmas oportunidades de desenvolvimento que os seus novos irmãos Em 1950 quando o mundo se refazia da catástrofe e do terror do racismo nazista antropólogos físicos e culturais geneticistas biólogos e outros especialistas reunidos em Paris sol os auspícios da Unesco redigiram uma declaração da qual extraímos dois parágrafos 10 Os dados científicos de que dispomos atualmente não confirmam a teoria segundo a qual as diferenças genéticas hereditárias constituiriam um fator de importância primordial ente as causas das diferenças que se manifestam ente as culturas e as obras das civilizações dos diversos povos ou grupos étnicos Eles nos informam pelo contrário que essas diferenças se explicam antes de tudo pela história cultural de cada grupo Os fatores que tiveram tin papel preponderante na evolução do homem são a sua faculdade de aprender e a sua plasticidade Esta dupla aptidão é o apanágio de todos os seres humanos Ela constitui de fato uma das características específicas do Homo sapiens 15 b No estado atual de nossos conhecimentos não foi ainda provada a validade da tese segundo a qual os grupos humanos diferem uns dos outros pelos traços psicologicamente inatos quer se trate de inteligência ou temperamento As pesquisas científicas revelam que o nível das aptidões mentais é quase o mesmo em todos os grupos étnicos A espécie humana se diferencia anatômica e fisiologicamente através do dimorfismo sexual mas é falso que as diferenças de comportamento existentes entre pessoas de sexos diferentes sejam determinadas biologicamente A antropologia tem demonstrado que muitas atividades atribuídas às mulheres em uma cultura podem ser atribuídas aos homens em outra A verificação de qualquer sistema de divisão sexual do trabalho mostra que ele é determinado culturalmente e não em função de uma racionalidade biológica O transporte de água para a aldeia é uma atividade feminina no Xingu como nas favelas cariocas Carregar cerca de vinte litros de água sobre a cabeça implica na verdade um esforço físico considerável muito maior do que o necessário para o manejo de um arco arma de uso exclusivo dos homens Até muito pouco tempo a carreira diplomática o quadro de funcionários do Banco do Brasil entre outros exemplos eram atividades exclusivamente masculinas O exército de Israel demonstrou que a sua eficiência bélica continua intacta mesmo depois da maciça admissão de mulheres soldados Mesmo as diferenças determinadas pelo aparelho reprodutor humano determinam diferentes manifestações culturais Margareth Mead 1971 mostra que até a amamentação pode ser transferida a um marido moderno por meio da mamadeira E os nossos índios Tupi mostram que o marido pode ser o protagonista reais importante do parto É ele que se recolhe à rede e não a mulher e faz o resguardo considerado importante para a sua saúde e a do recémnascido Resumindo o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado de uni processo que chamamos de endoculturação Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios mas em decorrência de uma educação diferenciada 2 O DETERMINISMO GEOGRÁFICO O determinismo geográfico considera que as diferenças do ambiente físico condicionam a diversidade cultural São explicações existentes desde a Antigüidade do tipo das formuladas por Pollio Ibn Khaldun Bodin e outros como vimos anteriormente Estas teorias que foram desenvolvidas principalmente por geógrafos no final do século XIX e no início do século XX ganharam uma grande popularidade Exemplo significativo desse tipo de pensamento pode ser encontrado em Huntington em seu livro Civilization and Climate 1915 no qual formula uma relação entre a latitude e os centros de civilização considerando o clina como um fator importante na dinâmica do progresso A partir de 1920 antropólogos como Boas Wissler Kroeber entre outros refutaram este tipo de determinismo e demonstraram que existe uma limitação na influência geográfica sobre os fatores culturais E mais que é possível e comum existir uma grande diversidade cultural localizada em um mesmo tipo de ambiente físico Tomemos como primeiro exemplo os lapões e os esquimós Ambos habitam a calota polar norte os primeiros no norte da Europa e os segundos no norte da América Vivem pois em ambientes geográficos muito semelhantes caracterizados por um longo e rigoroso inverno Ambos têm ao seu dispor flora e fauna semelhantes Era de se esperar portanto que encontrassem as mesmas respostas culturais para a sobrevivência em um ambiente hostil Mas isto não ocorre Os esquimós constroem suas casas iglus cortando blocos de neve e amontoandose num formato ele colméia Por dentro a casa é forrada com peles de animais e com o auxílio do fogo conseguem manter o seu interior suficientemente quente É possível então desvencilharse das pesadas roupas enquanto no exterior da casa a temperatura situase a muitos graus abaixo ele zero grau centígrado Quando deseja o esquimó abandona a casa tendo que carregar apenas os seus pertences e vai construir um novo retiro Os lapões por sua vez vivem em tendas de peles de rena Quando desejam mudar os seus acampamentos necessitam realizar uni árduo trabalho que se inicia pelo desmontre pela retirada do gelo que se acumulou sobre as peles pela secagem das mesmas e o seu transporte para o novo sítio Em compensação os lapões são excelentes criadores ele renas enquanto tradicionalmente os esquimós limitamse a caça desses mamíferos1 A aparente pobreza glacial não impede que os esquimós tenham urna desenvolvida arte de esculturas em pedrasabão e nem que resolvam os seus conflitos com uma sofisticada competição de canções entre os competidores Um segundo exemplo transcrito de Felix Keesing é a variação cultural observada entre os índios do sudoeste norteamericano Os índios Pueblo e Navajo do sudoeste americano ocupam essencialmente o mesmo hábitat sendo que alguns índios Pueblo até vivem hoje em boisões dentro da reserva Navajo Os grupos Pueblo são aldeões com urna economia agrícola baseada principalmente no milho Os Navajo são descendentes ele apanhadores de víveres ele site alimentavam de castanhas selvagens sementes de capins e de caça mais ou menos como os Apache e outros grupos vizinhos têm feito até os tempos modernos Mas obtendo ovinos dos europeus os Navajo são hoje mais pastoreadores vivendo espalhados com seus rebanhos em grupos de famílias O espírito criador do homem pode assim envolver três alternativas culturais bem diferentes apanha de víveres cultivo pastoreio no mesmo ambiente natural de sorte que não foram fatores de hábitat que proporcionaram a determinante principal Posteriormente no mesmo habitat colonizadores americanos tiveram que criar outros sistemas de vida baseados na pecuária na agricultura irrigada e na urbanização2 O terceiro exemplo pode ser encontrado no interior de nosso país dentro dos limites cio Parque Nacional do Xingu Os xinguanos propriamente ditos Kamayurá Kalapalo Trumai Waurá etc desprezam toda a reserva ele proteínas existentes nos grandes mamíferos cuja caça lhes é interditada por motivos culturais e se dedicam mais intensamente à pesca e caça ele aves Os Kayabi que habitam o Norte do Parque são excelentes caçadores e preferem justamente os mamíferos de grande porte como a anta o veado o caititu etc Estes três exemplos mostram que não é possível admitir a idéia do determinismo geográfico ou seja a admissão da ação mecânica das forças naturais sobre uma humanidade puramente receptiva A posição da moderna antropologia é que a cultura age seletivamente e não casualmente sobre seu meio ambiente explorando determinadas possibilidades e limites ao desenvolvimento para o qual as forças decisivas estão na própria cultura e na história da cultura3 As diferenças existentes entre os homens portanto não podem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações um animal frágil provido de insignificante força física dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores Sem asas dominou os ares sem guelras ou membranas próprias conquistou os mares Tudo isto porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura Mas que é cultura 3 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO CONCEITO DE CULTURA No final do século XVIII e no princípio do seguinte o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade enquanto a palavra francesa Civilization referiase principalmente às realizações materiais de um povo Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor 18321917 no vocábulo inglês Culture que tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos crenças arte moral leis costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade1 Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata transmitida por mecanismos biológicos O conceito de Cultura pelo menos como utilizado atualmente foi portanto definido pela primeira vez por Tylor Mas o que ele fez foi formalizar uma idéia que vinha crescendo na mente humana A idéia de cultura com efeito estava ganhando consistência talvez mesmo antes de John Locke 16321704 que em 1690 ao escrever Ensaio acerca do entendimento humano procurou demonstrar que a mente humana não é mais do que uma caixa vazia por ocasião do nascimento dotada apenas da capacidade ilimitada de obter conhecimento através de um processo que hoje chamamos de endoculturação Locke refutou fortemente as idéias correntes na época e que ainda se manifestam até hoje de princípios ou verdades inatas impressos hereditariamente na mente humana ao mesmo tempo em que ensaiou os primeiros passos do relativismo cultural ao afirmar que os homens têm princípios práticos opostos Quem investigar cuidadosamente a história da humanidade examinar por toda a parte as várias tribos de homens e com indiferença observar as suas ações será capaz de convencerse de que raramente há princípios de moralidade para serem designados ou regra de virtude para ser considerada que não seja em alguma parte ou outra menosprezado e condenado pela moda geral de todas as sociedades de homens governadas por opiniões práticas e regras de condutas bem contrárias umas às outras Livro I capII 10 Finalmente com referência a John Locke gostaríamos de citar o antropólogo americano Marvin Harris 1969 que expressa bem as implicações da obra de Locke para à época nenhum ordem social é baseada em verdades inatas uma mudança no ambiente resulta numa mudança no comportamento2 Meio século depois Jacques Turgot 17271781 ao escrever o seu Plano para dois discursos sobre história universal afirmou Possuidor de um tesouro de signos que tem a faculdade de multiplicar infinitamente o homem é capaz de assegurar a retenção de suas idéias eruditas comunicálas para outros homens e transmitilas para os seus descendentes como urna herança sempre crescente O grifo é nosso Basta apenas a retirada da palavra erudita para que esta afirmação de Turgot possa ser considerada uma definição aceitável do conceito de cultura embora em nenhum momento faça menção a este vocábulo Esta definição é equivalente às que foram formuladas mais de um século depois por Bronislaw Malinowski e Leslie White como o leitor constatará no decorrer deste trabalho Jean Jacques Rousseau 17121778 em seu Discurso sobre a origem e o estabelecimento da desigualdade entre os homens em 1775 seguiu os passos de Locke e de Turgot ao atribuir um grande papel à educação chegando mesmo ao exagero de acreditar que esse processo teria a possibilidade de completar a transição entre os grandes macacos chimpanzé gorila e orangotango e os homens3 Mais de um século transcorrido desde a definição de Tylor era de se esperar que existisse hoje um razoável acordo entre os antropólogos a respeito do conceito Tal expectativa seria coerente com o otimismo de Kroeber que em 1950 escreveu que a maior realização da Antropologia na primeira metade do século XX foi a ampliação e a clarificação do conceito de cultura Anthropology in Scientific American 183 Mas na verdade as centenas de definições formuladas após Tylor serviram mais para estabelecer uma confusão do que ampliar os limites do conceito Tanto é que em 1973 Geertz escreveu que o tema mais importante da moderna teoria antropológica era o de diminuir a amplitude do conceito e transformálo num instrumento mais especializado e mais poderoso teoricamente Em outras palavras o universo conceitua tinha atingido tal dimensão que somente com uma contração poderia ser novamente colocado dentro de uma perspectiva antropológica Em 1871 Tylor definiu cultura como sendo todo o comportamento aprendido tudo aquilo que independe de uma transmissão genética como diríamos hoje Em 1917 Kroeber acabou de romper todos os laços entre o cultural e o biológico postulando a supremacia do primeiro em detrimento do segundo em seu artigo hoje clássico O Superorgânico in American Anthropologist volXIX nº 2 19173 Completavase então um processo iniciado por Lineu que consistiu inicialmente em derrubar o homem de seu pedestal sobrenatural e colocálo dentro da ordem da natureza O segundo passo deste processo iniciado por Tylor e completado por Kroeber representou o afastamento crescente desses dois domínios o cultural e o natural O anjo caído foi diferenciado dos demais animais por ter a seu dispor duas notáveis propriedades a possibilidade da comunicação oral e a capacidade de fabricação de instrumentos capazes de tornar mais eficiente o seu aparato biológico Mas estas duas propriedades permitem uma afirmação mais ampla o homem é o único ser possuidor de cultura Em suma a nossa espécie tinha conseguido no decorrer de sua evolução estabelecer uma distinção de gênero e não apenas de grau em relação aos demais seres vivos Os fundadores de nossa ciência através dessa explicação tinham repetido a temática quase universal dos mitos de origem pois a maioria destes preocupase muito mais em explicar a separação da cultura da natureza do que com as especulações de ordem cosmogônica No período que decorreu entre Tylor e a afirmação de Kroeber em 1950 o monumento teórico que se destacava pela sua excessiva simplicidade construído a partir de uma visão da natureza humana elaborada no período iluminista foi destruído pelas tentativas posteriores de clarificação do conceito A reconstrução deste momento conceitual a partir de uma diversidade de fragmentos teóricos é uma das tarefas primordiais da antropologia moderna Neste trabalho entretanto seguiremos apenas os procedimentos básicos desta elaboração FICHAMENTO REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropológico 27 ed Rio de Janeiro Zahar 2001 1 RESUMO O texto aborda o conceito de cultura dentro da Antropologia contrapondoo ao determinismo biológico e geográfico Explicase que cultura é um conjunto de valores crenças e práticas compartilhadas por um grupo e adquiridas socialmente A cultura não é algo herdado geneticamente mas sim aprendido e transmitido ao longo das gerações O determinismo biológico é criticado por reduzir os comportamentos humanos a fatores genéticos ignorando o papel da cultura na formação da identidade e das interações sociais Da mesma forma o determinismo geográfico é refutado por superestimar a influência do meio ambiente sobre as diferenças culturais desconsiderando as escolhas e adaptações humanas A discussão também envolve a relação entre cultura e identidade demonstrando como a cultura influencia os indivíduos e suas formas de percepção do mundo O autor enfatiza a importância de compreender a cultura como um fenômeno dinâmico em constante transformação CITAÇÕES RELEVANTES A cultura é um conjunto de práticas conhecimentos e crenças adquiridos socialmente e não um produto da herança genética LARAIA 2001 p 25 O determinismo geográfico subestima a capacidade humana de adaptação e ignora a influência dos fatores históricos e sociais na formação da cultura LARAIA 2001 p 42 As diferenças culturais não são fruto de superioridade ou inferioridade mas de processos históricos e sociais que moldaram os diferentes povos LARAIA 2001 p 65 ANÁLISE CRÍTICA O autor apresenta uma abordagem clara e fundamentada sobre o conceito de cultura desmistificando visões reducionistas como o determinismo biológico e geográfico O texto contribui para a compreensão de como a cultura é um elemento central na identidade humana e na organização das sociedades Entretanto poderia haver uma discussão mais aprofundada sobre a interação entre cultura e biologia especialmente no que se refere a estudos recentes da neurociência e da epigenética Apesar disso a argumentação é sólida e coerente PERGUNTA E RESPOSTA Pergunta Qual é o principal argumento contra o determinismo biológico na explicação das diferenças culturais Resposta O principal argumento contra o determinismo biológico é que ele reduz o comportamento humano a fatores genéticos ignorando o papel essencial da cultura na formação das crenças valores e práticas de um grupo A cultura é adquirida por meio da socialização e não é transmitida geneticamente o que refuta a ideia de que diferenças culturais sejam exclusivamente biológicas
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Coleção ANTROPOLOGIA SOCIAL diretor Gilberto Velho O RISO E O RISÍVEL Verena Alberti MOVIMENTO PUNK NA CIDADE AUTORIDADE AFETO Janice Caiafa O ESPÍRITO MILITAR OS MILITARES E A REPÚBLICA Celso Castro VELHOS MILITANTES Ângela Castro Gomes Dora Flaksman Eduardo Stotz DA VIDA NERVOSA Luiz Fernando Duarte GAROTAS DE PROGRAMA Maria Dulce Gaspar NOVA LUZ SOBRE A ANTROPOLOGIA Clifford Geertz O COTIDIANO DA POLÍTICA Karina Kuschnir CULTURA UM CONCEITO ANTROPOLÓGICO Roque de Barros Laraia CARISMA Charles Lindholm ILHAS DE HISTÓRIA Marshall Sahlins OS MANDARINS MILAGROSOS Elizabeth Travassos ANTROPOLOGIA URBANA DESVIO E DIVERGÊNCIA INDIVIDUALISMO E CULTURA PROJETO E METAMORFOSE SUBJETIVIDADE E SOCIEDADE A UTOPIA URBANA Gilberto Velho O MUNDO FUNK CARIOCA O MISTÉRIO DO SAMBA Hermano Vianna BEZERRA DA SILVA PRODUTO DO MORRO Letícia Vianna O MUNDO DA ASTROLOGIA Luís Rodolfo Vilhena ARAWETÉ OS DEUSES CANIBAIS Eduardo Viveiros de Castro Roque de Barros Laraia CULTURA Um conceito antropológico 14ª edição Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro O livro está dividido em duas partes a primeira que se refere ao desenvolvimento do conceito de cultura a partir das manifestações iluministas até os autores modernos a segunda parte procura demonstrar como a cultura influencia o comportamento social e diversifica enormemente a humanidade apesar de sua comprovada unidade biológica A nossa intenção foi de atender às demandas das disciplinas iniciais dos cursos de graduação em antropologia e demais ciências sociais Para isto contamos com o apoio e o estímulo dos colegas do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília aos quais devemos nossos agradecimentos Mas um reconhecimento especial é devido a Júlio Cezar Melatti que tanto insistiu para que realizássemos este trabalho Primeira parte DA NATUREZA DA CULTURA OU DA NATUREZA À CULTURA Este volume trata da discussão de um dilema a conciliação da unidade biológica e a grande diversidade cultural da espécie humana1 Um dilema que permanece como o tema central de numerosas polémicas apesar de Confúcio ter quatro séculos antes de Cristo enunciado que A natureza dos homens é a mesma são os seus hábitos que os mantém separados Mesmo antes da aceitação do monogenismo os homens se preocupavam com a diversidade de modos de comportamento existentes entre os diferentes povos Até mesmo Heródoto 484424 aC o grande historiador grego preocupouse com o tema quando descreveu o sistema social dos lícios Eles têm um costume singular pelo qual diferem de todas as outras nações do mundo Tomam o nome da mãe e não o do pai Perguntese a um lício quem é e ele responde dando o seu próprio nome e o de sua mãe e assim por diante na linha feminina Além disso se uma mulher livre desposa um homem escravo seus filhos são cidadãos integrais mas se um homem livre desposaunia mulher estrangeira ou vive com uma concubina embora seja ele a primeira pessoa do Estado os filhos não terão qualquer direito à cidadania2 Ao considerar os costumes dos lícios diferentes de todas as outras nações do mundo Heródoto estava tomando como referência a sua própria sociedade patrilineal3 agindo de uma maneira etnocêntrica embora ele próprio tenha teoricamente renegado esta postura ao afirmar Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo aqueles que lhes parecessem melhor eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo os seus próprios costumes tão convencidos estão de que estes são melhores do que todos os outros A surpresa de Heródoto pela diversidade cultural dos lícios não é diferente da de Tácito 55120 cidadão romano em relação às tribos germânicas sobre as quais escreveu com admiração Por tudo isso o casamento na Alemanha é austero não há aspecto de sua moral que mereça maior elogio São quase únicos entre os bárbaros por se satisfazerem com uma mulher para cada As exceções que são extremamente raras constituemse de homens que recebem ofertas de muitas mulheres devido ao seu posto Não há questão de paixão sexual O dote é dado pelo marido à mulher e não por esta àquele4 Marco Polo o legendário viajante italiano que visitou a China e outras partes da Ásia entre os anos 1271 e 1296 assim descreveu os costumes dos tártaros Têm casas circulares de madeira e cobertas de feltro que levam consigo onde vão em carroças de quatro rodas assegurolhes que as mulheres compram vendem e fazem tudo o que é necessário para seus maridos e suas casas Os homens não se têm de preocupar com coisa alguma exceto a caça a guerra e a falcoaria Não têm objeções a que se coma a carne de cavalos e cães e se tome o leite de égua Coisa alguma no inundo os faria tocar na mulher do outro têm extrema consciência de que isto é um erro e unia desgraça5 O padre José de Anchieta 15341597 ao contrário de Heródoto se surpreendeu com os costumes patrilineares dos índios Tupinambá e escreveu aos seus superiores O terem respeito às filhas cios irmãos é porque lhes chamam filhas e nessa conta as têm e assim neque fornicare as conhecem porque têm para si que o parentesco verdadeiro vem pela parte dos pais que são agentes e que as mães não são mais que uns sacos em respeito dos pais em que se criam as crianças e por esta causa os filhos dos pais posto que sejam havidos de escravas e contrárias cativas são sempre livres e tão estimados como os outros e os filhos das fêmeas se são filhos de cativos os têm por escravos e os vendem e às vezes matam e comem ainda que sejam seus netos filhos de suas filhas e por isto também usam das filhas das irmãs sem nenhum pejo ad copulam mas não que haja obrigação e nem o costume universal de as terem por mulheres verdadeiras mais que as outras como dito é6 Montaigne 15331572 procurou não se espantar em demasia com os costumes dos Tupinambá de quem teve notícias e chegou mesmo a ter contato com três deles em Ruão afirmando não ver nada de bárbaro ou selvagem no que diziam a respeito deles porque na verdade cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra Imbuído de um pioneiro sentido de relativismo cultural Montaigne assim comentou a antropofagia dos Tupinambá Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos ou entregálo a cães e porcos a pretexto de devoção e fé como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos7 E terminou ironicamente após descrever diversos costumes daqueles índios Tupi Tudo isso é interessante mas que diabo essa gente não usa calças Desde a Antigüidade foram comuns as tentativas de explicar as diferenças de comportamento entre os homens a partir das variações dos ambientes físicos Marcus V Pollio arquiteto romano afirmou enfaticamente Os povos do sul têm uma inteligência aguda devido à raridade la atmosfera e ao calor enquanto os das nações do Norte tendo se desenvolvido numa atmosfera densa e esfriados pelos vapores dos ares carregados têm uma inteligência preguiçosa8 Ibn Khaldun filósofo árabe do século XVI tinha uma opinião semelhante pois também acreditava que os habitantes dos climas quentes tinham uma natureza passional enquanto aos dos climas frios faltava a vivacidade Jean Bodin filósofo francês do século XVI desenvolveu a teoria que os povos do norte têm como líquido dominante da vida o fleuma enquanto os do sul são dominados pela bílis negra Em decorrência disto os nórdicos são fiéis leais aos governantes cruéis e pouco interessados sexualmente enquanto os do sul são maliciosos engenhosos abertos orientados para as ciências mas mal adaptados para as atividades políticas Contudo explicações leste gênero não foram suficientes para resolver o dilema proposto tanto é que DHolbach replicava em 1774 Será que o sol que brilhou para os livres gregos e romanos emite hoje raios diferentes sobre os seus degenerados descendentes19 Qualquer um dos leitores que quiser constatar uma vez mais a existência dessas diferenças não necessita retornar ao passado nem mesmo empreender uma difícil viagem a um grupo indígena localizado nos confins da floresta amazônica ou em uma distante ilha do Pacífico Basta comparar os costumes de nossos contemporâneos que vivem no chamado mundo civilizado Esta comparação pode começar pelo sentido do trânsito na Inglaterra que segue a mão esquerda pelos hábitos culinários franceses onde rãs e escargots capazes de causar repulsa a muitos povos são considerados como iguarias até outros usos e costumes que chamam mais a atenção para as diferenças culturais No Japão por exemplo era costume que o devedor insolvente praticasse o suicídio na véspera do anonovo como uma maneira de limpar o seu nome e o de sua família O haraquiri suicídio ritual sempre foi considerado como uma forma de heroísmo Tal costume justificou o aparecimento dos pilotos suicidas durante a Segunda Guerra Mundial Entre os ciganos da Califórnia a obesidade é considerada como um indicador da virilidade mas também é utilizada para conseguir benefícios junto aos programas governamentais de bemestar social que a consideram como uma deficiência física A carne da vaca é proibida aos hindus da mesma forma que a de porco é interditada aos muçulmanos O nudismo é uma pratica tolerada em certas praias européias enquanto nos países islâmicos de orientação xiita as mulheres mal podem mostrar o rosto em público Nesses mesmos países o adultério é uma contravenção grave que pode ser punida com a morte ou longos anos de prisão Não é necessário ir tão longe nesta sequência de exemplos que poderia se estender infinitamente basta verificar que em algumas regiões do Norte do Brasil a gravidez é considerada como uma enfermidade e o ato de parir é denominado descansar Esta mesma palavra é utilizada no Sul do país para se referir à morte fulano descansou isto é morreu Ainda entre nós existe uma diversidade de interdições alimentares que consideram perigoso o consumo conjunto de certos alimentos que isoladamente são inofensivos como a manga com o leite etc Enfim todos estes exemplos e os que se seguem servem para mostrar que as diferenças de comportamento entre os homens não podem ser explicadas através das diversidades somatológicas ou mesológicas Tanto o determinismo geográfico como o determinismo biológico como mostraremos a seguir foram incapazes de resolver o dilema proposto no início deste trabalho 1 O DETERMINISMO BIOLÓGICO São velhas e persistentes as teorias que atribuem capacidades específicas inatas a raças ou a outros grupos humanos Muita gente ainda acredita que os nórdicos são mais inteligentes do que os negros que os alemães têm mais habilidade para a mecânica que os judeus são avarentos e negociantes que os norteamericanos são empreendedores e interesseiros que os portugueses são muito trabalhadores e pouco inteligentes que os japoneses são trabalhadores traiçoeiros e cruéis que os ciganos são nômades por instinto e finalmente que os brasileiros herdaram a preguiça dos negros a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses Os antropólogos estão totalmente convencidos de que as diferenças genéticas não são determinantes das diferenças culturais Segundo Felix Keesing não existe correlação significativa entre a distribuição dos caracteres genéticos e a distribuição dos comportamentos culturais Qualquer criança humana normal pode ser educada em qualquer cultura se for colocada desde o início em situação conveniente de aprendizado Em outras palavras se transportarnos para o Brasil logo após o seu nascimento uma criança sueca e a colocarmos sob os cuidados de uma família sertaneja ela crescerá como tal e não se diferenciará mentalmente em nada de seu irmãos de criação Ou ainda se retirarmos uma criança xinguana de seu meio e a educarmos como filha de uma família de alta classe média de Ipanema o mesmo acontecerá ela terá as mesmas oportunidades de desenvolvimento que os seus novos irmãos Em 1950 quando o mundo se refazia da catástrofe e do terror do racismo nazista antropólogos físicos e culturais geneticistas biólogos e outros especialistas reunidos em Paris sol os auspícios da Unesco redigiram uma declaração da qual extraímos dois parágrafos 10 Os dados científicos de que dispomos atualmente não confirmam a teoria segundo a qual as diferenças genéticas hereditárias constituiriam um fator de importância primordial ente as causas das diferenças que se manifestam ente as culturas e as obras das civilizações dos diversos povos ou grupos étnicos Eles nos informam pelo contrário que essas diferenças se explicam antes de tudo pela história cultural de cada grupo Os fatores que tiveram tin papel preponderante na evolução do homem são a sua faculdade de aprender e a sua plasticidade Esta dupla aptidão é o apanágio de todos os seres humanos Ela constitui de fato uma das características específicas do Homo sapiens 15 b No estado atual de nossos conhecimentos não foi ainda provada a validade da tese segundo a qual os grupos humanos diferem uns dos outros pelos traços psicologicamente inatos quer se trate de inteligência ou temperamento As pesquisas científicas revelam que o nível das aptidões mentais é quase o mesmo em todos os grupos étnicos A espécie humana se diferencia anatômica e fisiologicamente através do dimorfismo sexual mas é falso que as diferenças de comportamento existentes entre pessoas de sexos diferentes sejam determinadas biologicamente A antropologia tem demonstrado que muitas atividades atribuídas às mulheres em uma cultura podem ser atribuídas aos homens em outra A verificação de qualquer sistema de divisão sexual do trabalho mostra que ele é determinado culturalmente e não em função de uma racionalidade biológica O transporte de água para a aldeia é uma atividade feminina no Xingu como nas favelas cariocas Carregar cerca de vinte litros de água sobre a cabeça implica na verdade um esforço físico considerável muito maior do que o necessário para o manejo de um arco arma de uso exclusivo dos homens Até muito pouco tempo a carreira diplomática o quadro de funcionários do Banco do Brasil entre outros exemplos eram atividades exclusivamente masculinas O exército de Israel demonstrou que a sua eficiência bélica continua intacta mesmo depois da maciça admissão de mulheres soldados Mesmo as diferenças determinadas pelo aparelho reprodutor humano determinam diferentes manifestações culturais Margareth Mead 1971 mostra que até a amamentação pode ser transferida a um marido moderno por meio da mamadeira E os nossos índios Tupi mostram que o marido pode ser o protagonista reais importante do parto É ele que se recolhe à rede e não a mulher e faz o resguardo considerado importante para a sua saúde e a do recémnascido Resumindo o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado de uni processo que chamamos de endoculturação Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios mas em decorrência de uma educação diferenciada 2 O DETERMINISMO GEOGRÁFICO O determinismo geográfico considera que as diferenças do ambiente físico condicionam a diversidade cultural São explicações existentes desde a Antigüidade do tipo das formuladas por Pollio Ibn Khaldun Bodin e outros como vimos anteriormente Estas teorias que foram desenvolvidas principalmente por geógrafos no final do século XIX e no início do século XX ganharam uma grande popularidade Exemplo significativo desse tipo de pensamento pode ser encontrado em Huntington em seu livro Civilization and Climate 1915 no qual formula uma relação entre a latitude e os centros de civilização considerando o clina como um fator importante na dinâmica do progresso A partir de 1920 antropólogos como Boas Wissler Kroeber entre outros refutaram este tipo de determinismo e demonstraram que existe uma limitação na influência geográfica sobre os fatores culturais E mais que é possível e comum existir uma grande diversidade cultural localizada em um mesmo tipo de ambiente físico Tomemos como primeiro exemplo os lapões e os esquimós Ambos habitam a calota polar norte os primeiros no norte da Europa e os segundos no norte da América Vivem pois em ambientes geográficos muito semelhantes caracterizados por um longo e rigoroso inverno Ambos têm ao seu dispor flora e fauna semelhantes Era de se esperar portanto que encontrassem as mesmas respostas culturais para a sobrevivência em um ambiente hostil Mas isto não ocorre Os esquimós constroem suas casas iglus cortando blocos de neve e amontoandose num formato ele colméia Por dentro a casa é forrada com peles de animais e com o auxílio do fogo conseguem manter o seu interior suficientemente quente É possível então desvencilharse das pesadas roupas enquanto no exterior da casa a temperatura situase a muitos graus abaixo ele zero grau centígrado Quando deseja o esquimó abandona a casa tendo que carregar apenas os seus pertences e vai construir um novo retiro Os lapões por sua vez vivem em tendas de peles de rena Quando desejam mudar os seus acampamentos necessitam realizar uni árduo trabalho que se inicia pelo desmontre pela retirada do gelo que se acumulou sobre as peles pela secagem das mesmas e o seu transporte para o novo sítio Em compensação os lapões são excelentes criadores ele renas enquanto tradicionalmente os esquimós limitamse a caça desses mamíferos1 A aparente pobreza glacial não impede que os esquimós tenham urna desenvolvida arte de esculturas em pedrasabão e nem que resolvam os seus conflitos com uma sofisticada competição de canções entre os competidores Um segundo exemplo transcrito de Felix Keesing é a variação cultural observada entre os índios do sudoeste norteamericano Os índios Pueblo e Navajo do sudoeste americano ocupam essencialmente o mesmo hábitat sendo que alguns índios Pueblo até vivem hoje em boisões dentro da reserva Navajo Os grupos Pueblo são aldeões com urna economia agrícola baseada principalmente no milho Os Navajo são descendentes ele apanhadores de víveres ele site alimentavam de castanhas selvagens sementes de capins e de caça mais ou menos como os Apache e outros grupos vizinhos têm feito até os tempos modernos Mas obtendo ovinos dos europeus os Navajo são hoje mais pastoreadores vivendo espalhados com seus rebanhos em grupos de famílias O espírito criador do homem pode assim envolver três alternativas culturais bem diferentes apanha de víveres cultivo pastoreio no mesmo ambiente natural de sorte que não foram fatores de hábitat que proporcionaram a determinante principal Posteriormente no mesmo habitat colonizadores americanos tiveram que criar outros sistemas de vida baseados na pecuária na agricultura irrigada e na urbanização2 O terceiro exemplo pode ser encontrado no interior de nosso país dentro dos limites cio Parque Nacional do Xingu Os xinguanos propriamente ditos Kamayurá Kalapalo Trumai Waurá etc desprezam toda a reserva ele proteínas existentes nos grandes mamíferos cuja caça lhes é interditada por motivos culturais e se dedicam mais intensamente à pesca e caça ele aves Os Kayabi que habitam o Norte do Parque são excelentes caçadores e preferem justamente os mamíferos de grande porte como a anta o veado o caititu etc Estes três exemplos mostram que não é possível admitir a idéia do determinismo geográfico ou seja a admissão da ação mecânica das forças naturais sobre uma humanidade puramente receptiva A posição da moderna antropologia é que a cultura age seletivamente e não casualmente sobre seu meio ambiente explorando determinadas possibilidades e limites ao desenvolvimento para o qual as forças decisivas estão na própria cultura e na história da cultura3 As diferenças existentes entre os homens portanto não podem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações um animal frágil provido de insignificante força física dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores Sem asas dominou os ares sem guelras ou membranas próprias conquistou os mares Tudo isto porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura Mas que é cultura 3 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO CONCEITO DE CULTURA No final do século XVIII e no princípio do seguinte o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade enquanto a palavra francesa Civilization referiase principalmente às realizações materiais de um povo Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor 18321917 no vocábulo inglês Culture que tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos crenças arte moral leis costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade1 Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata transmitida por mecanismos biológicos O conceito de Cultura pelo menos como utilizado atualmente foi portanto definido pela primeira vez por Tylor Mas o que ele fez foi formalizar uma idéia que vinha crescendo na mente humana A idéia de cultura com efeito estava ganhando consistência talvez mesmo antes de John Locke 16321704 que em 1690 ao escrever Ensaio acerca do entendimento humano procurou demonstrar que a mente humana não é mais do que uma caixa vazia por ocasião do nascimento dotada apenas da capacidade ilimitada de obter conhecimento através de um processo que hoje chamamos de endoculturação Locke refutou fortemente as idéias correntes na época e que ainda se manifestam até hoje de princípios ou verdades inatas impressos hereditariamente na mente humana ao mesmo tempo em que ensaiou os primeiros passos do relativismo cultural ao afirmar que os homens têm princípios práticos opostos Quem investigar cuidadosamente a história da humanidade examinar por toda a parte as várias tribos de homens e com indiferença observar as suas ações será capaz de convencerse de que raramente há princípios de moralidade para serem designados ou regra de virtude para ser considerada que não seja em alguma parte ou outra menosprezado e condenado pela moda geral de todas as sociedades de homens governadas por opiniões práticas e regras de condutas bem contrárias umas às outras Livro I capII 10 Finalmente com referência a John Locke gostaríamos de citar o antropólogo americano Marvin Harris 1969 que expressa bem as implicações da obra de Locke para à época nenhum ordem social é baseada em verdades inatas uma mudança no ambiente resulta numa mudança no comportamento2 Meio século depois Jacques Turgot 17271781 ao escrever o seu Plano para dois discursos sobre história universal afirmou Possuidor de um tesouro de signos que tem a faculdade de multiplicar infinitamente o homem é capaz de assegurar a retenção de suas idéias eruditas comunicálas para outros homens e transmitilas para os seus descendentes como urna herança sempre crescente O grifo é nosso Basta apenas a retirada da palavra erudita para que esta afirmação de Turgot possa ser considerada uma definição aceitável do conceito de cultura embora em nenhum momento faça menção a este vocábulo Esta definição é equivalente às que foram formuladas mais de um século depois por Bronislaw Malinowski e Leslie White como o leitor constatará no decorrer deste trabalho Jean Jacques Rousseau 17121778 em seu Discurso sobre a origem e o estabelecimento da desigualdade entre os homens em 1775 seguiu os passos de Locke e de Turgot ao atribuir um grande papel à educação chegando mesmo ao exagero de acreditar que esse processo teria a possibilidade de completar a transição entre os grandes macacos chimpanzé gorila e orangotango e os homens3 Mais de um século transcorrido desde a definição de Tylor era de se esperar que existisse hoje um razoável acordo entre os antropólogos a respeito do conceito Tal expectativa seria coerente com o otimismo de Kroeber que em 1950 escreveu que a maior realização da Antropologia na primeira metade do século XX foi a ampliação e a clarificação do conceito de cultura Anthropology in Scientific American 183 Mas na verdade as centenas de definições formuladas após Tylor serviram mais para estabelecer uma confusão do que ampliar os limites do conceito Tanto é que em 1973 Geertz escreveu que o tema mais importante da moderna teoria antropológica era o de diminuir a amplitude do conceito e transformálo num instrumento mais especializado e mais poderoso teoricamente Em outras palavras o universo conceitua tinha atingido tal dimensão que somente com uma contração poderia ser novamente colocado dentro de uma perspectiva antropológica Em 1871 Tylor definiu cultura como sendo todo o comportamento aprendido tudo aquilo que independe de uma transmissão genética como diríamos hoje Em 1917 Kroeber acabou de romper todos os laços entre o cultural e o biológico postulando a supremacia do primeiro em detrimento do segundo em seu artigo hoje clássico O Superorgânico in American Anthropologist volXIX nº 2 19173 Completavase então um processo iniciado por Lineu que consistiu inicialmente em derrubar o homem de seu pedestal sobrenatural e colocálo dentro da ordem da natureza O segundo passo deste processo iniciado por Tylor e completado por Kroeber representou o afastamento crescente desses dois domínios o cultural e o natural O anjo caído foi diferenciado dos demais animais por ter a seu dispor duas notáveis propriedades a possibilidade da comunicação oral e a capacidade de fabricação de instrumentos capazes de tornar mais eficiente o seu aparato biológico Mas estas duas propriedades permitem uma afirmação mais ampla o homem é o único ser possuidor de cultura Em suma a nossa espécie tinha conseguido no decorrer de sua evolução estabelecer uma distinção de gênero e não apenas de grau em relação aos demais seres vivos Os fundadores de nossa ciência através dessa explicação tinham repetido a temática quase universal dos mitos de origem pois a maioria destes preocupase muito mais em explicar a separação da cultura da natureza do que com as especulações de ordem cosmogônica No período que decorreu entre Tylor e a afirmação de Kroeber em 1950 o monumento teórico que se destacava pela sua excessiva simplicidade construído a partir de uma visão da natureza humana elaborada no período iluminista foi destruído pelas tentativas posteriores de clarificação do conceito A reconstrução deste momento conceitual a partir de uma diversidade de fragmentos teóricos é uma das tarefas primordiais da antropologia moderna Neste trabalho entretanto seguiremos apenas os procedimentos básicos desta elaboração FICHAMENTO REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropológico 27 ed Rio de Janeiro Zahar 2001 1 RESUMO O texto aborda o conceito de cultura dentro da Antropologia contrapondoo ao determinismo biológico e geográfico Explicase que cultura é um conjunto de valores crenças e práticas compartilhadas por um grupo e adquiridas socialmente A cultura não é algo herdado geneticamente mas sim aprendido e transmitido ao longo das gerações O determinismo biológico é criticado por reduzir os comportamentos humanos a fatores genéticos ignorando o papel da cultura na formação da identidade e das interações sociais Da mesma forma o determinismo geográfico é refutado por superestimar a influência do meio ambiente sobre as diferenças culturais desconsiderando as escolhas e adaptações humanas A discussão também envolve a relação entre cultura e identidade demonstrando como a cultura influencia os indivíduos e suas formas de percepção do mundo O autor enfatiza a importância de compreender a cultura como um fenômeno dinâmico em constante transformação CITAÇÕES RELEVANTES A cultura é um conjunto de práticas conhecimentos e crenças adquiridos socialmente e não um produto da herança genética LARAIA 2001 p 25 O determinismo geográfico subestima a capacidade humana de adaptação e ignora a influência dos fatores históricos e sociais na formação da cultura LARAIA 2001 p 42 As diferenças culturais não são fruto de superioridade ou inferioridade mas de processos históricos e sociais que moldaram os diferentes povos LARAIA 2001 p 65 ANÁLISE CRÍTICA O autor apresenta uma abordagem clara e fundamentada sobre o conceito de cultura desmistificando visões reducionistas como o determinismo biológico e geográfico O texto contribui para a compreensão de como a cultura é um elemento central na identidade humana e na organização das sociedades Entretanto poderia haver uma discussão mais aprofundada sobre a interação entre cultura e biologia especialmente no que se refere a estudos recentes da neurociência e da epigenética Apesar disso a argumentação é sólida e coerente PERGUNTA E RESPOSTA Pergunta Qual é o principal argumento contra o determinismo biológico na explicação das diferenças culturais Resposta O principal argumento contra o determinismo biológico é que ele reduz o comportamento humano a fatores genéticos ignorando o papel essencial da cultura na formação das crenças valores e práticas de um grupo A cultura é adquirida por meio da socialização e não é transmitida geneticamente o que refuta a ideia de que diferenças culturais sejam exclusivamente biológicas