·
Psicologia ·
Psicopatologia
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1842-1914\nPresidente Schreber: As memórias da paranoia\nNo ápice de sua bem-sucedida carreira como jurista e em meio à modernização dos sistemas administrativo e judiciário da Alemanha recém-unificada, Daniel Paul Schreber desenvolve uma crise psicótica. Aos 42 anos, é invadido por delírios e alucinações nos quais raios de Deus manipulam seu corpo, transformando-o em mulher para dar origem a uma nova raça. As profundas alterações do modo de vida familiar e das regras de reconhecimento da autoridade, típicas da passagem do poder da nobreza aristocrática para o modo de vida assencial e burguês, atravessam sua vida. Educado com rígida disciplina moral, tem sua vida subitamente \"partida ao meio\", o que o leva a um confronto jurídico e intelectual com as principais autoridades psiquiátricas de sua época. Na classificação de Emil Kraepelin, é diagnosticado como \"portador de dementia paranoides\". Mais tarde, o caso é utilizado por Freud para embasar os fundamentos da teoria psicanalítica sobre as psicoses.\n40 MENTE E CÉREBRO Na Alemanha da virada para o século 20 as ideias imperialistas e conservadoras conviviam com aspirações de renovação administrativa e institucional. Era o país do \"lugar ao sol\", prometido pelo kaiser Guilherme II (1859-1941), adotado em uma política de intenso nacionalismo. Em sua tentativa de promover o prestígio internacional do país, o imperador investiu em um programa de fortalecimento das forças armadas, o que contribuiu fortemente para o desencadeamento da Primeira Guerra Mundial (1914-1919). Em franca expansão industrial, a Alemanha era herdeira da ideia de progresso, tão efervescente na belle époque, e aspirava ao planejamento e ordem nos mínimos detalhes. O controle científico positivo da vida privada, cada vez mais administrada como um pequeno negócio, começava a mostrar o lado decadente da sociedade. Iniciava-se um período de crise e reformulação do sonho liberal.\n\nNa infância, Daniel Paul Schreber — futuro juiz presidente da Corte de Apelação de Dresden, na Baixa Saxônia, nos últimos anos do século 20 — tinha de dormir com aparelhos de ferro e couro que seguravam seus pés a uma distância milimetricamente calculada, deixavam sua coluna completamente reta e terminavam por segurar sua cabeça com uma espécie de capacete que se estendia até o queixo. Os equipamentos deveriam garantir que o crescimento do crânio fosse perfeitamente harmonioso. Ele estudava com aparelhos semelhantes por horas a fio e controlava sua forma de respirar, de modo a não soltar assobios, estalos ou qualquer outra demonstração de exaltação considerada transgressora. Além disso, era constantemente vigiado e severamente punido caso tocasse, ainda que acidentalmente, em seu órgão genital. Seu corpo devia ser objeto de extremo autocontrole, refletindo assim a capacidade de ordem e domínio sobre si.\n\nPertencente a uma família importante, ele teve uma crise psíquica ao assumir o maior cargo que um juiz podia acumular. Durante a internação psiquiátrica, o homem de inteligência e cultura incomuns escrevia sobre a \"doença dos nervos\", contendo um intrincado delírio iniciados anos antes. O objetivo da obra era mostrar aqueles que o impediam de continuar a trabalhar. As coisas estranhas e inconvenientes que lhe teriam ocorrido não ia ter pi. A evolução de inteligência e razão necessárias a seu juízo profissional. Trata-se de um trabalho apelando o argumento de sua sanidade, mas, \"a fazer de tudo\", pelo controle e clínica sobre sua própria situação de vida. Os escritos embasados na sua má sorte, sobretudo, baseados na preservação de sua capacidade de explicar o que viveu e que provaria, eram ato, que a capacidade de estudar os seus funções cognitivas e laborais não sofrera prejuízo.\n\nO livro logo atraiu a atenção dos psiquiatras da época, tanto pelo estilo claro quanto pela precisão na descrição dos fenômenos clínicos, e não demorou a ser apresentado a Sigmund Freud (1856-1939), que, algum tempo depois, iniciou o escrito do caso Schreber, publicado em 1911 com o título Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). Como clínico, na época Freud não tinha muito acesso a casos de loucura como esse. As pessoas acometidas pelo problema encontravam-se invariavelmente recolhidas em hospícios. Como as memórias de Schreber traziam muitos detalhes de seu delírio, Freud viu nelas a oportunidade de estudar o material clínico.\n42 MENTE E CÉREBRO O pai obrigava o filho a viver preso a aparelhos para garantir um \"crescimento harmonioso\"\n\nO juiz era filho de Daniel Gottlieb Moritz Schreber (1808-1861), importante médico ortopedista, professor da Universidade de Leipzig e autor de vários livros sobre pedagogia, ginástica e higiene. Seus ensinamentos deram origem a numerosas associações por todo o continente europeu. Alguns de seus métodos de promoção da saúde mostraram-se extremamente persuasivos. Ainda hoje na Alemanha as pessoas têm o hábito de cultivar as pessoas, uma espécie de horta caseira para garantir benefícios psíquicos. Mas Moritz Schreber tornou-se realmente conhecido graças à invenção da ginástica terapêutica, um conjunto de procedimentos que visavam a correção física e moral - e aplicados a seus próprios filhos.\n\nO sofrimento na vida de Daniel Schreber, submetido a técnicas austeras de educação postulal e comportamento, estava apenas começando. Quando ele tinha 16 anos, seu pai teve um acidente gravíssimo: uma grande barra de ferro destacou-se de um dos aparelhos de ginástica criados por ele e atingiu sua cabeça, deixando-o com sequelas cerebrais; após três anos nesse estado, faleceu. Com a morte do pai quando o rapaz tinha 19 anos, restou-lhe como referência masculina seu irmão mais velho, Daniel Gustavo. E tudo indica que o primogenito era uma figura importante para Schreber, que, segundo o irmão, optou pela carreira jurídica. Quando Schreber tinha 32 anos, esse querido irmão, com 35, cometeu suicidio depois de sua nomeação comoheleiro de tribunal. Surgia assim para Daniel Schreber a importante tarefa de perpetuar sua prestigiosa linhagem em meio a uma série de infortúnios. Casou um ano depois com Ottlin Sabine Behr (1857-1912), 15 anos mais jovem, de família bem mais humilde que a sua.\n\nA mãe de Schreber, Louise Henrietta Pauline Haase (1815-1907), parecia ser uma figura pouco influente na vida do filho, tanto que não é muito citada nos relatos biográficos. Tudo que se sabe é que, além de ter vindo de uma família de grande prestígio intelectual, tal qual a do marido, era uma mulher deprimida, não muito afetuosa, que se submetia, assim como os filhos, ao completo domínio de Moritz Schreber. UM CORPO QUE SE DESFAZ Apesar de tudo, Daniel Schreber parecia, até aquele momento, levar uma vida normal: estudou, casou e tornou-se funcionário do Ministério da Justiça do Reino da Saxônia, no qual foi periodicamente promovido a cargos cada vez mais importantes. Devido à forte influência política da mãe tmbm gozava sua família, aos 42 anos decidiu apresentar-se como candidato nas eleições parlamentares pelo Partido Nacional Liberal. Porém, não foi aceito e teve sua primeira crise: começou a sofrer graves insônias e ideias hipocondríacas. Sentia que seus órgãos internos estavam se desfalecendo, que emagrecia exponencialmente e que os médicos o enganavam sobre seu pescoço; afirmava que a esposa havia sido enviada para longe e que nunca mais retornaria. Essa crise durou menos de um ano. Durante quase todo esse período, ficou internado na clínica do professor Paul Emil Flechsig (1847-1929), que ocupava a cátedra de psiquiatria da Universidade de Leipzig. Após o período de cuidados do renomado médico, passou um longo tempo viajando e recuperou a saúde mental. O casal Schreber desenvolveu uma enorme gratidão por Flechsig, a ponto de a esposa ter mantido um retrato de médico por muito tempo em casa.\n\nSchreber viveu bem por oito anos e, segundo suas memórias, a única tristeza nesse período foi Ottlin ter sofrido sucessivos abortos espontâneos e não terem tido filhos. Com 51 anos, foi nomeado ao cargo de máxima autoridade na área em que atuava: juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden. O cargo foi designado por escolha direta do imperador, sendo vitalício e legalmente irrecusável.\n\nFreud percebeu que esse foi um fato marcante na vida de Schreber, já que logo depois da nomeação seu estado de saúde mental piorou severamente. Ele começou a ter sonhos pelos quais revivia de forma aterrorizante os dias de sua crise anterior. Após um desses pesadelos, acordou e, num estado entre a vigília e o sono, teve a surpreendente ideia de que, \"afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula\". Curiosamente, após esse pensamento, as crises de insônia retornaram com força, assim como seus antigos pensamentos hipocondríacos. Acreditava que seu cérebro estava amolecendo, que iria morrer e, depois, que estava de fato morto, em decomposição, e que seu corpo estava tratado com total falta de respeito. Depois do ano de sua nomeação, ele fez uma nova crise e começou a ter ideias delirantes: em de terminada noite, teve um número incomum de poluções e, ao acordar, percebeu sinais de \"comunicação nervosa sobrenatural\" entre ele e seu psiquiatra, Flechsig. A partir disso, seus delírios começaram a adquirir progressivamente caráter místico e religioso: acrediteva que estava sendo perseguido para que sua alma fosse aniquilada. Tinha medo principalmente de seu próprio médico, a quem chamava \"assassino de alma\" (Seelermander - palavra absurdamente de léxico alemão). Schreber acreditava que seu corpo iria ser transformado, por meio de milagres, em um corpo feminino e serviria para abusos de Flechsig e dos assistentes.\n\nO juiz escreveu que durante um bom tempo Flechsig se configurou para ele como o centro exclusivo de seu delírio paranoico de perseguição. Freud escreveu indicando como a forma como Schreber se vinculou ao psiquiatra durante a primeira internação e depois passou a teme-lo. Também observou que o segundo surto de Schreber - o mais importante, que deu origem à sua autobiografia - foi precedido por alguns pesadelos e um devaneio, relatados em sequência, inferindo daí que, para o paciente, estavam associados. Qual seria a relação entre os sonhos e a fantasia homossexual, ou seja, entre o primeiro surto e a ideia de que deve ser agradável ser mulher no momento do coito? O psicanalista concluiu que tanto a origem do surto quanto o núcleo temático do delírio se desenvolviam em torno da posição passiva, da fantasia de homossexualidade latente e do tes sexualis de dominação.\n\nFreud valorizou de outra maneira a passagem do livro na qual Schreber declara toda a felicidade por não ter pedido gerar filhos a quem pudesse direcionar o amor dedicado ao pai e ao único irmão. Na opinião de Freud, Schreber perdeu a oportunidade durante um curso natural a suas fantasias homossexuais de desejo, ficando impedido de manter um vínculo de amor com alguém importante, investido de autoridade e do mesmo sexo, como seu pai, seu irmão ou seu chefe, uma vez que agora após a promoção ele não teve mais um superior hierárquico definido. A ausência de filhos também impediu que ele vivesse essa hierarquia no papel inversa, na qual ele mesmo seria admirado e amado como uma figura superior. Isso explicaria a importância e a intensidade de sua relação com Flechsig.\n\nPara Freud, a temática homossexual, presente no delírio, aparecia na ideia de que, \"afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula\"; já que foi depois dela que o surto ecodiu com a sensação de Schreber estar sendo perseguido por seu médico. Freud percebeu o forte vínculo mantido por Schreber com figuras masculinas importantes, redefinidas por ele em seu delírio de perseguição. O psicanalista lançou então a hipótese de que Schreber recalculou suas tendências homosexuais — ou seja, teve de abandoná-las por narra-m como força total, como se Flechsig (e Freud acreditava que o juiz construiu um simbólico para sua fantasia homossexual. o resultado do seu péptido como re-pesquísia. Explica-se assim a esta formação do delírio no qual ocorre violentamente a vontade de Deus, que quer possuir o corpo de Schreber por meio de seus raios capazes de dominar pensamentos, gestos e sensações, bem como a resistência de Schreber contra esse destino, sua luta para entender e se des-ligar dessa força opressora. Portanto, quan-do se fala em fantasia homossexual, não se trata apenas de uma expressão erótica, mas de um sistema de relações que dominam o desejo, autoridade e submissão, tensão entre gêneros, formar a-articular a experien-cia ativa e passiva do corpo. Com toda essa carga erótica presente no delírio voltado a Flechsig, a internação de Schreber na clínica tornou-se insuportável. Por esse motivo, ele passou a ser atendido em outros lugares: no asilo de Lindenhof e depois em Sonnenstein. Entretanto, o objeto do delírio era sempre transferido para a figura de autoridade do novo lugar. Schreber se acreditava envolvido em uma rede de psiquiatras per-seguidore capitaaneada por Flechsig. Enquanto estava na clínica de Flechsig, o juiz supunha ter um antídoto para as malda-des do médico: Deus estava do seu lado e nada lhe aconteceria. Entretanto, em Sonnenstein (literalmente \"pedra do sol\", em alemão), essa situação se modificou quando ele percebeu algo de diferente no Sol. Um dia, ao sentar-no pátio da instituição para ler as notas de um jornal emprestado por seu médico, esse seu próprio nome. Procurou então e chamei mas ninguém estava a seu lado. Percebeu então que a voz vinha do céu, mais precisamente do Sol, que lhe dirigia xingamentos — por exemplo, a palavra Líder (prostituta, e o seu \"ganhador\") e comentários sobre sua ação cadeira. Passou a ver no Sol um olho de Deus a observá-lo e a controlar suas mínimas ações. Deus, por outro lado, transformou-se de aliado em inimigo. Isso ocorreu, segundo Schreber, devido aos grandes poderes sedutores de Flechsig, que como sua grande persuasão a entidade divina a aliar-se a cartomante a escrita a cada vez como cartomante. Tudo isso foi revelado ao juiz pelas vozes que no início vinhão do Sol, depois dos ra-sores falantes e, por fim, de qualquer parte. Elas falavam a \"língua primal\", um ale-marciaco, cheia de emoefimoss, por meio de expressões e neologismos especialmente criados para designar a particularidade dos fenômenos maravilhosos e únicos que lhe sucediam.\nPROJEÇÃO COMO DEFESA Segundo essas vozes, Deus era agora o grande perseguidor que queria transformar Schreber em mulher para poder experimentar o prazer sexual que os humanos, em especial as mulheres, sentiam. Com isso, a finalidade de Deus era dar início a uma nova raça de seres, imensamente superior, o que era pungente, pois as pessoas estavam deixando de existir. O mundo perdia sua realidade e consistência. Não era só a alma que estava sendo levada, todos estavam sumindo — até que, por fim, não restou mais delírios não são um fato sem sentido que deve ser suprimido por meio da força, mas uma tentativa que o próprio paciente faz para se curar e se reinvestir no mundo e nas outras pessoas — que, como no delírio de Schreber, parecem perder sua realidade. Aos 65 anos Schreber adoeceu pela terceira vez: vozes e delírios retornaram com força. Após anos de sofrimento, Schreber pare-cia ter se aquietado quando aceitou a ideia de que seria transformado em mulher. Ele não mais se dirigia ao Sol para vociferar a Deus as mais pesadas calúnias nem tentava atacar seu enfermeiro-chefe por estar mancomunado com Flechsig e seu círculo de perseguidores. Ele se comportava socialmente bem. Mantinha longos diálogos sobre os mais diversos assuntos, com grande interesse, inteligência e clareza de pensamento. Sobre esse momento, ele relatou que as vozes nunca haviam deixá-do, mas estavam bem distantes, a ponto de serem incompreensíveis. Entretanto, o delírio não deixava de existir: ele ainda dizia em ocasiões especiais, que seria copulado por Deus e que Flechsig estava atrás de tudo. Essa não impediu de retomar. Mas ele estava mais ativamente Beritez, já que estava mais ativo e sua inteligência se mantinha. Passou a se interessar por sua condição legal e lutou por liberdade durante sete anos. Finalmente, nessa época que lhe imperou uma ação judicial e ter alta, utilizando o argumento de que sua doença não o impedia de cumprir adequadamente suas funções. Mas por que escreviam para estudar os problemas de Deus e não simplesmente escreveram sobre o juiz? Ele sentia que queria ser lido por todos, pois pensava que suas experiências sobrenaturais poderiam contribuir fora para a ciência — o que de fato se reverteu em lucros para a experiência de Schreber. to espaço de tempo: no mesmo ano perdeu a mãe, e sua mulher teve um derrame cerebral, que provocou afasia. Nessa época, Schreber ainda recebeu a visita de um grupo de seguidores de seu pai, exigindo que ele, como único herdeiro, permitisse que utilizassem com exclusividade o nome Schreber para fins médico-educacionais. Após esses fatos, aos 65 anos o juiz adoeceu pela terceira vez. Às vezes os olhares retornaram com força. Ele permaneceu catatônico, deitado na cama, com os olhos fechados por dias, recusando-se a alimentar-se e a levantar-se. Essa crise ocorreu concomitantemente à escrita do caso por Freud, sem que a psicanálise tivesse notícia dela. De fato, em decorrência do tumulto emocional, Schreber morreu no sanatório, por insuficiência cardíaca, aos 72 anos, após essa última eclosão da psicosse.\nRELEVÂNCIA HISTÓRICA VÁRIOS JEITOS DE ADOECER\nA interpretação freudiana do caso de Daniel Schreber revela diferenças entre a psicanálise e a psiquiatria quanto ao diagnóstico e à direcção do tratamento da psicosse. Em primeiro lugar, é interessante notar que Freud tenta reconhecer um sentido em tudo o que é afirmado por Schreber. Ele não vê no delírio um erro, mas o indício de uma produção psíquica a ser escutada, algo de verdadeiro para o paciente. Isso rompe com a abordagem dada à loucura até então. A insanidade, objeto de tratamento médico desde Philippe Pinel, era vista como fonte de erros a serem corrigidos. Segundo essa abordagem, o louco estava curado na medida em que podia proferir falas sentenças e retorna à realidade. Já para Freud, a falhação de veracidade das sentenças em si não é problema central, mas sim o caráter fixo e imutável de certeza que toma o sujeito. Haveria algo específico na relação do psíquico comum com sua fantasia, algo que impediria que esta permanecesse oculta, passando a perturbar incessantemente o sujeito.\nO criador da psicanálise não foi o único a se interessar pelo caso de Schreber ou pela questão da paranoia. Décadas antes de Freud escrever sobre o, a psiquiatra Emíl Kraepelin (1856-1926) realizou diversos estudos sobre psicopatologia e contribuiu enormemente para uma distinção mais refinada da noção nosológica de paranoia dentro do grupo das doenças. Ele propôs uma diferenciação básica entre a paranoia e a demência precoce, e caracterizada por manter a capacidade intelectual intacta a produzir delírios, que predominam sobre alucinações (distorções dos sentidos).\nEntre os autores pós-freudianos, a paranoia foi tema central e inaugural do pensamento psicanalítico inglês de Melanie Klein (1882-1960). A psicanalista conseguiu relatar com maestria o mecanismo projetivo em todos nós. Ou seja, ela identificou, em diferentes graus, aspectos paranoides atuantes no psiquismo, mesmo em pessoas não psíquicas e, sobretudo, em crianças pequenas. Segundo Melanie Klein, quanto mais insuportável a angústia no eu do sujeito e quanto menos este consegue assimilar-la e transformá-la, mais ele tende a projetar o conteúdo ruim ligado a\nCOLEÇÃO CASOS CLÍNICOS 49
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1842-1914\nPresidente Schreber: As memórias da paranoia\nNo ápice de sua bem-sucedida carreira como jurista e em meio à modernização dos sistemas administrativo e judiciário da Alemanha recém-unificada, Daniel Paul Schreber desenvolve uma crise psicótica. Aos 42 anos, é invadido por delírios e alucinações nos quais raios de Deus manipulam seu corpo, transformando-o em mulher para dar origem a uma nova raça. As profundas alterações do modo de vida familiar e das regras de reconhecimento da autoridade, típicas da passagem do poder da nobreza aristocrática para o modo de vida assencial e burguês, atravessam sua vida. Educado com rígida disciplina moral, tem sua vida subitamente \"partida ao meio\", o que o leva a um confronto jurídico e intelectual com as principais autoridades psiquiátricas de sua época. Na classificação de Emil Kraepelin, é diagnosticado como \"portador de dementia paranoides\". Mais tarde, o caso é utilizado por Freud para embasar os fundamentos da teoria psicanalítica sobre as psicoses.\n40 MENTE E CÉREBRO Na Alemanha da virada para o século 20 as ideias imperialistas e conservadoras conviviam com aspirações de renovação administrativa e institucional. Era o país do \"lugar ao sol\", prometido pelo kaiser Guilherme II (1859-1941), adotado em uma política de intenso nacionalismo. Em sua tentativa de promover o prestígio internacional do país, o imperador investiu em um programa de fortalecimento das forças armadas, o que contribuiu fortemente para o desencadeamento da Primeira Guerra Mundial (1914-1919). Em franca expansão industrial, a Alemanha era herdeira da ideia de progresso, tão efervescente na belle époque, e aspirava ao planejamento e ordem nos mínimos detalhes. O controle científico positivo da vida privada, cada vez mais administrada como um pequeno negócio, começava a mostrar o lado decadente da sociedade. Iniciava-se um período de crise e reformulação do sonho liberal.\n\nNa infância, Daniel Paul Schreber — futuro juiz presidente da Corte de Apelação de Dresden, na Baixa Saxônia, nos últimos anos do século 20 — tinha de dormir com aparelhos de ferro e couro que seguravam seus pés a uma distância milimetricamente calculada, deixavam sua coluna completamente reta e terminavam por segurar sua cabeça com uma espécie de capacete que se estendia até o queixo. Os equipamentos deveriam garantir que o crescimento do crânio fosse perfeitamente harmonioso. Ele estudava com aparelhos semelhantes por horas a fio e controlava sua forma de respirar, de modo a não soltar assobios, estalos ou qualquer outra demonstração de exaltação considerada transgressora. Além disso, era constantemente vigiado e severamente punido caso tocasse, ainda que acidentalmente, em seu órgão genital. Seu corpo devia ser objeto de extremo autocontrole, refletindo assim a capacidade de ordem e domínio sobre si.\n\nPertencente a uma família importante, ele teve uma crise psíquica ao assumir o maior cargo que um juiz podia acumular. Durante a internação psiquiátrica, o homem de inteligência e cultura incomuns escrevia sobre a \"doença dos nervos\", contendo um intrincado delírio iniciados anos antes. O objetivo da obra era mostrar aqueles que o impediam de continuar a trabalhar. As coisas estranhas e inconvenientes que lhe teriam ocorrido não ia ter pi. A evolução de inteligência e razão necessárias a seu juízo profissional. Trata-se de um trabalho apelando o argumento de sua sanidade, mas, \"a fazer de tudo\", pelo controle e clínica sobre sua própria situação de vida. Os escritos embasados na sua má sorte, sobretudo, baseados na preservação de sua capacidade de explicar o que viveu e que provaria, eram ato, que a capacidade de estudar os seus funções cognitivas e laborais não sofrera prejuízo.\n\nO livro logo atraiu a atenção dos psiquiatras da época, tanto pelo estilo claro quanto pela precisão na descrição dos fenômenos clínicos, e não demorou a ser apresentado a Sigmund Freud (1856-1939), que, algum tempo depois, iniciou o escrito do caso Schreber, publicado em 1911 com o título Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). Como clínico, na época Freud não tinha muito acesso a casos de loucura como esse. As pessoas acometidas pelo problema encontravam-se invariavelmente recolhidas em hospícios. Como as memórias de Schreber traziam muitos detalhes de seu delírio, Freud viu nelas a oportunidade de estudar o material clínico.\n42 MENTE E CÉREBRO O pai obrigava o filho a viver preso a aparelhos para garantir um \"crescimento harmonioso\"\n\nO juiz era filho de Daniel Gottlieb Moritz Schreber (1808-1861), importante médico ortopedista, professor da Universidade de Leipzig e autor de vários livros sobre pedagogia, ginástica e higiene. Seus ensinamentos deram origem a numerosas associações por todo o continente europeu. Alguns de seus métodos de promoção da saúde mostraram-se extremamente persuasivos. Ainda hoje na Alemanha as pessoas têm o hábito de cultivar as pessoas, uma espécie de horta caseira para garantir benefícios psíquicos. Mas Moritz Schreber tornou-se realmente conhecido graças à invenção da ginástica terapêutica, um conjunto de procedimentos que visavam a correção física e moral - e aplicados a seus próprios filhos.\n\nO sofrimento na vida de Daniel Schreber, submetido a técnicas austeras de educação postulal e comportamento, estava apenas começando. Quando ele tinha 16 anos, seu pai teve um acidente gravíssimo: uma grande barra de ferro destacou-se de um dos aparelhos de ginástica criados por ele e atingiu sua cabeça, deixando-o com sequelas cerebrais; após três anos nesse estado, faleceu. Com a morte do pai quando o rapaz tinha 19 anos, restou-lhe como referência masculina seu irmão mais velho, Daniel Gustavo. E tudo indica que o primogenito era uma figura importante para Schreber, que, segundo o irmão, optou pela carreira jurídica. Quando Schreber tinha 32 anos, esse querido irmão, com 35, cometeu suicidio depois de sua nomeação comoheleiro de tribunal. Surgia assim para Daniel Schreber a importante tarefa de perpetuar sua prestigiosa linhagem em meio a uma série de infortúnios. Casou um ano depois com Ottlin Sabine Behr (1857-1912), 15 anos mais jovem, de família bem mais humilde que a sua.\n\nA mãe de Schreber, Louise Henrietta Pauline Haase (1815-1907), parecia ser uma figura pouco influente na vida do filho, tanto que não é muito citada nos relatos biográficos. Tudo que se sabe é que, além de ter vindo de uma família de grande prestígio intelectual, tal qual a do marido, era uma mulher deprimida, não muito afetuosa, que se submetia, assim como os filhos, ao completo domínio de Moritz Schreber. UM CORPO QUE SE DESFAZ Apesar de tudo, Daniel Schreber parecia, até aquele momento, levar uma vida normal: estudou, casou e tornou-se funcionário do Ministério da Justiça do Reino da Saxônia, no qual foi periodicamente promovido a cargos cada vez mais importantes. Devido à forte influência política da mãe tmbm gozava sua família, aos 42 anos decidiu apresentar-se como candidato nas eleições parlamentares pelo Partido Nacional Liberal. Porém, não foi aceito e teve sua primeira crise: começou a sofrer graves insônias e ideias hipocondríacas. Sentia que seus órgãos internos estavam se desfalecendo, que emagrecia exponencialmente e que os médicos o enganavam sobre seu pescoço; afirmava que a esposa havia sido enviada para longe e que nunca mais retornaria. Essa crise durou menos de um ano. Durante quase todo esse período, ficou internado na clínica do professor Paul Emil Flechsig (1847-1929), que ocupava a cátedra de psiquiatria da Universidade de Leipzig. Após o período de cuidados do renomado médico, passou um longo tempo viajando e recuperou a saúde mental. O casal Schreber desenvolveu uma enorme gratidão por Flechsig, a ponto de a esposa ter mantido um retrato de médico por muito tempo em casa.\n\nSchreber viveu bem por oito anos e, segundo suas memórias, a única tristeza nesse período foi Ottlin ter sofrido sucessivos abortos espontâneos e não terem tido filhos. Com 51 anos, foi nomeado ao cargo de máxima autoridade na área em que atuava: juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden. O cargo foi designado por escolha direta do imperador, sendo vitalício e legalmente irrecusável.\n\nFreud percebeu que esse foi um fato marcante na vida de Schreber, já que logo depois da nomeação seu estado de saúde mental piorou severamente. Ele começou a ter sonhos pelos quais revivia de forma aterrorizante os dias de sua crise anterior. Após um desses pesadelos, acordou e, num estado entre a vigília e o sono, teve a surpreendente ideia de que, \"afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula\". Curiosamente, após esse pensamento, as crises de insônia retornaram com força, assim como seus antigos pensamentos hipocondríacos. Acreditava que seu cérebro estava amolecendo, que iria morrer e, depois, que estava de fato morto, em decomposição, e que seu corpo estava tratado com total falta de respeito. Depois do ano de sua nomeação, ele fez uma nova crise e começou a ter ideias delirantes: em de terminada noite, teve um número incomum de poluções e, ao acordar, percebeu sinais de \"comunicação nervosa sobrenatural\" entre ele e seu psiquiatra, Flechsig. A partir disso, seus delírios começaram a adquirir progressivamente caráter místico e religioso: acrediteva que estava sendo perseguido para que sua alma fosse aniquilada. Tinha medo principalmente de seu próprio médico, a quem chamava \"assassino de alma\" (Seelermander - palavra absurdamente de léxico alemão). Schreber acreditava que seu corpo iria ser transformado, por meio de milagres, em um corpo feminino e serviria para abusos de Flechsig e dos assistentes.\n\nO juiz escreveu que durante um bom tempo Flechsig se configurou para ele como o centro exclusivo de seu delírio paranoico de perseguição. Freud escreveu indicando como a forma como Schreber se vinculou ao psiquiatra durante a primeira internação e depois passou a teme-lo. Também observou que o segundo surto de Schreber - o mais importante, que deu origem à sua autobiografia - foi precedido por alguns pesadelos e um devaneio, relatados em sequência, inferindo daí que, para o paciente, estavam associados. Qual seria a relação entre os sonhos e a fantasia homossexual, ou seja, entre o primeiro surto e a ideia de que deve ser agradável ser mulher no momento do coito? O psicanalista concluiu que tanto a origem do surto quanto o núcleo temático do delírio se desenvolviam em torno da posição passiva, da fantasia de homossexualidade latente e do tes sexualis de dominação.\n\nFreud valorizou de outra maneira a passagem do livro na qual Schreber declara toda a felicidade por não ter pedido gerar filhos a quem pudesse direcionar o amor dedicado ao pai e ao único irmão. Na opinião de Freud, Schreber perdeu a oportunidade durante um curso natural a suas fantasias homossexuais de desejo, ficando impedido de manter um vínculo de amor com alguém importante, investido de autoridade e do mesmo sexo, como seu pai, seu irmão ou seu chefe, uma vez que agora após a promoção ele não teve mais um superior hierárquico definido. A ausência de filhos também impediu que ele vivesse essa hierarquia no papel inversa, na qual ele mesmo seria admirado e amado como uma figura superior. Isso explicaria a importância e a intensidade de sua relação com Flechsig.\n\nPara Freud, a temática homossexual, presente no delírio, aparecia na ideia de que, \"afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula\"; já que foi depois dela que o surto ecodiu com a sensação de Schreber estar sendo perseguido por seu médico. Freud percebeu o forte vínculo mantido por Schreber com figuras masculinas importantes, redefinidas por ele em seu delírio de perseguição. O psicanalista lançou então a hipótese de que Schreber recalculou suas tendências homosexuais — ou seja, teve de abandoná-las por narra-m como força total, como se Flechsig (e Freud acreditava que o juiz construiu um simbólico para sua fantasia homossexual. o resultado do seu péptido como re-pesquísia. Explica-se assim a esta formação do delírio no qual ocorre violentamente a vontade de Deus, que quer possuir o corpo de Schreber por meio de seus raios capazes de dominar pensamentos, gestos e sensações, bem como a resistência de Schreber contra esse destino, sua luta para entender e se des-ligar dessa força opressora. Portanto, quan-do se fala em fantasia homossexual, não se trata apenas de uma expressão erótica, mas de um sistema de relações que dominam o desejo, autoridade e submissão, tensão entre gêneros, formar a-articular a experien-cia ativa e passiva do corpo. Com toda essa carga erótica presente no delírio voltado a Flechsig, a internação de Schreber na clínica tornou-se insuportável. Por esse motivo, ele passou a ser atendido em outros lugares: no asilo de Lindenhof e depois em Sonnenstein. Entretanto, o objeto do delírio era sempre transferido para a figura de autoridade do novo lugar. Schreber se acreditava envolvido em uma rede de psiquiatras per-seguidore capitaaneada por Flechsig. Enquanto estava na clínica de Flechsig, o juiz supunha ter um antídoto para as malda-des do médico: Deus estava do seu lado e nada lhe aconteceria. Entretanto, em Sonnenstein (literalmente \"pedra do sol\", em alemão), essa situação se modificou quando ele percebeu algo de diferente no Sol. Um dia, ao sentar-no pátio da instituição para ler as notas de um jornal emprestado por seu médico, esse seu próprio nome. Procurou então e chamei mas ninguém estava a seu lado. Percebeu então que a voz vinha do céu, mais precisamente do Sol, que lhe dirigia xingamentos — por exemplo, a palavra Líder (prostituta, e o seu \"ganhador\") e comentários sobre sua ação cadeira. Passou a ver no Sol um olho de Deus a observá-lo e a controlar suas mínimas ações. Deus, por outro lado, transformou-se de aliado em inimigo. Isso ocorreu, segundo Schreber, devido aos grandes poderes sedutores de Flechsig, que como sua grande persuasão a entidade divina a aliar-se a cartomante a escrita a cada vez como cartomante. Tudo isso foi revelado ao juiz pelas vozes que no início vinhão do Sol, depois dos ra-sores falantes e, por fim, de qualquer parte. Elas falavam a \"língua primal\", um ale-marciaco, cheia de emoefimoss, por meio de expressões e neologismos especialmente criados para designar a particularidade dos fenômenos maravilhosos e únicos que lhe sucediam.\nPROJEÇÃO COMO DEFESA Segundo essas vozes, Deus era agora o grande perseguidor que queria transformar Schreber em mulher para poder experimentar o prazer sexual que os humanos, em especial as mulheres, sentiam. Com isso, a finalidade de Deus era dar início a uma nova raça de seres, imensamente superior, o que era pungente, pois as pessoas estavam deixando de existir. O mundo perdia sua realidade e consistência. Não era só a alma que estava sendo levada, todos estavam sumindo — até que, por fim, não restou mais delírios não são um fato sem sentido que deve ser suprimido por meio da força, mas uma tentativa que o próprio paciente faz para se curar e se reinvestir no mundo e nas outras pessoas — que, como no delírio de Schreber, parecem perder sua realidade. Aos 65 anos Schreber adoeceu pela terceira vez: vozes e delírios retornaram com força. Após anos de sofrimento, Schreber pare-cia ter se aquietado quando aceitou a ideia de que seria transformado em mulher. Ele não mais se dirigia ao Sol para vociferar a Deus as mais pesadas calúnias nem tentava atacar seu enfermeiro-chefe por estar mancomunado com Flechsig e seu círculo de perseguidores. Ele se comportava socialmente bem. Mantinha longos diálogos sobre os mais diversos assuntos, com grande interesse, inteligência e clareza de pensamento. Sobre esse momento, ele relatou que as vozes nunca haviam deixá-do, mas estavam bem distantes, a ponto de serem incompreensíveis. Entretanto, o delírio não deixava de existir: ele ainda dizia em ocasiões especiais, que seria copulado por Deus e que Flechsig estava atrás de tudo. Essa não impediu de retomar. Mas ele estava mais ativamente Beritez, já que estava mais ativo e sua inteligência se mantinha. Passou a se interessar por sua condição legal e lutou por liberdade durante sete anos. Finalmente, nessa época que lhe imperou uma ação judicial e ter alta, utilizando o argumento de que sua doença não o impedia de cumprir adequadamente suas funções. Mas por que escreviam para estudar os problemas de Deus e não simplesmente escreveram sobre o juiz? Ele sentia que queria ser lido por todos, pois pensava que suas experiências sobrenaturais poderiam contribuir fora para a ciência — o que de fato se reverteu em lucros para a experiência de Schreber. to espaço de tempo: no mesmo ano perdeu a mãe, e sua mulher teve um derrame cerebral, que provocou afasia. Nessa época, Schreber ainda recebeu a visita de um grupo de seguidores de seu pai, exigindo que ele, como único herdeiro, permitisse que utilizassem com exclusividade o nome Schreber para fins médico-educacionais. Após esses fatos, aos 65 anos o juiz adoeceu pela terceira vez. Às vezes os olhares retornaram com força. Ele permaneceu catatônico, deitado na cama, com os olhos fechados por dias, recusando-se a alimentar-se e a levantar-se. Essa crise ocorreu concomitantemente à escrita do caso por Freud, sem que a psicanálise tivesse notícia dela. De fato, em decorrência do tumulto emocional, Schreber morreu no sanatório, por insuficiência cardíaca, aos 72 anos, após essa última eclosão da psicosse.\nRELEVÂNCIA HISTÓRICA VÁRIOS JEITOS DE ADOECER\nA interpretação freudiana do caso de Daniel Schreber revela diferenças entre a psicanálise e a psiquiatria quanto ao diagnóstico e à direcção do tratamento da psicosse. Em primeiro lugar, é interessante notar que Freud tenta reconhecer um sentido em tudo o que é afirmado por Schreber. Ele não vê no delírio um erro, mas o indício de uma produção psíquica a ser escutada, algo de verdadeiro para o paciente. Isso rompe com a abordagem dada à loucura até então. A insanidade, objeto de tratamento médico desde Philippe Pinel, era vista como fonte de erros a serem corrigidos. Segundo essa abordagem, o louco estava curado na medida em que podia proferir falas sentenças e retorna à realidade. Já para Freud, a falhação de veracidade das sentenças em si não é problema central, mas sim o caráter fixo e imutável de certeza que toma o sujeito. Haveria algo específico na relação do psíquico comum com sua fantasia, algo que impediria que esta permanecesse oculta, passando a perturbar incessantemente o sujeito.\nO criador da psicanálise não foi o único a se interessar pelo caso de Schreber ou pela questão da paranoia. Décadas antes de Freud escrever sobre o, a psiquiatra Emíl Kraepelin (1856-1926) realizou diversos estudos sobre psicopatologia e contribuiu enormemente para uma distinção mais refinada da noção nosológica de paranoia dentro do grupo das doenças. Ele propôs uma diferenciação básica entre a paranoia e a demência precoce, e caracterizada por manter a capacidade intelectual intacta a produzir delírios, que predominam sobre alucinações (distorções dos sentidos).\nEntre os autores pós-freudianos, a paranoia foi tema central e inaugural do pensamento psicanalítico inglês de Melanie Klein (1882-1960). A psicanalista conseguiu relatar com maestria o mecanismo projetivo em todos nós. Ou seja, ela identificou, em diferentes graus, aspectos paranoides atuantes no psiquismo, mesmo em pessoas não psíquicas e, sobretudo, em crianças pequenas. Segundo Melanie Klein, quanto mais insuportável a angústia no eu do sujeito e quanto menos este consegue assimilar-la e transformá-la, mais ele tende a projetar o conteúdo ruim ligado a\nCOLEÇÃO CASOS CLÍNICOS 49