·
Direito ·
História
Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora
Recomendado para você
Texto de pré-visualização
Imagens de índios do Brasil O Século XVI MANUELA CARNEIRO DA CUNHA H á vários discursos sobre os índios no século XVI toda uma literatura e uma iconografía de viagens com desdobramentos morais e filosóficos firma seus cânones ao longo do século um corpus legiferante e de reflexão teológica e jurídica elabora passada a era do escambo uma ordenação das relações coloniais paralela à conquista territorial a conquista espiritual por sua vez se expressa sobretudo em um novo gênero inaugurado pelos jesuítas e destinado a obter grande sucesso as cartas que se fazem cada vez mais edificantes Excepcionalmente temos o relato de um colono e no finzinho do século o olhar curioso da Inquisição na Bahia e em Pernambuco Os índios do Brasil são no século XVI os do espaço atribuído a Portugal pelo Papa no Tratado de Tordesilhas ele próprio incerto em seus limites algo entre a boca do Tocantins a boca do Parnaíba ao norte até São Vicente ao sul talvez um pouco além se incluirmos a zona contestada dos Carijós Os índios do rio Amazonas na época sobretudo um rio espanhol não contribuem propriamente para a formação da imagem dos índios do Brasil Essa imagem é fundamentalmente a dos grupos de língua Tupi e ancilarmente Guarani Como em contraponto há a figura do Aimoré Ouetaca Tapuia ou seja aqueles a quem os Tupi acusam de barbárie Primeiros Olhares Os portugueses fascinados pelo Oriente pouco especularam sobre o Novo Mundo Nem objeto de conhecimento ou reflexão nem sequer ainda de intensa cobiça o Brasil passou em grande parte despercebido durante os primeiros cinqüenta anos de seu contato Camões Manuela Carneiro da Cunha é professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP É autora de Antropologia do Brasil Mito História e Etnicidade São Paulo BrasilienseEdusp 1986 dedicalhe quatro magros versos evocando o pau brasil no último canto dos Lusíadas estrófe 1086 v 138141 publicados em 1572 e até o espanhol Ercilla falará mais dos brasileiros do que o poeta português É só na década de 1570 que Gandavo escreve seu Tratado da Terra do Brasil circa 1570 e sua História da Província de Santa Cruz 1576 obras provavelmente de incentivo à imigração e a investimentos portugueses semelhantes às que bem mais cedo os ingleses haviam feito para a Virgínia No prólogo à História da Provncia de Santa Cruz Gandavo fala do pouco caso que os portugueszes fizeram sempre da mesma província e diz que os estrangeiros a tem noutra estima e sabem suas particularidades melhor e mais de raiz que nósp76 Todo o interesse todo o imaginário português se concentra à época nas índias enquanto espanhóis franceses holandeses ingleses estão fascinados pelo Novo Mundo cada qual aliás a partir de regiões específicas a América dos Espanhóis é antes de tudo o México e o Peru a dos ingleses a Flórida e a dos franceses é sobretudo o Brasil NBroc 1984 159 A primeira carta sobre o Brasil a belíssima carta de 1500 escrita por Pero Vaz de Caminha a ElRei Dom Manuel fica inédita e soterrada até 1773 nos arquivos portugueses São as cartas de Américo Vespucci as autênticas e as apócrifas talvez por serem endereçadas a Lourenço de Medici e através dele ao público letrado europeu que notabilizaram a então Terra de Vera Cruz e seus habitantes Por mais exatas que sejam e certamente são mais escrupulosas do que muitos relatos posteriores as primeiras cartas já se assentam em idéias propagadas desde o Diário da Primeira viagem de Colombo elas próprias enraizadas nos relatos de viagens reais ou imaginárias de Marco Polo de Mandeville do Preste João idéias de Paraíso terreno e de fonte da juventude à sua proximidade de Amazonas e de seus tesouros mitos de origem medieval ou clássica que povoam o imaginário dos descobridores 1 e que se insinuam nas mais verazes descrições Os viajantes vêem por indícios e ouvem dos índios sabese lá em que língua o que a Europa procura e antecipa seus relatos confrontados às tradições clássicas são por sua vez sistematizados por cosmógrafos como Pedro Mártir o milanês que escreve em Sevilha que em pouco tempo estabelecem um corpo canônico de saber sobre o novo mundo realimentador da observação Terão vida particularmente longa as primeiras notícias de Colombo sobre a inocência a docilidade a ausência de crenças da gente que encontrou elaboradas segundo Gerbi 197819752728 para 1 Uma excelente análise desses antecedentes e de sua repercussão encontrase no livro clássico de Sérgio Buarque de Holanda Visão do Paraíso 1977 1958 convencer os Reis Católicos da facilidade de se dominarem terras tão prodigiosamente férteis e ricas de ouro e especiarias A carta de Pero Vaz de Caminha é na verdade um diário que registra de 22 de Abril a 10 de Maio de 1500 uma progressiva descoberta dos homens desde o primeiro instante não há dúvida de que são homens e das mulheres de Porto Seguro A primeira imagem a mesma que Colombo tivera nas antilhas é de que todos vão nus e são imberbes homens pardos todos nus sem nenhuma coisa que lhes cubrisse suas vergonhas traziam arcos nas mãos e suas setas PVCaminha 1968 177321 E Caminha comprazse em um jogo de palavras e em uma primeira comparação dizendo das moças que tinham suas vergonhas tão altas tão serradinhas e tão limpas de cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha PVCaminha ibidem 367 E mais adiante dirá de outra índia que era sua vergonha que ela não tinha tão graciosa que a muitas mulheres da nossa terra vendolhe tais feições fizera vergonha por não terem a sua como ela ibidem 40 A essa imagem de nudez que será retomada com menos talento literário por Vespucci 2 associase a idéia de inocência p25 91 Caminha com aparente candura contrasta a ingenuidade comercial e a confiança inicial destes homens que desde o primeiro dia se estendem e dormem no convés do navio com a deslealdade a cupidez e a sede de ouro e prata dos portugueses pp273053496676 Esses homens são formosos gordos e sadios como as alimárias monteses às quais f az o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas Essa idéia de não domesticação dessa gente que nada domestica nem plantas nem animais é em Caminha tão poderosa que o leva a ignorar a agricultura dos índios a não dar realce às redes e jangadas que menciona e a presumir só para ser desmentido no dia seguinte que eles sequer tenham casas onde se abriguem pp8159 6566 Gente bestial a ser amansada pp59587782 por quem Caminha nutre uma evidente simpatia e sobre a qual inaugura uma série de duradouros e etnograficamente duvidosos lugarescomuns não têm chefe ou principal sequer distinguindo o capitãomor que os recebe em toda a sua pompa pp 465227 não tem nenhuma idolatria ou adoração pp9091 80 são uma argila moldável uma tabula rasa uma página em branco e imprimirseá com a ligeiresa neles qualquer cunho que lhes quiserem dar p80 Gente em suma que não sujeita a 2 Encontramos que la tierra estaba habitada de gente toda ella desnuda así los hombres como las mujeres sin cubrirse ninguna verguenza Son de cuerpo bien dispuestos y proporcionados de color blanco Colombo diziaos brancos também mas Caminha diziaos pardos e Vespucci havia dito em 1500 de color pardo y leonado aos habitantes do caribe de cabellos negros y de poca o ninguna barba Vespucci Carta a Lorenzo de Medici Lisboa outono de 1501 in LN dOlwer 1963 541 A primeira carta sobre o Brasil a belíssima carta de 1500 escrita por Pero Vaz de Caminha a ElRei Dom Manuel fica inédita e soterrada até 1773 nos arquivos portugueses natureza como não se sujeita a si mesma a jugo algum gente montesa gente selvagem 3 Vespucci era o cosmógrafo da segunda expedição a que Dom Manuel mandou em 1501 e que percorreu a costa durante dez longos meses do cabo São Roque até São Vicente Conta que passou 27 dias comendo e dormindo entre os animais racionais da Nova Terra e é ele quem completa o inventário básico do que daí por diante se dirá dos índios4 Vespucci que fala da sua nudez não fala mais da sua inocência ao contrário é ele quem relata pela primeira vez a antropofagia indígena O retrato que faz é paradoxal entre si tudo têm em comum mas vivem em guerra cruel contra seus inimigos As razoes dessa guerra perpétua diz Vespucci são misteriosas já que não têm propriedade particular já que não guerreiam para se assenhorearem de terras ou de vassalos já que ignoram o que seja a cobiça o roubo ou a ambição de reinar Dizem eles apenas que querem vingar a morte de seus pais e antepassados Fica assim introduzida a idéia de uma guerra desinteressada embora bestial e de uma antropofagia de vingança e não alimentar distinção importante a que retornaremos mais adiante A ausência de propriedade e portanto de cobiça e de herança são elementos novos que Vespucci acentua E Vespucci também quem pela primeira vez resquício do mito da fonte da juventude fala da longevidade dos brasileiros Son gente que vive muchos anõs porque según sus descendencias conocimos muchos hombres que tienen hasta la cuarta generación de nietos No saben contar los días ni el año ni los meses salvo que miden el tiempo por meses lunares y quando quierem mostrar la edad de alguna cosa lo muestran con piedras poniendo por cada luna una piedra y encontré un hombre de los más viejos que me señaló con piedras haber vivido 1700 lunas que me parece son 130 años contando trece lunas por año Vespucci Carta a Lorenzo de Médici Lisboa outono de 1501 in LNdOlwer 1963 542 5 De resto com pequenos 3 Caminha não usa a palavra selvagem O termo é usado pelos franceses Thévet e Léry e é glosado por Montaigne ils sont sauvages de mesme que nous appellons sauvages les fruicts que nature de soy et de son progres ordinaire a produicts là où à la vérité ce sont ceux que nous avons alterez par nostre artifice et detournez de lordre commun que nous devrions appeller plutost sauvages Montaigne 1952 1580 234 Inversão típica que Rousseau retomará a selvageria não antecede a civilização ao contrário é seu produto enquanto corrupção e desvio do curso espontâneo da natureza 4 A palavra índios é aqui usada anacronicamente ela parece começar a ser empregada por meados do século aparentemente para designar os indígenas submetidos seja aldeados seja escravizados por ocasião ao termo mais geral gentio que designa os indígenas independentes Caminha e Vespucci dizem gente homens e mulheres Ao longo do século usarseão para designar as etnias os termos gerações nações e linhagens Pela metade do século começarseá também a empregar a expressão negro da terra por escravo além dos termos tradicionais gentio brasil e bra sileiro 5 Até Jean de Léry 1972 1578 73 ainda se fala da longevidade dos brasileiros acréscimos sobre costumes matrimoniais não necessariamente corretos mas também com boa descrição de casas redes e adornos Vespucci repete a Caminha essa gente não tem lei nem fé nem rei não obedece a ninguém cada um é senhor de si mesmo Vive secundam naturam e não conhece a imortalidade da alma 6 Está assim formado o lastro de uma concepção dos brasileiros que vigorará com poucos retoques entre os que praticarem o escambo de paubrasil papagaios macacos e outras riquezas ou seja entre os portugueses até 1549 e entre os outros europeus até muito mais tarde Os sucessivos navios de várias nacionalidades e os intérpretes normandos ou degradados portugueses aqui estabelecidos devem ter consolidado esse saber de tal forma que em 1519 o italiano Antonio Pigafetta de passagem na expedição de Fernão de Magalhães fornece já algo como um dictionnaire des idées recues sobre o Brasil do início do século XVI Condensado já tudo está lá brasileiros e brasileiras vão nus vivem até 140 anos não são cristãos mas também não são idolatras porque não adoram nada comem a seus inimigos tecem redes fazem canoas moram em grandes casasAPigafetta 1985152457 ss É somente a partir da década de 50 que o conhecimento do Brasil se precisará e agora de maneiras divergentes Teremos duas linhas divisórias básicas uma que passa entre autores ibéricos ligados diretamente à colonização missionários administradores moradores e autores não ibéricos ligados ao escambo para quem os índios são matéria de reflexão muito mais que de gestão a outra que separa nesse período de intensa luta religiosa autores usados por protestantes de autores usados por católicos Nesta última categoria temos o detestável pedante condescendente e segundo o huguenote Léry mentiroso franciscano André Thévet que afirma ter visto o que não viu ter estado onde não esteve e preenche suas lacunas com fastidiosos e desconexos exemplos clássicos para cada uma das instituições descritas 7 Contrapondose a Thévet 6 Os jesuítas por motivos teológicos e jurídicos prestarão grande atenção meio século mais tarde aos usos matrimoniais e às crenças dos índios Sua busca como veremos vai no sentido de encontrar pelo menos em embrião instituições ou crenças sobre a qual possam se assentar costumes cristãos são eles que atestam contrariando Vespucci a crença tupi na imortalidade da alma 7 Thévet conseguiu com tudo isso uma consagração invejável nomeado cosmógrafo do rei conservador do Cabinet do rei ou seja um museu de curiosidades ele foi comparado por Ronsard a Ulisses aliás mais do que Ulisses por ter visto e por ter escrito o que viu Ainsi tu as sur luy un double davantige Cest que tu as plus veu et nous a ton voyage Escrit de ta main propre et non pas luy du sien apud NBroc 1984 153 Mas Montaigne não se ilude e publica nos seus Canibais um trecho ferino prova velmente dirigido a Thévet preferindolhe seu próprio informante o normando seu empregado que havia passado de dez a doze anos na França Antártica Ainsi je me direta ou indiretamente temos também dois autores excepcionais que estiveram entre os Tupinambá mais ou menos na mesma época mas em posições simétricas um como inimigo destinado a ser comido outro como aliado o artilheiro do Hesse Hans Staden que viveu prisioneiro dos Tupinambá e os descreve como inteligência e pragmatismo em livro publicado originalmente em 1557 que conheceu imediato sucesso quatro edições em um ano e o calvinista Jean de Léry que passa alguns meses em 1557 com os mesmos Tupinambá quando a perseguição que Villegagnon move aos huguenotes os obriga a se instalarem em terra firme O livro de Lery só é publicado em 1578 e embora o autor afirme que o redigiu em 1563 várias passagens atestam interpolações posteriores a esta data Seja como for a edição em 1592 em Francforte da terceira parte da Coleção de Grandes Viagens ilustrada pelo ourives gravurista e propagandista huguenote Theodor de Bry que reunia os livros de Hans Staden e de Jean de Léry publicados simultáneamente em alemão e em latim consagra a influência desses autores fundamentais Também republicado alguns anos mais tarde por Bry provavelmente por atestar os péssimos hábitos dos conquistadores espanhóis que chegam entre outras coisasa devorar enforcados quando a fome os aperta em Buenos Aires está o mercenário alemão Ulric Schmidel que passou vinte anos perambulando pelo rio Paraguai a partir de 1537 e que fornece uma espécie de roteiro gastronômico das múltiplas etnias por que passou entre os quais os carijós O Teu e o Meu Um dos traços que mais será celebrado nesse contexto sobretudo por Jean de Lery é sem dúvida o da suposta ausência de propriedade material e de cobiça com sua crítica explícita a sociedades movidas pelo lucro e pelo entesouramento pex Jde Léry 1972 1578 125126180 230 Não que os Tupinambá não desejassem bens materiais e todo o comércio baseavase nesse desejo simplesmente não acumulavam não transmitiam a herdeiros e entre si partilhavam a comida HStaden 19721557 167 AThévet 19721558 144 Têm estes Tupinambás uma condição muito boa para frades franciscanos escreverá Soares de Sousa 1971 1587313 que neste ponto concorda com os autores não ibéricos porque o seu fato e quanto têm é comum a todos os da sua casa que querem usar dele assim das ferramentas que é o que mais estimam como das suas roupas se as têm e do seu mantimento os quais quando estão comendo pode comer com eles quem quiser ainda que seja contrário sem lho impedirem nem fazerem por isso carranca contente de cette information sans m enquérir de ce les cosmographes en disentMontaigne 19521580 233234 Sem F Sem L Sem R Desde Caminha e Vespucci e já vulgarizada a idéia em 1515 na Nova Gazeta Alemã apud SBde Holanda 19771959 106 mencionase com certa ambivalência seria o éden seria a barbárie a ausência de jugo político e religioso entre os brasis A idéia tornarse lugarcomum ao longo do século pex Thévet 19781558 98 mas ganha com Gandavo uma forma canónica em que palavras e coisas se confundem A lingua deste gentio toda pela Costa he huma carece de três letras scilicet não se acha nella F nem L nem R cousa digna de espanto porque assi não têm Fé nem Lei nem Rei e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente PMGandavo 1980 1570 52 Uma década e meia mais tarde Gabriel Soares de Sousa retoma a fórmula de Gandavo com particular graça Faltamlhes três letras das do ABC que são FLR grande ou dobrado coisa muito para se notar porque se não têm F é porque não têm fé em nenhuma coisa que adorem nem nascidos entre os cristãos e doutrinados pelos padres da Companhia têm fé em Deus Nosso Senhor nem têm verdade nem lealdade e nenhuma pessoa que lhes faça bem E se não têm L na sua pronunciação é porque não têm lei alguma que guardar nem preceitos para se governarem e cada um faz lei a seu modo e ao som da sua vontade sem haver entre eles leis com que se governem nem têm leis uns com os outros E se não têm esta letra R na sua pronunciação é porque não têm rei que os reja e a quem obedeçam nem obedecem a ninguém nem ao pai o filho nem o filho ao pai sic e cada um vive ao som da sua vontade para dizerem Francisco dizem Pandeo para dizerem Lourenço dizem Rorenço sic para dizerem Rodrigo dizem Rodigo sic e por este modo pronunciam todos os vocábulos em que entram essas três letrasGSde Sousa 1971 1587 302 Na França onde os mercadores normandos continuam prosperando com o comércio de paubrasil obtidos por escambo com os Tupinambá essa carência de letras e de jugos não preocupam mas ao contrário fazem sonhar Ronsard em sua Complainte contre Fortune de 1559 fala dessa América da Idade do Ouro para onde deseja ir Où le peuple incognu Erre innocemment tout farouche et tout nu D habis tout aussi nu qu il est nu de malice Qui ne cognoist les noms de vertu ny de vice De Sénat ni de Roy qui vit à son plaisir Porté de l apétit de son premier désir O Brasil e os brasileiros estão lá em tão alta estima que em 1550 quando o rei Henrique II e a rainha Catarina de Médicis fazem sua entrada triunfal em Ruão éihes oferecida uma festa brasileira Para a Colombo ao opor os pacíficos antilhanos aos caribes insulares que os devoram permite uma primeira localização americana desse fantasma circunstância trezentos figurantes entre verdadeiros índios de trazidos à França marinheiros normandos e prostitutas todos despidos à moda Tupinambá representam cenas de caça de guerra de amor e até de abordagem a um navio português Os choupos são pintados e carregados de bananas papagaios e macacos são soltos no arvoredo FDenis 1851 O Brasil é o paraíso terreal Cães Canibais Paradoxalmente a outra imagem que se vulgariza e que se torna emblemática do Brasil é a dos índios como canibais Em 1540 por exemplo o mapa de Sebastian Munster na Geografia de Ptolomeu publicada em Basileia coloca laconicamente no espaço ainda largamente ignoto entre a boca do Amazonas e a boca do rio da Prata a palavra Canibali e a ilustra com um feixe de galhos de onde pendem uma cabeça e uma perna Schwartz e Ehrenberg 1980 p50 pl 18 e p45 São cãis em se comerem e matarem escreverá Nóbrega Nóbrega in Leite volII321 implicitamente evocando a assimilação que o Renascimento fez entre canibais e cinocéfalos homens com cabeça de cães como explica Rabelais no seu glossário do Quarto Livro de Pantagruel Canibales peuple monstrueux en Afrique ayant la face comme chiens et aboyant au lieu de rire Rabelais 19551552 737 ps canibais são na verdade um fantasma uma imagem que flutua por muito tempo no imaginário medieval sem lograr ser geograficamente atribuído Colombo ao opor os pacíficos antilhanos aos caribes insulares que os devoram permite uma primeira localização americana desse fantasma assimilando caribes e canibais numa sinonimia que irá perdurar no século XVIII até à Enciclopédia 8 Antropófagos Mas Não Canibais Os Tupi no entanto não são canibais e sim antropófagos a distinção que é num primeiro momento léxica e mais tarde quando os termos se tornam sinônimos 9 semântica é crucial no século XVI e é ela quem permitirá a exaltação do índio brasileiro A diferença é esta canibais são gente que se alimenta de carne humana muito distinta é a situação dos tupi que comem seus inimigos por vingança É assim que Pigafetta distingue os brasileiros que são antropófagos dos canibais imediatamente ao sul APigafetta 1985 1524 Thévet que assimila canibais caribes insulares das Antilhas e possivelmente os caetés ou os potiguaras escreve Os canibais cujas terras vão do Cabo de Santo Agostinho às proximidades do Marinhão são os mais cruéis e desumanos de todos os povos americanos não passando de uma canalha 8 O verbete canibais na Grande Encyclopédie figura com a seguinte redação canniba les voyez Caraibes ou Cannibales Sauvages insulaires de l Amérique qui possèdent une partie des les Antilles tristes rêveurs paresseuxvivant cmnmunêment un sièle Ils mangent leurs prisionniers rôtis et en envoient les morceaus à leurs amis 9 Segundo Michèle Duchet 197738 a sinonímia entre canibais e antropófagos vulga rizase a partir de Montaigne Mesmo depois de assimiladas as duas palavras porém a diferença que encerravam permanece com a mesma conotação moral habituada a comer carne humana do mesmo jeito que comemos carne de carneiro se não até com maior satisfação AThevet 19711558 199 Thévet chega a declarar que os canibais alimentamse exclusivamente de carne humana AThevet 1978 1558 100 Mas os Tupinambá se comem aos inimigos fazem isto não para matar a fome mas por hostilidade por grande ódio HStaden 176 Quanto a Américo Vespucci o primeiro a falar da instituição entre os tupi uma leitura desatenta que poderia sugerir que ele esteja relatando uma antropofagia alimentar O que ele diz no entanto falando da dieta variadíssima dos índios ervas frutas ótimas muito peixe mariscos ostras camarões e caranguejos é que quanto à carne por não terem cachorros que os ajudem na caça a que mais comem é carne humana Vespucci Carta a Lorenzo de Medici Lisboa outono de 1501 in LNdOlwer 1963 542 Um ano antes em outra carta relatando sua viagem à ilha da Trinidad Vespucci havia falado aí sim dos canibais que vivem de carne humana Vespucci Carta a Lorenzo de Mediei Sevilha 18071500 in LNdOlwer 1963 43 A antropofagia nisso não se enganaram os cronistas é a Instituição por excelência dos tupi é ao matar um inimigo de preferência com um golpe de tacape no terreiro da aldeia que o guerreiro recebe novos nomes ganha prestígio político acede ao casamento e até a uma imortalidade imediata Todos homens mulheres velhas e crianças além de aliados de outras aldeias devem comer a carne do morto Uma única exceção a esta regra o matador não come sua vítima Comer é o corolário necessário da morte no terreiro e as duas práticas se ligam Não se têm por vingados com os matar sinão com os comer ABlasquez a Loyola Bahia 1557 in Navarro e outros 1988 p 198 Morte ritual e antropofagia são o nexo das sociedades tupis 10 São esses canibais que conhecerão com Montaigne uma consagração duradoura Tornamse a máconsciência da civilização seus juizes morais a prova de que existe uma sociedade igualitária fraterna em que o Meu não se distingue do Teu ignorante do lucro e do entesouramento em suma a da Idade de Ouro Suas guerras incessantes não movidas pelo lucro ou pela conquista territorial são nobres e generosas Regidos pelas leis naturais ainda pouco abastardas estão próximos de uma pureza original e atestam que é possível uma sociedade com peu dartífice et de soudeure humaine Em uma passagem que Shakespeare retomará na sua Tempestade 10 Há uma extensa literatura a respeito da morte guerreira e do canibalismo Tupinambá instituição central dessa sociedade Para analises vejamse por exemplo Métraux 19671928 Fernandes 19631949 Clastres 1972 Cunha e Castro 1986 Montaigne resume essas virtudes C est une nation en laquelle il ny a nulle espèce de trafique nulle cognoissance de lettres nulle science des nombres nul nom de magistrat ny de supériorité politique nul x usage de service de richesse ou de pauvreté nuls contracts nulles successions nuls partages nulles occupations qu oysives nul respect de parenté que communnuls vestemens nulle agriculture nul métal nul usage de vin ou de bled Les paroles mesmes qui signifient le mensonge la trahison la dissimulation Iavarice I envie la détraction le pardon inouies Montaigne 19521580 235236 11 Até sua culinária é sem artifícios Este resumo das virtudes dos canibais com seus lapsos evidentes a agricultura por exemplo existe entre os Tupis 12 não é um discurso de etnólogo e sim de moralista e como tal deve ser entendido constitui o advento de uma duradoura imagem a do selvagem como testemunha de acusação de uma civilização corruptora e sanguinária Não é fortuito que Montaigne no fim de seu ensaio mencione as objeções que ouviu de três índios brasileiros com quem o rei Carlos IX que entrava em Ruão em 1562 após a rebelião e a subjugação da cidade conversou Estranhavam que homens feitos obedecessem a uma criança o rei E estranhavam que existissem na mesma sociedade ricos e mendigos Montaigne ibidem 2434 Semelhanças Dessemelhanças Procuramse de um lado semelhanças continuidades Os índios são humanos ninguém que os tenha visto o põe em dúvida no século XVI a bula de Paulo III em 1534 serve menos provavelmente para dissipar dúvidas a respeito do tema do que para reivindicar a 11 Comparase a versão de Shakespeare datada de 1611 na orada de Gonzalo na Tempestade ato II cena I I the commonwealth I would by contraries Execute all things for no kind of traffic Would I admit no name of magistrate Letters should not be known riches poverty And use of service none contract succession Bourn bound of land tilth vineyard none No use of metal corn or vine or oil No occupation all men idle all And women too but innocent and pure No sovereignty All things in common nature should produce Without sweat or endeavour treason felony Sword pike knife gun or need of any engine Would I not have but nature should bring forth Of its own kind all foison all abundance To feed my innocent peopler 12 Essa primitivização do tupi com eliminação sistemática da referência à sua agricul tura percorre o século XVI Pero Vaz de Caminha poderia não têla observado nos curtos dias que passou na costa mas Vespucci e Pigafetta não a mencionam tampouco Mais deliberadamente ainda as gravuras com que Theodor de Bry ilustra o relato de Hans Staden omitem detalhes de agricultura que figuravam nas xilogravuras em que se inspirou como observa BBucher 197756 jurisdição da Igreja sobre uma parcela do globo Com o Novo Mundo descobrese também uma Nova Humanidade Resta o problema crucial de inserila na economia divina o que implica inserila na genealogia dos povos Para isso não há outra solução senão a da continuidade senão abrirlhe um espaço na cosmologia européia Por que a humanidade é uma só os habitantes do Novo Mundo descendem necessariamente de Adão e Eva e portanto de um dos filhos de Noé provavelmente do maldito Cam aquele que desnudou seu pai razão especula Nóbrega da nudez dos índios como camitas e descendentes de Noé os Tupi da costa guardariam aliás uma vaga lembrança do dilúvio sabem do dilúvio de Noé bem que não conforme a verdadeira história Nóbrega 19881549 91 suficiente no entanto para atestar sua origem 13 E por que não poderiam ter ficado à margem da Boa Nova teriam sido visitados pelo apóstolo São Tomé que seria lembrado e cujas pegadas Nóbrega teria ido ver em 1549 na Bahia gravadas na pedra sob o nome levemente deturpado de Sumé ou Zomé Nóbrega 1988 1549 7891101 14 Há aí claramente toda uma problemática de confluência em que a mitologia tupi de Sumé e do dilúvio é interpretada como vestígio confuso e distorcido de uma origem e de um conhecimento comuns à humanidade A essa reciclagem do mito de Sumé já evocada desde 1515 na Nova Gazeta Alemã 15 e que visa tornar inteligível e teologicamente aceitável para os jesuítas uma situação totalmente inédita corresponderá por parte dos índios uma tentativa análoga de achar lugar para os recémchegados em sua cosmologia assignandolhes inicialmente o lugar de caraibas ou seja de profetas Thévet 1978 1558 100 que Hans Staden saberá usar quando prisioneiro dos Tupinambá para salvar a pele Por outro lado na França e mais como eco na Inglaterra as viagens ou melhor os relatos de viagens darão início a uma reflexão humanista sobre a dissemelhança Notase porém que pressuposto básico aqui também é uma similitude suficiente para garantir a comparabilidade pois a reflexão renascentista é muito menos uma tentativa de compreender o outro do que de se ver a si mesmo em perspectiva de se compreender a si mesmo em um mundo cuja 13 Sobre a lembrança e as versões do dilúvio vejamse entre outros HStaden 1974 1557 174 J de Léry 19741578 1656 AThévet 19531575 39404345 14 O mito missionário de Sumé e no Perú de Pay Tumé ampliase como bem observa Sérgio Buarque de Holanda em estudo magistral que lhe explicita as raízes e os desdo bramentos quando passa para as colônias espanholas No Brasil avalia Sérgio Buar que a história não passa se tanto de um mito vagamente propedêutico SBHo landa 1977125 15 Esse relato Neue Zeitung publicado em 1515 e baseado em expedição de ano anterior já menciona entre os brasis e a recordação de São Tomé suas pegadas e suas cruzes expandindo assim a lenda de São Tomé originalmente apóstolo das índias Orientais SBHolanda 19771959 104 ss ordem com as guerras de religião passou a ser relativa O selvagem que Jean de Léry põe em cena e que é um dos únicos personagens falantes do século por mais real que seja sua fala e a tradução interlinear que Léry fornece do diálogo atesta sua veracidade é nao obstante figura de retórica contraponto positivo de todos os horrores que o huguenote perseguido que denunciar em sua França natal FrLestringant 1983 Shakespeare com seu infame Caliban anagrama de canibal e tão retórico quanto o Tupinambá de Léry só inverte os valores sem inverter os personagens e cria assim um anagrama semântico ao índio de Montaigne Nos jesuítas no entanto preocupados com a gestão das almas a dissemelhança é assunto de outro tipo de reflexão não sobre si mesmo senão sobre o estatuto do alheio Reflexão cuidadosa de quem não se pode deixar enganar e que imputa à semelhança um caráter ilusório Ilusão que provem do grande deceptor o Demônio que faz da semelhança um arremedo as santidades santos ou caraíbas profetas tradicionais que assumem no processo colonial aspectos milenaristas são obra de inspiração sua FCardim 1980 8788 Nóbrega aos Pes de Coimbra Baía agosto de 1549 in SLeite volI 150151 Há nas santidades uma competição implícita pela liderança espiritual e material Mas há também um esforço notável simétrico ao dos missionários de abranger o dissemelhante de incorporar e tornar inteligíveis os estrangeiros e suas crenças Colocada sob suspeita e passada ao crivo dos valores que encerra a semelhança passa a não ser percebida em 1554 dois irmãos da Companhia Pero Correia e João de Souza são mortos a frechadas pelos Carijós que teriam sido incitados por um espanhol Os irmãos relata Anchieta de segunda mão aceitam seu martírio com força de alma todos os missionários anseiam por fecundar com seu sangue a seara de almas que está sendo plantada o topos é recorrente por exemplo em Anchieta e em Nóbrega Não foi pequena escreve Anchieta ao relatar a morte dos irmãos a Santo Inácio de Loyola a consolação que recebemos de morte tão gloriosa desejando todos ardentemente e pedindo a Deus com orações contínuas morrer deste modo Anchieta a Loyola São Vivente fim de março de 1555 in HViotti org Anchieta Cartas São Paulo ed Loyola 98 A descrição e os anseios encontram paralelos claros na descrição da morte ideal do guerreiro Tupi Digna do guerreiro só a morte cerimonial nas mãos dos inimigos após um enfrentamento em que se ressalta a dignidade e a altivez de quem vai morrer A única sepultura almejada é o estômago dos inimigos Até os cativos julgam que lhes sucede nisso coisa nobre e digna deparandoselhes morte tão gloriosa como eles julgam pois dizem que é próprio de ânimo tímido e impróprio para a guerra morrer de maneira Os índios são humanos ninguém que os tenha visto o põe em dúvida no século XVI que tenham de suportar na sepultura o peso da terra que julgam ser muito grande Anchieta a Loyola São Paulo de Piratininga l de Setembro de 1554 ibidem p74 O trecho faz parte de carta escrita por Anchieta a Santo Inácio apenas 6 meses antes da outra e a semelhança com o martírio dos irmãos jesuítas chama nossa atenção mas não a de Anchieta mesmas cenas mesmo ânimo mesma crença no valor de tal morte Mas são valores diferentes e esta diferença cega o jesuíta incapaz de perceber a estrita semelhança entre as cenas que descreve O índio dos Jesuítas Há vários gêneros na literatura jesuítica do períodoe talvez com exceção da lírica todos eles pedagógicos Há as cartas a que já nos referimos que mais do que simples relatos são também assunto para reflexão e estudo na metrópole Há o catecismo de Anchieta Há o teatro ainda de Anchieta que pretende fornecer ao índio uma nova autoimagem Há por fim uma peça bastante extraordinária pelo realismo de pelo menos sua primeira parte que é o Diálogo da Conversão do Gentio em que Nóbrega põe em cena as dúvidas e os preconceitos dos missionários deixando perceber que a visão jesuíta dos índios não é homogênea Ele próprio aliás parte de uma posição humanista e letrada para chegar a um pragmatismo de administrador comparemse as cartas de 1549 ano da chegada de Nóbrega ao Brasil em que louva aos índios por não entesourarem riquezas e partilharem seus bens e por em muitas coisas guardarem a lei natual Nóbrega 1988 100 com as cartas desencantadas dos anos subseqüentes O Diálogo da Conversão do Gentio é escrito por Nóbrega na Bahia em 1556 e 1557 põe cena dois jesuítas que não são padres e sim irmãos e que representam a voz corrente entre os menos graduados da Companhia de Jesus Um dos irmãos é pregador outro ferreiro e Nóbrega acaba evangelicamente dando ao ferreiro o papel de maior sabedoria A conclusão de Nóbrega é otimista não há por que os missionários desesperarem da conversão dos índios mas a discussão inicial que ele imputa aos dois irmãos é reveladora de um hiato entre uma visão vulgar do missionário e uma versão teologicamente elaborada O gentio não tem rei se o tivera poderseiam converter reinos como se dera no tempo dos apóstolos como se dava então na América Espanhola e se estava tentando no Oriente 16 A conversão portanto era forçosamente de natureza 16 A questão da lei e da sujeição é ponto de algumas hesitações por parte dos jesuítas Ora declaram que de nada vale serem os índios christãos por força e gentios na vida e nos costumes ora mais freqüentemente desabafam como Anchieta Não se pode por tanto esperar nem conseguir nada em toda esta terra na conversão dos gentios sem individual Mas os gentios careciam de fé não adoravam coisa alguma Como não se apegavam a velhos ídolos tampouco se aferravam à nova fé Sabéis qual hé a mor dificuldade que lhes acho Serem tãm fáciles de diserem a tudo si ou pâ ou como vós quizerdes tudo aprovão logo em com a mesma facilidade com que dizem pâ sim dizem aani não Nóbrega in Leite 1954 vol II 322 Daí sua inconstância Com um anzol que lhes dê os converterei a todos com outros os tornarei a desconverter por serem incostantes e não lhes entrar a verdadeira fee no coração Nóbrega in Leite volII p320 Falta aos gentíos a lei que os tornaria políticos membros de uma sociedade civil que lhes conferiria a razão estirpandolhes a rudeza e a bestialidade em que vivem Este diagnóstico cru de que os índios carecem de rei de lei e de razão é o mesmo que o Irmão Antonio Blázquez expõe sem rodeios teológicos em carta de 1555 aos irmãos de Coimbra O Hermanos míos en Jesú Christo charíssimos quántas lágrimas derramarían vuestros ojos si viéssedes estas criaturas de Dios vivir quassi a manera de vestias quase à maneira de bestas sin rey sin ley y sin razón encarniçados en comer carne humana y tan embebidos en esta bruteza que antes consentirán perder quanto tienen que dar un negro contrario que tienen determinado de comer 17 Entre ellos no ay amor ni lealtad Véndense unos a otros estimando más una cunã o podón que la libertad de un sobrino o pariente más cercano que truecan por hierro y es tanta su misseria que a las vezes se lo cambian por un poco de harina 18 No tienen a quien obedezcan sino a sus próprias voluntades y de aquí es que hazen quanto se les antoja encinándose con ellas a vicios sucíssimos y tan torpes que tengo por mejor callarlos debaxo de silencio que escriviendo descubrir maldades tan enormes Ir Blázquez Baía 8 de Julho de 1555 in Leite vol11 p252 A este retrato negro e cheio de contradições da torpeza e da bestialidade dos índios podese opor o discurso ainda humanista de Nóbrega que contrasta os filósofos empedernidos da antiguidade aos índios que apenas infringem a bagatela de dois ou três mandamentos e de resto entre si vivem mui amigavelmente Em suma resume virem pára cá muitos cristãos que conformandose a si e a suas vidas com a vontade de Deus sujeitem os índios ao jugo da escravidão e os obriguem a acolherse à bandeira de Cristo Anchieta a Loyola São Vicente fim de Março de 1555 in Leite volII p207 Nóbrega acaba por optar pela sujeição que é posta em prática pelo gover nador Mem de Sá 17 Referência à resitência dos índios a venderem como escravos aos portugueses os prisio neiros destinados a serem ritualmente mortos em terreiro 18 Esta passagem que parece contradizer a frase anterior é uma referência à questão de venda de si mesmo e dos seus filhos em escravidão praticada em momentos de penúria e que deu origem a uma discussão jurídica em que os jesuítas tomaram parte vide Cunha 19861985 A sexualidade indígena como é de se prever suscitou grande interesse tanto entre cronistas filosofantes quanto entre gestores de almas Nóbrega sua bemaventurança é matar e ter nomes e esta é sua glória por que mais fazem À lei natural não a guardam porque se comem são muito luxuriosos muito mentirosos nenhuma coisa aborrecem por má e nenhuma louvam por boatêm crédito em seus feiticeiro Eis tudo Nóbrega in Leite volIIp344345 Sem fé mas crédulos os jesuítas imputam aos índios uma extrema credulidade e a coisa é só aparentemente contraditória No fundo a fé é a forma centralizada da crença excludente e ciumenta A carência de fé de lei de rei e de razão política não são senão avatares de uma mesma ausência de jugo de um nomadismo ideológio que faz pendant a atomização política A credulidade é uma forma de vagabundagem da fé É por isso que a sujeição tem de se dar em todos os planos ao mesmo tempo nisso parecem convergir afinal tanto os jesuítas quanto os colonos e os administradores A sujeição política é a condição da sujeição religiosa Seja como for entre feiticeiros e jesuítas instaurase desde cedo uma concorrência que se trava curiosamente no terreno ora de uns ora de outros ou seja os jesuítas competem em curas e milagres com os xamãs arvorandose em xamãs mais poderosos pex ANavarro Carta da Bahia 1550 in Navarro 198876 enquanto os xamãs desafiam aos padres um caraiba em 1550 afirma que transformaria a todos em pássaros destruiria a igreja e o engenho e a lagarta das roças que os padres não destruiam ele a eliminaria Nóbrega a Torres Baía 5 de julho de 1559 in SLeite 1954 III 53 É notável que os padres embora muito mais céticos do que será no século XVII o Pe Montoya não contestam necessariamente aos feiticeiros a realidade de suas curas milagres e prodígios contestamlhes sim a fonte desses poderes sobrenaturais que não viriam de Deus senão do Demônio Em demônios ou espíritos os anhang pelo menos à falta de crerem em Deus os índios acreditam HStaden 1974 1557 158 e sem grandes hesitações os europeus também AThévet 19781558 115 Jde Léry 19721578 15960 FCardim 87 De Bry a partir de xilogravura da edição original de Jean de Léry difunde a imagem de índios atormentados constantemente por esses demônios E Anchieta chega a montar todo o seu teatro destinado aos catecúmenos indígenas em cima de um roteiro único em que vários demônios entre os quais faz às vezes irreverentemente figurar seus próprios inimigos como o Tupinambá Aimbiré que o manteve prisioneiro tentam impedir as almas de chegarem ao céu Numa das versões inspirado Anchieta encena o ritual máximo da antropofagia tupi um principal quebra a cabeça a um diabo o Macaxera e sobre ela toma novo nome Anhangupiaraou seja inimigo de Anhang Pronto Matei Macaxera Já não existe o mal que era Eu sou Anhangupiara J de Anchieta 1977 1589 244 Luxuriosos Sodomitas A sexualidade indígena como é de se prever suscitou grande interesse tanto entre cronistas filosofantes quanto entre gestores de almas Jean de Léry sustenta segundo seu uso que em matéria de lascívia os europeus são piores que os brasileiros Jde Léry 19721578 177 Os costumes matrimoniais a poliginia associada ao prestígio guerreiro o levirato o avunculado ou seja o privilégio de casamento do tio materno sobre a filha da irmã a liberdade prénupcial contrastando com o ciúme pela mulher casada e o rigor com o adultério a hospitalidade sexual praticada com aliados mas também com os cativos a iniciação sexual dos rapazes por mulheres mais velhas os despreocupados casamentos e separações sucessivos tudo isto era insólito Os jesuítas debruçarseão com especial cuidado sobre estes costumes vide pex Anchieta 1846 e isto por uma razão pratica tratavase de construir famílias cristãs com os neófitos indígenas Para tanto era preciso reconhecer a verdadeira esposa entre as múltiplas esposas sucessivas ou concomitantes ou seja a primeira que havia sido desposada com ânimo de ser vitalícia Por outro lado as regras de aliança dos índios contrariavam os impedimentos canônicos e os missionários logo são levados a pedirem dispensas ao Papa dos impedimentos pelo menos de terceiro e quarto grau Quanto à sodomia fazia parte dos grandes tabus europeus e na América parece estar sempre associada ao canibalismo como se houvesse equivalência simbólica entre se alimentar do mesmo e coabitar com o mesmo Essa correspondência entre homofagia e homossexualismo é discernível entre outros em Michele de Cuneo Cortés e Oviedo significativamente as duas acusações são rechaçadas em conjunto por Las Casas AGerbi 19781975 4849 118 412 e 424 No Brasil sua existência como entre os portugueses haja vista a Inquisição é certa mas seu estatuto moral entre os índios é incerto Jean de Léry e Thévet mencionamna para dizer que é reprovada pelos índios Jde Léry 19721578 174 e AThévet 19531575 137 Os jesuítas curiosamente não parecem falar dela Mas Gabriel Soares de Sousa 19711587 308 já para o fim do século carrega nas tintas São os Tupinambo tão luxuriosos que não h A pecado de luxúria que não cometamsão muito afeiçoados ao pecado nefando entre os quais se não têm por afronta e nas suas aldeias pelo sertão h A alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres publicas Reencontramse aqui as aposições clássicas entre uma antropofagia nobre de vingança e o apetite bestial por carne humana cujo paradigma são os citas nórdicos de Hérodoto Outras Nações de índios Aos poucos vão se conhecendo sobretudo terra adentro outras castas de gentio Pelo fim do século Gabriel Soares de Souza e Fernão Cardim fornecem inventários complexos destas outras etnias Um dos atributos que é repartido entre elas é sintomático da colonização as nações são leais ou traiçoeiras o que supõe sua inserção na rede de alianças coloniais e deixa transparecer uma política indígena com estratégias próprias fazendo uso da política indigenista Mas no século XVI ainda prevalece uma visão que adere estreitamente ao etnocentrismo tupi Denunciase assim a inaudita selvageria dos Aimorés de Porto Seguro e de Ilhéus São estes aimorés tão selvagens que dos outros bárbaros são havidos por mais que bárbaros GSde Sousa 19711587 79 São nômades não lhes conhecendo aldeias Não plantam roças e vivem de caça e coleta de frutos silvestres sua fala é travada e não é passivel de escrita São traiçoeiros e não enfrentam os inimigos em campo aberto senão lhes armam ciladas Comem sua caça crua ou mal assada omofagia que prenuncia o que constitui o paroxismo da selvageria sua antropofagia alimentar GSde Sousa ibidem tema crucial que tratamos acima Distinguese assim um canibalismo de vingança o dos Tupi e um canibalismo alimentar dos bárbaros Aimorés dos Oitacás e alguns mais Uns seguem à risca um ritual elaborado e se comem carne humana não é por gosto ou apetite que a comem APigafetta 19851524 58 mas por vingança Os outros apenas comem para se alimentar Comem estes selvagens carne humana f or mantimento o que não tem o outro gentio que a não come senão por vingança de suas brigas e antiguidade de seus ódiosGSde Sousa 19711587 79 Reencontramse aqui as oposições clássicas entre uma antropofagia nobre de vingança e o apetite bestial por carne humana cujo paradigma são os citas nórdicos de Hérodoto A antropofagia e suas modalidades será no século XVI um tema quase obsessivo e que servirá de operador para as grandes cisões do século Os casos de antropofagia alimentar e de crueldades inauditas durante as guerras de religião na França ou na conquista espanhola das Américas são rememorados acusatoriamente por católicos e protestantes De um lado como de outro publicamse cenas de esquartejamento e suplícios atribuídos ora a calvinistas ora a católicos Dentro da selvageria em que a França se encontra imersa é como se a antropofagia Tupinambá figurasse como a forma mais civilizada dentro do gênero Em 1500 Caminha viu gente em Vera Cruz Falavase então de homens e mulheres O escambo povoou a terra de brasis e brasileiros Os engenhos distinguiram o gentio insubmisso do índio e do negro da terra que trabalhavam Os franceses que não conseguiram se firmar na terra viram selvagens Pelo fim do século estão consolidadas na realidade duas imagens de índios que só muito tenuamente se recobrem a francesa que o exalta e a ibérica que o deprecia Uma imagem de viajante outra de colono Bibliografia ANCHIETA José de 1846 Informação dos casamentos dos ndios do Brasil Revista do Instituto Histórico c Geográfico Brasileiro tomo 8 n2 254262 ANCHIETA José de 1977 1589 Recebimento que fizeram os índios de Guaraparim ao Padre Provincial Marçal Beliarte in Teatro de Anchieta OrgPACardoso 235246 São Paulo edLoyola ANCHIETA José de 198415531584 Cartas Correspondência Ativa e passiva Obras Completas 6o volume OrgHViotti São Paulo Ed Loyola 504pp BROC Numa 1984 Reflets américains dans la poésie de la Renaissance in La Renaissance et le Nouveau Monde 151163 Quebec Musée du Québec BUCHER Bernadette 1977 La sauvage aux seins pendants Paris Hermann 272pp CAMINHA Pero Vaz de 1968 1500 Carta a El Rey Dom Manuel Rio de Janeiro Ed Sabiá 97pp CARDIM Fernão 1980 1625 escrito em 1584 Tratados da Terra e Gente da Brasil São Paulo Ed Itatiaia e EDUSP 206pp CLASTRES Hélène 1972 Les Beauxfrères ennemis A propos du cannibalisme Tupinamba in Destins du Cannibalisme Nouvelle Revue de Psychanalyse n6 7182 CUNHA Manuela C da e CASTRO Eduardo V de 1985 Vingança e Temporalidade os Tupinanbá Journal de La Société des Amécanistes volLI 191208 CUNHA Manuela Carneiro da 19861985 Sobre a servidão voluntária outro dis curso in Antropologia do Brasil Mito história etnicidade 145158 São Paulo Brasi liense e EDUSP DENIS Ferdinand 1851 Une fete brésilienne célébrée en 1550 suvie dun fragment du seizème siècle roulant sur la théogonie des anciens peuples du Brésil et des poésies en langue typique de Christovam Valente Paris Techner DUCHET Michèle 1977 1971 Anthropotogie et Histoire au Siècle des Lumières Paris Flammarion 446pp FERNANDES Florestan 1963 1949 Organização Social dos Tupinambá São Paulo Difusão Européia do Livro 375pp GANDAVO Pero de Magalhães 1980 escrito circa 1570 e 1576 Tratado da Terra do Brasil e História da Província de Santa Cruz São Paulo Ed Itatiaia e EDUSP 149pp GERBI Antonello 19781975 La Naturaleza de las Indias Nuevas De Cristóbal Colón a Gonzalo Fernandez de Oviedo México Fondo de Cultura Econômica 562pp HOLANDA Sérgio Buarque 19771958 Visão do Paraíso Os motivos edênicos no descobri mento e colonização do Brasil São Paulo Cia Editora Nacional 3a Ed 360pp LEITE Serafim SI 1954 Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil São Paulo 3 vols LESTRINGANT Frank 1983 Le cannibale et ses paradoxes Images du cannibalisme au temps des Guerres de Religion MentalitiesMentalités voll n2 419 LÉRY Jean de 1972 1578 escrito circa 1563 Viagem à terra do Brasil São Paulo Martins Ede EDUSP251pp MÉTRAUX Alfred 1967 1928 Religions et magies indiennes dAmérique du Sud Paris Gallimard MONTAIGNE Michel de 19521580 Des cannibales LesEssaisvol1 230245 Paris Garnier NAVARRO Azpicuelta e outros 1988 Cartas Avulsas Cartas Jesuíticas 2 São Paulo Itatiaia e EDUSP 529pp NÓBREGA Pe Manoel da 1988 Cartas do Brasil Cartas Jesuíticas l São Paulo Ed Itatiaia e EDUSP 278pp OLWER Luis Nicolau d org 1963 Cronistas de las Culturas Precolombinas México Fondo de Cultura Economica 756pp PIGAFETTA Antonio 1985 1524 A Primeira Viagem ao Redor do Mundo O diário da expedição de Fernão de Magalhães Porto Alegre LPM 202pp RABELAIS Francois 1955 1552 Briefve Déclaration daucunes dictions plus obscures contenues on quatriesme livre des faicts et dits héroiques de Pantagruel en lespitre liminaires in Oeuwes Complètes Paris Gallimard Bibliothèque de la Pléiade SCHMIDEL Ulrico 1986 1587 Relatos de la conquista del Río de la Plata y Paraguay 15341554 Madrid Alianza Editorial 127pp SCHWARTZ Seymour I and EHRENBERG Ralph E 1980 The Mapping os America New York Harry N Abram Inc 363pp SOUSA Gabriel Soares de 1971 1587 Tratado Descritivo do Brasil em 1587 São Paulo Cia Editora Nacional e EDUSP 389pp STADEN Hans 1974 1557 Duas Viagens ao Brasil São Paulo Ed Itatiaia e EDUSP 216pp THÉVET André 1978 1558 As singularidades da França Antártica São Paulo Ed Itatiaia e EDUSP 271pp THÉVET André 1953 1575 Le Brésil et les Brésiliens Les Français en Amérique pendant la deuxième moitié du XVI e siècle corresponde a La Cosmographie Universelle Paris Presses Universitaires de France 346pp
Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora
Recomendado para você
Texto de pré-visualização
Imagens de índios do Brasil O Século XVI MANUELA CARNEIRO DA CUNHA H á vários discursos sobre os índios no século XVI toda uma literatura e uma iconografía de viagens com desdobramentos morais e filosóficos firma seus cânones ao longo do século um corpus legiferante e de reflexão teológica e jurídica elabora passada a era do escambo uma ordenação das relações coloniais paralela à conquista territorial a conquista espiritual por sua vez se expressa sobretudo em um novo gênero inaugurado pelos jesuítas e destinado a obter grande sucesso as cartas que se fazem cada vez mais edificantes Excepcionalmente temos o relato de um colono e no finzinho do século o olhar curioso da Inquisição na Bahia e em Pernambuco Os índios do Brasil são no século XVI os do espaço atribuído a Portugal pelo Papa no Tratado de Tordesilhas ele próprio incerto em seus limites algo entre a boca do Tocantins a boca do Parnaíba ao norte até São Vicente ao sul talvez um pouco além se incluirmos a zona contestada dos Carijós Os índios do rio Amazonas na época sobretudo um rio espanhol não contribuem propriamente para a formação da imagem dos índios do Brasil Essa imagem é fundamentalmente a dos grupos de língua Tupi e ancilarmente Guarani Como em contraponto há a figura do Aimoré Ouetaca Tapuia ou seja aqueles a quem os Tupi acusam de barbárie Primeiros Olhares Os portugueses fascinados pelo Oriente pouco especularam sobre o Novo Mundo Nem objeto de conhecimento ou reflexão nem sequer ainda de intensa cobiça o Brasil passou em grande parte despercebido durante os primeiros cinqüenta anos de seu contato Camões Manuela Carneiro da Cunha é professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP É autora de Antropologia do Brasil Mito História e Etnicidade São Paulo BrasilienseEdusp 1986 dedicalhe quatro magros versos evocando o pau brasil no último canto dos Lusíadas estrófe 1086 v 138141 publicados em 1572 e até o espanhol Ercilla falará mais dos brasileiros do que o poeta português É só na década de 1570 que Gandavo escreve seu Tratado da Terra do Brasil circa 1570 e sua História da Província de Santa Cruz 1576 obras provavelmente de incentivo à imigração e a investimentos portugueses semelhantes às que bem mais cedo os ingleses haviam feito para a Virgínia No prólogo à História da Provncia de Santa Cruz Gandavo fala do pouco caso que os portugueszes fizeram sempre da mesma província e diz que os estrangeiros a tem noutra estima e sabem suas particularidades melhor e mais de raiz que nósp76 Todo o interesse todo o imaginário português se concentra à época nas índias enquanto espanhóis franceses holandeses ingleses estão fascinados pelo Novo Mundo cada qual aliás a partir de regiões específicas a América dos Espanhóis é antes de tudo o México e o Peru a dos ingleses a Flórida e a dos franceses é sobretudo o Brasil NBroc 1984 159 A primeira carta sobre o Brasil a belíssima carta de 1500 escrita por Pero Vaz de Caminha a ElRei Dom Manuel fica inédita e soterrada até 1773 nos arquivos portugueses São as cartas de Américo Vespucci as autênticas e as apócrifas talvez por serem endereçadas a Lourenço de Medici e através dele ao público letrado europeu que notabilizaram a então Terra de Vera Cruz e seus habitantes Por mais exatas que sejam e certamente são mais escrupulosas do que muitos relatos posteriores as primeiras cartas já se assentam em idéias propagadas desde o Diário da Primeira viagem de Colombo elas próprias enraizadas nos relatos de viagens reais ou imaginárias de Marco Polo de Mandeville do Preste João idéias de Paraíso terreno e de fonte da juventude à sua proximidade de Amazonas e de seus tesouros mitos de origem medieval ou clássica que povoam o imaginário dos descobridores 1 e que se insinuam nas mais verazes descrições Os viajantes vêem por indícios e ouvem dos índios sabese lá em que língua o que a Europa procura e antecipa seus relatos confrontados às tradições clássicas são por sua vez sistematizados por cosmógrafos como Pedro Mártir o milanês que escreve em Sevilha que em pouco tempo estabelecem um corpo canônico de saber sobre o novo mundo realimentador da observação Terão vida particularmente longa as primeiras notícias de Colombo sobre a inocência a docilidade a ausência de crenças da gente que encontrou elaboradas segundo Gerbi 197819752728 para 1 Uma excelente análise desses antecedentes e de sua repercussão encontrase no livro clássico de Sérgio Buarque de Holanda Visão do Paraíso 1977 1958 convencer os Reis Católicos da facilidade de se dominarem terras tão prodigiosamente férteis e ricas de ouro e especiarias A carta de Pero Vaz de Caminha é na verdade um diário que registra de 22 de Abril a 10 de Maio de 1500 uma progressiva descoberta dos homens desde o primeiro instante não há dúvida de que são homens e das mulheres de Porto Seguro A primeira imagem a mesma que Colombo tivera nas antilhas é de que todos vão nus e são imberbes homens pardos todos nus sem nenhuma coisa que lhes cubrisse suas vergonhas traziam arcos nas mãos e suas setas PVCaminha 1968 177321 E Caminha comprazse em um jogo de palavras e em uma primeira comparação dizendo das moças que tinham suas vergonhas tão altas tão serradinhas e tão limpas de cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha PVCaminha ibidem 367 E mais adiante dirá de outra índia que era sua vergonha que ela não tinha tão graciosa que a muitas mulheres da nossa terra vendolhe tais feições fizera vergonha por não terem a sua como ela ibidem 40 A essa imagem de nudez que será retomada com menos talento literário por Vespucci 2 associase a idéia de inocência p25 91 Caminha com aparente candura contrasta a ingenuidade comercial e a confiança inicial destes homens que desde o primeiro dia se estendem e dormem no convés do navio com a deslealdade a cupidez e a sede de ouro e prata dos portugueses pp273053496676 Esses homens são formosos gordos e sadios como as alimárias monteses às quais f az o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas Essa idéia de não domesticação dessa gente que nada domestica nem plantas nem animais é em Caminha tão poderosa que o leva a ignorar a agricultura dos índios a não dar realce às redes e jangadas que menciona e a presumir só para ser desmentido no dia seguinte que eles sequer tenham casas onde se abriguem pp8159 6566 Gente bestial a ser amansada pp59587782 por quem Caminha nutre uma evidente simpatia e sobre a qual inaugura uma série de duradouros e etnograficamente duvidosos lugarescomuns não têm chefe ou principal sequer distinguindo o capitãomor que os recebe em toda a sua pompa pp 465227 não tem nenhuma idolatria ou adoração pp9091 80 são uma argila moldável uma tabula rasa uma página em branco e imprimirseá com a ligeiresa neles qualquer cunho que lhes quiserem dar p80 Gente em suma que não sujeita a 2 Encontramos que la tierra estaba habitada de gente toda ella desnuda así los hombres como las mujeres sin cubrirse ninguna verguenza Son de cuerpo bien dispuestos y proporcionados de color blanco Colombo diziaos brancos também mas Caminha diziaos pardos e Vespucci havia dito em 1500 de color pardo y leonado aos habitantes do caribe de cabellos negros y de poca o ninguna barba Vespucci Carta a Lorenzo de Medici Lisboa outono de 1501 in LN dOlwer 1963 541 A primeira carta sobre o Brasil a belíssima carta de 1500 escrita por Pero Vaz de Caminha a ElRei Dom Manuel fica inédita e soterrada até 1773 nos arquivos portugueses natureza como não se sujeita a si mesma a jugo algum gente montesa gente selvagem 3 Vespucci era o cosmógrafo da segunda expedição a que Dom Manuel mandou em 1501 e que percorreu a costa durante dez longos meses do cabo São Roque até São Vicente Conta que passou 27 dias comendo e dormindo entre os animais racionais da Nova Terra e é ele quem completa o inventário básico do que daí por diante se dirá dos índios4 Vespucci que fala da sua nudez não fala mais da sua inocência ao contrário é ele quem relata pela primeira vez a antropofagia indígena O retrato que faz é paradoxal entre si tudo têm em comum mas vivem em guerra cruel contra seus inimigos As razoes dessa guerra perpétua diz Vespucci são misteriosas já que não têm propriedade particular já que não guerreiam para se assenhorearem de terras ou de vassalos já que ignoram o que seja a cobiça o roubo ou a ambição de reinar Dizem eles apenas que querem vingar a morte de seus pais e antepassados Fica assim introduzida a idéia de uma guerra desinteressada embora bestial e de uma antropofagia de vingança e não alimentar distinção importante a que retornaremos mais adiante A ausência de propriedade e portanto de cobiça e de herança são elementos novos que Vespucci acentua E Vespucci também quem pela primeira vez resquício do mito da fonte da juventude fala da longevidade dos brasileiros Son gente que vive muchos anõs porque según sus descendencias conocimos muchos hombres que tienen hasta la cuarta generación de nietos No saben contar los días ni el año ni los meses salvo que miden el tiempo por meses lunares y quando quierem mostrar la edad de alguna cosa lo muestran con piedras poniendo por cada luna una piedra y encontré un hombre de los más viejos que me señaló con piedras haber vivido 1700 lunas que me parece son 130 años contando trece lunas por año Vespucci Carta a Lorenzo de Médici Lisboa outono de 1501 in LNdOlwer 1963 542 5 De resto com pequenos 3 Caminha não usa a palavra selvagem O termo é usado pelos franceses Thévet e Léry e é glosado por Montaigne ils sont sauvages de mesme que nous appellons sauvages les fruicts que nature de soy et de son progres ordinaire a produicts là où à la vérité ce sont ceux que nous avons alterez par nostre artifice et detournez de lordre commun que nous devrions appeller plutost sauvages Montaigne 1952 1580 234 Inversão típica que Rousseau retomará a selvageria não antecede a civilização ao contrário é seu produto enquanto corrupção e desvio do curso espontâneo da natureza 4 A palavra índios é aqui usada anacronicamente ela parece começar a ser empregada por meados do século aparentemente para designar os indígenas submetidos seja aldeados seja escravizados por ocasião ao termo mais geral gentio que designa os indígenas independentes Caminha e Vespucci dizem gente homens e mulheres Ao longo do século usarseão para designar as etnias os termos gerações nações e linhagens Pela metade do século começarseá também a empregar a expressão negro da terra por escravo além dos termos tradicionais gentio brasil e bra sileiro 5 Até Jean de Léry 1972 1578 73 ainda se fala da longevidade dos brasileiros acréscimos sobre costumes matrimoniais não necessariamente corretos mas também com boa descrição de casas redes e adornos Vespucci repete a Caminha essa gente não tem lei nem fé nem rei não obedece a ninguém cada um é senhor de si mesmo Vive secundam naturam e não conhece a imortalidade da alma 6 Está assim formado o lastro de uma concepção dos brasileiros que vigorará com poucos retoques entre os que praticarem o escambo de paubrasil papagaios macacos e outras riquezas ou seja entre os portugueses até 1549 e entre os outros europeus até muito mais tarde Os sucessivos navios de várias nacionalidades e os intérpretes normandos ou degradados portugueses aqui estabelecidos devem ter consolidado esse saber de tal forma que em 1519 o italiano Antonio Pigafetta de passagem na expedição de Fernão de Magalhães fornece já algo como um dictionnaire des idées recues sobre o Brasil do início do século XVI Condensado já tudo está lá brasileiros e brasileiras vão nus vivem até 140 anos não são cristãos mas também não são idolatras porque não adoram nada comem a seus inimigos tecem redes fazem canoas moram em grandes casasAPigafetta 1985152457 ss É somente a partir da década de 50 que o conhecimento do Brasil se precisará e agora de maneiras divergentes Teremos duas linhas divisórias básicas uma que passa entre autores ibéricos ligados diretamente à colonização missionários administradores moradores e autores não ibéricos ligados ao escambo para quem os índios são matéria de reflexão muito mais que de gestão a outra que separa nesse período de intensa luta religiosa autores usados por protestantes de autores usados por católicos Nesta última categoria temos o detestável pedante condescendente e segundo o huguenote Léry mentiroso franciscano André Thévet que afirma ter visto o que não viu ter estado onde não esteve e preenche suas lacunas com fastidiosos e desconexos exemplos clássicos para cada uma das instituições descritas 7 Contrapondose a Thévet 6 Os jesuítas por motivos teológicos e jurídicos prestarão grande atenção meio século mais tarde aos usos matrimoniais e às crenças dos índios Sua busca como veremos vai no sentido de encontrar pelo menos em embrião instituições ou crenças sobre a qual possam se assentar costumes cristãos são eles que atestam contrariando Vespucci a crença tupi na imortalidade da alma 7 Thévet conseguiu com tudo isso uma consagração invejável nomeado cosmógrafo do rei conservador do Cabinet do rei ou seja um museu de curiosidades ele foi comparado por Ronsard a Ulisses aliás mais do que Ulisses por ter visto e por ter escrito o que viu Ainsi tu as sur luy un double davantige Cest que tu as plus veu et nous a ton voyage Escrit de ta main propre et non pas luy du sien apud NBroc 1984 153 Mas Montaigne não se ilude e publica nos seus Canibais um trecho ferino prova velmente dirigido a Thévet preferindolhe seu próprio informante o normando seu empregado que havia passado de dez a doze anos na França Antártica Ainsi je me direta ou indiretamente temos também dois autores excepcionais que estiveram entre os Tupinambá mais ou menos na mesma época mas em posições simétricas um como inimigo destinado a ser comido outro como aliado o artilheiro do Hesse Hans Staden que viveu prisioneiro dos Tupinambá e os descreve como inteligência e pragmatismo em livro publicado originalmente em 1557 que conheceu imediato sucesso quatro edições em um ano e o calvinista Jean de Léry que passa alguns meses em 1557 com os mesmos Tupinambá quando a perseguição que Villegagnon move aos huguenotes os obriga a se instalarem em terra firme O livro de Lery só é publicado em 1578 e embora o autor afirme que o redigiu em 1563 várias passagens atestam interpolações posteriores a esta data Seja como for a edição em 1592 em Francforte da terceira parte da Coleção de Grandes Viagens ilustrada pelo ourives gravurista e propagandista huguenote Theodor de Bry que reunia os livros de Hans Staden e de Jean de Léry publicados simultáneamente em alemão e em latim consagra a influência desses autores fundamentais Também republicado alguns anos mais tarde por Bry provavelmente por atestar os péssimos hábitos dos conquistadores espanhóis que chegam entre outras coisasa devorar enforcados quando a fome os aperta em Buenos Aires está o mercenário alemão Ulric Schmidel que passou vinte anos perambulando pelo rio Paraguai a partir de 1537 e que fornece uma espécie de roteiro gastronômico das múltiplas etnias por que passou entre os quais os carijós O Teu e o Meu Um dos traços que mais será celebrado nesse contexto sobretudo por Jean de Lery é sem dúvida o da suposta ausência de propriedade material e de cobiça com sua crítica explícita a sociedades movidas pelo lucro e pelo entesouramento pex Jde Léry 1972 1578 125126180 230 Não que os Tupinambá não desejassem bens materiais e todo o comércio baseavase nesse desejo simplesmente não acumulavam não transmitiam a herdeiros e entre si partilhavam a comida HStaden 19721557 167 AThévet 19721558 144 Têm estes Tupinambás uma condição muito boa para frades franciscanos escreverá Soares de Sousa 1971 1587313 que neste ponto concorda com os autores não ibéricos porque o seu fato e quanto têm é comum a todos os da sua casa que querem usar dele assim das ferramentas que é o que mais estimam como das suas roupas se as têm e do seu mantimento os quais quando estão comendo pode comer com eles quem quiser ainda que seja contrário sem lho impedirem nem fazerem por isso carranca contente de cette information sans m enquérir de ce les cosmographes en disentMontaigne 19521580 233234 Sem F Sem L Sem R Desde Caminha e Vespucci e já vulgarizada a idéia em 1515 na Nova Gazeta Alemã apud SBde Holanda 19771959 106 mencionase com certa ambivalência seria o éden seria a barbárie a ausência de jugo político e religioso entre os brasis A idéia tornarse lugarcomum ao longo do século pex Thévet 19781558 98 mas ganha com Gandavo uma forma canónica em que palavras e coisas se confundem A lingua deste gentio toda pela Costa he huma carece de três letras scilicet não se acha nella F nem L nem R cousa digna de espanto porque assi não têm Fé nem Lei nem Rei e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente PMGandavo 1980 1570 52 Uma década e meia mais tarde Gabriel Soares de Sousa retoma a fórmula de Gandavo com particular graça Faltamlhes três letras das do ABC que são FLR grande ou dobrado coisa muito para se notar porque se não têm F é porque não têm fé em nenhuma coisa que adorem nem nascidos entre os cristãos e doutrinados pelos padres da Companhia têm fé em Deus Nosso Senhor nem têm verdade nem lealdade e nenhuma pessoa que lhes faça bem E se não têm L na sua pronunciação é porque não têm lei alguma que guardar nem preceitos para se governarem e cada um faz lei a seu modo e ao som da sua vontade sem haver entre eles leis com que se governem nem têm leis uns com os outros E se não têm esta letra R na sua pronunciação é porque não têm rei que os reja e a quem obedeçam nem obedecem a ninguém nem ao pai o filho nem o filho ao pai sic e cada um vive ao som da sua vontade para dizerem Francisco dizem Pandeo para dizerem Lourenço dizem Rorenço sic para dizerem Rodrigo dizem Rodigo sic e por este modo pronunciam todos os vocábulos em que entram essas três letrasGSde Sousa 1971 1587 302 Na França onde os mercadores normandos continuam prosperando com o comércio de paubrasil obtidos por escambo com os Tupinambá essa carência de letras e de jugos não preocupam mas ao contrário fazem sonhar Ronsard em sua Complainte contre Fortune de 1559 fala dessa América da Idade do Ouro para onde deseja ir Où le peuple incognu Erre innocemment tout farouche et tout nu D habis tout aussi nu qu il est nu de malice Qui ne cognoist les noms de vertu ny de vice De Sénat ni de Roy qui vit à son plaisir Porté de l apétit de son premier désir O Brasil e os brasileiros estão lá em tão alta estima que em 1550 quando o rei Henrique II e a rainha Catarina de Médicis fazem sua entrada triunfal em Ruão éihes oferecida uma festa brasileira Para a Colombo ao opor os pacíficos antilhanos aos caribes insulares que os devoram permite uma primeira localização americana desse fantasma circunstância trezentos figurantes entre verdadeiros índios de trazidos à França marinheiros normandos e prostitutas todos despidos à moda Tupinambá representam cenas de caça de guerra de amor e até de abordagem a um navio português Os choupos são pintados e carregados de bananas papagaios e macacos são soltos no arvoredo FDenis 1851 O Brasil é o paraíso terreal Cães Canibais Paradoxalmente a outra imagem que se vulgariza e que se torna emblemática do Brasil é a dos índios como canibais Em 1540 por exemplo o mapa de Sebastian Munster na Geografia de Ptolomeu publicada em Basileia coloca laconicamente no espaço ainda largamente ignoto entre a boca do Amazonas e a boca do rio da Prata a palavra Canibali e a ilustra com um feixe de galhos de onde pendem uma cabeça e uma perna Schwartz e Ehrenberg 1980 p50 pl 18 e p45 São cãis em se comerem e matarem escreverá Nóbrega Nóbrega in Leite volII321 implicitamente evocando a assimilação que o Renascimento fez entre canibais e cinocéfalos homens com cabeça de cães como explica Rabelais no seu glossário do Quarto Livro de Pantagruel Canibales peuple monstrueux en Afrique ayant la face comme chiens et aboyant au lieu de rire Rabelais 19551552 737 ps canibais são na verdade um fantasma uma imagem que flutua por muito tempo no imaginário medieval sem lograr ser geograficamente atribuído Colombo ao opor os pacíficos antilhanos aos caribes insulares que os devoram permite uma primeira localização americana desse fantasma assimilando caribes e canibais numa sinonimia que irá perdurar no século XVIII até à Enciclopédia 8 Antropófagos Mas Não Canibais Os Tupi no entanto não são canibais e sim antropófagos a distinção que é num primeiro momento léxica e mais tarde quando os termos se tornam sinônimos 9 semântica é crucial no século XVI e é ela quem permitirá a exaltação do índio brasileiro A diferença é esta canibais são gente que se alimenta de carne humana muito distinta é a situação dos tupi que comem seus inimigos por vingança É assim que Pigafetta distingue os brasileiros que são antropófagos dos canibais imediatamente ao sul APigafetta 1985 1524 Thévet que assimila canibais caribes insulares das Antilhas e possivelmente os caetés ou os potiguaras escreve Os canibais cujas terras vão do Cabo de Santo Agostinho às proximidades do Marinhão são os mais cruéis e desumanos de todos os povos americanos não passando de uma canalha 8 O verbete canibais na Grande Encyclopédie figura com a seguinte redação canniba les voyez Caraibes ou Cannibales Sauvages insulaires de l Amérique qui possèdent une partie des les Antilles tristes rêveurs paresseuxvivant cmnmunêment un sièle Ils mangent leurs prisionniers rôtis et en envoient les morceaus à leurs amis 9 Segundo Michèle Duchet 197738 a sinonímia entre canibais e antropófagos vulga rizase a partir de Montaigne Mesmo depois de assimiladas as duas palavras porém a diferença que encerravam permanece com a mesma conotação moral habituada a comer carne humana do mesmo jeito que comemos carne de carneiro se não até com maior satisfação AThevet 19711558 199 Thévet chega a declarar que os canibais alimentamse exclusivamente de carne humana AThevet 1978 1558 100 Mas os Tupinambá se comem aos inimigos fazem isto não para matar a fome mas por hostilidade por grande ódio HStaden 176 Quanto a Américo Vespucci o primeiro a falar da instituição entre os tupi uma leitura desatenta que poderia sugerir que ele esteja relatando uma antropofagia alimentar O que ele diz no entanto falando da dieta variadíssima dos índios ervas frutas ótimas muito peixe mariscos ostras camarões e caranguejos é que quanto à carne por não terem cachorros que os ajudem na caça a que mais comem é carne humana Vespucci Carta a Lorenzo de Medici Lisboa outono de 1501 in LNdOlwer 1963 542 Um ano antes em outra carta relatando sua viagem à ilha da Trinidad Vespucci havia falado aí sim dos canibais que vivem de carne humana Vespucci Carta a Lorenzo de Mediei Sevilha 18071500 in LNdOlwer 1963 43 A antropofagia nisso não se enganaram os cronistas é a Instituição por excelência dos tupi é ao matar um inimigo de preferência com um golpe de tacape no terreiro da aldeia que o guerreiro recebe novos nomes ganha prestígio político acede ao casamento e até a uma imortalidade imediata Todos homens mulheres velhas e crianças além de aliados de outras aldeias devem comer a carne do morto Uma única exceção a esta regra o matador não come sua vítima Comer é o corolário necessário da morte no terreiro e as duas práticas se ligam Não se têm por vingados com os matar sinão com os comer ABlasquez a Loyola Bahia 1557 in Navarro e outros 1988 p 198 Morte ritual e antropofagia são o nexo das sociedades tupis 10 São esses canibais que conhecerão com Montaigne uma consagração duradoura Tornamse a máconsciência da civilização seus juizes morais a prova de que existe uma sociedade igualitária fraterna em que o Meu não se distingue do Teu ignorante do lucro e do entesouramento em suma a da Idade de Ouro Suas guerras incessantes não movidas pelo lucro ou pela conquista territorial são nobres e generosas Regidos pelas leis naturais ainda pouco abastardas estão próximos de uma pureza original e atestam que é possível uma sociedade com peu dartífice et de soudeure humaine Em uma passagem que Shakespeare retomará na sua Tempestade 10 Há uma extensa literatura a respeito da morte guerreira e do canibalismo Tupinambá instituição central dessa sociedade Para analises vejamse por exemplo Métraux 19671928 Fernandes 19631949 Clastres 1972 Cunha e Castro 1986 Montaigne resume essas virtudes C est une nation en laquelle il ny a nulle espèce de trafique nulle cognoissance de lettres nulle science des nombres nul nom de magistrat ny de supériorité politique nul x usage de service de richesse ou de pauvreté nuls contracts nulles successions nuls partages nulles occupations qu oysives nul respect de parenté que communnuls vestemens nulle agriculture nul métal nul usage de vin ou de bled Les paroles mesmes qui signifient le mensonge la trahison la dissimulation Iavarice I envie la détraction le pardon inouies Montaigne 19521580 235236 11 Até sua culinária é sem artifícios Este resumo das virtudes dos canibais com seus lapsos evidentes a agricultura por exemplo existe entre os Tupis 12 não é um discurso de etnólogo e sim de moralista e como tal deve ser entendido constitui o advento de uma duradoura imagem a do selvagem como testemunha de acusação de uma civilização corruptora e sanguinária Não é fortuito que Montaigne no fim de seu ensaio mencione as objeções que ouviu de três índios brasileiros com quem o rei Carlos IX que entrava em Ruão em 1562 após a rebelião e a subjugação da cidade conversou Estranhavam que homens feitos obedecessem a uma criança o rei E estranhavam que existissem na mesma sociedade ricos e mendigos Montaigne ibidem 2434 Semelhanças Dessemelhanças Procuramse de um lado semelhanças continuidades Os índios são humanos ninguém que os tenha visto o põe em dúvida no século XVI a bula de Paulo III em 1534 serve menos provavelmente para dissipar dúvidas a respeito do tema do que para reivindicar a 11 Comparase a versão de Shakespeare datada de 1611 na orada de Gonzalo na Tempestade ato II cena I I the commonwealth I would by contraries Execute all things for no kind of traffic Would I admit no name of magistrate Letters should not be known riches poverty And use of service none contract succession Bourn bound of land tilth vineyard none No use of metal corn or vine or oil No occupation all men idle all And women too but innocent and pure No sovereignty All things in common nature should produce Without sweat or endeavour treason felony Sword pike knife gun or need of any engine Would I not have but nature should bring forth Of its own kind all foison all abundance To feed my innocent peopler 12 Essa primitivização do tupi com eliminação sistemática da referência à sua agricul tura percorre o século XVI Pero Vaz de Caminha poderia não têla observado nos curtos dias que passou na costa mas Vespucci e Pigafetta não a mencionam tampouco Mais deliberadamente ainda as gravuras com que Theodor de Bry ilustra o relato de Hans Staden omitem detalhes de agricultura que figuravam nas xilogravuras em que se inspirou como observa BBucher 197756 jurisdição da Igreja sobre uma parcela do globo Com o Novo Mundo descobrese também uma Nova Humanidade Resta o problema crucial de inserila na economia divina o que implica inserila na genealogia dos povos Para isso não há outra solução senão a da continuidade senão abrirlhe um espaço na cosmologia européia Por que a humanidade é uma só os habitantes do Novo Mundo descendem necessariamente de Adão e Eva e portanto de um dos filhos de Noé provavelmente do maldito Cam aquele que desnudou seu pai razão especula Nóbrega da nudez dos índios como camitas e descendentes de Noé os Tupi da costa guardariam aliás uma vaga lembrança do dilúvio sabem do dilúvio de Noé bem que não conforme a verdadeira história Nóbrega 19881549 91 suficiente no entanto para atestar sua origem 13 E por que não poderiam ter ficado à margem da Boa Nova teriam sido visitados pelo apóstolo São Tomé que seria lembrado e cujas pegadas Nóbrega teria ido ver em 1549 na Bahia gravadas na pedra sob o nome levemente deturpado de Sumé ou Zomé Nóbrega 1988 1549 7891101 14 Há aí claramente toda uma problemática de confluência em que a mitologia tupi de Sumé e do dilúvio é interpretada como vestígio confuso e distorcido de uma origem e de um conhecimento comuns à humanidade A essa reciclagem do mito de Sumé já evocada desde 1515 na Nova Gazeta Alemã 15 e que visa tornar inteligível e teologicamente aceitável para os jesuítas uma situação totalmente inédita corresponderá por parte dos índios uma tentativa análoga de achar lugar para os recémchegados em sua cosmologia assignandolhes inicialmente o lugar de caraibas ou seja de profetas Thévet 1978 1558 100 que Hans Staden saberá usar quando prisioneiro dos Tupinambá para salvar a pele Por outro lado na França e mais como eco na Inglaterra as viagens ou melhor os relatos de viagens darão início a uma reflexão humanista sobre a dissemelhança Notase porém que pressuposto básico aqui também é uma similitude suficiente para garantir a comparabilidade pois a reflexão renascentista é muito menos uma tentativa de compreender o outro do que de se ver a si mesmo em perspectiva de se compreender a si mesmo em um mundo cuja 13 Sobre a lembrança e as versões do dilúvio vejamse entre outros HStaden 1974 1557 174 J de Léry 19741578 1656 AThévet 19531575 39404345 14 O mito missionário de Sumé e no Perú de Pay Tumé ampliase como bem observa Sérgio Buarque de Holanda em estudo magistral que lhe explicita as raízes e os desdo bramentos quando passa para as colônias espanholas No Brasil avalia Sérgio Buar que a história não passa se tanto de um mito vagamente propedêutico SBHo landa 1977125 15 Esse relato Neue Zeitung publicado em 1515 e baseado em expedição de ano anterior já menciona entre os brasis e a recordação de São Tomé suas pegadas e suas cruzes expandindo assim a lenda de São Tomé originalmente apóstolo das índias Orientais SBHolanda 19771959 104 ss ordem com as guerras de religião passou a ser relativa O selvagem que Jean de Léry põe em cena e que é um dos únicos personagens falantes do século por mais real que seja sua fala e a tradução interlinear que Léry fornece do diálogo atesta sua veracidade é nao obstante figura de retórica contraponto positivo de todos os horrores que o huguenote perseguido que denunciar em sua França natal FrLestringant 1983 Shakespeare com seu infame Caliban anagrama de canibal e tão retórico quanto o Tupinambá de Léry só inverte os valores sem inverter os personagens e cria assim um anagrama semântico ao índio de Montaigne Nos jesuítas no entanto preocupados com a gestão das almas a dissemelhança é assunto de outro tipo de reflexão não sobre si mesmo senão sobre o estatuto do alheio Reflexão cuidadosa de quem não se pode deixar enganar e que imputa à semelhança um caráter ilusório Ilusão que provem do grande deceptor o Demônio que faz da semelhança um arremedo as santidades santos ou caraíbas profetas tradicionais que assumem no processo colonial aspectos milenaristas são obra de inspiração sua FCardim 1980 8788 Nóbrega aos Pes de Coimbra Baía agosto de 1549 in SLeite volI 150151 Há nas santidades uma competição implícita pela liderança espiritual e material Mas há também um esforço notável simétrico ao dos missionários de abranger o dissemelhante de incorporar e tornar inteligíveis os estrangeiros e suas crenças Colocada sob suspeita e passada ao crivo dos valores que encerra a semelhança passa a não ser percebida em 1554 dois irmãos da Companhia Pero Correia e João de Souza são mortos a frechadas pelos Carijós que teriam sido incitados por um espanhol Os irmãos relata Anchieta de segunda mão aceitam seu martírio com força de alma todos os missionários anseiam por fecundar com seu sangue a seara de almas que está sendo plantada o topos é recorrente por exemplo em Anchieta e em Nóbrega Não foi pequena escreve Anchieta ao relatar a morte dos irmãos a Santo Inácio de Loyola a consolação que recebemos de morte tão gloriosa desejando todos ardentemente e pedindo a Deus com orações contínuas morrer deste modo Anchieta a Loyola São Vivente fim de março de 1555 in HViotti org Anchieta Cartas São Paulo ed Loyola 98 A descrição e os anseios encontram paralelos claros na descrição da morte ideal do guerreiro Tupi Digna do guerreiro só a morte cerimonial nas mãos dos inimigos após um enfrentamento em que se ressalta a dignidade e a altivez de quem vai morrer A única sepultura almejada é o estômago dos inimigos Até os cativos julgam que lhes sucede nisso coisa nobre e digna deparandoselhes morte tão gloriosa como eles julgam pois dizem que é próprio de ânimo tímido e impróprio para a guerra morrer de maneira Os índios são humanos ninguém que os tenha visto o põe em dúvida no século XVI que tenham de suportar na sepultura o peso da terra que julgam ser muito grande Anchieta a Loyola São Paulo de Piratininga l de Setembro de 1554 ibidem p74 O trecho faz parte de carta escrita por Anchieta a Santo Inácio apenas 6 meses antes da outra e a semelhança com o martírio dos irmãos jesuítas chama nossa atenção mas não a de Anchieta mesmas cenas mesmo ânimo mesma crença no valor de tal morte Mas são valores diferentes e esta diferença cega o jesuíta incapaz de perceber a estrita semelhança entre as cenas que descreve O índio dos Jesuítas Há vários gêneros na literatura jesuítica do períodoe talvez com exceção da lírica todos eles pedagógicos Há as cartas a que já nos referimos que mais do que simples relatos são também assunto para reflexão e estudo na metrópole Há o catecismo de Anchieta Há o teatro ainda de Anchieta que pretende fornecer ao índio uma nova autoimagem Há por fim uma peça bastante extraordinária pelo realismo de pelo menos sua primeira parte que é o Diálogo da Conversão do Gentio em que Nóbrega põe em cena as dúvidas e os preconceitos dos missionários deixando perceber que a visão jesuíta dos índios não é homogênea Ele próprio aliás parte de uma posição humanista e letrada para chegar a um pragmatismo de administrador comparemse as cartas de 1549 ano da chegada de Nóbrega ao Brasil em que louva aos índios por não entesourarem riquezas e partilharem seus bens e por em muitas coisas guardarem a lei natual Nóbrega 1988 100 com as cartas desencantadas dos anos subseqüentes O Diálogo da Conversão do Gentio é escrito por Nóbrega na Bahia em 1556 e 1557 põe cena dois jesuítas que não são padres e sim irmãos e que representam a voz corrente entre os menos graduados da Companhia de Jesus Um dos irmãos é pregador outro ferreiro e Nóbrega acaba evangelicamente dando ao ferreiro o papel de maior sabedoria A conclusão de Nóbrega é otimista não há por que os missionários desesperarem da conversão dos índios mas a discussão inicial que ele imputa aos dois irmãos é reveladora de um hiato entre uma visão vulgar do missionário e uma versão teologicamente elaborada O gentio não tem rei se o tivera poderseiam converter reinos como se dera no tempo dos apóstolos como se dava então na América Espanhola e se estava tentando no Oriente 16 A conversão portanto era forçosamente de natureza 16 A questão da lei e da sujeição é ponto de algumas hesitações por parte dos jesuítas Ora declaram que de nada vale serem os índios christãos por força e gentios na vida e nos costumes ora mais freqüentemente desabafam como Anchieta Não se pode por tanto esperar nem conseguir nada em toda esta terra na conversão dos gentios sem individual Mas os gentios careciam de fé não adoravam coisa alguma Como não se apegavam a velhos ídolos tampouco se aferravam à nova fé Sabéis qual hé a mor dificuldade que lhes acho Serem tãm fáciles de diserem a tudo si ou pâ ou como vós quizerdes tudo aprovão logo em com a mesma facilidade com que dizem pâ sim dizem aani não Nóbrega in Leite 1954 vol II 322 Daí sua inconstância Com um anzol que lhes dê os converterei a todos com outros os tornarei a desconverter por serem incostantes e não lhes entrar a verdadeira fee no coração Nóbrega in Leite volII p320 Falta aos gentíos a lei que os tornaria políticos membros de uma sociedade civil que lhes conferiria a razão estirpandolhes a rudeza e a bestialidade em que vivem Este diagnóstico cru de que os índios carecem de rei de lei e de razão é o mesmo que o Irmão Antonio Blázquez expõe sem rodeios teológicos em carta de 1555 aos irmãos de Coimbra O Hermanos míos en Jesú Christo charíssimos quántas lágrimas derramarían vuestros ojos si viéssedes estas criaturas de Dios vivir quassi a manera de vestias quase à maneira de bestas sin rey sin ley y sin razón encarniçados en comer carne humana y tan embebidos en esta bruteza que antes consentirán perder quanto tienen que dar un negro contrario que tienen determinado de comer 17 Entre ellos no ay amor ni lealtad Véndense unos a otros estimando más una cunã o podón que la libertad de un sobrino o pariente más cercano que truecan por hierro y es tanta su misseria que a las vezes se lo cambian por un poco de harina 18 No tienen a quien obedezcan sino a sus próprias voluntades y de aquí es que hazen quanto se les antoja encinándose con ellas a vicios sucíssimos y tan torpes que tengo por mejor callarlos debaxo de silencio que escriviendo descubrir maldades tan enormes Ir Blázquez Baía 8 de Julho de 1555 in Leite vol11 p252 A este retrato negro e cheio de contradições da torpeza e da bestialidade dos índios podese opor o discurso ainda humanista de Nóbrega que contrasta os filósofos empedernidos da antiguidade aos índios que apenas infringem a bagatela de dois ou três mandamentos e de resto entre si vivem mui amigavelmente Em suma resume virem pára cá muitos cristãos que conformandose a si e a suas vidas com a vontade de Deus sujeitem os índios ao jugo da escravidão e os obriguem a acolherse à bandeira de Cristo Anchieta a Loyola São Vicente fim de Março de 1555 in Leite volII p207 Nóbrega acaba por optar pela sujeição que é posta em prática pelo gover nador Mem de Sá 17 Referência à resitência dos índios a venderem como escravos aos portugueses os prisio neiros destinados a serem ritualmente mortos em terreiro 18 Esta passagem que parece contradizer a frase anterior é uma referência à questão de venda de si mesmo e dos seus filhos em escravidão praticada em momentos de penúria e que deu origem a uma discussão jurídica em que os jesuítas tomaram parte vide Cunha 19861985 A sexualidade indígena como é de se prever suscitou grande interesse tanto entre cronistas filosofantes quanto entre gestores de almas Nóbrega sua bemaventurança é matar e ter nomes e esta é sua glória por que mais fazem À lei natural não a guardam porque se comem são muito luxuriosos muito mentirosos nenhuma coisa aborrecem por má e nenhuma louvam por boatêm crédito em seus feiticeiro Eis tudo Nóbrega in Leite volIIp344345 Sem fé mas crédulos os jesuítas imputam aos índios uma extrema credulidade e a coisa é só aparentemente contraditória No fundo a fé é a forma centralizada da crença excludente e ciumenta A carência de fé de lei de rei e de razão política não são senão avatares de uma mesma ausência de jugo de um nomadismo ideológio que faz pendant a atomização política A credulidade é uma forma de vagabundagem da fé É por isso que a sujeição tem de se dar em todos os planos ao mesmo tempo nisso parecem convergir afinal tanto os jesuítas quanto os colonos e os administradores A sujeição política é a condição da sujeição religiosa Seja como for entre feiticeiros e jesuítas instaurase desde cedo uma concorrência que se trava curiosamente no terreno ora de uns ora de outros ou seja os jesuítas competem em curas e milagres com os xamãs arvorandose em xamãs mais poderosos pex ANavarro Carta da Bahia 1550 in Navarro 198876 enquanto os xamãs desafiam aos padres um caraiba em 1550 afirma que transformaria a todos em pássaros destruiria a igreja e o engenho e a lagarta das roças que os padres não destruiam ele a eliminaria Nóbrega a Torres Baía 5 de julho de 1559 in SLeite 1954 III 53 É notável que os padres embora muito mais céticos do que será no século XVII o Pe Montoya não contestam necessariamente aos feiticeiros a realidade de suas curas milagres e prodígios contestamlhes sim a fonte desses poderes sobrenaturais que não viriam de Deus senão do Demônio Em demônios ou espíritos os anhang pelo menos à falta de crerem em Deus os índios acreditam HStaden 1974 1557 158 e sem grandes hesitações os europeus também AThévet 19781558 115 Jde Léry 19721578 15960 FCardim 87 De Bry a partir de xilogravura da edição original de Jean de Léry difunde a imagem de índios atormentados constantemente por esses demônios E Anchieta chega a montar todo o seu teatro destinado aos catecúmenos indígenas em cima de um roteiro único em que vários demônios entre os quais faz às vezes irreverentemente figurar seus próprios inimigos como o Tupinambá Aimbiré que o manteve prisioneiro tentam impedir as almas de chegarem ao céu Numa das versões inspirado Anchieta encena o ritual máximo da antropofagia tupi um principal quebra a cabeça a um diabo o Macaxera e sobre ela toma novo nome Anhangupiaraou seja inimigo de Anhang Pronto Matei Macaxera Já não existe o mal que era Eu sou Anhangupiara J de Anchieta 1977 1589 244 Luxuriosos Sodomitas A sexualidade indígena como é de se prever suscitou grande interesse tanto entre cronistas filosofantes quanto entre gestores de almas Jean de Léry sustenta segundo seu uso que em matéria de lascívia os europeus são piores que os brasileiros Jde Léry 19721578 177 Os costumes matrimoniais a poliginia associada ao prestígio guerreiro o levirato o avunculado ou seja o privilégio de casamento do tio materno sobre a filha da irmã a liberdade prénupcial contrastando com o ciúme pela mulher casada e o rigor com o adultério a hospitalidade sexual praticada com aliados mas também com os cativos a iniciação sexual dos rapazes por mulheres mais velhas os despreocupados casamentos e separações sucessivos tudo isto era insólito Os jesuítas debruçarseão com especial cuidado sobre estes costumes vide pex Anchieta 1846 e isto por uma razão pratica tratavase de construir famílias cristãs com os neófitos indígenas Para tanto era preciso reconhecer a verdadeira esposa entre as múltiplas esposas sucessivas ou concomitantes ou seja a primeira que havia sido desposada com ânimo de ser vitalícia Por outro lado as regras de aliança dos índios contrariavam os impedimentos canônicos e os missionários logo são levados a pedirem dispensas ao Papa dos impedimentos pelo menos de terceiro e quarto grau Quanto à sodomia fazia parte dos grandes tabus europeus e na América parece estar sempre associada ao canibalismo como se houvesse equivalência simbólica entre se alimentar do mesmo e coabitar com o mesmo Essa correspondência entre homofagia e homossexualismo é discernível entre outros em Michele de Cuneo Cortés e Oviedo significativamente as duas acusações são rechaçadas em conjunto por Las Casas AGerbi 19781975 4849 118 412 e 424 No Brasil sua existência como entre os portugueses haja vista a Inquisição é certa mas seu estatuto moral entre os índios é incerto Jean de Léry e Thévet mencionamna para dizer que é reprovada pelos índios Jde Léry 19721578 174 e AThévet 19531575 137 Os jesuítas curiosamente não parecem falar dela Mas Gabriel Soares de Sousa 19711587 308 já para o fim do século carrega nas tintas São os Tupinambo tão luxuriosos que não h A pecado de luxúria que não cometamsão muito afeiçoados ao pecado nefando entre os quais se não têm por afronta e nas suas aldeias pelo sertão h A alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres publicas Reencontramse aqui as aposições clássicas entre uma antropofagia nobre de vingança e o apetite bestial por carne humana cujo paradigma são os citas nórdicos de Hérodoto Outras Nações de índios Aos poucos vão se conhecendo sobretudo terra adentro outras castas de gentio Pelo fim do século Gabriel Soares de Souza e Fernão Cardim fornecem inventários complexos destas outras etnias Um dos atributos que é repartido entre elas é sintomático da colonização as nações são leais ou traiçoeiras o que supõe sua inserção na rede de alianças coloniais e deixa transparecer uma política indígena com estratégias próprias fazendo uso da política indigenista Mas no século XVI ainda prevalece uma visão que adere estreitamente ao etnocentrismo tupi Denunciase assim a inaudita selvageria dos Aimorés de Porto Seguro e de Ilhéus São estes aimorés tão selvagens que dos outros bárbaros são havidos por mais que bárbaros GSde Sousa 19711587 79 São nômades não lhes conhecendo aldeias Não plantam roças e vivem de caça e coleta de frutos silvestres sua fala é travada e não é passivel de escrita São traiçoeiros e não enfrentam os inimigos em campo aberto senão lhes armam ciladas Comem sua caça crua ou mal assada omofagia que prenuncia o que constitui o paroxismo da selvageria sua antropofagia alimentar GSde Sousa ibidem tema crucial que tratamos acima Distinguese assim um canibalismo de vingança o dos Tupi e um canibalismo alimentar dos bárbaros Aimorés dos Oitacás e alguns mais Uns seguem à risca um ritual elaborado e se comem carne humana não é por gosto ou apetite que a comem APigafetta 19851524 58 mas por vingança Os outros apenas comem para se alimentar Comem estes selvagens carne humana f or mantimento o que não tem o outro gentio que a não come senão por vingança de suas brigas e antiguidade de seus ódiosGSde Sousa 19711587 79 Reencontramse aqui as oposições clássicas entre uma antropofagia nobre de vingança e o apetite bestial por carne humana cujo paradigma são os citas nórdicos de Hérodoto A antropofagia e suas modalidades será no século XVI um tema quase obsessivo e que servirá de operador para as grandes cisões do século Os casos de antropofagia alimentar e de crueldades inauditas durante as guerras de religião na França ou na conquista espanhola das Américas são rememorados acusatoriamente por católicos e protestantes De um lado como de outro publicamse cenas de esquartejamento e suplícios atribuídos ora a calvinistas ora a católicos Dentro da selvageria em que a França se encontra imersa é como se a antropofagia Tupinambá figurasse como a forma mais civilizada dentro do gênero Em 1500 Caminha viu gente em Vera Cruz Falavase então de homens e mulheres O escambo povoou a terra de brasis e brasileiros Os engenhos distinguiram o gentio insubmisso do índio e do negro da terra que trabalhavam Os franceses que não conseguiram se firmar na terra viram selvagens Pelo fim do século estão consolidadas na realidade duas imagens de índios que só muito tenuamente se recobrem a francesa que o exalta e a ibérica que o deprecia Uma imagem de viajante outra de colono Bibliografia ANCHIETA José de 1846 Informação dos casamentos dos ndios do Brasil Revista do Instituto Histórico c Geográfico Brasileiro tomo 8 n2 254262 ANCHIETA José de 1977 1589 Recebimento que fizeram os índios de Guaraparim ao Padre Provincial Marçal Beliarte in Teatro de Anchieta OrgPACardoso 235246 São Paulo edLoyola ANCHIETA José de 198415531584 Cartas Correspondência Ativa e passiva Obras Completas 6o volume OrgHViotti São Paulo Ed Loyola 504pp BROC Numa 1984 Reflets américains dans la poésie de la Renaissance in La Renaissance et le Nouveau Monde 151163 Quebec Musée du Québec BUCHER Bernadette 1977 La sauvage aux seins pendants Paris Hermann 272pp CAMINHA Pero Vaz de 1968 1500 Carta a El Rey Dom Manuel Rio de Janeiro Ed Sabiá 97pp CARDIM Fernão 1980 1625 escrito em 1584 Tratados da Terra e Gente da Brasil São Paulo Ed Itatiaia e EDUSP 206pp CLASTRES Hélène 1972 Les Beauxfrères ennemis A propos du cannibalisme Tupinamba in Destins du Cannibalisme Nouvelle Revue de Psychanalyse n6 7182 CUNHA Manuela C da e CASTRO Eduardo V de 1985 Vingança e Temporalidade os Tupinanbá Journal de La Société des Amécanistes volLI 191208 CUNHA Manuela Carneiro da 19861985 Sobre a servidão voluntária outro dis curso in Antropologia do Brasil Mito história etnicidade 145158 São Paulo Brasi liense e EDUSP DENIS Ferdinand 1851 Une fete brésilienne célébrée en 1550 suvie dun fragment du seizème siècle roulant sur la théogonie des anciens peuples du Brésil et des poésies en langue typique de Christovam Valente Paris Techner DUCHET Michèle 1977 1971 Anthropotogie et Histoire au Siècle des Lumières Paris Flammarion 446pp FERNANDES Florestan 1963 1949 Organização Social dos Tupinambá São Paulo Difusão Européia do Livro 375pp GANDAVO Pero de Magalhães 1980 escrito circa 1570 e 1576 Tratado da Terra do Brasil e História da Província de Santa Cruz São Paulo Ed Itatiaia e EDUSP 149pp GERBI Antonello 19781975 La Naturaleza de las Indias Nuevas De Cristóbal Colón a Gonzalo Fernandez de Oviedo México Fondo de Cultura Econômica 562pp HOLANDA Sérgio Buarque 19771958 Visão do Paraíso Os motivos edênicos no descobri mento e colonização do Brasil São Paulo Cia Editora Nacional 3a Ed 360pp LEITE Serafim SI 1954 Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil São Paulo 3 vols LESTRINGANT Frank 1983 Le cannibale et ses paradoxes Images du cannibalisme au temps des Guerres de Religion MentalitiesMentalités voll n2 419 LÉRY Jean de 1972 1578 escrito circa 1563 Viagem à terra do Brasil São Paulo Martins Ede EDUSP251pp MÉTRAUX Alfred 1967 1928 Religions et magies indiennes dAmérique du Sud Paris Gallimard MONTAIGNE Michel de 19521580 Des cannibales LesEssaisvol1 230245 Paris Garnier NAVARRO Azpicuelta e outros 1988 Cartas Avulsas Cartas Jesuíticas 2 São Paulo Itatiaia e EDUSP 529pp NÓBREGA Pe Manoel da 1988 Cartas do Brasil Cartas Jesuíticas l São Paulo Ed Itatiaia e EDUSP 278pp OLWER Luis Nicolau d org 1963 Cronistas de las Culturas Precolombinas México Fondo de Cultura Economica 756pp PIGAFETTA Antonio 1985 1524 A Primeira Viagem ao Redor do Mundo O diário da expedição de Fernão de Magalhães Porto Alegre LPM 202pp RABELAIS Francois 1955 1552 Briefve Déclaration daucunes dictions plus obscures contenues on quatriesme livre des faicts et dits héroiques de Pantagruel en lespitre liminaires in Oeuwes Complètes Paris Gallimard Bibliothèque de la Pléiade SCHMIDEL Ulrico 1986 1587 Relatos de la conquista del Río de la Plata y Paraguay 15341554 Madrid Alianza Editorial 127pp SCHWARTZ Seymour I and EHRENBERG Ralph E 1980 The Mapping os America New York Harry N Abram Inc 363pp SOUSA Gabriel Soares de 1971 1587 Tratado Descritivo do Brasil em 1587 São Paulo Cia Editora Nacional e EDUSP 389pp STADEN Hans 1974 1557 Duas Viagens ao Brasil São Paulo Ed Itatiaia e EDUSP 216pp THÉVET André 1978 1558 As singularidades da França Antártica São Paulo Ed Itatiaia e EDUSP 271pp THÉVET André 1953 1575 Le Brésil et les Brésiliens Les Français en Amérique pendant la deuxième moitié du XVI e siècle corresponde a La Cosmographie Universelle Paris Presses Universitaires de France 346pp