·

Direito ·

Tradução de Textos

Send your question to AI and receive an answer instantly

Ask Question

Recommended for you

Preview text

Construir portfólio digital seguindo de modo flexível e personalizado as indicações contidas nos documentos em anexo Procurar representar no trabalho toda o percurso de estudo e aprendizagem propiciado pela disciplina Critérios de avaliação a abrangência do trabalho em relação à disciplina b reflexão pessoal interrelacionada aos materiais incluídos c relação dos itens do portfólio com vivências externas à disciplina d avaliação dos processos do ponto de vista da mediação da aprendizagem e autoavaliação Olney Queiroz Assis e Vitor Frederico Kümpel Manual de ANTROPOLOGIA JURÍDICA De acordo com o Provimento n 1362009 Editora Saraiva Manual antropologia jurídica 001277indd 1 9112010 102009 Manual antropologia jurídica 001277indd 2 9112010 102009 Olney Queiroz Assis Vitor Frederico Kümpel 2011 De acordo com o Provimento n 1362009 Manual antropologia jurídica 001277indd 3 9112010 102009 5 ISBN 9788502114203 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Assis Olney Queiroz Manual de antropologia jurídica Olney Queiroz Assis Vitor Frederico Kümpel São Paulo Saraiva 2011 1 Antropologia jurídica 2 Direito Brasil 3 Direito e antropologia 4 Sociologia jurídica I Kümpel Vitor Frederico II Título 1006861 CDU34301 Índices para catálogo sistemático 1 Antropologia jurídica 34301 2 Direito e antropologia 34301 3 Sociologia jurídica 34301 Filiais AMAZONASRONDÔNIARORAIMAACRE Rua Costa Azevedo 56 Centro Fone 92 36334227 Fax 92 36334782 Manaus BAHIASERGIPE Rua Agripino Dórea 23 Brotas Fone 71 33815854 33815895 Fax 71 33810959 Salvador BAURU SÃO PAULO Rua Monsenhor Claro 255257 Centro Fone 14 32345643 Fax 14 32347401 Bauru CEARÁPIAUÍMARANHÃO Av Filomeno Gomes 670 Jacarecanga Fone 85 32382323 32381384 Fax 85 32381331 Fortaleza DISTRITO FEDERAL SIASUL Trecho 2 Lote 850 Setor de Indústria e Abastecimento Fone 61 33442920 33442951 Fax 61 33441709 Brasília GOIÁSTOCANTINS Av Independência 5330 Setor Aeroporto Fone 62 32252882 32122806 Fax 62 32243016 Goiânia MATO GROSSO DO SULMATO GROSSO Rua 14 de Julho 3148 Centro Fone 67 33823682 Fax 67 33820112 Campo Grande MINAS GERAIS Rua Além Paraíba 449 Lagoinha Fone 31 34298300 Fax 31 34298310 Belo Horizonte PARÁAMAPÁ Travessa Apinagés 186 Batista Campos Fone 91 32229034 32249038 Fax 91 32410499 Belém PARANÁSANTA CATARINA Rua Conselheiro Laurindo 2895 Prado Velho FoneFax 41 33324894 Curitiba PERNAMBUCOPARAÍBAR G DO NORTEALAGOAS Rua Corredor do Bispo 185 Boa Vista Fone 81 34214246 Fax 81 34214510 Recife RIBEIRÃO PRETO SÃO PAULO Av Francisco Junqueira 1255 Centro Fone 16 36105843 Fax 16 36108284 Ribeirão Preto RIO DE JANEIROESPÍRITO SANTO Rua Visconde de Santa Isabel 113 a 119 Vila Isabel Fone 21 25779494 Fax 21 25778867 25779565 Rio de Janeiro RIO GRANDE DO SUL Av A J Renner 231 Farrapos FoneFax 51 33714001 33711467 33711567 Porto Alegre SÃO PAULO Av Antártica 92 Barra Funda Fone PABX 11 36163666 São Paulo Rua Henrique Schaumann 270 Cerqueira César São Paulo SP CEP 05413909 PABX 11 3613 3000 SACJUR 0800 055 7688 De 2ª a 6ª das 830 às 1930 saraivajureditorasaraivacombr Acesse wwwsaraivajurcombr Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n 961098 e punido pelo artigo 184 do Código Penal Data de fechamento da edição 11102010 Dúvidas Acesse wwwsaraivajurcombr Diretor editorial Antonio Luiz de Toledo Pinto Diretor de produção editorial Luiz Roberto Curia Gerente de produção editorial Lígia Alves Editora Manuella Santos de Castro Assistente de produção editorial Clarissa Boraschi Maria Preparação de originais Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan Eunice Aparecida de Jesus Arte e diagramação Cristina Aparecida Agudo de Freitas Mônica Landi Revisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati Marie Nakagawa Serviços editoriais Ana Paula Mazzoco Elaine Cristina da Silva Capa IDéE arte e comunicação Manual antropologia jurídica 001277indd 4 9112010 102009 5 Sumário I ANTROPOLOGIA 13 1 Conceito e objeto 13 11 Antropologia e humanismo 14 111 Etapas do humanismo 14 12 Objeto teórico e áreas de estudo 17 2 Antropologia cultural 18 21 Etnografia e etnologia 19 22 Etnologia e antropologia 19 23 Antropologia cultural e antropologia social 20 24 Antropologia e sociologia 22 II PRÉHISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA 25 1 Descoberta do novo mundo 25 2 Estranhamento 26 21 Fascínio pelo estranho 26 22 Recusa do estranho 27 3 Choque de culturas 29 31 Ocidente x Oriente 30 32 Hegemônica x minoritária 32 Manual antropologia jurídica 001277indd 5 9112010 102009 6 7 III RACISMO 35 1 Doutrina racista 35 11 Raça e genética 37 12 Cultura x civilização 39 13 Diversidade de culturas 40 2 Diferenças raciais e sociais 41 IV ANTROPOLOGIA E DIREITO 45 1 Conexões 45 11 Aproximações e afastamentos 46 12 O fenômeno jurídico 47 13 Estudo do direito 48 2 Antropologia jurídica 49 21 Pluralismo jurídico 50 22 Justiça estatal x justiça comunitária 51 V NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA 55 1 Projeto antropológico 55 11 Jean Jacques Rousseau 17121778 55 12 Limitações do século XVIII 56 2 Evolucionismo sociológico 57 3 Evolucionismo biológico 58 31 JeanBaptiste Lamarck 1744 1829 59 32 Charles Darwin 1809 1882 59 4 Evolucionismo antropológico 60 VI EVOLUCIONISMO 63 1 Antropólogos evolucionistas 63 11 Bachofen 1815 1887 64 111 Direito materno x direito paterno 65 12 Edward Tylor 1832 1917 66 Manual antropologia jurídica 001277indd 6 9112010 102010 6 7 2 Temas do evolucionismo 67 21 Sociedades simples ou primitivas 68 22 Parentesco 68 23 Religião e magia 69 3 Críticas ao evolucionismo 70 31 Críticas ao evolucionismo antropológico 71 VII EVOLUCIONISMO E DIREITO 73 1 Religião e direito 73 11 Casamento religioso 75 2 Juristas e evolucionismo 76 21 Henry LévyBruhl 78 22 Outras manifestações 79 VIII LEWIS MORGAN 1818 1881 81 1 Antropologia social e parentesco 81 2 Morgan e o marxismo 82 3 Comunidade gentílica 84 31 Princípio da solidariedade 85 32 Solidariedade e costume 86 4 Fim da solidariedade 87 41 Desigualdade econômica 88 IX FRANZ BOAS 1858 1942 91 1 Antropologia no século XX 91 2 Etnografia 92 21 Reconstrução da cultura 93 3 Cultura e raça 95 31 Cultura e segregação 96 32 Cultura e símbolos 97 4 Difusionismo 97 Manual antropologia jurídica 001277indd 7 9112010 102010 8 9 41 Difusionismo norteamericano 99 411 Ruth Benedict 1887 1948 100 412 Edward Sapir 1884 1939 102 5 Críticas ao difusionismo 103 6 Difusionismo e direito 104 61 Difusão da tópica 105 62 Casos problemáticos 107 X BRONISLAW MALINOWSKI 1884 1942 111 1 Funcionalismo 111 2 Pesquisa de campo 113 3 Fato e totalidade 114 31 Kula 115 4 Natureza humana e cultura 116 41 Ambientes primário e secundário 117 5 Instituições 118 51 Instituição e função 119 52 Disfunção das instituições 121 6 Direito e costume 122 61 Mito e direito 124 7 Instituição e direito 125 71 Instituição e teoria normativa 126 72 Teoria institucionalista 128 721 Mérito da teoria institucionalista 128 XI RADCLIFFEBROWN 1881 1955 131 1 Teoria funcionalista 131 11 Estrutura e função 132 12 Família elementar 133 2 Estrutura social e cultura 134 3 Crítica ao funcionalismo 135 31 Problema do método 136 Manual antropologia jurídica 001277indd 8 9112010 102010 8 9 4 Sociedade e direito 137 41 Funcionalismo e direito 138 42 Direito funcionalismo e estruturalismo 139 XII ÉMILE DURKHEIM 1858 1917 141 1 Autonomia das ciências sociais 141 11 Fato social 142 2 Força dos fatos sociais 143 21 Estudo do suicídio 144 22 Antropologia e religião 145 221 Sagrado e profano 147 3 Direito e solidariedade 148 31 Direito e sociedade complexa 149 4 Justiça e retribuição 150 41 Chimpanzés e Kikuyus 151 XIII MARCEL MAUSS 1872 1950 155 1 Teoria do fato social total 155 2 Sistema do dom 157 21 Obrigação de dar 159 22 Obrigação de restituir 161 23 Quarta obrigação 163 3 Sistema de prestações totais 164 31 Potlatch 165 32 Kula 167 4 Dom e guerra 170 XIV DOM NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA 173 1 Dom fato social total 173 11 Dons entre amigos 174 12 Dom e caritas 176 Manual antropologia jurídica 001277indd 9 9112010 102010 10 11 2 Dom e utopia 178 21 Dom e excluídos 180 211 A demanda do dom 182 22 Dom e objeto sagrado 184 XV NEOEVOLUCIONISMO 187 1 Evolucionismo do século XX 187 11 Leslie Alvin White 1900 1975 187 12 Vere Gordon Childe 1892 1957 189 2 Marshall Sahlins 1930 189 21 Primeiro período 190 22 Segundo período 191 23 Mitopráxis 193 24 Revolução cultural havaiana 194 241 Visita do Capitão Cook 194 242 Abolição do sistema de tabus 196 3 Crítica ao neoevolucionismo 197 4 Neoevolucionismo e direito 199 41 Friedrich Engels 1820 1895 e Karl Kautsky 1854 1938 201 42 Evgeni Bronislavovich Pachukanis 1891 1937 203 XVI ESTRUTURALISMO 205 1 Introdução 205 11 Estrutura significado restrito 205 12 Estrutura significado genérico 206 2 Influência de Saussure 207 3 LéviStrauss e o estruturalismo 208 31 Estrutura e consciência 209 32 Sistemas de culturas 211 33 Organização dualista 211 4 Estruturalismo e direito 213 41 Estrutura e hierarquia 214 Manual antropologia jurídica 001277indd 10 9112010 102010 10 11 XVII CLAUDE LÉVISTRAUSS 19082009 217 1 Símbolo e sociedade 217 11 Linguística e antropologia 217 12 Linguagem e cultura 220 2 Sociedades primitivas 221 XVIII NOVA ANTROPOLOGIA AMERICANA 223 1 Clifford Geertz 1926 2006 223 11 Cultura e religião 224 12 Cultura e ideologia 225 13 O método 226 14 Brigas de galo 227 2 David Schneider 19181995 228 21 Parentesco e cultura 228 22 Natureza e cultura 229 23 Código de conduta e laços de sangue 230 3 Símbolo e direito 232 XIX CULTURA 235 1 Cultura como objeto da antropologia 235 11 Cultura termo ambíguo 235 12 Surgimento da cultura 237 13 Cultura e valores 237 14 Pluralidade de culturas 238 2 Cultura e direito 239 21 Termo cultura uso comum 240 22 Fluxo de culturas 242 221 A imigração 243 3 Direito de ser igual e diferente 244 31 Direito e cidadania 245 32 Direito e minorias 246 Manual antropologia jurídica 001277indd 11 9112010 102010 12 13 XX PROCESSO CULTURAL 249 1 Mudança cultural 249 11 Aspectos sincrônicos 250 111 Endoculturação 251 12 Aspectos diacrônicos 252 121 Invenção 253 122 Difusão e aculturação 254 2 Cultura e ambiente 255 21 Ambiente e direito 256 22 Atividade econômica x defesa do ambiente 257 23 Relação custobenefício 259 24 Urgência do problema 260 XXI CIÊNCIA JURÍDICA 263 1 Modelo teórico dominante 263 11 Sistema de normas 264 12 Norma e proposição 265 13 Norma e interpretação 266 2 Modelo teórico emergente 268 21 Zetética jurídica 268 22 Zetética e dogmática 269 BIBLIOGRAFIA 273 Manual antropologia jurídica 001277indd 12 9112010 102010 12 13 i AntropologiA 1 CONCEITO E OBJETO Adam Kuper 2002 11 relata que em 1917 Robert Lowie decla rou que cultura é o único assunto da antropologia assim como a cons ciência é da psicologia a vida é da biologia e a eletricidade é um campo da física Alguns antropólogos contestaram dizendo que o verdadeiro tema da antropologia é a evolução humana Na perspectiva da cultura ou da evolução humana antropologia é uma ciência que se interessa por ideias valores símbolos normas costumes crenças invenções ambien te etc portanto encontrase associada a outras ciências direito socio logia política história geografia linguística motivo pelo qual sua autonomia não é universalmente reconhecida daí as disputas ou difi culdades em relação à determinação de seu objeto de estudo Para LéviStrauss 2003 386 a antropologia não se distingue das outras ciências humanas e sociais por um objeto de estudos que lhe seja próprio Segundo ele a história quis que a antropologia começasse pelo estudo das sociedades simples também denominadas sociedades primitivas sociedades arcaicas ou sociedades frias Mas esse interesse também é par tilhado por outras ciências inclusive pelo direito Mesmo quando a antropologia voltase para o estudo das sociedades complexas também denominadas sociedades civilizadas sociedades modernas ou sociedades quentes percebese que aí os vínculos com o direito e as demais ciências são até mais visíveis Há portanto muitos pontos de contato entre antropologia e direito fato que ressalta o aspecto interdisciplinar dessas Manual antropologia jurídica 001277indd 13 9112010 102010 14 15 duas áreas do conhecimento e justifica nos seus estudos o interesse de uma área pela outra Os antropólogos de modo geral entendem que a antropologia visa conhecer o homem inteiro o homem em sua totalidade isto é em todas as sociedades e em todos os grupos humanos Esse entendimen to confere à antropologia um tríplice aspecto a de ciência social na medida em que procura conhecer o homem como indivíduo integrante de sociedades comunidades e grupos organizados b de ciência hu mana quando procura conhecer o homem através de sua história suas crenças sua arte seus usos e costumes sua magia sua linguagem etc c de ciência natural quando procura conhecer o homem por meio de sua evolução seu patrimônio genético seus caracteres anatômicos e fisiológicos 11 Antropologia e humanismo Antropologia em sentido etimológico significa o estudo do homem Para Abbagnano 2003 67 é a exposição sistemática dos conhecimen tos que se têm a respeito do homem Visa ela portanto fundar ou constituir um saber científico que toma o homem como objeto Mas conforme Laplatine 2006 13 os antropólogos não estão de acordo com a possibilidade de o homem poder estudar cientificamente o homem Há segundo ele os que pensam como RadcliffeBrown que as socie dades são sistemas naturais que devem ser estudados segundo os méto dos comprovados pelas ciências da natureza e os que pensam como EvansPritchard que é preciso tratar as sociedades não como sistemas orgânicos mas como sistemas simbólicos Para estes últimos longe de ser uma ciência natural da sociedade a antropologia deve ser consi derada uma arte Para LéviStrauss 2003 387 a antropologia procede de certa concepção do mundo ou de uma maneira original de colocar os proble mas uma e outra descoberta por ocasião do estudo de fenômenos sociais que tornam manifestas certas propriedades gerais da vida social Por essas razões entende que a antropologia funda um humanismo demo crático que clama pela reconciliação do homem com a natureza 111 Etapas do humanismo Em estudo intitulado Os três humanismos LéviStrauss 1993 277 a 280 constata que para a maioria das pessoas a antropologia aparece Manual antropologia jurídica 001277indd 14 9112010 102010 14 15 como uma ciência nova um refinamento e uma curiosidade do homem moderno pelos objetos costumes e crenças dos povos ditos selvagens Observa porém que a antropologia não é nem uma ciência à parte nem uma ciência nova é a forma mais antiga e geral do que se costuma de signar por humanismo O humanismo segundo o autor pode ser de composto em três etapas a a da Renascença b a dos séculos XVIII e XIX e c a atual O humanismo da Renascença redescobre a antiguidade greco romana e faz do grego e do latim a base da formação intelectual Nes se sentido esboça uma primeira forma de antropologia na medida em que reconhece que nenhuma civilização pode pensar a si mesma se não dispuser de algumas outras que lhe sirvam de comparação A Renas cença reencontra na literatura antiga noções e métodos esquecidos porém mais especialmente encontra o meio de colocar sua própria cultura em perspectiva confrontando as concepções renascentistas com as de outras épocas e lugares Através da língua grego e latim e dos textos clássicos os homens da Renascença encontraram um método intelectual que pode ser denominado técnica do estranhamento O humanismo dos séculos XVIII e XIX atua numa extensão mais ampla O progresso da exploração geográfica colocou o homem europeu em contato com o acervo cultural das civilizações mais longínquas como China Índia e América Tratase de um humanismo ligado aos interes ses industriais e comerciais que lhe serviam de apoio motivo pelo qual mesmo diante da multiplicidade cultural carrega valores ligados ao etnocentrismo na medida em que estabelece a identificação do sujeito com ele mesmo e da cultura com a cultura europeia O humanismo atual por intermédio da antropologia percorre sua terceira etapa ao focar as sociedades primitivas as últimas civilizações ainda desdenhadas Para LéviStrauss esta será sem dúvida a última etapa porque após ela o homem nada mais terá para descobrir sobre si mesmo ao menos em termos de extensão Os dois primeiros humanismos segundo ele estavam limitados em superfície e qualidade especificamente porque a as civilizações antigas tinham desaparecido e só poderiam ser conhecidas pelos textos ou monumentos b as civilizações longínquas Oriente e Extremo Oriente ainda que possuíssem textos e monumentos só mereciam interesse por suas produções mais eruditas e refinadas c as sociedades primitivas não despertavam interesse porque não possuíam documentos Manual antropologia jurídica 001277indd 15 9112010 102010 16 17 escritos e a maioria delas nem sequer possuía monumentos figurados Para superar essas limitações e preconceitos a antropologia deparase com a necessidade de dotar o humanismo de novos instrumentos de investigação A antropologia conforme LéviStrauss ultrapassa o humanismo tradicional em todos os sentidos visto que seu terreno engloba a tota lidade da terra habitada enquanto seu método reúne procedimentos que provêm tanto das ciências humanas e sociais como das ciências naturais portanto de todas as formas do saber No seu estágio atual a antropo logia fez progredir o conhecimento em três direções a em superfície porque se interessa por todas as sociedades sejam simples ou complexas b em riqueza dos meios de investigação porque em função das ca racterísticas particulares das sociedades primitivas introduziu novos modos de conhecimento que podem ser aplicados ao estudo de todas as outras sociedades inclusive as sociedades contemporâneas mais com plexas como é o caso da sociedade europeia e da norteamericana c na ampliação dos beneficiários porque ao contrário do humanismo clássico restrito aos beneficiários da classe privilegiada alcança as po pulações das sociedades mais humildes A antropologia marca portanto o advento de um humanismo duplamente universal a primeiro procurando sua inspiração no cerne das sociedades mais humildes e desprezadas proclama que nada de humano poderia ser estranho ao homem e funda assim um humanismo democrático que se opõe aos que o precederam criados para privilegia dos a partir de civilizações privilegiadas b segundo mobilizando métodos e técnicas tomados de empréstimo a todas as ciências para fazêlos servir ao conhecimento do homem a antropologia clama pela reconciliação do homem e da natureza num humanismo generalizado Há portanto na base dessa nova antropologia a afirmação do princípio de alteridade e a negação do etnocentrismo Afirmar a alteridade significa fazer um apelo ao homem para reconhecerse no outro espe cificamente para reconhecerse nas carências do outro e enxergar seus privilégios como expressão direta das privações do outro Negar o et nocentrismo significa posicionarse contra a atitude que consiste em supervalorizar a própria cultura e considerar as demais como inferiores selvagens bárbaras e atrasadas O nacionalismo exacerbado é uma via para o etnocentrismo principalmente quando se manifesta por meio de comportamento agressivo de atitudes de superioridade e de hostilidade Manual antropologia jurídica 001277indd 16 9112010 102010 16 17 A discriminação o proselitismo a violência a agressividade são formas de expressar o etnocentrismo e negar a alteridade A ausência de alteridade e a presença do etnocentrismo explicam por que algumas práticas dos índios da costa brasileira como a antro pofagia e a nudez foram condenadas e consideradas selvagens pelos europeus Isso certamente ocorreu porque a avaliação dos padrões cul turais dos índios não foi feita em relação ao contexto cultural dos pró prios índios mas de acordo com os valores éticos e morais predominan tes na cultura europeia 12 Objeto teórico e áreas de estudo A antropologia como dito é uma ciência bastante diversificada Aborda o homem de todas as sociedades portanto uma variedade de aspectos da realidade humana razão pela qual não tem sido tarefa fácil para os antropólogos descrever os reais contornos do seu objeto de estudo Nos seus primeiros momentos meados do século XIX a antro pologia elege como objeto o estudo das sociedades primitivas Essas sociedades não pertencem à civilização ocidental motivo pelo qual é possível apontar algumas características que as distinguem das socie dades europeias a são sociedades de dimensões estritas b tiveram pouco contato com sociedades vizinhas c possuem uma tecnologia pouco desenvolvida d é baixa a divisão do trabalho social no entanto há uma menor especialização das atividades e funções sociais e são sociedades simples porque possuem um grau de complexidade menor No século XX a antropologia amplia seu objeto de estudo para alcançar todas as sociedades e todos os grupos humanos em todas as épocas Assim de acordo com LéviStrauss 2003 399 e Laplatine 2006 20 hoje o objeto teórico da antropologia consiste no estudo do homem inteiro Ela visa ao conhecimento completo do homem Isso implica o estudo do homem e das culturas em todas as suas dimensões A antro pologia considera portanto todos os aspectos da existência humana razão pela qual pode ser dividida no mínimo em quatro áreas de estu do a saber Antropologia cultural ou social Consiste no estudo de tudo que constitui as sociedades humanas seus modos de produção econômica suas descobertas e invenções suas técnicas sua organização política e jurídica seus sistemas de parentesco seus sistemas de conhecimento Manual antropologia jurídica 001277indd 17 9112010 102010 18 19 suas crenças religiosas sua língua sua psicologia suas criações artísticas Antropologia biológica ou física Consiste no estudo de proble mas como o da evolução do homem a partir das formas animais de sua distribuição atual em grupos étnicos distinguidos por caracteres ana tômicos ou fisiológicos Também verifica as relações entre o patrimônio genético e os espaços geográfico ecológico e social ou seja analisa as particularidades morfológicas e fisiológicas ligadas a determinado am biente bem como a evolução dessas particularidades Investiga a gené tica das populações que permite discernir o inato e o adquirido e a in teração entre ambos Antropologia préhistórica Consiste no estudo do homem atra vés dos vestígios materiais enterrados no solo visa reconstituir as so ciedades desaparecidas tanto em suas técnicas e organizações sociais quanto em suas produções culturais e artísticas Antropologia linguística Considera a linguagem parte do patri mônio cultural de uma sociedade o meio pelo qual ela expressa seus valores crenças e pensamentos Consiste no estudo dos dialetos e das técnicas modernas de comunicação Essas áreas como dito estão correlacionadas de tal modo que o estudo de uma inexoravelmente vincula as demais Além disso os re sultados das pesquisas e dos estudos desenvolvidos em todas essas áreas da antropologia repercutem no direito Contudo são os resultados na área da antropologia cultural ou social que têm influenciado mais diretamente a disciplina jurídica Enfim os conhecimentos obtidos pelas pesquisas antropológicas repercutem de maneira bastante osten siva no campo das investigações jurídicas principalmente as pesquisas na área da antropologia cultural 2 ANTROPOLOGIA CULTURAL A antropologia cultural ou social é habitualmente dividida em a etnografia é o primeiro passo da pesquisa antropológica Geralmente denominada pesquisa ou trabalho de campo ocupase portanto da descrição de culturas concretas e b etnologia é o prolongamento da etnografia ou seja é o segundo passo da pesquisa Ocupase do estudo da cultura e da investigação dos problemas teóricos que brotam da análise dos costumes humanos Em virtude da ampliação do campo de estudo e das tarefas do antropólogo LéviStrauss 2003 394 a 399 com o intuito de delimitar Manual antropologia jurídica 001277indd 18 9112010 102011 18 19 o objeto de estudo da antropologia aponta algumas diferenças que merecem ser anotadas entre a etnografia etnologia e antropologia b antropologia cultural e antropologia social c antropologia e sociologia d antropologia e história 21 Etnografia e etnologia Etnografia é o trabalho de campo como dissemos o primeiro está gio da pesquisa antropológica Consistente na observação descrição e análise de grupos humanos considerados em suas particularidades fre quentemente escolhidos entre aqueles que mais diferem dos grupos ditos civilizados visa à reconstituição tão fiel quanto possível da vida de cada um deles A etnografia engloba também os métodos e as técnicas de clas sificação descrição e análise dos fenômenos culturais particulares armas instrumentos crenças e instituições No caso de objetos materiais essas operações prosseguem geralmente no museu que pode ser considerado sob esse aspecto como um prolongamento do campo Esse trabalho de campo é considerado a própria fonte da pesquisa Em vista disso não se trata de conhecimento secundário apenas para ilustrar uma tese Etnologia é o segundo estágio da pesquisa O etnólogo utiliza de modo comparativo os documentos apresentados pelo etnógrafo e ela bora o primeiro passo em direção à síntese a qual pode operarse em três direções a geográfica quando procura integrar conhecimentos relativos a grupos vizinhos b histórica quando visa reconstituir o passado de uma ou várias populações c sistemática quando isola para melhor entender determinado tipo de técnica de costume ou de insti tuição A etnologia portanto compreende a etnografia como seu passo preliminar e constitui seu prolongamento 22 Etnologia e antropologia Durante muito tempo considerouse que a dualidade etnografia etnologia bastavase a si mesma O passo ulterior da síntese era deixa do a outras disciplinas sociologia história filosofia Ao contrário nos países que utilizam os termos antropologia social ou antropologia cultural os conhecimentos estão ligados a uma segunda e última etapa da sínte se tomando por base as conclusões da etnografia e da etnologia A antropologia visa portanto ao conhecimento global do homem abran gendo seu objeto em toda a sua extensão histórica e geográfica aspira a um conhecimento aplicável ao conjunto do desenvolvimento humano Manual antropologia jurídica 001277indd 19 9112010 102011 20 21 desde os hominídeos até os contemporâneos e tendendo para conclusões válidas para todas as sociedades humanas desde a grande cidade mo derna até a menor tribo aborígine Podese pois dizer nesse sentido que existe entre a antropologia e a etnologia a mesma relação que se definiu antes entre esta última e a etnografia Etnografia etnologia e antropologia não constituem disciplinas diferentes ou concepções diferentes dos mesmos estudos São etapas ou momentos de uma mesma pesquisa e a preferência por este ou aquele desses termos exprime somente uma atenção predominante voltada para um tipo de pesquisa que não pode ser exclusivo dos dois outros De qualquer modo nos dias atuais há certo acordo em usar o termo an tropologia em lugar de etnografia e de etnologia como o mais apto para caracterizar o conjunto desses três movimentos da pesquisa 23 Antropologia cultural e antropologia social O termo antropologia social é usado pelos antropólogos britânicos enquanto os norteamericanos preferem o termo antropologia cultural Ainda que essa divergência na adoção de cada termo corresponda a preocupações teóricas bem definidas não há como assinala LéviStrauss grandes diferenças entre o sentido das palavras cultural e sócial quando aplicadas à antropologia LéviStrauss anota que a noção de cultura é de origem inglesa porque foi Tylor o primeiro a definila como o conjunto complexo que inclui conhecimento crença arte moral lei costume e várias outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma socie dade De acordo com essa definição cultura relacionase com as diferen ças existentes entre o homem e o animal dando assim origem à oposição que ficou clássica desde então entre natureza e cultura Nessa perspecti va o homem figura essencialmente como homo faber Costumes crenças leis e instituições aparecem então como técnicas de natureza intelectual que estão a serviço da vida social e a tornam possível assim como as técnicas agrícolas tornam possível a satisfação das necessidades de nu trição ou as técnicas têxteis a proteção contra as intempéries Nessa trilha alguns teóricos americanos entendem que a antropologia social se reduz ao estudo da organização social portanto tratase apenas de um capítulo essencial entre todos os que formam a antropologia cultural RadcliffeBrown todavia extrai do termo antropologia social um significado mais profundo quando define o objeto de suas próprias pesquisas como sendo as relações sociais e a estrutura social Nessa pers Manual antropologia jurídica 001277indd 20 9112010 102011 20 21 pectiva o interesse do estudo concentrase menos nas técnicas e mais nas crenças costumes e instituições Não é mais o homo faber que se encontra no primeiro plano mas o grupo este considerado como o conjunto das formas de comunicação que fundamentam a vida social Não há observa LéviStrauss nenhuma oposição entre as duas perspectivas Prova disto está na evolução do pensamento sociológico francês Nesse sentido Émile Durkheim mostra que é necessário estudar os fatos sociais como coisas perspectiva da antropologia cultural enquan to Marcel Mauss complementa essa visão ao estabelecer que as coisas objetos manufaturados armas instrumentos objetos rituais são elas mesmas fatos sociais perspectiva da antropologia social Podese então dizer que ambas antropologia cultural e antropologia social cobrem exatamente o mesmo programa a uma partindo das técnicas e dos objetos para terminar na supertécnica que é a atividade social e política tornando possível e condicionando a vida em sociedade b outra par tindo da vida social para descer até as coisas nas quais ela imprime sua marca e até às atividades através das quais ela se manifesta Podese ainda apontar uma diferença sutil entre antropologia social e antropologia cultural A antropologia social considera que todos os aspectos da vida social jurídico econômico político técnico estético religioso cons tituem um conjunto significativo e que é impossível compreender qualquer um desses aspectos sem recolocálo em conexão com os demais Ela tende pois a operar o todo em direção às partes ou pelo menos dar uma prioridade lógica ao todo sobre as partes Além disso verifica que uma técnica não tem somente um valor utilitário preenche também uma função e esta implica para ser compreendida considerações não apenas históricas geográficas ou físicoquímicas mas também considerações sociológicas O conjunto das funções recorre por sua vez a uma nova concepção a de estrutura e a noção de estrutura social adquiriu uma imensa importância nos estudos antropológicos contemporâneos A antropologia cultural de certo modo abrange uma concepção análoga embora por caminhos diferentes Assim em lugar da perspec tiva estática apresentando o conjunto do grupo social como uma espé cie de sistema ou constelação adota uma preocupação dinâmica trans missão da cultura que pode levála a conclusão idêntica a saber que o sistema das relações unindo entre si todos os aspectos da vida social desempenha um papel mais importante na transmissão da cultura do que cada um dos aspectos tomados isoladamente Manual antropologia jurídica 001277indd 21 9112010 102011 22 23 Enfim quer a antropologia se proclame cultural ou social aspira sempre a conhecer o homem total encarado num caso a partir de suas produções no outro a partir de suas representações Compreendese assim que uma orientação culturalista aproxime a antropologia da tecnologia da geografia e da préhistória enquanto a orientação sociológica lhe cria afinidades mais diretas com a psicologia a história e a arqueologia Em ambos os casos há uma relação com a linguística porque a linguagem é ao mesmo tempo o fato cultural por excelência distinguindo o homem do animal e aquele por intermédio do qual todas as formas de vida social se estabelecem e se perpetuam 24 Antropologia e sociologia Enquanto a antropologia nos seus primeiros momentos século XIX interessavase pelo estudo das populações mais arcaicas do mun do sociedades simples a sociologia sempre se interessou pelo estudo das populações contemporâneas sociedades complexas Acontece que nos últimos tempos a antropologia também temse interessado pelo estudo dos grupos contemporâneos Como a antropologia tende cada vez mais a se interessar por essas formas mais complexas tornase difícil perceber a verdadeira diferença entre antropologia e sociologia visto que ambas parecem colocarse diante da mesma tarefa na medida em que se interessam pelo mesmo objeto Ocorre segundo LéviStrauss que a sociologia é estritamente solidária com o observador na medida em que toma por objeto a socie dade dele ou uma sociedade do mesmo tipo Vale dizer o sociólogo explica a sua própria sociedade portanto atua sempre do ponto de vista do observador Já a antropologia tende a formular um sistema aceitável tanto para o homem da sociedade simples como para o homem da sociedade complexa Ou seja o antropólogo visa atingir em sua descrição de sociedades estranhas e longínquas o ponto de vista do indivíduo que pertence a essas sociedades o indígena o aborígine Em síntese a antropologia distinguese da sociologia na medida em que ten de a ser uma ciência social do observado ao passo que a sociologia tende a ser a ciência social do observador Já a diferença fundamental entre antropologia e história não é nem de objeto nem de objetivo nem de método tendo o mesmo objeto que é a vida social o mesmo objetivo que é uma compreensão melhor do homem e um método no qual varia apenas a dosagem dos processos de Manual antropologia jurídica 001277indd 22 9112010 102011 22 23 pesquisa elas se distinguem pela escolha de perspectivas complemen tares a história organizando seus dados em relação às expressões conscientes da vida social a antropologia organizando seus dados em relação às condições inconscientes da vida social Essas diferenças estabelecidas por LéviStrauss não são consen suais mas ajudam a entender o processo histórico de construção do saber antropológico cujos primeiros momentos remontam ao século XVI quando alguns teóricos europeus impulsionados pela descoberta do Novo Mundo interessaramse pelo estudo das sociedades antigas Grécia e Roma e das sociedades ditas primitivas Nessa trilha come çaram a refletir e debater alguns temas que mais tarde se tornariam objeto de estudo da antropologia motivo pelo qual o século XVI é considerado o início do período denominado préhistória da antropologia Enfim a descoberta do Novo Mundo colocou frente a frente indivíduos e culturas diferentes Esse fenômeno suscitou problemas que constituem objeto de reflexões e movimentam os estudos antropológicos e jurídicos até os dias atuais daí a importância de colocar em evidência alguns desses problemas Manual antropologia jurídica 001277indd 23 9112010 102011 25 Manual antropologia jurídica 001277indd 24 9112010 102011 25 ii préHiStóriA dA AntropologiA 1 DESCOBERTA DO NOVO MUNDO A gênese da reflexão antropológica é contemporânea à descober ta do Novo Mundo A partir desse período o problema das descontinui dades e das diferenças culturais se projetou sobre a consciência ociden tal de modo súbito e dramático Durante o século XVI a Europa foi invadida por escritos e crôni cas a respeito dos povos até então desconhecidos A maioria desses es critos estava impregnada de informações fantasiosas Chegouse a du vidar da condição humana do aborígine A teoria monogenista segundo a qual todas as raças humanas descendem de um único ramo foi posta em dúvida Muitos foram os relatórios comunicados e cartas que se ocuparam em descrever as novas terras e suas gentes Nesse sentido as denominadas Relações Jesuítas coletânea de relatórios enviados pelos missionários dessa congregação religiosa aos seus superiores São 73 volumes repletos de descrições e opiniões a respeito dos novos povos dos produtos da terra dos seus hábitos e costumes MELLO 1982 187 Sobre esses relatórios opina Barbachano in MELLO 1982 188 Em resumo incansáveis viajantes e diligentes observadores ambos possuídos de luminar confiança em seu destino fosse este secular ou religioso discorreram sobre o tema de sempre afinidades e diferenças entre os homens e seus mundos sociais e culturais Ideias preconcebidas considerações precipitadas e um forte sabor passional de humildade ou de infantilismo permeiam o conteúdo das páginas escritas Manual antropologia jurídica 001277indd 25 9112010 102011 26 27 2 ESTRANHAMENTO Como diz LéviStrauss os homens da Renascença ao estudarem outras culturas especialmente a cultura grecoromana desenvolveram um método intelectual que pode ser denominado técnica do estranhamento Estranhamento significa perplexidade diante de uma cultura di ferente Essa perplexidade implica reconhecer que algo antes conside rado natural passe a ser problemático Assim o encontro de culturas distintas e distantes pode provocar um novo olhar sobre si mesmo e sobre os hábitos práticas ou costumes antes considerados evidentes Acima de tudo permite reconhecer que existem outras culturas que o homem é dotado de uma extraordinária aptidão para inventar diferentes modos de vida e formas de organização social A variedade de culturas introduz diferenças entre os seres humanos mas também permite re conhecer algo comum a todos a extraordinária capacidade de elaborar costumes crenças línguas instituições modos de conhecimento que aponta para uma humanidade plural LAPLATINE 2006 21 22 A gênese da reflexão antropológica deparase com esse fenômeno que é a diversidade de culturas Segundo Laplatine 2006 38 a 53 o contato com os povos das terras descobertas provocou na Europa o aparecimento de duas ideologias a o fascínio pelo estranho significa enaltecer a cultura das sociedades primitivas e censurar a cultura euro peia b a recusa do estranho significa censurar e excluir tudo o que não seja compatível com a cultura europeia Os desdobramentos e re percussões dessas ideologias na sociedade europeia mostram de forma indubitável as conexões entre antropologia e direito 21 Fascínio pelo estranho A fascinação pelo estranho implica contrapor a figura do bom selvagem à do mau civilizado Nesse sentido as seguintes manifestações e relatos de historiadores religiosos e viajantes a Las Casas esse dominicano em l550 opõese à classificação dos índios como bárbaros afirmando que eles têm aldeias vilas cidades reis senhores e uma ordem política que em alguns reinos é melhor que a dos europeus b Américo Vespúcio sobre os índios da América afirma que se trata de pessoas bonitas de corpo elegante e que nenhum possui qualquer coisa que seja seu pois tudo é colocado em comum c Cristóvão Colombo sobre os habitantes do Caribe afirma que não há no mundo homens e mulheres nem terra melhor d La Hotan em 1703 escreve que os hurons vivem Manual antropologia jurídica 001277indd 26 9112010 102011 26 27 sem prisões e sem tortura passam a vida na doçura na tranquilidade e gozam de uma felicidade desconhecida dos europeus O fascínio por alguns aspectos da cultura das sociedades primitivas simples constitui a origem principal da crítica aos costumes europeus Essa fascinação também estabelece a crença de que a forma mais perfei ta de vida humana é a que existiu no primeiro período da humanidade mito da idade de ouro ou a que se observa nos povos primitivos mito do bom selvagem Diderot por exemplo chegou a sugerir que as socie dades primitivas constituíam um apogeu a partir do qual a humanidade só conheceu decadência A figura do bom selvagem contudo encontra rá sua formulação mais sistemática e mais radical com Rousseau No Brasil é possível enxergar esse fascínio na obra literária de José de Alen car especialmente nos romances O guarani e Iracema Cabe também mencionar o pensador lusobrasileiro Padre Antônio Vieira que em seus Sermões protestou veementemente contra a escravidão dos índios 22 Recusa do estranho A recusa do estranho implica contrapor a figura do mau selvagem à do bom civilizado Nesse sentido as manifestações de alguns juristas e historiadores a Selpuvera esse jurista espanhol em 1550 afirma que os europeus por superarem as nações bárbaras em prudência e razão mesmo que não sejam superiores em força física são por natu reza os senhores portanto será sempre justo e conforme o direito na tural que os bárbaros preguiçosos e espíritos lentos estejam submeti dos ao império de príncipes e de nações mais cultas b Gomara em seu livro História geral dos índios escrito em 1555 afirma que a grande glória dos reis espanhóis foi a de ter feito aceitar aos índios um único Deus uma única fé e um único batismo e ter tirado deles a idolatria o canibalismo a sodomia os sacrifícios humanos e ainda outros grandes e maus pecados que o bom Deus detesta e que pune c Oviedo na sua História das Índias de 1555 escreve que as pessoas daquele país são por sua natureza ociosas viciosas de pouco trabalho covardes sujas e mentirosas d Cornelius de Pauw no seu livro Pesquisas sobre os ame ricanos de 1774 referese aos índios americanos como raça inferior insensíveis covardes preguiçosos inúteis para si mesmos e para a so ciedade e a causa dessa situação seria a umidade do clima Ainda no século XIX Stanley compara os africanos aos macacos de um jardim zoológico Esses comentários serviram para dogmatizar preconceitos Manual antropologia jurídica 001277indd 27 9112010 102011 28 29 justificar a colonização e suas práticas violentas submeter os negros à escravidão e fundar doutrinas racistas Mesmo Hegel em sua Introdução à história da filosofia percorre o caminho da recusa do estranho ao enfrentar o problema das diversida des culturais Nesse sentido elege a filosofia como critério de análise e comparação das diferentes culturas Estabelece que a filosofia é sincrô nica com a cultura portanto ambas se desenvolvem conjuntamente Assim ali onde a filosofia é mais desenvolvida a cultura instituições formas de governo moralidade vida social atitudes hábitos e preferên cia de um povo também o será É óbvio que com esse critério de com paração a cultura europeia em relação às demais aparece em um pata mar mais elevado motivo pelo qual Hegel classifica os homens europeus como civilizados e os nativos americanos e africanos como selvagens Hegel com base em critérios extraídos da sua própria cultura estabeleceu valorações para as culturas dos demais povos razão por que passou a afirmar que os nativos africanos e americanos vivem em esta do de selvageria e em situação deplorável que as religiões desses povos são meras superstições motivo pelo qual os levam a divinizar vacas e macacos que não possuem instituições sociais e por isso vivem incons cientes de si mesmos Nessa trilha afirma que a diferença entre os povos africanos e asiáticos por um lado e os gregos e romanos e euro peus por outro reside precisamente no fato de que estes são livres e o são por si ao passo que aqueles o são sem saberem que são isto é sem existirem como livres 1974 343 344 Assim diante de culturas diferentes alguns teóricos passaram a entender que havia duas formas de pensamento cientificamente obser váveis e com leis diferentes o pensamento lógicoracional dos civiliza dos europeus e o pensamento prélógico e préracional dos selvagens ou primitivos africanos índios aborígines O primeiro era considera do superior verdadeiro e evoluído o segundo inferior falso supersti cioso e atrasado cabendo aos europeus auxiliar os selvagens primi tivos a abandonar sua cultura e adquirir a cultura evoluída dos colonizadores CHAUÍ 2002 282 A ideologia da recusa do estranho forneceu ao colonialismo as justificativas para o uso da força no sentido de escravizar os índios ou de integrálos à cultura europeia Essa ideologia também serviu para negar humanidade aos negros africanos e submetêlos ao regime de escravidão nas colônias americanas Assim no Brasil o colonizador Manual antropologia jurídica 001277indd 28 9112010 102011 28 29 europeu impôs a sua cultura mas uma cultura inspirada na ideologia da recusa do estranho razão pela qual o direito brasileiro do período co lonial é essencialmente um direito que visa garantir e perpetuar os interesses dos colonizadores Na prática tratase de um modelo jurídi co que visa proteger uma economia colonial fundada na propriedade fundiária e cuja produção depende do uso da mão de obra escrava Se gundo relato de Stuart Schwarz LOPES 2000 265 a cidade de Sal vador por volta do ano de 1700 tinha aproximadamente 40000 habi tantes dos quais 57 eram escravos Conforme relata Flávia Tavares em excelente reportagem publi cada nos jornais Washington Post e O Estado de S Paulo 26102008 o Brasil é tido como o país com o maior número de negros fora da África Há expectativa de que ainda este ano a população que se auto declara negra ultrapasse a que se denomina branca Ainda assim os negros brasileiros têm os piores índices de educação e salários a re muneração média dos negros é metade da dos brancos e os negros ocupam apenas 35 dos cargos de chefia somente 6 em cada 100 jovens negros entre 18 e 24 anos frequentam instituições de ensino superior Ancorada em dados estatísticos a jornalista conclui que a pirâmide hierárquica de cargos e salários tanto nas empresas como nas escolas possui uma base formada preponderantemente por pessoas negras e conforme se vai subindo na hierarquia em direção ao topo da pirâmide a situação se inverte o número de pessoas negras vão dimi nuindo em relação ao número de pessoas brancas Em virtude da atual situação social em que se encontram negros e mulatos brasileiros não é exagero afirmar que o modelo colonialista de dominação atravessou o período imperial penetrou no período re publicano e de certo modo permanece até hoje porque ainda seguem em curso os seus efeitos devastadores É importante fixar que a ideolo gia da recusa do estranho maquiada com outros discursos continua presente no mundo contemporâneo e às vezes até de forma mais vio lenta que no período colonial 3 CHOQUE DE CULTURAS Uma característica comum dos povos consiste em repudiar as formas culturais jurídicas morais religiosas sociais estéticas com as quais não se identificam Isso se traduz pela repulsa diante de maneiras de viver crer ou pensar que lhe são estranhas Para gregos e romanos Manual antropologia jurídica 001277indd 29 9112010 102011 30 31 tudo que não participava da sua cultura era catalogado como bárbaro A civilização europeia utilizou o termo selvagem com o mesmo sentido Os termos selvagem e bárbaro evocam um gênero de vida animal por opo sição à cultura humana Essa atitude de repúdio ao estranho encontra guarida em muitas sociedades sejam elas primitivas ou civilizadas A humanidade confor me constata LéviStrauss 1993 334 335 muitas vezes cessa nas fronteiras da tribo do grupo linguístico ou da aldeia a tal ponto que um grande número de populações ditas primitivas se autodesigna com um nome que significa os homens os bons os excelentes os completos im plicando assim que as outras tribos grupos ou aldeias não participam das virtudes ou mesmo da natureza humana mas são quando muito compostos de maus de malvados de macacos da terra ou de ovos de piolho Chegase frequentemente a privar o estrangeiro deste último grau de realidade ovo de piolho fazendo dele um fantasma ou uma aparição Assim realizamse situações curiosas em que dois interlocutores se replicam cruelmente Nas grandes Antilhas conforme relata Lévi Strauss alguns anos após a descoberta da América enquanto os espa nhóis enviavam comissões de investigação para pesquisar se os indíge nas tinham ou não uma alma os indígenas dedicavamse a afogar brancos prisioneiros a fim de verificar por uma observação demorada se seus cadáveres eram ou não sujeitos à putrefação Essa passagem ilustra um paradoxo quem pretende estabelecer uma discriminação cultural acaba por se identificar com aquilo que se pretende negar O europeu por exemplo ao recusar humanidade ao africano colocou sob suspeita a sua própria humanidade Contra essa concepção os grandes sistemas filosóficos e religiosos cristianismo islamismo budismo estoicismo kantismo marxismo bem como as declarações dos direitos humanos proclamaram a igual dade natural entre todos os homens e a fraternidade que deve unilos sem distinção de raça ou cultura Ocorre porém que a declaração formal da igualdade natural entre todos os homens esbarra na existência igual mente natural que é a diversidade de culturas 31 Ocidente x Oriente Edward Said in KUPER 2002 261 na sua obra Orientalismo reinterpreta a oposição entre civilização e barbárie tema central no discurso ocidental que incorpora a ideologia da recusa do estranho Said Manual antropologia jurídica 001277indd 30 9112010 102011 30 31 afirma que todas as ciências coloniais têm uma estrutura comum que consiste em dividir os povos do mundo em dois grupos nós os civiliza dos europeus e norteamericanos e os outros os bárbaros nativos de lugares exóticos ou povos de países periféricos Os outros são represen tados como um grupo indiferenciado caracterizado por suas diferenças em relação aos europeus nós uma diferença sempre desfavorável para eles os outros que são tidos como irracionais supersticiosos obstina damente conservadores movidos pela emoção sexualmente descontro lados propensos à violência e assim por diante São essas diferenças que motivam e justificam o colonialismo e outras formas de dominação Said conclui que o orientalismo é um tipo de projeção ocidental civili zação sobre o Oriente barbárie e o desejo de governálo Algumas pessoas acreditam que as culturas podem ser classificadas como superiores e inferiores e tendem a prezar mais a sua própria cul tura O nacionalismo anda nesse sentido quando faz menção à superio ridade da cultura nacional Alguns teóricos entendem que em termos de cultura as fronteiras nacionais se diluíram portanto não faz sentido falar da cultura de determinado Estado nacional visto que o fenômeno da globalização unificou o Ocidente numa única cultura a cultura de consumo cuja expressão maior são os Estados Unidos Ancorado nessa ideia de que as culturas ocidentais foram unifica das Samuel Huntington in KUPER 2002 23 anuncia de forma pro fética e catastrófica que após a guerra fria a história global iniciou uma nova fase em que as principais fontes de conflito não serão fundamen talmente econômicas ou ideológicas mas culturais Afirma que as principais diferenças no desenvolvimento político e econômico entre as civilizações estão claramente enraizadas em suas culturas distintas a cultura e as identidades culturais estão moldando os padrões de coesão desintegração e conflito no mundo Nesse novo mundo a política local é a política da etnia a política global é a política de civilizações Para Huntington a rivalidade das superpotências será substituída pelo cho que de civilizações portanto os atuais conflitos não passam de estágios de um conflito maior que está por vir o verdadeiro conflito global que será travado entre civilização e barbárie Bernard Lewis também segue essa linha catastrófica e profética Nesse sentido Emir Sader em artigo publicado na revista Caros Amigos n 139 de outubro de 2008 lembra que a afirmação de Bernard Lewis A Europa será muçulmana daqui até o final do século tem uma conotação de ameaça de risco de catástrofe de triunfo da barbárie Para Manual antropologia jurídica 001277indd 31 9112010 102011 32 33 Sader a visão de Lewis assentase na concepção de que o mundo mu çulmano ficou estagnado em uma oposição fundamental ao Ocidente motivo pelo qual todos os avanços da chamada modernidade o Renas cimento a Reforma as transformações tecnológicas a democracia libe ral a economia de mercado teriam sido ignorados no mundo islâmico Para Edward Said o coração da ideologia de Lewis sobre o Islã é o de que este não mudará nunca que toda abordagem política histórica ou acadêmica dos muçulmanos deve começar e terminar pelo fato de que os muçulmanos são muçulmanos 32 Hegemônica x minoritária O movimento multiculturalista entende que mesmo no âmbito do território de um Estado nacional convivem diversas culturas motivo pelo qual não aceita a ideia de que os Estados Unidos possuam uma única cultura Nesse sentido entende que vários grupos de imigrantes possuem uma cultura própria e rejeita o fato de que devam assimilar a cultura americana predominante Para os multiculturalistas a nação americana é culturalmente fragmentada O problema portanto não reside na existência de diferenças mas no fato de as diferenças serem tratadas com desprezo como desvio Existe uma cultura hegemônica do homem americano branco anglosaxão classe média heterosse xual que impõe suas regras a todos As culturas minoritárias são es tigmatizadas por serem diferentes O grupo dominante impõe suas próprias características ideais como normas definidoras e qualifica qualquer um que seja diferente como fora do padrão KUPER 2002 296 O movimento multiculturalista ao negar a padronização da cul tura confirma o direito de ser diferente Para alguns teóricos a exaltação da diferença enfraquece os valo res comuns e ameaça a coesão nacional Nesse sentido Jonathan Sacks rabinochefe da GrãBretanha em artigo publicado no jornal O Estado de S Paulo 28102007 afirma que o multiculturalismo já se esgotou mas em sua época foi uma ideia boa e até mesmo nobre porque o ob jetivo era fazer com que as minorias étnicas e religiosas se sentissem mais valorizadas e respeitadas e portanto capazes de integrarse à sociedade como um todo Segundo Sacks o multiculturalismo apesar de afirmar a cultura das minorias e dar dignidade à diferença não promoveu a integração e sim a segregação Afirma que nos países em que o multiculturalismo foi Manual antropologia jurídica 001277indd 32 9112010 102011 32 33 experimentado as sociedades tornaramse mais hostis fragmentadas e intolerantes Para ele sem uma cultura nacional não há nação Entende que com as novas tecnologias a ideia de uma cultura nacional se desin tegra porque unindo as pessoas globalmente as novas tecnologias as dividem localmente fortalecem as filiações não nacionais e podem fazer com que as pessoas por exemplo na Inglaterra sintamse mais hindus mulçumanas ou judias do que britânicas Enfim segundo Sacks culturas nacionais formam nações culturas globais podem vir a destruílas Não nos parece correto culpar o movimento multiculturalista pelo retorno da ideologia ultranacionalista recusa do estranho entre os eu ropeus Parecenos que a crise econômica com o consequente desem prego tem provocado certa xenofobia em relação aos estrangeiros e os partidos de direita têm explorado essa situação É preciso lembrar que ancorado nas propostas de expulsar estrangeiros e proibir o véu islâ mico nas escolas o ultradireitista Partido do Povo Suíço venceu as eleições gerais naquele país Essa vitória certamente abriu espaço para a adoção de leis mais duras contra etnias e imigrantes em toda a Euro pa como é o caso da lei denominada Diretriz de Retorno aprovada por esmagadora maioria do Parlamento Europeu em junho de 2008 que estabelece entre outras violências o encarceramento do clandestino por até 18 meses É preciso também recordar que a ascensão do partido nazista alemão começou com a ideia de uma cultura genuinamente nacional a manipulação política dessa ideia resultou em intolerâncias segregações depois perseguições e por fim extermínios Quando pessoas de nações e grupos étnicos distintos entram em contato é possível ocorrer confronto ou choque de culturas Quando isso acontece alguns reivindicam a superioridade da cultura local e exigem a adaptação dos indivíduos de culturas diferentes outros acre ditam na diversidade de culturas e por causa disso defendem o direito das minorias dos dissidentes dos marginalizados e dos colonizados de preservar a sua própria cultura É comum nessas situações estabelecer conexões entre etnias e culturas que podem resultar na hipótese de que cultura é transmitida pela raça A conexão raçacultura possibilitou o surgimento da doutrina racista Conforme LéviStrauss 1980b 47 o pecado original da antro pologia consiste na confusão entre a noção meramente biológica da raça supondo por outro lado que mesmo nesse campo limitado essa noção possa pretender atingir qualquer objetividade o que a genética moder Manual antropologia jurídica 001277indd 33 9112010 102012 34 35 na contesta e as produções sociológicas e psicológicas das culturas humanas Bastou a Gobineau fundador da doutrina racista ter come tido esse pecado para se ter encerrado no círculo infernal que conduz de um erro intelectual não excluindo a boafé à legitimidade involun tária de todas as tentativas de discriminação e de exploração O racismo é o desdobramento moderno mais nefasto e cruel da ideologia da recusa do estranho Os seus efeitos devastadores sobre as relações humanas justificam o interesse que antropólogos e juristas dedicam ao assunto motivo pelo qual será examinado no capítulo se guinte Manual antropologia jurídica 001277indd 34 9112010 102012 34 35 iii rAciSmo 1 DOUTRINA RACISTA Johann Blumenbach considerado o fundador da antropologia fí sica dividiu a espécie humana em cinco raças e explicou as diferenças raciais como consequência das influências ambientais sobre uma forma ancestral única e comum a todos os homens MELLO 1982 190 Essa teoria ao estabelecer que todos os seres humanos têm uma origem comum reafirma a crença do iluminismo na unidade da humanidade Mas ao afirmar a existência de raças tornou possível o estabelecimen to de um vínculo entre raças e culturas A partir de então a antropolo gia física tem sido manipulada com o intuito de explicar as diferenças culturais em termos biológicos ou raciais Nessa trilha as disparidades culturais e sociais são entendidas como a expressão de diferenças raciais ou seja a raça determinaria a cultura e por conseguinte existiriam raças e culturas superiores O racismo pode ser definido como uma doutrina segundo a qual todas as manifestações culturais históricas e sociais do homem e os seus valores dependem da raça também segundo essa doutrina existe uma raça superior ariana ou nórdica que se destina a dirigir o gênero hu mano As concepções racistas constituem um fenômeno antigo recusa do estranho porém a sua arquitetura teórica tem início no final do século XIX com o francês Gobineau considerado o fundador da teoria racista Para ele as grandes raças primitivas que formavam a humani dade nos seus primórdios branca amarela negra não eram só desi Manual antropologia jurídica 001277indd 35 9112010 102012 36 37 guais em valor absoluto mas também diversas em suas aptidões parti culares A tara da degenerescência estava segundo ele ligada mais ao fenômeno de mestiçagem do que à posição de cada uma das raças numa escala de valores comum a todas destinavase pois a atingir toda a humanidade condenada sem distinção de raça a uma mestiçagem cada vez mais desenvolvida LÉVISTRAUSS 1980b 47 Depois da Primeira Guerra Mundial os nazistas viram no racismo um mito consolador uma fuga da depressão da derrota Nessa trilha Hitler transformou o racismo no carrochefe de sua política cuja dou trina elaborada por Alfred Rosenberg em 1930 Mito do século XX afirma um rigoroso determinismo racial ao estabelecer que qualquer manifestação cultural de um povo depende de sua raça Assim a diver sidade de culturas reforçava uma teoria racial da diferença Esse deter minismo será combatido por vários intelectuais alemães especialmente pelo antropólogo Franz Boas quando afirma categoricamente a sua principal hipótese a raça não determina a cultura Em síntese as teorias racistas pretendem provar a que existem raças b que as raças são biológicas e geneticamente diferentes c que há raças atrasadas e adiantadas inferiores e superiores d que as raças atrasadas e inferiores não são capazes de desenvolvimento intelectual e estão naturalmente destinadas ao trabalho manual pois sua razão é muito pequena e não conseguem compreender as ideias mais complexas e avançadas e que as raças adiantadas e superiores estão naturalmen te destinadas a dominar o planeta e que se isso for necessário para seu bem têm o direito de exterminar as raças atrasadas e inferiores f que para o bem das raças inferiores e das superiores deve haver segregação racial separação dos locais de moradia de trabalho de educação de lazer etc pois a não segregação pode fazer as inferiores arrastarem as superiores para o seu baixo nível assim como fazer as superiores ten tarem inutilmente melhorar o nível das inferiores CHAUÍ 2002 86 Observa Chauí que as teorias racistas estão a serviço da violência da opressão da ignorância e da destruição A biologia e a genética afir mam que as diferenças na formação anatômicofisiológica dos seres humanos não produzem raças Raça portanto é uma palavra inventada para avaliar julgar e manipular diferenças biológicas e genéticas As teorias racistas não são científicas são falsas e irracionais implicam práticas culturais econômicas sociais e políticas para justificar a vio lência contra seres humanos Manual antropologia jurídica 001277indd 36 9112010 102012 36 37 Ainda que a ciência moderna conteste a existência de raças e con firme a impossibilidade de afirmar a superioridade ou inferioridade intelectual de um grupo étnico em relação a outro a doutrina racista continua em evidência e insiste na relação raçacultura ou seja apro veitase da confusão que foi estabelecida entre uma noção puramente biológica raça e a produção cultural dos povos Pretende pois trans formar diferenças étnicas e culturais em diferenças biológicas naturais imutáveis e separar os seres humanos em superiores e inferiores dando aos primeiros justificativas para explorar e dominar os segundos 11 Raça e genética Conforme o jornal Folha de S Paulo 19102007 o geneticista norteamericano James Dewey Watson tido como codescobridor da estrutura do DNA e agraciado em 1962 com o prêmio Nobel de Medi cina em entrevista ao Sunday Times outubro2007 declarou ser pes simista em relação ao futuro da África porque todas as nossas políticas sociais são baseadas no fato de que a inteligência deles dos negros é igual à nossa apesar de todos os testes dizerem que não é bem assim não explicou que testes são esses Pessoas que já lidaram com empre gados negros não acreditam que isso a igualdade de inteligência seja verdade Watson pressionado pelos meios de comunicação da sociedade globalizada escreveu um artigo para o jornal The Independent no qual ter sido mal interpretado Segundo ele àqueles que inferiram das minhas palavras que a África enquanto continente é de alguma forma geneti camente inferior só posso me desculpar sem reserva Não foi isso o que eu quis dizer E o que é mais importante do meu ponto de vista é que não há base científica para tal crença Mas no mesmo artigo Watson sugere que são os genes ou sequên cias de DNA que determinam a capacidade intelectual e o comportamen to moral das pessoas Segundo ele ao descobrir o tamanho da influência dos genes no comportamento moral também poderemos entender como os genes influenciam a capacidade intelectual E prossegue afirmando que o desejo esmagador da sociedade hoje é assumir que poderes iguais de raciocínio são uma herança universal da humanidade Mas simples mente desejar que seja esse o caso não basta Isso não é ciência Na trilha de Watson outras pessoas menos célebres expressam seus desejos incontroláveis de encontrar alguma coisa qualquer coisa Manual antropologia jurídica 001277indd 37 9112010 102012 38 39 mesmo no campo da genética ou da biologia que possa servir para estabelecer alguma diferença qualquer diferença mesmo entre etnias brancos amarelos negros mestiços e com isso justificar a superiori dade de umas sobre as outras Cabe apenas para reflexão a seguinte pergunta o comportamento moral racista dessas pessoas é genético ou cultural Os geneticistas contestam a existência de raças e confirmam que é impossível estabelecer a superioridade intelectual de um grupo étnico sobre outros Os antropólogos entendem que as diferenças entre umas e outras nações se devem à cultura e não existe cultura superior ou inferior Além disso para os antropólogos a cultura não é herdada biologicamente mas assimilada adquirida e até mesmo emprestada É óbvio que existe certa originalidade nas culturas dos povos africanos europeus asiáticos ou americanos que permite estabelecer diferenças entre eles Mas essa originalidade devese a circunstâncias geográficas históricas políticas e sociológicas e não a aptidões distintas ligadas às constituições anatômicas ou fisiológicas de negros amarelos brancos ou mestiços Ocorre porém que alguns indivíduos ainda persistem nessa con fusão obstinada de enxergar na cultura uma qualidade inata motivo pelo qual passam a avaliar as pessoas pela cor da pele e características faciais No âmbito do direito penal César Lombroso DINIZ 1988 99 elaborou uma doutrina uma espécie de determinismo biológico que seria capaz de revelar o criminoso nato Para ele determinados indiví duos possuiriam caracteres anatômicos do tipo delinquente O crimino so típico seria portador de caracteres do homem primitivo ou selvagem obtidos por atavismo O atavismo significa o reaparecimento no indiví duo de certos caracteres físicos e morais dos antepassados Assim o delinquente nato seria uma cópia do homem primitivo ou selvagem que aparece na sociedade civilizada por intermédio do atavismo A heran ça atávica portanto explicaria a causa dos delitos Segundo Lombroso os homicidas teriam olhar duro e cruel com os globos oculares injetados de sangue lábios finos mandíbula enorme nariz aquilino ou adunco sempre volumoso e os ladrões teriam olhar vivo errante nariz comprido retorcido ou achatado Também consti tuiria caracteres do delinquente nato malformação das orelhas maxi lares proeminentes cabelos abundantes barba escassa rosto pálido uso da mão esquerda daltonismo estrabismo preguiça vaidade desmedida uso de tatuagens etc Manual antropologia jurídica 001277indd 38 9112010 102012 38 39 Ainda se publicam livros nos quais seus autores afirmam ter en contrado provas científicas de que raça é uma realidade biológica com implicações no comportamento moral e no desenvolvimento intelectu al das pessoas Na sua totalidade tais livros apresentam explicações estapafúrdias destituídas de valor científico tal qual as de Lombroso e Gobineau Ocorre porém que alguns intelectuais cuja produção filo sófica e científica não pode ser ignorada acolheram o nazismo portan to comprometeramse com a doutrina racista O que motivou esses intelectuais parece ser algo incompreensível 12 Cultura x civilização Norbert Elias in KUPER 2002 53 a 58 comparou as relações entre a noção alemã de cultura kultur e a ideia francesa de civilização civilisation para explicar por que alguns intelectuais alemães acolheram o nazismo Ele constatou que na tradição francesa civilização era con cebida como um todo complexo e multifacetado que abrangia fatos políticos econômicos religiosos técnicos morais e sociais Esse concei to amplo de civilização expressava o que a sociedade ocidental acredi tava ser superior às sociedades anteriores ou às sociedades contempo râneas mais primitivas Para os alemães contudo civilização era algo exterior e utilitário alheio em muitos aspectos aos valores nacionais Entendiam que a ci vilização era aprimorada com o tempo e transcendia as fronteiras na cionais em contraste com a cultura limitada no tempo e no espaço e conforme com uma identidade nacional Assim quando os alemães expressavam orgulho por suas realizações eles não falavam da sua ci vilização mas sim da sua cultura Esse termo referiase essencialmente a fatos intelectuais artísticos e religiosos Os alemães geralmente traçam uma clara linha divisória entre fatos dessa natureza e fatos políticos econômicos e sociais A cultura não era só nacional mas também pes soal para os alemães todo indivíduo adquiria cultura por meio de um processo de educação e desenvolvimento espiritual O que os franceses consideravam civilização transnacional os alemães consideravam fonte de perigo para a cultura local Elias observou que os intelectuais alemães não se identificavam com as aspirações da classe dominante príncipes e aristocratas Havia diferenças ideológicas Para eles a classe dominante não possuía uma cultura autêntica porque os seus princípios morais advinham de um Manual antropologia jurídica 001277indd 39 9112010 102012 40 41 código de honra artificial O crescimento espiritual era mais valorizado do que o status herdado e os sinais exteriores artificiais do estilo pala ciano A antítese entre uma civilização aristocrática falsa e uma cultura nacional genuína foi projetada numa oposição entre França e Alemanha Essa antítese ganhou nova força depois da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial uma guerra que teria sido declarada contra a Alemanha em nome de uma civilização universal A ideia de cultura entrou em jogo na luta subsequente para redefinir a identidade e o destino da Alemanha Cultura e civilização resumiam os valores rivais que na visão de alguns alemães dividiam Alemanha e França virtude espiritual x materialismo honestidade x artifício moralidade genuína x cortesia exterior Os nacionalistas de direita aprofundaram a antítese e passaram a entender que o crescimento da cultura é orgânico e o da civilização é artificial Nesse sentido cultura e civilização tendem a entrar em con flito na mesma medida em que divergem suas formas de crescimento As nações não devem portanto permitir que seus valores singulares sejam engolidos por uma civilização comum mesmo por que o mundo seria formado por culturas qualitativamente distintas Essas concepções explicariam por que vários intelectuais alemães acolheram os nazistas como arautos de uma renovação cultural da raça e como inimigos de uma civilização artificial 13 Diversidade de culturas Mesmo com o apoio de alguns intelectuais o projeto nazista fra cassou não apenas militarmente mas sobretudo teoricamente É certo que existe pluralidade ou diversidade de culturas motivo pelo qual é até possível com base no critério do desenvolvimento tecnológico falar de uma cultura dominante ou hegemônica Mas ao contrário do que afirma a doutrina racista não existem aptidões raciais inatas tendo em vista que há muito mais culturas humanas do que raças humanas Além disso conforme observações de LéviStrauss 1993 329 duas culturas elaboradas por homens pertencentes à mesma raça podem diferir tanto quanto ou mais que duas culturas provenientes de grupos radicalmen te afastados LéviStrauss 1993 329 a 332 constata que um aspecto impor tante da vida da humanidade é que esta não se desenvolve sob um regi Manual antropologia jurídica 001277indd 40 9112010 102012 40 41 me uniforme mas através de modos extraordinariamente diversificados Essa diversidade das culturas humanas não deve ser concebida de ma neira estática ou fragmentada porque não se trata de uma amostragem inerte ou de um catálogo frio Não se pode analisar cada sociedade ou cada cultura como se tivesse nascido e se desenvolvido isoladamente porque jamais as sociedades humanas estiveram sós pelo contrário elas mantiveram e mantêm entre si contatos muito estreitos Existem portanto nas sociedades humanas simultaneamente em elaboração forças trabalhando em direções opostas umas tendem à manutenção e mesmo à acentuação do particularismo outras agem no sentido da convergência e da afinidade Podese dizer que existe um intercâmbio entre culturas difusão aculturação transculturação fato que explicaria a existência de uma multidão de sociedades com culturas diferentes Por conseguinte a diversidade de culturas é menos função do isolamento dos grupos que das relações que os unem No mundo contemporâneo o fenômeno da globalização coloca em evidência essas situações especialmente o movimento interno de cada cultura no sentido de absorver ou afastar os aspectos de outras culturas que atuam sobre si O observador imparcial percebe que a resistência dos países árabes à ocidentalização da sua cultura não é absoluta A resistência visa à manutenção de algumas instituições cujo poder esta ria ameaçado pela introdução de determinados elementos novos morais jurídicos estéticos econômicos etc provenientes da cultura ocidental Enfim os problemas recusa do estranho detectados na préhis tória da antropologia tornaramse mais complexos racismo diferenças sociais diferenças culturais no mundo contemporâneo e podem ser usados para determinados propósitos ocultos ou inconfessáveis que implicariam perturbações sociais incontroláveis conflitos armados e por conseguinte violência em grande escala 2 DIFERENÇAS RACIAIS E SOCIAIS No Brasil existe por um lado certa preocupação por parte dos antropólogos e seus aliados em proteger e preservar as comunidades indígenas e suas culturas mas por outro lado é quase inexistente a preocupação em debater os problemas das imigrações e das diferenças culturais à semelhança do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos A população brasileira é na sua maioria composta de mestiços cuja cultura expressa uma espécie de sincretismo cultural Talvez por Manual antropologia jurídica 001277indd 41 9112010 102012 42 43 causa disso o tema das diferenças culturais não tenha encontrado res sonância nos movimentos sociais Vale dizer a cultura brasileira talvez em maior proporção do que outras culturas possui um complexo de traços culturais emprestados de várias culturas europeias africanas indígenas asiáticas o qual lhe imprime uma configuração própria O padrão brasileiro é o mestiço resultado da mistura não apenas de etnias mas também de culturas Isso certamente influencia o comportamento e provoca certa tolerância em relação e outras culturas e outras etnias Ocorre porém que uma parte da população brasileira na sua maioria negros e mulatos encontrase excluída do mercado de empre go ou ocupa apenas posições subalternas Esse fato tem motivado a divulgação da ideologia da supremacia de raça com fundamento no mito da igualdade de oportunidades Nessa linha de raciocínio as desigual dades sociais não raras vezes são explicadas como a expressão das diferenças raciais Assim a discussão mais ampla na sociedade brasilei ra gira em torno da desigualdade social que por sua vez coloca em evidência o problema do racismo e seus desdobramentos nas relações sociais especialmente no que diz respeito à posição social renda e ri queza de negros e mulatos Certamente por essas razões os legisladores constituintes fizeram constar no texto constitucional que a República Federativa do Brasil a tem como um dos objetivos fundamentais promover o bem de todos sem preconceito de origem raça cor e quaisquer outras formas de discriminação art 3o IV b nas suas relações internacionais regese dentre outros pelo princípio do repúdio ao racismo art 4o VIII c tipifica a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível sujeito nos termos da lei à pena de reclusão art 5o XLII É preciso anotar porém que existe uma grande distância entre os direitos e garantias formalmente consagrados no texto constitucional e a realidade de fato a que se reportam motivo pelo qual alguns juristas por exemplo o Ministro do STF Eros Roberto Grau enxergam na Constituição um mito que funciona como instrumento de dominação que tanto mais prospera quanto mais seja acreditado Para esses juristas a Constituição é um mito na medida em que instala no seio da socieda de a convicção da igualdade de oportunidade e do combate à discrimi nação racial apenas porque o documento formal expressa que o objeti vo fundamental do Estado é este A Constituição formal é assim mito que as pessoas acalentam dotado de valor referencial exemplar na Manual antropologia jurídica 001277indd 42 9112010 102012 42 43 medida em que contribui eficazmente para a preservação de uma estru tura social que não se pretendia instaurar mas simplesmente manter A situação social de negros e mulatos na sociedade brasileira expli case não em termos de raça mas pela análise da estrutura social que herdamos dos tempos coloniais Conforme relato de Fábio Konder Com parato em artigo no jornal Folha de S Paulo 772008 mais de 35 milhões de jovens africanos foram trazidos como escravos ao Brasil Aqui desembarcados eram conduzidos a um mercado público para serem ar rematados em leilão O preço de um escravo dependia da largura dos punhos e dos tornozelos O enquadramento desses jovens no trabalho rural faziase pela violência contínua Mal alimentados eram obrigados a trabalhar até 16 horas por dia motivo pelo qual o tempo de vida do es cravo brasileiro no eito nunca ultrapassou 12 anos e a mortalidade sempre superou a natalidade daí o incentivo constante ao tráfico negreiro A violência contínua e extremada provocava a busca desesperada de libertação pela fuga ou suicídio As punições faziamse em público geralmente pelo açoite Era frequente aplicar a um escravo até 300 chibatadas quando o Código Criminal do Império as limitava ao máxi mo de 50 por dia Mas em caso de falta grave os patrões não hesitavam em infligir mutilações dedos decepados dentes quebrados seios furados etc Enfim conforme palavras de Comparato a escravidão de africanos e descendentes no Brasil foi o crime coletivo de mais longa duração praticado nas Américas e um dos mais hediondos que a história registra Observa Comparato que os senhores de escravos e seus descen dentes não se sentiram minimamente responsáveis pelas consequências do crime nefando praticado durante quase quatro séculos Essas conse quências permanecem bem marcadas até hoje em nossos costumes nossa mentalidade social e nas relações econômicas Atualmente negros e mulatos representam mais de 70 dos 10 mais pobres da nossa população No mercado de trabalho com a mesma qualificação e esco laridade eles recebem em média a metade do salário pago aos brancos Na cidade de São Paulo mais de 23 dos jovens assassinados entre 15 e 18 anos são negros Na Universidade de São Paulo USP a maior da América Latina os alunos negros não ultrapassam 2 e dos 5400 professores menos de dez são negros Assim o preconceito que tisna os brasileiros de origem africana não está neles marcado apenas fisica mente como se fazia outrora com ferro em brasa Ele aparece registra do como uma degradação social permanente como atesta todos os le vantamentos estatísticos Manual antropologia jurídica 001277indd 43 9112010 102012 44 45 Tudo isso denota que o racismo consciente ou inconscientemente está inserido nas relações sociais Aliás a tipificação do racismo como crime de certo modo significa o reconhecimento de que essa prática efetivamente existe na sociedade brasileira e por isso deve ser reprimi da Mas além do aspecto repressivo ou mitológico as normas jurídicas são dotadas também de um aspecto promocional ou persuasivo que al meja as condutas tidas como desejáveis úteis e convenientes motivo pelo qual se acha em curso algumas medidas legislativas ações afirma tivas de apoio à inserção de negros e mulatos no ensino superior e no mercado de trabalho Cabe ressaltar que nesse e em outros aspectos as contribuições da antropologia ao direito são incomensuráveis especifi camente quando estabelece a alteridade como princípio orientador do estudo antropológico decisão que implica uma posição contrária ao etnocentrismo e ao racismo Enfim ao abordar a doutrina racista e as suas repercussões devas tadoras o fizemos por vários motivos dentre os quais se destacam a primeiro para mostrar que os fundamentos da doutrina racista são falsos e os desdobramentos que resultam da sua prática são inúteis e indesejáveis porque criminosos b segundo para mostrar que embora proibitivas pelo texto constitucional práticas racistas estão enraizadas na cultura brasileira e atingem preponderantemente negros e mulatos c terceiro para alertar que ainda persistem em pleno século XXI prá ticas racistas amparadas por leis escritas e que atingem basicamente imigrantes de países periféricos Essa situação vemse ampliando em países europeus mais desenvolvidos fato que não condiz com a imagem europeia de protetora maior dos direitos humanos Manual antropologia jurídica 001277indd 44 9112010 102012 44 45 iV AntropologiA e direito 1 CONEXÕES Alguns problemas surgidos na préhistória da antropologia e seus desdobramentos na sociedade contemporânea demonstram que o estu do do direito não pode restringirse apenas ao aspecto dogmático que implica meras sistematizações e classificações de normas jurídicas ema nadas do Estado O mundo jurídico é mais articulado e complexo do que aparece nesse tipo de estudo A ciência do direito como diz Tercio Sampaio Ferraz Jr 1995 92 envolve sempre um problema de decisão de conflitos sociais motivo pelo qual tem por objeto central o próprio ser humano que por seu comportamento entra em conflito e cria nor mas para decidilo O ser humano é pois o centro articulador não apenas do pensamento antropológico mas também do pensamento ju rídico As conexões do direito com a antropologia são evidentes visto que o ser humano constitui objeto central dessas duas áreas do conhe cimento motivo pelo qual temas como igualdade e diferença são ao mesmo tempo jurídicos e antropológicos Além disso o direito consti tui um dos aspectos da cultura e esta constitui objeto específico da antropologia cultural A antropologia tal como o direito também se interessa pelos conflitos sociais principalmente no que diz respeito à intervenção normativa na decisão jurídica desses conflitos bem como pelo desdobramento da ordem jurídica diante das transformações cul turais sociais políticas e econômicas Manual antropologia jurídica 001277indd 45 9112010 102012 46 47 11 Aproximações e afastamentos Não há acordo entre os teóricos do direito sobre o método e o objeto da ciência jurídica Também não há acordo sobre a definição do conceito de direito Dizer o que o direito é tornase uma tarefa extre mamente difícil e controversa Há entre os teóricos uma preocupação no sentido de construir uma compreensão universal do fenômeno jurí dico Essa preocupação está presente nas definições que elaboram sobre o conceito de direito Nessa atitude que consiste em compreender o direito como um fenômeno universal há segundo Ferraz Jr 1995 34 algo de humano mas sobretudo de cultural Podemse colher entre os juristas dois tipos de definições as ge néricas e as restritivas As definições genéricas quando isoladas do contexto donde emanam isto é do complexo teórico que as fundamen tam são imprestáveis para traçar os limites daquilo que se define Nesse sentido uma definição inspirada nos jurisconsultos romanos expressa que o direito é a intenção firme e constante de dar a cada um o que é seu não lesar os outros e realizar a justiça Já as definições res tritivas esbarram em dificuldades insuperáveis porque em virtude de serem muito circunstanciadas perdem a sua pretendida universalidade Nesse sentido uma definição inspirada no positivismo jurídico estabe lece que o direito é o conjunto das regras dotadas de coatividade e ema nadas do poder constituído A universalidade dessas duas definições pode ser questionada Há entretanto entre elas uma diferença acentuada no que diz respeito ao enfoque teórico adotado Na primeira definição genérica predomina um enfoque zetético enquanto na outra definição restritiva predomina um enfoque dogmático Não há uma linha divisória entre zetética e dog mática porque toda investigação jurídica sempre utiliza os dois enfoques Mas a diferença é importante quando se aponta o predomínio de um enfoque sobre o outro O enfoque dogmático não questiona suas premissas dogmas predomina o sentido diretivo do discurso visa portanto dirigir o com portamento de uma pessoa induzindoa a adotar uma ação Nessa trilha a dogmática jurídica enfoca mais as premissas técnicas normas jurídi cas suas sistematizações classificações divisões e conceitos O enfoque zetético preocupase com o problema especulativo predomina o sentido informativo do discurso visa portanto descrever certo estado das coi sas Nessa linha a zetética jurídica enfatiza os aspectos antropológicos Manual antropologia jurídica 001277indd 46 9112010 102012 46 47 filosóficos históricos e sociológicos insistindo sobre a inserção do di reito no universo da cultura da justiça da história e dos fatos sociais Assim numa perspectiva dogmática o direito tende a se afastar da antropologia e de outras áreas do conhecimento enquanto numa perspectiva zetética o direito se aproxima da antropologia e de outras áreas do conhecimento Conforme investigações de Boaventura de Sousa Santos 1988 70 71 mesmo entre os antropólogos não há acordo sobre a definição do conceito de direito Essa tensão segundo Santos tem suas raízes nas obras de Malinowski e de RadcliffeBrown considerados os fundadores da antropologia jurídica Malinowski propõe uma estratégia conceitual em que o objetivo da generalidade se sobrepõe ao da especificidade motivo pelo qual conclui que em todos os povos qualquer que seja o grau de seu primitivismo existe direito RadcliffeBrown ao contrário segue uma estratégia conceitual em que o objetivo da especificidade tem precedência sobre o da generalidade motivo pelo qual conclui que algu mas sociedades primitivas não têm direito Esse assunto será retoma do por ocasião da análise das contribuições desses dois antropólogos 12 O fenômeno jurídico Para Ferraz Jr 1995 21 22 o direito é um dos fenômenos mais notáveis na vida humana Compreender o direito é compreender uma parte de nós mesmos É saber por que obedecemos por que mandamos por que nos indignamos por que aspiramos mudar em nome de ideais e por que em nome de ideais conservamos as coisas como estão Ser livre é estar no direito e no entanto o direito também nos oprime e nos tira a liberdade O direito é um mistério o mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana O direito nos introduz num mundo fantástico de piedade e impiedade de sublimação e de perversão O direito serve para expressar e produzir a aceitação da situação existente mas aparece também como sustentação moral da indignação e da rebelião Assim de um lado o direito nos protege do poder arbi trário exercido à margem de toda regulamentação dá oportunidades iguais e ampara os desfavorecidos Por outro lado é também um instru mento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e permite o uso de técnicas de controle e dominação O estudo do direito exige precisão e rigor científico mas também abertura para o humano para a história para o social numa forma Manual antropologia jurídica 001277indd 47 9112010 102012 48 49 combinada que a sabedoria ocidental desde os romanos vem esculpin do como uma obra sempre por acabar Na medida em que o direito se abre para o humano a história e o social ele se depara com a antropo logia daí a ideia de uma antropologia jurídica 13 Estudo do direito A partir do século XIX como resultado da positivação do direito passa a predominar no estudo jurídico o enfoque dogmático e a ciência jurídica passa a ser concebida como ciência dogmática Essa ciência enxerga seu objeto o direito posto e dado previamente pelo Estado como um conjunto compacto de normas que lhe compete sistematizar classificar e interpretar tendo em vista a decisão de possíveis conflitos Assim no mundo contemporâneo o direito aparece fundamentalmente como um fenômeno burocratizado um instrumento de poder e a ciência jurídica como uma tecnologia Sob a inspiração desse modelo formouse entre os juristas uma tendência bastante forte que consiste em identificar a ciência jurídica com um tipo de produção técnica destinada apenas a atender às neces sidades do profissional advogado promotor juiz delegado etc no desempenho imediato de suas funções Sob o império dessa premissa muitos desses profissionais ficam alienados em relação ao processo de construção do próprio direito positivo sistema de normas não perce bem o direito como instrumento de gestão social não visualizam a função social das normas jurídicas não compreendem o direito como um saber que também serve à luta social exigida pelo mundo em que vivemos não entendem o direito como instrumento de mudança enfim não enxergam o direito como uma prática virtuosa a favor do ser hu mano Há entretanto uma tendência no sentido de redirecionar o estudo do direito até como forma de evitar a alienação na qual a dogmática jurídica tende a colocar o profissional do direito Essa tendência reco nhece que o estudo do direito não se reduz a mera sistematização de normas visto que se as normas condicionam comportamentos os com portamentos também condicionam as normas Isso significa que não é possível isolar normas jurídicas de suas condicionantes situadas na antropologia sociologia economia biologia filosofia ética política etc Ferraz Jr 1995 28 29 alerta que as sociedades estão em trans formação e a complexidade do mundo está exigindo novas formas de Manual antropologia jurídica 001277indd 48 9112010 102012 48 49 manifestação do fenômeno jurídico Segundo ele é possível que no fu turo não tão distante esse direito instrumentalizado uniformizado e generalizado sob a forma estatal de organização venha a implodir re cuperandose em manifestações espontâneas e localizadas um direito de muitas faces peculiar aos grupos e às pessoas que os compõem Por isso a consciência da nossa circunstância atual não deve ser entendida como um momento final mas como um ponto de partida Afinal diz ele a ciência não nos libera porque nos torna mais sábios mas é porque nos tornamos mais sábios que a ciência nos libera 2 ANTROPOLOGIA JURÍDICA Para Norbert Rouland 2003 405 a antropologia jurídica de monstra sua utilidade quando permite descobrir e entender o direito que se encontra encoberto pelos códigos Essa utilidade também se evidencia quando prepara e alerta a sociedade para aceitar as evoluções jurídicas que estão em curso e que apontam para um direito mais ma leável punições flexíveis transações ou mediações em vez de julgamen tos regras que mais formam modelos do que prescrevem ordens Tudo isso segundo ele pode ser aceito mais naturalmente quando as pessoas tomam conhecimento de que há muito tempo ou que em algumas socie dades homens e mulheres aos quais chamamos primitivos já reconhe ceram esses procedimentos ou os empregam ainda De modo geral a sociologia jurídica sempre se preocupou com o estudo do direito das sociedades complexas sociedades metropolitanas e industriais enquanto a antropologia jurídica investigava o direito das sociedades simples ou primitivas A partir da década de 1960 contudo houve conforme observa Boaventura de Sousa Santos 1988 uma subversão dessa divisão de trabalho de modo que a antropologia do direito também passou a se interessar pelo estudo das sociedades com plexas ou metropolitanas Deuse assim origem a um sincretismo teó rico e metodológico ainda hoje em processo de evolução Foi nesse contexto científico que o conhecimento antropológico saiu do seu gue to primitivo Essa nova orientação da antropologia jurídica tem auxiliado a corrigir o desvirtuamento teórico que consistiu em suprimir dos estudos acadêmicos a produção jurídica não estatal Nessa trilha a antropologia jurídica tem colocado em evidência o fenômeno conhecido como plura lismo jurídico Manual antropologia jurídica 001277indd 49 9112010 102013 50 51 21 Pluralismo jurídico O pluralismo jurídico pressupõe a existência de mais de um direi to ou ordem normativa no mesmo espaço geográfico No início do sé culo XX com o avanço das teses do positivismo jurídico o pluralismo jurídico perdeu força e ficou praticamente esquecido na segunda meta de do século XX entretanto retorna com todo vigor para constituir tema da antropologia do direito sendo hoje um dos problemas mais amplamente tratados por essa disciplina Conforme Boaventura de Sousa Santos 1988 73 o pluralismo jurídico tem lugar sempre que as contradições se condensam na criação de espaços sociais mais ou menos segregados no seio dos quais se geram litígios ou disputas processados com base em recursos normati vos e institucionais internos Esses espaços sociais variam segundo o fator dominante na sua constituição que pode ser socioeconômico político ou cultural e segundo a composição da classe social Santos cita o espaço jurídico consuetudinário criado pelos comerciantes ame ricanos à revelia das normas do direito oficial civil e comercial com o objetivo de facilitar as transações e diminuir os custos Também des taca os espaços onde se concentram as minorias e os imigrantes ilegais Mas o exemplo de pluralismo jurídico que Santos investiga é o dado pelas associações de moradores de favelas do Rio de Janeiro No Rio de Janeiro as associações de moradores de favelas passaram a assumir funções nem sempre previstas diretamente nos seus estatutos como por exemplo a de arbitrar conflitos entre vizinhos A associação de moradores transformouse assim gradualmente num fórum jurídico à volta do qual se foi desenvolvendo uma prática e um discurso jurídico que possibilitou o surgimento de um direito novo o direito da favela Esse é um direito paralelo não oficial cobrindo uma interação jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal O modelo jurídico da favela representa o traço de um movimento que parece ser mais amplo Esse movimento ou tendência é detectável por múltiplos sinais e os mais importantes são os que dizem respeito à criação em certas áreas do controle social de uma administração jurí dica e judiciária paralela ou alternativa à administração estatal A administração paralela segundo Santos 1988 110 111 recu pera ou reativa em novos moldes estruturas administrativas de tipo popular ou participativo há muito abandonadas ou marginalizadas Assim em áreas como segurança defesa do consumidor relações entre Manual antropologia jurídica 001277indd 50 9112010 102013 50 51 vizinhos questões de família pequenos delitos criamse tribunais sociais comunitários ou de bairros presididos por juízes leigos eleitos ou de signados pelas organizações sociais e em que a representação das par tes por advogados não é necessária O processamento das questões é informal e oral e por vezes nem sequer a sentença é reduzida a escrito Esse modelo marginal tem inspirado reformas no âmbito do direito estatal principalmente com os tribunais de pequenas causas e a aplica ção das denominadas penas alternativas Apesar de toda a sua precariedade o direito da favela representa a prática de uma legalidade alternativa e como tal um exercício alter nativo de poder político ainda que embrionário Não é um direito revo lucionário nem tem lugar numa fase revolucionária de luta de classes Visa decidir conflitos num espaço social marginal Mas de qualquer modo representa uma tentativa para neutralizar os efeitos da aplicação do direito capitalista de propriedade no seio da favela e portanto no domínio habitacional da reprodução social E porque se centra à volta de uma organização eleita pela comunidade o direito da favela repre senta também por essa razão a alternativa de uma administração de mocrática da justiça SANTOS 1988 99 22 Justiça estatal x justiça comunitária No domínio da antropologia jurídica os autores costumam utili zar o método comparativo Assim quando se compara o direito das sociedades simples com o direito das sociedades complexas geralmen te apontam que a as sociedades simples dispõem de um direito cujo processo é flexível sem demarcação nítida da matéria relevante e a reconciliação das partes tem primazia sobre tudo o mais na resolução dos litígios b as sociedades complexas dispõem de um direito forma lista dotado de um processo inflexível e as decisões são baseadas na aplicação das leis sem qualquer preocupação com a reconciliação das partes Santos ao comparar o direito da favela com o direito estatal ve rifica que o direito estatal por ser mais institucionalizado com maior poder coercitivo e com discurso jurídico de menor espaço retórico é concomitantemente mais profissionalizado mais formalista e legalista mais elitista e autoritário Enfatiza que a práxis do direito estatal é re velada pela articulação de três componentes estruturais básicos a retó rica a burocracia e a violência Cada um desses componentes perfaz uma Manual antropologia jurídica 001277indd 51 9112010 102013 52 53 forma de comunicação e uma estratégia de decisão A retórica baseiase na produção de persuasão e de adesão voluntária através da mobilização do potencial argumentativo de sequências e artefatos verbais e não verbais socialmente aceitos A burocracia baseiase na imposição autoritária por meio da mobilização do potencial demonstrativo de conhecimento profis sional das regras formais e dos procedimentos hierarquicamente orga nizados A violência baseiase no uso ou ameaça da força física O fun cionamento e a interação desses três componentes estruturais revelam o modelo jurídico estatal da sociedade capitalista Ocorre porém que esse modelo desde o século XIX temse caracterizado pelo progressi vo abandono da retórica e pela progressiva expansão da burocracia e da violência Paralelamente ao modelo tradicional de administração tecnocrá tica da justiça Santos reconhece a possibilidade de modelos alternativos de administração da justiça que a torne em geral mais rápida mais barata e mais acessível Nesse sentido cita a justiça comunitária que pressupõe a mediação ou conciliação através de instâncias e instituições que sejam descentralizadas e informais e que possam substituir ou complementar o modelo tradicional Essas reformas possibilitariam a construção de um direito novo de um modelo jurídico capaz de limitar e restringir o espaço da dominação da burocracia domínio da hierarquia normativa e da violência ordenação da legitimidade sob coação e de promover a expansão da retórica como processo dialógico de negociação e de participação O direito da favela como visto favorece a emergência de um mo delo jurídico dominado pela retórica portanto permite atingir formas de superar a crise do paradigma tradicional do direito Tal direito faz uso de um modelo decisório de mediação que ao contrário do modelo de adjudicação maximiza o potencial de persuasão para a adesão à de cisão Segundo Santos 1988 61 quanto mais elevado é o nível de ins titucionalização da função jurídica menor tende a ser o espaço retórico do discurso jurídico e viceversa quanto mais poderosos são os instru mentos de coerção ao serviço da produção jurídica menor tende a ser o espaço retórico do discurso jurídico e viceversa Assim nas sociedades em que o direito apresenta um baixo nível de institucionalização da função jurídica e instrumentos de coerção pouco poderosos o discurso jurídico tende a caracterizarse por um amplo espaço retórico Manual antropologia jurídica 001277indd 52 9112010 102013 52 53 Conforme foi destacado a antropologia nos seus primeiros mo mentos interessase pelo estudo das sociedades ditas primitivas espe cialmente pelo seu processo evolucionário Essas sociedades apesar de apresentar um baixo nível de institucionalização despertou o interesse dos teóricos do direito tanto que os primeiros antropólogos os evolu cionistas que serão abordados nos capítulos seguintes eram na sua maioria juristas Manual antropologia jurídica 001277indd 53 9112010 102013 55 Manual antropologia jurídica 001277indd 54 9112010 102013 55 V nAScimento dA AntropologiA 1 PROJETO ANTROPOLÓGICO No século XVIII surge o projeto de fundar uma ciência do homem ou seja aparece o primeiro esboço daquilo que se tornará uma antro pologia social e cultural Esse projeto antropológico supõe a a construção de certo nú mero de conceitos em especial o conceito de homem não apenas como sujeito mas também como objeto do saber b a constituição de um saber pela observação é essencial observar mas além disso é preciso que a observação seja esclarecida c o rompimento com o cogito cartesiano fato que implica estabelecer o princípio da identificação com o outro e o da recusa de identificação consigo mesmo d a adoção de um método de observação e análise adotase o método indutivo que consiste na observação dos fatos para extrair deles princípios gerais Vários teóricos concorreram na elaboração desse projeto mas foi Rous seau quem traçou em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens o programa que se tornará o da antropolo gia clássica LAPLATINE 2006 55 56 11 Jean Jacques Rousseau 1712 1778 Rousseau 1973 307 308 confessa que tem dificuldade de con ceber como num século XVIII em que as pessoas se vangloriam de conhecimentos grandiosos não existem dois homens um que sacrifique vinte mil escudos de seus bens outro dez anos de sua vida para uma Manual antropologia jurídica 001277indd 55 9112010 102013 56 57 viagem de volta ao mundo com a finalidade de estudar não só pedras e plantas mas pelo menos uma vez os homens e os costumes Para Rousse au os homens de seu tempo se atrevem a julgar o gênero humano co nhecendo apenas os nomes das nações Suponhamos diz ele um Mon tesquieu um Diderot ou homens dessa têmpera viajando para instruir seus compatriotas observando e descrevendo como eles sabem a Áfri ca o Peru o Chile o México o Paraguai o Brasil e todas as regiões selvagens suponhamos que esses homens de retorno dessas viagens escrevessem a história natural moral e política do que tivessem visto veríamos nós mesmos sair da sua pena um mundo novo e aprenderíamos assim a conhecer o nosso Para LéviStrauss 1993 42 43 Rousseau é o fundador da antro pologia a no plano prático porque o Discurso sobre a origem e os fun damentos da desigualdade entre os homens constitui o primeiro tratado de antropologia clássica no qual se coloca o problema das relações entre natureza e cultura b no plano teórico porque ao estabelecer no Ensaio sobre a origem das línguas a regra metódica segundo a qual quan do se quer estudar os homens é preciso olhar em torno de si mas para estudar o homem importa que a vista alcance mais longe impõese começar observando as diferenças para descobrir propriedades dis tingue com clareza e concisão admiráveis o objeto próprio do antro pólogo dos objetos do moralista e do historiador Essa regra metódica marca o advento da antropologia porque per mite estabelecer dois princípios fundamentais a primeiro preconiza simultaneamente o estudo dos homens mais distantes e do mais próxi mo ele mesmo b segundo estabelece o princípio da alteridade que consiste na identificação com o outro mesmo o mais fraco e o mais humilde e a recusa de identificação consigo mesmo 12 Limitações do século XVIII Conforme Laplatine 2006 61 62 o século XVIII teve um papel essencial na elaboração dos fundamentos de uma ciência humana mas não podia ir mais longe Segundo ele o obstáculo maior ao surgimento de uma antropologia científica naquele século devese a dois motivos essenciais a primeiro não se realiza uma distinção entre o saber cien tífico e o saber filosófico b segundo não ocorre a separação entre discurso antropológico e discurso histórico Em relação ao primeiro motivo anota que embora a distinção entre o saber científico e o saber filosófico tenha sido abordada não é realizada Manual antropologia jurídica 001277indd 56 9112010 102013 56 57 Vale dizer o conceito de homem tal como é utilizado no século XVIII permanece ainda muito abstrato isto é rigorosamente filosófico Para a pesquisa antropológica o objeto de observação não é o homem e sim indivíduos que pertencem a uma época e a uma cultura e o sujeito que observa não é o sujeito da antropologia filosófica e sim um outro indiví duo que pertence ele próprio a uma época e a uma cultura No que diz respeito ao segundo motivo observa que o discurso antropológico do século XVIII é inseparável do discurso histórico des se período isto é de sua concepção de uma história natural liberada da teologia e animando a marcha das sociedades no caminho de um pro gresso universal Restará um passo considerável a ser dado para que a antropologia se emancipe da história natural e conquiste sua autonomia Paradoxalmente esse passo será dado no século XIX a partir de uma abordagem igualmente historicista o evolucionismo Entendese por evolucionismo o conjunto de doutrinas que veem na evolução a característica fundamental de todos os tipos ou formas de realidade A evolução é tida como o princípio adequado para explicar a realidade em seu conjunto Durante o século XIX o conceito de evolu ção aparece de forma ostensiva nas pesquisas e reflexões filosóficas sociológicas biológicas e antropológicas Essas pesquisas possuem cada uma delas suas características próprias motivo pelo qual é necessário distinguir os diversos tipos de evolucionismos Na sequência fazse uma sucinta referência aos evolucionismos sociológico e biológico no intui to de distinguilos do evolucionismo antropológico 2 EVOLUCIONISMO SOCIOLÓGICO O evolucionismo sociológico tem por característica fundamental a ideia de progresso Evolução significa progresso portanto tratase de uma doutrina que divulga uma forma otimista de encarar a realidade humana Esse evolucionismo alcança seu apogeu no século XIX ligado aos nomes de a SaintSimon esse filósofo afirma que há uma sequên cia evolutiva através da qual deve passar toda a humanidade distinguin dose três fases de atividade mental a conjetural a semiconjetural e a positiva b Augusto Comte para esse filósofo todas as sociedades atravessam três etapas progressivas indo da superstição religiosa es tado primitivo passando pela metafísica e a teologia para chegar à ciência positiva ponto final do progresso humano c Herbert Spencer no seu livro intitulado Progresso estabelece que o progresso reveste Manual antropologia jurídica 001277indd 57 9112010 102013 58 59 todos os aspectos da realidade Por conta disso defende que todo de senvolvimento quer se trate do desenvolvimento da Terra da vida da sociedade do governo da indústria do comércio da língua da litera tura da ciência da arte significa progresso e no fundo de todo pro gresso está sempre a mesma evolução que através de diferenciações sucessivas vai da simples à complexa Para LéviStrauss 1993 335 336 o evolucionismo social ou cultural é um falso evolucionismo porque consiste numa tentativa de suprimir a diversidade das culturas fingindo reconhecêlas plenamente Pois ao tratar os diferentes estados em que se encontram as sociedades humanas tanto antigas quanto longínquas como estágios ou etapas de um desenvolvimento único que partindo do mesmo ponto deve fazêlo convergir para a mesma meta vêse bem que a diversidade é apenas aparente A humanidade se torna única e idêntica a si mesma só que esta unidade e identidade podem realizar progressivamente e a varie dade das culturas ilustra os momentos de um processo que dissimula uma realidade mais profunda ou atrasa sua manifestação 3 EVOLUCIONISMO BIOLÓGICO O aparecimento do evolucionismo biológico é posterior ao evolu cionismo sociológico contudo não há influência de um sobre o outro O termo evolução foi introduzido provavelmente por Spencer no seu ensaio sobre o Progresso de 1857 mas a palavra e o conceito não teriam gozado de tanto sucesso sem o evolucionismo biológico estabelecido por Charles Darwin no livro Origem das espécies de 1859 ABBAGNANO 2003 393 O evolucionismo biológico provocou muitas polêmicas ao se con trapor à teoria da substância formulada por Aristóteles e elevada à ca tegoria de dogma religioso Segundo a metafísica aristotélica todas as formas substanciais são imutáveis porque necessárias Isso significa que não podem ser criadas nem destruídas Como formas substanciais as espécies vivas compartilham de tais características Esse ponto de vista aristotélico doutrina da substância prevaleceu na filosofia e na ciência antiga e medieval A doutrina tradicional da imutabilidade das espécies foi portanto o reflexo da doutrina aristotélica da substância ABBAG NANO 2003 393 O evolucionismo biológico ou teoria da evolução rompe com a tradição aristotélica e tem como precursores JeanBaptiste Lamarck e Charles Darwin Manual antropologia jurídica 001277indd 58 9112010 102013 58 59 31 JeanBaptiste Lamarck 1744 1829 Lamarck foi o primeiro a apresentar a teoria da evolução biológi ca A hipótese básica da sua teoria consiste em afirmar que a função cria o órgão As mudanças evolução produzidas nos organismos devemse ao maior ou menor uso dos órgãos e que depois teriam sido fixadas pela hereditariedade Assim para Lamarck a necessidade cria o órgão ne cessário e o uso o fortifica e o aumenta a falta de uso ao contrário conduz à atrofia ao desaparecimento do órgão inútil De acordo com essa teoria uma mudança de circunstâncias provoca uma mudança de hábitos e de atos e por conseguinte uma mudança de forma Não se trata de uma ação direta do meio ambiente sobre o ser tratase de uma ação indireta que provoca uma reação do organismo no sentido de adaptarse às circunstâncias externas Os exemplos dados por Lamarck ajudam a compreender sua teoria a girafa teve seu pescoço aumentado pela necessidade de alcançar os ramos altos das árvores os morcegos têm olhos atrofiados porque pas saram a viver na escuridão e portanto os olhos perderam sua função Com base na teoria de Lamarck alguns antropólogos afirmam que as diferenças étnicas são apenas reações adaptativas a determinado meio ambiente assim a pele dos negros escureceu para suportar o sol dos trópicos ou seja uma reação adaptativa contra os raios violetas Hoje a biologia entende que as mudanças nascidas dos hábitos não podem ser herdadas portanto o mérito de Lamarck não é o de ter desco berto o princípio da evolução mas o de ter insistido na doutrina geral e em alguns aspectos importantes dela como o da adaptação ao ambiente 32 Charles Darwin 1809 1882 Em 1859 Darwin publica A origem das espécies na qual expõe a teoria da seleção natural isto é o conjunto de suas ideias a respeito da evolução das espécies A teoria da seleção natural explica a luta pela exis tência e fixa os conceitos de evolução de sobrevivência e de função Em sentido lato seleção natural é a persistência do mais apto à conservação das diferenças e das variações individuais favoráveis e a eliminação das variações nocivas Em sentido estrito seleção natural significa que na luta pela existência sobrevive o mais apto Para Darwin as variações insig nificantes aquelas que não são nem úteis nem nocivas ao indivíduo não são afetadas pela seleção natural Manual antropologia jurídica 001277indd 59 9112010 102013 60 61 A teoria de Darwin admite duas ordens de fatos a existência de pequenas variações orgânicas que se verificam nos seres vivos em in tervalos irregulares de tempo e que pela lei da probabilidade podem ser vantajosas para os indivíduos que as apresentam b luta pela vida entre indivíduos vivos que se deve à tendência de cada espécie a multi plicarse segundo uma progressão geométrica Dessas duas ordens de fatos resulta que os indivíduos nos quais se manifestam mudanças or gânicas vantajosas têm maiores probabilidades de sobreviver na luta pela vida e em virtude do princípio da hereditariedade haverá neles acentuada tendência a deixar os caracteres acidentais como herança aos seus descendentes Sabese hoje que ambas as teses adaptação ao ambiente de La marck e seleção natural de Darwin exercem funções importantes na evolução da vida e que uma tese não exclui a outra Para LéviStrauss 1993 336 o evolucionismo biológico diferen temente do evolucionismo sociológico é uma teoria cientifica porque estabelece uma hipótese de trabalho fundada em observações em que a parte deixada à interpretação é muito pequena Assim a noção de evo lução biológica corresponde a uma hipótese dotada de altos coeficientes de probabilidade que se podem encontrar no domínio das ciências na turais ao passo que a noção de evolução social ou cultural só traz no máximo um procedimento sedutor mas perigosamente cômodo de apreensão dos fatos Embora a ideia de evolução tenha dominado o debate científico do século XIX o evolucionismo antropológico não significa um prolonga mento do evolucionismo biológico Certamente os antropólogos evolu cionistas tomaram conhecimento da teoria da evolução de Darwin mas isso não significa que a orientação evolucionista que imprimiram nos seus trabalhos possua a mesma base teórica do evolucionismo biológico De qualquer modo é certo que na segunda metade do século XIX o conceito de evolução deu à antropologia o seu primeiro impulso e sua unidade É importante frisar que algumas figuras de destaque da antro pologia evolucionista como Morgan Bachofen Maine e Mac Lennan eram juristas 4 EVOLUCIONISMO ANTROPOLÓGICO Segundo Laplatine 2006 63 a 66 no século XIX a antropologia realiza o que antes era apenas empreendimento programático É a épo Manual antropologia jurídica 001277indd 60 9112010 102013 60 61 ca durante a qual se constitui a antropologia como disciplina autônoma uma ciência das sociedades primitivas em todas as suas dimensões econômica religiosa técnica biológica linguística psicológica Em relação ao século XIX merecem destaque duas mudanças que contri buíram para o nascimento da antropologia a muda o contexto eco nômico e político a revolução industrial inglesa e a revolução política francesa introduzem mudanças conjunturais inéditas nas relações sociais políticas jurídicas e econômicas b muda o contexto geopolítico é o auge do período da conquista colonial É no movimento da conquista colonial que se constitui a antropo logia moderna ou seja quando o antropólogo começa a acompanhar de perto os passos do colono Nessa época os imigrantes europeus come çam a povoar os territórios coloniais África Austrália Nova Zelândia Índia América Uma rede de informação se instala mediante questio nários enviados por pesquisadores das metrópoles para os quatro cantos do mundo e cujas respostas constituem os materiais de reflexão das primeiras grandes obras de antropologia a Bachofen publica em 1861 o Direito materno b Fustel de Coulanges publica em 1864 A cidade antiga c Mac Lennan em 1865 publica O casamento primitivo d Edward Tylor em 1871 publica A cultura primitiva e Lewis Morgan publica em 1877 A sociedade antiga f James Frazer em 1890 publica os primeiro volumes de Ramos de ouro Todas essas obras citadas caracterizamse por uma mudança ra dical de perspectiva nelas o indígena não é mais o selvagem tornouse o primitivo isto é o ancestral do civilizado Assim a antropologia co nhecimento do primitivo fica indissociavelmente ligada ao conhecimen to da origem da sociedade isto é das formas simples de organização social que evoluíram para formas mais complexas de organização social motivo pelo qual essa antropologia é qualificada de evolucionista Manual antropologia jurídica 001277indd 61 9112010 102013 63 Manual antropologia jurídica 001277indd 62 9112010 102013 63 Vi eVolucioniSmo 1 ANTROPÓLOGOS EVOLUCIONISTAS O evolucionismo antropológico em linhas gerais entende que existe uma espécie humana idêntica mas que se desenvolve em ritmos desiguais de acordo com as populações As sociedades ou populações passam pelas mesmas etapas para alcançar a etapa mais avançada que é a civi lização A civilização europeia aparece como a expressão mais avançada da evolução das sociedades humanas e os grupos primitivos como so brevivência de etapas anteriores Embora a preocupação dos evolucionistas fosse estabelecer as li nhas gerais do progresso material espiritual e científico das sociedades acreditavam que voltando os olhos ao passado teriam subsídios para determinar como a história da cultura humana se comportaria A evo lução humana era considerada um dado restava portanto a tarefa de descobrir como isso ocorria Não procuravam exatamente comprovar a existência do progresso humano mais que isso procuravam descobrir as leis gerais da evolução cultural do homem MELLO 1982 204 Não negavam a influência de determinados fatores como o ambiente geográ fico o clima e o solo na transformação da cultura contudo alguns Morgan por exemplo elegeram como fator determinante as invenções e as descobertas resultantes do desenvolvimento técnico e econômico Procuravam assim explicar as razões que levaram determinada comu nidade a passar de uma etapa para outra Manual antropologia jurídica 001277indd 63 9112010 102013 64 65 Em suas investigações os antropólogos evolucionistas fizeram uso do método comparativo que consiste em comparar padrões costumes objetos culturas do passado e do presente verificando semelhanças e diferenças No uso desse método o material coletado é classificado organizado e interpretado de acordo com uma ordem cronológica Morgan por exemplo ao realizar um estudo comparativo dos sistemas de parentesco distinguiu três etapas sucessivas da evolução selvageria barbárie e civilização O evolucionismo antropológico encontra sua formulação e siste matização nos autores e nas obras citadas no final do capítulo anterior que se tornaram os documentos de referência adotados pela maioria dos antropólogos a partir da segunda metade do século XIX Na sequência fazse uma breve referência a Bachofen Direito materno e Tylor Cul tura primitiva A obra de Morgan será abordada em capítulo separado 11 Bachofen 1815 1887 Segundo Engels 1976 12 a 15 até ao início da década de 1860 não se poderia sequer pensar numa história da família As ciências his tóricas ainda se encontravam nesse domínio sob a influência dos Cinco Livros de Moisés A forma patriarcal da família mostrada com muitos detalhes nesses cinco livros era admitida sem reservas O estudo da história da família diz Engels começa de fato em 1861 com o Direito materno de Bachofen Nesse livro o autor formula as seguintes teses a primitivamente os seres humanos viveram em promiscuidade sexual b essas relações excluíam toda a possibilidade de estabelecer com rigor a paternidade portanto a filiação apenas podia ser contada por linha feminina segundo o direito materno e isso ocorreu em todos os povos antigos c como consequência desse fato as mulheres como mães como únicos progenitores conhecidos da jovem geração gozavam de grande apreço e respeito motivo pelo qual deti nham a posição mais elevada na hierarquia do grupo d a monogamia em que a mulher pertence a um só homem incidia na transgressão de uma lei religiosa muito antiga direito imemorial que os outros homens tinham sobre aquela mulher transgressão que devia ser castigada ou cuja tolerância se compensava com a posse da mulher por outros du rante determinado período Bachofen procurou provas dessas teses em numerosos trechos da literatura clássica A passagem da poligamia à monogamia e do direito Manual antropologia jurídica 001277indd 64 9112010 102013 64 65 materno ao paterno segundo ele processase especialmente entre os gregos em consequência do desenvolvimento das concepções religio sas da introdução de novas divindades representativas de ideias novas no grupo dos deuses tradicionais que eram a encarnação das velhas ideias pouco a pouco os velhos deuses vão sendo relegados a segundo plano Assim para Bachofen o que determinou as transformações his tóricas na situação social recíproca do homem e da mulher não foi o desenvolvimento das condições reais de existência das pessoas mas o reflexo religioso dessas condições no cérebro delas De acordo com esse ponto de vista interpreta a Oréstia de Ésquilo como um quadro dramá tico da luta entre o velho direito materno e o novo direito paterno 111 Direito materno x direito paterno Na Oréstia Clitemnestra levada pela sua paixão por Egisto seu amante mata seu marido Agamêmnon quando este regressava da guerra de Tróia mas Orestes filho dela e de Agamêmnon vinga o pai matando a mãe Isso faz com que se veja perseguido pelas Erínias seres demoníacos que protegem o velho direito materno segundo o qual o matricídio é o mais grave e imperdoável de todos os crimes Apolo no entanto que por intermédio do seu oráculo havia incitado Orestes a matar sua mãe e Palas Atena que intervém na qualidade de juiz as duas divindades que representam o novo direito paterno protegem Orestes Todo o litígio está resumido na discussão de Orestes com as Erí nias Atena ouve ambas as partes Orestes diz que Clitemnestra cometeu um duplo crime ao matar quem era seu marido e pai de seu filho Por que razão as Erínias o perseguiam o visavam em especial se ela a morta tinha sido muito mais culpada A resposta é surpreendente Ela não estava unida por vínculo de sangue ao homem que assassinou O assassinato de uma pessoa com a qual não houvesse vínculo de sangue mesmo que fosse o marido da assassina era falta que podia ser expiada e isso não era absolutamente tarefa das Erínias A sua missão era a de punir o homicídio entre os consanguíneos e segundo o direito materno o matricídio era o pior e o mais imperdoável dos crimes Nesse ponto contudo intervém Apolo defensor de Orestes e em seguida Atena submete o caso ao Areópago Tribunal do Júri ateniense há o mesmo número de votos pela condenação e pela absolvição Atena como presidente do Tribunal vota a favor de Orestes e o absolve O direito Manual antropologia jurídica 001277indd 65 9112010 102014 66 67 paterno vence o direito materno Os deuses da jovem geração assim denominados pelas próprias Erínias são mais poderosos que elas pelo que só lhes resta a resignação e finalmente convencidas aceitam colo carse a serviço do novo estado de coisas Engels reconhece que essa maneira como Bachofen interpreta a Oréstia é inteiramente correta representa uma das melhores e mais belas passagens do seu livro Direito materno Não concorda entretanto com essa forma de mostrar a passagem do direito materno para o direi to paterno Isto no entanto diz Engels 1976 15 não diminui os seus méritos de pioneiro já que foi o primeiro a substituir as frases sobre um desconhecido e primitivo estágio de promiscuidade sexual pela demons tração de que na literatura clássica grega há muitos vestígios de que entre os gregos existiu realmente antes da monogamia um estado social em que não somente o homem mantinha relações sexuais com várias mulheres mas também a mulher mantinha relações sexuais com diversos homens sem que com isso violassem a moral estabelecida 12 Edward Tylor 1832 1917 Tylor procurou mostrar a evolução pela qual passou a humanida de e o fez com a utilização do método ou modelo comparativo Consi derou a humanidade um todo em crescimento através dos tempos indo da infância à maturidade estando as sociedades primitivas situadas no estágio infantil Teve o mérito de proceder à sistematização dos aspec tos não materiais da cultura costumes ideias e entendia que estes eram transmitidos por força do hábito Foi o primeiro a definir o conceito cultura e o fez nos seguintes termos cultura é um conjunto complexo que inclui conhecimento crença arte moral lei costume e várias outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma socie dade in MELLO 1982 40 Assim estabeleceu o conceito de cultura como objeto de estudo da antropologia em contraposição ao conceito de raça Para Tylor um dos principais objetivos da comparação consiste em descobrir a aderência cultural ou as correlações necessárias entre dois ou mais fenômenos culturais tais como uma regra de comportamento de parentesco e uma regra de terminologia de parentesco Mediante o uso de um modelo comparativo ao qual denominou aritmética social procurou organizar os costumes em tabelas e estabelecer relacionamen tos entre eles O método comparativo o levou a afirmar que as institui ções humanas eram distintamente estratificadas tal como as diferentes Manual antropologia jurídica 001277indd 66 9112010 102014 66 67 camadas da Terra que se sucedem em séries uniformes por todo o glo bo independentemente das raças ou da linguagem Tylor também se interessou pelos estudos mágicoreligiosos e elaborou uma das mais curtas definições de religião uma crença no sobrenatural Segundo Mello 1982 390 nessa definição encontram se dois elementos presentes em todas as religiões a a crença que é antes de tudo um ato de fé de confiança de respeito e reconhecimento pelo sistema de mitos que representa a religião e b o sobrenatural que é o objeto da fé portanto é tudo aquilo que escapa ao entendimen to humano Tylor elaborou uma teoria sobre o animismo que é entendido como uma crença dos povos primitivos segundo a qual não só as criaturas mas também os objetos materiais estão dotados de vida personalidade e alma Evans Pritchard in MELLO 1982 397 ao analisar a teoria de Tylor sobre a crença dos povos primitivos na existência de almas en tende que tal teoria conta com duas teses principais a primeira con cernente ao problema da origem e a segunda referindose ao desenvol vimento da alma Vale dizer as reflexões do homem primitivo a respeito de determinadas experiências como morte doença transes visões e acima de tudo sonhos levaramno à conclusão de que tais fe nômenos se devem à presença ou ausência de alguma entidade imaterial a alma Por essas razões tanto a teoria do fantasma quanto a teoria da alma poderiam ser consideradas como versões de uma teoria ideal da origem da religião Assim para Tylor as primeiras noções religiosas conhecidas pelos homens teriam sido as de almas seres que transcendem a matéria Essas noções teriam surgido da própria consciência humana pela necessidade de compreender determinados fenômenos sonho morte doença visões que teriam despertado os sentimentos do sagrado e da outra dimensão da vida 2 TEMAS DO EVOLUCIONISMO São considerados características da antropologia evolucionista os seguintes temas a estudo das sociedades simples ou primitivas e das sociedades antigas b estudo do parentesco c estudo da religião Paren tesco e religião são nessa época as duas grandes áreas da antropologia ou mais especificamente as duas grandes vias de acesso privilegiado ao conhecimento das comunidades primitivas e das sociedades antigas Manual antropologia jurídica 001277indd 67 9112010 102014 68 69 21 Sociedades simples ou primitivas Os antropólogos evolucionistas foram os primeiros a considerar as sociedades primitivas como temas interessantes por si mesmos Ex traíram informações acerca dessas sociedades mediante a ampla seleção de escritos das mais diversas classes apresentaram essas informações de forma sistemática e estabeleceram assim as bases da antropologia social No estudo das sociedades primitivas interessaramse pela natu reza de suas instituições sociais especialmente as familiares e as reli giosas Ocuparamse também de instituições jurídicas e dos aspectos da cultura material Em qualquer dos temas a preocupação central consis te em demonstrar como a cultura obedece a uma evolução universal e unilinear A história do gênero humano dizia Morgan é única em sua origem única em sua experiência e única em seu progresso Dentre as comunidades primitivas destacase o estudo dos grupos australianos Segundo Elkin in LAPLATINE 2006 67 a Austrália ocupa um lugar de primeira importância na constituição da antropolo gia porque é lá que se pode apreender o que foi a origem das nossas instituições Desde a época de Morgan diz ele a Austrália continua sendo objeto de muitos escritos várias gerações de pesquisadores ex pressaram sua estupefação diante da simplicidade da cultura material desses povos os mais primitivos do mundo vivendo na idade da pedra sem metalurgia sem cerâmica sem tecelagem sem criação de animais e a extrema complexidade de seus sistemas de parentesco baseados nas relações minuciosas entre aquilo que é localizado na natureza animal vegetal e aquilo que atua na cultura o totemismo O estudo das sociedades primitivas não visa apenas revelar o pri mitivo por trás do civilizado As sociedades primitivas facilitam os es tudos dos antropólogos porque permitem perceber com mais facilidade o modelo por trás da realidade ou construir com menos esforços o modelo a partir da realidade Além disso permitem comparações mais precisas e possibilitam descobrir em que se distinguem umas das outras Permitem sobretudo a análise comparativa e a reflexão crítica em re lação às sociedades complexas 22 Parentesco No estudo do sistema de parentesco os pesquisadores do século XIX procuram principalmente demonstrar a anterioridade histórica dos sistemas de filiação matrilinear sobre os sistemas de filiação patrilinear Manual antropologia jurídica 001277indd 68 9112010 102014 68 69 Segundo Engels 1976 24 a descoberta da primitiva gens de direito materno como etapa anterior à gens de direito paterno dos povos civi lizados tem para a história primitiva a mesma importância que a teo ria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da maisvalia enunciada por Marx para a economia política Franz Boas in LÉVISTRAUSS 2003 22 entretanto entende que os fatos não autorizam nenhuma reconstrução histórica tendente a afirmar a anterioridade histórica das instituições matrilineares sobre as patrilineares Segundo ele se é possível e mesmo provável que a esta bilidade inerente às instituições matrilineares as tenha frequentemente conduzido onde existem a se transformarem em instituições patriline ares disso não resulta de nenhuma maneira que sempre e por toda parte o direito materno tenha representado a forma primitiva Ainda que contestada permanece em evidência a ideia de um di reito materno ou matriarcado primitivo que antecedeu ao direito pater no Essa ideia exerceu e ainda exerce uma grande influência tanto que muitas pessoas continuam inspirandose nela como é o caso de Evelyn Reed em Feminismo e antropologia um dos textos de referência do mo vimento feminista nos Estados Unidos LAPLATINE 2006 67 23 Religião e magia Os antropólogos do século XIX especialmente Fustel de Coulan ges Edward Tylor e James Frazer foram os primeiros a realizar estudos sobre magia e religião dos povos antigos e primitivos e sua influência não só na evolução das religiões mundiais mas também na construção das instituições e do direito Aliás é certo que as crenças dos antigos gregos e romanos persistiram durante muito tempo e exerceram gran de influência na construção e solidificação da religião das instituições e do direito que ainda moldam a sociedade contemporânea Religião é a crença no sobrenatural Magia implica a crença na existência de causas ato mágico sobrenaturais Religião e magia por tanto consistem em sistemas de crenças Todas as populações estudadas pelos antropólogos demonstraram possuir um sistema de crenças que pode ser classificado como magia religião ou mágicoreligioso Para os evolucionistas a magia é uma etapa que antecede à religião porém existem diferenças entre uma e outra outros antropólogos entretanto não estabelecem diferenças e por isso denominam o sistema de crenças mágicoreligioso Manual antropologia jurídica 001277indd 69 9112010 102014 70 71 Tylor considerou a magia uma pseudociência em que o homem primitivo incorretamente afirma uma relação direta de causa e efeito entre o ato mágico e o acontecimento desejado Frazer também consi derou falsa a relação de causa e efeito entre a magia e os efeitos naturais e analisou os princípios que governam essa relação Além disso inves tigou o relacionamento da magia com a religião e a ciência e estabeleceu um quadro evolutivo entre elas Para Laplatine 2006 68 Frazer em sua obra Ramos de ouro re aliza a melhor síntese de todas as pesquisas do século XIX sobre crenças e supertições Segundo ele nessa obra gigantesca publicada em doze volumes de 1890 a 1915 o autor retraça o processo universal que conduz por etapas sucessivas da magia à religião e depois da religião à ciência Para Frazer a magia representa uma fase anterior mais gro tesca da história do espírito humano pela qual todas as raças da huma nidade passaram ou estão passando para dirigirse para a religião e a ciência Frazer tratou de vários tipos de magia e penetrou fundo no intricado campo das instituições religiosas inclusive nos estudos sobre o totemismo 3 CRÍTICAS AO EVOLUCIONISMO Os teóricos evolucionistas como visto entendem que a ciência e a sociedade evoluem e progridem Conforme Chauí 2002 51 84 para esses teóricos o tempo seria uma sucessão contínua de instantes mo mentos fases etapas períodos épocas que iriam somandose uns aos outros acumulandose de tal modo que o que acontece depois é o resul tado melhorado do que acontece antes Enfim ao longo do tempo ha veria um processo de aperfeiçoamento das sociedades e suas instituições Evolução e progresso diz a autora exprimem uma crença na supe rioridade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao presente Evolução e progresso também supõem uma série linear de momentos ligados por relações de causa e efeito em que o passado é causa e o presente efeito vindo a tornarse causa do futuro Na ideia de evolução e progresso encontrase uma concepção segundo a qual o futu ro já está contido no ponto inicial de uma sociedade cuja história ou cujo tempo nada mais é do que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que já era potencialmente motivo pelo qual se fala de sociedades primiti vas inferiores que precisam evoluir para sociedades civilizadas superio res sociedades subdesenvolvidas que devem tornarse desenvolvidas Manual antropologia jurídica 001277indd 70 9112010 102014 70 71 No século XX alguns filósofos analisando as mudanças científicas passaram a negar as ideias de evolução e progresso Nesse sentido quando compararam a geometria euclidiana que opera com o espaço plano com a geometria topológica que opera com o espaço tridimen sional perceberam que não se tratava de duas etapas ou de duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica e sim de duas geometrias di ferentes com princípios conceitos objetos completamente diferentes Enfim não houve evolução e progresso de uma para a outra pois são duas geometrias diversas e não geometrias sucessivas O mesmo foi observado quando se comparou a física de Newton com a física de Eins tein e em outras áreas do saber De acordo com essa análise não é possível estabelecer uma conti nuidade progressiva das culturas Isso implica afirmar que não há uma única cultura em progresso o que existe é uma pluralidade de culturas diferentes Cada cultura inventa seu modo de relacionarse com o tem po de criar sua linguagem de elaborar seus mitos e suas crenças de organizar o trabalho e as relações sociais de criar obras de pensamento e de arte Cada uma em decorrência das condições históricas geográ ficas e políticas em que se forma tem seu modo próprio de organizar o poder e de produzir seus valores Essa concepção abalou alguns princí pios do evolucionismo antropológico cujo método já vinha sendo desde o século XIX alvo de críticas por parte de alguns antropólogos 31 Críticas ao evolucionismo antropológico No final do século XIX Franz Boas contestou os métodos utili zados pelos antropólogos evolucionistas ao estabelecer como decisivo na antropologia a pesquisa de campo Segundo Boas a ausência de pes quisa de campo comprometia o rigor metodológico e científico que deveria fundamentar os estudos antropológicos Os evolucionistas como visto adotaram o método comparativo porém as falhas metodológicas não repousavam no fato da comparação em si mas na falta de rigor no seu emprego Alguns antropólogos uti lizaram indistintamente informações bíblicas mitológicas e históricas portanto estavam sujeitos à crítica de que tentavam explicar o conhe cido pelo desconhecido Morgan como se verá adiante teve o mérito de iniciar a aplicação do método comparativo de maneira correta quando passou a estudar as sociedades primitivas ainda existentes realizando assim o que se denomina pesquisa de campo Manual antropologia jurídica 001277indd 71 9112010 102014 72 73 Para Laplatine 2006 68 69 as objeções ao pensamento antro pológico evolucionista podem ser organizadas em torno de duas séries de críticas A primeira afirma que o evolucionismo seria uma justificação dos valores da sociedade europeia do século XIX Segundo essa crítica o evolucionismo mede o atraso das sociedades primitivas tomando como critério de avaliação a sociedade europeia Com esse critério o progres so técnico e econômico dessa sociedade é considerado como a prova da evolução histórica da qual se procura simultaneamente acelerar o pro cesso e reconstituição de estágios Nessa trilha o evolucionismo define o acesso à civilização em função dos valores da época produção econô mica religião monoteísta propriedade privada família monogâmica moral vitoriana A segunda crítica afirma que o evolucionismo seria uma justificação do colonialismo Isso porque o pesquisador efetuando de um lado a definição de seu objeto de pesquisa através do campo empírico das sociedades ainda não ocidentalizadas e de outro lado identificando as vantagens da civilização à qual pertence faz do evolu cionismo uma justificação teórica da prática do colonialismo Conforme Laplatine 2006 70 os evolucionistas do século XIX não se importam em compreender a antropologia como prática intensiva de conhecimento de determinada cultura O que importa é a tentativa de compreensão a mais extensa possível de todas as culturas em especial das mais longínquas e das mais desconhecidas É preciso ter em conta que os pesquisadores do século XIX não tinham nenhuma forma ção antropológica Morgan Bachofen Maine Mac Lennan eram juristas mas colocaram o problema maior da antropologia explicar a universa lidade e a diversidade das técnicas das instituições dos comportamentos e das crenças comparar as práticas sociais das populações infinitamente distantes umas das outras tanto no espaço como no tempo O mérito maior dos evolucionistas foi o de ter extraído essa hipó tese mestra sem a qual não haveria antropologia mas apenas etnologias regionais a unidade da espécie humana Foram eles que mostraram pela primeira vez que as disparidades culturais entre os grupos humanos não eram de forma alguma a consequência de predisposições congênitas mas apenas o resultado de situações técnicas e econômicas Manual antropologia jurídica 001277indd 72 9112010 102014 72 73 Vii eVolucioniSmo e direito 1 RELIGIÃO E DIREITO As mais antigas concepções religiosas dos romanos dizem respei to ao culto dos espíritos dos mortos e às crenças animistas em forças sobrenaturais numina multidão de divindades que presidem a nature za os reinos animal vegetal e mineral Essas divindades são os gênios ou espíritos protetores lares de cada família que perpetuam a unidade familiar e cujo culto transmitese de geração para geração A casa de um patrício romano possui sempre um altar onde é conservado o fogo sagrado Tratase de uma antiga crença em nada insignificante Não é permitido alimentar esse fogo com qualquer espécie de madeira ele deve estar sempre puro Não pode ser lançado sobre ele nenhum objeto sal gado e nenhuma ação culpável deve ser cometida na sua presença COULANGES 1929 33 Com o aumento da complexidade social a religião doméstica dos romanos transformase em religião da cidade com um corpo hierarqui zado de sacerdotes um calendário religioso que estabelece os dias fastos e os nefastos de modo que as práticas religiosas antes realizadas pelas famílias tornamse públicas e formais Os cultos passam a ser celebra dos por sacerdotes iniciados agrupados em colégios dos quais o mais importante é o Colégio dos Pontífices presidido pelo Pontífice Máximo Os sacerdotes são organizados em três categorias a os augures inter pretam a vontade dos deuses pela observação da natureza ou leitura dos presságios b os flâmines encarregamse do culto individual de cada Manual antropologia jurídica 001277indd 73 9112010 102014 74 75 deus e c os feciais pedem às divindades o êxito nas relações exterio res de Roma Em Roma até meados do século V antes de Cristo as atribuições da Justiça são confiadas ao Colégio dos Pontífices uma organização religiosa aristocrática formada apenas por cidadãos patrícios descen dentes dos fundadores da cidade que detêm o monopólio do conheci mento interpretação e aplicação do direito costumeiro ius quirites Os sacerdotes ou pontífices encarregamse de administrar a Justiça guar dam as regras dos procedimentos judiciais dos quais apenas eles sabem as fórmulas legais e os dias em que podem ser aplicadas dias fastos ou não dias nefastos Os sacerdotes desempenham portanto um papel relevante na formação do direito arcaico ius quirites porque eles cons tituem e neles se desenvolve o centro do saber jurídico Os sacerdotes são responsáveis pela preservação da tradição reli giosa velam e guardam o culto dos antepassados e jurídica guardam as regras e as fórmulas do direito arcaico Além disso eles interferem na vida políticosocial ao sugerirem o curso dos acontecimentos pela interpretação dos auspícios manifestações dos deuses que consiste na leitura da natureza através do voo ou canto dos pássaros a queda da folha de uma árvore e outros eventos naturais Nessa sociedade direito religião e política não se diferenciam de modo que os pontífices espalham o seu prestígio para além da esfera religiosa O processo de dessacralização que consiste em separar direito e religião é lento e demorado de modo que esses diferentes aspectos da cultura permanecem unidos por um longo período Por esse motivo o Colégio dos Pontífices além de ser uma instituição religiosa aparece também como uma instituição jurídica e política que passa a conviver ao lado de outras como as assembleias o Senado e demais magistraturas Enfim alguns antropólogos entendem que a ordem social estabe lecida nas sociedades antigas e primitivas não permite diferenciar direi to de religião e magia Aliás Michel Foucault 1996 anota que na so ciedade grega antiga o juramento constituiu uma maneira singular de produzir a verdade de estabelecer a verdade jurídica observa que essas provas mágicoreligiosas do juramento também estavam presentes no antigo direito germânico e prevaleceu na Europa por um longo período Em algumas sociedades primitivas é possível observar certas práticas mágicoreligiosas que também vigoraram na Europa medieval por intermédio do antigo direito germânico com a denominação de Manual antropologia jurídica 001277indd 74 9112010 102014 74 75 ordálias Uma das características das ordálias é o método ritualístico para comprovar um testemunho De modo geral o chefe religioso para saber se uma acusação é verdadeira ou falsa submete o litigante a provas corporais físicas Nesse sentido um exemplo retirado do direito ger mânico consistia em fazer o acusado andar sobre ferro em brasa e dois dias depois se ainda tivesse cicatrizes era considerado culpado 11 Casamento religioso A aproximação entre direito e religião ainda pode ser observada em alguns institutos jurídicos contemporâneos No direito brasileiro por exemplo essa aproximação pode ser notada no casamento religioso com efeitos civis Nesse sentido o Código Civil estabelece que o casa mento religioso equiparase ao casamento civil desde que escrito no registro próprio produzindo efeitos a partir da data de sua celebração art 1515 Há quem entenda que o casamento religioso para gerar efeito civil deve ser oficiado por ministro de confissão religiosa reconhecida ca tólica protestante muçulmano israelita Não se admite todavia o que se realiza em terreiro de macumba centros de baixo espiritismo seitas umbandistas ou outras formas de crendices populares que não tragam a configuração de seita religiosa reconhecida como tal PEREIRA in VENOSA 2006 32 Essa tendência reducionista do conceito de religião afronta as garantias constitucionais e pode provocar sérias perturbações sociais A Constituição Federal prescreve que é inviolável a liberdade de crença assegura o livre exercício dos cultos religiosos e garante na forma da lei a proteção aos locais de cultos e as suas liturgias art 5o VI Negar às manifestações religiosas advindas da cultura africana um lugar no conceito de religião e nomear essas manifestações de forma pejorativa além de violar um princípio constitucional expressa um desejo de res tabelecer dogmas da ideologia colonialista que como visto forneceu justificativas para negar humanidade aos negros e aos índios Contra essa ideologia que se manifesta como recusa do estranho a antropologia construiu o princípio da alteridade que significa a neces sidade de colocarse na posição do outro para poder compreendêlo Há portanto na base da liberdade religiosa constitucionalmente garantida o princípio da alteridade que estabelece que cada homem deve reconhe cer sua liberdade religiosa como a expressão direta da liberdade reli Manual antropologia jurídica 001277indd 75 9112010 102014 76 77 giosa do outro Onde não existe liberdade religiosa o princípio da alte ridade mostra de forma cabal que o privilégio de um é a expressão direta da privação do outro O aumento da complexidade social decorrente do intercâmbio cultural e das imigrações revela que no Brasil coexistem inúmeras re ligiões A proteção constitucional alcança todas elas sem exceção A interpretação das normas do Código Civil no que diz respeito ao casa mento religioso não pode restringir o que a Constituição Federal não restringe Assim além da religião cristã da judaica da mulçumana é necessário considerar outras manifestações religiosas como as prove nientes de culturas africanas orientais e de outras partes do mundo inclusive de culturas de sociedades ditas primitivas porque não há em absoluto qualquer restrição jurídica que impeça o índio ou aborígi ne de trazer consigo seu ritual de casamento Religião é um vínculo que liga o mundo profano ao mundo sagra do Nas várias culturas essa ligação é simbolizada de maneiras diferen tes Religião é portanto um conceito antropológico cultural motivo pelo qual estabelecer um conceito jurídico para religião significa excluir da proteção constitucional as diversas manifestações religiosas de uma sociedade cosmopolita como é a sociedade contemporânea Casamento religioso é o celebrado conforme os rituais de uma religião e não o celebrado conforme os rituais de determinada ou determinadas religiões eleitas pelo legislador ou pelo intérprete como as melhores Mesmo os religiosos conscientes têm o cuidado de afirmar que não existe uma religião melhor que a outra Religião boa é aquela em que a pessoa se sente bem portanto a melhor religião é uma a sua e todas as dos outros Enfim a Constituição Federal não define o conceito de religião nem autoriza o legislador ordinário a definilo porque é um conceito antropológico mas coíbe práticas atentatórias à dignidade da pessoa humana mesmo quando revestidas de rituais religiosos 2 JURISTAS E EVOLUCIONISMO Os estudos realizados pelos antropólogos evolucionistas a res peito das populações antigas e primitivas dos sistemas de parentesco do mito da magia e da religião influenciaram e ainda influenciam os estudos jurídicos Mas além dessas contribuições é possível destacar outras Manual antropologia jurídica 001277indd 76 9112010 102014 76 77 Influenciados pelos movimentos evolucionistas os juristas do século XIX passaram a divulgar uma regra técnica de interpretação denominada método históricoevolutivo que permanece nos manuais de hermenêutica jurídica até os dias atuais Segundo essa regra ao intér prete cumpre fazer uma interpretação atualizadora Isso deve ser assim porque se a as relações sociais evoluem e as leis se mantêm estáticas o direito perde a sua força e em vez de promover o bem social passa a criar problemas cujas consequências são as de atravancar o progresso Mais recentemente alguns teóricos têm destacado que a interpre tação históricoevolutiva ou sociológica é necessária para resolver os problemas semânticos que se interpõem no ato interpretativo Herbert Hart por exemplo aponta como modalidade de imprecisão semântica a denominada textura aberta que constitui um vício potencial que afeta todas as palavras da linguagem natural Vale dizer no direito moderno as normas jurídicas são expressas em palavras e estas são sempre vagas e ambíguas Por causa disso geram imprecisões significativas É difícil portanto estabelecer o real alcance e sentido de uma norma jurídica expressa na linguagem natural ou seja por causa dos problemas se mânticos vaguidade e ambiguidade os juristas entendem que não é possível uma interpretação unívoca ASSIS 1995 156 157 Os problemas semânticos da linguagem constituem objeto da regra de interpretação históricoevolutiva ou sociológica De acordo com essa regra o significado das palavras e expressões estaria condicionado aos momentos cultural político e econômico motivo pelo qual destaca a influência da atmosfera cultural na interpretação e aplicação do direito De modo geral os juristas entendem que embora não seja deter minante o intérprete deve averiguar os motivos comportamentos que condicionaram a edição da norma jurídica Deve portanto verificar as condições históricas do momento do nascimento da lei o projeto sua justificativa ou exposição de motivos e as circunstâncias fáticas ou necessidades que induziram o órgão legislativo a elaborála O mais importante porém consiste em proceder a um levantamento das cir cunstâncias atuais com o fito de verificar as funções do comportamento e das instituições sociais no contexto existencial em que ocorrem Assim a palavra ou expressão vaga e ambígua sob a luz da interpretação históricoevolutiva ou sociológica deverá ser entendida em conformi dade com as condições culturais sociais políticas e econômicas atuais O intérprete portanto deve descrever o significado da norma jurídica Manual antropologia jurídica 001277indd 77 9112010 102014 78 79 em conformidade com o contexto existencial O intérprete nessa tra jetória produz redefinições de velhos conceitos Essas redefinições podem ser denotativas ou conotativas sempre baseadas em dados cul turais sociológicos atuais o que torna a interpretação evolutiva Também sob a influência do evolucionismo vários teóricos do direito procuraram entender o fenômeno jurídico sob o prisma da evo lução principalmente no que diz respeito ao estabelecimento das causas que provocam tal evolução Esses teóricos em geral consideram que os fatores da evolução jurídica são os mesmos da evolução social em geral portanto o direito evolui em conformidade com a evolução do sistema social Dentre esses teóricos destacase Henry LévyBruhl 21 Henry LévyBruhl LévyBruhl 2000 79 a 85 ao investigar as causas da evolução do direito destaca três fatores econômicos políticos e culturais que atu am sobre o direito e provocam mudanças Em relação aos fatores econô micos constata que a estrutura econômica de uma sociedade traduzse de maneira inelutável em seu direito O direito arcaico romano por exemplo era perfeitamente adaptado a uma sociedade de pequenos agricultores Com a expansão romana e o subsequente surgimento de uma classe de comerciantes novas mudanças foram introduzidas no direito para atender às necessidades dessa classe O mesmo fenômeno pode ser constatado na época moderna em decorrência da criação de grandes indústrias e do fortalecimento da classe burguesa Em relação aos fatores políticos anota que o fato mais característico nessa matéria é a conquista a anexação pela força armada Sucede quase sempre que o vencedor imponha ao vencido sua legislação seu direito privado tan to quanto sua constituição política Em relação aos fatores culturais entende que há uma harmonia necessária entre os fatos jurídicos e os fatos de cultura A cultura atua sobre o direito e segundo ele basta anotar que a conquista da Grécia exerceu influência não só sobre as artes e literatura dos romanos como sobre suas instituições jurídicas Para LévyBruhl o direito está em constante evolução mas o ritmo evolutivo não é o mesmo em todas as sociedades Nesse sentido destaca três modalidades de ritmos evolutivos estagnação evolução regular e mutações bruscas A estagnação do direito pode ser observada nas sociedades primitivas que vivem para si mesmas e não oferecem ao observador senão variações quase imperceptíveis no transcurso dos Manual antropologia jurídica 001277indd 78 9112010 102014 78 79 séculos Essa estagnação que levou as sociedades primitivas a conservar quase imutáveis suas instituições ancestrais segundo ele decorre das condições geográficas e demográficas e também do ambiente místico em que vivem tais sociedades A evolução regular pode ser observada na maioria das sociedades É preciso porém distinguir entre as instituições privadas e as instituições públicas Estas últimas segundo ele são mais frágeis que as primeiras isto porque afetando mais vivamente os sen timentos coletivos sua mudança acompanhase quase sempre de vio lência Ao contrário as instituições de direito privado em geral atra vessam sem grandes modificações períodos conturbados As mutações bruscas são provocadas por revoluções porque estas introduzem novos valores e por conseguinte produzem mudanças no sistema jurídico Nesse sentido cita como exemplo a Revolução de 1789 na França e a de 1917 na Rússia 22 Outras manifestações Os juristas evolucionistas de modo geral entendem que a evolução do direito está subordinada à realidade social subjacente ou seja à presença de determinados fatores que influenciam a evolução da socie dade e define as suas diversas estruturas Paulo Nader 1999 59 a 66 por exemplo entende que o direito para ser instrumento eficaz do progresso social deve estar adequado à realidade refletindo as institui ções e a vontade coletiva portanto a evolução do direito deve expressar um esforço do legislador em realizar a adaptação de suas normas ao momento histórico Assim os fatores que influenciam a vida social provocandolhe mutações vão produzir igual efeito no setor jurídico determinando alterações no direito positivo Esses fatores chamados sociais e também jurídicos funcionariam como motores da vida social e do direito Os fatores jurídicos ou sociais são assim elementos que condicionam os fenômenos sociais e em consequência induzem transformações no direito Nader aponta dois grandes grupos de fatores jurídicos respon sáveis pela evolução do direito fatores naturais e fatores culturais Os di versos fatores naturais que influenciam o comportamento humano são agrupados nos seguintes tipos a geográfico diz respeito ao clima aos recursos naturais e às características do território b demográfico diz respeito a maior ou menor concentração humana por quilometro qua drados em um território c antropológico abrange o grau de desen Manual antropologia jurídica 001277indd 79 9112010 102015 80 81 volvimento das pessoas de determinada sociedade de acordo com a sua constituição fisiológica e mental abrange também o caráter étnico pelas aptidões tendências e características peculiares a cada raça Den tre os fatores culturais também denominados históricos destacamse os seguintes econômico de invenção moral religioso ideológico e edu cacional Ao tratar do fator natural geográfico Nader com base nas informa ções de Marcel Mauss relata que um exemplo da influência do fator climático sobre a organização social é representado pela cultura esqui mó Durante o verão essa sociedade é patriarcal e se forma à base de pequenas famílias que não mantêm maiores vínculos sociais No inver no a família é grande e não possui caráter patriarcal a chefia é entregue a um homem velho e bom caçador ou pai de um bom caçador Seus membros conforme narra Marcel Mauss vivem em um comunismo econômico e sexual Assim expressando as peculiaridades de uma es tação e de outra há um direito de inverno e um de verão Ao tratar do fator cultural relativo às invenções Nader lembra que as invenções provocam novos hábitos e costumes determinam a evolu ção nas instituições jurídicas visto que estas devem ser um reflexo da realidade social subjacente Anota que Jean Cruet deu grande realce à importância das invenções na vida do direito ao observar que o sábio sem que o suspeite é um tanto legislador porque muito mais que o jurista pelos seus raciocínios prepara pelas suas descobertas o direito de amanhã De um lado as invenções envelhecem o direito e de outro geram a necessidade social de novos instrumentos jurídicos Percebemse nessas manifestações de Jean Cruet as influências de Lewis Morgan uma vez que para esse antropólogo e jurista a causa principal da evolução está ligada às invenções e descobertas Antes de encerrar a parte dedicada ao evolucionismo merecem ser destacadas algumas noções estabelecidas por Lewis Morgan a partir da análise que fez das sociedades primitivas principalmente pela influência que tais noções exerceram sobre o marxismo e pela contribuição que deram para a compreensão do fenômeno jurídico Dentre essas noções destacamse a análise do sistema de parentesco e do sistema de produção os quais serão expostos tomando como base o livro de Friedrich Engels A origem da família da propriedade e do Estado Manual antropologia jurídica 001277indd 80 9112010 102015 80 81 Viii lewiS morgAn 1818 1881 1 ANTROPOLOGIA SOCIAL E PARENTESCO Para LéviStrauss 1993 Morgan fundou simultaneamente a antropologia social e os estudos de parentesco explicando por que a primeira deve atribuir tanta importância aos segundos De acordo com Morgan de todos os fatos sociais os que dizem respeito ao parentesco e ao casamento manifestam no mais alto grau esses caracteres duráveis sistemáticos e contínuos que dão ocasião à análise científica Morgan elege como objeto da antropologia a análise dos processos de evolução que compreendem as ligações entre as relações sociais jurídicas e políticas A ligação entre esses diferentes aspectos do campo social estabelece as características de determinado período da história humana No estudo da sociedade arcaica introduz duas novidades a primeira toma as sociedades arcaicas como objeto de estudo e as rein tegra pela primeira vez na humanidade inteira e ao focar o desenvolvi mento material dessas sociedades o conhecimento da história começa a ser posto sobre bases totalmente diferentes das do idealismo filosófi co b segunda os elementos da análise comparativa não são mais costumes considerados bizarros e sim redes de interação formando sistemas termo que utiliza para as relações de parentesco LAPLATINE 2006 73 Como observa Mello 1982 213 218 Morgan teve ainda o mé rito de distinguir no seu estudo a respeito da organização social siste mas de parentesco três aspectos da cultura a o equipamento técnico Manual antropologia jurídica 001277indd 81 9112010 102015 82 83 aspecto material da cultura b a organização social e c a nomencla tura ou equipamento simbólico Para Morgan os equipamentos técnicos constituem o fator dinâmico que quando mudado provoca transforma ções na própria organização social e ato contínuo nos equipamentos simbólicos Morgan não desprezou a importância das ideias como o princípio motor das mudanças mas viu no arcabouço tecnológico in venções e descobertas o responsável imediato pela organização social e pelo conjunto simbólico Morgan foi um dos primeiros a realizar pesquisa de campo etno grafia fato que lhe possibilitou estabelecer o caminho seguido pela organização familiar através dos vários estágios de desenvolvimento Nesse sentido distinguiu três períodos ou estágios de evolução da hu manidade a selvageria b barbárie e c civilização O período denomi nado selvageria caracterizase pelo matrimônio por grupos nesse perí odo predomina a apropriação de produtos da natureza prontos para serem utilizados e as produções artificiais do homem são sobretudo destinadas a facilitar essa apropriação O período denominado barbárie caracterizase pelo matrimônio sindiásmico monogamia apenas para a mulher nesse período aparecem a criação de gado a agricultura por meio do trabalho humano a cerâmica e a fundição do ferro O período denominado civilização caracterizase pelo matrimônio monogâmico nesse período o homem continua a elaborar os produtos naturais mas também é o período da indústria propriamente dita e da arte 2 MORGAN E O MARXISMO Morgan exerceu grande influência nos autores marxistas princi palmente em Friedrich Engels quando este escreve A origem da família da propriedade e do Estado No prefácio à primeira edição 1884 desse livro Engels 1976 7 diz que Karl Marx queria expor pessoalmente os resultados das investigações de Morgan em relação às conclusões da sua análise materialista da história para esclarecer assim e somente assim todo o seu alcance Na América diz Engels Morgan descobriu à sua maneira a concepção materialista da história formulada por Marx quarenta anos antes e baseado nela chegou contrapondo barbárie e civilização aos mesmos resultados essenciais de Marx No prefácio à quarta edição 1891 Engels diz que o trabalho de Morgan A sociedade antiga constitui a base de seu livro A origem da família da propriedade e do Estado Manual antropologia jurídica 001277indd 82 9112010 102015 82 83 Para Engels Morgan organiza a investigação das sociedades ar caicas em conformidade com a concepção materialista segundo a qual o fator decisivo na história é em última instância a produção e a repro dução da vida imediata Isso significa que a ordem social de uma época está determinada por duas espécies de produção a pelo grau de de senvolvimento do trabalho quanto menos desenvolvido é o trabalho mais restrita é a quantidade dos seus produtos e por consequência a riqueza da sociedade b pelo grau de influência da família quanto menos desenvolvido é o trabalho com maior força se manifesta a influ ência dominante dos laços de parentesco sobre o regime social Contudo no quadro dessa estrutura da sociedade baseada nos laços de parentesco a produtividade do trabalho aumenta sem cessar e com ela desenvolvemse a propriedade privada e as trocas as dife renças de riqueza a possibilidade de empregar força de trabalho alheia Surge assim a base dos antagonismos de classe Os novos elementos sociais procuram no transcurso das gerações adaptar a velha estrutu ra da sociedade às novas condições até que por fim a incompatibilida de entre os novos elementos sociais e a velha estrutura da sociedade leva a uma revolução completa Em consequência do choque das classes sociais recémformadas a sociedade antiga baseada nas uniões gentíli cas desagregase dá lugar a uma nova sociedade organizada em Esta do cujas unidades inferiores já não são gentílicas e sim unidades terri toriais uma sociedade em que o regime familiar está completamente submetido às relações de propriedade e na qual têm livre curso as con tradições de classe e a luta de classes que constituem o conteúdo de toda história escrita até os nossos dias Engels 1976 8 9 Para Engels 1976 41 o grande mérito de Morgan é o de ter descoberto e restabelecido nos seus traços essenciais esse fundamento préhistórico da nossa história escrita e o de ter encontrado nas uniões gentílicas dos índios norteamericanos a chave para decifrar importan tíssimos enigmas da história antiga da Grécia Roma e Alemanha A família diz Morgan é o elemento ativo nunca permanece estacio nária mas passa de uma forma inferior a uma forma superior à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado Os sistemas de parentesco pelo contrário são passivos só depois de longos intervalos registram os progressos feitos pela família e não sofrem uma modificação radical senão quando a família já se modificou radicalmente Karl Marx acrescenta O mesmo acontece em geral com os sistemas políticos jurídicos religiosos e filosóficos Manual antropologia jurídica 001277indd 83 9112010 102015 84 85 Tomando como ponto de partida as noções estabelecidas por Morgan conforme especificadas na obra de Engels fazse na sequência uma breve análise de alguns princípios forjados na aurora da humani dade comunidades gentílicas e suas repercussões no âmbito do direito 3 COMUNIDADE GENTÍLICA O primeiro fato histórico que se pode visualizar na aurora da hu manidade é a produção dos meios necessários à sobrevivência que consiste no suprimento das necessidades básicas e vitais comer beber vestirse e ter um abrigo O primeiro fato histórico é portanto a pro dução da própria vida material À medida que as criaturas são incapazes por si mesmas de garan tir a produção da própria vida material isto conduz à formação de uma horda um grupo familiar A associação assim constituída desenvolve formas de ajuda mútua e mantémse unida para que todos obtenham os meios de subsistência Os fatos humanos originários são portanto as relações dos homens com a natureza na luta pela sobrevivência e essas relações são as de trabalho que dão origem à primeira instituição social a família Uma vez satisfeitas as primeiras necessidades vitais a ação e os instrumentos utilizados para tal engendram novas necessidades que vão tornando a organização social mais complexa Daí vem a tese de Marx segundo a qual os homens fazem sua própria história mas não a fazem em condições escolhidas por eles São historicamente determina das pelas condições que produzem suas vidas No primeiro estágio da família primitiva predomina o período de apropriação de produtos da natureza prontos para serem utilizados As produções artificiais do homem são sobretudo destinadas a facilitar essa apropriação Posteriormente com a invenção do arco e da flecha os animais caçados tornamse um alimento regular e a caça uma das ocupações costumeiras O trabalho coletivo é realizado no âmbito da família tendo nele homens e mulheres a mesma importância Esse tra balho desenvolve a intercomunicação e permite levar adiante a realiza ção de tarefas mais complexas como a produção dos próprios alimentos Surge a agricultura e com ela a criação de animais e o arado O primeiro estágio do grupo primordial é a família consanguínea Nesta todos os avôs e avós nos limites da família são maridos e mulhe res entre si O mesmo ocorre com seus filhos e assim sucessivamente Num segundo estágio ou progresso na organização familiar são exclu Manual antropologia jurídica 001277indd 84 9112010 102015 84 85 ídos das relações sexuais recíprocas os irmãos essa exclusão acontece gradativamente começa pela exclusão dos irmãos uterinos até atingir os irmãos colaterais ou seja os primos conforme denominação atual Uma vez proibidas as relações sexuais entre todos os irmãos e irmãs inclusive os colaterais mais distantes por linha materna o grupo transformase num genos isto é constituise num círculo fechado de parentes consanguíneos por linha feminina que não podem casar se uns com os outros E a partir de então este círculo consolidase cada vez mais por meio de instituições comuns de ordem social e religiosa que o distingue dos outros genos da mesma tribo ENGELS 1976 56 A comunidade gentílica é assim um grupo ligado por laços de solidariedade que mantêm organizada a totalidade da vida social Com a desagregação da comunidade gentílica esses laços de solidariedade se diluem O rompimento do princípio da solidariedade significa portanto uma enorme perda para a organização humana daí a importância de investigar a sua formação e posterior dissolução 31 Princípio da solidariedade A comunidade gentílica genos consiste em uma forma de asso ciação em que os membros que a compõem estão unidos pelo vínculo do parentesco ou da descendência comum parentesco e descendência efetiva e real ou simplesmente presumida e fictícia interiormente ca racterizado por uma estreita solidariedade dos membros entre si VANNI 1916 112 No genos não existe propriedade privada a propriedade da terra é coletiva Em virtude dessa estrutura os vínculos de solidariedade são fortalecidos Nesse tipo de organização a complexidade é bastante re duzida porque todas as funções sociais encontram sua base natural sua sustentação social e sua legitimação na proximidade do parentesco Isso é válido para as funções econômicas do auxílio mútuo e da com pensação de necessidades Se a unidade de parentesco extravasa o ta manho máximo do convívio familiar ocorre a fragmentação segmentá ria principalmente no sentido de formação de outras famílias cuja coesão em uma tribo é mantida com base na ascendência e na história comum LUHMANN 1983 184 O poder de estabelecer o equilíbrio social está dominado pelo elemento organizador fundado no princípio do parentesco que se ca racteriza pela sua autossuficiência as pessoas simplesmente são paren Manual antropologia jurídica 001277indd 85 9112010 102015 86 87 tes e pela ausência de alternativas já estão determinados o grau e a proximidade ou distância desse parentesco Essa característica limita a complexidade que não pode ser ampliada mas apenas repetida Uma organização em que a complexidade é reduzida as situações objetiva mente dadas são pobres em alternativas e isso de certa forma limita a ação e a criatividade do pensamento motivo pelo qual as mudanças nas comunidades gentílicas ocorrem de forma lenta às vezes imperceptíveis A solidariedade representa uma espécie de mútuo ou troca que envolve a paz e a defesa Assim em toda ofensa ou lesão que tenha re cebido um dos membros do grupo intervém todo grupo solidário com ele para obter reparação VANNI 1916 114 A reação coletiva inspi rase na noção segundo a qual os membros do grupo garantem recipro camente a paz e a defesa Quem pratica um ato perturbador infringe a paz e portanto deve ser posto fora dela Em épocas de guerra os genos unemse em grupos maiores cha mados fratias as fratias aparentadas formam a tribo A solidariedade dos genos contudo não está adstrita somente às questões militares A fratia incorpora também direitos e deveres recíprocos especialmente os que consistem na comunidade de certos ritos religiosos cerimônias sacras periódicas 32 Solidariedade e costume A convivência humana produzida pelo grupo é geradora de regras portanto ao longo de sua história o grupo primitivo estabelece regras de conduta e passa a ser organizado conforme elas O fato do repetir constante e uniforme de certos atos constitui e já implica uma autori dade a autoridade do precedente O costume transmitese de geração em geração a tradição com o correr do tempo se torna memorável e induz ao respeito e à observância VANNI 1916 114 Assim certos comportamentos e certas maneiras de agir pela repetição constante vãose tornando regras gerais de conduta Essas regras passam a representar uma ordem sagrada que obriga o homem e a divindade por isso o comportamento contrário acarreta uma desi lusão muito acentuada à expectativa consagrada pelas regras Pertencer a um grupo social e nele conviver é estar em conformidade com o direi to desse grupo isto é em conformidade com as regras do grupo que também são as regras queridas pela divindade A ideia de pertinência ao grupo social se fortalece por intermédio dessa prática O direito do Manual antropologia jurídica 001277indd 86 9112010 102015 86 87 grupo é sentido como o único direito possível até porque o indivíduo não possui nenhum acesso independente de sua parentela ao desenca deamento de outras possibilidades LUHMANN 1983 187 No horizonte do direito arcaico só ha lugar para uma única ordem a exis tente FERRAZ JR 1988 53 O direito arcaico perde consistência com a fragmentação da comu nidade gentílica em famílias menores família monogâmica e o conse quente aparecimento de formas mais complexas de relacionamento social propriedade privada classes sociais escravidão etc Com a frag mentação do genos o princípio do parentesco migra para a organização menor em processo de construção família monogâmica imprimindo lhe autonomia em relação ao próprio genos O processo histórico mos tra que a evolução da família consiste numa redução constante do cír culo de pessoas que a compõe e com isso também se reduz o círculo de abrangência do princípio da solidariedade Apesar da constante redução do círculo familiar no decorrer do processo histórico alguns aspectos da comunidade gentílica permanecem na sociedade moderna Nesse sentido a ONU reconhece que quando a economia familiar está baseada na agricultura ou noutra atividade própria ao meio rural e existe a tradicional família ampliada podemse confiar tarefas úteis a todas as pessoas Porém à medida que a agricultura se torna mecanizada e mais comercializada que as transações monetárias substituem o sistema de trocas e a família ampliada se desintegra as pessoas abandonam as regiões rurais e se dirigem aos centros urbanos e passam a conviver com a falta de trabalho Nos bairros pobres das cidades a concorrência para conseguir trabalho é grande e por esse motivo mui tas pessoas residentes nessas zonas veemse forçadas à inatividade e são obrigadas a recorrer à mendicância PAMONU 1982 27 É possível perceber que nas comunidades primitivas ainda exis tentes grupos indígenas os indivíduos compartilham o mesmo destino motivo pelo qual todos se sentem responsáveis uns pelos outros Essa noção de solidariedade forjada na aurora da humanidade e presente em todas as comunidades parece que ficou em um passado distante longín quo por isso irrecuperável 4 FIM DA SOLIDARIEDADE A cidade polis surge a partir da crise que se instaura na organi zação gentílica A polis representa um domínio político localizado num Manual antropologia jurídica 001277indd 87 9112010 102015 88 89 centro de administração diferenciado da organização familiar Com o advento da polis ocorre um aumento considerável da complexidade da vida social e da contingência das relações humanas O mundo se torna mais problemático pela ampliação do horizonte de possibilidades pelo aparecimento de um universo mais amplo em alternativas conflitos e contradições No âmbito do direito isso significa que um número maior de comportamentos mais variados tornase juridicamente possível LUHMANN 1983 167 Rousseau 1973 241 ao abordar a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens aponta duas espécies de desigualdades a uma que ele denomina desigualdade natural ou física porque é esta belecida pela natureza e consiste na diferença das idades da saúde das forças corporais e das qualidades do espírito ou da alma b outra que ele denomina desigualdade moral ou política porque consiste nos dife rentes privilégios desfrutados por alguns em prejuízo dos demais como o de serem mais ricos e mais poderosos Na comunidade gentílica a desigualdade natural ou física é neutra lizada pelas relações de parentesco e pelo princípio de solidariedade que visam à preservação do grupo Nessa mesma comunidade a desigualda de moral ou política quando não é desconhecida é pouco desenvolvida porque a estrutura social dessas comunidades é apenas uma extensão da estrutura familiar em que predomina o regime de propriedade cole tiva dos meios de produção A sociedade portanto ao alcançar um es tágio superior de crescimento econômico e complexidade social intro duziu uma inevitável mazela social a desigualdade na riqueza 41 Desigualdade econômica O descobrimento de novas técnicas e invenções e sua aplicação à agricultura à criação de gado e aos ofícios manuais elevaram a produção a um nível maior do que o necessário para o consumo surge assim o excedente Alguns homens em virtude das funções que exercem no grupo administram os negócios comuns e cuidam das funções religio sas apropriamse das terras mais férteis e consequentemente do exce dente comunal passam a controlar o intercâmbio comercial e aos poucos acumulam riquezas que lhes permitem imporse aos demais membros da comunidade como dirigentes instaurando a desigualdade econômica no seio da comunidade gentílica Assim à desintegração do genos seguese a desigualdade social com o aparecimento de uma oligarquia que congrega grandes proprietários Manual antropologia jurídica 001277indd 88 9112010 102015 88 89 Esses proprietários passam a exercer o domínio político e no intuito de acumular mais riquezas chegam ao limite de reduzir alguns membros do genos à condição de escravo A unidade produtiva passa a ser o oikos propriedade privada uma instituição social bem menor que o genos no qual vivem os parentes mais afins e os escravos Essa unidade produtiva é dirigida e administrada diretamente pelo chefe da família As novas condições provocam o desaparecimento das práticas dos velhos costumes quer dizer a transformação da base material da vida comunitária originada pelo surgimento de novas técnicas e novas formas de produção provoca um profundo efeito no âmbito das relações sociais Nas palavras de Ferraz Jr 1988 54 com o desenvolvimento das so ciedades quer pelo aumento quantitativo quer pelo aumento da com plexidade das interações humanas possíveis o princípio do parentesco pela sua pobreza é pouco a pouco diferenciado e substituído como base da organização social Na comunidade gentílica como dito a propriedade dos meios de produção é coletiva a família se confunde com o próprio grupo e todos no genos consideramse ligados por laços de parentesco Com o surgi mento da propriedade privada a família que inicialmente é a única relação social transformase numa relação subalterna Isso ocorre quando o acréscimo das necessidades engendra novas relações sociais e a descoberta ou invenção de novas técnicas aliada ao crescimento da população dá origem a novas necessidades A sociedade antiga baseada nas uniões gentílicas desagregase surge no seu lugar a nova socieda de polis ou Estado cujas unidades inferiores já não são gentílicas e sim unidades territoriais uma sociedade em que o regime familiar está to talmente submetido às relações de propriedade e na qual têm livre curso as contradições de classe O homem na comunidade gentílica que era governado por um complexo de regras costumeiras emanadas da vida coletiva não tinha outros meios coercitivos além da opinião pública Acabava de surgir no entanto uma sociedade que por força das condições econômicas gerais de sua existência tivera que se dividir uma sociedade em que os referidos antagonismos não só não podiam ser conciliados como ainda tinham que ser levados aos seus limites extremos Uma sociedade des se gênero só podia subsistir no seio de uma luta aberta e incessante das classes entre si ou sob o domínio de um terceiro poder que situado aparentemente por cima das classes em luta suprimisse os conflitos Manual antropologia jurídica 001277indd 89 9112010 102015 90 91 entre estas e só permitisse a luta de classes no campo econômico numa forma dita legal ENGELS 1976 24 Morgan in ENGELS 1976 236 constata que desde o advento da civilização chegou a ser tão grande o aumento da riqueza assumin do formas tão variadas de aplicação tão extensa e tão habilmente ad ministrada no interesse de seus possuidores que ela a riqueza se transformou numa força incontrolável oposta ao povo A inteligência humana vêse impotente e desnorteada diante da sua própria criação Alguns teóricos entendem que não há conhecimento científico possível sem que se constitua uma teoria servindo de paradigma isto é de modelo organizador do saber A teoria da evolução cumpriu esse papel decisivo ao imprimir um grande impulso na construção da antro pologia como saber científico Não obstante os antropólogos do século XX introduzirão uma ruptura em relação ao paradigma do evolucionis mo criando novos modelos de construção do saber antropológico Um dos primeiros antropólogos a se posicionar contrário ao evolucionismo foi Franz Boas cujas ideias expõese na sequência Manual antropologia jurídica 001277indd 90 9112010 102015 90 91 iX FrAnz BoAS 18581942 1 ANTROPOLOGIA NO SÉCULO XX No século XX concretizase o sonho de Rousseau O estudo an tropológico põe fim à repartição de tarefas até então habitualmente divididas entre o observador viajante missionário administrador entregue ao papel subalterno de provedor de informações e o pesqui sador que tendo permanecido na metrópole recebia analisava e inter pretava essas informações A profissionalização do trabalho etnográfico levou o antropólogo para o campo Assim a partir do século XX a et nografia passa a ser parte inseparável da antropologia na medida em que o próprio antropólogo toma para si a tarefa de colher informações realizando o que se denomina pesquisa de campo ou trabalho de campo A nova geração de antropólogos Malinowski RadcliffeBrown Margaret Mead e outros realiza missões de pesquisas etnográficas com estadias prolongadas entre as populações do mundo inteiro Franz Boas é considerado o responsável por essa mudança razão pela qual é tido como o pioneiro da etnografia Dentre as contribuições de Franz Boas à antropologia destacamse a a crítica à noção de estágios e b a exigência da união do teórico e do observador Boas ao formular a crítica às noções de origem e de recons tituição dos estágios mostra que um costume só tem significado se for relacionado ao contexto particular no qual se insere portanto as histó rias locais não se enquadram num padrão universal motivo pelo qual cada sociedade adquire o estatuto de uma totalidade autônoma Para Manual antropologia jurídica 001277indd 91 9112010 102015 92 93 Boas o antropólogo deve ser ao mesmo tempo o teórico e o observador portanto não pode contentarse apenas em coletar materiais à maneira do viajante missionário ou administrador mas deve procurar detectar o que faz a unidade da cultura que se expressa através desses diferentes materiais Por essas razões acreditava que apenas o antropólogo podia elaborar uma monografia isto é o estudo científico de uma microssocie dade apreendida em sua totalidade e considerada em sua autonomia 2 ETNOGRAFIA No decorrer do século XIX apareceram na Europa várias revistas e numerosas associações científicas que esboçavam algumas preocupa ções em relação ao destino das sociedades primitivas Essas revistas e associações colocaram em evidência a necessidade de proteger tais so ciedades porque a ação de grupos capitalistas e religiosos representava uma ameaça à cultura daqueles povos e ao próprio objeto de estudo da antropologia Vale dizer algumas pessoas perceberam que a ação capi talista e religiosa provocaria o desaparecimento das culturas primitivas e comprometeria de modo irreversível os estudos antropológicos A preocupação com o desaparecimento das culturas primitivas fez com que alguns dos antropólogos se empenhassem na tarefa de coletar e registrar o maior número possível de informações Esse trabalho conhecido como etnografia trabalho de campo consiste basicamente na descrição dos costumes dos povos Tratase de uma tarefa aparente mente de menor importância porque não exige uma elaboração teórica O trabalho etnográfico contudo implica certo revestimento teórico porque o registro dos elementos da cultura pesquisada requer uma sistematização Esta por sua vez exige uma compreensão do fenômeno cultural ou seja uma teoria a respeito da cultura Franz Boas forneceu os princípios da pesquisa etnológica que foram aproveitados principal mente pelas escolas antropológicas norteamericanas conhecidas como difusionismo e configuracionismo No campo ensina Boas tudo deve ser anotado nos mínimos deta lhes desde os materiais constitutivos das casas até as notas das melodias Tudo deve ser objeto de descrição meticulosa Nesse sentido é preciso anotar detalhadamente as diferentes versões de um mito ou os mais diversos ingredientes da composição de um alimento Para Boas não há objeto nobre nem objeto indigno da ciência As piadas são tão impor tantes quanto a mitologia que expressa o patrimônio metafísico do Manual antropologia jurídica 001277indd 92 9112010 102015 92 93 grupo Em especial deve ser levada em consideração a maneira pela qual as sociedades tradicionais na voz dos mais humildes entre eles classificam suas atividades mentais e sociais Boas foi um dos primeiros a mostrar não apenas a importância mas também a necessidade para o antropólogo do acesso à língua da cultura na qual trabalha As tradições que estuda não poderiam serlhe traduzidas Ele próprio deve recolhê las na língua de seus interlocutores LAPLATINE 2006 77 78 21 Reconstrução da cultura Franz Boas reconhecia que mesmo o antropólogo dedicado à pes quisa de campo encontraria dificuldades na coleta organização e inter pretação do material necessário à reconstrução de determinada cultura Segundo ele o material para a reconstrução de cultura é sempre mais fragmentário porque os mais amplos e mais importantes aspectos de cultura linguagem religião organização social não deixam traços na terra desaparecem com a vida de cada geração Assim a informação histórica é avaliada apenas através das fases mais recentes da vida cul tural e é restrita àqueles povos que possuem a arte de escrever e cujos registros é possível ler Mas mesmo essa informação é insuficiente porque muitos aspectos da cultura não encontram expressão em litera tura MELLO 1982 231 e 232 Como se nota Franz Boas exige um critério de validade bastante rígido no que diz respeito às reconstruções históricas das culturas Vale dizer os estudos etnográficos não permitem em muitos casos estabelecer tais reconstruções Para Boas in LÉVISTRAUSS 2003 22 os fatos não autorizam nenhuma reconstrução tendente por exemplo a afirmar a anteriorida de histórica das instituições matrilineares sobre as patrilineares Segun do ele tudo o que se pode dizer é que fragmentos de desenvolvimentos históricos arcaicos não podem deixar de subsistir mas se é possível e mesmo provável que a estabilidade inerente às instituições matrilinea res as tenha frequentemente conduzido onde existem a se transforma rem em instituições patrilineares disto não resulta de nenhuma manei ra que sempre e por toda parte o direito materno tenha representado a forma primitiva em relação ao direito paterno Diante dessas dificuldades em estabelecer um padrão universal Boas entende que o estudo antropológico deve concentrarse na abor dagem de culturas particulares cada uma vista como uma unidade singular e como um problema individual pois a cultura é por demais Manual antropologia jurídica 001277indd 93 9112010 102015 94 95 complexa para permitir um levantamento histórico completo e de ca ráter universal Com isso o uso do termo cultura no plural passa a iden tificar a ideia antropológica moderna ou seja em vez de cultura os antropólogos seguindo Boas começaram a escrever sobre culturas reconhecendo que elas não constituem sistemas integrados Boas alerta que a pesquisa para ser legítima deve restringirse a uma pequena região com fronteiras nitidamente definidas e as compa rações não devem ser estendidas além da área escolhida como objeto de estudo A recorrência de costumes ou instituições análogos não pode ser sustentada como uma prova de contato entre culturas para isso é neces sário estabelecer uma cadeia contínua de fatos do mesmo tipo que per mitem ligar os fatos extremos por toda uma série de intermediários Para compreender a história dizia ele não basta saber como são as coisas mas como chegaram a ser o que são in LÉVISTRAUSS 2003 20 21 Para Boas o estudo detalhado dos costumes e de seu lugar na cultura global da tribo que os pratica acrescido de um inquérito que tenha por objeto sua repartição geográfica entre as tribos vizinhas talvez pudesse determinar de uma parte as causas históricas que con duziram à sua formação e de outra parte os processos psíquicos que os tornaram possíveis Mas segundo Ruth Benedict in LÉVISTRAUSS 2003 22 Boas dizia que o problema era determinar as relações entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo do homem tal como se configu ra nas diferentes sociedades De qualquer modo para Boas a diversidade de processos históri cos que constituem as sociedades implica estabelecer para a antropolo gia o estudo e conhecimento de grupos sociais localizados no espaço e no tempo Assim o conhecimento antropológico quando muito só consegue alcançar a história de cada grupo portanto uma microhis tória bastante diferente da concepção de história macrohistória do evolucionismo Enfim as investigações de Boas estabeleceram a questão de saber se a análise mais penetrante de uma cultura única que compreenda a descrição de suas instituições e de suas relações funcionais e o estudo dos processos dinâmicos pelos quais cada indivíduo age sobre sua cul tura e a cultura sobre o indivíduo pode adquirir todo seu sentido sem o conhecimento do desenvolvimento histórico que resultou nas formas atuais LÉVISTRAUSS 2003 23 Essa questão ainda constitui tema polêmico na antropologia tanto que LéviStrauss lembra que a quase Manual antropologia jurídica 001277indd 94 9112010 102016 94 95 totalidade da escola americana contemporânea renunciouse a compre ender a história para fazer do estudo das culturas uma análise sincrôni ca das relações entre seus elementos constitutivos no presente 3 CULTURA E RAÇA Conforme relata Kuper 2002 32 a 34 Ernst Haeckel o mais proeminente darwinista da Alemanha apresentou argumentos segundo os quais a teoria de Darwin podia ser usada para demonstrar a superio ridade da raça prussiana Rudolf Virchow mostrouse hostil em relação a esse determinismo racial e ao nacionalismo cultural com o qual esta va associado Para Virchow raças eram categorias instáveis com fron teiras móveis e a mistura racial era amplamente disseminada portanto provavelmente universal Traços biológicos passavam por cima das classificações raciais convencionais que em todos os casos eram influen ciados por fatores ambientais locais Diferença cultural portanto não apresentava indícios de diferença racial Raça cultura língua e nacio nalidade dizia Virchow não coincidem necessariamente visto que os refugiados huguenotes estão germanizados assim como os numerosos judeus que vieram da Polônia e da Rússia contribuíram sobremaneira para o progresso da cultura alemã Adolf Bastian colega de Virchow tentou demonstrar que assim como as raças as culturas são híbridas Não existem culturas puras distintas e permanentes Toda cultura recorre a diversas fontes depen de de empréstimo e está em constante mudança Para Bastian as dife renças culturais eram causadas pelo desafio apresentado pelo ambiente natural local e pelo contato entre populações portanto o empréstimo é o mecanismo primário da mudança cultural E como as mudanças culturais são resultados de processos locais imprevistos pressões ambientais migrações comércio consequentemente a história não tem um padrão fixo de desenvolvimento Franz Boas aluno de Bastian absorveu as teses do seu professor ao afirmar que as mudanças culturais resultavam de contatos casuais ou eram geradas pela reação criativa de indivíduos diante da tradição herdada estimulada pelo desafio ambiental Assim a tese fundamental boasiana consiste em afirmar que a raça não determina a cultura É a cultura que molda os homens e não a biologia Os homens se tornam o que são ao crescer em determinado ambiente cultural Raça não impli ca condições naturais imutáveis Isso quer dizer que o homem pode Manual antropologia jurídica 001277indd 95 9112010 102016 96 97 transformarse em algo melhor e talvez aprendendo a ser tolerante e equilibrado como o povo de Samoa ou de Bali Nessa trilha Magareth Mead aluna de Boas estudando o comportamento dos adolescentes das ilhas Samoa entendeu que seus estudos deveriam permitir a instauração de uma sociedade melhor e mais especificamente a aplicação de uma pedagogia menos frustrante à sociedade americana 31 Cultura e segregação Em outra passagem Kuper 2002 14 e 17 observa que as con clusões de Boas foram manipuladas no sentido de justificar o apartheid política coercitiva de segregação racial praticada na África do Sul até o final do século XX Nesse país as doutrinas oficiais sobre raça e cul tura apartheid invocavam autoridade científica com fundamentos numa teoria antropológica cultural A antropologia portanto poderia justi ficar uma ordem normativa jurídica que estabelecesse a segregação racial Essa articulação no sentido de justificar a segregação por inter médio de uma teoria antropológica cultural tem origem na década de 1930 quando alguns intelectuais africânderes entre eles Eiselen passaram a repudiar os preconceitos torpes disseminados entre os brancos sulafricanos Para Eiselen não havia provas de que a inteli gência variava com a raça tampouco que uma raça ou nação privile giada deveria conduzir o mundo rumo à civilização Não era segundo Eiselen a raça mas sim a cultura que constituía a verdadeira base da diferença entre negros e brancos As diferenças culturais deveriam ser avaliadas Se a integridade das culturas tradicionais fosse minada haveria uma desintegração social motivo pelo qual Eiselen achava que o governo deveria estimular uma cultura negra banto mais elevada e não produzir europeus negros Mais tarde o slogan desenvolvimen to separado passou a ser usado A segregação segundo alguns era o curso adequado para a África do Sul pois só assim as diferenças cul turais seriam preservadas Desse modo os argumentos boasianos segundo os quais raça e cultura são independentes entre si que a cultura é o que torna as pes soas o que elas são e que o respeito pelas diferenças culturais deveria constituir a base da sociedade justa passaram a ser manipulados pela antropologia cultural africânder como uma justificativa desesperada para manter a legalidade do apartheid Manual antropologia jurídica 001277indd 96 9112010 102016 96 97 32 Cultura e símbolos Para LéviStrauss 2003 35 36 cabe a Boas o mérito de ter com lucidez admirável definido a natureza inconsciente dos fenômenos culturais Após ter mostrado que a estrutura da língua permanece des conhecida daquele que fala até o surgimento de uma gramática cientí fica e que mesmo então ela continua a modelar o discurso fora da consciência do sujeito impondo ao seu pensamento quadros conceituais que são tomados por categorias objetivas acrescentava a diferença essencial entre os fenômenos linguísticos e outros fenômenos culturais é que os primeiros jamais emergem à consciência clara ao passo que os segundos se bem que tendo a mesma origem inconsciente se elevam frequentemente até o nível do pensamento consciente produzindo assim raciocínios secundários e reinterpretações Mas na opinião de Boas essa diferença de grau não diminui o valor exemplar do método linguístico para as pesquisas etnológicas Ao contrário a grande vantagem da linguística a este respeito é que no conjunto as categorias da linguagem permanecem inconscientes por esta razão podese seguir o processo de sua formação sem que interve nham de maneira falaz e incômoda as interpretações secundárias tão frequentes em etnologia que podem obscurecer irremediavelmente a história do desenvolvimento das ideias Essas teses segundo Lévi Strauss foram formuladas por Franz Boas oito anos antes da publica ção do Curso de linguística geral de Ferdinand de Saussure Segundo Kuper 2002 89 a partir de 1930 Boas passa a apresen tar oficialmente uma concepção antropológica moderna da cultura como um sistema integrado de símbolos ideias e valores Cabe anotar que Franz Boas é considerado o mentor das escolas antropológicas norteamericanas conhecidas como difusionismo e confi guracionismo às quais se ligam os nomes de Edward Sapir Ruth Benedict e Margaret Mead 4 DIFUSIONISMO A teoria difusionista preocupase em compreender o processo de transmissão dos elementos de uma cultura para outra motivo pelo qual postula a existência de centros de difusão de cultura a qual se transmi te por empréstimo Assim diante de vários agrupamentos culturais escolhe o mais rico e mais complexo como representando a forma pri Manual antropologia jurídica 001277indd 97 9112010 102016 98 99 mitiva da sociedade e consigna sua origem à região do mundo em que se encontra arquitetado de maneira melhor considerando todas as ou tras formas como resultado de migrações ou empréstimo a partir da quele foco comum O difusionismo também denominado historicismo engloba várias tendências da antropologia cultural podemse entretanto apontar as seguintes características gerais pertinentes a esse movimento MELLO 1982 222 a 224 a Reação ao evolucionismo O difusionismo é visto como um movimento de reação à orientação evolucionista dominante na antro pologia do século XIX Essa reação atinge não só a orientação geral teórica mas também os procedimentos metodológicos Ele entretanto não rejeita completamente os conceitos básicos constituídos e constru ídos pelo evolucionismo existem evidentemente pontos divergentes mas também pontos convergentes já que ambos de certa forma repou sam em bases teóricas comuns Há nesse sentido uma preocupação em explicar a cultura como fenômeno universal e humano pela variável tempo motivo pelo qual ressaltamse o aspecto diacrônico e não sincrô nico da cultura b Interesse pelos traços culturais semelhantes A teoria difu sionista proclama que a essência dos fenômenos da sociedade e da cul tura consiste no seu caráter dinâmico e desenvolvimentista É uma te oria da sociedade e da cultura que destaca a realidade humana e o trabalho humano Busca sobretudo uma explicação histórica para en tender as semelhanças existentes entre as culturas particulares Nesse sentido dá relevo ao fenômeno da difusão e dos contatos entre os povos motivo pelo qual advoga uma mudança nos métodos da antropologia c Rigor metodológico O difusionismo preocupase em tornar os métodos da antropologia cultural mais rigorosos mais científicos Essa preocupação possibilitou o desenvolvimento da pesquisa de campo com intensidade considerável dando grande impulso à etnografia Para alguns era urgente coletar dados e informações sobre os povos primi tivos antes que os mesmos desaparecessem ou fossem absorvidos pela civilização em virtude disso a coleta de dados tornouse mais impor tante do que a explicação do fenômeno cultural d Desenvolvimento de técnicas de pesquisa Ao elevar a pes quisa de campo como fator fundamental da pesquisa antropológica o difusionismo desenvolveu várias técnicas de pesquisa principalmente Manual antropologia jurídica 001277indd 98 9112010 102016 98 99 a observação participante que possibilitou aos antropólogos aprender vários idiomas antes desconhecidos Esse fato favoreceu o incremento da linguística como ramo específico da antropologia e Interesse pelas culturas particulares A abordagem difusio nista não só possibilitou uma nova interpretação do fenômeno cultural mas também deslocou o foco de estudo para as sociedades particulares Isso ocorreu principalmente com a escola norteamericana que passou a dar importância ao estudo das culturas particulares e não à cultura universal Para essa escola o importante não é o estudo da cultura nas suas origens e em todas as partes formando uma grande unidade comum a todos os povos mas sim o estudo das culturas particulares que per mite maior segurança nas informações e conhecimento de fenômenos até então desconhecidos 41 Difusionismo norteamericano Como dito Franz Boas foi o principal mentor da escola difusionis ta norteamericana Essa escola além de imprimir uma nova interpre tação ao fenômeno cultural passou a se concentrar no estudo das cul turas particulares delimitando o campo de estudo da antropologia Para os difusionistas norteamericanos a cultura é por demais complexa para permitir um levantamento histórico completo e de ca ráter universal motivo por que optam pelo estudo de áreas delimitadas e de preferência pequenas o qual permite interpretar com maior segu rança as informações colhidas Entendem que dessa forma tornase mais fácil e seguro o estudo históricocultural Foi essa consciência que levou a um aperfeiçoamento metodológico dando preferência às informações colhidas com a pesquisa de campo A delimitação do estudo antropoló gico transformando cada povo primitivo clã tribo em unidade de estudo possibilitou a ampliação e o aprofundamento dos temas a serem investigados fato que contribui para a valorização ampliação e inten sificação da produção de pesquisas de campo e do material coletado MELLO 1982 230 231 Convém salientar que os representantes dessa escola perceberam que a difusão não é um processo mecânico pelo contrário supõe uma elaboração complexa por parte do povo que adota certos traços culturais de outros povos A propósito Franz Boas in MELLO 1982 233 es clarece que a importância da difusão foi tão firmemente estabelecida pela investigação da cultura material norteamericana cerimônias arte Manual antropologia jurídica 001277indd 99 9112010 102016 100 101 mitologia assim como pelo estudo das formas culturais africanas e pelo da préhistória da Europa que não podemos negar sua existência no desenvolvimento de qualquer tipo cultural local Não só se provou ob jetivamente por meio de estudos comparativos como também o inves tigador de campo tem amplas provas das maneiras de atuar da difusão A introdução de novas ideias não se deve de forma alguma considerar como resultante puramente mecânica de adições ao padrão cultural mas ao mesmo tempo como um importante estímulo de novos desenvolvi mentos internos Um estudo puramente indutivo dos fenômenos étnicos leva à conclusão de que tipos culturais mesclados geográfica ou histo ricamente situados como intermediários entre dois extremos fornecem provas da difusão Segundo Margaret Mead in KUPER 2002 96 Boas achava que vários trabalhos haviam demonstrado que as pessoas faziam emprésti mos entre si que nenhuma sociedade evoluía em isolamento mas sim que seu desenvolvimento era permanentemente influenciado por outros povos outras culturas e outros níveis de tecnologia Ele decidiu que chegara a hora de enfrentar os problemas que ligavam o desenvolvi mento dos indivíduos aos elementos característicos da cultura em que eles foram criados Isso implicaria o desdobramento da tese segundo a qual a cultura não é determinada nem pela raça nem pelo meio am biente Cultura seria aquilo que Tylor afirmara a herança não biológi ca das espécies A cultura portanto desenvolvese principalmente por empréstimo decorrente de contatos casuais Nesse sentido as culturas europeias e mais ainda a norteamericana seriam em maior proporção do que outras um complexo de traços emprestados uma configuração que influenciaria os comportamentos dos indivíduos Nessa trajetória alguns alunos de Franz Boas como Ruth Benedict Edward Sapir e Margareth Mead desenvolveram uma abordagem an tropológica da cultura que ficou conhecida como configuracionismo um desdobramento do difusionismo Ruth Benedict e Edward Sapir perce beram que um mesmo traço cultural tomado por empréstimo por duas culturas distintas pode sofrer transformações nesse fenômeno de adoção 411 Ruth Benedict 1887 1948 Ruth Benedict introduziu a ideia de configuração cultural na an tropologia moderna Segundo ela uma cultura é um modelo mais ou menos consistente de pensamento e ação Não é apenas a soma de todas Manual antropologia jurídica 001277indd 100 9112010 102016 100 101 as suas partes mas o resultado de um único arranjo e única interrela ção das partes do que resultou uma nova entidade in MARCONI e PRESOTTO 2006 36 Nessa trilha a cultura deve ser vista como um todo cujas partes estão de tal modo entrelaçadas que a mudança em uma das partes afetará as demais motivo pelo qual ao estudar uma cultura devese ter visão conjunta de suas instituições costumes usos normas etc e suas influências recíprocas Com essa concepção é possí vel perceber que duas ou mais sociedades com a mesma soma de ele mentos culturais podem apresentar configurações totalmente diferen tes dependendo do modo como esses elementos estão organizados e relacionados Uma das características do trabalho de Ruth Benedict e a de ter tomado de empréstimo os conceitos de Nietzsche e classificado as cul turas em dois tipos principais a apolíneo corresponderia àquelas culturas extrovertidas acentuando formas externas de comportamento ritualistas conformistas desconfiadas do individualismo evitando ex cessos mostrando comedimento e b dionisíaco corresponde às cul turas introvertidas intensamente individualistas agressivas aprecia doras de experiências violentas motivadas mais pelo indivíduo do que pelo grupo Para Benedict as culturas têm suas próprias personalidades e imprimem nos indivíduos nelas criados os caracteres dessas personali dades A história de vida do indivíduo é sobretudo uma acomodação aos padrões e modelos tradicionalmente transmitidos por sua comuni dade Desde seu nascimento os costumes moldam suas experiências e sua conduta Quando começa a falar ele é um produto da sua cultura e quando cresce e pode tomar parte nas atividades coletivas faz dos hábitos da comunidade os seus hábitos das crenças da comunidade as suas crenças e das impossibilidades as suas impossibilidades in KU PER 2002 95 Benedict desenvolve uma espécie de determinismo cultural na medida em que estabelece que as características dos indivíduos devem ser idênticas às características da cultura a que pertencem Assim como no indivíduo não existem separadamente princípios religiosos econô micos políticos jurídicos etc mas uma resultante uma configuração de todos os princípios também na cultura existe um todo harmonioso uma configuração um estilo de ser que dirige e conforma o comporta mento de todos os membros de determinada cultura Manual antropologia jurídica 001277indd 101 9112010 102016 102 103 Em 1951 a pedido da UNESCO uma comissão composta por cinco geneticistas e seis antropólogos dentre eles Ruth Benedict ela borou uma declaração sobre raças na qual foram expostos alguns princípios que merecem destaque Segundo a citada comissão a não existe nenhuma raça ariana ou nórdica b não há qualquer prova de que raça ou diferenças raciais exerçam algum tipo de influência nas manifestações culturais ou nas possibilidades de desenvolvimento da cultura em geral c não existem provas de que os grupos em que pode ser dividido o gênero humano diferem em sua capacidade inata de de senvolvimento intelectual ou emocional d também não existem provas de que as misturas raciais produzam resultados biológicos prejudiciais e os estudos científicos mostram que as diferenças genéticas são insig nificantes na determinação de diferenças sociais e culturais entre grupos humanos diferentes ABBAGNANO 2003 823 412 Edward Sapir 1884 1939 Sapir ocupouse do estudo da linguagem e descobriu que cada língua possui uma maneira de ser uma forma integrada ou uma habili dade característica que lhe permite expressar certas coisas melhor do que outras Segundo ele a cultura também forma um todo com uma configuração inconsciente que geralmente não é comunicada à mente Essa configuração corresponde a um arranjo que lhe é próprio e lhe fornece uma maneira típica de ser Mello 1982 237 Para Sapir KUPER 93 94 é difícil definir e explicar de forma satisfatória o real alcance e sentido do termo cultura Talvez por isso diz ele aqueles que o usam raramente conseguem dar uma ideia perfei tamente clara do que eles mesmos entendem por cultura Embora a cultura seja concebida como herança de um grupo referese em parti cular aos elementos tradicionalmente enfatizados pelos humanistas os bens espirituais de um grupo alguns dos quais são num sentido espi ritual mais valiosos mais característicos e mais significativos do que outros E como insistiam os grandes humanistas são esses elementos espirituais que dão significado à vida dos indivíduos Concebida dessa forma é a cultura que dá a determinado povo o seu lugar característico no mundo Ela pode então ser definida de modo sucinto como civilização na medida em que corporifica a capacidade criativa e intelectual nacional Para Sapir era exatamente essa a visão popular do significado de cultura e admitia que essa associação de cul tura e nação poderia suscitar chauvinismo ou racismo Manual antropologia jurídica 001277indd 102 9112010 102016 102 103 Sapir porém fazia distinção entre cultura autêntica e cultura es púria Para ele uma cultura autêntica é ricamente variada porém uni ficada e coerente onde nada é desprovido de sentido cultural Ela é harmoniosa como a cultura de Atenas na época de Péricles e não um híbrido espiritual de retalhos contraditórios A cultura autêntica não está ligada ao progresso técnico portanto é uma ilusão pensar que o progresso científico pode ajudar o homem a alcançar uma vida mais harmoniosa uma cultura mais profunda e mais satisfatória Lembra que os etnólogos reconhecem a vitalidade das culturas até mesmo daquelas que possuem tecnologia rudimentar Além do mais arte religião e vida econômica estão entrelaçadas nas sociedades primitivas Nas sociedades industriais os extremos da vida foram fragmentados e as funções sepa radas Para Sapir a cultura autêntica do indivíduo precisa crescer orga nicamente no solo fértil de uma cultura comunal Esse era segundo ele o sentido de cultura que deveria terse tornado objeto de estudo da antropologia Sapir segundo Kuper estava propondo que os etnólogos abandonassem o estudo do que ele denomi nava civilização tema tradicionalmente abordado por eles e adotassem uma ideia humanista clássica de cultura 5 CRÍTICAS AO DIFUSIONISMO Alguns autores destacam as seguintes críticas ao difusionismo a excesso no tratamento unitário da cultura relegando os seus aspectos universais b manipulação estatística dos traços culturais levando a pensar que as distribuições da cultura ocorrem de modo mecânico c determinismo cultural visto que considera o indivíduo o elemento passivo no qual a cultura elemento ativo seria impressa MARCONI e PRESOTTO 2006 255 256 Além disso os críticos alertam que o empenho em demasia na pesquisa de campo dando ênfase ao aspecto meramente descritivo das informações pode transformar a antropologia em etnografia LéviStrauss 2003 23 24 ao analisar a organização dualista nas sociedades primitivas faz uma critica ao difusionismo Segundo ele a interpretação difusionista da organização dualista escolhe um dos tipos observados habitualmente o mais rico e complexo como representando a forma primitiva da instituição e consigna sua origem à região do mundo em que se encontra mais bem ilustrado considerando todas as outras formas como resultado de migrações e empréstimos a partir de Manual antropologia jurídica 001277indd 103 9112010 102016 104 105 um foco comum Com esse procedimento diz LéviStrauss o difusio nismo designa arbitrariamente um tipo entre todos os fornecidos pela experiência e faz desse tipo o modelo ao qual se experimenta por um método especulativo reduzir todos os outros Sobre a crítica segundo a qual a escola norteamericana se teria tornado uma antropologia meramente descritiva Mello 1982 236 alerta que é preciso levar em conta as seguintes considerações Em primeiro lugar é plenamente válido o intento dos antropólogos de co letar o máximo de documentação mesmo em forma predominantemen te descritiva afinal diz ele o melhor é coletar material e documentálo bem sem teorizar do que teorizar em profusão sem nenhum dado ou fato à mão Em segundo lugar o fato de muitos estudiosos se lançarem à coleta de dados culturais levouos a apresentálos de maneira siste mática isso permitiu e o tempo encarregouse de provar que a escola de Franz Boas fosse antes de tudo uma antropologia estimulante e sugestiva A coleta intensiva de informações sobre culturas diferentes fez surgir outras abordagens e possibilitou a ampliação das fronteiras do conhecimento 6 DIFUSIONISMO E DIREITO Como visto a teoria difusionista preocupase em compreender o processo de transmissão dos elementos de uma cultura para outra portanto reconhece que qualquer agrupamento social com raríssimas exceções jamais está absolutamente isolado Os grupos sociais entram em relação com grupos vizinhos ou mesmo afastados geralmente em razão de necessidades econômicas ou culturais a que não podem atender com seus próprios recursos Esses contatos às vezes ocorrem de modo pacífico mediante trocas comerciais às vezes resultam de guerras e conquistas De qualquer modo quando os grupos sociais entram em contato ocorre o processo de difusão de cultura O direito é indubita velmente um dos aspectos da cultura de um grupo social motivo pelo qual também está submetido a esse processo de difusão cultural Roma foi sem dúvida o grande centro de difusão da cultura jurí dica na Antiguidade Mesmo após o desaparecimento do Império o direito romano continuou a ser objeto de estudo por parte dos juristas medievais Esse estudo se intensificou a partir do século XI com os glosadores e depois se alastrou por toda a Europa Nessa trilha o direi to romano acabou influenciando toda a construção do edifício jurídico Manual antropologia jurídica 001277indd 104 9112010 102016 104 105 da modernidade ou seja a cultura jurídica moderna principalmente com o renascimento da atividade comercial e o advento dos grandes Estados nacionais constituiuse com base no direito romano Enfim a cultura jurídica das sociedades ocidentais modernas resultou em gran de parte de difusão ou empréstimos da jurisprudência romana Aliás os alemães fizeram do direito romano o seu direito até o final do século XIX Não deixa de ser surpreendente o fato de uma cultura de uma sociedade extinta ressurgir com tanta força e vigor influenciando o pensamento jurídico e a organização social de toda a Europa continen tal e suas colônias O direito romano sempre foi portanto uma referência para os juristas desde os glosadores da Idade Média como Arcúsio e Bartolo responsáveis pelo renascimento dos estudos do direito romano nos cursos jurídicos de Bolonha passando pelos juristas alemães do século XIX como Savigny e Ihering até os teóricos contemporâneos como Viehweg Perelman e Ferraz Jr O estilo dos jurisconsultos e os conceitos por eles elaborados influenciam até hoje a tecnologia jurídica e as deci sões dos Tribunais O estilo dos jurisconsultos romanos não foi supe rado pelo contrário tem sido constantemente renovado e retorna com todo vigor nos tempos atuais constituindo uma alternativa para superar os limites impostos pelo positivismo jurídico A cultura jurídica europeia com suas bases gregas e romanas difundiuse para as colônias motivo pelo qual a cultura jurídica brasi leira tem sido construída conforme os parâmetros estabelecidos no di reito europeu É preciso lembrar também a difusão da cultura jurídica norteamericana especialmente no âmbito do direito comercial Essa difusão é evidente na própria nomenclatura das novas figuras contra tuais que emergem do direito empresarial brasileiro leasing factoring franchising software knowhow etc 61 Difusão da tópica Theodor Viehweg 1979 numa excelente e inovadora tese ana lisa o fenômeno jurídico à luz da experiência grega e romana Para ele as teorias jurídicas exercem uma função social e para exercer essa fun ção utilizamse não de um método mas de um estilo de pensamento denominado tópico A tópica é uma técnica de pensar por problemas desenvolvida pela retórica que migra da filosofia grega para a jurispru dência romana e desta para o direito moderno Manual antropologia jurídica 001277indd 105 9112010 102016 106 107 Viehweg procura demonstrar as influências da tópica grega na jurisprudência romana Inicia pela obra de Gian Batista Vico porque segundo ele esse filósofo foi o primeiro a destacar a estrutura prevale cente da cultura antiga que corresponde à tópica Para Vico o método científico da Antiguidade é o método retórico A característica funda mental desse método é ter como ponto de partida o sensus communis que manipula o verossímil contrapõe pontos de vista e sobretudo trabalha com uma rede de silogismos Na sequência de sua tese Viehweg analisa a tópica aristotélica Acentua que ela se localiza no terreno do raciocínio dialético e não do analítico Observa que do ponto de vista formal os raciocínios dialéti cos não se distinguem em nada dos analíticos a distinção está na índo le de suas premissas que são opiniões acreditadas e verossímeis que devem contar com a aceitação de todos ou dos mais sábios e ilustres No restante da tese Viehweg analisa a tópica em Cícero examina o ius civile e o mos italicus em seus caracteres tópicos e mostra a influên cia renovada da tópica na civilística moderna Para Viehweg a estrutu ra da jurisprudência romana corresponde à tópica porque os juristas romanos partem de um problema e procuram encontrar os argumentos que a ele possam ser aplicados Movemse em um espaço cultural que é comum pelo menos em seus fundamentos ao dos retóricos A tópica é esse estilo de pensar difundido pelos gregos entre os jurisconsultos romanos A tópica como dito é uma técnica do pensamento que se orienta para o problema motivo pelo qual possui característica essencialmente operacional e sem prescindir do sistema coloca ênfase no problema Problema é uma questão para a qual se busca determinada resposta e sistema é um conjunto normativo previamente dado a partir do qual se infere uma resposta Assim para encontrar uma resposta o problema se articula dentro de um sistema Há portanto um interrelacionamen to necessário entre problema e sistema A tópica tem certeza do seu sistema ainda que não chegue a ter dele uma concepção A tópica coleciona pontos de vista topoi de considerável força persuasiva interesse público boafé igualdade de direitos etc Esses conceitos guardam um sentido vago que somente se determina em função de problemas a serem decididos Vale dizer esses conceitos não são formalmente rigorosos nem podem ser formulados na forma de axiomas lógicos são apenas fórmulas variáveis no tempo e no espaço Manual antropologia jurídica 001277indd 106 9112010 102016 106 107 de reconhecida força persuasiva ou princípios com caráter problemático que assumem significações em função de problemas a resolver Viehweg assinala que os topoi em determinada cultura constituem repertórios mais ou menos organizados conforme outros topoi Assim por exemplo a noção de interesse permite construir uma série do tipo interesse público interesse privado interesse legítimo interesse prote gido interesse coletivo etc Os topoi tomados isoladamente constituem para a argumentação o que ele chama de tópica de primeiro grau Quando organizados formam uma tópica de segundo grau A tópica é essencialmente uma técnica de disputa em que os pro blemas são postos em função das opiniões com o fito de ataque e defesa A discussão revelase nesse sentido como uma instância de controle das próprias premissas que serão admitidas ou rechaçadas Mas de qualquer modo será sempre um conjunto de premissas que irá presidir a resposta ou decisão Viehweg demonstra assim que um traço da cultura grega influenciou de modo decisivo a construção da jurispru dência romana Esta a partir do século XII difundiuse para a Europa e depois para as colônias e mantémse em evidência até os dias atuais Conforme observações de Santos 1988 a antropologia do direi to reconhece o papel da tópica retórica no discurso jurídico oficial re conhece inclusive que o processamento oficial dos litígios só em parte é guiado por normas jurídicas Santos também observa que nas socie dades simples ou primitivas as decisões dos conflitos são comumente orientadas por topoi Um discurso jurídico dominado pelo uso de topoi é necessariamente um discurso aberto e permeável às influências de discursos afins É o tipo de discurso que deve funcionar por exemplo nos juizados especiais porque neles o que se busca é a conciliação 62 Casos problemáticos Alguns teóricos com base em pesquisas antropológicas recolheram informações sobre as culturas de sociedades primitivas que lhes permi tiram propor novas abordagens no estudo do direito Roscoe Pound in GOYARDFABRE 2002 167 por exemplo ao reconhecer a vocação funcional das regras jurídicas utilizou exemplos extraídos do direito dos cheyennes para afirmar que o direito deriva dos esforços para combater a desordem e para aplanar os distúrbios e as dificuldades e isso com um mínimo de atritos e de estragos Também é comum ser destacado o método de estudo de casos problemáticos ou casos difíceis proposto por N Manual antropologia jurídica 001277indd 107 9112010 102016 108 109 Llewellyn e E Adamson Hoebel a partir das investigações que realiza ram sobre o direito cheyenne The cheyenne way conflict and case law in primitive jurisprudence do qual Pound retirou seus exemplos O estudo de casos desenvolvido pela antropologia jurídica é um método considerado como um dos melhores principalmente porque um caso representa o registro detalhado de uma disputa particular e de sua resolução constituindo uma unidade de análise em si mesma Inicial mente os casos serviam apenas como ilustração depois foram utilizados para examinar a estrutura interna do direito tribal e suas relações com costumes e crenças Posteriormente o método de casos desenvolveuse em uso específico de casos problemáticos Foi esse o método proposto por Llewellyn e Hoebel em seu clássico estudo sobre o direito cheyenne A contribuição de Llewellin e Hoebel à metodologia e à antropo logia jurídica repousa portanto na formulação dos casos problemáticos inspirada no direito de grupos ditos primitivos Esse enfoque indica que para ver a lei em ação para estudar suas implicações práticas suas con sequências e as profundas influências dos costumes normativos na mente das pessoas é preciso investigar os casos problemáticos Segundo os autores o método de casos conduz a uma jurisprudência realista e permite estabelecer que uma norma que nunca é transgredida não pas sa de uma regra inoperante ou onipotente Os casos problemáticos revelam uma grande quantidade de informa ções empíricas e possibilitam ver a lei ou o direito operando em sua matriz cultural ou seja permite ver o direito em ação A análise dos casos revela as linhas recorrentes da ação as quais podem ser chamadas normas reais porque efetivamente aplicadas Ademais o estudo de casos problemáticos desde a origem de uma disputa até que esta seja resolvida permite a análise dos eventos que seguem a qualquer intento de reso lução dos costumes e normas que deveriam ser respeitadas dos com portamentos dos árbitros ou juízes e das pessoas que são afetadas pelas regras e pelas decisões Enfim o método de estudo de casos problemáticos pode ser aplicado a qualquer sistema primitivo simples ou contemporâneo complexo fato que lhe concede características universais Nesse sentido pode ser apontada a obra Levando os direitos a sério de Ronald Dworkin em que o autor inverte a trajetória habitual do pensamento jurídico acostuma do a ir da teoria à prática ao adotar a linha interpretativa que vai da prática jurídica às raízes teóricas que lhe conferem sentido e valor Já Manual antropologia jurídica 001277indd 108 9112010 102016 108 109 se tornou famosa a diferença por ele estabelecida entre princípios jurídi cos e regras de direito As regras de direito são determinadas pelo legislador são válidas somente quando aplicadas aos casos concretos Já os princí pios jurídicos enunciam razões que agem em favor de uma orientação geral servem de guia para aplicar tal ou qual regra A importância dos princípios reside justamente na análise de casos problemáticos ou casos difíceis porque nestes os princípios aparecem como motivadores das decisões sentenças acórdãos portanto de maneira geral na produção das decisões judiciais os princípios desempenham considerável papel Os casos problemáticos ou casos difíceis são assim exemplos de que a cultura jurídica está em constante mudança recorre a diversas fontes depende de empréstimo de outras culturas inclusive das antigas e das primitivas O empréstimo conforme o difusionismo é o mecanismo primário da mudança cultural e nos exemplos citados tópica e casos problemáticos as teorias jurídicas tomaram de empréstimo traços das culturas antigas tópica e primitivas casos para construir e operacio nalizar o direito das sociedades modernas Paralelamente ao difusionismo outras orientações estavam sendo desenvolvidas na antropologia com os nomes de funcionalismo e estrutu ralismo que também repercutirão nos modelos da ciência jurídica Aliás a análise de casos problemáticos se enquadra não apenas numa orientação difusionista mas também numa orientação funcionalista O nome de destaque do funcionalismo na antropologia é Bronislaw Malinowski cujas contribuições serão analisadas no capítulo seguinte Manual antropologia jurídica 001277indd 109 9112010 102017 111 Manual antropologia jurídica 001277indd 110 9112010 102017 111 X BroniSlAw mAlinowSki 18841942 1 FUNCIONALISMO Malinowski é considerado o fundador da antropologia social e o principal expoente da teoria antropológica denominada funcionalismo que imprimiu ao estudo da antropologia uma nova orientação Ao con trário de outras teorias antropológicas evolucionismo difusionismo que defendem a necessidade de uma reconstrução histórica da cultura para bem compreendêla o funcionalismo entende dispensável essa reconstrução e afirma ser possível o conhecimento de cada cultura através de uma análise de sua situação presente Assim enquanto o evolucionismo e o difusionismo preocupamse com as origens e os pro blemas das transformações socioculturais o funcionalismo preocupase em estudar e explicar o funcionamento da cultura em dado momento MELLO 1982 237 Para o funcionalismo uma sociedade bem como sua cultura deve ser estudada enquanto uma totalidade tal como funciona no momento em que é observada Nessa trilha a sociedade e a cultura são vistas como um todo cujas partes estão intimamente interligadas numa integração funcional tal como o organismo biológico e seus respectivos órgãos No organismo não existem órgãos dispensáveis todos têm uma função a desempenhar O funcionalismo imprime portanto uma visão sistêmica na análise da cultura O funcionalismo procura explicar a maneira de ser de cada cultu ra buscando as razões não mais na história mas na lógica do sistema Manual antropologia jurídica 001277indd 111 9112010 102017 112 113 assumido pela cultura em exame motivo pelo qual entende que o an tropólogo deve analisar de forma intensiva e contínua uma sociedade sem se referir a sua história Assim do ponto de vista do funcionalismo o antropólogo não se preocupa em saber como uma sociedade chegou a ser o que é Ele se preocupa em saber o que é uma sociedade dada em si mesma e o que a torna viável para os que a ela pertencem observando a no presente através da interação dos aspectos que a constituem O funcionalismo portanto contrapõese a à teoria evolucionista porque esta distingue estágios de desenvolvimento das sociedades das formas mais simples para as mais complexas e b à teoria difusionista que postula a existência de centro de difusão de cultura a qual se transmi te por empréstimo Malinowski conforme Durham 1978 X ao apontar a deficiência das categorias de análise e dos conceitos evolucionistas e difusionistas propõe um novo método de ordenação e interpretação da evidência em pírica Para ele a comparação realizada pela antropologia clássica entre sociedades diversas é feita por um desmembramento inicial da realidade em itens culturais tomados como elementos autônomos com fragmentos assim obtidos os autores procedem a um rearranjo arbitrário agrupan doos de acordo com categorias tomadas de sua própria cultura e fabri cando com isso instituições complexos culturais e estágios evolutivos que não encontram correspondência em qualquer sociedade real A preocupação funcionalista com a adequação das categorias à realidade estudada está estritamente associada ao empenho em reconhe cer e preservar a especificidade e particularidade de cada cultura Assim para os funcionalistas os elementos culturais não podem ser manipula dos e compostos arbitrariamente porque fazem parte de sistemas defi nidos próprios de cada cultura e que cabe ao investigador descobrir Essa noção se expressa no postulado de integração funcional que assu me importância fundamental em toda a análise funcionalista O conceito de função aparece como o instrumento que permite reconstruir a partir dos dados aparentemente caóticos que se oferecem à observação de um pesquisador de outra cultura os sistemas que ordenam e dão sentido aos costumes nos quais se cristaliza o comportamento dos homens Segundo Leslie White in MARCONI e PRESOTTO 2006 257 a essência a natureza fundamental ou característica do funcionalismo pode ser exposta com rapidez e simplicidade as sociedades humanas e suas respectivas culturas existem como todos orgânicos constituídos de partes interdependentes As partes não podem ser plenamente com Manual antropologia jurídica 001277indd 112 9112010 102017 112 113 preendidas separadamente do todo e o todo deve ser compreendido em termos de suas partes suas relações umas com as outras e com o siste ma sociocultural em conjunto Qualquer traço cultural ou costume qualquer objeto material ou ideia que existe no interior das sociedades tem funções específicas e mantém relações com cada um dos outros aspectos da cultura para a manutenção do seu modo de vida total Cada costume é socialmente significativo já que integra uma estrutura par ticipando de um sistema organizado de atividades Uma cultura não é simplesmente um organismo mas um sistema Para Laplatine 2006 79 80 Malinowski dominou incontestavel mente a cena antropológica de 1922 ano de publicação de sua primei ra obra Argonautas do Pacífico Ocidental até sua morte em 1942 Além de fundador da antropologia social e expoente do funcionalismo é tido como o mais metódico no uso da pesquisa de campo 2 PESQUISA DE CAMPO Malinowski rompe os contatos com o mundo europeu passa a viver com as populações as quais estuda e a recolher seus materiais de seus idiomas Faz da alteridade o princípio maior de suas pesquisas uma vez que ninguém antes dele tinha se esforçado tanto em penetrar na mentalidade dos habitantes das sociedades simples procura reviver nele próprio os sentimentos do outro interiorizando suas reações emotivas ou seja procura penetrar na cultura que estuda e em compreender de dentro o que sentem os homens e mulheres que pertencem a essa cul tura Escreve Um dos refúgios fora dessa prisão mecânica da cultura é o estudo das formas primitivas da vida humana tais como existem ainda nas sociedades longínquas do globo A antropologia para mim pelo menos era uma fuga romântica para longe de nossa cultura uni formizada in LAPLATINE 2006 51 Depois de Malinowski a antropologia apoiou de modo tão deci sivo na pesquisa de campo que ficou sendo comum a quantos desejas sem enveredar na carreira acadêmica da antropologia iniciála junto aos povos primitivos numa espécie de estágio Só após esse batismo é que o profissional se sentia animado a penetrar no magistério Mali nowski alerta porém que o investigador etnográfico não pode fazer observações a menos que saiba o que é relevante e essencial e esteja desse modo capacitado a desprezar os acontecimentos fortuitos MELLO 1982 242 Manual antropologia jurídica 001277indd 113 9112010 102017 114 115 A ênfase no trabalho de campo provoca uma ruptura ideológica Conforme Laplatine 2006 82 83 os antropólogos da era vitoriana identificavamse totalmente com a sua sociedade isto é com a civiliza ção industrial europeia Em relação a esta os costumes dos povos primi tivos eram vistos como aberrantes Malinowski inverte essa relação Para ele a antropologia supõe uma identificação com a alteridade por tanto a sociedade primitiva não pode ser considerada como forma social anterior à civilização e sim como forma contemporânea capaz de mostrar em sua pureza aquilo que faz falta ao homem moderno a au tenticidade A aberração portanto não está mais do lado das sociedades primitivas e sim do lado da sociedade ocidental A grande inovação de Malinowski no trabalho de campo consistiu na prática de uma técnica denominada observação participante Essa téc nica exige longas estadias do observador junto às comunidades que serão pesquisadas O fundamento dela reside num processo de acultura ção do observador que consiste na assimilação das categorias incons cientes que ordenam o universo cultural investigado Os princípios fundamentais dessa prática estão relatados na Introdução do livro Argonautas do Pacífico Ocidental Aliás Boaventura de Sousa Santos reconhece que a sua pesquisa O discurso e o poder realizada em uma favela do Rio de Janeiro consiste num trabalho de campo que investiga o pluralismo jurídico segundo o método antropológico da observação participante 3 FATO E TOTALIDADE Paul Mercier in MELLO 1982 254 esclarece que Malinowski sem empregar a palavra utiliza a noção de fato social total motivo pelo qual foi capaz de desenvolver pesquisas muito mais intensas do que as realizadas até então De acordo com a teoria do fato social total a cul tura deve ser encarada como uma totalidade coerente e todos os aspec tos que apresenta parentesco economia política religião direito etc não podem de maneira alguma ser interpretados separadamente Tudo é significativo e nada pode ser desprezado Malinowski estabelece a noção segundo a qual é possível mostrar a totalidade de uma cultura a partir da análise de um único costume ou mesmo de um único objeto aparentemente muito simples uma canoa por exemplo Vale dizer para alcançar a totalidade cultural ou o homem Manual antropologia jurídica 001277indd 114 9112010 102017 114 115 em todas as suas dimensões é preciso dedicarse à observação de fatos sociais aparentemente minúsculos e insignificantes Nessa trilha apre sentou exemplos que se tornaram clássicos sobre a maneira como analisando o aspecto de uma cultura chegase a evocála por inteiro Um desses exemplos são as canoas trobriandesas Elas são descritas em relação ao grupo que as fabrica e utiliza ao ritual mágico que as consa gra e às regulamentações que definem sua posse As canoas transpor tando de ilha em ilha colares de conchas vermelhas e pulseiras de conchas brancas mostram um processo de troca generalizado kula que não pode ser reduzido apenas à dimensão econômica visto que nele é possível encontrar significados jurídicos políticos mágicos religiosos e estéticos do grupo inteiro Na sua obra mais apreciada Argonautas do Pacífico Ocidental Ma linowski mostra que a partir de uma única instituição o kula é possível desvendar todos os aspectos de uma cultura 31 Kula Malinowski 1978 71 72 diz que o kula é um sistema de comércio e o descreve nos seguintes termos Tratase de uma instituição dotada de enorme variedade de aspectos associados a um semnúmero de ati vidades É um fenômeno complexo com ramificações e interrelações É uma forma de troca e tem caráter intertribal bastante amplo é pra ticado por comunidades localizadas num extenso círculo de ilhas que formam um circuito fechado do extremo oriental da Nova Guiné Ao longo dessa rota artigos de dois tipos viajam constantemente em dire ções opostas No sentido horário movimentamse os colares feitos de conchas vermelhas No sentido oposto movemse braceletes feitos de conchas brancas Esses artigos viajando em seu próprio sentido no circuito fechado ao se encontrarem no caminho são trocados uns pelos outros Cada movimento desses artigos cada detalhe das transações é fixado e regulado por uma série de regras e convenções tradicionais alguns dos atos do kula são acompanhados de elaboradas cerimônias públicas e rituais mágicos Em cada ilha e em cada aldeia um número mais ou menos restri to de homens participam do kula ou seja recebem os artigos conservam no consigo durante algum tempo e por fim passamno adiante Cada um dos participantes recebe periodicamente um ou vários braceletes de concha ou colar de conchas que deve entregar a um de seus parceiros Manual antropologia jurídica 001277indd 115 9112010 102017 116 117 do qual recebe em troca o artigo oposto Assim ninguém jamais con serva nenhum artigo consigo por muito tempo O fato de que uma transação seja consumada não significa o fim da relação estabelecida entre os parceiros a regra é uma vez no kula sempre no kula Nesse sistema de comércio a troca cerimonial dos artigos um pelo outro é o aspecto fundamental e central Mas associadas a ele e realizadas à sua sombra existem numerosas características e atividades secundárias Vale dizer paralelamente à troca ritual dos colares pelos braceletes os nativos realizam o comércio comum indispensável à sua economia Além disso há outras atividades que precedem ao kula ou a ele se acham asso ciadas como por exemplo a construção das canoas para navegação em altomar a prática de certos tipos de cerimônias mortuárias de grande pompa e tabus preparatórios O kula é uma instituição enorme e extraor dinariamente complexa não só em extensão geográfica mas também na multiplicidade de seus objetivos Ele vincula um grande número de tribos e abarca um enorme conjunto de atividades interrelacionadas e interde pendentes de modo a formar um todo orgânico Segundo Durham 1978 XVI a escolha da análise institucional constitui a solução encontrada por Malinowski para reconstituir na descrição etnográfica a integração e a coerência ou seja a totalidade integrada que a técnica de investigação lhe havia permitido captar no trabalho de campo Vale dizer se a cultura constitui uma totalidade integrada não é entretanto um todo indiferenciado mas apresenta núcleos de ordenação e correlação que são as instituições 4 NATUREZA HUMANA E CULTURA Para Malinowski a antropologia é uma ciência da alteridade vol tada para os estudos das lógicas de cada cultura Os costumes dos povos têm significação e coerência são sistemas lógicos perfeitamente conec tados e não vestígios de uma cultura que não evoluiu Para explicar essa coerência lógica interna Malinowski elabora uma teoria funcionalista que tira seu modelo das ciências da natureza e que pode ser assim sin tetizada o indivíduo sente certo número de necessidades e cada cultu ra tem precisamente como função satisfazer à sua maneira essas neces sidades fundamentais Cada cultura realiza essa função criando instituições jurídicas econômicas políticas educativas fornecendo respostas coletivas organizadas que constituem cada uma a seu modo soluções originais que permitem atender às necessidades dos indivíduos LAPLATINE 1982 Manual antropologia jurídica 001277indd 116 9112010 102017 116 117 Os seres humanos segundo Malinowski 1970 42 estão sujeitos a condições elementares que têm de ser atendidas para que possam sobreviver A satisfação das necessidades orgânicas ou básicas do homem é um conjunto mínimo de condições impostas a cada cultura Os pro blemas apresentados por suas necessidades nutritivas reprodutivas e higiênicas devem ser resolvidos e a solução deles advém da construção de um ambiente secundário ou artificial Esse ambiente secundário que é a cultura propriamente dita tem de ser permanentemente reproduzi do mantido e administrado Isso cria um novo padrão de vida que de pende do nível cultural da comunidade do ambiente e da eficiência do grupo Um padrão cultural contudo significa que novas necessidades se impõem e novos imperativos ou determinantes são inculcados ao com portamento humano A tradição cultural tem de ser transmitida de geração para geração Os métodos e mecanismos de caráter educacional devem existir em toda cultura A ordem e a lei têm de ser mantidas uma vez que a cooperação é a essência de toda realização cultural O subs trato da cultura tem de ser renovado e mantido em condições de fun cionamento Por isso algumas formas de organização econômica e jurí dica são indispensáveis mesmo nas culturas mais primitivas 41 Ambientes primário e secundário A teoria funcionalista conforme Malinowski a expõe em Uma teoria científica da cultura estabelece como ponto de partida o conceito de natureza humana A expressão natureza humana significa que todos os homens têm necessariamente de realizar funções corporais como comer beber respirar dormir procriar e eliminar a matéria rejeitada por seus organismos onde quer que vivam e qualquer que seja o tipo de civilização que pratiquem A expressão natureza humana portanto exprime o determinismo biológico que impõe a todos os indivíduos a re alização de funções corporais As necessidades orgânicas do homem alimentação proteção reprodução fornecem os imperativos fundamen tais que conduzem ao desenvolvimento da vida social Esse conjunto de necessidades biológicas que precisam ser satis feitas constitui o ambiente primário a situação concreta do ser humano que é a sua natureza humana As culturas poderão assumir as formas mais diversas mas deverão necessariamente ser aptas a satisfazer as necessidades biológicas básicas No esforço para atender às necessidades Manual antropologia jurídica 001277indd 117 9112010 102017 118 119 decorrentes do ambiente primário os homens criam um ambiente secun dário Esse ambiente secundário se denomina cultura Como os homens só podem satisfazer as necessidades básicas através da cultura surgem necessidades derivadas relacionadas à manutenção reprodução e trans missão do próprio equipamento cultural Essas necessidades derivadas são subdivididas em imperativos instrumentais organização econômica legal e educacional da sociedade e imperativos integrativos magia reli gião ciência arte Assim com Malinowski a concepção de cultura é sempre referida à capacidade de satisfazer os diversos tipos de necessi dades humanas Cultura é portanto um ambiente artificial e deve ser entendida como um todo vivo e interligado de natureza dinâmica em que cada elemento ou traço tem uma função específica a desempenhar no esquema integral Enfim o conceito de cultura ambiente secundário apoiase no conceito de natureza humana ambiente primário Tratase de dois am bientes conjugados um básico e primário que é sucedido por outro se cundário ou derivado Ambos criam condições de sobrevivência humana Na teoria funcionalista de Malinowski está presente o problema ainda hoje debatido que trata do binômio natureza e cultura O homem está indubitavelmente ligado à natureza ao mundo natural pertence a uma espécie animal portanto é portador de necessidades biológicas primárias que não podem ser descartadas Mas o homem é também um animal cultural que produz um mundo artificial A cultura é um mundo artificial criado pelo homem mas é também uma extensão do mundo natural Há assim uma conexão ou relação tão inexorável entre natu reza e cultura que não é possível falar em determinismo biológico sem considerar o determinismo padrão cultural Malinowski porém entendia que era pretensioso o projeto da antropologia de estudar o homem como um todo Para ele a antropo logia não devia ocuparse do estudo da natureza humana e por extensão também da cultura Entendia que era necessário delimitar o objeto da antropologia motivo pelo qual considerou a instituição como unidade básica do estudo antropológico 5 INSTITUIÇÕES Malinowski 1970 147 elege a instituição como unidade básica da sua análise funcionalista Diz ele A unidade funcional que chamei de instituição difere do complexo de cultura ou complexo de traços Manual antropologia jurídica 001277indd 118 9112010 102017 118 119 quando definido como composto de elementos que não se situam em qualquer relação necessária Com efeito a unidade funcional é concreta ou seja pode ser observada como um agrupamento social definido Segundo Mello 1982 249 a escolha da instituição como unidade bási ca de estudo se deve acima de tudo a um procedimento metodológico ou seja era necessário criar um modelo concreto de análise a instituição que permitisse servir como guia na pesquisa de campo Não há em Malinowski uma análise de sistemas econômicos políticos religiosos etc em si mesmos As instituições como o kula representam totalidades complexas que incluem a multiplicidade do real A instituição aparece como uma projeção parcial da totalidade da cultura não como um dos seus aspectos A descrição sempre as desen volve no sentido de mostrar simultaneamente como a instituição em apreço permeia toda a cultura e inversamente como toda a cultura está presente na instituição Conforme interpretação de Durham 1978 XVII a instituição é sempre uma unidade multidimensional Ela compreende uma constitui ção ou código que consiste no sistema de valores em vista dos quais os seres humanos se associam um grupo humano organizado e cujas ati vidades realizam a instituição Essas atividades se processam de acordo com normas e regras que constituem mais um elemento dessa totali dade Finalmente ela compreende um equipamento material que o grupo manipula no desempenho de sua atividade Esses diferentes ele mentos definem a estrutura da instituição Enfim mediante análise das atividades efetivamente desempenha das pelos membros dos grupos e de seus resultados o investigador pode encontrar instrumentos para superar a consciência restrita e deforma da que os membros de uma sociedade possuem de sua própria cultura Essa análise permite verificar que os diferentes aspectos da instituição não possuem todos a mesma relevância explicativa ou seja é no com portamento humano real que se encontra o elemento verdadeiramente sintético que fornece a chave para a apreensão da instituição na totali dade de seus aspectos 51 Instituição e função Há na teoria funcionalista uma relação necessária entre instituição e função ou seja a instituição desprovida de função tende a desaparecer Por essa razão Malinowski apresenta uma lista de tipos institucionais cujo Manual antropologia jurídica 001277indd 119 9112010 102017 120 121 critério de classificação se fundamenta no princípio de integração Por exemplo a o princípio de integração fundado na reprodução implica determinados tipos de instituição família grupo doméstico extenso clã etc b o princípio de integração fundado na unidade territorial implica outros tipos de instituição tribo aldeia província cidade etc A instituição é composta analiticamente dos seguintes elementos estatuto normas pessoas aparelhagem material atividades e função Assim para descobrir os vários tipos de instituição ou para saber se dada reali dade social se enquadra ou não na categoria de instituição basta verificar se ela possui todos aqueles elementos O estatuto corresponde a um con junto de motivos a um objetivo comum consubstanciado na tradição ou concedido pela autoridade tradicional O estatuto nesse sentido pode ser considerado um conjunto de regras gerais extensivas a todos os gru pos Além disso o estatuto estabelece ligações entre as diferentes insti tuições de determinada sociedade As normas devem ser entendidas como regras particulares da instituição uma espécie de operacionalização das regras gerais do estatuto As pessoas ao mesmo tempo que se sentem premidas a pôr em prática o estatuto encontram necessidades específicas e concretas a satisfazer e por isso como parte dinâmica da instituição tendem a elaborar suas normas particulares MELLO 1982 250 251 A família por exemplo é considerada uma instituição que tem por princípio de integração a reprodução A família portanto deve respeitar o estatuto familiar casamento institucionalizado com todas as regras gerais O marido a mulher os filhos e outros parentes vivem sob nor mas concretas que possibilitam o cumprimento do estatuto e permitem o desempenho da função de fornecer cidadãos à comunidade Para tanto possuem aparelhagem material ferramentas utensílios objetos bens de consumo etc Na prática essas pessoas vivem em atividade reprodu zindo o seu ambiente entrando em contato com outras famílias lutan do para conseguir seu objetivo reprodução e sobrevivência de novos cidadãos O conceito de função envolve primordialmente a satisfação de necessidades básicas e derivadas Por isso a abordagem funcionalista consiste numa explicação teleológica da ação como meio à objetivação de fins e metas O esquema teórico do funcionalismo é baseado nesse pressuposto de que a ação sociocultural é teológica tem por finalidade alcançar determinados objetivos Não importa se a ação é ou não inten cional consciente ou inconsciente o fato é que ela está sempre direcio nada para satisfação de necessidades Esse tipo de análise funcional Manual antropologia jurídica 001277indd 120 9112010 102017 120 121 como diz Malinowski 1970 158 está sujeito à acusação de tautologia e vulgaridade assim como à crítica de que representa um círculo lógico pois obviamente se definimos função como satisfação de uma necessi dade é fácil suspeitar que a necessidade a ser satisfeita foi apresentada a fim de atender à necessidade de satisfazer uma função Com base no estudo de Malinowski podese dizer que as funções básicas ou fundamentais da família encontradas em todos os agrupa mentos humanos são as seguintes a de reprodução visa à perpetua ção por meio da prole a procriação é regulamentada com normas e sanções que legitimam a reprodução mesmo em sociedades em que há liberdade sexual a procriação raramente é aprovada fora da família b sexual atende às necessidades sexuais permitidas por meio da institu cionalização da união ou casamento que estabelece pai legal para os filhos c econômica assegura o sustento e a proteção da prole essa obrigação pode ser estendida aos parentes d educacional visa trans mitir à prole a herança cultural e social língua usos costumes valores crenças principalmente durante os primeiros anos de vida 52 Disfunção das instituições Função pode ser entendida como a correspondência entre uma instituição e as necessidades de determinada organização social vale dizer pode ser entendida como a atividade pela qual uma instituição contribui para a manutenção do organismo social Com esse conceito de função a teoria funcionalista coloca em evidência o aspecto conser vador a harmonia ou o equilíbrio do sistema social Mas em qualquer sistema social operamse mudanças que implicam o desaparecimento ou o surgimento de instituições A teoria funcionalista reconhece que a instituição desprovida de função tende a desaparecer Nesse sentido podese dizer que as tribos indígenas tendem a desaparecer quando perdem o seu território uma vez que o princípio de integração de uma tribo está fundado na integridade territorial Em virtude das mudanças a que estão sujeitas as organizações sociais ou sistemas sociais a teoria funcionalista permitiu o desenvol vimento de outras noções Assim ao lado das funções claras e patentes conhecidas pelos membros do grupo alguns teóricos levantaram a hi pótese de existência de funções outras menos evidentes e até encobertas que poderiam comprometer a harmonia do sistema ou continuidade da organização social daí a introdução do conceito de disfunção ou seja Manual antropologia jurídica 001277indd 121 9112010 102017 122 123 de perturbações decorrentes de inovações culturais no sistema Nesse sentido a disfunção das instituições colocaria em risco determinada organização social 6 DIREITO E COSTUME Malinowski em Direito e costume na sociedade primitiva afirma que os teóricos europeus consideram o direito e o costume dos povos ditos primitivos como sendo a mesma coisa algo indiferenciado na mente dos nativos Para esses teóricos não existem regras jurídicas nas sociedades simples e por isso enfatizam o apego rígido e automático dos nativos aos costumes Nessa trilha entendem que os direitos e deveres na socie dade primitiva estão determinados por aquilo que os costumes prescre vem Isso segundo Malinowski representa uma imagem etnocêntrica da cultura europeia que vê a si mesma como juridicamente evoluída enquanto a cultura jurídica das sociedades primitivas é tida como im pregnada de religião e magia Para Malinowski essa postura etnocêntrica dos teóricos europeus influenciou a antropologia jurídica de tal modo que esta passou a con siderar como verdadeiras as afirmações segundo as quais na sociedade primitiva há uma submissão automática aos costumes e não existe um corpo de regras de obrigações mútuas que possam ser tidas como nor mas jurídicas Ele entende que essas afirmações são destituídas de valor científico visto que não estão fundamentadas na pesquisa de campo Contra tais afirmações lembra que entre os trobiandeses existem certos deveres ou compromissos que geram obrigações mútuas são conscien temente percebidas e estão baseadas na satisfação de necessidades recí procas como é o caso do intercâmbio de alimentos Malinowski observa que os trobiandeses concedem certas quan tidades de coisas a pessoas específicas não apenas por generosidade baseada no costume mas também na expectativa de devolução dos mesmos favores ou coisas Isso segundo ele significa que tais situações geram obrigações mútuas Essas obrigações recíprocas podem ser dife renciadas de outros costumes e definidas como um corpo de regras de comportamento socialmente impostas e sancionadas através da ação da comunidade sobre as pessoas que as infringem Como essas regras controlam a vida social e facilitam a cooperação mútua Malinowski ressalta que elas são semelhantes ao conjunto de regras de um Código Civil moderno Manual antropologia jurídica 001277indd 122 9112010 102018 122 123 Ele ressalta ainda que pelo fato de as sociedades primitivas não possuirem um conjunto de leis que especifiquem sanções aos infratores o escândalo e o escárnio público o temor e a ira do chefe e a bruxaria tornaramse os principais meios que essas sociedades encontraram para sancionar e forçar o respeito pelas regras de comportamento social as quais comumente são denominadas leis nas sociedades ocidentais Há portanto na sociedade primitiva certo conjunto de regras costumeiras legais que se distingue de outros conjuntos de regras costumeiras os costumes religiosos as formas de interação social etc Assim as regras legais destacamse e diferenciamse das demais regras costumeiras pelo fato de estabelecer obrigações para uma pessoa e direitos para outra Em Argonautas do Pacífico Ocidental 1978 23 24 Malinowski afirma que as sociedades nativas primitivas têm uma organização bem definida e são governadas por leis autoridades e ordem em suas relações públicas e particulares De fato diz ele podemos constatar nas socieda des nativas a existência de um entrelaçado de deveres funções e privi légios intimamente associados a uma organização tribal comunitária e familiar bastante complexa As suas crenças e costumes são coerentes e o conhecimento que os nativos têm do mundo exterior é suficiente para guiálos em suas diversas atividades e empreendimentos Por esses motivos insiste que apesar de não existir códigos de leis escritos ou expressos explicitamente toda a tradição tribal e sua estrutura social inteira estão incorporadas ao mais alusivo dos materiais o próprio ser humano Segundo ele os nativos obedecem às normas e ordens do có digo tribal mas não as entendem tal qual acontece com os membros mais humildes de qualquer instituição moderna Para Malinowski deve existir em todas as sociedades um conjun to de regras demasiado práticas para serem apoiadas por sanções religio sas demasiado pesadas para o seu cumprimento ser deixado à boa vonta de dos indivíduos demasiado vitais para as pessoas para serem aplicadas por uma agência abstrata É esse o domínio das regras jurídicas e aven turome a antecipar que a reciprocidade a incidência sistemática a publi cidade e a ambição virão a ser consideradas os principais fatores da ma quinaria compulsória do direito primitivo in SANTOS 70 71 Malinowski também observou que no direito primitivo ou tribal existe uma separação entre lei civil e lei penal No direito civil a lei obedecida consiste em um conjunto de obrigações forçadas e conside radas como justas por uns e reconhecidas como um dever por outros Manual antropologia jurídica 001277indd 123 9112010 102018 124 125 cujo cumprimento se assegura por um mecanismo específico de recipro cidade e publicidade inerentes à estrutura da sociedade No direito penal a lei desrespeitada é definida como as regras fundamentais que salva guardam a vida a propriedade e a personalidade Enfim com Malinowski a antropologia passou a reconhecer o direito como uma instituição por si mesma diferenciada dos costumes e que requer tanta atenção como a que se dedica às relações de paren tesco e aos sistemas políticos Alguns autores destacam que a contri buição maior de Malinowski à teoria jurídica antropológica foi a de estabelecer com vigorosa insistência o direito como um aspecto da so ciedade e da cultura total com isso rompeu com os formalismos legais em antropologia e deu um novo ímpeto aos estudos da antropologia jurídica 61 Mito e direito Malinowski vê no mito a justificação retrospectiva dos elementos fundamentais que constituem a cultura de um grupo O mito para ele não é uma simples narrativa nem uma forma de ciência nem um aspec to da arte nem uma narração explicativa O mito segundo ele cumpre uma função sui generis intimamente ligada à natureza da tradição à continuidade da cultura e à atitude humana em relação ao passado A função do mito é em resumo reforçar a tradição e darlhe maior valor e prestígio vinculandoa à mais elevada melhor e mais sobrenatural realidade dos acontecimentos iniciais Nesse sentido o mito não se li mita ao mundo ou à mentalidade dos primitivos e é indispensável a qualquer cultura Cada mudança histórica cria sua mitologia que no entanto tem relação indireta com o fato histórico Embora não sigam especificamente a orientação funcionalista alguns juristas enxergam a penetração do mito no direito moderno Nesse sentido Eros Roberto Grau 2004 26 a 28 entende que a Cons tituição o documento jurídico que funda o Estado é um mito Segundo ele a Constituição formal em especial enquanto concebida como me ramente programática continente de normas que não são normas ju rídicas na medida em que define direitos que não garante na medida em que esses direitos só assumem eficácia plena quando implementados pelo legislador ordinário ou por ato do Executivo consubstancia um instrumento retórico de dominação Porque esse seu perfil ela se trans forma em mito Manual antropologia jurídica 001277indd 124 9112010 102018 124 125 Eros Grau aceita a ideia de Warat Mitos e teorias na interpretação da lei segundo a qual o mito é a forma específica de manifestação do ideológico no plano do discurso Para Grau o discurso ideológico e o discurso mítico se aproximam porque ambos instauram um horizonte objetivo para os comportamentos e atitudes do homem O mito funcio na como recurso linguístico no discurso de quem tem condições de exercer através dele dominação social Os mitos são descritos como formas de fé popular que não nasceram da reflexão racional do povo mas de sentimentos préracionais emotivos Desvendados porém desnudase a racionalidade deles em quem os inventa o que evidencia não serem senão uma manifestação cultural Para Grau o mito não passa de uma invenção consciente ou in consciente cuja finalidade é a instauração de uma ordem Nesse senti do o momento da desmitização da cultura que pode ser visualizado no projeto do iluminismo racionalista tratase apenas de um momento de substituição de mitos Assim os antigos mitos irracionais ou inconscien tes são substituídos por novos mitos estes porém conscientes e racio nais nos que os inventam como racionais e conscientes embora her meticamente foram aqueles nos que os inventaram O mito diz Grau é uma nítida invenção do homem e os mitos modernos são impostos à sociedade funcionando como instrumentos linguísticos de dominação que tanto mais prosperam quanto mais sejam acreditados As Constituições modernas são nesse sentido exemplos de mitos modernos porque instalam no seio da coletividade a convicção de que se vive sob a égide do Estado de Direito apenas porque o docu mento formal expressa a existência de um Estado de Direito A Cons tituição formal assim desnudase como instrumento de dominação ideológica É mito que acalentamos dotado de valor referencial exemplar na medida em que contribui eficazmente para a preservação da ordem que não se pretendia instaurar mas simplesmente manter 7 INSTITUIÇÃO E DIREITO Como visto as noções de função e instituição penetraram na an tropologia e contribuíram com a arquitetura da teoria funcionalista Essas noções também penetraram na ciência do direito e aparecem de forma acentuada em algumas teorias jurídicas A recepção dessas noções tanto pela antropologia quanto pelo direito permite estabelecer algumas conexões entre essas duas áreas do conhecimento Para compreender Manual antropologia jurídica 001277indd 125 9112010 102018 126 127 melhor a recepção dessas noções no âmbito do direito é necessário estabelecer o conceito sociológico de instituição Instituições são os modos tradicionais habituais legítimos esta belecidos que permitem a determinada sociedade cuidar de seus assun tos As instituições mantêm a organização social como interação social padronizada Na sociedade brasileira são instituições a família mono gâmica a companhia a universidade o Judiciário etc As instituições são nesse sentido padrões desenvolvidos e destinados a lidar com os problemas sociais De modo geral as sociedades desenvolvem a insti tuições judiciais e políticas para ajudar a manter a paz entre os atores proteger a propriedade e decidir conflitos b instituições de paren tesco para socializar os jovens e regular as relações sexuais c insti tuições econômicas para coordenar as atividades econômicas incen tivar o trabalho produzir e distribuir bens e até mesmo manter a desigualdade entre as classes CHARON 2000 122 As instituições exercem o controle social sobre os indivíduos e garantem as condições de lidar eficazmente com os problemas sociais Nesse sentido as instituições são padrões normativos institucionaliza dos e profundamente arraigados na organização social motivo pelo qual são em geral consideradas como um padrão natural Contudo elas mudam com o passar dos tempos e precisam mudar quando já não lidam adequadamente com os problemas sociais Para alguns teóricos o direito é uma instituição para outros é um conjunto de normas Norberto Bobbio faz uma tentativa de conciliar essas duas posições 71 Instituição e teoria normativa A teoria funcionalista como visto estabelece uma explicação te leológica da ação visto que esta é entendida como meio à objetivação de fins e metas O esquema teórico do funcionalismo é baseado no pres suposto de que a ação sociocultural é teológica e tem por finalidade alcançar determinados objetivos Esse esquema teórico aparece nas teorias jurídicas mais especificamente nas teorias da norma jurídica Segundo Norberto Bobbio 2005 23 a 37 a teoria normativa considera o direito como um conjunto de normas ou regras de condu ta Para ele a experiência jurídica é uma experiência normativa por tanto estudar uma cultura do ponto de vista da teoria normativa sig nifica pesquisar em determinada sociedade quais ações foram proibidas Manual antropologia jurídica 001277indd 126 9112010 102018 126 127 quais foram ordenadas e quais foram permitidas Assim perguntas do gênero Junto a determinado povo eram permitidos ou proibidos os sacrifícios humanos Era proibida ou permitida a poligamia a proprie dade dos bens imóveis a escravidão Como eram reguladas as relações de família e o que era permitido e o que era proibido ao pai ordenar ao filho Como era regulado o exercício do poder e quais eram os deveres e os direitos dos súditos diante do chefe e quais os deveres e os direitos do chefe diante do súdito são perguntas que pressupõem o conheci mento da função que tem o sistema normativo de caracterizar dada sociedade e não podem ser respondidas senão por meio do estudo das regras de conduta que moldaram a vida daqueles homens e mulheres distinguindoa da vida de outros homens e mulheres pertencentes a outra sociedade inserida em outro sistema normativo Bobbio contudo entende que as normas jurídicas são apenas uma parte da experiência normativa Segundo ele além de normas jurídicas existem preceitos religiosos regras morais sociais costumeiras de etiqueta e boa educação etc Existem portanto normas sociais que regulam a vida do indivíduo quando ele convive com outros indivíduos e normas que regulam as relações do homem com a divindade ou ainda do homem consigo mesmoTodo indivíduo pertence a diversos grupos sociais instituições à Igreja ao Estado à família às associações que têm fins econômicos políticos culturais ou simplesmente recreativos Cada uma dessas associações se constitui e se desenvolve através de um conjunto ordenado de regras de conduta Cada indivíduo ademais se parado da sociedade a que pertence formula para a direção da própria vida programas individuais de ação que também são conjuntos de regras Assim segundo Bobbio cada grupo humano cada indivíduo sin gular enquanto estipula metas a atingir estipula também os meios mais adequados para atingilas A relação meiofim dá geralmente origem a regras de conduta do tipo Se você quer atingir o objetivo A deve prati car a ação B São regras de conduta não apenas os artigos da Consti tuição e das leis mas também as regras religiosas ou morais as pres crições do médico as regras do xadrez as normas de direito internacional as regras da gramática o regulamento de um condomínio etc Todas essas regras são muito diversas pela finalidade que perseguem pelo conteúdo pelo tipo de obrigação que fazem surgir pelo âmbito de suas validades pelos sujeitos a quem se dirigem Mas todas têm em comum um elemento característico que consiste em ser proposições que têm a finalidade de influenciar o comportamento dos indivíduos e dos Manual antropologia jurídica 001277indd 127 9112010 102018 128 129 grupos de dirigir as ações dos indivíduos e dos grupos rumo a certos objetivos em vez de rumo a outros Há contudo teorias diversas da normativa que consideram fatos diversos das regras de conduta como elementos característicos da ex periência jurídica Dentre essas teorias encontrase a teoria do direito como instituição defendida na Itália por Santi Romano 72 Teoria institucionalista Santi Romano em seu livro O ordenamento jurídico elabora uma teoria do direito onde contrapõe à concepção do direito como norma a concepção do direito como instituição BOBBIO 2005 28 a 30 De acordo com Romano os elementos constitutivos do conceito de direito são três a a sociedade como base de fato sobre a qual o direito ganha existência b a ordem como fim a que tende o direito e c a organização como meio para realizar a ordem Só existe direito onde existe uma sociedade organizada e ordenada Essa sociedade é aquilo que Romano chama de instituição Segundo Romano dos três elementos constitutivos o mais impor tante é a organização Isso significa que o direito nasce no momento em que um grupo social passa de uma fase não organizada inorgânica para uma fase organizada orgânica Por exemplo a classe social é uma forma de grupo humano mas não tendo uma organização própria não exprime um direito próprio não é uma instituição Já uma associação de delinquentes que se exprime em uma organização e cria o seu próprio direito o direito da sociedade de delinquentes é uma instituição O fenômeno da passagem da fase inorgânica para a fase orgânica é deno minado institucionalização Podese dizer que um grupo social se institucionaliza quando cria a própria organização Assim antes de ser norma o direito é organização portanto o direito existe e pode ser observado em qualquer grupo or ganizado inclusive nas sociedades ditas primitivas 721 Mérito da teoria institucionalista O grande mérito da teoria institucionalista foi segundo Bobbio ter alargado os horizontes da experiência jurídica para além das fron teiras da organização estatal Ao considerar o fenômeno da organização como critério fundamental para distinguir uma sociedade jurídica de Manual antropologia jurídica 001277indd 128 9112010 102018 128 129 uma não jurídica a teoria institucionalista rompeu com a teoria positi vista que considera o direito apenas o direito estatal e identifica o âmbito do direito com o do Estado Para Bobbio se hoje persiste ainda uma tendência em identificar o direito com o direito estatal essa é a consequência histórica do pro cesso de centralização do poder normativo e coativo que caracterizou o surgimento do Estado nacional moderno A máxima consagração teó rica desse processo é a filosofia do direito de Hegel na qual o Estado é considerado o sujeito último da história que não reconhece nem abaixo nem acima de si qualquer outro sujeito e a quem os indivíduos e os grupos devem obediência incondicional A teoria institucionalista re presenta uma reação a essa forma de proceder Bobbio é adepto da teoria normativa motivo pelo qual entende que as normas antecedem a organização Com base nisso tece algumas críticas à teoria institucionalista pelo fato de essa teoria colocar a or ganização antes das normas Segundo Bobbio para que se possa desen volver o processo de institucionalização que transforma um grupo inorgânico em um grupo organizado deve ocorrer três condições a que sejam fixados os fins que a instituição deverá perseguir b que sejam estabelecidos os meios principais que se consideram apropriados para alcançar aqueles fins c que sejam atribuídas funções específicas dos indivíduos componentes do grupo para que cada um colabore através dos meios previstos na obtenção do fim A determinação dos fins dos meios e das funções só pode ocorrer através de regras sejam elas escritas ou não proclamadas solenemente em um estatuto ou aprovadas tacitamente pelos membros do grupo Isso significa que o processo de institucionalização e a produção de regras de conduta não podem andar separados e portanto onde quer que haja um grupo organizado é certo que haverá um complexo de regras de conduta que deram vida àquela organização Nessa trilha Bobbio en tende que a teoria da instituição não exclui ao contrário inclui a teoria normativa do direito Ao focar essa inclusão Bobbio destaca que o outro grande mérito da teoria da instituição foi o de pôr em relevo o fato de que somente se pode falar em direito onde há um complexo de normas escritas ou não formando um ordenamento e portanto o direito não é norma mas conjunto coordenado de normas uma norma jurídica não se encontra nunca sozinha mas é ligada a outras normas com as quais forma um Manual antropologia jurídica 001277indd 129 9112010 102018 130 131 sistema normativo Segundo ele graças à teoria da instituição a teoria geral do direito pôde evoluir da teoria das normas jurídicas à teoria do ordenamento jurídico e os problemas que se vêm apresentando aos teóricos do direito são cada vez mais conexos à formação à coordenação e à integração de um sistema normativo A teoria funcionalista também utilizou a noção de sistema Radclif feBrown como se verá no capítulo seguinte desenvolve uma teoria funcionalista na qual o conceito de sistema é fundamental para a com preensão da organização social Manual antropologia jurídica 001277indd 130 9112010 102018 130 131 Xi rAdcliFFeBrown 1881 1955 1 TEORIA FUNCIONALISTA RadcliffeBrown em Estrutura e função na sociedade primitiva expõe uma teoria funcionalista que se aproxima da orientação teórica de Emi le Durkheim especialmente em relação ao método utilizado o das ci ências naturais e ao uso do conceito de função e de integração funcional Também utiliza como fundamento básico de sua teoria o conceito de estrutura razão pela qual o conceito de função aparece como uma con tribuição para a manutenção da continuidade estrutural Segundo ele os conceitos de função e estrutura permitem captar o aspecto sistemá tico e estrutural isto é o aspecto totalizador da vida sociocultural RadcliffeBrown posicionase contra as teses do evolucionismo ao estabelecer que não é possível opor sociedades simples e sociedades complexas sociedades inferiores evoluindo para sociedades superiores sociedades primitivas a caminho da civilização Para ele as primeiras não são as formas de organização originária das quais as segundas seriam derivadas Por essas razões entende que uma sociedade deve ser estu dada tal como se apresenta no momento em que é observada portanto independentemente de seu passado de sua história Ao contrário de outros antropólogos RadcliffeBrown não enten de a antropologia como a ciência que estuda a cultura mas como a ci ência que estuda as estruturas sociais em funcionamento Para ele a antropologia social trata de fatos observáveis e concretos ela não se ocupa da cultura porque essa palavra denota uma abstração não uma Manual antropologia jurídica 001277indd 131 9112010 102018 132 133 realidade concreta Ele define como objetos de estudo da antropologia social a estrutura e o funcionamento da sociedade Vale dizer na socie dade a estrutura rede de relações não pode ser observada diretamen te mas apenas em seu funcionamento 11 Estrutura e função RadcliffeBrown 1973 221 diz que para elucidar os conceitos de estrutura e função é conveniente empregar uma analogia entre vida social e vida orgânica Nessa trilha analógica constata inicialmente que o organismo animal é uma aglomeração de células dispostas umas em relação com outras não como um agregado mas como um todo vivo integrado O sistema de relações pelo qual essas unidades se relacionam é a estrutura orgânica O organismo tem uma estrutura mas não é em si a estrutura é um acúmulo de unidades células dispostas numa estrutura isto é numa série de relações A estrutura de uma célula é no mesmo sentido uma série de relações entre moléculas complexas e a estrutura de um átomo é uma série de relações entre elétrons e prótons A estrutura portanto deve ser entendida como uma série de relações entre unidades É certo que as moléculas constituintes não permanecem as mesmas passam por um processo de substituição mas a disposição estrutural das unidades integrantes continua a mesma O processo pelo qual se mantém essa continuidade estrutural do organismo chamase vida O processo vital consiste nas atividades e interações das unidades constituintes do orga nismo as células e os órgãos nos quais as células estão unidas Tal como a estrutura orgânica a estrutura social é uma série de relações sociais em que os indivíduos estão relacionados uns com os outros em um todo integrado O sistema de relações sociais forma a estrutura social A vida social é o funcionamento da estrutura e a conti nuidade do funcionamento é fator necessário para a manutenção e continuidade da estrutura social O funcionamento se realiza por meio de atividades processos executadas por um ou mais indivíduos Assim a função de um indivíduo é o papel que ele executa na vida social fato que permite a manutenção e a continuidade estrutural Temse a uni dade funcional quando todas as partes do sistema social atuam juntas com suficiente grau de harmonia ou consistência interna A abordagem funcionalista de Malinowski como visto implica uma explicação teleológica na medida em que enfoca a ação como meio Manual antropologia jurídica 001277indd 132 9112010 102018 132 133 à objetivação de fins e metas Nesse sentido não importa se a ação é ou não intencional consciente ou inconsciente o que importa é que ela está sempre voltada para a obtenção de metas ou satisfação de necessidades RadcliffeBrown reluta em aceitar esse tipo de explicação embora o seu conceito de função tenha também uma finalidade que é a manutenção da continuidade estrutural Assim para RadcliffeBrown 1973 223 224 a função de qualquer atividade periódica tal como a punição de um crime ou uma cerimônia fúnebre é parte que ela desempenha na vida social como um todo e portanto a contribuição que faz para a manutenção da continuidade estrutural O conceito de função implica pois a noção de estrutura cons tituída de uma série de relações entre unidades sendo mantida a conti nuidade da estrutura por um processo vital constituído das atividades integrantes Pela definição dada função é a contribuição que determi nada atividade proporciona à atividade total da qual é parte O uso da noção de estrutura permite a RadcliffeBrown concentrar seu estudo na estrutura social e não na satisfação de necessidades por esse motivo alguns autores entendem que ele desenvolveu um funcio nalismo diferente do funcionalismo de Malinowski e uma forma de estruturalismo que não se confunde com o estruturalismo de Lévi Strauss 12 Família elementar Para RadcliffeBrown família elementar é um grupo que constitui a unidade de estrutura da qual se constrói um parentesco A família elementar consiste em um homem e sua mulher e seu filhoa ou filhosas Segundo ele a existência da família elementar cria três tipos especiais de relações sociais entre pai mãe e filhoa entre filhosas dos mesmos pais germanos e entre marido e mulher como pais do mesmo filhoa ou filhosas As três relações que existem dentro da família elementar constituem relações de primeira ordem Relações de segunda ordem são aquelas que dependem da conexão de duas famílias elementares através de um membro comum tal como o pai do pai o irmão da mãe a irmã da esposa e assim por diante Na terceira ordem estão pessoas como o filho do irmão do pai a esposa do irmão da mãe Desse modo é possível traçar desde que se tenha informação genealó gica relações de quarta quinta ou enésima ordem in LÉVISTRAUSS 2003 68 Manual antropologia jurídica 001277indd 133 9112010 102018 134 135 Essa passagem expressa a ideia segundo a qual a família elementar constitui a base da estrutura social em que se originam as relações primárias de parentesco Não resta dúvida de que esse tipo de família encontrase em quase toda parte como tipo dominante ou como com ponente de família extensa unidade composta de duas ou mais famílias elementares e composta unidade formada por três ou mais cônjuges e seus filhos É preciso alertar porém que a ideia segundo a qual a fa mília biológica constitui o ponto a partir do qual toda sociedade elabo ra seu sistema de parentesco não é unânime entre os antropólogos Alguns observam que no geral não há afinidade biológica entre as pessoas o pai e a mãe que se unem para formar a família elementar portanto a base sobre a qual se ergue o sistema de parentesco seria o sistema de alianças As conclusões de RadcliffeBrown sobre a família elementar colo cam em evidência o tema do patrimônio como herança que também repercute na esfera jurídica A ideia de patrimônio vinculado à ideia de herança implica que algo deve ser deixado ou transmitido de um indi víduo para outro ou de uma geração para outra Para RadcliffeBrown herança significa a transferência de status baseada na relação existente entre dois membros de um grupo social entre aquele que transmite e o que recebe Tal relacionamento é de caráter pessoal e geralmente ocorre entre parentes Como visto para ele duas pessoas são parentes quando uma descende da outra como por exemplo um neto descende de um avô ou quando ambas são descendentes de um antepassado co mum Assim segundo seus esquemas no caso de herança a transmis são deve ocorrer entre parentes sendo a transferência de pai para filho a mais tradicional 2 ESTRUTURA SOCIAL E CULTURA RadcliffeBrown foi o primeiro a ocupar a cadeira de antropologia social na África do Sul fato que ocorreu em 1921 Embora não negasse a existência de diferenças culturais rejeitava a política de segregação fundado no argumento de que a África do Sul transformarase numa sociedade única Para ele as instituições nacionais cruzavam as frontei ras culturais e moldavam opções de vida em todas as aldeias e cidades no país Todos os indivíduos estavam no mesmo barco As políticas de base acerca das diferenças culturais representavam uma receita para o desastre Entendia que a segregação era algo insuportável motivo pelo Manual antropologia jurídica 001277indd 134 9112010 102018 134 135 qual afirmava que o nacionalismo sulafricano tinha de ser um naciona lismo que abrangesse negros e brancos KUPER 2002 16 Para RadcliffeBrown não era possível observar uma cultura porque essa palavra denota não uma realidade concreta mas uma abs tração e da forma como é usada comumente uma abstração vaga Repudiava a opinião de que uma sociedade como a África do Sul deveria ser estudada como uma arena em que duas ou mais culturas interagiam Para ele o que estava ocorrendo na África do Sul não era a interação das culturas britânica africânder hotentote banto e indiana mas sim a interação de indivíduos e grupos dentro de uma estrutura social es tabelecida que estava em processo de mudança O que estava aconte cendo numa tribo em Transker por exemplo só podia ser descrito re conhecendose que a tribo havia sido incorporada em um amplo sistema políticoeconômico KUPER 2002 16 3 CRÍTICA AO FUNCIONALISMO Para LéviStrauss 2003 25 os funcionalistas proclamam que toda pesquisa etnológica deve proceder do estudo minucioso das socie dades concretas de suas instituições e das relações que estas mantêm entre si e com os costumes crenças e técnicas relações entre o indivíduo e o grupo e dos indivíduos entre si no interior do grupo Com esse modo de proceder os funcionalistas abandonam a história e os mecanismos de difusão cultural ou seja fecham os olhos a toda informação históri ca relativa à sociedade considerada e a todo dado comparativo empres tado de sociedades vizinhas ou afastadas Essa forma de proceder ou de fazer pesquisa desenvolvida pelos funcionalistas recebe o nome de método monográfico ou monografia A respeito desse método LéviStraus 2003 26 reconhece que quando se estuda uma única sociedade podese fazer uma obra preciosa a ex periência prova que geralmente devemse as melhores monografias a investigadores que viveram e trabalharam uma única região Mas as conclusões dessas monografias são para os funcionalistas próprias daquela sociedade e portanto não podem ser estendidas para outras sociedades motivo pelo qual tais conclusões jamais podem almejar o caráter de leis universais Além disso prossegue LéviStrauss quando nos limitamos ao instante presente da vida de uma sociedade somos antes de tudo víti mas de uma ilusão pois tudo é história o que foi dito ontem é história Manual antropologia jurídica 001277indd 135 9112010 102019 136 137 o que foi dito há um minuto é história Mas sobretudo condenamonos a não conhecer esse presente pois somente o desenvolvimento históri co permite sopesar e avaliar em suas relações respectivas os elementos do presente Não é possível por exemplo analisar o vestuário moderno sem reconhecer nele vestígios de formas anteriores Raciocinar de outro modo é proibir todo meio de operar uma distinção essencial a que existe entre função primária correspondente a uma necessidade atual do organismo social e função secundária que se mantém apenas por causa da resistência do grupo em renunciar a um hábito Além disso dizer que uma sociedade funciona é um truísmo mas dizer que tudo numa sociedade funciona é um absurdo 31 Problema do método RadcliffeBrown ao tratar do método da antropologia assim se manifesta 1973 233 Concebo a antropologia social como a ciência teóriconatural da sociedade humana isto é a investigação dos fenôme nos sociais por métodos essencialmente semelhantes aos empregados nas ciências físicas e biológicas Alguns teóricos têmse manifestado a favor de uma posição mais crítica nos estudos da cultura e da sociedade motivo pelo qual são con trários à tese de que os métodos utilizados pelas ciências naturais devem ser utilizados pelas ciências humanas O desprestígio do funcionalismo antropológico também pode ser medido por sua vinculação explícita ou implícita a essa tradição do positivismo social Comte Durkheim que advoga a adequação perfeita dos métodos das ciências naturais às ciências humanas Ao se vincular a essa vertente teórica que consiste em aplicar ao estudo da sociedade e da cultura os princípios epistemológicos e meto dológicos que presidem ao estudo das ciências naturais o funcionalismo aceita o pressuposto que as ciências naturais são uma aplicação ou con cretização de um modelo de conhecimento universalmente válido motivo pelo qual por maiores que sejam as diferenças entre os fenôme nos naturais e os fenômenos sociais e culturais é sempre possível estu dar os últimos como se fossem os primeiros Alguns teóricos Ernest Nagel por exemplo apontam as seguin tes objeções à tendência de aplicar às ciências sociais o modelo das ci ências naturais a as ciências sociais não podem estabelecer leis univer sais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e Manual antropologia jurídica 001277indd 136 9112010 102019 136 137 culturalmente determinados b as ciências sociais não podem produzir previsões confiáveis porque os seres humanos modificam o seu compor tamento em função do conhecimento que sobre ele adquire c os fenô menos sociais são de natureza subjetiva e como tal não se deixam captar pela objetividade do comportamento SANTOS 1996 20 21 4 SOCIEDADE E DIREITO RadcliffeBrown observa que geralmente na análise das sociedades primitivas os teóricos incluem no conceito de direito todos ou quase todos os processos de controle social Para ele o conceito de direito é mais restrito por isso estabelece que o critério fundamental na definição do conceito de direito são as sanções sociais administradas por uma sociedade politicamente organizada Define sanção social como uma reação por parte de uma sociedade ou de um considerável número de seus membros a um modo de comportamento que é aprovado ou desa provado O comportamento aprovado implica sanção positiva e enfatiza o que se deve fazer A sanção positiva pode consistir na concessão de tí tulos nobiliárquicos honoríficos fama prêmios etc O comportamento não aprovado implica sanção negativa e enfatiza o que não se deve fazer As sanções negativas podem ser classificadas em duas espécies a or ganizadas são aquelas que resultam de procedimentos definidos regu lados e reconhecidos dirigidos contra pessoas cujo comportamento é socialmente desaprovado e b difusas são espontâneas e desorganiza das consistem na desaprovação geral da comunidade ou de uma parte significativa de seus membros e geralmente aparecem na forma de acu sação de bruxaria escárnio público etc O direito segundo RadcliffeBrown deve ser entendido como o conjunto de sanções negativas organizadas As sanções prescritas em uma lei penal seriam o exemplo típico dessas sanções Nessa estrutura o direito aparece como controle social que se exerce mediante a aplica ção sistemática de sanções negativas com o uso da força da sociedade organizada politicamente O direito tem nesse sentido como função primordial o estabelecimento da ordem mediante coação RadcliffeBrown reconhece que não existe direito em algumas socie dades mais primitivas porque essas sociedades não estão politicamente organizadas O conceito de direito portanto está restrito àquelas culturas que possuem uma organização política mais formalizada Naquelas socie Manual antropologia jurídica 001277indd 137 9112010 102019 138 139 dades primitivas nas quais não se aplica o conceito de direito os costumes são reforçados por sanções sociais difusas Assim em algumas comunida des primitivas o controle social deve ser tomado como um conjunto de sanções negativas difusas visto que essas comunidades não possuem um corpo politicamente organizado capaz de fazer respeitar suas regras Enfim RadcliffeBrown define direito como o controle social através da aplicação sistemática da força da sociedade politicamente organizada De acordo com essa definição conclui que algumas socie dades simples não têm direito 41 Funcionalismo e direito RadcliffeBrown como visto define sanção como uma reação por parte da sociedade politicamente organizada a um modo de comporta mento que é aprovado ou desaprovado O comportamento aprovado im plica sanção positiva e enfatiza o que se deve fazer O comportamento não aprovado implica sanção negativa e enfatiza o que não se deve fazer Essa análise combinada com a noção de Malinowski segundo a qual a aborda gem funcionalista consiste numa explicação teleológica da ação como meio à objetivação de fins e metas é semelhante à análise funcionalista que alguns juristas fazem da ordem jurídica especialmente Norberto Bobbio em um trabalho intitulado A função promocional do direito A teoria geral do direito que Bobbio propõe nas suas obras Teoria da norma jurídica e Teoria do ordenamento jurídico segue uma linha es truturalista Essa posição contudo passa por uma revisão Assim em A função promocional do direito investiga novas técnicas de controle social como exigência do Estado social contemporâneo Essas técnicas não são centradas apenas em comportamentos repudiados pela socie dade mediante a aplicação de sanções negativas de caráter punitivo ou repressivo mas também nas formas de estímulos às condutas desejadas mediante a aplicação de sanções positivas de caráter promocional Sob o enfoque funcionalista a ordem jurídica pode ser vista não apenas como o reflexo da realidade social subjacente mas também como fator condicionante dessa realidade Na perspectiva funcionalista o direito é tido como instrumento de gestão da sociedade e abrange a concepção segundo a qual as sanções postas pelo ordenamento jurídico têm por finalidade obter dado comportamento humano que o legislador considera conveniente ou desejável Nessa trilha aparece a função pro Manual antropologia jurídica 001277indd 138 9112010 102019 138 139 mocional do direito que implica o aumento de normas de organização e de sanções positivas ou premiais No ordenamento jurídico além das medidas diretas que almejam as condutas em conformidade com as prescrições normativas também se encontram medidas indiretas que visam dificultar comportamentos não desejáveis e facilitar os desejáveis Desse modo ao lado das técnicas fun dadas na função repressiva e nas sanções negativas há lugar também para técnicas de encorajamento ou promocionais fundadas em sanções positi vas que visam promover as condutas tidas como desejáveis O conjunto normativo é assim utilizado como meio para alcançar determinados fins Na perspectiva do direito promocional a adesão dos destinatários das normas não seria simples submissão mas decisão comprometimen to e participação Um direito desse tipo não pode evidentemente res tringirse ao tema da teoria estrutural do direito que se concentra na sistematização formal do ordenamento jurídico conforme a melhor tradição dogmática mas requer para apropriada consideração do prin cípio da efetividade a análise da conduta dos destinatários das normas Quer dizer é necessário verificar se determinado conjunto normativo produziu os efeitos esperados se ele se firmou se obteve sucesso por isso mesmo na análise do efetivo cumprimento das normas tem papel preponderante a análise do seu impacto persuasivo Esse tipo de análi se permite enxergar o direito como um sistema aberto aos fatos sociais e culturais que o abrangem e circunscrevem Alguns juristas entendem que o uso das sanções positivas ou pre miais incide sobre comportamentos permitidos e não sobre comporta mentos obrigatórios O destinatário é portanto livre para se conduzir ou não em conformidade com a norma Nesse aspecto cresce em impor tância a autonomia da vontade na medida em que o Estado sancionador restringe sua própria força uma vez que não ameaça mas simplesmen te encoraja Na verdade não há ampliação da autonomia da vontade O que existe efetivamente é uma condução sutil da vontade mediante técnicas de encorajamento Vale dizer com as sanções premiais o Esta do desenvolve formas de poder mais amplas substituindo o mercado e a sociedade no modo de controlar o comportamento ao promover com portamentos através de subsídios incentivos isenções etc 42 Direito funcionalismo e estruturalismo Na teoria geral do direito de inspiração funcionalistaestrutura lista o conjunto normativo aparece como um instrumento de gestão e Manual antropologia jurídica 001277indd 139 9112010 102019 140 141 controle social Quando predomina o enfoque estruturalista que enxer ga o direito em termos de controle coativo a ênfase incide na repressão de condutas contrárias às normas Quando predomina o enfoque fun cionalista que enxerga o direito em termos de controle persuasivo a ênfase incide no incentivo de condutas tidas como desejadas Segundo Alaôr Caffé Alves in BOBBIO 2005 18 19 Bobbio en tende que as teorias que enfocam o direito sob o ponto de vista estru tural portanto pautadas na perspectiva protetora ou repressiva do di reito são próprias dos Estados liberais e as teorias que enfocam o direito sob o ângulo funcional objetivando propiciar as condições jurí dicas da promoção social e econômica são próprias dos Estados sociais Assim a análise funcional do direito demanda considerações de conte údo que como visto traspassa a mera análise formal da estrutura do ordenamento Isso não quer dizer entretanto que o jurista italiano tenha substituído o enfoque da análise estrutural do direito dominante na primeira fase de suas investigações pela análise funcional ou teleo lógica Há na obra de Bobbio uma convergência entre a análise estru tural e a funcional A análise estrutural considerada a primeira via da investigação procura responder à pergunta de que se compõe o direi to Essa análise é complementada e aprofundada pela segunda via da pesquisa a da análise funcional que responde à pergunta para que serve o direito A análise funcional investiga portanto a relação entre meio e fim numa perspectiva sociológica Aliás conforme palavras de Bobbio 2005 19 Os elementos deste universo do direito que são postos em evidência pela análise estrutural são diferentes daqueles que podem ser postos em evidência pela análise funcional Os dois pontos de vista não só são perfeitamen te compatíveis senão que se integram mutuamente e de maneira sempre útil Se o ponto de vista estrutural é predominante em meus cursos de teoria do direito isto se deve exclusivamente ao fato de que quando os desenvolvi esta era a orientação metodológica dominante em nossos estudos Se hoje os devesse retomar decididamente não pensaria em substituir a teoria estruturalista pela funcionalista Agregaria uma se gunda parte sem sacrificar nada da primeira Os antropólogos e juristas costumam destacar as contribuições da escola sociológica francesa ao desenvolvimento e construção dos estudos antropológicos e jurídicos Nesse sentido mencionam os nomes de Émile Durkheim e Marcel Mauss cujas contribuições serão analisadas nos capítulos seguintes Manual antropologia jurídica 001277indd 140 9112010 102019 140 141 Xii émile durkHeim 1858 1917 1 AUTONOMIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS Laplatine 2006 87 88 constata que para os pesquisadores da escola francesa de sociologia era necessário às ciências sociais para garantir sua autonomia e para alcançar sua elaboração científica a constituição de um quadro teórico de conceitos e de modelos que fossem próprios da investigação do social isto é independentes tanto da expli cação histórica evolucionismo ou geográfica difusionismo quanto da explicação biológica funcionalismo ou psicológica psicologia clássica Ao se empenharem nessa tarefa os sociólogos franceses Émile Durkheim e Marcel Mauss forneceram à antropologia o quadro teórico e os ins trumentos operacionais que lhe faltavam Durkheim ao escrever as Regras do método sociológico desconfia da etnologia ao opor as observações confusas e rápidas dos viajantes aos textos precisos da história Contudo em As formas elementares da vida religiosa proclama que as civilizações primitivas constituem casos pri vilegiados porque são casos simples Eis aí por que em todas as ordens de fatos as observações dos etnógrafos frequentemente foram verda deiras revelações que renovaram os estudos das instituições humanas Nada mais injusto que o desdenho que muitos historiadores têm ainda pelos trabalhos dos etnógrafos Ao contrário é certo que a etnografia frequentemente determinou nos diferentes setores da sociologia as mais fecundas revoluções 1978b 209 Manual antropologia jurídica 001277indd 141 9112010 102019 142 143 Durkheim é considerado o responsável pela conquista da autono mia da sociologia em relação às demais ciências porque estabeleceu o fato social como objeto específico dos estudos sociológicos Mas em relação à antropologia entendeu que esta não era totalmente autônoma na medida em que a considerou apenas um ramo da sociologia 11 Fato social Segundo Durkheim 1974 1 a 3 há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos com caracteres nítidos que se distingue daqueles estudados pelas ciências da natureza Assim quando uma pessoa desempenha seus deveres de cidadão de esposo ou de irmão ou quando se desincumbe de encargos que contraiu essa pessoa pratica deveres que estão definidos no direito Esse direito entretanto não foi a pessoa que o criou portanto existe fora dela Assim também o devo to ao nascer encontra prontas as crenças e as práticas da vida religiosa portanto essas coisas existem fora dele O mesmo ocorre com o sistema de sinais que a pessoa utiliza para exprimir seus pensamentos o sistema de moeda que emprega para pagar as dívidas os instrumentos de cré dito que utiliza nas relações comerciais as práticas a seguir na profissão enfim todas essas coisas funcionam independentemente do uso que a pessoa delas faça Para Durkheim esses tipos de conduta ou de pensamentos não são apenas exteriores ao indivíduo são também dotados de um poder im perativo e coercitivo em virtude do qual se lhe impõem quer queira quer não O indivíduo encontrase pois diante de uma ordem de fatos que apresenta caracteres muitos especiais São os fatos sociais os quais consistem na maneira de agir de pensar e de sentir exterior ao indivíduo dotados de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõe Por conseguinte não podem ser confundidos com os fenômenos orgânicos pois consistem em representações e em ações nem com os fenômenos psíquicos que não existem senão na consciência individual e por meio dela O fato social portanto a é exterior às consciências individuais b exerce coerção sobre os indivíduos c apresenta generalidade no meio do grupo d constitui o objeto de estudo da sociologia Conforme Durkheim 1974 5 6 essa definição de fato social pode ser confirmada por meio de uma experiência singela basta que se ob serve a maneira pela qual são educadas as crianças Toda educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver Manual antropologia jurídica 001277indd 142 9112010 102019 142 143 de sentir e de agir às quais elas não chegariam espontaneamente A pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão do meio social tendendo a moldála à sua imagem pressão de que tanto os pais quanto os mestres não são senão representantes e intermediários Também são transmitidos pela educação outros fatos sociais como as regras jurídicas morais religiosas etc O estudo sociológico do fato social implica a observação de três regras básicas a os fatos sociais são coisas que só podem ser explicadas sendo relacionadas a outros fatos sociais b na explicação dos fatos sociais devem ser afastados todos os preconceitos e prénoções c é preciso definir com precisão o objeto da investigação procurando agru par aqueles que manifestam características comuns 2 FORÇA DOS FATOS SOCIAIS Para Durkheim 1974 6 7 existem certas correntes de opinião que nos impelem com intensidade desigual segundo as épocas e os países ao casamento ao suicídio ou então a uma natalidade maior ou menor Tais correntes são fatos sociais À primeira vista parecem inse paráveis das formas que tomam nos casos particulares Mas a estatísti ca oferecenos o meio de isolálas São com efeito expressas e não sem exatidão pelas taxas de nascimento casamento suicídios isto é pelo algarismo que se obtém dividindose o total médio anual dos casamen tos dos nascimentos das mortes voluntárias pelo total médio dos homens em idade de casar de procriar de se suicidar Como cada um desses números compreende todos os casos particulares indistintamente as circunstâncias individuais que podem desempenhar qualquer papel na produção do fenômeno se neutralizam mutuamente e por conseguinte não contribuem para determinálo O que cada número exprime é certo estado de alma coletiva Durkheim interessouse pelo estudo das taxas de suicídio por julgar que um estudo dessa natureza seria suficiente para testar a sua teoria e elevar a sociologia à categoria de disciplina científica Assim em uma obra intitulada O suicídio um estudo sociológico cuja síntese elaborada por Joel Charon 2000 33 a 36 expomos na sequência Durkheim analisa a força que os fatos sociais exercem sobre o suicida Com essa análise pretende demonstrar a importância dos fatos sociais na determinação da probabilidade de suicídios Manual antropologia jurídica 001277indd 143 9112010 102019 144 145 21 Estudo do suicídio O suicídio segundo Durkheim sempre será uma escolha pessoal e há todo tipo de razões psicológicas que levarão uma pessoa e não outra a decidir suicidarse Contudo até mesmo nessa escolha extrema mente individual atuam fatos sociais ou seja a taxa alta ou baixa de suicídio numa sociedade influencia a probabilidade de suicídio de um indivíduo Para Durkheim a causa determinante da taxa alta ou baixa de suicídio é outro fato social que ele denomina solidariedade social Assim em comunidades com alta solidariedade social a taxa de suicídio deve ser menor do que nas comunidades com baixa solidariedade social Para testar sua teoria Durkheim analisou os registros sobre suicídio de várias províncias europeias Durkheim dividiu as províncias em católicas e protestantes Como o protestantismo ressalta a relação individual com Deus baixa solida riedade e o catolicismo salienta a Igreja como uma comunidade integra da que reverencia Deus em conjunto alta solidariedade as províncias protestantes deveria apresentar taxa de suicídio maior do que as provín cias católicas De fato os registros apontaram que a taxa de suicídio era maior entre os protestantes Assim podese afirmar que a probabilidade de suicídio é maior entre protestantes do que entre católicos De acordo com a teoria nas pequenas cidades alta solidariedade a taxa de suicídio seria menor do que nas grandes cidades baixa solidariedade porque nestas impera a impessoalidade ou individualismo Examinando os re gistros constatouse que efetivamente era o que ocorria De acordo com a teoria de Durkheim as pessoas casadas devem ser mais integradas na comunidade do que as solteiras as mulheres mais do que os homens as pessoas com filhos mais do que as sem filhos as pessoas sem instrução universitária mais do que as com formação su perior Assim segundo ele casamento família e ausência de educação superior integram mais a pessoa na comunidade portanto implica alta solidariedade Ao passo que ser solteiro do sexo masculino sem filhos e ter educação superior implica baixa solidariedade Os registros apon taram que a taxa de suicídio de fato era maior entre as pessoas soltei ras do sexo masculino as sem filhos e as com instrução superior Durkheim também verificou que em comunidades com altíssima solidariedade a taxa de suicídio aumentava portanto demonstrou que a relação entre solidariedade social e taxas de suicídios é curvilinear isto é as taxas são mais elevadas nos dois extremos Também verificou que Manual antropologia jurídica 001277indd 144 9112010 102019 144 145 as taxas de suicídios aumentam em épocas de mudanças sociais e também em épocas de depressão econômica ou períodos de rápida prosperidade Com base nos resultados do seu estudo Durkheim classificou os seguintes tipos de suicídio a egoístas ocorrem em virtude da baixa solidariedade social b altruístas ocorrem em virtude da altíssima solidariedade social c anômicos ocorrem em virtude de mudanças sociais que levam o indivíduo a um estado de anomia ausência de re gras d fatalistas ocorrem em virtude de mudança súbita na vida da pessoa aumento ou diminuição repentina do status A teoria de Durkheim influenciou todo tipo de análise de estatísticas taxas de natalidade mortalidade aborto divórcio casamento etc O procedimento com as pesquisas estatísticas mostrou que as representações coletivas são fatos de natureza específica portanto di ferentes dos fenômenos psicológicos individuais mostrou também que é possível determinálas de maneira direta e não apenas através dos pensamentos e emoções individuais Outro método para conhecimento direto das representações coletivas seria o exame das expressões per manentes dessas representações Nesse sentido a análise da religião e dos sistemas jurídicos por exemplo permitiria captar as representações coletivas tendo em vista que a religião e os sistemas jurídicos consistem em expressões permanentes dessas representações 22 Antropologia e religião Durkheim em As formas elementares da vida religiosa investiga as práticas religiosas das comunidades ditas primitivas especialmente o sistema totêmico dos povos australianos Em virtude das suas investi gações sobre o totemismo o sagrado e o profano LéviStraus o consi dera um dos fundadores da antropologia religiosa Para Durkheim 1978b 209 a 212 as religiões primitivas não permitem apenas distinguir os elementos constitutivos da religião gozam também a vantagem muito grande de facilitar sua explicação porque nas sociedades primitivas os fatos são mais simples e as relações entre os fatos também são mais aparentes De outra parte segundo Durkheim toda religião tem um lado pelo qual ela ultrapassa o círculo das ideias propriamente religiosas e através disso o estudo dos fenô menos religiosos fornece um meio de renovar problemas que até então têm sido debatidos apenas entre filósofos A religião diz ele é uma coisa eminentemente social daí o interesse da sociologia As represen Manual antropologia jurídica 001277indd 145 9112010 102019 146 147 tações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas os ritos são maneiras de agir que nascem no seio dos grupos reunidos e são destinados a suscitar a manter ou a refazer certos esta dos mentais desses grupos Sabese há muito tempo que até um momento relativamente avançado da evolução as regras da moral e do direito não se diferencia vam das prescrições rituais Portanto podese dizer resumindo que quase todas as grandes instituições sociais nasceram da religião Ora para que os principais aspectos da vida coletiva tenham começado por aspectos variados da vida religiosa é preciso evidentemente que a vida religiosa seja a forma eminente e como que uma expressão abreviada da vida coletiva inteira Se a religião engendrou tudo o que há de essen cial na sociedade é porque a ideia da sociedade é a alma da religião DURKHEIM 1978b 224 Segundo Durkheim 1978b 230 toda sociedade sente necessida de de conservar e de reforçar em intervalos regulares os sentimentos coletivos e as ideias coletivas que garantem a sua unidade e personali dade Isso segundo ele só pode ser obtido por meio de reuniões assem bleias congregações onde os indivíduos estreitamente ligados uns aos outros reafirmam os seus sentimentos comuns Essas cerimônias por seu objeto pelos resultados que produzem pelos procedimentos que nelas são empregados não diferem em natureza das cerimônias propria mente religiosas Na concepção de Durkheim as religiões seriam apenas uma trans posição da sociedade para o plano simbólico Assim através do totemis mo por exemplo os homens cultuam apenas a realidade coletiva trans figurada Totemismo é a crença no totem ou organização social fundada nes sa crença O termo totem foi extraído do idioma dos índios norteame ricanos e depois passou a indicar o fenômeno presente em todos os povos primitivos de transformar uma coisa natural ou artificial em emblema do grupo social e em garantia de sua solidariedade O totem é assim apenas o símbolo de uma força sagrada e impessoal emanada do grupo Durkheim enfatizou esse caráter do totem vendo nele a expres são da unidade do grupo social em sua inteireza e portanto nas inter relações dos clãs em que o grupo se divide O totemismo dos Aruntas tribo australiana foi tomado como a forma mais simples de manifestação religiosa A partir dessa manifes Manual antropologia jurídica 001277indd 146 9112010 102019 146 147 tação Durkheim elaborou três hipóteses a a vida do grupo é a fonte geradora e a causa da religião b as ideias e práticas religiosas referem se ao grupo social ou o simbolizam c a distinção entre o sagrado e o profano é universalmente encontrada e tem consequências importantes para a vida social 221 Sagrado e profano Para Durkheim a distinção das coisas em sagradas e profanas constitui um elemento importante para a compreensão dos fenômenos religiosos Estes segundo ele colocamse naturalmente em duas cate gorias fundamentais a as crenças são estados de opinião e consistem em representações e b os ritos constituem tipos determinados de ação Segundo Durkheim todas as crenças religiosas simples ou com plexas têm um mesmo caráter comum pressupõem uma classificação das coisas reais ou ideais em duas classes ou em dois gêneros opostos Essas coisas são traduzidas pelas designações de profano e sagrado Assim o caráter distintivo do pensamento religioso consiste na divisão do mundo em dois domínios a um que compreende tudo o que é sa grado e b outro que compreende tudo o que é profano As crenças os mitos as lendas são representações ou sistemas de representações que exprimem a natureza das coisas sacras as virtudes e os poderes a elas atribuídos sua história suas relações recíprocas e suas relações com as coisas profanas Mas por coisas sagradas não é preciso entender apenas aqueles seres pessoais que vêm denominados deuses ou espíritos uma rocha uma árvore uma fonte uma pedra um pedaço de lenha uma casa em suma qualquer coisa pode ser sagrada Durkheim elabora uma distinção entre religião e magia embora reconheça que ambas possuem muitos pontos comuns Para ele a magia está cheia de religião e a religião está cheia de magia portanto é im possível separálas totalmente e definir uma sem a outra A magia tal como a religião também tem os seus ritos e os seus dogmas que são apenas mais rudimentares porque perseguindo fins técnicos e utilitários não se detêm em puras especulações Mas a religião tem uma profunda aversão à magia que nutre uma profunda hostilidade à religião A magia deposita uma espécie de prazer profissional ao profanar as coisas santas De sua parte a religião embora não tendo sempre condenado e proibi do os ritos mágicos os vê em geral desfavoravelmente Segundo Durkheim o aspecto coletivo igreja representa a dife rença mais acentuada entre religião e magia As crenças religiosas são Manual antropologia jurídica 001277indd 147 9112010 102019 148 149 sempre comuns a determinada coletividade que ao aderir às crenças pratica os ritos delas emanados As crenças portanto não são admitidas apenas a título individual por todos os membros da coletividade mas são coisas do grupo e constituem a sua unidade Os indivíduos que compõem a mesma religião sentemse ligados uns aos outros pelo sim ples fato de terem uma fé comum Igreja para Durkheim é uma socie dade na qual os membros são unidos pelo fato de representarem do mesmo modo o mundo sagrado e as suas relações com o mundo profa no e de traduzirem essas representações comuns com práticas idênticas Na história diz ele não se encontra nenhuma religião sem igreja Não existe uma igreja mágica ou seja a magia não possui igreja Entre o mago e os indivíduos que o consultam como entre estes últimos não subsistem vínculos duráveis que façam dos membros um mesmo corpo moral comparável àquele que formam os fiéis de um mesmo Deus ou os sequazes de um mesmo culto O mago tem uma clientela não uma igreja e os seus clientes podem perfeitamente não ter entre si qualquer relacionamento ao limite de ignorarse um ao outro Também as rela ções entre eles são geralmente acidentais e transitórias de todo seme lhante àquelas de um doente com seu médico 3 DIREITO E SOLIDARIEDADE Para Durkheim 1978a a sociedade não é uma simples soma de indivíduos ela representa uma realidade específica que tem suas carac terísticas próprias Segundo ele nada se poderia produzir de coletivo se as consciências individuais não existissem mas essa condição apesar de necessária não é suficiente É preciso portanto que essas consciên cias individuais estejam associadas e combinadas é dessa combinação que resulta a vida social Em suma a sociedade ultrapassa o indivíduo motivo pelo qual está em condições de impor maneiras de agir e de pensar Mas a vida geral da sociedade não pode ser ampliada sem vida jurídica que simultaneamente abranja os mesmos limites e relações refletindose necessariamente no direito todas as modalidades essenciais da solidariedade social Quanto mais os membros de uma sociedade são solidários tanto mais mantêm relações diversas seja uns com os outros seja com o grupo tomado coletivamente pois se seus encontros fossem raros dependeriam uns dos outros apenas de uma maneira intermitente e fraca Por outro lado o número destas relações é necessariamente pro Manual antropologia jurídica 001277indd 148 9112010 102019 148 149 porcional àquele das regras jurídicas que as determinam Com efeito a vida social em todas as partes em que ela existe de uma maneira durá vel tende inevitavelmente a tomar uma forma definida e a organizarse o direito não é outra coisa senão esta organização mesma no que ela tem de mais estável e de mais preciso A vida geral da sociedade não pode se desenvolver num ponto sem que a vida jurídica se estenda ao mesmo tempo e na mesma proporção Portanto podemos estar certos de encontrar refletidas no direito todas as variedades essenciais da so lidariedade social 1978a 32 Solidariedade social é portanto uma estrutura de relações e de vínculos recíprocos ela cria entre os homens um sistema de direitos e deveres que os ligam uns aos outros de maneira durável Solidariedade é forma de integração social nesse sentido o direito é um símbolo visível da solidariedade social Durkheim distingue dois tipos de solidariedade social a solidariedade mecânica ocorre nas sociedades simples pri mitivas ou arcaicas cuja estrutura social é formada de segmentos si milares e elementos homogêneos fundados na semelhança ou seja na uniformidade de comportamento nessas sociedades os indivíduos par tilham dos mesmos valores e sentimentos e o direito preponderante é o penal que se faz acompanhar de sanções repressivas b solidarieda de orgânica ocorre nas sociedades complexas civilizadas ou modernas constituídas por um sistema de órgãos diferentes dos quais cada um tem um papel especial sendo eles próprios formados de partes diferen ciadas fundamentase na divisão do trabalho no qual o direito prepon derante é o dos contratos que se faz acompanhar de sanções restitutivas 31 Direito e sociedade complexa Segundo Durkheim 1978a as sociedades mais complexas não podem formarse sem que a divisão do trabalho se desenvolva motivo pelo qual se pode formular a seguinte proposição o ideal de fraternida de humana não pode realizarse senão na medida em que a divisão do trabalho progride A divisão do trabalho produz solidariedade porque cria entre os homens um sistema de direitos e deveres que os liga uns aos outros de maneira durável A divisão do trabalho dá origem a regras que asseguram o concurso pacífico e regular das funções divididas Assim formamse as regras cujo número cresce à medida que o traba lho se divide e cuja ausência torna a solidariedade orgânica impossível ou imperfeita Na solidariedade orgânica os indivíduos são agrupados segundo a natureza particular da atividade social a que se dedicam Seu Manual antropologia jurídica 001277indd 149 9112010 102019 150 151 meio natural e necessário é o meio profissional O que marca o lugar de cada um na sociedade é a função que preenche O direito repressivo é típico de sociedades primitivas ou arcaicas nas quais o indivíduo dificilmente é distinguido do grupo a que perten ce ao passo que o direito restitutivo é típico das sociedades complexas ou modernas nas quais o indivíduo se tornou uma pessoa capaz de es tabelecer livremente relações contratuais com outros indivíduos Desse modo o desenvolvimento paralelo do Contrato e do Estado ambos acompanhados de sanções restituitórias é a manifestação mais exata do fortalecimento da solidariedade orgânica e do direito que lhe corres ponde Assim à medida que a solidariedade mecânica pelo influxo da divisão do trabalho vai sendo transformada em solidariedade orgânica o direito vai abandonando o seu caráter repressivo direito penal para assumir predominantemente a sanção restitutiva característica do di reito civil comercial administrativo e tributário 4 JUSTIÇA E RETRIBUIÇÃO Tercio Sampaio Ferraz Jr em Estudos de filosofia do direito 2002 213 a 229 analisa os modelos de justiça em especial a conexão entre justiça e retribuição e observa que a aceitação atual da agressão repres são e violência como base da retribuição parece algo do passado de sociedades primitivas Mas segundo ele é na sociedade desenvolvida que a pena no sentido criminal recebe boa aceitação Aliás Michel Foucault 1996 80 a 82 confirma essas observações ao informar que na Europa do século XVIII a pena de morte era a regra e a execução era um cerimonial semelhante a espetáculo público Na Inglaterra por exemplo a lei penal estabelecia 315 condutas punidas com a morte Isso tornava o sistema penal inglês um dos mais selvagens e sangrentos que a história das civilizações conheceu Mesmo os teóri cos do direito penal moderno Beccaria Bentham Brissot ao estabe lecerem os tipos possíveis de punição deportação trabalho forçado humilhação incluíram a pena de talião matase quem matou tomam se os bens de quem roubou como forma de retribuição ideal e eficaz Para esses teóricos o criminoso é definido como um inimigo social um inimigo interno assim ainda que a lei penal não possa prescrever uma vingança a retribuição não deixa de ter uma conotação com vingança fato que pode ser observado entre os adeptos da pena de morte A análise de Ferraz Jr coloca sob suspeita os conceitos de solida riedade mecânica e solidariedade orgânica elaborados por Durkheim Manual antropologia jurídica 001277indd 150 9112010 102020 150 151 principalmente no que diz respeito às conclusões retiradas desses con ceitos segundo as quais o direito preponderante nas sociedades arcaicas ou primitivas seria o penal que se faz acompanhar de sanções repressi vas e o direito preponderante nas sociedades modernas seria o dos contratos que se faz acompanhar de sanções restitutivas Na sua análise Ferraz Jr se serve de um estudo de Walter Burkert sobre retribuição que permite a elaboração de modelos de justiça Burkert assinala significativos casos de retribuição animal que na aproximação com o comportamento humano merecem uma reflexão mais detida Principia por lembrar observações sobre chimpanzés da Tanzânia dentre os quais ocorre que algumas fêmeas arrancam o filho te da mãe e o devoram A mãe demonstra medo e procura evitar o ato Mas o grupo nada faz para evitálo Não há pena contra as fêmeas A questão parece resolverse quando as fêmeas canibais tornamse mães Burkert contrasta esse caso com uma passagem do livro de Tânia Blixen Out of África em que a autora retrata o comportamento dos kikuyus do Quênia Para Blixen parece que estes não teriam nenhum sentido para as noções de justiça e pena ao menos no sentido ocidental que elas assumem Para os africanos diz ela só há um meio de sanear uma insanidade cometida o dano deve ser indenizado qualquer que ele seja O assassínio ou a lesão corporal é seguido de longas deliberações dos anciãos que por meio de negociações buscam determinar a inde nização correspondente Blixen para seu espanto não encontra entre esses princípios nenhum olho por olho dente por dente A autora constata que entre os kikuyus não há pena no sentido criminal mas apenas num sentido civil Ferraz Jr lembra que a autora talvez tivesse seu espanto diminu ído se soubesse que até a alta Idade Média o direito dos povos germâ nicos retribuía com penas pecuniárias até mesmo os atos criminais mais pesados A pena criminal só aparece entre os séculos XI e XII não obstante o Velho Testamento proibir expressamente a indenização pecuniária em caso de assassinato 41 Chimpanzés e kikuyus O contraste entre a prescrição bíblica e o direito germânico faz Burkert retornar aos chimpanzés Nestes o observador não deixa de constatar contrarreações acompanhadas de irritação não só como con trapartida direta e imediata mas mesmo quando algum tempo decorre Manual antropologia jurídica 001277indd 151 9112010 102020 152 153 Assim um comportamento vingativo pode ocorrer em face de um comportamento inamistoso cometido na presença do chimpanzé domi nante Alpha horas depois quando Alpha não está mais presente Tratase de reações homeostáticas que asseguram a permanência de si tuações ambientais favoráveis a indivíduos e grupos por meio de com pensações e perturbações O animal num primeiro momento foge mas a fuga não é a estratégia mais eficaz Daí vem a agressão a contra agressão Na agressão está contida a explosão de fúria uma espécie de programação biológica que oferece ainda que curta e não objetiva uma resistência a forças contrárias Ocorre que a agressão mesmo entre os chimpanzés parece estar controlada pela presença do chimpanzé Alpha A agressão é limitada por uma espécie de hierarquia grupal A quebra da hierarquia por sua vez é punida O Alpha reage à insubordinação e a essa reação se ligam fortes emoções Às emoções submetidas a controle dos subordi nados contrapõese a emoção sem limite do chefe o que explica as lutas agressivas em disputa da posição superior Em contraste com o comportamento animal os kikuyus e os povos germânicos desenvolveram uma espécie de procedimento das reações que de um lado permite a socialização dos processos que corresponde ao sentido de sanção como estabelecimento cerimonial da retribuição e de outro o contato com meios de pagamento que possibilita a indeni zação como troca Ambas a socialização e a indenização pressupõem a língua código significativo e com isso uma homeostase por meio de um mundo objetivamente estabilizado criado pela linguagem no qual ocorrem negociações Assim os procedimentos retributivos dos africa nos não são primitivos nem desenvolvidos Primitivismo e desenvolvi mento são conceitos impróprios ao caso Enfim quando se trata de ser humano mesmo a vingança por meio de procedimentos com base linguís tica tornase orientada e dirigida não obstante seu fundamento emo cional A partir de observações filológicas Burkert distingue dois mode los de retribuição a o horizontal é o modelo que visa a equiparação de uma pretensão e de uma contraprestação e b o vertical é o mode lo que se fixa numa hierarquia a ser protegida e mantida O modelo vertical parece prolongar um modelo préhumano no qual pressupõe hierarquia e retribui agressivamente uma ameaça agressiva Mas os dois modelos podem aparecer numa mesma regra conforme a estabelecida Manual antropologia jurídica 001277indd 152 9112010 102020 152 153 por Chilon um dos sete sábios Conciliate com quem te infligiu um dano horizontal vingate de quem te ofendeu vertical O modelo horizontal parece pertencer exclusivamente ao gênero humano à medida que se liga à língua e a um mundo objetivamente construído O estabelecimento da indenização ocorre por meio de ne gociação que permite a compensação de um dano A vinculação da emoção à negociação até parece rebaixar o homem significando sua regressão ao animalesco beber o sangue do adversário Por isso Burkert entende que do ponto de vista humano o modelo horizontal é obvia mente um dos universalia antropológicos base de um discutido fenôme no o princípio da reciprocidade que se apresenta como um dar e receber Lembra a propósito o Ensaio sobre o dom de Marcel Mauss no qual aquele princípio constitui uma forma básica da interação social Manual antropologia jurídica 001277indd 153 9112010 102020 155 Manual antropologia jurídica 001277indd 154 9112010 102020 155 Xiii mArcel mAuSS 1872 1950 1 TEORIA DO FATO SOCIAL TOTAL Marcel Mauss tal como Durkheim também entende que é neces sário estudar os fatos sociais como coisas Mauss porém amplia a noção de fato social pois para ele as coisas objetos manufaturados armas instrumentos objetos rituais são elas mesmas fatos sociais Durkheim considerava os dados recolhidos pelos etnógrafos nas sociedades primi tivas sob o ângulo da sociologia da qual a antropologia era destinada a se tornar um ramo Mauss ao contrário com a teoria do fato social total proclama que o lugar da sociologia é dentro da antropologia LA PLATINE 2006 89 91 Mauss no Ensaio sobre o dom ou dádiva analisa as formas de cir culação de bens trocas e doações em diferentes sociedades dando ênfase aos princípios de solidariedade de reciprocidade e de rivalidade e suas conexões com as obrigações de dar de receber e de restituir Essa análise mostra que a economia e a moral do dom penetra nas sociedades capitalistas modernas especialmente nos grandes sistemas de doações e empréstimos que estão sendo criados para organizar e atender às demandas sociais Os princípios do dom portanto não foram suprimidos pela dinâmica do mercado motivo pelo qual devem ser considerados pela tecnologia jurídica especialmente na parte que se refere aos con tratos Mauss examina as formas de circulação de bens sob o enfoque da teoria do fato social total De acordo com essa teoria o social só é real Manual antropologia jurídica 001277indd 155 9112010 102020 156 157 integrado em sistema motivo pelo qual para compreender um fenôme no social é preciso apreendêlo totalmente ou seja os fatos sociais não podem ser redutíveis a fragmentos esparsos A teoria do fato social total postula portanto a integração dos diferentes aspectos jurídico econômico histórico religioso estético constitutivos de dada realidade social que convém apreender em sua integralidade Essa totalidade não suprime o caráter específico dos fe nômenos que permanecem ao mesmo tempo jurídicos econômicos religiosos e até mesmo estéticos e morfológicos A totalidade consiste assim num sistema ou rede de interrelações funcionais entre todos esses planos que possibilita apreender as condutas humanas em todas as suas dimensões Isso significa que ao enxergar o fenômeno social na sua totalidade o investigador jurista antropólogo sociólogo estabe lece uma exigência epistemológica de caráter interdisciplinar Mauss acredita que as trocas dons e contradons constituem o núcleo comum de um grande número de atividades sociais aparente mente heterogêneas percebe desse modo a importância do regime dos contratos no funcionamento e evolução das sociedades motivo pelo qual procura apreendêlo como um fenômeno social total Começa por in vestigar o caráter livre e gratuito mas ao mesmo tempo obrigatório e interessado das obrigações de dar de receber e de restituir que vigem nas sociedades ditas primitivas Na sequência procura demonstrar que o encadeamento dessas prestações envolve uma multiplicidade de fenô menos jurídicos morais políticos econômicos religiosos etc ligados aos sistemas de trocas dons e contradons A circulação de dons e con tradons assim corresponde a um fato social total porque engloba e entrelaça os diversos domínios da vida coletiva Sinteticamente podese estabelecer que no regime do dom a tem se um sistema de prestações totais porque abrange dons antagonistas e não antagonistas envoltos em ciclos de solidariedade reciprocidade e rivalidade cujo funcionamento pode ser perfeitamente conhecido b as prestações são totais porque englobam ao mesmo tempo diversos tipos de fenômenos jurídicos religiosos econômicos morais etc que supõem a intervenção dos diversos grupos que dão forma a uma sociedade fa mílias clãs tribos etc c o fenômeno social da troca de dons é total porque nele combinamse muitos aspectos das práticas sociais e nume rosas instituições que caracterizam uma sociedade d esses fenômenos sociais também são totais porque permitem que a sociedade se repre sente e se reproduza como um todo Manual antropologia jurídica 001277indd 156 9112010 102020 156 157 A teoria do fato social total tem assim a pretensão de apreender certas formas universais de pensamento e de moralidade a partir do processo de trocas momento em que a totalidade da sociedade e de suas instituições se manifesta na experiência O sistema de trocas que impli ca o dom traspassa todas as sociedades porque o dom existe em todo lugar embora não seja o mesmo em toda parte Mauss entretanto concentrase no estudo do sistema de trocas das sociedades primitivas Essa escolha justificase pelo fato de essas sociedades estarem bastante afastadas da sociedade moderna e por isso é possível observar nelas esses fatos de funcionamento geral que têm a vantagem de ser mais uni versais e de possuir mais realidade É preciso ter em conta porém que se as sociedades primitivas são profundamente marcadas por uma economia e uma moral do dom as sociedades capitalistas são marcadas por uma economia e uma moral de mercado e de lucro Isso não quer dizer entretanto que as socieda des caracterizadas pelo dom ignoram as trocas mercantis nem que as sociedades capitalistas deixaram de praticar o dom As relações comer ciais coexistem há séculos com as trocas de dons nas sociedades primi tivas e inversamente o dom continua a ser largamente praticado nas economias de mercado Segundo Godelier 2001 26 o problema con siste em perceber quais os princípios que prevalecem nas sociedades dominadas pelo dom e quais os que prevalecem nas sociedades domina das pelas trocas comerciais O sistema do dom não se confunde portanto com o das trocas comerciais são coisas distintas Nas sociedades dominadas pelo dom as coisas são tratadas e se comportam como sujeitos e os objetos parecem ocupar o lugar das pessoas A pessoa não se separa da coisa ou seja a coisa dada não é alienada pois aquele que a cede continua a conservar direitos sobre o que deu continua portanto a retirar algumas vantagens do seu ato Nas sociedades dominadas pelas trocas comerciais os bens são destacados das pessoas que os colocam à venda nas sociedades nas quais impera a concorrência na venda de bens e serviços e cujo objetivo é a realização de lucro as pessoas até certo ponto são tratadas como coisas 2 SISTEMA DO DOM Bronislaw Malinowski em Argonautas do Pacífico Ocidental publi cado em 1922 faz uma descrição meticulosa dos grandes circuitos Manual antropologia jurídica 001277indd 157 9112010 102020 158 159 marítimos kula que consistem em transportar nos arquipélagos me lanésios colares e pulseiras de conchas Mauss em Ensaio sobre o dom publicado em 1923 faz uma análise do kula e do potlatch por meio do qual não apenas visualiza um processo generalizado de troca simbólica mas também começa a extrair a existência de leis de reciprocidade dom e contradom e de comunicação que são próprias da cultura em si e não apenas da cultura melanésia Mauss procura esclarecer os fundamentos de uma moral e de uma economia cujos vínculos entre sujeitos são constituídos e reafirmados por meio da troca de objetos Coloca em destaque a tensão no caráter voluntário e ao mesmo tempo obrigatório das prestações que compõem esse sistema de trocas Segundo ele de todos esses temas muito com plexo e desta multiplicidade de coisas sociais em movimento queremos considerar um único traço profundo mas isolado o caráter voluntário por assim dizer aparentemente livre e gratuito e no entanto imposto e interessado dessas prestações Elas revestiram quase sempre a forma do presente da prenda oferecida generosamente mesmo quando nesse gesto que acompanha a transação não há senão ficção formalismo e mentira social e quando há no fundo obrigação e interesse econômico MAUSS 1974 41 Ao abordar o regime do dom nas sociedades melanésias e polinésias Mauss 1974 41 confirma que a vida material e moral a troca fun ciona nestas sociedades sob uma forma desinteressada e ao mesmo tempo obrigatória Além do mais esta obrigação se exprime de modo mítico imaginário ou se assim preferirmos simbólico e coletivo ela assume o aspecto do interesse ligado às coisas trocadas estas nunca ficam completamente desligadas daqueles que as trocaram a comunhão e a aliança que estabelecem são relativamente indissolúveis Na realidade este símbolo da vida social a permanência da influência das coisas tro cadas não faz senão traduzir bastante diretamente a maneira como os subgrupos destas sociedades segmentadas de tipo arcaico estão per manentemente imbricados uns nos outros e sentem tudo dever uns aos outros Mauss 1974 42 tenta decifrar o regime do dom ao estabelecer a seguinte pergunta Qual a regra de direito e de interesse que nas so ciedades ditas primitivas ou arcaicas faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente restituído Que força há na coisa dada que faz com que o donatário a retribua Maurice Godelier 2001 21 entende Manual antropologia jurídica 001277indd 158 9112010 102020 158 159 que a abordagem de Mauss pode ser resumida da seguinte fórmula O que faz com que em tantas sociedades em tantas épocas e em contextos tão diferentes os indivíduos se sintam obrigados não somente a dar ou quando algo lhes é dado a receber mas também obrigados quando recebem a restituir o que lhes foi dado seja a mesma coisa ou coisa equivalente seja algo de mais ou de melhor Para responder a essas questões Mauss procura demonstrar que a análise de um dom qualquer que seja ele exige sempre que se consi dere a relação entre aquele que dá doador e aquele que recebe dona tário Ao considerar essa relação verifica que o regime do dom envolve três tipos de obrigações de dar de receber e de restituir Alerta porém que nessas diversas formas de prestações e trocas há algo mais do que coisas trocadas Aponta para a existência no seio das mais diversas formas de trocas e prestações de uma mesma força encarnandose na quelas três obrigações que precipita as pessoas e as coisas em um mo vimento que cedo ou tarde traz as coisas de volta às pessoas e faz coincidir o ponto de chegada de todos os dons e contradons com seu ponto de partida Vale dizer no regime do dom as coisas prolongam as pessoas e as pessoas se identificam com as coisas que possuem e que trocam O re gime do dom descreve mundos em que tudo vai e vem como se houves se troca permanente de uma matéria espiritual compreendendo coisas e homens Para Mauss o vínculo por meio das coisas é um vínculo da alma pois a própria coisa possui uma alma Assim uma vez dada a coisa leva com ela algo das pessoas e se esforça para retornar cedo ou tarde para aquela que pela primeira vez tinha cedido Ao partilhar da crença de que a coisa possui um espírito é possível acreditar na expli cação do por que a coisa volta ou seja na obrigação de retribuir a coisa recebida Mas segundo Godelier 2001 21 22 essa crença não expli ca a obrigação de dar 21 Obrigação de dar Mauss 1974 58 para explicar o por que se dá estabelece a hipó tese segundo a qual o que obriga a dar é precisamente o fato de que dar obriga Para ele recusarse a dar deixar de convidar ou recusarse a receber equivale a declarar guerra é recusar a aliança e a comunhão Conforme especifica Godelier 2001 156 nas sociedades com uma economia e uma moral do dom a troca não é apenas um meca Manual antropologia jurídica 001277indd 159 9112010 102020 160 161 nismo que faz circular bens e pessoas É também mais profundamente a condição da produção e reprodução das relações sociais que constituem o arcabouço específico de uma sociedade e caracterizam os laços que se tecem entre os indivíduos e os grupos A obrigação de dar significa portanto produzir uma relação de aliança entre indivíduos e entre grupos significa criar possibilidades para continuar a existir O domínio do dom é constituído por tudo aquilo cuja partilha é possível e pode gerar obrigações e dívidas para o outro A coisa dada ultrapassa o uni verso dos objetos materiais porque pode ser uma dança uma mágica um nome um ser humano um apoio em um conflito ou uma guerra O dom e o contradom do mesmo objeto constituem a maneira mais simples mais direta de produzir solidariedade e dependência preser vando ao mesmo tempo o status das pessoas em um mundo em que a maior parte das relações sociais é produzida e reproduzida pela insti tuição de laços de pessoa a pessoa O dom seguido do contradom do mesmo objeto constitui assim a molécula elementar de qualquer prá tica do dom o deslocamento mínimo que é preciso efetuar para que esta prática adquira algum sentido Dar significa que uma pessoa transfere voluntariamente algo que lhe pertence a uma outra pessoa supondo que esta não pode deixar de aceitar O dom é esse ato voluntário pessoal ou coletivo que pode ou não ter sido solicitado por aquele que o recebe O dom torna solidários os dois parceiros e ao mesmo tempo faz com que um deles donatário fique obrigado ao outro doador O dom instala o donatário em uma posição socialmente inferior e dependente enquanto ele não puder dar por sua vez mais do que recebeu ou algo equivalente Dar institui simultaneamente uma relação dupla entre aquele que dá e aquele que recebe a uma relação de solidariedade quem dá partilha o que tem e b uma relação de superioridade aquele que recebe o dom e o aceita fica em dívida para com aquele que deu Dar instaura assim uma diferença e uma desigualdade de status entre doador e donatário desigualdade que em certas circunstâncias pode transfor marse em hierarquia No mesmo ato dar portanto estão contidos dois movimentos opostos a o dom aproxima os protagonistas porque é partilha e b o dom afasta socialmente os protagonistas porque transforma um deles em devedor do outro O dom é em sua própria essência uma prática ambivalente que une forças contrárias Ele pode ser ao mesmo tempo ato de generosidade ou ato de violência mas Manual antropologia jurídica 001277indd 160 9112010 102020 160 161 nesse caso uma violência disfarçada de gesto desinteressado GODE LIER 2001 22 23 Mauss procurou saber por que as sociedades primitivas são carac terizadas por uma economia e uma moral do dom e sua resposta é que essas sociedades só puderam emergir quando diversas condições se combinaram a a primeira era necessário que as relações pessoais desempenhassem um papel preponderante na produção das relações sociais que constituíam o arcabouço da sociedade b a segunda era preciso também que essas relações fossem tais que os indivíduos e os grupos engajados tivessem todo o interesse para se reproduzir e para reproduzilas em se mostrar desinteressados c a terceira finalmente era preciso estabelecer que o interesse em dar em mostrarse desinte ressado residia em um caráter fundamental do dom o fato de que nessas sociedades o que obriga a dar é o fato de que dar obriga 22 Obrigação de restituir Conforme Godelier 2001 27 28 as três condições do dom antes indicadas eram suficientes para explicar por que se dá mas eram insu ficientes para explicar por que se retribui Isso teria levado Mauss a estabelecer uma quarta condição suplementar que estaria na crença de que as coisas dadas têm uma alma que as leva a voltar para a pessoa que primeiramente as possuiu e deu Assim para explicar a obrigação de restituir Mauss invoca a existência de um espírito na coisa que leva aquele que recebe a retribuir tudo se passa como se a explicação pela existência de uma regra de direito e de interesse seja a seus olhos in suficiente e por isso necessita acrescentar uma dimensão religiosa Como se nota a solução proposta para a obrigação de restituir está na área dos mecanismos espirituais das razões morais e religiosas Nesse sentido diz Mauss 1974 53 O mais importante entre os mecanismos espirituais é evidentemente aquele que obriga a restituir o presente dado Ora em nenhum lugar a razão moral e religiosa des sa obrigação é mais aparente do que na Polinésia Basta estudála mais particularmente e veremos mais detalhadamente que é a força que leva a restituir a coisa recebida A solução portanto repousa nas crenças que emprestam às coisas uma alma um espírito que as leva a voltar a seu lugar de nascimento Nessa trilha ao analisar o conceito polinésio de hau Mauss 2001 63 64 faz referência ao depoimento de Tamati Ranaipiri sábio maori Manual antropologia jurídica 001277indd 161 9112010 102020 162 163 Vou falarlhe do hau Suponha que o senhor possui um determinado artigo taonga e que me dê esse artigo o senhor me dá sem preço fixo Nós não negociamos a tal propósito Ora eu dou esse artigo a uma terceira pessoa que depois de algum tempo decide dar alguma coisa em pagamento utu presenteandome com alguma coisa taonga Ora esse taonga que ele me dá é o espírito hau de taonga que recebi do senhor e que dei a ele Os taonga que recebi por esses taonga vindos do senhor tenho que lhe devolver Não seria justo tika de minha parte guardar esses taonga para mim quer sejam desejáveis rawe ou desagradáveis kino Devo dálos ao senhor pois são um hau de taonga que o senhor me havia dado Se eu conservasse esse segundo taonga para mim isso poderia trazerme um mal sério até mesmo a morte Assim é o hau o hau da propriedade pessoal o hau dos taonga o hau da floresta Segundo Mauss o depoimento de Tamati Ranaipiri revela a chave que permite desvendar o problema do hau espírito das coisas porque esclarece que a obrigação de restituir repousa no fato de que a coisa recebida não é inerte Mesmo abandonada pelo doador ela ainda é algo dele Por meio dela ele tem ascendência sobre o beneficiário No fundo é o hau que quer voltar a seu lugar de nascimento ao santuário da floresta e do clã e ao proprietário No direito maori o vínculo de direito víncu lo por meio das coisas é um vínculo da alma pois a própria coisa tem uma alma animada e por causa disso ela tende a voltar a seu lar de origem ou a reproduzir para seu clã e para o solo do qual saiu um equivalente que a substitui Mauss foi censurado muitas vezes por se deixar fascinar por essa explicação míticoreligiosa do fenômeno por não ter tentado reconstruir o fundamento sociológico para explicar a obrigação de restituir Godelier 2001 157 observa que as coisas dadas não se deslocam sozinhas não se deslocam por elas mesmas são colocadas em movimen to pela vontade dos homens mas essa vontade é ela mesma animada por forças subjacentes Segundo ele a lógica do hau fica mais evidente quan do o dom de uma coisa é seguido por um contradom que devolve ao doador inicial a mesma coisa que tinha dado Essa ida e volta da mesma coisa parece desprovida de sentido principalmente quando a coisa é devolvida imediatamente porque parece que foi trocada por nada Ocor re que o objeto que retorna a seu proprietário inicial não é devolvido ele é dado de volta E no curso de sua ida e volta o objeto não se deslocou por nada Muitas coisas se passaram graças ao seu deslocamento Duas relações sociais idênticas mas em sentido inverso foram produzidas Manual antropologia jurídica 001277indd 162 9112010 102020 162 163 ligando assim dois indivíduos ou dois grupos em uma dupla relação de dependência recíproca Enfim a lógica do hau permitiria perceber que existe na coisa dada uma força que se exerce sobre aquele que a recebe obrigandoo a restituir Essa noção aparece de forma bastante acentuada na obrigação de fazer dons aos deuses 23 Quarta obrigação Mauss 2001 69 menciona uma quarta obrigação que desempenha um importante papel nesse sistema de trocas de dons e contradons Tratase da obrigação de fazer dons aos deuses e aos espíritos dos mor tos As oferendas e os sacrifícios constituem obrigações desse tipo mas o sacrifício possui a força de exercer uma coação maior sobre os deuses de fazer com que devolvam mais do que receberam Os deuses e os es píritos dos mortos são os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo motivo pelo qual com eles é mais necessário trocar e mais perigoso não trocar Mas com os deuses e os espíritos dos mortos é mais fácil e mais seguro trocar Mauss 2001 73 entende que a destruição sacrifical tem como objetivo precisamente ser um donativo necessariamente retribuído o sacrifício portanto seria um contrato ou aliança entre os homens e os deuses Os deuses ademais são mais generosos do que os homens por que dão uma coisa grande a vida a fertilidade a abundância em troca de uma pequena Assim aqueles homens que dão muito mais do que lhes foi dado tanto que jamais será possível restituirlhes elevamse acima dos outros homens e são um pouco como os deuses ou pelo menos deles se aproximam A prática do dom estendese portanto além do mundo humano e tornase elemento essencial de uma prática religiosa ou seja das relações entre os humanos os espíritos e os deuses porque todos povoam o mesmo universo O imaginário assim adquire força porque se torna crença norma de comportamento e fonte de moral A crença na alma das coisas amplifica mas também engrandece as pessoas e as relações sociais porque as sacralizam Se as coisas têm uma alma é porque as potências sobrenaturais deuses ou espíritos vivem nelas e circulam com elas entre os homens ligandose ora a uns ora a outros Há sempre li gações por meio das coisas que circulam entre as pessoas e entre estas e os deuses Manual antropologia jurídica 001277indd 163 9112010 102020 164 165 Como se verá adiante a obrigação de fazer dons aos deuses me diante a destruição sacrifical assemelhase em certos aspectos ao po tlatch uma forma evoluída de prestação total 3 SISTEMA DE PRESTAÇÕES TOTAIS Conforme Mauss 2001 55 56 o sistema de prestações totais possui as seguintes características a primeira o contrato é estabelecido não entre indivíduos mas entre coletividades ou pessoas morais clãs tribos famílias que se obrigam mutuamente e eventualmente defrontamse opõemse e enfrentamse em grupos ou por intermédio de seus chefes ou dos dois modos ao mesmo tempo b segunda os objetos das trocas não são exclusivamente bens e riquezas coisas economicamente úteis são sobretudo cortesias festins ritos serviços militares mulheres crianças danças nos quais o mercado é apenas um momento e a circu lação de riquezas somente um dos termos de um contrato mais geral e mais permanente c terceira essas prestações e contraprestações eram contratadas de uma forma antes voluntária através de dádivas presen tes embora fossem no fundo rigorosamente obrigatórias sob pena de guerra privada ou pública O sistema de prestações totais é composto de duas categorias de prestações totais a não antagonista nessa categoria os dons e con tradons não assumem a forma de rivalidade essa é a forma mais antiga e evolui para formas cada vez mais competitivas b antagonista é um modo evoluído de prestação total que culmina no potlatch em que pre dominam a rivalidade a competição e o antagonismo Mauss toma como modelo das prestações totais não antagonistas as trocas praticadas nas sociedades divididas em metades complementares como as tribos aus tralianas e as norteamericanas nas quais os ritos os casamentos as sucessões nos bens os laços de direito e de interesse as categorias mi litares e sacerdotais tudo é complementar e supõe a colaboração das duas metades da tribo Nessas sociedades cada metade depende da outra para sua própria reprodução ou seja a reprodução de uma das metades é condição imediata da reprodução da outra As formas não antagonistas possuem as seguintes características a dons e contradons criam um estado de endividamento e de depen dência mútuo que oferece vantagens para cada uma das partes b a coisa ou a pessoa dada não é alienada c dar é transferir uma coisa ou uma pessoa da qual se cede o uso mas não a propriedade d um dom Manual antropologia jurídica 001277indd 164 9112010 102020 164 165 por isso cria uma dívida que um contradom equivalente não pode anu lar e a dívida obriga a dar de volta mas dar de volta não é restituir é dar por sua vez Para Godelier 2001 224 Mauss foi o primeiro a ressaltar a im portância do dom das trocas de dons no funcionamento das sociedades humanas antigas ou modernas ocidentais ou não Foi o primeiro a dis tinguir claramente dois tipos de dons os dons e contradons não antago nistas e os dons antagonistas que batizou com o termo potlatch Ele su geriu que os dons antagonistas eram uma forma transformada dos dons não antagonistas uma forma em que a rivalidade a luta por riquezas predominam sobre o ato de partilha A seus olhos o potlatch não poderia ter caracterizado as primeiras formas de organização da sociedade hu mana foi uma instituição que se desenvolveu mais tarde a ponto de às vezes marcar toda a economia e a moral de uma sociedade 31 Potlatch Potlatch é uma palavra originária de uma língua dos índios ameri canos que significa dom de caráter sagrado que constitui para quem o recebe um desafio a dar um contradom maior ou equivalente No potlatch predomina a rivalidade a competição e o antagonismo que em deter minado número de casos não se trata sequer de dar ou de restituir mas de destruir Nesse sentido o potlatch assemelhase ao sacrifício dom aos deuses porque sacrificar é oferecer destruindo o que se oferece Em 1884 o potlatch dos índios americanos foi proibido por uma lei apresen tada como emenda ao Indian Act de 1876 que o considerou uma exces siva ou descontrolada dilapidação de bens Houve protestos por parte dos antropólogos que viram na proibição uma clara manifestação de etnocentrismo ou seja uma supervalorização da cultura europeia e uma total ignorância a respeito da cultura indígena O Ensaio sobre o dom é dedicado essencialmente à análise do potlatch considerado uma forma evoluída da prestação total forma do tipo anta gonista porque nela predomina o princípio da rivalidade A essência do potlatch é a obrigação de dar Dar distribuir gastar aparece nessa ló gica não apenas como forma de adquirir ou aumentar a honra e o pres tígio mas também como uma forma de humilhar aquele que recebe e não pode restituir Vale dizer o objetivo do potlatch é colocar aquele que recebe em situação de inferioridade permanente substituir relações recíprocas instáveis por relações hierárquicas estáveis Manual antropologia jurídica 001277indd 165 9112010 102021 166 167 Um chefe deve dar pois ele só conserva sua autoridade sobre a tribo só mantém sua posição entre os demais chefes se provar que é visitado e favorecido pelos espíritos e pela fortuna Mas ele só pode provar essa fortuna gastandoa distribuindoa e com isso humilhando os outros colocandoos à sombra de seu nome É precisamente o ato de dar e de dar mais do que os outros que conta senão é o fracasso Como vários chefes aspiram ao mesmo tempo ao mesmo título ou à mesma posição e como nenhum deles quer nem pode confessarse imediatamen te vencido cada um tem de se esforçar para dar mais do que os outros se não quiser perder seu prestígio sua honra e sua fama No potlatch prevalece o princípio da rivalidade motivo pelo qual nele se dá alguma coisa dom para esmagar o outro Por isso no po tlatch se dá muito para tornar mais difícil ou impossível para aquele que recebe restituir o que recebeu Tratase de colocar o outro em dí vida de modo quase permanente de fazer com que perca seu prestígio publicamente Agindo assim o doador pode afirmar pelo máximo de tempo possível a própria superioridade Por essas razões Mauss 2001 57 sublinha que o potlatch é antes de tudo uma guerra uma luta dos nobres para garantir uma hierarquia entre eles da qual seu clã tirará proveito mais tarde O potlatch é assim uma estratégia para conquistar uma posição validar um título manter a fama ou o prestígio provar a fortuna e a nobreza cujo critério para isso é justamente o ato de dar e de dar mais do que os outros Dar é assim manifestar superioridade e aceitar sem retribuir ou sem retribuir mais é subordinarse tornarse servidor apequenarse No potlatch paradoxalmente o ato de dar manifesta a intenção de romper a reciprocidade dos dons de quebrála em proveito próprio Dessa forma vai surgindo uma nova hierarquia baseada na riqueza o indivíduo progride e faz progredir a família na escala social Conforme observa Godelier 2001 223 224 nas sociedades de trocas competitivas de dons e contradons de riquezas o objetivo decla rado é permitir que apenas alguns indivíduos e alguns grupos tenham acesso a posições títulos categorias postas em competição Isso signi fica que o número de títulos categorias ou posições deve ser amplamen te inferior ao número de grupos e indivíduos que se enfrentam Esse fato a raridade relativa dos bens políticos em relação ao número de participantes tem por consequência que aqueles que entram no jogo com o objetivo de ir até o fim e ganhar são socialmente obrigados a dar Manual antropologia jurídica 001277indd 166 9112010 102021 166 167 sempre mais que os outros ou a dar objetos muito mais raros mais preciosos que os dos outros Nesse tipo de sociedade é difícil talvez até impossível para a maio ria dos indivíduos e dos grupos não entrar no jogo dos dons e contradons ou sair dele Só conseguem escapar aqueles que por sua posição elevada estão situados acima da arena ou aqueles que por sua condição inferior ou servil são excluídos por baixo Para os outros querer escapar é per der a honra a sua e a do grupo que representam O dom encerra assim uma violência que não é apenas aquela dos indivíduos pois tem origem além deles nas relações sociais que implicam a luta de riqueza pelo poder e pela reputação O dom contém essa violência no sentido duplo do ter mo Ele a retém em si e a mantém dentro de certos limites permitindo porém que se manifeste publicamente politicamente 32 Kula Malinowski 1978 71 72 como visto entende que o kula é um sistema de comércio dotado de uma enorme variedade de aspectos as sociados a inúmeras atividades É um fenômeno complexo porque compreende diversas ramificações e interrelações É uma forma de troca bastante ampla porque praticada por comunidades localizadas num extenso círculo de ilhas que formam um circuito fechado do extremo oriental da Nova Guiné Ao longo dessa rota artigos de dois tipos via jam constantemente em direções opostas No sentido horário movimen tamse os colares feitos de conchas vermelhas No sentido oposto mo vemse braceletes feitos de conchas brancas Esses artigos viajando em seu próprio sentido no circuito fechado ao se encontrarem no caminho são trocados uns pelos outros Em cada ilha e em cada aldeia alguns homens participam do kula ou seja recebem os artigos conservamnos consigo durante algum tempo e por fim passamnos adiante Cada um dos participantes rece be periodicamente um ou vários braceletes de concha ou colar de conchas que devem entregar a um de seus parceiros do qual recebe em troca o artigo oposto Assim ninguém jamais conserva nenhum artigo consigo por muito tempo O fato de que uma transação seja consumada não significa o fim da relação estabelecida entre os parceiros porque o kula implica um sistema de trocas ininterruptas No kula coisas e pessoas tomam o lugar umas das outras e essas transferências produzem entre os indivíduos e grupos que são seus Manual antropologia jurídica 001277indd 167 9112010 102021 168 169 protagonistas relações sociais particulares fontes de um conjunto de direitos e obrigações recíprocos O interesse das pessoas que praticam o kula não é se encontrarem frente a frente para trocar bens equivalentes o que elas querem é algo maior é criar dívidas e dívidas que durem o maior tempo possível a fim de acumular prestígio e engrandecer o nome Para Mauss 2001 83 o kula é uma espécie de grande potlatch um sistema de comércio intertribal e intratribal que associa um grande número de sociedades Esse comércio consiste em trocas aparentemen te desinteressadas mas a serviço do renome honra e prestígio dos doadores trocas em que reina a rivalidade entre indivíduos sequiosos de receber como dom o mesmo objeto precioso Nesse sistema de co mércio a troca cerimonial dos artigos uns pelos outros é o aspecto fundamental e central Associadas a ele e realizadas à sua sombra porém existem numerosas características e atividades secundárias como e o caso do comércio comum necessário à economia tribal Mauss enfoca particularmente os braceletes e colares de conchas porque a seus olhos constituem o objeto essencial dessas trocas ou doações Ele resume o princípio que os rege os braceletes circulam de oeste para leste e os colares de leste para oeste A originalidade do jogo é que um bracelete nunca pode ser trocado por um bracelete e um colar por um colar Um bracelete é trocado por um colar um colar por um bracelete com a condição de que os dois sejam da mesma categoria e de valor equivalente Os colares símbolo feminino e os braceletes sím bolo masculino tendem um para o outro como o macho para a fêmea Godelier 2001 144 anota que o sistema global do kula é um jogo e para que um indivíduo ganhe nesse jogo é preciso que ele possua um kitoum objeto de grande valor e que receba um outro equivalente Mas seu ganho não está aí Está antes de tudo na reputação que ele ganha e também nos presentes os dons suplementares que sua habi lidade ao negociar angaria Os objetos do kula não são portanto coisas indiferentes Como observa Mauss 2011 88 cada um pelo menos os mais valiosos e os mais cobiçados tem um nome uma personalidade uma história ou até mesmo um romance O objetivo principal dessas troças de dons não é a acumulação de riqueza mas o aumento da repu tação do prestígio o engrandecimento do nome do doador A peça é dada com a condição de que o intermediário a transmita para um outro e assim sucessivamente até que chegue ao parceiro distante ao extremo da rota do kula Manual antropologia jurídica 001277indd 168 9112010 102021 168 169 Segundo Godelier 2001 142 a coisa dada no kula não é nem vendida nem comprada nem penhorada nem alugada Ela é ao mesmo tempo propriedade e posse mas apenas para os dois parceiros distan tes situados nos dois extremos da rota e que têm todas as chances de nunca se conhecerem pessoalmente Eles conhecem um do outro apenas o nome Quanto aos parceiros intermediários a coisa só é recebida com a condição de que seja transmitida a um terceiro e todos no kula sabem que a qualquer momento o doador do objeto poderá reclamálo que brando assim uma das rotas do kula O que interessa às pessoas porém não é recuperar rapidamente o seu objeto exceto em circunstâncias excepcionais Também não é substituílo rapidamente por outro da mesma categoria O objetivo é lançálo o mais longe possível e deixálo circular o maior tempo possí vel para que leve com ele o nome de seu doador original para que o engrandeça e para que o objeto se carregue cada vez mais de vida de valor enriquecendose de todos os dons e de todas as dívidas que sua circulação engendra ou anula Assim quanto mais o objeto é oferecido e reoferecido mais ele se afasta de seu proprietário de origem e mais o nome deste último cresce Não existe o retorno do objeto à origem pois o objetivo é que um objeto de igual categoria mas diferente venha a ocupar o seu lugar Hoje diz Godelier 2001 147 é o europeu que domina e ao mesmo tempo subverte o kula Ele compra conchas transportaas de barco até o seu ateliê para polilas usando mão de obra assalariada e as transforma em objetos de valor kitoum Uma parte desses kitoum é vendida aos turistas e aos habitantes da ilha mas alguns ele lança no kula beneficiandose de todos os dons suplementares que tradicio nalmente acompanham a circulação dos braceletes e colares Seu ob jetivo não é de modo algum aquele do kula tradicional busca de prestígio e renome mas simplesmente a acumulação de lucro a ob tenção de riqueza Alguns princípios do kula como se verá adiante podem ser reen contrados nos grandes circuitos nacionais e internacionais que envolvem transferências de objetos valiosos Esses grandes circuitos aparecem na forma de exposições de objetos de determinada cultura de um povo de uma época ou lugar Tal como o kula esses circuitos têm uma função social extraordinária que consiste em aproximar os povos promover a paz e evitar a guerra Manual antropologia jurídica 001277indd 169 9112010 102021 170 171 4 DOM E GUERRA Mauss 1974 182 183 observa que em todas as sociedades que nos precederam e que ainda nos rodeiam e mesmo em numerosos cos tumes de nossa moralidade popular não existe meio termo confiase ou desconfiase inteiramente depor as armas e renunciar à sua magia ou dar tudo desde a hospitalidade fugaz até às filhas e bens Foi em estado desse gênero que os homens renunciaram a seu ensinamento e aprenderam a empenharse em dar e retribuir É que eles não tinham escolha Quando dois grupos de homens se encontram podem fazer apenas duas coisas ou afastarse e caso suspeitem um do outro desa fiar e lutar ou tratarse bem Até direitos bem próximos de nós até economias não muito distanciadas da nossa são sempre estrangeiros com os quais se contratam mesmo quando são aliados É opondo a vontade de paz contra bruscas loucuras que os povos conseguem substituir pela aliança pela dádiva e pelo comércio a guerra o isola mento e a estagnação Para Mauss 1974 183 o que funda a sociedade é o estabeleci mento de um sistema de trocas no qual os homens podem oporse sem massacrarse e darse sem sacrificaremse uns aos outros O sistema de trocas portanto não implicaria uma estrutura de submissão mas de reciprocidade Nessa trilha a antítese do dom não seria o mercado mas a ausência de relações motivo pelo qual alguns autores entendem que Mauss não confere à guerra qualquer coeficiente de sociabilidade por se tratar de um fenômeno que implica o isolamento e a estagnação O sistema de troca implica a construção da vida social mas a troca não implica apenas uma relação contratual mais que isso a troca implica uma aliança que garante a paz Segundo LéviStrauss 2001 existiria uma transição contínua da guerra às trocas As trocas representariam um processo ininterrupto de dons recíprocos que realiza a passagem da hostilidade à aliança da angústia à confiança do medo à amizade Nessa perspectiva a guerra e o comércio não poderiam ser estudados separadamente por constituírem dois aspectos de um mesmo processo social As trocas comerciais re presentariam guerras potenciais pacificamente resolvidas enquanto as guerras seriam as consequências de transações comerciais fracassadas Para Godelier 2001 24 o dom pode se opor à violência direta à subordinação física material e social mas também ser um seu substituto E são mais que abundantes os exemplos de sociedades em que os indiví Manual antropologia jurídica 001277indd 170 9112010 102021 170 171 duos incapazes de honrar suas dívidas se veem obrigados a se colocar ou a colocar seus filhos como escravos acabando por se transformar na propriedade na coisa daqueles que lhes tinham concedido seus dons De qualquer modo na sociedade contemporânea é possível enxer gar inúmeras práticas que se assemelham ao potlatch ao kula aos dons antagonistas e não antagonistas Mauss 1974 42 aliás reconhece que os princípios da economia do dom funcionam ainda nas nossas socie dades de maneira constante e por assim dizer subjacente Isso signifi ca que os princípios do dom não foram totalmente erradicados pela dinâmica do mercado capitalista a presença da lógica do dom pode ser reconhecida não apenas no âmbito da filantropia ou do trabalho volun tário como se verá adiante mas também no universo das relações mercantis que se estabelecem cotidianamente entre as pessoas físicas ou jurídicas Essas relações inicialmente cordiais podem porém resul tar no rompimento do princípio da reciprocidade e com isso provocar disputas como as que ocorrem perante os Tribunais ou até mesmo o estado de guerra entre os contratantes Enfim a troca pacífica pode transformarse em troca de hostilidades Manual antropologia jurídica 001277indd 171 9112010 102021 173 Manual antropologia jurídica 001277indd 172 9112010 102021 173 XiV dom nA SociedAde contemporâneA 1 DOM FATO SOCIAL TOTAL Para Godelier 2001 160 161 o dom como prática real é um elemento essencial da produçãoreprodução tanto das relações sociais objetivas como das relações pessoais subjetivas e intersubjetivas que são seu modo concreto de existência O dom como prática faz parte simultaneamente da forma e do conteúdo dessas relações É nesse con texto que o dom como ato e também como objeto pode representar significar e totalizar o conjunto das relações sociais do qual é ao mesmo tempo instrumento e símbolo E como os dons vêm das pessoas e os objetos dados são inicialmente ligados depois desligados para serem outra vez ligados a pessoas os dons encarnam tanto as pessoas quanto suas relações É nesse sentido e por essas razões que o dom é um fato social total justamente porque contém e une ao mesmo tempo algo que vem das pessoas e algo que está presente em suas relações Tanto nas sociedades primitivas como nas sociedades ocidentais o número das trocas do tipo potlatch é bastante limitado diante dos números bastante expressivos de dons e contradons recíprocos prati cados para fomentar e consolidar solidariedades e não para desenvolver rivalidades entre indivíduos e grupos Mas em qualquer tipo de troca antagonista ou não antagonista aparecem manifestações mais ou menos ostensivas dos princípios da solidariedade da reciprocidade e da rivali dade e dependendo da situação um se destaca mais do que os outros Na sociedade ocidental é possível perceber fragmentos da economia e Manual antropologia jurídica 001277indd 173 9112010 102021 174 175 da moral do dom presentes em outras esferas que não a econômica como é o caso do dom entre amigos Mas também é possível verificar que o dom nas sociedades ocidentais ultrapassa a esfera da vida privada e das relações pessoais principalmente quando se institucionaliza a demanda social do dom por intermédio do Estado e de organizações não gover namentais 11 Dons entre amigos Mauss inicia o Ensaio sobre o dom com um poema da Eda escandi nava em que destaca alguns versos que fazem referência ao dom entre amigos Com armas e com roupas devem os amigos agraciarse cada um sabe por si próprio Os que trocam presentes mutuamente são ami gos todo o tempo se as coisas forem bem encaminhadas Devese ser amigo do amigo e dar presente por presente As relações entre amigos isto é o dom entre amigos são bastan te valorizadas nas sociedades ocidentais Entre amigos ajudase sem obrigação de retribuir mas sabendo que haverá reciprocidade porque os amigos partilham dãose uns aos outros Em suma a amizade é uma relação entre indivíduos que marcam seus sentimentos por gestos de ajuda mútua e através de trocas de dons de presentes Entre amigos dáse desinteressadamente sem esperar retorno imediato e sem se preocupar sequer com um retorno Conforme Godelier 2001 215 216 os dons entre amigos apenas engajam os indivíduos portanto não contribuem para a reprodução das estruturas de base da sociedade como ocorre nas relações de parentes co Em outras palavras os dons a ajuda entre amigos relacionamse com a esfera dos laços subjetivos entre indivíduos que se escolhem sem que sua escolha recíproca tenha outro motivo outra obrigação além da força de seus sentimentos a atração que suscitam e sentem um pelo outro Esses dons permitem entrever uma das razões pelas quais na cul tura ocidental os dons entre amigos continuam a existir e a ser valori zados enquanto outros tipos de dons obrigatórios porque necessários para reproduzir elementos fundamentais da sociedade tais como as relações de parentesco tendem a desaparecer O dom entre amigos permanece um paradigma forte na cultura ocidental individualista pois se apresenta como um ato individual espontâneo subjetivo altruísta não obedecendo a nenhuma obrigação coletiva a nenhuma coação social Manual antropologia jurídica 001277indd 174 9112010 102021 174 175 objetiva que não serve portanto para reproduzir em profundidade a sociedade Na cultura ocidental o dom entre amigos não é institucionalizado motivo pelo qual o direito temse mantido distante das relações que envolvem esses tipos de dons embora seja possível enxergar o dom voluntário não obrigatório no regime jurídico das doações dos em préstimos e dos testamentos Recentemente o mundo jurídico foi sen sibilizado pelas relações homoafetivas especialmente naqueles casos em que um dos parceiros falecia em virtude de ter contraído o vírus HIV O dom que o parceiro sadio prestou ao doente contribuiu e muito para que o Poder Judiciário em alguns casos reconhecesse a existência de uma aliança ou uma sociedade de fato entre eles e assim viabilizasse ao primeiro o direito à sucessão ou partilha As relações que envolvem parceiros do mesmo sexo ainda estão por ser definidas juridicamente mas indubitavelmente tratase de re lações que se aproximam das relações de amizade ou companheirismo como ocorre com as relações matrimoniais regidas não apenas pelo princípio do afeto mas sobretudo pelos princípios da solidariedade e da reciprocidade que às vezes transmudamse em princípio de rivali dade e de hostilidade O direito reconhece na relação de parentesco um valor que pode ser traduzido em pecúnia mas não estende esse reconhecimento à re lação de amizade Há também resistência no sentido de estender esse reconhecimento à relação entre parceiros do mesmo sexo Desse modo se uma pessoa falece em acidente causado por terceiro seus parentes e cônjuge têm direito à indenização pecuniária mas esse direito não é extensivo aos amigos ou ao parceiro Isso parece ilógico porque muitas vezes a relação de amizade ou a relação homoafetiva é mais estreita mais recíproca mais solidária mais afetiva e mais fraterna do que a relação de parentesco Vale dizer muitas vezes o sofrimento pela perda é mais forte no amigo ou no parceiro do que nos parentes De qualquer modo na sociedade capitalista com suas altas taxas de desemprego e exclusão os dons voluntários gratuitos e desinteressados vãose tornando necessários na equação de problemas sociais Aliás mes mo os dons gratuitos e desinteressados entre pessoas que não se conhecem já começam a aparecer como uma condição objetiva socialmente neces sária da reprodução da sociedade Nesse sentido ganha força o dom que na tradição cristã aparece na forma de uma virtude caritas considerada Manual antropologia jurídica 001277indd 175 9112010 102021 176 177 a mais importante entre todas as virtudes na qual está incluído o dom não antagonista totalmente gratuito e desinteressado Na cultura ocidental portanto o dom entre amigos toma assento ao lado de um outro dom fortemente privilegiado pela cultura ocidental cristã o dom por Cristo filho de Deus que dá a própria vida para remir os pecados dos humanos e salválos da danação eterna exemplo supremo do dom gratuito absoluto Caritas é um desdobramento desse dom 12 Dom e caritas Mauss 2001 76 observa que a esmola é o fruto de uma noção moral da dádiva e da fortuna por um lado e de uma noção do sacrifício por outro Há nesse sentido uma noção generalizada entre os povos segundo a qual os deuses que dão e retribuem estão lá para dar uma coisa grande em vez de uma coisa pequena Assim entre diversos povos existe o hábito de conceder presentes às crianças e aos pobres como forma de agradar os deuses e os espíritos Tratase da velha moral da dádiva transformada em princípio de justiça ou seja os deuses e os espíritos consentem que as partes que se lhes davam e que eram des truídas em sacrifícios inúteis sirvam para os pobres e as crianças Essa doutrina da caridade e da esmola espalhouse pelo mundo com o cris tianismo e o islamismo e penetrou no direito das sociedades ocidentais A legislação brasileira por exemplo estabelece que o dever jurí dico de prestar alimentos aos necessitados cabe não apenas à família do necessitado mas também ao Estado e à sociedade Além disso a expres são alimentos possui alcance e sentido mais amplos que os utilizados no uso cotidiano abrange não só o fornecimento de alimentação mas tam bém vestuário habitação educação lazer e tratamento médico O dever jurídico da sociedade de dar alimentos a quem necessita realizase mediante pagamento de tributos e contribuições especialmen te os inseridos nas fontes de custeio da Seguridade Social Há entretan to homens e mulheres que diretamente ou por meio de entidades não governamentais prestam auxílio ou concedem alimentos aos necessita dos movidos não por imposições legais mas por fatores religiosos morais ou éticos Quando alguém movido por um dever religioso ou moral presta auxílio ou dá alimento a um necessitado esse ato possui um conteúdo ético que se liga à noção de justiça como caritas a virtude que consiste Manual antropologia jurídica 001277indd 176 9112010 102021 176 177 na realização do preceito cristão fundamental ama o próximo como a ti mesmo Caritas é portanto amor O apóstolo Paulo estabelece a superio ridade de caritas sobre as outras virtudes Agora há fé esperança e caritas amor essas três coisas mas a caritas é a maior de todas Cor I 13 7 13 Caritas além de ser o vínculo que mantém ligados os membros da co munidade é a expressão da amizade dos homens com Deus A ideia de justiça como caritas encontra apoio na obra de filósofos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino Para esses filósofos a justiça corresponde a um ato de amor desinteressado algo semelhante à criação divina visto que Deus justo e misericordioso criou o mundo não para a sua glória mas como um ato de amor pela humanidade Praticar a justiça como caritas como um ato de amor desinteressado como a manifestação mais pura da autonomia da vontade ou livrearbí trio constitui um esplendor ético porque prescreve uma ação boa por si mesma amai como Deus vos ama Para Ferraz Jr 2002 222 223 a conclusão de Santo Agostinho dois Amores fizeram duas cidades a terrena fêla o amor de si até o desprezo de Deus a celeste fêla o amor de Deus até o desprezo de si esclarece que o amorcaritas tem o sentido de renúncia uma renúncia que não é privação mas plenitude O amor cristão não tem assim uma compensação no amor do outro mas na plenitude do amor divino E a plenitude do amor divino explica que um Deus onipotente ofereça o sacrifício de seu Filho pela salvação dos homens Essa dívida dos homens para com um Deus morto na cruz para salválos das consequências de seus atos da danação eterna é impagável Como diz Santo Tomas de Aquino o homem nada pode dar a Deus que já não lhe deva Ainda assim ele jamais quitará a sua dívida Caritas depende do livrearbítrio motivo pelo qual a pessoa pode por sua vontade livre recusarse a dar alimento à pessoa que não possui meios de prover a própria manutenção ou seja o ato de prestar ou não auxílio aos necessitados vinculase à autonomia da vontade advém portanto de normas que o sujeito dá a si mesmo Para que a justiça como caritas revele um ato de amor é necessário que o ato seja desinteressado e que estabeleça a sociabilidade dos homens São Tomás de Aquino entendia por essa razão que a justiça como amor só seria possível e realizável à medida que as pessoas fossem capazes de compartilhar suas vidas com outras pessoas A justiça como caritas é o dom cristão tratase de um dom subje tivo voluntário e desinteressado Esse dom mobiliza homens e mulheres Manual antropologia jurídica 001277indd 177 9112010 102021 178 179 de boa vontade que de maneira anônima e desinteressada praticam o amorcaritas por meio da doação ou do trabalho voluntário e com isso promovem as condutas tidas como convenientes e desejáveis A justiça como amor embora implique uma retribuição descompensada encontra na justiça divina a sua retribuição exemplar afinal quem dá aos pobres empresta a Deus algo semelhante à quarta obrigação descrita por Marcel Mauss Caritas mostra que na cultura ocidental o dom tornouse objeti vamente uma operação subjetiva pessoal íntima e individual Ele é a expressão e o instrumento de relações pessoais situadas além do mer cado e do Estado ou seja o dom continua a derivar de uma ética e de uma lógica que não são as do mercado e do lucro pelo contrário opõem se e resistem a elas O dom subjetivo se opõe é certo às relações co merciais mas carrega sempre os seus estigmas Ao idealizarse o dom desinteressado funciona no imaginário como o último refúgio de uma solidariedade de uma generosidade na partilha que teria caracterizado outras épocas da evolução da humanidade O dom tornase um portador de utopia Uma forma de utopia que as pessoas parecem não querer ver destruída pois acalenta esperanças em um futuro melhor neste ou em outro mundo 2 DOM E UTOPIA Maurice Godelier 2001 empreende como ele próprio diz uma nova análise do dom de seu papel na produção e reprodução do laço social de seu lugar e de sua importância mutáveis nas diversas formas de sociedade que coexistem hoje na superfície da terra ou que se suce deram no decorrer do tempo E empreende tal análise por um motivo específico porque o dom existe em todo lugar embora não seja o mes mo em toda parte Ele faz algumas incursões sobre a prática do dom na sociedade contemporânea especialmente sobre o regime das doações motivo pelo qual tomamos de empréstimo seus comentários para as articulações seguintes Godelier 2001 309 a 318 se pergunta Qual é nessa forma de sociedade capitalista que se imagina que deve durar eternamente o lugar das trocas Ainda existe nessa sociedade algo além da troca Aparentemente tudo ou quase tudo está à venda é passível de troca E como tudo o que se compra e se vende se compra e se vende por dinhei ro ter dinheiro tornouse a condição necessária para existir física e Manual antropologia jurídica 001277indd 178 9112010 102021 178 179 socialmente Qual o lugar do dom nessa sociedade movida pela troca em dinheiro A sociedade capitalista é uma sociedade cujo funcionamento sepa ra os indivíduos uns dos outros isolaos e apenas os promove opondo os uns aos outros É uma sociedade que libera como nenhuma outra o fez todas as forças todas as potencialidades adormecidas no indivíduo mas que também leva cada indivíduo a dessolidarizarse dos outros servindo ao mesmo tempo deles Essa sociedade só vive e prospera ao preço de um disfarce permanente de solidariedade E ela só imagina novas solidariedades se negociadas sob a forma de contrato Mas nem tudo é negociável Uma criança não assina um contrato para nascer Seria uma ideia absurda imaginar que isso fosse possível E seu absurdo mostra que o primeiro laço entre os humanos aquele do nascimento não é negociado entre as pessoas que ele envolve E é sobre esses fatos incontornáveis no entanto que a sociedade capitalista tende a silenciar A sociedade capitalista é dotada de uma lógica que implica acúmu lo de excluídos e aumento de desigualdades sociais Por causa desse contexto o dom generoso o dom sem retorno é solicitado de novo dessa vez com a missão de ajudar a resolver problemas da sociedade capitalista O dom de hoje passa não apenas pelas instituições governa mentais mas principalmente pelas organizações não governamentais utiliza a mídia burocratizase nutrese através das imagens da televi são de todas as desgraças de todos os males conjunturais ou duráveis que surgem nos quatro cantos do planeta Diante da amplidão dos problemas sociais e da incapacidade ma nifesta do mercado e do Estado de resolvêlos o dom está retornando voltando a ser uma condição objetiva socialmente necessária da repro dução da sociedade Não será o dom recíproco de coisas equivalentes também não será o dom potlatch pois aqueles a quem os dons serão destinados não têm sequer condições de retribuir o que recebe O dom caritativo está se institucionalizando como forma de conter o esfacela mento da vida social Essa institucionalização aparece nos programas dos governos como é o caso do programa Bolsa Família Aparece também por meio do Terceiro Setor isto é das organizações não governamentais que se dedicam ao combate à pobreza e à prestação de serviços na área de saúde educação e assistência social Essas organizações multiplicamse Manual antropologia jurídica 001277indd 179 9112010 102022 180 181 pelo mundo inteiro e muitas delas se dedicam à prática do dom carita tivo No Brasil estimase que existem cerca de 250 mil organizações não governamentais e que 2 milhões de pessoas são empregadas por elas Parte dos recursos dessas organizações provém de receita pública mas a maioria dos recursos se deve às contribuições de particulares Nos Estados Unidos o terceiro setor movimenta mais de 600 bilhões de dólares anualmente e absorve um contingente de 12 milhões de traba lhadores remunerados mais uma infinidade de pessoas que atuam como voluntárias Em países da Europa como Itália França e Alemanha o terceiro setor já movimenta anualmente mais de 4 do Produto Inter no Bruto PIB de cada país ASSIS 2004 324 Não obstante o acúmulo de riqueza a sociedade capitalista não consegue diminuir as imensas desigualdades sociais Para evitar catás trofes maiores o dom retorna e dessa vez para garantir a sobrevivên cia da sociedade capitalista A caridade está de volta agora de modo mais laico Não se apresenta apenas como uma virtude cristã como o gesto de um crente que acredita na virtude cáritas A caridade é vivida por crentes e não crentes como um gesto de solidariedade entre seres humanos Não se trata apenas do sofrimento do próximo é todo o so frimento do mundo que solicita a dádiva a generosidade daqueles que podem praticar o dom 21 Dom e excluídos A sociedade ocidental desde o século XIX trilha um caminho pelo qual se multiplicam os excluídos de um sistema econômico que para permanecer dinâmico e competitivo deve reduzir custos aumentar a produtividade e diminuir o número de empregados Essa forma de agir transformou a sociedade capitalista em uma sociedade do desemprego Um desemprego que se imagina provisório mas que para muitos tornase permanente Há ainda aqueles que nem conseguem empregar se O estudo da urbanização mostra que os pobres se dirigem para as grandes cidades na esperança de conseguir um emprego as chances de conseguilo porém são bastante remotas Mesmo o trabalho informal que de maneira precária cuida de incluir os excluídos vaise tornando cada vez mais escasso A sociedade capitalista é paradoxal visto que o emprego depende do bom desempenho da economia mas a economia para funcionar melhor precisa desempregar A substituição do homem pela máquina é Manual antropologia jurídica 001277indd 180 9112010 102022 180 181 visível em todos os setores da produção motivo pelo qual o desempre go é um fenômeno presente em todas as sociedades inclusive as tidas como mais desenvolvidas A economia portanto acaba sendo a principal fonte de exclusão do indivíduo Essa exclusão não é apenas do mercado de trabalho porque o indivíduo perde não apenas o emprego mas tam bém a dignidade e a cidadania porque é excluído da própria sociedade e as chances de ser incluído novamente são cada vez menores O sistema gera uma massa de excluídos e confia ao Estado a ta refa de incluílos novamente mas o Estado é incapaz de tal tarefa cuida portanto apenas de reduzir as fraturas mediante programas so ciais tendo em vista o controle das perturbações sociais Para isso o Estado quer mais tributos os empresários porém entendem que a carga tributária já é excessiva e pretende reduzila ainda mais Os pa radoxos e as contradições vãose acumulando É esse nó de paradoxos contradições e impotências que marca o contexto social e exige que se faça apelo ao dom cada vez mais e por toda parte O Estado não raras vezes estabelece o dom forçado quando cria novos impostos ditos de solidariedade obrigando a maioria a partilhar um pouco de suas sobras com os mais necessitados os desempregados que a economia capitalis ta descartou ou nem sequer aproveitou É nesse contexto no meio de milhões de desempregados que se multiplicam os movimentos dos sem terra dos sem teto dos sem cida dania enfim dos sem nada Nesse contexto também se multiplicam as organizações que exploram atividades ilícitas A luta pela sobrevivência induz o homem à utilização de meios violentos A ineficiência da políti ca social do Estado gera grande desilusão entre os excluídos pela au sência de alternativas ou possibilidades de recolocação pelas vias con sideradas lícitas O direito estatal vai perdendo o seu sentido e a sua utilidade naqueles territórios favelas periferias zonas de prostituição e de comércio de narcóticos que concentram os excluídos O processo de exclusão de uma parcela de cidadãos gera um pro cesso de inclusão às avessas que é reprimido pela polícia estatal na medida em que os excluídos buscam a qualquer custo a sua inclusão econômica no exercício de atividades consideradas ilícitas Nesse sen tido os jovens excluídos buscam a sua inclusão econômica na prostitui ção no narcotráfico no furto no roubo etc Vale dizer o processo de exclusão não cria apenas uma população de pobres mas também uma sociedade paralela com poder e justiça paralelos controlados por gru pos que não possuem vínculos com o poder estatal Manual antropologia jurídica 001277indd 181 9112010 102022 182 183 É também nesse contexto de milhões de desempregados que se cristaliza a demanda do dom a demanda da utopia na medida em que se generaliza o apelo a dar a partilhar Aparecem milhares de organi zações não governamentais para organizar a demanda e a oferta do dom Pedese a doador em potencial generoso solidário que partilhe não diretamente com o necessitado mas por meio de doações a essas orga nizações Para isso organizamse bazares leilões festas campanhas algumas na forma de shows televisionados como Criança Esperança Teletom e O Dia de Fazer a Diferença O dom na sociedade contemporâ nea extrapola a esfera dos sujeitos concretos tornase um ato entre sujeitos abstratos um doador que ama a humanidade e um donatário que encarna por alguns dias o tempo de uma campanha de donativos a miséria do mundo Esses grandes circuitos do dom colocam em outro patamar o regime jurídico das doações e a própria capacitação do pro fissional do direito 211 A demanda do dom A caridade está de volta e ela ainda é ofensiva para quem a aceita Para muitos dos que estão passando necessidade é humilhante estender a mão Por esse motivo é preciso apelar para as organizações e figuras públicas para que peçam pelos necessitados que organizem campanhas e apareçam na mídia Muitos se aproveitam dessas situações para me lhorar suas próprias contas Nesse sentido já se chegou ao limite de pedir uma Comissão Parlamentar de Inquérito CPI para investigar contas de organizações não governamentais e o Ministério Público tem motivos para desconfiar de alguns dirigentes de organizações religiosas Existem também aqueles que entendem que muitas figuras públicas se aproveitam das campanhas para fazer marketing pessoal para aumen tar o prestígio a honra e a fama nesse circuito moderno do dom O uso da mídia transformou a caridade em um jogo televisionado fenômeno que imprime à coleta de dons algumas das características do potlatch na medida em que aparece o apelo a dar cada vez mais uma ci dade mais que a outra uma empresa sociedade empresária mais que a outra e o desejo de que o total de donativos supere a cada ano aquele que foi atingido no ano precedente Como no potlatch proclamase igual mente o nome das pessoas das cidades das empresas que se mostraram mais generosas Diversos programas da televisão brasileira vivem disso porque essa forma de generosidade melhora os índices de audiência e Manual antropologia jurídica 001277indd 182 9112010 102022 182 183 concede prestígio à rede de televisão e seus apresentadores e participan tes Há até um programa semanal de uma rede de televisão norteame ricana em que celebridades cantores humoristas atores etc represen tando associações de caridade jogam poker para recolher donativos Nas sociedades contemporâneas em que as relações entre os indi víduos são cada vez menos pessoais os dons conservam ainda frequen temente um caráter pessoal mas que às vezes não está ligado direta mente àqueles que são doadores e àqueles a quem os dons são destinados No palco da televisão aparecem indivíduos que representam virtualmente todos aqueles que vão beneficiarse dos dons geralmente crianças afetadas por uma doença genética são entrevistadas e suscitam a compaixão e o desejo de ajudar E ao lado delas estão os represen tantes das instituições figuras públicas ou celebridades que fazem apelo à generosidade da população O dom na sociedade contemporânea portanto ainda mantém al gumas características antigas assinaladas por Mauss a dons não an tagonistas quando se faz o apelo para doar desinteressadamente de forma anônima como caritas b dons antagonistas em que há concor rência competição para arrecadar mais quando se honra o nome da queles que deram os maiores donativos É óbvio que esses dons antago nistas são protagonizados por pessoas ricas Mesmo quando uma tragédia terremoto enchente se abate sobre um país classificado como subdesenvolvido esperase que os demais países doem e aqueles mais ricos devem doar mais e se não o fizerem perdem o prestígio O dom antagonista ou não antagonista aparece sempre como um ato voluntário e pessoal A inexistência dessas características transfor ma o dom em outra coisa em imposto por exemplo Talvez isso possa explicar por que muitas pessoas mesmo conscientes da utilidade dos tributos para os programas de assistência social dos governos clamam pela diminuição da carga tributária O dom forçado descaracteriza o dom transformao em exação Enfim ali onde o Estado é incapaz de promover justiça social e diminuir o número de excluídos resta apenas e tão somente a expecta tiva do dom caritativo É difícil explicar por que aqueles que têm tão pouco ainda se movem pelo dom são levados por um impulso de que é preciso doar ainda que seu status não lhe permita tanto Talvez porque a coisa dada de algum modo será restituída pela força do espírito que há nela ou talvez porque a coisa dada o foi aos deuses e os deuses re Manual antropologia jurídica 001277indd 183 9112010 102022 184 185 compensam o pouco com o muito Mas também é difícil explicar por que tantos ricos não conseguem encontrar ou reencontrar essa genero sidade tão antiga e presente em todas as sociedades é difícil explicar como tantos ricos se aprisionaram na fria razão do comerciante do banqueiro do capitalista É comum a essas pessoas entenderem que o fato da exclusão decorre da vontade do excluído daí a resposta fácil direta arrogante e estúpida quem necessita do dom é vagabundo O paradoxo dos paradoxos é que o dom representa uma defesa do sistema capitalista contra os próprios capitalistas Estamos assim inseridos em um mundo paradoxal do excesso e da escassez que é ao mesmo tempo barbárie e civilização A imensa concentração de riqueza além de sustentar o luxo de determinada classe social financia formas catastróficas de desperdício as aventuras imperialistas as guerras a contaminação ecológica a destruição da natureza Mas não podemos sucumbir porém a essa realidade Não chegamos ao estágio final da evolução da humanidade Essa situação pode não ser apenas estrutural mas pode ser o prelúdio o sinal de uma grande mudança de que certo modo de organização social já esgotou todas as suas possibilidades 22 Dom e objeto sagrado Mauss ao analisar os dons dos homens aos deuses aponta que nem todas as riquezas se trocam Nesse sentido distingue duas categorias de objetos a alienáveis aqueles que se devem e se podem dar ou trocar e b inalienáveis aqueles que não se devem dar nem trocar Assim o jogo de dons e contradons mesmo em uma sociedade com economia e moral do dom não invade toda a esfera do social Nesta como em outras esferas há coisas que não se pode dar nem trocar que é preciso guardar No geral essas coisas que precisam ser guardadas são objetos sagrados objetos preciosos Esses objetos não entram no circuito da troca São bens inalienáveis porque constituem uma parte essencial da identidade da nação tribo ou clã Os objetos sagrados são os mais preciosos constituem geralmen te peças de crenças importantes ou mesmo de algum culto As pessoas acreditam que esses objetos não apenas produzem riquezas em abun dância mas atraem outras Eles são excluídos das trocas mas seus be nefícios são dados trocados Tais objetos são intocáveis de onde o caráter de profanação que reveste a venda a estrangeiros colecionadores ou turistas de máscaras Manual antropologia jurídica 001277indd 184 9112010 102022 184 185 e outros objetos sagrados preciosamente conservados nos clãs Mas sempre se acha um indivíduo capaz de roubálos do próprio clã e vendê los em segredo por um punhado de dólares De onde também a obsti nação de missionários em destruir esses objetos muitas vezes até o último deles para extirpar a idolatria dos indígenas Destruição pú blica que é um outro tipo de profanação destinada a demonstrar que o deus dos missionários é o mais forte GODELIER 2001207 Na sociedade contemporânea é possível perceber grandes circuitos do dom de objetos inalienáveis Esses circuitos aparecem na forma de exposições de objetos raros remanescentes de determinado período ou de determinada cultura já desaparecida ou em vias de desaparecer Os objetos são lançados nesses grandes circuitos para promover e aumen tar o prestígio de seus proprietários circulam o mundo e por onde passam provocam admiração e reconhecimento Recentemente circula ram no Brasil objetos da antiga cultura chinesa cuja exposição recebeu a visitação de milhares de pessoas Esses grandes circuitos também colocam em outro patamar o regime jurídico do contrato de empréstimo e exigem do profissional do direito uma tecnologia mais apurada pois dependem da elaboração de vários contratos de caráter internacional empréstimo seguro transporte etc Tratase de um kula moderno porque tais objetos circulam pelo mundo mas retornam ao seu ponto de partida e por onde passam engrandecem a honra o prestígio e a reputação dos seus proprietários no exemplo o povo chinês Ocorre porém que algumas pessoas e até países costumam apossarse desses objetos inalienáveis que constituem patrimônio de um povo tribo ou nação Esses objetos são retirados dos seus proprie tários por meio da rapina do furto e do contrabando muitos são até negociados nos mercados e leilões dos grandes centros capitalistas Essa apropriação não ficou adstrita aos tempos do colonialismo recentemen te a curadora de um museu europeu foi surpreendida ao recepcionar objetos inalienáveis contrabandeados Daí o retorno da pergunta Exis tem limites ao uso do dinheiro na sociedade capitalista Em uma sociedade na qual quase tudo pode ser vendido ou com prado os próprios indivíduos não podem venderse nem serem vendidos ou comprados por terceiros Podemse contudo vender partes de si mesmo Além da força de trabalho é possível vender por exemplo o próprio sangue Esse tipo de comércio é praticado legalmente em diver sas partes do mundo inclusive nos países ditos desenvolvidos Uma mulher pode juridicamente alugar seu útero e tornarse mãe de aluguel Manual antropologia jurídica 001277indd 185 9112010 102022 186 187 essa prática também é permitida em diversas partes do mundo civiliza do Esse processo de dissociação e comercialização de partes do ser humano pode ir mais longe haja vista que várias pessoas já venderam um dos seus rins inclusive mediante anúncio em jornal O corpo de um indivíduo permanece propriedade sua uma proprie dade garantida pela lei e que ele não pode transformar em mercadoria mas pode com ele praticar o dom Com outras palavras um indivíduo pelas leis brasileiras não pode comercializar seu corpo ou parte dele mas não há impedimento para ele doar um rim uma córnea ou um pulmão A mídia até enaltece e muito esse tipo de dom Não deixa de ser para doxal que numa sociedade de mercado uma coisa um rim um pulmão que não pode ser vendida nem comprada possa ser doada Godelier entende que se o indivíduo como pessoa não pode ser transformado em mercadoria é porque a própria Constituição que fundamenta o direito não pertence às relações comerciais Ela as fun damenta limitaas não lhes pertence A Constituição não é proprieda de de nenhum indivíduo enquanto tal ela é propriedade comum inalie nável de todos aqueles que a seguem porque a escolheram Da mesma forma que os indivíduos como pessoas são inalienáveis presentes ao mesmo tempo dentro e fora da esfera das trocas comerciais assim também a Constituição é uma realidade social um bem comum resultado do corpo coletivo o corpo constituinte motivo pelo qual não pode ser produto de relações comerciais O direito que funda os direitos dos indivíduos é portanto por essência coletivo Ele é propriedade comum de todos aqueles que vivem sob a mesma Constituição e a reco nhecem como sua propriedade inalienável situada além da esfera das relações comerciais É um dom que os homens e as mulheres livres fazem a si mesmos e que fundamenta não as suas relações íntimas mas suas relações sociais públicas As Constituições que os povos dão a si mesmos equivalem de certo modo aos objetos sagrados que os homens acreditavam ter rece bido dos deuses para ajudálos a viver juntos e viver bem Daí por que a indignação é maior quando o magistrado vende uma sentença ou o político vende uma lei do que quando um cidadão vende uma parte do seu próprio corpo Diferentemente do corpo de um indivíduo que mes mo inalienável permanece propriedade sua a Constituição não é pro priedade de nenhum indivíduo enquanto tal ela é propriedade comum inalienável Manual antropologia jurídica 001277indd 186 9112010 102022 186 187 XV neoeVolucioniSmo 1 EVOLUCIONISMO DO SÉCULO XX O evolucionismo que dominou a antropologia na segunda metade do século XIX renasce no século XX através de uma tendência de orientação marxista denominada círculo neoevolucionista à qual se ligam os nomes de Leslie White Julian Stewart Gordon Childe e Mar shal Sahlins Segundo os neoevolucionistas Franz Boas havia desviado a antro pologia do seu curso com sua atitude cética em relação à teoria da evo lução e sua insistência na particularidade de identidades culturais Para eles a o estudo da evolução cultural é sinônimo do estudo do processo técnico ou tecnológico b o homem como todos os animais explora o meio ambiente para obter uma forma de preservar a vida e garantir a perpetuação da espécie c a tarefa da antropologia não seria apenas constatar a sequência do desenvolvimento mas especificar os seus fato res determinantes d as adaptações evolucionárias locais específicas podem ser sintetizadas em narrativas mais abrangentes de evolução 11 Leslie Alvin White 1900 1975 Seguindo a orientação introduzida por Morgan White também entende que a civilização humana evolui Para ele quando mais avan çada uma sociedade mais complexa será a sua organização White entende que o nível de consumo de energia fornece uma medida objetiva do avanço cultural Com base nisso formula a lei bási Manual antropologia jurídica 001277indd 187 9112010 102022 188 189 ca da evolução cultural vinculada à quantidade de energia consumida eou utilizada pelo homem e a enuncia nos seguintes termos A cultu ra se desenvolve quando a quantidade de energia de que dispõe o homem per capita ou por ano aumenta ou na medida em que aumenta a eficácia dos meios tecnológicos para aplicar esta energia ao trabalho ou ao in crementarse ambos os fatores simultaneamente in MELLO 1982 214 Cabe anotar que o consumo per capita de energia ainda é usado por alguns economistas como referencial para medir o crescimento econômico dos países e o bemestar de suas populações Os critérios adotados por White para determinar os estágios da evolução são semelhantes àqueles adotados por Morgan principalmen te no que se refere ao desenvolvimento dos equipamentos tecnológicos Aliás White adota a divisão de estágios ou etapas do desenvolvimento cultural proposta por Morgan selvageria barbárie e civilização Assim para White a o estágio de selvageria caracterizase pelo uso e aces so à energia do próprio corpo e às vezes à energia do fogo do vento e da água b o estágio de barbárie é reconhecido pelo uso de energia na domesticação de animais pelo cultivo de plantas e na fabricação e uso de instrumentos e ferramentas c o estágio de civilização predo mina a energia da descoberta e o uso da máquina a vapor White em seu livro O conceito de cultura estabelece uma diferença entre comportamento e cultura Para ele a comportamento está re lacionado com o organismo humano ocorre quando coisas e aconteci mentos dependentes de simbolização são considerados e interpretados face à sua relação com organismos humanos isto é em um contexto somático b cultura é independente do organismo humano ocorre quando coisas e acontecimentos dependentes de simbolização são con siderados e interpretados num contexto extrassomático isto é face à relação que têm entre si ao invés de com os organismos humanos Dessa forma estabelece que comportamento pertence ao campo da psicologia e cultura ao da antropologia Para White esse conceito livra a antropologia cultural das abstrações intangíveis imperceptíveis e ontologicamente irreais e proporcionalhe uma disciplina verdadeira sólida e observável in MARCONI e PRESOTTO 2006 23 Segundo White as coisas e acontecimentos que constituem a cultura encontramse no espaço e no tempo e podem ser classificados em a intraorgânicos dentro de organismos humanos conceitos crenças emoções atitudes b interorgânicos dentro dos processos de Manual antropologia jurídica 001277indd 188 9112010 102022 188 189 interação social entre os seres humanos c extraorgânicos dentro de objetos materiais machados fábricas ferrovias vasos de cerâmica si tuados fora de organismos humanos mas dentro dos padrões de inte ração social entre eles Para White um item qualquer conceito crença ato objeto deve ser considerado um elemento da cultura desde que a haja simbolização representação por meio de símbolos b seja analisado em um contexto extrassomático in MARCONI e PRESOTTO 2006 24 25 12 Vere Gordon Childe 1892 1957 Para Childe 1971 29 as variações históricas podem ser julgadas pelas proporções em que ajudaram a espécie humana a sobreviver e multiplicarse Tratase de critério que pode ser expresso em números populacionais Encontramse na história fatos aos quais esse critério numérico é aplicável diretamente O exemplo mais óbvio é a Revolução Industrial inglesa A GrãBretanha em 1750 possuía uma população de 6517035 pessoas porém com a Revolução Industrial em 1801 passa para 16345646 e em 1851 para 27533755 Assim segundo Childe a Revolução Industrial ou seja as profun das modificações na cultura material e no equipamento as novas forças sociais da produção e a reorganização econômica reagiram contra a totalidade do povo britânico como nenhum outro fato religioso ou po lítico Um dos efeitos foi segundo ele tornar possível o aumento gigan tesco em seus números da população A julgar pelos padrões acima anotados a Revolução Industrial foi um êxito Facilitou a sobrevivência e a multiplicação da espécie em questão Assim o amento populacional é tido como indicador de desenvolvimento ou seja de maior capacitação técnicocultural Alguns antropólogos entendem que White e Childe focaram o aspecto material da cultura por se tratar de um elemento mensurável e de fácil constatação 2 MARSHALL SAHLINS 1930 Sahlins faz uma síntese dialética entre a ideia generalizada de evolução progressiva universal e os modelos que enfatizam os processos locais Para ele essas duas abordagens não se excluem Assim os estu dos sobre situações evolucionárias locais e específicas podem ser sinte tizados em narrativas mais abrangentes de evolução geral Manual antropologia jurídica 001277indd 189 9112010 102022 190 191 Nessa exposição do pensamento de Sahlins tomamos como refe rência o livro de Adam Kuper 2002 em especial o Capítulo 5 Marshall Sahlins história como cultura Kuper entende que a obra de Sahlins pode ser dividida em dois períodos a o primeiro ligado ao neoevolucionis mo e às tendências marxistas b o segundo que se inicia na década de 1970 reflete certo abandono das teses marxistas pelas teses culturalis tas e algumas incursões no estruturalismo 21 Primeiro período Para Sahlins toda sociedade deve ser colocada ao longo de um continuum de desenvolvimento de comunidades familiares igualitárias ponto de partida baseadas em parentesco passando pelos sistemas de chefias até alcançar o estágio mais elevado que são os Estados hierár quicos Em todo o mundo embora não na mesma época as sociedades passaram por estágios semelhantes de desenvolvimento político em consequência do progresso tecnológico e do acúmulo de recursos nas mãos de poucos Essa análise da evolução política é baseada num contraste entre dois tipos de economia Para Sahlins é possível estabelecer a existência de dois tipos de sociedades cada qual com suas formas características de organização econômica a uma baseada nas de trocas recíprocas entre parentes característica das economias de bandos e tribos grupos primitivos em que a produção é realizada pelo grupo doméstico que também é a unidade de consumo portanto não existe divisão de classes sociais nem excedentes que possam estabelecer grandes trocas b outra baseada na exploração tratase das economias avançadas cada vez mais diferenciadas e produtivas em que um pequeno grupo de ricos apropriase do excedente e oprime a grande população de pobres Os princípios da economia avançada fundada na exploração da força de trabalho não explicam o funcionamento da economia dos gru pos primitivos ainda existentes Para compreender a economia desses grupos é necessária uma teoria elaborada especialmente para esse fim Conforme Kuper Karl Polanyi já havia estabelecido os elementos dessa nova teoria ao anotar que a luta pela sobrevivência nas sociedades pré capitalistas não era organizada por princípios de mercado porque a os atores não eram homens de negócios b as instituições essenciais não eram de modo algum parecidas com as sociedades empresárias c não havia mercado em que todos os valores pudessem ser medidos e compa Manual antropologia jurídica 001277indd 190 9112010 102022 190 191 rados e d ninguém tinha qualquer concepção de crescimento agregado Polanyi entendia que na sociedade précapitalista as atividades econômicas estavam embutidas na vida doméstica e familiar e eram regidas por uma ética de solidariedade de parentesco A maior parte das mercadorias era produzida e consumida pela família embora as trocas com os vizinhos e parentes constituíssem uma garantia para os tempos difíceis Apenas uma pequena parte era produzida especificamente para trocas Nos locais em que havia pequenos chefes eles recebiam deter minadas mercadorias como tributo mas as redistribuíam em forma de banquetes Cada modalidade de troca era ajustada para expressar rela ções de reciprocidade dentro dos grupos e entre eles De acordo com Sahlins esse processo econômico ainda podia ser observado nas sociedades primitivas remanescentes Havia porém uma contradição oculta nesse sistema de economia doméstica Vale dizer esse modo de produção doméstico era solapado pelo desenvolvimento ine xorável de uma liderança central Assim à medida que um grande ho mem transformava a si mesmo num chefe passava a exigir tributos econômicos às famílias forçandoas a produzir mais do que elas neces sitavam para a sua subsistência Esses chefes acabavam repudiando as alegações de parentesco Esse seria substituído pela classe como o prin cípio dominante da organização social e o modo doméstico de produção daria lugar a uma economia de comando Sahlins no final da década de 1960 abandona abruptamente a posição evolucionista à qual se manteve fiel por quase vinte anos 22 Segundo período Sahlins em seu livro Cultura e razão prática de 1976 explica que os materialistas consideram cultura como um conjunto de instrumentos uma tecnologia para a exploração racional da natureza Consequente mente a história da humanidade pode segundo eles ser dividida numa sucessão de estágios marcados pelos avanços tecnológicos e pelas mu danças resultantes dos modos de produção Essa era segundo Sahlins a concepção do Marx da primeira fase humanista e idealista que teria influenciado o evolucionismo do século XIX Diferente do Marx da se gunda fase positivista materialista e determinista que teria influencia do o neoevolucionismo ou determinismo tecnológico de Leslie White Na opinião de Sahlins não havia lugar na análise de sociedades tribais para a clássica oposição marxista entre uma base material que Manual antropologia jurídica 001277indd 191 9112010 102022 192 193 sustentava a vida de uma sociedade e uma superestrutura de instituições que dependesse de ideologias mistificadoras erguidas sobre ela Nas culturas tribais economia política ideologia religião e ritual não apa recem como sistemas distintos Para Sahlins existem diferenças entre sociedades tribais e moder nas mas essas diferenças não residem em suas tecnologias ou em sua organização social A diferença essencial é que essas sociedades com preendemse em termos contrastantes Cada tipo delas é definido por uma fonte privilegiada de simbolismo a a sociedade tribal baseiase na metáfora do parentesco e tem como foco simbólico das chefias as religiões oficiais b na sociedade ocidental a economia constitui a primeira área de produção simbólica A singularidade da sociedade burguesa não reside no fato de o sistema econômico fugir à determina ção simbólica mas sim de que o simbolismo econômico é estrutural mente determinante Para confirmar essa hipótese Sahlins discorre sobre o que os americanos realmente produzem para satisfazer suas necessidades bá sicas de alimentação e vestuário Necessidades são culturalmente constituídas e o que os americanos produzem para satisfazer essas ne cessidades culturalmente específicas não são coisas úteis Mas símbolos Os Estados Unidos são uma cultura de consumo em que as relações aparecem vestidas de objetos manufaturados Esses são totens america nos mas eles não representam simplesmente posições na sociedade Novas mercadorias estão permanentemente sendo lançadas no mercado e elas evocam novas identidades Alimentos bebidas roupas automóveis definem status a pessoa é julgada pelo que come veste dirige Conclui Sahlins que as relações sociais são produzidas pelas mercadorias que operam como símbolos os capitalistas fabricam imagens de identidade que ainda serão criadas A sociedade tribal vive em casa seguindo os valores familiares A sociedade burguesa é dominada por um consumo declarado ou seja a essência da civilização norteamericana é a cultura de consumo Assim o grande divisor entre sociedade primitiva e as sociedades civilizadas não são como pensam os marxistas os modos distintos de produção O contraste fundamental entre os dois tipos de sociedade repousa na orientação característica de seus sistemas simbólicos Na sociedade burguesa o locus dominante da produção simbólica é a produção mate rial enquanto na sociedade primitiva é o conjunto de relações sociais parentela Manual antropologia jurídica 001277indd 192 9112010 102022 192 193 Enfim conforme Kuper o Sahlins da primeira fase aspirava colo car em ordem a antropologia americana ao introduzir uma nova con cepção teórica baseada em Marx O Sahlins da segunda fase tentou reparar a deficiência do modelo marxista recorrendo ao estruturalismo de LéviStrauss 23 Mitopráxis O Sahlins do segundo período não abandonou totalmente as teses evolucionistas porque continuava convencido de que tinha havido um movimento em âmbito mundial de tribos para chefias e destas para Estados Precisava contudo encontrar uma explicação nova para esse processo uma explicação que identificasse as mudanças mais importan tes no domínio das ideias Para Sahlins as sociedades primitivas frias interpretavam os eventos fortuitos como incidentes previsíveis recor rentes num padrão cíclico em que nada podia acontecer pela primeira vez Em contrapartida as sociedades ocidentais quentes acolhem de bom grado a mudança e concebem a história como um padrão de mo delos em rápida transformação operando um código aberto em expan são que responde à permuta constante de eventos que ela mesma ence nou Essas ideias esboçadas em Cultura e razão prática representam o ponto de partida para um relato cultural da transformação de chefias em Estado Os antropólogos não estão de acordo em considerar os mitos como fontes históricas Alguns acreditam que é impossível esclarecer a histó ria a partir de mitos Outros os tratam juntamente com outros tipos de narrativas como fonte de conhecimento histórico concernente ao pas sado de comunidades contemporâneas ou à difusão de conhecimentos e práticas Além disso alguns historiadores acreditam que as tradições preservadas pelas famílias ou pelas cortes são produtos da memória coletiva e estão relacionadas com eventos que um dia foram testemu nhados De qualquer modo o reconhecimento do valor histórico dos mitos significa a possibilidade de estabelecer uma história para as cul turas frias sociedades primitivas especialmente para aquelas que não conheceram a escrita Sahlins introduz o mito em sua teoria Para ele as pessoas estabe lecem novos eventos em tramas já estabelecidas em sua mitologia Os mitos também podem oferecer diretrizes para a ação servindo como protótipos sobre os quais as pessoas modelam suas próprias ações Para Manual antropologia jurídica 001277indd 193 9112010 102022 194 195 Sahlins uma mitologia é a essência condensada de uma cosmologia religiosa e que ela realiza as mesmas funções como religião ou cultura de forma mais geral Os mitos explicam a mudança e também ajudam a efetuála oferecendo ao mesmo tempo um relato do passado e um guia para a ação no futuro Sahlins denominou mitopráxis a recriação de mitos em circunstân cias contemporâneas principalmente naquelas sociedades em que os personagens da mitologia estavam ligados genealogicamente aos vivos Em tais sociedades as pessoas acreditam que os chefes são descendentes de deuses e também estão relacionados com seu próprio povo os chefes se identificam com seus ancestrais mitológicos e imitam seus feitos A mitopráxis portanto é uma reprodução estereotipada ou seja ela não reproduz perfeitamente a estrutura mítica prototípica A estrutura de alguma forma deixa espaço para os movimentos tácitos dos indivíduos e para as incursões imprevisíveis de estranhos ou para a erupção de forças naturais A tese central de Sahlins estabelece que os mitos oferecem um modelo para a compreensão dos eventos Além disso dá às pessoas di retrizes para lidar com novas situações Mas alguns eventos têm o poder de subverter a estrutura do significado que homens e mulheres tentam impor A mitopráxis não pode absorver todos os choques apresentados a ela não pode congelar a história Nos casos mais extremos haverá mudanças na própria ordem simbólica O grande desafio de uma antro pologia histórica conclui ele não consiste meramente em saber como os eventos são ordenados pela cultura mas a forma como nesse proces so a cultura é reordenada Para responder a essa questão Sahlins realiza vários estudos dentre os quais se destaca o estudo sobre as mudanças revolucionárias que ocorreram no Havaí no início do século XIX 24 Revolução cultural havaiana À revolução cultural havaiana antecede alguns acontecimentos que precisam ser relatados a o primeiro diz respeito à visita do Capitão Cook ao Havaí em 1778 b o segundo diz respeito à abolição do sistema de tabu após a morte do rei Kamehameha I em 1819 241 Visita do Capitão Cook A visita do Capitão Cook é um relato do primeiro contato de eu ropeus com havaianos Cook chega às ilhas havaianas durante o festival Manual antropologia jurídica 001277indd 194 9112010 102023 194 195 anual em 1778 Segundo os historiadores o capitão inglês foi identifi cado e tratado pelos nativos como uma encarnação de Lono deus da paz e da fertilidade tido como deus do Makahiki festival de anonovo havaiano que é celebrado quando a temperatura e as marés mudam e os primeiros frutos são colhidos O resto do ano é governado pelo deus Ku associado aos chefes supremos às guerras e aos sacrifícios humanos Havia uma crença entre os havaianos segundo a qual quando Lono chegou de Kahiki Taiti ou melhor quando os sacerdotes de Lono apresentaram sua imagem os rituais do templo de Ku foram suspensos e o culto a Lono tomou seu lugar acompanhado por novos tabus in cluindo o tabu da guerra Lono navegou ao redor das ilhas assessorado pelos sacerdotes acolhido pelas pessoas com sacrifícios e tendo sua passagem saudada com saturnais No final do festival ele foi recebido pelo rei e os dois travaram um combate simulado Alguns dias depois Lono sofreu uma morte ritual e partiu mais uma vez numa canoa es pecial guarnecida com suprimentos e só retornaria no ano seguinte Quando os navios do Capitão Cook apareceram exatamente no período do festival Makahiki os havaianos associaram tal fato com o retorno do deus Lono As velas dos navios ingleses pareciam a bandei ra de kapa ligada à imagem de Lono e a forma com que a esquadra de Cook velejava lentamente ao longo da costa das várias ilhas sugeria o trajeto do deus ao redor da ilha durante o festival Assim que desem barca acompanhado de alguns oficiais Cook foi conduzido pela mão pelos sacerdotes e transformado na figura central de uma cerimônia sofisticada por meio da qual os sacerdotes queriam reconhecêlo como a encarnação de Lono até o último dia de sua vida ele foi tratado pelos nativos com um respeito que chegava à adoração Não se sabe se Cook percebeu o significado religioso de tudo isso RAPLH KUYKENDALL in KUPER 231 232 Depois de um período em terra durante o qual embarcou supri mentos e realizou reparos no navio Cook partiu Todavia seu mastro quebrou e ele foi obrigado a retornar Nesse período começaram a apa recer os conflitos em virtude de alguns roubos que estavam tornando se comuns Assim o roubo de algumas ferramentas provocou uma luta em que um chefe foi golpeado com um remo Em seguida houve o furto de um pequeno veleiro guardacostas Cook tentou fazer o rei como refém até que a propriedade furtada fosse devolvida Mas os havaianos ficaram desconfiados Lono nunca teria visitado o chefe daquela manei ra armado escoltado por soldados e aparentemente hostil Uma mul Manual antropologia jurídica 001277indd 195 9112010 102023 196 197 tidão se reuniu e alguns dos marinheiros entraram em pânico e come çaram a disparar suas armas O próprio Cook disparou sua arma duas vezes Na confusão ele foi derrubado e morto O corpo foi levado pelos havaianos e tratado como se fosse um grande chefe Os ingleses se re agruparam e infligiram fortes represálias No final depois de uma se mana voltou a paz Alguns ossos de Cook foram levados de volta para os navios e lançados ao mar Depois disso os ingleses partiram Sahlins entende que esses acontecimentos descrevem um roteiro mitológico Lono e Ku eram rivais e a volta de Lono representou um desafio ao rei Todas as dinastias havaianas haviam sido fundadas por chefes invasores O desafio de Lono ao rei era vencido no ritual que representava o ponto culminante do festival quando os dois travavam o combate simulado e Lono derrotado partia Nesse caso contudo a sequência foi quebrada Lono retorna para conquistar O retorno de Lono precipitou uma série de conflitos sociais que colocou em anda mento mudanças revolucionárias Segundo Sahlins as relações comerciais eram reguladas por tabus e os marinheiros britânicos persuadiam muitos havaianos a quebrar esses tabus para fazer comércio com eles As violações dos tabus eram portanto motivadas pela pragmática do comércio mas seu efeito aba laria as relações entre categorias de homens e mulheres chefes e cidadãos comuns havaianos e estrangeiros O resultado foi uma transformação estrutural e uma reorganização das velhas categorias Enfim na sequên cia dos acontecimentos a elite havaiana passa a se identificar com a in glesa Rei e ministros havaianos passam a se espelhar no rei e ministros ingleses adotam nomes ingleses passam a se vestir numa versão aris tocráticoeuropeia Tudo isso contribuiu para mudanças nas relações entre chefes e cidadãos comuns 242 Abolição do sistema de tabus Conforme relata Kuper o ponto culminante da revolução cultural havaiana ocorre em 1819 quando os nobres havaianos aboliram por completo o sistema de tabus Em maio daquele ano morre o rei Kameha meha I que havia unido pela primeira vez as ilhas havaianas sob o do mínio de um único governante Apesar de certa resistência ele foi su cedido por seu filho Liholiho que se tornou o rei Kamehameha II O jovem rei era cercado por quatro figuras poderosas a esposa favorita de seu pai a rainhamãe o primeiroministro e o sumo sacer Manual antropologia jurídica 001277indd 196 9112010 102023 196 197 dote Juntos eles decidiram abolir o sistema de tabu Os alvos principais eram os tabus que proibiam as mulheres de fazerem as refeições junto com os homens e de comer determinados alimentos que eram reserva dos a eles Esses tabus eram importantes para os havaianos e simboli zavam todo o sistema de restrições As infrações eram sistematicamen te punidas com a morte Em novembro a corte ofereceu um grande banquete em que os tabus foram formalmente quebrados Em seguida foram expedidas ordens para que ídolos fossem destruídos templos fossem profanados e tabus fossem quebrados Essa foi uma revolução que se deu do topo para a base em que o sumo sacerdote era uma figu ra de destaque Entretanto houve oposição liderada por um primo do rei que era o próximo na linha de sucessão para o sumo sacerdócio Os conservadores foram derrotados em grande parte porque o partido do rei tinha superioridade em armas Quando os missionários chegaram em 1820 as mudanças haviam sido amplamente aceitas Muitas explicações conflitantes foram dadas para esse evento Kroeber afirma que a remoção dos tabus representou um exemplo de fadiga cultural um sentimento semelhante ao sentido pelos franceses após a derrota em 1940 ou pelos americanos após a quebra da bolsa de valores em 1929 Para Kroeber uma vez que uma atividade desse gêne ro desenvolve força suficiente a inovação como tal pode parecer uma virtude e uma benção Sahlins explica que existiam dois partidos no círculo real o par tido dos parentes afins do rei cujos membros tinham sido incumbidos de lidar com os europeus e se tornou o partido da revolução cultural e o partido dos parentes colaterais do rei conservadores que tinham controle sobre os deuses dominantes e sobre o sistema de tabu O rei equilibrava essas duas forças Quando o rei morreu o partido próeu ropeu de seus parentes afins subiu ao poder Os conservadores tentaram arregimentar apoio em nome dos deuses Os novos governantes agora tinham de se opor às reivindicações ideológicas de seus adversários e tentaram fazer isso removendo tabus mediante um ato ritual Com a remoção dos tabus os governantes impuseram em 1824 um novo có digo ritual à ilha o calvinismo rigoroso 3 CRÍTICA AO NEOEVOLUCIONISMO LéviStrauss 2003 16 não poupa críticas ao neoevolucionismo Entende que a ideia de progresso é uma noção ocidental culturalmente específica que não pode ser generalizada Por essa razão rejeita o cri Manual antropologia jurídica 001277indd 197 9112010 102023 198 199 tério de Leslie White de que a quantidade de energia utilizada por uma cultura fornece uma medida universal de progresso Esse padrão etno cêntrico segundo ele corresponde a um ideal encontrado em determi nados períodos históricos e é válido para certos aspectos da civilização ocidental mas não se aplica à grande maioria das sociedades humanas para as quais o padrão proposto pareceria ser completamente destituí do de significado Além disso LéviStrauss salienta que algumas sociedades consi deradas primitivas sobrepujaram em realizações morais e mesmo em algumas áreas tecnológicas as sociedades complexas do ocidente Nes se sentido exemplifica que o cultivo de plantas sem solo era praticado havia séculos por alguns povos da Polinésia que provavelmente ensi naram ao mundo a arte da navegação mundo este que subverteram profundamente no século XVIII revelandolhes um tipo de vida social e ética mais livre e generosa que os europeus nem sequer poderiam suspeitar da possibilidade de existência LéviStrauss 1993 347 348 esclarece que sob o critério da quantidade de energia disponível per capita a sociedade norteamerica na estaria em primeiro lugar do ranking da evolução seguida da europeia e da japonesa Mas se o critério for outro por exemplo o grau de ap tidão para triunfar sobre ambientes hostis o primeiro lugar seria ocu pado pelos esquimós e beduínos Se o critério fosse um estilo de vida mais livre e generoso as tribos polinésias certamente ganhariam Para tudo o que diz respeito à organização da família e à harmonização das relações entre grupo familiar e social os aborígines australianos atra sados no plano econômico ocupam um lugar tão avançado em relação ao resto da humanidade que é necessário para compreender os sistemas de regras por eles elaborados apelar para certas formas das matemáticas modernas Contribuições de igual importância podem ser encontradas nas culturas africanas melanésias americanas egípcias islâmicas etc Notase portanto que um povo primitivo não é um povo ultrapas sado ou atrasado num ou noutro domínio pode demonstrar um espíri to de invenção e realização que deixa muito aquém os êxitos dos civili zados Não se pode entretanto esconder a expansão da cultura europeia Alguns falam até da universalização da cultura ocidental Mas é preciso ter em conta que a adesão ao gênero de vida ocidental ou alguns de seus aspectos está longe de ser espontânea quanto os europeus gostariam de acreditar A aceitação da cultura europeia não foi o resultado de uma decisão livre dos povos essa cultura se impôs pela violência A Europa Manual antropologia jurídica 001277indd 198 9112010 102023 198 199 estabeleceu seus soldados suas feitorias e seus missionários pelas re giões do mundo inteiro interveio direta ou indiretamente na vida da popula ção local e subverteu profundamente o seu modo tradicional de exis tência A população subjugada não teve outra saída a não ser aceitar as soluções que lhe foram impostas O processo de colonização por outro lado criou diferenciações entre sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas Conforme observa Marx em Acumulação primitiva as sociedades que denominamos atual mente subdesenvolvidas não o são por sua própria causa e erraríamos em concebêlas como exteriores ao desenvolvimento ocidental ou como tendo ficado indiferentes diante dele Na verdade são essas sociedades que por sua destruição direta ou indireta entre os séculos XVI e XIX tornaram possível o desenvolvimento do mundo ocidental Entre elas e ele existe uma relação de complementaridade Por conseguinte jamais o desenvolvimento pode ser considerado como resultado do impacto de uma cultura mais elevada e mais ativa sobre uma cultura mais simples e mais passiva LÉVISTRAUSS 1993 320 4 NEOEVOLUCIONISMO E DIREITO O neoevolucionismo é uma tendência antropológica de inspiração marxista motivo pelo qual associa o estágio de evolução da sociedade ao estágio de desenvolvimento das forças produtivas Assim uma socieda de evolui de acordo com o aumento do consumo de energia o crescimen to industrial o aumento da população Podese dizer então que a infra estrutura econômica as relações de produção condiciona os diversos aspectos de determinada cultura especialmente as relações jurídicas Marx 1957 45 não elabora uma teoria jurídica mas menciona a relação entre infraestrutura econômica e superestrutura jurídica como o fio condutor de seus estudos e que pode ser formulada da seguinte ma neira na produção social de sua existência os homens entram em de terminadas relações necessárias independentes de suas vontades relações de produção que correspondem a determinado grau de desenvolvimento das suas forças materiais de produção O conjunto dessas relações de produção constitui a infraestrutura econômica da sociedade a base concre ta sobre a qual se erguem a superestrutura jurídica e a superestrutura polí tica e às quais correspondem determinadas formas de consciência social Para Marx o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social política e intelectual em geral Não é portanto Manual antropologia jurídica 001277indd 199 9112010 102023 200 201 a consciência dos homens que determina o seu ser é inversamente seu ser social que determina sua consciência A certo estágio de seu desen volvimento as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou o que não é senão a expressão jurídica do mesmo com as relações de propriedade no seio das quais moviam até então De formas de desenvolvimento de forças produtivas que eram essas relações tornamse obstáculos Abrese então uma época de revolução social quando a subsequente mudança na base econômica transforma a superestrutura jurídica Além da relação infraestrutura econômica e superestrutura jurí dica Marx visualiza no processo histórico a luta de classes e destaca duas grandes classes sociais no regime capitalista de produção a os trabalhadores proprietários da força de trabalho que têm como fonte de rendimento o salário e b os capitalistas proprietários de capital meios de produção que têm como fonte de rendimento o lucro apro priação da maisvalia A sociedade é formada por um complexo de re lações de produção de propriedade de exploração de dominação geralmente tensas ou conflituosas que se estabelecem entre as classes sociais As relações de propriedade situamse na infraestrutura como formas de relações de produção e nas superestruturas como expressão jurídica dessas relações Além dessas conclusões cabe mencionar algumas afirmações de Marx segundo as quais o direito radica nas condições materiais da vida o direito não tem história independente o direito positivo pode e deve mudar as suas decisões de acordo com as necessidades do desen volvimento social isto é econômico Ancorados nessas e em outras conclusões alguns teóricos marxistas afirmam que o primeiro princípio de uma teoria marxista do direito consiste em estabelecer que o direito é um produto da sociedade e está consequentemente sujeito a um pro cesso de adaptação à vida social e particularmente à economia PA CHUKANIS 1977 256 257 Vários autores abordaram o fenômeno jurídico numa perspectiva marxista Nesse sentido Petr Ivanovich Stucka em seu livro Direito e luta de classes concebe o direito não como uma estrutura normativa mas como um sistema de relações sociais que serve aos interesses da classe dominante capitalista e é tutelado pela força organizada dessa classe As relações sociais correspondem ao conjunto das relações de produção de apropriação e de distribuição ou troca Para Stucka as relações de produção e troca são as relações primárias enquanto as relações de Manual antropologia jurídica 001277indd 200 9112010 102023 200 201 apropriação isto é as relações jurídicas são unicamente relações deri vadas O direito portanto reflete as condições econômicas e sociais historicamente determinadas Também numa perspectiva marxista Karl Renner BOTTOMO RE 1967 201 202 examina como as funções das normas legais que regulam a propriedade contrato sucessão e herança se modificam com a evolução da estrutura econômica da sociedade capitalista sem alterar porém necessariamente a formulação das próprias normas legais que assim passam a obscurecer as relações sociais significativas do capita lismo desenvolvido Dentre outros teóricos também seguem a orientação marxista JuanRamon Capella Umberto Cerroni Ralph Miliband Nicos Pou lantzas Ljubomir Tadic além de Friedrich Engels Karl Kautsky e Pachukanis dos quais estes dois últimos destacamos na sequência 41 Friedrich Engels 1820 1895 e Karl Kautsky 1854 1938 Engels e Kautsky 1991 30 observam que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social por meio da concessão de incentivos e créditos engendra complicadas relações con tratuais recíprocas e exige regras universalmente válidas normas ju rídicas que só poderiam ser estabelecidas pelo Estado Em virtude dessa complexidade alguns teóricos imaginaram que tais normas não proviessem dos fatos econômicos mas dos decretos formais do Estado Para Engels e Kautsky uma vez que a forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias a concorrência é ni veladora ao extremo a igualdade e a liberdade jurídicas tornaramse o principal brado de guerra da classe burguesa Assim ao relacionar a forma do direito com a forma da mercadoria verificaram que o proces so generalizado de trocas mercantis exige para a sua efetivação o sur gimento da subjetividade jurídica e dos princípios da liberdade e da igualdade Vale dizer o operário ao contrário do servo e do escravo é reconhecido pelo sistema capitalista como proprietário de sua força de trabalho portanto pode dispor vender livremente dessa mercadoria Nesse sentido a relação de produção capitalista expressa no plano ju rídico a noção de que todos são proprietários igualdade mas com uma singular diferença os trabalhadores são proprietários da força de tra balho e os capitalistas são proprietários dos meios de produção Manual antropologia jurídica 001277indd 201 9112010 102023 202 203 Naves 1991 17 18 ao refletir sobre as concepções de Engels e Kautsky a respeito da liberdade e da igualdade jurídicas constata que a emergência da categoria sujeito de direito possibilitou que o homem circulasse no mercado como mercadoria ou melhor como proprietário que oferece no mercado a si mesmo O homem aparece ao mesmo tem po na condição de sujeito e objeto de si mesmo na condição de um proprietário que aliena a si próprio O direito faz funcionar assim as categorias da liberdade e da igualdade já que o homem não poderia dispor de si se não fosse livre a liberdade é essa disposição de si como mercadoria nem poderia celebrar um contrato esse acordo de von tade com outro homem se ambos não estivessem em uma condição de equivalência formal Engels e Kautsky 1991 31 lembram que as primeiras formações partidárias proletárias assim como seus representantes teóricos manti veramse estritamente no campo jurídico embora construíssem para si um terreno do direito diferente daquele da burguesia De um lado a reivindicação de igualdade foi ampliada buscando completar a igualdade jurídica com a igualdade social de outro lado concluiuse que o trabalho é a fonte de toda a riqueza por isso o produto do trabalho deveria ser dividido de forma mais equitativa entre capitalistas e trabalhadores Ocorre porém que a reivindicação da igualdade assim como do produto integral do trabalho perdiase em contradições insolúveis tão logo se buscava formular seus pormenores jurídicos e deixava mais ou menos intacto o cerne da questão a transformação do modo de produ ção Por essas razões Engels e Kautsky 1992 31 32 entendem que as duas posições eram igualmente insuficientes tanto para expressar a situação econômica da classe trabalhadora quanto para estruturar a luta emancipatória dela decorrente A concepção materialista da história de Marx segundo a qual todas as representações dos homens jurídicas políticas filosóficas religiosas etc derivam em última instância das condições de vida do próprio homem e do modo de produzir e trocar os produtos ajudou os partidos dos trabalhadores a compreender que a única forma de ação possível para a classe cujos interesses defendiam estava no campo da luta política ou melhor da luta de classes A partir dessa compreensão em vez de reivindicar o direito dos trabalhadores ao produto integral do trabalho os partidos dos traba lhadores passariam a reivindicar que os meios de produção e os pro dutos devam pertencer à coletividade trabalhadora Isso não significa Manual antropologia jurídica 001277indd 202 9112010 102023 202 203 que a classe trabalhadora não deva formular reivindicações de natureza jurídica pois como afirmam Engels e Kautsky 1991 65 toda classe em luta precisa pois formular suas reivindicações em um programa sob a forma de reivindicações jurídicas Enfim conforme Engels e Kautsky 1991 49 Marx entendeu que a continuidade da exploração sob qualquer forma em vez de promover o desenvolvimento social o obstaculiza cada vez mais e implica choques crescentemente violentos 42 Evgeni Bronislavovich Pachukanis 1891 1937 Pachukanis é um teórico do direito que se inspira no marxismo No seu livro A teoria geral do direito e o marxismo diz que quando as relações humanas são construídas como relações entre sujeitos surgem as condições para o desenvolvimento de uma superestrutura jurídica com suas leis formais Assim o processo de evolução histórica da eco nomia capitalista vai de par com a forma da superestrutura jurídica concreta ou seja os traços essenciais do direito privado de uma econo mia capitalista são simultaneamente os atributos característicos da superestrutura jurídica Segundo Simone GoyardFabre 2002 171 172 Pachukanis denega ao direito qualquer caráter de deverser qualquer dimensão normativa Para ele a regulamentação jurídica existe de fato e é neces sária mas só se pode explicála pelos mecanismos materialistas de na tureza social desencadeados e comandados pelo voluntarismo político da classe dominante As noções de contrato de obrigação jurídica de direito subjetivo e de sanção fazem parte formalmente dessa unidade estrutural evoluída que o direito positivo constitui mas essa estrutura formalmente acabada longe de ser a estrutura ideal ou geral do direito é uma estrutura historicamente causada de uma formação social espe cífica Para Pachukanis a causalidade histórica do jurídico é a da eco nomia própria da sociedade capitalista Pachukanis entende que a relação econômica é em seu movimen to real a fonte da relação jurídica motivo pelo qual o direito não tem a especificidade de uma regulação normativa e ideal tratase apenas de um conjunto de relações socioeconômicas que trazem a marca da ideo logia da classe dominante Assim à medida que a sociedade representa um mercado a máquina de Estado se realiza efetivamente como a von tade geral impessoal como a autoridade do direito No meio social em Manual antropologia jurídica 001277indd 203 9112010 102023 204 205 que se manifesta sem cessar o movimento do trabalho da mercadoria e do dinheiro o que caracteriza o direito são as desavenças e os litígios O poder de Estado confere clareza e estabilidade à estrutura jurídica mas não lhe cria premissas pois elas se enraízam nas relações materiais isto é nas relações de produção Manual antropologia jurídica 001277indd 204 9112010 102023 204 205 XVi eStruturAliSmo 1 INTRODUÇÃO Entendese por estruturalismo o método ou o processo de pesquisa em cuja base encontrase o conceito de estrutura com o significado de sistema Foi a linguística do século XX que ao elaborar uma nova con cepção de linguagem estabeleceu as bases conceituais do estruturalismo Essas bases foram assumidas pelo estruturalismo antropológico e poste riormente difundiramse para todas as áreas das ciências humanas e sociais incluindo o direito Quando se fala em estrutura pensase em regras de disposição sistemática de elementos Mas o termo estrutura é vago e ambíguo portador de vários significados possui portanto alcance e sentidos diferentes que precisam ser especificados Abbagnano 2003 376 377 mostra que o conceito é utilizado às vezes de forma restrita e outras vezes de forma genérica 11 Estrutura significado restrito Estrutura em sentido restrito e específico tem o significado de um plano ou sistema de relações hierarquicamente ordenado ou seja uma ordem finalista intrínseca destinada a conservar o máximo possível seu plano ou sistema A estrutura portanto não é constituída simplesmen te por um conjunto de elementos relacionados mas por uma ordem hierárquica que tem o objetivo de garantir o êxito de sua função e sua própria conservação Manual antropologia jurídica 001277indd 205 9112010 102023 206 207 A forma restrita é no geral a que mais corresponde ao uso do termo na linguagem comum Nesse sentido falase da estrutura de um edifício e da correlação entre suas partes que assegura a estabilidade dele e lhe permite corresponder ao uso a que é destinado Em uma or ganização qualquer estrutura é o plano de atividades ou de órgãos que mantém a organização e lhe permite realizar seus objetivos Nesse sen tido falase de estrutura de uma sociedade empresária com os seus órgãos de poder assembleia geral conselho de administração conselho fiscal presidência hierarquicamente ordenados 12 Estrutura significado genérico Em sentido lógico o termo estrutura significa o plano de uma re lação Nesse sentido dizse que duas relações têm a mesma estrutura quando o mesmo plano vale para ambas ou seja quando as relações são análogas tanto quanto um mapa geográfico tem analogia com a região que representa Assim estrutura é um conceito generalíssimo que equivale a plano construção constituição etc Também na terminologia marxista estrutura ou infraestrutura é um conceito genérico visto que significa a constituição econômica da sociedade em que se incluem as relações de produção ao passo que a superestrutura é a constituição jurídica política ideológica da própria sociedade Marilena Chauí 1980 VI lembra que a ampliação do termo es trutura também se verificou na biologia e na matemática No sentido biológico estrutura significa um conjunto cujos elementos manifestam solidariedade entre si e dependência mútua A totalidade de tal conjun to não consistiria simplesmente na soma de suas partes resultaria das relações internas existentes entre as partes relações essas que são ne cessárias e funcionais No sentido matemático estrutura significa um sistema de relações que descrevem o funcionamento de um fenômeno representado por um modelo Nesse sentido estrutura reduzse a um sistema de operações abstratas e seu significado é o de uma combina tória geral que assume aspecto particular quando preenchida por um modelo isto é pela representação de um fenômeno determinado Estru tura nesse sentido aparece como uma forma vazia cuja matéria é vari ável porque depende do modelo particular que venha a se encaixar nela Alerta a autora que esses dois sentidos biológico e matemático não são contudo suficientes para se compreender o emprego da palavra pelas correntes estruturalistas do século XX Para isso foi decisivo o Manual antropologia jurídica 001277indd 206 9112010 102023 206 207 papel desempenhado por Ferdinand de Saussure que embora não tenha usado a palavra estrutura explicitamente elaborou toda a essência da concepção estrutural mediante a noção de sistema O termo estrutura tem o significado genérico de sistema quando se fala de estrutura como um conjunto de elementos submetidos a determinadas relações 2 INFLUÊNCIA DE SAUSSURE A palavra estrutura é por um lado sinônimo de forma por outro lado é sinônimo de sistema como conjunto ou totalidade de relações Foi neste último sentido que a palavra passou para a linguística ou estudo da linguagem Nesse sentido Saussure diz que a língua é um sistema cujas partes todas devem ser consideradas em sua solidarieda de sincrônica Conforme análise de Chauí 1980 Saussure estabeleceu para a linguística as seguintes bases conceituais que inspiraram o estrutura lismo antropológico a a linguagem é constituída pela distinção entre língua e fala língua é uma instituição social e um sistema ou uma estru tura objetiva que existe com suas regras e princípios próprios enquan to fala palavra é o ato individual do uso da língua tendo existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos se apropriam da língua e a empregam b a língua é uma totalidade dotada de sentido na qual o todo confere sentido às partes isto é as partes não existem isoladas nem somadas mas apenas pela posição e função que o todo da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função c a língua é um sistema convencional cujas partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica d a língua é inconsciente ou seja as pes soas falam sem ter consciência da sua estrutura regras princípios funções Essas bases conceituais foram capazes de possibilitar uma nova concepção de linguagem e afirmar a propriedade do sistema sobre os elementos que o compõem É uma grande ilusão diz Saussure consi derar um termo simplesmente como a união de certo som com certo conceito Definilo assim seria isolálo do sistema de que faz parte seria crer que se pode começar pelos termos e construir o sistema somando os pelo contrário devese partir do todo solidário para obter por análise os elementos que ele engloba Enfim para Saussure a língua é um sistema cujos termos são todos solidários e no qual o valor de um termo resulta da presença simultânea de outros Manual antropologia jurídica 001277indd 207 9112010 102023 208 209 Com suas bases conceituais assim estabelecidas o estruturalismo pôde desenvolverse e estendeuse a todos os domínios das ciências humanas Em sua exigência mais geral o estruturalismo não só tende a interpretar um campo específico de indagação em termos de sistema como também a mostrar que os diversos sistemas específicos verificados em diferentes campos por exemplo antropologia economia direito linguística correspondemse ou têm características análogas Lévi Strauss 2003 95 por exemplo julga possível que uma mesma estru tura possa ser encontrada em três níveis de sociedade a no sentido de que as normas de parentesco e de casamento servem para assegurar a comunicação das mulheres entre os grupos b assim como as normas econômicas servem para assegurar a comunicação de bens e dos servi ços c e as normas linguísticas servem para assegurar a comunicação das mensagens 3 LÉVISTRAUSS E O ESTRUTURALISMO LéviStrauss 2003 306 considerado o mais célebre representan te do estruturalismo antropológico define estrutura como um sistema de elementos tal que uma modificação qualquer de um elemento implica uma modificação de todos os outros considerandoa como um modelo conceitual que deve dar conta dos fatos observados e permitir que se preveja de que modo reagirá o conjunto no caso da modificação de um dos elementos Segundo LéviStrauss 1980a 7 para merecer o nome de estru tura os modelos científicos devem exclusivamente satisfazer a quatro condições a em primeiro lugar o modelo deve oferecer um caráter de sistema isto é consistir de elementos tais que uma modificação qualquer de um deles acarrete modificação em todos os outros b em segundo lugar todo modelo deve pertencer a um grupo de transformação cada uma das quais corresponda a um modelo da mesma família de modo que o conjunto dessas transformações constitua um grupo de modelos c em terceiro lugar as propriedades exigidas por essas duas condições devem permitir prever de que modo reagirá o modelo em caso de mo dificação de um de seus elementos d finalmente é necessário que o modelo seja construído de tal modo que seu funcionamento possa ex plicar todos os fatos observados Para LéviStrauss 1993 121 os adeptos da análise estrutural em antropologia são frequentemente acusados de formalismo O estrutura Manual antropologia jurídica 001277indd 208 9112010 102023 208 209 lismo porém segundo ele separase do formalismo em virtude das atitudes muito diferentes que as duas escolas adotam em relação ao concreto Ao inverso do formalismo o estruturalismo recusa opor o concreto ao abstrato e não reconhece no segundo um valor privilegiado A forma se define por oposição a uma matéria que lhe é estranha mas a estrutura não tem conteúdo distinto ela é o próprio conteúdo apreendi do numa organização lógica concebida como propriedade do real Chauí 1980 X anota que para o estruturalismo um fato isolado enquanto tal jamais possui significado LéviStrauss exemplifica esse princípio com os vocábulos fromage cheese e queijo Esses termos quan do isolados da estrutura alimentar que os determina aparentemente referemse à mesma realidade o mesmo contudo não ocorre quando são considerados no interior das distintas estruturas alimentares a que pertencem no caso a cozinha francesa inglesa ou brasileira nas quais se revelam completamente diferentes Para o francês fromage conota um gosto picante enquanto para o inglês cheese quase não possui gos to e para o brasileiro queijo denota um gosto salgado Salientase assim o caráter relativo dos elementos da estrutura o sentido e o valor de cada elemento advêm exclusivamente da posição que ocupem em relação aos demais LéviStrauss destaca que as estruturas apenas se mostram a uma observação feita de fora Ele propõe uma noção de estrutura que não se confunde com a realidade estudada mas deve basearse nela Para ele a estrutura seria apenas um modelo de análise construído a partir da observação da realidade social O princípio fundamental diz ele é que a noção de estrutura social não se refere à realidade empírica mas aos modelos construídos em conformidade com esta Assim aparece a dife rença entre duas noções tão vizinhas que foram confundidas muitas vezes a de estrutura social e a de relações sociais As relações sociais são a matériaprima empregada para a construção dos modelos que tornam manifesta a própria estrutura social 31 Estrutura e consciência Para LéviStrauss 2003 a estrutura é um sistema de relações e é de sistemas desse gênero que a sociedade é construída sistema de parentesco sistema de comunicação sistema de troca etc Além disso a noção de estrutura social não se refere propriamente à realidade em pírica mas aos modelos construídos segundo essa realidade Os mode Manual antropologia jurídica 001277indd 209 9112010 102024 210 211 los podem ser conscientes ou inconscientes Na concepção de Lévi Strauss as estruturas mentais inconscientes seriam responsáveis em última analise pelas formas particulares assumidas em cada cultura Para ele com as abordagens tradicionais da antropologia o máximo que se pode conseguir é detectar os modelos conscientes isto é as normas e padrões de comportamento da sociedade Propõe então um método capaz de captar os modelos inconscientes responsáveis pelos modelos conscientes que não passam de efeitos deformados dos primeiros Nessa trilha estabelece que os modelos conscientes que se chamam comumente normas incluemse entre os mais pobres que existem em razão de sua função que é de perpetuar as crenças e usos mais do que lhes expor as causas Assim a análise estrutural se choca com uma situação paradoxal bem conhecida pelo linguista quanto mais nítida a estrutura aparente mais difícil tornase apreender a estrutura profunda por causa dos modelos conscientes e deformados que se in terpõem como obstáculo entre o observador e seu objeto LÉVI STRAUSS 2003 318 Por fim introduz a noção de que algumas sociedades são em cer to sentido estáticas razão pela qual são especialmente talhadas para uma análise estrutural Há assim uma diferença em espécie entre so ciedades tribais frias cuja história é repetitiva e sociedades complexas quentes que estão num estado de mudança contínua As sociedades primitivas tentam anular a história relançar eventos como meras repe tições de um padrão cíclico estabelecido Seu ideal seria permanecer no estado em que os deuses ou os antepassados as criaram nos primórdios dos tempos Por esses motivos é mais fácil detectar as estruturas men tais inconscientes básicas a partir de sociedade simples culturas frias do que no seio de sociedades complexas culturas quentes Ao observar as sociedades simples formula a seguinte hipótese sem reduzir a sociedade ou a cultura à língua é possível estabelecer três formas de comunicação que são ao mesmo tempo formas de trocas matrimoniais econômicas e linguísticas entre as quais existem relações manifestas Assim a as regras de parentesco e matrimônio servem para assegurar a comunicação de mulheres entre os grupos b as regras econômicas garantem a comunicação de bens e serviços e c as regras linguísticas a comunicação de mensagens As relações matrimoniais fazemse acompanhar de prestações econômicas e a linguagem intervém em todos os níveis LÉVISTRAUSS 2003 103 104 Manual antropologia jurídica 001277indd 210 9112010 102024 210 211 32 Sistemas de culturas Para LéviStrauss 1993 329 a 332 um aspecto importante da vida da humanidade é que esta não se desenvolve sob um regime uni forme mas através de modos diversificados de sociedades e civilizações essa diversidade intelectual estética e sociológica não está unida por nenhuma relação de causa e efeito A raça segundo ele não determina a cultura porque não existem aptidões raciais inatas tendo em vista que há muito mais culturas humanas do que raças humanas Além disso duas culturas elaboradas por homens pertencentes à mesma raça podem diferir tanto ou mais que duas culturas provenientes de grupos radi calmente afastados Ao comentar o alcance e a validade da noção de cultura reconhe ce que existem culturas diferentes no seio da civilização ocidental Se gundo ele denominamos cultura todo o conjunto etnográfico que do ponto de vista da investigação apresenta com relação a outros afasta mentos significativos Se se procura determinar afastamentos significa tivos entre a América do Norte e a Europa tratarseão as duas como culturas diferentes mas supondo que o interesse tenha por objeto afas tamentos significativos entre digamos Paris e Marselha estes dois conjuntos urbanos poderão ser provisoriamente constituídos como duas unidades culturais O objeto último das pesquisas estruturais sendo as constantes ligadas a tais afastamentos vêse que à noção de cultura pode corresponder uma realidade objetiva apesar de permanecer função do tipo de pesquisa considerado Uma mesma coleção de indivíduos con tanto que seja objetivamente dada no tempo e no espaço depende si multaneamente de vários sistemas de cultura universal continental nacional provincial local etc e familiar profissional confessional político etc 2003 335 33 Organização dualista Designase com o nome de organização dualista um tipo de estru tura social encontrado na América Ásia e Oceania caracterizada pela divisão do grupo social tribo clã ou aldeia em duas metades cujos membros mantêm uns com os outros relações que podem ir da colabo ração mais íntima à hostilidade latente e associando geralmente ambos os tipos de comportamento A questão é saber onde começa e onde acaba a organização dualista Manual antropologia jurídica 001277indd 211 9112010 102024 212 213 LéviStrauss 2003 24 25 diz que é preciso constatar de um lado que as funções atribuídas à organização dualista não coincidem e por outro lado que a história de cada grupo social mostra que a divisão em metades procede das origens mais diversas Assim a organização dua lista pode resultar segundo o caso a da invasão de uma população por um grupo de imigrantes b da fusão de dois grupos territorialmente vizinhos c da cristalização sob forma de instituição de regras empí ricas destinadas a assegurar as trocas matrimoniais no seio de determi nado grupo d além de outras hipóteses que podem ser consideradas Segundo ele com essa abordagem a antropologia é conduzida a despe daçar a noção de organização social dualista Na maioria dos povos primitivos diz LéviStrauss 2003 29 é muito difícil obter uma justificação moral ou uma explicação racional de um costume ou de uma instituição o indígena interrogado se con tenta em responder que as coisas foram sempre assim que tal foi a ordem dos deuses ou os ensinamentos dos ancestrais Mesmo quando se en contram interpretações estas têm sempre o caráter de racionalizações ou elaborações secundárias As razões inconscientes pelas quais se pra tica um costume ou uma crença estão bastante afastadas das razões que se invocam para justificálo Mesmo em nossa sociedade as maneiras à mesa os usos sociais as regras do vestuário e muitas atitudes morais políticas e religiosas são observadas escrupulosamente por cada um sem que sua origem e função reais tenham sido objeto de um exame refleti do As pessoas agem e pensam por hábito e a resistência espantosa oposta às derrogações provém mais da inércia do que de uma vontade consciente de manter costumes dos quais se compreenderia a razão Assim para LéviStrauss a atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas a um conteúdo e se as formas são fundamen talmente as mesmas para todos os espíritos antigos e modernos pri mitivos e civilizados como o estudo da função simbólica tal como se exprime na linguagem o mostra de maneira tão notável é preciso atingir a estrutura inconsciente subjacente a cada instituição ou a cada costume para obter um princípio de interpretação válido para outras instituições e outros costumes Como chegar a essa estrutura do inconsciente É aqui segundo LéviStrauss 2003 38 que o método etnológico e o método linguísti co se encontram Para compreender essa situação é necessário retomar o problema da organização dualista Se o antropólogo não quer ver na Manual antropologia jurídica 001277indd 212 9112010 102024 212 213 organização dualista nem um estágio universal do desenvolvimento da sociedade nem um sistema inventado num único lugar e num único momento e se ao mesmo tempo sente fortemente o que todas as ins tituições dualistas têm em comum resta analisar cada sociedade dua lista para encontrar por detrás do caos das regras e costumes um es quema único agindo nos contextos locais e temporais diferentes Esse esquema se reduz a algumas relações de correlação e oposição sem dúvida inconscientes mesmo para os povos de organização dualista mas que porque inconscientes devem estar igualmente presentes entre aqueles que jamais conhecerem essa instituição Prossegue afirmando que na análise das instituições e costumes dos povos primitivos a observação histórica permite distinguir alguma coisa que se conserva que são os elementos estruturais No caso da organização dualista esses elementos segundo ele parecem ser em número de três a exigência da regra b noção de reciprocidade considerada como uma forma que permite integrar imediatamente a oposição do eu e do outro e c caráter sintético do dom Conclui que esses fatores se encontram em todas as sociedades consideradas e explicam práticas e costumes menos diferenciados mas dos quais se vê assim que mesmo nos povos sem or ganização dualista correspondem à mesma função que esta Assim a etnologia não pode permanecer indiferente aos processos históricos e às expressões mais altamente conscientes dos fenômenos sociais Sua finalidade é atingir além da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir um inventário de possi bilidades inconscientes que não existem em número ilimitado e cujo repertório e as relações de compatibilidade ou incompatibilidade que cada uma mantém com todas as outras fornecem uma arquitetura lógi ca e desenvolvimentos históricos que podem ser imprevisíveis sem nunca ser arbitrários Nesse sentido a célebre fórmula de Marx Os homens fazem sua própria história mas não sabem que a fazem jus tifica em seu primeiro termo a história e em seu segundo termo a etnologia Ao mesmo tempo ela mostra que os dois procedimentos são indissociáveis LÉVISTRAUSS 2003 39 4 ESTRUTURALISMO E DIREITO Várias teorias jurídicas usam as noções de sistema e estrutura e por essa razão são classificadas como estruturalismo jurídico O enfoque estruturalista porém aparece mais associado ao positivismo jurídico cujos principais expoentes são Hans Kelsen Teoria pura do direito e Manual antropologia jurídica 001277indd 213 9112010 102024 214 215 Norberto Bobbio Teoria do ordenamento jurídico Na obra desses dois autores as noções de sistema e estrutura assumem posição de destaque Para o estruturalismo jurídico o direito é um sistema O sistema jurídico é um todo ou seja um ordenamento composto de estrutura e de repertório O repertório é o conjunto dos elementos normas jurídi cas do sistema A estrutura é o conjunto de regras que demonstra as relações existentes entre os elementos do sistema Dizse por isso que os elementos do sistema jurídico as normas jurídicas não desfrutam de autonomia porque cada norma jurídica depende de sua integração e inserção ao todo sistemático De acordo com essa orientação teórica o sistema jurídico é fun damentalmente um conjunto de normas jurídicas válidas dispostas numa estrutura hierarquizada Norma jurídica válida é aquela emanada de uma autoridade que possui competência para editar normas A com petência da autoridade é determinada pelas próprias normas jurídicas Hierarquia é um conjunto de relações estabelecidas conforme regras de subordinação e coordenação Essas regras não são normas jurídicas isto é não fazem parte do repertório mas da estrutura do sistema São regras estruturais a o princípio da lei superior regra segundo a qual a norma que dispõe formal e materialmente sobre a edição de outras normas prevalece sobre estas b o princípio da lei posterior regra segundo a qual havendo normas contraditórias desde que do mesmo nível hierárquico prevalece a que no tempo apareceu por último c o princípio da lei especial regra segundo a qual a norma especial revo ga a geral no que dispõe especificamente Para o positivismo jurídico é preciso supor que as normas do ordenamento jurídico estão dispostas numa ordem sistemática O sen tido de uma norma não está portanto somente nos termos que expres sam sua articulação sintática mas também em sua relação com outras normas do ordenamento Em outras palavras entendese que o direito é composto pelo conjunto organizado de regras diretoras denominadas princípios que presidem o sistema e regras simples que perfazem o todo sistemático O direito portanto caracterizase pela disposição organi zada e hierárquica de princípios e normas 41 Estrutura e hierarquia O positivismo jurídico concebe o ordenamento jurídico como uma estrutura escalonada de normas A imagem da pirâmide ajuda a com Manual antropologia jurídica 001277indd 214 9112010 102024 214 215 preender essa concepção no ápice da pirâmide normativa estariam si tuadas as normas superiores tidas como fundamento de validade das normas imediatamente inferiores e assim sucessivamente até a base na qual estariam as normas mais inferiores Com esse escopo podese dizer que no texto constitucional brasileiro estão as normas jurídicas do mais alto grau Isso porque a Constituição Federal é o marco inicial de todo o direito do Estado Ela é a primeira lei posta a primeira lei do Estado motivo pelo qual adquire posição fundamental porque funda a ordem jurídica e adquire posição suprema porque as normas constitucionais sobrepõemse a todas as demais que integram o ordenamento jurídico As normas constitucionais além de orientar a atividade interpre tativa do profissional do direito orientam a produção e aplicação das normas pelos órgãos jurisdicionais Legislativo e Judiciário Desse modo a validade da norma só pode ser julgada por sua relação com outras normas isto é as normas jurídicas encontram sempre seu fun damento de validade em outras normas que lhe são superiores As normas que fundamentam outras normas ganham uma posição de su perioridade de preeminência visto que as normas subordinadas não podem contrariar as normas de hierarquia superior Alguns teóricos entendem que é possível estabelecer uma hierar quia entre as normas constitucionais isto é as normas que compõem o texto constitucional não possuem todas a mesma relevância Algumas veiculam simples regras outras são verdadeiros princípios Entende que o sistema é um conjunto de normas interrelacionadas em torno de princípios fundamentais que fecham o sistema como um todo unitário Assim os princípios assumem o sentido de elementos principais e fun damentais do sistema razão pela qual são considerados normas com âmbito de abrangência mais amplo que vinculam as demais normas do universo sistemático Nessa trajetória o intérprete ao examinar o sistema normativo deve em primeiro lugar identificar os princípios e a partir deles cami nhar em direção às normas jurídicas inferiores A norma que se apre senta vaga e ambígua deve ser interpretada e aplicada em sintonia com os princípios que a Constituição acolhe Os princípios constitucionais por serem normas qualificadas são considerados vetores para soluções interpretativas Esse modelo segundo os seus teóricos pode ser aplicado no estudo e compreensão do direito de qualquer sociedade politicamente organizada Manual antropologia jurídica 001277indd 215 9112010 102024 217 Manual antropologia jurídica 001277indd 216 9112010 102024 217 XVii clAude léViStrAuSS 1908 2009 1 SÍMBOLO E SOCIEDADE LéviStrauss entende que a vida social é troca e que a sociedade é mais bem compreendida se considerada como linguagem do que a par tir de qualquer outro paradigma Nessa trilha desenvolve duas teses que inovam o pensamento antropológico a primeira o parentesco é fundamentalmente troca de mulheres entre os homens b segunda dos dois componentes do parentesco a aliança e a descendência é a aliança que fornece as chaves para colocar ordem na diversidade dos sistemas de parentesco dos mais elementares aos mais complexos GODELIER 2001 32 33 Para LéviStrauss a vida social constitui um fenômeno que implica um movimento de trocas perpétuas através do qual as palavras os bens as mulheres circulam entre os indivíduos e entre os grupos A sociedade portanto fundase sobre a troca e só existe através da combinação de todos os tipos de troca a de mulheres parentesco b de bens economia c de palavras e de representações cultura Assim propõe uma expli cação do conjunto dos fatos sociais que faz do social uma combinação de formas de troca cuja origem profunda deve ser buscada nas estruturas inconscientes do espírito em sua capacidade de simbolizar 11 Linguística e antropologia LéviStrauss 2003 45 a 55 entende que no conjunto das ciências sociais a linguística ocupa um lugar excepcional em virtude dos progres Manual antropologia jurídica 001277indd 217 9112010 102024 218 219 sos que realizou Para ele a linguística não é uma ciência social como as outras mas a única que pode reivindicar o nome de ciência e que chegou ao mesmo tempo a formular um método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua análise A linguística em especial a fonologia deve desempenhar perante as ciências sociais o mesmo papel renovador que a física nuclear desempenhou no conjunto das ciências exatas É possível segundo LéviStrauss antever essa renovação na pes quisa de N Trubetzkoy quando este reduz o método fonológico a quatro procedimentos fundamentais a a fonologia passa do estudo dos fenômenos linguísticos conscientes ao estudo de sua infraestrutura in consciente b a fonologia se recusa a tratar os termos como entidades independentes tomando ao contrário como base de sua análise as re lações entre os termos c a fonologia introduz a noção de sistema mas não se limita a declarar que os fonemas são sempre membros de um sistema ela mostra sistemas fonológicos concretos e torna patente sua estrutura d a fonologia visa à descoberta de leis gerais encontradas por indução ou deduzidas logicamente o que lhes dá um caráter absoluto Esses procedimentos segundo LéviStrauss revelam uma desco berta de tal importância que é preciso verificar suas consequências e sua aplicação possível a fatos de outra ordem No estudo dos problemas de parentesco por exemplo o antropólogo se vê numa situação semelhan te à do fonólogo a como os fonemas os termos de parentesco são elementos de significação e só adquirem essa significação sob a condição de se integrarem em sistemas b os sistemas de parentesco tal como os sistemas fonológicos são elaborados pelo espírito no estágio do pensamento inconsciente c a recorrência em regiões afastadas do mundo e em sociedades profundamente diferentes de formas de paren tesco regras de casamento atitudes identicamente prescritas entre certos tipos de parentes faz crer que em ambos os casos os fenômenos observáveis resultam do jogo de leis gerais ocultas O problema pode então se formular da seguinte maneira numa outra ordem de realidade os fenômenos de parentesco são fenômenos do mesmo tipo que os fenô menos linguísticos Há entretanto como anota LéviStrauss uma diferença profunda entre o quadro dos fonemas de uma língua e o quadro dos termos de parentesco de uma sociedade No primeiro caso não há dúvida quanto à função todos sabem que uma linguagem serve para a comunicação O que o linguista ignorou durante muito tempo e que somente a fonologia lhe permitiu descobrir é o meio pelo qual a linguagem chega a esse Manual antropologia jurídica 001277indd 218 9112010 102024 218 219 resultado A função era evidente mas o sistema permanecia desconhe cido A esse respeito o antropólogo se encontra em situação inversa todos sabem desde Lewis Morgan que os termos de parentesco cons tituem sistemas mas ignoram para que uso se destina O desconheci mento dessa situação inicial reduz a maior parte das análises estruturais de sistemas de parentesco a meras tautologias Elas demonstram o que é evidente e negligenciam o que permanece desconhecido ou oculto Para LéviStrauss o que se denomina sistema de parentesco recobre duas ordens diferentes de realidade a sistema terminológico é o sistema de vocabulário nomenclatura ou termos pelos quais se ex primem os diferentes tipos de relações familiares b sistema de atitu des significa que o parentesco não se exprime unicamente numa no menclatura os indivíduos ou as classes de indivíduos que utilizam os termos sentemse ou não se sentem conforme o caso obrigados uns em relação aos outros a uma conduta determinada respeito ou familia ridade direito ou dever afeição ou hostilidade Podese dizer que o papel representado pelos sistemas de atitudes é o de assegurar a coesão e o equilíbrio do grupo mas a antropologia ainda não compreendeu a natureza das conexões existentes entre as diversas atitudes e não per cebeu sua necessidade Entre sistemas terminológicos e sistemas de atitudes há conforme LéviStrauss uma diferença profunda visto que o sistema de atitudes não é apenas a expressão ou a tradução no plano afetivo do sistema terminológico Ademais segundo ele é necessário sempre distinguir entre dois tipos de atitudes a as atitudes difusas são atitudes não cristalizadas e desprovidas de caráter institucional podese admitir que no plano psicológico são meros reflexos da terminologia e b as atitu des estilizadas são atitudes obrigatórias sancionadas por tabus ou privilégios e que se exprimem através de cerimonial fixo Longe de refletir automaticamente a nomenclatura essas atitudes aparecem fre quentemente como elaborações secundárias destinadas a resolver con tradições e superar insuficiências inerentes ao sistema terminológico Isso entretanto não quer dizer que não exista uma interdepen dência entre o sistema terminológico e o sistema de atitudes mas essa rela ção de interdependência não é uma correspondência termo a termo Para LéviStrauss o sistema de atitudes constitui antes uma integração di nâmica do sistema terminológico Há assim uma relação funcional entre os dois sistemas porém por razões de método é possível tratar os problemas aferentes a cada um como problemas separados Manual antropologia jurídica 001277indd 219 9112010 102024 220 221 12 Linguagem e cultura Ao investigar as relações entre linguagem e cultura LéviStrauss 2003 86 a 89 observa que a civilização europeia trata a linguagem de maneira que pode ser qualificada de imoderada falase demais Essa maneira de abusar da linguagem não é universal nem mesmo frequen te A maior parte das culturas primitivas usa a linguagem com parci mônia não se fala quando se quer e sem motivo As manifestações verbais são aí frequentemente limitadas a circunstâncias prescritas fora das quais se poupam as palavras LéviStrauss reconhece que o problema das relações entre lingua gem e cultura é um dos mais complicados que existem Podese inicial mente tratar a linguagem como um produto da cultura uma língua reflete a cultura geral da população Mas num outro sentido a linguagem é uma parte da cultura constitui um de seus elementos dentre outros Podese também tratar a linguagem como condição da cultura e por duplo motivo a primeiro porque é sobretudo através da linguagem que o indivíduo adquire a cultura de seu grupo instruise educa a criança pela palavra ralha com ela lisonjeiaa com palavras b segun do porque a cultura possui uma arquitetura similar à da linguagem Nas relações entre linguagem e cultura sempre aparece essa ques tão é a língua que exerce uma ação sobre a cultura ou ao invés é a cultura que exerce ação sobre a língua Não se pode esquecer diz Lévi Strauss que língua e cultura são duas modalidades paralelas de uma atividade mais fundamental o espírito humano É possível afirmar que deve existir qualquer relação entre linguagem e cultura Ambas levaram vários milênios para se desenvolver e essa evolução se desenrolou pa ralelamente nos espíritos dos homens Para definir convenientemente as relações entre linguagem e cul tura LéviStrauss entende que é necessário excluir de início duas hipó teses a primeira não pode haver nenhuma relação entre linguagem e cultura b segunda existe uma correlação total em todos os níveis entre linguagem e cultura É preciso pois considerar uma hipótese que implique uma posição média certas correlações são provavelmente reveláveis entre certos aspectos e certos níveis é preciso encontrar esses aspectos Mas a principal beneficiária dessas descobertas não seria nem a linguística nem a antropologia tal como é concebida atualmente essas descobertas seriam aproveitáveis para uma ciência ao mesmo tempo muito antiga e muito nova uma antropologia entendida em sen Manual antropologia jurídica 001277indd 220 9112010 102024 220 221 tido mais lato ou seja um conhecimento do homem que associe diversos métodos e diversas disciplinas e que poderá revelar um dia as molas secretas que movem esse hóspede presente sem ser convidado aos nos sos debates o espírito humano 2 SOCIEDADES PRIMITIVAS Para que serve o estudo das sociedades primitivas Segundo Lévi Strauss 1993 35 36 esse estudo não visa revelar o primitivo por trás do civilizado Mas na medida em que essas sociedades oferecem ao homem uma imagem de sua vida social em redução pequeno efetivo demográfico e em equilíbrio ausência de classes sociais e repúdio da história elas constituem casos privilegiados no domínio dos fatos sociais permitem perceber o modelo por trás da realidade ou mais precisamente construir com menos esforços o modelo a partir da rea lidade Também é preciso admitir que a razão final desse estudo não é saber o que são em si mesmas as sociedades estudadas mas sim desco brir em que se distinguem umas das outras Para LéviStrauss as sociedades primitivas estão na história o seu passado é tão antigo quanto o das sociedades complexas uma vez que ele remonta às origens da espécie No decorrer de milênios elas passa ram por todo tipo de transformações atravessaram períodos de crise e de prosperidade conheceram guerras migrações aventuras Mas essas sociedades especializaramse em setores diferentes daqueles que as sociedades complexas escolheram Indubitavelmente as sociedades primitivas estão inseridas na his tória mas parece conforme constata LéviStrauss que elas elaboraram e retêm uma sabedoria particular que as incita desesperadamente a resis tir a qualquer modificação em sua estrutura que permitiria à história irromper em seu seio Essa sabedoria segundo LéviStrauss trilha três caminhos a primeiro a maneira como elas exploram o meio garante ao mesmo tempo um nível de vida modesto e a proteção dos recursos natu rais b segundo apesar de sua diversidade as regras de casamento que aplicam apresentam um caráter comum qual seja o de limitar ao extremo e de manter a taxa de natalidade em nível constante c terceiro uma vida política baseada no consentimento e não admitindo outras decisões senão as tomadas por unanimidade parece ter sido concebida para excluir o uso desse motor da vida coletiva que utiliza os desvios diferenciais entre poder e oposição maioria e minoria exploradores e explorados Manual antropologia jurídica 001277indd 221 9112010 102024 222 223 Essas sociedades conforme terminologia adotada por LéviStrauss podem ser chamadas de frias porque o seu meio interno está próximo do zero de temperatura histórica distinguemse por seu efetivo restri to e por seu modo mecânico de funcionamento das sociedades quentes aparecidas em diversos pontos do mundo após a revolução neolítica e em que diferenciações entre castas e classes são solicitadas sem tréguas como fonte de porvir e energia O alcance dessa distinção é sobretudo teórico pois não há provavelmente nenhuma sociedade concreta que em sua totalidade e em cada uma de suas partes corresponda exatamen te a um ou outro tipo A antropologia social obedece portanto a uma dupla movimenta ção a retrospectiva pois os gêneros de vida primitivos estão em vias de desaparecimento motivo pelo qual é necessário recolher o mais rá pido possível todas as lições que essas sociedades podem oferecer e b prospectiva na medida em que tomando consciência de uma evolução cujo ritmo se precipita sentimonos desde já os primitivos das gerações futuras e na medida em que procuramos provar nossa validade aproxi mandonos daqueles que foram e ainda são por pouco tempo tais como uma parte de nós persiste em permanecer Quando após as grandes revoluções neolíticas as grandes cidades estados não apenas do Mediterrâneo mas também do Extremo Orien te impuseram a escravidão construíram um tipo de sociedade socie dade quente em que os desvios diferenciais entre os homens alguns dominadores outros dominados podiam ser utilizados para produzir cultura num ritmo até então inconcebível Desde então alguns homens procuram libertar a humanidade dessa maldição milenar que a obriga a escravizar para que haja progresso Manual antropologia jurídica 001277indd 222 9112010 102024 222 223 XViii noVA AntropologiA AmericAnA 1 CLIFFORD GEERTZ 1926 2006 Adam Kuper relata que em 1973 Talcott Parsons elegeu Clifford Geertz e David Schneider como os antropólogos mais promissores da nova antropologia americana mas enquanto Geertz viria a se tornar o antropólogo do establishment Schneider permaneceria sempre um en crenqueiro indisciplinado A exposição que se apresenta na sequência sobre a noção de cultura proposta por esses dois antropólogos tem como referência a análise de Adam Kuper em seu livro Cultura a visão dos antropólogos Geertz entende que é necessário dar uma dimensão menor ao con ceito de cultura para assegurar dessa forma a sua importância perma nente em vez de enfraquecêla Nesse sentido elabora um conceito estri to para substituir o conceito amplo elaborado por Tylor e amplamente aceito pelos antropólogos O novo conceito de cultura tem uma finalidade é elaborado para ser aplicado à análise de casos específicos Com esse intento Geertz apresenta as seguintes definições para o conceito de cultura a tratase de um sistema ordenado de significados e símbolos em cujos termos os indivíduos definem seu mundo revelam seus achados e fazem seus julgamentos b é um padrão de significados transmitidos historicamente incorporados em formas simbólicas por meio das quais os indivíduos comunicamse perpetuamse desenvolvem seu conhecimento sobre a vida e definem sua atitude em relação a ela c é um conjunto de dispositivos simbólicos para o controle do compor Manual antropologia jurídica 001277indd 223 9112010 102024 224 225 tamento Enfim cultura é um domínio de comunicação simbólica e compreender cultura significa interpretar os símbolos Cultura é um sistema simbólico portanto os processos culturais devem ser lidos traduzidos e interpretados Geertz acredita que o homem é um animal suspenso por teias de significado que ele mesmo teceu Cultura consiste nessas teias de significados e sua análise não é uma ciência experimental em busca de leis mas sim uma ciência interpreta tiva em busca de significados Segundo Geertz as proposições culturais simbólicas fazem mais do que articular como é o mundo elas também oferecem diretrizes sobre como agir nele As proposições culturais fornecem tanto o mode lo do que elas asseguram representar a realidade como os padrões de comportamento e é como um guia de comportamento que elas entram na ação social É essencial portanto distinguir entre os aspectos cultu rais e sociais da vida humana e tratálos como variáveis independentes porém fatores mutuamente interdependentes Cultura é o tecido do significado em cujos termos os seres huma nos interpretam sua experiência e orientam sua ação estrutura social é a forma que a ação assume a rede de relações sociais que realmente existe Cultura e estrutura social são portanto abstrações distintas do mesmo fenômeno Geertz elege a religião como a característica princi pal da cultura e tenta descrever o efeito das concepções e práticas reli giosas sobre determinados processos políticos sociais e econômicos 11 Cultura e religião Geertz como visto define cultura como um sistema simbólico que fornece tanto um relato do mundo como um conjunto de regras para atuar nele A religião faz o mesmo mas de forma ainda mais eficiente descrevendo um cosmo e prescrevendo regras morais A religião é assim uma expressão elevada da cultura A religião portanto deve ser tratada como um sistema cultural mas deve ser também reconhecida como um aspecto privilegiado da cultura a cultura elevada a seu ponto mais alto em seu cerne um agrupamento de símbolos sagrados urdidos em algum tipo de todo ordenado Assim como as culturas as religiões possuem um caráter dual porque nos informa o que o mundo é e como devemos agir nele Os símbolos religiosos asseguram que o mundo é ordenado e por conse guinte satisfazem uma necessidade fundamental que consiste em esca Manual antropologia jurídica 001277indd 224 9112010 102025 224 225 par dos acasos de um universo absurdo e irracional Há ainda que oculto um significado na perda no sofrimento na injustiça e na morte Em suma símbolos religiosos só podem funcionar dessa forma na me dida em que são aceitos e absorvidos A essência da ação religiosa con siste em impor autoridade sobre um complexo de símbolos a metafísi ca que eles formulam e o estilo de vida que eles recomendam Essa é a tarefa do ritual que ao mesmo tempo apresenta simbolicamente uma imagem de ordem cósmica uma visão de mundo e induz predispo sições e motivações O ritual portanto funde uma imagem do mundo um etos e um modelo de comportamento 12 Cultura e ideologia Para Geertz em sistemas em equilíbrio a religião a estrutura social as emoções e as formas convencionais de ação mesclamse e re forçamse entre si Mas em períodos de mudança social os símbolos sagrados não podem mais expressar com tanta clareza as realidades sociais As divisões sociais e políticas podem subverter a intenção do ritual que é a de assegurar que o mundo é ordenado e que a comunida de está unida Interesses particulares insurgem contra interesse nacio nal e se transformam na base de conflitos políticos Geertz ao refletir sobre os novos Estados que começam a se formar após o processo de descolonização nas décadas de 1950 e 1960 entende que esses Estados exigem um líder carismático weberiano que possa conceber um novo modelo de legitimidade uma ideologia porque esta possui a maioria das características da religião Assim como uma religião uma ideologia tem de ser compreendida culturalmente como um siste ma simbólico e portanto como uma forma de arte A ideologia segun do Geertz cria novas formas simbólicas e oferece mapas da realidade social problemática também oferece matrizes para a criação de uma consciência coletiva A ideologia é assim uma forma de religião adequada a épocas conturbadas e a uma modernidade desencantada O fenômeno ideoló gico caracteriza as sociedades que estão passando por mudanças dolo rosas Lutando para institucionalizar novas formas de fazer as coisas os líderes desses novos Estados criam símbolos unificadores e inventam rituais nacionais A ideologia sozinha diz Geertz não resolve os pro blemas mas constitui um ingrediente necessário em qualquer solução O mundo moderno segundo Geertz está desencantado A secula rização corrói as crenças estabelecidas e a religião perde seu monopólio Manual antropologia jurídica 001277indd 225 9112010 102025 226 227 como estrutura para a cosmologia e a moralidade Uma fonte alternati va de significado é o bomsenso entendido como uma sabedoria prática Isso é assim porque na maior parte do tempo os homens vivem no mundo cotidiano e veem a experiência em termos práticos realistas Todavia embora o bomsenso possa ser um instrumento necessário para atuar no mercado lidar com a polícia ou com um vizinho ele não pode ter a pretensão de responder às grandes questões filosóficas ou de inter ferir em assuntos de princípios morais Esse é um domínio da religião Mas com a modernização vem a secularização trazendo em seu bojo um desafio direto à visão religiosa do mundo O bomsenso juntamente com a ciência cria a necessidade de algo mais e também oferece os materiais para a construção de uma alternativa secular à religião uma ideologia As ideologias portanto representam modernos substitutos da religião Para Geertz as crenças ortodoxas não são mais tidas como certas e os clássicos símbolos da religião já não são bastante para sustentar uma fé religiosa adequada Esse é um fenômeno disseminado A secula rização do pensamento implica a ideologização da religião Talvez isso explique a expansão que os diversos fundamentalismos religiosos vêm alcançando nas últimas décadas 13 O método Geertz estabelece o método como tema do seu ensaio mais influen te intitulado Descrição densa por uma teoria interpretativa da cultura O pressuposto mais importante afirma que os dados relevantes da et nografia não são sintetizados a partir de dados brutos As ações das pessoas são levadas em consideração e processadas através do filtro da interpretação Ações são artefatos sinais cujo propósito é transmitir significados O etnógrafo se preocupa portanto não tanto com o que as pessoas fazem mas com o significado do que elas fazem e com as interpretações que fazem das ações umas das outras A tarefa do etnó logo é explicar explicações seus instrumentos interpretações de interpreta ções No lugar do participanteobservador que aprende a viver em outra sociedade e deseja descobrir como as coisas realmente funcionam Geertz propõe que o etnógrafo deve proceder da mesma forma que um estudioso de textos Fazer etnografia diz ele é como tentar ler ou melhor interpretar um manuscrito cheio de elipses incoerências cor reções suspeitas e comentários tendenciosos porém escrito não com os Manual antropologia jurídica 001277indd 226 9112010 102025 226 227 sinais convencionais de som mas com exemplos transitórios de com portamento comum Seu exercício mais famoso nesse gênero é a repre sentação das brigas de galo balinesas como um texto interpretado 14 Brigas de galo Ao analisar as brigas de galo Geertz começa pela noção de jogo profundo Essa noção advém das reflexões do filósofo Jeremy Bentham sobre a irracionalidade do jogo Bentham na linha utilitarista achava que o jogo com apostas era irracional e concluiu que as pessoas de mente fraca deveriam ser protegidas contra ele Geertz sustenta que quando os balineses se entregam ao que Bentham chama de jogo profun do fazendo apostas altas eles estão expressando valores comuns que transcendem os cálculos mais elevados de ganhos e perdas materiais O que estava em jogo nas brigas de galo não era apenas dinheiro mas status Vale dizer o que a briga de galo expõe de forma mais contunden te são as relações de status e o que ela revela é que essas relações são uma questão de vida ou morte Os donos dos galos de briga seus parentes e vizinhos fazem apos tas altas mas o dinheiro é secundário Participar dessas disputas repre senta expor o próprio self em público O galo representa seu dono e as pessoas ligadas a ele Consequentemente é o status que está em jogo A análise de Bentham de jogo profundo fracassa porque ele considera ape nas as apostas utilitárias mundanas O que dá significado mais profun do às brigas de galo balinesas não é o dinheiro em si mas o que elas geram a migração da hierarquia de status balinesa para o cenário da briga de galo e quanto mais dinheiro estiver envolvido maior essa migração Nessa conjuntura o que interessa segundo Geertz é a interpre tação que a plateia dá a toda a cena Sua função é interpretativa tratase de uma leitura balinesa da experiência balinesa uma história que eles contam sobre si mesmos Todo povo ama sua própria violência A briga de galo é a reflexão balinesa sobre a sua violência Geertz retrata uma sociedade cuja vida real é governada por ideias expressada por meios de símbolos e representada em rituais O etnólo go só precisa ler os rituais e interpretálos Não há nada fora do texto e se os textos não falarem de política e economia então esses assuntos podem ser ignorados Nos seus últimos trabalhos a noção de cultura assumiu um significado de valores que predominam numa sociedade Manual antropologia jurídica 001277indd 227 9112010 102025 228 229 incorporados de forma mais perfeita nos rituais religiosos e na alta arte da elite Essa mudança mereceu algumas críticas Alguns afirmam que ele abandonou o verdadeiro caminho quando deixou de se preocupar com história social mudança econômica e revolução política e começou a tratar a cultura como força motriz dos assuntos humanos e no final como um campo de estudo autossuficiente De qualquer modo os antropólogos reconhecem que Geertz in troduziu na antropologia uma abordagem hermenêutica sofisticada baseada na interpretação de textos Essa interpretação possui a força de revelar os processos criativos e poéticos pelos quais objetos culturais são inventados e tratados como significativos Nesse sentido a etnogra fia é tida como um processo de interpretação e não de explicação 2 DAVID SCHNEIDER 1918 1995 Schneider apresenta como tema principal de seus estudos a análise dos sistemas de parentesco em termos estritamente culturais Seu traba lho mais comentado American Kinship a Cultural Account versa sobre o parentesco americano em que procura estabelecer algumas teses polêmi cas tais como a o ato sexual é um símbolo b o amor é uma convenção c parentesco não é natural é cultural d existe apenas um único sistema de parentesco americano portanto uma única cultura americana O parentesco sempre foi tido como o campo em que a antropologia cultural ou social podia afirmar ter registrado avanços concretos A antropologia sempre se fundamentou na certeza de que o parentesco constituía a base dos sistemas sociais primitivos portanto reivindicava como sua a teoria sociológica do parentesco Schneider realiza um esfor ço de desconstrução dessa tese ao pretender provar que a teoria do pa rentesco está fundamentada numa ilusão etnocêntrica que seus conceitos básicos família descendência genealogias são criações culturalmente específicas dos europeus e dos norteamericanos Assim segundo ele quando os antropólogos escrevem sobre o parentesco estão simplesmen te projetando suas próprias obsessões culturais em outras pessoas 21 Parentesco e cultura Schneider tem por objetivo oferecer uma visão cultural do paren tesco segundo um sistema de símbolos que representa o parentesco americano Para isso considera o sistema de símbolos como autônomo e independente Por símbolo diz ele refirome a alguma coisa que re Manual antropologia jurídica 001277indd 228 9112010 102025 228 229 presenta algo mais em que não existe uma relação necessária ou intrín seca entre o símbolo e aquilo que ele simboliza Segundo Schneider não apenas os símbolos são arbitrários mas os próprios referentes As coisas ou ideias que eles representam são constructos culturais portanto pode ser que não tenha nenhuma reali dade objetiva Como exemplo cita a ideia de fantasma Os informantes podem ter todos os tipos de noções fantásticas sobre fantasmas mas o etnógrafo não tem meios de saber se eles existem ou não Uma vez que é perfeitamente possível formular o constructo cultural de fantasma sem na verdade jamais ter visto sequer um único exemplar essa deveria ser uma verdade universal e sem referência à observabilidade ou não de objetos que podem supostamente referirse aos constructos culturais Nessa linha de raciocínio os símbolos de parentesco deveriam ser tratados como se fossem arbitrários Assim como um símbolo religioso pode referirse a fantasma os símbolos de parentesco denotam ideias construídas culturalmente E no caso do parentesco americano para Schneider o símbolo dominante é o ato sexual O fato da natureza sobre o qual o constructo cultural da família se fundamenta é o ato sexual Essa figura fornece todos os símbolos centrais do parentesco americano Para Schneider a relação sexual entre marido e mulher não é apenas um ato que define especificamente a relação conjugal mas cons titui também um sinal de amor Os pais compartilham uma substância comum com os filhos a qual gera outro tipo de amor o amor de paren tes consanguíneos Existem portanto dois tipos diferentes de amor o conjugal e o cognático O amor erótico está relacionado com o casamen to o amor cognático com laços de sangue O amor conjugal é erótico sendo que o ato sexual representa sua encarnação concreta O amor cognático não tem nada de erótico mas também é simbolizado pelo ato sexual É o símbolo do amor que liga o amor conjugal ao amor cogná tico e relaciona ambos através do símbolo do ato sexual O ato sexual é amor e constitui um sinal de amor e amor repre senta o ato sexual e é um sinal dele Os dois tipos diferentes de amor conjugal e cognático o primeiro erótico e o outro não no entanto são símbolos de união ser um só estar junto pertencer um ao outro Amor pode ser traduzido livremente como solidariedade difusa e duradoura 22 Natureza e cultura Para Schneider os americanos constroem uma oposição entre natureza e cultura mas valorizam mais a cultura do que a natureza A Manual antropologia jurídica 001277indd 229 9112010 102025 230 231 natureza tem algumas características boas e outras perigosas até mes mo nocivas motivo pelo qual deve ser mantida sob controle moral e cultural Os seres humanos são uma mistura de natureza e cultura mas é sua identidade cultural que os torna humanos A moralidade doma o animal sob a pele A natureza é aprimorada e moralizada pela aplicação da lei Para Schneider essas noções americanas sobre a ordem da lei constituíam algo bastante semelhante à definição antropológica clássi ca de cultura Nos Estados Unidos é a ordem da lei ou seja a cultura que decide as contradições entre homem e natureza que representam contradições dentro da própria cultura Segundo ele essa oposição entre natureza e cultura é que estru tura o pensamento norteamericano sobre parentesco Um indivíduo pode ser parente por natureza ou por cultura Existem portanto pa rentes por consanguinidade e por afinidade Uma pessoa é parente quando está ligada por laços de sangue ou por alianças matrimoniais Os parentes por natureza nascem parentes os parentes por afinidade são adquiridos por meio do casamento ou adoção resulta de uma opção que até pode ser anulada A relação por afinidade portanto é estabele cida por costume e orientada por um código de conduta convencional uma regra moral que expressa amor As relações naturais também são motivadas por um código de conduta moral apropriado que se baseia no amor o que implica uma ética de solidariedade difusa e duradoura 23 Código de conduta e laços de sangue De acordo com Schneider quando os americanos falam de forma abreviada de laços de sangue eles se referem tanto a uma relação bioló gica como a um código de conduta Sangue significa essa combinação de substância e código de conduta que aqueles que têm o mesmo sangue os parentes consanguíneos devem ter Um parente consanguíneo é tratado como parente ou não em função da distância genealógica mede a quantidade de sangue e da distância social que é determinada prin cipalmente por fatores como dispersão geográfica e diferença de classe social Ligações genealógicas não garantem um parentesco verdadeiro Apenas alguns parentes que não pertencem ao círculo familiar mais íntimo são tratados como tal Por outro lado o parente famoso que aparece em muitas genealogias ilustra o fato de que a distância também pode ser obliterada quando convém Manual antropologia jurídica 001277indd 230 9112010 102025 230 231 No que diz respeito ao parentesco por afinidade não estar ligado por laços de sangue segundo Schneider esse parentesco flui de um acordo legal casamento adoção mas observa que pessoas que não são aparentadas podem ser introduzidas no papel de parentes pela aplicação de um código de conduta apropriado como no caso de um amigo da fa mília que é chamado de tio ou tia Se o código de conduta for seguido por si só pode ser suficiente para transformar uma pessoa num paren te Schneider conclui que filhos adotivos sogro sogra e tios indiretos são todos o mesmo tipo de parente parentes por afinidade pessoas que não estão ligadas por laços de sangue mas que mesmo assim seguem o código de conduta próprio dos parentes Para Schneider a conexão genealógica não constitui razão sufi ciente para considerar alguém como parente Os americanos às vezes preferem ignorar os parentes distantes mesmo que estejam conscientes de que existe uma conexão genealógica Tampouco a conexão genealó gica representa uma razão necessária para a identificação de um paren te uma vez que o amigo de minha mãe pode ser meu tio O fator deci sivo é o código de conduta As pessoas são consideradas parentes porque seguem um código de conduta apropriado Com base na noção de código de conduta Schneider sustentou a hipótese de que havia um único sistema simbólico uma única cultura americana As concepções fundamentais de cultura sobre laços de san gue casamento família relacionamentos eram constantes em todas as classes sociais americanas Segundo Schneider os teóricos americanos ainda não tinham conseguido libertarse do mesmo erro antiquíssimo a crença de que a base biológica os fatos da natureza está por trás de todos os sistemas de parentesco Despojado de suas bases biológicas o parentesco não é nada O parentesco não é uma questão de biologia ou de instituições sociais específicas ele só pode ser compreendido apenas em termos culturais As críticas às teses de Schneider não foram poucas Para Kuper não está claro que os valores do parentesco americano se resumam ao ato sexual tampouco que a relação sexual é melhor entendida como um símbolo muito menos um símbolo arbitrário que não tem conexão in trínseca com os fatos da procriação e da paternidade e maternidade Não foram fornecidas evidências que corroborassem essas alegações surpre endentes Outros estudiosos entendem que as evidências indicam que a família e os sistemas de parentesco americanos variam de forma signi ficativa entre grupos étnicos classes sociais e regiões Manual antropologia jurídica 001277indd 231 9112010 102025 232 233 3 SÍMBOLO E DIREITO Geertz define cultura como um sistema simbólico que fornece tanto um relato do mundo como um conjunto de regras para atuar nele Cultura é assim um domínio de comunicação simbólica e compreender cultura significa interpretar os símbolos Schneider por sua vez também procura entender o fenômeno cultural segundo um sistema de símbolos autônomo e independente motivo pelo qual entende o símbolo como alguma coisa que representa algo mais em que não existe uma relação necessária ou intrínseca entre o símbolo e aquilo que ele simboliza O direito sempre teve um grande símbolo que se materializa em uma balança com dois pratos colocados no mesmo nível em posição perfeita tanto na horizontal quanto na vertical A balança é segurada por uma deusa Diké gregos ou Iustitia romanos Às vezes o símbo lo da balança aparece acompanhado de outro símbolo uma espada De acordo com Schneider seria preciso perguntar o que esses símbolos simbolizam De acordo com Geertz poderseia perguntar como in terpretar esses símbolos Esses símbolos fornecem um relato do mun do e um conjunto de regras para atuar nele Nas linhas seguintes apontamos algumas respostas para essas perguntas No poema O trabalho e os dias Hesíodo século VII a C elege o trabalho e a justiça como pilares da virtude do homem simples e traba lhador aquele que não é aristocrata e tem a sua expressão numa posse moderada de bens Diké no poema é a deusa que se encarrega de trazer o direito do céu para a terra A tarefa de Diké entretanto é perturbada pela deusa Hybris Vernant 1977 11 entende que o poema aponta dois tipos de existência humana que são rigorosamente opostos simbolizados por Diké justiça justa medida e Hybris injustiça desmedida A opo sição dikéhybris seria portanto o tema central do poema de Hesíodo A etimologia da palavra diké não é muito clara O conceito é ori ginário da linguagem processual e contém uma matriz de igualdade que permanece no pensamento grego através dos tempos No processo antigo dizse que as partes contenciosas dão e recebem diké O culpado dá diké isto significa uma reparação indenização ou compensação O lesado cujo direito é reconhecido pelo julgamento recebe diké e o juiz reparte diké Assim o conceito de justiça diké passa a ser fixado na expressão dar a cada um o que é seu Significa ao mesmo tempo o pro cesso a decisão e a reparação ou pena O significado evolui no sentido de expressar o princípio que garante essa exigência e no qual se pode Manual antropologia jurídica 001277indd 232 9112010 102025 232 233 apoiar quem for prejudicado pela hybris que corresponde à ação contrá ria ao direito Jaeger 1995 135 Hybris por sua vez é tudo que ultrapassa a medida é o excesso ou desmedida Nas pessoas hybris provoca insolência soberba e presun ção Diké representa o equilíbrio a medida justa capaz de conter o de sequilíbrio provocado pela desmedida e pelo excesso A existência de Diké está condicionada pela existência de Hybris ou seja Diké aparece para conter o excesso e a desmedida dos homens que estão sob o domí nio de Hybris Ferraz Jr 1995 32 ao interpretar o símbolo grego Diké e o romano Iustitia aponta algumas diferenças que merecem ser anotadas Símbolo grego Na mão esquerda de Diké está a balança com os dois pratos sem o fiel no meio na mão direita a deusa segura uma es pada e com os olhos abertos declara existir o justo quando os pratos estiverem em equilíbrio íson donde a palavra isonomia O justo signi fica o que é visto como igual A ideia de justiça na cultura grega adquire essa concepção forte de igualdade Os olhos abertos da deusa têm um sig nificado simbólico Para os antigos os dois sentidos mais intelectuais são a visão e a audição A visão simboliza a contemplação e especulação o saber puro a audição implica o valorativo as coisas práticas o saber agir a prudência Assim os olhos abertos apontam para uma concepção abstrata que precede em importância o saber prático Além disso o fato de a deusa carregar uma espada mostra que os gregos conectam o co nhecimento do direito com a força bia necessária para executálo O equilíbrio e a harmonia necessários entre direito diké e força bia deve prevalecer na cidade Símbolo romano Iustitia tem os olhos vendados e não carrega a espada segura a balança com os dois pratos e o fiel no meio com as duas mãos Ela declara o direito jus quando o fiel está completamente ver tical perfeitamente reto derectum Os olhos vendados mostram que a concepção dos romanos sobre o direito ligase a um saber prático saber agir um equilíbrio entre a abstração e o concreto Os juristas romanos de modo preponderante não elaboram teorias abstratas sobre o justo em geral como os gregos mas construções operacionais dando extre ma importância à palavra falada donde a proveniência de lex do verbo legere ler em voz alta A atividade precípua do jurisconsulto é o jus dicere que para exercêla precisa de uma atitude firme segurar a ba lança com as duas mãos sem a necessidade da espada A ideia de justiça Manual antropologia jurídica 001277indd 233 9112010 102025 234 235 aparece na cultura romana com essa concepção forte de ordem pacificadora em conexão com a autoridade que deve ser obedecida sem a necessida de de violência Os símbolos balança ou espada significam algo mais que os pró prios símbolos também fornecem um relato do mundo e regras para atuar nele porque a simboliza a justiça como igualdade e retidão b relata a existência de um poder Diké ou Iustitia que diz o direito e está acima das partes para executálo c estabelece que justiça é igualdade reciprocidade e também ordem pacificadora pratos em equilíbrio e ainda vingança e castigo espada na mão A balança e a espada simbo lizam dois modelos de retribuição ou de reparação do status quo violado a a balança simboliza um modelo horizontal visa à equiparação de uma pretensão e de uma contraprestação e b a espada simboliza um mode lo vertical uma hierarquia a ser protegida e mantida retribui agressi vamente uma ameaça agressiva Enfim os pratos na horizontal simbolizam a justa medida a vir tude do homem moderado que sabe e precisa controlar seus impulsos e paixões Esse é o ideal ético do homem que pratica a phrónesis gregos ou prudentia romanos que constitui a mais alta qualidade moral a se opor aos excessos à desmedida Manual antropologia jurídica 001277indd 234 9112010 102025 234 235 XiX culturA 1 CULTURA COMO OBJETO DA ANTROPOLOGIA Para Talcott Parsons as ciências sociais deveriam ser organizadas em áreas funcionais e a antropologia ficaria encarregada de uma tarefa específica o estudo da cultura Parsons reconhece que não existe um consenso a respeito da definição do conceito de cultura motivo pelo qual entende que os antropólogos devem aceitar uma concepção de cultura precisa e rigorosamente limitada definida por sua posição numa trindade de forças que moldam a ação personalidade relações sociais e ideias e valores Segundo ele apenas por meio de uma definição com esse alcance a antropologia pode alcançar o status de uma ciência em pírica analítica independente da sociologia e da psicologia KUPER 2002 80 81 Parece estar longe o consenso entre os antropólogos sobre o con ceito de cultura haja vista que já foram classificadas 164 definições Dentre estas 157 foram elaboradas pelos cientistas sociais norte americanos na maioria antropólogos Diante dessa quantidade de de finições podese dizer que o termo cultura é dotado de uma imensa ambiguidade 11 Cultura termo ambíguo O termo cultura conforme observações de Abbagnano 2003 229 possui inicialmente dois significados básicos No primeiro e mais an Manual antropologia jurídica 001277indd 235 9112010 102025 236 237 tigo significa formação individual da pessoa humana ou seja aquilo que os gregos denominavam paideia formação do homem e os romanos humanitas educação do homem No segundo significado o termo indi ca o conjunto de obras humanas ou seja o conjunto dos modos de vida criados adquiridos e transmitidos de uma geração para a outra entre os membros de determinada comunidade ou sociedade Nesse significa do cultura não é a formação do indivíduo em sua humanidade mas é a formação coletiva e anônima de um grupo social nas instituições que o definem Esse segundo significado começa a aparecer no século XVIII com a filosofia iluminista No século XIX o termo cultura passa a indicar o conjunto dos modos de vida de um grupo humano determinado sem referência ao sistema de valores para os quais estão aqueles Assim cultura passa a designar tanto a sociedade mais progressista quanto as formas de vida social mais rústicas e primitivas Esse significado neutro tem a vantagem de não privilegiar um modo de vida em relação a outro na descrição de um todo cultural De fato para um antropólogo um modo rústico de cozer um alimento é um produto cultural tanto quanto uma sonata de Beethoven Edward Tylor em seu livro Cultura primitiva de 1871 foi o primei ro a apresentar uma definição para o conceito de cultura Segundo ele cultura é todo o conjunto de obras humanas portanto tratase de um todo complexo que abrange conhecimento crença arte princípios morais leis costumes e várias outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma comunidade ou sociedade Para alguns antropó logos o problema dessa definição é que ela reúne uma grande quantida de de elementos ou traços culturais que permite que uma cultura seja descrita mas dificulta ou impede a sua análise MELLO 1982 40 Após Tylor apareceram outras tantas definições Cabe mencionar algumas a Ralph Linton entende que a cultura de qualquer sociedade consiste na soma total de ideias reações emocionais condicionadas a padrões de comportamento habitual que seus membros adquiriram por meio da instrução ou imitação b Franz Boas define cultura como a totalidade das reações e atividades mentais e físicas que caracterizam o comportamento dos indivíduos que compõem um grupo social c Ma linowski diz que cultura é um composto integral de instituições par cialmente autônomas e coordenadas que em seu conjunto tende a sa tisfazer toda a amplitude de necessidades fundamentais instrumentais Manual antropologia jurídica 001277indd 236 9112010 102025 236 237 e integrativas do grupo social d Parsons define cultura como um discurso simbólico coletivo sobre conhecimentos crenças e valores toda comunidade tem sua própria cultura com seus valores específicos que a distingue de todas as outras e Clifford Geertz entende que cultura é um sistema ordenado de significados e símbolos em cujos termos os indivíduos definem seu mundo revelam seus achados fazem seus jul gamentos comunicamse e exercem o controle do comportamento Valores leis práticas crenças e instituições variam de formação social para formação social motivo pelo qual os antropólogos em geral falam em culturas no plural e não em cultura no singular Em síntese podese dizer que cultura é o modo próprio e específico da existência dos seres humanos É a cultura que distingue os homens dos outros animais por isso se diz que os animais são seres naturais os humanos seres culturais 12 Surgimento da cultura Uma preocupação da antropologia consiste em determinar em que momento e de que maneira os seres humanos se afirmam como diferen tes da natureza fazendo surgir o mundo cultural A antropologia pro cura uma regra ou norma capaz de estabelecer o momento da separação homemnatureza como instante de surgimento das culturas Nisso também não há consenso Alguns antropólogos entendem que essa di ferença surge no momento em que os humanos inventam uma lei que quando transgredida implicará a pena de morte do transgressor exi gida pela comunidade a lei da proibição do incesto desconhecida pelos animais Para outros a diferença é estabelecida quando os humanos definem uma lei que se transgredida causa a ruína da comunidade e do indivíduo a lei que separa o cru do cozido desconhecida dos animais Há ainda aqueles para os quais o que distingue a sociedade humana da sociedade animal é a forma de comunicação através da troca de sím bolos CHAUÍ 2002 294 13 Cultura e valores Kroeber e Kluckhohn in KUPER 2002 85 entendem que os valores constituem as propriedades mais características e mais impor tantes da cultura Segundo esses teóricos os valores fornecem a única base para a compreensão total da cultura pois a verdadeira organização de todas as culturas ocorre fundamentalmente em termos dos seus Manual antropologia jurídica 001277indd 237 9112010 102025 238 239 valores e esses valores são variáveis e relativos e não predeterminados e eternos Para avaliar os valores dos outros é preciso adotar uma pers pectiva relativista e reconhecer que toda sociedade por intermédio da sua cultura busca e até certo ponto encontra valores É esse relativis mo que distingue acima de tudo a abordagem antropológica da cultu ra das abordagens mais antigas Para Kroeber e Kluckhohn a cultura consiste em padrões explíci tos e implícitos em comportamento adquirido e transmitido por sím bolos E o núcleo essencial da cultura consiste em ideias tradicionais e especificamente em valores a elas vinculados Na tradição alemã se gundo Kuper 200297 a cultura era tratada como um sistema de ideias e valores expressados por meio de símbolos e incorporados à religião e às artes Ao absorver e adotar os valores culturais o indivíduo encon trava um propósito na vida e um sentido de identidade Parsons con forme observa Kuper situou essa ideia dentro da sua teoria geral da ação social Em seguida convidou os antropólogos a estudála como uma contribuição para o exercício interdisciplinar Assim os antropó logos foram estimulados a ignorar a biologia as instituições sociais e as questões históricas uma vez que elas se tornaram temas de outras disciplinas Em 1958 Parsons e Kroeber publicaram um manifesto intitulado Conceito de cultura e de sistema social no qual estabeleceram Achamos conveniente definir o conceito de cultura de forma mais restrita do que a tradição antropológica norteamericana tem feito restringindo sua re ferência a um conteúdo transmitido e criado e a padrões de valores ideias e outros sistemas simbólicos significativos como fatores na formação do comportamento humano e dos produtos desse comportamento Por outro lado sugerimos que o termo sociedade ou de forma mais geral sistema social seja usado para designar o sistema relativo específico de interação entre indivíduos e coletividade in KUPER 2002 98 Para Parsons o método apropriado ao estudo da cultura deveria consistir nos procedimentos da interpretação intuitiva de Weber caso a cultura fosse concebida como um mundo simbólico de ideias e valores 14 Pluralidade de culturas Até o século XIX movidos pela ideia de uma história universal das civilizações alguns teóricos entenderam que haveria uma única grande cultura em desenvolvimento da qual as diferentes culturas seriam Manual antropologia jurídica 001277indd 238 9112010 102026 238 239 apenas fases ou etapas No século XX porém movidos pela ideia de que a história é descontínua passouse a entender que não existe apenas uma cultura mas culturas diferentes Existe uma pluralidade de cultu ras porque os valores as leis as crenças as práticas e as instituições variam de formação social para formação social T S Eliot in KUPER 2002 61 ao analisar o conceito de cultu ra assim se expressa por cultura refirome primeiramente ao que os antropólogos querem dizer o modo de vida de um determinado povo que vive junto num mesmo lugar Essa cultura pode ser vista em suas artes seu sistema social seus hábitos e costumes e sua religião Mas tudo isso junto não constitui a cultura uma cultura é mais do que a reunião de artes costumes e crenças religiosas Todas essas coisas agem entre si e para compreender verdadeiramente uma é preciso compre ender todas Em suma a cultura inclui todas as atividades e interesses característicos de um povo Ela não está confinada a uma minoria pri vilegiada mas abarca o majestoso e o humilde a elite e o popular o sagrado e o profano Para Eliot é a diversidade de cultura que deve ser valorizada O ideal de uma cultura mundial comum é segundo ele uma noção mons truosa Eliot entende que uma cultura mundial que fosse simplesmente uniforme não seria cultura Uma cultura mundial implica uma humani dade desumanizada Devemos aspirar segundo ele a uma cultura mun dial comum desde que não diminua a particularidade das partes que a compõem Ele também alertou para o fato de que variedade cultural provocaria conflito Em última análise diz ele religiões antagônicas significam culturas antagônicas e religiões não podem ser conciliadas KUPER 2002 63 2 CULTURA E DIREITO Alguns antropólogos como visto entendem que as característi cas mais significativas da cultura são os seus valores Alguns teóricos do direito também entendem que os valores são fundamentais para compreender o fenômeno jurídico Miguel Reale 1999 por exemplo entende que o direito é fruto da experiência e localizase no mundo da cultura portanto o direito possui uma dimensão valorativa que não pode ser desprezada Fato valor e norma são segundo ele os elementos constitutivos da experiência jurídica Esses elementos sempre se implicam e se estruturam numa conexão necessária e cons Manual antropologia jurídica 001277indd 239 9112010 102026 240 241 tituem assim uma tridimensionalidade que pode ser estática dinâmi ca ou de integração Reale elabora uma teoria teoria tridimensional na qual estabelece que a estrutura do direito é tridimensional porque a norma que disci plina os comportamentos individuais e coletivos pressupõe dada situ ação de fato referida a determinados valores Na medida em que isso se coloca como um problema para o jurista surge a necessidade de escla recer as relações entre fato valor e norma Esses elementos integrantes do direito fato valor e norma estão em permanente atração posto que o fato tende a realizar o valor mediante a norma Por essa razão a conexão entre esses elementos é denominada dialética da implicação e da polaridade ou simplesmente dialética da complementaridade A correlação entre fato valor e norma permite entender o direito como um sistema aberto dependente de outros que o abrange e circuns creve Miguel Reale porém adverte que a atitude do jurista não pode ser reduzida ou confundida com a atitude do sociólogo A categoria do jurista segundo ele é a categoria do deverser pois o direito só compre ende o ser referido ao deverser Enfim Reale propõe para a ciência jurí dica nos termos do culturalismo uma metodologia de caráter dialético capaz de dar ao teórico do direito os instrumentos de análise do fenô meno jurídico visto como unidade sintética de três dimensões norma tiva fática e valorativa Na esfera do valor Reale afirma que a pessoa humana é o valorfonte de todos os valores O termo cultura como visto abriga muitos significados mas em qualquer deles cultura e direito aparecem vinculados porque o fenô meno jurídico constitui um dos aspectos da cultura Cultura é um con ceito que pode demonstrar não apenas as conexões do direito com a antropologia mas também que os problemas que as sociedades atual mente enfrentam envolvem inexoravelmente questões culturais Aliás conforme observa Adam Kuper 2002 21 22 cultura é o termo da moda visto que nele se insinuam todos os problemas da vida contem porânea e apesar de sua ambiguidade e diversidade de uso parece que todas as pessoas entendem o seu exato alcance e sentido e portanto dispensaria explicações 21 Termo cultura uso comum Atualmente todos estão envolvidos com cultura Políticos jorna listas e outros atores sociais conclamam uma mudança cultural como Manual antropologia jurídica 001277indd 240 9112010 102026 240 241 forma de resolver problemas de pobreza violência segurança ambien te ou competição empresarial Falase de diferenças culturais entre gera ções sexos religiões e até entre equipes de futebol agências de propa ganda e grupos de jovens É comum dizer que a cultura do índio está ameaçada pela cultura do civilizado Os fundamentalistas islâmicos en tendem que a maior ameaça à sociedade deles é a cultura do Ocidente Até o empresário aproveita para defender seus interesses econômicos com o argumento de defender a cultura Nesse sentido um empresário japonês rebate as alegações de que o Japão deveria liberalizar seus acor dos de comércio para permitir uma maior competição de empresas es trangeiras afirmando que reciprocidade significaria alterar as leis para aceitar sistemas estrangeiros que podem não ser adequados à cultura japonesa KUPER 2002 21 22 Talvez por esses motivos alguns teóricos entendem que as prin cipais fontes ou causas dos conflitos no século XXI serão culturais Assim um empresário norteamericano explicou que a invasão do Iraque não teve como causa principal a necessidade econômica de empresas norte americanas em explorar e manter o fluxo petrolífero iraquiano mas o desejo de levar àquele povo uma cultura mais elevada fundada nos há bitos e valores ocidentais Na tentativa de ocultar interesses egoísticos alguns políticos e empresários apelam para o conceito de cultura e muitas vezes manipu lam os discursos dos antropólogos Isso ocorre porque mesmo no âmbito da antropologia o debate em torno do conceito de cultura está longe de ser pacífico Há nesse sentido por um lado os multiculturalis tas que entendem que é preciso preservar as culturas dos diferentes povos disso se aproveita o empresário japonês e por outro lado os uniculturalistas que entendem que é preciso unificar na cultura ociden tal as culturas de todos os povos disso se aproveita o empresário norteamericano Talvez no mundo empresarial a palavra cultura seja isso mesmo algo para ser manipulado tendo em vista a finalidade da empresa que é o lucro motivo pelo qual é usada sem rigor ou critério Assim serve até para justificar o fracasso em fusão de empresas cultu ras incompatíveis ou a deportação de imigrantes clandestinos não se adaptaram à cultura local Percebese que é bastante elevado o número de temas que evocam o conceito de cultura Importante porém é perceber que em todos eles está latente o aspecto jurídico Manual antropologia jurídica 001277indd 241 9112010 102026 242 243 22 Fluxo de culturas Os antropólogos em geral entendem que toda cultura é o resul tado da mistura de traços culturais de diversas culturas Não existe portanto uma cultura genuína A colonização e depois a globalização do comércio e das comuni cações provocaram a ocidentalização do mundo nos aspectos econômi cos políticos jurídicos e intelectuais Esse fenômeno facilitou a presen ça de europeus e a difusão da cultura europeia em todos os lugares do mundo mas fez com que a Europa ficasse exposta ao fluxo de imigran tes que carregam consigo uma cultura que embora contenha traços da cultura europeia parece possuir uma configuração diferente Esse fluxo imigratório tornouse um problema para os governos dos países centrais especialmente a Europa e os Estados Unidos O Brasil também está exposto ao fluxo imigratório contudo até o momento isso não tem constituído um problema relevante O Brasil e os demais países da América Latina sempre estiveram submetidos à cultura europeia e no decorrer do século XX também à cultura norteamericana As instituições jurídicas e políticas brasileiras são reproduções dos modelos adotados naqueles países Além disso o comércio e as comunicações favorecem os países centrais no sentido de impor seus hábitos às populações dos países periféricos Diante dessa aculturação de séculos é possível dizer que não há muita coisa na cul tura europeia ou na norteamericana que possa causar estranhamento aos brasileiros Pelos mesmos motivos também é possível dizer que não há muito na cultura brasileira capaz de provocar um radical estranha mento nos europeus ou nos norteamericanos Ocorre porém que a mudança do curso imigratório das populações colocou em evidência o problema da diversidade de cultura ou diferen ças culturais Não raras vezes essas diferenças têm sido utilizadas para justificar o controle da imigração Embora os imigrantes latinoame ricanos asiáticos africanos geralmente ocupem na Europa e nos Esta dos Unidos posições socialmente subalternas e se disponham a viver clandestinos e a aceitar qualquer trabalho por qualquer salário o fato relevante é que esse fluxo imigratório parece constituir uma ameaça para aqueles países É difícil estabelecer se tal ameaça é cultural polí tica ou econômica ou as três coisas ao mesmo tempo Manual antropologia jurídica 001277indd 242 9112010 102026 242 243 221 A imigração O movimento natural das populações é o deslocamento para regi ões que facilitem sua sobrevivência de forma menos penosa As guerras os conflitos internos as perseguições religiosas ou étnicas as esperan ças de enriquecimento a necessidade de manter a administração colonial induziram o movimento imigratório das metrópoles para as colônias e países periféricos Esse movimento significava o deslocamento de po pulações de regiões mais desenvolvidas para regiões menos desenvol vidas colônias ou países periféricos No mundo contemporâneo o movimento parece invertido já que o fluxo imigratório mais intenso parece ser de países mais pobres para países mais ricos Assim os mes mos motivos sobrevivência de forma menos penosa que atraíram os europeus para as colônias e países periféricos provocam agora os mo vimentos imigratórios para a Europa e os Estados Unidos Indubitavel mente as imigrações têm incomodado os países centrais prova disso são as decisões desses governos no sentido de restringilas ao máximo mediante o uso de barreiras burocráticas jurídicas ou mesmo de con creto como é o caso dos muros que os Estados Unidos ergueram na fronteira com o México A presença de africanos asiáticos e latinos na Europa e nos Estados Unidos é um fato irreversível e caso se mantenham as condições sociais políticas e econômicas atuais somente medidas drásticas poderão conter esse fluxo imigratório Os imigrantes têm provocado alguns sentimentos na população local motivo pelo qual o tema da imigração é tratado com destaque nos debates políticos da Europa e dos Estados Unidos Os políticos de direita que acalentam tendências nazistas ou fascistas têm utilizado o tema para expressar um nacionalismo exacerbado que em algumas ocasiões aparece como a mais pura expressão de uma doutrina racista Assim o tema da imigração quando tratado por políticos ines crupulosos e oportunistas pode transformarse em racismo Os antropólogos afirmam que não existem raças e também não existe cultura genuína existe portanto a mistura de culturas e etnias Essa mistura se tem intensificado com o fenômeno da globalização um processo que se inicia no século XV com as grandes navegações e a subsequente expansão do capitalismo No século XXI o capitalismo eletrônicoinformático é a força motriz da globalização Esse tipo de globalização provoca cada vez mais a compressão do espaço e do tem po A internet e a televisão a cabo permitem a simultaneidade de informa Manual antropologia jurídica 001277indd 243 9112010 102026 244 245 ção e com isso provocam o aniquilamento do tempo Com a internet e a televisão a cabo o mundo se torna pequeno submetese a um processo de encolhimento Um dos efeitos desse encolhimento é aproximar cul turas tidas como diferentes Os indivíduos de culturas diferentes estão compartilhando cada vez em maior número o mesmo espaço geográfico ou virtual As socie dades estão passando por um crescimento imigratório e um desenvol vimento tecnológico absolutamente inéditos que provocam mudanças nas relações sociais Nos Estados Unidos existe determinada região em que as pessoas usam mais de cem línguas Por esse e outros motivos o termo multiculturalismo tem sido substituído por interculturalismo uma forma de compreender as demandas de indivíduos com culturas dife rentes que vivem em um mesmo espaço geográfico A construção do direito depende de análises das mutações culturais e sociais em curso que atingem não apenas a sociedade norteamericana e europeia mas todas as sociedades visto que o crescimento imigratório e o desenvol vimento tecnológico são fenômenos globalizados Assim o aumento da complexidade das sociedades tem colocado em evidência determinados temas que exigem reflexões antropológicas e jurídicas A maioria desses temas ainda que não fossem considerados relevantes já estava presente nas análises dos teóricos desde o século XVI quando a descoberta do Novo Mundo colocou frente a frente indi víduos e culturas diferentes De qualquer modo na atualidade antropó logos e juristas têm de lidar com esses antigos problemas e seus novos desdobramentos e quando o fizerem talvez possam reivindicar não apenas o direito de ser igual mas também o direito de ser diferente 3 DIREITO DE SER IGUAL E DIFERENTE A Constituição Federal garante o direito de ser igual e o direito de ser diferente O princípio da igualdade está estabelecido no caput do art 5o nos seguintes termos todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza O direito de ser diferente está expresso em di versos itens do art 5o destacandose dois é inviolável a liberdade de consciência e crença sendo assegurado o livre exercício dos cultos re ligiosos e garantida na forma da lei a proteção aos locais de culto e a suas liturgias inciso VI são invioláveis a intimidade a vida privada a honra e a imagem das pessoas assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação inciso X Manual antropologia jurídica 001277indd 244 9112010 102026 244 245 Não raras vezes o jurista dogmático se atrapalha com essas ga rantias constitucionais que implicam o direito de ser igual e de ser di ferente Esses direitos envolvem direitos das minorias e estão direta mente ligados ao tema antropológico da diversidade de culturas e etnias 31 Direito e cidadania Celso Lafer em A reconstrução dos direitos humanos analisa dentre outras as noções de cidadania igualdade e intimidade diferença sob o enfoque do pensamento de Hannah Arendt Para Arendt a pluralida de humana tem uma característica ontológica dupla a igualdade e a diferença Se os homens não fossem iguais não poderiam entenderse Por outro lado se não fossem diferentes não precisariam de palavras nem de ação para se fazerem entender É com base nessa dupla carac terística que ela insere a diferença na esfera do privado e a igualdade na esfera do público O espaço público é o local de encontro com o outro local em que se encontram homens livres e iguais portanto no qual deve prevalecer para alcançar a democracia o princípio da igualdade Esse não é dado pois as pessoas não nascem iguais e não são iguais nas suas vidas A igualdade resulta da organização humana é um construído portanto um produto cultural Ela é um meio de igualar as diferenças através das instituições Perder o acesso ao espaço público significa perder o acesso à igualdade Aquele que se vê destituído da cidadania ao verse limita do à esfera do privado fica privado de direitos pois estes só existem em função da pluralidade de homens ou seja da garantia tácita de que os membros de uma comunidade dãose uns aos outros Cidadania é o direito de ter direitos Nesse sentido o homem pri vado de cidadania não tem sequer direito de ter direitos Com base nessa definição Celso Lafer analisa o problema do apátrida mas algumas de suas conclusões podem ser estendidas aos imigrantes ilegais e aos refugiados também espalhados por quase todos os países do mundo O drama dos imigrantes ilegais não é apenas o de terem perdido o tecido social em que nasceram e no qual estabeleceram um lugar no mundo Consiste principalmente na perda de um elemento de conexão com a ordem jurídica interna do país no qual se encontram O imigran te ilegal vive à margem da lei sem direito à residência ou ao trabalho transgredindo a ordem jurídica do país no qual se encontra Sem come ter crime está sempre sujeito a ir para a cadeia pois a sua mera presen Manual antropologia jurídica 001277indd 245 9112010 102026 246 247 ça ou existência naquele território constitui uma anomalia O único modo que o imigrante ilegal tem para estabelecer um vínculo com a ordem jurídica nacional é cometer um crime Um crime por exemplo um pequeno furto passa a ser uma forma paradoxal de recuperar certa igualdade humana pois o criminoso mesmo o imigrante ilegal vêse tratado como qualquer outra pessoa nas mesmas condições Só como transgressor da lei pode o imigrante ilegal ser protegido pela lei Enquanto durar o julgamento e o pronunciamento de sua sen tença estará a salvo daquele domínio arbitrário da policia contra a qual não existem advogados nem apelações Os imigrantes ilegais não perdem direitos eles simplesmente não os têm São elementos indesejáveis que vivem no limbo da sociedade e por isso supérfluos e descartáveis Há nesse sentido uma imensa distância entre os direitos formalmente consagrados nas declarações de direitos humanos firmadas pelas nações e nas leis internas dos países e a realidade de fato a que eles se reportam A existência de apátridas imigrantes ilegais e refugiados repre senta uma ruptura com o princípio da isonomia na medida em que pare ce não fazer mais sentido falar que todos são iguais perante a lei Se as leis não são iguais para todos o princípio de isonomia perde a sua con dição de critério de organização da ordem jurídica estatal 32 Direito e minorias Conforme observações de Celso Lafer o problema dos apátridas e por conseguinte dos imigrantes ilegais e refugiados coloca em evi dência a questão das minorias que hoje tornouse um problema uni versal A globalização da economia do comércio e dos meios de comu nicação os conflitos internos que culminam com a instauração de governos ditatoriais e também o processo de descolonização particu larmente na África e na Ásia todos esses fatos além de outros fazem aparecer de forma mais visível o problema das minorias Minorias são grupos numericamente inferiores ao resto da população de um Estado e numa posição não dominante num país mas que possuem objetiva mente características étnicas religiosas ou linguísticas distintas do resto da população e que subjetivamente desejam preservar a sua cul tura as suas tradições a sua religião e a sua língua Apenas para situar a universalidade do problema eis alguns exem plos de minorias que se formaram a partir de conflitos ou guerras a na África os conflitos políticos e as guerras internas especialmente entre Manual antropologia jurídica 001277indd 246 9112010 102026 246 247 Etiópia e Somália provocaram o aparecimento de mais de seis milhões de refugiados b os refugiados palestinos representam uma população superior a dois milhões de pessoas c A Revolução cubana deu origem a mais de um milhão de refugiados d o mesmo vale para a guerra do Vietnã do Laos do Camboja do Afeganistão e as ditaduras na Amé rica Latina provocaram e êxodo de mais de um milhão de pessoas f o processo de descolonização provocou o êxodo nas antigas colônias Uma parte desse contingente foi para Europa e Estados Unidos Também merece destaque o problema de minorias em seus próprios países a a África do Sul ainda se encontra às voltas com o problema do apartheid que parece mais profundo do que se imaginava na medida em que envolve diversas etnias b os demais Estados africanos são com postos por comunidades étnicas linguísticas e religiosas diferenciadas c na Nigéria por exemplo diferenças étnicas e linguísticas levaram à guerra civil no bojo da qual dramaticamente desapareceu a proposta de um novo Estado Biafra d na Ásia inseriramse igualmente na vida da população dos novos Estados relevantes diferenças étnicas linguís ticas e religiosas e diferenças religiosas levaram a Índia colonial ingle sa a dividirse em dois Estados Paquistão e Índia cuja tensão pelo controle da região de fronteira Caximira permanece até hoje f dife renças entre católicos e muçulmanos mantêm viva a eclosão de outra guerra civil no Líbano g no Iraque a ocupação norteamericana colo cou em evidência a pretensão dos curdos minoria étnica de fundar um país independente h o Chipre enfrenta o problema das relações entre a maioria grega e a minoria turca i a Sérvia não aceita a independência do Kosovo j o Tibet não aceita a dominação chinesa etc Todos os eventos antes destacados provocam imigrações porque é penoso viver em zonas de conflito Parece que a causa principal do movimento imigratório não é simplesmente a busca de um bom empre go mas a fuga da guerra dos conflitos armados das perseguições Quando se retira o véu da ignorância é possível enxergar nesses even tos guerras conflitos perseguições a presença ostensiva justamente daqueles governos que se posicionam contra as imigrações O movi mento imigratório tem portanto estreitas ligações com a desordem mundial cujos principais protagonistas são os países líderes Celso Lafer observa que em virtude desses problemas os direitos das minorias não foram contemplados nem na Carta das Nações Unidas nem na Declaração Universal dos Direitos do Homem que cuida apenas do direito à igualdade e do direito à não discriminação Os direitos das Manual antropologia jurídica 001277indd 247 9112010 102026 248 249 minorias foram consagrados posteriormente no art 27 do Pacto Inter nacional sobre Direitos Civis e Políticos com o intuito de promover medidas especiais em prol de minorias étnicas religiosas e linguísticas para que estas possam ter a sua própria vida cultural professar e pra ticar a sua própria religião e empregar o seu idioma Essas medidas não podem ser vistas como uma ameaça à unidade nacional Celso Lafer também lembra as medidas de proteção contidas no Estatuto dos Refugiados de 1951 e no seu Protocolo Adicional de 1966 que estabelece a qualificação de qualquer pessoa como refugiado em virtude da existência de um fundado receio de perseguição por motivos de raça religião nacionalidade participação em determinado grupo social ou convicções políticas Por esses motivos em certas regiões os refugiados chegam a alcançar o índice de 15 do total da população Diante dessa complexidade mundial cabe mencionar o pensamen to de Stephen J Pollak sobre o Expatriation Act de 1954 e suas reper cussões sobre a Suprema Corte norteamericana Conforme relata Celso Lafer Pollak em artigo de 1955 analisa o significado mais amplo do Expatriation Act que no contexto do anticomunismo prevalecente nos Estados Unidos contemplava a desnacionalização de indivíduos como pena para a subversão ou seja autorizava o Judiciário a condenar cidadão norteamericano à pena da perda de sua nacionalidade Em síntese Pollak argumenta que a perda da nacionalidade representa uma privação do direito de ter direitos e conclui pela inconstitucionalidade da citada lei Inicialmente a reflexão de Pollak marcou o voto minoritário dis cordante do Chief Justice Warren da Suprema Corte voto este acom panhado pelos ministros Black e Douglas no caso Perez v Brownell No seu voto Warren afirma a cidadania é o direito básico do homem uma vez que é nada menos do que o direito a ter direitos O ponto de vista de Warren acabou sendo vitorioso em Trop v Dulles também decidido em 1958 No seu voto subscrito pelos ministros Black Douglas e Whit taker Warren afirma a cidadania não é uma licença que expira com a má conduta A cidadania não se perde a cada vez que um dever de cida dania é esquivado E a privação da cidadania não é uma arma que o governo pode usar para expressar seu descontentamento com a condu ta de um cidadão por mais repreensível que esta conduta possa ser Em virtude dessa e de outras decisões parece que o direito a ter direitos foi consagrado na jurisprudência norteamericana fato que pode repre sentar uma esperança para os imigrantes clandestinos naquele país Manual antropologia jurídica 001277indd 248 9112010 102026 248 249 XX proceSSo culturAl 1 MUDANÇA CULTURAL Mudança cultural é qualquer alteração na cultura Pode ocorrer com maior ou menor facilidade dependendo do grau de resistência ou aceitação A mudança pode surgir em consequência de fatores internos descoberta invenção conflito ou externos difusão cultural imigração As culturas também resistem às tentativas de mudanças tendem a se estabilizar a educação e as sanções sociais são formas de estabilizar uma cultura Tanto as sociedades complexas como as sociedades simples estão submetidas a processos culturais isto é às maneiras conscientes ou inconscientes pelas quais as culturas se formam se mantêm ou se transformam As sociedades simples também denominadas sociedades primitivas ou sociedades frias são grupos pequenos indígenas aborígines nos quais as pessoas se conhecem compartilham os mesmos sentimentos e ideias e têm um destino comum O tempo nessas sociedades possui um ritmo lento as transformações são raras e em geral causadas por um acontecimento externo que as afeta As sociedades simples baseiamse em mitos fundadores ou em narrativas que explicam suas origens Os mitos capturam o tempo e oferecem explicações satisfatórias para todos sobre o presente passado e futuro Nessas sociedades todos os seus membros participam da mesma cultura As sociedades complexas também denominadas sociedades civi lizadas ou sociedades quentes são internamente divididas em grupos e Manual antropologia jurídica 001277indd 249 9112010 102026 250 251 classes sociais e nas quais há indivíduos isolados uns dos outros Cada classe social é antagônica à outra ou às outras com valores e sentimen tos diferentes e mesmo opostos Nessas sociedades as relações não são pessoais mas sociais isto é os indivíduos grupos e classes se relacionam pela mediação de instituições sociais como a escola a empresa o comér cio a polícia o Judiciário As sociedades complexas são históricas ou seja para elas as transformações são constantes e velozes Em ritmo lento ou rápido o fato é que as culturas mudam conti nuamente assimilam novos traços ou abandonam os antigos por meio de transmissão difusão invenção aculturação etc Todas as culturas simples ou complexas possuem os seus aspectos sincrônicos estabili zação da cultura e diacrônicos mudanças na cultura 11 Aspectos sincrônicos O processo cultural no seu aspecto sincrônico tende a estabilizar ou cristalizar o padrão valores ideias hábitos costumes de determi nada cultura Vilfredo Pareto in MELLO 1982 85 ao analisar as causas do equilíbrio social atribui um papel significativo ao domínio do incons ciente motivo pelo qual entende que a estabilidade social decorre de uma lógica de sentimentos que teria um papel relevante na manutenção da ordem sociocultural Na sua teoria do equilíbrio social estabelece a hipótese de uma espécie de inércia social que levaria o sistema social a manter certo estado de coisas Na hipótese de uma mudança nesse sis tema surgiriam forças contrárias que permitiriam voltar ao estado an terior A razão desse comportamento seria de cunho psicológico aten dendo aos sentimentos Outros teóricos entendem que a estabilidade sociocultural das populações decorre de um complexo normativo garantido por sanções sociais As normas sociais são impostas aos membros da sociedade e sanciona os seus infratores Nesse sentido podese concluir que a função primordial da cultura é o controle social Assim a cultura pode ser vista como responsável pela manutenção da sociedade ou do convívio social suportável É possível constatar pela observação dos usos cos tumes leis linguagem simbologia o caráter institucional padronizado repetitivo e relativamente fixo das culturas As populações possuem modos consagrados de agir e de dizer as coisas que contribuem para a manutenção do padrão de comportamento MELLO 1982 84 Esse padrão é garantido e reforçado pelas instituições sociais Manual antropologia jurídica 001277indd 250 9112010 102026 250 251 As instituições sociais são os modos tradicionais habituais e legí timos que permitem a determinada sociedade cuidar de seus problemas As instituições família escola empresa polícia Judiciário têm a função precípua de estabilizar a cultura por intermédio do controle social elas existem para transmitir e garantir os valores ideias e costumes de de terminada cultura Nesse sentido as instituições além de garantir a estabilidade da interação social padronizada são padrões normativos institucionalizados e profundamente arraigados na organização social motivo pelo qual são em geral consideradas como padrões naturais Contudo as instituições mudam com o passar dos tempos e precisam fazêlo quando já não lidam adequadamente com os problemas sociais 111 Endoculturação Os antropólogos usam o termo endoculturação para designar o processo de aprendizagem e educação em uma cultura também signi fica o processo que estrutura o condicionamento da conduta dando estabilidade à cultura A endoculturação é nesse sentido um aspecto sincrônico importante na medida em que possibilita a manutenção do padrão cultural de uma sociedade Herskovits 1963 55 usa o termo endoculturação para designar o processo de ajustamento de respostas individuais aos padrões da cultu ra de uma sociedade Segundo ele os aspectos da experiência de apren dizagem que distinguem o homem das outras criaturas e por meio dos quais inicialmente e mais tarde na vida consegue ser competente em sua cultura pode chamarse endoculturação Constitui essencialmente um processo de consciente ou inconsciente condicionamento que se efetua dentro dos limites sancionados por determinado aspecto de cos tume Por esse processo não só se consegue toda adaptação à vida social como também todas aquelas satisfações que embora fazendo natural mente parte da experiência social derivam mais da expressão individu al que da associação com outros no grupo A endoculturação é assim o processo cultural responsável prin cipalmente pela padronização do comportamento humano através da transmissão de valores A endoculturação se estende por toda a vida do indivíduo e dessa forma modela sua personalidade e garante a conti nuidade da cultura Assim nos primeiros anos de vida quando ocorrem as primeiras experiências e contatos com a cultura a criança absorve porque lhe são impostos os condicionamentos fundamentais da cultura Manual antropologia jurídica 001277indd 251 9112010 102026 252 253 como hábitos de comer falar agir pensar Porém à medida que passam os anos o indivíduo pode de forma consciente aceitar ou repudiar os valores culturais que lhe foram impostos pelo processo de endocultu ração Conforme Herskovits 1963 56 a endoculturação do indivíduo nos primeiros anos de vida é o mecanismo dominante para a formação de sua estabilidade cultural ao passo que o processo tal como se opera em gente mais madura é muito importante na produção da mudança O processo de endoculturação pode desaguar no etnocentrismo ou seja a atitude dos grupos humanos de supervalorizar seus próprios valores sua própria cultura O etnocentrismo denota certo orgulho pela superioridade e credibilidade da própria cultura A crença exacerbada na superioridade da própria cultura implica muitas vezes julgamentos preconceituosos e até mesmo racistas que consistem em ridicularizar valores costumes e hábitos de outros povos 12 Aspectos diacrônicos O processo cultural no seu aspecto diacrônico significa que as culturas estão sempre em movimento isto é em constante mudança Os antropólogos entendem que a mudança cultural não passa de um ace leramento no ritmo de mudança contínua pela qual todas as culturas estão passando Os sociólogos costumam destacar que os conflitos sociais especialmente a luta de classes constituem a principal causa ou motor das mudanças sociais e culturais Ralf Dahrendorf por exemplo defen de a posição sociológica típica ao estabelecer que tudo o que é criativi dade inovação e desenvolvimento na vida do indivíduo de seu grupo e de sua sociedade devese em grande medida à ação de conflitos in CHARON 2000 203 Os antropólogos de modo geral preferem destacar a descoberta a invenção e a difusão como fenômenos que promovem mudanças e trans formações culturais Nesse sentido dizem que há mudança cultural quando a novos elementos são agregados ou os velhos aperfeiçoados por meio de descobertas e invenções b novos elementos são tomados de empréstimo de outras sociedades c elementos culturais inadequados ao meio ambiente são abandonados ou substituídos d alguns elemen tos por falta de transmissão de geração em geração se perdem A descoberta aquisição de elemento novo eletricidade vapor e a invenção aplicação da descoberta lâmpada máquina implicam novos conhecimentos e novas aplicações de conhecimentos introduzidos em Manual antropologia jurídica 001277indd 252 9112010 102026 252 253 determinada cultura e que migra difusão para outras culturas promo vendo mudanças em todas elas Para Leslie Spier in MELLO 1982 97 as invenções não consistem apenas em engenhos mecânicos as ideias também podem ser consideradas invenções Aliás a ideia nova é a es sência mesma da invenção enquanto a máquina em si o engenho e seus componentes são apenas partes do mundo físico arranjados conforme a ideia nova Por essas razões a invenção é tida pelo direito como pro priedade imaterial bem incorpóreo de considerável valor econômico 121 Invenção A invenção é um processo cultural de caráter universal porque pode ser observada em todos os povos e em todas as sociedades Conforme Ruth Benedict in MELLO 1982 98 o homem da idade da pedra já havia iniciado o processo essencialmente humano de inventar e transmitir suas invenções a seus semelhantes Em meados da idade da pedra por exemplo tinha dominado o fogo Segundo ela jamais se saberá o que levou alguns homens e mulheres a fazer uso doméstico pela primeira vez dessa força terrível e destruidora Também jamais se saberão quais as circunstâncias que os levaram a ferver a água sobre o fogo e como descobriram que podiam produzir fogo friccionando dois pedaços de madeira Seja como for em meados da idade da pedra na Europa o homem já tinha aprendido essas coisas transformaraas em parte da sua cultura transmitida Aprenderam a acender e conservar o fogo e podiam usálo para aquecerse quando fizesse frio e para cozinhar e preservar seus alimentos Era uma invenção complexa a prenunciar a interminável carreira do homem como grande inventor A invenção ainda que não seja aceita de imediato pela sociedade não deixa de estar associada à cultura da sociedade do inventor Linton 1971 324 325 reconhece que o conhecimento incorporado numa in venção nova provém em parte de uma descoberta recente mas provém sempre e em sua maior parte da cultura da sociedade do inventor O inventor constrói a sua invenção sobre o patrimônio de conhecimentos previamente adquiridos tudo o que é novo provém diretamente de outras coisas preexistentes A cultura não só proporciona ao inventor os instrumentos que ele tem de usar para inventar mas também con trola em grande extensão a direção de seu interesse Na sociedade capitalista as invenções tornaramse propriedade valiosa motivo pelo qual as grandes sociedades empresárias apoderam Manual antropologia jurídica 001277indd 253 9112010 102027 254 255 se delas mediante a remuneração da força de trabalho e da criatividade do inventor Uma vez patenteada a invenção a sociedade empresária adquire o direito de explorar economicamente e com inteira exclusivi dade o objeto da patente No Brasil esse direito também denominado direito industrial é concedido pelo Estado através de uma autarquia federal o Instituto Nacional da Propriedade Industrial INPI Assim ninguém pode reivindicar o direito de exploração econômica com ex clusividade de qualquer invenção se não obteve do INPI a correspon dente concessão 122 Difusão e aculturação Difusão e aculturação são palavras utilizadas pelos antropólogos para significar o estudo sobre a transmissão da cultura Alguns antro pólogos usam o termo difusão para o estudo da transmissão cultural já consumada e o termo aculturação para o estudo da transmissão cultural em marcha O termo aculturação também é utilizado para o estudo da fusão de culturas diferentes Difusão cultural é um processo em que os elementos ou complexos culturais se difundem de uma sociedade a outra As culturas quando vigorosas tendem a se estender a outras regiões sob a forma de em préstimo mais ou menos consistente A difusão de um elemento da cultura pode realizarse por imitação ou por estímulo dependendo das condições sociais favoráveis ou não à difusão O tipo mais significativo de difusão é o das relações pacíficas entre os povos numa troca contínua de pensamentos e invenções Nem tudo porém é aceito em sua totali dade Quase sempre ocorre uma modificação no traço de uma cultura tomada de empréstimo pela outra havendo reinterpretação posterior pela sociedade que o adotou Um traço vindo de outra cultura através do empréstimo pode sofrer reformulações quanto à forma à aplicação ao significado e à função Aculturação para alguns antropólogos é a fusão de duas culturas diferentes que entrando em contato contínuo originam mudanças nos padrões da cultura de ambos os grupos Pode abranger numerosos traços culturais apesar de na troca recíproca entre as duas culturas um grupo dar mais e receber menos Dos contatos íntimos e contínuos entre culturas e sociedades diferentes resulta um intercâmbio de ele mentos culturais Com o passar do tempo essas culturas fundemse para formar uma sociedade e uma cultura nova Os antropólogos também Manual antropologia jurídica 001277indd 254 9112010 102027 254 255 falam em transculturação para significar a troca de elementos culturais entre sociedades diferentes A invenção como visto é um instrumento que permite a difusão ou transmissão da cultura Hoje a invenção como propriedade é pro tegida mundialmente porque considerada um objeto de comércio uma mercadoria portanto pressupõe a imediata exploração e difusão em quase todas as culturas A invenção é nesse sentido um instrumento inconteste de difusão cultural A globalização dos mercados intensificou de tal maneira a difusão das invenções que produziu certa uniformização das culturas Esse fenômeno adquiriu proporções mundiais motivo pelo qual os antropólogos afirmam que não existe hoje cultura alguma que deva mais de dez por cento de seus elementos totais a invenções feitas pelos membros de sua própria sociedade Com as conquistas coloniais e mais recentemente com a globali zação das comunicações ocorre uma difusão cultural bastante intensa dos países centrais para os países periféricos Aliás os elementos da cultura brasileira foram tomados de empréstimo de outras culturas especialmente as dos povos europeus africanos e indígenas Em síntese a invenção por intermédio da difusão a modifica as culturas b faz surgir novas culturas pela fusão de elementos de duas ou mais culturas c faz desaparecer determinadas culturas 2 CULTURA E AMBIENTE O ambiente influencia o comportamento humano e contribui para a formação de determinada cultura O estudo de comunidades primitivas mostra que toda cultura é influenciada pelo ambiente geográfico que portanto constitui fator de construção manutenção e mudança cultural Não se pode contudo estabelecer um determinismo geográfico ou seja que a configuração total de determinada cultura deriva exclusivamente do ambiente geográfico em que vivem os homens visto que existem diferenças fundamentais de culturas que se desenvolvem uma após outra no mesmo ambiente geográfico Os antropólogos reconhecem que há um intercâmbio entre am biente e cultura motivo pelo qual existe hoje uma grande preocupação com as mudanças climáticas provocadas pelo crescimento das forças produtivas e os efeitos que essas mudanças podem provocar nas culturas O aquecimento global certamente provocará o desaparecimento de forma mais rápida de muitos dos aspectos da cultura esquimó mas Manual antropologia jurídica 001277indd 255 9112010 102027 256 257 também pode provocar mudanças talvez até radicais em todas as cul turas existentes 21 Ambiente e direito Com a intensificação do desenvolvimento das forças produtivas a partir da instauração do modo de produção capitalista a complexidade da vida social aumentou de forma considerável e com ela a contingência das relações humanas Em outras palavras com o modo de produção capitalista o mundo se tornou mais problemático pela ampliação do horizonte de possibilidades e pelo aparecimento de um universo mais amplo em alternativas No âmbito do direito isso significa que um nú mero maior de relações ou comportamentos mais variados tornase juridicamente possível O desenvolvimento das forças produtivas colo ca em evidência e em um patamar mais complexo a relação homem natureza sobretudo no que diz respeito à exploração da atividade eco nômica e seu impacto no ambiente e nas culturas Vale dizer a explora ção da atividade econômica coloca em risco a saúde da natureza e pode provocar profundas mudanças culturais De outra parte a expansão do sistema capitalista impôs ao Estado nacional a função de produzir uma legislação compatível com as expec tativas não apenas do empresário e do consumidor nacionais mas so bretudo do empresário multinacional e dos consumidores espalhados pelo mundo inteiro Com essa visão podese afirmar que a legislação do Estado nacio nal se submete a um duplo imperativo socioeconômico O primeiro visa garantir a segurança e a expectativa do empresário neutralização dos riscos e atender dessa maneira as necessidades do cálculo econômico fundado numa economia capitalista em expansão maximização dos resultados O segundo visa fornecer ao Estado através da legislação um instrumento de intervenção na vida empresária impondo determi nadas alternativas e excluindo outras Situações que permitem afirmar o papel do direito como instrumento de gestão da sociedade vinculado aos interesses empresariais mas submetido à pressão social difusa que exige respeito a determinados valores socialmente prevalecentes como é o caso da exigência de um ambiente sadio Conforme aumenta a complexidade o Estado amplia ainda mais suas atribuições tendo em vista o seu papel primordial planejar regu lamentar controlar e fiscalizar a atividade econômica para dar garantias Manual antropologia jurídica 001277indd 256 9112010 102027 256 257 e segurança aos investimentos e aos negócios do empresário Para a consecução desses objetivos o Estado dispõe de mecanismos jurídicos que lhe possibilitam intervir diretamente na produção no consumo no mercado nos campos monetário tributário e fiscal O Estado portanto assume cada vez mais o papel primordial de planejar fiscalizar e esti mular a exploração da atividade econômica e para isso utiliza um siste ma de estímulos e uma imensa máquina administrativa que concentra milhares de funcionários A atividade empresária se submete primordialmente à relação custobenefício portanto depende de um cálculo econômico Mas esse cálculo depende em larga medida do ordenamento jurídico estatal motivo pelo qual é necessário ter em conta as conexões que envolvem a relação exploração da atividade econômicapreservação do ambiente do ponto de vista constitucional como forma de perceber as premissas que permitem ao Estado intervir na exploração da atividade econômica com fundamento no exercício dos poderes de gestão 22 Atividade econômica x defesa do ambiente A Constituição Federal art 170 estabelece que a ordem econômi ca fundada na valorização do trabalho humano e na livreiniciativa tem por fim assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social observado alguns princípios dentre os quais se destacam a o princípio da soberania nacional significa que nenhuma vontade pode imporse de fora do pacto constitucional princípio que tem sido desprestigiado em virtude da globalização dos mercados b o princípio da propriedade privada tido como condição inerente à livreiniciativa e lugar de sua expansão o princípio da função social da propriedade aparece como um limite a esse princípio c o princípio da livre con corrência significa que a livreiniciativa é para todos sem exclusões ou discriminações esse princípio é limitado pela repressão ao abuso do poder econômico d o princípio da defesa do meio ambiente esta belece que uma natureza sadia é um limite à atividade econômica e também condição de seu exercício e o princípio da defesa do consu midor significa que a produção deve estar a serviço do consumo e não este a serviço daquela f o princípio da busca do pleno emprego uma utopia no sistema capitalista daí a necessidade da expansão do dom Percebese que nas últimas décadas alguns princípios foram for talecidos defesa do ambiente defesa do consumidor busca do pleno Manual antropologia jurídica 001277indd 257 9112010 102027 258 259 emprego e outros enfraquecidos soberania nacional propriedade pri vada livre concorrência Está em curso portanto um movimento de reinterpretação do direito A Constituição Federal atribui à iniciativa privada empresários o papel primordial na exploração da atividade econômica ao proclamar o princípio da livreiniciativa como fundamento da ordem econômica Assim a livreiniciativa constitui a base sobre a qual se constrói a ordem econômica e ao Estado cabe apenas uma função supletiva Com efeito a Constituição Federal estabelece que a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos impe rativos da segurança nacional ou a relevantes interesses coletivos No caso da segurança nacional são monopólios da União a pesquisa a lavra o enriquecimento o reprocessamento a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados Afora essas hipóteses todo o resto pode ser explorado pela iniciativa privada diretamente ou por concessão estatal A Constituição não repudia o intervencionismo estatal na econo mia pelo contrário determina que o Estado é o agente normativo e regulador da atividade econômica devendo exercer as funções de in centivo fiscalização e planejamento Tais funções assinalam as formas de intervenção do Estado na exploração da atividade econômica Mas como agente normativo e regulador o Estado não substitui o mercado na configuração estrutural da economia O intervencionismo estatal como já exposto é um fenômeno típico da economia capitalista que não pode prescindir do direito como instrumento de gestão O intervencionismo referese ao exercício por parte do Estado de uma ação sistemática sobre a economia exigindose desta uma otimiza ção de resultados que se traduz por mais produção mais consumo mais exportação e mais emprego dados que compõem um quadro de estatís ticas consideradas para medir o desempenho da economia O interven cionismo expresso nos princípios constitucionais não consiste em um fenômeno que nega ou cerceia o acesso à livreiniciativa pelo contrário o Estado deve assegurála e estimulála através de ações sistemáticas fundadas na lei O intervencionismo não se faz contra o mercado mas a seu favor O mercado como mecanismo de coordenação e organização do processo econômico e que pressupõe o reconhecimento do direito de propriedade dos bens de produção e a liberdade de iniciativa é mantido no intervencionismo como o princípio regulador da economia Manual antropologia jurídica 001277indd 258 9112010 102027 258 259 A livreiniciativa contudo encontra limites em outros princípios constitucionais que autoriza o Estado a reprimir o abuso do poder eco nômico a concorrência desleal a poluição da natureza o desmatamen to não autorizado etc Dado que a exploração da atividade econômica no aspecto da livreiniciativa é regida por um cálculo econômico fun dado na relação custobenefício esta relação parece ser o caminho que permite esclarecer a contraposição exploração da atividade econômica x defesa do ambiente 23 Relação custobenefício A exploração da atividade econômica gera custos não apenas para o empresário que a explora mas também para a sociedade polui o am biente esgota fontes de matériaprima contribui para o aquecimento do planeta reclama investimentos públicos e infraestrutura Esses cus tos sociais podem ou não ser compensados com os benefícios sociais que a mesma atividade econômica propicia para a sociedade aumento da produção e consumo criação de novos negócios e geração de empregos A equação entre custos sociais e benefícios sociais nem sempre é equi librada ensejando o que se denomina externalidade Externalidade é todo efeito negativo ou positivo que um agente econômico produz sobre a atividade econômica a renda ou o bemestar de outros sem compensar os prejuízos que causa e sem ser compensado pelo benefício que traz A relevância da externalidade guarda relação com o crescimento da atividade econômica Assim a acentuada agressão de determinada atividade econômica ao ambiente transformase numa externalidade relevante negativa que exige resposta mediante a escolha de alternati vas interditar a atividade poluidora ou controlar a poluição O direito ambiental não tem respondido a essa transformação com a interdição das atividades poluidoras e sim mediante mecanismos mais ou menos eficientes do controle de produção de poluentes Não há como eliminar na exploração de atividades econômicas determinada margem de produção de efeitos negativos ou positivos não compensáveis Uma vez conferida relevância a certos efeitos produzidos pela atividade econômica cabe definir os mecanismos de compensação internalização das externalidades através da imputação de obrigações aos empresários pelos efeitos considerados negativos e do reconheci mento de direitos em relação aos reputados positivos Manual antropologia jurídica 001277indd 259 9112010 102027 260 261 Alguns teóricos entendem que as externalidades devem ser reali zadas por meio de mecanismos de direito tributário Em síntese diante da exploração de determinada atividade econômica devemse contrapor os efeitos negativos e positivos para a sociedade A preponderância de efeitos negativos implicaria uma carga tributária maior e o reconheci mento de preponderância de efeitos positivos implicaria isenções tributárias Outros teóricos entendem que as externalidades refletem situações conflitantes que devem ser solucionadas pelos próprios interessados No sistema capitalista essas duas concepções não se excluem Mas com o avanço das teses ambientalistas o princípio da pre servação do ambiente passa a ser um limite à atividade econômica e também sua condição de exercício 24 Urgência do problema Preocupados com a destruição que a exploração da atividade eco nômica tem provocado alguns governos propõe a hipótese do desen volvimento econômico sustentável com um mínimo de agressão ao ambiente Alguns ambientalistas estabelecem um referencial teórico fundado na concepção de uma Terra viva organizada autossuficiente e plena de sabedoria tendo em vista especialmente a reconciliação do ser humano com a natureza cuja cisão foi provocada pelo racionalismo moderno Essa reconciliação permitiria apontar respostas para o pro blema da exploração da atividade econômica e a proteção do ambiente Há de outra parte uma preocupação mundial no sentido de en contrar respostas que possibilitem compatibilizar a exploração da ati vidade econômica com a preservação do ambiente que significaria es tabelecer uma conexão inexorável entre direito ambiental e direito empresarial Com outras palavras é preciso estabelecer regras que façam prevalecer o princípio segundo o qual uma natureza sadia é um limite à atividade econômica e também a sua condição de exercício Para alguns ambientalistas a relação que envolve exploração da atividade econômica e proteção do ambiente não pode ser tratada como uma questão local circunscrita apenas ao território do Estado nacional deve ser tratada como uma questão mundial Em virtude disso o tema provoca questionamentos sobre a noção de soberania que legitima e convalida o direito positivo emanado dos órgãos estatais com compe tência para legislar Há um movimento internacional apoiado por alguns Manual antropologia jurídica 001277indd 260 9112010 102027 260 261 países e várias organizações internacionais no sentido de estabelecer uma legislação de cunho internacional com regras claras sobre a ex ploração da atividade econômica e a preservação do ambiente O tema portanto transcende as fronteiras dos Estados nacionais e se insere no contexto mundial motivo pelo qual se tem insistido na necessidade de uma política ambiental globalizada De outra parte há também pressões sobre a Organização Mundial do Comércio OMC no sentido de fixar algum tipo de vinculação entre acordos comerciais e proteção ao ambiente Enfim o tema é motivo de preocupação mundial e já provoca perturbações sociais visto que as manifestações de grupos organizados estão sendo reprimidas com o uso da força De outra parte é preciso considerar que o tema exploração da atividade econômica e a proteção do ambiente repercute em diversas áreas do conhecimento Tratase indubitavelmente de um problema interdisciplinar que evoca a contribuição de diversas áreas do saber As diferentes áreas do saber ao tratar do ambiente progridem ao encontro umas das outras A reflexão sobre o referido tema mostra de forma cabal a convergência e a interligação entre direito e antropologia É preciso contudo considerar que o empresário é a figura de destaque no direito contemporâneo É fato que aqueles que pretendem explorar uma atividade econômica nutrem expectativas de lucros Vale dizer os investimentos do empresário ligase à neutralização dos riscos e à maximização dos resultados A lógica do sistema capitalista implica a concentração e aumento de riquezas portanto as pessoas investem dinheiro em determinada atividade econômica para auferir lucros e não movidos pelo amor à humanidade ou pela prática do dom O movimen to do empresário se submete à influência decisiva da razão instrumental que orienta o cálculo econômico na elaboração da equação custobene fício Sob a tutela da razão instrumental correm soltas a agressão e a destruição do ambiente ao privilegiar o fim da exploração da atividade econômica que é o lucro Conciliar esse problema não é tarefa simples Há por um lado as externalidades positivas decorrentes da exploração da atividade econô mica otimização da economia e por outro lado as externalidades negativas o dano ambiental Algo porém é certo as coisas não podem ficar como estão as mudanças são necessárias e inadiáveis Algo também é certo independentemente do teor dessas mudanças elas deverão ser organizadas juridicamente Manual antropologia jurídica 001277indd 261 9112010 102027 262 263 A alta complexidade que envolve as relações no mundo contem porâneo demonstra de forma cabal que o direito é algo inacabado em processo de construção A adaptação dos profissionais do direito a essa nova realidade implica romper com o paradigma dominante o positi vismo jurídico Expõese no capítulo seguinte o perfil desse modelo teórico dominante fazendolhe as devidas críticas e apontando o perfil de um modelo emergente Manual antropologia jurídica 001277indd 262 9112010 102027 262 263 XXi ciênciA JurídicA 1 MODELO TEÓRICO DOMINANTE Ao longo do século XX predominou nas Faculdades de Direito o modelo teórico denominado positivismo jurídico motivo pelo qual o ensino jurídico tem negligenciado as contribuições da antropologia e de outras áreas do conhecimento Para compreender os motivos desse afastamento é necessário expor ainda que de forma abreviada os con tornos do positivismo jurídico na sua forma mais elaborada Hans Kelsen é o teórico que eleva o positivismo jurídico ao seu patamar mais alto Em 1934 publica a Teoria pura do direito na qual retoma as teses do positivismo jurídico do século XIX Nessa obra elege a autonomia da ciência jurídica como o problema fundamental da sua tese e conferelhe método e objeto próprios capazes de assegurar ao jurista o conhecimento científico do direito Para isso estabelece um princípio metodológico o princípio da pureza com o qual pretende re duzir a complexidade do objeto do direito ao afastar da ciência jurídica as ingerências intrusas potencialmente perturbadoras de ordem epis temológica e axiológica Para Kelsen o objeto da ciência jurídica con siste em normas jurídicas e a tarefa do jurista cientista do direito consiste em descrever e sistematizar esse objeto mediante proposições De acordo com Kelsen o conhecimento jurídico para ser científi co deve ser neutro Não cabe ao jurista fazer julgamentos nem avaliações sobre as normas No exercício da sua atividade o jurista deve afastar tanto as dimensões axiológicas que implica proferir juízos de valor a Manual antropologia jurídica 001277indd 263 9112010 102027 264 265 respeito das normas como as dimensões epistemológicas que implicam motivações específicas de outras ciências como a antropologia a socio logia a economia a política a psicologia etc Essas dimensões compro meteriam a verdade das proposições que o cientista enuncia sobre as normas Vale dizer o raciocínio jurídico não deve versar sobre o que é certo ou errado adequado ou inadequado justo ou injusto virtuoso ou vicioso conveniente ou inconveniente mas sim sobre o lícito e o ilícito o legal constitucional e o ilegal inconstitucional o válido e o inváli do a eficácia e a ineficácia Desse modo é sempre possível que uma norma indubitavelmente injusta inadequada e inconveniente quando submetida ao modelo teórico positivista possa ser considerada legal válida lícita e eficaz 11 Sistema de normas Para garantir a racionalidade da ordem jurídica temse na Teoria pura a noção de norma hipotética fundamental no sentido de primeira norma transcendental É uma norma suposta vale dizer não é editada por um ato de autoridade não possui um conteúdo é uma exigência lógica apenas uma ficção que sustenta o fundamento de validade da ordem jurídica evitando uma regressão ao infinito ou a discussão polí tica sobre a legitimidade do poder originário À norma hipotética fun damental que é suposta seguese a primeira norma posta que no caso do Brasil corresponde ao conjunto normativo da Constituição Federal A primeira norma posta e as demais que lhe sucedem derivam de atos de vontade do poder soberano e esse poder deve garantir a efeti vidade da ordem normativa Vale dizer a norma é válida se for editada pela autoridade competente e possuir um mínimo de eficácia A valida de da norma repousa na competência normativa de seu editor que é conferida por outra norma e assim sucessivamente numa série finita que culmina na norma fundamental Essa estrutura possibilita ao juris ta organizar o sistema dinâmico de normas relacionandoas a partir de regras de competência reguladoras da produção normativa A mesma estrutura possibilita organizar o sistema estático relacionando as normas a partir de seus conteúdos A norma emanada de quem possui compe tência para editála deve manter conteúdo compatível com a norma que lhe é imediatamente superior Assim uma norma sempre se fundamenta em uma outra que lhe é superior no que diz respeito tanto à competência quanto ao conteúdo Manual antropologia jurídica 001277indd 264 9112010 102027 264 265 Uma das tarefas do jurista consiste em elaborar o encadeamento hie rárquico de normas mediante proposições tanto na perspectiva do sistema dinâmico quanto na do sistema estático Nessa estrutura uma norma vale não porque é justa mas porque está em conformidade com uma norma superior na qual se fundamenta Todo o universo normati vo vale e é legítimo em função dessa hierarquia ou seja em função desse encadeamento lógico Da norma fundamental não se pode exigir que seja justa Mesmo uma norma fundamental considerada injusta valida e legitima o direito que dela decorre O direito é desse modo uma ordem coativa um conjunto de nor mas que prescrevem sanções A conduta contrária à norma é conside rada ilícita e a conduta em conformidade com a norma é considerada um dever jurídico O Estado se confunde com o direito porque nessa estrutura ele nada mais é do que o conjunto das normas que estabelece competência e prescreve sanções de forma organizada Como se nota esse modelo teórico não permite estabelecer conexões entre direito e antropologia isso fica mais evidente pela análise do objeto que tal mo delo considera como o da ciência jurídica normas jurídicas e o resul tado da produção do jurista proposições jurídicas 12 Norma e proposição Para o positivismo jurídico a norma é um deverser que confere ao comportamento humano um sentido prescritivo Assim o fato ou a conduta humana possui o significado jurídico que a norma lhe atribui Por esse motivo a ciência jurídica é fundamentalmente diferente das outras ciências Estas operam com o princípio da causalidade dado A é B relacionam fatos sendo um causa e o outro efeito atuam no mundo do ser mundo natural A ciência jurídica atua no mundo do deverser mundo cultural opera com o princípio da imputação dado A deve ser B Esse princípio prevê determinada sanção B que deve ser imputada a uma conduta considerada pelo direito como ilícita A O jurista cien tista do direito estabelece na proposição jurídica que descreve a norma jurídica ligações entre um antecedente conduta ilícita e um conse quente sanção Norma e proposição enunciam um deverser Há entretanto dife renças essenciais entre uma e outra O enunciado da norma é prescriti vo porque resulta de um ato de vontade nesse sentido a norma é válida quando emana de uma autoridade competente ou inválida em caso con Manual antropologia jurídica 001277indd 265 9112010 102027 266 267 trário O enunciado da proposição é descritivo porque resulta de um ato de conhecimento do cientista do direito nesse sentido a proposição é verdadeira quando o seu enunciado estiver em conformidade com a norma ou falsa no caso contrário A veracidade e a falsidade são atribu tos da proposição enquanto a norma apenas pode ser válida ou inválida As normas que perfazem o ordenamento jurídico não aparecem sistematizadas nos instrumentos jurídicos Vale dizer o sistema jurídi co não possui lógica interna A alta complexidade social exige das au toridades competentes uma produção contínua e ininterrupta de normas de modo que as normas mais parecem peças de um gigantesco quebra cabeça desmontado cujas peças espalhadas na Constituição nas leis nos decretos nas portarias nas instruções normativas devem ser reor ganizadas conforme as regras estabelecidas nos sistemas dinâmico e estático de normas O sistema de normas adquire contornos lógicos de uma forma derivativa por intermédio do sistema de proposições elaborado pelo jurista A racionalidade da ordem jurídica implica enxergar o direito como sistema unitário e hierárquico de normas Essa racionalização entre tanto provoca algumas separações entre direito e ação política direito e antropologia direito e sociologia direito e ética e culmina na purifi cação do direito ou na reificação da norma jurídica Exigese que o juris ta parta do pressuposto segundo o qual as normas advêm de um legis lador racional possuem vida própria e são capazes de condicionar comportamentos sem serem condicionadas por eles Assim o direito aparece separado da cultura da vida social da história e dos homens responsáveis pela sua criação e aplicação 13 Norma e interpretação No que diz respeito à interpretação da norma jurídica isto é à determinação do seu real alcance e sentido a teoria pura entende que de uma mesma norma podemse extrair diversos significados A pri meira norma posta não determina de modo exaustivo todas as situações de modo que sempre resta uma margem de indeterminação Além disso as normas são genéricas textura aberta não circunscrevem exatamen te os objetos a que se referem e por isso permitem interpretações diver gentes Juntese a isso o fato de que as normas estão expressas na lin guagem natural cujas palavras são sempre vagas e ambíguas e por isso denotam e conotam diversos significados Por essas razões a teoria pura Manual antropologia jurídica 001277indd 266 9112010 102027 266 267 nega a possibilidade de uma interpretação verdadeira mas distingue a interpretação autêntica da não autêntica Interpretação não autêntica doutrina é a realizada pelo cientista do direito que mediante ato cognitivo deve fixar os diversos significa dos possíveis da norma jurídica A autêntica jurisprudência é a reali zada pelo órgão jurisdicional que no exercício da competência jurídica decide conflito com base em um ato de vontade que pode estar ou não em conformidade com um dos significados oferecidos pela doutrina Vale dizer o juiz quando decide não realiza ato de conhecimento ma nifesta sua vontade Isso é assim porque a teoria pura considera a sen tença uma norma jurídica individual emanada de uma autoridade competente que estabelece uma sanção Nesse sentido a sentença passa a compor o conjunto de normas jurídicas que constituem o objeto da ciência jurídica Sobre ela incide portanto o princípio da pureza que implica a neutralidade do cientista Mesmo que o conteúdo da sentença seja visivelmente injusto ou ilegal não cabe ao cientista do direito qualquer manifestação valorativa sobre a decisão A sentença é uma norma jurídica e como tal não é justa nem injusta apenas vale Desse modo a teoria pura protege a vontade normativa do Con gresso ou do Tribunal de qualquer crítica do cientista do direito Com isso desqualifica tanto as qualidades do sujeito do conhecimento como as do objeto a ser conhecido O cientista do direito sujeito do conheci mento deve ser neutro porque a norma objeto a ser conhecido em bora seja tida como um produto da vontade humana não pode ser va lorada ou qualificada Paradoxalmente o positivismo jurídico estabelece a ideia segundo a qual a solução para qualquer problema jurídico já está dada a priori no sistema de normas Enfim na perspectiva da teoria pura o jurista cuida de proposições normativas e não de fatos Não se pode olvidar porém que a experiên cia jurídica pressupõe uma referência das proposições normativas a comportamentos reais Na medida em que isso se coloca como problema para o jurista surge a necessidade de esclarecer as relações entre fato e norma A correlação entre fato e norma permite entender o direito como sistema aberto dependente de outros que o abrangem e circuns crevem Esse antiformalismo resulta do contraste entre direito posto e direito aplicado da imensa distância que existe entre o direito formal mente válido e a realidade social a que se reporta Daí a necessidade do Manual antropologia jurídica 001277indd 267 9112010 102027 268 269 deslocamento da análise para o momento em que a norma produz im pacto e atua na realidade social 2 MODELO TEÓRICO EMERGENTE Influenciado pelo positivismo o saber jurídico se tornou um saber dogmático visto que o sistema de normas aparece como um dado o ponto de partida de qualquer investigação que os juristas aceitam e não negam As normas são mantidas como dogmas inatacáveis são assumi das como insubstituíveis e inquestionáveis O sistema de normas cons titui uma espécie de limitação uma prisão que tolhe a liberdade do ju rista no trato com a experiência normativa Essa limitação teórica conduz a exageros motivo pelo qual há quem faça do estudo do direito um estudo voltado para um conhecimento muito restrito legalista e cego para a realidade como um fenômeno social Esse tipo de estudo fechado e formalista é implementado na maioria das Faculdades de Direito Essas instituições de ensino passam a formar profissionais que não questionam os pontos de partida dogmas e com isso as normas são consideradas convenientes adequadas justas e irrepreensíveis As disciplinas que poderiam provocar o questiona mento crítico antropologia filosofia sociologia não raras vezes são designadas pelos especialistas por perfumarias jurídicas 21 Zetética jurídica Há segundo Ferraz Jr 1995 39 e s duas possibilidades de pro ceder à investigação de um problema jurídico acentuando o enfoque dogmático ou o enfoque zetético Os dois enfoques não se excluem estão correlacionados mas o predomínio de um deles revela consequências diferentes O enfoque dogmático como visto não questiona os dogmas normas portanto diante de um problema considera que a solução já está previamente dada ou pressuposta no sistema de normas dogmas Ao contrário do enfoque dogmático o zetético problematiza as próprias normas dogmas Estas portanto ficam abertas à dúvida conservam o seu caráter hipotético e problemático permanecem abertas à crítica e à criatividade As normas servem de um lado para delimitar o horizonte dos problemas a serem tematizados e decididos mas ao mesmo tempo ampliam esses horizontes Assim o enfoque zetético revelase como um saber especulativo sem compromissos imediatos com Manual antropologia jurídica 001277indd 268 9112010 102028 268 269 a ação que envolve questionamentos extraídos de diversas áreas do conhecimento Sob o enfoque zetético as normas comportam pesquisas de ordem antropológica filosófica sociológica histórica política etc Nessa pers pectiva o investigador preocupase em ampliar as dimensões do fenô meno sem se limitar aos problemas relativos às decisões dos conflitos Pode encaminhar sua investigação para os fatores reais do poder que regem uma comunidade para as bases econômicas e os reflexos na vida cultural ou social e política para o levantamento dos valores que orien tam a ordem constitucional para uma crítica ideológica do atual estágio dos diversos ramos do direito ambiental empresarial penal civil tri butário etc A investigação zetética não exerce exatamente um papel apazigua dor no sentido de conceder total segurança à construção e à interpre tação jurídica Mais do que fornecer uma resposta para determinado tema cuida mais da tarefa de problematizálo Assim ocorre com os temas ou problemas enunciados de forma mais genérica por exemplo a questão da justiça da liberdade da igualdade do ambiente da função social da propriedade dos direitos humanos e sociais Assim ocorre também com os temas ou problemas enunciados de forma mais especí fica porque referentes a um conjunto de situações aparentemente menos abrangentes e complexas como por exemplo institucionalização ou legalização da tortura inseminação homóloga reprodução in vitro clonagem alimentos transgênicos pesquisa com célula tronco contra to de gestação eutanásia união estável de pessoas do mesmo sexo adoção por casal do mesmo sexo aborto penas alternativas abandono clínico de crianças portadoras de deficiências pena de morte crimes hediondos etc 22 Zetética e dogmática Numa investigação dogmática as normas constituem pontos de partida que não podem ser negados As normas são contudo expressas em palavras e estas são sempre vagas e ambíguas fato que exige inter pretação As normas são um produto abstrato e as regras de interpre tação dogmas que dizem como devem ser entendidas as normas são também produtos abstratos Temse desse modo uma dupla abstração que consiste em isolar normas e regras de seus condicionamentos ze téticos antropológicos econômicos políticos sociais históricos filosó Manual antropologia jurídica 001277indd 269 9112010 102028 270 271 ficos Essa dupla abstração provoca o distanciamento progressivo da compreensão do direito da própria realidade social É certo que a dogmática depende do princípio da inegabilidade dos pontos de partida mas não se reduz a ele Ao interpretar a norma o ju rista cria condições para se libertar dos pontos de partida visto que é possível extrair de uma mesma norma vários significados O ato inter pretativo que acompanha a resposta ou decisão dificilmente reproduz o sentido imediato da norma geralmente lhe confere um sentido mais abrangente ou adverso A decisão ou resposta embora possa parecer não se enclausura totalmente nas normas Nesse sentido a dogmática jurídica em vez de ser considerada uma prisão para o espírito permite o aumento da liberdade no trato com a experiência normativa Vale dizer a dogmática jurídica não se exaure na afirmação do dogma esta belecido mas interpreta sua própria vinculação fato que permite ao jurista certa manipulação no ato interpretativo Visto desse ângulo percebese que o conhecimento dogmático dos juristas embora dependa dos pontos de partida os dogmas gira em torno de incertezas Essas incertezas são justamente aquelas que na sociedade foram aparentemente eliminadas ou inicialmente delimitadas pelos dogmas Por exemplo diante da incerteza a respeito de se é pos sível a união estável entre pessoas do mesmo sexo e o Poder Judiciário edita uma decisão reconhecendo o direito do parceiro sobrevivente de participar do espólio do parceiro falecido cabe ao saber dogmático re tomar a incerteza primitiva indagando por exemplo a Que é família b Que é união estável c É possível união estável entre pessoas do mesmo sexo d Qual o período mínimo para estabelecer a existência de união estável e A sociedade aceita a união estável ou casamento de pessoas do mesmo sexo e No atual estágio da sociedade é comum união estável de pessoas do mesmo sexo f Qual o meio juridicamente aceito para estabelecer a existência de união estável O mesmo movi mento vale para outras incertezas como o aborto a eutanásia a tortu ra o abandono clínico o preconceito etc Com isso o jurista retoma a incerteza primitiva ampliandoa mas de maneira controlada isto é au mentandoa a um grau de suportabilidade social de modo a tornar decidíveis os eventuais problemas e conflitos Para a dogmática o tema ou o fato da união homoafetiva e outros temas como mudança de sexo eutanásia institucionalização da tortura clonagem abandono clínico guarda conjunta reprodução assistida Manual antropologia jurídica 001277indd 270 9112010 102028 270 271 concepção in vitro abandono clínico de crianças portadoras de deficiên cia pesquisa com célula tronco representa um ponto de partida que exige respostas ou decisões jurídicas Nesse sentido podemse apontar as relações do tema da união homoafetiva do preconceito da mudança de sexo da institucionalização da tortura do aborto da pena de morte etc com o direito à vida à propriedade à liberdade de escolha à igual dade de oportunidades às condições de inserção no campo profissional à dignidade do ser humano etc Para a zetética os temas antes anotados implicam a questão anterior de como em nossa sociedade esses temas antes se constituíram como fatos ou problemas ou seja surgem per guntas sobre as experiências culturais e históricas que permitiram o surgimento dos próprios temas Se para a dogmática a noção de união homoafetiva constitui ponto de partida de uma construção teórica com vistas à decisão de conflitos para a zetética o ponto de partida é a cons trução dessa noção que se apresenta como dado e como portadora de uma realidade objetiva Por influência do positivismo jurídico a ciência jurídica configurou se como saber dogmático É óbvio que o estudo do direito não se reduz a esse saber Assim embora o jurista seja um especialista em questões dogmáticas é também em certa medida um especialista em questões zetéticas visto que diante da alta complexidade que o mundo contem porâneo imprimiu aos problemas jurídicos muitas vezes precisa abordar e enquadrar o tema não apenas nos seus aspectos jurídicos mas também nos seus aspectos antropológicos econômicos sociológicos políticos filosóficos éticos históricos etc Hoje o debate sobre temas jurídicos mais polêmicos como o imi grante ilegal o aborto a união homossexual a deficiência a eutanásia a demarcação das terras dos índios o reconhecimento dos quilombos as ações afirmativas etc requer algumas incursões na antropologia Um debate sério sobre esses temas exige a consideração do princípio da al teridade que implica colocarse na posição do outro do imigrante da mulher do homossexual do deficiente do doente terminal do índio do negro etc Além da alteridade a discussão jurídica desses temas exige dos atores o domínio de alguns conceitos antropológicos especialmente o de cultura que como visto é bastante complexo e de difícil definição Manual antropologia jurídica 001277indd 271 9112010 102028 273 Manual antropologia jurídica 001277indd 272 9112010 102028 273 BiBliogrAFiA ABBAGNANO Nicola 2003 Dicionário de filosofia São Paulo Martins Fontes ALVES Elizete Lanzoni e SANTOS Sidney Francisco Reis dos 2007 Iniciação ao conhecimento da antropologia jurídica Florianópolis Conceito Editorial AQUINO Santo Tomás 1973 Seleção de textos da Suma Teológica São Paulo Abril ARENDT Hannah 1973 Crises da República São Paulo Perspectiva 1988 Entre o passado e o futuro São Paulo Perspectiva ASSIS Olney Queiroz 2004 Direito societário São Paulo Damásio de Jesus 1995 Interpretação do direito São Paulo Lumen Juris ASSIS Olney Queiroz e POZZOLI Lafayette 2005 Pessoa portadora de deficiência direitos e garantias São Paulo Damásio de Jesus ASSIS Olney Queiroz e FREITAS Márcia 2007 Tratado do direito de família São Paulo Primeira Impressão BUENO Roberto 2005 A filosofia jurídicopolítica de Norberto Bobbio São Paulo Mackenzie BOBBIO Norberto 2005 Teoria da norma jurídica São Paulo Edipro 1996 Teoria do ordenamento jurídico Brasília UNB BOTTOMORE T B 1967 Introdução à sociologia Rio de Janeiro Zahar Manual antropologia jurídica 001277indd 273 9112010 102028 274 275 CASTRO Celso Antonio Pinheiro de 2003 Sociologia do direito São Paulo Atlas CHARON Joel M 2000 Sociologia São Paulo Saraiva CHAUÍ Marilena 2002 Convite à filosofia 12 ed São Paulo Ática CHAUÍ Marilena de Souza 1980 LéviStrauss vida e obra in Os pen sadores São Paulo Abril CHILDE Vere Gordon 1971 A evolução cultural do homem Rio de Ja neiro Zahar Editores COELHO Fabio Ulhoa 1995 Para entender Kelsen São Paulo Max Limonad COULANGES N Fustel de 1929 A cidade antiga Lisboa Clássica DINIZ Maria Helena 1988 Compêndio de introdução à ciência do direi to São Paulo Saraiva DURHAM Eunice Ribeiro 1978 Malinowski vida e obra in Os pen sadores São Paulo Abril DURKHEIM Émile 1974 As regras do método sociológico São Paulo Companhia Editora Nacional 1978a Da divisão do trabalho social São Paulo Abril 1978b As formas elementares da vida religiosa São Paulo Abril DWORKIN Ronald 2001 Levando os direitos a sério São Paulo Martins Fontes ENGELS Friedrich 1976 A origem da família da propriedade e do Es tado Lisboa Presença ENGELS Friedrich e KAUTSKY Karl 1991 O socialismo jurídico São Paulo Ensaio FERRAZ JR Tercio Sampaio 1995 Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação São Paulo Atlas 2002 Estudos de filosofia do direito São Paulo Atlas FOUCAULT Michel 1988 Microfísica do Poder Rio de Janeiro Graal 1996 A verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro Nau GODELIER Maurice 2001 O enigma do dom Rio de Janeiro Civili zação Brasileira GOLDMANN Lucien 1974 Ciências humanas e filosofia São Paulo Difel Manual antropologia jurídica 001277indd 274 9112010 102028 274 275 GOYARDFABRE Simone 2002 Os fundamentos da ordem jurídica São Paulo Martins Fontes GRAU Eros Roberto 2004 A ordem econômica na Constituição de 1988 9 ed São Paulo Malheiros HABERMAS Jurgen 2000 O discurso filosófico da modernidade São Paulo Martins Fontes HEGEL Georg Wilhelm Friedrich 1974 Introdução à história da filo sofia São Paulo Abril HERSKOVITS Melville J 1963 Antropologia cultural São Paulo Mes tre Jou KELSEN Hans 1976 Teoria pura do direito Coimbra Arménio Ama do KUMPEL Vitor Frederico 2007 Teoria da aparência São Paulo Mé todo KUPER Adam 2002 Cultura a visão dos antropólogos São Paulo EDUSC LAFER Celso 1988 A reconstrução dos direitos humanos São Paulo Companhia das Letras LAPLATINE François 2006 Aprender antropologia São Paulo Brasi liense LÉVYBRUHL Henri 2000 Sociologia do direito São Paulo Martins Fontes LÉVISTRAUSS Claude 2003 Antropologia estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1993 Antropologia estrutural 2 Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1980a A noção de estrutura em etnologia São Paulo Abril 1980b Raça e história São Paulo Abril LINTON Ralph 1971 O homem uma introdução à antropologia São Paulo Martins Fontes LOPES José Reinaldo de Lima 2000 O direito na história São Paulo Max Limonad LOVELOCK James 1991 As eras de Gaia biografia da nossa terra viva Rio de Janeiro Campus Manual antropologia jurídica 001277indd 275 9112010 102028 276 277 LUHMANN Niklas 1983 Sociologia do direito I Rio de Janeiro Tem po Brasileiro 1985 Sociologia do direito II Rio de Janeiro Tempo Brasileiro MALINOWSKI Bronislaw 1970 Uma teoria da cultura Rio de Janeiro Zahar 1978 Argonautas do Pacífico Ocidental São Paulo Abril 1972 Diritto e costume nella società primitiva Roma Newton Compton Italiana MARCONI Marina de Andrade e PRESOTTO Zélia Maria Neves 2006 Antropologia uma introdução 6 ed São Paulo Atlas MELLO Luiz Gonzaga de 1982 Antropologia cultural Petrópolis Vo zes MARX Karl 1975 O capital Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1957 Contribution à la critique de leconomie politique Paris Sociales MARX e ENGELS sd A ideologia alemã I Lisboa Presença MAUSS Marcel 1974 Ensaio sobre a dádiva In Sociologia e antropo logia São Paulo EPU 2001 Ensaio sobre a dádiva Lisboa Edições 70 PACHUKANIS 1977 A teoria geral do direito e o marxismo Coimbra Centelha POZZOLI Lafayette 2003 Direito comunitário europeu São Paulo Método RADCLIFFEBROWN A R 1973 Estrutura e função na sociedade primitiva Petrópolis Vozes REALE Miguel 1999 Filosofia do direito São Paulo Saraiva ROULAND Norbert 2003 Nos confins do direito São Paulo Martins Fontes ROUSSEAU JeanJacques 1973 Discurso sobre a origem e os fundamen tos da desigualdade entre os homens São Paulo Abril 1973 Ensaio sobre a origem das línguas São Paulo Abril SANTOS Boaventura de Sousa 1996 Um discurso sobre as ciências 8 ed Porto Edições Afrontamento Manual antropologia jurídica 001277indd 276 9112010 102028 276 277 1988 O discurso e o poder Porto Alegre Sérgio A Fabris Editor SHIRLEY Robert Weaver 1987 Antropologia jurídica São Paulo Sa raiva SÓFOCLES 2003 Antígona Édipo rei São Paulo Martin Claret STUCKA Petr Ivanovich 1988 Direito e luta de classes teoria geral do direito São Paulo Acadêmica THOMPSON William Irwin 1990 Gaia uma teoria do conhecimen to São Paulo Gaia VANNI Icilio 1916 Lições de philosophia do direito São Paulo Pocai Weiss C VENOSA Sílvio de Sálvio 2006 Direito civil direito de família São Paulo Atlas VIEHWEG Theodor 1979 Tópica é jurisprudência Brasília UNB WOLKMER Antonio Carlos 1995 Introdução ao pensamento jurídico crítico São Paulo Acadêmica Manual antropologia jurídica 001277indd 277 9112010 102028 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO PRÓREITORIA DE PESQUISA PÓSGRADUAÇÃO E INOVAÇÃO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA LINGUAGEM DOUTORADO INTERINSTITUCIONAL EM CIÊNCIAS DA LINGUAGEM GENIVALDO DO NASCIMENTO PORTFÓLIO DO COMPONENTE CURRICULAR FUNDAMENTOS TEÓRICOS E DE ANÁLISE DA LINGUAGEM Portfólio apresentado ao componente curricular Fundamentos Teóricos e de Análise da Linguagem ministrado pelo pro Dr Benedito Gomes Bezerra como um dos itens de avaliação no Curso de Doutorado em Ciências da Linguagem ofertado pela Universidade Católica de Pernambuco em convênio com a Universidade de Pernambuco RECIFE 2022 APRESENTAÇÃO Esse portfólio trata das atividades e dos conteúdos vivenciados no componente curricular Fundamentos Teóricos e de Análise da Linguagem ministrado pelo prof Dr Benedito Gomes Bezerra no curso de Doutorado em Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco em convênio com a Universidade de Pernambuco Neste documento faço a uma apresentação de aspectos da minha caminhada docente como pesquisador e descrevo as minhas expectativas em relação ao componente curricular e ao curso b reflexão pessoal interrelacionada aos materiais incluídos no componente curricular e relação dos itens do portfólio com vivências externas à disciplina Nesse tópico descrevo a relação dos materiais e das vivências do componente curricular com a minha formação docente meu letramento e com o início de minha jornada como pesquisador c faço uma avaliação dos processos do ponto de vista da mediação da aprendizagem d autoavaliação Assim este portfólio como não poderia deixar de ser descreve os aspectos mais importantes da minha jornada de aprendizagem ao cursar o componente curricular acima descrito Uma jornada feita em duas intensas semanas em meses diferentes abril e maio de 2022 no Campus da UPE Petrolina INTRODUÇÃO O meu nome é Severino não tenho outro de pia Como há muitos Severinos que é santo de romaria deram então de me chamar Severino de Maria como há muitos Severinos com mães chamadas Maria fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias mas isso ainda diz pouco há muitos na freguesia por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias MELO NETO J C Obra completa Rio de Janeiro Aguilar 1994 fragmento Sempre que tenho de me apresentar lembro do início desse poema e da dificuldade de Severino em dizer quem é a partir do nome que carrega A dificuldade de serestar no mundo e de se explicar É com essa dificuldade que começo essa parte do portfólio Sou docente em componentes curriculares da área de linguagem há 28 anos Iniciei em 1994 quando comecei a minha jornada como professor da Educação Básica na Rede Municipal de Ensino de Petrolina Hoje desenvolvo minhas atividades docentes na FACAPEFaculdade de Petrolina Autarquia Municipal e na Universidade de Pernambuco Nas duas IES leciono componentes da linguagem a exemplo de Leitura e Produção de Textos Análise do Discurso Linguística e Gramática Aplicada ao Texto Por estar ministrar disciplinas da área da linguagem as minhas expectativas em relação ao componente curricular Fundamentos Teóricos e de Análise da Linguagem era de obter mais elementos teóricopráticos para usar na prática docente Além disso esperava acrescentar ou mudar aspectos do meu projeto de tese sobre a Análise do Discurso no Cordel brasileiro produzido durante a Pandemia da Covid19 Ao longo desse portfólio ficará demonstrado que essas expectativas tanto em relação à prática docente quanto à reconstrução do projeto de tese foram plenamente atendidas Antes porém de descrever de que forma essas expectativas foram atendidas gostaria de apresentar de modo bem pessoal a maneira como o componente curricular Fundamentos Teóricos e de Análise da Linguagem foi a mim apresentado Como foi esse encontro Não digo apresentado à turma de doutorandos porque como bem define alguns estudos da Antropologia e da Fenomenologia a experiência pode ser vivida coletivamente mas a memória é individual Por isso podemos questionar o termo memória coletiva Dessa forma embora seja clichê afirmar isso não posso dizer que o meu olhar a minha janela é o mesmo dos colegas A ementa do componente curricular que consta no Plano de Ensino da Disciplina de agora em diante identificado pela sigla FTAL traz os seguintes elementos Aprofundamento dos estudos sobre os processos de organização da língua Concepções de linguagem e de língua Apresentação das diferentes abordagens nos estudos da linguagem Concepções de Linguagem A organização da linguagem Breve estudo sobre a linguística na Grécia e em Roma A Gramática Tradicional e a Linguística HistóricoComparativa Contribuições para a Linguística Moderna A contribuição saussuriana A Linguística norte americana A Escola de Praga A Gramática GerativaTransformacional Tendências atuais no estudo da Linguística Essa ementa contempla os principais tópicos da Linguística Eles possibilitam uma análise aprofundada dos estudos sobre a organização da língua e acerca do trabalhoensino com a linguagem O componente curricular FTAL foi vivenciado de forma presencial durante duas semanas em abril e maio em Petrolina As discussões foram feitas em sala de aula e as leiturasatividades por meio do classroom Google Meet No classroom a distribuição dos dez textos e dos slides demonstra uma divisão dos conteúdos em três blocos coerentes O primeiro bloco trata da linguagem e da linguística Os textos de 1 a 5 serviram de base teórica já o segundo apresenta os estudos acerca da língua textos de 6 a 9 O último bloco representado pelo texto 10 é uma síntese das discussões a partir dos estudos de Marcuschi Os títulos desses textos demonstram o que aqui descrevo conforme fotos a seguir Benedito Gomes Bezerra postou um novo material Texto 8 Como e por que as línguas mudam Benedito Gomes Bezerra postou um novo material Texto 7 As línguas do mundo Benedito Gomes Bezerra postou um novo material Texto 6 Da língua para a linguagem e a li Benedito Gomes Bezerra postou um novo material Slides aula 4 A linguística antes de Sauss Benedito Gomes Bezerra postou um novo material Curso de Linguística Geral Benedito Gomes Bezerra postou um novo material Slides aula 3 Língua linguagem e linguist Em seguida talvez após o intervalo passaremos ao tema As línguas do mundo e ouviremos Mariana já que Fátima não estará presente Por favor leiam esse texto também para que a discussão continue sendo produtiva Abraços Benedito Gomes Bezerra postou um novo material Texto 10 Perplexidades e perspectivas d 1 comentário para a turma Benedito Gomes Bezerra postou um novo material Texto 9 O que é uma língua Benedito Gomes Bezerra postou um novo material Texto 8 Como e por que as línguas mudam Ao olhar para os títulos dos textos no clasroom fui organizando a minha forma de aprender e atender às expectativas relacionadas à prática docente e ao projeto de tese O roteiro da minha aprendizagem portanto no componente curricular FTAL tinha três blocos linguagem língua e linguística O que aprendi será descrito nas partes que seguem deste portfólio REFLEXÃO PESSOAL INTERRELACIONADA AOS MATERIAIS INCLUÍDOS NO COMPONENTE CURRICULAR E RELAÇÃO DOS ITENS DO PORTFÓLIO COM VIVÊNCIAS EXTERNAS À DISCIPLINA João Grilo foi um cristão Que nasceu antes do dia Criouse sem formosura Mas tinha sabedoria E morreu depois da hora Pelas artes que fazia Do Folheto de Cordel As proezas de João Grilo de João Ferreira de Lima Acredito ser importante me situar e descrever um pouco o lugar de onde falo para que melhor seja compreendida a minha jornada da aprendizagem no componente curricular FTAL Faço a seguir um recorte de parte do meu projeto de tese na versão primeira Depois direi quais as mudanças que nele fiz por causa desse processo de aprendizagem no componente curricular FTAL O cordel fezfaz parte do meu letramento literário e profissional Na infância e adolescência quando morei em Rajada uma pequena comunidade rural do município de Petrolina Sertão de Pernambuco tive contato com os folhetos de cordel vendidos em bancas das feiras as quais eram realizadas no segundo domingo do mês Ajudava meus pais eles eram feirantes e nas horas vagas ficava lendo cordel que eu comprava O meu fascínio não era pela estrutura dos versos e estrofes e sim pelo conteúdo Foi lendo cordel por exemplo que construí o conceito de herói clássico e fiquei deslumbrado com as narrativas fantásticas O cordel me carregou para longe bem distante do universo de pobreza da minha infância e adolescência Como professor da Educação Básica e no Ensino Superior formei grupos de contadores de história de cordel e ministrei cursos de formação leitora sobre esse tema Como pesquisador desenvolvi trabalhos de investigação em um curso de Especialização e no Mestrado sobre a relação muitas vezes conflituosa dos professores com o cordel Na condição de professor sempre me inquietou o fato de o cordel ser usado na escola como um texto a ser aprendido ou para ensinar conteúdos Nas propostas de ensino ele geralmente é indicado para o ensino de Gramática Cangaço versificação cultura nordestina seca retirantes etc ou ensinase o aluno a fazer cordel Em outras propostas produzse o recordel isto é fazse cordel a partir de outros textos ou práticas discursivas obedecendo ao modelo X em cordel a História do Brasil em Cordel o Pequeno Príncipe em Cordel Dom Casmurro em Cordel etc Assim a minha relação com o cordel sempre esteve voltada mais para o discurso dele e menos para a estrutura do texto O meu olhar esteve direcionado principalmente para a o que o cordel diz ou seja a visão de mundoideologia contida nele Nesse estudo em nível de Doutoramento quero entender a influência que os diversos suportes têm na veiculação dessa visão de mundo que por interferir no olhar do destinatário é também ou principalmente argumentação Como pode ser visto a minha inquietação de pesquisa gira em torno dos discursos nodo cordel O bloco um do componente curricular me possibilitou conhecer melhor aspectos relacionados à linguagem e linguística Compreendi com mais clareza tópicos de conteúdo como 1A confusão entre Filologia e Linguística 2Linguagem e pensamento ou a busca pela da lógica na linguagem 3Linguagem natural e linguagem convencional 4A perspectiva eurocêntrica da Gramática de PortRoyal 5A importância da Linguística Histórica 6A importância do método comparativo e dos neogramáticos Nesse bloco o qual trata de linguagem e linguística fiz uma avaliação do uso de alguns termos transpostosdeslocados das Ciências da Natureza para as Ciências Humanas das quais a linguística faz parte Uma dessas expressões é a palavra interação O uso acrítico nos estudos sobre linguagem desse termo produz um certo idealismo porque escondeapaga a violência nele contido Afinal quando acontece interação acontecem também mudanças O ato de interagir é meio e não fim Para o meu projeto de tese são relevantes os conhecimentos acerca dos usos linguísticos no cordel como elemento discursivo Esses usos remetem a uma tradição identitária e negálos é um ato de violência Compreendi melhor o porquê de muitos cordelistas fazerem a correção da linguagem em seu seus folhetos como se estivessem higienizandoos Essa ideia de erro como algo bárbaro remete ao que Dante Alighieri autor de A Divina Comédia defendeu como língua errada Quanto à prática docente no Curso de Letras UPE e no de Direito FACAPE elenquei conceitos para usar no Plano de Ensino do próximo semestre tais como transformações da língua e etnocentrismo relação dos estudos linguísticos com conceitos antropológicos como Evolucionismo e Funcionalismo Gramática universal e espírito humano Alguns dos livrosbase para o bloco um do componente curricular FTAL José Luiz Fiorin org Ana Scher Antonio Vicente Pietroforte Diana Pessoa de Barros Esmeralda V Negrão Evani Viotti Luiz Tatit Margarida Petter Paulo Chagas Raquel Santos Ronald Beline Introdução à Linguística I Objetos teóricos editoracontexto Marcos Bagno língua linguagem linguística PONDO OS PINGOS NOS ii Nos blocos dois e três do componente curricular FTAL analisamos os textos de 6 a 10 os quais serviram de apoio teórico Especial atenção foi dada aos estudos de Bagno Dele analisamos os seguintes textos Da língua para a linguagem e a linguística Como e por que as línguas mudam e Que é uma língua Os outros textos que apoiaram a discussão foram As línguas do mundo Fiorin e Perplexidades e perspectivas da linguística Marcuschi Aspectos que fizeram parte da jornada da aprendizagem nesses blocos O que é uma língua Existe a dificuldade de conceituarmos o que é língua Isso porque nessa conceituação entram elementos políticos e ideológicos Não são somente os elementos estruturais que definem o que é uma língua Multilinguismo é o que predomina não existem sociedades monolínguas Importante destacar na discussão desse tópico a relevância da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos 1996 Fiz relação do conceito de hipóstase com o fetiche da mercadoria na obra de Marx Da forma para a função com Marcuschi vimos uma síntese bem elaborada dos estudos linguísticos Conforme esse linguista brasileiro a perspectiva sócio pragmática deve dominar esses estudos na contemporaneidade Fazendo uma relação com outras leituras que fiz compreendo que para a Pragmática a qual tem Austin como um dos principais representantes dizer é fazer Evidentemente não podemos ter a ilusão de que as palavras têm vida própria ou seja elas mesmas fazem a ação realizam coisas sozinhas sem a interferência humana Se assim acreditarmos aceitaremos como nulo o que vem antes e o que está fora do uso delas É como se elas tivessem vida numa perspectiva fantasmagórica e fetichizada como Marx se referiu às mercadorias O ser humano assim seria reificado ocupando a posição de uma coisa que serviria apenas para fazer a palavramercadoria ter vida própria Já nos estudos da enunciação com Benveniste e outros a palavra passa a ser considerada dentro de outra perspectiva a partir do binômio enunciadoenunciação do aqui agora numa relação de influência do locutor sobre o alocutário A palavra na enunciação passa a ser um elemento argumentativo portanto um instrumento agentivo Isso foi negligenciado por diversas correntes de estudos linguísticos a exemplo do ComparativismoEstruturalismo Assim as minhas expectativas em relação ao componente curricular FTAL foram plenamente atendidas No que concerne à prática docente nas duas IES onde leciono como no que diz respeito ao projeto de tese Como autoavaliação destaco os seguintes aspectos aInteração com os colegas da turma a minha participação nas discussões me ajudou a compreender melhor o processo de aprendizagem Isso porque no grupo existem pessoas de formações diferentes e o olhar delas de fora da área da linguística contribuiu bastante bCreio que eu precisava melhorar a administração do tempo para ler com mais profundidade os textos de apoio Por não estarmos liberados das atividades docentes ainda não calibrei bem esse tempo cPoderia ter sido mais produtivo se eu tivesse reconstruído o projeto de tese ao longo do componente curricular a partir da aprendizagem nele construída Espero qeu esse portfólio tenha descrito a minha jornada de aprendizagem no componente curricular Fundamentos Teóricos e de Análise da Linguagem ministrado de forma competente pelo pro Dr Benedito Gomes Bezerra no Curso de Doutorado em Ciências da Linguagem ofertado pela Universidade Católica de Pernambuco em convênio com a Universidade de Pernambuco