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AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO Emile Durkheim Até o presente os sociólogos pouco se preocuparam em caracterizar e definir o método que aplicam ao estudo dos fatos sociais É assim que em toda a obra de Spencer o problema metodológico não ocupa nenhum lugar pois a Introdução à ciência social cujo título poderia dar essa ilusão destinase a demonstrar as dificuldades e a possibilidade da sociologia não a expor os procedimentos que ela deve utilizar Stuart Mill é verdade ocupouse longa mente da questão mas ele não fez senão passar sob o crivo de sua dialética o que Comte havia dito sem acrescentar nada de verdadeiramente pessoal Um capítulo do Curso de filosofia positiva eis praticamente o único estudo original e importante que possuímos sobre o assunto Essa despreocupação aparente aliás nada tem de surpreendente De fato os grandes sociólogos cujos nomes acabamos de mencionar raramente saíram das generalidades sobre a natureza das sociedades sobre as relações do reino social e do reino biológico sobre a marcha geral do progresso mesmo a volumosa sociologia de Spencer quase não tem outro objeto senão mostrar como a lei da evolução universal se aplica às sociedades Ora apara tratar essas questões filosóficas n o são necessánosprocedimentos especiais e complexos A ra su iciente portanto pesar os méritos comparados da dedução e da indução e fazer uma inspeção sumária dos recursos mais gerais de que dispõe a investigação sociológica Mas as precauções a tomar na observação dos fatos a maneira como os principais problemas devem ser colocados o sentido no qual as pesquisas devem ser dirigidas as práticas especiais que podem permitir chegar aos fatos as regras que devem presidir a administração das provas tudo isso permanecia indeterminado Uma série de circunstâncias felizes entre as quais é justo destacar a iniciativa que criou em nosso favor um curso regular de sociologia na Faculdade de Letras de Bordéus o qual possibilitou que nos dedicássemos desde cedo ao estudo da ciência social e inclusive fizéssemos dele o objeto de nossas ocupações profissionais nos fez sair dessas questões demasiado gerais e abordar um certo número de problemas particulares Assim fomos levados pela força mesma das coisas a elaborar um método que julgamos mais definido mais exatamente adaptado à natureza particular dos fenômenos sociais São esses resultados de nossa prática que gostaríamos de expor aqui em conjunto e de submeter à discussão Claro que eles estão implicitamente contidos no livro que publicamos recentemente sobre A divisão do trabalho social Mas nos parece interessante destacálos formulálos à parte acompanhados de suas provas e ilustrados de exemplos tomados tanto dessa obra como de trabalhos ainda inéditos Assim poderão julgar melhor a orientação que gostaríamos de tentar dar aos estudos de sociologia O QUE É UM FATO SOCIAL Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais importa saber quais fatos chamamos assim A questão é ainda mais necessária porque se utiliza essa qualificação sem muita precisão Ela é empregada correntemente para designar mais ou menos todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade por menos que apresentem com uma certa generalidade algum interesse social Mas dessa maneira não há por assim dizer acontecimentos humanos que não possam ser chamados sociais Todo indivíduo come bebe dorme raciocina e a sociedade tem todo o interesse em que essas funções se exerçam regularmente Portanto se esses fatos fossem sociais a sociologia não teria objeto próprio e seu domínio se confundiria com o da biologia e da psicologia Mas na realidade há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos que se distinguem por caracteres definidos daqueles que as outras ciências da natureza estudam Quando desempenho minha tarefa de irmão de marido ou de cidadão quando executo os compromissos que assumi eu cumpro deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos no direito e nos costumes Ainda que eles estejam de acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta interiormente a realidade deles esta não deixa de ser objetiva pois não fui eu que os fiz mas os recebi pela educação Aliás quantas vezes não nos ocorre ignorarmos o detalhe das obrigações que nos incumbem e precisarmos para conhecêlas consultar o Código e seus intérpretes autorizados Do mesmo modo as crenças e as práticas de sua vida religiosa o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer se elas existiam antes dele é que existem fora dele O sistema de signos de que me sirvo para exprimir meu pensamento o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dívidas os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações co merciais as práticas observadas em minha profissão etc funcionam independentemente do uso que faço deles Que se tomem um a um todos os membros de que é composta a sociedade o que precede poderá ser repetido a propósito de cada um deles Eis aí portanto maneiras de agir de pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao indivíduo como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõem a ele quer ele queira quer não Certamente quando me conformo voluntariamente a ela essa coerção não se faz ou pouco se faz sentir sendo inútil Nem por isso ela deixa de ser um caráter intrínseco desses fatos e a prova disso é que ela sê afirma tão logo tento resistir Se tento violar as regras do direito elas reagem contra mim para impedir meu ato se estiver em tempo ou para anulálo e restabelecêlo em sua forma normal se tiver sido efetuado e for reparável ou para fazer com que eu o expie se não puder ser reparado de outro modo Em se tratando de máximas puramente morais a consciência pública reprime todo ato que as ofenda através da vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos e das penas especiais de que dispõe Em outros casos a coerção émenos violenta mas não deixa de existir Se não me submeto às convenções do mundo se ao vestirme não levo em conta os costumes observados em meu país e em minha classe o riso que provoco o afastamento em relação a mim produzem embora de maneira mais atenuada os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita Ademais a coerção mesmo sendo apenas indireta continua sendo eficaz Não sou obrigado a falar francês com meus compatriotas nem a empregar as moedas legais mas éimpossível agir de outro modo Se eu quisesse escapar a essa necessidade minha tentativa fracassaria miseravelmente Industrial nada me proíbe de trabalhar com procedimentos e métodos do século passado mas se o fizer é certo que me arruinarei Ainda que de fato eu possa libertarme dessas regras e violálas com sucesso isso jamais ocorre sem que eu seja obrigado a lutar contra elas E ainda que elas sejam finalmente vencidas demonstram suficientemente sua força coercitiva pela resistência que opõem Não há inovador mesmo afortunado cujos empreendimentos não venham a deparar com oposições desse tipo Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais consistem em maneiras de agir de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele Por conseguinte eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos já que consistem em representações e em ações nem com Os fenômenos psíquicos os quais só têm existência na consciência individual e através dela Esses fatos constituem portanto uma espécie nova e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais Essa qualificação lhes convém pois é claro que não tendo o indivíduo por substrato eles não podem ter outro senão a sociedade seja a sociedade política em seu conjunto seja um dos grupos parciais que ela encerra confissões religiosas escolas políticas literárias corporações profissionais etc Por outro lado é a eles só que ela convém pois apalavra social só tem sentido definido com a condição de designar unicamente fenômenos que não se incluem em nenhuma das categorias de fatos já constituídos e denominados Eles são portanto o domínio próprio da sociologia É verdade que a palavra coerção pela qual os definimos pode vira assustar os zelosos defensores de um individualismo absoluto Como estes professam que o indivíduo éperfeitamente autônomo julgam que o diminuímos sempre que mostramos que ele não depende apenas de si mesmo Sendo hoje incontestável porém que a maior parte de nossas idéias e de nossas tendências não é elaborada por nós mas nos vem de fora elas só podem penetrar em nós impondose eis tudo o que significa nossa definição Sabese aliás que nem toda coerção social exclui necessariamente a personalidade individual Entretanto como os exemplos que acabamos de citar regras jurídicas morais dogmas religiosos sistemas financeiros etcconsistem todos em crenças e em práticas constituídas poderseia supor com base no que precede que só há fato social onde há organização definida Mas existem outros fatos que sem apresentar essas formas cristalizadas têm a mesma objetividade e a mesma ascendência sobre o indivíduo É o que chamamos de correntes sociais Assim numa assembléia os grandes movimentos de entusiasmo ou de devoção que se produzem não têm por lugar de origem nenhuma consciência particular Eles nos vêm a cada um de nós de fora e são capazes de nos arrebatar contra a nossa vontade Certamente pode ocorrer que entregandome a eles sem reserva eu não sinta a pressão que exercem sobre mim Mas ela se acusa tão logo procuro lutar contra eles Que um indivíduo tente se opor a uma dessas manifestações coletivas os sentimentos que ele nega se voltarão contra ele Ora se essa força de coerção externa se afirma com tal nitidez nos casos de re sistência é porque ela existe ainda que inconsciente nos casos contrários Somos então vítimas de uma ilusão que nos faz crer que elaboramos nós mesmos o que se impôs a nós de fora Mas se a complacência com que nos entregamos a essa força encobre a pressão sofrida ela não a suprime Assim também o ar não deixa de ser pesado embora não sintamos mais seu peso Mesmo que de nossa parte tenhamos colaborado espontaneamente para a emoção comum a impressão que sentimos é muito diferente da que teríamos sentido se estivéssemos sozinhos Assim a partir do momento em que a assembléia se dissolve em que essas influências cessam de agir sobre nós e nos vemos de novo a sós os sentimentos vividos nos dão a impressão de algo estranho no qual não mais nos reconhecemos Então nos damos conta de que sofremos esses sentimentos bem mais do que os produzimos Pode acontecer até que nos causem horror tanto eram contrários ànossa natureza É assim que indivíduos perfeitamente inofensivos na maior parte do tempo podem ser levados a atos de atrocidade quando reunidos em multidão Ora o que dizemos dessas explosões passageiras aplicase identicamente aos movimentos de opinião mais duráveis que se produzem a todo instante a nosso redor seja em toda a extensão da sociedade seja em círculos mais restritos sobre assuntos religiosos políticos literários artísticos etc Aliás podese confirmar por uma experiência característica essa definição do fato social basta observar a maneira como são educadas as crianças Quando se observam os fatos tais como são e tais como sempre foram salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente Desde os primeiros momentos de sua vida forçamolas a comer a beber a dormir em horários regulares forçamolas à limpeza à calma à obediência mais tarde forçamolas para que aprendam a levar em conta outrem a respeitar os costumes as conveniências forçamolas ao trabalho etc etc Se com o tempo essa coerção cessa de ser sentida é que pouco a pouco ela dá origem a hábitos a tendências internas que a tornam inútil mas que só a substituem pelo fato de derivarem dela É verdade que segundo Spencer uma educação racional deveria reprovar tais procedimentos e deixar a criança proceder com toda a liberdade mas como essa teoria pedagógica jamais foi praticada por qualquer povo conhecido ela constitui apenas um desideratum pessoal não um fato que se pos sa opor aos fatos que precedem Ora o que torna estes últimos particularmente instrutivos é que a educação tem justamente por objeto produzir o ser social podese portanto ver nela como que resumidamente de que maneira esse ser constituiuse na história Essa pressão de todos os instantes que sofre a criança é a pressão mesma do meio social que tende a modelála à sua imagem e do qual os pais e os mestres não são senão os representantes e os intermediários Assim não é sua generalidade que pode servir para caracterizar os fenômenos sociológicos Um pensamento que se encontra em todas as consciências particulares um movimento que todos os indivíduos repetem nem por isso são fatos sociais Se se contentaram com esse caráter para definilos é que os confundiram erradamente com o que se poderia chamar de suas encarnações individuais O que os constitui são as crenças as tendências e as práticas do grupo tomado coletivamente quanto às formas que assumem os estados coletivos ao se refratarem nos indivíduos são coisas de outra espécie O que demonstra categoricamente essa dualidade de natureza é que essas duas ordens de fatos apresentamse geralmente dissociadas Com efeito algumas dessas maneiras de agir ou de pensar adquirem por causa da repetição uma espécie de consistência que as precipita por assim dizer e as isola dos aconteci mentos particulares que as refletem Elas assumem assim um corpo uma forma sensível que lhes é própria e constituem uma realidade sui generis muito distinta dos fatos individuais que a manifestam O hábito coletivo não existe apenas em estado de imanência nos atos sucessivos que ele determina mas se exprime de uma vez por todas por um privilégio cujo exemplo não encontramos no reino biológico numa fórmula que se repete de boca em boca que se transmite pela educação que se fixa através da escrita Tais são a origem e a natureza das regras jurídicas morais dos aforismos e dos ditos populares dos artigos de fé em que as seitas religiosas ou políticas condensam suas crenças dos códigos de gosto que as escolas literárias estabelecem etc Nenhuma dessas maneiras de agir ou de pensar se acha por inteiro nas aplicações que os particulares fazem delas já que elas podem inclusive existir sem serem atualmente aplicadas Claro que essa dissociação nem sempre se apresenta com a mesma nitidez Mas basta que ela exista de uma maneira incontestável nos casos importantes e numerosos que acabamos de mencionar para provar que o fato social édistinto de suas repercussões individuais Aliás mesmo que ela não seja imediatamente dada à observação podese com freqüência realizála com o auxilio de certos artifícios de método é inclusive indispensável proceder a essa operação se quisermos separar o fato social de toda mistura para observálo no estado de pureza Assim há certas correntes de opinião que nos impelem com desigual intensidade conforme os tempos e os lugares uma ao casamento por exemplo outra ao suicídio ou a uma natalidade mais ou menos acentuada etc Tratase evidentemente de fatos sociais À primeira vista eles parecem inseparáveis das formas que assumem nos casos particulares Mas a estatística nos fornece o meio de isolálos Com efeito eles são representados não sem exatidão pelas taxas de natalidade de nupcialidade de suicídios ou seja pelo número que se obtém ao dividir a média anual total dos nascimentos dos casamentos e das mortes voluntárias pelo total de homens em idade de se casar de procriar de se suicidarz Pois como cada uma dessas cifras compreende todos os casos particulares sem distinção as circunstâncias individuais que podem ter alguma participação na produção do fenômeno neutralizamse mutuamente e portanto não contribuem para determinálo O que esse fato exprime éum certo estado da alma coletiva Eis o que são os fenômenos sociais desembaraçados de todo elemento estranho Quanto às suas manifestações privadas elas têm claramente algo de social já que reproduzem em parte um modelo coletivo mas cada uma delas depende também e em larga medida da constituição orgânicopsíquica do indivíduo das circunstâncias particulares nas quais ele está situado Portanto elas não são fenômenos propriamente sociológicos Pertencem simultaneamente a dois reinos poderíamos chamálas sociopsíquicas Essas manifestações interessam o sociólogo sem constituírem a matéria imediata da sociologia No interior do organismo encontramse igualmente fenômenos de natureza mista que ciências mistas como a química biológica estudam Mas dirão um fenômeno só pode ser coletivo se for comum a todos os membros da sociedade ou pelo menos à maior parte deles portanto se for geral Certamente mas se ele é geral é porque é coletivo isto é mais ou menos obrigatório o que é bem diferente de ser coletivo por ser geral Esse fenômeno é um estado do grupo que se repete nos indivíduos porque se impõe a eles Ele está em cada parte porque está no todo o que é diferente de estar no todo por estar nas partes Isso é sobretudo evidente nas crenças e práticas que nos são transmitidas inteiramente prontas pelas gerações anteriores recebemolas e adotamolas porque sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma obra secular elas estão investidas de uma particular autoridade que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar Ora cumpre assinalar que a imensa maioria dos fenômenos sociais nos chega dessa forma Mas ainda que se deva em parte à nossa colaboração direta o fato social é da mesma natureza Um sentimento coletivo que irrompe numa assembléia não exprime simplesmente o que havia de comum entre todos os sentimentos individuais Ele é algo completamente distinto conforme mostramos É uma resultante da vida comum das ações e reações que se estabelecem entre as consciências individuais e se repercute em cada uma delas é em virtude da energia social que ele deve precisamente à sua origem coletiva Se todos os corações vibram em uníssono não é por causa de uma concordância espontânea e preestabelecida é que uma mesma força os move no mesmo sentido Cada um é arrastado por todos Podemos assim representarnos de maneira precisa o domínio da sociologia Ele compreende apenas um grupo determinado de fenômenos Um fato social se reconhece pelo poder de coerção externa que exerce ou é capaz de exercer sobre os indivíduos e a presença desse poder se reconhece por sua vez seja pela existência de alguma sanção determinada seja pela resistência que o fato opõe a toda tentativa individual de fazerlhe violência Contudo podese definilo também pela difusão que apresenta no interior do grupo contanto que conforme as observações precedentes tenhase o cuidado de acrescentar como segunda e essencial característica que ele existe independentemente das formas individuais que assume ao difundirse Este último critério em certos casos é inclusive mais fácil de aplicar que o precedente De fato a coerção é fácil de constatar quando se traduz exteriormente por alguma reação direta da sociedade como é o caso em relação ao direito à moral às crenças aos costumes inclusive às modas Mas quando é apenas indireta como a que exerce uma organização econômica ela nem sempre se deixa perceber tão bem A generalidade combinada coma objetividade podem então ser mais fáceis de estabelecer Aliás essa segunda definição não é senão outra forma da primeira pois se uma maneira de se conduzir que existe exteriormente às consciências individuais se generaliza ela só pode fazêlo impondosei Entretanto poderseia perguntar se essa definição é completa Com efeito os fatos que nos forneceram sua base são todos eles maneiras de fazer são de ordem fisiológica Ora há também maneiras de ser coletivas isto é fatos sociais de ordem anatômica ou morfológica A sociologia não pode desinteressarse do que diz respeito ao substrato da vida coletiva No entanto o número e a natureza das partes elementares de que se compõe a sociedade a maneira como elas estão dispostas o grau de coalescência a que chegaram a distribuição da população pela superfície do território o número e a natureza das vias de comunicação a forma das habitações etc não parecem capazes num primeiro exame de se reduzir a modos de agir de sentir ou de pensar Mas em primeiro lugar esses diversos fenômenos apresentam a mesma característica que nos ajudou a definir os outros Essas maneiras de ser se impõem ao indivíduo tanto quanto as maneiras de fazer de que falamos De fato quando se quer conhecer a forma como uma sociedade se divide politicamente como essas divisões se compõem a fusão mais ou menos completa que existe entre elas não é por meio de uma inspeção material e por observações geográficas que se pode chegar a isso pois essas divisões são morais ainda que tenham alguma base na natureza física É somente através do direito público que se pode estudar essa organização pois é esse direito que a determina assim como determina nossas relações domésticas e cívicas Portanto ela não é menos obrigatória Se a população se amontoa nas cidades em vez de se dispersar nos campos é que há uma corrente de opinião um movimento coletivo que impõe aos indivíduos essa concentração Não podemos escolher a forma de nossas casas como tampouco a de nossas roupas pelo menos uma é obrigatória na mesma medida que a outra As vias de comunicação determinam de maneira imperiosa o sentido no qual se fazem as migrações interiores e as trocas e mesmo a intensidade dessas trocas e dessas migrações etc etc Em conseqüência seria quando muito o caso de acrescentar à lista dos fenômenos que enumeramos como possuidores do sinal distintivo do fato social uma categoria a mais e como essa enumeração não tinha nada de rigorosamente exaustivo a adição não seria indispensável Mas ela não seria sequer proveitosa pois essas maneiras de ser não são senão maneiras de fazer consolidadas A estrutura política de uma sociedade não é senão a maneira como os diferentes segmentos que a compõem se habituaram a viver uns com os outros Se suas relações são tradicionalmente próximas os segmentos tendem a se confundir caso contrário tendem a se distinguir O tipo de habitação que se impõe a nós não é senão a maneira como todos ao nosso redor e em parte as gerações anteriores se acostumaram a construir suas casas As vias de comunicação não são senão o leito escavado pela própria corrente regular das trocas e das migrações correndo sempre no mesmo sentido etc Certamente se os fenômenos de ordem morfológica fossem os únicos a apresen tar essa fixidez poderíamos pensar que eles constituem uma espécie à parte Mas uma regra jurídica é um arranjo não menos permanente que um modelo arquitetônico e no entanto é um fato fisiológico Uma simples máxima moral é seguramente mais maleável porém ela possui formas bem mais rígidas que um simples costume profissional ou que uma moda Há assim toda uma gama de nuances que sem solução de continuidade liga os fatos estruturais mais caracterizados às correnteslivres da vida social ainda não submetidas a nenhum molde definido Éque entre os primeiros e as segundas apenas há diferenças no grau de consolidação que apresentam Uns e outras são apenas vida mais ou menos cristalizada Claro que pode haver interesse em reservar o nome de morfológicos aos fatos sociais que concernem ao substrato social mas com a condição de não perder de vista que eles são da mesma natureza que os outros Nossa definição compreenderá portanto todo o definido se dissermos É fato social toda maneira de fazer fixada ou não suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior ou ainda toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e ao mesmo tempo possui uma existência própria independente de suas manifestações individuais REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS A primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas No momento em que uma nova ordem de fenômenos tornase objeto de ciência eles já se acham representados no espírito não apenas por imagens sensíveis mas por espécies de conceitos grosseiramente formados Antes dos primeiros rudimentos da física e da química os homens já possuíam sobre os fenômenos físicoquímicos noções que ultrapassavam a pura percepção como aquelas por exemplo que encontramos mescladas a todas as religiões É que de fato a reflexão é anterior à ciência que apenas se serve dela com mais método O homem não pode viver em meio às coisas sem fórmar a respeito delas idéias de acordo com as quais regula sua conduta Acontece que como essas noções estão mais próximas de nós e mais ao nosso alcance do que as realidades a que correspondem tendemos naturalmente a substituir estas últimas por elas e a fazer delas a matéria mesma de nossas especulações Em vez de observar as coisas de descrevêlas de comparálas contentamonos então em tomar consciência de nossas idéias em analisálas em combinálas Em vez de uma ciência de realidades não fazemos mais do que uma análise ideológica Por certo essa análise não exclui necessariamente toda observação Podese recorrer aos fatos para confirmar as noçôes ou as conclusões que se tiram Mas os fatos só intervêm então secundariamente a título de exemplos ou de provas confirmatórias eles não são o objeto da ciência Esta vai das idéias às coisas não das coisas às idéias É claro que esse método não poderia dar resultados objetivos Com efeito essas noções ou conceitos não importa o nome que se queira darlhes não são os substitutos legítimos das coisas Produtos da experiência vulgar eles têm por objeto antes de tudo colocar nossas ações em harmonia com o mundo que nos cerca são formados pela prática e para ela Ora uma representação pode ser capaz de desempenhar utilmente esse papel mesmo sendo teoricamente falsa Copérnico há muitos séculos dissipou as ilusões de nossos sentidos referentes aos movimentos dos astros no entanto é ainda com base nessas ilusões que regulamos correntemente a distribuição de nosso tempo Para que uma idéia suscite exatamente os movimentos que a natureza de uma coisa reclama não é necessário que ela exprima fielmente essa natureza basta que nos faça perceber o que a coisa tem de útil ou de desvantajoso cie que modo pode nos servir de que modo nos contrariar Mas as noções assim formadas só apresentam essa justeza prática de uma maneira aproximada e somente na generalidade dos casos Quantas vezes elas são tão perigosas como inadequadas Não é portanto elaborandoas pouco importa de que maneira o façamos que chegaremos a descobrir as leis da realidade Tais noções ao contrário são como um véu que se interpõe entre as coisas e nós e que as encobre tanto mais quanto mais transparente julgamos esse véu Tal ciência não é apenas truncada faltalhe também matéria de que se alimentar Mal ela existe desaparece por assim dizer transformandose em arte De fato supõese que essas noções contenham tudo o que há de essencial no real já que são confundidas com o próprio real Com isso parecem ter tudo o que é preciso para que sejamos capazes não só de compreender o que é mas de prescrever o que deve ser e os meios de executálo Pois é bom o que está de acordo com a natureza das coisas o que é contrário a elas é mau e os meios para alcançar um e evitar o outro derivam dessa mesma natureza Portanto se a dominamos de saída o estudo da realidade presente não tem mais interesse prático e como esse interesse é a razão de ser de tal estudo este se vê desde então sem finalidade A reflexão é assim incitada a afastarse do que é o objeto mesmo da ciência a saber o presente e o passado para lançarse num único salto em direção ao futuro Em vez de buscar compreender os fatos adquiridos e realizados ela empreende imediatamente realizar novos mais conformes aos fins perseguidos pelos homens Quando se crê saber em que consiste a essência da matéria partese logo em busca da pedra filosofal Essa intromissão da arte na ciência que impede que esta se desenvolva é aliás facilitada pelas circunstâncias mesmas que determinam o despertar da reflexão científica Pois como esta só surge para satisfazer necessidades vitais é natural que se oriente para a prática As necessidades que ela é chamada a socorrer são sempre prementes portanto a pressionam para obter resultados elas reclamam não explicações mas remédios Essa maneira de proceder é tão conforme à tendência natural de nosso espírito que a encontramos inclusive na origem das ciências físicas É ela que diferencia a alquimia da química bem como a astrologia da astronomia É por ela que Bacon caracteriza o método que os sábios de seu tempo seguiam e que ele combate As noções que acabamos de mencionar são aquelas notiones vulgares ou praenotioneslque ele assinala na base de todas as ciências nas quais elas tomam o lugar dos fatos São os idola fantasmas que nos desfiguram o verdadeiro aspecto das coisas e que no entanto tomamos como as coisas mesmas E é por esse meio imaginário não oferecer ao espírito nenhuma resistência que este não se sentindo contido por nada entregase a ambições sem limite e julga possível construir ou melhor reconstruir o mundo com suas forças apenas e ao sabor de seus desejos Se foi assim com as ciências naturais com mais forte razão tinha de ser com a sociologia Os homens não esperaram o advento da ciência social para formar idéias sobre o direito a moral a família o Estado a própria sociedade pois não podiam privarsedelas para viver Ora é sobretudo em sociologia que essas prenoçõespara retomar a expressão de Bacon estão em situação de dominar os espíritos e de tomar o lugar das coisas Com efeito as coisas sociais só se realizam através dos homens elas são um produto da atividade humana Portanto parecem não ser outra coisa senão a realização de idéias inatas ou não que trazemos em nós senão a aplicação dessas idéias às diversas circunstâncias que acompanham as relações dos homens entre si A organização da família do contrato da repressão do Estado da sociedade é vista assim como um simples desenvolvimento das idéias que temos sobre a sociedade o Estado a justiça etc Em conseqüência esses fatos e outros análogos só parecem ter realidade nas e pelas idéias que são seu germe e que se tornam com isso a matéria própria da sociologia O que reforça essa maneira de ver é que como os detalhes da vida social excedem por todos os lados a consciência esta não tem uma percepção suficientemente forte desses detalhes para sentir sua realidade Não tendo em nós ligações bastante sólidas nem bastante próximas tudo isso nos dá facilmente a impressão de não se prender a nada e de flutuar no vazio matéria em parte irreal e indefinidamente plástica Eis por que tantos pensadores não viram nos arranjos sociais senão combinações artificiais e mais ou menos arbitrárias Mas se os detalhes se as formas concretas e particulares nos escapam pelo menos nos representamos os aspectos mais gerais da existência coletiva de maneira genérica e aproximada e são precisamente essas representações esquemáticas e sumárias que constituem as prenoçôes de que nos servimos para as práticas correntes da vida Não podemos portanto pensar em pôr em dúvida a existência delas uma vez que a percebemos ao mesmo tempo que a nossa Elas não apenas estão em nós como também sendo um produto de experiências repetidas obtêm da repetição e do hábito resultante uma espécie de ascendência e de autoridade Sentimos sua resistência quando buscamos libertarnos delas Ora não podemos deixar de considerar como real o que se opõe a nós Tudo contribui portanto para que vejamos nelas a verdadeira realidade social E de fato até o presente a sociologia tratou mais ou menos exclusivamente não de coisas mas de conceitos Comte é verdade proclamou que os fenômenos sociais são fatos naturais submissos a leis naturais Deste modo ele implicitamente reconheceu seu caráter de coisas pois na natureza só existem coisas Mas quando saindo dessas generalidades filosóficas ele tenta aplicar seu princípio e extrair a ciência nele contida são idéias que ele toma por objeto de estudo Com efeito o que faz a matéria principal de sua sociologia é o progresso da humanidade no tempo Ele parte da idéia de que há uma evolução contínua do gênero humano que consiste numa realização sempre mais completa da natureza humana e o problema que ele trata é descobrir a ordem dessa evolução Ora supondo que essa evolução exista sua realidade só pode ser estabelecida uma vez feita a ciência portanto só se pode fazer dessa evolução o objeto mesmo da pesquisa se ela for colocada como uma concepção do espírito não como uma coisa E de fato é tão claro que se trata de uma representação inteiramente subjetiva que na prática esse progresso da humanidade não existe O que existe a única coisa dada à observação são sociedades particulares que nascem se desenvolvem e morrem independentemente umas das outras Se pelo menos as mais recentes continuassem as que as precederam cada tipo superior poderia ser considerado como a simples repetição do tipo imediatamente inferior com alguma coisa a mais poderseia pois alinhálas umas depois das outras por assim dizer confundindo as que se encontram no mesmo grau de desenvolvimento e a série assim formada poderia ser vista como representativa da humanidade Mas os fatos não se apresentam com essa extrema simplicidade Um povo que substitui outro não é simplesmente um prolongamento deste último com algumas características novas ele é outro tem algumas propriedades a mais outras a menos constitui uma individualidade nova e todas essas individualidades distintas sendo heterogêneas não podem se fundir numa mesma série contínua nem sobretudo numa série única Pois a seqüência das sociedades não poderia ser figurada por uma linha geométrica ela assemelhase antes a uma árvore cujos ramos se orientam em sentidos divergentes Em suma Comte tomou por desenvolvimento histórico a noção que dele possuía e que não difere muito da que faz o vulgo Vista de longe de fato a história adquire bastante claramente esse aspecto serial e simples Percebemse apenas indivíduos que se sucedem uns aos outros e marcham todos numa mesma direção porque têm uma mesma natureza Aliás como não se concebe que a evolução social possa ser outra coisa que não o desenvolvimento de uma idéia humana parece natural definiIa pela idéia que dela fazem os homens Ora procedendo assim não apenas se permanece na ideologia mas se dá como objeto à sociologia um conceito que nada tem de propriamente sociológico Esse conceito Spencer o descarta mas para substituílo por outro que não é formado de outro modo Ele faz das sociedades e não da humanidade o objeto da ciência só que ele dá em seguida das primeiras uma definição que faz desaparecer a coisa de que fala para colocar no lugar a prenoçâo que possui dela Com efeito ele estabelece como uma proposição evidente que uma sociedade só existe quando à justaposição acrescentase a cooperação sendo somente então que a união dos indivíduos se torna uma sociedade propriamente dita Depois partindo do princípio de que a cooperação é a essência da vida social ele distingue as sociedades em duas classes conforme a natureza da cooperação que nelas predomina Há diz ele uma cooperação espontânea que se efetua sem premeditação durante a perseguição de fins de caráter privado há também uma cooperação conscientemente instituída que supõe fins de interesse público claramente reconhecidos Às primeiras ele dá o nome de sociedades industriais às segundas de militares e podese dizer dessa distinção que ela é a idéiamãe de sua sociologia Mas essa definição inicial enuncia como coisa o que é tãosó uma noção do espírito Com efeito ela se apresenta como a expressão de um fato imediatamente visível e que basta à observação constatar já que é formulada desde o início da ciência como axioma No entanto é impossível saber por uma simples inspeção se realmente a cooperação é a essência da vida social Tal afirmação só é cientificamente legítima se primeiramente passarmos em revista as manifestações da existência coletiva e se mostrarmos que todas são formas diversas da cooperação Portanto é ainda certa maneira de concebera realidade social que substitui essa realidade O que é assim definido não é a sociedade mas a idéia que dela faz o Sr Spencer E se ele não tem o menor escrúpulo em proceder deste modo é que também para ele a sociedade não é e não pode ser senão a realização de uma idéia isto é dessa idéia mesma de cooperação pela qual a define Seria fácil mostrar que em cada um dos problemas particulares que aborda seu método permanece o mesmo Assim embora dê a impressão de proceder empiricamente como os fatos acumulados em sua sociologia são empregados para ilustrar análises de noções e não para descrever e explicar coisas eles parecem estar ali apenas para figurar como argumentos Em realidade tudo o que há de essencial na doutrina de Spencer pode ser imediatamente deduzido de sua definição da sociedade e das diferentes formas de cooperação Pois se só pudermos optar entre uma cooperação tiranicamente imposta e uma cooperação livre e espontânea evidentemente esta última é que será o ideal para o qual a humanidade tende e deve tender Não é somente na base da ciência que se encontram essas noções vulgares vemolas a todo instante na trama dos raciocínios No estado atual de nossos conhecimentos não sabemos com certeza o que é o Estado a soberania a liberdade política a democracia o socialismo o comunismo etc o método aconselharia portanto a que nos proibíssemos todo uso desses conceitos enquanto eles não estivessem cientificamente constituídos Entretanto as palavras que os exprimem retornam a todo momento nas discussões dos sociólogos Elas são empregadas correntemente e com segurança como se correspondessem a coisas bem conhecidas e definidas quando apenas despertam em nós noções confusas misturas indistintas de impressões vagas de preconceitos e de paixões Zombamos hoje dos singulares raciocínios que os médicos da Idade Média construíam com as noções de calor de frio de úmido de seco etc e não nos apercebemos de que continuamos a aplicar esse mesmo método à ordem de fenômenos que o comporta menos que qualquer outro por causa de sua extrema complexidade Nos ramos especiais da sociologia esse caráter ideológico ê ainda mais pronunciado É o caso sobretudo da moral De fato podese dizer que não há um único sistema em que ela não seja representada como o simples desenvolvimento de uma idéia inicial que a conteria por inteiro em potência Essa idéia uns crêem que o homem a encontra inteiramente pronta dentro dele desde seu nascimento outros ao contrário que ela se forma mais ou menos lentamente ao longo da história Mas tanto para uns como para outros tanto para os empiristas como para os racionalistas ela é tudo o que há de verdadeiramente real em moral No que concerne ao detalhe das regras jurídicas e morais elas não teriam por assim dizer existência por si mesmas mas seriam apenas essa noção fundamental aplicada às circunstâncias particulares da vida e diversificada conforme os casos Portanto o objeto da moral não poderia ser esse sistema de preceitos sem realidade mas a idéia da qual decorrem e da qual não são mais que aplicações variadas Assim todas as questões que a ética se coloca ordinariamente se referem não a coisas mas a idéias o que se trata de saber é em que consiste a idéia do direito a idéia da moral enão qual a natureza da moral e do direito considerados em si mesmos Os moralistas ainda não chegaram à concepção muito simples de que assim como nossa representação das coisas sensíveis provém dessas coisas mesmas e as exprime mais ou menos exatamente nossa representação da moral provém do próprio espetáculo das regras que funcionam sob nossos olhos e as figura esquematicamente de que conseqüentemente são essas regras e não a noção sumária que temos delas que formam a matéria da ciência da mesma forma que a física tem como objeto os corpos tais como existem e não a idéia que deles faz o vulgo Disso resulta que se toma como base da moral o que não é senão o topo a saber a maneira como ela se prolonga nas consciências individuais e nelas repercute E não é apenas nos problemas mais gerais da ciência que esse método é seguido ele permanece o mesmo nas questões especiais Das idéias essenciais que estuda no início o moralista passa às idéias secundárias de família de pátria de responsabilidade de caridade de justiça mas é sempre a idéias que se aplica sua reflexão Não é diferente com a economia política Ela tem por objeto diz Stuart Mill os fatos sociais que se produzem principalmente ou exclusivamente em vista da aquisição de riquezas Mas para que os fatos assim definidos pudessem ser designados enquanto coisas à observação do cientista seria preciso pelo menos que se pudesse indicar por qual sinal é possível reconhecer aqueles que satisfa zem essa condição Ora no início da ciência não se tem sequer o direito de afirmar que existe algum muito menos ainda se pode saber quais são Em toda ordem de pesquisas com efeito é somente quando a explicação dos fatos está suficientemente avançada que é possível estabelecer que eles têm um objetivo e qual é esse objetivo Não há problema mais complexo nem menos suscetível de ser resolvido de saída Portanto nada nos garante de antemão que haja uma esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe realmente esse papel preponderante Em conseqüência a matéria da economia política assim compreendida é feita não de realidades que podem ser indicadas mas de simples possíveis de puras concepções do espírito a saber fatos que o economista concebè como relacionados ao fim considerado e tais como ele os concebe Digamos por exemplo que ele queira estudar o que chama a produção De saída acredita poder enumerar os principais agentes com o auxílio dos quais ela ocorre e passálos em revista Portanto ele não reconheceu a existência desses agentes observando de quais condições dependia a coisa que ele estuda pois então teria começado por expor as experiências de que tirou essa conclusão Se desde o início da pesquisa e em poucas palavras ele procede a essa classificação é que a obteve por uma simples análise lógica Parte da idéia da produção decompondoa descobre que ela implica logicamente as de forças naturais de trabalho de instrumento ou de capital e trata a seguir da mesma ma neira essas idéias derivadas A mais fundamental de todas as teorias econômicas a do valor é manifestamente construída segundo o mesmo método Se o valor fosse estudado como uma realidade deve sêlo veríamos primeiro o economista indicar em apenas essa noção fundamental aplicada às circunstâncias particulares da vida e diversificada conforme os casos Portanto o objeto da moral não poderia ser esse sistema de preceitos sem realidade mas a idéia da qual decorrem e da qual não são mais que aplicações variadas Assim todas as questões que a ética se coloca ordinariamente se referem não a coisas mas a idéias o que se trata de saber é em que consiste a idéia do direito a idéia da moral enão qual a natureza da moral e do direito considerados em si mesmos Os moralistas ainda não chegaram à concepção muito simples de que assim como nossa representação das coisas sensíveis provém dessas coisas mesmas e as exprime mais ou menos exatamente nossa representação da moral provém do próprio espetáculo das regras que funcionam sob nossos olhos e as figura esquematicamente de que conseqüentemente são essas regras e não a noção sumária que temos delas que formam a matéria da ciência da mesma forma que a física tem como objeto os corpos tais como existem e não a idéia que deles faz o vulgo Disso resulta que se toma como base da moral o que não é senão o topo a saber a maneira como ela se prolonga nas consciências individuais e nelas repercute E não é apenas nos problemas mais gerais da ciência que esse método é seguido ele permanece o mesmo nas questões especiais Das idéias essenciais que estuda no início o moralista passa às idéias secundárias de família de pátria de responsabilidade de caridade de justiça mas é sempre a idéias que se aplica sua reflexão Não é diferente com a economia política Ela tem por objeto diz Stuart Mill os fatos sociais que se produzem principalmente ou exclusivamente em vista da aquisição de riquezas Mas para que os fatos assim definidos pudessem ser designados enquanto coisas à observação do cientista seria preciso pelo menos que se pudesse indicar por qual sinal é possível reconhecer aqueles que satisfa zem essa condição Ora no início da ciência não se tem sequer o direito de afirmar que existe algum muito menos ainda se pode saber quais são Em toda ordem de pesquisas com efeito é somente quando a explicação dos fatos está suficientemente avançada que é possível estabelecer que eles têm um objetivo e qual é esse objetivo Não há problema mais complexo nem menos suscetível de ser resolvido de saída Portanto nada nos garante de antemão que haja uma esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe realmente esse papel preponderante Em conseqüência a matéria da economia política assim compreendida é feita não de realidades que podem ser indicadas mas de simples possíveis de puras concepções do espírito a saber fatos que o economista concebè como relacionados ao fim considerado e tais como ele os concebe Digamos por exemplo que ele queira estudar o que chama a produção De saída acredita poder enumerar os principais agentes com o auxílio dos quais ela ocorre e passálos em revista Portanto ele não reconheceu a existência desses agentes observando de quais condições dependia a coisa que ele estuda pois então teria começado por expor as experiências de que tirou essa conclusão Se desde o início da pesquisa e em poucas palavras ele procede a essa classificação é que a obteve por uma simples análise lógica Parte da idéia da produção decompondoa descobre que ela implica logicamente as de forças naturais de trabalho de instrumento ou de capital e trata a seguir da mesma ma neira essas idéias derivadas A mais fundamental de todas as teorias econômicas a do valor é manifestamente construída segundo o mesmo método Se o valor fosse estudado como uma realidade deve sêlo veríamos primeiro o economista indicar em que se pode reconhecer a coisa chamada com esse nome depois classificar suas espécies buscar por induções metódicas as causas em função das quais elas variam comparar enfim os diversos resultados para obter uma fórmula geral A teoria portanto só poderia surgir quando a ciência tivesse avançado bastante Em vez disso encontramola desde o início É que para fazêla o economista contentase em recolher em tomar consciência da idéia que ele tem do valor ou seja de um objeto suscetível de ser trocado descobre que ela implica a idéia do útil do raro etc e é com esses produtos de sua análise que constrói sua definição Certamente ele a confirma por alguns exemplos Mas quando se pensa nos inumeráveis fatos que semelhante teoria deve explicar como atribuir o menor valor demonstrativo aos fatos necessariamente muito raros que são assim citados ao acaso da sugestão Por isso tanto em economia política como em moral a parte da investigação científica é muito restrita a da arte preponderante Em moral a parte teórica se reduz a algumas discussões sobre a idéia do dever do bem e do direito Mesmo essas especulações abstratas não constituem uma ciência para falar exatamente já que têm por objeto determinar não o que é de fato a regra suprema da moralidade mas o que ela deve ser Do mesmo modo o que mais preocupa os economistas é a questão de saber por exemplo se a sociedade deve ser organizada segundo as concepções dos individualistas ou segundo as dos socialistas se é melhor o Estado intervir nas relações industriais e comerciais ou abandonálas inteiramente à iniciativa privada se o sistema monetário deve ser o monometalismo ou o bimetalismo etc etc As leis propriamente ditas são pouco numerosas nessas pesquisas mesmo as que nos habituamos a chamar assim geralmente não merecem essa qualificação não passando de máximas de ação preceitos práticos disfarçados Eis por exemplo a famosa lei da oferta e da procura Ela jamais foi estabelecida indutivamente como expressão da realidade econômica Jamais uma experiência uma comparação metódica foi instituída para estabelecer de fato que é segundo essa lei que procedem as relações econômicas Tudo o que se pôde fazer e tudo o que se fez foi demonstrar dialeticamente que os indivíduos devem proceder assim caso entendam bem seus interesses é que qualquer outra maneira de proceder lhes seria prejudicial e implicaria da parte dos que se entregassem a isso uma verdadeira aberração lógica É lógico que as indústrias mais produtivas sejam as mais procuradas que os detentores dos produtos de maior demanda e mais raros os vendam ao mais alto preço Mas essa necessidade inteiramente lógica em nada se assemelha àquela que apresentam as verdadeiras leis da natureza Estas exprimem as relações segundo as quais os fatos se encadeiam realmente e não a maneira como é bom que eles se encadeiem O que dizemos dessa lei pode ser dito de todas as que a escola econômica ortodoxa qualifica de naturais e que por sinal não são muito mais do que casos particulares da precedente Elas são naturais se quiserem no sentido de que enunciam os meios que é ou que pode parecer natural empregar para atingir determinado fim suposto mas elas não devem ser chamadas por esse nome se por lei natural se entender toda maneira de ser da natureza indutivamente constatada Elas não passam em suma de conselhos de sabedoria prática e se foi possível mais ou menos especiosamente apresentálas como a expressão mesma da realidade é que com ou sem razão acreditouse poder supor que tais conselhos eram efetivamente seguidos pela generalidade dos homens e na generalidade dos casos No entanto os fenômenos sociais são coisas e devem ser tratados como coisas Para demonstrar essa proposição não é necessário filosofar sobre sua natureza discutir as analogias que apresentam com os fenômenos dos reinos inferiores Basta constatar que eles são o único datum oferecido ao sociólogo É coisa com efeito tudo o que é dado tudo o que se oferece ou melhor se impõe àobservação Tratar fenômenos como coisas é tratálos na qualidade de data que constituem o ponto de partida da ciência Os fenômenos sociais apresentam incontestavelmente esse caráter O que nos é dado não é a idéia que os homens fazem do valor pois ela é inacessível são os valores que se trocam realmente no curso de relações econômicas Não é esta ou aquela concepção da idéia moral é o conjunto das regras que determinam efetivamente a conduta Não é a idéia do útil ou da riqueza étoda a particularidade da organização econômica É possível que a vida social não seja senão o desenvolvimento de certas noções mas supondo que seja assim essas noções não são dadas imediatamente Não se pode portanto atingiIas diretamente mas apenas através da realidade fe nomênica que as exprime Não sabemos a priori que idéias estão na origem das diversas correntes entre as quais se divide a vida social nem se existe alguma é somente depois de têlas remontado até suas origens que saberemos de onde elas provêm É preciso portanto considerar os fenômenos sociais em si mesmos separados dos sujeitos conscientes que os concebem é preciso estudálos de fora como coisas exteriores pois é nessa qualidade que eles se apresentam a nós Se essa exterioridade for apenas aparente a ilusão se dissipará à medida que a ciência avançar e veremos por assim dizer o de fora entrar no de dentro Mas a solução não pode ser preconcebida e mesmo que eles não tivessem afinal todos os caracteres intrínsecos da coisa devese primeiro tratálos como se os tivessem Essa regra aplicase portanto à realidade social inteira sem que haja motivos para qualquer exceção Mesmo os fenômenos que mais parecem consistir em arranjos artificiais devem ser considerados desse ponto de vista O caráter convencional de uma prática ou de uma instituirão jamais deve ser presumido Aliás se nos for permitido invocar nossa experiência pessoal acreditamos poder assegurar que procedendo dessa maneira com freqüência se terá a satisfação de ver os fatos aparentemente mais arbitrários apresentarem após uma observação mais atenta dos caracteres de constância e de regularidade sintomas de sua objetividade De resto e de uma maneira geral o que foi dito anteriormente sobre os caracteres distintivos do fato social ésuficiente para nos certificar sobre a natureza dessa objetividade e para provar que ela não é ilusória Com efeito reconhecese principalmente uma coisa pelo sinal de que não pode ser modificada por um simples decreto da vontade Não que ela seja refratária a qualquer modificação Mas para produzir uma mudança nela não basta querer é preciso além disso um esforço mais ou menos laborioso devido à resistência que ela nos opõe e que nem sempre aliás pode ser vencida Ora vimos que os fatos sociais têm essa propriedade Longe de serem um produto de nossa vontade eles a determinam de fora são como moldes nos quais somos obrigados a vazar nossas ações Com freqüência até essa necessidade é tal que não podemos escapar a ela Mas ainda que consigamos superála a oposição que encontramos é suficiente para nos advertir de que estamos em presença de algo que não depende de nós Portanto considerando os fenômenos sociais como coisas apenas nos conformaremos à sua natureza Em suma a reforma que se trata de introduzir em sociologia é em todos os pontos idêntica à que transformou a psicologia nos últimos trinta anos Do mesmo modo que Comte e Spencer declaram que os fatos sociais são fatos de natureza sem no entanto tratálos como coisas as diferentes escolas empíricas há muito haviam reconhecido o caráter natural dos fenômenos psicológicos embora continuassem a aplicarlhes um método puramente ideológico Com efeito os empiristas não menos que seus adversários procediam exclusivamente por introspecção Ora os fatos que só observamos em nós mesmos são demasiado raros demasiado fugazes demasiado maleáveis para poderem se impor às noções correspondentes que o hábito fixou em nós e estabelecerlhes a lei Quando estas últimas não são submetidas a outro controle nada lhes faz contrapeso por conseguinte elas tomam o lugar dos fatos e constituem a matéria da ciência Assim nem Locke nem Condillac consideraram os fenômenos psíquicos objetivamente Não é a sensação que eles estudam mas uma certa idéia da sensação Por isso ainda que sob certos aspectos eles tenham preparado o advento da psicologia científica esta só surgiu realmente bem mais tarde quando se chegou finalmente à concepção de que os estados de consciência podem e devem ser considerados de fora e não do ponto de vista da consciência que os experimenta Tal foi a grande revolução que se efetuou nesse tipo de estudos Todos os procedimentos particulares todos os métodos novos que enriqueceram essa ciência não são mais que meios diversos de realizar mais completamente essa idéia fundamental Éo mesmo progresso que resta fazer em sociologia É preciso que ela passe do estágio subjetivo raramente ultrapassado até agora à fase objetiva Essa passagem aliás é menos difícil de efetuar do que em psicologia Com efeito os fatos psíquicos são naturalmente dados como estados do sujeito do qual eles não parecem sequer separáveis Interiores por definição parece que só se pode tratálos como exteriores violentando sua natureza É preciso não apenas um esforço de abstração mas todo um conjunto de procedimentos e de artifícios para chegar a considerálos desse viés Ao contrário os fatos sociais têm mais naturalmente e mais imediatamente todas as características da coisa O direito existe nos códigos os movimentos da vida cotidiana se inscrevem nos dados estatísticos nos monumentos da história as modas nas roupas os gostos nas obras de arte Em virtude de sua natureza mesma eles tendem a se constituir fora das consciências individuais visto que as dominam Para vêlos sob seu aspecto de coisas não é preciso portanto torturálos com engenhosidade Desse ponto de vista a sociologia tem sobre a psicologia Uma séria vantagem que não foi percebida até agora e que deve apressar seu desenvolvimento Os fatos talvez sejam mais difíceis de interpretar por serem mais complexos mas são mais fáceis de atinar A psicologia ao contrário não apenas tem dificuldade de elaborálos como também de percebêlos Em conseqüência é lícito imaginar que no dia em que esse princípio do método sociológico for unanimemente reconhecido e praticado veremos a sociologia progredir com uma rapidez que a lentidão atual de seu desenvolvimento não faria supor e inclusive reconquistar a dianteira que a psicologia deve unicamente à sua anterioridade histórica Mas a experiência de nossos predecessores nos mostrou que para assegurar a realização prática da verdade que acaba de ser estabelecida não basta oferecer uma demonstração teórica nem mesmo compenetrarse dela O espírito tende tão naturalmente a desconhecêla que recairemos inevitavelmente nos antigos erros se não nos submetermos a uma disciplina rigorosa cujas regras principais corolários da precedente iremos formular 1 O primeiro desses corolários é que É preciso descartar sistematicamente todas as prenoções Uma demonstração especial dessa regra não é necessária ela resulta de tudo o que dissemos anteriormente Aliás ela é a base de todo método científico A dúvida metódica de Descartes no fundo não é senão uma aplicação disso Se no momento em que vai fundar a ciência Descartes impõese como lei pôr em dúvida todas as idéias que recebeu anteriormente é que ele quer empregar apenas conceitos cientificamente elaborados isto é construídos de acordo com o método que ele institui todos os que ele obtém de uma outra origem devem ser portanto rejeitados ao menos provisoriamente Já vimos que a teoria dos ídolos em Bacon não tem outro sentido As duas grandes doutrinas que freqüentemente foram opostas uma à outra concordam nesse ponto essencial É preciso portanto que o sociólogo tanto no momento em que determina o objeto de suas pesquisas como no curso de suas demonstrações proíbase resolutamente o emprego daqueles conceitos que se formaram fora da ciência e por necessidades que nada têm de científico É preciso que ele se liberte dessas falsas evidências que dominam o espírito do vulgo que se livre de uma vez por todas do jugo dessas categorias empíricas que um longo costume acaba geralmente por tornar tirânicas Se a necessidade o obriga às vezes a recorrer a elas pelo menos que o faça tendo consciência de seu pouco valor a fim de não as chamar a desempenhar na doutrina um papel de que não são dignas O que torna essa libertação particularmente difícil em sociologia é que o sentimento com freqüência se intromete Apaixonamonos com efeito por nossas crenças políticas e religiosas por nossas práticas morais muito mais do que pelas coisas do mundo físico em conseqüência esse caráter passional transmitese à maneira como concebemos e como nos explicamos as primeiras As idéias que fazemos a seu respeito nos são muito caras assim como seus objetos e adquirem tamanha autoridade que não suportam a contradição Toda opinião que as perturba é tratada como inimiga Por exemplo uma proposição não está de acordo com a idéia que se faz do patriotismo ou da dignidade individual Então ela é negada não importam as provas sobre as quais repousa Não se pode admitir que seja verdadeira ela é rejeitada categoricamente e a paixão para justificarse não tem dificuldade de sugerir razões que são consideradas facilmente decisivas Essas noções podem mesmo ter tal prestígio que não toleram sequer um exame científico O simples fato de submetêlas assim como os fenômenos que elas exprimem a uma análise fria e seca revolta certos espíritos Quem decide estudar a moral a partir de fora e como uma realidade exterior é visto por esses delicados como desprovido de senso moral da mesma forma que o vivissecionista parece ao vulgo desprovido da sensibilidade comum Em vez de admitir que esses sentimentos são do domínio a da ciência é a eles que se julga dever apelar para fazer a ciência das coisas às quais se referem Infeliz o sábio escreve um eloqüente historiador das religiões que aborda as coisas de Deus sem ter no fundo de sua consciência no fundo indestrutível de seu ser lá onde dorme a alma dos antepassados um santuário desconhecido do qual se eleva por instantes um perfume de incenso uma linha de salmo um grito doloroso ou triunfal que criança lançou ao céu junto com seus irmãos e que o repõe em súbita comunhão com os profetas de outrora Nunca nos ergueremos com demasiada força contra essa doutrina mística que como todo misticismo aliás não é no fundo senão um empirismo disfarçado pegador de toda ciência Os sentimentos que têm como objetos as coisas sociais não têm privilégio sobre os demais pois não é outra sua origem Também eles são formados historicamente são um produto da experiência humana mas de uma experiência confusa e inorganizada Eles não se devem a não sei que antecipação transcendental da realidade mas são a resultante de todo tipo de impressões e de emoções acumuladas sem ordem ao acaso das circunstâncias sem interpretação metódica Longe de nos proporcionarem luzes superiores às luzes racionais eles são feitos exclusivamente de estados fortes é verdade mas confusos Atribuirlhes tal preponderância é conceder às faculdades inferiores da inteligência a supremacia sobre as mais elevadas é condenarse a uma logomaquia mais ou menos oratória Uma ciência feita assim só pode satisfazer os espíritos que gostam de pensar com sua sensibilidade e não com seu entendimento que preferem as sínteses imediatas e confusas da sensação às análises pacientes e luminosas da razão O sentimento é objeto de ciência não o critério da verdade científica De resto não há ciência que em seus começos não tenha encontrado resistências análogas Houve um tempo em que os sentimentos relativos às coisas do mundo físico tendo eles próprios um caráter religioso ou moral opunhamse com não menos força ao estabelecimento das ciências físicas Podese portanto supor que expulso de ciência em ciência esse preconceito acabará por desaparecer da própria sociologia seu último refúgio para deixar o terreno livre ao cientista 2 Mas a regra precedente é inteiramente negativa Ela ensina o sociólogo a escapar ao domínio das noções vulgares para dirigir sua atenção aos fatos mas não diz como deve se apoderar desses últimos para empreender um estudo objetivo deles Toda investigação científica tem por objeto um grupo determinado de fenômenos que correspondem a uma mesma definição O primeiro procedimento do sociólogo deve ser portanto definir as coisas de que ele trata a fim de que se saiba e de que ele saiba bem o que está em questão Essa é a primeira e a mais indispensável condição de toda prova e de toda verificação uma teoria com efeito só pode ser controlada se se sabe reconhecer os fatos que ela deve explicar Além do mais visto ser por essa definição que é constituído o objeto mesmo da ciência este será uma coisa ou não conforme a maneira pela qual essa definição for feita Para que ela seja objetiva é preciso evidentemente que exprima os fenômenos não em função de uma idéia do espírito mas de propriedades que lhe são inerentes É preciso que ela os caracterize por um elemento integrante da natureza deles não pela conformidade deles a uma noção mais ou menos ideal Ora no momento em que a pesquisa vai apenas começar quando os fatos não estão ainda submetidos a nenhuma elaboração os únicos desses caracteres que podem ser atingidos são os que se mostram suficientemente exteriores para serem imediatamente visíveis Os que estão situados mais profundamente são por certo mais essenciais seu valor explicativo émaior mas nessa fase da ciência eles são desconhecidos e só podem ser antecipados se substituirmos a realidade por alguma concepção do espírito Assim é entre os primeiros que deve ser buscada a matéria dessa definição fundamental Por outro lado é claro que essa definição deverá compreendersem exceção nem distinção todos os fenômenos que apresentam igualmente esses mesmos caracteres pois não temos nenhuma razão e nenhum meio de escolher entre eles Essas propriedades são então tudo o que sabemos do real em conseqüência elas devem determinar soberanamente a maneira como os fatos devem ser agrupados Não possuímos nenhum outro critério que possa mesmo parcialmente suspender os efeitos do precedente Donde a regra seguinte Jamais tomarporobjeto de pesquisas senão um grupo de fenômenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhes são comuns e compreender na mesma pesquisa todos os que correspondem a essa definição Por exemplo constatamos a existência de certo número de atos que apresentam todos o caráter exterior de uma vez efetuados determinarem de parte da sociedade essa reação particular que é chamada pena Fazemos deles um grupo sui generis ao qual impomos uma rubrica comum chamamos crime todo ato punido e fazemos do crime assim definido o objeto de uma ciência especial a criminologia Do mesmo modo observamos no interior de todas as sociedades conhecidas a existência de uma sociedade parcial reconhecível pelo sinal exterior de ser formada de indivíduos consangüíneos uns dos outros em sua maior parte e que estão unidos entre si por laços jurídicos Fazemos dos fatos que se relacionam a ela um grupo particular são os fenômenos da vida doméstica Chamamos família todo agregado desse tipo e fazemos da família assim definida o objeto de uma investigação especial que ainda não recebeu denominação determinada na terminologia sociológica Quando mais tarde passarmos da família em geral aos diferentes tipos familiares aplicaremos a mesma regra Quando abordarmos por exemplo o estudo do clã ou da família maternal ou da família patriarcal começaremos por definilos e de acordo com o mesmo método O objeto de cada problema geral como particular deve ser constituído segundo o mesmo princípio Ao proceder dessa maneira o sociólogo desde seu primeiro passo toma imediatamente contato com a realidade Com efeito o modo como os fatos são assim classificados não depende dele da propensão particular de seu espírito mas da natureza das coisas O sinal que possibilita serem colocados nesta ou naquela categoria pode ser mostrado a todo o mundo reconhecido por todo o mundo e as afirmações de um observador podem ser controladas pelos outros É verdade que a noção assim constituída nem sempre se ajusta ou até mesmo em geral não se ajusta à noção comum Por exemplo é evidente que para o senso comum os casos de livre pensamento ou as faltas à etiqueta tão regularmente e tão severamente punidos numa série de sociedades não são vistos como crimes inclusive em relação a essas sociedades Assim também um clã não é uma família no sentido usual da palavra Mas não importa pois não se trata simplesmente de descobrir um meio que nos permita verificar com suficiente certeza os fatos a que se aplicam as palavras da língua corrente e as idéias que estas traduzem O que é preciso éconstituir inteiramente conceitos novos apropriados às necessidades da ciência e expressos com o auxílio de uma terminologia especial Não certamente que o conceito vulgar seja inútil ao cientista ele serve de indicador Por ele somos informados de que existe em alguma parte um conjunto de fenômenos reunidos sob uma mesma denominação e que portanto devem provavelmente ter características comuns inclusive como o conceito vulgar jamais deixa de ter algum contato com os fenômenos ele nos indica às vezes mas de maneira geral em que direção estes devem ser buscados Mas como ele é grosseiramente formado é natural que não coincida exatamente com o conceito científico instituído em seu lugar Por mais evidente e importante que seja essa regra ela não é muito observada em sociologia Precisamente por esta tratar de coisas das quais estamos sempre falando como a família a propriedade o crime etc na maioria das vezes parece inútil ao sociólogo darlhes uma definição preliminar e rigorosa Estamos tão habituados a servirnos dessas palavras que voltam a todo instante no curso das conversações que parece inútil precisar o sentido no qual as empregamos As pessoas se referem simplesmente à nação comum Ora esta é muito freqüente mente ambígua Essa ambigüidade faz que se reúnam sob um mesmo nome e numa mesma explicação coisas em realidade muito diferentes Daí provêm inextricáveis confusões Assim existem duas espécies de uniões monogâ micasumas o são de fato outras de direito Nas primeiras o marido só tem uma mulher embora juridicamente possa ter várias nas segundas ele é legalmente proibido de ser polígamo A monogamia de fato verificase em várias espécies animais e em certas sociedades inferiores não de forma esporádica mas com a mesma generalidade como se fosse imposta por lei Quando a população está dispersa numa vasta superfície a trama social é mais frouxa portanto os indivíduos vivem isolados uns dos outros Por isso cada homem busca naturalmente obter uma mulher e uma só porque nesse estado de isolamento lhe édifícil ter várias A monogamia obrigatória ao contrário só se observa nas sociedades mais elevadas Essas duas espécies de sociedades conjugais têm portanto uma significação muito diferente no entanto a mesma palavra serve para designáIas pois é comum dizer de certos animais que eles são monógamos embora nada exista entre eles que se assemelhe a uma obrigação jurídica Ora o sr Spencer abordando o estudo do casamento emprega a palavra monogamia sem definiIa com seu sentido usual e equívoco Disso resulta que a evolução do casamento lhe parece apresentar uma incompreensível anomalia já que ele crê observar a forma superior da união sexual já nas primeiras fases do desenvolvimento histórico ao passo que ela parece desaparecer no período intermediário para retornar a seguir Ele conclui daí que não há relação regular entre o progresso social em geral e o avanço progressivo em direção a um tipo perfeito de vida familiar Uma definição oportuna teria evitado esse errol3 Em outros casos tomase o cuidado de definir o objeto sobre o qual incidirá a pesquisa mas em vez de abranger na definição e de agrupar sob a mesma rubrica todos os fenômenos que têm as mesmas propriedades exteriores fazse uma triagem entre eles Escolhemse alguns espécie de elite que são vistos como os únicos com o direito a ter esses caracteres Quanto aos demais são considerados como tendo usurpado esses sinais distintivos e não são levados em conta Mas é fácil prever que dessa maneira só se pode obter uma noção subjetiva e truncada Essa eliminação com efeito só pode ser feita com base numa idéia preconcebida uma vez que no começo da ciência nenhuma pesquisa pôde ainda estabelecer a realidade dessa usurpação supondose que ela seja possível Os fenômenos escolhidos só o podem ter sido porque estavam mais do que os outros de acordo com a concepção ideal que se fazia desse tipo de realidade Por exemplo o sr Garofalo no começo de sua Criminologie demonstra muito bem que o ponto de partida dessa çiência deve ser a noção sociológica do crime Só que para constituir essa noção ele não compara indistintamente todos os atos que nos diferentes tipos sociais foram reprimidos por penas regulares mas apenas alguns dentre eles a saber os que ofendem a parte média e imutável do senso moral Quanto aos sentimentos morais que desapareceram durante a evolução eles não lhe parecem fundados na natureza das coisas por não terem conseguido se manter por conseguinte os atos que foram considerados criminosos porque os violavam lhe parecem dever essa denominação apenas a circunstâncias acidentais e mais ou menos patológicas Mas é em virtude de uma concepção inteiramente pessoal da moralidade que ele procede a essa eliminação Ele parte da idéia de que a evolução moral tomada em sua fonte mesma ou nos arredores arrasta todo tipo de escórias e de impurezas que ela elimina a seguir progressivamente e de que somente hoje ela conseguiu desembaraçarse de todos os elementos adventícios que primitivamente perturbavamlhe o curso Mas esse princípio não é nem um axioma evidente nem uma verdade demonstrada é apenas uma hipótese que nada inclusive justifica As partes variáveis do senso moral não são menos fundadas na natureza das coisas do que as partes imutáveis as variações pelas quais as primeiras passaram testemunham apenas que as próprias coisas variaram Em zoologia as formas específicas às espécies inferiores não são vistas como menos naturais do que as que se repetem em todos os graus da escala animal Do mesmo modo os atos tachados de crimes pelas sociedades primitivas e que perdelam essa qualificação são realmente criminosos para essas sociedades tanto quanto os que continuamos a reprimir hoje em dia Os primeiros correspondem às condições mutáveis da vida social os segundos às condições constantes mas uns não são mais artificiais que os outros E tem mais ainda que esses atos tivessem adquirido indevidamente o caráter criminológico nem por isso deveriam ser separados radicalmente dos outros pois a natureza das formas mórbidas de um fenômeno não é diferente da natureza das formas normais e por conseqüência é necessário observar tanto as primeiras quanto as segundas para determinar essa natureza A doença não se opõe à saúde tratase de duas variedades do mesmo gênero e que se esclarecem mutuamente Essa é uma regra há muito reconhecida e praticada tanto em biologia como em psicologia e que o sociólogo não é menos obrigado a respeitar A menos que se admita que um mesmo fenômeno possa ser devido ora a causa ora a uma outra isto é a menos que se negue o princípio de causalidade as causas que imprimem num ato mas de maneira anormal o sinal distintivo do crime não poderiam diferir em espécie das que produzem normalmente o mesmo efeito elas distinguemse apenas em grau ou porque não agem no mesmo conjunto de circunstâncias O crime anormal ainda é portanto um crime e deve por conseguinte entrar na definição do crime Assim o que ocorre O sr Garofalo toma por gênero o que não é senão a espécie ou mesmo uma simples variedade Os fatos aos quais se aplica sua fórmuIa da criminalidade não representam senão uma ínfima minoria entre os que ela deveria compreender pois ela não convém nem aos crimes religiosos nem aos crimes contra a etiqueta o cerimonial a tradição etc que se desapareceram de nossos códigos modernos preenchem ao contrário quase todo o direito penal das sociedades anteriores É a mesma falta de método que faz que certos observadoresrecusem aos selvagens qualquer espécie de moralidade15 Eles partem da idéia de que nossa moral é a moral ora é evidente que ela é desconhecida dos povos primitivos ou que só existe neles em estado rudimentar Mas essa definição é arbitrária Apliquemos nossa regra e tudo se modifica Para decidir se um preceito é moral ou não devemos examinar se ele apresenta ou não o sinal exterior da moralidade esse sinal consiste numa sanção repressiva difusa ou seja numa reprovação da opinião pública que vinga toda violação do preceito Sempre que estivermos em presença de um fato que apresenta esse caráter não temos o direito de negarlhe a qualificação de moral pois essa é a prova de que ele é da mesma natureza que os outros fatos morais Ora regras desse gênero não só se verificam nas sociedades inferiores como são mais numerosas aí do que entre os civilizados Uma quantidade de atos atualmente entregues à livre apreciação dos indivíduos são então impostos obrigatoriamente Percebese a que erros somos levados quando não definimos ou quando definimos mal Mas dirão definir os fenômenos por seus caracteres aparentes não será atribuir às propriedades superficiais uma espécie de preponderância sobre os atributos fundamentais Não será por uma verdadeira inversão da ordem lógica fazer repousar as coisas sobre seus topos e não sobre suas bases É assim que quando se define o crime pela pena correse quase inevitavelmente o risco de ser acusado de querer derivar o crime da pena ou conforme uma citação bem conhecida de ver no patíbulo a fonte da vergonha não no ato expiado Mas a objeção repousa sobre uma confusão Como a definição cuja regra acabamos de dar está situada no começo da ciência ela não poderia ter por objeto exprimir a essência da realidade ela deve apenas nos pôr em condições de chegar a isso ulteriormente Iia tem por única função fazernos entrar em contato com as coisas e como estas não podem ser atingidas pelo espírito a não ser de fora é por seus exteriores que ela as exprime Mas isso não quer dizer que as explique ela apenas fornece o primeiro ponto de apoio necessário às nossas explicações Claro não é a pena que faz o crime mas é por ela que ele se revela exteriormente a nós e é dela portanto que devemos partir se quisermos chegar a compreendê lo A obje ao só seria fundada se esses caracteres exteriores fossem ao mesmo tempo acidentais isto é se não estivessem ligados às propriedades fundamentais De fato nessas condições a ciência após têlos assinalado não teriameio algum de ir mais adiante não poderia aprofundarse mais na realidade já que não haveria nenhuma relação entre a superfície e o fundo Mas a menos que o princípio de causalidade seja uma palavra vã quando caracteres determinados se encontram identicamente e sem nenhuma exceção em todos os fenômenos de certa ordem podese estar certode que eles se ligam intimamente à natureza destes últimos e que são solidários com eles Se um grupo dado de atos apresenta igualmente a particularidade de uma sanção penal estar a eles associada é que existe uma ligação íntima entre a pena e os atributos constitutivos desses atos Em conseqüência por mais superficiais que sejam essas propriedades contanto que tenham sido metodicamente observadas mostram claramente ao cientista o caminho que ele deve seguir para penetrar mais fundo nas coisas elas são o primeiro e indispensável elo da cadeia que a ciência irá desenrolar a seguir no curso de suas explicações Visto ser pela sensação que o exterior das coisas nos é dado podese portanto dizer em resumo a ciência para ser objetiva deve partir não de conceitos que se formaram sem ela mas da sensação É dos dados sensíveis que ela deve tomar diretamente emprestados os elementos de suas definições iniciais E de fato basta pensar em que consiste a obra da ciência para compreender que ela não pode proceder de outro modo Ela tem necessidade de conceitos que exprimam adequadamente as coisas tais como elas são não tais como é útil à prática concebêlas Ora aqueles conceitos que se constituíram fora de sua ação não preenchem essa condição É preciso pois que ela crie novos e que para tanto afastando as noções comuns e as palavras que as exprimem volte à sensação matériaprima necessária de todos os conceitos É da sensação que emanam todas as idéias gerais verdadeiras ou falsas científicas ou não Portanto o ponto de partidarda ciência ou conhecimento especulativo não poderia ser outro que o do conhecimento vulgar ou prático É somente além dele na maneira pela qual essa matéria comum é elaborada que as divergências começam 3 Mas a sensação é facilmente subjetiva Assim é de regra nas ciências naturais afastar os dados sensíveis que correm o risco de ser demasiado pessoais ao observador para reter exclusivamente os que apresentam um suficiente grau de objetividade Eis o que leva o físico a substituir as vagas impressões que a temperatura ou a eletricidade produzem pela representação visual das oscilações do termômetro ou do eletrõmetro O sociólogo deve tomar as mesmas precauções Os caracteres exteriores em função dos quais ele define o objeto de suas pesquisas devem ser tão objetivos quanto possível Podese estabelecer como princípio que os fatos sociais são tanto mais suscetíveis de ser objetivamente representados quanto mais completamente separados dos fatos individuais que os manifestam De fato uma sensação é tanto mais objetiva quanto maior a fixidez do objeto ao qual ela se relaciona pois a condição de toda objetividade é a existência de um ponto de referência constante e idêntico ao qual a representação pode ser relacionada e que permite eliminar tudo 0 que ela tem de variável portanto de subjetivo Se os únicos pontos de referência dados forem eles próprios variáveis se forem perpetuamente diversos em relação a si mesmos faltará uma medida comum e não teremos meio algum de distinguirem nossas impressões o que depende de fora e o que lhes vem de nós Ora a vida social enquanto não chegou a isolarse dos acontecimentos particulares que a encarnam para constituirse à parte tem justamente essa propriedade pois como esses acontecimentos não têm a mesma fisionomia de uma vez a outra de um instante a outro e como ela é inseparável deles estes transmitemlhe sua mobilidade Ela consiste então em livres correntes que estão perpetuamente em via de transformação e que o olhar do observador não consegue fixar Vale dizer que não é por esse lado que o cientista pode abordar o estudo da realidade social Mas sabemos que esta apresenta a particularidade de sem deixar de ser ela mesma ser capaz de cristalizarse Fora dos atos individuais que suscitam os hábitos coletivos exprimemse sob formas definidas regras jurídicas morais ditos populares fatos de estrutura social etcComo essas formas existem de uma maneira permanente como não mudam comas diversas aplicações que delas são feitas elas constituem um objeto fixo um padrão constante que está sempre ao alcance do observador e que não dá margem às impressões subjetivas e às observações pessoais Uma regra de direito é o que ela é e não há duas maneiras de percebêla Por outro lado visto que essas práticas nada mais são que vida social consolidada é legítimo salvo indicações contráriasl6 estudar esta através daquelas Quando portanto o sociólogo empreende a exploração uma ordem qualquer de fatos sociais ele deve esforçarse em considerálos por um lado em que estes se apresentem isolados de suas manifestações individuais É em virtude desse princípio que estudamos a solidariedade social suas formas diversas e sua evolução através do sistema das regras jurídicas que as exprimem Do mesmo modo se se tentar distinguir e classificar os diferentes tipos familiares com base nas descrições literárias que deles nos oferecem os viajantes e às vezes os historiadores correse o risco de confundir as espécies mais diferentes de aproximar os tipos mais afastados Se ao contrário tomarse por base dessa classificação a constituição jurídica da família e mais especificamente o direito sucessório terseá um critério objetivo que sem ser infalível evitará no entanto muitos erros Queremos classificar os diferentes tipos de crimes Então nos esforçaremos por reconstituir as maneiras de viver os costumes profissionais praticados nos diferentes mundos do crime e reconheceremos tantos tipos criminológicos quantas forem as formas diferentes que essa organização apresenta Para identificar os costumes as crenças populares recorreremos aos provérbios aos ditados que os exprimem Certamente ao proceder assim deixamos provisoriamente fora da ciência a matéria concreta da vida coletiva e no entanto por mais mutável que esta seja não temos o direito de postular a priori sua ininteligibilidade Mas se quisermos seguir uma via metódica precisaremos estabelecer os primeiros alicerces da ciência sobre um terreno firme e não sobre areia movediça É preciso abordar o reino social pelos lados onde ele mais se abre à investigação científica Somente a seguir será possível levar mais adiante a pesquisa e por trabalhos de aproximação progressivos cingir pouco a pouco essa realidade fugidia da qual o espírito humano talvez jamais possa se apoderar completamente REGRAS RELATIVAS À DISTINÇÃO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO A observação conduzida de acordo com as regras que precedem confunde duas ordens de fatos muito dessemelhantes sob certos aspectos os que são o que devem ser e os que deveriam ser de outro modo os fenômenos normais e os fenômenos patológicos Vimos inclusive que era necessário abrangê los igualmente na definição pela qual deve se iniciar toda pesquisa Mas se eles em certa medida são da mesma natureza não deixam de constituir duas variedades diferentes que é importante distinguir A ciência dispõe de meios que permitem fazer essa distinção A questão é da maior importância pois da solução que se der a ela depende a idéia que se faz do papel que compete à ciência sobretudo à ciência do homem De acordo com uma teoria cujos partidários se recrutam nas escolas mais diversas a ciência nada nos ensinaria sobre aquilo que devemos querer Ela só conhece dizem fatos que têm o mesmo valor e o mesmo interesse ela os observa os explica mas não os julga para ela os fatos nada teriam de censurável 0 bem e o mal não existem para ela A ciência pode perfeitamente nos dizer de que maneira as causas produzem seus efeitos não que finalidades devem ser buscadas Para saber não o que é mas o que é desejável devese recorrer às sugestões do inconsciente não importa o nome que se dê a ele sentimento instinto impulso vital etc A ciência diz um escritor já citado pode muito bem iluminar o mundo mas ela deixa a noite nos corações compete ao coração mesmo fazer sua própria luz A ciência se vê assim destituída ou quase de toda eficácia prática não tendo portanto grande razão de ser pois de que serve trabalhar para conhecer o real se o conhecimento que dele adquirimos não nos pode servir na vida Acaso dirão que ela ao nos revelar as causas dos fenômenos nos fornece os meios de produzilos a nosso gosto e portanto de realizar os fins que nossa vontade persegue por razões supracientíficas Mas todo meio é ele próprio um fim por um lado pois para empregálo é preciso querêlo tanto como o fim cuja realização ele prepara Há sempre vários caminhos que levam a um objetivo dado é preciso portanto escolher entre eles Ora se a ciência não pode nos ajudar na escolha do objetivo melhor como é que ela poderia nos ensinar qual o melhor caminho para chegar a ele Por que ela nos recomendaria o mais rápido de preferência ao mais econômico o mais seguro em vez do mais simples ou viceversa Se não é capaz de nos guiar na determinação dos fins superiores ela não é menos impotente quando se trata desses fins secundários e subordinados que chamamos meios O método ideológico permite é verdade escapar a esse misticismo e foi aliás o desejo de escapar a ele o responsável em parte pela persistência desse método Os que o praticaram eram com efeito demasiadamente racionalistas para admitir que a conduta humana não tivesse necessidade de ser dirigida pela reflexão no entanto eles não viam nos fenômenos tomados em si mesmos e independentemente de todo dado subjetivo nada que permitisse classificálos segundo seu valor prático Parecia portanto que o único meio de julgálos seria relacionálos a algum conceito que os dominasse com isso o emprego de noções que presidiram à comparação dos fatos em vez de derivar deles tomavase indispensável em toda sociologia racional Mas sabemos que se nessas condições a prática se torna refletida a reflexão assim empregada não é científica O problema que acabamos de colocar nos permitirá reivindicar os direitos da razão sem cair de novo na ideologia Com efeito tanto para as sociedades como para os indivíduos a saúde é boa e desejável enquanto a doença é algo ruim e que deve ser evitado Se encontrarmos portanto um critério objetivo inerente aos fatos mesmos que nos permita distinguir cientificamente a saúde da doença nas diversas ordens de fenômenos sociais a ciência será capaz de esclarecer a prática sem deixar de ser fiel a seu próprio método É verdade que como não consegue presentemente atingir o indivíduo ela só é capaz de fornecer nos indicações gerais que não podem ser convenientemente diversificadas a não ser que se entre diretamente em contato com o particular através da sensação O estado de saúde tal como ela o define não poderia convir exatamente a nenhum sujeito individual já que só pode ser estabelecido em relação às circunstâncias mais comuns das quais cada um se afasta em maior ou menor grau ainda assim esse é um ponto de referência precioso para orientar a conduta Do fato de ser preciso ajustálo a seguir a cada caso especial não se conclui que não haja nenhum interesse em conhecêlo Muito pelo contrário ele é a norma que deve servir de base a todos os nossos raciocínios práticos Nessas condições não se tem mais o direito de dizer que o pensamento é inútil à ação Entre a ciência e a arte não existe mais um abismo mas se passa de uma à outra sem solução de continuidade A ciência é verdade só pode descer aos fatos por intermédio da arte mas a arte não é senão o prolongamento da ciência Podese também perguntar se a insuficiência prática desta última não deverá diminuir à medida que as leis que ela estabelece exprimam cada vez mais completamente a realidade individual Vulgarmente o sofrimento é visto como o indicador da doença e é certo que em geral existe entre esses dois fatos uma relação mas que carece de constância e de precisão Há graves diáteses que são indolores ao passo que perturbações sem importância como as que resultam da introdução de um grão de poeira no olho causam um verdadeiro suplício Em certos casos inclusive a ausência de dor ou ainda o prazer é que são os sintomas da doença Há uma certa invulnerabilidade que é patológica Em circunstâncias nas quais um homem são sofreria acontece ao neurastênico experimentar uma sensação de gozo cuja natureza mórbida é incontestável Inversamente a dor acompanha muitos estados como a fome a fadiga o parto que são fenômenos puramente fisiológicos Diremos que a saúde consistindo num desenvolvimento favorável das forças vitais se reconhece pela perfeita adaptação do organismo a seu meio e chamaremos ao contrário doença tudo o que perturba essa adaptação Mas em primeiro lugar mais adiante teremos de voltar a esse ponto de modo nenhum está demonstrado que cada estado do organismo esteja em correspondência com algum estado externo Além do mais e mesmo que esse critério fosse realmente distintivo do estado de saúde ele próprio teria necessidade de outro critério para poder ser reconhecido pois seria preciso em todo caso que nos dissessem de acordo com que princípio se pode decidir que tal modo de se adaptar é mais perfeito que outro Será de acordo com a maneira como um e outro afetam nossas chances de sobrevivência A saúde seria o estado de um organismo em que essas chances estão em seu máximo enquanto a doença seria tudo o que tem por efeito diminuí Ias Não há dúvida de fato de que em geral a doença tem realmente por conseqüência um enfraquecimento do organismo Só que ela não é a única a produzir esse resultado As funções de reprodução em certas espécies inferiores ocasionam fatalmente a morte e mesmo nas espécies mais elevadas comportam riscos No entanto elas são normais A velhice e a infância têm os mesmos efeitos pois o velho e a criança estão mais expostos às causas de destruição São eles então doentes e não se admitirá outro tipo são a não ser o adulto Eis o domínio da saúde e da fisiologia singularmente encolhido Aliás se a velhice já for por si só uma doença como distinguir o velho saudável do velho doentio Do mesmo ponto de vista será preciso classificar a menstruação entre os fenômenos mórbidos pois pelas perturbações que determina ela aumenta a receptividade da mulher à doença Entretanto como qualificar de doentio um estado cuja ausência ou desaparecimento prematuro constituem incontestavelmente um fenômeno patológico Raciocinase sobre essa questão como se num organismo sadio cada detalhe por assim dizer tivesse um papel útil a desempenhar como se cada estado interno correspondesse exatamente a uma condição externa e por conseguinte contriiniísse para assegurar por sua parte o equilíbrio vital e a redução das chances de morte É legítimo supor ao contrário que certas disposições anatômicas ou funcionais não servem diretamente para nada mas simplesmente são porque são porque não podem deixar de ser dadas as condições gerais da vida Não se poderia no entanto qualificálas de mórbidas pois a doença é antes de tudo algo evitável que não está implicado na constituição regular do ser vivo Ora pode acontecer que em vez de fortalecer o organismo tais disposições diminuam sua força de resistência e conseqüentemente aumentem os riscos mortais Por outro lado não é seguro que a doença tenha sempre o resultado em função do qual se quer definiIa Acaso não há uma série de afecções demasiado leves para que possamos atribuirlhes uma influência sensível sobre as bases vitais do organismo Mesmo entre as mais graves há algumas cujas conseqüências nada têm de deplorável se soubermos lutar contra elas com as armas de que dispomos Quem sofre de problemas gástricos mas segue uma boa dieta pode viver tanto quanto o homem sadio Claro que é obrigado a ter cuidados mas não somos todos obrigados a isso e acaso pode a vida manterse de outro modo Cada um de nós tem sua higiene a do doente não se assemelha àquela praticada pela média dos homens de seu tempo e de seu meio mas essa é a única diferença que existe entre eles desse ponto de vista A doença nem sempre nos deixa desamparados num estado de inadaptação irremediável ela apenas nos obriga a adaptarnos de modo diferente do da maior parte de nossos semelhantes Quem nos diz inclusive que não existem doenças que acabam por se mostrar úteis A varíola que nos inoculamos através da vacina é uma verdadeira doença que nos damos voluntariamente no entanto ela aumenta nossas chances de sobrevivência Talvez haja muitos outros casos em que o problema causado pela doença é insignificante comparado com as imunidades que ela confere Enfim e sobretudo esse critério é na maioria das vezes inaplicável Pode se muito bem estabelecer a rigor que a mortalidade mais baixa que se conhece encontrase em determinado grupo de indivíduos mas não se pode demonstrar que não poderia haver outra mais baixa Quem nos diz que não são possíveis outras disposições que teriam por efeito diminuíIa ainda mais Esse mínimo de fato não é portanto prova de uma perfeita adaptação nem por conseguinte um indicador seguro do estado de saúde se nos basearmos na definição precedente Além disso um grupo dessa natureza é muito difícil de se constituir e de se isolar de todos os outros como seria necessário para que se pudesse observar a constituição orgânica de que ele tem o privilégio e que é a suposta causa dessa superioridade Inversamente se é óbvio quando se trata de uma doença cujo desdobramento é geralmente mortal que as probabilidades de sobrevivência do indivíduo são diminuídas a prova é singularmente difícil quando a afecção não é de natureza a ocasionar diretamente a morte Com efeito só há uma maneira objetiva de provar que indivíduos situados em condições definidas têm menos chances de sobreviver que outros é demonstrar que de fato a maior parte deles vive menos tempo Ora se essa demonstração é freqüentemente possível nos casos de doenças puramente individuais ela é inteiramente impraticável em sociologia Pois aqui não temos o ponto de referência de que dispõe o biólogo a saber o número da mortalidade média Não sabemos sequer distinguir com exatidão simplesmente aproximada em que momento nasce uma sociedade e em que momento ela morre Todos esses problemas que mesmo em biologia estão longe de estar claramente resolvidos permanecem ainda para o sociólogo envoltos em mistério Aliás os acontecimentos que se produzem no curso da vida social e que se repetem mais ou menos identicamente em todas as sociedades do mesmo tipo são demasiadamente variados para que seja possível determinar em que medida um deles pode ter contribuído para apressar o desenlace final Quando se trata de indivíduos como eles são muito numerosos podese escolher aqueles que são comparados de maneira a que tenham em comum apenas uma única e mesma anomalia esta é assim isolada de todos os fenômenos concomitantes e portanto podese estudar a natureza de sua influência sobre o organismo Se por exemplo um grupo de mil reumáticos tomados ao acaso apresenta uma mortalidade sensivelmente superior à média há boas razões para atribuir esse resultado à diátese reumática Mas em sociologia como cada espécie social conta apenas um pequeno número de indivíduos o campo das comparações é demasiado restrito para que agrupamentos desse gênero possam ser demonstrativosOra na falta dessa prova de fato nada mais é possível senão raciocínios dedutivos cujas conclusões só po dem ter o valor de conjeturas subjetivas Demonstrarseá não que tal acontecimento enfraquece efetivamente o organismo social mas que ele deve ter esse efeito Para isso mostrarseá que ele não pode deixar de ocasionar esta ou aquela conseqüência que se julga nociva à sociedade e por esse motivo ele será declarado mórbido Mas mesmo supondo que ele engendre de fato essa conseqüência pode ocorrer que os inconvenientes que esta apresente sejam compensados e até mais do que isso por vantagens que não se percebem Além do mais há apenas uma razão que permitiria chamála de funesta ela perturbar o desempenho normal das funções Mas tal prova supõe o problema já resolvido pois ela só é possível se determinarmos previamente em que consiste o estado normal e portanto se soubermos sob que sinal ele pode ser reconhecido Tentarseá construílo integralmente e a priori Não é necessário mostrar o que pode valer tal construção Eis como tanto em sociologia como em história os mesmos acontecimentos podem vir a ser qualificados conforme os sentimentos pessoais do estudioso de salutares ou de desastrosos Assim acontece a todo momento que um teórico incrédulo assinale nos restos de fé que sobrevivem em meio ao desmoronamento geral das crenças religiosas um fenômeno mórbido enquanto para o crente é a incredulidade mesma que é hoje a grande doença social Do mesmo modo para o socialista a organização econômica atual é um fato de teratologia social ao passo que para o economista ortodoxo as tendências socialistas é que são por excelência patológicas E cada um encontra em apoio de sua opinião silogismos que considera bem construídos O erro comum dessas definições é querer atingir prematuramente a essência dos fenômenos Elas supõem como admitidas proposições que verdadeiras ou não só podem ser provadas se a ciência já estiver suficientemente avançada É o caso porém de nos conformarmos à regra estabelecida anteriormente Em vez de pretendermos determinar de saída as relações do estado normal e de seu contrário com as forças vitais busquemos simplesmente algum sinal exterior imediatamente perceptível mas objetivo que nos permita distinguir uma da outra essas duas ordens de fatos Todo fenômeno sociológico assim como de resto todo fenômeno biológico é suscetível de assumir formas diferentes conforme os casos embora permaneça essencialmente ele próprio Ora essas formas podem ser de duas espécies Umas são gerais em toda a extensão da espécie elas se verificam se não em todos os indivíduos pelo menos na maior parte deles e se não se repetem identicamente em todos os casos nos quais se observam mas variam de um sujeito a outro essas variações estão compreendidas entre limites muito próximos Há outras ao contrário que são excepcionais elas não apenas se verificam só na minoria mas também acontece que lá mesmo onde elas se produzem muito freqüentemente não duram toda a vida do indivíduo Elas são uma exceção tanto no tempo como no espaços Estamos pois em presença de duas variedades distintas de fenômenos que devem ser designadas por termos diferentes chamaremos normais os fatos que apresentam as formas mais gerais e daremos aos outros o nome de mórbidos ou patológicos Se concordarmos em chamar tipo médio o ser esquemático que constituiríamos ao reunir num mesmo todo numa espécie de individualidade abstrata os caracteres mais freqüentes na espécie com suas formas mais freqüentes poderemos dizer que o tipo normal se confunde com o tipo médio e que todo desvio em relação a esse padrão da saúde é um fenômeno mórbido É verdade que o tipo médio não poderia ser determinado com a mesma clareza que um tipo individual já que seus atributos constitutivos não estão absolutamente fixados mas são suscetíveis de variar Todavia o que não se pode pôr em dúvida é que ele possa ser constituído já que é a matéria imediata da ciência pois ele se confunde com o tipo genérico O que o fisiologista estuda são as funções do organismo médio e com o sociólogo não é diferente Uma vez que se sabe distinguir as espécies sociais umas das outras tratamos mais adiante a questão é sempre possível descobrir qual a forma mais geral que apresenta um fenômeno numa espécie determinada Vêse que um fato só pode ser qualificado de patológico em relação a uma espécie dada As condições da saúde e da doença não podem ser definidas in abstracto e de maneira absoluta A regra não é contestada em biologia jamais ocorreu a alguém que o que é normal para um molusco o é também para um vertebrado Cada espécie tem sua saúde porque tem seu tipo médio que lhe é próprio e a saúde das espécies mais baixas não é menor que a das mais elevadas O mesmo princípio aplicase à sociologia embora freqüentemente ele seja ignorado aí É preciso renunciar a esse hábito ainda muito difundido de julgar uma instituirão uma prática uma máxima moral como se elas fossem boas ou más em si mesmas e por si mesmas para todos os tipos sociais indistintamente Visto que o ponto de referência em relação ao qual se pode julgar o estado de saúde ou de doença varia com as espécies ele pode variar também para uma única e mesma espécie se esta vier a mudar É assim que do ponto de vista puramente biológico o que é normal para o selvagem nem sempre o é para o civilizado e viceversa Há sobretudo uma ordem de variações que é importante levar em conta porque elas se produzem regularmente em todas as espécies são aquelas relacionadas à idade A saúde do velho não é a do adulto assim como esta não é a da criança e o mesmo ocorre com as sociedades Um fato social não pode portanto ser dito normal para uma espécie social determinada a não ser em relação a uma fase igualmente determinada de seu desenvolvimento em conseqüência para saber se ele tem direito a essa dominação não basta observar sob que forma ele se apresenta na generalidade das sociedades que pertencem a essa espécie é preciso também ter o cuidado de consideráIas na fase correspondente de sua evolução Parece que acabamos de proceder simplesmente a uma definição de palavras pois nada mais fizemos senão agrupar fenômenos segundo suas semelhanças e suas diferenças e impor nomes aos grupos assim formados Mas em realidade os conceitos que constituímos ao mesmo tempo que têm a grande vantagem de ser reconhecíveis por caracteres objetivos e facilmente perceptíveis não se afastam da noção que se telas comumente da saúde e da doença Com efeito não é a doença concebida por todo o mundo como um acidente que a natureza do ser vivo certamente comporta mas não costuma engendrar É o que os antigos filósofos exprimiam ao dizer que ela não deriva da natureza das coisas que ela é o produto de uma espécie de contingência imanente aos organismos Tal concepção seguramente é a negação de toda ciência pois a doença não possui nada mais miraculoso que a saúde ela está igualmente fundada na natureza dos seres Só que não está fundada na natureza normal não está implicada no temperamento ordinário dos seres nem ligada às condições de existência das quais eles geralmente dependem Inversamente para todo o mundo o tipo da saílde se confunde com o da espécie Inclusive não se pode sem contradição conceber uma espécie que por si mesma e em virtude de sua constituição fundamental fosse irremediavelmente doente Ela é a norma por excelência e portanto nada de anormal poderia conter É verdade que correntemente entendese também por saúde um estado geralmente preferível à doença Mas essa definição está contida na precedente De fato se os caracteres cuja reunião forma o tipo normal puderam se generalizar numa espécie há uma razão para isso Essa generalidade é ela mesma um fato que tem necessidade de ser explicado e que para tanto reclama uma causa Ora ela seria inexplicável se as formas de organização mais difundidas não fossem também pelo menos em seu conjunto as mais vantajosas Como teriam elas podido se manter numa tão grande variedade de circunstâncias se não capacitassem os indivíduos a resistir melhor às causas de destruição Ao contrário se as outras são mais raras é evidentemente porque na média dos casos os indivíduos que as representam têm mais dificuldade de sobreviver A maior freqüência das primeiras é portanto a prova de sua superioridade Essa última observação fornece inclusive um meio de controlar os resultados do precedente método Uma vez que a generalidade que caracteriza exteriormente os fenômenos normais é ela própria um fenômeno explicável compete depois que ela foi diretamente estabelecida pela observação procurar explicála Certamente podemos estar seguros de antemão de que ela tem uma causa mas o melhor é saber com precisão qual é essa causa Com efeito o caráter normal do fenômeno será mais incontestável se demonstrarmos que o sinal exterior que o havia revelado a princípio não é puramente aparente mas sim fundado na natureza das coisas em uma palavra se pudermos erigir essa normalidade de fato em normalidade de direito Essa demonstração de resto nem sempre consistirá em mostrar que o fenômeno é útil ao organismo ainda que este seja o caso mais freqüente pelas razões que acabamos de mencionar mas pode ocorrer também como assinalamos mais acima que uma disposição seja normal sem servir a nada simplesmente porque está necessariamente implicada na natureza do ser Assim talvez fosse útil que o parto não causasse problemas tão violentos ao organismo feminino mas isso é impossível Em conseqüência a normalidade do fenômeno será explicada pelo simples fato de estar ligada às condições dë existência da espécie considerada seja como um efeito mecanicamente necessário dessas condições seja como um meio que permite aos organismos adaptaremse a elas Essa prova não é simplesmente útil a título de controle Convém não esquecer com efeito que se há interesse em distinguir o normal do anormal é sobretudo com vistas a esclarecer a prática Ora para agir com conhecimento de causa não basta saber o que devemos querer mas por que o devemos As proposições científicas relativas ao estado normal serão mais imediatamente aplicáveis aos casos particulares quando estiverem acompanhadas de suas razões pois então saberemos reconhecer melhor em que casos convém modificá las ao aplicálas e em que sentido Há inclusive circunstâncias em que essa verificação é rigorosamente necessária porque o primeiro método se fosse empregado sozinho poderia induzir a erro É o que acontece nos períodos de transição em que a espécie inteira está em via de evoluir sem estar ainda definitivamente fixada em uma forma nova Nesse caso o único tipo normal que se encontra desde já realizado e dado nos fatos é o do passado no entanto ele não está mais em harmonia com as novas condições de existência Um fato pode assim persistir em toda a extensão de uma espécie embora não mais corresponda às exigências da situação Nesse caso portanto ele só tem as aparências da normalidade a generalidade que apresenta não é senão um rótulo mentiroso posto que mantendose apenas pela força cega do hábito ela não é mais o indicador de que o fenômeno observado está intimamente ligado às condições gerais da existência coletiva Essa dificuldade aliás é específica à sociologia Ela não existe por assim dizer para o biólogo Com efeito é muito raro que as espécies animais sejam obrigadas a tomar formas imprevistas As únicas modificações normais pelas quais elas passam são aquelas que se reproduzem regularmente em cada indivíduo principalmente sob a influência da idade Portanto elas são conhecidas ou podem sêlo já que se realizaram numa grande quantidade de casos em vista disso se pode saber a cada momento do desenvolvimento do animal e mesmo nos períodos de crise em que consiste o estado normal O mesmo acontece em sòciologia em relação às sociedades que pertencem às espécies inferiores Como muitas delas já cumpriram toda a sua carreira a lei de sua evolução normal está ou pelo menos pode ser estabelecida Mas quando se trata das sociedades mais elevadas e mais recentes essa lei é desconhecida por definição já que elas ainda não percorreram toda a sua história O sociólogo pode assim ter dificuldades para saber se um fenômeno é normal ou não estando privado de qualquer ponto de referência Ele sairá da dificuldade procedendo como acabamos de dizer Após ter estabelecido pela observação que o fato é geral ele remontará às condições que determinaram essa generalidade no passado e procurará saber a seguir se tais condições ainda se verificam no presente ou ao contrário se alteraram No primeiro caso ele terá o direito de qualificar o fenômeno de normal e no segundo de recusarlhe esse caráter Por exemplo para saber se o estado econômico atual dos povos europeus com a ausência de organização que é a sua característica é normal ou não investïgarseá aquilo que no passado deu origem a ele Se essas condições são ainda aquelas nas quais se encontram atualmente nossas sociedades é porque a situação é normal a despeito dos protestos que provoca Se ao contrário verificarse que ela está ligada a essa velha estrutura social que qualificamos alhures de segmentar e que após ter sido a ossatura essencial das sociedades vaise apagando cada vez mais deveremos concluir que ela constitui presentemente um estado mórbido por mais universal que seja É de acordo com o mesmo método que deverão ser resolvidas todas as questões controversas desse gênero como as de saber se o enfraquecimento das crenças religiosas ou se o desenvolvimento dos poderes do Estado são fenômenos normais ou nãos Contudo esse método não poderia em caso nenhum substituir o precedente nem mesmo ser empregado primeiro A começar porque ele levanta questões que teremos de examinar adiante e que só podem ser abordadas quando a ciência já avançou suficientemente pois ele implica em suma uma explicação quase completa dos fenômenos na medida em que supõe sejam determinadas suas causas ou suas funções Ora é importante que desde o início da pesquisa se possam classificar os fatos em normais e anormais ressalvando se alguns casos excepcionais a fim de poder atribuir à fisiologia e à patologia os respectivos domínios Em seguida é em relação ao tipo normal que um fato deve ser considerado útil ou necessário para poder ele próprio ser qualificado de normal Caso contrário poderseia demonstrar que a doença se confunde com a saúde já que ela deriva necessariamente do organismo afetado é apenas com o organismo médio que ela não mantém a mesma relação Do mesmo modo a aplicação de um remédio sendo útil ao doente poderia ser vista como um fenômeno normal quando é evidentemente anormal pois só em circunstâncias anormais tem essa utilidade Portanto só podemos servirnos desse método se o tipo normal estiver constituído e isso somente é possível por outro procedimento Enfim e sobretudo se é verdade que tudo o que é normal é útil com a condição de ser necessário é falso que tudo o que é útil seja normal Podemos ter certeza de que os estados que se generalizaram na espécie são mais úteis do que os que permaneceram excepcionais mas não de que os mais úteis é que existem ou que podem existir Não temos nenhuma razão para acreditar que todas as combinações possíveis foram tentadas no curso da experiência e entre aquelas jamais realizadas mas concebíveis talvez muitas sejam mais vantajosas que as que conhecemos A noção de útil excede a de normal ela está para esta assim como o gênero está para a espécie Ora é impossível deduzir o mais do menos a espécie do gênero Mas podese encontrar o gênero na espécie já que esta o contém Por isso uma vez constatada a generalidade do fenômeno podemse confirmar os resultados do primeiro método mostrando como ele serve Podemos assim formular as três regras seguintes 1 Um fato social é normal para um tipo social determinado considerado numa fase determinada de seu desenvolvimento quando ele se produz na média das sociedades dessa espécie consideradas na fase correspondente de sua evolução 2 Os resultados do método precedente podem ser verificados mostrando se que a generalidade do fenômeno se deve às condições gerais da vida coletiva no tipo social considerado 3 Essa verificarão é necessária quando esse fato se relaciona a uma espécie social que ainda não consumou sua evolução integral Estamos tão habituados a resolver com uma palavra essas questões difíceis e a decidir rapidamente a partir de observações sumárias e à base de silogismos se um fato social é normal ou não que esse procedimento talvez vá ser considerado inutilmente complicado Não parece preciso darse tanto trabalho para distinguir a doença da saúde Acaso não fazemos diariamente distinções desse tipo É verdade mas resta saber se as fazemos devidamente O que nos mascara as dificuldades desses problemas é que vemos o biólogo resolvêlos com relativa facilidade Mas esquecemos que é muito mais fácil para ele do que para o sociólogo perceber como cada fenômeno afeta a força de resistência do organismo e com isso determinar seu caráter normal ou anormal com uma exatidão praticamente suficiente Em sociologia a complexidade e a mobilidade maiores dos fatos obrigam a muitas precauções como provam os julgamentos contraditórios feitos sobre o mesmo fenômeno por diferentes partidos Para mostrar bem o quanto essa cautela é necessária façamos ver por alguns exemplos em que erros se incorre quando ela não é respeitada e sob que luz nova os fenômenos mais essenciais aparecem quando são tratados metodicamente Se há um fato cujo caráter patológico parece incontestável é o crime Todos os criminologistas estão de acordo nesse ponto Ainda que expliquem essa morbidez de maneiras diferentes eles são unânimes em reconhecêla O problema porém deveria ser tratado com menos presteza Apliquemos com efeito as regras precedentes O crime não se observa apenas na maior parte das sociedades desta ou daquela espécie mas em todas as sociedades de todos os tipos Não há nenhuma onde não exista uma criminalidade Esta muda de forma os atos assim qualificados não são os mesmos em toda parte mas sempre e em toda parte houve homens que se conduziram de maneira a atrair sobre si a repressão penal Se pelo menos à medida que as sociedades passam dos tipos inferiores aos mais elevados o índice de criminalidade isto é a relação entre o número anual dos crimes e o da população tendesse a diminuir poderseia supor que embora permaneça um fenômeno normal o crime tende no entanto a perder esse caráter Mas não temos razão nenhuma que nos permita acreditar na realidade dessa regressão Muitos fatos pareceriam antes demonstrar a existência de um movimento no sentido inverso Desde o começo do século a estatística nos fornece o meio de acompanhar a marcha da criminalidade ora por toda parte ela aumentou Na França o aumento é de cerca de 300 por cento Não há portanto fenômeno que apresente da maneira mais irrecusável todos os sintomas da normalidade já que ele se mostra intimamente ligado às condições de toda vida coletiva Fazer do crime uma doença social seria admitir que a doença não é algo acidental mas ao contrário deriva em certos casos da constituição fundamental do ser vivo seria apagar toda distinção entre o fisiológico e o patológico Certamente pode ocorrer que o próprio crime tenha formas anormais é o que acontece quando por exemplo ele atinge um índice exagerado Não é duvidoso com efeito que esse excesso seja de natureza mórbida O que é normal é simplesmente que haja uma criminalidade contanto que esta atinja e não ultrapasse para cada tipo social certo nível que talvez não seja impossível fixar de acordo com as regras precedenteslo Eisnos em presença de uma conclusão aparentemente bastante paradoxal Pois não devemos iludirnos quanto a ela Classificar o crime entre os fenômenos de sociologia normal é não apenas dizer que ele é um fenômeno inevitável ainda que lastimável devido à incorrigível maldade dos homens é afirmar que ele é um fator da saúde pública uma parte integrante de toda sociedade sadia Esse resultado à primeira vista é bastante surpreendente para que tenha desconcertado a nós próprios e por muito tempo Entretanto uma vez dominada essa primeira impressão de surpresa não é difícil encontrar as razões que explicam essa normalidade e ao mesmo tempo a confirmam Em primeiro lugar o crime é normal porque uma sociedade que dele estivesse isenta seria inteiramente impossível O crime conforme mostramos alhures consiste num ato que ofende certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma clareza particulares Para que numa sociedade dada os atos reputados criminosos pudessem deixar de ser cometidos seria preciso que os sentimentos que eles ferem se verificassem em todas as consciências individuais sem exceção e com o grau de força necessário para conter os sentimentos contrários Ora supondo que essa condição pudesse efetivamente ser realizada nem por isso o crime desapareceria ele simplesmente mudaria de forma pois a causa mesma que esgotaria assim as fontes da criminalidade abriria imediatamente novas Com efeito para que os sentimentos coletivos protegidos pelo direito penal de um povo num momento determinado de sua história consigam penetrar nas consciências que lhes eram então fechadas ou ter mais influência lá onde não tinham bastante é preciso que eles adquiram uma intensidade superior à que possuíam até então É preciso que a comunidade como um todo os sinta com mais ardor pois eles não podem obter de outra fonte a força maior que lhes permite imporse aos indivíduos que até então lhes eram mais refratários Para que os assassinos desapareçam é preciso que o horror do sangue derramado tornese maior naquelas camadas sociais em que se recrutam os assassinos mas para tanto é preciso que ele se torne maior em toda a extensão da sociedade Aliás a ausência mesma do crime contribuiria diretamente para produzir esse resultado pois um sentimento mostrase muito mais respeitável quando ele é sempre e uniformemente respeitado Mas não se percebe que esses estados fortes da consciência comum não podem ser assim reforçados sem que os estados mais fracos cuja violação dava antes origem apenas a faltas puramente morais sejam igualmente reforçados pois os segundos são apenas o prolongamento a forma atenuada dos primeiros Assim o roubo e a simples indelicadeza não ofendem senão um único e mesmo sentimento altruísta o respeito à propriedade de outrem Só que esse mesmo sentimento é ofendido de modo mais fraco por um desses atos do que pelo outro e como além disso ele não tem na média das consciências uma intensidade suficiente para sentir vivamente a mais leve dessas duas ofensas esta será objeto de uma maior tolerância Eis por que se censura simplesmente o indelicado ao passo que o ladrão é punido Mas se o mesmo sentimento tornarse mais forte a ponto de fazer calar em todas as consciências aquilo que inclina o homem ao roubo ele se tornará mais sensível às lesões que até então apenas o tocavam levemente ele reagirá portanto com mais firmeza contra elas tais lesões serão objeto de uma reprovação mais enérgica que fará passar algumas delas de simples faltas morais que eram ao estado de crimes Por exemplo os contratos indelicados ou indelicadamente executados que implicam apenas uma reprovação pública ou reparações civis se tornarão delitos Imaginem uma sociedade de santos um claustro exemplar e perfeito Os crimes propriamente ditos nela serão desconhecidos mas as faltas que parecem veniais ao vulgo causarão o mesmo escândalo que produz o delito ordinário nas consciências ordinárias Portanto se essa sociedade estiver armada do poder de julgar e de punir ela qualificará esses atos de criminosos e os tratará como tais É pela mesma razão que o homem honesto julga suas menores fraquezas morais com uma severidade que a multidão reserva aos atos verdadeiramente delituosos Outrora as violências contra as pessoas eram mais freqüentes do que hoje porque o respeito pela dignidade individual era menor Como este aumentou esses crimes tornaramse mais raros em compensação muitos atos que lesavam esse sentimento entraram no direito penal no qual primitivamente não constavam Talvez se pergunte para esgotar todas as hipóteses logicamente possíveis por que essa unanimidade não se estenderia a todos os sentimentos coletivos sem exceção por que mesmo os mais fracos não adquiririam suficiente energia para prevenir qualquer dissidência A consciência moral da sociedade se manifestaria por inteiro em todos os indivíduos e com uma vitalidade suficiente para impedir todo ato que a ofendesse tanto as faltas puramente morais como os crimes Mas uma uniformidade tão universal e tão absoluta é radicalmente impossível pois o meio físico imediato no qual cada um de nós se encontra os antecendentes hereditários as influências sociais de que dependemos variam de um indivíduo a outro e por conseguinte diversificam as consciências Não é possível que todos se assemelhem nesse ponto pela simples razão de que cada um tem seu organismo próprio e esses organismos ocupam porções diferentes do espaço Por isso mesmo nos povos inferiores nos quais a originalidade individual é muito pouco desenvolvida ela não chega a ser nula Assim como não pode haver sociedade em que os indivíduos não divirjam em maior ou menor grau do tipo coletivo é também inevitável que entre essas divergências haja algumas que apresentem um caráter criminoso Pois o que confere a elas esse caráter não é sua importância intrínseca mas a que lhes atribui a consciência comum Se esta é mais forte se tem suficiente autoridade para tornar essas divergências muito fracas em valor absoluto ela será também mais sensível mais exigente e reagindo contra os menores desvios com a energia que manifesta alhures apenas contra dissidências mais consideráveis irá atribuirlhes a mesma gravidade ou seja irá marcálos como criminosos O crime é portanto necessário ele está ligado às condições fundamentais de toda vida social e por isso mesmo é útil pois as condições de que ele é solidário são elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e do direito De fato não é mais possível hoje contestar que não apenas o direito e a moral variam de um tipo social a outro como também mudam em relação a um mesmo tipo se as condições da existência coletiva se modificam Mas para que essas transformações sejam possíveis é preciso que os sentimentos coletivos que estão na base da moral não sejam refratários à mudança que tenham portanto apenas uma energia moderada Se fossem demasiado fortes deixariam de ser plásticos Todo arranjo com efeito é um obstáculo a um novo arranjo e isso tanto mais quanto mais sólido for o arranjo primitivo Quanto mais fortemente pronunciada for uma estrutura mais resistência ela oporá a qualquer modificação e isso vale tanto para os arranjos funcionais como para os anatômicos Ora se não houvesse crimes essa condição não seria preenchida pois tal hipótese supõe que os sentimentos coletivos teriam chegado a um grau de intensidade sem exemplo na história Nada é bom indefinidamente e sem medida É preciso que a autoridade que a consciência moral possui não seja excessiva caso contrário ninguém ousaria contestála e muito facilmente ela se cristalizaria numa forma imutável Para que ela possa evoluir é preciso que a originalidade individual possa vir à luz ora para que a do idealista que sonha superar seu século possa se manifestar é preciso que a do criminoso que está abaixo de seu tempo seja possível Uma não existe sem a outra E não é tudo Além dessa utilidade indireta o próprio crime pode desempenhar um papel útil nessa evolução Não apenas ele implica que o caminho permanece aberto às mudanças necessárias como também em certos casos prepara diretamente essas mudanças Não apenas lá onde ele existe os sentimentos coletivos encontramse no estado de maleabilidade necessário para adquirir uma forma nova como ele também contribui às vezes para predeterminar a forma que esses sentimentos irão tomar Quantas vezes com efeito o crime não é senão uma antecipação da moral por vir um encaminhamento em direção ao que será De acordo com o direito ateniense Sócrates era um criminoso e sua condenação simplesmente justa No entanto seu crime a saber a independência de seu pensamento era útil não somente à humanidade mas à sua pátria Pois ele servia para preparar uma moral e uma fé novas das quais os atenienses tinham então necessidade porque as tradições segundo as quais tinham vívido até então não mais estavam em harmonia com suas condições de existência Ora o caso de Sócrates não é isolado ele se reproduz periodicamente na história A liberdade de pensar que desfrutamos atualmente jamais poderia ter sido proclamada se as regras que a proibiam não tivessem sido violadas antes de serem solenemente abolidas Entretanto naquele momento essa violação era um crime já que era uma ofensa a sentimentos ainda muito fortes na generalidade das consciências Todavia esse crime era útil pois preludiava transformações que dia após dia tornavamse mais necessárias A livre filosofia teve por precursores os heréticos de todo tipo que o braço secular justamente perseguiu durante toda a Idade Média até as vésperas dos tempos contemporâneos Desse ponto de vista os fatos fundamentais da criminologia apresentamse a nós sob um aspecto de todo novo Contrariamente às idéias correntes o criminoso não mais aparece como um ser radicalmente insociável como uma espécie de elemento parasitário corpo estranho e inassimilável introduzido no seio da sociedadeiz ele é um agente regular da vida social O crime por sua vez não deve mais ser concebido como um mal que não possa ser contido dentro de limites demasiado estreitos mas longe de haver motivo para nos felicitarmos quando lhe ocorre descer muito sensivelmente abaixo do nível ordinário podemos estar certos de que esse progresso aparente é ao mesmo tempo contemporâneo e solidário de alguma perturbação social Assim o número de agressões e de ferimentos jamais cai tanto como em tempos de penúrial3 Ao mesmo tempo e por via indireta a teoria da pena se mostra renovada ou melhor por renovar Com efeito se o crime é uma doença a pena é seu remédio e não pode ser concebida de outro modo assim todas as discussões que ela suscita têm por objeto saber o que ela deve ser para cumprir seu papel de remédio Mas se o crime nada tem de mórbido a pena não poderia ter por objeto curálo e sua verdadeira função deve ser buscada em outra parte Portanto as regras precedentemente enunciadas estão longe de terem como única razão de ser a satisfação de um formalismo lógico sem grande utilidade uma vez que ao contrário conforme as apliquemos ou não os fatos sociais mais essenciais mudam totalmente de caráter Se esse exemplo aliás é particularmente demonstrativo e por isso julgamos que era preciso nos determos nele há muitos outros que poderiam ser utilmente citados Não existe sociedade na qual não seja de regra que a pena deve ser proporcional ao delito entretanto para a escola italiana esse princípio não passa de uma invenção de juristas desprovida de qualquer solidez Inclusive para esses criminologistas é a instituição penal inteira tal como funcionou até o presente em todos os povos conhecidos que é um fenômeno antinatural Já vimos que para o sr Garofalo a criminalidade específica às sociedades inferiores nada tem de natural Para os socialistas é a organização capitalista apesar de sua generalidade que constitui um desvio do estado normal produzido pela violência e o artifício Para Spencer ao contrário é nossa centralização administrativa é a extensão dos poderes governamentais o vício radical de nossas sociedades e isso apesar de ambas progredirem de maneira mais regular e universal à medida que avançamos na história Não cremos que em nenhum desses casos se aceite como critério sistemático decidir do caráter normal ou anormal dos fatos sociais com base no grau de generalidade deles É sempre à força de muita dialética que essas questões são decididas Entretanto não respeitado esse critério incorrese não somente em confusões e em erros parciais como os que acabamos de lembrar mas a ciência mesma tornase impossível Com efeito esta tem por objeto imediato o estudo do tipo normal ora se os fatos mais gerais podem ser mórbidos é possível que o tipo normal jamais tenha existido nos fatos Sendo assim de que serve estudá los Eles podem apenas confirmar nossos preconceitos e enraizar nossos erros já que deles resultam Se a pena se a responsabilidade tais como existem na história não são senão um produto da ignorância e da barbárie de que adianta dedicarse a conhecêlas para determinar suas formas normais Assim o espírito é levado a afastarse de uma realidade desde então sem interesse voltandose sobre si mesmo e buscando dentro de si os materiais necessários para reconstruí la Para que a sociologia trate os fatos como coisas é preciso que o sociólogo sinta a necessidade de aprender com eles Ora como o objeto principal de toda ciência da vida tanto individual como social é em suma definir o estado normal explicálo e distinguilo de seu contrário se a normalidade não acontecer nas coisas mesmas se ao contrário ela for um caráter que imprimimos desde fora nestas ou que lhes recusamos por razões quaisquer acabase essa salutar dependência O espírito se acha à vontade diante do real que nada de muito importante tem a lhe ensinar ele não mais é contido pela matéria à qual se aplica uma vez que é ele de certo modo que a determina As diferentes regras que estabelecemos até o presente são portanto intimamente solidárias Para que a sociologia seja realmente uma ciência de coisas é preciso que a generalidade dos fenômenos seja tomada como critério de sua normalidade Nosso método aliás tem a vantagem de regular a ação ao mesmo tempo que o pensamento Se o desejável não é objeto de observação mas pode e deve ser determinado por uma espécie de cálculo mental nenhum limite por assim dizer pode ser imposto às livres invenções da imaginação em busca do melhor Pois como atribuir à perfeição um termo que ela não pode ultrapassar Ela escapa por definição a qualquer limite O objetivo da humanidade recua portanto ao infinito desencorajando uns por seu afastamento mesmo estimulando e apaixonando outros que para dele se aproximar um pouco aceleram o passo e se precipitam nas revoluções Escapamos desse dilema prático se o desejável for a saúde e se a saúde for algo de definido e de dado nas coisas pois o termo do esforço é dado e definido ao mesmo tempo Não se trata mais de perseguir desesperadamente um fim que se afasta à medida que avançamos mas de trabalhar com uma regular perseverança para manter o estado normal para restabelecêlo se for perturbado para redescobrir suas condições se elas vierem a mudar O dever do homem de Estado não é mais impelir violentamente as sociedades para um ideal que lhe parece sedutor mas seu papel é o do médico ele previne a eclosão das doenças mediante uma boa higiene e quando estas se manifestam procura curálas REGRAS RELATIVAS À CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS Visto que um fato social só pode ser qualificado de normal ou de anormal em relação a uma espécie social determinada o que precede implica que um ramo da sociologia é dedicado à constituição dessas espécies e à sua classificação Essa noção de espécie social tem aliás a grande vantagem de nos fornecer um meiotermo entre as duas concepções contrárias da vida coletiva que por muito tempo dividiram os espíritos refirome ao nominalismo dos historiadores e ao realismo extremo dos filósofos Para o historiador as sociedades constituem individualidades heterogêneas incomparáveis entre si Cada povo tem sua fisionomia sua constituição específica seu direito sua moral sua organização econômica que convêm só a ele e toda generalização é praticamente impossível Para o filósofo ao contrário todos esses agrupamentos particulares que chamamos tribos cidades nações não são mais que combinações contingentes e provisórias sem realidade própria Apenas a humanidade é real e é dos atributos gerais da natureza humana que decorre toda a evolução social Para os primeiros portanto a história não é senão uma seqüência de acontecimentos que se encadeiam sem se reproduzir para os segundos esses mesmos acontecimentos só têm valor e interesse como ilustração das leis gerais que estão inscritas na constituição do homem e que dominam todo o desenvolvimento histórico Para aqueles o que é bom para uma sociedade não poderia aplicarse às outras As condições do estado de saúde variam de um povo a outro e não podem ser determinadas teoricamente é uma questão de prática de experiência de tentativas Para os outros essas condições podem ser calculadas de uma vez por todas e para o gênero humano inteiro Parecia portanto que a realidade social ou seria o objeto de uma filosofia abstrata e vaga ou de monografias puramente descritivas Mas escapamos a essa alternativa tão logo reconhecemos que entre a multidão confusa das sociedades históricas e o conceito único mas ideal da humanidade existem intermediários são as espécies sociais Na idéia de espécie com efeito achamse reunidas tanto a unidade que toda pesquisa verdadeiramente científica exige como a diversidade que é dada nos fatos já que a espécie é a mesma em todos os indivíduos que dela fazem parte e por outro lado as espécies diferem entre si Continua sendo verdade que as instituições morais jurídicas econômicas etc são infinitamente variáveis mas essas variações não são de natureza a não permitir nenhuma apreensão pelo pensamento científico Foi por ter desconhecido a existência de espécies sociais que Comte julgou poder representar o progresso das sociedades humanas como idêntico ao de um povo único ao qual seriam idealmente referidas todas as modificações consecutivas observadas nas populações distintas É que de fato se existe apenas uma única espécie social as sociedades particulares não podem diferir entre si a não ser em graus conforme apresentem mais ou menos completamente os traços constitutivos dessa espécie única conforme exprimam mais ou menos perfeitamente a humanidade Se ao contrário existem tipos sociais qualitativamente distintos uns dos outros não se poderá fazer que eles se unam exatamente como as seções homogêneas de uma reta geométrica por mais que os aproximemos O desenvolvimento histórico perde deste modo a unidade ideal e simplista que lhe atribuíam ele se fragmenta por assim dizer numa infinidade de pedaços que por diferirem especificamente uns dos outros não poderiam ligar se de maneira contínua A famosa metáfora de Pascal retomada depois por Comte mostrase assim desprovida de verdade Mas como fazer para constituir tais espécies À primeira vista pode parecer que não haja outra maneira de proceder senão estudar cada sociedade em particular fazer dela uma monografia tão exata e tão completa quanto possível a seguir comparar todas essas monografias entre si ver em que ponto elas concordam e em que ponto divergem e então conforme a importância relativa dessas similitudes e dessas divergências classificar os povos em grupos semelhantes ou diferentes Em apoio a esse método fazse notar que ele só é admissível numa ciência de observação A espécie com efeito é o resumo dos indivíduos portanto como constituíIa se não se começa por descrever cada um deles e por descrevêlo inteiramente Acaso não é uma regra a de somente elevarse ao geral após se ter observado o particular e todo 0 particular Foi por essa razão que se quis às vezes adiar a sociologia até uma época indefinidamente remota em que a história no estudo que realiza das sociedades particulares terá chegado a resultados suficientemente objetivos e definidos para poderem ser proveitosamente comparados Mas em realidade essa cautela só aparentemente é científica É inexato com efeito que a ciência só possa instituir leis após ter passado em revista todos os fatos que elas exprimem ou só formar gêneros após ter descrito em sua integralidade os indivíduos que eles compreendem O verdadeiro método experimental tende antes a substituir os fatos vulgares que só são demonstrativos com a condição de serem numerosos e que portanto permitem apenas conclusões sempre suspeitas por fatos decisivos ou crucíctis como dizia Bacon3 que por si mesmos e independentemente de seu número têm um valor e um interesse científicos É sobretudo necessário proceder deste modo quando se trata de constituir gêneros e espécies Pois fazer o inventário de todas as características de um indivíduo é um problema insolúvel Todo indivíduo é um infinito e o infinito não pode sei esgotado Iremos nos ater às propriedades mais essenciais Mas com base em que princípio faremos a triagem Para isso é preciso um critério que supere o indivíduo e que as monografias mais bemfeitas não poderiam portanto nos fornecer Mesmo sem levar as coisas a esse rigor podese prever que quanto mais numerosos os caracteres que servirão de base à classificação tanto mais difícil será que as diversas maneiras como eles se combinam nos casos particulares apresentem semelhanças bastante claras e diferenças bastante nítidas para permitir a constituição de grupos e subgrupos definidos Mas ainda que uma classificação fosse possível com base nesse método ela teria o grande defeito de não prestar os serviços que são sua razão de ser Com efeito ela deve antes de tudo ter por objeto abreviar o trabalho científico ao substituir a multiplicidade indefinida dos indivíduos por um número restrito de tipos Mas ela perde essa vantagem se esses tipos só forem constituídos após todos os indivíduos terem sido passados em revista e analisados inteiramente Uma tal classificação não facilitará muito a pesquisa se não fizer mais que resumir as pesquisas já feitas Ela só será verdadeiramente útil se nos permitir classificar outros caracteres que não aqueles que lhe servem de base se nos proporcionar quadros para os fatos futuros Seu papel é o de nos munir de pontos de referência aos quais possamos relacionar outras observações que não aquelas que nos forneceram esses próprios pontos de referência Mas para isso é preciso que ela seja feita não a partir de um inventário completo de todos os caracteres individuais mas a partir de um pequeno número deles cuidadosamente escolhidos Nessas condições ela não servirá apenas para pôr um pouco de ordem nos conhecimentos já obtidos servirá para produzir outros Ela poupará muitos passos ao observador porque irá guiálo Assim uma vez estabelecida a classificação sobre esse princípio para saber se um fato é geral numa espécie não será necessário ter observado todas as sociedades dessa espécie algumas serão suficientes Inclusive em muitos casos bastará somente uma observação bemfeita assim como uma experiência bem conduzida é suficiente muitas vezes para o estabelecimento de uma lei Devemos portanto escolher para nossa classificação caracteres particularmente essenciais É verdade que não se pode conhecêlos a não ser que a explicação dos fatos esteja suficientemente avançada Essas duas partes da ciência são solidárias e progridem uma através da outra No entanto mesmo sem avançar muito no estudo dos fatos não é difícil conjeturar onde é preciso buscar as propriedades características dos tipos sociais Sabemos com efeito que as sociedades são compostas de partes reunidas umas às outras Já que a natureza de toda resultante depende necessariamente da natureza do número dos elementos componentes e de seu modo de combinação esses caracteres são evidentemente aqueles que devemos tomar por base e veremos a seguir com efeito que é deles que dependem os fatos gerais da vida social Por outro lado como eles são de ordem morfológica poderíamos chamar Morfologia social a parte da sociologia que tem por tarefa constituir e classificar os tipos sociais Podese inclusive precisar ainda mais o princípio dessa classificação Sabe se com efeito que as partes constitutivas de que é formada toda sociedade são sociedades mais simples do que ela Um povo é formado pela reunião de dois ou vários povos que o precederam Portanto se conhecêssemos a sociedade mais simples que até hoje existiu precisaríamos apenas para fazer nossa classificação seguir a maneira como essa sociedade se compõe consigo mesma e como seus compostos se compõem entre si Spencer compreendeu muito bem que a classificação metódica dos tipõs sociais não podia ter outro fundamento Vimos diz ele que a evolução social começa por pequenos agregados simples que ela progride pela união de alguns desses agregados em agregados maiores e que após se consolidarem esses grupos se unem com outros semelhantes a eles para formar agregados ainda maiores Nossa classificação deve portanto começar por sociedades da primeira ordem isto é da mais simples Infelizmente para pôr esse princípio em prática seria preciso começar por definir com precisão o que se entende por sociedade simples Ora essa definição não apenas Spencer não a dá como também a considera mais ou menos impossível5 É que a simplicidade tal como ele a entende consiste essencialmente numa certa rudeza de organização Ora não é fácil dizer com exatidão em que momento a organização social é suficientemente rudimentar para ser qualificada de simples é uma questão de apreciação Assim a fórmula que ele oferece é tão vaga que convém a todo tipo de sociedades Nada de melhor temos a fazer diz ele do que considerar como sociedade simples aquela que forma um todo não subordinado a outro e cujas partes cooperam com ou sem centro regulador tendo em vista certos fins de interesse público6 Mas há muitos povos que satisfazem a essa condição Disso resulta que ele confunde um pouco ao acaso sob essa mesma rubrica todas as sociedades menos civilizadas Imagine se o que pode ser com semelhante ponto de partida o resto de sua classificação Vemos aproximadas nela na mais espantosa confusão as sociedades mais diversas os gregos homéricos postos ao lado dos feudos do século X e abaixo dos bechuanas dos zulus e dos fijianos a confederação ateniense ao lado dos feudos da França dó século XIII e abaixo dos iroqueses e dos araucanos A palavra simplicidade só tem sentido definido se significar uma ausência completa de partes Por sociedade simples portanto devese entender toda sociedade que não encerra outras mais simples do que ela que não apenas está segmentação anterior A horda tal como a definimos alhures corresponde exatamente a essa definição Tratase de um agregado que não compreende e jamais compreendeu em seu seio nenhum outro agregado mais elementar mas que se decompõe imediatamente em indivíduos Estes não formam no interior do grupo total grupos especiais e diferentes do precedente eles se justapõem à maneira de átomos Concebese que não possa haver sociedade mais simples esse é o protoplasma do reino social e conseqüentemente a base natural de toda classificação É verdade que talvez não exista sociedade histórica que corresponda exatamente a essa identificação mas tal como mostramos no livro já citado conhecemos uma quantidade delas que são formadas imediatamente e sem outro intermediário por uma repetição de hordas Quando a horda se torna assim um segmento social em vez de ser a sociedade inteira ela chamase clã mas conserva os mesmos traços constitutivos O clã com efeito é um agregado social que não se decompõe em nenhum outro mais restrito Poderão talvez assinalar que geralmente lá onde o observamos hoje ele encerra uma pluralidade de famílias particulares Mas em primeiro lugar por razões que não podemos desenvolver aqui cremos que a formação desses pequenos grupos familiares é posterior ao clã além disso essas famílias não constituem para falar com exatidão segmentos sociais porque elas não são divisões políticas Onde quer que o encontremos o clã constitui a última divisão desse gênero Em conseqüência ainda que não tivéssemos outros fatos para postular a existência da horda e eles existem como teremos a ocasião de expor um dia a existência do clã isto é de sociedades formadas por uma reunião de hordas nos autoriza a supor que houve primeiramente sociedades mais simples que se reduziam à horda propriamente dita e a fazer desta o tronco de onde saíram todas as espécies sociais Uma vez estabelecida essa noção de horda ou sociedade de segmento único seja ela concebida como uma realidade histórica ou como um postulado da ciência temse o ponto de apoio necessário para construir a escala completa dos tipos sociais Iremos distinguir tantos tipos fundamentais quantas maneiras houver para a horda de se combinar consigo mesma dando origem a sociedades novas e para estas de se combinarem entre si Encontraremos primeiramente agregados formados por uma simples repetição de hordas ou de clãs para dar lhes seu novo nome sem que esses clãs estejam associados entre si de maneira a formar grupos intermediários entre o grupo total que compreende a todos e cada um deles Eles estão simplesmente justapostos como os indivíduos da horda Encontramse exemplos dessas sociedades que poderiam ser chamadas polissegmentares simples em certas tribos iroquesas e australianas O arch ou tribo da Cabília tem o mesmo caráter tratase de uma reunião de clãs fixados em forma de aldeias Muito provavelmente houve um momento na história em que a cúria romana e a fratria ateniense eram sociedades desse gênero Acima viriam as sociedades formadas por uma reunião de sociedades da espécie precedente isto é as sociedades polissegmentares simplesmente compostas Tal é o caráter da confederação iroquesa daquela formada pela reunião das tribos cabilas o mesmo aconteceu na origem com cada uma das três tribos primitivas cuja associação deu origem mais tarde à cidade romana Encontraríamos a seguir as sociedades polissegmentares duplamente compostas que resultam da justaposição ou da fusão de várias sociedades polissegmentares simplesmente compostas É o caso da cidade agregado de tribos que são elas próprias agregados de cúrias que por sua vez se decompõem em gentes ou clãs e da tribo germânica com seus condados que se subdividem em centenas os quais por sua vez têm por unidade última o clã transformado em aldeia Não precisamos desenvolver nem levar mais adiante essas poucas indicações já que não é o caso de efetuar aqui uma classificação das sociedades Esse é um problema demasiado complexo para poder ser tratado assim de passagem ele supõe ao contrário todo um conjunto de longas e especiais pesquisas Quisemos apenas por alguns exemplos precisar as idéias e mostrar como deve ser aplicado o princípio do método Inclusive não se deveria considerar o que precede como sendo uma classificação completa das sociedades inferiores Simplificamos um pouco as coisas para maior clareza Supusemos com efeito que cada tipo superior era formado por uma repetição de sociedades de um mesmo tipo a saber do tipo imediatamente inferior Ora não é impossível que sociedades de espécies diferentes situadas em diferentes níveis da árvore genealógica dos tipos sociais se reúnam de maneira a formar uma espécie nova Sabese de pelo menos um caso o Império romano que compreendia em seu interior povos das mais diversas naturezas Mas uma vez constituídos esses tipos será preciso distinguir em cada um deles variedades diferentes conforme as sociedades segmentares que servem para formar a sociedade resultante conservem uma certa individualidade ou então ao contrário sejam absorvidas na massa total Compreendese com efeito que os fenômenos sociais devem variar não apenas segundo a natureza dos elementos componentes mas segundo seu modo de composição eles devem sobretudo ser muito diferentes conforme cada um dos grupos parciais conserve sua vida local ou sejam todos arrastados na vida geral isto ê conforme estejam mais ou menos estreitamente concentrados Deveremos portanto investigar se num momento qualquer se produz uma coalescência completa desses segmentos Reconheceremos que ela ocorre se a composição original da sociedade não mais afetar sua organização administrativa e política Desse ponto de vista a cidade distinguese nitidamente das tribos germânicas Nestas últimas a organização à base de clãs se manteve embora apagada até o término de sua história ao passo que em Roma em Atenas as gentes e as Évil deixaram muito cedo de ser divisões políticas para se tornarem agrupamentos privados No interior dos lineamentos assim constituídos poderseá buscar introduzir novas distinções a partir dos caracteres morfológicos secundários Entretanto por razões que daremos mais adiante não julgamos muito possível superar com proveito as divisões gerais que acabam de ser indicadas Além disso não precisamos entrar nesses detalhes bastandonos ter estabelecido o princípio de classificação que pode ser assim enunciado Começarseá por classificar as sociedades de acordo com o grau de composição que elas apresentam tomando por base a sociedade perfeitamente simples ou de segmento único no interior dessas classes distinguirseão variedades diferentes conforme se produza ou não uma coalescência completa dos segmentos iniciais Essas regras respondem implicitamente a uma questão que o leitor talvez se tenha colocado ao nos ver falar de espécies sociais como se elas existissem sem termos diretamente estabelecido sua existência Essa prova está contida no princípio mesmo do método que acaba de ser exposto Acabamos de ver com efeito que as sociedades não eram mais que combinações diferentes de uma mesma e única sociedade original Ora um mesmo elemento só pode comporse consigo mesmo e os compostos que dele resultam só podem por sua vez comporse entre si segundo um número de modos limitado sobretudo quando os elementos componentes são pouco numerosos como é o caso dos segmentos sociais A gama de combinações possíveis é portanto finita e por conseguinte a maior parte delas pelo menos deve se repetir Do que se conclui que há espécies sociais É possível aliás que algumas dessas combinações se produzam apenas uma vez Isso não impede que haja espécies Apenas se dirá nesse caso que a espécie tem somente um indivíduo Há portanto espécies sociais pela mesma razão que existem espécies em biologia Estas com efeito devemse ao fato de os organismos não serem senão combinações variadas de uma mesma unidade anatômica Há todavia desse ponto de vista uma grande diferença entre os dois reinos Pois entre os animais um fator especial confere aos caracteres específicos uma força de resistência que os outros não têm é a geração Os primeiros por serem comuns a toda a linhagem dos ascendentes estão bem mais fortemente enraizados no organismo Portanto eles não se deixam facilmente afetar pela ação dos meios individuais mas se mantêm idênticos a si mesmos apesar da diversidade das circunstâncias exteriores Há uma força interna que os fixa a despeito das solicitações para variar que podem vir de fora a força dos hábitos hereditários Por isso eles são claramente definidos e podem ser determinados com precisão No reino social faltalhes essa causa interna Os caracteres não podem ser reforçados pela geração porque duram apenas uma geração É de regra com efeito que as sociedades engendradas sejam de outra espécie que as sociedades geradoras porque estas últimas ao se combinarem dão origem a arranjos inteiramente novos Somente a colonização poderia ser comparada a uma geração por germinação mesmo assim para que a comparação seja exata é preciso que o grupo de colonos não se misture com uma sociedade de outra espécie ou de outra variedade Os atributos distintivos da espécie não recebem portanto da hereditariedade um acréscimo de força que lhe permita resistir às variações individuais Eles se modificam e se matizam ao infinito sob a ação das circunstâncias assim quando se quer atingilos depois de afastadas todas as variantes que os encobrem com freqüência se obtém apenas um resíduo bastante indeterminado Essa indeterminação cresce naturalmente tanto mais quanto maior for a complexidade dos caracteres pois quanto mais complexa uma coisa mais as partes que a compõem podem formar combinações diferentes Disso resulta que o tipo social específico para além dos caracteres mais gerais e mais simples não apresenta contornos tão definidos como em biologia REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS Mas a constituição das espécies é antes de tudo um meio de agrupar os fatos para facilitar sua interpretação a morfologia social é um encaminhamento para a parte realmente explicativa da ciência Qual o método próprio desta última A maior parte dos sociólogos acredita ter explicado os fenômenos uma vez que mostrou para que eles servem e que papel desempenham Raciocinase como se tais fenômenos só existissem em função desse papel e não tivessem outra causa determinante além do sentimento claro ou confuso dos serviços que são chamados a prestar Por isso julgase ter dito tudo o que é necessário para tornálos inteligíveis quando se estabeleceu a realidade desses serviços e se mostrou a que necessidade social eles satisfazem Assim Comte reduz toda a força progressiva da espécie humana à tendência fundamental que impeles diretamente o homem a melhorar sempre e sob todos os aspectos sua condição seja ela qual for e Spencer à necessidade de uma maior felicidade É em virtude desse princípio que ele explica a formação da sociedade pelas vantagens que resultam da cooperação a instituição do governo pela utilidade que há em regularizar a cooperação militar as transformações pelas quais passou á família pela necessidade de conciliar cada vez mais perfeitamente os interesses dos pais dos filhos e da sociedade Mas esse método confunde duas questões muito diferentes Mostrar em que um fato é útil não é explicar como ele surgiu nem como ele é o que é Pois os usos a que serve supõem as propriedades específicas que o caracterizam mas não o criam A necessidade que temos das coisas não pode fazer que elas sejam deste ou daquele jeito e conseqüentemente não é essa necessidade que pode tirálas do nada e conferirlhes o ser É a causas de um outro gênero que elas devem sua existência O sentimento que temos da utilidade que elas apresentam pode muito bem nos incitar a pôr em ação essas causas e a obter os efeitos que elas implicam não a suscitar do ciada esses efeitos Essa proposição é evidente quando se trata apenas dos fenômenos materiais ou mesmo psicológicos Ela tampouco seria contestada em sociologia se os fatos sociais por causa de sua extrema imaterialidade não nos parecessem erradamente destituídos de toda realidade intrínseca Como neles se vêem apenas combinações puramente mentais parece que devem se produzir espontaneamente tão logo os concebemos desde que os consideremos úteis Mas visto que cada um desses fatos é uma força e essa força domina a nossa visto que cada um tem uma natureza que lhe é própria ter desejo ou vontade deles não poderia ser suficiente para conferirLhes existência É preciso também que forças capazes de produzir essa força determinada que naturezas capazes de produzir essa natureza especial sejam dadas Somente em tal condição o fato social será possível Para reanimar o espírito da família onde ele se acha enfraquecido não basta que todos compreendam as vantagens disso é preciso fazer agir diretamente as causas que são as únicas capazes de engendrálo Para devolver a um governo a autoridade que lhe é necessária não basta sentir a necessidade disso é preciso recorrer às únicas fontes de que deriva toda autoridade ou seja constituir tradições um espírito comum etc para tanto é preciso também remontar mais acima na cadeia das causas e dos efeitos até se encontrar um ponto em que a ação do homem possa se inserir eficazmente O que mostra bem a dualidade dessas duas ordens de pesquisas é que um fato pode existir sem servir a nada seja porque jamais esteve ajustado a algum fim vital seja porque após ter sido útil perdeu toda utilidade e continuou a existir pela simples força do hábito Com efeito há bem mais sobrevivências na sociedade do que no organismo Há casos inclusive em que uma prática ou uma instituição social mudam de funções sem por isso mudar de natureza A regra is pater est quem justae nuptiae declaram é pai aquele que as núpcias indicam permaneceu materialmente em nosso Código tal como existia no velho direito romano Mas se essa regra tinha então por objeto salvaguardar os direitos de propriedade do pai sobre os filhos provenientes da esposa legítima é antes o direito dos filhos que ela protege hoje O juramento começou por ser uma espécie de prova judiciária para tornarse apenas uma forma solene e imponente do testemunho Os dogmas religiosos do cristianismo continuam os mesmos há séculos mas o papel que desempenham em nossas sociedades modernas não é mais o mesmo que na Idade Média É assim ainda que as palavras servem para exprimir idéias novas sem que sua contextura se modifique De resto é uma proposição verdadeira tanto em sociologia como em biologia que o órgão é independente da função ou seja que pode servir a fins diferentes embora permaneça o mesmo Portanto as causas que o fazem existir são independentes dos fins aos quais ele serve Não queremos dizer aliás que as tendências as necessidades os desejos dos homens jamais intervenham de maneira ativa na evolução social Ao contrário certamente lhes é possível conforme a maneira como agem sobre as condições de que depende um fato acelerar ou conter o desenvolvimento deste Só que além de não poderem em caso nenhum tirar alguma coisa do nada sua própria intervenção sejam quais forem os efeitos dela só pode ocorrer em virtude de causas eficientes De fato mesmo nessa medida restrita uma tendência só pode concorrer para a produção de um fenômeno novo se ela própria for nova quer se tenha constituído a partir de zero quer seja devida a alguma transformação de uma tendência anterior Pois a menos que se postule uma harmonia preestabelecida verdadeiramente providencial não se poderia admitir que desde a origem o homem trouxesse em si em estado virtual mas inteiramente prontas para despertar com o concurso das circunstâncias todas as tendências cuja oportunidade haveria de se fazer sentir na seqüência da evolução Ora uma tendência é também uma coisa ela não pode portanto se constituir nem se modificar pelo simples fato de a julgarmos útil É uma força que tem sua natureza própria para que essa natureza seja suscitada ou alterada não basta que nela encontremos alguma vantagem Para determinar tais mudanças é preciso que atuem causas que as impliquem fisicamente Por exemplo explicamos os progressos constantes da divisão do trabalho social ao mostrar que eles são necessários para que o homem possa se manter nas condições novas de existência nas quais se vê colocado à medida que avançaria história atribuímos portanto a essa tendência que muito impropriamente é chamada de instinto de conservação um papel importante em nossa explicação Mas em primeiro lugar ela não poderia por si só explicar a especialização mesmo a mais rudimentar Pois ela nada pode se as condições de que depende esse fenômeno não estiverem já realizadas isto é se as diferenças individuais não tiverem aumentado suficientemente em conseqüência da indeterminação progressiva da consciência comum e das influências hereditárias3 Inclusive foi preciso que a divisão do trabalho já tivesse começado a existir para que sua utilidade fosse percebida e sua necessidade se fizesse sentir e somente o desenvolvimento das divergências individuais ao implicar uma maior diversidade de gostos e de aptidões haveria necessariamente de produzir esse primeiro resultado Além disso não foi por si mesmo e sem causa que o instinto de conservação veio fecundar esse primeiro germe de especialização Se ele se orientou e nos orientou nesse novo caminho foi em primeiro lugar porque o caminho que ele seguia e nos fazia seguir anteriormente se viu como que barrado pois a intensidade maior da luta devida à maior condensação das sociedades tornou cada vez mais difícil a sobrevivência dos indivíduos que continuavam a se dedicar a tarefas gerais Foi assim necessário mudar de direção Por outro lado se esse instinto faz uma volta e virou principalmente nossa atividade no sentido de uma divisão do trabalho sempre mais desenvolvida é porque esse era também o sentido da menor resistência As outras soluções possíveis eram a emigração o suicídio o crime Ora na média dos casos os laços que nos ligam a nosso país à vida a simpatia que temos por nossos semelhantes são sentimentos mais fortes e mais resistentes que os hábitos capazes de nos afastar de uma especialização mais estreita São esses últimos portanto que haveriam necessariamente de ceder a cada nova arremetida Assim não se cai nem mesmo parcialmente no finalismo pelo fato de se aceitar dar um lugar às necessidades humanas nas explicações sociológicas Pois estas só podem ter influência sobre a evolução social se elas próprias evoluírem e as mudanças que elas atravessam só podem ser explicadas por causas que nada têm de final Mas o que é mais convincente ainda que as considerações que precedem é a prática mesma dos fatos sociais Lá onde reina o finalismo reina também uma contingência maior ou menor pois não existem fins e muito menos meios que se imponham necessariamente a todos os homens ainda que os suponhamos situados nas mesmas circunstâncias Sendo dado um mesmo ambiente cada indivíduo conforme seu humor adaptase a ele à sua maneira que ele prefere a qualquer outra Um procurará modificálo para colocálo em harmonia com suas necessidades outro preferirá modificar a si mesmo e moderar seus desejos Para chegar a um mesmo objetivo quantos caminhos podem ser e são efetivamente seguidos Portanto se fosse verdade que o desenvolvimento histórico se fez em vista de fins claramente ou obscuramente sentidos os fatos sociais deveriam apresentar a mais infinita diversidade e qualquer comparação haveria de ser quase impossível Ora o contrário é que é a verdade Claro que os acontecimentos exteriores cuja trama constitui a parte superficial da vida social variam de um povo a outro Mas é assim que cada indivíduo tem sua história embora as bases da organização física e moral sejam as mesmas em todos Na verdade quando entramos um pouco em contato com os fenômenos sociais surpreendemonos ao contrário com a espantosa regularidade com que estes se reproduzem nas mesmas circunstâncias Mesmo as práticas mais minuciosas e aparentemente mais pueris repetemse com a mais espantosa uniformidade Uma cerimônia nupcial que parece puramente simbólica como o rapto da noiva verificase exatamente em toda parte em que há certo tipo familiar ligado ele próprio a toda uma organização política Os costumes mais bizarros como a couvade o levirato a exogamia etc observamse nos povos mais diversos e são sintomáticos de certo estado social O direito de testar aparece numa fase determinada da história e a partir das restrições mais ou menos consideráveis que o limitam podese dizer em que momento da evolução social nos encontramos Seria fácil multiplicar os exemplos Ora ria inexplicável essa generalidade das formas coletivas sese as causas finais tivessem em sociologia a preponderância que se atribui a elas Portanto quando se procura explicar um fenômeno social é preciso pesquisar separadamente a causa eficiente que o produz e a função que ele cumpre Servimonos da palavra função de preferência às palavras fim ou objetivo precisamente porque os fenômenos sociais não existem de modo geral tendo em vista os resultados úteis que produzem O que é preciso determinar é se há correspondência entre o fato considerado e as necessidades gerais do organismo social e em que consiste essa correspondência sem se preocupar em saber se ela foi intencional ou não Todas as questões de intenção aliás são demasiado subjetivas para poderem ser tratadas cientificamente Essas duas ordens de problemas não apenas devem ser separadas mas convém em geral tratar a primeira antes da segunda Esta ordem com efeito corresponde à dos fatos É natural investigar a causa de um fenômeno antes de tentar determinar seus efeitos Esse método é ainda mais lógico porquanto a primeira questão uma vez resolvida ajudará a resolver a segunda De fato o laço de solidariedade que une a causa ao efeito tem um caráter de reciprocidade que não foi suficientemente reconhecido Certamente o efeito não pode existir sem sua causa mas esta por sua vez tem necessidade de seu efeito É dela que o efeito tira sua energia mas ele também lha restitui eventualmente e em vista disso não pode desaparecer sem que ela disso se ressinta Por exemplo a reação social que constitui a pena é devida à intensidade dos sentimentos coletivos que o crime ofende mas por outro lado ela tem por função útil manter esses sentimentos no mesmo grau de intensidade pois estes não tardariam a se debilitar se as ofensas que sofrem não fossem castigadas Do mesmo modo à medida que o meio social tornase mais complexo e mais móvel as tradições e as crenças estabelecidas são abaladas adquirem um caráter mais indeterminado e mais flexível e as faculdades de reflexão se desenvolvem mas essas mesmas faculdades são indispensáveis para as sociedades e os indivíduos se adaptarem a um meio mais móvel e mais complexo À medida que os homens sào obrigados a fornecer um trabalho mais intenso os produtos desse trabalho tornamse mais numerosos e de melhor qualidade mas esses produtos mais abundantes e melhores são necessários para reparar o desgaste ocasionado por esse trabalho mais consideráveh Assim longe de a causa dos fenômenos sociais consistir numa antecipação mental da função que eles são chamados a desempenhar essa função consiste ao contrário pelo menos num bom número de casos em manter a causa preexistente da qual eles derivam portanto descobriremos mais facilmente a primeira se a segunda já for conhecida Mas ainda que só em segundo lugar devamos proceder à determinação da função ela não deixa de ser necessária para que a explicação do fenômeno seja completa Com efeito se a utilidade do fato não é aquilo que o faz existir em geral é preciso que ele seja útil para poder se manter Pois para ser prejudicial é suficiente que ele não tenha serventia uma vez que nesse caso ele custa sem produzir benefício algum Portanto se a generalidade dos fenômenos sociais tivesse esse caráter parasitário o orçamento do organismo estaria em déficit a vida social seria impossível Em conseqüência para proporcionar desta uma compreensão satisfatória é necessário mostrar como os fenômenos que formam sua substância concorrem entre si de maneira a colocar a sociedade em harmonia consigo mesma e com o exterior Certamente a fórmula usual que define a vida como uma correspondência entre o meio interno e o meio externo é apenas aproximada no entanto ela é verdadeira em geral e portanto para explicar um fato de ordem vital não basta explicar a causa da qual ele depende é preciso também ao menos na maior parte dos casos encontrar a parte que lhe cabe no estabelecimento dessa harmonia geral Distinguidas essas duas questões devemos determinar o método pelo qual elas devem ser resolvidas Ao mesmo tempo que é finalista o método seguido geralmente pelos sociólogos é essencialmente psicológico Essas duas tendências são solidárias uma da outra De fato se a sociedade não é senão um sistema de meios instituídos pelos homens tendo em vista certos fins esses fins só podem ser individuais pois antes da sociedade não podia haver senão indivíduos É portanto do indivíduo que emanam as idéias e as necessidades que determinaram a formação das sociedades e se é dele que tudo procede é necessariamente por ele que tudo deve se explicar Aliás não há nada na sociedade senão consciências particulares é nestas últimas portanto que se acha a fonte de toda a evolução social Por conseguinte as leis sociológicas só poderãoser um corolário das leis mais gerais da psicologia a explicação suprema da vida coletiva consistirá em mostrar como ela decorre da natureza humana em geral seja por dedução direta e sem observação prévia seja por associação à natureza humana depois de feita a observação Esses termos são mais ou menos textualmente os que Augusto Comte utiliza para caracterizar seu método Uma vez diz ele que o fenômeno social concebido em totalidade não é no fundo senão um simples desenvolvimento da humanidade sem nenhuma criarão de faculdades quaisquer tal como estabeleci anteriormente todas as disposições efetivas que a observação sociológica puder sucessivamente revelar deverão portanto se verificar pelo menos em germe nesse tipo primordial que a biologia construiu de antemão para a sociologia É que o fato dominante da vida social segundo ele é o progresso e por outro lado o progresso depende de um fator exclusivamente psíquico a saber a tendência que leva o homem a desenvolver cada vez mais sua natureza Os fatos sociais derivariam inclusive tão imediatamente da natureza humana que nas primeiras fases da história poderiam ser diretamente deduzidos sem necessidade de recorrer à observação9 É verdade que como Comte reconhece é impossível aplicar esse método dedutivo aos períodos mais avançados da evolução Mas essa impossibilidade é puramente prática Devese ao fato de a distância entre o ponto de partida e o ponto de chegada ser muito grande para que o espírito humano se resolvesse percorrêla sem guia não corresse o risco de se extraviaria Mas a relação entre as leis fundamentais da natureza humana e os resultados últimos do progresso não deixa de ser analítica As formas mais complexas da civilização não são senão vida psíquica desenvolvida Assim ainda que as teorias da psicologia não sejam suficientes como premissas ao raciocínio sociológico elas são a pedra de toque capaz de provar sozinha a validade das proposições indutivamente estabelecidas Nenhuma lei de sucessão social diz Comte indicada pelo método histórico mesmo com toda a autoridade possível deverá ser finalmente admitida senão após ter sido racionalmente ligada de uma maneira direta ou indireta mas sempre incontestável à teoria positiva da natureza humana Portanto é sempre a psicologia que terá a última palavra Tal é igualmente o método seguido por Spencer Segundo ele os dois fatores primários dos fenômenos sociais são o meio cósmico e a constituição física e moral do indivíduoi Ora o primeiro não pode ter influência sobre a sociedade a não ser através do segundo que acaba sendo assim o motor essencial da evolução social Se a sociedade se forma é para permitir ao indivíduo realizar sua natureza e todas as transformações pelas quais ela passou não têm como único objeto tornar essa realização mais fácil e mais completa É em virtude desse princípio que atytes de proceder a alguma pesquisa sobre a organização social Spencer acreditou dever dedicar todo o primeiro tomo de seus Princípios de sociologia ao estudo do homem primitivo físico emocional e intelectual A ciência da sociologia diz ele parte das unidades sociais submetidas às condições que vimos constituídas física emocional e intelectualmente e de posse de certas idéias cedo adquiridas e dos sentimentos correspondentes E é nestes dois sentimentos o temor dos vivos e o temor dos mortos que ele encontra a origem do governo político e do governo religioso Ele admite é verdade que uma vez formada a sociedade reage sobre os indivíduos Mas disso não se segue que ela tenha o poder de engendrar diretamente o menor fato social ela não tem eficácia causal desse ponto de vista a não ser por intermédio das mudanças que determina no indivíduo Portanto é sempre da natureza humana seja primitiva seja derivada que tudo decorre Aliás a ação que o corpo social exerce sobre seus membros nada pode ter de específico já que os fins políticos nada são em si mesmos sendo uma simples expressão resumida dos fins individualista Ela só pode ser portanto uma espécie de retomo da atividade privada a si própria Sobretudo não se percebe em que pode consistir tal ação nas sociedades industriais que têm precisamente por objeto restituir o indivíduo a si mesmo e a seus impulsos naturais desembaraçandoo de toda coerção social Tal princípio não está apenas na base dessas grandes doutrinas de sociologia geral ele inspira igualmente um número muito grande de teorias particulares É assim que se explica a organização doméstica pelos sentimentos a que os pais têm em relação aos filhos e os segundos aos primeiros a instituição do casamento pelas vantagens que apresenta para os esposos e sua descendência a pena pela cólera provocada no indivíduo por toda lesão grave a seus interesses Toda a vida econômica tal como a concebem e a explicam os economistas sobretudo os da escola ortodoxa depende em última instância deste fator puramente individual o desejo de riqueza Tratase de explicar a moral Fazse dos deveres do indivíduo para consigo mesmo a base da ética A religião Vêse nela um produto das impressões que as grandes forças da natureza ou certas personalidades eminentes despertam no homem etc Mas tal método só é aplicável aos fenômenos sociológicos desnaturando os Para ter a prova disso basta reportarse à definição que demos desses fenômenos Visto que sua característica essencial consiste no poder que eles têm de exercer de fora uma pressão sobre as consciências individuais concluise que eles não derivam destas e por conseguinte a sociologia não é um corolário da psicologia Esse poder coercitivo testemunha que eles exprimem uma natureza diferente da nossa uma vez que só penetram em nós pela força ou pelo menos pesando mais ou menos sobre nós Se a vida social fosse apenas um prolongamento do ser individual não a veríamos remontar deste modo à sua fonte e invadiIa impetuosamente Se a autoridade diante da qual se inclina o indivíduo quando este age sente ou pensa socialmente o domina a tal ponto concluise que ela é um produto de forças que o superam e que ele não poderia conseqüentemente explicar Não é dele que pode provir essa pressão exterior que ele sofre portanto não é o que se passa dentro dele que pode explicála É verdade que não somos incapazes de coagir a nós mesmos podemos conter nossas tendências nossos hábitos até mesmo nossos instintos e deter seu desenvolvimento por um ato de inibição Mas os movimentos inibidores não poderiam ser confundidos com aqueles que constituem a coerção social O processo dos primeiros é centrífugo o dos segundos centrípeto Uns são elaborados na consciência individual e tendem em seguida a exteriorizarse outros são primeiramente exteriores ao indivíduo e tendem em seguida a modelá lo desde fora à sua imagem A inibição se quiserem é o meio pelo qual a coerção social produz seus efeitos psíquicos ela não é essa coerção Ora descartado o indivíduo resta apenas a sociedade é portanto na natureza da própria sociedade que se deve buscar a explicação da vida social Como ela supera infinitamente o indivíduo tanto no tempo como no espaço concebese com efeito que seja capaz de imporlhe as maneiras de agir e de pensar que consagrou por sua autoridade Essa pressão sinal distintivo dos fatos sociais é aquela que todos exercem sobre cada um Mas dirão visto que os únicos elementos de que é formada a sociedade são indivíduos a origem primeira dos fenômenos sociológicos só pode ser psicológica Raciocinando deste modo podese também facilmente estabelecer que os fenômenos biológicos se explicam analiticamente pelos fenômenos inorgânicos Com efeito é bastante certo que na célula viva há apenas moléculas de matéria bruta Só que estas se encontram ali associadas e essa associação é que é a causa dos fenômenos novos que caracterizam a vida e cujo germe é impossível descobrir em qualquer um dos elementos associados Um todo não é idêntico à soma de suas partes ele é alguma outra coisa cujas propriedades diferem daquelas que apresentam as partes de que é formado A associação não é como se acreditou algumas vezes um fenômeno por si mesma estéril que consiste simplesmenteem colocar em relações exteriores fatos realizados e propriedades constituídas Não é ela ao contrário a fonte de todas as novidades que se produziram sucessivamente no curso da evolução geral das coisas Que diferenças existem entre os organismos inferiores e os demais entre o ser vivo organizado e o simples plastídio entre este e as moléculas inorgânicas que o compõem senão diferenças de associação Todos esses seres em última análise decompõemse em elementos da mesma natureza mas esses elementos são aqui justapostos ali associados aqui associados de uma maneira ali de outra É lícito inclusive perguntar se essa lei não penetra até o mundo mineral e se as diferenças que separam os corpos inorganizados não têm a mesma origem Em virtude desse princípio a sociedade não é úma simples soma de indivíduos mas o sistema formado pela associação deles representa uma realidade específica que tem seus caracteres próprios Certamente nada de coletivo pode se produzir se consciências particulares não são dadas mas essa condição necessária não é suficiente É preciso também que essas consciências estejam associadas combinadas e combinadas de certa maneira dessa combinação que resulta a vida social e por conseguinte é essa combinação que a explica Ao se agregarem ao se penetrarem ao se fundirem as almas individuais dão origem a um ser psíquico se quiserem mas que constitui uma individualidade psíquica de um gênero novo Portanto é na natureza dessa individualidade não na das unidades componentes que se devem buscar as causas próximas e de terminantes dos fatos que nela se produzem O grupo pensa sente e age de maneira bem diferente do que o fariam seus membros se estivessem isolados Assim se partirmos desses últimos nada poderemos compreender do que se passa no grupo Em uma palavra há entre a psicologia e a sociologia a mesma solução de continuidade que entre a biologia e as ciências físicoquímicas Em conseqüência toda vez que um fenômeno social é diretamente explicado por um fenômeno psíquico podese ter a certeza de que a explicação é falsa Responderão talvez que se a sociedade uma vez formada é de fato a causa próxima dos fenômenos sociais as causas que determinaram sua formação são de natureza psicológica Concedem que quando os indivíduos estão associados sua associação pode dar origem a uma vida nova mas dirão que ela só pode ocorrer por razões individuais Todavia em realidade por mais longe que se remonte na história o fato da associação é o mais obrigatório de todos pois ele é a fonte de todas as outras obrigações Por meu nascimento estou obrigatoriamente ligado a um povo determinado Dizse que daí por diante uma vez adulto dou minha aquiescência a essa obrigação pelo simples fato de continuar a viver em meu país Mas que importa Essa aquiescência não retira ao fato seu caráter imperativo Uma pressão aceita e suportada de boa vontade não deixa de ser uma pressão Aliás qual pode ser a importância de tal adesão Em primeiro lugar ela é forçada pois na imensa maioria dos casos nos é material e moralmente impossível despojarnos de nossa nacionalidade tal mudança e inclusive considerada geralmente uma apostasia Em segundo lugar ela não pode concernir ao passado que não pôde ser consentido e que no entanto determina o presente eu não quis a educação que recebi ora é ela que mais do que qualquer outra causa me fixa ao solo natal Enfim ela não poderia ter valor moral em relação ao futuro na medida em que este é desconhecido Nem sequer conheço todos os deveres que podem me incumbir um dia ou outro em minha qualidade de cidadão como poderia eu aquiescer a eles de antemão Ora tudo o que é obrigatório conforme demonstramos tem sua fonte fora do indivíduo Assim enquanto não sairmos da história o fato da associação apresentará o mesmo caráter que os demais e conseqüentemente explicase da mesma maneira Por outro lado como todas as sociedades nasceram de outras sociedades sem solução de continuidade podemos estar certos de que no curso de toda a evolução social não houve um momento em que os indivíduos tenham realmente necessitado deliberar para saber se entrariam ou não na vida coletiva e se nesta e não naquela Para que a questão pudesse se colocar seria preciso remontar até as origens primeiras de toda sociedade Mas as soluções sempre duvidosas que podem ser dadas a tais problemas de modo nenhum poderiam afetar o método segundo o qual devem ser tratados os fatos dados na história Não precisamos portanto discutiIas Mas seria um estranho equívoco sobre nosso pensamento se do que precede tirassem a conclusão de que a sociologia para nós deve ou mesmo pode fazer abstração do homem e de suas faculdades Ao contrário não há dúvida de que os caracteres gerais da natureza humana entram no trabalho de elaboração de que resulta a vida social Só que não são eles que a suscitam nem que lhe dão sua forma especial eles apenas a tornam possível As representações as emoções as tendências coletivas não têm por causas geradoras certos estados da consciência dos indivíduos mas sim as condições em que se encontra o corpo social em seu conjunto Certamente estas só podem se realizar se as naturezas individuais não forem refratárias a elas mas as naturezas individuais são apenas a matéria indeterminada que o fator social determina e transforma Sua contribuição consiste exclusivamente em estados muito gerais em predisposições vagas e por conseguinte plásticas que por si mesmas não poderiam adquirir as formas definidas e complexas que caracterizam os fenômenos sociais se outros agentes não interviessem Que abismo por exemplo entre os sentimentos que o homem experimenta diante de forças superiores à sua e a instituição religiosa com suas crenças suas práticas tão variadas e complicadas sua organização material e moral entre as condições psíquicas da simpatia que dois seres do mesmo sangue sentem um pelo outrols e esse emaranhado de regras jurídicas e morais que determinam a estrutura da família as relações das pessoas entre si das coisas com as pessoas etc Vimos que mesmo quando a sociedade se reduz a uma multidão não organizada os sentimentos coletivos que nela se formam podem não apenas não se assemelhar mas ser opostos à média dos sentimentos individuais Quão mais considerável ainda deve ser a distância quando a pressão que o indivíduo sofre é a de uma sociedade regular na qual se acrescenta à ação dos contemporâneos a das gerações anteriores e da tradição Uma explicação puramente psicológica dos fatos sociais só pode portanto deixar escapar tudo o que eles têm de específico isto é de social O que mascarou aos olhos de tantos sociólogos a insuficiência desse métod é que frèqüentemente tomando 0 efeito pela causa lhes ocorreu atribuir como condições determinantes dos fenômenos sociais certos estados psíquicos relativamente definidos e especiais mas que na verdade são a conseqüência deles Assim considerouse inato no homem certo sentimento de religiosidade um certo mínimo de ciúme sexual de piedade filial de amor paterno etc e deste modo se quis explicar a religião o casamento a família Mas a história mostra que essas inclinações longe de serem inerentes à natureza humana ou estão totalmente ausentes em certas circunstâncias sociais ou de uma sociedade a outra apresentam tais variações que o resíduo obtido ao se eliminarem todas essas diferenças o único a poder ser considerado como de origem psicológica se reduz a algo vago e esquemático que deixa a uma distância infinita os fatos a serem explicados É que esses sentimentos longe de serem a base da organização coletiva resultam dela Inclusive não está de todo provado que a tendência à sociabilidade tenha sido desde a origem um instinto congênito ao gênero humano É muito mais natural ver nele um produto da vida social que lentamente se organizou em nós pois é um fato de observação que os animais são sociáveis ou não conforme as disposições de seus hábitats os obriguem à vida em comum ou dela os afastem E cabe ainda acrescentar que mesmo entre essas inclinações mais determinadas e a realidade social a distância permanece considerável Existe aliás um meio de isolar mais ou menos completamente o fator psicológico de maneira a poder precisar a extensão de sua ação é saber de que forma a raça afeta a evolução social Com efeito os caracteres étnicos são de ordem orgânicopsíquica A vida social deve portanto variar quando eles variam se os fenômenos psicológicos tiverem sobre a sociedade a eficácia causal que lhes atribuem Ora não conhecemos nenhum fenômeno social que esteja colocado sob a dependência inconteste da raça Certamente não poderíamos atribuir a essa proposição o valor cie uma lei mas podemos pelo menos afirmála como um fato constante de nossa prática Formas de organização as mais diversas verificamse em sociedades da mesma raça enquanto similitudes impressionantes observamse entre sociedades de raças diferentes A cidade existiu tanto entre os fenícios como entre os romanos e os gregos vemola em via de formação entre os cabilas A família patriarcal era quase tão desenvolvida entre os judeus quanto entre os hindus mas ela não se verifica entre os eslavos que não obstante são de raça ariana Em compensação o tipo familiar que aí se encontra também existe entre os árabes A família materna e o clã se observam em toda parte Certos detalhes das provas judiciárias das cerimônias nupciais são os mesmos nos povos mais dessemelhantes do ponto de vista étnico Se isso ocorre é porque a contribuição psíquica é demasiado geral para predeterminar o curso dos fenômenos sociais Como essa contribuição não implica que haja uma forma social e não outra ela não pode explicar nenhuma É verdade que há um certo número de fatos que se costuma atribuir à influência da raça É assim que se explica por exemplo por que o desenvolvimento das letras e das artes foi tão rápido e intenso em Atenas e tão lento e medíocre em Roma Mas essa interpretação dos fatos apesar de clássica jamais foi metodicamente demonstrada ela parece tirar quase toda a sua autoridade da mera tradição Não se examinou sequer se seria possível uma explicação sociológica dos mesmos fenômenos e estamos convencidos de que esta poderia ser tentada com sucesso Em suma quando se relaciona com tal rapidez o caráter artístico da civilização ateniense a faculdades estéticas congênitas procedese mais ou menos como fazia a Idade Média quando explicava o fogo pelo flogisto e os efeitos do ópio por sua virtude dormitava Enfim se realmente a evolução social tivesse sua origem na constituição psicológica do homem não se percebe como ela teria podido se produzir Pois então seria preciso admitir que ela tem por motor algum impulso interior à natureza humana Mas qual poderia ser esse impulso Seria aquela espécie de instinto de que fala Comte e que leva o homem a realizar cada vez mais sua natureza Mas isso é responder à pergunta com a pergunta e explicar o progresso por uma tendência inata ao progresso verdadeira entidade metafísica cuja existência de resto nada demonstra pois as espécies animais inclusive as mais elevadas de maneira nenhuma são movidas pela necessidade de progredir e mesmo entre as sociedades humanas há muitas que se comprazem em permanecer indefinidamente estacionárias Seria esse impulso como parece acreditar Spencer a necessidade de uma maior felicidade que as formas cada vez mais complexas da civilização estariam destinadas a realizar sempre mais completamente Seria preciso então estabelecer que a felicidade aumenta com a civilização e expusemos alhures todas as dificuldades que essa hipótese levantar Não é tudo Ainda que um ou outro desses dois postulados devesse ser admitido nem por isso o desenvolvimento histórico se tornaria inteligível pois a explicação resultante seria puramente finalista e mostramos mais acima que os fatos sociais assim como todos os fenômenos naturais não são explicados pelo simples fato de se mostrar que eles servem a algum fim Quando se provou que as organizações sociais cada vez mais elaboradas que se sucederam ao longo da história tiveram por efeito satisfazer sempre mais esta ou aquela de nossas inclinações fundamentais nem por isso se fez compreender como elas se produziram O fato de serem úteis não nos ensina o que as fez existir Ainda que se explicasse como chegamos a imaginálas traçando como que o plano antecipado capaz de nos representar os serviços que poderíamos esperar delas e o problema já é difícil o desejo do qual elas seriam assim óobjeto não teria a virtude de tirálas do nada Em uma palavra admitindose que essas inclinações são os meios necessários para atingir o objetivo perseguido a questão permanece inteira como isto é de que e através de que esses meios foram constituídos Chegamos portanto à regra seguinte A causa determinante de um fato social deve ser buscada entre os fatos sociais antecedentes e não entre os estados da consciência individual Por outro lado concebese facilmente que tudo o que precede se aplica tanto à determinação da função quanto à da causa A função de um fato social não pode ser senão social isto é ela consiste na produção de efeitos socialmente úteis Certamente pode ocorrer e acontece de fato que por via indireta o fato social sirva também ao indivíduo Mas esse resultado feliz não é sua razão de ser imediata Podemos portanto completar a proposição precedente dizendo A função de um fato social deve sempre ser buscada na relação que ele mantém com algum fim social Foi por terem os sociólogos ignorado freqüentente essa regra e considerado os fenômenos sociais de um ponto de vista demasiado psicológico que suas teorias afiguramse a numerosos espíritos excessivamente vagas vacilantes e distantes da natureza especial das coisas que eles crêem explicar O historiador em particular que vive na intimidáde da realidade social não pode deixar de sentir fortemente o quanto essas interpretações demasiado gerais são incapazes de coincidir com os fatos e certamente foi isso que produziu em parte a desconfiança que a história seguidamente demonstra em relação à sociologia O que não quer dizer por certo que o estudo dos fatos psíquicos não seja indispensável ao sociólogo Se a vida coletiva não deriva da vida individual uma e outra estão intimamente relacionadas se a segunda não pode explicar a primeira ela pode pelo menos facilitar sua explicação Conforme mostramos é incontestável em primeiro lugar que os fatos sociais são produzidos por uma elaboração sui generís de fatos psíquicos Além disso essa própria elaboração não deixa de ter analogia com a que se produz em cada consciência individual e que transforma progressivamente os elementos primários sensações reflexos instintos de que ela é originalmente constituída Não é sem razão que se pôde dizer do eu que ele próprio constituía uma sociedade tanto quanto o organismo ainda que de outrá maneira e os psicólogos há muito já mostraram a importância do fator associarão para a explicação da vida do espírito Uma cultura psicológica mais ainda que uma cultura biológica constitui portanto para o sociólogo uma propedêutica necessária mas ela só lhe será útil se ele libertarse dela após têla recebido e a superar completandoa por uma cultura especialmente sociológica É preciso que ele renuncie a fazer da psicologia de certo modo o centro de suas operações o ponto de partida e de chegada de suas incursões no mundo social e que se estabeleça no núcleo mesmo dos fatos sociais a fim de observálos de frente e sem intermediário solicitando à ciência do indivíduo apenas uma preparação geral e se preciso úteis sugestões Uma vez que os fatos de morfologia social são da mesma natureza que os fenômenos fisiológicos eles devem se explicar segundo a mesma regra que acabamos de enunciar Todavia de tudo o que precede resulta que eles desempenham um papel preponderante na vida coletiva e por conseguinte nas explicações sociológicas Com efeito se a condição determinante dos fenômenos sociais consiste como mostramos no fato mesmo da associação eles devem variar com as formas dessa associação isto é conforme as maneiras como são agrupadas as partes constituintes da sociedade Por outro lado já que o conjunto determinado que os elementos de toda natureza que entram na composição de uma sociedade formam por sua reunião constitui o meio interno dessa sociedade assim como o conjunto dos elementos anatômicos pela maneira como estão dispostos no espaço constitui o meio interno dos organismos poderemos dizer A origem primeira de todo processo social de alguma importância deve ser buscada na constituirão do meio social interno É possível até precisar ainda mais De fato os elementos que compõem esse meio são de dois tipos há coisas e pessoas Entre as coisas é preciso incluir além dos objetos materiais que são incorporados à sociedade os produtos da atividade social anterior o direito constituído os costumes estabelecidos os monumentos literários artísticos etc Mas é claro que não é nem de uns nem de outros que pode provir o impulso que determina as transformações sociais pois eles não contêm nenhuma capacidade motora Seguramente há que leválos em consideração nas explicações que tentarmos Com efeito eles pesam de alguma forma sobre a evolução social cuja velocidade e mesmo a direção variam conforme o que forem mas eles não possuem nada daquilo que é necessário para colocála em movimento Eles são a matéria sobre a qual se aplicam as forças vivas da sociedade mas por si mesmos não liberam nenhuma força viva Resta portanto como fator ativo o meio propriamente humano O esforço principal do sociólogo será portanto procurar descobrir as diferentes propriedades desse meio suscetíveis de exercer uma ação sobre o curso dos fenômenos sociais Até o presente encontramos duas séries de caracteres que correspondem de uma maneira eminente a essa condição o número das unidades sociais ou como dissemos também o volume da sociedade e o grau de concentração da massa ou o que denominamos a densidade dinâmica Por esta última palavra convém entender não o estreitamento puramente material do agregado que não pode ter efeito se os indivíduos ou melhor os grupos de indivíduos permanecem separados por vazios morais mas o estreitamento moral do qual o precedente não é senão o auxiliar e de maneira gritante geral a conseqüência A densidade dinâmica pode ser definida para um volume igual em função do número de indivíduos que estão efetivamente em relações não apenas comerciais mas morais ou seja que não apenas trocam serviços ou se fazem concorrência mas que vivem uma vida comum Pois como as relações puramente econômicas deixam os homens exteriores uns aos outros essas relações podem ser muito freqüentes sem com isso participarem da mesma existência coletiva Os negócios contratados por cima das fronteiras que separam os povos não fazem com que essas fronteiras não existam Ora a vida comum só pode ser afetada pelo número dos que nela colaboram eficazmente Por isso o que exprime melhor a densidade dinâmica de um povo é o grau de coalescência dos segmentos sociais Pois se cada agregado parcial forma um todo uma individualidade distinta separada das outras por uma barreira é porque a ação de seus membros em geral permanece aí localizada se ao contrário essas sociedades parciais se confundem todas no seio da sociedade total ou tendem a nela se confundir é porque na mesma medida o círculo da vida social se ampliou Quanto à densidade material se entendermos por isso não apenas o número de habitantes por unidade de superfície mas o desenvolvimento das vias de comunicação e de transmissão ela marcha ordinariamente no mesmo passo que a densidade dinâmica e em geral pode servir para medila Pois se as diferentes partes da população tendem a se aproximar é inevitável que elas abram caminhos que permitam essa aproximação e por outro lado só podem se estabelecer relações entre pontos distantes da massa social se essa distância não for um obstáculo isto é se ela de fato for suprimida Há no entanto exceções e incorreríamos em sérios erros se julgássemos sempre a concentração moral de uma sociedade com base no grau de concentração material que ela apresenta As estradas as vias férreas etc podem servir mais ao movimento dos negócios do que à fusão das populações que elas então só exprimem muito imperfeitamente É o caso da Inglaterra cuja densidade material é superior à da França e onde não obstante a coalescência dos segmentos é muito menos avançada como demonstra á persistência do espírito local e da vida regional Mostramos alhures como todo aumento no volume e na densidade dinâmica das sociedades ao tomar a vida social mais intensa ao estender o horizonte que cada indivíduo abarca com seu pensamento e preenche com sua ação modifica profundamente as condições fundamentais da existência coletiva Não precisamos falar de novo da aplicação que fizemos então desse princípio Acrescentemos apenas que ele nos serviu para tratar não somente a questão ainda muito geral que era o objeto daquele estudo mas muitos outros problemas mais específicos e que pudemos assim verificar sua exatidão por um número já respeitável de experiências Todavia estamos longe de pensar ter descoberto todas as particularidades do meio social suscetíveis de desempenhar um papel na explicação dos fatos sociais Tudo o que podemos dizer é que essas são as únicas que percebemos e que não fomos levados a buscar outras Mas essa espécie de preponderância que atribuímos ao meio social e mais particularmente ao meio humano não implica que se deva ver aí algo como um fato último e absoluto para além do qual não é preciso remontar É evidente ao contrário que o estado no qual se encontra esse meio a cada momento da história depende ele próprio de causas sociais algumas inerentes à própria sociedade enquanto outras se devem às ações e reações entre essa sociedade e suas vizinhas Aliás a ciência não conhece causas primeiras no sentido absoluto da palavra Para ela um fato é primário simplesmente quando for suficientemente geral para explicar um grande número de outros fatos Ora o meio social é certamente um fator desse gênero pois as mudanças que nele se produzem sejam quais forem suas causas repercutem em todas as direções do organismo social e não podem deixar de afetar em maior ou menor grau todas as suas funções O que acabamos de dizer do meio geral da sociedade pode ser dito dos meios específicos a cada um dos grupos particulares que ela encerra Por exemplo conforme a família for mais ou menos volumosa mais ou menos voltada para si mesma muito diferente será a vida doméstica Do mesmo modo se as corporações profissionais se organizarem de maneira a que cada uma delas se ramifique em toda a extensão do território em vez de permanecer encerrada como outrora nos limites de uma cidade a ação que irão exercer será muito diferente da que exerceram outrora De uma maneira mais geral a vida profissional será completamente diferente se o meio próprio a cada profissão for fortemente constituído ou se sua trama for frouxa como é hoje Todavia a ação desses meios particulares não poderia ter a importância do meio geral pois eles próprios submetemse à influência deste último É sempre a este que se deve voltar É a pressão que ele exerce sobre os grupos parciais que faz variar a constituição destes Tal concepção do meio social como fator determinante da evolução coletiva é da mais alta importância Pois se a rejeitarmos a sociologia será incapaz de estabelecer qualquer relação de causalidade De fato descartada essa ordem de causas não há condições concomitantes das quais possam depender os fenômenos sociais pois se o meio social externo isto é aquele formado pelas sociedades ao redor é suscetível de exercer alguma ação só a exerce sobre as funções que têm por objeto o ataque e a defesa além disso ele só pode fazer sentir sua influência por intermédio do meio social interno As principais causas do desenvolvimento histórico não estariam portanto entre as coisas circunfusas mas estariam todas no passado Elas próprias fariam parte desse desenvolvimento do qual constituiriam simplesmente fases mais antigas Os acontecimentos atuais da vida social derivariam não do estado atual da sociedade más dos acontecimentos anteriores dos precedentes históricos e as explicações sociológicas consistiriam exclusivamente em ligar o presente ao passado Isso pode parecer de fato suficiente Não se costuma dizer que a história tem precisamente por objeto encadear os acontecimentos segundo sua ordem de sucessão Mas é impossível conceber de que maneira o estado em que a civilização se encontra num momento dado poderia ser a causa determinante do estado seguinte As etapas que a humanidade percorre sucessivamente não se engendram umas às outras Compreendese bem que os progressos realizados numa época determinada na ordem jurídica econômica política etc tornem possíveis novos progressos mas em que os primeiros predeterminam os segundos Eles são um ponto de partida que permite ir mais adiante mas o que é que nos incita a ir mais adiante Seria preciso admitir então uma tendência interna que leva a humanidade a ultrapassar constantemente os resultados adquiridos seja para se realizar completamente seja para aumentar sua felicidade e o objeto da sociologia seria descobrir a ordem segundo a qual se desenvolveu essa tendência Mas sem voltar às dificuldades que semelhante hipótese implica a lei que exprime esse desenvolvimento nada teria de causal Uma relação de causalidade com efeito só pode se estabelecer entre dois fatos dados ora tal tendência que se supõe ser a causa desse desenvolvimento não é dada é apenas postulada e construída pelo espírito com base nos efeitos que se atribuem a ela Tratase de uma espécie de faculdade motora que imaginamos sob o movimento a fim de explicálo mas a causa eficiente de um movimento só pode ser um outro movimento não uma virtualidade desse gênero Portanto tudo o que obtemos experimentalmente aqui é uma série de mudanças entre as quais não existe vínculo causal O estado antecendente não produz o conseqüente mas a relação entre eles é exclusivamente cronológica Assim nessas condições toda previsão científica é impossível Podemos perfeitamente dizer como as coisas se sucederam até o presente não em que ordem elas se sucederão daqui por diante porque a causa de que supostamente dependem não é cientificamente determinada nem determinável Geralmente é verdade admitese que a evolução prosseguirá no mesmo sentido do passado mas isso em virtude de um simples postulado Nada nos garante que os fatos realizados exprimam de maneira bastante completa a natureza dessa tendência para que se possa prejulgar o termo a que ela aspira com base naqueles pelos quais passou sucessivamente Inclusive por que seria retilínea a direção que ela segue e imprime Eis aí de fato a razão de o número das relações causais estabelecidas pelos sociólogos ser tão restrito Com poucas exceções das quais Montesquieu é o mais ilustre exemplo a antiga filosofia da história limitouse unicamente a descobrir o sentido geral em que se orienta a humanidade sem procurar ligar as fases dessa evolução a alguma condição concomitante Por mais que Comte tenha prestado alguns grandes serviços à filosofia social os termos nos quais ele coloca o problema sociológico não diferem dos precedentes Assim sua famosa lei dos três estados nada possui de uma relação de causalidade ainda que fosse exata ela não é e não pode ser mais que empírica Tratase de uma visão sumária da história transcorrida do gênero humano É muito arbitrariamente que Comte considera o terceiro estado como o estado definitivo da humanidade Quem nos diz que não surgirá outro no futuro Do mesmo modo a lei que domina a sociologia de Spencer não parece ser de outra natureza Ainda que fosse verdade que tendemos atualmente a buscar nossa felicidade numa civilização industrial nada assegura que posteriormente não venhamos a buscála em outra parte Ora o que faz a generalidade e a persistência desse método é que na maioria das vezes se viu no meio social um meio pelo qual o progresso se realiza não a causa que o determina Por outro lado é igualmente em relação a esse mesmo meio que se deve medir o valor útil ou como dissemos a função dos fenômenos sociais Entre as mudanças de que é a causa servem aquelas que estão em relação com o estado no qual esse meio se encontra já que ele é a condição essencial da existência coletiva Também desse ponto de vista acreditamos a concepção que acabamos de expor é fundamental pois só ela permite explicar como o caráter útil dos fenômenos sociais pode variar sem no entanto depender de arranjos arbitrários Se dê fato representase a evolução histórica como movida por uma espécie de vis a tergo força propulsora que impele os homens para a frente já que uma tendência motora só pode ter um objetivo e apenas um não pode haver senão um ponto de referência em relação ao qual se calcula a utilidade ou a nocividade dos fenômenos sociais Disso resulta que só pode haver um único tipo de organização social perfeitamente adequado à humanidade e que as diferentes sociedades históricas são apenas aproximações sucessivas desse modelo único Não é necessário mostrar o quanto semelhante simplismo é hoje inconciliável com a variedade e a complexidade reconhecidas das formas sociais Se ao contrário a conveniência ou não das instituições só puder ser estabelecida em relação a um meio dado e corno esses meios são diversos haverá então uma diversidade de pontos de referência e por conseguinte de tipos que embora qualitativamente distintos uns dos outros estão todos igualmente fundados na natureza dos meios sociais A questão que acabamos de tratar está assim estreitamente vinculada à que diz respeito à constituição dos tipos sociais Se há espécies sociais é porque a vida coletiva depende antes de tudo de condições concomitantes que apresentam uma certa diversidade Se ao contrário as principais causas dos acontecimentos sociais estivessem todas no passado cada povo não seria mais que o prolongamento daquele que o precedeu e as diferentes sociedades perderiam sua individualidade para se tornarem apenas momentos diversos de um mesmo e único desenvolvimento Uma vez que por outro lado a constituição do meio social resulta do modo de composição dos agregados sociais e que essas duas expressões são elas próprias no fundo sinônimas temos agora a prova de que não há caracteres mais essenciais do que aqueles que atribuímos como base para a classificação sociológica Enfim devese compreender agora melhor do que antes o quanto seria injusto apoiarse nas palavras condições exteriores e meio para acusar nosso método e buscar as fontes da vida fora do que é vivo Muito pelo contrário as considerações que acabam de ser lidas resumemse na idéia de que as causas dos fenômenos sociais são internas à sociedade É antes a teoria que deriva a sociedade do indivíduo que se poderia justamente recriminar por querer tirar o interior do exterior já que ela explica o ser social por outra coisa que não ele mesmo e por querer tirar o mais do menos já que ela empreende deduzir o todo da parte Os princípios que precedem ignoram tão pouco 0 caráter espontâneo de todo vivente que se aplicados à biologia e à psicologia deverseá admitir que também a vida individual se elabora por inteiro no interior do indivíduo Do grupo de regras que acabam de ser estabelecidas resulta certa concepção da sociedade e da vida coletiva Sobre esse ponto duas teorias contrárias dividem os espíritos Para uns como Hobbes e Rousseau há solução de continuidade entre o indivíduo e a sociedade O homem é portanto naturalmente refratário à vida comum somente forçado pode resignarse a ela Os fins sociais não são simplesmente o ponto de encontro dos fins individuais são antes contrários a eles Assim para fazer o indivíduo buscar esses fins é necessário exercer sobre ele uma coerção e é na instituição e na organização dessa coerção que consiste por excelência a obra social Só que como o indivíduo é visto como a única e exclusiva realidade do reino humano essa organização que tem por objeto constrangêlo e contêlo não pode ser concebida senão como artificial Ela não está fundada na natureza uma vez que se destina a fazerlhe violência impedindoa de produzir suas conseqüências antisociais Tratase de uma obra de arte de uma máquina construída inteiramente pela mão dos homens e que como todos os produtos desse gênero é o que é apenas porque os homens a quiseram assim um decreto da vontade a criou um outro decreto pode transformála Nem Hobbes nem Rousseau parecem ter percebido tudo o que há de contraditório em admitir que o indivíduo seja ele próprio o autor de uma máquina que tem por tarefa essencial dominálo e constrangêlo ou pelo menos lhes pareceu que para fazer desaparecer essa contradição bastava dissimulála aos olhos daqueles que são suas vítimas pelo hábil artifício do pacto social Foi na idéia contrária que se inspiraram tanto os teóricos do direito natural quanto os economistas e mais recentemente Spencerzz Para eles a vida social é essencialmente espontânea e a sociedade uma coisa natural Mas se conferem a ela esse caráter não é porque lhe reconheçam uma natureza específica é porque encontram sua base na natureza do indivíduo Do mesmo modo que os precedentes pensadores eles não vêem na sociedade um sistema de coisas que exista pôr si mesmo em virtude de causas que lhe sejam específicas Mas enquanto aqueles a concebiam apenas como um arranjo convencional que nenhum vínculo prende à realidade e que se sustenta por assim dizer no ar estes lhe dão por base os instintos fundamentais do coração humano O homem tende naturalmente à vida política doméstica religiosa às trocas etc e é dessas inclinações naturais que deriva a organização social Em conseqüência sempre que for normal esta não tem necessidade de imporse Quando ela recorre à coerção é porque não é o que deve ser ou porque as circunstâncias são anormais Em princípio basta deixar as forças individuais desenvolveremse em liberdade para que elas se organizem socialmente Nenhuma dessas duas doutrinas é a nossa Certamente fazemos da coerção a característica de todo fato social Só que essa coerção não resulta de uma maquinaria mais ou menos engenhosa destinada a mascarar aos homens as armadilhas nas quais eles próprios se pegaram Ela simplesmente se deve ao fato de o homem estar em presença de uma força que o domina e diante da qual se curva mas essa força é natural Ela não deriva de um arranjo convencional que a vontade humana acrescentou completamente ao real ela provém das entranhas mesmas da realidade ê o produto necessário de causas dadas Assim para fazer o indivíduo submeterse a ela de boa vontade não é preciso recorrer a nenhum artifício basta fazêlo tomar consciência de seu estado de dependência e de inferioridade naturais quer ele faça disso uma representação sensível e simbólica pela religião quer chegue a formar uma noção adequada e definida pela ciência Como a superioridade que a sociedade tem sobre ele não é simplesmente física mas intelectual e moral ela nada tem a temer do livre exame contanto que deste se faça um justo emprego A reflexão fazendo o homem compreender o quanto o ser social é mais rico mais complexo e mais duradouro que o ser individual não pode deixar de revelarlhe as razões inteligíveis da subordinação que dele é exigida e dos sentimentos de apego e de respeito que o hábito fixou em seu coração Portanto somente uma crítica singularmente superficial poderia acusar nossa concepção da coerção social de reeditar as teorias de Hobbes e de Maquiavel Mas se contrariamente a esses filósofos dizemos que a vida social é natural não é por encontrarmos sua fonte na natureza do indivíduo é porque ela deriva diretamente do ser coletivo que é por si mesmo uma natureza sui generis é porque ela resulta dessa elaboração especial à qual estão submetidas as consciências particulares devido à sua associação e da qual se desprende uma nova forma de existênciaz Portanto se reconhecemos com uns que a vida social apresentase ao indivíduo sob o aspecto da coerção admitimos com os outros que ela é um produto espontâneo da realidade e o que liga logicamente esses dois elementos aparentemente contraditórios é que a realidade da qual ela emana supera o indivíduo Vale dizer que as palavras coerção e espontaneidade não têm em nossa terminologia o sentido que Hobbes confere à primeira e Spencer à segunda Em resumo à maior parte das tentativas que foram feitas para explicar racionalmente os fatos sociais pôdese objetar ou que elas faziam desaparecer toda idéia de disciplina social ou que só conseguiam manter essa idéia com o auxílio de subterfúgios mentirosos As regras que acabamos de expor permitiriam ao contrário fazer uma sociologia que visse no espírito de disciplina a condição essencial de toda vida em comum embora fundandoo na razão e na verdade REGRAS RELATIVAS À ADMINISTRAÇÃO DA PROVA Temos apenas um meio de demonstrar que um fenômeno é causa de outro comparar os casos em que eles estão simultaneamente presentes ou ausentes e examinar se as variações que apresentam nessas diferentes combinações de circunstâncias testemunham que um depende do outro Quando eles podem ser artificialmente produzidos pelo observador o método é a experimentarão propriamente dita Quando ao contrário a produção dos fatos não está à nossa disposição e só podemos aproximálos tais como se produziram espontaneamente o método empregado é o da experimentação indireta ou método comparativo Vimos que a explicarão sociológica consiste exclusivamente em estabelecer relações de causalidade quer se trate de ligar um fenômeno à sua causa quer ao contrário uma causa a seus efeitos úteis Uma vez que por outro lado os fenômenos sociais escapam evidentemente à ação do operador o método comparativo é o único que convém à sociologia É verdade que Comte não o considerou suficiente julgou necessário completálo por aquilo que ele chama o método histórico mas isso se deve à sua concepção particular das leis sociológicas Segundo Comte estas devem principalmente exprimir não relações definidas de causalidade mas o sentido em que se dirige a evolução humana em geral assim elas não podem ser descobertas com o auxílio da comparação pois para poder comparar as diferentes formas que um fenômeno social assume em diferentes povos é preciso têlo separado das séries temporais a que pertence Ora se se começa por fragmentar deste modo o desenvolvimento humano surge a impossibilidade de reencontrar sua seqüência Para chegar a ela não é por análises mas por ligas sínteses que convém proceder O que é preciso é aproximar uns dos outros e reunir numa mesma intuição de certo modo os estados sucessivos da humanidade de maneira a perceber o crescimento contínuo de cada disposição física intelectual moral e políticaTal é a razão de ser desse método que Comte chama histórico e que por conseguinte é desprovido de qualquer objeto tão logo se rejeitou a concepção fundamental da sociologia comtiana Também é verdade que Mill declara a experimentação mesmo indireta inaplicável à sociologia Mas o que já é suficiente para retirar de sua argumentação grande parte de sua autoridade é que ele a aplicava igualmente aos fenômenos biológicos e mesmo aos fatos físicoquímicos mais complexos ora hoje não é mais preciso demonstrar que a química e a biologia só podem ser ciências experimentais Portanto não há razão para que suas críticas sejam mais bem fundamentadas no que concerne à sociologia pois os fenômenos sociais distinguemsé dos precedentes apenas por uma maior complexidade Essa diferença pode de fato implicar que o emprego do raciocínio experimental em sociologia ofereça mais dificuldades ainda que nas outras ciências mas não se percebe por que ele seria radicalmente impossível nesse caso De resto toda a teoria de Mill repousa sobre um postulado que sem dúvida está ligado aos princípios fundamentais de sua lógica mas que está em contradição com todos os resultados da ciência Com efeito ele admite que nem sempre um mesmo conseqüente resulta de um mesmo antecedente mas que pode ser devido ora a uma causa ora a outra Essa concepção do vínculo causal retirandolhe toda determinação tornao praticamente inacessível à análise científica pois introduz tal complicação na trama das causas e dos efeitos que o espírito nela se perde sem retorno Se um efeito pode derivar de causas diferentes para saber o que o determina num conjunto de circunstâncias dadas a experiência teria de ser feita em condições de isolamento praticamente impossíveis sobretudo em sociologia Mas esse pretenso axioma da pluralidade das causas é uma negação do princípio de causalidade Certamente se supusermos com Mill que a causa e o efeito são abrolatamente heterogêneos que não há entre eles nenhuma relação lógica não há nada de contraditório em admitir que um efeito possa acompanhar ora uma causa ora outra Se a relação que une C a A é puramente cronológica ela não exclui uma outra relação do mesmo gênero que uniria C a B por exemplo Mas se ao contrário o vínculo causal tem algo de inteligível ele não poderia ser indeterminado a esse ponto Se ele consiste numa relação que resulta da natureza das coisas um mesmo efeito só pode manter essa relação com uma única causa pois não pode exprimir mais que uma só natureza Ora somente os filósofos puseram em dúvida a inteligibilidade da relação causal Para o cientista ela não se questiona ela é suposta pelo método da ciência Como explicar de outro modo o papel tão importante da dedução no raciocínio experimental assim como o princípio fundamental da proporcionalidade entre a causa e o efeito Quanto aos casos que são citados e nos quais se pretende observar uma pluralidade de causas para que eles fossem demonstrativos seria preciso ter estabelecido preliminarmente ou que essa pluralidade não é simplesmente aparente ou que a unidade exterior do efeito não recobre uma real pluralidade Quantas vezes aconteceu à ciência reduzir à unidade causas cuja diversidade à primeira vista parecia irredutível O próprio Stuart Mill dá um exemplo disso ao lembrar que segundo as teorias modernas a produção de calor pelo atrito pela percussão pela ação química etc deriva de uma mesma e única causa Inversamente quando se trata do efeito o cientista distingue com freqüência o que o vulgo confunde Para o senso comum a palavra febre designa uma mesma e única entidade mórbida para a ciência há uma quantidade de febres especificamente diferentes e a pluralidade das causas está em relação com a dos efeitos e se entre todas essas espécies nosológicas há não obstante algo em comum é que essas causas igualmente se confundem por alguns de seus caracteres É importante exorcizar esse princípio da sociologia sobretudo porque muitos sociólogos sofrem ainda sua influência e isso apesar de não fazerem objeção contra o emprego do método comparativo Assim costumase dizer que o crime pode ser igualmente produzido pelas mais diversas causas que o mesmo acontece com o suicídio com a pena etc Praticandose com esse espírito o raciocínio experimental por mais que se reúna um número considerável de fatos jamais se poderão obter leis precisas relações determinadas de causalidades Apenas se poderá atribuir vagamente um conseqüente mal definido a um grupo confuso e indefinido de antecedentes Portanto se quisermos empregar o método comparativo de maneira científica ou seja conformandose ao princípio de causalidade tal como ele se depreende da própria ciência deveremos tomar como base das comparações que instituímos a proposição seguinte A um mesmo efeito corresponde sempre uma mesma causa Assim para retomar os exemplos citados mais acima se o suicídio depende de mais de uma causa é porque em realidade há várias espécies de suicídios O mesmo acontece com o crime Em relação à pena ao contrário se se acreditou que ela se explicava da mesma forma por causas diferentes é porque não se percebeu o elemento comum que se verifica em todos esses antecedentes e em virtude do qual eles produzem seu efeito comum Contudo se os diversos procedimentos do método comparativo não são inaplicáveis à sociologia nem todos têm nela uma força igualmente demonstrativa O método dito dos resíduos se é que ele constitui uma forma de raciocínio experimental não tem por assim dizer nenhuma utilidade no estudo dos fenômenos sociais Além de só poder servir às ciências bastante avançadas uma vez que ele supõe já conhecidas um número importante de leis os fenômenos sociais são demasiado complexos para que num caso dado se possa exatamente suprimir o efeito de todas as causas menos uma A mesma razão torna dificilmente utilizáveis tanto 0 método de concordância como o de diferença Eles supõem com efeito que os casos comparados ou concordam só num ponto ou diferem num só Sem dúvida não há ciência que alguma vez tenha podido instituir experiências em que o caráter rigorosamente único de uma concordância ou de uma diferença fosse estabelecido de maneira irrefutável Jamais estamos seguros de não ter deixado escapar algum antecedente que concorda ou difere como o conseqüente ao mesmo tempo e da mesma maneira que o único antecedente conhecido Entretanto embora a eliminação absoluta de todo elemento adventício seja um limite ideal que não pode ser realmente atingido as ciências físicoquímicas e mesmo as ciências biológicas aproximamse bastante dele para que num grande número de casos a demonstração possa ser vista como praticamente suficiente Mas isso já não ocorre em sociologia devido à complexidade demasiado grande dos fenômenos acrescida da impossibilidade de qualquer experiência artificial Como não se poderia fazer um inventário ainda que só aproximadamente completo de todos os fatos que coexistem no interior de uma mesma sociedade ou que se sucederam ao longo de sua história jamais se pode estar seguro mesmo de maneira aproximada de que dois povos concordam ou diferem sob todos os aspectos exceto um As chances de deixar um fenômeno escapar são bem superiores às de não negligenciar nenhum Em conseqüência tal método de demonstração só pode dar origem a conjeturas que reduzidas a elas só são quase desprovidas de todo caráter científico Muito diferente é o que acontece com o método das variações concomitantes Com efeito para que ele seja demonstrativo não é necessário que todas as variações diferentes daquelas que se comparam tenham sido rigorosamente excluídas O simples paralelismo dos valores pelos quais passam os dois fenômenos contanto que tenha sido estabelecido num número suficiente de casos suficientemente variados é a prova de que existe entre eles uma relação Esse método deve esse privilégio ao fato de atingir a relação causal não a partir de fora como os precedentes mas a partir de dentro Ele não nos mostra simplesmente dois fatos que se acompanham ou que se excluem exteriormente4 de sorte que nada prova diretamente que estejam unidos por um vínculo interno ao contrário tais fatos nos são mostrados participando um do outro e de maneira contínua pelo menos no que diz respeito à sua quantidade Ora essa participação por si só é suficiente para demonstrar que eles não são estranhos um ao outro A maneira como um fenômeno se desenvolve exprime sua natureza para que dois desenvolvimentos se correspondam é preciso que haja também uma correspondência nas naturezas que eles maniféstam A concomitância constante é portanto por si mesma uma lei seja qual for o estado dos fenômenos que permaneceram fora da comparação Assim para invalidála não basta mostrar que ela é posta em xeque por algumas aplicações particulares do método de concordância ou de diferença seria atribuir a esse tipo de provas uma autoridade que ele não pode ter em sociologia Quando dois fenômenos variam regularmente tanto um como o outro é preciso manter essa relação ainda que em alguns casos um desses fenômenos se apresentasse sem o outro Pois pode ocorrer ou que a causa tenha sido impedida de produzir seu efeito pela ação de alguma causa contrária ou que ela se encontre presente mas sob uma forma diferente daquela anteriormente observada Sem dúvida é o caso de conferir como se diz de examinar os fatos de novo mas não de abandonar de vez os resultados de uma demonstração regularmente conduzida É verdade que as leis estabelecidas por esse procedimento nem sempre se apresentam de imediato sob a forma de relações de causalidade A concomitância pode ser devida não a um fenômeno ser a causa do outro mas a serem ambos efeitos de uma mesma causa ou então por existir entre eles um terceiro fenômeno intercalado mas despercebido que é o efeito do primeiro e a causa do segundo Os resultados a que esse método conduz têm portanto necessidade de ser interpretados Mas qual o método experimental que permite obter mecanicamente uma relação de causalidade sem que os fatos que ele egtabelece precisem ser elaborados pelo espírito Tudo o que importa é que essa elaboração seja metodicamente conduzida e eis aqui de que maneira se poderá procedera isso Em primeiro lugar procuraremos saber com o auxílio da dedução como um dos dois termos foi capaz de produzir o outro a seguir nos esforçaremos por verificar o resultado dessa dedução com o auxílio de experiências isto é de novas comparações Se a dedução é possível e a verificação bemsucedida poderemos considerar a prova como feita Se ao contrário não percebemos entre esses fatos nenhum vínculo direto sobretudo se a hipótese de semelhante vínculo contradiz leis já demonstradas sairemos em busca de um terceiro fenômeno dos quais os dois outros dependam igualmente ou que tenha podido servir de intermediário entre eles Por exemplo podese estabelecer da maneira mais certa que a tendência ao suicídio varia de acordo com a tendência à instrução Mas é impossível compreender como a instrução pode conduzir ao suicídio tal explicação está em contradição com as leis da psicologia A instrução sobretudo reduzida aos conhecimentos elementares não atinge senão as regiões mais superficiais da consciência ao contrário o instinto de conservação é uma de nossas tendências fundamentais Portanto este não poderia ser sensivelmente afetado por um fenômeno tão distante e de tão fraca repercussão Assim somos levados a perguntar se um e outro fatonão seriam a conseqüência de qm mesmo estado Essa causa comum é o enfraquecimento do tradicionalismo religioso que reforça ao mesmo tempo a necessidade de saber e a tendência ao suicídio Mas há outra razão que faz do método das variações concomitantes o instrumento por excelência das pesquisas sociológicas Com efeito mesmo quando as circunstâncias lhes são mais favoráveis os outros métodos só podem ser empregados proveitosamente se o número de fatos comparados for muito considerável Se não é possível encontrar duas sociedades que diferem ou que se assemelham apenas num ponto podese pelo menos constatar que dois fatos ou se acompanham ou se excluem de maneira muito geral Mas para que essa constatação tenha um valor científico é preciso que tenha sido feita um grande número de vezes seria preciso estar quase seguro de que todos os fatos foram passados em revista Ora não apenas um inventário tão completo é impossível mas também os fatos assim acumulados jamais podem ser estabelecidos com uma precisão suficiente justamente por serem demasiado numerosos Não apenas se corre o risco de omitir alguns essenciais e que contradizem os que são conhecidos mas também não se tem certeza de conhecer bem estes últimos Na verdade o que muitas vezes desacreditou os raciocínios dos sociólogos é que por terem empregado de preferência o método de concordância ou o de diferença sobretudo o primeiro eles se preocuparam mais em acumular documentos do que em criticálos e escolhêlos É assim que lhes acontece a todo momento colocar no mesmo plano as observações confusas e rápidas dos viajantes e os textos precisos da história Diante de tais demonstrações não apenas somos levados a afirmar que um único fato poderia ser suficiente para invalidálas mas também que os próprios fatos sobre os quais são estabelecidas nem sempre inspiram confiança O método das variações concomitantes não nos obriga nem a essas enumerações incompletas nem a essas observações superficiais Para que ele dê resultados poucos fatos são suficientes Tão logo se prova que em um certo número de casos dois fenômenos variam um de acordo com o outro podemos ter a certeza de estar em presença de uma lei Não tendo necessidade de ser numerosos os documentos podem ser escolhidos e mais do que isso estudados de perto pelo sociólogo que os emprega Portanto ele não só poderá como deverá tomar por objeto principal de suas induções as sociedades cujas crenças tradições costumes e direito se materializaram em monumentos escritos e autênticos Certamente ele não desdenhará as informações da etnografia não há fatos que possam ser desdenhados pelo cientista mas irá colocálas em seu verdadeiro lugar Em vez de fazer delas o centro de gravidade de suas pesquisas só as utilizará em geral como complemento daquelas que deve à história ou pelo menos se esforçará por confirmálas através destas últimas Assim ele não apenas circunscreverá com mais discernimento a extensão de suas comparações mas as conduzirá com mais crítica pois exatamente por se prender a uma ordem restrita deyfatos poderá controlálos com maior cuidado Claro que ele não precisa refazer a obra dos historiadores mas também não pode receber passivamente e indiscriminadamente as informações de que se serve Mas não se deve pensar que a sociologia esteja num estado de sensível inferioridade em face das outras ciências por não poder utilizar muito mais que um único procedimento experimental Esse inconveniente com efeito é compensado pela riqueza das variações que se oferecem espontaneamente às comparações do sociólogo e da qual não se encontra nenhum exemplo nos outros reinos da natureza As mudanças que ocorrem num organismo ao longo de uma existência individual são pouco numerosas e muito restritas as que podem ser provocadas artificialmente sem destruir a vida situamse também dentro de estreitos limites É verdade que outras mais importantes se produziram na seqüência da evolução zoológica mas elas só deixaram raros e obscuros vestígios e é ainda mais difícil descobrir as condições que as determinaram Ao contrário a vida social é uma série ininterrupta de transformações paralelas a outras transformações nas condições da existência coletiva e temos à nossa disposição não somente as que se relacionam a uma época recente pois um grande número daquelas pelas quais pass ám os povos desaparecidos também chegaram até nós Apesar de suas lacunas a história da humanidade é bem mais clara e completa que a das espécies animais Além disso existe uma quantidade de fenômenos sociais que se produzem em toda a extensão da sociedade mas que assumem formas diversas conforme as regiões as profissões as confissôes etc Tal é o caso por exemplo do crime cio suicídio da natalidade da nupcialidade da poupança etc Da diversidade desses meios especiais resultam para cada uma dessas ordens de fatos novas séries de variações além daquelas que a evolução histórica produz Portanto se o sociólogo não pode empregar com igual eficácia todos os procedimentos da pesquisa experimental o único método que ele deve utilizar quase com exclusão dos outros pode em suas mãos ser muito fecundo pois para fazêlo funcionar ele dispõe de recursos incomparáveis Mas esse método só produz os resultados que comporta se for praticado com rigor Nada se prova quando como acontece com freqüência apenas se mostra por exemplos mais ou menos numerosos que nesses casos esparsos os fatos variaram como previa a hipótese Dessas concordâncias esporádicas e fragmentárias não se pode tirar nenhuma conclusão geral Ilustrar uma idéia não é demonstrála O que é preciso é comparar não variações isoladas mas séries de variações regularmente constituídas cujós termos se ligam uns aos outros por uma gradação tão contínua quanto possível e que ademais tenham uma extensão suficiente Pois as variações de um fenômeno só permitem induzir sua lei se elas exprimem claramente a maneira como ele se desenvolve em circunstâncias dadas Ora para tanto é preciso que haja entre elas a mesma seqüência que entre os momentos diversos de uma mesma evolução natural e além disso que essa evolução que elas representam seja suficientemente prolongada para que seu sentido não seja duvidoso Mas a maneira como devem ser formadas essas séries difere conforme os casos Elas podem compreender fatos tomados ou de uma única sociedade ou de várias sociedades da mesma espécie ou de várias espécies sociais distintas O primeiro procedimento pode ser suficiente a rigor quando se trata de fatos de uma grande generalidade e sobre os quais temos informações estatísticas bastante extensas e variadas Por exemplo aproximandose a curva que exprime a evolução do suicídio durante um período de tempo suficientemente longo das variações que apresenta o mesmo fenômeno segundo as províncias as classes os hábitats rurais ou urbanos os sexos as idades o estado civil etc podese chegar mesmo sem estender a pesquisa para além de um único país a estabelecer verdadeiras leis ainda que seja sempre preferível confirmar esses resultados através de outras observações feitas sobre outros povos da mesma espécie Mas só é possível contentarse com comparações tão limitadas quando se estuda uma dessas correntes sociais que se espalham em toda a sociedade embora variem de um ponto a outro Quando ao contrário tratase de uma instituição de uma regra jurídica ou moral de um costume organizado que são idênticos e funcionam da mesma maneira em toda a extensão do país e que só se modificarei com o tempo não é possível restringirse ao estudo de um único povo pois nesse caso terseia como elemento da prova apenas um único par de curvas paralelas a saber as que exprimem a marcha histórica do fenômeno considerado e da causa conjeturada mas nessa única e exclusiva sociedade Certamente mesmo esse único paralelismo se for constante já é um fato considerável mas não poderia por si só constituir uma demonstração Fazendo entrar em consideração vários povos da mesma espécie dispõe se já de um campo de comparação mais extenso Primeiramente podese confrontar a história de um com a dos outros e ver se em cada um deles isoladamente o mesmo fenômeno evolui no tempo em função das mesmas condições A seguir podemse estabelecer comparações entre esses diversos desenvolvimentos Por exemplo determinarseá a forma que o fato estudado adquire nessas diferentes sociedades no momento em que ele chega a seu apogeu Como essas sociedades embora pertençam ao mesmo tipo são individualidades distintas a forma em questão não é em toda parte a mesma ela é mais ou menos pronunciada conforme os casos Deste modo se terá uma nova série de variações que serão aproximadas daquelas que apresenta no mesmo momento e em cada um desses países a condição presumida Assim após ter seguido a evolução da família patriarcal através da história de Roma de Atenas de Esparta essas mesmas cidades serão classificadas conforme o grau máximo de desenvolvimento que atinge em cada uma delas esse tipo familiar e a seguir se verá em relação ao estado do meio social do qual parece depender o tipo familiar de acordo com a primeira experiência se elas se classificam ainda da mesma maneira Mas mesmo esse método não pode ainda ser suficiente Ele só se aplica com efeito aos fenômenos que têm origem durante a vida dos povos comparados Ora uma sociedade não cria completamente sua organização ela a recebe pronta em parte das sociedades que a precederam O que lhe é assim transmitido no decorrer de sua história não é o produto de um desenvolvimento seu portanto não pode ser explicado se não sairmos dos limites da espécie de que ela faz parte Somente os acréscimos que se juntam a esse fundo primitivo e o transformam podem ser tratados dessa maneira Porém quanto mais nos elevamos na escala social tanto menor é a importância dos caracteres adquiridos por cada povo comparados aos caracteres transmitidos Aliás essa é a condição de todo progresso Assim elementos novos que introduzimos no direito doméstico no direito de propriedade na moral desde o começo de nossa história são relativamente pouco numerosos e pouco importantes comparados aos que o passado nos legou As novidades que se produzem não poderiam portanto ser compreendidas se primeiro não fossem estudados aqueles fenômenos mais fundamentais que são suas raízes e estes só podem ser estudados com o auxílio de comparações muito mais extensas Para poder explicar o estado atual da família do casamento da propriedade etc seria preciso conhecer quais são suas origens quais os elementos simples que compõem essas instituições e sobre esses pontos a história comparada das grandes sociedades européias não nos daria grandes esclarecimentos É preciso remontar mais acima Conseqüentemente para explicar uma instituição social pertencente a uma espécie determinada iremos comparar as formas diferentes que ela apresenta não apenas nos povos dessa espécie mas em todas as espécies anteriores Tratase por exemplo da organização doméstica Constituiremos primeiramente o tipo mais rudimentar que possa ter existido para em seguida acompanhar passo a passo a maneira como ele progressivamente se complicou Esse método que poderíamos chamar genético efetuaria de uma só vez a análise e a síntese do fenômeno Pois por um lado nos mostraria em estado dissociado os elementos que o compõem pelo simples fato de nos mostrar esses elementos acrescentandose sucessivamente uns aos outros ao mesmo tempo graças ao extenso campo de comparação ele seria bem mais capaz de determinar as condições de que dependem a formação e associação desses mesmos elementos Conseqüentemente só se pode explicar um fato social de alguma complexidade se se acompanhar seu desenvolvimento integral através de todas as espécies sociais A sociologia comparada não é um ramo particular da sociologia é a sociologia mesma na medida em que ela deixa de ser puramente descritiva e aspira a explicar os fatos No decorrer dessas comparações extensas cometese com freqüência um erro que falseia os resultados Algumas vezes para julgar em que sentido se desenvolvem os acontecimentos sociais simplesmente se comparou o que se passa no declínio de cada espécie com o que se produz no começo da espécie seguinte Procedendo deste modo acreditouse poder afirmar por exemplo que o enfraquecimento das crenças religiosas e de todo tradicionalismo nunca podia ser mais que um fenômeno passageiro da vida dos povos porque ele só aparece no último período de sua existência para cessar assim que uma nova evolução recomeça Mas com semelhante método correse o risco de tomar como marcha regular e necessária do progresso o que é efeito de uma causa muito diferente De fato o estado em que se encontra uma sociedade jovem não é simplesmente o prolongamento do estado em que haviam chegado no final de sua carreira as sociedades que ela substitui mas provém em parte dessa própria juventude que impede que os produtos das experiências feitas pelos povos anteriores sejam todos imediatamente assimiláveis e utilizáveis Assim a criança recebe de seus pais faculdades e predisposições que só tardiamente entram em jogo em sua vida Portanto é possível para retomar o mesmo exemplo que o retorno do tradicionalismo observado no começo de cada história seja devido não ao fato de que um recuo do mesmo fenômeno só pode ser transitório mas às condições especiais em que se acha colocada toda sociedade que começa A comparação só pode ser demonstrativa se eliminamos esse fator da idade que a perturba para tanto bastará considerar as sociedades comparadas no mesmo período de seu desenvolvimento Assim para saber em que sentido evolui um fenômeno social iremos comparar o que ele é na juventude de cada espécie com aquilo em que se transforma na juventude da espécie seguinte e conforme apresentar de uma etapa a outra maior menor ou igual intensidade diremos que ele progride recua ou se mantém CONCLUSÃO Em resumo as características desse método são as seguintes Em primeiro lugar ele é independente de toda filosofia Por ter nascido das grandes doutrinas filosóficas a sociologia conservou o hábito de se apoiar em algum sistema do qual se acha pois solidária Assim ela foi sucessivamente positivista evolucionista espiritualista quando deve contentarse em ser sociologia e nada mais Inclusive hesitaríamos em qualificála de naturalista a menos que com isso se queira simplesmente indicar que ela considera os fatos sociais como explicáveis naturalmente nesse caso o epíteto é inútil pois significa apenas que o sociólogo pratica a ciência e não é um místico Mas repelimos a palavra se lhe quiserem dar um sentido doutrinal sobre a essência das coisas sociais se por exemplo disserem que elas são redutíveis às outras forças cósmicas A sociologia não tem de tomar partido por uma das grandes hipóteses que dividem os metafísicos Ela não precisa afirmar a liberdade nem o determinismo Tudo o que ela pede que lhe concedam é que o princípio de causalidade se aplique aos fenômenos sociais E ainda assim esse ptïncípio é por ela estabelecido não como uma necessidade racional mas somente como um postulado empírico produto de uma indução legítima Visto que a lei da causalidade foi verificada nos outros reinos da natureza e que progressivamente ela estendeu seu domínio do mundo físicoquímico ao mundo biológico e deste ao mundo psicológico é lícito admitir que ela igualmente seja verdadeira para o mundo social e é possível afirmar hoje que as pesquisas empreendidas sobre a base desse postulado tendem a confirmálo Mas a questão de saber se a natureza do vínculo causal exclui toda contingência nem por isso está resolvida De resto a própria filosofia tem todo o interesse nessa emancipação da sociologia Pois enquanto o sociólogo não se separou suficientemente do filósofo ele só considera as coisas sociais por seu lado mais geral aquele pelo qual elas mais se assemelham às outras coisas do universo Ora se a sociologia assim concebida pode servir para ilustrar com fatos curiosos uma filosofia ela não poderia enriquecêla com idéias novas uma vez que ela nada assinala de novo no objeto que estuda Mas em realidade se os fatos fundamentais dos outros reinos se verificam no reino social é sob formas especiais que fazem compreender melhor sua natureza por serem sua expressão mais elevada Só que para percebêlos sob esse aspecto é preciso sair das generalidades e entrar no detalhe dos fatos É deste modo que a sociologia à medida que se especializar irá fornecer materiais mais originais para a reflexão filosófica O que precede já foi capaz de fazer entrever de que maneira noções essenciais tais como as de espécie de órgão de função de saúde e de doença de causa e de fim apresentamse nela sob luzes inteiramente novas Aliás será que a sociologia não estará destinada a realçar plenamente uma idéia que poderia muito bem ser a base não apenas de uma psicologia mas de toda uma filosofia a idéia de associação Em face das doutrinas práticas nosso método permite e requer a mesma independência A sociologia assim entendida não será nem individualista nem comunista nem socialista no sentido que se dá vulgarmente a essas palavras Por princípio irá ignorar essas teorias às quais não poderia reconhecer valor científico já que elas tendem diretamente não a exprimir os fatos mas a reformá los Pelo menos se se interessa por elas é somente na medida em que as vê como fatos sociais capazes de ajudála a compreender a realidade social ao manifestarem as necessidades que movem a sociedade Isso não quer dizer porém que a sociologia deva se desinteressar das questões práticas Pôdese ver ao contrário que nossa preocupação constante era orientála de maneira que pudesse alcançar resultados práticos Ela depara necessariaruénte com esses problemas ao término de suas pesquisas Mas exatamente por sõse apresentarem a ela nesse momento e por decorrerem portanto dos fatos e não das paixões podese prever que tais problemas devam se colocar para o sociólogo em termos muito diferentes do que para a multidão e que as soluções aliás parciais que ele é capaz de propor não poderiam coincidir exatamente com nenhuma daquelas nas quais se detêm os partidos O papel da sociologia desse ponto de vista deve juslátnente consistir em nos libertar de todos os partidos não tanto por opor uma doutrina às doutrinas e sim por fazer os espíritos assumirem diante de tais questões uma atitude especial que somente a ciência pode proporcionar pelo contato direto com as coisas Com efeito somente ela pode ensinar a tratar com respeito mas sem fetichismo as instituições históricas sejam elas quais forem fazendonos perceber o que elas têm ao mesmo tempo de necessário e de provisório sua força de resistência ê sua infinita variabilidade Em segundo lugar nosso método é objetivo Ele é inteiramente dominado pela idéia de que os fatos sociais são coisas e como tais devem ser tratados Certamente esse princípio se encontra sob forma um pouco diferente na base das doutrinas de Comte e de Spencer Mas esses grandes pensadores deram muito mais sua fórmula teórica do que o puseram em prática Para que ela não permanecesse letra morta não bastava promulgála era preciso tornála a base de toda uma disciplina que se apoderasse do cientista no momento em que ele abordasse o objeto de suas pesquisas e que o acompanhasse em todos os seus passos Foi a instituir essa disciplina que nos dedicamos Mostramos como o sociólogo deveria afastar as noções antecipadas que possuía dos fatos a fim de colocarse diante dos fatos mesmos como deveria atingilos por seus caracteres mais objetivos como deveria requerer deles próprios o meio de classificálos em saudáveis e em mórbidos como enfim deveria seguir o mesmo princípio tanto nas explicações que tentava quanto na maneira pela qual provava essas explicações Pois quando se tem o sentimento de estar em presença de coisas nem sequer se pensa mais em explicálas por cálculos utilitários ou por raciocínios de qualquer espécie Compreendese muito bem a distância que há entre tais causas e tais efeitos Uma coisa é uma força que não pode ser engendrada senão por outra força Buscamse então para explicar os fatos sociais energias capazes de produzilos As explicações não apenas são outras como são demonstradas de outro modo ou melhor é somente então que se sente a necessidade de demonstrálas Se os fenômenos sociológicos forem apenas sistemas de idéias objetivas explicálos é repensálos em sua ordem lógica e essa explicação é sua própria prova quando muito será o caso de confirmála por alguns exemplos Ao contrário somente experiências metódicas são capazes de arrancar das coisas seu segredo Mas se consideramos os fatos sociais como coisas é como coisas sociais É um terceiro traço característico de nosso método o de ser exclusivamente sociológico Muitas vezes se pensou que tais fenômenos por causa de sua extrema complexidade ou eram refratários à ciência ou só poderiam entrar nela reduzidos a suas condições elementares sejam psíquicas sejam orgânicas isto é despojados de sua natureza própria Procuramos estabelecer ao contrário que era possível tratálos cientificamente sem nada retirarlhes de seus caracteres específicos Inclusive recusamos reduzir a imaterialidade sui generis que os caracteriza àquela não obstante já complexa dos fenômenos psicológicos com mais forte razão nos proibimos de absorvêla como faz a escola italiana nas propriedades gerais da matéria organizadas Mostramos que um fato social só pode ser explicado por outro fato social e ao mesmo tempo indicamos de que maneira esse tipo de explicação é possível ao assinalarmos no meio social interno o motor principal da evolução coletiva A sociologia portanto não é o anexo de nenhuma outra ciência ela própria é uma ciência distinta e autônoma e o sentimento da especificidade da realidade social é inclusive tão necessário ao sociólogo que somente uma cultura especificamente sociológica é capaz de preparálo para a compreensão dos fatos sociais Consideramos que esse progresso é o mais importante dos que restam a ser feitos em sociologia Certamente quando uma ciência está por nascer somos obrigados para formála a nos referir aos únicos modelos existentes ou seja às ciências já constituídas Existe aí um tesouro de experiências prontas que seria insensato não aproveitar Entretanto uma ciência só pode considerarse definitivamente constituída quando conseguir formarse uma personalidade independente Pois ela só terá razão de ser se tiver por objeto uma ordem de fatos que as outras ciências não estudam Ora é impossível que as mesmas noções possam convir identicamente a coisas de natureza diferente Tais nos parecem ser os princípios do método sociológico Esse conjunto de regras talvez parecerá inutilmente complicado se o compararmos aos procedimentos correntemente utilizados Todo esse aparato de precauções pode parecer muito trabalhoso para uma ciência que até aqui reclamava dos que a ela se consagravam pouco mais do que uma cultura geral e filosófica e é certo que pôr em prática tal método não poderia ter por efeito vulgarizar a curiosidade das coisas sociológicas Quando se pede às pessoas como condição de iniciação prévia para se desfazerem dos conceitos que têm o hábito de aplicar a uma ordem de coisas para repensáIas com novos esforços não se pode esperar recrutar uma clientela numerosa Mas esse não é o objetivo que almejamos Acreditamos ao contrário que chegou para a sociologia o momento de renunciar aos sucessos mundanos por assim dizer e de assumir o caráter esotérico que convém a toda ciência Ela ganhará assim em dignidade e em autoridade o que perderá talvez em popularidade Pois enquanto permanecer misturada às lutas dos partidos enquanto se contentar em elaborar com mais lógica do que o vulgo as idéias comuns e por conseguinte enquanto não supuser nenhuma competência especial ela não estará habilitada a falar suficientemente alto para fazer calar as paixões e os preconceitos Seguramente ainda está distante o tempo em que ela poderá desempenhar esse papel com eficácia no entanto é para tornála capaz de representálo um dia que precisamos desde agora trabalhar 3 1 Primeiras Teorias Sociais 1 Primórdios da Sociologia A sociologia é uma ciência que nasceu em meio a inúmeras modificações geopolíticas históricas e científicas Na Europa duas grandes modificações foram responsáveis pelo nascimento de uma curiosidade sociológica Primeiramente a revolução industrial trouxe uma série de modificações quando ao modo de viver Trabalhadores passavam agora a trabalhar conforme o ritmo de fábricas distantes da luz do dia cumprindo uma jornada de trabalho calculada em horas e recebiam salário em troca Estes trabalhadores enfrentaram grandes modificações em suas condições de vida pois passaram a viver em grandes aglomerados urbanos privados de boas condições de higiene pública e em más condições de trabalho Crime expectativa de vida doenças e uma série de flagelos do capitalismo industrial foram as engrenagens necessárias para criar o movimento sindical inglês Este movimento foi o primeiro movimento social de trabalhadores na era capitalista e sua força permitiu a conquista de uma série de direitos que melhoravam as condições de trabalho dos operários ingleses O segundo grande movimento que despertou cientistas para uma busca por compreensão científica da sociedade foi a revolução francesa A revolução francesa depôs o absolutismo mais poderoso da Europa e instaurou um regime democrático fundado nos valores da liberdade da fraternidade e da igualdade Ao longo do processo de radicalização da revolução Napoleão Bonaparte venceu e invadiu as monarquias europeias instaurando novas formas de governo apoiadas pelas burguesias nacionais Com a modernização da França a unificação alemã e italiana ao longo do século XIX estes países passam a observar a Inglaterra muito à frente em termos de industrialização Essa nova condição leva a um novo fenômeno que ficou conhecido como imperialismo ou neocolonialismo O neocolonialismo consiste em missões que partem de países industrializados em direção a territórios da África e da Ásia em busca da introdução de novos mercados consumidores O problema deste empreendimento é que os produtos europeus nem sempre faziam o gosto dessas pessoas e o que deveria ser uma missão cultural acabou tornandose uma missão de colonização militar e cultural Inúmeros conflitos irrompem em territórios da Índia da China da África do Sul da Libéria e Eritréia em função da chegada dos europeus Os invasores 4 destroem modos de produção milenares e equilibrados corrompem hábitos ligados à religiosidade modificam estruturas sociais fundadas em tradições Diante disso um esforço compreensivo passou a ser feito Afinal o contato com o estranho levou a intelectualidade europeia a ter de elaborar a sua própria identidade por contraste com aqueles que viviam de modos tão diferentes Inicialmente a compreensão do outro se deu por um esforço teórico que ficou conhecido como o Evolucionismo Social 2 Evolucionismo Social O pensamento dito evolucionista social nasceu antes mesmo da famosa teoria da evolução das espécies de Darwin Conceitos de evolução já existiam com diferentes acepções na ciência europeia e nesse caso alimentaram a nascente antropologia O que permite que reunamos essas teorias embaixo do mesmo guardachuva é a sua ideia de que a cultura humana evolui e passa por diferentes etapas 21 Lewis Morgan O primeiro pensador que iremos abordar de modo rápido é Lewis Morgan 1818 1881 Morgan foi um antropólogo americano que fez sua pesquisa de campo em meio aos Iroqueses Ele escreveu um livro chamado A Sociedade Antiga que ficou famoso por sua concepção de evolução em etapas Nesse livro Morgan defende que as formas de parentesco evoluem de acordo com o progresso tecnológico das organizações humanas As primeiras tribos são de caçadorescoletores na idade da selvageria Nesse período as tribos teriam um comportamento sexual promíscuo Logo em seguida com o advento da agricultura as tribos humanas passariam à barbárie Aqui a 5 sexualidade passaria a ser monogâmica dado que a noção de bens materiais e terras passariam a interessar ao núcleo familiar Por último as sociedades passariam à forma civilizada onde elas chegariam ao progresso máximo em uma organização urbana Essa teoria é ultrapassada porém ela serviu enormemente a outros teóricos que se interessaram por entender as relações entre vida material e formações de família e parentalidade Podese afirmar agora com base em convincente evidência que a selvageria precedeu a barbárie em todas as tribos da humanidade assim como se sabe que a barbárie precedeu a civilização A história da raça humana é uma só na fonte na experiência no progresso Morgan L A Sociedade Antiga 22 Edward Tylor Edward Tylor 1832 1917 foi um antropólogo britânico que viajou para o México para estudar as tribos indígenas de lá Apesar de nunca ter cursado a universidade foi condecorado doutor em Oxford após a escrita de seu famoso livro Cultura Primitiva Tylor irá argumentar que as culturas ao longo da terra tendem a uma convergência por estarem fundadas em princípios da ação e do pensamento Por isso mesmo cultura será para ele todo o complexo que inclui conhecimento crenças arte moral lei costumes e qualquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade Com essa definição Tylor colocava as tribos das Américas África e Ásia dentro de um conceito unificado de humanidade 6 pois se todos os grupos têm cultura então é necessário admitir que há uma unidade psicológica básica a todos os humanos Será Tylor que irá identificar o fenômeno do animismo Para ele tribos que iniciavam seu desenvolvimento histórico tendem a construir formas de religião em que há a crença que entidades naturais são deuses O termo animismo vem do latim anima que significa alma Assim é como se toda a natureza estivesse possuída por almas que manifestam estados de ânimo 23 Auguste Comte Auguste Comte 1798 1857 foi um filósofo e sociólogo francês criador da teoria positivista O positivismo é uma teoria de cunho liberal que incorpora inúmeros anseios da burguesia francesa do século XIX Inspirada em um profundo racionalismo e cientificismo o Positivismo nasce de um entendimento do paradigma científico a ciência se faz por meio da descrição de leis 7 Comte irá então organizar um sistema de unidade da ciência onde a matemática é a ciência base A física é a ciência que em primeira instância depende do desenvolvimento da matemática Por sua vez a química é a ciência que depende de conceitos e da compreensão de fenômenos físicos Por fim a biologia seria a ciência que depende do entendimento da química E a sociologia seria a última ciência a receber uma axiomatização Para Comte a sociologia era uma espécie de física social que deveria ter leis de descrição da evolução e do progresso social Nesse sentido era necessário entender quais as leis sociais a partir da identificação de suas forças motoras A partir do método comparativo Comte chega à conclusão de que o progresso humano se dá em função do avanço da ciência Sendo assim as sociedades mais atrasadas na história são aquelas que não elaboraram mecanismos e conceitos para a descoberta científica já as mais evoluídas seriam aquelas que se encontram em pleno desenvolvimento científico Comte classifica de estado teológico o primeiro degrau da escada de evolução social Nesse estado os homens creditam a forças divinas os fenômenos da natureza É um período de profunda fragilidade e portanto de crenças mitológicas e religiosas A forma de governo que mais se conforma a esse período da mentalidade humana é aquela em que homens são vistos como deuses e governam por meio de teocracias militaristas Para superar esse estado é necessário que ocorra a transição de formas de pensamento mítico para formas de pensamento racional O segundo estado é o metafísico Neste momento os homens passam a ter uma compreensão racional da natureza mas ainda précientífica A grande busca desse período é por essências ou princípios que guiem o entendimento do mundo natural e do próprio homem É nesse período que os homens passam a especular acerca de princípios morais e éticos que nos ajudem a forjar leis para governar Assim a forma de governo mais comum aos que atingem esse estado é aquele que dá centralidade aos juristas e legisladores Por fim o terceiro estado é chamado de positivo Nesse momento da história humana a ciência afasta dos homens todas as formas de pensamento supersticioso e resolve todas as disputas de valor subjetivo A ciência passa a ser a principal ferramenta dos homens no governo tecnocrático e na busca da paz O positivismo tem como pressupostos o progresso a evolução e a ciência Contudo ao longo do desenvolvimento da teoria positivista Comte cada vez mais foi entendendo que sua filosofia e pensamento social precisavam de um lugar para ser cultuado Assim igrejas positivistas passaram a surgir na França e até mesmo no Brasil Aqui o positivismo foi absorvido por membros 8 do exército que adotaram o lema positivista Amor Ordem e Progresso como sendo a chave de suas decisões políticas 24 Herbert Spencer Spencer 1820 1903 era amigo de Charles Darwin Sua contribuição fundamental para o pensamento sociológico está na teoria do Darwinismo Social Para ele tal como a vida microscópica se organizou por meio de funções que estruturam os organismos a vida social deve também ter estruturas funcionais básicas Spencer acreditava que a teoria da sobrevivência do mais adaptado poderia ser a base de compreensão das sociedades também Sendo assim ele pensou em dois modelos funcionais de sociedade Há as sociedades hierárquicas militaristas onde o sistema é preponderantemente vertical com pouca diferenciação e baseado na obediência E há sociedades industriais com alta complexidade diferenciação voluntarismo e contratos sociais tácitos manifesto comunista Com ensaios de Antonio Labriola Jean Jaurès Leon Trotsky Harold Laski Lucien Martin James Petras Organização e introdução Osvaldo Coggiola No final de fevereiro de 1848 foi publicado em Londres um pequeno panfleto que acabaria por se tornar o documento político mais importante de todos os tempos o Manifesto Comunista de Marx e Engels Passado um século e meio a atualidade e o vigor deste texto continuam a ser reafirmados por intelectuais das mais diversas correntes de pensamento Esta edição que a Boitempo Editorial preparou para as comemorações do 150 aniversário do Manifesto seis especiais refletem sobre as múltiplas facetas desta que é ainda a obra política mais lida e difundida em todo o mundo ISBN 8585934239 9788585934231 manifesto comunista KARL MARX FRIEDRICH ENGELS manifesto comunista BOITEMPO EDITORIAL KARL MARX FRIEDRICH ENGELS O internacionalismo e o Manifesto O internacionalismo proletário é uma das ideias centrais do Manifesto Comunista Não por acaso a sua última frase Proletários de todos os países univos virou símbolo da corrente marxista do movimento operário Para Marx e Engels o internacionalismo não é só o elementochave da estratégia do movimento socialista é também a expressão do seu humanismo revolucionário para o qual a emancipação de toda a humanidade é o valor supremo e o objetivo final Algumas passagens do Manifesto porém são economicistas e evidenciam certo otimismo livrecambista Como exemplo podese citar a sugestão de que o proletariado vitorioso continuará a abolição dos antagonismos nacionais iniciada pelo mercado mundial A experiência histórica sobretudo na Irlanda ensinará a Marx e Engels que o reinado da burguesia e do mercado capitalista agrava esses antagonismos Marx dá uma expressão organizada e concreta ao internacionalismo proletário com a fundação da AIT As seguintes Internacionais Operárias e Socialistas da II até a IV reivindicam essa herança mas conhecerão crises deformações burocráticas e isolamento Ainda assim assistimos nos primeiros anos seguintes à Revolução de Outubro e mais tarde durante as Brigadas Internacionais da MANIFESTO COMUNISTA Karl Marx 18181883 Ler Marx e Engels é certamente um convite a adentrar e conhecer os processos de exploração da vida humana do capitalismo É sentirse impotente diante dessa máquina devoradora da humanidade Após ler esses escritos caberá responder a uma questão apenas é atual o que buscamos É função Friedrich Engels 18201895 Karl Marx e Friedrich Engels MANIFESTO COMUNISTA Organização e introdução Osvaldo Coggiola BOITEMPO EDITORIAL Copyright desta edição Boitempo Editorial Tradução do Manifesto Comunista Álvaro Pina Assistente editorial Daniela Jinkings Revisão Alice Kobayashi Flamarion Maués Priscila Úrsula dos Santos Capa Antonio Kehl sobre desenho de Maringoni Editoração eletrônica Flávio Valverde Garotti Fotolitos Augusto Associados Impressão e acabamento Ferrari Agradecemos a valiosa colaboração de Francisco Melo edições Avante Alexandre Antunes Pereira e Floriano da Costa Durão que se empenharam particularmente na edição deste Manifesto ISBN 8585934239 Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a expressa autorização da editora 1ª edição março de 1998 1ª reimpressão abril de 1998 2ª reimpressão abril de 1999 3ª reimpressão agosto de 2002 4ª reimpressão junho de 2005 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda Rua Euclides de Andrade 27 Perdizes 05030030 São Paulo SP TelFax 11 38757250 38726869 email editoraboitempocom site wwwboitempocom SUMÁRIO Nota da edição 7 Introdução 9 Osvaldo Coggiola MANIFESTO COMUNISTA 37 Karl Marx e Friedrich Engels I Burgueses e proletários 40 II Proletários e comunistas 51 III Literatura socialista e comunista 59 IV Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição 68 Prefácios de Marx e Engels Prefácio à edição alemã de 1872 71 Prefácio à edição russa de 1882 72 Prefácio à edição alemã de 1883 74 Prefácio à edição inglesa de 1888 74 Prefácio à edição alemã de 1890 78 Prefácio à edição polonesa de 1892 80 Prefácio à edição italiana de 1893 81 Em memória do Manifesto Comunista 87 Antonio Labriola O Manifesto Comunista de Marx e Engels 137 Jean Jaurès Noventa anos do Manifesto Comunista 159 Leon Trotsky O Manifesto Comunista de 1848 169 Harold Laski Cem anos depois do Manifesto 231 Lucien Martin O Manifesto Comunista qual sua relevância hoje 239 James Petras NOTA DA EDIÇÃO ESTA TRADUÇÃO do Manifesto do Partido Comunista foi feita por Álvaro Pina a partir da edição alemã de 1890 prefaciada e anotada por Friedrich Engels para as edições Avante Lisboa 1975 A tradução portuguesa foi publicada pela primeira vez em 1975 com introdução e notas de Vasco MagalhãesVilhena e revista e complementada em 1997 por José BarataMoura Para esta edição além de alguns ajustes ortográficos promovidos por Luciana Crespo fizemos um cotejamento minucioso com a versão inglesa de Samuel Moore revisada prefaciada e anotada por Engels Harmondsworth Penguin Books 1967 com a tradução francesa de E Bottigelli Paris AubierMontaigne 1971 e com a italiana de Antonio Labriola Milão Avanti 1960 Confrontamos ainda essa tradução com duas edições brasileiras a de 1986 São Paulo Novos Rumos introdução de Edgard Carone e a de 1988 Petrópolis Vozes tradução de Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder O que ora lhes apresentamos é ao final de tudo isso uma versão nova do Manifesto Comunista de Marx e Engels Para as notas de rodapé em número reduzido uma vez que não era nossa intenção fazer uma edição crítica utilizamos como fontes as mesmas edições já citadas em especial as portuguesas dirigidas por MagalhãesVilhena e BarataMoura e o livro Le Manifeste Communiste de Marx et Engels Histoire et bibliographie de Bert Andréas Milão Feltrinelli 1963 As notas indicadas com números são de Marx eou Engels as indicadas com asterisco da edição brasileira Acréscimos e explicações estão indicados com colchetes no texto ou parênteses nas notas Nos seis ensaios que acompanham este Manifesto utilizamos o mesmo critério números para as notas dos autores e asteriscos para as notas da editora ou das traduções neste caso indicadas com N da T Ivana Jinkings 150 ANOS DO MANIFESTO COMUNISTA Osvaldo Coggiola O MANIFESTO do Partido Comunista foi publicado pela primeira vez no final de fevereiro ou início de março de 1848 em Londres Segundo Bert Andreas é provável que o próprio Marx tenha levado os originais de Bruxelas sua residência de exílio para Londres na última semana de fevereiro de 1848 A urgência foi ditada pela explosão dia 22 da revolução de fevereiro na França O Manifesto tinha sido encomendado a Marx entre três e quatro meses antes pela Liga dos Comunistas O Manifesto e 1848 Quando o Manifesto foi encomendado em novembro de 1847 todos acreditavam que a Europa estava às vésperas de uma revolução Apesar do sentimento geral de urgência Marx aparentemente despreocupado demorou para entregar o documento No final de janeiro a direção da Liga dos Comunistas sediada em Londres enviou a Marx uma carta impaciente O Comitê Central por meio desta autoriza o Comitê do Distrito de Bruxelas a comunicar ao cidadão Marx que caso o Manifesto do Partido Comunista que ele se propôs a redigir no último Congresso não chegue a Londres antes do dia 1º de fevereiro tomarseão medidas contra ele Na eventualidade do cidadão Marx não escrever o Manifesto o Comitê Central pede que os documentos a ele confiados pelo Congresso sejam devolvidos imediatamente A carta estava assinada por Bauer Schapper e Moll três operários alemães exilados em Londres que eram então dirigentes da Liga O Manifesto coincidiu com o início da esperada revolução Ela estourou na Suíça espalhouse rapidamente para Itália e França depois para Renânia Prússia e em seguida para Áustria e Hungria Na verdade o levante revolucionário europeu de 1848 era largamente esperado Como afirma Eric J Hobsbawm A catástrofe de 18461848 foi universal e a disposição de ânimo das massas sempre dependente do nível de vida tensa e apaixonada Um cataclismo econômico europeu coincidiu com a visível erosão dos antigos regimes Um levante camponês na Galícia em 1846 a eleição de um papa liberal no mesmo ano uma guerra civil entre radicais e católicos na Suíça no final de 1847 ganha pelos radicais uma das constantes insurreições autonomistas sicilianas em Palermo no início de 1848 Tudo isso não era pó e vento mas os primeiros rugidos da tempestade Todos sabiam disso Dificilmente uma revolução foi mais universalmente prognosticada mesmo sem se determinar em que país e data teria início Todo um continente aguardava pronto para transmitir as primeiras notícias da revolução de cidade em cidade através dos fios do telégrafo elétrico¹ A Liga dos Justos e o comunismo O termo comunista merece uma explicação Na época o socialismo era considerado uma doutrina burguesa identificada com os vários esquemas reformistas experimentais e utópicos dos ideólogos pequenoburgueses Os comunistas eram aqueles que estavam claramente a favor da derrubada revolucionária da ordem existente e do estabelecimento de uma sociedade igualitária O comunismo dessa época originarase de uma dissidência de extrema esquerda do jacobinismo francês representado por Gracchus Babeuf e Filippo Buonarroti A Liga dos Justos era composta por trabalhadores principalmente artesãos alemães exilados alocados em Londres Bruxelas e Paris e em algumas partes da Alemanha Não se tratava de proletários modernos trabalhando em grandes fábricas mecanizadas No entanto eles foram atraídos pelas concepções de Marx e Engels acerca da natureza da sociedade capitalista moderna A Liga dos Justos trazia em sua bandeira o slogan Todos os homens são irmãos Quando abraçou as concepções de Marx e tornouse a Liga dos Comunistas adotou o chamado do Manifesto Proletários de todos os países univos A velha Liga dos Justos oferecia a particularidade de como federa ¹ Eric J Hobsbawm Las Revoluciones Burguesas Madri Guadarrama 1971 p 544 Publicado no Brasil pela editora Paz e terra com o título A era das Revoluções fraternidade não é uma palavra vazia mas uma realidade e toda a nobreza da humanidade irradia desses homens endurecidos pelo trabalho em quem Marx admirava o gosto pelo estudo a sede de conhecimentos a energia moral a necessidade de desenvolvimento Convidado pela Liga dos Justos a aderir a ela Marx filiouse só no início de 1847 Foram estabelecidos novos estatutos cujo primeiro artigo dizia O fim da Liga é a derrubada da burguesia o reino do proletariado a supressão da antiga sociedade burguesa fundada no antagonismo de classes e o estabelecimento de uma nova sociedade sem classes e sem propriedade privada A Liga foi reorganizada para tornarse democrática depois que Marx e Engels exigiram que se suprimisse dela tudo aquilo que favorecesse a superstição autoritária Colocouse um fim a todo tipo de conspiração que requeria métodos ditatoriais da direção e a atividade da Liga concentrouse na propaganda pública pelo menos quando isso fosse possível O Congresso aprovou a publicação de uma revista cujo único número apareceu em setembro de 1847 com o título de Revista Comunista Nesse número é adotado substituindo o antigo lema da Liga Todos os homens são irmãos aquele indicado por Engels seguindo sugestão de Marx e que seria o grito de guerra com que se haveria de encerrar o Manifesto Proletários de todos os países univos Assim se chegava ao fim do processo evolutivo que havia conduzido a Liga desde o comunismo idealista dos artesãos alemães ou o comunismo filosófico e sentimental de Weitling desde a mescla do socialismo ou comunismo francoinglês e de filosofia alemã que constituía a doutrina secreta da Liga segundo as palavras do próprio Marx a uma observação científica da estrutura econômica da sociedade burguesa único fundamento teórico sólido para substituir a aspiração de realizar um sistema utópico qualquer por uma participação consciente no processo histórico da revolução social que se cumpria sob os nossos narizes Conspiração e comunismo Já desde bem antes da sua adesão à Liga Marx e Engels eram conhecidos como comunistas como bem revela este informe da polícia alemã de 14 de fevereiro de 1846 Três chefes comunistas alemães entre os quais se encontra Karl Marx estão preparando a edição de oito volumes sobre o comunismo sua doutrina suas conexões sua situação na França e na Inglaterra Os outros dois colaboradores são Engels e Moses Hess conhecidos comunistas tendo o primeiro deles chegado à Alemanha vindo da Suíça A obra será publicada na gráfica do Der Deutsche Steuermann de Paris⁴ A passagem das sociedades secretas para as sociedades operárias comunistas foi um complexo processo histórico Segundo Bert Andreas A Liga dos Justos devia alguns traços de sua organização secreta como o conceito de comunismo às sociedades secretas neobabufistas com as quais as comunas da Liga em Paris tinham estreitas relações Os membros da Liga estavam obrigados a difundir os princípios fazer novos recrutamentos fundar associações oficiais de operários e artesãos Foi somente nos grandes centros da Liga em Paris e Londres e mais tarde em Genebra que as comunas tiveram uma existência e uma atividade contínuas apoiandose sempre em associações operárias paralelas A mudança teve o seu epicentro na Inglaterra onde o desenvolvimento industrial era mais avançado e a atividade da classe operária mais aberta A Convenção Geral das Classes Operárias da GrãBretanha primeiro parlamento operário convocado no início de 1839 pelos cartistas havia discutido publicamente durante meses a organização da greve geral como meio de conquista do poder O horizonte político dos Justos de Londres foi ampliado consideravelmente O mesmo Andreas sustenta que existia aí uma classe operária nascida da fábrica que fazia valer suas reivindicações por meio do poderoso movimento cartista havia liberdade de reunião e de associação havia além dos numerosos operários e artesãos de todos os países europeus exilados políticos franceses alemães italianos e poloneses de todas as opiniões A Liga tinha apesar do elemento germânico ser fortemente preponderante um caráter internacional Simultaneamente um segundo processo essencial tinha lugar Enquanto a antiga desconfiança em relação aos intelectuais começava a desaparecer entre os operários e seus representantes e o proletariado ia buscar suas armas intelectuais na filosofia os filósofos descobriam nos operários nesses bárbaros de nossa sociedade civilizada o elemento prático da emancipação do homem Depois da rebelião dos tecelões da Silésia em junho de 1844 Marx declarava no Vorwärts que a Alemanha não poderia encontrar o elemento ativo de sua liberação senão no proletariado⁵ ⁴ Hans M Enzensberger Conversaciones con Marx y Engels Barcelona Anagrama 1974 vol 1 p 62 ⁵ Bert Andreas La Liga de los Comunistas México Cultura Popular 1977 pp 1524 A influência do cartismo Levandose em conta essa história tornase compreensível o fragmento do Manifesto consagrado à atitude dos comunistas diante dos outros partidos operários Ela era ditada pelo estado do movimento operário na época particularmente na Inglaterra Os cartistas que haviam ingressado na Liga o fizeram com a condição de que pudessem manter sua ligação com o partido O seu intuito era organizar uma espécie de núcleo comunista no cartismo para ali expandir o programa e os objetivos dos comunistas⁶ A influência do movimento cartista foi portanto decisiva para o surgimento do comunismo operário O cartismo por sua vez testemunha o impetuoso surgimento da classe operária no cenário social europeu Já fazia tempo que esta enorme força social em pleno processo de formação não se limitava ao plano defensivo ou à atividade puramente sindical mas também se projetava na ação política Em janeiro de 1792 oito homens criaram a London Corresponding Society que se organizou em grupos de trinta membros baseada em uma contribuição financeira acessível aos operários No final desse ano a sociedade contava já com três mil membros Seus objetivos sufrágio universal igualdade de representação Parlamento honesto fim dos abusos contra os cidadãos humildes fim das pensões outorgadas pelo Parlamento aos membros das classes dirigentes menor jornada de trabalho diminuição dos impostos e entrega das terras comuns aos camponeses Na mesma época o livro de Tom Paine Os Direitos do Homem defendia a Revolução Francesa e a Independência americana atacando a monarquia inglesa em favor do republicanismo Publicado em inglês céltico e gaélico vendeu cerca de duzentos mil exemplares na GrãBretanha e se transformou no manual universal do movimento operário Em 1795 os dirigentes da sociedade foram presos e esta começou a decair Mas ela foi sem dúvida o antecedente da primeira grande organização política operária o cartismo inglês assim chamado por basearse na Carta do Povo proclamada em 1838 A reforma eleitoral de 1832 arrancada pela burguesia industrial à monarquia elevou o contingente eleitoral de quatrocentos mil para oitocentos mil membros ela satisfazia os interesses da burguesia doravante dona do poder político mas não do operariado pois sobrevivia o voto qualificado ligado à propriedade Em 1836 os operários condenados em revoltas anteriores foram indultados e começaram a regressar à Inglaterra Nesse clima a Carta é proclamada e organizada em 1838 voto universal e secreto abolição da qualificação voto por nível de renda pagamento aos membros do Parlamento permitindo o ingresso nele de trabalhadores nivelação dos distritos eleitorais parlamentos anuais controle mais efetivo e revogabilidade dos representantes Com base neste programa democrático o cartismo organizou manifestações de massas e até uma greve geral em 1842 que abarcou mais de cinquenta mil operários e inaugurou a prática dos piquetes móveis depois mundialmente difundida Em 1847 a última onda de atividade cartista conquistou a jornada de dez horas a primeira vitória histórica da classe operária foi produto de um movimento claramente político Por volta de 1848 o movimento cartista já estava esfacelado e derrotado No entanto a sua importância histórica pode ser medida pelo fato de ter lançado e de ter dado uma base de massas a duas reivindicações centrais do operariado que teriam influência decisiva na estruturação contemporânea da sociedade inglesa e das sociedades capitalistas em geral a a redução da jornada de trabalho b o sufrágio universal e secreto Reformismo e utopismo O cartismo antecipou os debates posteriores do movimento operário ao cindirse em duas alas 1 a ala partidária da força moral confiante numa aliança com setores da burguesia e na pressão moral da justeza das suas reivindicações que os levaria à vitória esta ala baseava sua ação no sul da Inglaterra onde predominavam os velhos trabalhos artesanais 2 a ala partidária da força física responsável pela organização das greves e convencida de que só a ação direta dos operários os levaria ao triunfo sua base de recrutamento era o norte industrial especialmente os operários de Manchester núcleo da revolução industrial e do proletariado fabril moderno A Carta antecipou debates ulteriores sobre reformismo e revolução Segundo Wolfgang Abendroth neste período os trabalhadores se consideravam parte das camadas populares da nação e ficaram presos a essa ideologia A sua privação de direitos só podia ser eliminada exigindo para todos os cidadãos o mesmo direito em determinar a atividade do poder político de modo que não se abusasse do Estado em proveito de uns poucos Reclamaram para si próprios os direitos de liberdade correspondentes ao direito natural Mas não foram capazes de colocar exigências dife ⁶ David Riazanov Marx et Engels Paris Anthropos 1970 p 79 O desenvolvimento social e político da classe operária criou as bases sociais para a superação do socialismo até então existente tanto na França SaintSimon Fourier como na Inglaterra Owen O termo utopistas aplicado a estes três visionários foi assim explicado por Engels Se os utopistas foram utopistas é porque numa época em que a produção capitalista estava ainda tão pouco desenvolvida eles não podiam ser outra coisa Se foram obrigados a tirar das suas próprias cabeças os elementos de uma nova sociedade é porque de uma maneira geral estes elementos não eram ainda bem visíveis na velha sociedade se limitaramse a apelar à razão para lançarem os fundamentos de seu novo edifício é porque não podiam ainda apelar à História contemporânea Na própria França o socialismo não baseado na luta de classes teve a continuação com o trabalhador artesanal sapateiro PierreJoseph Proudhon que em A Organização do Crédito afirmava O que precisamos o que reivindico em nome dos trabalhadores é a reciprocidade a igualdade na troca a organização do crédito O crédito gratuito era a solução do problema social com ele os trabalhadores comprariam a sua liberdade do capitalista A propriedade é um roubo tinha afirmado Proudhon contra o capitalismo propondo o sistema mutualista baseado na gratuidade do crédito Mas fracassaram suas tentativas de organizar um Banco dos Trabalhadores pela lógica concorrência dos bancos capitalistas Como diz George Lichteim não se tratava de um sistema socialista por carecer de planejamento central e menos ainda era comunitário O que era Talvez apenas a peculiar visão de Proudhon sobre o socialismo Apesar de criticálo Marx viu em Proudhon um sapateiro a demonstração da capacidade de pensamento independente da classe operária maior facilidade por meio da colaboração entre os operários e a burguesia Para isto um instrumento o sufrágio universal Estado Popular Foi com referência a estes dois últimos que Marx em Miséria da Filosofia de 1847 afirmou que o ideal corretivo que gostariam de aplicar ao mundo não é senão o reflexo do mundo atual É totalmente impossível reconstituir a sociedade sobre a base de uma sombra embelezada da mesma Na medida em que a sombra vira corpo percebese que o corpo longe de ser o sonho imaginado é apenas o corpo da sociedade atual De acordo com JeanChristian Petitfils nem a reforma eleitoral nem o desenvolvimento do movimento cartista interessaram a Robert Owen para quem o sufrágio universal era uma simples mania popular Na França as oposições dinásticas e as aspirações republicanas da oposição deixaram SaintSimon e Fourier indiferentes Ambos saíram das provas da Revolução de 1789 bastante decepcionados para não dizer mais sem grandes simpatias pelos jacobinos ou pelos babeufistas O partido comunista verdadeiramente atuante Paralelamente aos grandes construtores de sistemas sociais outra tendência se desenvolveu diretamente ligada aos movimentos populares Foi a tendência radical das revoluções democráticas caracterizada pelas suas propostas igualitárias que foram paulatinamente designadas pelo termo comunismo Engels rastreou as origens dessa tendência nos primeiros grandes levantes contra a aristocracia na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha a tendência dos anabatistas e de Thomas Münzer na grande revolução inglesa os levellers e na grande Revolução Francesa Babeuf E esses levantes revolucionários de uma classe incipiente são acompanhados por sua vez pelas correspondentes manifestações teóricas nos séculos XVI e XVII surgem as descrições utópicas de um regime ideal de sociedade no século XVIII teorias já declaradamente comunistas como as de Morelly e Mably A reivindicação da igualdade não se limitava aos direitos políticos mas também às condições sociais de vida de cada indivíduo Já não se tinha em mira abolir apenas os privilégios de classe mas acabar com as próprias diferenças de classe Karl Marx viu nesta tendência o partido comunista verdadeiramente atuante Nos seus Princípios de Comunismo anteriores ao Manifesto Engels respondeu assim à pergunta o que é comunismo É um sistema segundo o qual a terra deve ser um bem comum dos homens Cada um deve trabalhar e produzir de acordo com as suas capacidades e gozar e consumir de acordo com as suas forças Diferenciandoo claramente do socialismo que deve seu nome à palavra latina socialis Ocupase da organização da sociedade e das relações entre os homens Mas não estabelece nenhum sistema novo sua ocupação principal é consertar o velho edifício esconder as suas fissuras obra do tempo No máximo como os fourieristas pretendem construir um sistema novo acima dos velhos e podres alicerces do chamado capitalismo No momento mais radical da revolução inglesa do século XVII uma maioria parlamentar chegou a apoiar os levellers igualitários ou niveladores os quais procuravam levar as idéias democráticas à sua conclusão lógica atacando todos os privilégios e proclamando a terra como uma herança natural dos homens Os levellers se concentravam na reforma política o socialismo implícito da sua doutrina ainda se exprimia em linguagem religiosa Seus continuadores radicais foram os diggers cavadores muito mais precisos em relação à sociedade que desejavam estabelecer e que totalmente descrentes de uma ação política de tipo normal só acreditavam na ação direta Mas a revolução inglesa foi vitoriosa como revolução burguesa conciliandose finalmente com a monarquia e eliminando as suas alas radicais O período mais radical da Revolução Francesa também foi concluído com a derrota de sua direção os jacobinos donos do poder entre 1792 e 1794 mas estes também tiveram os seus continuadores radicais na chamada Conspiração dos Iguais encabeçada em 1796 por Gracchus Babeuf Como o próprio nome indica esta fração propôs um programa de propriedade comunal para aprofundar a revolução uma espécie de socialismo agrário a indústria ainda estava escassamente desenvolvida E foi menos uma conspiração do que uma continuação das insurreições contra a reação antijacobina o Thermidor instalada no poder as revoltas de Germinal e Prairial Segundo Daniel Guérin Babeuf e seus amigos entraram em contato com os sobreviventes dessas insurreições aprovando seus projetos de poder popular e criticando a fraqueza dessas tentativas a sua desorganização Os Iguais constituíram uma organização centralizada cujo programa criticava a lei bárbara ditada pelo capital que faz mover uma multidão de braços sem que aqueles que os movem recolham daí os frutos Segundo Guérin no seu clássico Bourgeois et BrasNus o aperfeiçoamento do maquinismo e o progresso técnico estavam na base do coletivismo dos Iguais cuja proposta política chegou ao limiar da democracia direta de tipo comunal e de conselhos dirigentes eleitos diretamente pela base e permanentemente revogáveis do Le National porque lhes reconhecemos o direito à discussão e porque as doutrinas que vêm dos próprios operários são sempre dignas de atenção O comunismo portanto era identificado com o proletariado como surgido dentro dessa classe e como sua expressão teóricodoutrinária Num paralelo notável poucos anos antes Marx como editor da Rheinische Zeitung Gazeta Renana polemizou contra um jornal alemão o Augsburger que também atacava o comunismo Ele respondeu em síntese vocês não têm o direito de atacar o comunismo Não conheço o comunismo mas se ele assumiu a defesa dos oprimidos não pode ser condenado sem mais Antes de condenálo é preciso ter um conhecimento exato e completo dessa corrente Quando saiu da Rheinische Zeitung Marx não era ainda um comunista mas já era um homem interessado no comunismo como tendência e como filosofia especial9 As etapas da passagem de Marx do democratismo radical ao comunismo em meados da década de 1840 encontramse registradas nos Anais FrancoAlemães editados por Marx em comum com seu amigo Arnold Ruge Democracia e comunismo Na Inglaterra no final da década de 1840 o movimento cartista dividiuse os seus membros intelectuais e de classe média se agruparam na Associação Nacional para a Reforma Parlamentar e Financeira os seus membros operários por sua vez apoiaram a Associação Nacional da Carta dirigida por Ernest Jones e George Harney e a Liga Nacional da Reforma dirigida por Bronterre OBrien ambas de programa socialista Harney e Jones mantinham estreito contato com os exilados operários e artesãos alemães junto aos quais Marx e Engels gozavam de ampla influência No festival operário comemorativo da proclamação da República Francesa de 1792 celebrado em Londres em 1845 o manifesto declarou que os democratas de todos os países desejam que a igualdade à qual aspirou a Revolução Francesa renasça na França e se estenda a toda a Europa No seu informe a respeito desse festival Engels escrevia que atualmente a democracia é o comunismo A democracia se transformou em princípio proletário princípio de massas grifo nosso Dois anos depois em 1847 como já foi dito a Liga dos Justos que tinha organizado o festival junto aos cartistas ingleses e outros exilados encarregou a Marx e Engels a redação de seu programa que se transformaria no Manifesto Comunista o que levou à mudança no nome da Liga A assimilação entre democracia e comunismo era própria da época e seria superada pela defesa da ditadura do proletariado conceito erroneamente atribuído a Blanqui que Marx vai realizar depois das revoluções de 1848 como balanço das derrotas dessas revoluções o folheto de Marx As Lutas de Classes na França 18481850 registra essa passagem teóricoprogramática Mas ainda em julho de 1846 Marx e Engels dirigiram de Bruxelas em nome de um grupo de emigrados alemães uma declaração de apoio e de adesão ao líder cartista inglês OConnor publicada na folha cartista The Northern Star e assinada pelos comunistas democráticos alemães de Bruxelas o Comitê Engels Ph Gigot Marx grifo nosso David Riazanov força o texto e a História ao afirmar que quando o Manifesto assimila a constituição do proletariado como classe dominante à conquista da democracia Marx se refere a uma democracia proletária oposta à democracia burguesa10 Isto não é verdade em meados da década de 1840 a democracia era o movimento geral de luta contra o status quo monárquicoaristocrático prevalecente Além disso Marx e Engels não foram antes de serem comunistas democratas vulgares Eles proporcionavam pela primeira vez ao movimento democrático uma compreensão real e completa de seu tempo As idéias atrasadas e infantis sobre o desenvolvimento econômicosocial do mundo a que estavam apegados os líderes democráticos de todos os países antes de 1848 lhes eram alheias Marx e Engels foram portanto os primeiros democratas que se libertaram completamente dessas ilusões e do gosto pelas experiências abstratas Compreendiam seu tempo porque se apropriaram de tudo o que os pensadores da burguesia tinham a dizer de sua própria classe Os economistas ingleses e os filósofos alemães haviam compreendido perfeitamente a essência da sociedade burguesa moderna Marx e Engels ao colocarem as doutrinas de Ricardo e de Hegel a serviço da revolução democrática descobriram os fundamentos teóricos dos quais careciam Louis Blanc OConnor e Mazzini Mas isto fazendo Marx e Engels viramse na obrigação de superar esse fundamento teórico isto é a filosofia clássica alemã e a economia política inglesa elaborando uma síntese teóricoprática que deu um novo fundamento científico ao já existente comunismo Historicidade da democracia O caráter ilusório da democracia burguesa já fora denunciado por JeanJacques Rousseau no século XVIII O povo inglês pensa ser livre porém enganase totalmente É livre somente durante a eleição dos membros do Parlamento depois que estes são eleitos é escravo não é nada A soberania não pode ser representada consiste essencialmente na vontade geral e a vontade não se representa É ela mesma ou é outra coisa não há meiotermo O Manifesto colocou positivamente a superação da natureza nãodemocrática do Estado constitucional a primeira fase da revolução operária é o advento do proletariado como classe dominante a conquista da democracia Democracia e domínio político da burguesia são incompatíveis não existe Estado democrático sob hegemonia burguesa e hipoteticamente sob hegemonia proletária mas ditadura burguesa sob formas democráticas A conquista da democracia exige portanto uma revolução cujo primeiro passo é como em toda revolução a destruição da máquina repressiva que é a essência do antigo regime de exploração sem o que a democracia não passa de uma fachada da ditadura da classe exploradora Democracia e comunismo não são idênticos o proletariado no poder só começa a efetuar a passagem para a sociedade comunista por meio da supressão da propriedade privada burguesa e da progressiva socialização dos meios de produção A democracia tem como conseqüência inevitável o domínio político do proletariado e esse domínio é a primeira premissa de todas as medidas comunistas escreveu Engels em outubro de 1847 Com a sociedade comunista de cada qual segundo as suas capacidades a cada qual segundo as suas necessidades criamse as bases para a superação da alienação política representação mediada pela burocracia estatal da separação entre a sociedade política e a civil Mas nas pala 11 Arthur Rosenberg Democracia e Socialismo São Paulo Global 1986 pp 8991 vras do Manifesto com a supressão do fundamento dessa cisão a propriedade privada burguesa desaparece o Estado Político e portanto a democracia forma mais desenvolvida desse Estado Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe no curso do desenvolvimento e sendo concentrada toda a produção propriamente falando nas mãos dos indivíduos associados o poder público perderá o seu caráter político Em lugar da antiga sociedade burguesa com suas classes e antagonismos de classe surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos grifo nosso No Manifesto Marx e Engels combateram antecipadamente a ilusão dos revolucionários de 1848 para quem na base das diferenças e antagonismos de classe encontravase a desigualdade política Conseqüentes com isso quando o governo revolucionário decretou o sufrágio universal declararam também abolidas as classes da sociedade Tal declaração encontrase ipsis litteris na proclamação do governo provisório francês surgido da revolução de fevereiro de 1848 A idéia da universalidade atemporal de uma forma política a democracia apresentada como própria de Marx nada tem a ver com este Certamente Marx e Engels não desprezavam a luta pelo sufrágio universal ainda que sob domínio burguês da mesma maneira que não desprezavam a luta por aumentos salariais ou pela redução da jornada de trabalho em nome da abolição do trabalho assalariado O primeiro partido operário independente o movimento cartista inglês tinha surgido justamente da luta pela extensão do direito do sufrágio O que Marx e Engels faziam era pôr em relevo o caráter revolucionário dessa luta a qual por modestas que fossem as suas reivindicações iniciais conduzia necessariamente a um enfrentamento decisivo entre a burguesia e o proletariado Por isso Marx qualificou a obtenção da jornada de dez horas na Inglaterra em 1847 como a primeira vitória da economia política do proletariado Na França em 1848 a luta pela república acabou pondo frente a frente a burguesia e a classe operária A simples reivindicação do direito ao trabalho originou a Comissão de Luxemburgo que não passou de alguns intentos de cooperativização mas a sua existência bastou para que Marx afirmasse que a esta criação dos operários de Paris cabe o mérito de ter revelado do alto de uma tribuna européia o segredo da revolução do século XIX a emancipação do proletariado12 12 Karl Marx As Lutas de Classes na França In Textos São Paulo Edições Sociais 1977 vol 3 p 120 Comunismo e revolução Até as revoluções de 1848 os comunistas já uma tendência independente consideravamse junto à democracia do mesmo lado da barricada no mesmo movimento contra a reação feudal e monárquica os comunistas trabalham pela união e entendimento dos partidos democráticos de todos os países diz o Manifesto A democracia revolucionária a Montanha na França os Fraternal Democrats na Inglaterra ainda colocava revolucionariamente as suas reivindicações no sentido da luta das massas contra a aristocracia e de um governo independente das massas populares sem diluílas numa democracia formal que só aspira à extensão do direito do sufrágio O desenvolvimento revolucionário do proletariado porém levou a burguesia a aliarse à reação ao preço inclusive de suas minguadas aspirações democráticas O liberalismo burguês traiu a revolução e a democracia radical a Montanha foi uma caricatura do jacobinismo de 17921794 A meio caminho entre o proletariado e a burguesia a sua velha base social as massas pobres de sansculottes tinha se cindido do seu seio já surgira um proletariado socialmente diferenciado teve um papel lamentável na revolução Com a derrota desta estava liquidada a democracia revolucionária tal como a modelara a Revolução Francesa LedruRollin declamando inconscientemente entre as classes e Raveaux levaram ao túmulo o que tinha sido fundado por Robespierre e SaintJust13 No seu lugar surgiu a democracia pura pequenoburguesa da qual Marx disse em 1850 na Circular à Liga dos Comunistas que este partido democrático é mais perigoso para os operários do que foi o partido liberal pois tal como constatou Engels em 1884 só poderia ser um recurso extremo da burguesia contra a revolução proletária Ela pode ter no momento da revolução importância como a mais extrema tendência da burguesia forma sob a qual já se apresentou na Assembléia de Frankfurt em 18481849 e que pode converterse na última tábua de salvação de toda a economia burguesa e mesmo da feudal Nesse momento toda a massa reacionária se coloca por trás dela e a fortalece Tudo o que é reacionário comportase então como democrático Nosso único inimigo no dia da crise e no dia seguinte é essa reação total que se agrupa em torno da democracia pura A derrota do operariado e a crise da democracia revolucionária tinham também um conteúdo positivo A derrota dos insurretos de junho pre 13 Arthur Rosenberg Op cit p 108 para a aplanara o terreno sobre o qual a república burguesa podia ser fundada e edificada mas demonstrava ao mesmo tempo que na Europa as questões em foco não eram apenas a República ou a Monarquia Revelara que a república burguesa significava o despotismo ilimitado de uma classe sobre as outras14 Assim ia se esclarecendo o caminho político para o advento do proletariado como classe dominante O proletariado vai se agrupando cada vez mais em torno do socialismo revolucionário do comunismo que é a declaração de permanência da revolução da ditadura do proletariado como ponto de transição necessário para a supressão das diferenças de classe em geral para a supressão de todas as relações de produção em que repousam tais diferenças de todas as relações sociais que correspondem a estas relações de produção para a subversão de todas as idéias que resultam dessas relações sociais15 Na luta pelas liberdades democráticas de organização sindical e política o proletariado defende o seu direito a organizarse contra o capital o seu direito à vida Situandose à frente dessa luta os comunistas não o fazem em nome de um ideal democrático universal por cima das classes que seria comum ao proletariado e à burguesia Na luta pela defesa e ampliação da democracia política contra a reação burguesa a classe operária age com seus próprios métodos ação direta greve geral preparando as condições para a derrubada da burguesia Nessas condições o sufrágio universal é o índice que permite medir a maturidade da classe operária No Estado atual não pode nem poderá jamais ir além disso mas é o suficiente No dia em que o termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição eles saberão tanto quanto os capitalistas o que lhes resta a fazer16 No seu escrito de outubro de 1937 Noventa Anos do Manifesto Comunista Leon Trotsky resgatou a interpretação revolucionária do Manifesto contra a sua deformação democratizante O proletariado não pode conquistar o poder dentro do sistema legal estabelecido pela burguesia Os comunistas proclamam abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente O reformismo procurou explicar este postulado do Ma 14 Karl Marx O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte In Textos Op cit vol 3 p 220 15 Karl Marx As Lutas de Classes na França In Textos Op cit vol 3 p 121 16 Friedrich Engels Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado Rio de Janeiro Vitória 1964 p 138 nifesto com base na imaturidade do movimento operário nessa época e no desenvolvimento inadequado da democracia O destino das democracias italiana alemã e de um grande número de outras prova que a imaturidade é o traço que distingue as idéias dos próprios reformistas As origens do Manifesto O grande antecedente do Manifesto Comunista são os Princípios do Comunismo redigidos por Engels por encomenda da Liga dos Justos sob a forma de perguntas e respostas catecismo nos quais o comunismo é definido como a aprendizagem das condições de libertação do proletariado17 Assim como o Manifesto os Princípios contêm um programa de ação na verdade um verdadeiro programa transicional em doze pontos e define claramente que a revolução proletária não será feita num só país já que a grande indústria criando o mercado mundial aproximou já tão estreitamente uns dos outros os povos da Terra que cada povo depende estreitamente do que acontece com os outros a revolução social não será uma revolução puramente nacional Produzirseá ao mesmo tempo em todos os países civilizados Engels foi o precursor do antistalinismo Foi o próprio Engels quem sugeriu a substituição dos Princípios pelo Manifesto que poderia conter os elementos históricos que o catecismo não continha De acordo com Franz Mehring a forma dos Princípios teria em todo caso contribuído para tornálo acessível a todos e não o contrário Teria sido mais apropriado às necessidades de agitação do momento do que o Manifesto que o substituiu quanto ao desenvolvimento das idéias os dois documentos coincidem inteiramente No entanto Engels mostrando até que ponto era escrupuloso sacrificaria de saída as 25 perguntas e respostas por uma exposição histórica o Manifesto no qual o comunismo se anunciaria como um fenômeno histórico universal deveria como dizia o historiador grego Tucídides ser uma obra durável e não um panfleto para ser esquecido tão rapidamente quanto lido O Manifesto posterior não contém uma única idéia que Marx e Engels já não tivessem exposto anteriormente Ele não revelava nada ele apenas concentrava a nova concepção do mundo de seus autores em um espelho cujo vidro não poderia ser mais transparente nem o quadro mais circunscrito A julgar pelo estilo a forma definitiva do Manifesto devese principalmente a Marx enquanto Engels como demonstra o seu projeto conhecia com a mesma clareza as idéias que foram expostas merecendo plenamente o título de coautor18 O próprio Engels reconheceu posteriormente a paternidade de Marx sobre as idéias fundamentais do Manifesto Engels no entanto havia tido um papel muito mais ativo do que Marx na Liga o que fez nascer uma suposta divisão de trabalho entre um Engels prático e um Marx teórico esquecendo o importante trabalho de organização feito por Marx nos três anos precedentes Riazanov protestou contra essa lenda Os historiadores não levaram em consideração todo esse trabalho de organização de Marx quando fizeram dele um pensador de biblioteca Não perceberam o papel de Marx como organizador perdendo assim um dos ângulos mais interessantes de sua fisionomia Sem conhecer o papel que Marx e eu digo Marx e não Engels exerceu entre 184647 como dirigente e inspirador de todo esse trabalho de organização fica impossível compreender o grande papel que ele exerceu em seguida como organizador entre 184849 na época da I Internacional19 O exagero de Riazanov quanto ao papel de Engels não ao de Marx é um excesso polêmico contra a socialdemocracia que no período em que foi escrita a obra de Riazanov fazia apelo ao reformismo inexistente de Engels contra o revolucionarismo bolchevique O Manifesto e a dialética O ponto de partida históricouniversal total e simultaneamente classista já contido nos Princípios e desenvolvido no Manifesto permitiu a Marx e Engels superar a filosofia da qual eram ambos tributários o hegelianismo na questãochave do Estado que Hegel ainda via sob uma forma abstrata e ao mesmo tempo localista alemã Uma multidão de seres humanos somente pode ser chamada Estado se estiver unida para a defesa comum da totalidade Gesamtheit de aquilo que é sua propriedade Para que uma multidão constitua um Estado é necessário que organize uma defesa e uma autoridade política comum20 Para Marx e Engels o Estado nasce dos antagonismos de classe e na 17 Cf Friedrich Engels Princípios do Comunismo e Outros Textos São Paulo Mandacaru 1990 18 Franz Mehring Vie de Karl Marx Paris Pie 1984 pp 662663 19 David Riazanov Marx et Engels ed cit p 72 20 G W F Hegel La Constitución de Alemania Madri Aguilar 1972 pp 2223 era burguesa ele é de acordo com o Manifesto o comitê administrativo dos interesses comuns da burguesia Esta afirmação nada tem de circunstancial como se pretendeu posteriormente e resulta do posicionamento metodológico mais profundo do Manifesto ou seja do marxismo O mais notável porém é que o Manifesto não é só uma novidade com relação à concepção linear dos pensadores históricosociais do século XVIII mas também com relação à concepção semelhante defendida por pensadores do século XX os mesmos que consideram Marx como um pensador do século XIX cujas concepções só se vinculariam à realidade histórica de sua época Comparase assim a precisa e viva análise do Manifesto acerca da ruptura qualitativa imposta pela era do capital na História universal suas raízes diferenciadas dos modos de produção precedentes abrindo o período da História mundial propriamente dita com as concepções de um Immanuel Wallerstein acerca do capitalismo histórico para quem o capital sempre existiu sendo o capitalismo o sistema em que o capital veio a ser usado investido de forma muito específica O capitalismo histórico significaria a mercantilização generalizada dos processos que anteriormente haviam percorrido vias que não as de um mercado Um retrocesso de um século e meio com relação à superação da produção mercantil pela produção capitalista e à concepção dialética da História que inclui as rupturas históricas já expostas no Manifesto O Manifesto reconhece seus antecedentes além do já citado de Engels os Princípios em toda a obra teórica precedente de Marx Maximilien Rubel já disse que foi em Paris que Marx escreveu para os Anais FrancoAlemães um primeiro manifesto revolucionário que já foi chamado de o germe dO Manifesto Comunista Zur Kritik der Hegelschen RechtsphilosophieEinleitung Nesse ensaio ele se refere pela primeira vez ao proletariado como classe e fala da formação Bildung da classe operária Esses dois conceitos já haviam sido associados concretamente em um documento publicado em Paris quatro meses antes de sua chegada em LUnion Ouvrière de Flora Tristan Em 1843 a grande organizadora operária francesa Flora Tristan fazia um chamado Venho propor a união geral dos operários e operárias de todo o reino sem distinção de ofícios Esta união teria por objetivo construir a classe operária e construir estabelecimentos Palácios da União Operária distribuídos por toda a França Seriam aí educadas crianças dos dois sexos dos 6 aos 18 anos e seriam também recebidos os operários doentes os feridos e os velhos Há na França cinco milhões de operários e dois milhões de operárias Na sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Marx criticava no filósofo alemão que reclamasse não só o espírito do Estado mas também o espírito da autoridade o espírito burocrático chegando a criticar a inconsequência surda e o espírito da autoridade de Hegel que chegam a ser verdadeiramente repugnantes grifo de Marx O espectro que ronda a Europa No mesmo momento em que Marx chegava a essas conclusões o comunismo se tornava uma força política na Alemanha e na Europa o espectro de que fala o Manifesto na sua frase inicial De acordo com David McLellan o socialismo e o comunismo os termos eram usados aleatoriamente na Alemanha nessa época tinham existido como doutrina na Alemanha desde pelo menos o início da década de 1830 mas foi em 1842 que eles atraíram a atenção geral pela primeira vez Isso se deu em parte por intermédio de Moses Hess que converteu tanto Engels como Bakunin ao comunismo e publicou anonimamente propaganda comunista na Rheinische Zeitung e em parte graças ao livro de Lorenz von Stein Sozialismus und Kommunismus des heutigen Frankreichs Socialismo e Comunismo na França Contemporânea Este consistia numa investigação da difusão do socialismo francês entre os operários alemães imigrantes em Paris Em carta de Engels a Marx de 22 de fevereiro de 1845 aquele relata a situação em Elberfeld Nossa propaganda realiza um progresso extraordinário As pessoas só falam do comunismo e todo dia recrutamos novos partidários No vale do Wupper o comunismo já é uma realidade melhor dito é virtualmente uma força Você não pode imaginar como é favorável a situação As pessoas mais ignorantes mais preguiçosas e mais filistéias que há pouco não se interessavam por nada estão praticamente gabandose de seu comunismo Não sei quanto tempo isso irá durar A polícia enfrenta verdadeiras dificuldades e não sabe o que fazer O que Marx e Engels traziam ao comunismo já existente era uma capacidade de formular seus objetivos baseada numa síntese de conhecimentos que nenhum de seus teóricos pregressos principalmente franceses e ingleses possuía por diversos motivos Antes de 1848 a única práxis sobre a qual Marx podia refletir era a dos jacobinos e seus sucessores entre as seitas radicais de Paris por outro lado a sua economia e a de Engels era já a dos socialistas ricardianos e owenistas da GrãBretanha Mas o arsenal de instrumentos conceituais com que contribuiu para o conhecimento dos fatos compreendia um elemento que nem o racionalismo francês nem o empirismo britânico podiam prover a filosofia da História de Hegel e a visão de que a totalidade do mundo forma um conjunto ordenado que o intelecto pode compreender e dominar Em 1860 em Herr Vogt Marx expôs o caminho teórico que o levaria à redação do Manifesto como programa para a Liga dos Justos ou dos Comunistas percorrido na década de 1840 Publicamos ao mesmo tempo uma série de folhetos impressos ou litografados Submetemos a uma crítica impiedosa a mistura de socialismo ou comunismo anglofrancês e de filosofia alemã que constituía na época a doutrina secreta da Liga estabelecemos que apenas o estudo científico da estrutura econômica da sociedade burguesa podia proporcionar uma sólida base teórica e expusemos por último em forma popular que não se tratava de colocar em vigor um sistema utópico mas de intervir com conhecimento de causa no processo de transformação histórica que se efetuava na sociedade Em A Sagrada Família de 1845 Marx já tinha claro que se tratava de dotar de um programa a um movimento já existente e consciente de seus objetivos Não há necessidade de explicar aqui que uma grande parte do proletariado inglês e francês já está consciente de sua tarefa histórica e trabalha constantemente para desenvolver essa consciência com total clareza O objetivo político do Manifesto portanto é dotar de um programa a um partido cujos contornos estão ainda pouco definidos O partido communista de que fala o Manifesto é um partido internacional cujos embriões são a Liga dos Comunistas e os Fraternal Democrats isto é de um lado uma organização composta sobretudo por alemães mas dispersa por toda a Europa e de outro uma organização concentrada em Londres mas composta de representantes exilados de grupos operários e comunistas de vários países do continente O Manifesto e a revolução O Manifesto em 1848 foi portanto o arremate de uma obra teórica política e organizativa cujos diversos aspectos são inseparáveis ou como disse Fernando Claudín análises da conjuntura prérevolucionária formação da Liga dos Comunistas elaboração teórica estão estreitamente entrelaçadas na atividade de Marx e Engels durante o ano de 1847 e janeirofevereiro de 1848 sendo que o seu resultado políticoorganizacional no segundo congresso da Liga e sua grande síntese teóricopolítica foi o Manifesto O centro do Manifesto porém é a elaboração de um programa para a revolução vindoura na qual Jean Jaurès foi o primeiro em ver uma teoria da revolução proletária que coincide com aquela que mais tarde será chamada de revolução permanente O socialista argentino Juan B Justo criticou a dialética de Marx culpada segundo ele por têlo feito antever no Manifesto revoluções proletárias no horizonte de 1848 Para Karl Korsch o prognóstico de Marx sobre 1848 ficou preso à visão dos revolucionários do passado ao contrapor o programa da revolução social à concreta revolução democrática que se desenvolvia A sociedade burguesa nascida da revolução em sua sóbria realidade acabou por contradizer em grande medida tanto as elevadas idéias que de seus resultados haviam formado seus participantes e espectadores entusiastas quanto o heroísmo o sacrifício os horrores a guerra civil e as matanças populares que havia necessitado para vir ao mundo No entanto embora a explosão política de 1848 fosse previsível como dissemos acima o seu alcance social estava longe de ser evidente antes de seu acontecimento A crise econômica que precedeu o 1848 e sem a qual os movimentos insurreccionais não poderiam ter alcançado naquele ano uma amplitude muito superior àquela das conspirações tramadas ao longo das décadas precedentes por sociedades secretas ou grupos de conspiradores e inclusive aquela das banais emoções populares teve provavelmente um caráter excessivamente clássico normal para provocar uma peculiar inquietude em todos aqueles que fisicamente não foram vítimas dela Coube a Marx justamente o mérito de ter sido o único a prever a amplitude social dos acontecimentos iminentes e de formular um programa de acordo com essa perspectiva que não era vista pela burguesia liberal revolucionária seus ideólogos e chefes políticos Os chefes do movimento liberal são professores universitários Eles são hostis tanto aos plutocratas da França como à aristocracia privilegiada Eles não se ocupam do povo Eles acreditam que os problemas deste não dizem respeito ao problema político que é o único que lhes interessa Dahlmann afinal não gostaria de ver fechado o acesso à escola para os filhos dos pobres para manter o nível de mãodeobra O mínimo que podemos dizer é que a burguesia compreendia mal o problema social O programa de Marx superava em virtude disso a perspectiva de uma revolução puramente burguesa nos países em que a burguesia não tinha ainda ascendio ao poder político Contrastando com essas justificativas economicistas de uma inevitável etapa revolucionária burguesa Marx e Engels também argumentavam a partir de uma perspectiva sociopolítica que anunciava uma concepção explicitamente permanentista da revolução Nesta problemática transicional a revolução burguesa aparece como précondição na medida em que abolindo a monarquia e o poder da nobreza feudal o terreno político fica livre para a contraposição direta entre burguesia e proletariado O prognóstico do Manifesto O famoso prognóstico do Manifesto a Alemanha se encontra às vésperas de uma revolução burguesa e realizará essa revolução nas condições mais avançadas da civilização européia e com um proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra no século XVII e o da França no século XVIII e por conseguinte a revolução burguesa alemã só poderá ser o prelúdio imediato de uma revolução proletária se realizou pela negativa a revolução alemã não triunfou como revolução proletária mas por isso mesmo também abortou como revolução democrática burguesa No balanço ulterior de Trotsky em 1848 se chegou à pior das situações históricas o meiotermo A burguesia já não mais queria fazer a revolução Sua tarefa consistia antes em e disso ela se dava conta claramente incluir no velho sistema as garantias necessárias não para a sua dominação política mas simplesmente para uma divisão do poder com as forças do passado o proletariado ainda não podia fazêla por insuficiência de desenvolvimento social e político Em 1848 necessitavase de uma classe que fosse capaz de tomar o controle sobre os acontecimentos prescindindo da burguesia e inclusive em contradição com ela uma classe que estivesse disposta não apenas a empurrar a burguesia adiante com toda a sua força mas inclusive a tirar do caminho no momento decisivo o seu cadáver político Nem a pequena burguesia nem o campesinato eram capazes de fazêlo O proletariado era demasiadamente débil encontravase sem organização sem experiência e sem conhecimentos O desenvolvimento capitalista havia avançado o suficiente para tornar necessária a abolição das velhas condições feudais mas não o suficiente para permitir que a classe operária o produto das novas condições de produção se destacasse como uma força política decisiva Segundo o mesmo Trotsky o erro do Manifesto surgiu por um lado de uma subestimação das possibilidades futuras latentes no capitalismo e por outro de uma sobreestimação da maturidade revolucionária do proletariado A revolução de 1848 não se transformou em uma revolução socialista como o Manifesto havia calculado mas permitiu à Alemanha um vasto crescimento posterior de tipo capitalista De acordo com Engels a desgraça da revolução alemã foi ter chegado a reboque da revolução na França tendo a burguesia manifestado seu pavor em ser superada pela revolução social não a partir dos acontecimentos alemães mas das jornadas de junho em Paris a primeira jornada política independente da classe operária Para além do erro de prognóstico resta o fato de que os eixos metodológicos do Manifesto se revelaram corretos 1º a ideia de que o desenvolvimento econômico e social a civilização seu grau de maturação revolucionária não podem ser medidos nos limites de um só Estado mas em escala internacional européia no século XIX 2º a compreensão do fato de que uma revolução burguesa clássica de tipo inglês ou francês não se pode repetir na Alemanha em função do peso social e político que ganhou o proletariado no país 3º a intuição de que a revolução burguesa e a revolução proletária não são duas etapas históricas distintas mas dois momentos de um mesmo processo revolucionário ininterrupto36 A ressalva final de Löwy a afirmação de uma prioridade necessária da revolução burguesa abre a porta para uma interpretação de tipo etapista do texto não se justifica diante do texto do desenvolvimento histórico e sobretudo diante do balanço feito pelos próprios Marx e Engels A sina do Manifesto As revoluções de 1848 culminaram com a desmobilização proletária Foi um ano de desmobilização para o movimento operário em seu conjunto dominado pelo desânimo Em abril a Inglaterra conheceu o fracasso da grande manifestação cartista de Kennington Common ponto culminante da agitação política e social Em junho a fuzilaria da Guarda Nacional coloca na França um ponto final na era dos bons sentimentos surgida na euforia da revolução de fevereiro37 Na própria Alemanha acontece coisa semelhante de acordo com Engels não sem deixar estabelecidas as bases do movimento operário futuro Com a condenação dos comunistas de Colônia em 1852 fechamse as cortinas sobre o primeiro período do movimento independente dos trabalhadores alemães Tratase de um período hoje quase esquecido No entanto estendeuse desde 1836 até 1852 e o movimento se refletiu com a dispersão dos trabalhadores alemães pelo estrangeiro em quase todos os países civilizados Isso não é tudo O atual movimento internacional dos trabalhadores é no fundo uma continuação direta desse movimento alemão que foi o primeiro movimento operário internacional de onde saíram muitos daqueles que na Associação Internacional dos Trabalhadores tiveram um papel de liderança38 36 Michaël Löwy Revolução Burguesa e Revolução Permanente em Marx e Engels Discurso nº 99 São Paulo FFLCHUSP novembro 1978 37 Jean Christian Petitfils Os Socialismos Utópicos Rio de Janeiro Zahar 1978 p 128 38 Friedrich Engels Introducción In Karl Marx Revelaciones sobre el Processo de los Comunistas de Colonia Buenos Aires Lautaro 1946 p 9 O Manifesto Comunista teve a mesma sorte No prefácio à edição alemã de 1890 Engels lembra que foi logo colocado num segundo plano pela reação que se seguiu à derrota dos operários em Paris em junho de 1848 e que com o desaparecimento do cenário público do movimento operário que começara com a revolução de fevereiro também o Manifesto saiu da cena política A geohistória do Manifesto no entanto acompanhou o desenvolvimento político da classe operária A partir da década de 1870 multiplicaramse as edições em alemão no calor do surgimento e desenvolvimento do Partido Social Democrata nesse país Entre 1880 e 1900 de acordo com Eric Hobsbawm39 houve uma mudança significativa a 18 edições do Manifesto em alemão corresponderam 31 edições em russo Entre a morte de Marx 1883 e a de Engels 1895 ocorreu uma dupla transformação Em primeiro lugar o interesse pelas obras de Marx e de Engels intensificouse com a afirmação do movimento socialista internacional No curso desses doze anos segundo B Andreas apareceram não menos de 75 edições do Manifesto em quinze línguas É interessante notar que essas edições traduzidas nas línguas do Império Czarista eram já mais numerosas do que as editadas no original alemão 17 contra 1140 Era como se o Manifesto tivesse ganho vida própria acompanhando o fio da revolução e até antecipandoa Hoje 150 anos depois seu texto guarda a beleza e a força que o lançaram à posição de um clássico da literatura universal Suas proposições ao mesmo tempo continuam sendo o principal instrumento para se compreender os impasses do socialismo contemporâneo 39 Eric J Hobsbawm La Difusión del Marxismo entre 1890 y 1905 Estudios de Historia Social nº 89 Madri janeirojunho 1979 p 17 40 Eric J Hobsbawm A Fortuna das Edições de Marx e Engels In História do Marxismo Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 vol I p 425 Cf também Dieter Fricke La cuestión de la organización y propagación del marxismo en el movimiento obrero internacional en la época de transición al imperialismo Estudios de Historia Social nº 89 Madri janeirojunho 1979 UM ESPECTRO ronda a Europa o espectro do comunismo Todas as potências da velha Europa unemse numa Santa Aliança para conjurálo o papa e o czar Metternich e Guizot os radicais da França e os policiais da Alemanha Que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder Que partido de oposição por sua vez não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de comunista Duas conclusões decorrem desses fatos 1ª O comunismo já é reconhecido como força por todas as potências da Europa 2ª É tempo de os comunistas exporem abertamente ao mundo inteiro seu modo de ver seus objetivos e suas tendências opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo Com este fim reuniramse em Londres comunistas de várias nacionalidades e redigiram o manifesto seguinte que será publicado em inglês francês alemão italiano flamengo e dinamarquês Sobre a publicação do Manifesto nas línguas mencionadas ver as indicações dos prefácios e suas respectivas notas Capa da primeira edição do Manifesto do Partido Comunista publicada em Londres no final de fevereiro de 1848 Manifesto Comunista I Burgueses e proletários A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes Homem livre e escravo patrício e plebeu senhor feudal e servo mestre de corporação e companheiro em resumo opressores e oprimidos em constante oposição têm vivido numa guerra ininterrupta ora franca ora disfarçada uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira ou pela destruição das duas classes em conflito Nas mais remotas épocas da História verificamos quase por toda parte uma completa estruturação da sociedade em classes distintas uma múltipla gradação das posições sociais Na Roma antiga encontramos patrícios cavaleiros plebeus escravos na Idade Média senhores vassalos mestres das corporações aprendizes companheiros servos e em cada uma destas classes outras gradações particulares A sociedade burguesa moderna que brotou das ruínas da sociedade feudal não aboliu os antagonismos de classe Não fez mais do que estabelecer novas classes novas condições de opressão novas formas de luta em lugar das que existiram no passado Entretanto a nossa época a época da burguesia caracterizase por ter simplificado os antagonismos de classe A sociedade dividese cada 1 Por burguesia entendese a classe dos capitalistas modernos proprietários dos meios de produção social que empregam o trabalho assalariado Por proletariado a classe dos assalariados modernos que não tendo meios próprios de produção são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver Nota de F Engels à edição inglesa de 1888 2 Isto é toda história escrita A préHistória a organização social anterior à história escrita era desconhecida em 1847 Mais tarde Haxthausen August von 17921866 descobriu a propriedade comum da terra na Rússia Maurer Georg Ludwig von mostrou ter sido essa a base social da qual as tribos teutônicas derivaram historicamente e pouco a pouco verificouse que a comunidade rural era a forma primitiva da sociedade desde a Índia até a Irlanda A organização interna dessa sociedade comunista primitiva foi desvendada em sua forma típica pela descoberta de Morgan Lewis Henry 181881 da verdadeira natureza de gens e de sua relação com a tribo Após a dissolução dessas comunidades primitivas a sociedade passou a dividirse em classes distintas Procurar traçar esse processo de dissolução na obra Der Ursprung der Familie des Privatgerthenhuns und des Staats A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado 2 ed Stuttgart 1866 Nota de F Engels à edição inglesa de 1888 3 O mestre de corporação é um membro da guilda o patrão interno e não seu dirigente Nota de F Engels à edição inglesa de 1888 40 vez mais em dois campos opostos em duas grandes classes em confronto direto a burguesia e o proletariado Dos servos da Idade Média nasceram os moradores dos primeiros burgos desta população municipal saíram os primeiros elementos da burguesia A descoberta da América a circunavegação da África abriram um novo campo de ação à burguesia emergente Os mercados das Índias Orientais e da China a colonização da América o comércio colonial o incremento dos meios de troca e das mercadorias em geral imprimiram ao comércio à indústria e à navegação um impulso desconhecido até então e por conseguinte desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição A organização feudal da indústria em que esta era circunscrita a corporações fechadas já não satisfazia as necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados A manufatura a substituiu A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina Todavia os mercados ampliavamse cada vez mais a procura por mercadorias continuava a aumentar A própria manufatura tornouse insuficiente então o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial A grande indústria moderna suplantou a manufatura a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria aos chefes de verdadeiros exércitos industriais aos burgueses modernos A grande indústria criou o mercado mundial preparado pela descoberta da América O mercado mundial acelerou enormemente o desenvolvimento do comércio da navegação dos meios de comunicação Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a expansão da indústria e à medida que a indústria o comércio a navegação as vias férreas se desenvolviam crescia a burguesia multiplicando seus capitais e colocando num segundo plano todas as classes legadas pela Idade Média Vemos pois que a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento de uma série de transformações no modo de produção e de circulação Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia foi acompanhada de um progresso político correspondente Classe oprimida pelo despotismo feudal associação armada e autônoma na comu 41 na aqui república urbana independente ali terceiro estado tributário da monarquia depois durante o período manufatureiro contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta base principal das grandes monarquias a burguesia com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial conquistou finalmente a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno O executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário Onde quer que tenha conquistado o poder a burguesia destruiu as relações feudais patriarcais e idílicas Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus superiores naturais para só deixar subsistir de homem para homem o laço do frio interesse as duras exigências do pagamento à vista Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa do entusiasmo cavalheiresco do sentimentalismo pequenoburguês nas águas geladas do cálculo egoísta Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca substituiu as numerosas liberdades conquistadas duramente por uma única liberdade sem escrúpulos a do comércio Em uma palavra em lugar da exploração dissimulada por ilusões religiosas e políticas a burguesia colocou uma exploração aberta direta despudorada e brutal A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas como dignas e encaradas com piedoso respeito Fez do médico do jurista do sacerdote do poeta do sábio seus servidores assalariados A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziuas a meras relações monetárias A burguesia revelou como a brutal manifestação de força na Idade Média tão admirada pela reação encontra seu complemento natural na ociosidade mais completa Foi a primeira a provar o que a atividade humana pode realizar criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito os aquedutos romanos as catedrais góticas conduziu expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as Cruzadas A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção por conseguinte as relações de produção e com isso todas as relações sociais A conservação inalterada do antigo modo de produção era pelo contrário a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores Essa subversão contínua da produção esse abalo constante de todo o sistema social essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes Dissolvemse todas as relações sociais antigas e cristalizadas com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas as relações que as substituem tornamse antiquadas antes de se consolidarem Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusão a sua posição social e as suas relações com os outros homens Impelida pela necessidade de mercados sempre novos a burguesia invade todo o globo terrestre Necessita estabelecerse em toda parte explorar em toda parte criar vínculos em toda parte Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países Para desespero dos reacionários ela roubou da indústria sua base nacional As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente São suplantadas por novas indústrias cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas indústrias que já não empregam matériasprimas nacionais mas sim matériasprimas vindas das regiões mais distantes e cujos produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do mundo Ao invés das antigas necessidades satisfeitas pelos produtos nacionais surgem novas demandas que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais diversos No lugar do antigo isolamento de regiões e nações autosuficientes desenvolvemse um intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual As criações intelectuais de uma nação tornamse patrimônio comum A estreiteza e a unilateralidade nacionais tornamse cada vez mais impossíveis das numerosas literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal 42 Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante progresso dos meios de comunicação a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações até mesmo as mais bárbaras Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga à capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros Sob pena de ruína total ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção constrangeas a abraçar a chamada civilização isto é a se tornarem burguesas Em uma palavra cria um mundo à sua imagem e semelhança A burguesia submeteu o campo à cidade Criou grandes centros urbanos aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e com isso arrancou uma grande parte da população do emburrecimento da vida rural Do mesmo modo que subordinou o campo à cidade os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados subordinou os povos camponeses aos povos burgueses o Oriente ao Ocidente A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção da propriedade e da população Aglomerou as populações centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos A consequência necessária dessas transformações foi a centralização política Províncias independentes ligadas apenas por débeis laços federativos possuindo interesses leis governos e tarifas aduaneiras diferentes foram reunidas em uma só nação com um só governo uma só lei um só interesse nacional de classe uma só barreira alfandegária A burguesia em seu domínio de classe de apenas um século criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto A subjugação das forças da natureza as máquinas a aplicação da química na indústria e na agricultura a navegação a vapor as estradas de ferro o telégrafo elétrico a exploração de continentes inteiros a canalização dos rios populações inteiras brotando da terra como por encanto que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social Vimos portanto que os meios de produção e de troca sobre cuja base se ergue a burguesia foram gerados no seio da sociedade feudal Numa certa etapa do desenvolvimento desses meios de produção e de troca as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava a organização feudal da agricultura e da manufatura em suma o regime feudal de propriedade deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno desenvolvimento Tolhiam a produção em lugar de impulsionála Transformaramse em outros tantos grilhões que era preciso despedaçar e foram despedaçados Em seu lugar surgiu a livre concorrência com uma organização social e política apropriada com a supremacia econômica e política da classe burguesa Assistimos hoje a um processo semelhante A sociedade burguesa com suas relações de produção e de troca o regime burguês de propriedade a sociedade burguesa moderna que conjurou gigantescos meios de produção e de troca assemelhase ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou Há dezenas de anos a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção contra as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio Basta mencionar as crises comerciais que repetindose periodicamente ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos fabricados mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas Uma epidemia que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo desaba sobre a sociedade a epidemia da superprodução A sociedade vêse subitamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea como se a fome ou uma guerra de extermínio houvessem lhe cortado todos meios de subsistência o comércio e a indústria parecem aniquilados E por quê Porque a sociedade possui civilização em excesso meios de subsistência em excesso indústria em excesso comércio em excesso As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações burguesas de propriedade pelo contrário tornaramse poderosas demais para estas condições passam a ser tolidas por elas e assim que se libertam desses entraves lançam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa O sistema burguês tornouse demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio E de que maneira consegue a burguesia vencer essas crises De um lado pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas de outro pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos A que leva isso Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitálas As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltamse hoje contra a própria burguesia 44 45 A burguesia porém não se limitou a forjar as armas que lhe trarão a morte produziu também os homens que empunharão essas armas os operários modernos os proletários Com o desenvolvimento da burguesia isto é do capital desenvolvese também o proletariado a classe dos operários modernos os quais só vivem enquanto têm trabalho e só têm trabalho enquanto seu trabalho aumenta o capital Esses operários constrangidos a venderse a retalho são mercadoria artigo de comércio como qualquer outro em consequência estão sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência a todas as flutuações do mercado O crescente emprego de máquinas e a divisão do trabalho despojaram a atividade do operário de seu caráter autônomo tirandolhe todo o atrativo O operário tornase um simples apêndice da máquina e dele só se requer o manejo mais simples mais monótono mais fácil de aprender Desse modo o custo do operário se reduz quase exclusivamente aos meios de subsistência que lhe são necessários para viver e perpetuar sua espécie Ora o preço do trabalho como de toda mercadoria é igual ao seu custo de produção Portanto à medida que aumenta o caráter enfadonho do trabalho decrescem os salários Mais ainda na mesma medida em que aumenta a maquinaria e a divisão do trabalho sobe também a quantidade de trabalho quer pelo aumento das horas de trabalho quer pelo aumento do trabalho exigido num determinado tempo quer pela aceleração do movimento das máquinas etc A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica do industrial capitalista Massas de operários amontoadas na fábrica são organizadas militarmente Como soldados rasos da indústria estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais Não são apenas servos da classe burguesa do Estado burguês mas também dia a dia hora a hora escravos da máquina do contramestre e sobretudo do dono da fábrica E esse despotismo é tanto mais mesquinho mais odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo Quanto menos habilidade e força o trabalho manual exige isto é quanto mais a indústria moderna progride tanto mais o trabalho dos homens é suplantado pelo de mulheres e crianças As diferenças de idade e de sexo não têm mais importância social para a classe operária Não há senão instrumentos de trabalho cujo preço varia segundo a idade e o sexo Depois de sofrer a exploração do fabricante e de receber seu salário em dinheiro o operário tornase presa de outros membros da burguesia o senhorio o varejista o penhorista etc As camadas inferiores da classe média de outrora os pequenos industriais pequenos comerciantes os que vivem de rendas rentiers artesãos e camponeses caem nas fileiras do proletariado uns porque seu pequeno capital não permite empregar os processos da grande indústria e sucumbem na concorrência com os grandes capitalistas outros porque sua habilidade profissional é depreciada pelos novos métodos de produção Assim o proletariado é recrutado em todas as classes da população O proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento Sua luta contra a burguesia começa com a sua existência No começo empenhamse na luta operários isolados mais tarde operários de uma mesma fábrica finalmente operários de um mesmo ramo de indústria de uma mesma localidade contra o burguês que os explora diretamente Dirigem os seus ataques não só contra as relações burguesas de produção mas também contra os instrumentos de produção destroem as mercadorias estrangeiras que lhes fazem concorrência quebram as máquinas queimam as fábricas e esforçamse para reconquistar a posição perdida do trabalhador da Idade Média Nessa fase o proletariado constitui massa disseminada por todo o país e dispersa pela concorrência A coesão maciça dos operários não é ainda o resultado de sua própria união mas da união da burguesia que para atingir seus próprios fins políticos é levada a pôr em movimento todo o proletariado o que por enquanto ainda pode fazer Durante essa fase os proletários não combatem seus próprios inimigos mas os inimigos de seus inimigos os restos da monarquia absoluta os proprietários de terras os burgueses nãoindustriais os pequenos burgueses Todo o movimento histórico está desse modo concentrado nas mãos da burguesia e qualquer vitória alcançada nessas condições é uma vitória burguesa Mas com o desenvolvimento da indústria o proletariado não apenas se multiplica comprimese em massas cada vez maiores sua força cresce e ele adquire maior consciência dela Os interesses as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais à medida que a máquina extingue toda diferença de trabalho e quase por toda parte reduz o salário a um nível igualmente baixo Em virtude da concorrência crescente dos burgueses entre si e devido às crises comerciais que disso resultam os salários se tornam cada vez mais instáveis o aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas torna a condição de vida do operário cada vez mais precária os choques individuais entre o operário singular e o burguês singular tomam cada vez mais o caráter de confrontos entre duas classes Os operários começam a formar coalizões contra os burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários chegam a fundar associações permanentes a fim de se precaverem de insurreições eventuais Aqui e ali a luta irrompe em motim De tempos em tempos os operários triunfam mas é um triunfo efêmero O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de comunicação criados pela grande indústria e que permitem o contato entre operários de diferentes localidades Basta porém este contato para concentrar as numerosas lutas locais que têm o mesmo caráter em toda parte em uma luta nacional uma luta de classes Mas toda luta de classes é uma luta política E a união que os burgueses da Idade Média com seus caminhos vicinais levaram séculos a realizar os proletários modernos realizam em poucos anos por meio das ferrovias A organização do proletariado em classe e portanto em partido político é incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre si os próprios operários Mas renasce sempre e cada vez mais forte mais sólida mais poderosa Aproveitase das divisões internas da burguesia para obrigála ao reconhecimento legal de certos interesses da classe operária como por exemplo a lei da jornada de dez horas de trabalho na Inglaterra Em geral os choques que se produzem na velha sociedade favorecem de diversos modos o desenvolvimento do proletariado A burguesia vive em luta permanente primeiro contra a aristocracia depois contra as frações da própria burguesia cujos interesses se encontram em conflito com os progressos da indústria e sempre contra a burguesia dos países estrangeiros Em todas estas lutas vêse forçada a apelar para o proletariado a recorrer a sua ajuda e desta forma arrastálo para o movimento político A burguesia fornece aos proletários os elementos de sua própria educação política isto é armas contra ela própria Além disso como já vimos frações inteiras da classe dominante em consequência do desenvolvimento da indústria são lançadas no proletariado ou pelo menos ameaçadas em suas condições de existência Também elas trazem ao proletariado numerosos elementos de educação Finalmente nos períodos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva o processo de dissolução da classe dominante de toda a velha sociedade adquire um caráter tão violento e agudo que uma pequena fração da classe dominante se desliga desta ligandose à classe revolucionária à classe que traz nas mãos o futuro Do mesmo modo que outrora uma parte da nobreza passou para a burguesia em nossos dias uma parte da burguesia passa para o proletariado especialmente a parte dos ideólogos burgueses que chegaram à compreensão teórica do movimento histórico em seu conjunto De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria o proletariado pelo contrário é seu produto mais autêntico As camadas médias pequenos comerciantes pequenos fabricantes artesãos camponeses combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias Não são pois revolucionárias mas conservadoras mais ainda são reacionárias pois pretendem fazer girar para trás a roda da História Quando se tornam revolucionárias isto se dá em consequência de sua iminente passagem para o proletariado não defendem então seus interesses atuais mas seus interesses futuros abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado O lúmpenproletariado putrefação passiva das camadas mais baixas da velha sociedade pode às vezes ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária todavia suas condições de vida o predispõem mais a venderse à reação As condições de existência da velha sociedade já estão destruídas nas condições de existência do proletariado O proletário não tem propriedade suas relações com a mulher e os filhos já nada têm em comum com as relações familiares burguesas O trabalho industrial moderno a subjugação do operário ao capital tanto na Inglaterra como na França na América como na Alemanha despoja o proletário de todo caráter nacional As leis a moral a religião são para ele meros preconceitos burgueses atrás dos quais se ocultam outros tantos interesses burgueses Todas as classes que no passado conquistaram o poder trataram de consolidar a situação adquirida submetendo toda a sociedade às suas condições de apropriação Os proletários não podem apoderarse das forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e por conseguinte todo modo de apropriação existente até hoje Os proletários nada têm de seu a salvaguardar sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada até aqui existentes Todos os movimentos históricos têm sido até hoje movimentos de minorias ou em proveito de minorias O movimento proletário é o movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria O proletariado a camada mais baixa da sociedade atual não pode erguerse pôrse de pé sem fazer saltar todos os estratos superpostos que constituem a sociedade oficial A luta do proletariado contra a burguesia embora não seja na essência uma luta nacional revestese dessa forma num primeiro momento É natural que o proletariado de cada país deva antes de tudo liquída a sua própria burguesia Esboçando em linhas gerais as fases do desenvolvimento proletário descrevemos a história da guerra civil mais ou menos oculta na sociedade existente até a hora em que essa guerra explode numa revolução aberta e o proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta da burguesia Todas as sociedades anteriores como vimos se basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas Mas para oprimir uma classe é preciso poder garantirlhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência servil O servo em plena servidão conseguiu tornarse membro da comuna da mesma forma que o pequeno burguês sob o jugo do absolutismo feudal elevouse à categoria de burguês O operário moderno pelo contrário longe de se elevar com o progresso da indústria desce cada vez mais caindo abaixo das condições de sua própria classe O trabalhador tornase um indigente e o pauperismo cresce ainda mais rapidamente do que a população e a riqueza Fica assim evidente que a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante e de impor à sociedade como lei suprema as condições de existência de sua classe Não pode exercer o seu domínio porque não pode mais assegurar a existência de seu escravo mesmo no quadro de sua escravidão porque é obrigada a deixálo afundar numa situação em que deve nutrilo em lugar ser nutrida por ele A sociedade não pode mais existir sob sua dominação o que quer dizer que a existência da burguesia não é mais compatível com a sociedade gum em idéias ou princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo São apenas a expressão geral das condições efetivas de uma luta de classes que existe de um movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos A abolição das relações de propriedade que até hoje existiram não é uma característica peculiar e exclusiva do comunismo Todas as relações de propriedade têm passado por modificações constantes em consequência das contínuas transformações das condições históricas A Revolução Francesa por exemplo aboliu a propriedade feudal em proveito da propriedade burguesa O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral mas a abolição da propriedade burguesa Mas a moderna propriedade privada burguesa é a última e mais perfeita expressão do modo de produção e de apropriação baseado nos antagonismos de classes na exploração de uns pelos outros Nesse sentido os comunistas podem resumir sua teoria numa única expressão supressão da propriedade privada Nós comunistas temos sido sensurados por querer abolir a propriedade pessoalmente adquirida fruto do trabalho do indivíduo propriedade que dizem ser a base de toda liberdade de toda atividade de toda independência individual Propriedade pessoal fruto do trabalho e do mérito Falais da propriedade do pequeno burguês do pequeno camponês forma de propriedade anterior à propriedade burguesa Não precisamos abolila porque o progresso da indústria já a aboliu e continua abolindoa diariamente Ou porventura falais da moderna propriedade privada da propriedade burguesa Mas o trabalho do proletário o trabalho assalariado cria propriedade para o proletário De modo algum Cria o capital isto é a propriedade que explora o trabalho assalariado e que só pode aumentar sob a condição de gerar novo trabalho assalariado para voltar a explorálo Em sua forma atual a propriedade se move entre dois termos antagônicos capital e trabalho Examinemos os termos desse antagonismo Ser capitalista significa ocupar não somente uma posição pessoal mas também uma posição social na produção O capital é um produto coletivo e só pode ser posto em movimento pelos esforços combinados de muitos membros da sociedade em última instância pelos esforços combinados de todos os membros da sociedade 52 O capital não é portanto um poder pessoal é um poder social Assim quando o capital é transformado em propriedade comum pertencente a todos os membros da sociedade não é uma propriedade pessoal que se transforma em propriedade social O que se transformou foi o caráter social da propriedade Esta perde seu caráter de classe Vejamos agora o trabalho assalariado O preço médio que se paga pelo trabalho assalariado é o mínimo de salário ou seja a soma dos meios de subsistência necessários para que o operário viva como operário Por conseguinte o que o operário recebe com o seu trabalho é o estritamente necessário para a mera conservação e reprodução de sua existência Não pretendemos de modo algum abolir essa apropriação pessoal dos produtos do trabalho indispensável à manutenção e à reprodução da vida humana uma apropriação que não deixa nenhum lucro líquido que confira poder sobre o trabalho alheio Queremos apenas suprimir o caráter miserável desta apropriação que faz com que o operário só viva para aumentar o capital e só viva na medida em que o exigem os interesses da classe dominante Na sociedade burguesa o trabalho vivo é sempre um meio de aumentar o trabalho acumulado Na sociedade comunista o trabalho acumulado é um meio de ampliar enriquecer e promover a existência dos trabalhadores Na sociedade burguesa o passado domina o presente na sociedade comunista é o presente que domina o passado Na sociedade burguesa o capital é independente e pessoal ao passo que o indivíduo que trabalha é dependente e impessoal É a supressão dessa situação que a burguesia chama de supressão da individualidade e da liberdade E com razão Porque se trata efetivamente de abolir a individualidade burguesa a independência burguesa a liberdade burguesa Por liberdade nas atuais relações burguesas de produção compreendese a liberdade de comércio a liberdade de comprar e vender Mas se o tráfico desaparece desaparecerá também a liberdade de traficar Toda a fraseologia sobre o livre comércio bem como todas as bravatas de nossa burguesia sobre a liberdade só têm sentido quando se referem ao comércio constrangido e ao burguês oprimido da Idade Média nenhum sentido têm quando se trata da supressão comunista do tráfico das relações burguesas de produção e da própria burguesia Horrorizarvos porque queremos suprimir a propriedade privada Mas em vossa sociedade a propriedade privada está suprimida para nove décimos de seus membros E é precisamente porque não existe para estes nove décimos que ela existe para vós Censurainos portanto por querermos abolir uma forma de propriedade que pressupõe como condição necessária que a imensa maioria da sociedade não possua propriedade Numa palavra censurainos por querermos abolir a vossa propriedade De fato é isso que queremos A partir do momento em que o trabalho não possa mais ser convertido em capital em dinheiro em renda da terra numa palavra em poder social capaz de ser monopolizado isto é a partir do momento em que a propriedade individual não possa mais se converter em propriedade burguesa declarais que o indivíduo está suprimido Confessais no entanto que quando falais do indivíduo quereis referirvos unicamente ao burguês ao proprietário burguês E este indivíduo sem dúvida deve ser suprimido O comunismo não priva ninguém do poder de se apropriar de sua parte dos produtos sociais apenas suprime o poder de subjugar o trabalho de outros por meio dessa apropriação Alegase ainda que com a abolição da propriedade privada toda a atividade cessaria uma inércia geral apoderarseia do mundo Se isso fosse verdade há muito que a sociedade burguesa teria sucumbido à ociosidade pois os que no regime burguês trabalham não lucram e os que lucram não trabalham Toda a objeção se reduz a essa tautologia não haverá mais trabalho assalariado quando não mais existir capital As objeções feitas ao modo comunista de produção e de apropriação dos produtos materiais foram igualmente ampliadas à produção e à apropriação dos produtos do trabalho intelectual Assim como o desaparecimento da propriedade de classe equivale para o burguês ao desaparecimento de toda a produção o desaparecimento da cultura de classe significa para ele o desaparecimento de toda a cultura A cultura cuja perda o burguês deplora é para a imensa maioria dos homens apenas um adestramento que os transforma em máquinas Mas não discutais conosco aplicando à abolição da propriedade burguesa o critério de vossas noções burguesas de liberdade cultura direito etc Vossas próprias idéias são produtos das relações de produção e de propriedade burguesas assim como o vosso direito não passa da vontade de vossa classe erigida em lei vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de vossa existência como classe Essa concepção interesseira que vos leva a transformar em leis eternas da natureza e da razão as relações sociais oriundas do vosso modo de produção e de propriedade relações transitórias que surgem e desaparecem no curso da produção é por vós compartilhada com todas as classes dominantes já desaparecidas O que aceitais para a propriedade antiga o que aceitais para a propriedade feudal já não podeis aceitar para a propriedade burguesa Supressão da família Até os mais radicais se indignam com esse propósito infame dos comunistas Sobre que fundamento repousa a família atual a família burguesa Sobre o capital sobre o ganho individual A família na sua plenitude só existe para a burguesia mas encontra seu complemento na ausência forçada da família entre os proletários e na prostituição pública A família burguesa desvanecese naturalmente com o desvanecer de seu complemento e ambos desaparecem com o desaparecimento do capital Censurainos por querermos abolir a exploração das crianças pelos seus próprios pais Confessamos este crime Dizeis também que destruimos as relações mais íntimas ao substituirmos a educação doméstica pela educação social E vossa educação não é também determinada pela sociedade pelas condições sociais em que educais vossos filhos pela intervenção direta ou indireta da sociedade por meio de vossas escolas etc Os comunistas não inventaram a intromissão da sociedade na educação apenas procuram modificar seu caráter arrancando a educação da influência da classe dominante O palavreado burguês sobre a família e a educação sobre os doces laços que unem a criança aos pais tornase cada vez mais repugnante à medida que a grande indústria destrói todos os laços familiares dos proletários e transforma suas crianças em simples artigos de comércio em simples instrumentos de trabalho Vós comunistas quereis introduzir a comunidade das mulheres gritanos toda a burguesia em coro Para o burguês a mulher nada mais é do que um instrumento de produção Ouvindo dizer que os instrumentos de produção serão explorados em comum conclui naturalmente que o destino de propriedade coletiva caberá igualmente às mulheres Não imagina que se trata preci 54 55 samente de arrancar a mulher de seu papel de simples instrumento de produção De resto nada é mais ridículo que a virtuosa indignação que os nossos burgueses em relação à pretensa comunidade oficial das mulheres que adotariam os comunistas Os comunistas não precisam introduzir a comunidade das mulheres Ela quase sempre existiu Nossos burgueses não contentes em ter à sua disposição as mulheres e as filhas dos proletários sem falar da prostituição oficial têm singular prazer em seduzir as esposas uns dos outros O casamento burguês é na realidade a comunidade das mulheres casadas No máximo poderiam acusar os comunistas de querer substituir uma comunidade de mulheres hipócrita e dissimulada por outra que seria franca e oficial De resto é evidente que com a abolição das atuais relações de produção desaparecerá também a comunidade das mulheres que deriva dessas relações ou seja a prostituição oficial e nãooficial Os comunistas também são acusados de querer abolir a pátria a nacionalidade Os operários não têm pátria Não se lhes pode tirar aquilo que não possuem Como porém o proletariado tem por objetivo conquistar o poder político e elevarse a classe dirigente da nação tornarse ele próprio nação ele é nessa medida nacional mas de modo nenhum no sentido burguês da palavra Os isolamentos e os antagonismos nacionais entre os povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento da burguesia com a liberdade de comércio com o mercado mundial com a uniformidade da produção industrial e com as condições de existência a ela correspondentes A supremacia do proletariado fará com que desapareçam ainda mais depressa A ação comum do proletariado pelo menos nos países civilizados é uma das primeiras condições para sua emancipação À medida que for suprimida a exploração do homem pelo homem será suprimida a exploração de uma nação por outra Quando os antagonismos de classes no interior das nações tiverem desaparecido desaparecerá a hostilidade entre as próprias nações As acusações feitas aos comunistas em nome da religião da filosofia e da ideologia em geral não merecem um exame aprofundado Será preciso grande inteligência para compreender que ao mudarem as relações de vida dos homens as suas relações sociais a sua existência social mudam também as suas representações as suas concepções e conceitos numa palavra muda a sua consciência Que demonstra a história das idéias senão que a produção intelectual se transforma com a produção material As idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante Quando se fala de idéias que revolucionam uma sociedade inteira isto quer dizer que no seio da velha sociedade se formaram os elementos de uma sociedade nova e que a dissolução das velhas idéias acompanha a dissolução das antigas condições de existência Quando o mundo antigo declinava as antigas religiões foram vencidas pela religião cristã quando no século XVIII as idéias cristãs cederam lugar às idéias iluministas a sociedade feudal travava sua batalha decisiva contra a burguesia então revolucionária As idéias de liberdade religiosa e de consciência não fizeram mais que proclamar o império da livre concorrência no domínio do conhecimento Mas dirão as idéias religiosas morais filosóficas políticas jurídicas etc modificaramse no curso do desenvolvimento histórico A religião a moral a filosofia a política o direito sobreviveram sempre a essas transformações Além disso há verdades eternas como a liberdade a justiça etc que são comuns a todos os regimes sociais Mas o comunismo quer abolir estas verdades eternas quer abolir a religião e a moral em lugar de lhes dar uma nova forma e isso contradiz todos os desenvolvimentos históricos anteriores A que se reduz essa acusação A história de toda a sociedade até nossos dias moveuse em antagonismos de classes antagonismos que se têm revestido de formas diferentes nas diferentes épocas Mas qualquer que tenha sido a forma assumida a exploração de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos anteriores Portanto não é de espantar que a consciência social de todos os séculos apesar de toda sua variedade e diversidade se tenha movido sempre sob certas formas comuns formas de consciência que só se dissolverão completamente com o desaparecimento total dos antagonismos de classes A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de propriedade não admira portanto que no curso de seu desenvolvimento se rompa do modo mais radical com as idéias tradicionais Mas deixemos de lado as objeções feitas pela burguesia ao movimento comunista 56 57 Vimos antes que a primeira fase da revolução operária é a elevação do proletariado a classe dominante a conquista da democracia O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital da burguesia para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado isto é do proletariado organizado como classe dominante e para aumentar o mais rapidamente possível o total das forças produtivas Isso naturalmente só poderá ser realizado a princípio por intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas isto é pela aplicação de medidas que do ponto de vista econômico parecerão insuficientes e insustentáveis mas que no desenrolar do movimento ultrapassarão a si mesmas e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo de produção Essas medidas é claro serão diferentes nos diferentes países Nos países mais adiantados contudo quase todas as seguintes medidas poderão ser postas em prática 1 Expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra para despesas do Estado 2 Imposto fortemente progressivo 3 Abolição do direito de herança 4 Confisco da propriedade de todos os emigrados e rebeldes 5 Centralização do crédito nas mãos do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e com o monopólio exclusivo 6 Centralização de todos os meios de comunicação e transporte nas mãos do Estado 7 Multiplicação das fábricas nacionais e dos instrumentos de produção arroteamento das terras incultas e melhoramento das terras cultivadas segundo um plano geral 8 Unificação do trabalho obrigatório para todos organização de exércitos industriais particularmente para a agricultura 9 Unificação dos trabalhos agrícola e industrial abolição gradual da distinção entre a cidade e o campo por meio de uma distribuição mais igualitária da população pelo país 10 Educação pública e gratuita a todas as crianças abolição do trabalho das crianças nas fábricas tal como é praticado hoje Combinação da educação com a produção material etc Quando no curso do desenvolvimento desaparecerem os antagonismos de classes e toda a produção for concentrada nas mãos dos indivíduos associados o poder público perderá seu caráter político O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forçosamente como classe se por meio de uma revolução se converte em classe dominante e como classe dominante destrói violentamente as antigas relações de produção destrói juntamente com essas relações de produção as condições de existência dos antagonismos entre as classes destrói as classes em geral e com isso sua própria dominação como classe Em lugar da antiga sociedade burguesa com suas classes e antagonismos de classes surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos III Literatura socialista e comunista 1 O socialismo reacionário a O socialismo feudal Por sua posição histórica as aristocracias da França e da Inglaterra viramse chamadas a lançar libelos contra a sociedade burguesa Na revolução francesa de julho de 1830 no movimento inglês pela reforma tinham sucumbido mais uma vez sob os golpes desta odiada arrivista A partir daí não se podia tratar de uma luta política séria só lhes restava a luta literária Mas também no domínio literário tornarase impossível a velha fraseologia da Restauração5 Para despertar simpatias a aristocracia fingiu deixar de lado seus próprios interesses e dirigiu sua acusação contra a burguesia aparentando defender apenas os interesses da classe operária explorada Desse modo entregouse ao prazer de cantarolar sátiras sobre os novos senhores e de lhes sussurrar ao ouvido profecias sinistras Assim surgiu o socialismo feudal em parte lamento em parte pasquim em parte ecos do passado em parte ameaças ao futuro Se por vezes a sua crítica amarga mordaz e espirituosa feriu a burguesia no Sob a pressão das massas a Câmara dos Comuns inglesa aprovou em 1831 uma reforma eleitoral que facilitava o acesso da burguesia industrial ao parlamento 5 Não se trata da Restauração Inglesa de 1660 a 1689 mas da Restauração Francesa de 18141830 Nota de F Engels à edição inglesa de 1888 58 59 coração sua impotência absoluta em compreender a marcha da História moderna terminou sempre produzindo um efeito cômico Para atrair o povo a aristocracia desfraudou como bandeira a sacola do mendigo mas assim que o povo acorreu percebeu que as costas da bandeira estavam ornadas com os velhos brasões feudais e dispersouse com grandes e irreverentes gargalhadas Uma parte dos legitimistas franceses e a Jovem Inglaterra ofereceram ao mundo esse espetáculo Quando os feudais demonstraram que o seu modo de exploração era diferente do da burguesia esqueceram apenas uma coisa que o feudalismo explorava em circunstâncias e condições completamente diversas hoje em dia ultrapassadas Quando ressaltam que sob o regime feudal o proletariado moderno não existia esquecem que a burguesia foi precisamente um fruto necessário de sua organização social Além disso ocultam tão pouco o caráter reacionário de sua crítica que sua principal acusação contra a burguesia consiste justamente em dizer que esta assegura sob seu regime o desenvolvimento de uma classe que fará ir pelos ares toda a antiga ordem social O que reprovam à burguesia é mais o fato de ela ter produzido um proletariado revolucionário que o de ter criado o proletariado em geral Por isso na luta política participam ativamente de todas as medidas de repressão contra a classe operária E na vida diária a despeito de sua pomposa fraseologia conformamse perfeitamente em colher as maçãs de ouro da árvore da indústria e em trocar honra amor e fidelidade pelo comércio de lã açúcar de beterraba e aguardente6 Do mesmo modo que o padre e o senhor feudal marcharam sempre de mãos dadas o socialismo clerical marcha lado a lado com o socialismo feudal Nada é mais fácil que recobrir o ascetismo cristão com um verniz socialista O cristianismo também não se ergueu contra a propriedade privada o matrimônio o Estado E em seu lugar não pregou a caridade e a pobreza o celibato e a mortificação da carne a vida monástica e a Igreja O socialismo cristão não passa da água benta com que o padre abençoa o desfeito da aristocracia b O socialismo pequenoburguês A aristocracia feudal não é a única classe arruinada pela burguesia não é a única classe cujas condições de existência se atrofiarn e perecem na sociedade burguesa moderna Os pequenos burgueses e os pequenos camponeses da Idade Média foram os precursores da burguesia moderna Nos países onde o comércio e a indústria são pouco desenvolvidos esta classe continua a veget ar ao lado da burguesia em ascensão Nos países onde a civilização moderna está florescente formase uma nova classe de pequenos burgueses que oscila entre o proletariado e a burguesia fração complementar da sociedade burguesa reconstituindose sempre como os membros dessa classe no entanto se vêem constantemente precipitados no proletariado devido à concorrência e com a marcha progressiva da grande indústria sentem aproximarse o momento em que desaparecerão completamente como fração independente da sociedade moderna e em que serão substituídos no comércio na manufatura e na agricultura por supervisores capatazes e empregados Em países como a França onde os camponeses constituem bem mais da metade da população era natural que os escritores que se batiam pelo proletariado e contra a burguesia aplicassem à sua crítica do regime burguês critérios do pequeno burguês e do pequeno camponês e defendessem a causa operária do ponto de vista da pequena burguesia Desse modo se formou o socialismo pequenoburguês Sismondi é o chefe dessa literatura não somente na França mas também na Inglaterra Esse socialismo dissecou com muita perspicácia as contradições inerentes às modernas relações de produção Pôs a nu as hipócritas apologias dos economistas Demonstrou de um modo irrefutável os efeitos mortíferos das máquinas e da divisão do trabalho da concentração dos capitais e da propriedade territorial a superprodução as crises a decadência inevitável dos pequenos burgueses e pequenos camponeses a miséria do proletariado a anarquia na produção a clamorosa desproporção na distribuição das riquezas a guerra industrial de extermínio entre as nações a dissolução dos velhos costumes das velhas relações de família das velhas nacionalidades Quanto ao seu conteúdo positivo porém o socialismo pequeno 6 Isto se refere sobretudo à Alemanha onde a aristocracia latifundiária cultiva por conta própria grande parte de suas terras com ajuda de administradores e é além disso produtora de açúcar de beterraba e destiladores de aguardente Os mais prósperos aristocratas britânicos se encontram por enquanto acima disso mas também sabem como compensar a diminuição de suas rendas emprestando seus nomes aos fundadores de sociedades anônimas de reputação mais ou menos duvidosa Nota de F Engels à edição inglesa de 1888 60 61 burg uês quer ou restabelecer os antigos meios de produção e de troca e com eles as antigas relações de propriedade e toda a antiga sociedade ou então fazer entrar à força os meios modernos de produção e de troca no quadro estreito das antigas relações de propriedade que foram destruídas e necessariamente despedaçadas por eles Num e noutro caso esse socialismo é ao mesmo tempo reacionário e utópico Sistema corporativo na manufatura e economia patriarcal no campo eis suas últimas palavras Por fim quando os obstinados fatos históricos dissiparamlhe a embriaguez essa escola socialista abandonouse a uma covarde ressaca c O socialismo alemão ou o verdadeiro socialismo A literatura socialista e comunista da França nascida sob a pressão de uma burguesia dominante e expressão literária da revolta contra esse domínio foi introduzida na Alemanha quando a burguesia começava a sua luta contra o absolutismo feudal Filósofos semifilósofos e impostores alemães lançaramse avidamente sobre essa literatura mas esqueceramse de que com a importação da literatura francesa na Alemanha não eram importadas ao mesmo tempo as condições de vida da França Nas condições alemãs a literatura francesa perdeu toda a significação prática imediata e tomou um caráter puramente literário Aparecia apenas como especulação ociosa sobre a realização da essência humana Assim as reivindicações da primeira revolução francesa só eram para os filósofos alemães do século XVIII as reivindicações da razão prática em geral e a manifestação da vontade dos burgueses revolucionários da França não expressava a seus olhos senão as leis da vontade pura da vontade tal como deve ser da vontade verdadeiramente humana O trabalho dos literatos alemães limitouse a colocar as idéias francesas em harmonia com a sua velha consciência filosófica ou melhor a apropriarse delas da mesma forma com que se assimila uma língua estrangeira pela tradução Sabese que os monges escreveram hagiografias católicas insípidas sobre os manuscritos em que estavam registradas as obras clássicas da antiguidade pagã Os literatos alemães agiram em sentido inverso a respeito da literatura francesa profana Introduziram suas insanidades filosóficas no original francês Por exemplo sob a crítica francesa das funções do dinheiro escreveram alienação da essência humana sob a crítica francesa do Estado burguês escreveram superação do domínio da universalidade abstrata e assim por diante A esta interpolação do palavreado filosófico nas teorias francesas deram o nome de filosofia da ação verdadeiro socialismo ciência alemã do socialismo justificação filosófica do socialismo etc Desse modo emasculam completamente a literatura socialista e comunista francesa E como nas mãos dos alemães essa literatura tinha deixado de ser a expressão da luta de uma classe contra outra eles se felicitaram por teremse elevado acima da estreiteza francesa e terem defendido não verdadeiras necessidades mas a necessidade da verdade não os interesses do proletário mas os interesses do ser humano do homem em geral do homem que não pertence a nenhuma classe nem à realidade alguma e que só existe no céu brumoso da fantasia filosófica Esse socialismo alemão que levava tão solenemente a sério seus canhestros exercícios de escolar e que os apregoava tão charlatanesamente foi perdendo pouco a pouco sua inocência pedante A luta da burguesia alemã e especialmente da burguesia prussiana contra os feudais e a monarquia absoluta numa palavra o movimento liberal tornouse mais séria Desse modo apresentouse ao verdadeiro socialismo a tão desejada oportunidade de contrapor ao movimento político as reivindicações socialistas de lançar os anátemas tradicionais contra o liberalismo o regime representativo a concorrência burguesa a liberdade burguesa de imprensa o direito burguês a liberdade e a igualdade burguesas de pregar às massas que nada tinham a ganhar mas pelo contrário tudo a perder nesse movimento burguês O socialismo alemão esqueceu bem a propósito que a crítica francesa da qual era o eco monótono pressupunha a sociedade burguesa moderna com as condições materiais de existência que lhe correspondem e uma constituição política adequada precisamente as coisas que na Alemanha estava ainda por conquistar Esse socialismo serviu de espantalho para amedrontar a burguesia ameaçadoramente ascendente aos governos absolutos da Alemanha com seu cortejo de padres pedagogos fidalgos rurais e burocratas Juntou sua hipocrisia adocicada aos tiros de fuzil e às chicotadas com que esses mesmos governos respondiam aos levantes dos operários alemães Se o verdadeiro socialismo se tornou assim uma arma nas mãos dos governos contra a burguesia alemã representou também diretamente 62 63 um interesse reacionário o interesse da pequena burguesia alemã A classe dos pequenos burgueses legada pelo século XVI e desde então renascendo sem cessar sob formas diversas constitui na Alemanha a verdadeira base social do regime estabelecido Mantêla é manter na Alemanha o regime estabelecido A supremacia industrial e política da burguesia ameaça a pequena burguesia de destruição de um lado pela concentração do capital de outro pelo desenvolvimento de um proletariado revolucionário O verdadeiro socialismo pareceu aos pequenos burgueses uma arma capaz de aniquilar esses dois inimigos Propagouse como uma epidemia A roupagem tecida com os fios imateriais da especulação bordada com as flores da retórica e banhada de orvalho sentimental essa roupagem na qual os socialistas alemães envolveram o miserável esqueleto das suas verdades eternas não fez senão ativar a venda de sua mercadoria entre aquele público Por seu lado o socialismo alemão compreendeu cada vez mais que sua vocação era ser o representante grandiloqüente dessa pequena burguesia Proclamou que a nação alemã era a nação modelo e o pequeno burguês alemão o homem modelo A todas as infâmias desse homem modelo atribuiu um sentido oculto um sentido superior e socialista que as tornava exatamente o contrário do que eram Foi conseqüente até o fim levantandose contra a tendência brutalmente destrutiva do comunismo declarando que pairava imparcialmente acima de todas as lutas de classes Com raras exceções todas as pretensas publicações socialistas ou comunistas que circulam na Alemanha pertencem a esta suja e debilitante literatura7 2 O socialismo conservador ou burguês Uma parte da burguesia procura remediar os males sociais para a existência da sociedade burguesa Nessa categoria enfileiramse os economistas os filantropos os humanitários os que se ocupam em melhorar a sorte da classe operária os organizadores de beneficências os protetores dos animais os fundadores das sociedades antialcoólicas enfim os reformadores de gabinete de toda categoria Esse socialismo burguês chegou até a ser elaborado em sistemas completos Como exemplo citemos a Filosofia da Miséria de Proudhon Os socialistas burgueses querem as condições de vida da sociedade moderna sem as lutas e os perigos que dela decorrem fatalmente Querem a sociedade atual mas eliminando os elementos que a revolucionam e dissolve m Querem a burguesia sem o proletariado A burguesia naturalmente concebe o mundo em que domina como o melhor dos mundos O socialismo burguês elabora em um sistema mais ou menos completo essa concepção consoladora Quando convida o proletariado a realizar esses sistemas e entrar na nova Jerusalém no fundo o que pretende é induzilo a manterse na sociedade atual desembaraçandose porém do ódio que sente por essa sociedade Uma segunda forma desse socialismo menos sistemática porém mais prática procura fazer com que os operários se afastem de qualquer movimento revolucionário demonstrandolhes que não será tal ou qual mudança política mas somente uma transformação das condições de vida material e das relações econômicas que poderá ser proveitosa para eles Por transformação das condições materiais de existência esse socialismo não compreende em absoluto a abolição das relações burguesas de produção que só é possível pela via revolucionária mas apenas reformas administrativas realizadas sobre a base das próprias relações de produção burguesas e que portanto não afetam as relações entre o capital e o trabalho assalariado servindo no melhor dos casos para diminuir os gastos da burguesia com sua dominação e simplificar o trabalho administrativo de seu Estado O socialismo burguês só atinge sua expressão correspondente quando se torna simples figura de retórica Livre comércio no interesse da classe operária Tarifas protetoras no interesse da classe operária Prisões celulares no interesse da classe operária Eis a última palavra do socialismo burguês a única pronunciada à sério O seu raciocínio se resume na frase os burgueses são burgueses no interesse da classe operária 3 O socialismo e o comunismo críticoutópicos Não se trata aqui da literatura que em todas as grandes revoluções modernas exprimiu as reivindicações do proletariado escritos de Babeuf etc As primeiras tentativas diretas do proletariado para fazer prevalecer seus próprios interesses de classe feitas numa época de agitação geral no período da derrubada da sociedade feudal fracassaram necessariamente não só por causa do estado embrionário do próprio proletariado como devido à ausência das condições materiais de sua emancipação condições que apenas surgem como produto da época burguesa A literatura revolucionária que acompanhava esses primeiros movimentos do proletariado teve forçosamente um conteúdo reacionário Preconizava um ascetismo geral e um grosseiro igualitarismo Os sistemas socialistas e comunistas propriamente ditos os de SaintSimon Fourier Owen etc aparecem no primeiro período da luta entre o proletariado e a burguesia período anteriormente descrito ver Burgueses e proletários Os fundadores desses sistemas compreendem bem o antagonismo das classes assim como a ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante Mas não percebem no proletariado nenhuma iniciativa histórica nenhum movimento político que lhes seja peculiar Como o desenvolvimento dos antagonismos de classes acompanha o desenvolvimento da indústria não distinguem tampouco as condições materiais da emancipação do proletariado e põemse à procura de uma ciência social de leis sociais que permitam criar essas condições Substituem a atividade social por sua própria imaginação pessoal as condições históricas da emancipação por condições fantásticas a organização gradual e espontânea do proletariado em classe por uma organização da sociedade préfabricada por eles A história futura do mundo se resume para eles na propaganda e na execução prática de seus planos de organização social Todavia na confecção de seus planos têm a convicção de defender antes de tudo os interesses da classe operária como a classe mais sofredora A classe operária só existe para eles sob esse aspecto o de classe mais sofredora Mas a forma rudimentar da luta de classes e sua própria posição social os levam a considerarse muito acima de qualquer antagonismo de classe Desejam melhorar as condições materiais de vida de todos os membros da sociedade mesmo dos mais privilegiados Por isso não cessam de apelar indistintamente à sociedade inteira e de preferência à classe dominante Bastaria compreender seu sistema para reconhecêlo como o melhor plano possível para a melhor sociedade possível Rejeitam portanto toda ação política e sobretudo toda ação revolucionária procuram atingir seu objetivo por meios pacíficos e tentam abrir um caminho ao novo evangelho social pela força do exemplo com experiências em pequena escala e que naturalmente sempre fracassam Essa descrição fantástica da sociedade futura feita numa época em que o proletariado ainda pouco desenvolvido encara sua própria posição de um modo fantástico corresponde às primeiras aspirações instintivas dos operários a uma completa transformação da sociedade Mas as obras socialistas e comunistas encerram também elementos críticos Atacam todas as bases da sociedade existente Por isso fornecem em seu tempo materiais de grande valor para esclarecer os operários Suas proposições positivas sobre a sociedade futura tais como a supressão do contraste entre a cidade e o campo a abolição da família do lucro privado e do trabalho assalariado a proclamação da harmonia social e a transformação do Estado numa simples administração da produção todas essas propostas apenas exprimem o desaparecimento do antagonismo entre as classes antagonismo que mal começa e que esses autores somente conhecem em suas formas imprecisas Assim essas proposições têm ainda um sentido puramente utópico A importância do socialismo e do comunismo críticoutópicos está na razão inversa do seu desenvolvimento histórico À medida que a luta de classes se acentua e toma formas mais definidas a fantástica pressa de abstrairse dela essa fantástica oposição que lhe é feita perde qualquer valor prático qualquer justificação teórica Por isso se em muitos aspectos os fundadores desses sistemas foram revolucionários as seitas formadas por seus discípulos formam sempre seitas reacionárias Aferramse às velhas concepções de seus mestres apesar do desenvolvimento histórico contínuo do proletariado Procuram portanto e nisto são conseqüentes atenuar a luta de classes e conciliar os antagonismos Continuam a sonhar com a realização experimental de suas utopias sociais instituição de falanstérios isolados criação de colônias no interior fundação de uma pequena Icária8 edição em for mato reduzido da nova Jerusalém e para dar realidade a todos esses castelos no ar vêemse obrigados a apelar para os bons sentimentos e os cofres dos filantropos burgueses Pouco a pouco caem na categoria dos socialistas reacionários ou conservadores descritos anteriormente e só se distinguem deles por um pedantismo mais sistemático uma fé supersticiosa e fanática nos efeitos miraculosos de sua ciência social Por isso se opõem com exasperação a qualquer ação política da classe operária porque em sua opinião tal ação só poderia decorrer de uma descrença cega no novo evangelho Desse modo os owenistas na Inglaterra e os fourieristas na França reagem respectivamente contra os cartistas e os reformistas IV Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição O que já dissemos no capítulo II basta para determinar a relação dos comunistas com os partidos operários já constituídos e por conseguinte sua relação com os cartistas na Inglaterra e os reformadores agrários na América do Norte Os comunistas lutam pelos interesses e objetivos imediatos da classe operária mas ao mesmo tempo defendem e representam no movimento atual o futuro do movimento Aliamse na França ao partido socialdemocrata9 contra a burguesia conservadora e radical reservandose o direito de criticar a fraseologia e as ilusões legadas pela tradição revolucionária Na Suíça apóiam os radicais sem esquecer que esse partido se compõe de elementos contraditórios em parte socialistas democráticos no sentido francês da palavra em parte burgueses radicais Na Polônia os comunistas apóiam o partido que vê numa revolução agrária a condição da libertação nacional o partido que desencadeou a insurreição de Cracóvia em 1846 Na Alemanha o Partido Comunista luta junto com a burguesia todas as vezes que esta age revolucionariamente contra a monarquia absoluta a propriedade rural feudal e a pequena burguesia Mas em nenhum momento esse Partido se descuida de despertar nos operários uma consciência clara e nítida do violento antagonismo que existe entre a burguesia e o proletariado para que na hora precisa os operários alemães saibam converter as condições sociais e políticas criadas pelo regime burguês em outras tantas armas contra a burguesia para que logo após terem sido destruídas as classes reacionárias da Alemanha possa ser travada a luta contra a própria burguesia É sobretudo para a Alemanha que se volta a atenção dos comunistas porque a Alemanha se encontra às vésperas de uma revolução burguesa e porque realizará essa revolução nas condições mais avançadas da civilização européia e com um proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra no século XVII e o da França no século XVIII e por que a revolução burguesa alemã só poderá ser portanto o prelúdio imediato de uma revolução proletária Em resumo os comunistas apóiam em toda parte qualquer movimento revolucionário contra a ordem social e política existente Em todos estes movimentos colocam em destaque como questão fundamental a questão da propriedade qualquer que seja a forma mais ou menos desenvolvida de que esta se revista Finalmente os comunistas trabalham pela união e pelo entendimento dos partidos democráticos de todos os países Os comunistas se recusam a dissimular suas opiniões e seus fins Proclamam abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente Que as classes dominantes tremam à idéia de uma revolução comunista Nela os proletários nada têm a perder a não ser os seus grilhões Têm um mundo a ganhar PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES UNIVOS PREFÁCIOS DE MARX E ENGELS Prefácio à edição alemã de 1872 A Liga dos Comunistas associação internacional de operários que nas condições de então só poderia ser secreta incumbiu os abaixo assinados por ocasião do congresso realizado em Londres em novembro de 1847 de escrever para fins de publicação um programa detalhado teórico e prático do partido Foi esta a origem do Manifesto que se segue cujo manuscrito foi enviado a Londres para impressão poucas semanas antes da revolução de fevereiro Primeiramente publicado em alemão teve pelo menos umas doze edições diferentes nessa língua na Alemanha na Inglaterra e na América do Norte Foi publicado em inglês pela primeira vez em 1850 no Red Republican de Londres traduzido pela Srta Helen Macfarlane e teve em 1871 pelo menos três traduções diferentes na América do Norte A primeira versão francesa foi publicada em Paris pouco antes da insurreição de junho de 1848 e recentemente no Le Socialiste de Nova York Há atualmente uma nova tradução sendo preparada Uma versão polonesa apareceu em Londres pouco depois da primeira edição alemã Uma tradução russa foi publicada em Genebra na década de 1860 Também para o dinamarquês foi traduzido pouco depois de sua primeira publicação Por mais que tenham mudado as condições nos últimos 25 anos os princípios gerais expressados nesse Manifesto conservam em seu conjunto toda a sua exatidão Em algumas partes certos detalhes devem ser melhorados Segundo o próprio Manifesto a aplicação prática dos princípios dependerá em todos os lugares e em todas as épocas das condições históricas vigentes e por isso não se deve atribuir importância demasiada às medidas revolucionárias propostas no final da seção II Hoje em dia esse trecho seria redigido Das últimas mencionadas apenas a tradução russa foi de fato encontrada 71 156 de maneira diferente em muitos aspectos Em certos pormenores esse programa está antiquado levandose em conta o desenvolvimento colossal da indústria moderna desde 1848 os progressos correspondentes da organização da classe operária e a experiência prática adquirida primeiramente na revolução de fevereiro e mais ainda na Comuna de Paris onde coube ao proletariado pela primeira vez a posse do poder político durante quase dois meses A Comuna de Paris demonstrou especialmente que não basta que a classe trabalhadora se apodere da máquina estatal para fazêla servir a seus próprios finsver A Guerra Civil na França Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1871 onde essa idéia é mais desenvolvida Além do mais é evidente que a crítica da literatura socialista mostrase deficiente em relação ao presente porque só chega a 1847 as observações sobre as relações dos comunistas com os diferentes partidos de oposição seção IV embora em princípio corretas na prática estão desatualizadas pois a situação política modificouse totalmente e o desenvolvimento histórico fez desaparecer a maior parte dos partidos ali enumerados Entretanto o Manifesto tornouse um documento histórico que não nos cabe mais alterar Uma edição futura talvez apareça acompanhada de uma introdução que preencha a lacuna entre 1847 e os nossos dias a atual reimpressão foi inesperada demais para que tivéssemos tempo de escrevêla Karl Marx e Friedrich Engels Londres 24 de junho de 1872 Prefácio à edição russa de 1882 A primeira edição russa do Manifesto do Partido Comunista traduzida por Bakunin foi impressa em princípios da década de 1860 na tipografia do Kolokol Naquela época o Ocidente via nessa edição uma simples curiosidade literária Hoje em dia essa concepção seria impossível O campo limitado do movimento proletário daquele tempo dezembro de 1847 está expresso na última parte do Manifesto a posição dos comunistas em relação aos vários partidos de oposição nos diferentes países A Rússia e os Estados Unidos precisamente não foram mencionados Era a época em que a Rússia se constituía na última grande reserva da reação européia e em que os Estados Unidos absorviam o excedente das forças proletárias da Europa que para lá emigravam Ambos os países proviam a Europa de matériasprimas sendo ao mesmo tempo mercado para a venda de seus produtos industriais De uma maneira ou de outra eram portanto pilares da ordem européia vigente Que diferença hoje Foi justamente a imigração européia que possibilitou à América do Norte a produção agrícola em proporções gigantescas cuja concorrência está abalando os alicerces da propriedade rural européia a grande como a pequena Ao mesmo tempo deu aos Estados Unidos a oportunidade de explorar seus imensos recursos industriais com tal energia e em tais proporções que dentro em breve arruinarão o monopólio industrial da Europa ocidental especialmente o da Inglaterra Essas duas circunstâncias repercutem de maneira revolucionária na própria América do Norte Pouco a pouco a pequena e a média propriedade rural a base do regime político em sua totalidade sucumbe diante da competição das fazendas gigantescas ao mesmo tempo formamse pela primeira vez nas regiões industriais um numeroso proletariado e uma concentração fabulosa de capitais E a Rússia Durante a revolução de 184849 os príncipes e a burguesia europeus viam na intervenção russa a única maneira de escapar do proletariado que despertava O czar foi proclamado chefe da reação européia Hoje ele é em Gatchina prisioneiro de guerra da revolução e a Rússia forma a vanguarda da ação revolucionária na Europa O Manifesto Comunista tinha como tarefa a proclamação do desaparecimento próximo e inevitável da moderna propriedade burguesa Mas na Rússia vemos que ao lado do florescimento acelerado da velhacaria capitalista e da propriedade burguesa que começa a desenvolverse mais da metade das terras é possuída em comum pelos camponeses O problema agora é poderia a obshchina russa forma já muito deteriorada da antiga posse em comum da terra transformarse diretamente na propriedade comunista Ou ao contrário deveria primeiramente passar pelo mesmo processo de dissolução que constitui a evolução histórica do Ocidente Hoje em dia a única resposta possível é a seguinte se a revolução russa constituirse no sinal para a revolução proletária no Ocidente de modo que uma complemente a outra a atual propriedade comum da terra na Rússia poderá servir de ponto de partida para uma evolução comunista Karl Marx e Friedrich Engels Londres 21 de janeiro de 1882 Nunca foram confirmadas as afirmações de que o tradutor tenha sido Mikhail Bakunin e a impressão feita na tipografia do Kolokol jornal democráticorevolucionário editado em Genebra Comunidade rural aldeã 72 157 Prefácio à edição alemã de 1883 Tenho infelizmente de assinar sozinho o prefácio à presente edição Marx o homem a quem toda a classe trabalhadora da Europa e da América deve mais serviços do que a qualquer outro jaz agora no cemitério de Highgate e sobre seu túmulo já reverdece a primeira relva Depois de sua morte não se pode mais pensar em rever ou complementar o Manifesto Por isso considero ainda mais necessário lembrar expressamente o seguinte A idéia fundamental que percorre todo o Manifesto é a de que em cada época histórica a produção econômica e a estrutura social que dela necessariamente decorre constituem a base da história política e intelectual dessa época que conseqüentemente desde a dissolução do regime primitivo da propriedade comum da terra toda a História tem sido a história da luta de classes da luta entre explorados e exploradores entre as classes dominadas e as dominantes nos vários estágios da evolução social que essa luta porém atingiu um ponto em que a classe oprimida e explorada o proletariado não pode mais libertarse da classe que a explora e oprime a burguesia sem que ao mesmo tempo liberte para sempre toda sociedade da exploração da opressão e da luta de classes este pensamento fundamental pertence única e exclusivamente a Marx1 Já afirmei isso diversas vezes mas exatamente agora é preciso que esta declaração se torne bem clara no frontispício do Manifesto Friedrich Engels Londres 28 de junho de 1883 Prefácio à edição inglesa de 1888 O Manifesto foi publicado como plataforma da Liga dos Comunistas associação de operários no princípio exclusivamente alemã e mais tarde internacional que nas condições políticas do continente anteriores a 1848 era inevitavelmente uma sociedade secreta No Congresso da Liga realizado em Londres em novembro de 1847 Marx e Engels foram incumbidos de escrever para fins de publicação um completo programa teórico e prático do partido Redigido em alemão em janeiro de 1848 o manuscrito foi enviado ao editor de Londres poucas semanas antes da revolução francesa de 24 de fevereiro Uma tradução francesa apareceu em Paris pouco antes da insurreição de junho de 1848 A primeira tradução inglesa da Srta Helen Macfarlane foi publicada no Red Republican de George Julian Harney Londres 1850 Também foi publicado em dinamarquês e polonês A derrota da insurreição parisiense de junho de 1848 a primeira grande batalha entre o proletariado e a burguesia colocou novamente em um segundo plano as aspirações sociais e políticas do operariado europeu A partir de então a luta pela supremacia voltou a ser como o fora antes da revolução de fevereiro simplesmente uma luta entre diferentes camadas da classe proprietária a classe operária foi levada a limitarse a uma luta pela conquista de espaços políticos assumindo posições da ala extrema dos radicais da classe média Onde quer que o movimento proletário independente manifestasse sinais de vida era logo impiedosamente esmagado A polícia prussiana descobriu o Comitê Central da Liga dos Comunistas então sediado em Colônia Seus membros foram presos e após dezoito meses de encarceramento julgados em outubro de 1852 O célebre Processo Comunista de Colônia estendeuse de 4 de outubro a 12 de novembro sete prisioneiros foram condenados a penas que variavam entre 3 e 6 anos de prisão numa fortaleza Imediatamente após a sentença a Liga foi formalmente dissolvida pelos membros remanescentes Quanto ao Manifesto este parecia ficar a partir de então relegado ao esquecimento Quando os operários europeus reuniram forças suficientes para um novo assalto ao poder das classes dirigentes surgiu a Associação Internacional dos Trabalhadores Seu objetivo era englobar num único e poderoso exército todo o operariado militante da Europa e da América Portanto não poderia partir dos princípios expressos no Manifesto Devia ter um programa que não fechasse as portas às Trades Unions inglesas aos proudhonistas franceses belgas italianos e espanhóis ou aos lassalleanos2 alemães Este programa as considerações básicas da In 1 Sobre este pensamento escrevi no prefácio da tradução inglesa de 1888 Pouco a pouco vários anos antes de 1845 fomos elaborando essa idéia que em minha opinião será para a História o que foi para a Biologia a teoria de Darwin O meu livro A Situação da Classe Operária na Inglaterra revela até onde fui autonomamente nessa direção Mas quando reencontrei Marx em Bruxelas na primavera de 1845 ele já a elaborara completamente expondoa diante de mim em termos quase tão claros quantos os que expressei aqui Nota de Engels à edição alemã de 1890 2 Perante nós pessoalmente Lassalle sempre se reconheceu como sendo discípulo de Marx e como tal situavase no terreno do Manifesto Mas na sua agitação pública de 18621864 ele não foi além da reivindicação de oficinas cooperativas sustentadas por crédito estatal Nota de Engels 74 75 ternacional foi redigido por Marx com maestria reconhecida até por Bakunin e pelos anarquistas Para o triunfo decisivo das idéias formuladas pelo Manifesto Marx dependia unicamente do desenvolvimento intelectual da classe operária o qual deveria resultar da unidade da ação e da discussão Os acontecimentos e as vicissitudes da luta contra o capital as derrotas maiores que as vitórias poderiam apenas mostrar aos combatentes a insuficiência de todas as panacéias em que acreditavam fazendoos compreender melhor as verdadeiras condições da emancipação da classe operária E Marx tinha razão A classe trabalhadora de 1874 por ocasião da dissolução da Internacional era em geral diferente da de 1864 quando da sua fundação O proudhonismo do países latinos e o lassallismo propriamente dito na Alemanha estavam desaparecendo e até mesmo as Trades Unions inglesas então ultraconservadoras se aproximaram pouco a pouco daquilo que em 1887 o presidente do seu Congresso de Swansea dizia O socialismo continental não mais nos aterroriza Mas por essa época o socialismo continental confundiase quase que exclusivamente com a teoria formulada no Manifesto Assim o Manifesto propriamente dito tomou novamente a dianteira Desde 1850 o texto alemão fora editado várias vezes na Suíça na Inglaterra e na América do Norte Em 1872 foi traduzido para o inglês em Nova York sendo publicado no Woodhull and Claflins Weekly Da versão inglesa foi feita a francesa que surgiu no Le Socialiste de Nova York Desde então publicaramse mais duas traduções inglesas na América mais ou menos incompletas e uma delas foi editada na Inglaterra A primeira tradução russa de autoria de Bakunin foi publicada na gráfica Kolokol de Herzen em Genebra por volta de 1863 a segunda pela heróica Vera Zasúlitch também foi publicada em Genebra em 1882 Encontrase uma edição dinamarquesa de 1885 no Socialdemokratisk Bibliothek de Copenhague e uma francesa no Le Socialiste de 1886 em Paris Dessa última publicouse uma versão espanhola em 1886 em Madri Perdeuse a conta das edições alemãs houve pelo menos doze delas Eu soube que uma tradução armênia que deveria ser publicada em Constantinopla há alguns anos atrás não se verificou porquê o editor teve medo de publicar um livro O tradutor foi na verdade George Plekhánov 18561918 Engels reconhecerá este erro em um artigo no Soziales aus Russiand em 1894 Nesta edição os erros da primeira tradução atribuída por Marx e Engels a Bakunin foram eliminados e com ela iniciouse uma ampla difusão das idéias do Manifesto na Rússia não pode mais libertarse da classe que explora e oprime a burguesia sem que ao mesmo tempo liberte de uma vez por todas toda a sociedade da exploração da opressão do sistema de classes e da luta entre elas Pouco a pouco vários anos antes de 1845 fomos elaborando essa idéia que em minha opinião será para a História o que foi para a Biologia a teoria de Darwin O meu livro A Situação da Classe Operária na Inglaterrra3 revela até onde fui nessa direção Mas quando reencontrei Marx em Bruxelas na primavera de 1845 ele já a elaborara completamente expondoa diante de mim mais ou menos tão claramente como fiz aqui Do nosso prefácio comum à edição alemã de 1872 cito o seguinte Engels transcreve aqui o segundo parágrafo e a primeira frase do terceiro do referido prefácio A presente tradução é de Samuel Moore o tradutor da maior parte de O Capital de Marx Fizemos a revisão juntos e acrescentei algumas notas com explicações históricas Friedrich Engels Londres 30 de janeiro de 1888 Prefácio à edição alemã de 1890 Após o que foi escrito além da necessidade de uma nova edição alemã surgiram vários fatos que merecem ser lembrados aqui Uma segunda tradução russa por Vera Zasúlitch apareceu em Genebra em 1882 seu prefácio foi escrito por Marx e por mim Infelizmente perdi o manuscrito original alemão tenho portanto que retraduzir do russo o que de maneira alguma é favorável ao texto Aqui Engels reproduz com pequenas alterações o prefácio escrito para a edição russa de 1882 Mais ou menos na mesma época surgiu em Genebra uma nova versão polonesa Manifest Kommunistczny Mais tarde apareceu uma nova tradução dinamarquesa no Socialdemokratisk Bibliothek de Copenhague 1885 Infelizmente não está completa algumas passagens essenciais que ao que parece estavam dando muito trabalho ao tradutor foram omitidas e há também alguns sinais de descuido os quais se tornam ainda mais desagradavelmente evidentes quando se percebe que o tradutor teria feito um excelente trabalho se tivesse se esforçado um pouco mais Apareceu uma nova versão francesa em 1886 no Le Socialiste de Paris esta aliás é a melhor edição até agora Uma versão espanhola dessa última foi publicada no mesmo ano no El Socialista de Madri aparecendo depois sob forma de opúsculo Manifesto del Partido Comunista por Carlos Marx y F Engels Madri Administración de El socialista Hernán Cortés 8 Como curiosidade posso acrescentar que o manuscrito de uma tradução espanhola foi apresentado a um editor em Constantinopla Mas o bom homem não teve coragem de publicar algo que levasse o nome de Marx sugerindo que o tradutor pusesse seu próprio nome como autor da obra o que ele recusou Depois que várias das pouco exatas traduções americanas foram repetidamente editadas na Inglaterra uma versão autêntica apareceu finalmente em 1888 graças a meu amigo Samuel Moore nós a repassamos juntos antes de enviála à editora É intitulada Manifesto of the Communist Party de Karl Marx e Friedrich Engels tradução inglesa autorizada editada com observações de Friedrich Engels 1888 Londres William Reeves 185 Fleet Street E C Reproduzi algumas notas dessa edição na atual O Manifesto tem sua própria história Saudado com entusiasmo por ocasião de seu aparecimento pela vanguarda então pouco numerosa do socialismo científico como o provam as traduções mencionadas no primeiro prefácio foi logo colocado num segundo plano pela reação que se seguiu à derrota dos operários em Paris em junho de 1848 e proscrito pela lei com a condenação dos comunistas de Colônia em novembro de 1852 Com o desaparecimento da cena pública do movimento operário que começara com a revolução de fevereiro também o Manifesto passou a um segundo plano Aqui Engels praticamente transcreve o terceiro e o quinto parágrafos do prefácio à edição inglesa de 1888 Proletários de todos os países univos Somente algumas vozes responderam quando lançamos essas palavras ao mundo há 42 anos às vésperas da primeira revolução de Paris na qual o proletariado colocou as suas reivindicações Em 28 de setembro de 1864 entretanto os proletários da maior parte dos países da Europa ocidental reuniramse na Associação Internacional dos Trabalhadores de gloriosa memória É verdade que a Internacional em si só viveu nove anos Mas não há testemunho que levasse o nome de Marx e o tradutor recusou divulgála como obra sua Já ouvi falar de outras traduções em outras línguas embora não as tenha visto Portanto a história do Manifesto reflete em grande parte a história do movimento operário moderno atualmente é sem dúvida a obra de maior circulação a mais internacional de toda a literatura socialista o programa comum adotado por milhões de trabalhadores da Sibéria à Califórnia No entanto quando surgiu não poderíamos chamálo um manifesto socialista Em 1847 consideravamse socialistas dois tipos diversos de pessoas De um lado havia os adeptos dos vários sistemas utópicos principalmente os owenistas na Inglaterra e os fourieristas na França ambos já reduzidos a meras seitas agonizantes De outro os vários gêneros de curandeiros sociais que queriam eliminar por meio de suas várias panacéias e com todas as espécies de cataplasma as misérias sociais sem tocar no capital e no lucro Nos dois casos eram pessoas que não pertenciam ao movimento dos trabalhadores preferindo apoiarse nas classes cultas Em contrapartida o setor da classe trabalhadora que exigia uma transformação radical da sociedade convencido de que revoluções meramente políticas eram insuficientes denominavase então comunista Tratavase ainda de um comunismo mal esboçado instintivo e por vezes grosseiro Mas era bastante poderoso para dar origem a dois sistemas de comunismo utópico na França o icariano de Cabet e na Alemanha o de Weitling Em 1847 o socialismo significava um movimento burguês e o comunismo um movimento da classe trabalhadora Ao menos no continente o socialismo era muito bem considerado enquanto o comunismo era o oposto E como desde então éramos decididamente da opinião de que a emancipação dos trabalhadores deve ser obra da própria classe trabalhadora não podíamos hesitar entre os dois nomes a escolher Posteriormente nunca pensamos em modificálo Sendo o Manifesto nossa obra comum cabese declarar que a proposição fundamental pertence a Marx Essa proposição é a de que em cada época histórica a produção econômica o sistema de trocas e a estrutura social que dela necessariamente decorre constituem a base e a explicação da história política e intelectual dessa época que conseqüentemente desde a dissolução do regime primitivo de propriedade comum da terra toda a história da humanidade tem sido a história da luta de classes conflitos entre explorados e exploradores entre as classes dominadas e as dominantes que a história dessas lutas de classes se constitui de uma série de etapas atingindo hoje um ponto em que a classe oprimida e explorada o proletariado melhor do que o dia de hoje de que a eterna união dos proletários de todos os países por ela criada existe ainda e está mais poderosa do que nunca Hoje quando escrevo essas linhas o proletariado europeu e o americano passam em revista suas forças de combate pela primeira vez mobilizados em um único exército sob uma única bandeira por um único objetivo imediato a fixação legal da jornada normal de oito horas de trabalho segundo decisão do Congresso Internacional reunido em Genebra em 1866 e do Congresso Operário de Paris reunido em 1889 O espetáculo de hoje mostrará aos capitalistas e proprietários agrícolas de todos os países que de fato os proletários de todos os países estão unidos Se ao menos Marx estivesse a meu lado para ver isso com seus próprios olhos Friedrich Engels Londres 1º de maio de 1890 Prefácio à edição polonesa de 1892 O fato de se ter tornado necessária uma nova edição polonesa do Manifesto Comunista dá ensejo a várias considerações Primeiro é digno de nota que o Manifesto nos últimos tempos se tenha em certa medida tornado um barômetro do desenvolvimento da grande indústria no continente europeu Na medida em que se expande num país a grande indústria cresce também entre os operários desse país o desejo de esclarecimento sobre a sua posição como classe operária perante as classes possuidoras alargase entre eles o movimento socialista e aumenta a procura do Manifesto De modo que não só a situação do movimento operário mas também o grau de desenvolvimento da grande indústria podem ser medidas com bastante exatidão em todos os países pelo número de exemplares do Manifesto que circulam no idioma de cada um Assim a nova edição polonesa indica um progresso decidido da indústria local E que este progresso de fato se verificou desde à última edição publicada há dez anos não pode haver dúvidas A Polônia russa a Polônia do Congresso de Viena tornouse o grande distrito industrial do Império Russo Ao passo que a grande indústria russa está esporadicamente dispersa uma parte no golfo da Finlândia outra parte no centro Moscou e Vladimir uma terceira nas costas do Mar Negro e do Mar de Azov e ainda repartida por outras zonas a polonesa está concentrada num espaço relativamente pequeno e desfruta das vantagens e das desvantagens resultantes desta concentração As vantagens reconheceramnas os fabricantes russos seus concorrentes quando reclamaram proteção alfandegária contra a Polônia apesar do seu ardente desejo de transformar os polacos em russos As desvantagens para os fabricantes poloneses e para o governo russo revelamse na rápida difusão de idéias socialistas entre os operários poloneses e na crescente procura do Manifesto Mas o rápido desenvolvimento da indústria polonesa que deixa para trás a russa é uma nova prova da vitalidade inesgotável do povo polonês e uma nova garantia da iminência da sua restauração nacional A restauração de uma Polônia forte e independente porém é uma causa que não diz respeito só aos poloneses diz respeito a todos Uma colaboração internacional sincera das nações européias só é possível se cada uma destas nações for em sua casa perfeitamente autônoma A revolução de 1848 que sob o estandarte do proletariado acabou por apenas deixar que os combatentes proletários fizessem o trabalho da burguesia também impôs a independência da Itália da Alemanha e da Hungria por meio dos seus executores testamentários Louis Bonaparte e Bismarck mas a Polônia que desde 1792 fez mais pela revolução do que estas três juntas deixaramna entregue a si própria quando em 1863 sucumbiu ao poderio russo dez vezes superior A nobreza não pôde manter nem reconquistar a independência da Polônia para a burguesia esta é hoje pelo menos indiferente E contudo é uma necessidade para a cooperação harmoniosa das nações européias Só o jovem proletariado polonês a pode conquistar e nas suas mãos ela estará bem guardada Pois os operários de todo o resto da Europa precisam tanto da independência da Polônia como os próprios operários poloneses Friedrich Engels Londres 10 de fevereiro de 1892 Prefácio à edição italiana de 1893 Ao leitor italiano A publicação do Manifesto do Partido Comunista coincidiu podese dizer com o 18 de Março de 1848 o dia das revoluções de Milão e Berlim Ao leitor italiano foi o título introduzido pelo tradutor Filippo Turadi do prefácio de Engels que foram levantamentos armados das duas nações situadas no centro uma do continente da Europa a outra do Mediterrâneo duas nações até então enfraquecidas pela divisão e pela discórdia internas e que por isso caíram sob o domínio estrangeiro Se a Itália ficava sujeita ao imperador da Áustria a Alemanha sofria o jugo indireto mas não menos efetivo do czar de todas as Rússias As consequências do 18 de Março de 1848 libertaram tanto a Itália como a Alemanha desta vergonha se de 1848 a 1871 estas duas grandes nações foram reconstituídas e de certo modo devolvidas a si próprias isso deveuse como Karl Marx costumava dizer ao fato de que os homens que abarcaram a revolução de 1848 foram malgrado seu os seus executores testamentários Por toda a parte a revolução de então foi obra da classe operária foi esta que levantou as barricadas e que pagou com a vida Mas só os operários de Paris tinham a intenção bem definida de derrubando o governo derrubar o regime da burguesia Mas embora profundamente conscientes do antagonismo fatal que existia entre a sua própria classe e a burguesia nem o progresso econômico do país nem o desenvolvimento intelectual das massas operárias francesas contudo tinham atingido ainda o grau que teria tornado possível uma reconstrução social Em última análise portanto os frutos da revolução foram colhidos pela classe capitalista Nos outros países na Itália na Alemanha na Áustria os operários desde o princípio não fizeram mais do que levar a burguesia ao poder Mas em qualquer país o domínio da burguesia é impossível sem a independência nacional Por isso a revolução de 1848 tinha de arrastar consigo a unidade e a autonomia das nações que até então não as tinham desfrutado a Itália a Alemanha a Hungria A vez da Polônia chegará em seu tempo Assim se a revolução de 1848 não foi uma revolução socialista aplanou o caminho preparou o terreno para ela Com o impulso dado em todos os países à grande indústria o regime burguês tem criado por toda a parte nos últimos 45 anos um proletariado numeroso concentrado e forte Criou assim segundo a expressão do Manifesto os seus próprios coveiros Sem restituir a cada nação européia a sua autonomia e unidade não poderiam consumarse nem a união internacional do proletariado nem a cooperação pacífica e inteligente destas nações para fins comuns Imaginese uma ação internacional conjunta dos operários italianos húngaros alemães poloneses e russos nas condições políticas anteriores a 1848 As batalhas travadas em 1848 não foram pois travadas em vão os 45 anos que nos separam daquela etapa revolucionária também não passaram em vão Os frutos amadurecem e tudo o que eu desejo é que a publicação desta tradução italiana do Manifesto seja de tão bom augúrio para a vitória do proletariado italiano como a publicação do original o foi para a revolução internacional O Manifesto Comunista presta plena justiça à ação revolucionária do capitalismo no passado A primeira nação capitalista foi a Itália O fim da Idade Média feudal o limiar da era capitalista moderna é assinalado por uma figura colossal um italiano Dante ao mesmo tempo o último poeta da Idade Média e o primeiro poeta dos tempos modernos Hoje como em 1300 perfilase uma nova era histórica Darnosá a Itália um novo Dante capaz de assinalar o nascimento dessa nova era a era proletária Friedrich Engels Londres 1º de fevereiro de 1893 Capa da edição alemã de 1872 com prefácio de Marx e Engels EM MEMÓRIA DO MANIFESTO COMUNISTA Antonio Labriola DAQUI A TRÊS anos nós socialistas poderemos comemorar nosso jubileu A memorável data da publicação do Manifesto Comunista fevereiro de 1848 marca nossa primeira e certa entrada na História A essa data se refere cada juízo cada apreciação nossa sobre os progressos que o proletariado vem fazendo neste meio século Nessa data se mede o percurso da nova era que desabrocha e surge ou melhor sendo por sua própria formação intimamente ligada e imanente à era presente por isso mesmo dela se desprende e a partir dela se desenvolve necessária e inelutavelmente quaisquer que sejam as vicissitudes e as fases que venha a enfrentar por ora certamente imprevisíveis Todos os que entre nós têm urgência e necessidade de possuir a plena consciência do próprio trabalho muitas vezes voltam o pensamento para as causas e para os movimentos que determinaram a gênese do Manifesto naquelas circunstâncias precisas em que ele surgiu ou seja às vésperas da revolução que explodiu de Paris a Viena de Palermo a Berlim Somente por esta via nós é possível extrair da própria forma social em que hoje vivemos a explicação da tendência ao socialismo E assim justificar pela própria presente razão de ser de tal tendência a necessidade de seu efetivo triunfo cujo presságio externamos diariamente Afinal não é este o cerne do Manifesto sua essência e seu caráter decisivo1 Na verdade seria vão procurálo nas medidas práticas que no final do capítulo segundo ali são sugeridas e propostas como adotáveis na eventua 1 Este meu escrito não é uma reelaboração do Manifesto como se eu quisesse adaptálo às condições presentes nem faço aqui sua análise ou comentário Escrevo como diz o título apenas em memória lidade de um sucesso revolucionário do proletariado ou nas indicações de orientação política com relação aos outros partidos revolucionários da época que se encontram no capítulo quarto Essas indicações e sugestões ainda que apreciáveis e notáveis no tempo em que foram formuladas e ditadas e além disso ainda que sejam sobretudo importantes para julgar de maneira precisa a ação política que os comunistas alemães desenvolveram no período revolucionário de 184850 hoje não mais constituem para nós um conjunto de visões práticas a partir das quais nos caiba decidir pró ou contra em cada caso e recorrência Do tempo da Internacional até hoje em vários países vieram se constituindo sobre a base do proletariado e em seu nome explícito e claro partidos políticos que tiveram e têm na medida em que surgem e depois se desenvolvem viva necessidade de adaptar e de conformar suas exigências e sua obra a contingências variadas e multiformes Mas nenhum desses partidos tem tal consciência de saberse agora tão próximo da ditadura do proletariado de sentir urgente a própria necessidade ou mesmo o desejo ou a tentação de rever e de avaliar as propostas do Manifesto no plano de uma verificação que pareça provável porque tida como próxima Na verdade os experimentos históricos são só aqueles que a própria História faz inesperadamente sem ser de propósito sem projeto e sem ordem explícita Assim aconteceu nos tempos da Comuna que foi é e permanece até hoje para nós o único experimento aproximativo da ação do proletariado ainda que confuso e de curta duração que tenha sido colocado frente à nova e dura prova de apoderarse do poder político Experimento esse que não foi feito de caso pensado nem a partir de um projeto mas acima de tudo foi imposto pelas circunstâncias e heroicamente sustentado e agora se converte para nós em sautar ensinamento Nesse caso onde o movimento socialista se encontra apenas na infância pode acontecer que em razão de experiência própria e direta um ou outro como acontece freqüentemente na Itália se apegue à autoridade de um texto como preceito Mas isso efetivamente não conta nada2 Aquele cerne ou essência e caráter decisivo a meu ver também não deve ser procurado na orientação sobre outras formas de socialismo que no Manifesto são referidas pelo nome de Literatura Tudo o que é dito no capítulo terceiro sem dúvida serve para definir admiravelmente por meio 2 Refirome àquele que no Manifesto é ironicamente chamado de socialismo verdadeiro ou seja alemão Aquele parágrafo que é ininteligível para quem não esteja familiarizado com a filosofia alemã da época especialmente em certas formas de aguda degeneração foi oportunamente omitido na tradução espanhola 88 de antítese e na forma de breves concisas e relevantes características as diferenças que efetivamente existem entre o comunismo que numa expressão infelizmente abusada por muitos hoje nos habituamos a chamar científico e outras formas Ou seja entre o comunismo que tem como tema central o proletariado e como argumento a revolução proletária e as formas reacionárias burguesas semiburguesas pequenoburguesas utópicas e outras Todas essas formas foram recorrentes se renovaram mais vezes recorrem e se renovam ainda hoje nos países em que o movimento proletário moderno mal se encontra no nascedouro Para esses países e em tais circunstâncias o Manifesto exerceu e ainda exerce o papel de crítica atual e de farpa literária Mas nos países onde essas formas já foram teórica e praticamente superadas como é em grande parte o caso da Alemanha e da Áustria ou onde elas sobrevivem só em estado sectário e subjetivo como já ocorre na França e na Inglaterra para não falar de outras tantas nações o Manifesto no que diz respeito a essa diferenciação já cumpriu seu papel E apenas registra como memória aquilo que não se pensa mais dada a ação política do proletariado que já se desenrola em seu processo normal e gradual Ora esta foi precisamente e à guisa de antecipação a disposição de ânimo e de mente daqueles que o escreveram Sobre aquilo que haviam superado com a força do pensamento o qual a partir de poucos mas claros dados de experiência antecipou com precisão os eventos eles exprimiam então apenas a exclusão e a condenação O comunismo crítico este é o seu verdadeiro nome e não existe outro mais exato para tal doutrina não compartilhava mais com os feudais a lembrança nostálgica da velha sociedade para depois contrapor a ela a crítica da sociedade presente pelo contrário olhava apenas para o futuro Não se associava mais aos pequenosburgueses no desejo de salvar o não salvável como por exemplo a pequena propriedade ou a vida pacata da gente humilde que a vertiginosa ação do estado moderno que é o órgão necessário e natural da sociedade atual torna grave e pesado apenas porque esse estado revolucionando continuamente traz em si e consigo a necessidade de outras novas revoluções Também não traduzia em fantasias metafísicas ou em reflexões de sentimento doentio ou de contemplação religiosa os contrastes reais dos interesses materiais da vida cotidiana ao contrário apresentava e expunha esses contrastes em toda sua trivialidade Não construía a sociedade do futuro a partir das linhas de um desenho em cada parte harmonicamente direcionado para o acabamento Não dirigia palavras de louvor e de exaltação ou de evoca ção e de lamento às duas deusas da mitologia filosófica a Justiça e a Igualdade Essas duas deusas hoje fazem triste figura na mísera prática da vida cotidiana quando se percebe como há tantos séculos a História se entrega ao indecente passatempo de contrariar seus infalíveis desígnios Por outro lado aqueles comunistas mesmo explicando e exibindo fatos com força de argumento e de prova que em nossa época os proletários estavam destinados a desempenhar o papel de coveiros da burguesia a ela prestavam homenagem enquanto autora de uma forma social que é em extensão e intensidade um estádio notável do progresso humano e que sozinha pode servir de arena às novas lutas que prometem êxito ao proletariado Nunca foi escrito necrológio de estilo tão monumental Esses louvores dirigidos à burguesia assumem certa forma original de humorismo trágico e para alguns parecem escritos com entonação de ditirambo Não obstante as definições negativas e antitéticas das outras formas de socialismo correntes então e até hoje freqüentemente recorrentes por serem incensuráveis na substância na forma e no objetivo a que visam não pretendem ser nem são a efetiva história do socialismo e não apresentam nem a pista nem o esquema dela se alguém quiser escrevêla Na verdade a História não se apóia sobre a diferença entre verdadeiro e falso ou justo e injusto menos ainda sobre a mais abstrata antítese entre possível e real como se as coisas permanecessem de um lado e tivessem do outro lado as próprias sombras e fantasmas nas idéias Ela está sempre toda de um lado e se apóia inteira sobre o processo de formação e transformação da sociedade o que pode ser percebido em sentido objetivo e independentemente de nossa aceitação ou repulsa Ela é uma dinâmica de gênero especial como convém dizer aos positivistas que tanto se deleitam com tais expressões e freqüentemente não vão além da própria nova palavra que põem em circulação Hoje as várias formas de concepção de ação socialistas que apareceram e desapareceram no curso dos séculos com tantas diferenças nos motivos na fisionomia e nos efeitos são todas estudadas e explicadas pelas condições específicas e complexas da vida social em que se produziram Ao examinálas vêse que não constituem um único conjunto de processo contínuo porque a série foi muitas vezes interrompida pela mudança do complexo social pelo obscurecimento e pela ruptura da tradição Só no tempo da Grande Revolução o socialismo assume certa unidade de processo que se torna mais evidente de 1830 em diante com o definitivo advento da burguesia no domínio político na França e na Inglaterra e por último se torna intuitiva diria mesmo palpável da Internacional até os dias de hoje Nesta estrada neste caminho o Manifesto se ergue como grande marco da distância percorrida com dupla indicação por assim dizer para as duas direções De um lado está o incunábulo da nova doutrina que depois deu a volta ao mundo De outro está a orientação sobre as formas que ele exclui mas das quais não traz a exposição e o relato3 O cerne a essência o caráter decisivo deste escrito consiste inteiramente na nova concepção histórica que o fundamenta e que ele mesmo em parte explica e desenvolve quando não aponta refere ou apenas supõe Por essa concepção o comunismo cessando de ser esperança aspiração lembrança conjectura ou subterfúgio encontrava pela primeira vez a expressão adequada na consciência de sua própria necessidade isto é na consciência de ser o êxito e a solução das atuais lutas de classes Não se trata das lutas de classes de todos os tempos e lugares sobre as quais a História do passado se exercitou e desenvolveu ao contrário todas elas perdem estatura e se reduzem predominantemente à luta entre burguesia capitalista e trabalhadores fatalmente proletarizados É desta luta que o Manifesto encontra a gênese determina o ritmo de evolução e prevê o efeito final Em tal concepção histórica está toda a doutrina do comunismo científico Deste ponto em diante os adversários teóricos do socialismo não são mais chamados a discutir a possibilidade abstrata da socialização democrática dos meios de produção4 como se disto fosse possível extraíremse ligações das atitudes gerais e comuníssimas da assim chamada natureza humana Ao contrário aqui se trata de reconhecer ou de não reconhecer no curso presente das coisas humanas uma necessidade que transcende cada simpatia e cada aprovação subjetiva nossa Nos países que mais pro3 Há uns bons anos oito já nos cursos universitários que intitulo ou gênese do socialismo moderno ou história geral do socialismo ou da interpretação materialista da História tive oportunidade e tempo de aprofundarme em tal literatura e reduzila a uma certa evidência prospectiva e sistemática Coisa já difícil mas sobretudo na Itália onde não existe tradição de escolas socialistas e onde a vida do partido é tão nova que não propicia o exemplo instrutivo de formação e de processo Mas este ensaio não é a reprodução de uma de minhas aulas As aulas não são feitas com livros nem publicando aulas se fazem livros verdadeiros no sentido explícito e pleno da palavra 4 É preciso insistir sobre a expressão democrátca socialização dos meios de produção porque a outra propriedade coletiva além de conter um erro teórico ao empregar a definição jurídica em lugar do fato econômico real na mente de muitos se confunde com incremento dos monopólios com a crescente estratificação dos serviços públicos e com todas as outras fantasmagorias do sempre renascente socialismo de Estado cujo segredo é aumentar os meios econômicos da opressão em mãos da classe dos opressores 90 91 gedraram encontrase ou não a sociedade a ponto de alcançar o comunismo pelas leis imanentes à sua própria transformação dada sua atual estrutura econômica e considerando os atritos que ela por si e em si mesma necessariamente produz até romperse e dissolverse Este é o tema da discussão desde que tal doutrina apareceu E esta é conjuntamente a regra de conduta que se impõe à ação dos partidos socialistas sejam eles compostos unicamente por proletários ou acolham em suas fileiras homens saídos de outras classes que fazem papel de voluntários no exército do proletariado Por isso nós socialistas que de bom grado nos deixamos chamar científicos se não se tentar com tal epíteto confundirnos com os positivistas que são nossos hóspedes freqüentes mas nem sempre bem aceitos e a seu bel prazer monopolizam a palavra ciência não lutamos para sustentar uma tese abstrata e genérica como se fôssemos causídicos ou sofistas nem nos apressamos em demonstrar a racionalidade de nossos objetivos Nossos objetivos são unicamente a expressão teórica e a explicação pacífica dos dados que nos oferece a interpretação do processo que se cumpre através de nós e em torno a nós e que está inteiro nas relações objetivas da vida social da qual somos sujeito e objeto causa e efeito escopo e parte Nossos objetivos são racionais não porque se fundamentam em argumentos extraídos da razão da discussão mas porque são deduzidos da consideração objetiva das coisas o que equivale dizer que são deduzidos a partir da elucidação do seu processo que não é nem pode ser resultado de nosso arbítrio mas ao contrário vence e submete nosso arbítrio O manifesto dos comunistas por sua eficácia específica não pode ser substituído por nenhum dos escritos anteriores ou posteriores de seus próprios autores que por extensão e porte científico são tão maiores Todavia ele nos oferece em sua clássica simplicidade a expressão genuína desta situação o proletariado moderno é se coloca cresce e se desenvolve na História contemporânea como o sujeito concreto como a força positiva de cuja ação inevitavelmente revolucionária o comunismo deverá necessariamente resultar E por isso por tal enunciação de presságio teoricamente fundamentada e expressa em frases breves rápidas concisas e memoráveis este escrito constitui um conjunto ou mais ainda um viveiro inexaurível de gens de pensamento que o leitor pode indefinidamente fecundar e multiplicar conservando a força original e originária da coisa recémnascida e não ainda desenvolta e desviada do campo de sua própria produção Observação esta que se dirige principalmente àqueles que fazendo profissão de douta ignorância ou pior sendo fanfarrões charlatães ou alegres esportistas oferecem precursores donos aliados e mestres de todos os gêneros como presente à doutrina do comunismo crítico ultrajando o senso comum e a cronologia vulgar Ou seja enquadram nossa doutrina materialista da História na concepção quase sempre fantástica e genérica demais da evolução universal já reduzida por muitos em nova metáfora de romance metafísico Ou seja procuram em tal doutrina um derivado do darwinismo que apenas de certo modo mas em senso bastante lato é um caso análogo deste Ou ainda favorecem a aliança e o apadrinhamento daquela filosofia positivista que brota de Comte degenerador reacionário do genial SaintSimon e deságua em Spencer quintessência do burguesismo anemicamente anárquico o que significa propiciarnos por meio de aliados e protetores nossos adversários declarados e decisivos Tal força germinativa tal eficácia tão clássica tal concisão de síntese de muitas séries e grupos de pensamentos em um escrito de tão poucas páginas 5 devemse à maneira como foi produzido Dois alemães foram seus autores mas não inseriram nele nem a substância nem a forma das opiniões pessoais que naquele tempo tinham sabor de imprecações de vulgaridade e de rancor na boca dos prófugos políticos ou de quem como era o caso deles abandonasse a pátria por iniciativa própria para desfrutar de ares mais respiráveis em outro lugar Também não introduziram diretamente as imagens das condições de seu país que eram pouco desenvolvidas política e socialmente ou seja economicamente apenas por alguns primeiros sinais e só em certos pontos do território comparáveis às que na França e na Inglaterra eram e mostravamse modernas Por outro lado trouxeram para o texto o pensamento filosófico motivo único pelo qual a pátria deles se colocara e se mantivera à altura da História contemporânea o pensamento filosófico que naquele tempo exatamente na pessoa deles assumia a notável transformação pela qual o materialismo já renovado por Feuerbach combinandose 5 São 23 páginas em corpo 8 na edição original Londres fevereiro de 1848 que eu devo à incomparável cortesia de Engels Digo aqui de passagem que venci a tentação de acrescentar a este escrito notas bibliográficas ou de literatura ou de remissão ou de citações porque se enveredasse por esse caminho teria feito um ensaio de erudição ou antes um livro mais que um opúsculo Mas o leitor acreditará na minha palavra de que não há alusão sinal ou malentendido nestas páginas que não se refira a fontes e fatos pertinentes ao tema e mais que isso à totalidade das fontes e dos fatos 92 93 com a dialética tornavase capaz de abraçar e de compreender o movimento da História nas suas causas mais íntimas e até então inexploradas porque latentes e difíceis de destrinchar Ambos comunistas e revolucionários mas não por instinto nem por puro impulso ou paixão eles tinham quase elaborada toda uma nova crítica da ciência econômica e tinham incorporado o nexo e o significado histórico do movimento proletário do lado de cá e do lado de lá da Mancha ou seja da França e da Inglaterra antes mesmo que fossem chamados a ditar no Manifesto o programa e a doutrina da Liga dos Comunistas Sediada em Londres e com notáveis ramificações no continente a Liga construíra uma boa trajetória de vida e de desenvolvimento próprio através de fases diversas Dos dois Engels era já há algum tempo autor de um ensaio crítico que superando qualquer restrição subjetiva e unilateral pela primeira vez tirava objetivamente a crítica da economia política dos antagonismos inerentes aos enunciados e aos conceitos da própria economia depois alcançara a fama com um livro sobre a condição dos operários ingleses que é a primeira tentativa bem sucedida de representar os movimentos da classe operária como resultante do próprio jogo das forças e dos meios de produção6 O outro Marx tinha acumulado no breve correr dos anos a experiência de publicista radical na Alemanha e igualmente em Paris e Bruxelas a excogitação quase madura dos primeiros rudimentos da concepção materialista da História a crítica teórica e vitoriosa dos pressupostos e das ilações da doutrina de Proudhon e a primeira elucidação precisa da origem do sobrevalor de compra e do uso da força de trabalho ou seja o primeiro germe das concepções cujas demonstrações reconexões e particularidades alcançaram a maturidade mais tarde no Capital Ambos ligados por muitas e várias vias de comunicação aos revolucionários dos vários países da Europa especialmente da França da Bélgica e da Inglaterra não compuseram o Manifesto como ensaio de opinião pessoal mas sobretudo como a doutrina de um partido que em seu âmbito estreito no ânimo nos intentos e na ação já era a primeira Internacional dos Trabalhadores Neste ponto começa o socialismo estritamente moderno Aqui está a linha divisória de todo o resto 6 Os Umrisse zu einer Kritik der Nationaloekonomie Apontamentos para uma Crítica da Economia Nacional foram publicados nos Deutsch Franzoesische Jahrbücher em Paris em 1844 pp 85114 O livro com o título Die Lage der arbeitenden Klasse in England A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra foi publicado em primeira edição em Leipzig em 1845 Publicado no Brasil pela Global 1986 94 A Liga dos Comunistas tornarase tal depois de ter sido Liga dos Justos e esta por sua vez por clara consciência de intentos proletários gradativamente se diferenciara da liga genérica dos prófugos isto é dos desgarrados Como modelo que traz em si em desenho quase embrionário a forma dos ulteriores movimentos socialistas e proletários ela atravessara as várias fases da conspiração e do socialismo igualitário Fora metafísica com Grün e utópica com Weitling Tendo sua sede principal em Londres aproximarase do movimento cartista refluindo em parte sobre ele em seu caráter intermitente por ser primeiro experimento e ponto premeditado por não ser mais conspiração ou seita esse movimento exemplificava a dura e penosa formação do partido verdadeiro e próprio da política proletária A tendência ao socialismo só alcançou a maturidade no Cartismo quando o movimento já estava próximo de fracassar e de fato fracassou Sois inesquecíveis Jones e Harney A Liga sentia o cheiro da revolução em toda parte porque a coisa estava no ar porque seu instinto e seu método de informação a levavam a isso e enquanto a revolução efetivamente estourava ela buscou na nova doutrina do Manifesto um instrumento de orientação que era ao mesmo tempo uma arma de combate Realmente internacional em parte pela qualidade e origem variada de seus membros mas bem mais ainda pelo instinto e pela vocação que todos eles tinham ela veio a assumir seu lugar no movimento geral da vida política como prenúncio claro e preciso de tudo o que hoje se pode chamar socialismo moderno se com a palavra moderno não se entender uma simples data de cronologia extrínseca mas diferentemente um sinal do processo interno ou seja morfológico da sociedade Uma longa intermissão de 1852 a 1864 o período da reação política e ao mesmo tempo do desaparecimento da dispersão e da reabsorção das velhas escolas socialistas separa a Internacional que mal começara com a Arbeiterbildungsverein em Londres da Internacional propriamente dita que de 1864 a 1873 tentou igualar pelas condições de luta as ações do proletariado na Europa e na América Outras intermissões teve a ação do proletariado sobretudo na Alemanha e especialmente na França da dissolução da Internacional de gloriosa memória até esta nova que hoje vive com outros meios e se desenvolve com outros modos todos de acordo com a situação política em que nos encontramos e com as sugestões de uma experiência mais larga e amadurecida Mas como os sobreviventes entre os que de novembro a dezembro de 1847 discutiram e aceitaram a nova doutrina reapareceram na cena pública da grande Internacional e reapareceram por último nesta nova doutrina também o Manifesto voltou continuamente à luz da publicidade fazendo de fato aquela volta ao mundo em todas as línguas dos países civilizados desígnio que seus autores haviam traçado desde o primeiro momento Esse é o verdadeiro prenúncio esses foram nossos verdadeiros precursores Mexeramse antes dos outros cedo com passo apressado mas firme exatamente aquele caminho que nós temos que percorrer e de fato estamos percorrendo Mas o nome de precursores não cai bem àqueles que percorreram caminhos que depois tenha sido conveniente abandonar ou seja para sair da metáfora àqueles que formularam doutrinas e iniciaram movimentos sem dúvida explicáveis pelos tempos e pelas circunstâncias em que nasceram mas que depois foram todos superados pela doutrina do comunismo crítico que é a teoria da revolução proletária Não é que essas doutrinas e tentativas tenham aparecido de modo acidental inútil e supérfluo Não há nada que seja absolutamente irracional no curso histórico dos acontecimentos porque nele não existe nada de imotivado e portanto meramente supérfluo Tampouco nos é possível nem mesmo hoje alcançar a consciência do comunismo crítico sem repassar mentalmente aquelas doutrinas percorrendo de novo o processo de seu aparecimento e desaparecimento O fato é que essas doutrinas não são passadas no tempo ou na memória mas foram intrinsecamente ultrapassadas tanto pela mudança da condição da sociedade quanto pelo progresso da inteligência das leis sobre as quais se apóiam sua formação e seu processo O momento em que se verifica tal passar que intrinsicamente é um ultrapassar é precisamente aquele em que aparece o Manifesto Como primeiro sinal da gênese do socialismo moderno este escrito que da nova doutrina apresenta apenas os traços mais gerais ou seja mais facilmente comunicáveis traz consigo os vestígios do terreno histórico em que nasceu o da França da Inglaterra e da Alemanha O terreno de propagação e difusão tornouse depois cada vez mais largo e hoje é tão vasto quanto o mundo civilizado Em todos os países onde a tendência à comunismo veio sucessivamente se desenvolvendo através dos antagonismos variadamente posicionados e no entanto a cada dia mais claros entre burguesia e proletariado o processo da primeira formação continuou se repetindo em parte ou no todo Os partidos proletários que continuamente se constituíram voltaram a percorrer os estágios de formação que os pioneiros percorreram pela primeira vez entretanto tal processo se fez de país em país e de ano em ano cada vez mais breve tanto pelas crescentes evidência urgência e energia dos antagonismos quanto porque assimilar uma doutrina ou uma orientação é muito mais fácil que produzilas pela primeira vez Também por isso nossos colaboradores de cinqüenta anos atrás foram internacionais porque deram ao proletariado das várias nações com o próprio exemplo e experiência a pista antecipada e geral do trabalho a cumprir Mas a consciência teórica do socialismo está hoje como antes e como sempre estará na compreensão de sua necessidade histórica ou seja na consciência da forma de sua gênese e esta se reflete como campo restrito de observação e como exemplo conciso na própria formação do Manifesto Ele mesmo por colocarse como instrumento de luta não apresenta indícios aparentes de sua origem porque se exprime por um conteúdo de enunciados e não por um conjunto de demonstrações A demonstração está inteira no imperativo da necessidade Mas a formação pode ser toda refeita e hoje refazêla significa entendermos verdadeiramente a doutrina do Manifesto De fato há uma análise que separando abstratamente os fatores de um organismo os destrói enquanto elementos participantes da unidade do complexo Mas há outro tipo de análise e só essa tem valor para a compreensão da História é a que distingue e separa os elementos apenas para reconhecer a necessidade objetiva da participação deles no resultado Hoje é opinião popular que o socialismo é um fruto normal e portanto inevitável da História atual Sua ação política que por certo admite de agora em diante adiamentos e atrasos mas não mais reabsorção total e aniquilamento decididamente começou com a Internacional Por trás dela porém está o Manifesto Sua doutrina é acima de tudo a luz teórica levada ao movimento proletário o qual de resto se gerara e continua a gerarse independentemente da ação de qualquer doutrina Além disso ele é mais que essa luz O comunismo crítico só surge no momento em que o movimento proletário além de ser resultado de condições sociais já se fortaleceu a ponto de entender que essas condições são mutáveis e a ponto de perceber com que meios e em que sentido podem ser mudadas Não bastava que o socialismo fosse um resultado da História além disso era necessário entender como era tal resultado intrinsecamente e a que acontecimentos conduzia sua agitação A expressão de tal consciência a saber o proletariado como resultado necessário da sociedade moderna traz em si a missão de suceder à burguesia de sucedêla como força produtora de uma nova ordem de convivência em que os antagonismos de clas 95 ses deverão desaparecer faz do Manifesto um momento característico do curso geral da História Ele é uma revelação mas não como visão de apocalipse ou promessa de milênio É a revelação científica e medida do caminho que percorre a nossa sociedade civil que a sombra de Fourier me proteja pela maneira como é expressa tal revelação assume a palavra decisiva e diria mesmo fulminante de quem expressa no fato o próprio fato Nessa medida o Manifesto nos restitui a história interna de sua origem que ao mesmo tempo justifica sua doutrina e explica seu efeito singular e sua maravilhosa eficácia Sem nos perdermos em muitos detalhes aqui estão as séries e grupos de elementos que reunidos e transformados naquela rápida e oportuna síntese constituem a essência de todo desenvolvimento ulterior do socialismo científico O tema imediato direto e intuitivo é dado pela França e pela Inglaterra que já tinham colocado na cena política pós1830 um movimento operário que às vezes se mescla e às vezes se distingue dos outros movimentos revolucionários corre dos extremos da revolta instintiva até o desenho prático do partido político por exemplo a Carta e a democracia social e gera diversas formas instáveis e passageiras de comunismo ou de semicominismo como a que na época era chamada socialismo Para reconhecer em tais movimentos não mais o aparecimento fugaz de perturbações meteóricas mas o fato novo da História era necessária uma teoria que não fosse nem um simples complemento da tradição democrática nem a condenação subjetiva dos inconvenientes então reconhecidos da economia da concorrência que como é sabido passavam então pelo pensamento e pela fala de muitos A nova teoria foi exatamente a obra pessoal de Marx e Engels partindo da forma abstrata que a dialética de Hegel já tinha descrito sumariamente e nos aspectos generalíssimos eles transferiram o conceito do devir histórico por processo de antítese para a explicação concreta das lutas de classes E pela primeira vez entenderam esse movimento histórico que parecera passagem de uma para outra forma de idéias como a transição para uma outra forma da anatomia social subjacente ou seja de uma para outra forma da produção econômica Elevando ao nível de teoria aquela necessidade da nova revolução social que era mais ou menos implícita na consciência instintiva do proletariado e nos seus movimentos apaixonados e súbitos essa concepção histórica no ato de reconhecer a intrínseca e imanente necessidade da revolução transformava o próprio conceito de revolução O que parecia possível às seitas de conspiradores como fato que se possa querer inten de país em país e de ano em ano cada vez mais breve tanto pelas crescentes evidência urgência e energia dos antagonismos quanto porque assimilar uma doutrina ou uma orientação é muito mais fácil que produzilas pela primeira vez Também por isso nossos colaboradores de cinqüenta anos atrás foram internacionais porque deram ao proletariado das várias nações com o próprio exemplo e experiência a pista antecipada e geral do trabalho a cumprir Mas a consciência teórica do socialismo está hoje como antes e como sempre estará na compreensão de sua necessidade histórica ou seja na consciência da forma de sua gênese e esta se reflete como campo restrito de observação e como exemplo conciso na própria formação do Manifesto Ele mesmo por colocarse como instrumento de luta não apresenta indícios aparentes de sua origem porque se exprime por um conteúdo de enunciados e não por um conjunto de demonstrações A demonstração está inteira no imperativo da necessidade Mas a formação pode ser toda refeita e hoje refazêla significa entendermos verdadeiramente a doutrina do Manifesto De fato há uma análise que separando abstratamente os fatores de um organismo os destrói enquanto elementos participantes da unidade do complexo Mas há outro tipo de análise e só essa tem valor para a compreensão da História é a que distingue e separa os elementos apenas para reconhecer a necessidade objetiva da participação deles no resultado Hoje é opinião popular que o socialismo é um fruto normal e portanto inevitável da História atual Sua ação política que por certo admite de agora em diante adiamentos e atrasos mas não mais reabsorção total e aniquilamento decididamente começou com a Internacional Por trás dela porém está o Manifesto Sua doutrina é acima de tudo a luz teórica levada ao movimento proletário o qual de resto se gerara e continua a gerarse independentemente da ação de qualquer doutrina Além disso ele é mais que essa luz O comunismo crítico só surge no momento em que o movimento proletário além de ser resultado de condições sociais já se fortaleceu a ponto de entender que essas condições são mutáveis e a ponto de perceber com que meios e em que sentido podem ser mudadas Não bastava que o socialismo fosse um resultado da História além disso era necessário entender como era tal resultado intrinsecamente e a que acontecimentos conduzia sua agitação A expressão de tal consciência a saber o proletariado como resultado necessário da sociedade moderna traz em si a missão de suceder à burguesia de sucedêla como força produtora de uma nova ordem de convivência em que os antagonismos de clas 96 sional e ao qual se possa estar predisposto por vontade própria tornavase um processo a ser facilitado sustentado e secundado A revolução se tornava objeto de uma política cujas condições são dadas pela situação complexa da sociedade um resultado que o proletariado deve alcançar através de várias lutas e meios variados de organização ainda não cogitados pela velha tática das revoltas E isto porque o proletariado não é um acessório uma excrescência um mal eliminável desta sociedade em que vivemos mas é o seu substrato sua condição essencial seu efeito inevitável e por sua vez a causa que conserva e mantém viva a própria sociedade que não se pode emancipar senão emancipando tudo e todos ou seja revolucionando integralmente a forma de produção Como a Liga dos Justos se tornara Liga dos Comunistas despojandose das formas simbólicas e conspiratórias voltandose gradualmente para os meios da propaganda e da ação política algum tempo depois que a insurreição de Barbès e Blanqui fracassou 1839 assim a doutrina nova que a própria Liga aceitava e fazia sua superou definitivamente as idéias que guiavam a ação conspiratória e converteu em fim e resultado objetivo de um processo aquilo que os conspiradores pensavam que estivesse na ponta de um projeto deles ou que pudesse ser a emanação e o eflúvio de seu heroísmo E aqui está uma outra linha ascendente na ordem dos fatos uma outra conexão de conceitos e de doutrinas O comunismo conspiratório o blanquismo da época nos faz remontar através de Buonarroti e em parte através de Bazard e da Carbonária até chegar à conspiração de Babeuf que foi verdadeiro herói de tragédia antiga que tromba com o destino por ignorar a incongruência do próprio projeto com a condição econômica do tempo ainda não apta a pôr na cena política um proletariado munido de explícita consciência de classe De Babeuf através de alguns elementos menos conhecidos do período jacobino passando Boissel e Fauchet se remonta ao intuitivo Morelly e ao versátil e genial Mably e se assim se quiser até o caótico testamento do cura Meslier rebelião instintiva e violenta do bom senso contra a selvagem opressão do pobre camponês Foram todos igualitaristas esses precursores do socialismo violento protestatário conspiratório como também foram igualitaristas a maioria dos próprios conspiradores Por singular mas inevitável deslumbramento todos eles adotaram uma arma de combate mas interpretandoa e generalizandoa pelo avesso aquela mesma doutrina da igualdade que desenvolvida como direito natural paralelamente à formação da teoria eco 97 nômica fora instrumento na mão da burguesia que conquistava gradualmente sua posição atual para converter a sociedade do privilégio na do liberalismo político e econômico e do código civil 7 Por tal ilação imediata que no fundo era simples ilusão isto é por serem todos os homens naturalmente iguais eles teriam que ser iguais também nas posses acreditavase que o apelo à razão encerrasse em si cada elemento e força de persuasão e propaganda e que a rápida instantânea e violenta tomada de posse dos instrumentos exteriores do poder político fosse o único instrumento para trazer à ordem os renitentes Mas onde nasceram e como se regulam essas desigualdades que parecem tão irracionais à luz de um tão simples e simplista conceito de justiça O Manifesto surge como a negação decisiva do princípio de igualdade assim tão ingênua e toscamente compreendido No ato em que anuncia como inevitável a abolição das classes na futura forma de produção coletiva fala destas mesmas classes como um fato como são como nasceram e como se tornaram um fato que não é a exceção nem derroga a exceção a um princípio abstrato mas pelo contrário é o próprio processo da História Como o proletariado moderno pressupõe a burguesia esta não vive sem ele E um e outra são o resultado de um processo de formação que fundamenta tudo no modo de produzir os meios necessários à vida isto é tudo se fundamenta no modo da produção econômica A sociedade burguesa surgiu da sociedade corporativa e feudal e dela surgiu lutando e revolucionando o que tinha diante de si para apoderarse dos instrumentos e dos meios de produção que depois todos eles culminam na formação e no alargamento e na reprodução e multiplicação do capital Descrever a origem e o progresso da burguesia nas suas várias fases expor seus sucessos no desenvolvimento colossal da técnica e na conquista do mercado mundial indicar as conseqüentes transformações políticas que são a expressão de tais conquistas as defesas e o resultado significa fazer ao mesmo tempo a história do proletariado Este em sua condição atual é inerente à época da sociedade burguesa e teve e terá tantas e tantas fases quantas tem esta própria sociedade até sua dissolução O antagonismo 7 Proliferaram nestes últimos anos muitos juristas que procuraram nas correções ao Código Civil os meios práticos para elevar a condição do proletariado Mas porque não pedem ao Papa que assuma a chefia da Liga dos Livres pensadores Entre outros é notável o caso daquele escritor italiano que recentemente tratando da luta de classes pediu que ao lado do Código que garante os direitos do capital se elabore um outro que garanta os direitos do trabalho 100 101 entre ricos e pobres entre gozosos e sofridos opressores e oprimidos não é algum acontecimento acidental e facilmente removível como parecera aos entusiastas amantes da justiça Ao contrário é um fato de necessária correlação dado o princípio diretivo da atual forma de produção como aparece na necessidade do assalariado Esta necessidade é dúplice em si mesma O capital só pode apoderarse da produção proletarizandose e só pode continuar a existir a ser frutífero a acumularse a multiplicarse e a transformarse se assalariar os proletarizados E estes por sua vez só podem existir e renovarse entregandose como mercadoria como força de trabalho cujo uso é abandonado ao critério isto é às conveniências dos possuidores de capital A harmonia entre capital e trabalho está toda nisto o trabalho é a força viva com a qual os proletários continuamente põem em movimento e reproduzem com novo acréscimo o trabalho acumulado no capital Este nexo que é resultado de um desenvolvimento que é toda a essência íntima da História moderna propicia a chave para entender a nova razão da luta de classes da qual a concepção comunista se tornou auxílio e expressão é por outro lado feito de tal maneira que nenhum protesto do coração e do sentimento nenhuma argumentação de justiça pode resolvêlo ou desfazêlo Por tais razões aqui por mim apresentadas até onde espero com plausível popularidade o comunismo igualitário permanecia vencido A sua impotência prática era igual à sua incapacidade teórica de perceber as causas das injustiças ou seja das desigualdades que queria corajosa ou irrefletidamente sepultar e eliminar de repente A partir daí compreender a História se tornava a principal preocupação dos teóricos do comunismo E como se poderia contrapor à dura realidade da História um almejado e até mesmo perfeitíssimo ideal Nem se poderia afirmar que o comunismo seja o estado natural e necessário da vida humana de todos os tempos e lugares em relação ao qual todo o curso das formações históricas deve parecer uma série de desvios e de aberrações Nem que a ele se pode chegar ou se transformar por abnegação espartana e por resignação cristã Ele pode ser e efetivamente deve ser e será a consequência da dissolução desta nossa sociedade capitalista Mas nela a dissolução não pode ser inoculada artificialmente nem importada ab extra Ela se dissolverá pelo próprio peso diria Maquiavel Cairá como forma de produção que gera em si mesma a constante e progressiva rebelião das forças produtivas contra as relações jurídicas e políticas da produção e no entanto só continua a viver enquanto viver porque aumenta continuamente a concorrên cia que gera as crises e estende vertiginosamente sua esfera de ação condições intrínsecas de sua morte inevitável Como aconteceu com a morte natural em outro ramo de ciência também na forma social a morte se transformou em caso fisiológico O Manifesto não apresentou nem devia apresentar o projeto da sociedade futura Por outro lado disse como a presente sociedade se dissolverá pela dinâmica progressiva de suas forças imanentes Para isso recorreu principalmente à exposição do desenvolvimento da burguesia e a fez em traços rápidos que são capítulo exemplar da filosofia da História suscetível a retoques acréscimos e acima de tudo a amplo desenvolvimento mas que não admite correção no que lhe é intrínseco 8 SaintSimon e Fourier ainda que não tenham sido reproduzidos no teor de suas idéias nem imitados no encaminhamento de suas abordagens permaneciam por tal elevação teórica justificados e confirmados Ambos ideólogos eles tinham superado a época liberal dentro dela mesma em uma antecipação de singular genialidade que no horizonte por eles visualizado culminava com a Grande Revolução O primeiro subverteu a interpretação da história do direito à economia e da política à física social e em meio a muitas incertezas de entendimento idealista e de entendimento positivo quase encontrou a gênese do terceiro estado O outro por ignorância de detalhes desconhecidos ou por ele desprezados e por exuberância de engenho não disciplinado fantasiou uma grande sequência de épocas históricas vagamente diferenciadas e marcadas por certos sinais do princípio diretivo das formas de produção e de distribuição Em seguida alinhavou o argumento da construção de uma sociedade em que os antagonismos atuais desaparecessem Entre esses antagonismos com perspicácia genial descobriu um que estudou com amor especial o círculo vicioso da produção Sem o saber concorria com Sismondi que na mesma época com outro intuito e por outras vias a partir do exemplo das crises e dos apontados inconvenientes da grande indústria e da concorrência impiedosa explicava com timidez o fiasco da ciência econômica recémelaborada Do alto da serena meditação sobre o mundo futuro dos harmoniosos Fourier olhou com sereno desprezo para a miséria dos civilizados e escreveu tranqüilo a sátira da História Idéologos tanto um quanto outro ignoraram a dura luta que o proletariado é convocado a sustentar antes de por termo à época da exploração e dos antagonismos e por necessidade subjetiva de concluir se tornaram um projetista e o outro um utopista9 Mas adivinharam alguns aspectos notáveis dos princípios diretivos da sociedade sem antagonismos O primeiro concebeu claramente o governo técnico da sociedade sem domínio do homem sobre o homem E Fourier adivinhou divisou e previu através de tantas extravagâncias de sua luxuriante e irrefreada fantasia não poucos aspectos notáveis da psicologia e da pedagogia daquela convivência futura na qual segundo a expressão do Manifesto o livre desenvolvimento de cada um é condição do livre desenvolvimento de todos O saintsimonismo já se havia dissipado quando o Manifesto apareceu Por outro lado o fourierismo florescia na França por sua própria índole não como partido mas como escola Quando a escola tentou alcançar a utopia por meio da lei os proletários parisienses já tinham sido derrotados nas jornadas de junho por aquela burguesia que derrotandoos propiciou a si mesma o domínio de um apogeu insigne e aventureiro que durou vinte anos Não como voz de uma escola mas como promessa ameaça e vontade de um partido vinha à luz a nova doutrina dos comunistas críticos Seus autores e sequazes não viviam de fantasia do futuro mas com o ânimo completamente voltado para a experiência e para as necessidades do presente Viviam da consciência dos proletários cujo instinto ainda não submetido pela experiência em Paris e na Inglaterra estimulava a subverter o domínio da burguesia com velocidade de ações não dirigidas por uma tática estudada Esses comunistas difundiram na Alemanha as idéias revolucionárias foram os defensores das vítimas de junho e tiveram na Neue Rheinische Zeitung um órgão político que hoje tantos anos depois ainda faz escola especialmente pelos seus textos que esparsamente vêm sendo reproduzidos Cessadas as contingências históricas que em 1848 impulsionaram os proletários para a frente da cena política a doutrina do Manifesto não encontrou mais nem base nem terreno de difusão Esperou anos para difundirse porque foram necessários anos antes que o proletariado pudesse por outras vias e com outros modos voltar à cena como força política fazer dessa doutrina seu órgão intelectual e encontrar nela os meios de orientação 8 Tal desenvolvimento é O Capital de Marx que neste caso eu não me sinto qualificado para chamar de filosofia da História 9 Não sou contrário a reconhecer como Anton Menger que SaintSimon não foi verdadeiramente utopista como foram de forma acentuada típica e clássica Fourier e Owen Nova Gazeta Renana N da T 102 103 Mas desde o dia em que apareceu ela foi a crítica antecipada daquele socialismus vulgaris que vegetou pela Europa e especialmente na França desde o golpe de Estado até o aparecimento da Internacional que em seu breve período de vida não teve tempo de vencêlo esgotálo eliminálo totalmente Esse socialismo vulgar se alimentava se não de outras idéias mais desconexas principalmente das doutrinas e mais ainda dos paradoxos de Proudhon que já há muito tempo superado por Marx só foi praticamente vencido durante a Comuna quando seus sequazes pela mais salutar lição dos fatos foram obrigados a contrariar as doutrinas do mestre Desde que apareceu esta nova doutrina do comunismo foi a crítica implícita de todas as formas de socialismo de Estado de Louis Blanc a Lassalle O socialismo de Estado embora ainda mesclado a tendências revolucionárias se concentrava inteiro na fábula no Hokus Pokus do direito ao trabalho Esta expressão é insidiosa se implica questão que se dirija a um governo mesmo de burgueses revolucionários É absurdo econômico se se tem em mente suprimir a variável desemprego que influi na variação dos salários ou seja nas condições da concorrência Pode ser artifício de politiquieiros se é empregada para aplacar as turbulências de uma massa agitada de proletários nãoorganizados É uma futilidade teórica para quem conceba claramente o curso de uma revolução vitoriosa do proletariado que não pode deixar de encaminhar a socialização dos meios de produção mediante a tomada de posse deles ou seja não pode deixar de encaminhar à forma econômica em que não há nem mercadoria nem salariado onde o direito ao trabalho e o dever de trabalhar se unem na necessidade comum a todos de que todos trabalhem A fábula do direito ao trabalho acaba na tragédia das jornadas de junho A discussão parlamentar que se fez sobre elas em seguida foi paródia O choroso e retórico Lamartine aquele grande oportunista tinha tido ocasião de pronunciar a última ou a penúltima de suas festejadas frases a experiência dos povos são as catástrofes e bastava isto para a ironia da História Mas o Manifesto esse escrito de tão pequeno porte de estilo tão distante da insinuação retórica de uma fé ou de uma crença possibilitou a consolidação de muitos pensamentos e a reunião de germes com potencial de largo desenvolvimento E não foi porém nem pretendeu ser o código do socialismo nem o catecismo do comunismo crítico nem o vade mecum da revolução proletária Podemos bem deixar as quintessências para Schäffle por conta de quem também deixamos de bom grado a famosa frase a questão social é uma questão de ventre O ventre de Schäffle por muitos anos se exibiu pelo mundo para deleite de tantos esportistas do socialismo e para alívio de tantos policiais O comunismo crítico mal começava com o Manifesto deveria desenvolverse e de fato se desenvolveu O complexo de doutrinas que hoje são comumente chamadas marxismo só alcançou a verdadeira maturidade entre os anos 60 e 70 Certamente desenvolveuse muito a partir do opúsculo Trabalho assalariado e Capital 10 no qual pela primeira vez em termos precisos se toca em como da compra e do uso da mercadoria trabalho se obtém um produto superior ao custo o que era o nó da questão não resolvida da maisvalia até as amplas complicadas e multilaterais considerações do livro O Capital Esse livro esgota a gênese da época burguesa em toda sua íntima estrutura econômica e supera intelectualmente essa mesma época porque a explica em seus procedimentos em suas leis particulares e nos antagonismos que ela organicamente produz e que organicamente a dissolvem E corre como variante do movimento proletário que fracassou em 1848 até este de nossos dias que depois de ter reaparecido na superfície da vida política em meio a muitas dificuldades veio se desenvolvendo com tal e tanta constância de processo mas com lentidão de movimentos estudados Até poucos anos atrás esta regularidade de movimento progressivo no proletariado só era notada e admirada na Alemanha onde a democracia social como árvore em terreno próprio da conferência operária de Nuremberg de 1868 em diante veio crescendo normalmente em processo constante Mas depois o que acontecia na Alemanha se repetiu de várias formas em outros países Ora nesse desenvolvimento amplo do marxismo e nesse crescimento do movimento do proletariado nos modos compassados da ação política não houve talvez como dizem muitos uma atenuação do caráter belicoso da forma originária do comunismo crítico Ou talvez tenha sido uma passagem da revolução para a assim chamada evolução Ou pelo contrário uma aquiescência do espírito revolucionário às exigências do reformismo Estas reflexões e objeções surgiram e surgem continuamente tanto no seio do socialismo pela boca dos mais inflamados de ânimo e de fantasia entre seus seguidores quanto do lado dos adversários para quem é van 104 105 10 Digo opúsculo referindome à forma a que foi reduzido o escrito com fim de propaganda em 1884 Originalmente foram arquivos da Neue Rheinische Zeitung abril de 1849 que reproduziam conferências proferidas no Círculo Operário Alemão de Bruxelas em 1847 tagem generalizar os casos particulares de insucesso as pausas as demoras para afirmar que o comunismo absolutamente não tem futuro Quem avaliar o atual movimento proletário e o seu curso variado e complicado sob a impressão do Manifesto quando sua leitura não for acompanhada de outros conhecimentos pode facilmente acreditar que existia alguma coisa exageradamente juvenil e prematura na firme autoconfiança daqueles comunistas de cinqüenta anos atrás Nas palavras deles há como um grito de batalha e o eco da vibrante eloquência de alguns oradores do cartismo e quase o anúncio de um novo 93 feito de modo a não dar lugar a um novo Termidor E todavia o Termidor veio e se repetiu muitas vezes no mundo em formas variadas e mais ou menos explícitas ou dissimuladas foram seus autores de 1848 aos dias de hoje exradicais à francesa ou expatriotas à italiana ou burocratas à alemã na idéia adoradores do deus Estado e na prática bons servos do deus dinheiro ou parlamentares à inglesa finórios conhecedores dos artifícios e expedientes da arte de governo ou até mesmo policiais com máscara de anarquistas de Chicago e similares De um lado os muitos protestos contra o socialismo e aqui e ali os argumentos de pessimistas e de otimistas contra a probabilidade do seu sucesso A muitos parece que a constelação do Termidor não deve mais desaparecer do céu da História ou seja falando de forma mais prosaica para esses o liberalismo que é a sociedade dos iguais em direito presumido sinaliza o extremo limite da evolução humana e para além dele só pode acontecer o regresso A isto de bom grado se acomodam todos aqueles que de maneira geral recolocam a razão e o fim de todo progresso unicamente na sucessiva extensão da forma burguesa Sejam otimistas ou pessimistas todos encontram as colunas de Hércules do gênero humano Não raras vezes acontece que tal sentimento na sua forma pessimista atue inconscientemente sobre muitos dos que junto com outros déclassés vão engrossar as fileiras do anarquismo Há também os que se lançam mais além e assim se põem a teorizar sobre a objetiva inverossimelhança dos assuntos do comunismo crítico O enunciado do Manifesto que diz que a simplificação de todas as lutas de classe em uma única luta traz consigo a necessidade da revolução proletária seria intrinsecamente falacioso para estes polemistas que teorizam Essa nossa doutrina seria infundada como a que pretende extrair uma ilação científica e uma regra de conduta prática da argumentada previsão de um fato presumido o qual na opinião divergente destes bons e pacíficos opositores seria um simples ponto teórico deslocável e diferenciável ao infinito A suposta inevitável e resolutiva colisão entre as forças produtivas e a forma de produção nunca aconteceria segundo eles porque se dispersa em infinitos atritos particulares se multiplica nas colisões parciais da concorrência econômica é retardada e obstruída pelos expedientes e vilências da arte de governo Em outros termos a sociedade presente ao contrário de rachar e dissolverse renovaria perpetuamente a obra de seu reaparecimento e retoque Cada movimento proletário que não fosse reprimido com violência como aconteceu em junho de 1848 e em maio de 1871 cessaria por lenta exaustão como aconteceu com o cartismo que acabou no Trade Unionismo cavalo de batalha deste modo de argumentar honra e vaidade dos economistas vulgares e dos sociólogos baratos Cada movimento proletário moderno seria meteórico e não orgânico seria uma perturbação e não um processo e à mercê de tais críticos mesmo contra nossa vontade nós seríamos ainda hoje utopistas A previsão histórica que está no fundo da doutrina do Manifesto e que depois na seqüência o comunismo crítico ampliou e especificou com a mais larga e minuciosa análise do mundo presente teve por certo pelas circunstâncias do tempo em que apareceu pela primeira vez calor de batalha e vivíssima cor de expressão Mas não implicava com não implica ainda hoje nem uma data cronológica nem a pintura antecipada de uma configuração social como foi e é próprio das antigas e novas profecias e dos apocalipses O heróico Frei Dolcino não havia surgido de novo para ecoar pelas terras o grito de batalha pela profecia de Gioacchino di Fiore Nem se comemorava novamente em Münster a ressurreição do reino de Jerusalém Não mais taboristas ou milenaristas Não mais Fourier que esperasse chez soi com hora marcada por anos a fio o candidato da humanidade Não era mais o caso de que o iniciador de uma nova vida começasse por iniciativa própria a conceber com meios premeditados e de modo unilateral e artificial o primeiro embrião de uma associação que refizesse como enxerto a planta homem como aconteceu com Bellers através de Owen e Cabet até o empreendimento dos fourieristas do Texas que foi a catástrofe ou mais ainda a tumba do utopismo ilustrada por um singular epitáfio o emudecimento da eloquência quente de Cconsiderant Não é mais a seita que em ato de religiosa abstinência se retira do mundo pudica e timidamente para celebrar em um círculo reservado a perfeita idéia da comunidade como os Irmãozinhos nos confins das colônias socialistas da América Ao contrário na doutrina do comunismo crítico é a sociedade inteira que em um momento de seu processo geral descobre a causa de seu caminho fatal e em um ponto saliente da curva se ilumina para explicar a lei de seu movimento A previsão com a qual o Manifesto acenava pela primeira vez não era cronológica de prenúncio ou de promessa mas para dizêla em uma palavra que a meu ver exprime tudo sucintamente morfológica Sob o estrépito e o brilho das paixões sobre as quais habitualmente se exercita a conversação cotidiana mais aquém dos movimentos visíveis das vontades que agem de acordo com planos que é o que os cronistas e historiadores vêem e narram mais abaixo do aparelho jurídico e político da nossa convivência civilizada muito atrás das significações que a religião e a arte dão ao espetáculo e à experiência da vida está e consiste e se altera e transforma a estrutura elementar da sociedade que sustenta todo o resto O estudo anatômico de tal estrutura subjacente é a Economia E porque a convivência humana muitas vezes mudou ou parcialmente ou integralmente no seu aparelho exterior mais visível e nas suas manifestações ideológicas religiosas artísticas e similares antes de tudo é preciso encontrar os móveis e as razões de tais mudanças que os historiadores habitualmente relatam nas mutações mais ocultas e menos visíveis à primeira vista dos processos econômicos da estrutura subjacente Ou seja é preciso voltarse para o estudo das diferenças que permeiam as várias formas da produção quando se tratar de épocas históricas nitidamente distintas e propriamente ditas e onde se tratar de explicar a sucessão de tais formas ou seja a substituição de uma pela outra é preciso estudar as causas de erosão e estiolamento da forma que morre e por último quando se quiser entender o fato histórico concreto e determinado é necessário estudar e explicar os atritos e os contrastes que nascem dos vários concorrentes ou seja as classes suas subdivisões e os laços destas e daquelas que formam uma determinada configuração Quando o Manifesto diz que a História até hoje nada mais é que a história das lutas de classes e que nelas está a razão de todas as revoluções e de todos os retrocessos ele faz duas coisas a um só tempo Dá ao comunismo os elementos de uma nova doutrina e aos comunistas o fio condutor para reconhecer nos intrincados acontecimentos da vida política as condições do movimento econômico subjacente Nos cinqüenta anos decorridos daquela época até hoje a previsão genérica de uma nova era histórica tornouse para os socialistas a arte minuciosa de entender caso a caso aquilo que convém e que se deve fazer porque por si mesma essa era nova está em contínua formação O comunismo tornouse uma arte porque os proletários se tornaram ou foram levados a se tornar um partido político O espírito revolucionário se plasma diariamente na organização proletária A anunciada conjunção dos comunistas e dos proletários¹ é hoje um fato Estes cinqüenta anos foram a prova sempre crescente da rebelião ampliada das forças produtivas contra as formas da produção À parte esta lição intuitiva dos fatos nós utopistas não temos outra resposta a oferecer àqueles que ainda falam de perturbações meteóricas que segundo a opinião deles reverterão todas à calma desta insuperada e insuperável época de civilização E tal lição basta Passados onze anos da publicação do Manifesto Marx encerrava em clara e transparente fórmula os princípios retores da interpretação materialista da História no prefácio de um livro que é o precursor de O Capital² Eis reproduzida a passagem O primeiro trabalho que empreendi para resolver as dúvidas que me assaltavam foi uma revisão crítica da Filosofia do Direito de Hegel trabalho cuja introdução apareceu nos Anais Francoalemães publicados em Paris em 1844 Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado as relações jurídicas bem como as formas do Estado não podem ser explicadas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano estas relações têm ao contrário suas raízes nas condições materiais de existência em seu conjunto condições estas que Hegel a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII compreendia sob o nome de sociedade civil Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade deve ser procurada na economia política Eu havia começado o estudo desta última em Paris e o continuara em Bruxelas onde eu me havia estabelecido em conseqüência de uma sentença de expulsão ditada pelo Sr Guizot contra mim O resultado geral a que cheguei e que uma vez obtido serviu de guia para meus estudos pode formularse resumidamente assim Na produção social da própria existência os homens entram em relações determinadas necessárias independentes de sua vontade estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolv¹ Capitulu II do Manifesto² Zur kritik der politischen Oekonomie Berlim 1859 pp IVVI do prefácio A tradução da passagem para o português é de Florestan Fernandes MARX K Contribuição à Crítica da Economia Política São Paulo Florna 1946 pp 3032 vimento de suas forças produtivas materiais O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social política e intelectual Não é a consciência dos homens que determina a realidade ao contrário é a realidade social que determina sua consciência Em certa fase de seu desenvolvimento as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou o que não é mais que sua expressão jurídica com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então De formas evolutivas das forças produtivas que eram essas relações convertemse em seus entraves Abrese então uma era de revolução social A transformação que se produziu na base econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura Quando se consideram tais transformações convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais e as formas jurídicas políticas religiosas artísticas ou filosóficas em resumo as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até ao fim Do mesmo modo que não se pode julgar uma tal época de abalos pela consciência que ela tem de si mesma É preciso ao contrário explicar esta consciência pelas condições da vida material pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade Eis por que a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver pois aprofundando a análise verseá sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvêlo existem ou estão em vias de existir Esboçados em largos traços os modos de produção asiáticos antigos feudais e burgueses modernos podem ser designados como outras tantas épocas progressivas da formação social econômica As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social antagônica não no sentido de um antagonismo individual mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver este antagonismo Com esta formação social termina pois a préHistória da sociedade humana Enquanto Marx assim escrevia já há muitos anos havia abandonado a arena política à qual só retornaria mais tarde nos tempos da Internacional A reação havia derrotado a revolução na Itália na Áustria na Hungria na Alemanha quer a revolução patriótica quer a liberal ou a democrática A burguesia de sua parte vencera ao mesmo tempo os proletários na França e na Inglaterra As condições indispensáveis ao desenvolvimento do movimento democrático e proletário desapareceram de uma penada As fileiras não certamente muito numerosas dos comunistas do Manifesto que se haviam mesclado à revolução e logo após participaram de todas as ações de resistência e de insurreição popular contra a reação assistiram finalmente ao bloqueio de sua atividade com o memorável processo de Colônia Os sobreviventes do movimento tentaram um recomeço em Londres mas rapidamente Marx Engels e outros deram as costas aos revolucionários profissionais e retiraramse da ação imediata A crise passou Persistia uma longa pausa Ela era o sintoma da lenta desaparição do movimento cartista ou seja do movimento proletário do país que é a coluna vertebral do sistema capitalista Naquele momento a História não dava razão às ilusões dos revolucionários Antes de dedicarse quase que exclusivamente à prolongada incubação dos fundamentos que ele já havia encontrado na crítica da economia política Marx ilustrou a história do período revolucionário de 194850 em vários escritos em particular as lutas de classes na França narrandoas de tal maneira que se a revolução na forma que assumia naquele momento estava falida não por isso se desmentia a teoria revolucionária da História¹³ traço apenas esboçado no Manifesto mas que já assumia seu papel de condutor de toda a exposição Mais ainda o texto que tem como título O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte¹⁴ foi a primeira tentativa de plasmar a nova concepção histórica no relato de uma ordem de fatos compreendidos em parâmetros tempo³ Os artigos publicados na Neue Rheinische Zeitung PolitischOekonomische Revue Hamburgo 1850 foram recentemente reproduzidos por Engels Berlim 1895 em opúsculo precedido de um prefácio seu O título do opúsculo é precisamente As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 ⁴ Este escrito de Marx foi publicado em uma revista de Nova York em 1852 Depois foi muitas vezes reproduzido na Alemanha Hoje pode ser lido também em francês Lille 1891 e Delory vimento de suas forças produtivas materiais O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social política e intelectual Não é a consciência dos homens que determina a realidade ao contrário é a realidade social que determina sua consciência Em certa fase de seu desenvolvimento as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou o que não é mais que sua expressão jurídica com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então De formas evolutivas das forças produtivas que eram essas relações convertemse em seus entraves Abrese então uma era de revolução social A transformação que se produziu na base econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura Quando se consideram tais transformações convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais e as formas jurídicas políticas religiosas artísticas ou filosóficas em resumo as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até ao fim Do mesmo modo que não se pode julgar uma tal época de abalos pela consciência que ela tem de si mesma É preciso ao contrário explicar esta consciência pelas condições da vida material pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade Eis por que a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver pois aprofundando a análise verseá sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvêlo existem ou estão em vias de existir Esboçados em largos traços os modos de produção asiáticos antigos feudais e burgueses modernos podem ser designados como outras tantas épocas progressivas da formação social econômica As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social antagônica não no sentido de um antagonismo individual mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver este antagonismo Com esta formação social termina pois a préHistória da sociedade humana Enquanto Marx assim escrevia já há muitos anos havia abandonado a arena política à qual só retornaria mais tarde nos tempos da Internacional A reação havia derrotado a revolução na Itália na Áustria na Hungria na Alemanha quer a revolução patriótica quer a liberal ou a democrática A burguesia de sua parte vencera ao mesmo tempo os proletários na França e na Inglaterra As condições indispensáveis ao desenvolvimento do movimento democrático e proletário desapareceram de uma penada As fileiras não certamente muito numerosas dos comunistas do Manifesto que se haviam mesclado à revolução e logo após participaram de todas as ações de resistência e de insurreição popular contra a reação assistiram finalmente ao bloqueio de sua atividade com o memorável processo de Colônia Os sobreviventes do movimento tentaram um recomeço em Londres mas rapidamente Marx Engels e outros deram as costas aos revolucionários profissionais e retiraramse da ação imediata A crise passou Persistia uma longa pausa Ela era o sintoma da lenta desaparição do movimento cartista ou seja do movimento proletário do país que é a coluna vertebral do sistema capitalista Naquele momento a História não dava razão às ilusões dos revolucionários Antes de dedicarse quase que exclusivamente à prolongada incubação dos fundamentos que ele já havia encontrado na crítica da economia política Marx ilustrou a história do período revolucionário de 194850 em vários escritos em particular as lutas de classes na França narrandoas de tal maneira que se a revolução na forma que assumia naquele momento estava falida não por isso se desmentia a teoria revolucionária da História¹³ traço apenas esboçado no Manifesto mas que já assumia seu papel de condutor de toda a exposição Mais ainda o texto que tem como título O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte¹⁴ foi a primeira tentativa de plasmar a nova concepção histórica no relato de uma ordem de fatos compreendidos em parâmetros tempo³ Os artigos publicados na Neue Rheinische Zeitung PolitischOekonomische Revue Hamburgo 1850 foram recentemente reproduzidos por Engels Berlim 1895 em opúsculo precedido de um prefácio seu O título do opúsculo é precisamente As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 ⁴ Este escrito de Marx foi publicado em uma revista de Nova York em 1852 Depois foi muitas vezes reproduzido na Alemanha Hoje pode ser lido também em francês Lille 1891 e Delory A sociologia se desenvolve como um instrumento de análise da sociedade e das suas relações sociais Seu desenvolvimento se deu em um contexto de transição geopolítica histórica e científica sendo marcada pela construção de uma metodologia que visou abordar como um todo as ciências humanas e as ciências sociais Com a revolução industrial uma série de mudanças atingiram a sociedade principalmente o corpo social trabalhador que teve que moldar o seu ritmo ao ritmo das fábricas Como resposta houve um despertar dos cientistas para compreender essa nova realidade concreta inclusive dos movimentos sociais construídos como instrumento de mudanças dos efeitos deletérios causados Nesse viés o evolucionismo social que interpretar e categorizar um determinado corpo social como selvagens ou como civilizados vinculado a uma noção de que com o passar do tempo as formações sociais seriam mais complexas como a minimização de comportamento tratados como bárbaros ou promíscuo Essa concepção não é mais aceita na contemporaneidade Tylor irá construir uma noção a partir das tribos indígenas mexicanas pensando em uma convergência entre as diversas culturas por estarem vinculadas a princípios de ação e pensamentos comuns Em determinadas tribos que iniciavam seu processo de desenvolvimento há a presença de animismo onde entidades naturais são representadas por deuses Comte irá organizar uma ciência baseada nas bases que compreendem as ciências exatas a sociologia será uma tipologia de física social que irá fundamentado em leis vinculados a evolução e progresso social Nesse âmbito o estado teológico seria o primeiro o segundo seria o metafísico até chegar na última etapa o positivo marcado por afastamento de pensamentos supersticiosos e uma aproximação efetiva da razão e da objetividade Por fim Spencer visava compreender a vida social a partir de estruturas básicas Karl Marx sociólogo do século XIX que buscou interpretar e criticar o mundo capitalista durante o contexto da Segunda Revolução Industrial e após a revolução francesa Ele e Friedrich Engels foram responsáveis pela composição do manifesto político mais conhecido da história que é o manifesto comunista Nesse viés a base fundamental está atrelada a concepção de materialismo histórico e dialético sendo esse a origem da realidade social está nas condições materialistas baseada na relação materialista de produção ou seja da forma como o sistema econômico funciona e essa relação é contraditória sendo marcada pela luta de classes a história de todas as sociedades que gera transformações no sistema econômico vigente caráter dialético Sendo assim as relações sociais são relações de produção Marx e Engels vão dizer que é preciso transformar a realidade e não apenas interpretála Fundamentado nessa concepção a burguesia é os detentores do meio de produção e o proletariado são os sujeitos que vendem sua mão de obra No capitalismo são esses dois recortes sociais que praticam a luta de classes Em seguida eles explicam a realidade concreta que fundamenta esse construto expondo que o proletariado por meio do prática do trabalho estranhado isto é o estranhamento a exteriorização do trabalho faz com que o trabalhador não reconheça o trabalho o objeto produto do trabalho e nem a si mesmo O trabalho é externo ao trabalhador não pertence a ele Como se o trabalho não fosse seu próprio já que pertence ao burguês e não a si mesmo Resultando no estranhamento de si próprio a perda de si mesmo da essência humana do homem pelo próprio homem o auto estranhamento Isso pode gerar a retificação desse homem ou sejacoisificação e substituição do homem Em contrapartida ocorre um processo de humanização das coisas vinculado a uma hipervalorização dos objetos Nesse contexto o homem trata as mercadorias como um objeto de adoração deixandoas de ter sua utilidade útil e passa a atribuir um valor simbólico quase que divino o ser humano compara a transcendência que o artefato representa Somado a isso por meio do conceito de mais valia os autores ainda expõe a exploração do trabalho do proletariado onde a burguesia fica com a maior parte do lucro enquanto o proletariado recebe apenas uma pequena parcela Fundamentado nessas concepções a alienação vem como um processo que torna o trabalhador incapaz de reconhecer a realidade de exploração Produção socializada mas há privatização dos produtos e dos meios de produção Isso é reforçado pela superestrutura ideologia social pautada na estrutura agindo como instrumento de dominação A produção socializada mas há privatização do produto e dos meios de produção Na segunda seção Marx e Engels introduzem as concepções referente ao Partido Comunista que tem como fundamento os interesses dos trabalhadores tem como objetivo por meio transformar o proletariado em uma classe coesa com interesses comuns e bem estruturados derrubar o domínio da burguesia redistribuindo o poder político abolindo a propriedade privada a essência da acumulação de riqueza A acumulação de riqueza só beneficia a burguesia Posteriormente traz as concepções de socialismo reacionário retoma fundamentos da estrutura feudal socialismo conservador é produto da burguesia a partir da adesão de algumas exigências da burguesia e o socialismo crítico utópico que visam criticar de forma efetiva as classes e as estruturas sociais Por fim ressaltam que há um apoio a diversos movimentos que desafiam a ordem social e política existente concluindo com um apelo a união dos trabalhadores para uma mudança efetiva na realidade de exploração que esses se encontram Durkheim é considerado como o pai da sociologia uma vez que foi um dos primeiros sociólogos que pensou em metodologias e instrumentos específicos para a sociologia Nesse viés o sociólogo é responsável por institucional e dá caráter científico à sociologia Sofreu influência do Positivismo de Auguste Comte pensando em uma investigação neutra e o funcionalismo de Spencer que compreendia a sociedade como um corpo vivo Os órgãos precisam estar em funcionamento pleno para que o corpo funcione da maneira correta Enfatizou na coesão social na moralidade solidariedade em oposição à tradição da teoria dos conflitos Em sua teoria a patologia social é a consequência da anomia doenças sociais e estão vinculadas a problemas de ordem moral O fenômeno social seria todo o tipo de fenômeno que ocorre na sociedade Essas coerências que fossem possíveis de observar são os fatos sociais Sob essa ótica a educação deve reforçar os padrões de comportamento ético Os fatos sociais objeto de estudo da sociologia são meios de agir pensar ou sentir que são externos aos indivíduos têm sua própria realidade fora das vidas e percepções individuais e possuem caráter coercitivo sobre os indivíduos e as pessoas geralmente não percebem essa natureza E possuem algumas características são difíceis de serem aprendidos é possível analisar seus efeitos e suas expressões e comparálos através de estudos de bases comparativas dependem de uma organização definida se ocorre tentativa de violar as regras elas reagem contra o indivíduo para impedir seu ato Ainda que de fato seja possível se libertar dessas regras isso jamais ocorre sem que seja obrigado ao indivíduo lutar contra elas A coerção dá origem aos hábitos que serão passados pela educação produzindo assim o ser social Podemos analisar seus feitos ou suas expressões e comparálos através de estudos comparativos se constituem como objeto de investigação de fenômenos que apresentem características comuns e analisálos dessa forma Considerálos sob um ângulo em que se apresentem isolados de suas manifestações individuais consciência coletiva A anomia Social ocorre quando os indivíduos perdem a dimensão normativareguladoras devido às rápidas mudanças ou instabilidade na sociedade ocorre a perda de um ponto de referência para normas e desejos Pode ocorrer devido a falta de regramento e a perda da Solidariedade O suicidio é um fato social que apenas podia ser explicado por outros fatos sociais Era um fenômeno com características padronizadas que podem ser em função da presença de integração excessiva como o fatalístico o indivíduo é regulado demais pela sociedade e como o altruísta o indivíduo está integrado em excesso o indivíduo valoriza mais a sociedade que a si mesmo ou em função da ausência de Integração Social como a anomia falta de regulação social e a egoísta quando o indivíduo está excessivamente isolado ou com laços sociais enfraquecidos Já a Solidariedade é a consciência coletiva que daria uma coesão entre as pessoas gerando uma teia de interdependência entre indivíduos de uma sociedade É mantida quando os indivíduos são integrados com sucesso em grupo de sociais e regulados por um conjunto de valores e costumes compartilhados consciência coletiva

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AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO Emile Durkheim Até o presente os sociólogos pouco se preocuparam em caracterizar e definir o método que aplicam ao estudo dos fatos sociais É assim que em toda a obra de Spencer o problema metodológico não ocupa nenhum lugar pois a Introdução à ciência social cujo título poderia dar essa ilusão destinase a demonstrar as dificuldades e a possibilidade da sociologia não a expor os procedimentos que ela deve utilizar Stuart Mill é verdade ocupouse longa mente da questão mas ele não fez senão passar sob o crivo de sua dialética o que Comte havia dito sem acrescentar nada de verdadeiramente pessoal Um capítulo do Curso de filosofia positiva eis praticamente o único estudo original e importante que possuímos sobre o assunto Essa despreocupação aparente aliás nada tem de surpreendente De fato os grandes sociólogos cujos nomes acabamos de mencionar raramente saíram das generalidades sobre a natureza das sociedades sobre as relações do reino social e do reino biológico sobre a marcha geral do progresso mesmo a volumosa sociologia de Spencer quase não tem outro objeto senão mostrar como a lei da evolução universal se aplica às sociedades Ora apara tratar essas questões filosóficas n o são necessánosprocedimentos especiais e complexos A ra su iciente portanto pesar os méritos comparados da dedução e da indução e fazer uma inspeção sumária dos recursos mais gerais de que dispõe a investigação sociológica Mas as precauções a tomar na observação dos fatos a maneira como os principais problemas devem ser colocados o sentido no qual as pesquisas devem ser dirigidas as práticas especiais que podem permitir chegar aos fatos as regras que devem presidir a administração das provas tudo isso permanecia indeterminado Uma série de circunstâncias felizes entre as quais é justo destacar a iniciativa que criou em nosso favor um curso regular de sociologia na Faculdade de Letras de Bordéus o qual possibilitou que nos dedicássemos desde cedo ao estudo da ciência social e inclusive fizéssemos dele o objeto de nossas ocupações profissionais nos fez sair dessas questões demasiado gerais e abordar um certo número de problemas particulares Assim fomos levados pela força mesma das coisas a elaborar um método que julgamos mais definido mais exatamente adaptado à natureza particular dos fenômenos sociais São esses resultados de nossa prática que gostaríamos de expor aqui em conjunto e de submeter à discussão Claro que eles estão implicitamente contidos no livro que publicamos recentemente sobre A divisão do trabalho social Mas nos parece interessante destacálos formulálos à parte acompanhados de suas provas e ilustrados de exemplos tomados tanto dessa obra como de trabalhos ainda inéditos Assim poderão julgar melhor a orientação que gostaríamos de tentar dar aos estudos de sociologia O QUE É UM FATO SOCIAL Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais importa saber quais fatos chamamos assim A questão é ainda mais necessária porque se utiliza essa qualificação sem muita precisão Ela é empregada correntemente para designar mais ou menos todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade por menos que apresentem com uma certa generalidade algum interesse social Mas dessa maneira não há por assim dizer acontecimentos humanos que não possam ser chamados sociais Todo indivíduo come bebe dorme raciocina e a sociedade tem todo o interesse em que essas funções se exerçam regularmente Portanto se esses fatos fossem sociais a sociologia não teria objeto próprio e seu domínio se confundiria com o da biologia e da psicologia Mas na realidade há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos que se distinguem por caracteres definidos daqueles que as outras ciências da natureza estudam Quando desempenho minha tarefa de irmão de marido ou de cidadão quando executo os compromissos que assumi eu cumpro deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos no direito e nos costumes Ainda que eles estejam de acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta interiormente a realidade deles esta não deixa de ser objetiva pois não fui eu que os fiz mas os recebi pela educação Aliás quantas vezes não nos ocorre ignorarmos o detalhe das obrigações que nos incumbem e precisarmos para conhecêlas consultar o Código e seus intérpretes autorizados Do mesmo modo as crenças e as práticas de sua vida religiosa o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer se elas existiam antes dele é que existem fora dele O sistema de signos de que me sirvo para exprimir meu pensamento o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dívidas os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações co merciais as práticas observadas em minha profissão etc funcionam independentemente do uso que faço deles Que se tomem um a um todos os membros de que é composta a sociedade o que precede poderá ser repetido a propósito de cada um deles Eis aí portanto maneiras de agir de pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao indivíduo como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõem a ele quer ele queira quer não Certamente quando me conformo voluntariamente a ela essa coerção não se faz ou pouco se faz sentir sendo inútil Nem por isso ela deixa de ser um caráter intrínseco desses fatos e a prova disso é que ela sê afirma tão logo tento resistir Se tento violar as regras do direito elas reagem contra mim para impedir meu ato se estiver em tempo ou para anulálo e restabelecêlo em sua forma normal se tiver sido efetuado e for reparável ou para fazer com que eu o expie se não puder ser reparado de outro modo Em se tratando de máximas puramente morais a consciência pública reprime todo ato que as ofenda através da vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos e das penas especiais de que dispõe Em outros casos a coerção émenos violenta mas não deixa de existir Se não me submeto às convenções do mundo se ao vestirme não levo em conta os costumes observados em meu país e em minha classe o riso que provoco o afastamento em relação a mim produzem embora de maneira mais atenuada os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita Ademais a coerção mesmo sendo apenas indireta continua sendo eficaz Não sou obrigado a falar francês com meus compatriotas nem a empregar as moedas legais mas éimpossível agir de outro modo Se eu quisesse escapar a essa necessidade minha tentativa fracassaria miseravelmente Industrial nada me proíbe de trabalhar com procedimentos e métodos do século passado mas se o fizer é certo que me arruinarei Ainda que de fato eu possa libertarme dessas regras e violálas com sucesso isso jamais ocorre sem que eu seja obrigado a lutar contra elas E ainda que elas sejam finalmente vencidas demonstram suficientemente sua força coercitiva pela resistência que opõem Não há inovador mesmo afortunado cujos empreendimentos não venham a deparar com oposições desse tipo Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais consistem em maneiras de agir de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele Por conseguinte eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos já que consistem em representações e em ações nem com Os fenômenos psíquicos os quais só têm existência na consciência individual e através dela Esses fatos constituem portanto uma espécie nova e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais Essa qualificação lhes convém pois é claro que não tendo o indivíduo por substrato eles não podem ter outro senão a sociedade seja a sociedade política em seu conjunto seja um dos grupos parciais que ela encerra confissões religiosas escolas políticas literárias corporações profissionais etc Por outro lado é a eles só que ela convém pois apalavra social só tem sentido definido com a condição de designar unicamente fenômenos que não se incluem em nenhuma das categorias de fatos já constituídos e denominados Eles são portanto o domínio próprio da sociologia É verdade que a palavra coerção pela qual os definimos pode vira assustar os zelosos defensores de um individualismo absoluto Como estes professam que o indivíduo éperfeitamente autônomo julgam que o diminuímos sempre que mostramos que ele não depende apenas de si mesmo Sendo hoje incontestável porém que a maior parte de nossas idéias e de nossas tendências não é elaborada por nós mas nos vem de fora elas só podem penetrar em nós impondose eis tudo o que significa nossa definição Sabese aliás que nem toda coerção social exclui necessariamente a personalidade individual Entretanto como os exemplos que acabamos de citar regras jurídicas morais dogmas religiosos sistemas financeiros etcconsistem todos em crenças e em práticas constituídas poderseia supor com base no que precede que só há fato social onde há organização definida Mas existem outros fatos que sem apresentar essas formas cristalizadas têm a mesma objetividade e a mesma ascendência sobre o indivíduo É o que chamamos de correntes sociais Assim numa assembléia os grandes movimentos de entusiasmo ou de devoção que se produzem não têm por lugar de origem nenhuma consciência particular Eles nos vêm a cada um de nós de fora e são capazes de nos arrebatar contra a nossa vontade Certamente pode ocorrer que entregandome a eles sem reserva eu não sinta a pressão que exercem sobre mim Mas ela se acusa tão logo procuro lutar contra eles Que um indivíduo tente se opor a uma dessas manifestações coletivas os sentimentos que ele nega se voltarão contra ele Ora se essa força de coerção externa se afirma com tal nitidez nos casos de re sistência é porque ela existe ainda que inconsciente nos casos contrários Somos então vítimas de uma ilusão que nos faz crer que elaboramos nós mesmos o que se impôs a nós de fora Mas se a complacência com que nos entregamos a essa força encobre a pressão sofrida ela não a suprime Assim também o ar não deixa de ser pesado embora não sintamos mais seu peso Mesmo que de nossa parte tenhamos colaborado espontaneamente para a emoção comum a impressão que sentimos é muito diferente da que teríamos sentido se estivéssemos sozinhos Assim a partir do momento em que a assembléia se dissolve em que essas influências cessam de agir sobre nós e nos vemos de novo a sós os sentimentos vividos nos dão a impressão de algo estranho no qual não mais nos reconhecemos Então nos damos conta de que sofremos esses sentimentos bem mais do que os produzimos Pode acontecer até que nos causem horror tanto eram contrários ànossa natureza É assim que indivíduos perfeitamente inofensivos na maior parte do tempo podem ser levados a atos de atrocidade quando reunidos em multidão Ora o que dizemos dessas explosões passageiras aplicase identicamente aos movimentos de opinião mais duráveis que se produzem a todo instante a nosso redor seja em toda a extensão da sociedade seja em círculos mais restritos sobre assuntos religiosos políticos literários artísticos etc Aliás podese confirmar por uma experiência característica essa definição do fato social basta observar a maneira como são educadas as crianças Quando se observam os fatos tais como são e tais como sempre foram salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente Desde os primeiros momentos de sua vida forçamolas a comer a beber a dormir em horários regulares forçamolas à limpeza à calma à obediência mais tarde forçamolas para que aprendam a levar em conta outrem a respeitar os costumes as conveniências forçamolas ao trabalho etc etc Se com o tempo essa coerção cessa de ser sentida é que pouco a pouco ela dá origem a hábitos a tendências internas que a tornam inútil mas que só a substituem pelo fato de derivarem dela É verdade que segundo Spencer uma educação racional deveria reprovar tais procedimentos e deixar a criança proceder com toda a liberdade mas como essa teoria pedagógica jamais foi praticada por qualquer povo conhecido ela constitui apenas um desideratum pessoal não um fato que se pos sa opor aos fatos que precedem Ora o que torna estes últimos particularmente instrutivos é que a educação tem justamente por objeto produzir o ser social podese portanto ver nela como que resumidamente de que maneira esse ser constituiuse na história Essa pressão de todos os instantes que sofre a criança é a pressão mesma do meio social que tende a modelála à sua imagem e do qual os pais e os mestres não são senão os representantes e os intermediários Assim não é sua generalidade que pode servir para caracterizar os fenômenos sociológicos Um pensamento que se encontra em todas as consciências particulares um movimento que todos os indivíduos repetem nem por isso são fatos sociais Se se contentaram com esse caráter para definilos é que os confundiram erradamente com o que se poderia chamar de suas encarnações individuais O que os constitui são as crenças as tendências e as práticas do grupo tomado coletivamente quanto às formas que assumem os estados coletivos ao se refratarem nos indivíduos são coisas de outra espécie O que demonstra categoricamente essa dualidade de natureza é que essas duas ordens de fatos apresentamse geralmente dissociadas Com efeito algumas dessas maneiras de agir ou de pensar adquirem por causa da repetição uma espécie de consistência que as precipita por assim dizer e as isola dos aconteci mentos particulares que as refletem Elas assumem assim um corpo uma forma sensível que lhes é própria e constituem uma realidade sui generis muito distinta dos fatos individuais que a manifestam O hábito coletivo não existe apenas em estado de imanência nos atos sucessivos que ele determina mas se exprime de uma vez por todas por um privilégio cujo exemplo não encontramos no reino biológico numa fórmula que se repete de boca em boca que se transmite pela educação que se fixa através da escrita Tais são a origem e a natureza das regras jurídicas morais dos aforismos e dos ditos populares dos artigos de fé em que as seitas religiosas ou políticas condensam suas crenças dos códigos de gosto que as escolas literárias estabelecem etc Nenhuma dessas maneiras de agir ou de pensar se acha por inteiro nas aplicações que os particulares fazem delas já que elas podem inclusive existir sem serem atualmente aplicadas Claro que essa dissociação nem sempre se apresenta com a mesma nitidez Mas basta que ela exista de uma maneira incontestável nos casos importantes e numerosos que acabamos de mencionar para provar que o fato social édistinto de suas repercussões individuais Aliás mesmo que ela não seja imediatamente dada à observação podese com freqüência realizála com o auxilio de certos artifícios de método é inclusive indispensável proceder a essa operação se quisermos separar o fato social de toda mistura para observálo no estado de pureza Assim há certas correntes de opinião que nos impelem com desigual intensidade conforme os tempos e os lugares uma ao casamento por exemplo outra ao suicídio ou a uma natalidade mais ou menos acentuada etc Tratase evidentemente de fatos sociais À primeira vista eles parecem inseparáveis das formas que assumem nos casos particulares Mas a estatística nos fornece o meio de isolálos Com efeito eles são representados não sem exatidão pelas taxas de natalidade de nupcialidade de suicídios ou seja pelo número que se obtém ao dividir a média anual total dos nascimentos dos casamentos e das mortes voluntárias pelo total de homens em idade de se casar de procriar de se suicidarz Pois como cada uma dessas cifras compreende todos os casos particulares sem distinção as circunstâncias individuais que podem ter alguma participação na produção do fenômeno neutralizamse mutuamente e portanto não contribuem para determinálo O que esse fato exprime éum certo estado da alma coletiva Eis o que são os fenômenos sociais desembaraçados de todo elemento estranho Quanto às suas manifestações privadas elas têm claramente algo de social já que reproduzem em parte um modelo coletivo mas cada uma delas depende também e em larga medida da constituição orgânicopsíquica do indivíduo das circunstâncias particulares nas quais ele está situado Portanto elas não são fenômenos propriamente sociológicos Pertencem simultaneamente a dois reinos poderíamos chamálas sociopsíquicas Essas manifestações interessam o sociólogo sem constituírem a matéria imediata da sociologia No interior do organismo encontramse igualmente fenômenos de natureza mista que ciências mistas como a química biológica estudam Mas dirão um fenômeno só pode ser coletivo se for comum a todos os membros da sociedade ou pelo menos à maior parte deles portanto se for geral Certamente mas se ele é geral é porque é coletivo isto é mais ou menos obrigatório o que é bem diferente de ser coletivo por ser geral Esse fenômeno é um estado do grupo que se repete nos indivíduos porque se impõe a eles Ele está em cada parte porque está no todo o que é diferente de estar no todo por estar nas partes Isso é sobretudo evidente nas crenças e práticas que nos são transmitidas inteiramente prontas pelas gerações anteriores recebemolas e adotamolas porque sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma obra secular elas estão investidas de uma particular autoridade que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar Ora cumpre assinalar que a imensa maioria dos fenômenos sociais nos chega dessa forma Mas ainda que se deva em parte à nossa colaboração direta o fato social é da mesma natureza Um sentimento coletivo que irrompe numa assembléia não exprime simplesmente o que havia de comum entre todos os sentimentos individuais Ele é algo completamente distinto conforme mostramos É uma resultante da vida comum das ações e reações que se estabelecem entre as consciências individuais e se repercute em cada uma delas é em virtude da energia social que ele deve precisamente à sua origem coletiva Se todos os corações vibram em uníssono não é por causa de uma concordância espontânea e preestabelecida é que uma mesma força os move no mesmo sentido Cada um é arrastado por todos Podemos assim representarnos de maneira precisa o domínio da sociologia Ele compreende apenas um grupo determinado de fenômenos Um fato social se reconhece pelo poder de coerção externa que exerce ou é capaz de exercer sobre os indivíduos e a presença desse poder se reconhece por sua vez seja pela existência de alguma sanção determinada seja pela resistência que o fato opõe a toda tentativa individual de fazerlhe violência Contudo podese definilo também pela difusão que apresenta no interior do grupo contanto que conforme as observações precedentes tenhase o cuidado de acrescentar como segunda e essencial característica que ele existe independentemente das formas individuais que assume ao difundirse Este último critério em certos casos é inclusive mais fácil de aplicar que o precedente De fato a coerção é fácil de constatar quando se traduz exteriormente por alguma reação direta da sociedade como é o caso em relação ao direito à moral às crenças aos costumes inclusive às modas Mas quando é apenas indireta como a que exerce uma organização econômica ela nem sempre se deixa perceber tão bem A generalidade combinada coma objetividade podem então ser mais fáceis de estabelecer Aliás essa segunda definição não é senão outra forma da primeira pois se uma maneira de se conduzir que existe exteriormente às consciências individuais se generaliza ela só pode fazêlo impondosei Entretanto poderseia perguntar se essa definição é completa Com efeito os fatos que nos forneceram sua base são todos eles maneiras de fazer são de ordem fisiológica Ora há também maneiras de ser coletivas isto é fatos sociais de ordem anatômica ou morfológica A sociologia não pode desinteressarse do que diz respeito ao substrato da vida coletiva No entanto o número e a natureza das partes elementares de que se compõe a sociedade a maneira como elas estão dispostas o grau de coalescência a que chegaram a distribuição da população pela superfície do território o número e a natureza das vias de comunicação a forma das habitações etc não parecem capazes num primeiro exame de se reduzir a modos de agir de sentir ou de pensar Mas em primeiro lugar esses diversos fenômenos apresentam a mesma característica que nos ajudou a definir os outros Essas maneiras de ser se impõem ao indivíduo tanto quanto as maneiras de fazer de que falamos De fato quando se quer conhecer a forma como uma sociedade se divide politicamente como essas divisões se compõem a fusão mais ou menos completa que existe entre elas não é por meio de uma inspeção material e por observações geográficas que se pode chegar a isso pois essas divisões são morais ainda que tenham alguma base na natureza física É somente através do direito público que se pode estudar essa organização pois é esse direito que a determina assim como determina nossas relações domésticas e cívicas Portanto ela não é menos obrigatória Se a população se amontoa nas cidades em vez de se dispersar nos campos é que há uma corrente de opinião um movimento coletivo que impõe aos indivíduos essa concentração Não podemos escolher a forma de nossas casas como tampouco a de nossas roupas pelo menos uma é obrigatória na mesma medida que a outra As vias de comunicação determinam de maneira imperiosa o sentido no qual se fazem as migrações interiores e as trocas e mesmo a intensidade dessas trocas e dessas migrações etc etc Em conseqüência seria quando muito o caso de acrescentar à lista dos fenômenos que enumeramos como possuidores do sinal distintivo do fato social uma categoria a mais e como essa enumeração não tinha nada de rigorosamente exaustivo a adição não seria indispensável Mas ela não seria sequer proveitosa pois essas maneiras de ser não são senão maneiras de fazer consolidadas A estrutura política de uma sociedade não é senão a maneira como os diferentes segmentos que a compõem se habituaram a viver uns com os outros Se suas relações são tradicionalmente próximas os segmentos tendem a se confundir caso contrário tendem a se distinguir O tipo de habitação que se impõe a nós não é senão a maneira como todos ao nosso redor e em parte as gerações anteriores se acostumaram a construir suas casas As vias de comunicação não são senão o leito escavado pela própria corrente regular das trocas e das migrações correndo sempre no mesmo sentido etc Certamente se os fenômenos de ordem morfológica fossem os únicos a apresen tar essa fixidez poderíamos pensar que eles constituem uma espécie à parte Mas uma regra jurídica é um arranjo não menos permanente que um modelo arquitetônico e no entanto é um fato fisiológico Uma simples máxima moral é seguramente mais maleável porém ela possui formas bem mais rígidas que um simples costume profissional ou que uma moda Há assim toda uma gama de nuances que sem solução de continuidade liga os fatos estruturais mais caracterizados às correnteslivres da vida social ainda não submetidas a nenhum molde definido Éque entre os primeiros e as segundas apenas há diferenças no grau de consolidação que apresentam Uns e outras são apenas vida mais ou menos cristalizada Claro que pode haver interesse em reservar o nome de morfológicos aos fatos sociais que concernem ao substrato social mas com a condição de não perder de vista que eles são da mesma natureza que os outros Nossa definição compreenderá portanto todo o definido se dissermos É fato social toda maneira de fazer fixada ou não suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior ou ainda toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e ao mesmo tempo possui uma existência própria independente de suas manifestações individuais REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS A primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas No momento em que uma nova ordem de fenômenos tornase objeto de ciência eles já se acham representados no espírito não apenas por imagens sensíveis mas por espécies de conceitos grosseiramente formados Antes dos primeiros rudimentos da física e da química os homens já possuíam sobre os fenômenos físicoquímicos noções que ultrapassavam a pura percepção como aquelas por exemplo que encontramos mescladas a todas as religiões É que de fato a reflexão é anterior à ciência que apenas se serve dela com mais método O homem não pode viver em meio às coisas sem fórmar a respeito delas idéias de acordo com as quais regula sua conduta Acontece que como essas noções estão mais próximas de nós e mais ao nosso alcance do que as realidades a que correspondem tendemos naturalmente a substituir estas últimas por elas e a fazer delas a matéria mesma de nossas especulações Em vez de observar as coisas de descrevêlas de comparálas contentamonos então em tomar consciência de nossas idéias em analisálas em combinálas Em vez de uma ciência de realidades não fazemos mais do que uma análise ideológica Por certo essa análise não exclui necessariamente toda observação Podese recorrer aos fatos para confirmar as noçôes ou as conclusões que se tiram Mas os fatos só intervêm então secundariamente a título de exemplos ou de provas confirmatórias eles não são o objeto da ciência Esta vai das idéias às coisas não das coisas às idéias É claro que esse método não poderia dar resultados objetivos Com efeito essas noções ou conceitos não importa o nome que se queira darlhes não são os substitutos legítimos das coisas Produtos da experiência vulgar eles têm por objeto antes de tudo colocar nossas ações em harmonia com o mundo que nos cerca são formados pela prática e para ela Ora uma representação pode ser capaz de desempenhar utilmente esse papel mesmo sendo teoricamente falsa Copérnico há muitos séculos dissipou as ilusões de nossos sentidos referentes aos movimentos dos astros no entanto é ainda com base nessas ilusões que regulamos correntemente a distribuição de nosso tempo Para que uma idéia suscite exatamente os movimentos que a natureza de uma coisa reclama não é necessário que ela exprima fielmente essa natureza basta que nos faça perceber o que a coisa tem de útil ou de desvantajoso cie que modo pode nos servir de que modo nos contrariar Mas as noções assim formadas só apresentam essa justeza prática de uma maneira aproximada e somente na generalidade dos casos Quantas vezes elas são tão perigosas como inadequadas Não é portanto elaborandoas pouco importa de que maneira o façamos que chegaremos a descobrir as leis da realidade Tais noções ao contrário são como um véu que se interpõe entre as coisas e nós e que as encobre tanto mais quanto mais transparente julgamos esse véu Tal ciência não é apenas truncada faltalhe também matéria de que se alimentar Mal ela existe desaparece por assim dizer transformandose em arte De fato supõese que essas noções contenham tudo o que há de essencial no real já que são confundidas com o próprio real Com isso parecem ter tudo o que é preciso para que sejamos capazes não só de compreender o que é mas de prescrever o que deve ser e os meios de executálo Pois é bom o que está de acordo com a natureza das coisas o que é contrário a elas é mau e os meios para alcançar um e evitar o outro derivam dessa mesma natureza Portanto se a dominamos de saída o estudo da realidade presente não tem mais interesse prático e como esse interesse é a razão de ser de tal estudo este se vê desde então sem finalidade A reflexão é assim incitada a afastarse do que é o objeto mesmo da ciência a saber o presente e o passado para lançarse num único salto em direção ao futuro Em vez de buscar compreender os fatos adquiridos e realizados ela empreende imediatamente realizar novos mais conformes aos fins perseguidos pelos homens Quando se crê saber em que consiste a essência da matéria partese logo em busca da pedra filosofal Essa intromissão da arte na ciência que impede que esta se desenvolva é aliás facilitada pelas circunstâncias mesmas que determinam o despertar da reflexão científica Pois como esta só surge para satisfazer necessidades vitais é natural que se oriente para a prática As necessidades que ela é chamada a socorrer são sempre prementes portanto a pressionam para obter resultados elas reclamam não explicações mas remédios Essa maneira de proceder é tão conforme à tendência natural de nosso espírito que a encontramos inclusive na origem das ciências físicas É ela que diferencia a alquimia da química bem como a astrologia da astronomia É por ela que Bacon caracteriza o método que os sábios de seu tempo seguiam e que ele combate As noções que acabamos de mencionar são aquelas notiones vulgares ou praenotioneslque ele assinala na base de todas as ciências nas quais elas tomam o lugar dos fatos São os idola fantasmas que nos desfiguram o verdadeiro aspecto das coisas e que no entanto tomamos como as coisas mesmas E é por esse meio imaginário não oferecer ao espírito nenhuma resistência que este não se sentindo contido por nada entregase a ambições sem limite e julga possível construir ou melhor reconstruir o mundo com suas forças apenas e ao sabor de seus desejos Se foi assim com as ciências naturais com mais forte razão tinha de ser com a sociologia Os homens não esperaram o advento da ciência social para formar idéias sobre o direito a moral a família o Estado a própria sociedade pois não podiam privarsedelas para viver Ora é sobretudo em sociologia que essas prenoçõespara retomar a expressão de Bacon estão em situação de dominar os espíritos e de tomar o lugar das coisas Com efeito as coisas sociais só se realizam através dos homens elas são um produto da atividade humana Portanto parecem não ser outra coisa senão a realização de idéias inatas ou não que trazemos em nós senão a aplicação dessas idéias às diversas circunstâncias que acompanham as relações dos homens entre si A organização da família do contrato da repressão do Estado da sociedade é vista assim como um simples desenvolvimento das idéias que temos sobre a sociedade o Estado a justiça etc Em conseqüência esses fatos e outros análogos só parecem ter realidade nas e pelas idéias que são seu germe e que se tornam com isso a matéria própria da sociologia O que reforça essa maneira de ver é que como os detalhes da vida social excedem por todos os lados a consciência esta não tem uma percepção suficientemente forte desses detalhes para sentir sua realidade Não tendo em nós ligações bastante sólidas nem bastante próximas tudo isso nos dá facilmente a impressão de não se prender a nada e de flutuar no vazio matéria em parte irreal e indefinidamente plástica Eis por que tantos pensadores não viram nos arranjos sociais senão combinações artificiais e mais ou menos arbitrárias Mas se os detalhes se as formas concretas e particulares nos escapam pelo menos nos representamos os aspectos mais gerais da existência coletiva de maneira genérica e aproximada e são precisamente essas representações esquemáticas e sumárias que constituem as prenoçôes de que nos servimos para as práticas correntes da vida Não podemos portanto pensar em pôr em dúvida a existência delas uma vez que a percebemos ao mesmo tempo que a nossa Elas não apenas estão em nós como também sendo um produto de experiências repetidas obtêm da repetição e do hábito resultante uma espécie de ascendência e de autoridade Sentimos sua resistência quando buscamos libertarnos delas Ora não podemos deixar de considerar como real o que se opõe a nós Tudo contribui portanto para que vejamos nelas a verdadeira realidade social E de fato até o presente a sociologia tratou mais ou menos exclusivamente não de coisas mas de conceitos Comte é verdade proclamou que os fenômenos sociais são fatos naturais submissos a leis naturais Deste modo ele implicitamente reconheceu seu caráter de coisas pois na natureza só existem coisas Mas quando saindo dessas generalidades filosóficas ele tenta aplicar seu princípio e extrair a ciência nele contida são idéias que ele toma por objeto de estudo Com efeito o que faz a matéria principal de sua sociologia é o progresso da humanidade no tempo Ele parte da idéia de que há uma evolução contínua do gênero humano que consiste numa realização sempre mais completa da natureza humana e o problema que ele trata é descobrir a ordem dessa evolução Ora supondo que essa evolução exista sua realidade só pode ser estabelecida uma vez feita a ciência portanto só se pode fazer dessa evolução o objeto mesmo da pesquisa se ela for colocada como uma concepção do espírito não como uma coisa E de fato é tão claro que se trata de uma representação inteiramente subjetiva que na prática esse progresso da humanidade não existe O que existe a única coisa dada à observação são sociedades particulares que nascem se desenvolvem e morrem independentemente umas das outras Se pelo menos as mais recentes continuassem as que as precederam cada tipo superior poderia ser considerado como a simples repetição do tipo imediatamente inferior com alguma coisa a mais poderseia pois alinhálas umas depois das outras por assim dizer confundindo as que se encontram no mesmo grau de desenvolvimento e a série assim formada poderia ser vista como representativa da humanidade Mas os fatos não se apresentam com essa extrema simplicidade Um povo que substitui outro não é simplesmente um prolongamento deste último com algumas características novas ele é outro tem algumas propriedades a mais outras a menos constitui uma individualidade nova e todas essas individualidades distintas sendo heterogêneas não podem se fundir numa mesma série contínua nem sobretudo numa série única Pois a seqüência das sociedades não poderia ser figurada por uma linha geométrica ela assemelhase antes a uma árvore cujos ramos se orientam em sentidos divergentes Em suma Comte tomou por desenvolvimento histórico a noção que dele possuía e que não difere muito da que faz o vulgo Vista de longe de fato a história adquire bastante claramente esse aspecto serial e simples Percebemse apenas indivíduos que se sucedem uns aos outros e marcham todos numa mesma direção porque têm uma mesma natureza Aliás como não se concebe que a evolução social possa ser outra coisa que não o desenvolvimento de uma idéia humana parece natural definiIa pela idéia que dela fazem os homens Ora procedendo assim não apenas se permanece na ideologia mas se dá como objeto à sociologia um conceito que nada tem de propriamente sociológico Esse conceito Spencer o descarta mas para substituílo por outro que não é formado de outro modo Ele faz das sociedades e não da humanidade o objeto da ciência só que ele dá em seguida das primeiras uma definição que faz desaparecer a coisa de que fala para colocar no lugar a prenoçâo que possui dela Com efeito ele estabelece como uma proposição evidente que uma sociedade só existe quando à justaposição acrescentase a cooperação sendo somente então que a união dos indivíduos se torna uma sociedade propriamente dita Depois partindo do princípio de que a cooperação é a essência da vida social ele distingue as sociedades em duas classes conforme a natureza da cooperação que nelas predomina Há diz ele uma cooperação espontânea que se efetua sem premeditação durante a perseguição de fins de caráter privado há também uma cooperação conscientemente instituída que supõe fins de interesse público claramente reconhecidos Às primeiras ele dá o nome de sociedades industriais às segundas de militares e podese dizer dessa distinção que ela é a idéiamãe de sua sociologia Mas essa definição inicial enuncia como coisa o que é tãosó uma noção do espírito Com efeito ela se apresenta como a expressão de um fato imediatamente visível e que basta à observação constatar já que é formulada desde o início da ciência como axioma No entanto é impossível saber por uma simples inspeção se realmente a cooperação é a essência da vida social Tal afirmação só é cientificamente legítima se primeiramente passarmos em revista as manifestações da existência coletiva e se mostrarmos que todas são formas diversas da cooperação Portanto é ainda certa maneira de concebera realidade social que substitui essa realidade O que é assim definido não é a sociedade mas a idéia que dela faz o Sr Spencer E se ele não tem o menor escrúpulo em proceder deste modo é que também para ele a sociedade não é e não pode ser senão a realização de uma idéia isto é dessa idéia mesma de cooperação pela qual a define Seria fácil mostrar que em cada um dos problemas particulares que aborda seu método permanece o mesmo Assim embora dê a impressão de proceder empiricamente como os fatos acumulados em sua sociologia são empregados para ilustrar análises de noções e não para descrever e explicar coisas eles parecem estar ali apenas para figurar como argumentos Em realidade tudo o que há de essencial na doutrina de Spencer pode ser imediatamente deduzido de sua definição da sociedade e das diferentes formas de cooperação Pois se só pudermos optar entre uma cooperação tiranicamente imposta e uma cooperação livre e espontânea evidentemente esta última é que será o ideal para o qual a humanidade tende e deve tender Não é somente na base da ciência que se encontram essas noções vulgares vemolas a todo instante na trama dos raciocínios No estado atual de nossos conhecimentos não sabemos com certeza o que é o Estado a soberania a liberdade política a democracia o socialismo o comunismo etc o método aconselharia portanto a que nos proibíssemos todo uso desses conceitos enquanto eles não estivessem cientificamente constituídos Entretanto as palavras que os exprimem retornam a todo momento nas discussões dos sociólogos Elas são empregadas correntemente e com segurança como se correspondessem a coisas bem conhecidas e definidas quando apenas despertam em nós noções confusas misturas indistintas de impressões vagas de preconceitos e de paixões Zombamos hoje dos singulares raciocínios que os médicos da Idade Média construíam com as noções de calor de frio de úmido de seco etc e não nos apercebemos de que continuamos a aplicar esse mesmo método à ordem de fenômenos que o comporta menos que qualquer outro por causa de sua extrema complexidade Nos ramos especiais da sociologia esse caráter ideológico ê ainda mais pronunciado É o caso sobretudo da moral De fato podese dizer que não há um único sistema em que ela não seja representada como o simples desenvolvimento de uma idéia inicial que a conteria por inteiro em potência Essa idéia uns crêem que o homem a encontra inteiramente pronta dentro dele desde seu nascimento outros ao contrário que ela se forma mais ou menos lentamente ao longo da história Mas tanto para uns como para outros tanto para os empiristas como para os racionalistas ela é tudo o que há de verdadeiramente real em moral No que concerne ao detalhe das regras jurídicas e morais elas não teriam por assim dizer existência por si mesmas mas seriam apenas essa noção fundamental aplicada às circunstâncias particulares da vida e diversificada conforme os casos Portanto o objeto da moral não poderia ser esse sistema de preceitos sem realidade mas a idéia da qual decorrem e da qual não são mais que aplicações variadas Assim todas as questões que a ética se coloca ordinariamente se referem não a coisas mas a idéias o que se trata de saber é em que consiste a idéia do direito a idéia da moral enão qual a natureza da moral e do direito considerados em si mesmos Os moralistas ainda não chegaram à concepção muito simples de que assim como nossa representação das coisas sensíveis provém dessas coisas mesmas e as exprime mais ou menos exatamente nossa representação da moral provém do próprio espetáculo das regras que funcionam sob nossos olhos e as figura esquematicamente de que conseqüentemente são essas regras e não a noção sumária que temos delas que formam a matéria da ciência da mesma forma que a física tem como objeto os corpos tais como existem e não a idéia que deles faz o vulgo Disso resulta que se toma como base da moral o que não é senão o topo a saber a maneira como ela se prolonga nas consciências individuais e nelas repercute E não é apenas nos problemas mais gerais da ciência que esse método é seguido ele permanece o mesmo nas questões especiais Das idéias essenciais que estuda no início o moralista passa às idéias secundárias de família de pátria de responsabilidade de caridade de justiça mas é sempre a idéias que se aplica sua reflexão Não é diferente com a economia política Ela tem por objeto diz Stuart Mill os fatos sociais que se produzem principalmente ou exclusivamente em vista da aquisição de riquezas Mas para que os fatos assim definidos pudessem ser designados enquanto coisas à observação do cientista seria preciso pelo menos que se pudesse indicar por qual sinal é possível reconhecer aqueles que satisfa zem essa condição Ora no início da ciência não se tem sequer o direito de afirmar que existe algum muito menos ainda se pode saber quais são Em toda ordem de pesquisas com efeito é somente quando a explicação dos fatos está suficientemente avançada que é possível estabelecer que eles têm um objetivo e qual é esse objetivo Não há problema mais complexo nem menos suscetível de ser resolvido de saída Portanto nada nos garante de antemão que haja uma esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe realmente esse papel preponderante Em conseqüência a matéria da economia política assim compreendida é feita não de realidades que podem ser indicadas mas de simples possíveis de puras concepções do espírito a saber fatos que o economista concebè como relacionados ao fim considerado e tais como ele os concebe Digamos por exemplo que ele queira estudar o que chama a produção De saída acredita poder enumerar os principais agentes com o auxílio dos quais ela ocorre e passálos em revista Portanto ele não reconheceu a existência desses agentes observando de quais condições dependia a coisa que ele estuda pois então teria começado por expor as experiências de que tirou essa conclusão Se desde o início da pesquisa e em poucas palavras ele procede a essa classificação é que a obteve por uma simples análise lógica Parte da idéia da produção decompondoa descobre que ela implica logicamente as de forças naturais de trabalho de instrumento ou de capital e trata a seguir da mesma ma neira essas idéias derivadas A mais fundamental de todas as teorias econômicas a do valor é manifestamente construída segundo o mesmo método Se o valor fosse estudado como uma realidade deve sêlo veríamos primeiro o economista indicar em apenas essa noção fundamental aplicada às circunstâncias particulares da vida e diversificada conforme os casos Portanto o objeto da moral não poderia ser esse sistema de preceitos sem realidade mas a idéia da qual decorrem e da qual não são mais que aplicações variadas Assim todas as questões que a ética se coloca ordinariamente se referem não a coisas mas a idéias o que se trata de saber é em que consiste a idéia do direito a idéia da moral enão qual a natureza da moral e do direito considerados em si mesmos Os moralistas ainda não chegaram à concepção muito simples de que assim como nossa representação das coisas sensíveis provém dessas coisas mesmas e as exprime mais ou menos exatamente nossa representação da moral provém do próprio espetáculo das regras que funcionam sob nossos olhos e as figura esquematicamente de que conseqüentemente são essas regras e não a noção sumária que temos delas que formam a matéria da ciência da mesma forma que a física tem como objeto os corpos tais como existem e não a idéia que deles faz o vulgo Disso resulta que se toma como base da moral o que não é senão o topo a saber a maneira como ela se prolonga nas consciências individuais e nelas repercute E não é apenas nos problemas mais gerais da ciência que esse método é seguido ele permanece o mesmo nas questões especiais Das idéias essenciais que estuda no início o moralista passa às idéias secundárias de família de pátria de responsabilidade de caridade de justiça mas é sempre a idéias que se aplica sua reflexão Não é diferente com a economia política Ela tem por objeto diz Stuart Mill os fatos sociais que se produzem principalmente ou exclusivamente em vista da aquisição de riquezas Mas para que os fatos assim definidos pudessem ser designados enquanto coisas à observação do cientista seria preciso pelo menos que se pudesse indicar por qual sinal é possível reconhecer aqueles que satisfa zem essa condição Ora no início da ciência não se tem sequer o direito de afirmar que existe algum muito menos ainda se pode saber quais são Em toda ordem de pesquisas com efeito é somente quando a explicação dos fatos está suficientemente avançada que é possível estabelecer que eles têm um objetivo e qual é esse objetivo Não há problema mais complexo nem menos suscetível de ser resolvido de saída Portanto nada nos garante de antemão que haja uma esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe realmente esse papel preponderante Em conseqüência a matéria da economia política assim compreendida é feita não de realidades que podem ser indicadas mas de simples possíveis de puras concepções do espírito a saber fatos que o economista concebè como relacionados ao fim considerado e tais como ele os concebe Digamos por exemplo que ele queira estudar o que chama a produção De saída acredita poder enumerar os principais agentes com o auxílio dos quais ela ocorre e passálos em revista Portanto ele não reconheceu a existência desses agentes observando de quais condições dependia a coisa que ele estuda pois então teria começado por expor as experiências de que tirou essa conclusão Se desde o início da pesquisa e em poucas palavras ele procede a essa classificação é que a obteve por uma simples análise lógica Parte da idéia da produção decompondoa descobre que ela implica logicamente as de forças naturais de trabalho de instrumento ou de capital e trata a seguir da mesma ma neira essas idéias derivadas A mais fundamental de todas as teorias econômicas a do valor é manifestamente construída segundo o mesmo método Se o valor fosse estudado como uma realidade deve sêlo veríamos primeiro o economista indicar em que se pode reconhecer a coisa chamada com esse nome depois classificar suas espécies buscar por induções metódicas as causas em função das quais elas variam comparar enfim os diversos resultados para obter uma fórmula geral A teoria portanto só poderia surgir quando a ciência tivesse avançado bastante Em vez disso encontramola desde o início É que para fazêla o economista contentase em recolher em tomar consciência da idéia que ele tem do valor ou seja de um objeto suscetível de ser trocado descobre que ela implica a idéia do útil do raro etc e é com esses produtos de sua análise que constrói sua definição Certamente ele a confirma por alguns exemplos Mas quando se pensa nos inumeráveis fatos que semelhante teoria deve explicar como atribuir o menor valor demonstrativo aos fatos necessariamente muito raros que são assim citados ao acaso da sugestão Por isso tanto em economia política como em moral a parte da investigação científica é muito restrita a da arte preponderante Em moral a parte teórica se reduz a algumas discussões sobre a idéia do dever do bem e do direito Mesmo essas especulações abstratas não constituem uma ciência para falar exatamente já que têm por objeto determinar não o que é de fato a regra suprema da moralidade mas o que ela deve ser Do mesmo modo o que mais preocupa os economistas é a questão de saber por exemplo se a sociedade deve ser organizada segundo as concepções dos individualistas ou segundo as dos socialistas se é melhor o Estado intervir nas relações industriais e comerciais ou abandonálas inteiramente à iniciativa privada se o sistema monetário deve ser o monometalismo ou o bimetalismo etc etc As leis propriamente ditas são pouco numerosas nessas pesquisas mesmo as que nos habituamos a chamar assim geralmente não merecem essa qualificação não passando de máximas de ação preceitos práticos disfarçados Eis por exemplo a famosa lei da oferta e da procura Ela jamais foi estabelecida indutivamente como expressão da realidade econômica Jamais uma experiência uma comparação metódica foi instituída para estabelecer de fato que é segundo essa lei que procedem as relações econômicas Tudo o que se pôde fazer e tudo o que se fez foi demonstrar dialeticamente que os indivíduos devem proceder assim caso entendam bem seus interesses é que qualquer outra maneira de proceder lhes seria prejudicial e implicaria da parte dos que se entregassem a isso uma verdadeira aberração lógica É lógico que as indústrias mais produtivas sejam as mais procuradas que os detentores dos produtos de maior demanda e mais raros os vendam ao mais alto preço Mas essa necessidade inteiramente lógica em nada se assemelha àquela que apresentam as verdadeiras leis da natureza Estas exprimem as relações segundo as quais os fatos se encadeiam realmente e não a maneira como é bom que eles se encadeiem O que dizemos dessa lei pode ser dito de todas as que a escola econômica ortodoxa qualifica de naturais e que por sinal não são muito mais do que casos particulares da precedente Elas são naturais se quiserem no sentido de que enunciam os meios que é ou que pode parecer natural empregar para atingir determinado fim suposto mas elas não devem ser chamadas por esse nome se por lei natural se entender toda maneira de ser da natureza indutivamente constatada Elas não passam em suma de conselhos de sabedoria prática e se foi possível mais ou menos especiosamente apresentálas como a expressão mesma da realidade é que com ou sem razão acreditouse poder supor que tais conselhos eram efetivamente seguidos pela generalidade dos homens e na generalidade dos casos No entanto os fenômenos sociais são coisas e devem ser tratados como coisas Para demonstrar essa proposição não é necessário filosofar sobre sua natureza discutir as analogias que apresentam com os fenômenos dos reinos inferiores Basta constatar que eles são o único datum oferecido ao sociólogo É coisa com efeito tudo o que é dado tudo o que se oferece ou melhor se impõe àobservação Tratar fenômenos como coisas é tratálos na qualidade de data que constituem o ponto de partida da ciência Os fenômenos sociais apresentam incontestavelmente esse caráter O que nos é dado não é a idéia que os homens fazem do valor pois ela é inacessível são os valores que se trocam realmente no curso de relações econômicas Não é esta ou aquela concepção da idéia moral é o conjunto das regras que determinam efetivamente a conduta Não é a idéia do útil ou da riqueza étoda a particularidade da organização econômica É possível que a vida social não seja senão o desenvolvimento de certas noções mas supondo que seja assim essas noções não são dadas imediatamente Não se pode portanto atingiIas diretamente mas apenas através da realidade fe nomênica que as exprime Não sabemos a priori que idéias estão na origem das diversas correntes entre as quais se divide a vida social nem se existe alguma é somente depois de têlas remontado até suas origens que saberemos de onde elas provêm É preciso portanto considerar os fenômenos sociais em si mesmos separados dos sujeitos conscientes que os concebem é preciso estudálos de fora como coisas exteriores pois é nessa qualidade que eles se apresentam a nós Se essa exterioridade for apenas aparente a ilusão se dissipará à medida que a ciência avançar e veremos por assim dizer o de fora entrar no de dentro Mas a solução não pode ser preconcebida e mesmo que eles não tivessem afinal todos os caracteres intrínsecos da coisa devese primeiro tratálos como se os tivessem Essa regra aplicase portanto à realidade social inteira sem que haja motivos para qualquer exceção Mesmo os fenômenos que mais parecem consistir em arranjos artificiais devem ser considerados desse ponto de vista O caráter convencional de uma prática ou de uma instituirão jamais deve ser presumido Aliás se nos for permitido invocar nossa experiência pessoal acreditamos poder assegurar que procedendo dessa maneira com freqüência se terá a satisfação de ver os fatos aparentemente mais arbitrários apresentarem após uma observação mais atenta dos caracteres de constância e de regularidade sintomas de sua objetividade De resto e de uma maneira geral o que foi dito anteriormente sobre os caracteres distintivos do fato social ésuficiente para nos certificar sobre a natureza dessa objetividade e para provar que ela não é ilusória Com efeito reconhecese principalmente uma coisa pelo sinal de que não pode ser modificada por um simples decreto da vontade Não que ela seja refratária a qualquer modificação Mas para produzir uma mudança nela não basta querer é preciso além disso um esforço mais ou menos laborioso devido à resistência que ela nos opõe e que nem sempre aliás pode ser vencida Ora vimos que os fatos sociais têm essa propriedade Longe de serem um produto de nossa vontade eles a determinam de fora são como moldes nos quais somos obrigados a vazar nossas ações Com freqüência até essa necessidade é tal que não podemos escapar a ela Mas ainda que consigamos superála a oposição que encontramos é suficiente para nos advertir de que estamos em presença de algo que não depende de nós Portanto considerando os fenômenos sociais como coisas apenas nos conformaremos à sua natureza Em suma a reforma que se trata de introduzir em sociologia é em todos os pontos idêntica à que transformou a psicologia nos últimos trinta anos Do mesmo modo que Comte e Spencer declaram que os fatos sociais são fatos de natureza sem no entanto tratálos como coisas as diferentes escolas empíricas há muito haviam reconhecido o caráter natural dos fenômenos psicológicos embora continuassem a aplicarlhes um método puramente ideológico Com efeito os empiristas não menos que seus adversários procediam exclusivamente por introspecção Ora os fatos que só observamos em nós mesmos são demasiado raros demasiado fugazes demasiado maleáveis para poderem se impor às noções correspondentes que o hábito fixou em nós e estabelecerlhes a lei Quando estas últimas não são submetidas a outro controle nada lhes faz contrapeso por conseguinte elas tomam o lugar dos fatos e constituem a matéria da ciência Assim nem Locke nem Condillac consideraram os fenômenos psíquicos objetivamente Não é a sensação que eles estudam mas uma certa idéia da sensação Por isso ainda que sob certos aspectos eles tenham preparado o advento da psicologia científica esta só surgiu realmente bem mais tarde quando se chegou finalmente à concepção de que os estados de consciência podem e devem ser considerados de fora e não do ponto de vista da consciência que os experimenta Tal foi a grande revolução que se efetuou nesse tipo de estudos Todos os procedimentos particulares todos os métodos novos que enriqueceram essa ciência não são mais que meios diversos de realizar mais completamente essa idéia fundamental Éo mesmo progresso que resta fazer em sociologia É preciso que ela passe do estágio subjetivo raramente ultrapassado até agora à fase objetiva Essa passagem aliás é menos difícil de efetuar do que em psicologia Com efeito os fatos psíquicos são naturalmente dados como estados do sujeito do qual eles não parecem sequer separáveis Interiores por definição parece que só se pode tratálos como exteriores violentando sua natureza É preciso não apenas um esforço de abstração mas todo um conjunto de procedimentos e de artifícios para chegar a considerálos desse viés Ao contrário os fatos sociais têm mais naturalmente e mais imediatamente todas as características da coisa O direito existe nos códigos os movimentos da vida cotidiana se inscrevem nos dados estatísticos nos monumentos da história as modas nas roupas os gostos nas obras de arte Em virtude de sua natureza mesma eles tendem a se constituir fora das consciências individuais visto que as dominam Para vêlos sob seu aspecto de coisas não é preciso portanto torturálos com engenhosidade Desse ponto de vista a sociologia tem sobre a psicologia Uma séria vantagem que não foi percebida até agora e que deve apressar seu desenvolvimento Os fatos talvez sejam mais difíceis de interpretar por serem mais complexos mas são mais fáceis de atinar A psicologia ao contrário não apenas tem dificuldade de elaborálos como também de percebêlos Em conseqüência é lícito imaginar que no dia em que esse princípio do método sociológico for unanimemente reconhecido e praticado veremos a sociologia progredir com uma rapidez que a lentidão atual de seu desenvolvimento não faria supor e inclusive reconquistar a dianteira que a psicologia deve unicamente à sua anterioridade histórica Mas a experiência de nossos predecessores nos mostrou que para assegurar a realização prática da verdade que acaba de ser estabelecida não basta oferecer uma demonstração teórica nem mesmo compenetrarse dela O espírito tende tão naturalmente a desconhecêla que recairemos inevitavelmente nos antigos erros se não nos submetermos a uma disciplina rigorosa cujas regras principais corolários da precedente iremos formular 1 O primeiro desses corolários é que É preciso descartar sistematicamente todas as prenoções Uma demonstração especial dessa regra não é necessária ela resulta de tudo o que dissemos anteriormente Aliás ela é a base de todo método científico A dúvida metódica de Descartes no fundo não é senão uma aplicação disso Se no momento em que vai fundar a ciência Descartes impõese como lei pôr em dúvida todas as idéias que recebeu anteriormente é que ele quer empregar apenas conceitos cientificamente elaborados isto é construídos de acordo com o método que ele institui todos os que ele obtém de uma outra origem devem ser portanto rejeitados ao menos provisoriamente Já vimos que a teoria dos ídolos em Bacon não tem outro sentido As duas grandes doutrinas que freqüentemente foram opostas uma à outra concordam nesse ponto essencial É preciso portanto que o sociólogo tanto no momento em que determina o objeto de suas pesquisas como no curso de suas demonstrações proíbase resolutamente o emprego daqueles conceitos que se formaram fora da ciência e por necessidades que nada têm de científico É preciso que ele se liberte dessas falsas evidências que dominam o espírito do vulgo que se livre de uma vez por todas do jugo dessas categorias empíricas que um longo costume acaba geralmente por tornar tirânicas Se a necessidade o obriga às vezes a recorrer a elas pelo menos que o faça tendo consciência de seu pouco valor a fim de não as chamar a desempenhar na doutrina um papel de que não são dignas O que torna essa libertação particularmente difícil em sociologia é que o sentimento com freqüência se intromete Apaixonamonos com efeito por nossas crenças políticas e religiosas por nossas práticas morais muito mais do que pelas coisas do mundo físico em conseqüência esse caráter passional transmitese à maneira como concebemos e como nos explicamos as primeiras As idéias que fazemos a seu respeito nos são muito caras assim como seus objetos e adquirem tamanha autoridade que não suportam a contradição Toda opinião que as perturba é tratada como inimiga Por exemplo uma proposição não está de acordo com a idéia que se faz do patriotismo ou da dignidade individual Então ela é negada não importam as provas sobre as quais repousa Não se pode admitir que seja verdadeira ela é rejeitada categoricamente e a paixão para justificarse não tem dificuldade de sugerir razões que são consideradas facilmente decisivas Essas noções podem mesmo ter tal prestígio que não toleram sequer um exame científico O simples fato de submetêlas assim como os fenômenos que elas exprimem a uma análise fria e seca revolta certos espíritos Quem decide estudar a moral a partir de fora e como uma realidade exterior é visto por esses delicados como desprovido de senso moral da mesma forma que o vivissecionista parece ao vulgo desprovido da sensibilidade comum Em vez de admitir que esses sentimentos são do domínio a da ciência é a eles que se julga dever apelar para fazer a ciência das coisas às quais se referem Infeliz o sábio escreve um eloqüente historiador das religiões que aborda as coisas de Deus sem ter no fundo de sua consciência no fundo indestrutível de seu ser lá onde dorme a alma dos antepassados um santuário desconhecido do qual se eleva por instantes um perfume de incenso uma linha de salmo um grito doloroso ou triunfal que criança lançou ao céu junto com seus irmãos e que o repõe em súbita comunhão com os profetas de outrora Nunca nos ergueremos com demasiada força contra essa doutrina mística que como todo misticismo aliás não é no fundo senão um empirismo disfarçado pegador de toda ciência Os sentimentos que têm como objetos as coisas sociais não têm privilégio sobre os demais pois não é outra sua origem Também eles são formados historicamente são um produto da experiência humana mas de uma experiência confusa e inorganizada Eles não se devem a não sei que antecipação transcendental da realidade mas são a resultante de todo tipo de impressões e de emoções acumuladas sem ordem ao acaso das circunstâncias sem interpretação metódica Longe de nos proporcionarem luzes superiores às luzes racionais eles são feitos exclusivamente de estados fortes é verdade mas confusos Atribuirlhes tal preponderância é conceder às faculdades inferiores da inteligência a supremacia sobre as mais elevadas é condenarse a uma logomaquia mais ou menos oratória Uma ciência feita assim só pode satisfazer os espíritos que gostam de pensar com sua sensibilidade e não com seu entendimento que preferem as sínteses imediatas e confusas da sensação às análises pacientes e luminosas da razão O sentimento é objeto de ciência não o critério da verdade científica De resto não há ciência que em seus começos não tenha encontrado resistências análogas Houve um tempo em que os sentimentos relativos às coisas do mundo físico tendo eles próprios um caráter religioso ou moral opunhamse com não menos força ao estabelecimento das ciências físicas Podese portanto supor que expulso de ciência em ciência esse preconceito acabará por desaparecer da própria sociologia seu último refúgio para deixar o terreno livre ao cientista 2 Mas a regra precedente é inteiramente negativa Ela ensina o sociólogo a escapar ao domínio das noções vulgares para dirigir sua atenção aos fatos mas não diz como deve se apoderar desses últimos para empreender um estudo objetivo deles Toda investigação científica tem por objeto um grupo determinado de fenômenos que correspondem a uma mesma definição O primeiro procedimento do sociólogo deve ser portanto definir as coisas de que ele trata a fim de que se saiba e de que ele saiba bem o que está em questão Essa é a primeira e a mais indispensável condição de toda prova e de toda verificação uma teoria com efeito só pode ser controlada se se sabe reconhecer os fatos que ela deve explicar Além do mais visto ser por essa definição que é constituído o objeto mesmo da ciência este será uma coisa ou não conforme a maneira pela qual essa definição for feita Para que ela seja objetiva é preciso evidentemente que exprima os fenômenos não em função de uma idéia do espírito mas de propriedades que lhe são inerentes É preciso que ela os caracterize por um elemento integrante da natureza deles não pela conformidade deles a uma noção mais ou menos ideal Ora no momento em que a pesquisa vai apenas começar quando os fatos não estão ainda submetidos a nenhuma elaboração os únicos desses caracteres que podem ser atingidos são os que se mostram suficientemente exteriores para serem imediatamente visíveis Os que estão situados mais profundamente são por certo mais essenciais seu valor explicativo émaior mas nessa fase da ciência eles são desconhecidos e só podem ser antecipados se substituirmos a realidade por alguma concepção do espírito Assim é entre os primeiros que deve ser buscada a matéria dessa definição fundamental Por outro lado é claro que essa definição deverá compreendersem exceção nem distinção todos os fenômenos que apresentam igualmente esses mesmos caracteres pois não temos nenhuma razão e nenhum meio de escolher entre eles Essas propriedades são então tudo o que sabemos do real em conseqüência elas devem determinar soberanamente a maneira como os fatos devem ser agrupados Não possuímos nenhum outro critério que possa mesmo parcialmente suspender os efeitos do precedente Donde a regra seguinte Jamais tomarporobjeto de pesquisas senão um grupo de fenômenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhes são comuns e compreender na mesma pesquisa todos os que correspondem a essa definição Por exemplo constatamos a existência de certo número de atos que apresentam todos o caráter exterior de uma vez efetuados determinarem de parte da sociedade essa reação particular que é chamada pena Fazemos deles um grupo sui generis ao qual impomos uma rubrica comum chamamos crime todo ato punido e fazemos do crime assim definido o objeto de uma ciência especial a criminologia Do mesmo modo observamos no interior de todas as sociedades conhecidas a existência de uma sociedade parcial reconhecível pelo sinal exterior de ser formada de indivíduos consangüíneos uns dos outros em sua maior parte e que estão unidos entre si por laços jurídicos Fazemos dos fatos que se relacionam a ela um grupo particular são os fenômenos da vida doméstica Chamamos família todo agregado desse tipo e fazemos da família assim definida o objeto de uma investigação especial que ainda não recebeu denominação determinada na terminologia sociológica Quando mais tarde passarmos da família em geral aos diferentes tipos familiares aplicaremos a mesma regra Quando abordarmos por exemplo o estudo do clã ou da família maternal ou da família patriarcal começaremos por definilos e de acordo com o mesmo método O objeto de cada problema geral como particular deve ser constituído segundo o mesmo princípio Ao proceder dessa maneira o sociólogo desde seu primeiro passo toma imediatamente contato com a realidade Com efeito o modo como os fatos são assim classificados não depende dele da propensão particular de seu espírito mas da natureza das coisas O sinal que possibilita serem colocados nesta ou naquela categoria pode ser mostrado a todo o mundo reconhecido por todo o mundo e as afirmações de um observador podem ser controladas pelos outros É verdade que a noção assim constituída nem sempre se ajusta ou até mesmo em geral não se ajusta à noção comum Por exemplo é evidente que para o senso comum os casos de livre pensamento ou as faltas à etiqueta tão regularmente e tão severamente punidos numa série de sociedades não são vistos como crimes inclusive em relação a essas sociedades Assim também um clã não é uma família no sentido usual da palavra Mas não importa pois não se trata simplesmente de descobrir um meio que nos permita verificar com suficiente certeza os fatos a que se aplicam as palavras da língua corrente e as idéias que estas traduzem O que é preciso éconstituir inteiramente conceitos novos apropriados às necessidades da ciência e expressos com o auxílio de uma terminologia especial Não certamente que o conceito vulgar seja inútil ao cientista ele serve de indicador Por ele somos informados de que existe em alguma parte um conjunto de fenômenos reunidos sob uma mesma denominação e que portanto devem provavelmente ter características comuns inclusive como o conceito vulgar jamais deixa de ter algum contato com os fenômenos ele nos indica às vezes mas de maneira geral em que direção estes devem ser buscados Mas como ele é grosseiramente formado é natural que não coincida exatamente com o conceito científico instituído em seu lugar Por mais evidente e importante que seja essa regra ela não é muito observada em sociologia Precisamente por esta tratar de coisas das quais estamos sempre falando como a família a propriedade o crime etc na maioria das vezes parece inútil ao sociólogo darlhes uma definição preliminar e rigorosa Estamos tão habituados a servirnos dessas palavras que voltam a todo instante no curso das conversações que parece inútil precisar o sentido no qual as empregamos As pessoas se referem simplesmente à nação comum Ora esta é muito freqüente mente ambígua Essa ambigüidade faz que se reúnam sob um mesmo nome e numa mesma explicação coisas em realidade muito diferentes Daí provêm inextricáveis confusões Assim existem duas espécies de uniões monogâ micasumas o são de fato outras de direito Nas primeiras o marido só tem uma mulher embora juridicamente possa ter várias nas segundas ele é legalmente proibido de ser polígamo A monogamia de fato verificase em várias espécies animais e em certas sociedades inferiores não de forma esporádica mas com a mesma generalidade como se fosse imposta por lei Quando a população está dispersa numa vasta superfície a trama social é mais frouxa portanto os indivíduos vivem isolados uns dos outros Por isso cada homem busca naturalmente obter uma mulher e uma só porque nesse estado de isolamento lhe édifícil ter várias A monogamia obrigatória ao contrário só se observa nas sociedades mais elevadas Essas duas espécies de sociedades conjugais têm portanto uma significação muito diferente no entanto a mesma palavra serve para designáIas pois é comum dizer de certos animais que eles são monógamos embora nada exista entre eles que se assemelhe a uma obrigação jurídica Ora o sr Spencer abordando o estudo do casamento emprega a palavra monogamia sem definiIa com seu sentido usual e equívoco Disso resulta que a evolução do casamento lhe parece apresentar uma incompreensível anomalia já que ele crê observar a forma superior da união sexual já nas primeiras fases do desenvolvimento histórico ao passo que ela parece desaparecer no período intermediário para retornar a seguir Ele conclui daí que não há relação regular entre o progresso social em geral e o avanço progressivo em direção a um tipo perfeito de vida familiar Uma definição oportuna teria evitado esse errol3 Em outros casos tomase o cuidado de definir o objeto sobre o qual incidirá a pesquisa mas em vez de abranger na definição e de agrupar sob a mesma rubrica todos os fenômenos que têm as mesmas propriedades exteriores fazse uma triagem entre eles Escolhemse alguns espécie de elite que são vistos como os únicos com o direito a ter esses caracteres Quanto aos demais são considerados como tendo usurpado esses sinais distintivos e não são levados em conta Mas é fácil prever que dessa maneira só se pode obter uma noção subjetiva e truncada Essa eliminação com efeito só pode ser feita com base numa idéia preconcebida uma vez que no começo da ciência nenhuma pesquisa pôde ainda estabelecer a realidade dessa usurpação supondose que ela seja possível Os fenômenos escolhidos só o podem ter sido porque estavam mais do que os outros de acordo com a concepção ideal que se fazia desse tipo de realidade Por exemplo o sr Garofalo no começo de sua Criminologie demonstra muito bem que o ponto de partida dessa çiência deve ser a noção sociológica do crime Só que para constituir essa noção ele não compara indistintamente todos os atos que nos diferentes tipos sociais foram reprimidos por penas regulares mas apenas alguns dentre eles a saber os que ofendem a parte média e imutável do senso moral Quanto aos sentimentos morais que desapareceram durante a evolução eles não lhe parecem fundados na natureza das coisas por não terem conseguido se manter por conseguinte os atos que foram considerados criminosos porque os violavam lhe parecem dever essa denominação apenas a circunstâncias acidentais e mais ou menos patológicas Mas é em virtude de uma concepção inteiramente pessoal da moralidade que ele procede a essa eliminação Ele parte da idéia de que a evolução moral tomada em sua fonte mesma ou nos arredores arrasta todo tipo de escórias e de impurezas que ela elimina a seguir progressivamente e de que somente hoje ela conseguiu desembaraçarse de todos os elementos adventícios que primitivamente perturbavamlhe o curso Mas esse princípio não é nem um axioma evidente nem uma verdade demonstrada é apenas uma hipótese que nada inclusive justifica As partes variáveis do senso moral não são menos fundadas na natureza das coisas do que as partes imutáveis as variações pelas quais as primeiras passaram testemunham apenas que as próprias coisas variaram Em zoologia as formas específicas às espécies inferiores não são vistas como menos naturais do que as que se repetem em todos os graus da escala animal Do mesmo modo os atos tachados de crimes pelas sociedades primitivas e que perdelam essa qualificação são realmente criminosos para essas sociedades tanto quanto os que continuamos a reprimir hoje em dia Os primeiros correspondem às condições mutáveis da vida social os segundos às condições constantes mas uns não são mais artificiais que os outros E tem mais ainda que esses atos tivessem adquirido indevidamente o caráter criminológico nem por isso deveriam ser separados radicalmente dos outros pois a natureza das formas mórbidas de um fenômeno não é diferente da natureza das formas normais e por conseqüência é necessário observar tanto as primeiras quanto as segundas para determinar essa natureza A doença não se opõe à saúde tratase de duas variedades do mesmo gênero e que se esclarecem mutuamente Essa é uma regra há muito reconhecida e praticada tanto em biologia como em psicologia e que o sociólogo não é menos obrigado a respeitar A menos que se admita que um mesmo fenômeno possa ser devido ora a causa ora a uma outra isto é a menos que se negue o princípio de causalidade as causas que imprimem num ato mas de maneira anormal o sinal distintivo do crime não poderiam diferir em espécie das que produzem normalmente o mesmo efeito elas distinguemse apenas em grau ou porque não agem no mesmo conjunto de circunstâncias O crime anormal ainda é portanto um crime e deve por conseguinte entrar na definição do crime Assim o que ocorre O sr Garofalo toma por gênero o que não é senão a espécie ou mesmo uma simples variedade Os fatos aos quais se aplica sua fórmuIa da criminalidade não representam senão uma ínfima minoria entre os que ela deveria compreender pois ela não convém nem aos crimes religiosos nem aos crimes contra a etiqueta o cerimonial a tradição etc que se desapareceram de nossos códigos modernos preenchem ao contrário quase todo o direito penal das sociedades anteriores É a mesma falta de método que faz que certos observadoresrecusem aos selvagens qualquer espécie de moralidade15 Eles partem da idéia de que nossa moral é a moral ora é evidente que ela é desconhecida dos povos primitivos ou que só existe neles em estado rudimentar Mas essa definição é arbitrária Apliquemos nossa regra e tudo se modifica Para decidir se um preceito é moral ou não devemos examinar se ele apresenta ou não o sinal exterior da moralidade esse sinal consiste numa sanção repressiva difusa ou seja numa reprovação da opinião pública que vinga toda violação do preceito Sempre que estivermos em presença de um fato que apresenta esse caráter não temos o direito de negarlhe a qualificação de moral pois essa é a prova de que ele é da mesma natureza que os outros fatos morais Ora regras desse gênero não só se verificam nas sociedades inferiores como são mais numerosas aí do que entre os civilizados Uma quantidade de atos atualmente entregues à livre apreciação dos indivíduos são então impostos obrigatoriamente Percebese a que erros somos levados quando não definimos ou quando definimos mal Mas dirão definir os fenômenos por seus caracteres aparentes não será atribuir às propriedades superficiais uma espécie de preponderância sobre os atributos fundamentais Não será por uma verdadeira inversão da ordem lógica fazer repousar as coisas sobre seus topos e não sobre suas bases É assim que quando se define o crime pela pena correse quase inevitavelmente o risco de ser acusado de querer derivar o crime da pena ou conforme uma citação bem conhecida de ver no patíbulo a fonte da vergonha não no ato expiado Mas a objeção repousa sobre uma confusão Como a definição cuja regra acabamos de dar está situada no começo da ciência ela não poderia ter por objeto exprimir a essência da realidade ela deve apenas nos pôr em condições de chegar a isso ulteriormente Iia tem por única função fazernos entrar em contato com as coisas e como estas não podem ser atingidas pelo espírito a não ser de fora é por seus exteriores que ela as exprime Mas isso não quer dizer que as explique ela apenas fornece o primeiro ponto de apoio necessário às nossas explicações Claro não é a pena que faz o crime mas é por ela que ele se revela exteriormente a nós e é dela portanto que devemos partir se quisermos chegar a compreendê lo A obje ao só seria fundada se esses caracteres exteriores fossem ao mesmo tempo acidentais isto é se não estivessem ligados às propriedades fundamentais De fato nessas condições a ciência após têlos assinalado não teriameio algum de ir mais adiante não poderia aprofundarse mais na realidade já que não haveria nenhuma relação entre a superfície e o fundo Mas a menos que o princípio de causalidade seja uma palavra vã quando caracteres determinados se encontram identicamente e sem nenhuma exceção em todos os fenômenos de certa ordem podese estar certode que eles se ligam intimamente à natureza destes últimos e que são solidários com eles Se um grupo dado de atos apresenta igualmente a particularidade de uma sanção penal estar a eles associada é que existe uma ligação íntima entre a pena e os atributos constitutivos desses atos Em conseqüência por mais superficiais que sejam essas propriedades contanto que tenham sido metodicamente observadas mostram claramente ao cientista o caminho que ele deve seguir para penetrar mais fundo nas coisas elas são o primeiro e indispensável elo da cadeia que a ciência irá desenrolar a seguir no curso de suas explicações Visto ser pela sensação que o exterior das coisas nos é dado podese portanto dizer em resumo a ciência para ser objetiva deve partir não de conceitos que se formaram sem ela mas da sensação É dos dados sensíveis que ela deve tomar diretamente emprestados os elementos de suas definições iniciais E de fato basta pensar em que consiste a obra da ciência para compreender que ela não pode proceder de outro modo Ela tem necessidade de conceitos que exprimam adequadamente as coisas tais como elas são não tais como é útil à prática concebêlas Ora aqueles conceitos que se constituíram fora de sua ação não preenchem essa condição É preciso pois que ela crie novos e que para tanto afastando as noções comuns e as palavras que as exprimem volte à sensação matériaprima necessária de todos os conceitos É da sensação que emanam todas as idéias gerais verdadeiras ou falsas científicas ou não Portanto o ponto de partidarda ciência ou conhecimento especulativo não poderia ser outro que o do conhecimento vulgar ou prático É somente além dele na maneira pela qual essa matéria comum é elaborada que as divergências começam 3 Mas a sensação é facilmente subjetiva Assim é de regra nas ciências naturais afastar os dados sensíveis que correm o risco de ser demasiado pessoais ao observador para reter exclusivamente os que apresentam um suficiente grau de objetividade Eis o que leva o físico a substituir as vagas impressões que a temperatura ou a eletricidade produzem pela representação visual das oscilações do termômetro ou do eletrõmetro O sociólogo deve tomar as mesmas precauções Os caracteres exteriores em função dos quais ele define o objeto de suas pesquisas devem ser tão objetivos quanto possível Podese estabelecer como princípio que os fatos sociais são tanto mais suscetíveis de ser objetivamente representados quanto mais completamente separados dos fatos individuais que os manifestam De fato uma sensação é tanto mais objetiva quanto maior a fixidez do objeto ao qual ela se relaciona pois a condição de toda objetividade é a existência de um ponto de referência constante e idêntico ao qual a representação pode ser relacionada e que permite eliminar tudo 0 que ela tem de variável portanto de subjetivo Se os únicos pontos de referência dados forem eles próprios variáveis se forem perpetuamente diversos em relação a si mesmos faltará uma medida comum e não teremos meio algum de distinguirem nossas impressões o que depende de fora e o que lhes vem de nós Ora a vida social enquanto não chegou a isolarse dos acontecimentos particulares que a encarnam para constituirse à parte tem justamente essa propriedade pois como esses acontecimentos não têm a mesma fisionomia de uma vez a outra de um instante a outro e como ela é inseparável deles estes transmitemlhe sua mobilidade Ela consiste então em livres correntes que estão perpetuamente em via de transformação e que o olhar do observador não consegue fixar Vale dizer que não é por esse lado que o cientista pode abordar o estudo da realidade social Mas sabemos que esta apresenta a particularidade de sem deixar de ser ela mesma ser capaz de cristalizarse Fora dos atos individuais que suscitam os hábitos coletivos exprimemse sob formas definidas regras jurídicas morais ditos populares fatos de estrutura social etcComo essas formas existem de uma maneira permanente como não mudam comas diversas aplicações que delas são feitas elas constituem um objeto fixo um padrão constante que está sempre ao alcance do observador e que não dá margem às impressões subjetivas e às observações pessoais Uma regra de direito é o que ela é e não há duas maneiras de percebêla Por outro lado visto que essas práticas nada mais são que vida social consolidada é legítimo salvo indicações contráriasl6 estudar esta através daquelas Quando portanto o sociólogo empreende a exploração uma ordem qualquer de fatos sociais ele deve esforçarse em considerálos por um lado em que estes se apresentem isolados de suas manifestações individuais É em virtude desse princípio que estudamos a solidariedade social suas formas diversas e sua evolução através do sistema das regras jurídicas que as exprimem Do mesmo modo se se tentar distinguir e classificar os diferentes tipos familiares com base nas descrições literárias que deles nos oferecem os viajantes e às vezes os historiadores correse o risco de confundir as espécies mais diferentes de aproximar os tipos mais afastados Se ao contrário tomarse por base dessa classificação a constituição jurídica da família e mais especificamente o direito sucessório terseá um critério objetivo que sem ser infalível evitará no entanto muitos erros Queremos classificar os diferentes tipos de crimes Então nos esforçaremos por reconstituir as maneiras de viver os costumes profissionais praticados nos diferentes mundos do crime e reconheceremos tantos tipos criminológicos quantas forem as formas diferentes que essa organização apresenta Para identificar os costumes as crenças populares recorreremos aos provérbios aos ditados que os exprimem Certamente ao proceder assim deixamos provisoriamente fora da ciência a matéria concreta da vida coletiva e no entanto por mais mutável que esta seja não temos o direito de postular a priori sua ininteligibilidade Mas se quisermos seguir uma via metódica precisaremos estabelecer os primeiros alicerces da ciência sobre um terreno firme e não sobre areia movediça É preciso abordar o reino social pelos lados onde ele mais se abre à investigação científica Somente a seguir será possível levar mais adiante a pesquisa e por trabalhos de aproximação progressivos cingir pouco a pouco essa realidade fugidia da qual o espírito humano talvez jamais possa se apoderar completamente REGRAS RELATIVAS À DISTINÇÃO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO A observação conduzida de acordo com as regras que precedem confunde duas ordens de fatos muito dessemelhantes sob certos aspectos os que são o que devem ser e os que deveriam ser de outro modo os fenômenos normais e os fenômenos patológicos Vimos inclusive que era necessário abrangê los igualmente na definição pela qual deve se iniciar toda pesquisa Mas se eles em certa medida são da mesma natureza não deixam de constituir duas variedades diferentes que é importante distinguir A ciência dispõe de meios que permitem fazer essa distinção A questão é da maior importância pois da solução que se der a ela depende a idéia que se faz do papel que compete à ciência sobretudo à ciência do homem De acordo com uma teoria cujos partidários se recrutam nas escolas mais diversas a ciência nada nos ensinaria sobre aquilo que devemos querer Ela só conhece dizem fatos que têm o mesmo valor e o mesmo interesse ela os observa os explica mas não os julga para ela os fatos nada teriam de censurável 0 bem e o mal não existem para ela A ciência pode perfeitamente nos dizer de que maneira as causas produzem seus efeitos não que finalidades devem ser buscadas Para saber não o que é mas o que é desejável devese recorrer às sugestões do inconsciente não importa o nome que se dê a ele sentimento instinto impulso vital etc A ciência diz um escritor já citado pode muito bem iluminar o mundo mas ela deixa a noite nos corações compete ao coração mesmo fazer sua própria luz A ciência se vê assim destituída ou quase de toda eficácia prática não tendo portanto grande razão de ser pois de que serve trabalhar para conhecer o real se o conhecimento que dele adquirimos não nos pode servir na vida Acaso dirão que ela ao nos revelar as causas dos fenômenos nos fornece os meios de produzilos a nosso gosto e portanto de realizar os fins que nossa vontade persegue por razões supracientíficas Mas todo meio é ele próprio um fim por um lado pois para empregálo é preciso querêlo tanto como o fim cuja realização ele prepara Há sempre vários caminhos que levam a um objetivo dado é preciso portanto escolher entre eles Ora se a ciência não pode nos ajudar na escolha do objetivo melhor como é que ela poderia nos ensinar qual o melhor caminho para chegar a ele Por que ela nos recomendaria o mais rápido de preferência ao mais econômico o mais seguro em vez do mais simples ou viceversa Se não é capaz de nos guiar na determinação dos fins superiores ela não é menos impotente quando se trata desses fins secundários e subordinados que chamamos meios O método ideológico permite é verdade escapar a esse misticismo e foi aliás o desejo de escapar a ele o responsável em parte pela persistência desse método Os que o praticaram eram com efeito demasiadamente racionalistas para admitir que a conduta humana não tivesse necessidade de ser dirigida pela reflexão no entanto eles não viam nos fenômenos tomados em si mesmos e independentemente de todo dado subjetivo nada que permitisse classificálos segundo seu valor prático Parecia portanto que o único meio de julgálos seria relacionálos a algum conceito que os dominasse com isso o emprego de noções que presidiram à comparação dos fatos em vez de derivar deles tomavase indispensável em toda sociologia racional Mas sabemos que se nessas condições a prática se torna refletida a reflexão assim empregada não é científica O problema que acabamos de colocar nos permitirá reivindicar os direitos da razão sem cair de novo na ideologia Com efeito tanto para as sociedades como para os indivíduos a saúde é boa e desejável enquanto a doença é algo ruim e que deve ser evitado Se encontrarmos portanto um critério objetivo inerente aos fatos mesmos que nos permita distinguir cientificamente a saúde da doença nas diversas ordens de fenômenos sociais a ciência será capaz de esclarecer a prática sem deixar de ser fiel a seu próprio método É verdade que como não consegue presentemente atingir o indivíduo ela só é capaz de fornecer nos indicações gerais que não podem ser convenientemente diversificadas a não ser que se entre diretamente em contato com o particular através da sensação O estado de saúde tal como ela o define não poderia convir exatamente a nenhum sujeito individual já que só pode ser estabelecido em relação às circunstâncias mais comuns das quais cada um se afasta em maior ou menor grau ainda assim esse é um ponto de referência precioso para orientar a conduta Do fato de ser preciso ajustálo a seguir a cada caso especial não se conclui que não haja nenhum interesse em conhecêlo Muito pelo contrário ele é a norma que deve servir de base a todos os nossos raciocínios práticos Nessas condições não se tem mais o direito de dizer que o pensamento é inútil à ação Entre a ciência e a arte não existe mais um abismo mas se passa de uma à outra sem solução de continuidade A ciência é verdade só pode descer aos fatos por intermédio da arte mas a arte não é senão o prolongamento da ciência Podese também perguntar se a insuficiência prática desta última não deverá diminuir à medida que as leis que ela estabelece exprimam cada vez mais completamente a realidade individual Vulgarmente o sofrimento é visto como o indicador da doença e é certo que em geral existe entre esses dois fatos uma relação mas que carece de constância e de precisão Há graves diáteses que são indolores ao passo que perturbações sem importância como as que resultam da introdução de um grão de poeira no olho causam um verdadeiro suplício Em certos casos inclusive a ausência de dor ou ainda o prazer é que são os sintomas da doença Há uma certa invulnerabilidade que é patológica Em circunstâncias nas quais um homem são sofreria acontece ao neurastênico experimentar uma sensação de gozo cuja natureza mórbida é incontestável Inversamente a dor acompanha muitos estados como a fome a fadiga o parto que são fenômenos puramente fisiológicos Diremos que a saúde consistindo num desenvolvimento favorável das forças vitais se reconhece pela perfeita adaptação do organismo a seu meio e chamaremos ao contrário doença tudo o que perturba essa adaptação Mas em primeiro lugar mais adiante teremos de voltar a esse ponto de modo nenhum está demonstrado que cada estado do organismo esteja em correspondência com algum estado externo Além do mais e mesmo que esse critério fosse realmente distintivo do estado de saúde ele próprio teria necessidade de outro critério para poder ser reconhecido pois seria preciso em todo caso que nos dissessem de acordo com que princípio se pode decidir que tal modo de se adaptar é mais perfeito que outro Será de acordo com a maneira como um e outro afetam nossas chances de sobrevivência A saúde seria o estado de um organismo em que essas chances estão em seu máximo enquanto a doença seria tudo o que tem por efeito diminuí Ias Não há dúvida de fato de que em geral a doença tem realmente por conseqüência um enfraquecimento do organismo Só que ela não é a única a produzir esse resultado As funções de reprodução em certas espécies inferiores ocasionam fatalmente a morte e mesmo nas espécies mais elevadas comportam riscos No entanto elas são normais A velhice e a infância têm os mesmos efeitos pois o velho e a criança estão mais expostos às causas de destruição São eles então doentes e não se admitirá outro tipo são a não ser o adulto Eis o domínio da saúde e da fisiologia singularmente encolhido Aliás se a velhice já for por si só uma doença como distinguir o velho saudável do velho doentio Do mesmo ponto de vista será preciso classificar a menstruação entre os fenômenos mórbidos pois pelas perturbações que determina ela aumenta a receptividade da mulher à doença Entretanto como qualificar de doentio um estado cuja ausência ou desaparecimento prematuro constituem incontestavelmente um fenômeno patológico Raciocinase sobre essa questão como se num organismo sadio cada detalhe por assim dizer tivesse um papel útil a desempenhar como se cada estado interno correspondesse exatamente a uma condição externa e por conseguinte contriiniísse para assegurar por sua parte o equilíbrio vital e a redução das chances de morte É legítimo supor ao contrário que certas disposições anatômicas ou funcionais não servem diretamente para nada mas simplesmente são porque são porque não podem deixar de ser dadas as condições gerais da vida Não se poderia no entanto qualificálas de mórbidas pois a doença é antes de tudo algo evitável que não está implicado na constituição regular do ser vivo Ora pode acontecer que em vez de fortalecer o organismo tais disposições diminuam sua força de resistência e conseqüentemente aumentem os riscos mortais Por outro lado não é seguro que a doença tenha sempre o resultado em função do qual se quer definiIa Acaso não há uma série de afecções demasiado leves para que possamos atribuirlhes uma influência sensível sobre as bases vitais do organismo Mesmo entre as mais graves há algumas cujas conseqüências nada têm de deplorável se soubermos lutar contra elas com as armas de que dispomos Quem sofre de problemas gástricos mas segue uma boa dieta pode viver tanto quanto o homem sadio Claro que é obrigado a ter cuidados mas não somos todos obrigados a isso e acaso pode a vida manterse de outro modo Cada um de nós tem sua higiene a do doente não se assemelha àquela praticada pela média dos homens de seu tempo e de seu meio mas essa é a única diferença que existe entre eles desse ponto de vista A doença nem sempre nos deixa desamparados num estado de inadaptação irremediável ela apenas nos obriga a adaptarnos de modo diferente do da maior parte de nossos semelhantes Quem nos diz inclusive que não existem doenças que acabam por se mostrar úteis A varíola que nos inoculamos através da vacina é uma verdadeira doença que nos damos voluntariamente no entanto ela aumenta nossas chances de sobrevivência Talvez haja muitos outros casos em que o problema causado pela doença é insignificante comparado com as imunidades que ela confere Enfim e sobretudo esse critério é na maioria das vezes inaplicável Pode se muito bem estabelecer a rigor que a mortalidade mais baixa que se conhece encontrase em determinado grupo de indivíduos mas não se pode demonstrar que não poderia haver outra mais baixa Quem nos diz que não são possíveis outras disposições que teriam por efeito diminuíIa ainda mais Esse mínimo de fato não é portanto prova de uma perfeita adaptação nem por conseguinte um indicador seguro do estado de saúde se nos basearmos na definição precedente Além disso um grupo dessa natureza é muito difícil de se constituir e de se isolar de todos os outros como seria necessário para que se pudesse observar a constituição orgânica de que ele tem o privilégio e que é a suposta causa dessa superioridade Inversamente se é óbvio quando se trata de uma doença cujo desdobramento é geralmente mortal que as probabilidades de sobrevivência do indivíduo são diminuídas a prova é singularmente difícil quando a afecção não é de natureza a ocasionar diretamente a morte Com efeito só há uma maneira objetiva de provar que indivíduos situados em condições definidas têm menos chances de sobreviver que outros é demonstrar que de fato a maior parte deles vive menos tempo Ora se essa demonstração é freqüentemente possível nos casos de doenças puramente individuais ela é inteiramente impraticável em sociologia Pois aqui não temos o ponto de referência de que dispõe o biólogo a saber o número da mortalidade média Não sabemos sequer distinguir com exatidão simplesmente aproximada em que momento nasce uma sociedade e em que momento ela morre Todos esses problemas que mesmo em biologia estão longe de estar claramente resolvidos permanecem ainda para o sociólogo envoltos em mistério Aliás os acontecimentos que se produzem no curso da vida social e que se repetem mais ou menos identicamente em todas as sociedades do mesmo tipo são demasiadamente variados para que seja possível determinar em que medida um deles pode ter contribuído para apressar o desenlace final Quando se trata de indivíduos como eles são muito numerosos podese escolher aqueles que são comparados de maneira a que tenham em comum apenas uma única e mesma anomalia esta é assim isolada de todos os fenômenos concomitantes e portanto podese estudar a natureza de sua influência sobre o organismo Se por exemplo um grupo de mil reumáticos tomados ao acaso apresenta uma mortalidade sensivelmente superior à média há boas razões para atribuir esse resultado à diátese reumática Mas em sociologia como cada espécie social conta apenas um pequeno número de indivíduos o campo das comparações é demasiado restrito para que agrupamentos desse gênero possam ser demonstrativosOra na falta dessa prova de fato nada mais é possível senão raciocínios dedutivos cujas conclusões só po dem ter o valor de conjeturas subjetivas Demonstrarseá não que tal acontecimento enfraquece efetivamente o organismo social mas que ele deve ter esse efeito Para isso mostrarseá que ele não pode deixar de ocasionar esta ou aquela conseqüência que se julga nociva à sociedade e por esse motivo ele será declarado mórbido Mas mesmo supondo que ele engendre de fato essa conseqüência pode ocorrer que os inconvenientes que esta apresente sejam compensados e até mais do que isso por vantagens que não se percebem Além do mais há apenas uma razão que permitiria chamála de funesta ela perturbar o desempenho normal das funções Mas tal prova supõe o problema já resolvido pois ela só é possível se determinarmos previamente em que consiste o estado normal e portanto se soubermos sob que sinal ele pode ser reconhecido Tentarseá construílo integralmente e a priori Não é necessário mostrar o que pode valer tal construção Eis como tanto em sociologia como em história os mesmos acontecimentos podem vir a ser qualificados conforme os sentimentos pessoais do estudioso de salutares ou de desastrosos Assim acontece a todo momento que um teórico incrédulo assinale nos restos de fé que sobrevivem em meio ao desmoronamento geral das crenças religiosas um fenômeno mórbido enquanto para o crente é a incredulidade mesma que é hoje a grande doença social Do mesmo modo para o socialista a organização econômica atual é um fato de teratologia social ao passo que para o economista ortodoxo as tendências socialistas é que são por excelência patológicas E cada um encontra em apoio de sua opinião silogismos que considera bem construídos O erro comum dessas definições é querer atingir prematuramente a essência dos fenômenos Elas supõem como admitidas proposições que verdadeiras ou não só podem ser provadas se a ciência já estiver suficientemente avançada É o caso porém de nos conformarmos à regra estabelecida anteriormente Em vez de pretendermos determinar de saída as relações do estado normal e de seu contrário com as forças vitais busquemos simplesmente algum sinal exterior imediatamente perceptível mas objetivo que nos permita distinguir uma da outra essas duas ordens de fatos Todo fenômeno sociológico assim como de resto todo fenômeno biológico é suscetível de assumir formas diferentes conforme os casos embora permaneça essencialmente ele próprio Ora essas formas podem ser de duas espécies Umas são gerais em toda a extensão da espécie elas se verificam se não em todos os indivíduos pelo menos na maior parte deles e se não se repetem identicamente em todos os casos nos quais se observam mas variam de um sujeito a outro essas variações estão compreendidas entre limites muito próximos Há outras ao contrário que são excepcionais elas não apenas se verificam só na minoria mas também acontece que lá mesmo onde elas se produzem muito freqüentemente não duram toda a vida do indivíduo Elas são uma exceção tanto no tempo como no espaços Estamos pois em presença de duas variedades distintas de fenômenos que devem ser designadas por termos diferentes chamaremos normais os fatos que apresentam as formas mais gerais e daremos aos outros o nome de mórbidos ou patológicos Se concordarmos em chamar tipo médio o ser esquemático que constituiríamos ao reunir num mesmo todo numa espécie de individualidade abstrata os caracteres mais freqüentes na espécie com suas formas mais freqüentes poderemos dizer que o tipo normal se confunde com o tipo médio e que todo desvio em relação a esse padrão da saúde é um fenômeno mórbido É verdade que o tipo médio não poderia ser determinado com a mesma clareza que um tipo individual já que seus atributos constitutivos não estão absolutamente fixados mas são suscetíveis de variar Todavia o que não se pode pôr em dúvida é que ele possa ser constituído já que é a matéria imediata da ciência pois ele se confunde com o tipo genérico O que o fisiologista estuda são as funções do organismo médio e com o sociólogo não é diferente Uma vez que se sabe distinguir as espécies sociais umas das outras tratamos mais adiante a questão é sempre possível descobrir qual a forma mais geral que apresenta um fenômeno numa espécie determinada Vêse que um fato só pode ser qualificado de patológico em relação a uma espécie dada As condições da saúde e da doença não podem ser definidas in abstracto e de maneira absoluta A regra não é contestada em biologia jamais ocorreu a alguém que o que é normal para um molusco o é também para um vertebrado Cada espécie tem sua saúde porque tem seu tipo médio que lhe é próprio e a saúde das espécies mais baixas não é menor que a das mais elevadas O mesmo princípio aplicase à sociologia embora freqüentemente ele seja ignorado aí É preciso renunciar a esse hábito ainda muito difundido de julgar uma instituirão uma prática uma máxima moral como se elas fossem boas ou más em si mesmas e por si mesmas para todos os tipos sociais indistintamente Visto que o ponto de referência em relação ao qual se pode julgar o estado de saúde ou de doença varia com as espécies ele pode variar também para uma única e mesma espécie se esta vier a mudar É assim que do ponto de vista puramente biológico o que é normal para o selvagem nem sempre o é para o civilizado e viceversa Há sobretudo uma ordem de variações que é importante levar em conta porque elas se produzem regularmente em todas as espécies são aquelas relacionadas à idade A saúde do velho não é a do adulto assim como esta não é a da criança e o mesmo ocorre com as sociedades Um fato social não pode portanto ser dito normal para uma espécie social determinada a não ser em relação a uma fase igualmente determinada de seu desenvolvimento em conseqüência para saber se ele tem direito a essa dominação não basta observar sob que forma ele se apresenta na generalidade das sociedades que pertencem a essa espécie é preciso também ter o cuidado de consideráIas na fase correspondente de sua evolução Parece que acabamos de proceder simplesmente a uma definição de palavras pois nada mais fizemos senão agrupar fenômenos segundo suas semelhanças e suas diferenças e impor nomes aos grupos assim formados Mas em realidade os conceitos que constituímos ao mesmo tempo que têm a grande vantagem de ser reconhecíveis por caracteres objetivos e facilmente perceptíveis não se afastam da noção que se telas comumente da saúde e da doença Com efeito não é a doença concebida por todo o mundo como um acidente que a natureza do ser vivo certamente comporta mas não costuma engendrar É o que os antigos filósofos exprimiam ao dizer que ela não deriva da natureza das coisas que ela é o produto de uma espécie de contingência imanente aos organismos Tal concepção seguramente é a negação de toda ciência pois a doença não possui nada mais miraculoso que a saúde ela está igualmente fundada na natureza dos seres Só que não está fundada na natureza normal não está implicada no temperamento ordinário dos seres nem ligada às condições de existência das quais eles geralmente dependem Inversamente para todo o mundo o tipo da saílde se confunde com o da espécie Inclusive não se pode sem contradição conceber uma espécie que por si mesma e em virtude de sua constituição fundamental fosse irremediavelmente doente Ela é a norma por excelência e portanto nada de anormal poderia conter É verdade que correntemente entendese também por saúde um estado geralmente preferível à doença Mas essa definição está contida na precedente De fato se os caracteres cuja reunião forma o tipo normal puderam se generalizar numa espécie há uma razão para isso Essa generalidade é ela mesma um fato que tem necessidade de ser explicado e que para tanto reclama uma causa Ora ela seria inexplicável se as formas de organização mais difundidas não fossem também pelo menos em seu conjunto as mais vantajosas Como teriam elas podido se manter numa tão grande variedade de circunstâncias se não capacitassem os indivíduos a resistir melhor às causas de destruição Ao contrário se as outras são mais raras é evidentemente porque na média dos casos os indivíduos que as representam têm mais dificuldade de sobreviver A maior freqüência das primeiras é portanto a prova de sua superioridade Essa última observação fornece inclusive um meio de controlar os resultados do precedente método Uma vez que a generalidade que caracteriza exteriormente os fenômenos normais é ela própria um fenômeno explicável compete depois que ela foi diretamente estabelecida pela observação procurar explicála Certamente podemos estar seguros de antemão de que ela tem uma causa mas o melhor é saber com precisão qual é essa causa Com efeito o caráter normal do fenômeno será mais incontestável se demonstrarmos que o sinal exterior que o havia revelado a princípio não é puramente aparente mas sim fundado na natureza das coisas em uma palavra se pudermos erigir essa normalidade de fato em normalidade de direito Essa demonstração de resto nem sempre consistirá em mostrar que o fenômeno é útil ao organismo ainda que este seja o caso mais freqüente pelas razões que acabamos de mencionar mas pode ocorrer também como assinalamos mais acima que uma disposição seja normal sem servir a nada simplesmente porque está necessariamente implicada na natureza do ser Assim talvez fosse útil que o parto não causasse problemas tão violentos ao organismo feminino mas isso é impossível Em conseqüência a normalidade do fenômeno será explicada pelo simples fato de estar ligada às condições dë existência da espécie considerada seja como um efeito mecanicamente necessário dessas condições seja como um meio que permite aos organismos adaptaremse a elas Essa prova não é simplesmente útil a título de controle Convém não esquecer com efeito que se há interesse em distinguir o normal do anormal é sobretudo com vistas a esclarecer a prática Ora para agir com conhecimento de causa não basta saber o que devemos querer mas por que o devemos As proposições científicas relativas ao estado normal serão mais imediatamente aplicáveis aos casos particulares quando estiverem acompanhadas de suas razões pois então saberemos reconhecer melhor em que casos convém modificá las ao aplicálas e em que sentido Há inclusive circunstâncias em que essa verificação é rigorosamente necessária porque o primeiro método se fosse empregado sozinho poderia induzir a erro É o que acontece nos períodos de transição em que a espécie inteira está em via de evoluir sem estar ainda definitivamente fixada em uma forma nova Nesse caso o único tipo normal que se encontra desde já realizado e dado nos fatos é o do passado no entanto ele não está mais em harmonia com as novas condições de existência Um fato pode assim persistir em toda a extensão de uma espécie embora não mais corresponda às exigências da situação Nesse caso portanto ele só tem as aparências da normalidade a generalidade que apresenta não é senão um rótulo mentiroso posto que mantendose apenas pela força cega do hábito ela não é mais o indicador de que o fenômeno observado está intimamente ligado às condições gerais da existência coletiva Essa dificuldade aliás é específica à sociologia Ela não existe por assim dizer para o biólogo Com efeito é muito raro que as espécies animais sejam obrigadas a tomar formas imprevistas As únicas modificações normais pelas quais elas passam são aquelas que se reproduzem regularmente em cada indivíduo principalmente sob a influência da idade Portanto elas são conhecidas ou podem sêlo já que se realizaram numa grande quantidade de casos em vista disso se pode saber a cada momento do desenvolvimento do animal e mesmo nos períodos de crise em que consiste o estado normal O mesmo acontece em sòciologia em relação às sociedades que pertencem às espécies inferiores Como muitas delas já cumpriram toda a sua carreira a lei de sua evolução normal está ou pelo menos pode ser estabelecida Mas quando se trata das sociedades mais elevadas e mais recentes essa lei é desconhecida por definição já que elas ainda não percorreram toda a sua história O sociólogo pode assim ter dificuldades para saber se um fenômeno é normal ou não estando privado de qualquer ponto de referência Ele sairá da dificuldade procedendo como acabamos de dizer Após ter estabelecido pela observação que o fato é geral ele remontará às condições que determinaram essa generalidade no passado e procurará saber a seguir se tais condições ainda se verificam no presente ou ao contrário se alteraram No primeiro caso ele terá o direito de qualificar o fenômeno de normal e no segundo de recusarlhe esse caráter Por exemplo para saber se o estado econômico atual dos povos europeus com a ausência de organização que é a sua característica é normal ou não investïgarseá aquilo que no passado deu origem a ele Se essas condições são ainda aquelas nas quais se encontram atualmente nossas sociedades é porque a situação é normal a despeito dos protestos que provoca Se ao contrário verificarse que ela está ligada a essa velha estrutura social que qualificamos alhures de segmentar e que após ter sido a ossatura essencial das sociedades vaise apagando cada vez mais deveremos concluir que ela constitui presentemente um estado mórbido por mais universal que seja É de acordo com o mesmo método que deverão ser resolvidas todas as questões controversas desse gênero como as de saber se o enfraquecimento das crenças religiosas ou se o desenvolvimento dos poderes do Estado são fenômenos normais ou nãos Contudo esse método não poderia em caso nenhum substituir o precedente nem mesmo ser empregado primeiro A começar porque ele levanta questões que teremos de examinar adiante e que só podem ser abordadas quando a ciência já avançou suficientemente pois ele implica em suma uma explicação quase completa dos fenômenos na medida em que supõe sejam determinadas suas causas ou suas funções Ora é importante que desde o início da pesquisa se possam classificar os fatos em normais e anormais ressalvando se alguns casos excepcionais a fim de poder atribuir à fisiologia e à patologia os respectivos domínios Em seguida é em relação ao tipo normal que um fato deve ser considerado útil ou necessário para poder ele próprio ser qualificado de normal Caso contrário poderseia demonstrar que a doença se confunde com a saúde já que ela deriva necessariamente do organismo afetado é apenas com o organismo médio que ela não mantém a mesma relação Do mesmo modo a aplicação de um remédio sendo útil ao doente poderia ser vista como um fenômeno normal quando é evidentemente anormal pois só em circunstâncias anormais tem essa utilidade Portanto só podemos servirnos desse método se o tipo normal estiver constituído e isso somente é possível por outro procedimento Enfim e sobretudo se é verdade que tudo o que é normal é útil com a condição de ser necessário é falso que tudo o que é útil seja normal Podemos ter certeza de que os estados que se generalizaram na espécie são mais úteis do que os que permaneceram excepcionais mas não de que os mais úteis é que existem ou que podem existir Não temos nenhuma razão para acreditar que todas as combinações possíveis foram tentadas no curso da experiência e entre aquelas jamais realizadas mas concebíveis talvez muitas sejam mais vantajosas que as que conhecemos A noção de útil excede a de normal ela está para esta assim como o gênero está para a espécie Ora é impossível deduzir o mais do menos a espécie do gênero Mas podese encontrar o gênero na espécie já que esta o contém Por isso uma vez constatada a generalidade do fenômeno podemse confirmar os resultados do primeiro método mostrando como ele serve Podemos assim formular as três regras seguintes 1 Um fato social é normal para um tipo social determinado considerado numa fase determinada de seu desenvolvimento quando ele se produz na média das sociedades dessa espécie consideradas na fase correspondente de sua evolução 2 Os resultados do método precedente podem ser verificados mostrando se que a generalidade do fenômeno se deve às condições gerais da vida coletiva no tipo social considerado 3 Essa verificarão é necessária quando esse fato se relaciona a uma espécie social que ainda não consumou sua evolução integral Estamos tão habituados a resolver com uma palavra essas questões difíceis e a decidir rapidamente a partir de observações sumárias e à base de silogismos se um fato social é normal ou não que esse procedimento talvez vá ser considerado inutilmente complicado Não parece preciso darse tanto trabalho para distinguir a doença da saúde Acaso não fazemos diariamente distinções desse tipo É verdade mas resta saber se as fazemos devidamente O que nos mascara as dificuldades desses problemas é que vemos o biólogo resolvêlos com relativa facilidade Mas esquecemos que é muito mais fácil para ele do que para o sociólogo perceber como cada fenômeno afeta a força de resistência do organismo e com isso determinar seu caráter normal ou anormal com uma exatidão praticamente suficiente Em sociologia a complexidade e a mobilidade maiores dos fatos obrigam a muitas precauções como provam os julgamentos contraditórios feitos sobre o mesmo fenômeno por diferentes partidos Para mostrar bem o quanto essa cautela é necessária façamos ver por alguns exemplos em que erros se incorre quando ela não é respeitada e sob que luz nova os fenômenos mais essenciais aparecem quando são tratados metodicamente Se há um fato cujo caráter patológico parece incontestável é o crime Todos os criminologistas estão de acordo nesse ponto Ainda que expliquem essa morbidez de maneiras diferentes eles são unânimes em reconhecêla O problema porém deveria ser tratado com menos presteza Apliquemos com efeito as regras precedentes O crime não se observa apenas na maior parte das sociedades desta ou daquela espécie mas em todas as sociedades de todos os tipos Não há nenhuma onde não exista uma criminalidade Esta muda de forma os atos assim qualificados não são os mesmos em toda parte mas sempre e em toda parte houve homens que se conduziram de maneira a atrair sobre si a repressão penal Se pelo menos à medida que as sociedades passam dos tipos inferiores aos mais elevados o índice de criminalidade isto é a relação entre o número anual dos crimes e o da população tendesse a diminuir poderseia supor que embora permaneça um fenômeno normal o crime tende no entanto a perder esse caráter Mas não temos razão nenhuma que nos permita acreditar na realidade dessa regressão Muitos fatos pareceriam antes demonstrar a existência de um movimento no sentido inverso Desde o começo do século a estatística nos fornece o meio de acompanhar a marcha da criminalidade ora por toda parte ela aumentou Na França o aumento é de cerca de 300 por cento Não há portanto fenômeno que apresente da maneira mais irrecusável todos os sintomas da normalidade já que ele se mostra intimamente ligado às condições de toda vida coletiva Fazer do crime uma doença social seria admitir que a doença não é algo acidental mas ao contrário deriva em certos casos da constituição fundamental do ser vivo seria apagar toda distinção entre o fisiológico e o patológico Certamente pode ocorrer que o próprio crime tenha formas anormais é o que acontece quando por exemplo ele atinge um índice exagerado Não é duvidoso com efeito que esse excesso seja de natureza mórbida O que é normal é simplesmente que haja uma criminalidade contanto que esta atinja e não ultrapasse para cada tipo social certo nível que talvez não seja impossível fixar de acordo com as regras precedenteslo Eisnos em presença de uma conclusão aparentemente bastante paradoxal Pois não devemos iludirnos quanto a ela Classificar o crime entre os fenômenos de sociologia normal é não apenas dizer que ele é um fenômeno inevitável ainda que lastimável devido à incorrigível maldade dos homens é afirmar que ele é um fator da saúde pública uma parte integrante de toda sociedade sadia Esse resultado à primeira vista é bastante surpreendente para que tenha desconcertado a nós próprios e por muito tempo Entretanto uma vez dominada essa primeira impressão de surpresa não é difícil encontrar as razões que explicam essa normalidade e ao mesmo tempo a confirmam Em primeiro lugar o crime é normal porque uma sociedade que dele estivesse isenta seria inteiramente impossível O crime conforme mostramos alhures consiste num ato que ofende certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma clareza particulares Para que numa sociedade dada os atos reputados criminosos pudessem deixar de ser cometidos seria preciso que os sentimentos que eles ferem se verificassem em todas as consciências individuais sem exceção e com o grau de força necessário para conter os sentimentos contrários Ora supondo que essa condição pudesse efetivamente ser realizada nem por isso o crime desapareceria ele simplesmente mudaria de forma pois a causa mesma que esgotaria assim as fontes da criminalidade abriria imediatamente novas Com efeito para que os sentimentos coletivos protegidos pelo direito penal de um povo num momento determinado de sua história consigam penetrar nas consciências que lhes eram então fechadas ou ter mais influência lá onde não tinham bastante é preciso que eles adquiram uma intensidade superior à que possuíam até então É preciso que a comunidade como um todo os sinta com mais ardor pois eles não podem obter de outra fonte a força maior que lhes permite imporse aos indivíduos que até então lhes eram mais refratários Para que os assassinos desapareçam é preciso que o horror do sangue derramado tornese maior naquelas camadas sociais em que se recrutam os assassinos mas para tanto é preciso que ele se torne maior em toda a extensão da sociedade Aliás a ausência mesma do crime contribuiria diretamente para produzir esse resultado pois um sentimento mostrase muito mais respeitável quando ele é sempre e uniformemente respeitado Mas não se percebe que esses estados fortes da consciência comum não podem ser assim reforçados sem que os estados mais fracos cuja violação dava antes origem apenas a faltas puramente morais sejam igualmente reforçados pois os segundos são apenas o prolongamento a forma atenuada dos primeiros Assim o roubo e a simples indelicadeza não ofendem senão um único e mesmo sentimento altruísta o respeito à propriedade de outrem Só que esse mesmo sentimento é ofendido de modo mais fraco por um desses atos do que pelo outro e como além disso ele não tem na média das consciências uma intensidade suficiente para sentir vivamente a mais leve dessas duas ofensas esta será objeto de uma maior tolerância Eis por que se censura simplesmente o indelicado ao passo que o ladrão é punido Mas se o mesmo sentimento tornarse mais forte a ponto de fazer calar em todas as consciências aquilo que inclina o homem ao roubo ele se tornará mais sensível às lesões que até então apenas o tocavam levemente ele reagirá portanto com mais firmeza contra elas tais lesões serão objeto de uma reprovação mais enérgica que fará passar algumas delas de simples faltas morais que eram ao estado de crimes Por exemplo os contratos indelicados ou indelicadamente executados que implicam apenas uma reprovação pública ou reparações civis se tornarão delitos Imaginem uma sociedade de santos um claustro exemplar e perfeito Os crimes propriamente ditos nela serão desconhecidos mas as faltas que parecem veniais ao vulgo causarão o mesmo escândalo que produz o delito ordinário nas consciências ordinárias Portanto se essa sociedade estiver armada do poder de julgar e de punir ela qualificará esses atos de criminosos e os tratará como tais É pela mesma razão que o homem honesto julga suas menores fraquezas morais com uma severidade que a multidão reserva aos atos verdadeiramente delituosos Outrora as violências contra as pessoas eram mais freqüentes do que hoje porque o respeito pela dignidade individual era menor Como este aumentou esses crimes tornaramse mais raros em compensação muitos atos que lesavam esse sentimento entraram no direito penal no qual primitivamente não constavam Talvez se pergunte para esgotar todas as hipóteses logicamente possíveis por que essa unanimidade não se estenderia a todos os sentimentos coletivos sem exceção por que mesmo os mais fracos não adquiririam suficiente energia para prevenir qualquer dissidência A consciência moral da sociedade se manifestaria por inteiro em todos os indivíduos e com uma vitalidade suficiente para impedir todo ato que a ofendesse tanto as faltas puramente morais como os crimes Mas uma uniformidade tão universal e tão absoluta é radicalmente impossível pois o meio físico imediato no qual cada um de nós se encontra os antecendentes hereditários as influências sociais de que dependemos variam de um indivíduo a outro e por conseguinte diversificam as consciências Não é possível que todos se assemelhem nesse ponto pela simples razão de que cada um tem seu organismo próprio e esses organismos ocupam porções diferentes do espaço Por isso mesmo nos povos inferiores nos quais a originalidade individual é muito pouco desenvolvida ela não chega a ser nula Assim como não pode haver sociedade em que os indivíduos não divirjam em maior ou menor grau do tipo coletivo é também inevitável que entre essas divergências haja algumas que apresentem um caráter criminoso Pois o que confere a elas esse caráter não é sua importância intrínseca mas a que lhes atribui a consciência comum Se esta é mais forte se tem suficiente autoridade para tornar essas divergências muito fracas em valor absoluto ela será também mais sensível mais exigente e reagindo contra os menores desvios com a energia que manifesta alhures apenas contra dissidências mais consideráveis irá atribuirlhes a mesma gravidade ou seja irá marcálos como criminosos O crime é portanto necessário ele está ligado às condições fundamentais de toda vida social e por isso mesmo é útil pois as condições de que ele é solidário são elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e do direito De fato não é mais possível hoje contestar que não apenas o direito e a moral variam de um tipo social a outro como também mudam em relação a um mesmo tipo se as condições da existência coletiva se modificam Mas para que essas transformações sejam possíveis é preciso que os sentimentos coletivos que estão na base da moral não sejam refratários à mudança que tenham portanto apenas uma energia moderada Se fossem demasiado fortes deixariam de ser plásticos Todo arranjo com efeito é um obstáculo a um novo arranjo e isso tanto mais quanto mais sólido for o arranjo primitivo Quanto mais fortemente pronunciada for uma estrutura mais resistência ela oporá a qualquer modificação e isso vale tanto para os arranjos funcionais como para os anatômicos Ora se não houvesse crimes essa condição não seria preenchida pois tal hipótese supõe que os sentimentos coletivos teriam chegado a um grau de intensidade sem exemplo na história Nada é bom indefinidamente e sem medida É preciso que a autoridade que a consciência moral possui não seja excessiva caso contrário ninguém ousaria contestála e muito facilmente ela se cristalizaria numa forma imutável Para que ela possa evoluir é preciso que a originalidade individual possa vir à luz ora para que a do idealista que sonha superar seu século possa se manifestar é preciso que a do criminoso que está abaixo de seu tempo seja possível Uma não existe sem a outra E não é tudo Além dessa utilidade indireta o próprio crime pode desempenhar um papel útil nessa evolução Não apenas ele implica que o caminho permanece aberto às mudanças necessárias como também em certos casos prepara diretamente essas mudanças Não apenas lá onde ele existe os sentimentos coletivos encontramse no estado de maleabilidade necessário para adquirir uma forma nova como ele também contribui às vezes para predeterminar a forma que esses sentimentos irão tomar Quantas vezes com efeito o crime não é senão uma antecipação da moral por vir um encaminhamento em direção ao que será De acordo com o direito ateniense Sócrates era um criminoso e sua condenação simplesmente justa No entanto seu crime a saber a independência de seu pensamento era útil não somente à humanidade mas à sua pátria Pois ele servia para preparar uma moral e uma fé novas das quais os atenienses tinham então necessidade porque as tradições segundo as quais tinham vívido até então não mais estavam em harmonia com suas condições de existência Ora o caso de Sócrates não é isolado ele se reproduz periodicamente na história A liberdade de pensar que desfrutamos atualmente jamais poderia ter sido proclamada se as regras que a proibiam não tivessem sido violadas antes de serem solenemente abolidas Entretanto naquele momento essa violação era um crime já que era uma ofensa a sentimentos ainda muito fortes na generalidade das consciências Todavia esse crime era útil pois preludiava transformações que dia após dia tornavamse mais necessárias A livre filosofia teve por precursores os heréticos de todo tipo que o braço secular justamente perseguiu durante toda a Idade Média até as vésperas dos tempos contemporâneos Desse ponto de vista os fatos fundamentais da criminologia apresentamse a nós sob um aspecto de todo novo Contrariamente às idéias correntes o criminoso não mais aparece como um ser radicalmente insociável como uma espécie de elemento parasitário corpo estranho e inassimilável introduzido no seio da sociedadeiz ele é um agente regular da vida social O crime por sua vez não deve mais ser concebido como um mal que não possa ser contido dentro de limites demasiado estreitos mas longe de haver motivo para nos felicitarmos quando lhe ocorre descer muito sensivelmente abaixo do nível ordinário podemos estar certos de que esse progresso aparente é ao mesmo tempo contemporâneo e solidário de alguma perturbação social Assim o número de agressões e de ferimentos jamais cai tanto como em tempos de penúrial3 Ao mesmo tempo e por via indireta a teoria da pena se mostra renovada ou melhor por renovar Com efeito se o crime é uma doença a pena é seu remédio e não pode ser concebida de outro modo assim todas as discussões que ela suscita têm por objeto saber o que ela deve ser para cumprir seu papel de remédio Mas se o crime nada tem de mórbido a pena não poderia ter por objeto curálo e sua verdadeira função deve ser buscada em outra parte Portanto as regras precedentemente enunciadas estão longe de terem como única razão de ser a satisfação de um formalismo lógico sem grande utilidade uma vez que ao contrário conforme as apliquemos ou não os fatos sociais mais essenciais mudam totalmente de caráter Se esse exemplo aliás é particularmente demonstrativo e por isso julgamos que era preciso nos determos nele há muitos outros que poderiam ser utilmente citados Não existe sociedade na qual não seja de regra que a pena deve ser proporcional ao delito entretanto para a escola italiana esse princípio não passa de uma invenção de juristas desprovida de qualquer solidez Inclusive para esses criminologistas é a instituição penal inteira tal como funcionou até o presente em todos os povos conhecidos que é um fenômeno antinatural Já vimos que para o sr Garofalo a criminalidade específica às sociedades inferiores nada tem de natural Para os socialistas é a organização capitalista apesar de sua generalidade que constitui um desvio do estado normal produzido pela violência e o artifício Para Spencer ao contrário é nossa centralização administrativa é a extensão dos poderes governamentais o vício radical de nossas sociedades e isso apesar de ambas progredirem de maneira mais regular e universal à medida que avançamos na história Não cremos que em nenhum desses casos se aceite como critério sistemático decidir do caráter normal ou anormal dos fatos sociais com base no grau de generalidade deles É sempre à força de muita dialética que essas questões são decididas Entretanto não respeitado esse critério incorrese não somente em confusões e em erros parciais como os que acabamos de lembrar mas a ciência mesma tornase impossível Com efeito esta tem por objeto imediato o estudo do tipo normal ora se os fatos mais gerais podem ser mórbidos é possível que o tipo normal jamais tenha existido nos fatos Sendo assim de que serve estudá los Eles podem apenas confirmar nossos preconceitos e enraizar nossos erros já que deles resultam Se a pena se a responsabilidade tais como existem na história não são senão um produto da ignorância e da barbárie de que adianta dedicarse a conhecêlas para determinar suas formas normais Assim o espírito é levado a afastarse de uma realidade desde então sem interesse voltandose sobre si mesmo e buscando dentro de si os materiais necessários para reconstruí la Para que a sociologia trate os fatos como coisas é preciso que o sociólogo sinta a necessidade de aprender com eles Ora como o objeto principal de toda ciência da vida tanto individual como social é em suma definir o estado normal explicálo e distinguilo de seu contrário se a normalidade não acontecer nas coisas mesmas se ao contrário ela for um caráter que imprimimos desde fora nestas ou que lhes recusamos por razões quaisquer acabase essa salutar dependência O espírito se acha à vontade diante do real que nada de muito importante tem a lhe ensinar ele não mais é contido pela matéria à qual se aplica uma vez que é ele de certo modo que a determina As diferentes regras que estabelecemos até o presente são portanto intimamente solidárias Para que a sociologia seja realmente uma ciência de coisas é preciso que a generalidade dos fenômenos seja tomada como critério de sua normalidade Nosso método aliás tem a vantagem de regular a ação ao mesmo tempo que o pensamento Se o desejável não é objeto de observação mas pode e deve ser determinado por uma espécie de cálculo mental nenhum limite por assim dizer pode ser imposto às livres invenções da imaginação em busca do melhor Pois como atribuir à perfeição um termo que ela não pode ultrapassar Ela escapa por definição a qualquer limite O objetivo da humanidade recua portanto ao infinito desencorajando uns por seu afastamento mesmo estimulando e apaixonando outros que para dele se aproximar um pouco aceleram o passo e se precipitam nas revoluções Escapamos desse dilema prático se o desejável for a saúde e se a saúde for algo de definido e de dado nas coisas pois o termo do esforço é dado e definido ao mesmo tempo Não se trata mais de perseguir desesperadamente um fim que se afasta à medida que avançamos mas de trabalhar com uma regular perseverança para manter o estado normal para restabelecêlo se for perturbado para redescobrir suas condições se elas vierem a mudar O dever do homem de Estado não é mais impelir violentamente as sociedades para um ideal que lhe parece sedutor mas seu papel é o do médico ele previne a eclosão das doenças mediante uma boa higiene e quando estas se manifestam procura curálas REGRAS RELATIVAS À CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS Visto que um fato social só pode ser qualificado de normal ou de anormal em relação a uma espécie social determinada o que precede implica que um ramo da sociologia é dedicado à constituição dessas espécies e à sua classificação Essa noção de espécie social tem aliás a grande vantagem de nos fornecer um meiotermo entre as duas concepções contrárias da vida coletiva que por muito tempo dividiram os espíritos refirome ao nominalismo dos historiadores e ao realismo extremo dos filósofos Para o historiador as sociedades constituem individualidades heterogêneas incomparáveis entre si Cada povo tem sua fisionomia sua constituição específica seu direito sua moral sua organização econômica que convêm só a ele e toda generalização é praticamente impossível Para o filósofo ao contrário todos esses agrupamentos particulares que chamamos tribos cidades nações não são mais que combinações contingentes e provisórias sem realidade própria Apenas a humanidade é real e é dos atributos gerais da natureza humana que decorre toda a evolução social Para os primeiros portanto a história não é senão uma seqüência de acontecimentos que se encadeiam sem se reproduzir para os segundos esses mesmos acontecimentos só têm valor e interesse como ilustração das leis gerais que estão inscritas na constituição do homem e que dominam todo o desenvolvimento histórico Para aqueles o que é bom para uma sociedade não poderia aplicarse às outras As condições do estado de saúde variam de um povo a outro e não podem ser determinadas teoricamente é uma questão de prática de experiência de tentativas Para os outros essas condições podem ser calculadas de uma vez por todas e para o gênero humano inteiro Parecia portanto que a realidade social ou seria o objeto de uma filosofia abstrata e vaga ou de monografias puramente descritivas Mas escapamos a essa alternativa tão logo reconhecemos que entre a multidão confusa das sociedades históricas e o conceito único mas ideal da humanidade existem intermediários são as espécies sociais Na idéia de espécie com efeito achamse reunidas tanto a unidade que toda pesquisa verdadeiramente científica exige como a diversidade que é dada nos fatos já que a espécie é a mesma em todos os indivíduos que dela fazem parte e por outro lado as espécies diferem entre si Continua sendo verdade que as instituições morais jurídicas econômicas etc são infinitamente variáveis mas essas variações não são de natureza a não permitir nenhuma apreensão pelo pensamento científico Foi por ter desconhecido a existência de espécies sociais que Comte julgou poder representar o progresso das sociedades humanas como idêntico ao de um povo único ao qual seriam idealmente referidas todas as modificações consecutivas observadas nas populações distintas É que de fato se existe apenas uma única espécie social as sociedades particulares não podem diferir entre si a não ser em graus conforme apresentem mais ou menos completamente os traços constitutivos dessa espécie única conforme exprimam mais ou menos perfeitamente a humanidade Se ao contrário existem tipos sociais qualitativamente distintos uns dos outros não se poderá fazer que eles se unam exatamente como as seções homogêneas de uma reta geométrica por mais que os aproximemos O desenvolvimento histórico perde deste modo a unidade ideal e simplista que lhe atribuíam ele se fragmenta por assim dizer numa infinidade de pedaços que por diferirem especificamente uns dos outros não poderiam ligar se de maneira contínua A famosa metáfora de Pascal retomada depois por Comte mostrase assim desprovida de verdade Mas como fazer para constituir tais espécies À primeira vista pode parecer que não haja outra maneira de proceder senão estudar cada sociedade em particular fazer dela uma monografia tão exata e tão completa quanto possível a seguir comparar todas essas monografias entre si ver em que ponto elas concordam e em que ponto divergem e então conforme a importância relativa dessas similitudes e dessas divergências classificar os povos em grupos semelhantes ou diferentes Em apoio a esse método fazse notar que ele só é admissível numa ciência de observação A espécie com efeito é o resumo dos indivíduos portanto como constituíIa se não se começa por descrever cada um deles e por descrevêlo inteiramente Acaso não é uma regra a de somente elevarse ao geral após se ter observado o particular e todo 0 particular Foi por essa razão que se quis às vezes adiar a sociologia até uma época indefinidamente remota em que a história no estudo que realiza das sociedades particulares terá chegado a resultados suficientemente objetivos e definidos para poderem ser proveitosamente comparados Mas em realidade essa cautela só aparentemente é científica É inexato com efeito que a ciência só possa instituir leis após ter passado em revista todos os fatos que elas exprimem ou só formar gêneros após ter descrito em sua integralidade os indivíduos que eles compreendem O verdadeiro método experimental tende antes a substituir os fatos vulgares que só são demonstrativos com a condição de serem numerosos e que portanto permitem apenas conclusões sempre suspeitas por fatos decisivos ou crucíctis como dizia Bacon3 que por si mesmos e independentemente de seu número têm um valor e um interesse científicos É sobretudo necessário proceder deste modo quando se trata de constituir gêneros e espécies Pois fazer o inventário de todas as características de um indivíduo é um problema insolúvel Todo indivíduo é um infinito e o infinito não pode sei esgotado Iremos nos ater às propriedades mais essenciais Mas com base em que princípio faremos a triagem Para isso é preciso um critério que supere o indivíduo e que as monografias mais bemfeitas não poderiam portanto nos fornecer Mesmo sem levar as coisas a esse rigor podese prever que quanto mais numerosos os caracteres que servirão de base à classificação tanto mais difícil será que as diversas maneiras como eles se combinam nos casos particulares apresentem semelhanças bastante claras e diferenças bastante nítidas para permitir a constituição de grupos e subgrupos definidos Mas ainda que uma classificação fosse possível com base nesse método ela teria o grande defeito de não prestar os serviços que são sua razão de ser Com efeito ela deve antes de tudo ter por objeto abreviar o trabalho científico ao substituir a multiplicidade indefinida dos indivíduos por um número restrito de tipos Mas ela perde essa vantagem se esses tipos só forem constituídos após todos os indivíduos terem sido passados em revista e analisados inteiramente Uma tal classificação não facilitará muito a pesquisa se não fizer mais que resumir as pesquisas já feitas Ela só será verdadeiramente útil se nos permitir classificar outros caracteres que não aqueles que lhe servem de base se nos proporcionar quadros para os fatos futuros Seu papel é o de nos munir de pontos de referência aos quais possamos relacionar outras observações que não aquelas que nos forneceram esses próprios pontos de referência Mas para isso é preciso que ela seja feita não a partir de um inventário completo de todos os caracteres individuais mas a partir de um pequeno número deles cuidadosamente escolhidos Nessas condições ela não servirá apenas para pôr um pouco de ordem nos conhecimentos já obtidos servirá para produzir outros Ela poupará muitos passos ao observador porque irá guiálo Assim uma vez estabelecida a classificação sobre esse princípio para saber se um fato é geral numa espécie não será necessário ter observado todas as sociedades dessa espécie algumas serão suficientes Inclusive em muitos casos bastará somente uma observação bemfeita assim como uma experiência bem conduzida é suficiente muitas vezes para o estabelecimento de uma lei Devemos portanto escolher para nossa classificação caracteres particularmente essenciais É verdade que não se pode conhecêlos a não ser que a explicação dos fatos esteja suficientemente avançada Essas duas partes da ciência são solidárias e progridem uma através da outra No entanto mesmo sem avançar muito no estudo dos fatos não é difícil conjeturar onde é preciso buscar as propriedades características dos tipos sociais Sabemos com efeito que as sociedades são compostas de partes reunidas umas às outras Já que a natureza de toda resultante depende necessariamente da natureza do número dos elementos componentes e de seu modo de combinação esses caracteres são evidentemente aqueles que devemos tomar por base e veremos a seguir com efeito que é deles que dependem os fatos gerais da vida social Por outro lado como eles são de ordem morfológica poderíamos chamar Morfologia social a parte da sociologia que tem por tarefa constituir e classificar os tipos sociais Podese inclusive precisar ainda mais o princípio dessa classificação Sabe se com efeito que as partes constitutivas de que é formada toda sociedade são sociedades mais simples do que ela Um povo é formado pela reunião de dois ou vários povos que o precederam Portanto se conhecêssemos a sociedade mais simples que até hoje existiu precisaríamos apenas para fazer nossa classificação seguir a maneira como essa sociedade se compõe consigo mesma e como seus compostos se compõem entre si Spencer compreendeu muito bem que a classificação metódica dos tipõs sociais não podia ter outro fundamento Vimos diz ele que a evolução social começa por pequenos agregados simples que ela progride pela união de alguns desses agregados em agregados maiores e que após se consolidarem esses grupos se unem com outros semelhantes a eles para formar agregados ainda maiores Nossa classificação deve portanto começar por sociedades da primeira ordem isto é da mais simples Infelizmente para pôr esse princípio em prática seria preciso começar por definir com precisão o que se entende por sociedade simples Ora essa definição não apenas Spencer não a dá como também a considera mais ou menos impossível5 É que a simplicidade tal como ele a entende consiste essencialmente numa certa rudeza de organização Ora não é fácil dizer com exatidão em que momento a organização social é suficientemente rudimentar para ser qualificada de simples é uma questão de apreciação Assim a fórmula que ele oferece é tão vaga que convém a todo tipo de sociedades Nada de melhor temos a fazer diz ele do que considerar como sociedade simples aquela que forma um todo não subordinado a outro e cujas partes cooperam com ou sem centro regulador tendo em vista certos fins de interesse público6 Mas há muitos povos que satisfazem a essa condição Disso resulta que ele confunde um pouco ao acaso sob essa mesma rubrica todas as sociedades menos civilizadas Imagine se o que pode ser com semelhante ponto de partida o resto de sua classificação Vemos aproximadas nela na mais espantosa confusão as sociedades mais diversas os gregos homéricos postos ao lado dos feudos do século X e abaixo dos bechuanas dos zulus e dos fijianos a confederação ateniense ao lado dos feudos da França dó século XIII e abaixo dos iroqueses e dos araucanos A palavra simplicidade só tem sentido definido se significar uma ausência completa de partes Por sociedade simples portanto devese entender toda sociedade que não encerra outras mais simples do que ela que não apenas está segmentação anterior A horda tal como a definimos alhures corresponde exatamente a essa definição Tratase de um agregado que não compreende e jamais compreendeu em seu seio nenhum outro agregado mais elementar mas que se decompõe imediatamente em indivíduos Estes não formam no interior do grupo total grupos especiais e diferentes do precedente eles se justapõem à maneira de átomos Concebese que não possa haver sociedade mais simples esse é o protoplasma do reino social e conseqüentemente a base natural de toda classificação É verdade que talvez não exista sociedade histórica que corresponda exatamente a essa identificação mas tal como mostramos no livro já citado conhecemos uma quantidade delas que são formadas imediatamente e sem outro intermediário por uma repetição de hordas Quando a horda se torna assim um segmento social em vez de ser a sociedade inteira ela chamase clã mas conserva os mesmos traços constitutivos O clã com efeito é um agregado social que não se decompõe em nenhum outro mais restrito Poderão talvez assinalar que geralmente lá onde o observamos hoje ele encerra uma pluralidade de famílias particulares Mas em primeiro lugar por razões que não podemos desenvolver aqui cremos que a formação desses pequenos grupos familiares é posterior ao clã além disso essas famílias não constituem para falar com exatidão segmentos sociais porque elas não são divisões políticas Onde quer que o encontremos o clã constitui a última divisão desse gênero Em conseqüência ainda que não tivéssemos outros fatos para postular a existência da horda e eles existem como teremos a ocasião de expor um dia a existência do clã isto é de sociedades formadas por uma reunião de hordas nos autoriza a supor que houve primeiramente sociedades mais simples que se reduziam à horda propriamente dita e a fazer desta o tronco de onde saíram todas as espécies sociais Uma vez estabelecida essa noção de horda ou sociedade de segmento único seja ela concebida como uma realidade histórica ou como um postulado da ciência temse o ponto de apoio necessário para construir a escala completa dos tipos sociais Iremos distinguir tantos tipos fundamentais quantas maneiras houver para a horda de se combinar consigo mesma dando origem a sociedades novas e para estas de se combinarem entre si Encontraremos primeiramente agregados formados por uma simples repetição de hordas ou de clãs para dar lhes seu novo nome sem que esses clãs estejam associados entre si de maneira a formar grupos intermediários entre o grupo total que compreende a todos e cada um deles Eles estão simplesmente justapostos como os indivíduos da horda Encontramse exemplos dessas sociedades que poderiam ser chamadas polissegmentares simples em certas tribos iroquesas e australianas O arch ou tribo da Cabília tem o mesmo caráter tratase de uma reunião de clãs fixados em forma de aldeias Muito provavelmente houve um momento na história em que a cúria romana e a fratria ateniense eram sociedades desse gênero Acima viriam as sociedades formadas por uma reunião de sociedades da espécie precedente isto é as sociedades polissegmentares simplesmente compostas Tal é o caráter da confederação iroquesa daquela formada pela reunião das tribos cabilas o mesmo aconteceu na origem com cada uma das três tribos primitivas cuja associação deu origem mais tarde à cidade romana Encontraríamos a seguir as sociedades polissegmentares duplamente compostas que resultam da justaposição ou da fusão de várias sociedades polissegmentares simplesmente compostas É o caso da cidade agregado de tribos que são elas próprias agregados de cúrias que por sua vez se decompõem em gentes ou clãs e da tribo germânica com seus condados que se subdividem em centenas os quais por sua vez têm por unidade última o clã transformado em aldeia Não precisamos desenvolver nem levar mais adiante essas poucas indicações já que não é o caso de efetuar aqui uma classificação das sociedades Esse é um problema demasiado complexo para poder ser tratado assim de passagem ele supõe ao contrário todo um conjunto de longas e especiais pesquisas Quisemos apenas por alguns exemplos precisar as idéias e mostrar como deve ser aplicado o princípio do método Inclusive não se deveria considerar o que precede como sendo uma classificação completa das sociedades inferiores Simplificamos um pouco as coisas para maior clareza Supusemos com efeito que cada tipo superior era formado por uma repetição de sociedades de um mesmo tipo a saber do tipo imediatamente inferior Ora não é impossível que sociedades de espécies diferentes situadas em diferentes níveis da árvore genealógica dos tipos sociais se reúnam de maneira a formar uma espécie nova Sabese de pelo menos um caso o Império romano que compreendia em seu interior povos das mais diversas naturezas Mas uma vez constituídos esses tipos será preciso distinguir em cada um deles variedades diferentes conforme as sociedades segmentares que servem para formar a sociedade resultante conservem uma certa individualidade ou então ao contrário sejam absorvidas na massa total Compreendese com efeito que os fenômenos sociais devem variar não apenas segundo a natureza dos elementos componentes mas segundo seu modo de composição eles devem sobretudo ser muito diferentes conforme cada um dos grupos parciais conserve sua vida local ou sejam todos arrastados na vida geral isto ê conforme estejam mais ou menos estreitamente concentrados Deveremos portanto investigar se num momento qualquer se produz uma coalescência completa desses segmentos Reconheceremos que ela ocorre se a composição original da sociedade não mais afetar sua organização administrativa e política Desse ponto de vista a cidade distinguese nitidamente das tribos germânicas Nestas últimas a organização à base de clãs se manteve embora apagada até o término de sua história ao passo que em Roma em Atenas as gentes e as Évil deixaram muito cedo de ser divisões políticas para se tornarem agrupamentos privados No interior dos lineamentos assim constituídos poderseá buscar introduzir novas distinções a partir dos caracteres morfológicos secundários Entretanto por razões que daremos mais adiante não julgamos muito possível superar com proveito as divisões gerais que acabam de ser indicadas Além disso não precisamos entrar nesses detalhes bastandonos ter estabelecido o princípio de classificação que pode ser assim enunciado Começarseá por classificar as sociedades de acordo com o grau de composição que elas apresentam tomando por base a sociedade perfeitamente simples ou de segmento único no interior dessas classes distinguirseão variedades diferentes conforme se produza ou não uma coalescência completa dos segmentos iniciais Essas regras respondem implicitamente a uma questão que o leitor talvez se tenha colocado ao nos ver falar de espécies sociais como se elas existissem sem termos diretamente estabelecido sua existência Essa prova está contida no princípio mesmo do método que acaba de ser exposto Acabamos de ver com efeito que as sociedades não eram mais que combinações diferentes de uma mesma e única sociedade original Ora um mesmo elemento só pode comporse consigo mesmo e os compostos que dele resultam só podem por sua vez comporse entre si segundo um número de modos limitado sobretudo quando os elementos componentes são pouco numerosos como é o caso dos segmentos sociais A gama de combinações possíveis é portanto finita e por conseguinte a maior parte delas pelo menos deve se repetir Do que se conclui que há espécies sociais É possível aliás que algumas dessas combinações se produzam apenas uma vez Isso não impede que haja espécies Apenas se dirá nesse caso que a espécie tem somente um indivíduo Há portanto espécies sociais pela mesma razão que existem espécies em biologia Estas com efeito devemse ao fato de os organismos não serem senão combinações variadas de uma mesma unidade anatômica Há todavia desse ponto de vista uma grande diferença entre os dois reinos Pois entre os animais um fator especial confere aos caracteres específicos uma força de resistência que os outros não têm é a geração Os primeiros por serem comuns a toda a linhagem dos ascendentes estão bem mais fortemente enraizados no organismo Portanto eles não se deixam facilmente afetar pela ação dos meios individuais mas se mantêm idênticos a si mesmos apesar da diversidade das circunstâncias exteriores Há uma força interna que os fixa a despeito das solicitações para variar que podem vir de fora a força dos hábitos hereditários Por isso eles são claramente definidos e podem ser determinados com precisão No reino social faltalhes essa causa interna Os caracteres não podem ser reforçados pela geração porque duram apenas uma geração É de regra com efeito que as sociedades engendradas sejam de outra espécie que as sociedades geradoras porque estas últimas ao se combinarem dão origem a arranjos inteiramente novos Somente a colonização poderia ser comparada a uma geração por germinação mesmo assim para que a comparação seja exata é preciso que o grupo de colonos não se misture com uma sociedade de outra espécie ou de outra variedade Os atributos distintivos da espécie não recebem portanto da hereditariedade um acréscimo de força que lhe permita resistir às variações individuais Eles se modificam e se matizam ao infinito sob a ação das circunstâncias assim quando se quer atingilos depois de afastadas todas as variantes que os encobrem com freqüência se obtém apenas um resíduo bastante indeterminado Essa indeterminação cresce naturalmente tanto mais quanto maior for a complexidade dos caracteres pois quanto mais complexa uma coisa mais as partes que a compõem podem formar combinações diferentes Disso resulta que o tipo social específico para além dos caracteres mais gerais e mais simples não apresenta contornos tão definidos como em biologia REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS Mas a constituição das espécies é antes de tudo um meio de agrupar os fatos para facilitar sua interpretação a morfologia social é um encaminhamento para a parte realmente explicativa da ciência Qual o método próprio desta última A maior parte dos sociólogos acredita ter explicado os fenômenos uma vez que mostrou para que eles servem e que papel desempenham Raciocinase como se tais fenômenos só existissem em função desse papel e não tivessem outra causa determinante além do sentimento claro ou confuso dos serviços que são chamados a prestar Por isso julgase ter dito tudo o que é necessário para tornálos inteligíveis quando se estabeleceu a realidade desses serviços e se mostrou a que necessidade social eles satisfazem Assim Comte reduz toda a força progressiva da espécie humana à tendência fundamental que impeles diretamente o homem a melhorar sempre e sob todos os aspectos sua condição seja ela qual for e Spencer à necessidade de uma maior felicidade É em virtude desse princípio que ele explica a formação da sociedade pelas vantagens que resultam da cooperação a instituição do governo pela utilidade que há em regularizar a cooperação militar as transformações pelas quais passou á família pela necessidade de conciliar cada vez mais perfeitamente os interesses dos pais dos filhos e da sociedade Mas esse método confunde duas questões muito diferentes Mostrar em que um fato é útil não é explicar como ele surgiu nem como ele é o que é Pois os usos a que serve supõem as propriedades específicas que o caracterizam mas não o criam A necessidade que temos das coisas não pode fazer que elas sejam deste ou daquele jeito e conseqüentemente não é essa necessidade que pode tirálas do nada e conferirlhes o ser É a causas de um outro gênero que elas devem sua existência O sentimento que temos da utilidade que elas apresentam pode muito bem nos incitar a pôr em ação essas causas e a obter os efeitos que elas implicam não a suscitar do ciada esses efeitos Essa proposição é evidente quando se trata apenas dos fenômenos materiais ou mesmo psicológicos Ela tampouco seria contestada em sociologia se os fatos sociais por causa de sua extrema imaterialidade não nos parecessem erradamente destituídos de toda realidade intrínseca Como neles se vêem apenas combinações puramente mentais parece que devem se produzir espontaneamente tão logo os concebemos desde que os consideremos úteis Mas visto que cada um desses fatos é uma força e essa força domina a nossa visto que cada um tem uma natureza que lhe é própria ter desejo ou vontade deles não poderia ser suficiente para conferirLhes existência É preciso também que forças capazes de produzir essa força determinada que naturezas capazes de produzir essa natureza especial sejam dadas Somente em tal condição o fato social será possível Para reanimar o espírito da família onde ele se acha enfraquecido não basta que todos compreendam as vantagens disso é preciso fazer agir diretamente as causas que são as únicas capazes de engendrálo Para devolver a um governo a autoridade que lhe é necessária não basta sentir a necessidade disso é preciso recorrer às únicas fontes de que deriva toda autoridade ou seja constituir tradições um espírito comum etc para tanto é preciso também remontar mais acima na cadeia das causas e dos efeitos até se encontrar um ponto em que a ação do homem possa se inserir eficazmente O que mostra bem a dualidade dessas duas ordens de pesquisas é que um fato pode existir sem servir a nada seja porque jamais esteve ajustado a algum fim vital seja porque após ter sido útil perdeu toda utilidade e continuou a existir pela simples força do hábito Com efeito há bem mais sobrevivências na sociedade do que no organismo Há casos inclusive em que uma prática ou uma instituição social mudam de funções sem por isso mudar de natureza A regra is pater est quem justae nuptiae declaram é pai aquele que as núpcias indicam permaneceu materialmente em nosso Código tal como existia no velho direito romano Mas se essa regra tinha então por objeto salvaguardar os direitos de propriedade do pai sobre os filhos provenientes da esposa legítima é antes o direito dos filhos que ela protege hoje O juramento começou por ser uma espécie de prova judiciária para tornarse apenas uma forma solene e imponente do testemunho Os dogmas religiosos do cristianismo continuam os mesmos há séculos mas o papel que desempenham em nossas sociedades modernas não é mais o mesmo que na Idade Média É assim ainda que as palavras servem para exprimir idéias novas sem que sua contextura se modifique De resto é uma proposição verdadeira tanto em sociologia como em biologia que o órgão é independente da função ou seja que pode servir a fins diferentes embora permaneça o mesmo Portanto as causas que o fazem existir são independentes dos fins aos quais ele serve Não queremos dizer aliás que as tendências as necessidades os desejos dos homens jamais intervenham de maneira ativa na evolução social Ao contrário certamente lhes é possível conforme a maneira como agem sobre as condições de que depende um fato acelerar ou conter o desenvolvimento deste Só que além de não poderem em caso nenhum tirar alguma coisa do nada sua própria intervenção sejam quais forem os efeitos dela só pode ocorrer em virtude de causas eficientes De fato mesmo nessa medida restrita uma tendência só pode concorrer para a produção de um fenômeno novo se ela própria for nova quer se tenha constituído a partir de zero quer seja devida a alguma transformação de uma tendência anterior Pois a menos que se postule uma harmonia preestabelecida verdadeiramente providencial não se poderia admitir que desde a origem o homem trouxesse em si em estado virtual mas inteiramente prontas para despertar com o concurso das circunstâncias todas as tendências cuja oportunidade haveria de se fazer sentir na seqüência da evolução Ora uma tendência é também uma coisa ela não pode portanto se constituir nem se modificar pelo simples fato de a julgarmos útil É uma força que tem sua natureza própria para que essa natureza seja suscitada ou alterada não basta que nela encontremos alguma vantagem Para determinar tais mudanças é preciso que atuem causas que as impliquem fisicamente Por exemplo explicamos os progressos constantes da divisão do trabalho social ao mostrar que eles são necessários para que o homem possa se manter nas condições novas de existência nas quais se vê colocado à medida que avançaria história atribuímos portanto a essa tendência que muito impropriamente é chamada de instinto de conservação um papel importante em nossa explicação Mas em primeiro lugar ela não poderia por si só explicar a especialização mesmo a mais rudimentar Pois ela nada pode se as condições de que depende esse fenômeno não estiverem já realizadas isto é se as diferenças individuais não tiverem aumentado suficientemente em conseqüência da indeterminação progressiva da consciência comum e das influências hereditárias3 Inclusive foi preciso que a divisão do trabalho já tivesse começado a existir para que sua utilidade fosse percebida e sua necessidade se fizesse sentir e somente o desenvolvimento das divergências individuais ao implicar uma maior diversidade de gostos e de aptidões haveria necessariamente de produzir esse primeiro resultado Além disso não foi por si mesmo e sem causa que o instinto de conservação veio fecundar esse primeiro germe de especialização Se ele se orientou e nos orientou nesse novo caminho foi em primeiro lugar porque o caminho que ele seguia e nos fazia seguir anteriormente se viu como que barrado pois a intensidade maior da luta devida à maior condensação das sociedades tornou cada vez mais difícil a sobrevivência dos indivíduos que continuavam a se dedicar a tarefas gerais Foi assim necessário mudar de direção Por outro lado se esse instinto faz uma volta e virou principalmente nossa atividade no sentido de uma divisão do trabalho sempre mais desenvolvida é porque esse era também o sentido da menor resistência As outras soluções possíveis eram a emigração o suicídio o crime Ora na média dos casos os laços que nos ligam a nosso país à vida a simpatia que temos por nossos semelhantes são sentimentos mais fortes e mais resistentes que os hábitos capazes de nos afastar de uma especialização mais estreita São esses últimos portanto que haveriam necessariamente de ceder a cada nova arremetida Assim não se cai nem mesmo parcialmente no finalismo pelo fato de se aceitar dar um lugar às necessidades humanas nas explicações sociológicas Pois estas só podem ter influência sobre a evolução social se elas próprias evoluírem e as mudanças que elas atravessam só podem ser explicadas por causas que nada têm de final Mas o que é mais convincente ainda que as considerações que precedem é a prática mesma dos fatos sociais Lá onde reina o finalismo reina também uma contingência maior ou menor pois não existem fins e muito menos meios que se imponham necessariamente a todos os homens ainda que os suponhamos situados nas mesmas circunstâncias Sendo dado um mesmo ambiente cada indivíduo conforme seu humor adaptase a ele à sua maneira que ele prefere a qualquer outra Um procurará modificálo para colocálo em harmonia com suas necessidades outro preferirá modificar a si mesmo e moderar seus desejos Para chegar a um mesmo objetivo quantos caminhos podem ser e são efetivamente seguidos Portanto se fosse verdade que o desenvolvimento histórico se fez em vista de fins claramente ou obscuramente sentidos os fatos sociais deveriam apresentar a mais infinita diversidade e qualquer comparação haveria de ser quase impossível Ora o contrário é que é a verdade Claro que os acontecimentos exteriores cuja trama constitui a parte superficial da vida social variam de um povo a outro Mas é assim que cada indivíduo tem sua história embora as bases da organização física e moral sejam as mesmas em todos Na verdade quando entramos um pouco em contato com os fenômenos sociais surpreendemonos ao contrário com a espantosa regularidade com que estes se reproduzem nas mesmas circunstâncias Mesmo as práticas mais minuciosas e aparentemente mais pueris repetemse com a mais espantosa uniformidade Uma cerimônia nupcial que parece puramente simbólica como o rapto da noiva verificase exatamente em toda parte em que há certo tipo familiar ligado ele próprio a toda uma organização política Os costumes mais bizarros como a couvade o levirato a exogamia etc observamse nos povos mais diversos e são sintomáticos de certo estado social O direito de testar aparece numa fase determinada da história e a partir das restrições mais ou menos consideráveis que o limitam podese dizer em que momento da evolução social nos encontramos Seria fácil multiplicar os exemplos Ora ria inexplicável essa generalidade das formas coletivas sese as causas finais tivessem em sociologia a preponderância que se atribui a elas Portanto quando se procura explicar um fenômeno social é preciso pesquisar separadamente a causa eficiente que o produz e a função que ele cumpre Servimonos da palavra função de preferência às palavras fim ou objetivo precisamente porque os fenômenos sociais não existem de modo geral tendo em vista os resultados úteis que produzem O que é preciso determinar é se há correspondência entre o fato considerado e as necessidades gerais do organismo social e em que consiste essa correspondência sem se preocupar em saber se ela foi intencional ou não Todas as questões de intenção aliás são demasiado subjetivas para poderem ser tratadas cientificamente Essas duas ordens de problemas não apenas devem ser separadas mas convém em geral tratar a primeira antes da segunda Esta ordem com efeito corresponde à dos fatos É natural investigar a causa de um fenômeno antes de tentar determinar seus efeitos Esse método é ainda mais lógico porquanto a primeira questão uma vez resolvida ajudará a resolver a segunda De fato o laço de solidariedade que une a causa ao efeito tem um caráter de reciprocidade que não foi suficientemente reconhecido Certamente o efeito não pode existir sem sua causa mas esta por sua vez tem necessidade de seu efeito É dela que o efeito tira sua energia mas ele também lha restitui eventualmente e em vista disso não pode desaparecer sem que ela disso se ressinta Por exemplo a reação social que constitui a pena é devida à intensidade dos sentimentos coletivos que o crime ofende mas por outro lado ela tem por função útil manter esses sentimentos no mesmo grau de intensidade pois estes não tardariam a se debilitar se as ofensas que sofrem não fossem castigadas Do mesmo modo à medida que o meio social tornase mais complexo e mais móvel as tradições e as crenças estabelecidas são abaladas adquirem um caráter mais indeterminado e mais flexível e as faculdades de reflexão se desenvolvem mas essas mesmas faculdades são indispensáveis para as sociedades e os indivíduos se adaptarem a um meio mais móvel e mais complexo À medida que os homens sào obrigados a fornecer um trabalho mais intenso os produtos desse trabalho tornamse mais numerosos e de melhor qualidade mas esses produtos mais abundantes e melhores são necessários para reparar o desgaste ocasionado por esse trabalho mais consideráveh Assim longe de a causa dos fenômenos sociais consistir numa antecipação mental da função que eles são chamados a desempenhar essa função consiste ao contrário pelo menos num bom número de casos em manter a causa preexistente da qual eles derivam portanto descobriremos mais facilmente a primeira se a segunda já for conhecida Mas ainda que só em segundo lugar devamos proceder à determinação da função ela não deixa de ser necessária para que a explicação do fenômeno seja completa Com efeito se a utilidade do fato não é aquilo que o faz existir em geral é preciso que ele seja útil para poder se manter Pois para ser prejudicial é suficiente que ele não tenha serventia uma vez que nesse caso ele custa sem produzir benefício algum Portanto se a generalidade dos fenômenos sociais tivesse esse caráter parasitário o orçamento do organismo estaria em déficit a vida social seria impossível Em conseqüência para proporcionar desta uma compreensão satisfatória é necessário mostrar como os fenômenos que formam sua substância concorrem entre si de maneira a colocar a sociedade em harmonia consigo mesma e com o exterior Certamente a fórmula usual que define a vida como uma correspondência entre o meio interno e o meio externo é apenas aproximada no entanto ela é verdadeira em geral e portanto para explicar um fato de ordem vital não basta explicar a causa da qual ele depende é preciso também ao menos na maior parte dos casos encontrar a parte que lhe cabe no estabelecimento dessa harmonia geral Distinguidas essas duas questões devemos determinar o método pelo qual elas devem ser resolvidas Ao mesmo tempo que é finalista o método seguido geralmente pelos sociólogos é essencialmente psicológico Essas duas tendências são solidárias uma da outra De fato se a sociedade não é senão um sistema de meios instituídos pelos homens tendo em vista certos fins esses fins só podem ser individuais pois antes da sociedade não podia haver senão indivíduos É portanto do indivíduo que emanam as idéias e as necessidades que determinaram a formação das sociedades e se é dele que tudo procede é necessariamente por ele que tudo deve se explicar Aliás não há nada na sociedade senão consciências particulares é nestas últimas portanto que se acha a fonte de toda a evolução social Por conseguinte as leis sociológicas só poderãoser um corolário das leis mais gerais da psicologia a explicação suprema da vida coletiva consistirá em mostrar como ela decorre da natureza humana em geral seja por dedução direta e sem observação prévia seja por associação à natureza humana depois de feita a observação Esses termos são mais ou menos textualmente os que Augusto Comte utiliza para caracterizar seu método Uma vez diz ele que o fenômeno social concebido em totalidade não é no fundo senão um simples desenvolvimento da humanidade sem nenhuma criarão de faculdades quaisquer tal como estabeleci anteriormente todas as disposições efetivas que a observação sociológica puder sucessivamente revelar deverão portanto se verificar pelo menos em germe nesse tipo primordial que a biologia construiu de antemão para a sociologia É que o fato dominante da vida social segundo ele é o progresso e por outro lado o progresso depende de um fator exclusivamente psíquico a saber a tendência que leva o homem a desenvolver cada vez mais sua natureza Os fatos sociais derivariam inclusive tão imediatamente da natureza humana que nas primeiras fases da história poderiam ser diretamente deduzidos sem necessidade de recorrer à observação9 É verdade que como Comte reconhece é impossível aplicar esse método dedutivo aos períodos mais avançados da evolução Mas essa impossibilidade é puramente prática Devese ao fato de a distância entre o ponto de partida e o ponto de chegada ser muito grande para que o espírito humano se resolvesse percorrêla sem guia não corresse o risco de se extraviaria Mas a relação entre as leis fundamentais da natureza humana e os resultados últimos do progresso não deixa de ser analítica As formas mais complexas da civilização não são senão vida psíquica desenvolvida Assim ainda que as teorias da psicologia não sejam suficientes como premissas ao raciocínio sociológico elas são a pedra de toque capaz de provar sozinha a validade das proposições indutivamente estabelecidas Nenhuma lei de sucessão social diz Comte indicada pelo método histórico mesmo com toda a autoridade possível deverá ser finalmente admitida senão após ter sido racionalmente ligada de uma maneira direta ou indireta mas sempre incontestável à teoria positiva da natureza humana Portanto é sempre a psicologia que terá a última palavra Tal é igualmente o método seguido por Spencer Segundo ele os dois fatores primários dos fenômenos sociais são o meio cósmico e a constituição física e moral do indivíduoi Ora o primeiro não pode ter influência sobre a sociedade a não ser através do segundo que acaba sendo assim o motor essencial da evolução social Se a sociedade se forma é para permitir ao indivíduo realizar sua natureza e todas as transformações pelas quais ela passou não têm como único objeto tornar essa realização mais fácil e mais completa É em virtude desse princípio que atytes de proceder a alguma pesquisa sobre a organização social Spencer acreditou dever dedicar todo o primeiro tomo de seus Princípios de sociologia ao estudo do homem primitivo físico emocional e intelectual A ciência da sociologia diz ele parte das unidades sociais submetidas às condições que vimos constituídas física emocional e intelectualmente e de posse de certas idéias cedo adquiridas e dos sentimentos correspondentes E é nestes dois sentimentos o temor dos vivos e o temor dos mortos que ele encontra a origem do governo político e do governo religioso Ele admite é verdade que uma vez formada a sociedade reage sobre os indivíduos Mas disso não se segue que ela tenha o poder de engendrar diretamente o menor fato social ela não tem eficácia causal desse ponto de vista a não ser por intermédio das mudanças que determina no indivíduo Portanto é sempre da natureza humana seja primitiva seja derivada que tudo decorre Aliás a ação que o corpo social exerce sobre seus membros nada pode ter de específico já que os fins políticos nada são em si mesmos sendo uma simples expressão resumida dos fins individualista Ela só pode ser portanto uma espécie de retomo da atividade privada a si própria Sobretudo não se percebe em que pode consistir tal ação nas sociedades industriais que têm precisamente por objeto restituir o indivíduo a si mesmo e a seus impulsos naturais desembaraçandoo de toda coerção social Tal princípio não está apenas na base dessas grandes doutrinas de sociologia geral ele inspira igualmente um número muito grande de teorias particulares É assim que se explica a organização doméstica pelos sentimentos a que os pais têm em relação aos filhos e os segundos aos primeiros a instituição do casamento pelas vantagens que apresenta para os esposos e sua descendência a pena pela cólera provocada no indivíduo por toda lesão grave a seus interesses Toda a vida econômica tal como a concebem e a explicam os economistas sobretudo os da escola ortodoxa depende em última instância deste fator puramente individual o desejo de riqueza Tratase de explicar a moral Fazse dos deveres do indivíduo para consigo mesmo a base da ética A religião Vêse nela um produto das impressões que as grandes forças da natureza ou certas personalidades eminentes despertam no homem etc Mas tal método só é aplicável aos fenômenos sociológicos desnaturando os Para ter a prova disso basta reportarse à definição que demos desses fenômenos Visto que sua característica essencial consiste no poder que eles têm de exercer de fora uma pressão sobre as consciências individuais concluise que eles não derivam destas e por conseguinte a sociologia não é um corolário da psicologia Esse poder coercitivo testemunha que eles exprimem uma natureza diferente da nossa uma vez que só penetram em nós pela força ou pelo menos pesando mais ou menos sobre nós Se a vida social fosse apenas um prolongamento do ser individual não a veríamos remontar deste modo à sua fonte e invadiIa impetuosamente Se a autoridade diante da qual se inclina o indivíduo quando este age sente ou pensa socialmente o domina a tal ponto concluise que ela é um produto de forças que o superam e que ele não poderia conseqüentemente explicar Não é dele que pode provir essa pressão exterior que ele sofre portanto não é o que se passa dentro dele que pode explicála É verdade que não somos incapazes de coagir a nós mesmos podemos conter nossas tendências nossos hábitos até mesmo nossos instintos e deter seu desenvolvimento por um ato de inibição Mas os movimentos inibidores não poderiam ser confundidos com aqueles que constituem a coerção social O processo dos primeiros é centrífugo o dos segundos centrípeto Uns são elaborados na consciência individual e tendem em seguida a exteriorizarse outros são primeiramente exteriores ao indivíduo e tendem em seguida a modelá lo desde fora à sua imagem A inibição se quiserem é o meio pelo qual a coerção social produz seus efeitos psíquicos ela não é essa coerção Ora descartado o indivíduo resta apenas a sociedade é portanto na natureza da própria sociedade que se deve buscar a explicação da vida social Como ela supera infinitamente o indivíduo tanto no tempo como no espaço concebese com efeito que seja capaz de imporlhe as maneiras de agir e de pensar que consagrou por sua autoridade Essa pressão sinal distintivo dos fatos sociais é aquela que todos exercem sobre cada um Mas dirão visto que os únicos elementos de que é formada a sociedade são indivíduos a origem primeira dos fenômenos sociológicos só pode ser psicológica Raciocinando deste modo podese também facilmente estabelecer que os fenômenos biológicos se explicam analiticamente pelos fenômenos inorgânicos Com efeito é bastante certo que na célula viva há apenas moléculas de matéria bruta Só que estas se encontram ali associadas e essa associação é que é a causa dos fenômenos novos que caracterizam a vida e cujo germe é impossível descobrir em qualquer um dos elementos associados Um todo não é idêntico à soma de suas partes ele é alguma outra coisa cujas propriedades diferem daquelas que apresentam as partes de que é formado A associação não é como se acreditou algumas vezes um fenômeno por si mesma estéril que consiste simplesmenteem colocar em relações exteriores fatos realizados e propriedades constituídas Não é ela ao contrário a fonte de todas as novidades que se produziram sucessivamente no curso da evolução geral das coisas Que diferenças existem entre os organismos inferiores e os demais entre o ser vivo organizado e o simples plastídio entre este e as moléculas inorgânicas que o compõem senão diferenças de associação Todos esses seres em última análise decompõemse em elementos da mesma natureza mas esses elementos são aqui justapostos ali associados aqui associados de uma maneira ali de outra É lícito inclusive perguntar se essa lei não penetra até o mundo mineral e se as diferenças que separam os corpos inorganizados não têm a mesma origem Em virtude desse princípio a sociedade não é úma simples soma de indivíduos mas o sistema formado pela associação deles representa uma realidade específica que tem seus caracteres próprios Certamente nada de coletivo pode se produzir se consciências particulares não são dadas mas essa condição necessária não é suficiente É preciso também que essas consciências estejam associadas combinadas e combinadas de certa maneira dessa combinação que resulta a vida social e por conseguinte é essa combinação que a explica Ao se agregarem ao se penetrarem ao se fundirem as almas individuais dão origem a um ser psíquico se quiserem mas que constitui uma individualidade psíquica de um gênero novo Portanto é na natureza dessa individualidade não na das unidades componentes que se devem buscar as causas próximas e de terminantes dos fatos que nela se produzem O grupo pensa sente e age de maneira bem diferente do que o fariam seus membros se estivessem isolados Assim se partirmos desses últimos nada poderemos compreender do que se passa no grupo Em uma palavra há entre a psicologia e a sociologia a mesma solução de continuidade que entre a biologia e as ciências físicoquímicas Em conseqüência toda vez que um fenômeno social é diretamente explicado por um fenômeno psíquico podese ter a certeza de que a explicação é falsa Responderão talvez que se a sociedade uma vez formada é de fato a causa próxima dos fenômenos sociais as causas que determinaram sua formação são de natureza psicológica Concedem que quando os indivíduos estão associados sua associação pode dar origem a uma vida nova mas dirão que ela só pode ocorrer por razões individuais Todavia em realidade por mais longe que se remonte na história o fato da associação é o mais obrigatório de todos pois ele é a fonte de todas as outras obrigações Por meu nascimento estou obrigatoriamente ligado a um povo determinado Dizse que daí por diante uma vez adulto dou minha aquiescência a essa obrigação pelo simples fato de continuar a viver em meu país Mas que importa Essa aquiescência não retira ao fato seu caráter imperativo Uma pressão aceita e suportada de boa vontade não deixa de ser uma pressão Aliás qual pode ser a importância de tal adesão Em primeiro lugar ela é forçada pois na imensa maioria dos casos nos é material e moralmente impossível despojarnos de nossa nacionalidade tal mudança e inclusive considerada geralmente uma apostasia Em segundo lugar ela não pode concernir ao passado que não pôde ser consentido e que no entanto determina o presente eu não quis a educação que recebi ora é ela que mais do que qualquer outra causa me fixa ao solo natal Enfim ela não poderia ter valor moral em relação ao futuro na medida em que este é desconhecido Nem sequer conheço todos os deveres que podem me incumbir um dia ou outro em minha qualidade de cidadão como poderia eu aquiescer a eles de antemão Ora tudo o que é obrigatório conforme demonstramos tem sua fonte fora do indivíduo Assim enquanto não sairmos da história o fato da associação apresentará o mesmo caráter que os demais e conseqüentemente explicase da mesma maneira Por outro lado como todas as sociedades nasceram de outras sociedades sem solução de continuidade podemos estar certos de que no curso de toda a evolução social não houve um momento em que os indivíduos tenham realmente necessitado deliberar para saber se entrariam ou não na vida coletiva e se nesta e não naquela Para que a questão pudesse se colocar seria preciso remontar até as origens primeiras de toda sociedade Mas as soluções sempre duvidosas que podem ser dadas a tais problemas de modo nenhum poderiam afetar o método segundo o qual devem ser tratados os fatos dados na história Não precisamos portanto discutiIas Mas seria um estranho equívoco sobre nosso pensamento se do que precede tirassem a conclusão de que a sociologia para nós deve ou mesmo pode fazer abstração do homem e de suas faculdades Ao contrário não há dúvida de que os caracteres gerais da natureza humana entram no trabalho de elaboração de que resulta a vida social Só que não são eles que a suscitam nem que lhe dão sua forma especial eles apenas a tornam possível As representações as emoções as tendências coletivas não têm por causas geradoras certos estados da consciência dos indivíduos mas sim as condições em que se encontra o corpo social em seu conjunto Certamente estas só podem se realizar se as naturezas individuais não forem refratárias a elas mas as naturezas individuais são apenas a matéria indeterminada que o fator social determina e transforma Sua contribuição consiste exclusivamente em estados muito gerais em predisposições vagas e por conseguinte plásticas que por si mesmas não poderiam adquirir as formas definidas e complexas que caracterizam os fenômenos sociais se outros agentes não interviessem Que abismo por exemplo entre os sentimentos que o homem experimenta diante de forças superiores à sua e a instituição religiosa com suas crenças suas práticas tão variadas e complicadas sua organização material e moral entre as condições psíquicas da simpatia que dois seres do mesmo sangue sentem um pelo outrols e esse emaranhado de regras jurídicas e morais que determinam a estrutura da família as relações das pessoas entre si das coisas com as pessoas etc Vimos que mesmo quando a sociedade se reduz a uma multidão não organizada os sentimentos coletivos que nela se formam podem não apenas não se assemelhar mas ser opostos à média dos sentimentos individuais Quão mais considerável ainda deve ser a distância quando a pressão que o indivíduo sofre é a de uma sociedade regular na qual se acrescenta à ação dos contemporâneos a das gerações anteriores e da tradição Uma explicação puramente psicológica dos fatos sociais só pode portanto deixar escapar tudo o que eles têm de específico isto é de social O que mascarou aos olhos de tantos sociólogos a insuficiência desse métod é que frèqüentemente tomando 0 efeito pela causa lhes ocorreu atribuir como condições determinantes dos fenômenos sociais certos estados psíquicos relativamente definidos e especiais mas que na verdade são a conseqüência deles Assim considerouse inato no homem certo sentimento de religiosidade um certo mínimo de ciúme sexual de piedade filial de amor paterno etc e deste modo se quis explicar a religião o casamento a família Mas a história mostra que essas inclinações longe de serem inerentes à natureza humana ou estão totalmente ausentes em certas circunstâncias sociais ou de uma sociedade a outra apresentam tais variações que o resíduo obtido ao se eliminarem todas essas diferenças o único a poder ser considerado como de origem psicológica se reduz a algo vago e esquemático que deixa a uma distância infinita os fatos a serem explicados É que esses sentimentos longe de serem a base da organização coletiva resultam dela Inclusive não está de todo provado que a tendência à sociabilidade tenha sido desde a origem um instinto congênito ao gênero humano É muito mais natural ver nele um produto da vida social que lentamente se organizou em nós pois é um fato de observação que os animais são sociáveis ou não conforme as disposições de seus hábitats os obriguem à vida em comum ou dela os afastem E cabe ainda acrescentar que mesmo entre essas inclinações mais determinadas e a realidade social a distância permanece considerável Existe aliás um meio de isolar mais ou menos completamente o fator psicológico de maneira a poder precisar a extensão de sua ação é saber de que forma a raça afeta a evolução social Com efeito os caracteres étnicos são de ordem orgânicopsíquica A vida social deve portanto variar quando eles variam se os fenômenos psicológicos tiverem sobre a sociedade a eficácia causal que lhes atribuem Ora não conhecemos nenhum fenômeno social que esteja colocado sob a dependência inconteste da raça Certamente não poderíamos atribuir a essa proposição o valor cie uma lei mas podemos pelo menos afirmála como um fato constante de nossa prática Formas de organização as mais diversas verificamse em sociedades da mesma raça enquanto similitudes impressionantes observamse entre sociedades de raças diferentes A cidade existiu tanto entre os fenícios como entre os romanos e os gregos vemola em via de formação entre os cabilas A família patriarcal era quase tão desenvolvida entre os judeus quanto entre os hindus mas ela não se verifica entre os eslavos que não obstante são de raça ariana Em compensação o tipo familiar que aí se encontra também existe entre os árabes A família materna e o clã se observam em toda parte Certos detalhes das provas judiciárias das cerimônias nupciais são os mesmos nos povos mais dessemelhantes do ponto de vista étnico Se isso ocorre é porque a contribuição psíquica é demasiado geral para predeterminar o curso dos fenômenos sociais Como essa contribuição não implica que haja uma forma social e não outra ela não pode explicar nenhuma É verdade que há um certo número de fatos que se costuma atribuir à influência da raça É assim que se explica por exemplo por que o desenvolvimento das letras e das artes foi tão rápido e intenso em Atenas e tão lento e medíocre em Roma Mas essa interpretação dos fatos apesar de clássica jamais foi metodicamente demonstrada ela parece tirar quase toda a sua autoridade da mera tradição Não se examinou sequer se seria possível uma explicação sociológica dos mesmos fenômenos e estamos convencidos de que esta poderia ser tentada com sucesso Em suma quando se relaciona com tal rapidez o caráter artístico da civilização ateniense a faculdades estéticas congênitas procedese mais ou menos como fazia a Idade Média quando explicava o fogo pelo flogisto e os efeitos do ópio por sua virtude dormitava Enfim se realmente a evolução social tivesse sua origem na constituição psicológica do homem não se percebe como ela teria podido se produzir Pois então seria preciso admitir que ela tem por motor algum impulso interior à natureza humana Mas qual poderia ser esse impulso Seria aquela espécie de instinto de que fala Comte e que leva o homem a realizar cada vez mais sua natureza Mas isso é responder à pergunta com a pergunta e explicar o progresso por uma tendência inata ao progresso verdadeira entidade metafísica cuja existência de resto nada demonstra pois as espécies animais inclusive as mais elevadas de maneira nenhuma são movidas pela necessidade de progredir e mesmo entre as sociedades humanas há muitas que se comprazem em permanecer indefinidamente estacionárias Seria esse impulso como parece acreditar Spencer a necessidade de uma maior felicidade que as formas cada vez mais complexas da civilização estariam destinadas a realizar sempre mais completamente Seria preciso então estabelecer que a felicidade aumenta com a civilização e expusemos alhures todas as dificuldades que essa hipótese levantar Não é tudo Ainda que um ou outro desses dois postulados devesse ser admitido nem por isso o desenvolvimento histórico se tornaria inteligível pois a explicação resultante seria puramente finalista e mostramos mais acima que os fatos sociais assim como todos os fenômenos naturais não são explicados pelo simples fato de se mostrar que eles servem a algum fim Quando se provou que as organizações sociais cada vez mais elaboradas que se sucederam ao longo da história tiveram por efeito satisfazer sempre mais esta ou aquela de nossas inclinações fundamentais nem por isso se fez compreender como elas se produziram O fato de serem úteis não nos ensina o que as fez existir Ainda que se explicasse como chegamos a imaginálas traçando como que o plano antecipado capaz de nos representar os serviços que poderíamos esperar delas e o problema já é difícil o desejo do qual elas seriam assim óobjeto não teria a virtude de tirálas do nada Em uma palavra admitindose que essas inclinações são os meios necessários para atingir o objetivo perseguido a questão permanece inteira como isto é de que e através de que esses meios foram constituídos Chegamos portanto à regra seguinte A causa determinante de um fato social deve ser buscada entre os fatos sociais antecedentes e não entre os estados da consciência individual Por outro lado concebese facilmente que tudo o que precede se aplica tanto à determinação da função quanto à da causa A função de um fato social não pode ser senão social isto é ela consiste na produção de efeitos socialmente úteis Certamente pode ocorrer e acontece de fato que por via indireta o fato social sirva também ao indivíduo Mas esse resultado feliz não é sua razão de ser imediata Podemos portanto completar a proposição precedente dizendo A função de um fato social deve sempre ser buscada na relação que ele mantém com algum fim social Foi por terem os sociólogos ignorado freqüentente essa regra e considerado os fenômenos sociais de um ponto de vista demasiado psicológico que suas teorias afiguramse a numerosos espíritos excessivamente vagas vacilantes e distantes da natureza especial das coisas que eles crêem explicar O historiador em particular que vive na intimidáde da realidade social não pode deixar de sentir fortemente o quanto essas interpretações demasiado gerais são incapazes de coincidir com os fatos e certamente foi isso que produziu em parte a desconfiança que a história seguidamente demonstra em relação à sociologia O que não quer dizer por certo que o estudo dos fatos psíquicos não seja indispensável ao sociólogo Se a vida coletiva não deriva da vida individual uma e outra estão intimamente relacionadas se a segunda não pode explicar a primeira ela pode pelo menos facilitar sua explicação Conforme mostramos é incontestável em primeiro lugar que os fatos sociais são produzidos por uma elaboração sui generís de fatos psíquicos Além disso essa própria elaboração não deixa de ter analogia com a que se produz em cada consciência individual e que transforma progressivamente os elementos primários sensações reflexos instintos de que ela é originalmente constituída Não é sem razão que se pôde dizer do eu que ele próprio constituía uma sociedade tanto quanto o organismo ainda que de outrá maneira e os psicólogos há muito já mostraram a importância do fator associarão para a explicação da vida do espírito Uma cultura psicológica mais ainda que uma cultura biológica constitui portanto para o sociólogo uma propedêutica necessária mas ela só lhe será útil se ele libertarse dela após têla recebido e a superar completandoa por uma cultura especialmente sociológica É preciso que ele renuncie a fazer da psicologia de certo modo o centro de suas operações o ponto de partida e de chegada de suas incursões no mundo social e que se estabeleça no núcleo mesmo dos fatos sociais a fim de observálos de frente e sem intermediário solicitando à ciência do indivíduo apenas uma preparação geral e se preciso úteis sugestões Uma vez que os fatos de morfologia social são da mesma natureza que os fenômenos fisiológicos eles devem se explicar segundo a mesma regra que acabamos de enunciar Todavia de tudo o que precede resulta que eles desempenham um papel preponderante na vida coletiva e por conseguinte nas explicações sociológicas Com efeito se a condição determinante dos fenômenos sociais consiste como mostramos no fato mesmo da associação eles devem variar com as formas dessa associação isto é conforme as maneiras como são agrupadas as partes constituintes da sociedade Por outro lado já que o conjunto determinado que os elementos de toda natureza que entram na composição de uma sociedade formam por sua reunião constitui o meio interno dessa sociedade assim como o conjunto dos elementos anatômicos pela maneira como estão dispostos no espaço constitui o meio interno dos organismos poderemos dizer A origem primeira de todo processo social de alguma importância deve ser buscada na constituirão do meio social interno É possível até precisar ainda mais De fato os elementos que compõem esse meio são de dois tipos há coisas e pessoas Entre as coisas é preciso incluir além dos objetos materiais que são incorporados à sociedade os produtos da atividade social anterior o direito constituído os costumes estabelecidos os monumentos literários artísticos etc Mas é claro que não é nem de uns nem de outros que pode provir o impulso que determina as transformações sociais pois eles não contêm nenhuma capacidade motora Seguramente há que leválos em consideração nas explicações que tentarmos Com efeito eles pesam de alguma forma sobre a evolução social cuja velocidade e mesmo a direção variam conforme o que forem mas eles não possuem nada daquilo que é necessário para colocála em movimento Eles são a matéria sobre a qual se aplicam as forças vivas da sociedade mas por si mesmos não liberam nenhuma força viva Resta portanto como fator ativo o meio propriamente humano O esforço principal do sociólogo será portanto procurar descobrir as diferentes propriedades desse meio suscetíveis de exercer uma ação sobre o curso dos fenômenos sociais Até o presente encontramos duas séries de caracteres que correspondem de uma maneira eminente a essa condição o número das unidades sociais ou como dissemos também o volume da sociedade e o grau de concentração da massa ou o que denominamos a densidade dinâmica Por esta última palavra convém entender não o estreitamento puramente material do agregado que não pode ter efeito se os indivíduos ou melhor os grupos de indivíduos permanecem separados por vazios morais mas o estreitamento moral do qual o precedente não é senão o auxiliar e de maneira gritante geral a conseqüência A densidade dinâmica pode ser definida para um volume igual em função do número de indivíduos que estão efetivamente em relações não apenas comerciais mas morais ou seja que não apenas trocam serviços ou se fazem concorrência mas que vivem uma vida comum Pois como as relações puramente econômicas deixam os homens exteriores uns aos outros essas relações podem ser muito freqüentes sem com isso participarem da mesma existência coletiva Os negócios contratados por cima das fronteiras que separam os povos não fazem com que essas fronteiras não existam Ora a vida comum só pode ser afetada pelo número dos que nela colaboram eficazmente Por isso o que exprime melhor a densidade dinâmica de um povo é o grau de coalescência dos segmentos sociais Pois se cada agregado parcial forma um todo uma individualidade distinta separada das outras por uma barreira é porque a ação de seus membros em geral permanece aí localizada se ao contrário essas sociedades parciais se confundem todas no seio da sociedade total ou tendem a nela se confundir é porque na mesma medida o círculo da vida social se ampliou Quanto à densidade material se entendermos por isso não apenas o número de habitantes por unidade de superfície mas o desenvolvimento das vias de comunicação e de transmissão ela marcha ordinariamente no mesmo passo que a densidade dinâmica e em geral pode servir para medila Pois se as diferentes partes da população tendem a se aproximar é inevitável que elas abram caminhos que permitam essa aproximação e por outro lado só podem se estabelecer relações entre pontos distantes da massa social se essa distância não for um obstáculo isto é se ela de fato for suprimida Há no entanto exceções e incorreríamos em sérios erros se julgássemos sempre a concentração moral de uma sociedade com base no grau de concentração material que ela apresenta As estradas as vias férreas etc podem servir mais ao movimento dos negócios do que à fusão das populações que elas então só exprimem muito imperfeitamente É o caso da Inglaterra cuja densidade material é superior à da França e onde não obstante a coalescência dos segmentos é muito menos avançada como demonstra á persistência do espírito local e da vida regional Mostramos alhures como todo aumento no volume e na densidade dinâmica das sociedades ao tomar a vida social mais intensa ao estender o horizonte que cada indivíduo abarca com seu pensamento e preenche com sua ação modifica profundamente as condições fundamentais da existência coletiva Não precisamos falar de novo da aplicação que fizemos então desse princípio Acrescentemos apenas que ele nos serviu para tratar não somente a questão ainda muito geral que era o objeto daquele estudo mas muitos outros problemas mais específicos e que pudemos assim verificar sua exatidão por um número já respeitável de experiências Todavia estamos longe de pensar ter descoberto todas as particularidades do meio social suscetíveis de desempenhar um papel na explicação dos fatos sociais Tudo o que podemos dizer é que essas são as únicas que percebemos e que não fomos levados a buscar outras Mas essa espécie de preponderância que atribuímos ao meio social e mais particularmente ao meio humano não implica que se deva ver aí algo como um fato último e absoluto para além do qual não é preciso remontar É evidente ao contrário que o estado no qual se encontra esse meio a cada momento da história depende ele próprio de causas sociais algumas inerentes à própria sociedade enquanto outras se devem às ações e reações entre essa sociedade e suas vizinhas Aliás a ciência não conhece causas primeiras no sentido absoluto da palavra Para ela um fato é primário simplesmente quando for suficientemente geral para explicar um grande número de outros fatos Ora o meio social é certamente um fator desse gênero pois as mudanças que nele se produzem sejam quais forem suas causas repercutem em todas as direções do organismo social e não podem deixar de afetar em maior ou menor grau todas as suas funções O que acabamos de dizer do meio geral da sociedade pode ser dito dos meios específicos a cada um dos grupos particulares que ela encerra Por exemplo conforme a família for mais ou menos volumosa mais ou menos voltada para si mesma muito diferente será a vida doméstica Do mesmo modo se as corporações profissionais se organizarem de maneira a que cada uma delas se ramifique em toda a extensão do território em vez de permanecer encerrada como outrora nos limites de uma cidade a ação que irão exercer será muito diferente da que exerceram outrora De uma maneira mais geral a vida profissional será completamente diferente se o meio próprio a cada profissão for fortemente constituído ou se sua trama for frouxa como é hoje Todavia a ação desses meios particulares não poderia ter a importância do meio geral pois eles próprios submetemse à influência deste último É sempre a este que se deve voltar É a pressão que ele exerce sobre os grupos parciais que faz variar a constituição destes Tal concepção do meio social como fator determinante da evolução coletiva é da mais alta importância Pois se a rejeitarmos a sociologia será incapaz de estabelecer qualquer relação de causalidade De fato descartada essa ordem de causas não há condições concomitantes das quais possam depender os fenômenos sociais pois se o meio social externo isto é aquele formado pelas sociedades ao redor é suscetível de exercer alguma ação só a exerce sobre as funções que têm por objeto o ataque e a defesa além disso ele só pode fazer sentir sua influência por intermédio do meio social interno As principais causas do desenvolvimento histórico não estariam portanto entre as coisas circunfusas mas estariam todas no passado Elas próprias fariam parte desse desenvolvimento do qual constituiriam simplesmente fases mais antigas Os acontecimentos atuais da vida social derivariam não do estado atual da sociedade más dos acontecimentos anteriores dos precedentes históricos e as explicações sociológicas consistiriam exclusivamente em ligar o presente ao passado Isso pode parecer de fato suficiente Não se costuma dizer que a história tem precisamente por objeto encadear os acontecimentos segundo sua ordem de sucessão Mas é impossível conceber de que maneira o estado em que a civilização se encontra num momento dado poderia ser a causa determinante do estado seguinte As etapas que a humanidade percorre sucessivamente não se engendram umas às outras Compreendese bem que os progressos realizados numa época determinada na ordem jurídica econômica política etc tornem possíveis novos progressos mas em que os primeiros predeterminam os segundos Eles são um ponto de partida que permite ir mais adiante mas o que é que nos incita a ir mais adiante Seria preciso admitir então uma tendência interna que leva a humanidade a ultrapassar constantemente os resultados adquiridos seja para se realizar completamente seja para aumentar sua felicidade e o objeto da sociologia seria descobrir a ordem segundo a qual se desenvolveu essa tendência Mas sem voltar às dificuldades que semelhante hipótese implica a lei que exprime esse desenvolvimento nada teria de causal Uma relação de causalidade com efeito só pode se estabelecer entre dois fatos dados ora tal tendência que se supõe ser a causa desse desenvolvimento não é dada é apenas postulada e construída pelo espírito com base nos efeitos que se atribuem a ela Tratase de uma espécie de faculdade motora que imaginamos sob o movimento a fim de explicálo mas a causa eficiente de um movimento só pode ser um outro movimento não uma virtualidade desse gênero Portanto tudo o que obtemos experimentalmente aqui é uma série de mudanças entre as quais não existe vínculo causal O estado antecendente não produz o conseqüente mas a relação entre eles é exclusivamente cronológica Assim nessas condições toda previsão científica é impossível Podemos perfeitamente dizer como as coisas se sucederam até o presente não em que ordem elas se sucederão daqui por diante porque a causa de que supostamente dependem não é cientificamente determinada nem determinável Geralmente é verdade admitese que a evolução prosseguirá no mesmo sentido do passado mas isso em virtude de um simples postulado Nada nos garante que os fatos realizados exprimam de maneira bastante completa a natureza dessa tendência para que se possa prejulgar o termo a que ela aspira com base naqueles pelos quais passou sucessivamente Inclusive por que seria retilínea a direção que ela segue e imprime Eis aí de fato a razão de o número das relações causais estabelecidas pelos sociólogos ser tão restrito Com poucas exceções das quais Montesquieu é o mais ilustre exemplo a antiga filosofia da história limitouse unicamente a descobrir o sentido geral em que se orienta a humanidade sem procurar ligar as fases dessa evolução a alguma condição concomitante Por mais que Comte tenha prestado alguns grandes serviços à filosofia social os termos nos quais ele coloca o problema sociológico não diferem dos precedentes Assim sua famosa lei dos três estados nada possui de uma relação de causalidade ainda que fosse exata ela não é e não pode ser mais que empírica Tratase de uma visão sumária da história transcorrida do gênero humano É muito arbitrariamente que Comte considera o terceiro estado como o estado definitivo da humanidade Quem nos diz que não surgirá outro no futuro Do mesmo modo a lei que domina a sociologia de Spencer não parece ser de outra natureza Ainda que fosse verdade que tendemos atualmente a buscar nossa felicidade numa civilização industrial nada assegura que posteriormente não venhamos a buscála em outra parte Ora o que faz a generalidade e a persistência desse método é que na maioria das vezes se viu no meio social um meio pelo qual o progresso se realiza não a causa que o determina Por outro lado é igualmente em relação a esse mesmo meio que se deve medir o valor útil ou como dissemos a função dos fenômenos sociais Entre as mudanças de que é a causa servem aquelas que estão em relação com o estado no qual esse meio se encontra já que ele é a condição essencial da existência coletiva Também desse ponto de vista acreditamos a concepção que acabamos de expor é fundamental pois só ela permite explicar como o caráter útil dos fenômenos sociais pode variar sem no entanto depender de arranjos arbitrários Se dê fato representase a evolução histórica como movida por uma espécie de vis a tergo força propulsora que impele os homens para a frente já que uma tendência motora só pode ter um objetivo e apenas um não pode haver senão um ponto de referência em relação ao qual se calcula a utilidade ou a nocividade dos fenômenos sociais Disso resulta que só pode haver um único tipo de organização social perfeitamente adequado à humanidade e que as diferentes sociedades históricas são apenas aproximações sucessivas desse modelo único Não é necessário mostrar o quanto semelhante simplismo é hoje inconciliável com a variedade e a complexidade reconhecidas das formas sociais Se ao contrário a conveniência ou não das instituições só puder ser estabelecida em relação a um meio dado e corno esses meios são diversos haverá então uma diversidade de pontos de referência e por conseguinte de tipos que embora qualitativamente distintos uns dos outros estão todos igualmente fundados na natureza dos meios sociais A questão que acabamos de tratar está assim estreitamente vinculada à que diz respeito à constituição dos tipos sociais Se há espécies sociais é porque a vida coletiva depende antes de tudo de condições concomitantes que apresentam uma certa diversidade Se ao contrário as principais causas dos acontecimentos sociais estivessem todas no passado cada povo não seria mais que o prolongamento daquele que o precedeu e as diferentes sociedades perderiam sua individualidade para se tornarem apenas momentos diversos de um mesmo e único desenvolvimento Uma vez que por outro lado a constituição do meio social resulta do modo de composição dos agregados sociais e que essas duas expressões são elas próprias no fundo sinônimas temos agora a prova de que não há caracteres mais essenciais do que aqueles que atribuímos como base para a classificação sociológica Enfim devese compreender agora melhor do que antes o quanto seria injusto apoiarse nas palavras condições exteriores e meio para acusar nosso método e buscar as fontes da vida fora do que é vivo Muito pelo contrário as considerações que acabam de ser lidas resumemse na idéia de que as causas dos fenômenos sociais são internas à sociedade É antes a teoria que deriva a sociedade do indivíduo que se poderia justamente recriminar por querer tirar o interior do exterior já que ela explica o ser social por outra coisa que não ele mesmo e por querer tirar o mais do menos já que ela empreende deduzir o todo da parte Os princípios que precedem ignoram tão pouco 0 caráter espontâneo de todo vivente que se aplicados à biologia e à psicologia deverseá admitir que também a vida individual se elabora por inteiro no interior do indivíduo Do grupo de regras que acabam de ser estabelecidas resulta certa concepção da sociedade e da vida coletiva Sobre esse ponto duas teorias contrárias dividem os espíritos Para uns como Hobbes e Rousseau há solução de continuidade entre o indivíduo e a sociedade O homem é portanto naturalmente refratário à vida comum somente forçado pode resignarse a ela Os fins sociais não são simplesmente o ponto de encontro dos fins individuais são antes contrários a eles Assim para fazer o indivíduo buscar esses fins é necessário exercer sobre ele uma coerção e é na instituição e na organização dessa coerção que consiste por excelência a obra social Só que como o indivíduo é visto como a única e exclusiva realidade do reino humano essa organização que tem por objeto constrangêlo e contêlo não pode ser concebida senão como artificial Ela não está fundada na natureza uma vez que se destina a fazerlhe violência impedindoa de produzir suas conseqüências antisociais Tratase de uma obra de arte de uma máquina construída inteiramente pela mão dos homens e que como todos os produtos desse gênero é o que é apenas porque os homens a quiseram assim um decreto da vontade a criou um outro decreto pode transformála Nem Hobbes nem Rousseau parecem ter percebido tudo o que há de contraditório em admitir que o indivíduo seja ele próprio o autor de uma máquina que tem por tarefa essencial dominálo e constrangêlo ou pelo menos lhes pareceu que para fazer desaparecer essa contradição bastava dissimulála aos olhos daqueles que são suas vítimas pelo hábil artifício do pacto social Foi na idéia contrária que se inspiraram tanto os teóricos do direito natural quanto os economistas e mais recentemente Spencerzz Para eles a vida social é essencialmente espontânea e a sociedade uma coisa natural Mas se conferem a ela esse caráter não é porque lhe reconheçam uma natureza específica é porque encontram sua base na natureza do indivíduo Do mesmo modo que os precedentes pensadores eles não vêem na sociedade um sistema de coisas que exista pôr si mesmo em virtude de causas que lhe sejam específicas Mas enquanto aqueles a concebiam apenas como um arranjo convencional que nenhum vínculo prende à realidade e que se sustenta por assim dizer no ar estes lhe dão por base os instintos fundamentais do coração humano O homem tende naturalmente à vida política doméstica religiosa às trocas etc e é dessas inclinações naturais que deriva a organização social Em conseqüência sempre que for normal esta não tem necessidade de imporse Quando ela recorre à coerção é porque não é o que deve ser ou porque as circunstâncias são anormais Em princípio basta deixar as forças individuais desenvolveremse em liberdade para que elas se organizem socialmente Nenhuma dessas duas doutrinas é a nossa Certamente fazemos da coerção a característica de todo fato social Só que essa coerção não resulta de uma maquinaria mais ou menos engenhosa destinada a mascarar aos homens as armadilhas nas quais eles próprios se pegaram Ela simplesmente se deve ao fato de o homem estar em presença de uma força que o domina e diante da qual se curva mas essa força é natural Ela não deriva de um arranjo convencional que a vontade humana acrescentou completamente ao real ela provém das entranhas mesmas da realidade ê o produto necessário de causas dadas Assim para fazer o indivíduo submeterse a ela de boa vontade não é preciso recorrer a nenhum artifício basta fazêlo tomar consciência de seu estado de dependência e de inferioridade naturais quer ele faça disso uma representação sensível e simbólica pela religião quer chegue a formar uma noção adequada e definida pela ciência Como a superioridade que a sociedade tem sobre ele não é simplesmente física mas intelectual e moral ela nada tem a temer do livre exame contanto que deste se faça um justo emprego A reflexão fazendo o homem compreender o quanto o ser social é mais rico mais complexo e mais duradouro que o ser individual não pode deixar de revelarlhe as razões inteligíveis da subordinação que dele é exigida e dos sentimentos de apego e de respeito que o hábito fixou em seu coração Portanto somente uma crítica singularmente superficial poderia acusar nossa concepção da coerção social de reeditar as teorias de Hobbes e de Maquiavel Mas se contrariamente a esses filósofos dizemos que a vida social é natural não é por encontrarmos sua fonte na natureza do indivíduo é porque ela deriva diretamente do ser coletivo que é por si mesmo uma natureza sui generis é porque ela resulta dessa elaboração especial à qual estão submetidas as consciências particulares devido à sua associação e da qual se desprende uma nova forma de existênciaz Portanto se reconhecemos com uns que a vida social apresentase ao indivíduo sob o aspecto da coerção admitimos com os outros que ela é um produto espontâneo da realidade e o que liga logicamente esses dois elementos aparentemente contraditórios é que a realidade da qual ela emana supera o indivíduo Vale dizer que as palavras coerção e espontaneidade não têm em nossa terminologia o sentido que Hobbes confere à primeira e Spencer à segunda Em resumo à maior parte das tentativas que foram feitas para explicar racionalmente os fatos sociais pôdese objetar ou que elas faziam desaparecer toda idéia de disciplina social ou que só conseguiam manter essa idéia com o auxílio de subterfúgios mentirosos As regras que acabamos de expor permitiriam ao contrário fazer uma sociologia que visse no espírito de disciplina a condição essencial de toda vida em comum embora fundandoo na razão e na verdade REGRAS RELATIVAS À ADMINISTRAÇÃO DA PROVA Temos apenas um meio de demonstrar que um fenômeno é causa de outro comparar os casos em que eles estão simultaneamente presentes ou ausentes e examinar se as variações que apresentam nessas diferentes combinações de circunstâncias testemunham que um depende do outro Quando eles podem ser artificialmente produzidos pelo observador o método é a experimentarão propriamente dita Quando ao contrário a produção dos fatos não está à nossa disposição e só podemos aproximálos tais como se produziram espontaneamente o método empregado é o da experimentação indireta ou método comparativo Vimos que a explicarão sociológica consiste exclusivamente em estabelecer relações de causalidade quer se trate de ligar um fenômeno à sua causa quer ao contrário uma causa a seus efeitos úteis Uma vez que por outro lado os fenômenos sociais escapam evidentemente à ação do operador o método comparativo é o único que convém à sociologia É verdade que Comte não o considerou suficiente julgou necessário completálo por aquilo que ele chama o método histórico mas isso se deve à sua concepção particular das leis sociológicas Segundo Comte estas devem principalmente exprimir não relações definidas de causalidade mas o sentido em que se dirige a evolução humana em geral assim elas não podem ser descobertas com o auxílio da comparação pois para poder comparar as diferentes formas que um fenômeno social assume em diferentes povos é preciso têlo separado das séries temporais a que pertence Ora se se começa por fragmentar deste modo o desenvolvimento humano surge a impossibilidade de reencontrar sua seqüência Para chegar a ela não é por análises mas por ligas sínteses que convém proceder O que é preciso é aproximar uns dos outros e reunir numa mesma intuição de certo modo os estados sucessivos da humanidade de maneira a perceber o crescimento contínuo de cada disposição física intelectual moral e políticaTal é a razão de ser desse método que Comte chama histórico e que por conseguinte é desprovido de qualquer objeto tão logo se rejeitou a concepção fundamental da sociologia comtiana Também é verdade que Mill declara a experimentação mesmo indireta inaplicável à sociologia Mas o que já é suficiente para retirar de sua argumentação grande parte de sua autoridade é que ele a aplicava igualmente aos fenômenos biológicos e mesmo aos fatos físicoquímicos mais complexos ora hoje não é mais preciso demonstrar que a química e a biologia só podem ser ciências experimentais Portanto não há razão para que suas críticas sejam mais bem fundamentadas no que concerne à sociologia pois os fenômenos sociais distinguemsé dos precedentes apenas por uma maior complexidade Essa diferença pode de fato implicar que o emprego do raciocínio experimental em sociologia ofereça mais dificuldades ainda que nas outras ciências mas não se percebe por que ele seria radicalmente impossível nesse caso De resto toda a teoria de Mill repousa sobre um postulado que sem dúvida está ligado aos princípios fundamentais de sua lógica mas que está em contradição com todos os resultados da ciência Com efeito ele admite que nem sempre um mesmo conseqüente resulta de um mesmo antecedente mas que pode ser devido ora a uma causa ora a outra Essa concepção do vínculo causal retirandolhe toda determinação tornao praticamente inacessível à análise científica pois introduz tal complicação na trama das causas e dos efeitos que o espírito nela se perde sem retorno Se um efeito pode derivar de causas diferentes para saber o que o determina num conjunto de circunstâncias dadas a experiência teria de ser feita em condições de isolamento praticamente impossíveis sobretudo em sociologia Mas esse pretenso axioma da pluralidade das causas é uma negação do princípio de causalidade Certamente se supusermos com Mill que a causa e o efeito são abrolatamente heterogêneos que não há entre eles nenhuma relação lógica não há nada de contraditório em admitir que um efeito possa acompanhar ora uma causa ora outra Se a relação que une C a A é puramente cronológica ela não exclui uma outra relação do mesmo gênero que uniria C a B por exemplo Mas se ao contrário o vínculo causal tem algo de inteligível ele não poderia ser indeterminado a esse ponto Se ele consiste numa relação que resulta da natureza das coisas um mesmo efeito só pode manter essa relação com uma única causa pois não pode exprimir mais que uma só natureza Ora somente os filósofos puseram em dúvida a inteligibilidade da relação causal Para o cientista ela não se questiona ela é suposta pelo método da ciência Como explicar de outro modo o papel tão importante da dedução no raciocínio experimental assim como o princípio fundamental da proporcionalidade entre a causa e o efeito Quanto aos casos que são citados e nos quais se pretende observar uma pluralidade de causas para que eles fossem demonstrativos seria preciso ter estabelecido preliminarmente ou que essa pluralidade não é simplesmente aparente ou que a unidade exterior do efeito não recobre uma real pluralidade Quantas vezes aconteceu à ciência reduzir à unidade causas cuja diversidade à primeira vista parecia irredutível O próprio Stuart Mill dá um exemplo disso ao lembrar que segundo as teorias modernas a produção de calor pelo atrito pela percussão pela ação química etc deriva de uma mesma e única causa Inversamente quando se trata do efeito o cientista distingue com freqüência o que o vulgo confunde Para o senso comum a palavra febre designa uma mesma e única entidade mórbida para a ciência há uma quantidade de febres especificamente diferentes e a pluralidade das causas está em relação com a dos efeitos e se entre todas essas espécies nosológicas há não obstante algo em comum é que essas causas igualmente se confundem por alguns de seus caracteres É importante exorcizar esse princípio da sociologia sobretudo porque muitos sociólogos sofrem ainda sua influência e isso apesar de não fazerem objeção contra o emprego do método comparativo Assim costumase dizer que o crime pode ser igualmente produzido pelas mais diversas causas que o mesmo acontece com o suicídio com a pena etc Praticandose com esse espírito o raciocínio experimental por mais que se reúna um número considerável de fatos jamais se poderão obter leis precisas relações determinadas de causalidades Apenas se poderá atribuir vagamente um conseqüente mal definido a um grupo confuso e indefinido de antecedentes Portanto se quisermos empregar o método comparativo de maneira científica ou seja conformandose ao princípio de causalidade tal como ele se depreende da própria ciência deveremos tomar como base das comparações que instituímos a proposição seguinte A um mesmo efeito corresponde sempre uma mesma causa Assim para retomar os exemplos citados mais acima se o suicídio depende de mais de uma causa é porque em realidade há várias espécies de suicídios O mesmo acontece com o crime Em relação à pena ao contrário se se acreditou que ela se explicava da mesma forma por causas diferentes é porque não se percebeu o elemento comum que se verifica em todos esses antecedentes e em virtude do qual eles produzem seu efeito comum Contudo se os diversos procedimentos do método comparativo não são inaplicáveis à sociologia nem todos têm nela uma força igualmente demonstrativa O método dito dos resíduos se é que ele constitui uma forma de raciocínio experimental não tem por assim dizer nenhuma utilidade no estudo dos fenômenos sociais Além de só poder servir às ciências bastante avançadas uma vez que ele supõe já conhecidas um número importante de leis os fenômenos sociais são demasiado complexos para que num caso dado se possa exatamente suprimir o efeito de todas as causas menos uma A mesma razão torna dificilmente utilizáveis tanto 0 método de concordância como o de diferença Eles supõem com efeito que os casos comparados ou concordam só num ponto ou diferem num só Sem dúvida não há ciência que alguma vez tenha podido instituir experiências em que o caráter rigorosamente único de uma concordância ou de uma diferença fosse estabelecido de maneira irrefutável Jamais estamos seguros de não ter deixado escapar algum antecedente que concorda ou difere como o conseqüente ao mesmo tempo e da mesma maneira que o único antecedente conhecido Entretanto embora a eliminação absoluta de todo elemento adventício seja um limite ideal que não pode ser realmente atingido as ciências físicoquímicas e mesmo as ciências biológicas aproximamse bastante dele para que num grande número de casos a demonstração possa ser vista como praticamente suficiente Mas isso já não ocorre em sociologia devido à complexidade demasiado grande dos fenômenos acrescida da impossibilidade de qualquer experiência artificial Como não se poderia fazer um inventário ainda que só aproximadamente completo de todos os fatos que coexistem no interior de uma mesma sociedade ou que se sucederam ao longo de sua história jamais se pode estar seguro mesmo de maneira aproximada de que dois povos concordam ou diferem sob todos os aspectos exceto um As chances de deixar um fenômeno escapar são bem superiores às de não negligenciar nenhum Em conseqüência tal método de demonstração só pode dar origem a conjeturas que reduzidas a elas só são quase desprovidas de todo caráter científico Muito diferente é o que acontece com o método das variações concomitantes Com efeito para que ele seja demonstrativo não é necessário que todas as variações diferentes daquelas que se comparam tenham sido rigorosamente excluídas O simples paralelismo dos valores pelos quais passam os dois fenômenos contanto que tenha sido estabelecido num número suficiente de casos suficientemente variados é a prova de que existe entre eles uma relação Esse método deve esse privilégio ao fato de atingir a relação causal não a partir de fora como os precedentes mas a partir de dentro Ele não nos mostra simplesmente dois fatos que se acompanham ou que se excluem exteriormente4 de sorte que nada prova diretamente que estejam unidos por um vínculo interno ao contrário tais fatos nos são mostrados participando um do outro e de maneira contínua pelo menos no que diz respeito à sua quantidade Ora essa participação por si só é suficiente para demonstrar que eles não são estranhos um ao outro A maneira como um fenômeno se desenvolve exprime sua natureza para que dois desenvolvimentos se correspondam é preciso que haja também uma correspondência nas naturezas que eles maniféstam A concomitância constante é portanto por si mesma uma lei seja qual for o estado dos fenômenos que permaneceram fora da comparação Assim para invalidála não basta mostrar que ela é posta em xeque por algumas aplicações particulares do método de concordância ou de diferença seria atribuir a esse tipo de provas uma autoridade que ele não pode ter em sociologia Quando dois fenômenos variam regularmente tanto um como o outro é preciso manter essa relação ainda que em alguns casos um desses fenômenos se apresentasse sem o outro Pois pode ocorrer ou que a causa tenha sido impedida de produzir seu efeito pela ação de alguma causa contrária ou que ela se encontre presente mas sob uma forma diferente daquela anteriormente observada Sem dúvida é o caso de conferir como se diz de examinar os fatos de novo mas não de abandonar de vez os resultados de uma demonstração regularmente conduzida É verdade que as leis estabelecidas por esse procedimento nem sempre se apresentam de imediato sob a forma de relações de causalidade A concomitância pode ser devida não a um fenômeno ser a causa do outro mas a serem ambos efeitos de uma mesma causa ou então por existir entre eles um terceiro fenômeno intercalado mas despercebido que é o efeito do primeiro e a causa do segundo Os resultados a que esse método conduz têm portanto necessidade de ser interpretados Mas qual o método experimental que permite obter mecanicamente uma relação de causalidade sem que os fatos que ele egtabelece precisem ser elaborados pelo espírito Tudo o que importa é que essa elaboração seja metodicamente conduzida e eis aqui de que maneira se poderá procedera isso Em primeiro lugar procuraremos saber com o auxílio da dedução como um dos dois termos foi capaz de produzir o outro a seguir nos esforçaremos por verificar o resultado dessa dedução com o auxílio de experiências isto é de novas comparações Se a dedução é possível e a verificação bemsucedida poderemos considerar a prova como feita Se ao contrário não percebemos entre esses fatos nenhum vínculo direto sobretudo se a hipótese de semelhante vínculo contradiz leis já demonstradas sairemos em busca de um terceiro fenômeno dos quais os dois outros dependam igualmente ou que tenha podido servir de intermediário entre eles Por exemplo podese estabelecer da maneira mais certa que a tendência ao suicídio varia de acordo com a tendência à instrução Mas é impossível compreender como a instrução pode conduzir ao suicídio tal explicação está em contradição com as leis da psicologia A instrução sobretudo reduzida aos conhecimentos elementares não atinge senão as regiões mais superficiais da consciência ao contrário o instinto de conservação é uma de nossas tendências fundamentais Portanto este não poderia ser sensivelmente afetado por um fenômeno tão distante e de tão fraca repercussão Assim somos levados a perguntar se um e outro fatonão seriam a conseqüência de qm mesmo estado Essa causa comum é o enfraquecimento do tradicionalismo religioso que reforça ao mesmo tempo a necessidade de saber e a tendência ao suicídio Mas há outra razão que faz do método das variações concomitantes o instrumento por excelência das pesquisas sociológicas Com efeito mesmo quando as circunstâncias lhes são mais favoráveis os outros métodos só podem ser empregados proveitosamente se o número de fatos comparados for muito considerável Se não é possível encontrar duas sociedades que diferem ou que se assemelham apenas num ponto podese pelo menos constatar que dois fatos ou se acompanham ou se excluem de maneira muito geral Mas para que essa constatação tenha um valor científico é preciso que tenha sido feita um grande número de vezes seria preciso estar quase seguro de que todos os fatos foram passados em revista Ora não apenas um inventário tão completo é impossível mas também os fatos assim acumulados jamais podem ser estabelecidos com uma precisão suficiente justamente por serem demasiado numerosos Não apenas se corre o risco de omitir alguns essenciais e que contradizem os que são conhecidos mas também não se tem certeza de conhecer bem estes últimos Na verdade o que muitas vezes desacreditou os raciocínios dos sociólogos é que por terem empregado de preferência o método de concordância ou o de diferença sobretudo o primeiro eles se preocuparam mais em acumular documentos do que em criticálos e escolhêlos É assim que lhes acontece a todo momento colocar no mesmo plano as observações confusas e rápidas dos viajantes e os textos precisos da história Diante de tais demonstrações não apenas somos levados a afirmar que um único fato poderia ser suficiente para invalidálas mas também que os próprios fatos sobre os quais são estabelecidas nem sempre inspiram confiança O método das variações concomitantes não nos obriga nem a essas enumerações incompletas nem a essas observações superficiais Para que ele dê resultados poucos fatos são suficientes Tão logo se prova que em um certo número de casos dois fenômenos variam um de acordo com o outro podemos ter a certeza de estar em presença de uma lei Não tendo necessidade de ser numerosos os documentos podem ser escolhidos e mais do que isso estudados de perto pelo sociólogo que os emprega Portanto ele não só poderá como deverá tomar por objeto principal de suas induções as sociedades cujas crenças tradições costumes e direito se materializaram em monumentos escritos e autênticos Certamente ele não desdenhará as informações da etnografia não há fatos que possam ser desdenhados pelo cientista mas irá colocálas em seu verdadeiro lugar Em vez de fazer delas o centro de gravidade de suas pesquisas só as utilizará em geral como complemento daquelas que deve à história ou pelo menos se esforçará por confirmálas através destas últimas Assim ele não apenas circunscreverá com mais discernimento a extensão de suas comparações mas as conduzirá com mais crítica pois exatamente por se prender a uma ordem restrita deyfatos poderá controlálos com maior cuidado Claro que ele não precisa refazer a obra dos historiadores mas também não pode receber passivamente e indiscriminadamente as informações de que se serve Mas não se deve pensar que a sociologia esteja num estado de sensível inferioridade em face das outras ciências por não poder utilizar muito mais que um único procedimento experimental Esse inconveniente com efeito é compensado pela riqueza das variações que se oferecem espontaneamente às comparações do sociólogo e da qual não se encontra nenhum exemplo nos outros reinos da natureza As mudanças que ocorrem num organismo ao longo de uma existência individual são pouco numerosas e muito restritas as que podem ser provocadas artificialmente sem destruir a vida situamse também dentro de estreitos limites É verdade que outras mais importantes se produziram na seqüência da evolução zoológica mas elas só deixaram raros e obscuros vestígios e é ainda mais difícil descobrir as condições que as determinaram Ao contrário a vida social é uma série ininterrupta de transformações paralelas a outras transformações nas condições da existência coletiva e temos à nossa disposição não somente as que se relacionam a uma época recente pois um grande número daquelas pelas quais pass ám os povos desaparecidos também chegaram até nós Apesar de suas lacunas a história da humanidade é bem mais clara e completa que a das espécies animais Além disso existe uma quantidade de fenômenos sociais que se produzem em toda a extensão da sociedade mas que assumem formas diversas conforme as regiões as profissões as confissôes etc Tal é o caso por exemplo do crime cio suicídio da natalidade da nupcialidade da poupança etc Da diversidade desses meios especiais resultam para cada uma dessas ordens de fatos novas séries de variações além daquelas que a evolução histórica produz Portanto se o sociólogo não pode empregar com igual eficácia todos os procedimentos da pesquisa experimental o único método que ele deve utilizar quase com exclusão dos outros pode em suas mãos ser muito fecundo pois para fazêlo funcionar ele dispõe de recursos incomparáveis Mas esse método só produz os resultados que comporta se for praticado com rigor Nada se prova quando como acontece com freqüência apenas se mostra por exemplos mais ou menos numerosos que nesses casos esparsos os fatos variaram como previa a hipótese Dessas concordâncias esporádicas e fragmentárias não se pode tirar nenhuma conclusão geral Ilustrar uma idéia não é demonstrála O que é preciso é comparar não variações isoladas mas séries de variações regularmente constituídas cujós termos se ligam uns aos outros por uma gradação tão contínua quanto possível e que ademais tenham uma extensão suficiente Pois as variações de um fenômeno só permitem induzir sua lei se elas exprimem claramente a maneira como ele se desenvolve em circunstâncias dadas Ora para tanto é preciso que haja entre elas a mesma seqüência que entre os momentos diversos de uma mesma evolução natural e além disso que essa evolução que elas representam seja suficientemente prolongada para que seu sentido não seja duvidoso Mas a maneira como devem ser formadas essas séries difere conforme os casos Elas podem compreender fatos tomados ou de uma única sociedade ou de várias sociedades da mesma espécie ou de várias espécies sociais distintas O primeiro procedimento pode ser suficiente a rigor quando se trata de fatos de uma grande generalidade e sobre os quais temos informações estatísticas bastante extensas e variadas Por exemplo aproximandose a curva que exprime a evolução do suicídio durante um período de tempo suficientemente longo das variações que apresenta o mesmo fenômeno segundo as províncias as classes os hábitats rurais ou urbanos os sexos as idades o estado civil etc podese chegar mesmo sem estender a pesquisa para além de um único país a estabelecer verdadeiras leis ainda que seja sempre preferível confirmar esses resultados através de outras observações feitas sobre outros povos da mesma espécie Mas só é possível contentarse com comparações tão limitadas quando se estuda uma dessas correntes sociais que se espalham em toda a sociedade embora variem de um ponto a outro Quando ao contrário tratase de uma instituição de uma regra jurídica ou moral de um costume organizado que são idênticos e funcionam da mesma maneira em toda a extensão do país e que só se modificarei com o tempo não é possível restringirse ao estudo de um único povo pois nesse caso terseia como elemento da prova apenas um único par de curvas paralelas a saber as que exprimem a marcha histórica do fenômeno considerado e da causa conjeturada mas nessa única e exclusiva sociedade Certamente mesmo esse único paralelismo se for constante já é um fato considerável mas não poderia por si só constituir uma demonstração Fazendo entrar em consideração vários povos da mesma espécie dispõe se já de um campo de comparação mais extenso Primeiramente podese confrontar a história de um com a dos outros e ver se em cada um deles isoladamente o mesmo fenômeno evolui no tempo em função das mesmas condições A seguir podemse estabelecer comparações entre esses diversos desenvolvimentos Por exemplo determinarseá a forma que o fato estudado adquire nessas diferentes sociedades no momento em que ele chega a seu apogeu Como essas sociedades embora pertençam ao mesmo tipo são individualidades distintas a forma em questão não é em toda parte a mesma ela é mais ou menos pronunciada conforme os casos Deste modo se terá uma nova série de variações que serão aproximadas daquelas que apresenta no mesmo momento e em cada um desses países a condição presumida Assim após ter seguido a evolução da família patriarcal através da história de Roma de Atenas de Esparta essas mesmas cidades serão classificadas conforme o grau máximo de desenvolvimento que atinge em cada uma delas esse tipo familiar e a seguir se verá em relação ao estado do meio social do qual parece depender o tipo familiar de acordo com a primeira experiência se elas se classificam ainda da mesma maneira Mas mesmo esse método não pode ainda ser suficiente Ele só se aplica com efeito aos fenômenos que têm origem durante a vida dos povos comparados Ora uma sociedade não cria completamente sua organização ela a recebe pronta em parte das sociedades que a precederam O que lhe é assim transmitido no decorrer de sua história não é o produto de um desenvolvimento seu portanto não pode ser explicado se não sairmos dos limites da espécie de que ela faz parte Somente os acréscimos que se juntam a esse fundo primitivo e o transformam podem ser tratados dessa maneira Porém quanto mais nos elevamos na escala social tanto menor é a importância dos caracteres adquiridos por cada povo comparados aos caracteres transmitidos Aliás essa é a condição de todo progresso Assim elementos novos que introduzimos no direito doméstico no direito de propriedade na moral desde o começo de nossa história são relativamente pouco numerosos e pouco importantes comparados aos que o passado nos legou As novidades que se produzem não poderiam portanto ser compreendidas se primeiro não fossem estudados aqueles fenômenos mais fundamentais que são suas raízes e estes só podem ser estudados com o auxílio de comparações muito mais extensas Para poder explicar o estado atual da família do casamento da propriedade etc seria preciso conhecer quais são suas origens quais os elementos simples que compõem essas instituições e sobre esses pontos a história comparada das grandes sociedades européias não nos daria grandes esclarecimentos É preciso remontar mais acima Conseqüentemente para explicar uma instituição social pertencente a uma espécie determinada iremos comparar as formas diferentes que ela apresenta não apenas nos povos dessa espécie mas em todas as espécies anteriores Tratase por exemplo da organização doméstica Constituiremos primeiramente o tipo mais rudimentar que possa ter existido para em seguida acompanhar passo a passo a maneira como ele progressivamente se complicou Esse método que poderíamos chamar genético efetuaria de uma só vez a análise e a síntese do fenômeno Pois por um lado nos mostraria em estado dissociado os elementos que o compõem pelo simples fato de nos mostrar esses elementos acrescentandose sucessivamente uns aos outros ao mesmo tempo graças ao extenso campo de comparação ele seria bem mais capaz de determinar as condições de que dependem a formação e associação desses mesmos elementos Conseqüentemente só se pode explicar um fato social de alguma complexidade se se acompanhar seu desenvolvimento integral através de todas as espécies sociais A sociologia comparada não é um ramo particular da sociologia é a sociologia mesma na medida em que ela deixa de ser puramente descritiva e aspira a explicar os fatos No decorrer dessas comparações extensas cometese com freqüência um erro que falseia os resultados Algumas vezes para julgar em que sentido se desenvolvem os acontecimentos sociais simplesmente se comparou o que se passa no declínio de cada espécie com o que se produz no começo da espécie seguinte Procedendo deste modo acreditouse poder afirmar por exemplo que o enfraquecimento das crenças religiosas e de todo tradicionalismo nunca podia ser mais que um fenômeno passageiro da vida dos povos porque ele só aparece no último período de sua existência para cessar assim que uma nova evolução recomeça Mas com semelhante método correse o risco de tomar como marcha regular e necessária do progresso o que é efeito de uma causa muito diferente De fato o estado em que se encontra uma sociedade jovem não é simplesmente o prolongamento do estado em que haviam chegado no final de sua carreira as sociedades que ela substitui mas provém em parte dessa própria juventude que impede que os produtos das experiências feitas pelos povos anteriores sejam todos imediatamente assimiláveis e utilizáveis Assim a criança recebe de seus pais faculdades e predisposições que só tardiamente entram em jogo em sua vida Portanto é possível para retomar o mesmo exemplo que o retorno do tradicionalismo observado no começo de cada história seja devido não ao fato de que um recuo do mesmo fenômeno só pode ser transitório mas às condições especiais em que se acha colocada toda sociedade que começa A comparação só pode ser demonstrativa se eliminamos esse fator da idade que a perturba para tanto bastará considerar as sociedades comparadas no mesmo período de seu desenvolvimento Assim para saber em que sentido evolui um fenômeno social iremos comparar o que ele é na juventude de cada espécie com aquilo em que se transforma na juventude da espécie seguinte e conforme apresentar de uma etapa a outra maior menor ou igual intensidade diremos que ele progride recua ou se mantém CONCLUSÃO Em resumo as características desse método são as seguintes Em primeiro lugar ele é independente de toda filosofia Por ter nascido das grandes doutrinas filosóficas a sociologia conservou o hábito de se apoiar em algum sistema do qual se acha pois solidária Assim ela foi sucessivamente positivista evolucionista espiritualista quando deve contentarse em ser sociologia e nada mais Inclusive hesitaríamos em qualificála de naturalista a menos que com isso se queira simplesmente indicar que ela considera os fatos sociais como explicáveis naturalmente nesse caso o epíteto é inútil pois significa apenas que o sociólogo pratica a ciência e não é um místico Mas repelimos a palavra se lhe quiserem dar um sentido doutrinal sobre a essência das coisas sociais se por exemplo disserem que elas são redutíveis às outras forças cósmicas A sociologia não tem de tomar partido por uma das grandes hipóteses que dividem os metafísicos Ela não precisa afirmar a liberdade nem o determinismo Tudo o que ela pede que lhe concedam é que o princípio de causalidade se aplique aos fenômenos sociais E ainda assim esse ptïncípio é por ela estabelecido não como uma necessidade racional mas somente como um postulado empírico produto de uma indução legítima Visto que a lei da causalidade foi verificada nos outros reinos da natureza e que progressivamente ela estendeu seu domínio do mundo físicoquímico ao mundo biológico e deste ao mundo psicológico é lícito admitir que ela igualmente seja verdadeira para o mundo social e é possível afirmar hoje que as pesquisas empreendidas sobre a base desse postulado tendem a confirmálo Mas a questão de saber se a natureza do vínculo causal exclui toda contingência nem por isso está resolvida De resto a própria filosofia tem todo o interesse nessa emancipação da sociologia Pois enquanto o sociólogo não se separou suficientemente do filósofo ele só considera as coisas sociais por seu lado mais geral aquele pelo qual elas mais se assemelham às outras coisas do universo Ora se a sociologia assim concebida pode servir para ilustrar com fatos curiosos uma filosofia ela não poderia enriquecêla com idéias novas uma vez que ela nada assinala de novo no objeto que estuda Mas em realidade se os fatos fundamentais dos outros reinos se verificam no reino social é sob formas especiais que fazem compreender melhor sua natureza por serem sua expressão mais elevada Só que para percebêlos sob esse aspecto é preciso sair das generalidades e entrar no detalhe dos fatos É deste modo que a sociologia à medida que se especializar irá fornecer materiais mais originais para a reflexão filosófica O que precede já foi capaz de fazer entrever de que maneira noções essenciais tais como as de espécie de órgão de função de saúde e de doença de causa e de fim apresentamse nela sob luzes inteiramente novas Aliás será que a sociologia não estará destinada a realçar plenamente uma idéia que poderia muito bem ser a base não apenas de uma psicologia mas de toda uma filosofia a idéia de associação Em face das doutrinas práticas nosso método permite e requer a mesma independência A sociologia assim entendida não será nem individualista nem comunista nem socialista no sentido que se dá vulgarmente a essas palavras Por princípio irá ignorar essas teorias às quais não poderia reconhecer valor científico já que elas tendem diretamente não a exprimir os fatos mas a reformá los Pelo menos se se interessa por elas é somente na medida em que as vê como fatos sociais capazes de ajudála a compreender a realidade social ao manifestarem as necessidades que movem a sociedade Isso não quer dizer porém que a sociologia deva se desinteressar das questões práticas Pôdese ver ao contrário que nossa preocupação constante era orientála de maneira que pudesse alcançar resultados práticos Ela depara necessariaruénte com esses problemas ao término de suas pesquisas Mas exatamente por sõse apresentarem a ela nesse momento e por decorrerem portanto dos fatos e não das paixões podese prever que tais problemas devam se colocar para o sociólogo em termos muito diferentes do que para a multidão e que as soluções aliás parciais que ele é capaz de propor não poderiam coincidir exatamente com nenhuma daquelas nas quais se detêm os partidos O papel da sociologia desse ponto de vista deve juslátnente consistir em nos libertar de todos os partidos não tanto por opor uma doutrina às doutrinas e sim por fazer os espíritos assumirem diante de tais questões uma atitude especial que somente a ciência pode proporcionar pelo contato direto com as coisas Com efeito somente ela pode ensinar a tratar com respeito mas sem fetichismo as instituições históricas sejam elas quais forem fazendonos perceber o que elas têm ao mesmo tempo de necessário e de provisório sua força de resistência ê sua infinita variabilidade Em segundo lugar nosso método é objetivo Ele é inteiramente dominado pela idéia de que os fatos sociais são coisas e como tais devem ser tratados Certamente esse princípio se encontra sob forma um pouco diferente na base das doutrinas de Comte e de Spencer Mas esses grandes pensadores deram muito mais sua fórmula teórica do que o puseram em prática Para que ela não permanecesse letra morta não bastava promulgála era preciso tornála a base de toda uma disciplina que se apoderasse do cientista no momento em que ele abordasse o objeto de suas pesquisas e que o acompanhasse em todos os seus passos Foi a instituir essa disciplina que nos dedicamos Mostramos como o sociólogo deveria afastar as noções antecipadas que possuía dos fatos a fim de colocarse diante dos fatos mesmos como deveria atingilos por seus caracteres mais objetivos como deveria requerer deles próprios o meio de classificálos em saudáveis e em mórbidos como enfim deveria seguir o mesmo princípio tanto nas explicações que tentava quanto na maneira pela qual provava essas explicações Pois quando se tem o sentimento de estar em presença de coisas nem sequer se pensa mais em explicálas por cálculos utilitários ou por raciocínios de qualquer espécie Compreendese muito bem a distância que há entre tais causas e tais efeitos Uma coisa é uma força que não pode ser engendrada senão por outra força Buscamse então para explicar os fatos sociais energias capazes de produzilos As explicações não apenas são outras como são demonstradas de outro modo ou melhor é somente então que se sente a necessidade de demonstrálas Se os fenômenos sociológicos forem apenas sistemas de idéias objetivas explicálos é repensálos em sua ordem lógica e essa explicação é sua própria prova quando muito será o caso de confirmála por alguns exemplos Ao contrário somente experiências metódicas são capazes de arrancar das coisas seu segredo Mas se consideramos os fatos sociais como coisas é como coisas sociais É um terceiro traço característico de nosso método o de ser exclusivamente sociológico Muitas vezes se pensou que tais fenômenos por causa de sua extrema complexidade ou eram refratários à ciência ou só poderiam entrar nela reduzidos a suas condições elementares sejam psíquicas sejam orgânicas isto é despojados de sua natureza própria Procuramos estabelecer ao contrário que era possível tratálos cientificamente sem nada retirarlhes de seus caracteres específicos Inclusive recusamos reduzir a imaterialidade sui generis que os caracteriza àquela não obstante já complexa dos fenômenos psicológicos com mais forte razão nos proibimos de absorvêla como faz a escola italiana nas propriedades gerais da matéria organizadas Mostramos que um fato social só pode ser explicado por outro fato social e ao mesmo tempo indicamos de que maneira esse tipo de explicação é possível ao assinalarmos no meio social interno o motor principal da evolução coletiva A sociologia portanto não é o anexo de nenhuma outra ciência ela própria é uma ciência distinta e autônoma e o sentimento da especificidade da realidade social é inclusive tão necessário ao sociólogo que somente uma cultura especificamente sociológica é capaz de preparálo para a compreensão dos fatos sociais Consideramos que esse progresso é o mais importante dos que restam a ser feitos em sociologia Certamente quando uma ciência está por nascer somos obrigados para formála a nos referir aos únicos modelos existentes ou seja às ciências já constituídas Existe aí um tesouro de experiências prontas que seria insensato não aproveitar Entretanto uma ciência só pode considerarse definitivamente constituída quando conseguir formarse uma personalidade independente Pois ela só terá razão de ser se tiver por objeto uma ordem de fatos que as outras ciências não estudam Ora é impossível que as mesmas noções possam convir identicamente a coisas de natureza diferente Tais nos parecem ser os princípios do método sociológico Esse conjunto de regras talvez parecerá inutilmente complicado se o compararmos aos procedimentos correntemente utilizados Todo esse aparato de precauções pode parecer muito trabalhoso para uma ciência que até aqui reclamava dos que a ela se consagravam pouco mais do que uma cultura geral e filosófica e é certo que pôr em prática tal método não poderia ter por efeito vulgarizar a curiosidade das coisas sociológicas Quando se pede às pessoas como condição de iniciação prévia para se desfazerem dos conceitos que têm o hábito de aplicar a uma ordem de coisas para repensáIas com novos esforços não se pode esperar recrutar uma clientela numerosa Mas esse não é o objetivo que almejamos Acreditamos ao contrário que chegou para a sociologia o momento de renunciar aos sucessos mundanos por assim dizer e de assumir o caráter esotérico que convém a toda ciência Ela ganhará assim em dignidade e em autoridade o que perderá talvez em popularidade Pois enquanto permanecer misturada às lutas dos partidos enquanto se contentar em elaborar com mais lógica do que o vulgo as idéias comuns e por conseguinte enquanto não supuser nenhuma competência especial ela não estará habilitada a falar suficientemente alto para fazer calar as paixões e os preconceitos Seguramente ainda está distante o tempo em que ela poderá desempenhar esse papel com eficácia no entanto é para tornála capaz de representálo um dia que precisamos desde agora trabalhar 3 1 Primeiras Teorias Sociais 1 Primórdios da Sociologia A sociologia é uma ciência que nasceu em meio a inúmeras modificações geopolíticas históricas e científicas Na Europa duas grandes modificações foram responsáveis pelo nascimento de uma curiosidade sociológica Primeiramente a revolução industrial trouxe uma série de modificações quando ao modo de viver Trabalhadores passavam agora a trabalhar conforme o ritmo de fábricas distantes da luz do dia cumprindo uma jornada de trabalho calculada em horas e recebiam salário em troca Estes trabalhadores enfrentaram grandes modificações em suas condições de vida pois passaram a viver em grandes aglomerados urbanos privados de boas condições de higiene pública e em más condições de trabalho Crime expectativa de vida doenças e uma série de flagelos do capitalismo industrial foram as engrenagens necessárias para criar o movimento sindical inglês Este movimento foi o primeiro movimento social de trabalhadores na era capitalista e sua força permitiu a conquista de uma série de direitos que melhoravam as condições de trabalho dos operários ingleses O segundo grande movimento que despertou cientistas para uma busca por compreensão científica da sociedade foi a revolução francesa A revolução francesa depôs o absolutismo mais poderoso da Europa e instaurou um regime democrático fundado nos valores da liberdade da fraternidade e da igualdade Ao longo do processo de radicalização da revolução Napoleão Bonaparte venceu e invadiu as monarquias europeias instaurando novas formas de governo apoiadas pelas burguesias nacionais Com a modernização da França a unificação alemã e italiana ao longo do século XIX estes países passam a observar a Inglaterra muito à frente em termos de industrialização Essa nova condição leva a um novo fenômeno que ficou conhecido como imperialismo ou neocolonialismo O neocolonialismo consiste em missões que partem de países industrializados em direção a territórios da África e da Ásia em busca da introdução de novos mercados consumidores O problema deste empreendimento é que os produtos europeus nem sempre faziam o gosto dessas pessoas e o que deveria ser uma missão cultural acabou tornandose uma missão de colonização militar e cultural Inúmeros conflitos irrompem em territórios da Índia da China da África do Sul da Libéria e Eritréia em função da chegada dos europeus Os invasores 4 destroem modos de produção milenares e equilibrados corrompem hábitos ligados à religiosidade modificam estruturas sociais fundadas em tradições Diante disso um esforço compreensivo passou a ser feito Afinal o contato com o estranho levou a intelectualidade europeia a ter de elaborar a sua própria identidade por contraste com aqueles que viviam de modos tão diferentes Inicialmente a compreensão do outro se deu por um esforço teórico que ficou conhecido como o Evolucionismo Social 2 Evolucionismo Social O pensamento dito evolucionista social nasceu antes mesmo da famosa teoria da evolução das espécies de Darwin Conceitos de evolução já existiam com diferentes acepções na ciência europeia e nesse caso alimentaram a nascente antropologia O que permite que reunamos essas teorias embaixo do mesmo guardachuva é a sua ideia de que a cultura humana evolui e passa por diferentes etapas 21 Lewis Morgan O primeiro pensador que iremos abordar de modo rápido é Lewis Morgan 1818 1881 Morgan foi um antropólogo americano que fez sua pesquisa de campo em meio aos Iroqueses Ele escreveu um livro chamado A Sociedade Antiga que ficou famoso por sua concepção de evolução em etapas Nesse livro Morgan defende que as formas de parentesco evoluem de acordo com o progresso tecnológico das organizações humanas As primeiras tribos são de caçadorescoletores na idade da selvageria Nesse período as tribos teriam um comportamento sexual promíscuo Logo em seguida com o advento da agricultura as tribos humanas passariam à barbárie Aqui a 5 sexualidade passaria a ser monogâmica dado que a noção de bens materiais e terras passariam a interessar ao núcleo familiar Por último as sociedades passariam à forma civilizada onde elas chegariam ao progresso máximo em uma organização urbana Essa teoria é ultrapassada porém ela serviu enormemente a outros teóricos que se interessaram por entender as relações entre vida material e formações de família e parentalidade Podese afirmar agora com base em convincente evidência que a selvageria precedeu a barbárie em todas as tribos da humanidade assim como se sabe que a barbárie precedeu a civilização A história da raça humana é uma só na fonte na experiência no progresso Morgan L A Sociedade Antiga 22 Edward Tylor Edward Tylor 1832 1917 foi um antropólogo britânico que viajou para o México para estudar as tribos indígenas de lá Apesar de nunca ter cursado a universidade foi condecorado doutor em Oxford após a escrita de seu famoso livro Cultura Primitiva Tylor irá argumentar que as culturas ao longo da terra tendem a uma convergência por estarem fundadas em princípios da ação e do pensamento Por isso mesmo cultura será para ele todo o complexo que inclui conhecimento crenças arte moral lei costumes e qualquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade Com essa definição Tylor colocava as tribos das Américas África e Ásia dentro de um conceito unificado de humanidade 6 pois se todos os grupos têm cultura então é necessário admitir que há uma unidade psicológica básica a todos os humanos Será Tylor que irá identificar o fenômeno do animismo Para ele tribos que iniciavam seu desenvolvimento histórico tendem a construir formas de religião em que há a crença que entidades naturais são deuses O termo animismo vem do latim anima que significa alma Assim é como se toda a natureza estivesse possuída por almas que manifestam estados de ânimo 23 Auguste Comte Auguste Comte 1798 1857 foi um filósofo e sociólogo francês criador da teoria positivista O positivismo é uma teoria de cunho liberal que incorpora inúmeros anseios da burguesia francesa do século XIX Inspirada em um profundo racionalismo e cientificismo o Positivismo nasce de um entendimento do paradigma científico a ciência se faz por meio da descrição de leis 7 Comte irá então organizar um sistema de unidade da ciência onde a matemática é a ciência base A física é a ciência que em primeira instância depende do desenvolvimento da matemática Por sua vez a química é a ciência que depende de conceitos e da compreensão de fenômenos físicos Por fim a biologia seria a ciência que depende do entendimento da química E a sociologia seria a última ciência a receber uma axiomatização Para Comte a sociologia era uma espécie de física social que deveria ter leis de descrição da evolução e do progresso social Nesse sentido era necessário entender quais as leis sociais a partir da identificação de suas forças motoras A partir do método comparativo Comte chega à conclusão de que o progresso humano se dá em função do avanço da ciência Sendo assim as sociedades mais atrasadas na história são aquelas que não elaboraram mecanismos e conceitos para a descoberta científica já as mais evoluídas seriam aquelas que se encontram em pleno desenvolvimento científico Comte classifica de estado teológico o primeiro degrau da escada de evolução social Nesse estado os homens creditam a forças divinas os fenômenos da natureza É um período de profunda fragilidade e portanto de crenças mitológicas e religiosas A forma de governo que mais se conforma a esse período da mentalidade humana é aquela em que homens são vistos como deuses e governam por meio de teocracias militaristas Para superar esse estado é necessário que ocorra a transição de formas de pensamento mítico para formas de pensamento racional O segundo estado é o metafísico Neste momento os homens passam a ter uma compreensão racional da natureza mas ainda précientífica A grande busca desse período é por essências ou princípios que guiem o entendimento do mundo natural e do próprio homem É nesse período que os homens passam a especular acerca de princípios morais e éticos que nos ajudem a forjar leis para governar Assim a forma de governo mais comum aos que atingem esse estado é aquele que dá centralidade aos juristas e legisladores Por fim o terceiro estado é chamado de positivo Nesse momento da história humana a ciência afasta dos homens todas as formas de pensamento supersticioso e resolve todas as disputas de valor subjetivo A ciência passa a ser a principal ferramenta dos homens no governo tecnocrático e na busca da paz O positivismo tem como pressupostos o progresso a evolução e a ciência Contudo ao longo do desenvolvimento da teoria positivista Comte cada vez mais foi entendendo que sua filosofia e pensamento social precisavam de um lugar para ser cultuado Assim igrejas positivistas passaram a surgir na França e até mesmo no Brasil Aqui o positivismo foi absorvido por membros 8 do exército que adotaram o lema positivista Amor Ordem e Progresso como sendo a chave de suas decisões políticas 24 Herbert Spencer Spencer 1820 1903 era amigo de Charles Darwin Sua contribuição fundamental para o pensamento sociológico está na teoria do Darwinismo Social Para ele tal como a vida microscópica se organizou por meio de funções que estruturam os organismos a vida social deve também ter estruturas funcionais básicas Spencer acreditava que a teoria da sobrevivência do mais adaptado poderia ser a base de compreensão das sociedades também Sendo assim ele pensou em dois modelos funcionais de sociedade Há as sociedades hierárquicas militaristas onde o sistema é preponderantemente vertical com pouca diferenciação e baseado na obediência E há sociedades industriais com alta complexidade diferenciação voluntarismo e contratos sociais tácitos manifesto comunista Com ensaios de Antonio Labriola Jean Jaurès Leon Trotsky Harold Laski Lucien Martin James Petras Organização e introdução Osvaldo Coggiola No final de fevereiro de 1848 foi publicado em Londres um pequeno panfleto que acabaria por se tornar o documento político mais importante de todos os tempos o Manifesto Comunista de Marx e Engels Passado um século e meio a atualidade e o vigor deste texto continuam a ser reafirmados por intelectuais das mais diversas correntes de pensamento Esta edição que a Boitempo Editorial preparou para as comemorações do 150 aniversário do Manifesto seis especiais refletem sobre as múltiplas facetas desta que é ainda a obra política mais lida e difundida em todo o mundo ISBN 8585934239 9788585934231 manifesto comunista KARL MARX FRIEDRICH ENGELS manifesto comunista BOITEMPO EDITORIAL KARL MARX FRIEDRICH ENGELS O internacionalismo e o Manifesto O internacionalismo proletário é uma das ideias centrais do Manifesto Comunista Não por acaso a sua última frase Proletários de todos os países univos virou símbolo da corrente marxista do movimento operário Para Marx e Engels o internacionalismo não é só o elementochave da estratégia do movimento socialista é também a expressão do seu humanismo revolucionário para o qual a emancipação de toda a humanidade é o valor supremo e o objetivo final Algumas passagens do Manifesto porém são economicistas e evidenciam certo otimismo livrecambista Como exemplo podese citar a sugestão de que o proletariado vitorioso continuará a abolição dos antagonismos nacionais iniciada pelo mercado mundial A experiência histórica sobretudo na Irlanda ensinará a Marx e Engels que o reinado da burguesia e do mercado capitalista agrava esses antagonismos Marx dá uma expressão organizada e concreta ao internacionalismo proletário com a fundação da AIT As seguintes Internacionais Operárias e Socialistas da II até a IV reivindicam essa herança mas conhecerão crises deformações burocráticas e isolamento Ainda assim assistimos nos primeiros anos seguintes à Revolução de Outubro e mais tarde durante as Brigadas Internacionais da MANIFESTO COMUNISTA Karl Marx 18181883 Ler Marx e Engels é certamente um convite a adentrar e conhecer os processos de exploração da vida humana do capitalismo É sentirse impotente diante dessa máquina devoradora da humanidade Após ler esses escritos caberá responder a uma questão apenas é atual o que buscamos É função Friedrich Engels 18201895 Karl Marx e Friedrich Engels MANIFESTO COMUNISTA Organização e introdução Osvaldo Coggiola BOITEMPO EDITORIAL Copyright desta edição Boitempo Editorial Tradução do Manifesto Comunista Álvaro Pina Assistente editorial Daniela Jinkings Revisão Alice Kobayashi Flamarion Maués Priscila Úrsula dos Santos Capa Antonio Kehl sobre desenho de Maringoni Editoração eletrônica Flávio Valverde Garotti Fotolitos Augusto Associados Impressão e acabamento Ferrari Agradecemos a valiosa colaboração de Francisco Melo edições Avante Alexandre Antunes Pereira e Floriano da Costa Durão que se empenharam particularmente na edição deste Manifesto ISBN 8585934239 Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a expressa autorização da editora 1ª edição março de 1998 1ª reimpressão abril de 1998 2ª reimpressão abril de 1999 3ª reimpressão agosto de 2002 4ª reimpressão junho de 2005 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda Rua Euclides de Andrade 27 Perdizes 05030030 São Paulo SP TelFax 11 38757250 38726869 email editoraboitempocom site wwwboitempocom SUMÁRIO Nota da edição 7 Introdução 9 Osvaldo Coggiola MANIFESTO COMUNISTA 37 Karl Marx e Friedrich Engels I Burgueses e proletários 40 II Proletários e comunistas 51 III Literatura socialista e comunista 59 IV Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição 68 Prefácios de Marx e Engels Prefácio à edição alemã de 1872 71 Prefácio à edição russa de 1882 72 Prefácio à edição alemã de 1883 74 Prefácio à edição inglesa de 1888 74 Prefácio à edição alemã de 1890 78 Prefácio à edição polonesa de 1892 80 Prefácio à edição italiana de 1893 81 Em memória do Manifesto Comunista 87 Antonio Labriola O Manifesto Comunista de Marx e Engels 137 Jean Jaurès Noventa anos do Manifesto Comunista 159 Leon Trotsky O Manifesto Comunista de 1848 169 Harold Laski Cem anos depois do Manifesto 231 Lucien Martin O Manifesto Comunista qual sua relevância hoje 239 James Petras NOTA DA EDIÇÃO ESTA TRADUÇÃO do Manifesto do Partido Comunista foi feita por Álvaro Pina a partir da edição alemã de 1890 prefaciada e anotada por Friedrich Engels para as edições Avante Lisboa 1975 A tradução portuguesa foi publicada pela primeira vez em 1975 com introdução e notas de Vasco MagalhãesVilhena e revista e complementada em 1997 por José BarataMoura Para esta edição além de alguns ajustes ortográficos promovidos por Luciana Crespo fizemos um cotejamento minucioso com a versão inglesa de Samuel Moore revisada prefaciada e anotada por Engels Harmondsworth Penguin Books 1967 com a tradução francesa de E Bottigelli Paris AubierMontaigne 1971 e com a italiana de Antonio Labriola Milão Avanti 1960 Confrontamos ainda essa tradução com duas edições brasileiras a de 1986 São Paulo Novos Rumos introdução de Edgard Carone e a de 1988 Petrópolis Vozes tradução de Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder O que ora lhes apresentamos é ao final de tudo isso uma versão nova do Manifesto Comunista de Marx e Engels Para as notas de rodapé em número reduzido uma vez que não era nossa intenção fazer uma edição crítica utilizamos como fontes as mesmas edições já citadas em especial as portuguesas dirigidas por MagalhãesVilhena e BarataMoura e o livro Le Manifeste Communiste de Marx et Engels Histoire et bibliographie de Bert Andréas Milão Feltrinelli 1963 As notas indicadas com números são de Marx eou Engels as indicadas com asterisco da edição brasileira Acréscimos e explicações estão indicados com colchetes no texto ou parênteses nas notas Nos seis ensaios que acompanham este Manifesto utilizamos o mesmo critério números para as notas dos autores e asteriscos para as notas da editora ou das traduções neste caso indicadas com N da T Ivana Jinkings 150 ANOS DO MANIFESTO COMUNISTA Osvaldo Coggiola O MANIFESTO do Partido Comunista foi publicado pela primeira vez no final de fevereiro ou início de março de 1848 em Londres Segundo Bert Andreas é provável que o próprio Marx tenha levado os originais de Bruxelas sua residência de exílio para Londres na última semana de fevereiro de 1848 A urgência foi ditada pela explosão dia 22 da revolução de fevereiro na França O Manifesto tinha sido encomendado a Marx entre três e quatro meses antes pela Liga dos Comunistas O Manifesto e 1848 Quando o Manifesto foi encomendado em novembro de 1847 todos acreditavam que a Europa estava às vésperas de uma revolução Apesar do sentimento geral de urgência Marx aparentemente despreocupado demorou para entregar o documento No final de janeiro a direção da Liga dos Comunistas sediada em Londres enviou a Marx uma carta impaciente O Comitê Central por meio desta autoriza o Comitê do Distrito de Bruxelas a comunicar ao cidadão Marx que caso o Manifesto do Partido Comunista que ele se propôs a redigir no último Congresso não chegue a Londres antes do dia 1º de fevereiro tomarseão medidas contra ele Na eventualidade do cidadão Marx não escrever o Manifesto o Comitê Central pede que os documentos a ele confiados pelo Congresso sejam devolvidos imediatamente A carta estava assinada por Bauer Schapper e Moll três operários alemães exilados em Londres que eram então dirigentes da Liga O Manifesto coincidiu com o início da esperada revolução Ela estourou na Suíça espalhouse rapidamente para Itália e França depois para Renânia Prússia e em seguida para Áustria e Hungria Na verdade o levante revolucionário europeu de 1848 era largamente esperado Como afirma Eric J Hobsbawm A catástrofe de 18461848 foi universal e a disposição de ânimo das massas sempre dependente do nível de vida tensa e apaixonada Um cataclismo econômico europeu coincidiu com a visível erosão dos antigos regimes Um levante camponês na Galícia em 1846 a eleição de um papa liberal no mesmo ano uma guerra civil entre radicais e católicos na Suíça no final de 1847 ganha pelos radicais uma das constantes insurreições autonomistas sicilianas em Palermo no início de 1848 Tudo isso não era pó e vento mas os primeiros rugidos da tempestade Todos sabiam disso Dificilmente uma revolução foi mais universalmente prognosticada mesmo sem se determinar em que país e data teria início Todo um continente aguardava pronto para transmitir as primeiras notícias da revolução de cidade em cidade através dos fios do telégrafo elétrico¹ A Liga dos Justos e o comunismo O termo comunista merece uma explicação Na época o socialismo era considerado uma doutrina burguesa identificada com os vários esquemas reformistas experimentais e utópicos dos ideólogos pequenoburgueses Os comunistas eram aqueles que estavam claramente a favor da derrubada revolucionária da ordem existente e do estabelecimento de uma sociedade igualitária O comunismo dessa época originarase de uma dissidência de extrema esquerda do jacobinismo francês representado por Gracchus Babeuf e Filippo Buonarroti A Liga dos Justos era composta por trabalhadores principalmente artesãos alemães exilados alocados em Londres Bruxelas e Paris e em algumas partes da Alemanha Não se tratava de proletários modernos trabalhando em grandes fábricas mecanizadas No entanto eles foram atraídos pelas concepções de Marx e Engels acerca da natureza da sociedade capitalista moderna A Liga dos Justos trazia em sua bandeira o slogan Todos os homens são irmãos Quando abraçou as concepções de Marx e tornouse a Liga dos Comunistas adotou o chamado do Manifesto Proletários de todos os países univos A velha Liga dos Justos oferecia a particularidade de como federa ¹ Eric J Hobsbawm Las Revoluciones Burguesas Madri Guadarrama 1971 p 544 Publicado no Brasil pela editora Paz e terra com o título A era das Revoluções fraternidade não é uma palavra vazia mas uma realidade e toda a nobreza da humanidade irradia desses homens endurecidos pelo trabalho em quem Marx admirava o gosto pelo estudo a sede de conhecimentos a energia moral a necessidade de desenvolvimento Convidado pela Liga dos Justos a aderir a ela Marx filiouse só no início de 1847 Foram estabelecidos novos estatutos cujo primeiro artigo dizia O fim da Liga é a derrubada da burguesia o reino do proletariado a supressão da antiga sociedade burguesa fundada no antagonismo de classes e o estabelecimento de uma nova sociedade sem classes e sem propriedade privada A Liga foi reorganizada para tornarse democrática depois que Marx e Engels exigiram que se suprimisse dela tudo aquilo que favorecesse a superstição autoritária Colocouse um fim a todo tipo de conspiração que requeria métodos ditatoriais da direção e a atividade da Liga concentrouse na propaganda pública pelo menos quando isso fosse possível O Congresso aprovou a publicação de uma revista cujo único número apareceu em setembro de 1847 com o título de Revista Comunista Nesse número é adotado substituindo o antigo lema da Liga Todos os homens são irmãos aquele indicado por Engels seguindo sugestão de Marx e que seria o grito de guerra com que se haveria de encerrar o Manifesto Proletários de todos os países univos Assim se chegava ao fim do processo evolutivo que havia conduzido a Liga desde o comunismo idealista dos artesãos alemães ou o comunismo filosófico e sentimental de Weitling desde a mescla do socialismo ou comunismo francoinglês e de filosofia alemã que constituía a doutrina secreta da Liga segundo as palavras do próprio Marx a uma observação científica da estrutura econômica da sociedade burguesa único fundamento teórico sólido para substituir a aspiração de realizar um sistema utópico qualquer por uma participação consciente no processo histórico da revolução social que se cumpria sob os nossos narizes Conspiração e comunismo Já desde bem antes da sua adesão à Liga Marx e Engels eram conhecidos como comunistas como bem revela este informe da polícia alemã de 14 de fevereiro de 1846 Três chefes comunistas alemães entre os quais se encontra Karl Marx estão preparando a edição de oito volumes sobre o comunismo sua doutrina suas conexões sua situação na França e na Inglaterra Os outros dois colaboradores são Engels e Moses Hess conhecidos comunistas tendo o primeiro deles chegado à Alemanha vindo da Suíça A obra será publicada na gráfica do Der Deutsche Steuermann de Paris⁴ A passagem das sociedades secretas para as sociedades operárias comunistas foi um complexo processo histórico Segundo Bert Andreas A Liga dos Justos devia alguns traços de sua organização secreta como o conceito de comunismo às sociedades secretas neobabufistas com as quais as comunas da Liga em Paris tinham estreitas relações Os membros da Liga estavam obrigados a difundir os princípios fazer novos recrutamentos fundar associações oficiais de operários e artesãos Foi somente nos grandes centros da Liga em Paris e Londres e mais tarde em Genebra que as comunas tiveram uma existência e uma atividade contínuas apoiandose sempre em associações operárias paralelas A mudança teve o seu epicentro na Inglaterra onde o desenvolvimento industrial era mais avançado e a atividade da classe operária mais aberta A Convenção Geral das Classes Operárias da GrãBretanha primeiro parlamento operário convocado no início de 1839 pelos cartistas havia discutido publicamente durante meses a organização da greve geral como meio de conquista do poder O horizonte político dos Justos de Londres foi ampliado consideravelmente O mesmo Andreas sustenta que existia aí uma classe operária nascida da fábrica que fazia valer suas reivindicações por meio do poderoso movimento cartista havia liberdade de reunião e de associação havia além dos numerosos operários e artesãos de todos os países europeus exilados políticos franceses alemães italianos e poloneses de todas as opiniões A Liga tinha apesar do elemento germânico ser fortemente preponderante um caráter internacional Simultaneamente um segundo processo essencial tinha lugar Enquanto a antiga desconfiança em relação aos intelectuais começava a desaparecer entre os operários e seus representantes e o proletariado ia buscar suas armas intelectuais na filosofia os filósofos descobriam nos operários nesses bárbaros de nossa sociedade civilizada o elemento prático da emancipação do homem Depois da rebelião dos tecelões da Silésia em junho de 1844 Marx declarava no Vorwärts que a Alemanha não poderia encontrar o elemento ativo de sua liberação senão no proletariado⁵ ⁴ Hans M Enzensberger Conversaciones con Marx y Engels Barcelona Anagrama 1974 vol 1 p 62 ⁵ Bert Andreas La Liga de los Comunistas México Cultura Popular 1977 pp 1524 A influência do cartismo Levandose em conta essa história tornase compreensível o fragmento do Manifesto consagrado à atitude dos comunistas diante dos outros partidos operários Ela era ditada pelo estado do movimento operário na época particularmente na Inglaterra Os cartistas que haviam ingressado na Liga o fizeram com a condição de que pudessem manter sua ligação com o partido O seu intuito era organizar uma espécie de núcleo comunista no cartismo para ali expandir o programa e os objetivos dos comunistas⁶ A influência do movimento cartista foi portanto decisiva para o surgimento do comunismo operário O cartismo por sua vez testemunha o impetuoso surgimento da classe operária no cenário social europeu Já fazia tempo que esta enorme força social em pleno processo de formação não se limitava ao plano defensivo ou à atividade puramente sindical mas também se projetava na ação política Em janeiro de 1792 oito homens criaram a London Corresponding Society que se organizou em grupos de trinta membros baseada em uma contribuição financeira acessível aos operários No final desse ano a sociedade contava já com três mil membros Seus objetivos sufrágio universal igualdade de representação Parlamento honesto fim dos abusos contra os cidadãos humildes fim das pensões outorgadas pelo Parlamento aos membros das classes dirigentes menor jornada de trabalho diminuição dos impostos e entrega das terras comuns aos camponeses Na mesma época o livro de Tom Paine Os Direitos do Homem defendia a Revolução Francesa e a Independência americana atacando a monarquia inglesa em favor do republicanismo Publicado em inglês céltico e gaélico vendeu cerca de duzentos mil exemplares na GrãBretanha e se transformou no manual universal do movimento operário Em 1795 os dirigentes da sociedade foram presos e esta começou a decair Mas ela foi sem dúvida o antecedente da primeira grande organização política operária o cartismo inglês assim chamado por basearse na Carta do Povo proclamada em 1838 A reforma eleitoral de 1832 arrancada pela burguesia industrial à monarquia elevou o contingente eleitoral de quatrocentos mil para oitocentos mil membros ela satisfazia os interesses da burguesia doravante dona do poder político mas não do operariado pois sobrevivia o voto qualificado ligado à propriedade Em 1836 os operários condenados em revoltas anteriores foram indultados e começaram a regressar à Inglaterra Nesse clima a Carta é proclamada e organizada em 1838 voto universal e secreto abolição da qualificação voto por nível de renda pagamento aos membros do Parlamento permitindo o ingresso nele de trabalhadores nivelação dos distritos eleitorais parlamentos anuais controle mais efetivo e revogabilidade dos representantes Com base neste programa democrático o cartismo organizou manifestações de massas e até uma greve geral em 1842 que abarcou mais de cinquenta mil operários e inaugurou a prática dos piquetes móveis depois mundialmente difundida Em 1847 a última onda de atividade cartista conquistou a jornada de dez horas a primeira vitória histórica da classe operária foi produto de um movimento claramente político Por volta de 1848 o movimento cartista já estava esfacelado e derrotado No entanto a sua importância histórica pode ser medida pelo fato de ter lançado e de ter dado uma base de massas a duas reivindicações centrais do operariado que teriam influência decisiva na estruturação contemporânea da sociedade inglesa e das sociedades capitalistas em geral a a redução da jornada de trabalho b o sufrágio universal e secreto Reformismo e utopismo O cartismo antecipou os debates posteriores do movimento operário ao cindirse em duas alas 1 a ala partidária da força moral confiante numa aliança com setores da burguesia e na pressão moral da justeza das suas reivindicações que os levaria à vitória esta ala baseava sua ação no sul da Inglaterra onde predominavam os velhos trabalhos artesanais 2 a ala partidária da força física responsável pela organização das greves e convencida de que só a ação direta dos operários os levaria ao triunfo sua base de recrutamento era o norte industrial especialmente os operários de Manchester núcleo da revolução industrial e do proletariado fabril moderno A Carta antecipou debates ulteriores sobre reformismo e revolução Segundo Wolfgang Abendroth neste período os trabalhadores se consideravam parte das camadas populares da nação e ficaram presos a essa ideologia A sua privação de direitos só podia ser eliminada exigindo para todos os cidadãos o mesmo direito em determinar a atividade do poder político de modo que não se abusasse do Estado em proveito de uns poucos Reclamaram para si próprios os direitos de liberdade correspondentes ao direito natural Mas não foram capazes de colocar exigências dife ⁶ David Riazanov Marx et Engels Paris Anthropos 1970 p 79 O desenvolvimento social e político da classe operária criou as bases sociais para a superação do socialismo até então existente tanto na França SaintSimon Fourier como na Inglaterra Owen O termo utopistas aplicado a estes três visionários foi assim explicado por Engels Se os utopistas foram utopistas é porque numa época em que a produção capitalista estava ainda tão pouco desenvolvida eles não podiam ser outra coisa Se foram obrigados a tirar das suas próprias cabeças os elementos de uma nova sociedade é porque de uma maneira geral estes elementos não eram ainda bem visíveis na velha sociedade se limitaramse a apelar à razão para lançarem os fundamentos de seu novo edifício é porque não podiam ainda apelar à História contemporânea Na própria França o socialismo não baseado na luta de classes teve a continuação com o trabalhador artesanal sapateiro PierreJoseph Proudhon que em A Organização do Crédito afirmava O que precisamos o que reivindico em nome dos trabalhadores é a reciprocidade a igualdade na troca a organização do crédito O crédito gratuito era a solução do problema social com ele os trabalhadores comprariam a sua liberdade do capitalista A propriedade é um roubo tinha afirmado Proudhon contra o capitalismo propondo o sistema mutualista baseado na gratuidade do crédito Mas fracassaram suas tentativas de organizar um Banco dos Trabalhadores pela lógica concorrência dos bancos capitalistas Como diz George Lichteim não se tratava de um sistema socialista por carecer de planejamento central e menos ainda era comunitário O que era Talvez apenas a peculiar visão de Proudhon sobre o socialismo Apesar de criticálo Marx viu em Proudhon um sapateiro a demonstração da capacidade de pensamento independente da classe operária maior facilidade por meio da colaboração entre os operários e a burguesia Para isto um instrumento o sufrágio universal Estado Popular Foi com referência a estes dois últimos que Marx em Miséria da Filosofia de 1847 afirmou que o ideal corretivo que gostariam de aplicar ao mundo não é senão o reflexo do mundo atual É totalmente impossível reconstituir a sociedade sobre a base de uma sombra embelezada da mesma Na medida em que a sombra vira corpo percebese que o corpo longe de ser o sonho imaginado é apenas o corpo da sociedade atual De acordo com JeanChristian Petitfils nem a reforma eleitoral nem o desenvolvimento do movimento cartista interessaram a Robert Owen para quem o sufrágio universal era uma simples mania popular Na França as oposições dinásticas e as aspirações republicanas da oposição deixaram SaintSimon e Fourier indiferentes Ambos saíram das provas da Revolução de 1789 bastante decepcionados para não dizer mais sem grandes simpatias pelos jacobinos ou pelos babeufistas O partido comunista verdadeiramente atuante Paralelamente aos grandes construtores de sistemas sociais outra tendência se desenvolveu diretamente ligada aos movimentos populares Foi a tendência radical das revoluções democráticas caracterizada pelas suas propostas igualitárias que foram paulatinamente designadas pelo termo comunismo Engels rastreou as origens dessa tendência nos primeiros grandes levantes contra a aristocracia na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha a tendência dos anabatistas e de Thomas Münzer na grande revolução inglesa os levellers e na grande Revolução Francesa Babeuf E esses levantes revolucionários de uma classe incipiente são acompanhados por sua vez pelas correspondentes manifestações teóricas nos séculos XVI e XVII surgem as descrições utópicas de um regime ideal de sociedade no século XVIII teorias já declaradamente comunistas como as de Morelly e Mably A reivindicação da igualdade não se limitava aos direitos políticos mas também às condições sociais de vida de cada indivíduo Já não se tinha em mira abolir apenas os privilégios de classe mas acabar com as próprias diferenças de classe Karl Marx viu nesta tendência o partido comunista verdadeiramente atuante Nos seus Princípios de Comunismo anteriores ao Manifesto Engels respondeu assim à pergunta o que é comunismo É um sistema segundo o qual a terra deve ser um bem comum dos homens Cada um deve trabalhar e produzir de acordo com as suas capacidades e gozar e consumir de acordo com as suas forças Diferenciandoo claramente do socialismo que deve seu nome à palavra latina socialis Ocupase da organização da sociedade e das relações entre os homens Mas não estabelece nenhum sistema novo sua ocupação principal é consertar o velho edifício esconder as suas fissuras obra do tempo No máximo como os fourieristas pretendem construir um sistema novo acima dos velhos e podres alicerces do chamado capitalismo No momento mais radical da revolução inglesa do século XVII uma maioria parlamentar chegou a apoiar os levellers igualitários ou niveladores os quais procuravam levar as idéias democráticas à sua conclusão lógica atacando todos os privilégios e proclamando a terra como uma herança natural dos homens Os levellers se concentravam na reforma política o socialismo implícito da sua doutrina ainda se exprimia em linguagem religiosa Seus continuadores radicais foram os diggers cavadores muito mais precisos em relação à sociedade que desejavam estabelecer e que totalmente descrentes de uma ação política de tipo normal só acreditavam na ação direta Mas a revolução inglesa foi vitoriosa como revolução burguesa conciliandose finalmente com a monarquia e eliminando as suas alas radicais O período mais radical da Revolução Francesa também foi concluído com a derrota de sua direção os jacobinos donos do poder entre 1792 e 1794 mas estes também tiveram os seus continuadores radicais na chamada Conspiração dos Iguais encabeçada em 1796 por Gracchus Babeuf Como o próprio nome indica esta fração propôs um programa de propriedade comunal para aprofundar a revolução uma espécie de socialismo agrário a indústria ainda estava escassamente desenvolvida E foi menos uma conspiração do que uma continuação das insurreições contra a reação antijacobina o Thermidor instalada no poder as revoltas de Germinal e Prairial Segundo Daniel Guérin Babeuf e seus amigos entraram em contato com os sobreviventes dessas insurreições aprovando seus projetos de poder popular e criticando a fraqueza dessas tentativas a sua desorganização Os Iguais constituíram uma organização centralizada cujo programa criticava a lei bárbara ditada pelo capital que faz mover uma multidão de braços sem que aqueles que os movem recolham daí os frutos Segundo Guérin no seu clássico Bourgeois et BrasNus o aperfeiçoamento do maquinismo e o progresso técnico estavam na base do coletivismo dos Iguais cuja proposta política chegou ao limiar da democracia direta de tipo comunal e de conselhos dirigentes eleitos diretamente pela base e permanentemente revogáveis do Le National porque lhes reconhecemos o direito à discussão e porque as doutrinas que vêm dos próprios operários são sempre dignas de atenção O comunismo portanto era identificado com o proletariado como surgido dentro dessa classe e como sua expressão teóricodoutrinária Num paralelo notável poucos anos antes Marx como editor da Rheinische Zeitung Gazeta Renana polemizou contra um jornal alemão o Augsburger que também atacava o comunismo Ele respondeu em síntese vocês não têm o direito de atacar o comunismo Não conheço o comunismo mas se ele assumiu a defesa dos oprimidos não pode ser condenado sem mais Antes de condenálo é preciso ter um conhecimento exato e completo dessa corrente Quando saiu da Rheinische Zeitung Marx não era ainda um comunista mas já era um homem interessado no comunismo como tendência e como filosofia especial9 As etapas da passagem de Marx do democratismo radical ao comunismo em meados da década de 1840 encontramse registradas nos Anais FrancoAlemães editados por Marx em comum com seu amigo Arnold Ruge Democracia e comunismo Na Inglaterra no final da década de 1840 o movimento cartista dividiuse os seus membros intelectuais e de classe média se agruparam na Associação Nacional para a Reforma Parlamentar e Financeira os seus membros operários por sua vez apoiaram a Associação Nacional da Carta dirigida por Ernest Jones e George Harney e a Liga Nacional da Reforma dirigida por Bronterre OBrien ambas de programa socialista Harney e Jones mantinham estreito contato com os exilados operários e artesãos alemães junto aos quais Marx e Engels gozavam de ampla influência No festival operário comemorativo da proclamação da República Francesa de 1792 celebrado em Londres em 1845 o manifesto declarou que os democratas de todos os países desejam que a igualdade à qual aspirou a Revolução Francesa renasça na França e se estenda a toda a Europa No seu informe a respeito desse festival Engels escrevia que atualmente a democracia é o comunismo A democracia se transformou em princípio proletário princípio de massas grifo nosso Dois anos depois em 1847 como já foi dito a Liga dos Justos que tinha organizado o festival junto aos cartistas ingleses e outros exilados encarregou a Marx e Engels a redação de seu programa que se transformaria no Manifesto Comunista o que levou à mudança no nome da Liga A assimilação entre democracia e comunismo era própria da época e seria superada pela defesa da ditadura do proletariado conceito erroneamente atribuído a Blanqui que Marx vai realizar depois das revoluções de 1848 como balanço das derrotas dessas revoluções o folheto de Marx As Lutas de Classes na França 18481850 registra essa passagem teóricoprogramática Mas ainda em julho de 1846 Marx e Engels dirigiram de Bruxelas em nome de um grupo de emigrados alemães uma declaração de apoio e de adesão ao líder cartista inglês OConnor publicada na folha cartista The Northern Star e assinada pelos comunistas democráticos alemães de Bruxelas o Comitê Engels Ph Gigot Marx grifo nosso David Riazanov força o texto e a História ao afirmar que quando o Manifesto assimila a constituição do proletariado como classe dominante à conquista da democracia Marx se refere a uma democracia proletária oposta à democracia burguesa10 Isto não é verdade em meados da década de 1840 a democracia era o movimento geral de luta contra o status quo monárquicoaristocrático prevalecente Além disso Marx e Engels não foram antes de serem comunistas democratas vulgares Eles proporcionavam pela primeira vez ao movimento democrático uma compreensão real e completa de seu tempo As idéias atrasadas e infantis sobre o desenvolvimento econômicosocial do mundo a que estavam apegados os líderes democráticos de todos os países antes de 1848 lhes eram alheias Marx e Engels foram portanto os primeiros democratas que se libertaram completamente dessas ilusões e do gosto pelas experiências abstratas Compreendiam seu tempo porque se apropriaram de tudo o que os pensadores da burguesia tinham a dizer de sua própria classe Os economistas ingleses e os filósofos alemães haviam compreendido perfeitamente a essência da sociedade burguesa moderna Marx e Engels ao colocarem as doutrinas de Ricardo e de Hegel a serviço da revolução democrática descobriram os fundamentos teóricos dos quais careciam Louis Blanc OConnor e Mazzini Mas isto fazendo Marx e Engels viramse na obrigação de superar esse fundamento teórico isto é a filosofia clássica alemã e a economia política inglesa elaborando uma síntese teóricoprática que deu um novo fundamento científico ao já existente comunismo Historicidade da democracia O caráter ilusório da democracia burguesa já fora denunciado por JeanJacques Rousseau no século XVIII O povo inglês pensa ser livre porém enganase totalmente É livre somente durante a eleição dos membros do Parlamento depois que estes são eleitos é escravo não é nada A soberania não pode ser representada consiste essencialmente na vontade geral e a vontade não se representa É ela mesma ou é outra coisa não há meiotermo O Manifesto colocou positivamente a superação da natureza nãodemocrática do Estado constitucional a primeira fase da revolução operária é o advento do proletariado como classe dominante a conquista da democracia Democracia e domínio político da burguesia são incompatíveis não existe Estado democrático sob hegemonia burguesa e hipoteticamente sob hegemonia proletária mas ditadura burguesa sob formas democráticas A conquista da democracia exige portanto uma revolução cujo primeiro passo é como em toda revolução a destruição da máquina repressiva que é a essência do antigo regime de exploração sem o que a democracia não passa de uma fachada da ditadura da classe exploradora Democracia e comunismo não são idênticos o proletariado no poder só começa a efetuar a passagem para a sociedade comunista por meio da supressão da propriedade privada burguesa e da progressiva socialização dos meios de produção A democracia tem como conseqüência inevitável o domínio político do proletariado e esse domínio é a primeira premissa de todas as medidas comunistas escreveu Engels em outubro de 1847 Com a sociedade comunista de cada qual segundo as suas capacidades a cada qual segundo as suas necessidades criamse as bases para a superação da alienação política representação mediada pela burocracia estatal da separação entre a sociedade política e a civil Mas nas pala 11 Arthur Rosenberg Democracia e Socialismo São Paulo Global 1986 pp 8991 vras do Manifesto com a supressão do fundamento dessa cisão a propriedade privada burguesa desaparece o Estado Político e portanto a democracia forma mais desenvolvida desse Estado Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe no curso do desenvolvimento e sendo concentrada toda a produção propriamente falando nas mãos dos indivíduos associados o poder público perderá o seu caráter político Em lugar da antiga sociedade burguesa com suas classes e antagonismos de classe surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos grifo nosso No Manifesto Marx e Engels combateram antecipadamente a ilusão dos revolucionários de 1848 para quem na base das diferenças e antagonismos de classe encontravase a desigualdade política Conseqüentes com isso quando o governo revolucionário decretou o sufrágio universal declararam também abolidas as classes da sociedade Tal declaração encontrase ipsis litteris na proclamação do governo provisório francês surgido da revolução de fevereiro de 1848 A idéia da universalidade atemporal de uma forma política a democracia apresentada como própria de Marx nada tem a ver com este Certamente Marx e Engels não desprezavam a luta pelo sufrágio universal ainda que sob domínio burguês da mesma maneira que não desprezavam a luta por aumentos salariais ou pela redução da jornada de trabalho em nome da abolição do trabalho assalariado O primeiro partido operário independente o movimento cartista inglês tinha surgido justamente da luta pela extensão do direito do sufrágio O que Marx e Engels faziam era pôr em relevo o caráter revolucionário dessa luta a qual por modestas que fossem as suas reivindicações iniciais conduzia necessariamente a um enfrentamento decisivo entre a burguesia e o proletariado Por isso Marx qualificou a obtenção da jornada de dez horas na Inglaterra em 1847 como a primeira vitória da economia política do proletariado Na França em 1848 a luta pela república acabou pondo frente a frente a burguesia e a classe operária A simples reivindicação do direito ao trabalho originou a Comissão de Luxemburgo que não passou de alguns intentos de cooperativização mas a sua existência bastou para que Marx afirmasse que a esta criação dos operários de Paris cabe o mérito de ter revelado do alto de uma tribuna européia o segredo da revolução do século XIX a emancipação do proletariado12 12 Karl Marx As Lutas de Classes na França In Textos São Paulo Edições Sociais 1977 vol 3 p 120 Comunismo e revolução Até as revoluções de 1848 os comunistas já uma tendência independente consideravamse junto à democracia do mesmo lado da barricada no mesmo movimento contra a reação feudal e monárquica os comunistas trabalham pela união e entendimento dos partidos democráticos de todos os países diz o Manifesto A democracia revolucionária a Montanha na França os Fraternal Democrats na Inglaterra ainda colocava revolucionariamente as suas reivindicações no sentido da luta das massas contra a aristocracia e de um governo independente das massas populares sem diluílas numa democracia formal que só aspira à extensão do direito do sufrágio O desenvolvimento revolucionário do proletariado porém levou a burguesia a aliarse à reação ao preço inclusive de suas minguadas aspirações democráticas O liberalismo burguês traiu a revolução e a democracia radical a Montanha foi uma caricatura do jacobinismo de 17921794 A meio caminho entre o proletariado e a burguesia a sua velha base social as massas pobres de sansculottes tinha se cindido do seu seio já surgira um proletariado socialmente diferenciado teve um papel lamentável na revolução Com a derrota desta estava liquidada a democracia revolucionária tal como a modelara a Revolução Francesa LedruRollin declamando inconscientemente entre as classes e Raveaux levaram ao túmulo o que tinha sido fundado por Robespierre e SaintJust13 No seu lugar surgiu a democracia pura pequenoburguesa da qual Marx disse em 1850 na Circular à Liga dos Comunistas que este partido democrático é mais perigoso para os operários do que foi o partido liberal pois tal como constatou Engels em 1884 só poderia ser um recurso extremo da burguesia contra a revolução proletária Ela pode ter no momento da revolução importância como a mais extrema tendência da burguesia forma sob a qual já se apresentou na Assembléia de Frankfurt em 18481849 e que pode converterse na última tábua de salvação de toda a economia burguesa e mesmo da feudal Nesse momento toda a massa reacionária se coloca por trás dela e a fortalece Tudo o que é reacionário comportase então como democrático Nosso único inimigo no dia da crise e no dia seguinte é essa reação total que se agrupa em torno da democracia pura A derrota do operariado e a crise da democracia revolucionária tinham também um conteúdo positivo A derrota dos insurretos de junho pre 13 Arthur Rosenberg Op cit p 108 para a aplanara o terreno sobre o qual a república burguesa podia ser fundada e edificada mas demonstrava ao mesmo tempo que na Europa as questões em foco não eram apenas a República ou a Monarquia Revelara que a república burguesa significava o despotismo ilimitado de uma classe sobre as outras14 Assim ia se esclarecendo o caminho político para o advento do proletariado como classe dominante O proletariado vai se agrupando cada vez mais em torno do socialismo revolucionário do comunismo que é a declaração de permanência da revolução da ditadura do proletariado como ponto de transição necessário para a supressão das diferenças de classe em geral para a supressão de todas as relações de produção em que repousam tais diferenças de todas as relações sociais que correspondem a estas relações de produção para a subversão de todas as idéias que resultam dessas relações sociais15 Na luta pelas liberdades democráticas de organização sindical e política o proletariado defende o seu direito a organizarse contra o capital o seu direito à vida Situandose à frente dessa luta os comunistas não o fazem em nome de um ideal democrático universal por cima das classes que seria comum ao proletariado e à burguesia Na luta pela defesa e ampliação da democracia política contra a reação burguesa a classe operária age com seus próprios métodos ação direta greve geral preparando as condições para a derrubada da burguesia Nessas condições o sufrágio universal é o índice que permite medir a maturidade da classe operária No Estado atual não pode nem poderá jamais ir além disso mas é o suficiente No dia em que o termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição eles saberão tanto quanto os capitalistas o que lhes resta a fazer16 No seu escrito de outubro de 1937 Noventa Anos do Manifesto Comunista Leon Trotsky resgatou a interpretação revolucionária do Manifesto contra a sua deformação democratizante O proletariado não pode conquistar o poder dentro do sistema legal estabelecido pela burguesia Os comunistas proclamam abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente O reformismo procurou explicar este postulado do Ma 14 Karl Marx O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte In Textos Op cit vol 3 p 220 15 Karl Marx As Lutas de Classes na França In Textos Op cit vol 3 p 121 16 Friedrich Engels Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado Rio de Janeiro Vitória 1964 p 138 nifesto com base na imaturidade do movimento operário nessa época e no desenvolvimento inadequado da democracia O destino das democracias italiana alemã e de um grande número de outras prova que a imaturidade é o traço que distingue as idéias dos próprios reformistas As origens do Manifesto O grande antecedente do Manifesto Comunista são os Princípios do Comunismo redigidos por Engels por encomenda da Liga dos Justos sob a forma de perguntas e respostas catecismo nos quais o comunismo é definido como a aprendizagem das condições de libertação do proletariado17 Assim como o Manifesto os Princípios contêm um programa de ação na verdade um verdadeiro programa transicional em doze pontos e define claramente que a revolução proletária não será feita num só país já que a grande indústria criando o mercado mundial aproximou já tão estreitamente uns dos outros os povos da Terra que cada povo depende estreitamente do que acontece com os outros a revolução social não será uma revolução puramente nacional Produzirseá ao mesmo tempo em todos os países civilizados Engels foi o precursor do antistalinismo Foi o próprio Engels quem sugeriu a substituição dos Princípios pelo Manifesto que poderia conter os elementos históricos que o catecismo não continha De acordo com Franz Mehring a forma dos Princípios teria em todo caso contribuído para tornálo acessível a todos e não o contrário Teria sido mais apropriado às necessidades de agitação do momento do que o Manifesto que o substituiu quanto ao desenvolvimento das idéias os dois documentos coincidem inteiramente No entanto Engels mostrando até que ponto era escrupuloso sacrificaria de saída as 25 perguntas e respostas por uma exposição histórica o Manifesto no qual o comunismo se anunciaria como um fenômeno histórico universal deveria como dizia o historiador grego Tucídides ser uma obra durável e não um panfleto para ser esquecido tão rapidamente quanto lido O Manifesto posterior não contém uma única idéia que Marx e Engels já não tivessem exposto anteriormente Ele não revelava nada ele apenas concentrava a nova concepção do mundo de seus autores em um espelho cujo vidro não poderia ser mais transparente nem o quadro mais circunscrito A julgar pelo estilo a forma definitiva do Manifesto devese principalmente a Marx enquanto Engels como demonstra o seu projeto conhecia com a mesma clareza as idéias que foram expostas merecendo plenamente o título de coautor18 O próprio Engels reconheceu posteriormente a paternidade de Marx sobre as idéias fundamentais do Manifesto Engels no entanto havia tido um papel muito mais ativo do que Marx na Liga o que fez nascer uma suposta divisão de trabalho entre um Engels prático e um Marx teórico esquecendo o importante trabalho de organização feito por Marx nos três anos precedentes Riazanov protestou contra essa lenda Os historiadores não levaram em consideração todo esse trabalho de organização de Marx quando fizeram dele um pensador de biblioteca Não perceberam o papel de Marx como organizador perdendo assim um dos ângulos mais interessantes de sua fisionomia Sem conhecer o papel que Marx e eu digo Marx e não Engels exerceu entre 184647 como dirigente e inspirador de todo esse trabalho de organização fica impossível compreender o grande papel que ele exerceu em seguida como organizador entre 184849 na época da I Internacional19 O exagero de Riazanov quanto ao papel de Engels não ao de Marx é um excesso polêmico contra a socialdemocracia que no período em que foi escrita a obra de Riazanov fazia apelo ao reformismo inexistente de Engels contra o revolucionarismo bolchevique O Manifesto e a dialética O ponto de partida históricouniversal total e simultaneamente classista já contido nos Princípios e desenvolvido no Manifesto permitiu a Marx e Engels superar a filosofia da qual eram ambos tributários o hegelianismo na questãochave do Estado que Hegel ainda via sob uma forma abstrata e ao mesmo tempo localista alemã Uma multidão de seres humanos somente pode ser chamada Estado se estiver unida para a defesa comum da totalidade Gesamtheit de aquilo que é sua propriedade Para que uma multidão constitua um Estado é necessário que organize uma defesa e uma autoridade política comum20 Para Marx e Engels o Estado nasce dos antagonismos de classe e na 17 Cf Friedrich Engels Princípios do Comunismo e Outros Textos São Paulo Mandacaru 1990 18 Franz Mehring Vie de Karl Marx Paris Pie 1984 pp 662663 19 David Riazanov Marx et Engels ed cit p 72 20 G W F Hegel La Constitución de Alemania Madri Aguilar 1972 pp 2223 era burguesa ele é de acordo com o Manifesto o comitê administrativo dos interesses comuns da burguesia Esta afirmação nada tem de circunstancial como se pretendeu posteriormente e resulta do posicionamento metodológico mais profundo do Manifesto ou seja do marxismo O mais notável porém é que o Manifesto não é só uma novidade com relação à concepção linear dos pensadores históricosociais do século XVIII mas também com relação à concepção semelhante defendida por pensadores do século XX os mesmos que consideram Marx como um pensador do século XIX cujas concepções só se vinculariam à realidade histórica de sua época Comparase assim a precisa e viva análise do Manifesto acerca da ruptura qualitativa imposta pela era do capital na História universal suas raízes diferenciadas dos modos de produção precedentes abrindo o período da História mundial propriamente dita com as concepções de um Immanuel Wallerstein acerca do capitalismo histórico para quem o capital sempre existiu sendo o capitalismo o sistema em que o capital veio a ser usado investido de forma muito específica O capitalismo histórico significaria a mercantilização generalizada dos processos que anteriormente haviam percorrido vias que não as de um mercado Um retrocesso de um século e meio com relação à superação da produção mercantil pela produção capitalista e à concepção dialética da História que inclui as rupturas históricas já expostas no Manifesto O Manifesto reconhece seus antecedentes além do já citado de Engels os Princípios em toda a obra teórica precedente de Marx Maximilien Rubel já disse que foi em Paris que Marx escreveu para os Anais FrancoAlemães um primeiro manifesto revolucionário que já foi chamado de o germe dO Manifesto Comunista Zur Kritik der Hegelschen RechtsphilosophieEinleitung Nesse ensaio ele se refere pela primeira vez ao proletariado como classe e fala da formação Bildung da classe operária Esses dois conceitos já haviam sido associados concretamente em um documento publicado em Paris quatro meses antes de sua chegada em LUnion Ouvrière de Flora Tristan Em 1843 a grande organizadora operária francesa Flora Tristan fazia um chamado Venho propor a união geral dos operários e operárias de todo o reino sem distinção de ofícios Esta união teria por objetivo construir a classe operária e construir estabelecimentos Palácios da União Operária distribuídos por toda a França Seriam aí educadas crianças dos dois sexos dos 6 aos 18 anos e seriam também recebidos os operários doentes os feridos e os velhos Há na França cinco milhões de operários e dois milhões de operárias Na sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Marx criticava no filósofo alemão que reclamasse não só o espírito do Estado mas também o espírito da autoridade o espírito burocrático chegando a criticar a inconsequência surda e o espírito da autoridade de Hegel que chegam a ser verdadeiramente repugnantes grifo de Marx O espectro que ronda a Europa No mesmo momento em que Marx chegava a essas conclusões o comunismo se tornava uma força política na Alemanha e na Europa o espectro de que fala o Manifesto na sua frase inicial De acordo com David McLellan o socialismo e o comunismo os termos eram usados aleatoriamente na Alemanha nessa época tinham existido como doutrina na Alemanha desde pelo menos o início da década de 1830 mas foi em 1842 que eles atraíram a atenção geral pela primeira vez Isso se deu em parte por intermédio de Moses Hess que converteu tanto Engels como Bakunin ao comunismo e publicou anonimamente propaganda comunista na Rheinische Zeitung e em parte graças ao livro de Lorenz von Stein Sozialismus und Kommunismus des heutigen Frankreichs Socialismo e Comunismo na França Contemporânea Este consistia numa investigação da difusão do socialismo francês entre os operários alemães imigrantes em Paris Em carta de Engels a Marx de 22 de fevereiro de 1845 aquele relata a situação em Elberfeld Nossa propaganda realiza um progresso extraordinário As pessoas só falam do comunismo e todo dia recrutamos novos partidários No vale do Wupper o comunismo já é uma realidade melhor dito é virtualmente uma força Você não pode imaginar como é favorável a situação As pessoas mais ignorantes mais preguiçosas e mais filistéias que há pouco não se interessavam por nada estão praticamente gabandose de seu comunismo Não sei quanto tempo isso irá durar A polícia enfrenta verdadeiras dificuldades e não sabe o que fazer O que Marx e Engels traziam ao comunismo já existente era uma capacidade de formular seus objetivos baseada numa síntese de conhecimentos que nenhum de seus teóricos pregressos principalmente franceses e ingleses possuía por diversos motivos Antes de 1848 a única práxis sobre a qual Marx podia refletir era a dos jacobinos e seus sucessores entre as seitas radicais de Paris por outro lado a sua economia e a de Engels era já a dos socialistas ricardianos e owenistas da GrãBretanha Mas o arsenal de instrumentos conceituais com que contribuiu para o conhecimento dos fatos compreendia um elemento que nem o racionalismo francês nem o empirismo britânico podiam prover a filosofia da História de Hegel e a visão de que a totalidade do mundo forma um conjunto ordenado que o intelecto pode compreender e dominar Em 1860 em Herr Vogt Marx expôs o caminho teórico que o levaria à redação do Manifesto como programa para a Liga dos Justos ou dos Comunistas percorrido na década de 1840 Publicamos ao mesmo tempo uma série de folhetos impressos ou litografados Submetemos a uma crítica impiedosa a mistura de socialismo ou comunismo anglofrancês e de filosofia alemã que constituía na época a doutrina secreta da Liga estabelecemos que apenas o estudo científico da estrutura econômica da sociedade burguesa podia proporcionar uma sólida base teórica e expusemos por último em forma popular que não se tratava de colocar em vigor um sistema utópico mas de intervir com conhecimento de causa no processo de transformação histórica que se efetuava na sociedade Em A Sagrada Família de 1845 Marx já tinha claro que se tratava de dotar de um programa a um movimento já existente e consciente de seus objetivos Não há necessidade de explicar aqui que uma grande parte do proletariado inglês e francês já está consciente de sua tarefa histórica e trabalha constantemente para desenvolver essa consciência com total clareza O objetivo político do Manifesto portanto é dotar de um programa a um partido cujos contornos estão ainda pouco definidos O partido communista de que fala o Manifesto é um partido internacional cujos embriões são a Liga dos Comunistas e os Fraternal Democrats isto é de um lado uma organização composta sobretudo por alemães mas dispersa por toda a Europa e de outro uma organização concentrada em Londres mas composta de representantes exilados de grupos operários e comunistas de vários países do continente O Manifesto e a revolução O Manifesto em 1848 foi portanto o arremate de uma obra teórica política e organizativa cujos diversos aspectos são inseparáveis ou como disse Fernando Claudín análises da conjuntura prérevolucionária formação da Liga dos Comunistas elaboração teórica estão estreitamente entrelaçadas na atividade de Marx e Engels durante o ano de 1847 e janeirofevereiro de 1848 sendo que o seu resultado políticoorganizacional no segundo congresso da Liga e sua grande síntese teóricopolítica foi o Manifesto O centro do Manifesto porém é a elaboração de um programa para a revolução vindoura na qual Jean Jaurès foi o primeiro em ver uma teoria da revolução proletária que coincide com aquela que mais tarde será chamada de revolução permanente O socialista argentino Juan B Justo criticou a dialética de Marx culpada segundo ele por têlo feito antever no Manifesto revoluções proletárias no horizonte de 1848 Para Karl Korsch o prognóstico de Marx sobre 1848 ficou preso à visão dos revolucionários do passado ao contrapor o programa da revolução social à concreta revolução democrática que se desenvolvia A sociedade burguesa nascida da revolução em sua sóbria realidade acabou por contradizer em grande medida tanto as elevadas idéias que de seus resultados haviam formado seus participantes e espectadores entusiastas quanto o heroísmo o sacrifício os horrores a guerra civil e as matanças populares que havia necessitado para vir ao mundo No entanto embora a explosão política de 1848 fosse previsível como dissemos acima o seu alcance social estava longe de ser evidente antes de seu acontecimento A crise econômica que precedeu o 1848 e sem a qual os movimentos insurreccionais não poderiam ter alcançado naquele ano uma amplitude muito superior àquela das conspirações tramadas ao longo das décadas precedentes por sociedades secretas ou grupos de conspiradores e inclusive aquela das banais emoções populares teve provavelmente um caráter excessivamente clássico normal para provocar uma peculiar inquietude em todos aqueles que fisicamente não foram vítimas dela Coube a Marx justamente o mérito de ter sido o único a prever a amplitude social dos acontecimentos iminentes e de formular um programa de acordo com essa perspectiva que não era vista pela burguesia liberal revolucionária seus ideólogos e chefes políticos Os chefes do movimento liberal são professores universitários Eles são hostis tanto aos plutocratas da França como à aristocracia privilegiada Eles não se ocupam do povo Eles acreditam que os problemas deste não dizem respeito ao problema político que é o único que lhes interessa Dahlmann afinal não gostaria de ver fechado o acesso à escola para os filhos dos pobres para manter o nível de mãodeobra O mínimo que podemos dizer é que a burguesia compreendia mal o problema social O programa de Marx superava em virtude disso a perspectiva de uma revolução puramente burguesa nos países em que a burguesia não tinha ainda ascendio ao poder político Contrastando com essas justificativas economicistas de uma inevitável etapa revolucionária burguesa Marx e Engels também argumentavam a partir de uma perspectiva sociopolítica que anunciava uma concepção explicitamente permanentista da revolução Nesta problemática transicional a revolução burguesa aparece como précondição na medida em que abolindo a monarquia e o poder da nobreza feudal o terreno político fica livre para a contraposição direta entre burguesia e proletariado O prognóstico do Manifesto O famoso prognóstico do Manifesto a Alemanha se encontra às vésperas de uma revolução burguesa e realizará essa revolução nas condições mais avançadas da civilização européia e com um proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra no século XVII e o da França no século XVIII e por conseguinte a revolução burguesa alemã só poderá ser o prelúdio imediato de uma revolução proletária se realizou pela negativa a revolução alemã não triunfou como revolução proletária mas por isso mesmo também abortou como revolução democrática burguesa No balanço ulterior de Trotsky em 1848 se chegou à pior das situações históricas o meiotermo A burguesia já não mais queria fazer a revolução Sua tarefa consistia antes em e disso ela se dava conta claramente incluir no velho sistema as garantias necessárias não para a sua dominação política mas simplesmente para uma divisão do poder com as forças do passado o proletariado ainda não podia fazêla por insuficiência de desenvolvimento social e político Em 1848 necessitavase de uma classe que fosse capaz de tomar o controle sobre os acontecimentos prescindindo da burguesia e inclusive em contradição com ela uma classe que estivesse disposta não apenas a empurrar a burguesia adiante com toda a sua força mas inclusive a tirar do caminho no momento decisivo o seu cadáver político Nem a pequena burguesia nem o campesinato eram capazes de fazêlo O proletariado era demasiadamente débil encontravase sem organização sem experiência e sem conhecimentos O desenvolvimento capitalista havia avançado o suficiente para tornar necessária a abolição das velhas condições feudais mas não o suficiente para permitir que a classe operária o produto das novas condições de produção se destacasse como uma força política decisiva Segundo o mesmo Trotsky o erro do Manifesto surgiu por um lado de uma subestimação das possibilidades futuras latentes no capitalismo e por outro de uma sobreestimação da maturidade revolucionária do proletariado A revolução de 1848 não se transformou em uma revolução socialista como o Manifesto havia calculado mas permitiu à Alemanha um vasto crescimento posterior de tipo capitalista De acordo com Engels a desgraça da revolução alemã foi ter chegado a reboque da revolução na França tendo a burguesia manifestado seu pavor em ser superada pela revolução social não a partir dos acontecimentos alemães mas das jornadas de junho em Paris a primeira jornada política independente da classe operária Para além do erro de prognóstico resta o fato de que os eixos metodológicos do Manifesto se revelaram corretos 1º a ideia de que o desenvolvimento econômico e social a civilização seu grau de maturação revolucionária não podem ser medidos nos limites de um só Estado mas em escala internacional européia no século XIX 2º a compreensão do fato de que uma revolução burguesa clássica de tipo inglês ou francês não se pode repetir na Alemanha em função do peso social e político que ganhou o proletariado no país 3º a intuição de que a revolução burguesa e a revolução proletária não são duas etapas históricas distintas mas dois momentos de um mesmo processo revolucionário ininterrupto36 A ressalva final de Löwy a afirmação de uma prioridade necessária da revolução burguesa abre a porta para uma interpretação de tipo etapista do texto não se justifica diante do texto do desenvolvimento histórico e sobretudo diante do balanço feito pelos próprios Marx e Engels A sina do Manifesto As revoluções de 1848 culminaram com a desmobilização proletária Foi um ano de desmobilização para o movimento operário em seu conjunto dominado pelo desânimo Em abril a Inglaterra conheceu o fracasso da grande manifestação cartista de Kennington Common ponto culminante da agitação política e social Em junho a fuzilaria da Guarda Nacional coloca na França um ponto final na era dos bons sentimentos surgida na euforia da revolução de fevereiro37 Na própria Alemanha acontece coisa semelhante de acordo com Engels não sem deixar estabelecidas as bases do movimento operário futuro Com a condenação dos comunistas de Colônia em 1852 fechamse as cortinas sobre o primeiro período do movimento independente dos trabalhadores alemães Tratase de um período hoje quase esquecido No entanto estendeuse desde 1836 até 1852 e o movimento se refletiu com a dispersão dos trabalhadores alemães pelo estrangeiro em quase todos os países civilizados Isso não é tudo O atual movimento internacional dos trabalhadores é no fundo uma continuação direta desse movimento alemão que foi o primeiro movimento operário internacional de onde saíram muitos daqueles que na Associação Internacional dos Trabalhadores tiveram um papel de liderança38 36 Michaël Löwy Revolução Burguesa e Revolução Permanente em Marx e Engels Discurso nº 99 São Paulo FFLCHUSP novembro 1978 37 Jean Christian Petitfils Os Socialismos Utópicos Rio de Janeiro Zahar 1978 p 128 38 Friedrich Engels Introducción In Karl Marx Revelaciones sobre el Processo de los Comunistas de Colonia Buenos Aires Lautaro 1946 p 9 O Manifesto Comunista teve a mesma sorte No prefácio à edição alemã de 1890 Engels lembra que foi logo colocado num segundo plano pela reação que se seguiu à derrota dos operários em Paris em junho de 1848 e que com o desaparecimento do cenário público do movimento operário que começara com a revolução de fevereiro também o Manifesto saiu da cena política A geohistória do Manifesto no entanto acompanhou o desenvolvimento político da classe operária A partir da década de 1870 multiplicaramse as edições em alemão no calor do surgimento e desenvolvimento do Partido Social Democrata nesse país Entre 1880 e 1900 de acordo com Eric Hobsbawm39 houve uma mudança significativa a 18 edições do Manifesto em alemão corresponderam 31 edições em russo Entre a morte de Marx 1883 e a de Engels 1895 ocorreu uma dupla transformação Em primeiro lugar o interesse pelas obras de Marx e de Engels intensificouse com a afirmação do movimento socialista internacional No curso desses doze anos segundo B Andreas apareceram não menos de 75 edições do Manifesto em quinze línguas É interessante notar que essas edições traduzidas nas línguas do Império Czarista eram já mais numerosas do que as editadas no original alemão 17 contra 1140 Era como se o Manifesto tivesse ganho vida própria acompanhando o fio da revolução e até antecipandoa Hoje 150 anos depois seu texto guarda a beleza e a força que o lançaram à posição de um clássico da literatura universal Suas proposições ao mesmo tempo continuam sendo o principal instrumento para se compreender os impasses do socialismo contemporâneo 39 Eric J Hobsbawm La Difusión del Marxismo entre 1890 y 1905 Estudios de Historia Social nº 89 Madri janeirojunho 1979 p 17 40 Eric J Hobsbawm A Fortuna das Edições de Marx e Engels In História do Marxismo Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 vol I p 425 Cf também Dieter Fricke La cuestión de la organización y propagación del marxismo en el movimiento obrero internacional en la época de transición al imperialismo Estudios de Historia Social nº 89 Madri janeirojunho 1979 UM ESPECTRO ronda a Europa o espectro do comunismo Todas as potências da velha Europa unemse numa Santa Aliança para conjurálo o papa e o czar Metternich e Guizot os radicais da França e os policiais da Alemanha Que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder Que partido de oposição por sua vez não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de comunista Duas conclusões decorrem desses fatos 1ª O comunismo já é reconhecido como força por todas as potências da Europa 2ª É tempo de os comunistas exporem abertamente ao mundo inteiro seu modo de ver seus objetivos e suas tendências opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo Com este fim reuniramse em Londres comunistas de várias nacionalidades e redigiram o manifesto seguinte que será publicado em inglês francês alemão italiano flamengo e dinamarquês Sobre a publicação do Manifesto nas línguas mencionadas ver as indicações dos prefácios e suas respectivas notas Capa da primeira edição do Manifesto do Partido Comunista publicada em Londres no final de fevereiro de 1848 Manifesto Comunista I Burgueses e proletários A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes Homem livre e escravo patrício e plebeu senhor feudal e servo mestre de corporação e companheiro em resumo opressores e oprimidos em constante oposição têm vivido numa guerra ininterrupta ora franca ora disfarçada uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira ou pela destruição das duas classes em conflito Nas mais remotas épocas da História verificamos quase por toda parte uma completa estruturação da sociedade em classes distintas uma múltipla gradação das posições sociais Na Roma antiga encontramos patrícios cavaleiros plebeus escravos na Idade Média senhores vassalos mestres das corporações aprendizes companheiros servos e em cada uma destas classes outras gradações particulares A sociedade burguesa moderna que brotou das ruínas da sociedade feudal não aboliu os antagonismos de classe Não fez mais do que estabelecer novas classes novas condições de opressão novas formas de luta em lugar das que existiram no passado Entretanto a nossa época a época da burguesia caracterizase por ter simplificado os antagonismos de classe A sociedade dividese cada 1 Por burguesia entendese a classe dos capitalistas modernos proprietários dos meios de produção social que empregam o trabalho assalariado Por proletariado a classe dos assalariados modernos que não tendo meios próprios de produção são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver Nota de F Engels à edição inglesa de 1888 2 Isto é toda história escrita A préHistória a organização social anterior à história escrita era desconhecida em 1847 Mais tarde Haxthausen August von 17921866 descobriu a propriedade comum da terra na Rússia Maurer Georg Ludwig von mostrou ter sido essa a base social da qual as tribos teutônicas derivaram historicamente e pouco a pouco verificouse que a comunidade rural era a forma primitiva da sociedade desde a Índia até a Irlanda A organização interna dessa sociedade comunista primitiva foi desvendada em sua forma típica pela descoberta de Morgan Lewis Henry 181881 da verdadeira natureza de gens e de sua relação com a tribo Após a dissolução dessas comunidades primitivas a sociedade passou a dividirse em classes distintas Procurar traçar esse processo de dissolução na obra Der Ursprung der Familie des Privatgerthenhuns und des Staats A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado 2 ed Stuttgart 1866 Nota de F Engels à edição inglesa de 1888 3 O mestre de corporação é um membro da guilda o patrão interno e não seu dirigente Nota de F Engels à edição inglesa de 1888 40 vez mais em dois campos opostos em duas grandes classes em confronto direto a burguesia e o proletariado Dos servos da Idade Média nasceram os moradores dos primeiros burgos desta população municipal saíram os primeiros elementos da burguesia A descoberta da América a circunavegação da África abriram um novo campo de ação à burguesia emergente Os mercados das Índias Orientais e da China a colonização da América o comércio colonial o incremento dos meios de troca e das mercadorias em geral imprimiram ao comércio à indústria e à navegação um impulso desconhecido até então e por conseguinte desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição A organização feudal da indústria em que esta era circunscrita a corporações fechadas já não satisfazia as necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados A manufatura a substituiu A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina Todavia os mercados ampliavamse cada vez mais a procura por mercadorias continuava a aumentar A própria manufatura tornouse insuficiente então o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial A grande indústria moderna suplantou a manufatura a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria aos chefes de verdadeiros exércitos industriais aos burgueses modernos A grande indústria criou o mercado mundial preparado pela descoberta da América O mercado mundial acelerou enormemente o desenvolvimento do comércio da navegação dos meios de comunicação Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a expansão da indústria e à medida que a indústria o comércio a navegação as vias férreas se desenvolviam crescia a burguesia multiplicando seus capitais e colocando num segundo plano todas as classes legadas pela Idade Média Vemos pois que a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento de uma série de transformações no modo de produção e de circulação Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia foi acompanhada de um progresso político correspondente Classe oprimida pelo despotismo feudal associação armada e autônoma na comu 41 na aqui república urbana independente ali terceiro estado tributário da monarquia depois durante o período manufatureiro contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta base principal das grandes monarquias a burguesia com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial conquistou finalmente a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno O executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário Onde quer que tenha conquistado o poder a burguesia destruiu as relações feudais patriarcais e idílicas Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus superiores naturais para só deixar subsistir de homem para homem o laço do frio interesse as duras exigências do pagamento à vista Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa do entusiasmo cavalheiresco do sentimentalismo pequenoburguês nas águas geladas do cálculo egoísta Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca substituiu as numerosas liberdades conquistadas duramente por uma única liberdade sem escrúpulos a do comércio Em uma palavra em lugar da exploração dissimulada por ilusões religiosas e políticas a burguesia colocou uma exploração aberta direta despudorada e brutal A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas como dignas e encaradas com piedoso respeito Fez do médico do jurista do sacerdote do poeta do sábio seus servidores assalariados A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziuas a meras relações monetárias A burguesia revelou como a brutal manifestação de força na Idade Média tão admirada pela reação encontra seu complemento natural na ociosidade mais completa Foi a primeira a provar o que a atividade humana pode realizar criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito os aquedutos romanos as catedrais góticas conduziu expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as Cruzadas A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção por conseguinte as relações de produção e com isso todas as relações sociais A conservação inalterada do antigo modo de produção era pelo contrário a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores Essa subversão contínua da produção esse abalo constante de todo o sistema social essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes Dissolvemse todas as relações sociais antigas e cristalizadas com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas as relações que as substituem tornamse antiquadas antes de se consolidarem Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusão a sua posição social e as suas relações com os outros homens Impelida pela necessidade de mercados sempre novos a burguesia invade todo o globo terrestre Necessita estabelecerse em toda parte explorar em toda parte criar vínculos em toda parte Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países Para desespero dos reacionários ela roubou da indústria sua base nacional As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente São suplantadas por novas indústrias cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas indústrias que já não empregam matériasprimas nacionais mas sim matériasprimas vindas das regiões mais distantes e cujos produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do mundo Ao invés das antigas necessidades satisfeitas pelos produtos nacionais surgem novas demandas que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais diversos No lugar do antigo isolamento de regiões e nações autosuficientes desenvolvemse um intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual As criações intelectuais de uma nação tornamse patrimônio comum A estreiteza e a unilateralidade nacionais tornamse cada vez mais impossíveis das numerosas literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal 42 Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante progresso dos meios de comunicação a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações até mesmo as mais bárbaras Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga à capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros Sob pena de ruína total ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção constrangeas a abraçar a chamada civilização isto é a se tornarem burguesas Em uma palavra cria um mundo à sua imagem e semelhança A burguesia submeteu o campo à cidade Criou grandes centros urbanos aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e com isso arrancou uma grande parte da população do emburrecimento da vida rural Do mesmo modo que subordinou o campo à cidade os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados subordinou os povos camponeses aos povos burgueses o Oriente ao Ocidente A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção da propriedade e da população Aglomerou as populações centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos A consequência necessária dessas transformações foi a centralização política Províncias independentes ligadas apenas por débeis laços federativos possuindo interesses leis governos e tarifas aduaneiras diferentes foram reunidas em uma só nação com um só governo uma só lei um só interesse nacional de classe uma só barreira alfandegária A burguesia em seu domínio de classe de apenas um século criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto A subjugação das forças da natureza as máquinas a aplicação da química na indústria e na agricultura a navegação a vapor as estradas de ferro o telégrafo elétrico a exploração de continentes inteiros a canalização dos rios populações inteiras brotando da terra como por encanto que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social Vimos portanto que os meios de produção e de troca sobre cuja base se ergue a burguesia foram gerados no seio da sociedade feudal Numa certa etapa do desenvolvimento desses meios de produção e de troca as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava a organização feudal da agricultura e da manufatura em suma o regime feudal de propriedade deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno desenvolvimento Tolhiam a produção em lugar de impulsionála Transformaramse em outros tantos grilhões que era preciso despedaçar e foram despedaçados Em seu lugar surgiu a livre concorrência com uma organização social e política apropriada com a supremacia econômica e política da classe burguesa Assistimos hoje a um processo semelhante A sociedade burguesa com suas relações de produção e de troca o regime burguês de propriedade a sociedade burguesa moderna que conjurou gigantescos meios de produção e de troca assemelhase ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou Há dezenas de anos a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção contra as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio Basta mencionar as crises comerciais que repetindose periodicamente ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos fabricados mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas Uma epidemia que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo desaba sobre a sociedade a epidemia da superprodução A sociedade vêse subitamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea como se a fome ou uma guerra de extermínio houvessem lhe cortado todos meios de subsistência o comércio e a indústria parecem aniquilados E por quê Porque a sociedade possui civilização em excesso meios de subsistência em excesso indústria em excesso comércio em excesso As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações burguesas de propriedade pelo contrário tornaramse poderosas demais para estas condições passam a ser tolidas por elas e assim que se libertam desses entraves lançam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa O sistema burguês tornouse demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio E de que maneira consegue a burguesia vencer essas crises De um lado pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas de outro pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos A que leva isso Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitálas As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltamse hoje contra a própria burguesia 44 45 A burguesia porém não se limitou a forjar as armas que lhe trarão a morte produziu também os homens que empunharão essas armas os operários modernos os proletários Com o desenvolvimento da burguesia isto é do capital desenvolvese também o proletariado a classe dos operários modernos os quais só vivem enquanto têm trabalho e só têm trabalho enquanto seu trabalho aumenta o capital Esses operários constrangidos a venderse a retalho são mercadoria artigo de comércio como qualquer outro em consequência estão sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência a todas as flutuações do mercado O crescente emprego de máquinas e a divisão do trabalho despojaram a atividade do operário de seu caráter autônomo tirandolhe todo o atrativo O operário tornase um simples apêndice da máquina e dele só se requer o manejo mais simples mais monótono mais fácil de aprender Desse modo o custo do operário se reduz quase exclusivamente aos meios de subsistência que lhe são necessários para viver e perpetuar sua espécie Ora o preço do trabalho como de toda mercadoria é igual ao seu custo de produção Portanto à medida que aumenta o caráter enfadonho do trabalho decrescem os salários Mais ainda na mesma medida em que aumenta a maquinaria e a divisão do trabalho sobe também a quantidade de trabalho quer pelo aumento das horas de trabalho quer pelo aumento do trabalho exigido num determinado tempo quer pela aceleração do movimento das máquinas etc A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica do industrial capitalista Massas de operários amontoadas na fábrica são organizadas militarmente Como soldados rasos da indústria estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais Não são apenas servos da classe burguesa do Estado burguês mas também dia a dia hora a hora escravos da máquina do contramestre e sobretudo do dono da fábrica E esse despotismo é tanto mais mesquinho mais odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo Quanto menos habilidade e força o trabalho manual exige isto é quanto mais a indústria moderna progride tanto mais o trabalho dos homens é suplantado pelo de mulheres e crianças As diferenças de idade e de sexo não têm mais importância social para a classe operária Não há senão instrumentos de trabalho cujo preço varia segundo a idade e o sexo Depois de sofrer a exploração do fabricante e de receber seu salário em dinheiro o operário tornase presa de outros membros da burguesia o senhorio o varejista o penhorista etc As camadas inferiores da classe média de outrora os pequenos industriais pequenos comerciantes os que vivem de rendas rentiers artesãos e camponeses caem nas fileiras do proletariado uns porque seu pequeno capital não permite empregar os processos da grande indústria e sucumbem na concorrência com os grandes capitalistas outros porque sua habilidade profissional é depreciada pelos novos métodos de produção Assim o proletariado é recrutado em todas as classes da população O proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento Sua luta contra a burguesia começa com a sua existência No começo empenhamse na luta operários isolados mais tarde operários de uma mesma fábrica finalmente operários de um mesmo ramo de indústria de uma mesma localidade contra o burguês que os explora diretamente Dirigem os seus ataques não só contra as relações burguesas de produção mas também contra os instrumentos de produção destroem as mercadorias estrangeiras que lhes fazem concorrência quebram as máquinas queimam as fábricas e esforçamse para reconquistar a posição perdida do trabalhador da Idade Média Nessa fase o proletariado constitui massa disseminada por todo o país e dispersa pela concorrência A coesão maciça dos operários não é ainda o resultado de sua própria união mas da união da burguesia que para atingir seus próprios fins políticos é levada a pôr em movimento todo o proletariado o que por enquanto ainda pode fazer Durante essa fase os proletários não combatem seus próprios inimigos mas os inimigos de seus inimigos os restos da monarquia absoluta os proprietários de terras os burgueses nãoindustriais os pequenos burgueses Todo o movimento histórico está desse modo concentrado nas mãos da burguesia e qualquer vitória alcançada nessas condições é uma vitória burguesa Mas com o desenvolvimento da indústria o proletariado não apenas se multiplica comprimese em massas cada vez maiores sua força cresce e ele adquire maior consciência dela Os interesses as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais à medida que a máquina extingue toda diferença de trabalho e quase por toda parte reduz o salário a um nível igualmente baixo Em virtude da concorrência crescente dos burgueses entre si e devido às crises comerciais que disso resultam os salários se tornam cada vez mais instáveis o aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas torna a condição de vida do operário cada vez mais precária os choques individuais entre o operário singular e o burguês singular tomam cada vez mais o caráter de confrontos entre duas classes Os operários começam a formar coalizões contra os burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários chegam a fundar associações permanentes a fim de se precaverem de insurreições eventuais Aqui e ali a luta irrompe em motim De tempos em tempos os operários triunfam mas é um triunfo efêmero O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de comunicação criados pela grande indústria e que permitem o contato entre operários de diferentes localidades Basta porém este contato para concentrar as numerosas lutas locais que têm o mesmo caráter em toda parte em uma luta nacional uma luta de classes Mas toda luta de classes é uma luta política E a união que os burgueses da Idade Média com seus caminhos vicinais levaram séculos a realizar os proletários modernos realizam em poucos anos por meio das ferrovias A organização do proletariado em classe e portanto em partido político é incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre si os próprios operários Mas renasce sempre e cada vez mais forte mais sólida mais poderosa Aproveitase das divisões internas da burguesia para obrigála ao reconhecimento legal de certos interesses da classe operária como por exemplo a lei da jornada de dez horas de trabalho na Inglaterra Em geral os choques que se produzem na velha sociedade favorecem de diversos modos o desenvolvimento do proletariado A burguesia vive em luta permanente primeiro contra a aristocracia depois contra as frações da própria burguesia cujos interesses se encontram em conflito com os progressos da indústria e sempre contra a burguesia dos países estrangeiros Em todas estas lutas vêse forçada a apelar para o proletariado a recorrer a sua ajuda e desta forma arrastálo para o movimento político A burguesia fornece aos proletários os elementos de sua própria educação política isto é armas contra ela própria Além disso como já vimos frações inteiras da classe dominante em consequência do desenvolvimento da indústria são lançadas no proletariado ou pelo menos ameaçadas em suas condições de existência Também elas trazem ao proletariado numerosos elementos de educação Finalmente nos períodos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva o processo de dissolução da classe dominante de toda a velha sociedade adquire um caráter tão violento e agudo que uma pequena fração da classe dominante se desliga desta ligandose à classe revolucionária à classe que traz nas mãos o futuro Do mesmo modo que outrora uma parte da nobreza passou para a burguesia em nossos dias uma parte da burguesia passa para o proletariado especialmente a parte dos ideólogos burgueses que chegaram à compreensão teórica do movimento histórico em seu conjunto De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria o proletariado pelo contrário é seu produto mais autêntico As camadas médias pequenos comerciantes pequenos fabricantes artesãos camponeses combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias Não são pois revolucionárias mas conservadoras mais ainda são reacionárias pois pretendem fazer girar para trás a roda da História Quando se tornam revolucionárias isto se dá em consequência de sua iminente passagem para o proletariado não defendem então seus interesses atuais mas seus interesses futuros abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado O lúmpenproletariado putrefação passiva das camadas mais baixas da velha sociedade pode às vezes ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária todavia suas condições de vida o predispõem mais a venderse à reação As condições de existência da velha sociedade já estão destruídas nas condições de existência do proletariado O proletário não tem propriedade suas relações com a mulher e os filhos já nada têm em comum com as relações familiares burguesas O trabalho industrial moderno a subjugação do operário ao capital tanto na Inglaterra como na França na América como na Alemanha despoja o proletário de todo caráter nacional As leis a moral a religião são para ele meros preconceitos burgueses atrás dos quais se ocultam outros tantos interesses burgueses Todas as classes que no passado conquistaram o poder trataram de consolidar a situação adquirida submetendo toda a sociedade às suas condições de apropriação Os proletários não podem apoderarse das forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e por conseguinte todo modo de apropriação existente até hoje Os proletários nada têm de seu a salvaguardar sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada até aqui existentes Todos os movimentos históricos têm sido até hoje movimentos de minorias ou em proveito de minorias O movimento proletário é o movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria O proletariado a camada mais baixa da sociedade atual não pode erguerse pôrse de pé sem fazer saltar todos os estratos superpostos que constituem a sociedade oficial A luta do proletariado contra a burguesia embora não seja na essência uma luta nacional revestese dessa forma num primeiro momento É natural que o proletariado de cada país deva antes de tudo liquída a sua própria burguesia Esboçando em linhas gerais as fases do desenvolvimento proletário descrevemos a história da guerra civil mais ou menos oculta na sociedade existente até a hora em que essa guerra explode numa revolução aberta e o proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta da burguesia Todas as sociedades anteriores como vimos se basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas Mas para oprimir uma classe é preciso poder garantirlhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência servil O servo em plena servidão conseguiu tornarse membro da comuna da mesma forma que o pequeno burguês sob o jugo do absolutismo feudal elevouse à categoria de burguês O operário moderno pelo contrário longe de se elevar com o progresso da indústria desce cada vez mais caindo abaixo das condições de sua própria classe O trabalhador tornase um indigente e o pauperismo cresce ainda mais rapidamente do que a população e a riqueza Fica assim evidente que a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante e de impor à sociedade como lei suprema as condições de existência de sua classe Não pode exercer o seu domínio porque não pode mais assegurar a existência de seu escravo mesmo no quadro de sua escravidão porque é obrigada a deixálo afundar numa situação em que deve nutrilo em lugar ser nutrida por ele A sociedade não pode mais existir sob sua dominação o que quer dizer que a existência da burguesia não é mais compatível com a sociedade gum em idéias ou princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo São apenas a expressão geral das condições efetivas de uma luta de classes que existe de um movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos A abolição das relações de propriedade que até hoje existiram não é uma característica peculiar e exclusiva do comunismo Todas as relações de propriedade têm passado por modificações constantes em consequência das contínuas transformações das condições históricas A Revolução Francesa por exemplo aboliu a propriedade feudal em proveito da propriedade burguesa O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral mas a abolição da propriedade burguesa Mas a moderna propriedade privada burguesa é a última e mais perfeita expressão do modo de produção e de apropriação baseado nos antagonismos de classes na exploração de uns pelos outros Nesse sentido os comunistas podem resumir sua teoria numa única expressão supressão da propriedade privada Nós comunistas temos sido sensurados por querer abolir a propriedade pessoalmente adquirida fruto do trabalho do indivíduo propriedade que dizem ser a base de toda liberdade de toda atividade de toda independência individual Propriedade pessoal fruto do trabalho e do mérito Falais da propriedade do pequeno burguês do pequeno camponês forma de propriedade anterior à propriedade burguesa Não precisamos abolila porque o progresso da indústria já a aboliu e continua abolindoa diariamente Ou porventura falais da moderna propriedade privada da propriedade burguesa Mas o trabalho do proletário o trabalho assalariado cria propriedade para o proletário De modo algum Cria o capital isto é a propriedade que explora o trabalho assalariado e que só pode aumentar sob a condição de gerar novo trabalho assalariado para voltar a explorálo Em sua forma atual a propriedade se move entre dois termos antagônicos capital e trabalho Examinemos os termos desse antagonismo Ser capitalista significa ocupar não somente uma posição pessoal mas também uma posição social na produção O capital é um produto coletivo e só pode ser posto em movimento pelos esforços combinados de muitos membros da sociedade em última instância pelos esforços combinados de todos os membros da sociedade 52 O capital não é portanto um poder pessoal é um poder social Assim quando o capital é transformado em propriedade comum pertencente a todos os membros da sociedade não é uma propriedade pessoal que se transforma em propriedade social O que se transformou foi o caráter social da propriedade Esta perde seu caráter de classe Vejamos agora o trabalho assalariado O preço médio que se paga pelo trabalho assalariado é o mínimo de salário ou seja a soma dos meios de subsistência necessários para que o operário viva como operário Por conseguinte o que o operário recebe com o seu trabalho é o estritamente necessário para a mera conservação e reprodução de sua existência Não pretendemos de modo algum abolir essa apropriação pessoal dos produtos do trabalho indispensável à manutenção e à reprodução da vida humana uma apropriação que não deixa nenhum lucro líquido que confira poder sobre o trabalho alheio Queremos apenas suprimir o caráter miserável desta apropriação que faz com que o operário só viva para aumentar o capital e só viva na medida em que o exigem os interesses da classe dominante Na sociedade burguesa o trabalho vivo é sempre um meio de aumentar o trabalho acumulado Na sociedade comunista o trabalho acumulado é um meio de ampliar enriquecer e promover a existência dos trabalhadores Na sociedade burguesa o passado domina o presente na sociedade comunista é o presente que domina o passado Na sociedade burguesa o capital é independente e pessoal ao passo que o indivíduo que trabalha é dependente e impessoal É a supressão dessa situação que a burguesia chama de supressão da individualidade e da liberdade E com razão Porque se trata efetivamente de abolir a individualidade burguesa a independência burguesa a liberdade burguesa Por liberdade nas atuais relações burguesas de produção compreendese a liberdade de comércio a liberdade de comprar e vender Mas se o tráfico desaparece desaparecerá também a liberdade de traficar Toda a fraseologia sobre o livre comércio bem como todas as bravatas de nossa burguesia sobre a liberdade só têm sentido quando se referem ao comércio constrangido e ao burguês oprimido da Idade Média nenhum sentido têm quando se trata da supressão comunista do tráfico das relações burguesas de produção e da própria burguesia Horrorizarvos porque queremos suprimir a propriedade privada Mas em vossa sociedade a propriedade privada está suprimida para nove décimos de seus membros E é precisamente porque não existe para estes nove décimos que ela existe para vós Censurainos portanto por querermos abolir uma forma de propriedade que pressupõe como condição necessária que a imensa maioria da sociedade não possua propriedade Numa palavra censurainos por querermos abolir a vossa propriedade De fato é isso que queremos A partir do momento em que o trabalho não possa mais ser convertido em capital em dinheiro em renda da terra numa palavra em poder social capaz de ser monopolizado isto é a partir do momento em que a propriedade individual não possa mais se converter em propriedade burguesa declarais que o indivíduo está suprimido Confessais no entanto que quando falais do indivíduo quereis referirvos unicamente ao burguês ao proprietário burguês E este indivíduo sem dúvida deve ser suprimido O comunismo não priva ninguém do poder de se apropriar de sua parte dos produtos sociais apenas suprime o poder de subjugar o trabalho de outros por meio dessa apropriação Alegase ainda que com a abolição da propriedade privada toda a atividade cessaria uma inércia geral apoderarseia do mundo Se isso fosse verdade há muito que a sociedade burguesa teria sucumbido à ociosidade pois os que no regime burguês trabalham não lucram e os que lucram não trabalham Toda a objeção se reduz a essa tautologia não haverá mais trabalho assalariado quando não mais existir capital As objeções feitas ao modo comunista de produção e de apropriação dos produtos materiais foram igualmente ampliadas à produção e à apropriação dos produtos do trabalho intelectual Assim como o desaparecimento da propriedade de classe equivale para o burguês ao desaparecimento de toda a produção o desaparecimento da cultura de classe significa para ele o desaparecimento de toda a cultura A cultura cuja perda o burguês deplora é para a imensa maioria dos homens apenas um adestramento que os transforma em máquinas Mas não discutais conosco aplicando à abolição da propriedade burguesa o critério de vossas noções burguesas de liberdade cultura direito etc Vossas próprias idéias são produtos das relações de produção e de propriedade burguesas assim como o vosso direito não passa da vontade de vossa classe erigida em lei vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de vossa existência como classe Essa concepção interesseira que vos leva a transformar em leis eternas da natureza e da razão as relações sociais oriundas do vosso modo de produção e de propriedade relações transitórias que surgem e desaparecem no curso da produção é por vós compartilhada com todas as classes dominantes já desaparecidas O que aceitais para a propriedade antiga o que aceitais para a propriedade feudal já não podeis aceitar para a propriedade burguesa Supressão da família Até os mais radicais se indignam com esse propósito infame dos comunistas Sobre que fundamento repousa a família atual a família burguesa Sobre o capital sobre o ganho individual A família na sua plenitude só existe para a burguesia mas encontra seu complemento na ausência forçada da família entre os proletários e na prostituição pública A família burguesa desvanecese naturalmente com o desvanecer de seu complemento e ambos desaparecem com o desaparecimento do capital Censurainos por querermos abolir a exploração das crianças pelos seus próprios pais Confessamos este crime Dizeis também que destruimos as relações mais íntimas ao substituirmos a educação doméstica pela educação social E vossa educação não é também determinada pela sociedade pelas condições sociais em que educais vossos filhos pela intervenção direta ou indireta da sociedade por meio de vossas escolas etc Os comunistas não inventaram a intromissão da sociedade na educação apenas procuram modificar seu caráter arrancando a educação da influência da classe dominante O palavreado burguês sobre a família e a educação sobre os doces laços que unem a criança aos pais tornase cada vez mais repugnante à medida que a grande indústria destrói todos os laços familiares dos proletários e transforma suas crianças em simples artigos de comércio em simples instrumentos de trabalho Vós comunistas quereis introduzir a comunidade das mulheres gritanos toda a burguesia em coro Para o burguês a mulher nada mais é do que um instrumento de produção Ouvindo dizer que os instrumentos de produção serão explorados em comum conclui naturalmente que o destino de propriedade coletiva caberá igualmente às mulheres Não imagina que se trata preci 54 55 samente de arrancar a mulher de seu papel de simples instrumento de produção De resto nada é mais ridículo que a virtuosa indignação que os nossos burgueses em relação à pretensa comunidade oficial das mulheres que adotariam os comunistas Os comunistas não precisam introduzir a comunidade das mulheres Ela quase sempre existiu Nossos burgueses não contentes em ter à sua disposição as mulheres e as filhas dos proletários sem falar da prostituição oficial têm singular prazer em seduzir as esposas uns dos outros O casamento burguês é na realidade a comunidade das mulheres casadas No máximo poderiam acusar os comunistas de querer substituir uma comunidade de mulheres hipócrita e dissimulada por outra que seria franca e oficial De resto é evidente que com a abolição das atuais relações de produção desaparecerá também a comunidade das mulheres que deriva dessas relações ou seja a prostituição oficial e nãooficial Os comunistas também são acusados de querer abolir a pátria a nacionalidade Os operários não têm pátria Não se lhes pode tirar aquilo que não possuem Como porém o proletariado tem por objetivo conquistar o poder político e elevarse a classe dirigente da nação tornarse ele próprio nação ele é nessa medida nacional mas de modo nenhum no sentido burguês da palavra Os isolamentos e os antagonismos nacionais entre os povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento da burguesia com a liberdade de comércio com o mercado mundial com a uniformidade da produção industrial e com as condições de existência a ela correspondentes A supremacia do proletariado fará com que desapareçam ainda mais depressa A ação comum do proletariado pelo menos nos países civilizados é uma das primeiras condições para sua emancipação À medida que for suprimida a exploração do homem pelo homem será suprimida a exploração de uma nação por outra Quando os antagonismos de classes no interior das nações tiverem desaparecido desaparecerá a hostilidade entre as próprias nações As acusações feitas aos comunistas em nome da religião da filosofia e da ideologia em geral não merecem um exame aprofundado Será preciso grande inteligência para compreender que ao mudarem as relações de vida dos homens as suas relações sociais a sua existência social mudam também as suas representações as suas concepções e conceitos numa palavra muda a sua consciência Que demonstra a história das idéias senão que a produção intelectual se transforma com a produção material As idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante Quando se fala de idéias que revolucionam uma sociedade inteira isto quer dizer que no seio da velha sociedade se formaram os elementos de uma sociedade nova e que a dissolução das velhas idéias acompanha a dissolução das antigas condições de existência Quando o mundo antigo declinava as antigas religiões foram vencidas pela religião cristã quando no século XVIII as idéias cristãs cederam lugar às idéias iluministas a sociedade feudal travava sua batalha decisiva contra a burguesia então revolucionária As idéias de liberdade religiosa e de consciência não fizeram mais que proclamar o império da livre concorrência no domínio do conhecimento Mas dirão as idéias religiosas morais filosóficas políticas jurídicas etc modificaramse no curso do desenvolvimento histórico A religião a moral a filosofia a política o direito sobreviveram sempre a essas transformações Além disso há verdades eternas como a liberdade a justiça etc que são comuns a todos os regimes sociais Mas o comunismo quer abolir estas verdades eternas quer abolir a religião e a moral em lugar de lhes dar uma nova forma e isso contradiz todos os desenvolvimentos históricos anteriores A que se reduz essa acusação A história de toda a sociedade até nossos dias moveuse em antagonismos de classes antagonismos que se têm revestido de formas diferentes nas diferentes épocas Mas qualquer que tenha sido a forma assumida a exploração de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos anteriores Portanto não é de espantar que a consciência social de todos os séculos apesar de toda sua variedade e diversidade se tenha movido sempre sob certas formas comuns formas de consciência que só se dissolverão completamente com o desaparecimento total dos antagonismos de classes A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de propriedade não admira portanto que no curso de seu desenvolvimento se rompa do modo mais radical com as idéias tradicionais Mas deixemos de lado as objeções feitas pela burguesia ao movimento comunista 56 57 Vimos antes que a primeira fase da revolução operária é a elevação do proletariado a classe dominante a conquista da democracia O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital da burguesia para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado isto é do proletariado organizado como classe dominante e para aumentar o mais rapidamente possível o total das forças produtivas Isso naturalmente só poderá ser realizado a princípio por intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas isto é pela aplicação de medidas que do ponto de vista econômico parecerão insuficientes e insustentáveis mas que no desenrolar do movimento ultrapassarão a si mesmas e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo de produção Essas medidas é claro serão diferentes nos diferentes países Nos países mais adiantados contudo quase todas as seguintes medidas poderão ser postas em prática 1 Expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra para despesas do Estado 2 Imposto fortemente progressivo 3 Abolição do direito de herança 4 Confisco da propriedade de todos os emigrados e rebeldes 5 Centralização do crédito nas mãos do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e com o monopólio exclusivo 6 Centralização de todos os meios de comunicação e transporte nas mãos do Estado 7 Multiplicação das fábricas nacionais e dos instrumentos de produção arroteamento das terras incultas e melhoramento das terras cultivadas segundo um plano geral 8 Unificação do trabalho obrigatório para todos organização de exércitos industriais particularmente para a agricultura 9 Unificação dos trabalhos agrícola e industrial abolição gradual da distinção entre a cidade e o campo por meio de uma distribuição mais igualitária da população pelo país 10 Educação pública e gratuita a todas as crianças abolição do trabalho das crianças nas fábricas tal como é praticado hoje Combinação da educação com a produção material etc Quando no curso do desenvolvimento desaparecerem os antagonismos de classes e toda a produção for concentrada nas mãos dos indivíduos associados o poder público perderá seu caráter político O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forçosamente como classe se por meio de uma revolução se converte em classe dominante e como classe dominante destrói violentamente as antigas relações de produção destrói juntamente com essas relações de produção as condições de existência dos antagonismos entre as classes destrói as classes em geral e com isso sua própria dominação como classe Em lugar da antiga sociedade burguesa com suas classes e antagonismos de classes surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos III Literatura socialista e comunista 1 O socialismo reacionário a O socialismo feudal Por sua posição histórica as aristocracias da França e da Inglaterra viramse chamadas a lançar libelos contra a sociedade burguesa Na revolução francesa de julho de 1830 no movimento inglês pela reforma tinham sucumbido mais uma vez sob os golpes desta odiada arrivista A partir daí não se podia tratar de uma luta política séria só lhes restava a luta literária Mas também no domínio literário tornarase impossível a velha fraseologia da Restauração5 Para despertar simpatias a aristocracia fingiu deixar de lado seus próprios interesses e dirigiu sua acusação contra a burguesia aparentando defender apenas os interesses da classe operária explorada Desse modo entregouse ao prazer de cantarolar sátiras sobre os novos senhores e de lhes sussurrar ao ouvido profecias sinistras Assim surgiu o socialismo feudal em parte lamento em parte pasquim em parte ecos do passado em parte ameaças ao futuro Se por vezes a sua crítica amarga mordaz e espirituosa feriu a burguesia no Sob a pressão das massas a Câmara dos Comuns inglesa aprovou em 1831 uma reforma eleitoral que facilitava o acesso da burguesia industrial ao parlamento 5 Não se trata da Restauração Inglesa de 1660 a 1689 mas da Restauração Francesa de 18141830 Nota de F Engels à edição inglesa de 1888 58 59 coração sua impotência absoluta em compreender a marcha da História moderna terminou sempre produzindo um efeito cômico Para atrair o povo a aristocracia desfraudou como bandeira a sacola do mendigo mas assim que o povo acorreu percebeu que as costas da bandeira estavam ornadas com os velhos brasões feudais e dispersouse com grandes e irreverentes gargalhadas Uma parte dos legitimistas franceses e a Jovem Inglaterra ofereceram ao mundo esse espetáculo Quando os feudais demonstraram que o seu modo de exploração era diferente do da burguesia esqueceram apenas uma coisa que o feudalismo explorava em circunstâncias e condições completamente diversas hoje em dia ultrapassadas Quando ressaltam que sob o regime feudal o proletariado moderno não existia esquecem que a burguesia foi precisamente um fruto necessário de sua organização social Além disso ocultam tão pouco o caráter reacionário de sua crítica que sua principal acusação contra a burguesia consiste justamente em dizer que esta assegura sob seu regime o desenvolvimento de uma classe que fará ir pelos ares toda a antiga ordem social O que reprovam à burguesia é mais o fato de ela ter produzido um proletariado revolucionário que o de ter criado o proletariado em geral Por isso na luta política participam ativamente de todas as medidas de repressão contra a classe operária E na vida diária a despeito de sua pomposa fraseologia conformamse perfeitamente em colher as maçãs de ouro da árvore da indústria e em trocar honra amor e fidelidade pelo comércio de lã açúcar de beterraba e aguardente6 Do mesmo modo que o padre e o senhor feudal marcharam sempre de mãos dadas o socialismo clerical marcha lado a lado com o socialismo feudal Nada é mais fácil que recobrir o ascetismo cristão com um verniz socialista O cristianismo também não se ergueu contra a propriedade privada o matrimônio o Estado E em seu lugar não pregou a caridade e a pobreza o celibato e a mortificação da carne a vida monástica e a Igreja O socialismo cristão não passa da água benta com que o padre abençoa o desfeito da aristocracia b O socialismo pequenoburguês A aristocracia feudal não é a única classe arruinada pela burguesia não é a única classe cujas condições de existência se atrofiarn e perecem na sociedade burguesa moderna Os pequenos burgueses e os pequenos camponeses da Idade Média foram os precursores da burguesia moderna Nos países onde o comércio e a indústria são pouco desenvolvidos esta classe continua a veget ar ao lado da burguesia em ascensão Nos países onde a civilização moderna está florescente formase uma nova classe de pequenos burgueses que oscila entre o proletariado e a burguesia fração complementar da sociedade burguesa reconstituindose sempre como os membros dessa classe no entanto se vêem constantemente precipitados no proletariado devido à concorrência e com a marcha progressiva da grande indústria sentem aproximarse o momento em que desaparecerão completamente como fração independente da sociedade moderna e em que serão substituídos no comércio na manufatura e na agricultura por supervisores capatazes e empregados Em países como a França onde os camponeses constituem bem mais da metade da população era natural que os escritores que se batiam pelo proletariado e contra a burguesia aplicassem à sua crítica do regime burguês critérios do pequeno burguês e do pequeno camponês e defendessem a causa operária do ponto de vista da pequena burguesia Desse modo se formou o socialismo pequenoburguês Sismondi é o chefe dessa literatura não somente na França mas também na Inglaterra Esse socialismo dissecou com muita perspicácia as contradições inerentes às modernas relações de produção Pôs a nu as hipócritas apologias dos economistas Demonstrou de um modo irrefutável os efeitos mortíferos das máquinas e da divisão do trabalho da concentração dos capitais e da propriedade territorial a superprodução as crises a decadência inevitável dos pequenos burgueses e pequenos camponeses a miséria do proletariado a anarquia na produção a clamorosa desproporção na distribuição das riquezas a guerra industrial de extermínio entre as nações a dissolução dos velhos costumes das velhas relações de família das velhas nacionalidades Quanto ao seu conteúdo positivo porém o socialismo pequeno 6 Isto se refere sobretudo à Alemanha onde a aristocracia latifundiária cultiva por conta própria grande parte de suas terras com ajuda de administradores e é além disso produtora de açúcar de beterraba e destiladores de aguardente Os mais prósperos aristocratas britânicos se encontram por enquanto acima disso mas também sabem como compensar a diminuição de suas rendas emprestando seus nomes aos fundadores de sociedades anônimas de reputação mais ou menos duvidosa Nota de F Engels à edição inglesa de 1888 60 61 burg uês quer ou restabelecer os antigos meios de produção e de troca e com eles as antigas relações de propriedade e toda a antiga sociedade ou então fazer entrar à força os meios modernos de produção e de troca no quadro estreito das antigas relações de propriedade que foram destruídas e necessariamente despedaçadas por eles Num e noutro caso esse socialismo é ao mesmo tempo reacionário e utópico Sistema corporativo na manufatura e economia patriarcal no campo eis suas últimas palavras Por fim quando os obstinados fatos históricos dissiparamlhe a embriaguez essa escola socialista abandonouse a uma covarde ressaca c O socialismo alemão ou o verdadeiro socialismo A literatura socialista e comunista da França nascida sob a pressão de uma burguesia dominante e expressão literária da revolta contra esse domínio foi introduzida na Alemanha quando a burguesia começava a sua luta contra o absolutismo feudal Filósofos semifilósofos e impostores alemães lançaramse avidamente sobre essa literatura mas esqueceramse de que com a importação da literatura francesa na Alemanha não eram importadas ao mesmo tempo as condições de vida da França Nas condições alemãs a literatura francesa perdeu toda a significação prática imediata e tomou um caráter puramente literário Aparecia apenas como especulação ociosa sobre a realização da essência humana Assim as reivindicações da primeira revolução francesa só eram para os filósofos alemães do século XVIII as reivindicações da razão prática em geral e a manifestação da vontade dos burgueses revolucionários da França não expressava a seus olhos senão as leis da vontade pura da vontade tal como deve ser da vontade verdadeiramente humana O trabalho dos literatos alemães limitouse a colocar as idéias francesas em harmonia com a sua velha consciência filosófica ou melhor a apropriarse delas da mesma forma com que se assimila uma língua estrangeira pela tradução Sabese que os monges escreveram hagiografias católicas insípidas sobre os manuscritos em que estavam registradas as obras clássicas da antiguidade pagã Os literatos alemães agiram em sentido inverso a respeito da literatura francesa profana Introduziram suas insanidades filosóficas no original francês Por exemplo sob a crítica francesa das funções do dinheiro escreveram alienação da essência humana sob a crítica francesa do Estado burguês escreveram superação do domínio da universalidade abstrata e assim por diante A esta interpolação do palavreado filosófico nas teorias francesas deram o nome de filosofia da ação verdadeiro socialismo ciência alemã do socialismo justificação filosófica do socialismo etc Desse modo emasculam completamente a literatura socialista e comunista francesa E como nas mãos dos alemães essa literatura tinha deixado de ser a expressão da luta de uma classe contra outra eles se felicitaram por teremse elevado acima da estreiteza francesa e terem defendido não verdadeiras necessidades mas a necessidade da verdade não os interesses do proletário mas os interesses do ser humano do homem em geral do homem que não pertence a nenhuma classe nem à realidade alguma e que só existe no céu brumoso da fantasia filosófica Esse socialismo alemão que levava tão solenemente a sério seus canhestros exercícios de escolar e que os apregoava tão charlatanesamente foi perdendo pouco a pouco sua inocência pedante A luta da burguesia alemã e especialmente da burguesia prussiana contra os feudais e a monarquia absoluta numa palavra o movimento liberal tornouse mais séria Desse modo apresentouse ao verdadeiro socialismo a tão desejada oportunidade de contrapor ao movimento político as reivindicações socialistas de lançar os anátemas tradicionais contra o liberalismo o regime representativo a concorrência burguesa a liberdade burguesa de imprensa o direito burguês a liberdade e a igualdade burguesas de pregar às massas que nada tinham a ganhar mas pelo contrário tudo a perder nesse movimento burguês O socialismo alemão esqueceu bem a propósito que a crítica francesa da qual era o eco monótono pressupunha a sociedade burguesa moderna com as condições materiais de existência que lhe correspondem e uma constituição política adequada precisamente as coisas que na Alemanha estava ainda por conquistar Esse socialismo serviu de espantalho para amedrontar a burguesia ameaçadoramente ascendente aos governos absolutos da Alemanha com seu cortejo de padres pedagogos fidalgos rurais e burocratas Juntou sua hipocrisia adocicada aos tiros de fuzil e às chicotadas com que esses mesmos governos respondiam aos levantes dos operários alemães Se o verdadeiro socialismo se tornou assim uma arma nas mãos dos governos contra a burguesia alemã representou também diretamente 62 63 um interesse reacionário o interesse da pequena burguesia alemã A classe dos pequenos burgueses legada pelo século XVI e desde então renascendo sem cessar sob formas diversas constitui na Alemanha a verdadeira base social do regime estabelecido Mantêla é manter na Alemanha o regime estabelecido A supremacia industrial e política da burguesia ameaça a pequena burguesia de destruição de um lado pela concentração do capital de outro pelo desenvolvimento de um proletariado revolucionário O verdadeiro socialismo pareceu aos pequenos burgueses uma arma capaz de aniquilar esses dois inimigos Propagouse como uma epidemia A roupagem tecida com os fios imateriais da especulação bordada com as flores da retórica e banhada de orvalho sentimental essa roupagem na qual os socialistas alemães envolveram o miserável esqueleto das suas verdades eternas não fez senão ativar a venda de sua mercadoria entre aquele público Por seu lado o socialismo alemão compreendeu cada vez mais que sua vocação era ser o representante grandiloqüente dessa pequena burguesia Proclamou que a nação alemã era a nação modelo e o pequeno burguês alemão o homem modelo A todas as infâmias desse homem modelo atribuiu um sentido oculto um sentido superior e socialista que as tornava exatamente o contrário do que eram Foi conseqüente até o fim levantandose contra a tendência brutalmente destrutiva do comunismo declarando que pairava imparcialmente acima de todas as lutas de classes Com raras exceções todas as pretensas publicações socialistas ou comunistas que circulam na Alemanha pertencem a esta suja e debilitante literatura7 2 O socialismo conservador ou burguês Uma parte da burguesia procura remediar os males sociais para a existência da sociedade burguesa Nessa categoria enfileiramse os economistas os filantropos os humanitários os que se ocupam em melhorar a sorte da classe operária os organizadores de beneficências os protetores dos animais os fundadores das sociedades antialcoólicas enfim os reformadores de gabinete de toda categoria Esse socialismo burguês chegou até a ser elaborado em sistemas completos Como exemplo citemos a Filosofia da Miséria de Proudhon Os socialistas burgueses querem as condições de vida da sociedade moderna sem as lutas e os perigos que dela decorrem fatalmente Querem a sociedade atual mas eliminando os elementos que a revolucionam e dissolve m Querem a burguesia sem o proletariado A burguesia naturalmente concebe o mundo em que domina como o melhor dos mundos O socialismo burguês elabora em um sistema mais ou menos completo essa concepção consoladora Quando convida o proletariado a realizar esses sistemas e entrar na nova Jerusalém no fundo o que pretende é induzilo a manterse na sociedade atual desembaraçandose porém do ódio que sente por essa sociedade Uma segunda forma desse socialismo menos sistemática porém mais prática procura fazer com que os operários se afastem de qualquer movimento revolucionário demonstrandolhes que não será tal ou qual mudança política mas somente uma transformação das condições de vida material e das relações econômicas que poderá ser proveitosa para eles Por transformação das condições materiais de existência esse socialismo não compreende em absoluto a abolição das relações burguesas de produção que só é possível pela via revolucionária mas apenas reformas administrativas realizadas sobre a base das próprias relações de produção burguesas e que portanto não afetam as relações entre o capital e o trabalho assalariado servindo no melhor dos casos para diminuir os gastos da burguesia com sua dominação e simplificar o trabalho administrativo de seu Estado O socialismo burguês só atinge sua expressão correspondente quando se torna simples figura de retórica Livre comércio no interesse da classe operária Tarifas protetoras no interesse da classe operária Prisões celulares no interesse da classe operária Eis a última palavra do socialismo burguês a única pronunciada à sério O seu raciocínio se resume na frase os burgueses são burgueses no interesse da classe operária 3 O socialismo e o comunismo críticoutópicos Não se trata aqui da literatura que em todas as grandes revoluções modernas exprimiu as reivindicações do proletariado escritos de Babeuf etc As primeiras tentativas diretas do proletariado para fazer prevalecer seus próprios interesses de classe feitas numa época de agitação geral no período da derrubada da sociedade feudal fracassaram necessariamente não só por causa do estado embrionário do próprio proletariado como devido à ausência das condições materiais de sua emancipação condições que apenas surgem como produto da época burguesa A literatura revolucionária que acompanhava esses primeiros movimentos do proletariado teve forçosamente um conteúdo reacionário Preconizava um ascetismo geral e um grosseiro igualitarismo Os sistemas socialistas e comunistas propriamente ditos os de SaintSimon Fourier Owen etc aparecem no primeiro período da luta entre o proletariado e a burguesia período anteriormente descrito ver Burgueses e proletários Os fundadores desses sistemas compreendem bem o antagonismo das classes assim como a ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante Mas não percebem no proletariado nenhuma iniciativa histórica nenhum movimento político que lhes seja peculiar Como o desenvolvimento dos antagonismos de classes acompanha o desenvolvimento da indústria não distinguem tampouco as condições materiais da emancipação do proletariado e põemse à procura de uma ciência social de leis sociais que permitam criar essas condições Substituem a atividade social por sua própria imaginação pessoal as condições históricas da emancipação por condições fantásticas a organização gradual e espontânea do proletariado em classe por uma organização da sociedade préfabricada por eles A história futura do mundo se resume para eles na propaganda e na execução prática de seus planos de organização social Todavia na confecção de seus planos têm a convicção de defender antes de tudo os interesses da classe operária como a classe mais sofredora A classe operária só existe para eles sob esse aspecto o de classe mais sofredora Mas a forma rudimentar da luta de classes e sua própria posição social os levam a considerarse muito acima de qualquer antagonismo de classe Desejam melhorar as condições materiais de vida de todos os membros da sociedade mesmo dos mais privilegiados Por isso não cessam de apelar indistintamente à sociedade inteira e de preferência à classe dominante Bastaria compreender seu sistema para reconhecêlo como o melhor plano possível para a melhor sociedade possível Rejeitam portanto toda ação política e sobretudo toda ação revolucionária procuram atingir seu objetivo por meios pacíficos e tentam abrir um caminho ao novo evangelho social pela força do exemplo com experiências em pequena escala e que naturalmente sempre fracassam Essa descrição fantástica da sociedade futura feita numa época em que o proletariado ainda pouco desenvolvido encara sua própria posição de um modo fantástico corresponde às primeiras aspirações instintivas dos operários a uma completa transformação da sociedade Mas as obras socialistas e comunistas encerram também elementos críticos Atacam todas as bases da sociedade existente Por isso fornecem em seu tempo materiais de grande valor para esclarecer os operários Suas proposições positivas sobre a sociedade futura tais como a supressão do contraste entre a cidade e o campo a abolição da família do lucro privado e do trabalho assalariado a proclamação da harmonia social e a transformação do Estado numa simples administração da produção todas essas propostas apenas exprimem o desaparecimento do antagonismo entre as classes antagonismo que mal começa e que esses autores somente conhecem em suas formas imprecisas Assim essas proposições têm ainda um sentido puramente utópico A importância do socialismo e do comunismo críticoutópicos está na razão inversa do seu desenvolvimento histórico À medida que a luta de classes se acentua e toma formas mais definidas a fantástica pressa de abstrairse dela essa fantástica oposição que lhe é feita perde qualquer valor prático qualquer justificação teórica Por isso se em muitos aspectos os fundadores desses sistemas foram revolucionários as seitas formadas por seus discípulos formam sempre seitas reacionárias Aferramse às velhas concepções de seus mestres apesar do desenvolvimento histórico contínuo do proletariado Procuram portanto e nisto são conseqüentes atenuar a luta de classes e conciliar os antagonismos Continuam a sonhar com a realização experimental de suas utopias sociais instituição de falanstérios isolados criação de colônias no interior fundação de uma pequena Icária8 edição em for mato reduzido da nova Jerusalém e para dar realidade a todos esses castelos no ar vêemse obrigados a apelar para os bons sentimentos e os cofres dos filantropos burgueses Pouco a pouco caem na categoria dos socialistas reacionários ou conservadores descritos anteriormente e só se distinguem deles por um pedantismo mais sistemático uma fé supersticiosa e fanática nos efeitos miraculosos de sua ciência social Por isso se opõem com exasperação a qualquer ação política da classe operária porque em sua opinião tal ação só poderia decorrer de uma descrença cega no novo evangelho Desse modo os owenistas na Inglaterra e os fourieristas na França reagem respectivamente contra os cartistas e os reformistas IV Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição O que já dissemos no capítulo II basta para determinar a relação dos comunistas com os partidos operários já constituídos e por conseguinte sua relação com os cartistas na Inglaterra e os reformadores agrários na América do Norte Os comunistas lutam pelos interesses e objetivos imediatos da classe operária mas ao mesmo tempo defendem e representam no movimento atual o futuro do movimento Aliamse na França ao partido socialdemocrata9 contra a burguesia conservadora e radical reservandose o direito de criticar a fraseologia e as ilusões legadas pela tradição revolucionária Na Suíça apóiam os radicais sem esquecer que esse partido se compõe de elementos contraditórios em parte socialistas democráticos no sentido francês da palavra em parte burgueses radicais Na Polônia os comunistas apóiam o partido que vê numa revolução agrária a condição da libertação nacional o partido que desencadeou a insurreição de Cracóvia em 1846 Na Alemanha o Partido Comunista luta junto com a burguesia todas as vezes que esta age revolucionariamente contra a monarquia absoluta a propriedade rural feudal e a pequena burguesia Mas em nenhum momento esse Partido se descuida de despertar nos operários uma consciência clara e nítida do violento antagonismo que existe entre a burguesia e o proletariado para que na hora precisa os operários alemães saibam converter as condições sociais e políticas criadas pelo regime burguês em outras tantas armas contra a burguesia para que logo após terem sido destruídas as classes reacionárias da Alemanha possa ser travada a luta contra a própria burguesia É sobretudo para a Alemanha que se volta a atenção dos comunistas porque a Alemanha se encontra às vésperas de uma revolução burguesa e porque realizará essa revolução nas condições mais avançadas da civilização européia e com um proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra no século XVII e o da França no século XVIII e por que a revolução burguesa alemã só poderá ser portanto o prelúdio imediato de uma revolução proletária Em resumo os comunistas apóiam em toda parte qualquer movimento revolucionário contra a ordem social e política existente Em todos estes movimentos colocam em destaque como questão fundamental a questão da propriedade qualquer que seja a forma mais ou menos desenvolvida de que esta se revista Finalmente os comunistas trabalham pela união e pelo entendimento dos partidos democráticos de todos os países Os comunistas se recusam a dissimular suas opiniões e seus fins Proclamam abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente Que as classes dominantes tremam à idéia de uma revolução comunista Nela os proletários nada têm a perder a não ser os seus grilhões Têm um mundo a ganhar PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES UNIVOS PREFÁCIOS DE MARX E ENGELS Prefácio à edição alemã de 1872 A Liga dos Comunistas associação internacional de operários que nas condições de então só poderia ser secreta incumbiu os abaixo assinados por ocasião do congresso realizado em Londres em novembro de 1847 de escrever para fins de publicação um programa detalhado teórico e prático do partido Foi esta a origem do Manifesto que se segue cujo manuscrito foi enviado a Londres para impressão poucas semanas antes da revolução de fevereiro Primeiramente publicado em alemão teve pelo menos umas doze edições diferentes nessa língua na Alemanha na Inglaterra e na América do Norte Foi publicado em inglês pela primeira vez em 1850 no Red Republican de Londres traduzido pela Srta Helen Macfarlane e teve em 1871 pelo menos três traduções diferentes na América do Norte A primeira versão francesa foi publicada em Paris pouco antes da insurreição de junho de 1848 e recentemente no Le Socialiste de Nova York Há atualmente uma nova tradução sendo preparada Uma versão polonesa apareceu em Londres pouco depois da primeira edição alemã Uma tradução russa foi publicada em Genebra na década de 1860 Também para o dinamarquês foi traduzido pouco depois de sua primeira publicação Por mais que tenham mudado as condições nos últimos 25 anos os princípios gerais expressados nesse Manifesto conservam em seu conjunto toda a sua exatidão Em algumas partes certos detalhes devem ser melhorados Segundo o próprio Manifesto a aplicação prática dos princípios dependerá em todos os lugares e em todas as épocas das condições históricas vigentes e por isso não se deve atribuir importância demasiada às medidas revolucionárias propostas no final da seção II Hoje em dia esse trecho seria redigido Das últimas mencionadas apenas a tradução russa foi de fato encontrada 71 156 de maneira diferente em muitos aspectos Em certos pormenores esse programa está antiquado levandose em conta o desenvolvimento colossal da indústria moderna desde 1848 os progressos correspondentes da organização da classe operária e a experiência prática adquirida primeiramente na revolução de fevereiro e mais ainda na Comuna de Paris onde coube ao proletariado pela primeira vez a posse do poder político durante quase dois meses A Comuna de Paris demonstrou especialmente que não basta que a classe trabalhadora se apodere da máquina estatal para fazêla servir a seus próprios finsver A Guerra Civil na França Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1871 onde essa idéia é mais desenvolvida Além do mais é evidente que a crítica da literatura socialista mostrase deficiente em relação ao presente porque só chega a 1847 as observações sobre as relações dos comunistas com os diferentes partidos de oposição seção IV embora em princípio corretas na prática estão desatualizadas pois a situação política modificouse totalmente e o desenvolvimento histórico fez desaparecer a maior parte dos partidos ali enumerados Entretanto o Manifesto tornouse um documento histórico que não nos cabe mais alterar Uma edição futura talvez apareça acompanhada de uma introdução que preencha a lacuna entre 1847 e os nossos dias a atual reimpressão foi inesperada demais para que tivéssemos tempo de escrevêla Karl Marx e Friedrich Engels Londres 24 de junho de 1872 Prefácio à edição russa de 1882 A primeira edição russa do Manifesto do Partido Comunista traduzida por Bakunin foi impressa em princípios da década de 1860 na tipografia do Kolokol Naquela época o Ocidente via nessa edição uma simples curiosidade literária Hoje em dia essa concepção seria impossível O campo limitado do movimento proletário daquele tempo dezembro de 1847 está expresso na última parte do Manifesto a posição dos comunistas em relação aos vários partidos de oposição nos diferentes países A Rússia e os Estados Unidos precisamente não foram mencionados Era a época em que a Rússia se constituía na última grande reserva da reação européia e em que os Estados Unidos absorviam o excedente das forças proletárias da Europa que para lá emigravam Ambos os países proviam a Europa de matériasprimas sendo ao mesmo tempo mercado para a venda de seus produtos industriais De uma maneira ou de outra eram portanto pilares da ordem européia vigente Que diferença hoje Foi justamente a imigração européia que possibilitou à América do Norte a produção agrícola em proporções gigantescas cuja concorrência está abalando os alicerces da propriedade rural européia a grande como a pequena Ao mesmo tempo deu aos Estados Unidos a oportunidade de explorar seus imensos recursos industriais com tal energia e em tais proporções que dentro em breve arruinarão o monopólio industrial da Europa ocidental especialmente o da Inglaterra Essas duas circunstâncias repercutem de maneira revolucionária na própria América do Norte Pouco a pouco a pequena e a média propriedade rural a base do regime político em sua totalidade sucumbe diante da competição das fazendas gigantescas ao mesmo tempo formamse pela primeira vez nas regiões industriais um numeroso proletariado e uma concentração fabulosa de capitais E a Rússia Durante a revolução de 184849 os príncipes e a burguesia europeus viam na intervenção russa a única maneira de escapar do proletariado que despertava O czar foi proclamado chefe da reação européia Hoje ele é em Gatchina prisioneiro de guerra da revolução e a Rússia forma a vanguarda da ação revolucionária na Europa O Manifesto Comunista tinha como tarefa a proclamação do desaparecimento próximo e inevitável da moderna propriedade burguesa Mas na Rússia vemos que ao lado do florescimento acelerado da velhacaria capitalista e da propriedade burguesa que começa a desenvolverse mais da metade das terras é possuída em comum pelos camponeses O problema agora é poderia a obshchina russa forma já muito deteriorada da antiga posse em comum da terra transformarse diretamente na propriedade comunista Ou ao contrário deveria primeiramente passar pelo mesmo processo de dissolução que constitui a evolução histórica do Ocidente Hoje em dia a única resposta possível é a seguinte se a revolução russa constituirse no sinal para a revolução proletária no Ocidente de modo que uma complemente a outra a atual propriedade comum da terra na Rússia poderá servir de ponto de partida para uma evolução comunista Karl Marx e Friedrich Engels Londres 21 de janeiro de 1882 Nunca foram confirmadas as afirmações de que o tradutor tenha sido Mikhail Bakunin e a impressão feita na tipografia do Kolokol jornal democráticorevolucionário editado em Genebra Comunidade rural aldeã 72 157 Prefácio à edição alemã de 1883 Tenho infelizmente de assinar sozinho o prefácio à presente edição Marx o homem a quem toda a classe trabalhadora da Europa e da América deve mais serviços do que a qualquer outro jaz agora no cemitério de Highgate e sobre seu túmulo já reverdece a primeira relva Depois de sua morte não se pode mais pensar em rever ou complementar o Manifesto Por isso considero ainda mais necessário lembrar expressamente o seguinte A idéia fundamental que percorre todo o Manifesto é a de que em cada época histórica a produção econômica e a estrutura social que dela necessariamente decorre constituem a base da história política e intelectual dessa época que conseqüentemente desde a dissolução do regime primitivo da propriedade comum da terra toda a História tem sido a história da luta de classes da luta entre explorados e exploradores entre as classes dominadas e as dominantes nos vários estágios da evolução social que essa luta porém atingiu um ponto em que a classe oprimida e explorada o proletariado não pode mais libertarse da classe que a explora e oprime a burguesia sem que ao mesmo tempo liberte para sempre toda sociedade da exploração da opressão e da luta de classes este pensamento fundamental pertence única e exclusivamente a Marx1 Já afirmei isso diversas vezes mas exatamente agora é preciso que esta declaração se torne bem clara no frontispício do Manifesto Friedrich Engels Londres 28 de junho de 1883 Prefácio à edição inglesa de 1888 O Manifesto foi publicado como plataforma da Liga dos Comunistas associação de operários no princípio exclusivamente alemã e mais tarde internacional que nas condições políticas do continente anteriores a 1848 era inevitavelmente uma sociedade secreta No Congresso da Liga realizado em Londres em novembro de 1847 Marx e Engels foram incumbidos de escrever para fins de publicação um completo programa teórico e prático do partido Redigido em alemão em janeiro de 1848 o manuscrito foi enviado ao editor de Londres poucas semanas antes da revolução francesa de 24 de fevereiro Uma tradução francesa apareceu em Paris pouco antes da insurreição de junho de 1848 A primeira tradução inglesa da Srta Helen Macfarlane foi publicada no Red Republican de George Julian Harney Londres 1850 Também foi publicado em dinamarquês e polonês A derrota da insurreição parisiense de junho de 1848 a primeira grande batalha entre o proletariado e a burguesia colocou novamente em um segundo plano as aspirações sociais e políticas do operariado europeu A partir de então a luta pela supremacia voltou a ser como o fora antes da revolução de fevereiro simplesmente uma luta entre diferentes camadas da classe proprietária a classe operária foi levada a limitarse a uma luta pela conquista de espaços políticos assumindo posições da ala extrema dos radicais da classe média Onde quer que o movimento proletário independente manifestasse sinais de vida era logo impiedosamente esmagado A polícia prussiana descobriu o Comitê Central da Liga dos Comunistas então sediado em Colônia Seus membros foram presos e após dezoito meses de encarceramento julgados em outubro de 1852 O célebre Processo Comunista de Colônia estendeuse de 4 de outubro a 12 de novembro sete prisioneiros foram condenados a penas que variavam entre 3 e 6 anos de prisão numa fortaleza Imediatamente após a sentença a Liga foi formalmente dissolvida pelos membros remanescentes Quanto ao Manifesto este parecia ficar a partir de então relegado ao esquecimento Quando os operários europeus reuniram forças suficientes para um novo assalto ao poder das classes dirigentes surgiu a Associação Internacional dos Trabalhadores Seu objetivo era englobar num único e poderoso exército todo o operariado militante da Europa e da América Portanto não poderia partir dos princípios expressos no Manifesto Devia ter um programa que não fechasse as portas às Trades Unions inglesas aos proudhonistas franceses belgas italianos e espanhóis ou aos lassalleanos2 alemães Este programa as considerações básicas da In 1 Sobre este pensamento escrevi no prefácio da tradução inglesa de 1888 Pouco a pouco vários anos antes de 1845 fomos elaborando essa idéia que em minha opinião será para a História o que foi para a Biologia a teoria de Darwin O meu livro A Situação da Classe Operária na Inglaterra revela até onde fui autonomamente nessa direção Mas quando reencontrei Marx em Bruxelas na primavera de 1845 ele já a elaborara completamente expondoa diante de mim em termos quase tão claros quantos os que expressei aqui Nota de Engels à edição alemã de 1890 2 Perante nós pessoalmente Lassalle sempre se reconheceu como sendo discípulo de Marx e como tal situavase no terreno do Manifesto Mas na sua agitação pública de 18621864 ele não foi além da reivindicação de oficinas cooperativas sustentadas por crédito estatal Nota de Engels 74 75 ternacional foi redigido por Marx com maestria reconhecida até por Bakunin e pelos anarquistas Para o triunfo decisivo das idéias formuladas pelo Manifesto Marx dependia unicamente do desenvolvimento intelectual da classe operária o qual deveria resultar da unidade da ação e da discussão Os acontecimentos e as vicissitudes da luta contra o capital as derrotas maiores que as vitórias poderiam apenas mostrar aos combatentes a insuficiência de todas as panacéias em que acreditavam fazendoos compreender melhor as verdadeiras condições da emancipação da classe operária E Marx tinha razão A classe trabalhadora de 1874 por ocasião da dissolução da Internacional era em geral diferente da de 1864 quando da sua fundação O proudhonismo do países latinos e o lassallismo propriamente dito na Alemanha estavam desaparecendo e até mesmo as Trades Unions inglesas então ultraconservadoras se aproximaram pouco a pouco daquilo que em 1887 o presidente do seu Congresso de Swansea dizia O socialismo continental não mais nos aterroriza Mas por essa época o socialismo continental confundiase quase que exclusivamente com a teoria formulada no Manifesto Assim o Manifesto propriamente dito tomou novamente a dianteira Desde 1850 o texto alemão fora editado várias vezes na Suíça na Inglaterra e na América do Norte Em 1872 foi traduzido para o inglês em Nova York sendo publicado no Woodhull and Claflins Weekly Da versão inglesa foi feita a francesa que surgiu no Le Socialiste de Nova York Desde então publicaramse mais duas traduções inglesas na América mais ou menos incompletas e uma delas foi editada na Inglaterra A primeira tradução russa de autoria de Bakunin foi publicada na gráfica Kolokol de Herzen em Genebra por volta de 1863 a segunda pela heróica Vera Zasúlitch também foi publicada em Genebra em 1882 Encontrase uma edição dinamarquesa de 1885 no Socialdemokratisk Bibliothek de Copenhague e uma francesa no Le Socialiste de 1886 em Paris Dessa última publicouse uma versão espanhola em 1886 em Madri Perdeuse a conta das edições alemãs houve pelo menos doze delas Eu soube que uma tradução armênia que deveria ser publicada em Constantinopla há alguns anos atrás não se verificou porquê o editor teve medo de publicar um livro O tradutor foi na verdade George Plekhánov 18561918 Engels reconhecerá este erro em um artigo no Soziales aus Russiand em 1894 Nesta edição os erros da primeira tradução atribuída por Marx e Engels a Bakunin foram eliminados e com ela iniciouse uma ampla difusão das idéias do Manifesto na Rússia não pode mais libertarse da classe que explora e oprime a burguesia sem que ao mesmo tempo liberte de uma vez por todas toda a sociedade da exploração da opressão do sistema de classes e da luta entre elas Pouco a pouco vários anos antes de 1845 fomos elaborando essa idéia que em minha opinião será para a História o que foi para a Biologia a teoria de Darwin O meu livro A Situação da Classe Operária na Inglaterrra3 revela até onde fui nessa direção Mas quando reencontrei Marx em Bruxelas na primavera de 1845 ele já a elaborara completamente expondoa diante de mim mais ou menos tão claramente como fiz aqui Do nosso prefácio comum à edição alemã de 1872 cito o seguinte Engels transcreve aqui o segundo parágrafo e a primeira frase do terceiro do referido prefácio A presente tradução é de Samuel Moore o tradutor da maior parte de O Capital de Marx Fizemos a revisão juntos e acrescentei algumas notas com explicações históricas Friedrich Engels Londres 30 de janeiro de 1888 Prefácio à edição alemã de 1890 Após o que foi escrito além da necessidade de uma nova edição alemã surgiram vários fatos que merecem ser lembrados aqui Uma segunda tradução russa por Vera Zasúlitch apareceu em Genebra em 1882 seu prefácio foi escrito por Marx e por mim Infelizmente perdi o manuscrito original alemão tenho portanto que retraduzir do russo o que de maneira alguma é favorável ao texto Aqui Engels reproduz com pequenas alterações o prefácio escrito para a edição russa de 1882 Mais ou menos na mesma época surgiu em Genebra uma nova versão polonesa Manifest Kommunistczny Mais tarde apareceu uma nova tradução dinamarquesa no Socialdemokratisk Bibliothek de Copenhague 1885 Infelizmente não está completa algumas passagens essenciais que ao que parece estavam dando muito trabalho ao tradutor foram omitidas e há também alguns sinais de descuido os quais se tornam ainda mais desagradavelmente evidentes quando se percebe que o tradutor teria feito um excelente trabalho se tivesse se esforçado um pouco mais Apareceu uma nova versão francesa em 1886 no Le Socialiste de Paris esta aliás é a melhor edição até agora Uma versão espanhola dessa última foi publicada no mesmo ano no El Socialista de Madri aparecendo depois sob forma de opúsculo Manifesto del Partido Comunista por Carlos Marx y F Engels Madri Administración de El socialista Hernán Cortés 8 Como curiosidade posso acrescentar que o manuscrito de uma tradução espanhola foi apresentado a um editor em Constantinopla Mas o bom homem não teve coragem de publicar algo que levasse o nome de Marx sugerindo que o tradutor pusesse seu próprio nome como autor da obra o que ele recusou Depois que várias das pouco exatas traduções americanas foram repetidamente editadas na Inglaterra uma versão autêntica apareceu finalmente em 1888 graças a meu amigo Samuel Moore nós a repassamos juntos antes de enviála à editora É intitulada Manifesto of the Communist Party de Karl Marx e Friedrich Engels tradução inglesa autorizada editada com observações de Friedrich Engels 1888 Londres William Reeves 185 Fleet Street E C Reproduzi algumas notas dessa edição na atual O Manifesto tem sua própria história Saudado com entusiasmo por ocasião de seu aparecimento pela vanguarda então pouco numerosa do socialismo científico como o provam as traduções mencionadas no primeiro prefácio foi logo colocado num segundo plano pela reação que se seguiu à derrota dos operários em Paris em junho de 1848 e proscrito pela lei com a condenação dos comunistas de Colônia em novembro de 1852 Com o desaparecimento da cena pública do movimento operário que começara com a revolução de fevereiro também o Manifesto passou a um segundo plano Aqui Engels praticamente transcreve o terceiro e o quinto parágrafos do prefácio à edição inglesa de 1888 Proletários de todos os países univos Somente algumas vozes responderam quando lançamos essas palavras ao mundo há 42 anos às vésperas da primeira revolução de Paris na qual o proletariado colocou as suas reivindicações Em 28 de setembro de 1864 entretanto os proletários da maior parte dos países da Europa ocidental reuniramse na Associação Internacional dos Trabalhadores de gloriosa memória É verdade que a Internacional em si só viveu nove anos Mas não há testemunho que levasse o nome de Marx e o tradutor recusou divulgála como obra sua Já ouvi falar de outras traduções em outras línguas embora não as tenha visto Portanto a história do Manifesto reflete em grande parte a história do movimento operário moderno atualmente é sem dúvida a obra de maior circulação a mais internacional de toda a literatura socialista o programa comum adotado por milhões de trabalhadores da Sibéria à Califórnia No entanto quando surgiu não poderíamos chamálo um manifesto socialista Em 1847 consideravamse socialistas dois tipos diversos de pessoas De um lado havia os adeptos dos vários sistemas utópicos principalmente os owenistas na Inglaterra e os fourieristas na França ambos já reduzidos a meras seitas agonizantes De outro os vários gêneros de curandeiros sociais que queriam eliminar por meio de suas várias panacéias e com todas as espécies de cataplasma as misérias sociais sem tocar no capital e no lucro Nos dois casos eram pessoas que não pertenciam ao movimento dos trabalhadores preferindo apoiarse nas classes cultas Em contrapartida o setor da classe trabalhadora que exigia uma transformação radical da sociedade convencido de que revoluções meramente políticas eram insuficientes denominavase então comunista Tratavase ainda de um comunismo mal esboçado instintivo e por vezes grosseiro Mas era bastante poderoso para dar origem a dois sistemas de comunismo utópico na França o icariano de Cabet e na Alemanha o de Weitling Em 1847 o socialismo significava um movimento burguês e o comunismo um movimento da classe trabalhadora Ao menos no continente o socialismo era muito bem considerado enquanto o comunismo era o oposto E como desde então éramos decididamente da opinião de que a emancipação dos trabalhadores deve ser obra da própria classe trabalhadora não podíamos hesitar entre os dois nomes a escolher Posteriormente nunca pensamos em modificálo Sendo o Manifesto nossa obra comum cabese declarar que a proposição fundamental pertence a Marx Essa proposição é a de que em cada época histórica a produção econômica o sistema de trocas e a estrutura social que dela necessariamente decorre constituem a base e a explicação da história política e intelectual dessa época que conseqüentemente desde a dissolução do regime primitivo de propriedade comum da terra toda a história da humanidade tem sido a história da luta de classes conflitos entre explorados e exploradores entre as classes dominadas e as dominantes que a história dessas lutas de classes se constitui de uma série de etapas atingindo hoje um ponto em que a classe oprimida e explorada o proletariado melhor do que o dia de hoje de que a eterna união dos proletários de todos os países por ela criada existe ainda e está mais poderosa do que nunca Hoje quando escrevo essas linhas o proletariado europeu e o americano passam em revista suas forças de combate pela primeira vez mobilizados em um único exército sob uma única bandeira por um único objetivo imediato a fixação legal da jornada normal de oito horas de trabalho segundo decisão do Congresso Internacional reunido em Genebra em 1866 e do Congresso Operário de Paris reunido em 1889 O espetáculo de hoje mostrará aos capitalistas e proprietários agrícolas de todos os países que de fato os proletários de todos os países estão unidos Se ao menos Marx estivesse a meu lado para ver isso com seus próprios olhos Friedrich Engels Londres 1º de maio de 1890 Prefácio à edição polonesa de 1892 O fato de se ter tornado necessária uma nova edição polonesa do Manifesto Comunista dá ensejo a várias considerações Primeiro é digno de nota que o Manifesto nos últimos tempos se tenha em certa medida tornado um barômetro do desenvolvimento da grande indústria no continente europeu Na medida em que se expande num país a grande indústria cresce também entre os operários desse país o desejo de esclarecimento sobre a sua posição como classe operária perante as classes possuidoras alargase entre eles o movimento socialista e aumenta a procura do Manifesto De modo que não só a situação do movimento operário mas também o grau de desenvolvimento da grande indústria podem ser medidas com bastante exatidão em todos os países pelo número de exemplares do Manifesto que circulam no idioma de cada um Assim a nova edição polonesa indica um progresso decidido da indústria local E que este progresso de fato se verificou desde à última edição publicada há dez anos não pode haver dúvidas A Polônia russa a Polônia do Congresso de Viena tornouse o grande distrito industrial do Império Russo Ao passo que a grande indústria russa está esporadicamente dispersa uma parte no golfo da Finlândia outra parte no centro Moscou e Vladimir uma terceira nas costas do Mar Negro e do Mar de Azov e ainda repartida por outras zonas a polonesa está concentrada num espaço relativamente pequeno e desfruta das vantagens e das desvantagens resultantes desta concentração As vantagens reconheceramnas os fabricantes russos seus concorrentes quando reclamaram proteção alfandegária contra a Polônia apesar do seu ardente desejo de transformar os polacos em russos As desvantagens para os fabricantes poloneses e para o governo russo revelamse na rápida difusão de idéias socialistas entre os operários poloneses e na crescente procura do Manifesto Mas o rápido desenvolvimento da indústria polonesa que deixa para trás a russa é uma nova prova da vitalidade inesgotável do povo polonês e uma nova garantia da iminência da sua restauração nacional A restauração de uma Polônia forte e independente porém é uma causa que não diz respeito só aos poloneses diz respeito a todos Uma colaboração internacional sincera das nações européias só é possível se cada uma destas nações for em sua casa perfeitamente autônoma A revolução de 1848 que sob o estandarte do proletariado acabou por apenas deixar que os combatentes proletários fizessem o trabalho da burguesia também impôs a independência da Itália da Alemanha e da Hungria por meio dos seus executores testamentários Louis Bonaparte e Bismarck mas a Polônia que desde 1792 fez mais pela revolução do que estas três juntas deixaramna entregue a si própria quando em 1863 sucumbiu ao poderio russo dez vezes superior A nobreza não pôde manter nem reconquistar a independência da Polônia para a burguesia esta é hoje pelo menos indiferente E contudo é uma necessidade para a cooperação harmoniosa das nações européias Só o jovem proletariado polonês a pode conquistar e nas suas mãos ela estará bem guardada Pois os operários de todo o resto da Europa precisam tanto da independência da Polônia como os próprios operários poloneses Friedrich Engels Londres 10 de fevereiro de 1892 Prefácio à edição italiana de 1893 Ao leitor italiano A publicação do Manifesto do Partido Comunista coincidiu podese dizer com o 18 de Março de 1848 o dia das revoluções de Milão e Berlim Ao leitor italiano foi o título introduzido pelo tradutor Filippo Turadi do prefácio de Engels que foram levantamentos armados das duas nações situadas no centro uma do continente da Europa a outra do Mediterrâneo duas nações até então enfraquecidas pela divisão e pela discórdia internas e que por isso caíram sob o domínio estrangeiro Se a Itália ficava sujeita ao imperador da Áustria a Alemanha sofria o jugo indireto mas não menos efetivo do czar de todas as Rússias As consequências do 18 de Março de 1848 libertaram tanto a Itália como a Alemanha desta vergonha se de 1848 a 1871 estas duas grandes nações foram reconstituídas e de certo modo devolvidas a si próprias isso deveuse como Karl Marx costumava dizer ao fato de que os homens que abarcaram a revolução de 1848 foram malgrado seu os seus executores testamentários Por toda a parte a revolução de então foi obra da classe operária foi esta que levantou as barricadas e que pagou com a vida Mas só os operários de Paris tinham a intenção bem definida de derrubando o governo derrubar o regime da burguesia Mas embora profundamente conscientes do antagonismo fatal que existia entre a sua própria classe e a burguesia nem o progresso econômico do país nem o desenvolvimento intelectual das massas operárias francesas contudo tinham atingido ainda o grau que teria tornado possível uma reconstrução social Em última análise portanto os frutos da revolução foram colhidos pela classe capitalista Nos outros países na Itália na Alemanha na Áustria os operários desde o princípio não fizeram mais do que levar a burguesia ao poder Mas em qualquer país o domínio da burguesia é impossível sem a independência nacional Por isso a revolução de 1848 tinha de arrastar consigo a unidade e a autonomia das nações que até então não as tinham desfrutado a Itália a Alemanha a Hungria A vez da Polônia chegará em seu tempo Assim se a revolução de 1848 não foi uma revolução socialista aplanou o caminho preparou o terreno para ela Com o impulso dado em todos os países à grande indústria o regime burguês tem criado por toda a parte nos últimos 45 anos um proletariado numeroso concentrado e forte Criou assim segundo a expressão do Manifesto os seus próprios coveiros Sem restituir a cada nação européia a sua autonomia e unidade não poderiam consumarse nem a união internacional do proletariado nem a cooperação pacífica e inteligente destas nações para fins comuns Imaginese uma ação internacional conjunta dos operários italianos húngaros alemães poloneses e russos nas condições políticas anteriores a 1848 As batalhas travadas em 1848 não foram pois travadas em vão os 45 anos que nos separam daquela etapa revolucionária também não passaram em vão Os frutos amadurecem e tudo o que eu desejo é que a publicação desta tradução italiana do Manifesto seja de tão bom augúrio para a vitória do proletariado italiano como a publicação do original o foi para a revolução internacional O Manifesto Comunista presta plena justiça à ação revolucionária do capitalismo no passado A primeira nação capitalista foi a Itália O fim da Idade Média feudal o limiar da era capitalista moderna é assinalado por uma figura colossal um italiano Dante ao mesmo tempo o último poeta da Idade Média e o primeiro poeta dos tempos modernos Hoje como em 1300 perfilase uma nova era histórica Darnosá a Itália um novo Dante capaz de assinalar o nascimento dessa nova era a era proletária Friedrich Engels Londres 1º de fevereiro de 1893 Capa da edição alemã de 1872 com prefácio de Marx e Engels EM MEMÓRIA DO MANIFESTO COMUNISTA Antonio Labriola DAQUI A TRÊS anos nós socialistas poderemos comemorar nosso jubileu A memorável data da publicação do Manifesto Comunista fevereiro de 1848 marca nossa primeira e certa entrada na História A essa data se refere cada juízo cada apreciação nossa sobre os progressos que o proletariado vem fazendo neste meio século Nessa data se mede o percurso da nova era que desabrocha e surge ou melhor sendo por sua própria formação intimamente ligada e imanente à era presente por isso mesmo dela se desprende e a partir dela se desenvolve necessária e inelutavelmente quaisquer que sejam as vicissitudes e as fases que venha a enfrentar por ora certamente imprevisíveis Todos os que entre nós têm urgência e necessidade de possuir a plena consciência do próprio trabalho muitas vezes voltam o pensamento para as causas e para os movimentos que determinaram a gênese do Manifesto naquelas circunstâncias precisas em que ele surgiu ou seja às vésperas da revolução que explodiu de Paris a Viena de Palermo a Berlim Somente por esta via nós é possível extrair da própria forma social em que hoje vivemos a explicação da tendência ao socialismo E assim justificar pela própria presente razão de ser de tal tendência a necessidade de seu efetivo triunfo cujo presságio externamos diariamente Afinal não é este o cerne do Manifesto sua essência e seu caráter decisivo1 Na verdade seria vão procurálo nas medidas práticas que no final do capítulo segundo ali são sugeridas e propostas como adotáveis na eventua 1 Este meu escrito não é uma reelaboração do Manifesto como se eu quisesse adaptálo às condições presentes nem faço aqui sua análise ou comentário Escrevo como diz o título apenas em memória lidade de um sucesso revolucionário do proletariado ou nas indicações de orientação política com relação aos outros partidos revolucionários da época que se encontram no capítulo quarto Essas indicações e sugestões ainda que apreciáveis e notáveis no tempo em que foram formuladas e ditadas e além disso ainda que sejam sobretudo importantes para julgar de maneira precisa a ação política que os comunistas alemães desenvolveram no período revolucionário de 184850 hoje não mais constituem para nós um conjunto de visões práticas a partir das quais nos caiba decidir pró ou contra em cada caso e recorrência Do tempo da Internacional até hoje em vários países vieram se constituindo sobre a base do proletariado e em seu nome explícito e claro partidos políticos que tiveram e têm na medida em que surgem e depois se desenvolvem viva necessidade de adaptar e de conformar suas exigências e sua obra a contingências variadas e multiformes Mas nenhum desses partidos tem tal consciência de saberse agora tão próximo da ditadura do proletariado de sentir urgente a própria necessidade ou mesmo o desejo ou a tentação de rever e de avaliar as propostas do Manifesto no plano de uma verificação que pareça provável porque tida como próxima Na verdade os experimentos históricos são só aqueles que a própria História faz inesperadamente sem ser de propósito sem projeto e sem ordem explícita Assim aconteceu nos tempos da Comuna que foi é e permanece até hoje para nós o único experimento aproximativo da ação do proletariado ainda que confuso e de curta duração que tenha sido colocado frente à nova e dura prova de apoderarse do poder político Experimento esse que não foi feito de caso pensado nem a partir de um projeto mas acima de tudo foi imposto pelas circunstâncias e heroicamente sustentado e agora se converte para nós em sautar ensinamento Nesse caso onde o movimento socialista se encontra apenas na infância pode acontecer que em razão de experiência própria e direta um ou outro como acontece freqüentemente na Itália se apegue à autoridade de um texto como preceito Mas isso efetivamente não conta nada2 Aquele cerne ou essência e caráter decisivo a meu ver também não deve ser procurado na orientação sobre outras formas de socialismo que no Manifesto são referidas pelo nome de Literatura Tudo o que é dito no capítulo terceiro sem dúvida serve para definir admiravelmente por meio 2 Refirome àquele que no Manifesto é ironicamente chamado de socialismo verdadeiro ou seja alemão Aquele parágrafo que é ininteligível para quem não esteja familiarizado com a filosofia alemã da época especialmente em certas formas de aguda degeneração foi oportunamente omitido na tradução espanhola 88 de antítese e na forma de breves concisas e relevantes características as diferenças que efetivamente existem entre o comunismo que numa expressão infelizmente abusada por muitos hoje nos habituamos a chamar científico e outras formas Ou seja entre o comunismo que tem como tema central o proletariado e como argumento a revolução proletária e as formas reacionárias burguesas semiburguesas pequenoburguesas utópicas e outras Todas essas formas foram recorrentes se renovaram mais vezes recorrem e se renovam ainda hoje nos países em que o movimento proletário moderno mal se encontra no nascedouro Para esses países e em tais circunstâncias o Manifesto exerceu e ainda exerce o papel de crítica atual e de farpa literária Mas nos países onde essas formas já foram teórica e praticamente superadas como é em grande parte o caso da Alemanha e da Áustria ou onde elas sobrevivem só em estado sectário e subjetivo como já ocorre na França e na Inglaterra para não falar de outras tantas nações o Manifesto no que diz respeito a essa diferenciação já cumpriu seu papel E apenas registra como memória aquilo que não se pensa mais dada a ação política do proletariado que já se desenrola em seu processo normal e gradual Ora esta foi precisamente e à guisa de antecipação a disposição de ânimo e de mente daqueles que o escreveram Sobre aquilo que haviam superado com a força do pensamento o qual a partir de poucos mas claros dados de experiência antecipou com precisão os eventos eles exprimiam então apenas a exclusão e a condenação O comunismo crítico este é o seu verdadeiro nome e não existe outro mais exato para tal doutrina não compartilhava mais com os feudais a lembrança nostálgica da velha sociedade para depois contrapor a ela a crítica da sociedade presente pelo contrário olhava apenas para o futuro Não se associava mais aos pequenosburgueses no desejo de salvar o não salvável como por exemplo a pequena propriedade ou a vida pacata da gente humilde que a vertiginosa ação do estado moderno que é o órgão necessário e natural da sociedade atual torna grave e pesado apenas porque esse estado revolucionando continuamente traz em si e consigo a necessidade de outras novas revoluções Também não traduzia em fantasias metafísicas ou em reflexões de sentimento doentio ou de contemplação religiosa os contrastes reais dos interesses materiais da vida cotidiana ao contrário apresentava e expunha esses contrastes em toda sua trivialidade Não construía a sociedade do futuro a partir das linhas de um desenho em cada parte harmonicamente direcionado para o acabamento Não dirigia palavras de louvor e de exaltação ou de evoca ção e de lamento às duas deusas da mitologia filosófica a Justiça e a Igualdade Essas duas deusas hoje fazem triste figura na mísera prática da vida cotidiana quando se percebe como há tantos séculos a História se entrega ao indecente passatempo de contrariar seus infalíveis desígnios Por outro lado aqueles comunistas mesmo explicando e exibindo fatos com força de argumento e de prova que em nossa época os proletários estavam destinados a desempenhar o papel de coveiros da burguesia a ela prestavam homenagem enquanto autora de uma forma social que é em extensão e intensidade um estádio notável do progresso humano e que sozinha pode servir de arena às novas lutas que prometem êxito ao proletariado Nunca foi escrito necrológio de estilo tão monumental Esses louvores dirigidos à burguesia assumem certa forma original de humorismo trágico e para alguns parecem escritos com entonação de ditirambo Não obstante as definições negativas e antitéticas das outras formas de socialismo correntes então e até hoje freqüentemente recorrentes por serem incensuráveis na substância na forma e no objetivo a que visam não pretendem ser nem são a efetiva história do socialismo e não apresentam nem a pista nem o esquema dela se alguém quiser escrevêla Na verdade a História não se apóia sobre a diferença entre verdadeiro e falso ou justo e injusto menos ainda sobre a mais abstrata antítese entre possível e real como se as coisas permanecessem de um lado e tivessem do outro lado as próprias sombras e fantasmas nas idéias Ela está sempre toda de um lado e se apóia inteira sobre o processo de formação e transformação da sociedade o que pode ser percebido em sentido objetivo e independentemente de nossa aceitação ou repulsa Ela é uma dinâmica de gênero especial como convém dizer aos positivistas que tanto se deleitam com tais expressões e freqüentemente não vão além da própria nova palavra que põem em circulação Hoje as várias formas de concepção de ação socialistas que apareceram e desapareceram no curso dos séculos com tantas diferenças nos motivos na fisionomia e nos efeitos são todas estudadas e explicadas pelas condições específicas e complexas da vida social em que se produziram Ao examinálas vêse que não constituem um único conjunto de processo contínuo porque a série foi muitas vezes interrompida pela mudança do complexo social pelo obscurecimento e pela ruptura da tradição Só no tempo da Grande Revolução o socialismo assume certa unidade de processo que se torna mais evidente de 1830 em diante com o definitivo advento da burguesia no domínio político na França e na Inglaterra e por último se torna intuitiva diria mesmo palpável da Internacional até os dias de hoje Nesta estrada neste caminho o Manifesto se ergue como grande marco da distância percorrida com dupla indicação por assim dizer para as duas direções De um lado está o incunábulo da nova doutrina que depois deu a volta ao mundo De outro está a orientação sobre as formas que ele exclui mas das quais não traz a exposição e o relato3 O cerne a essência o caráter decisivo deste escrito consiste inteiramente na nova concepção histórica que o fundamenta e que ele mesmo em parte explica e desenvolve quando não aponta refere ou apenas supõe Por essa concepção o comunismo cessando de ser esperança aspiração lembrança conjectura ou subterfúgio encontrava pela primeira vez a expressão adequada na consciência de sua própria necessidade isto é na consciência de ser o êxito e a solução das atuais lutas de classes Não se trata das lutas de classes de todos os tempos e lugares sobre as quais a História do passado se exercitou e desenvolveu ao contrário todas elas perdem estatura e se reduzem predominantemente à luta entre burguesia capitalista e trabalhadores fatalmente proletarizados É desta luta que o Manifesto encontra a gênese determina o ritmo de evolução e prevê o efeito final Em tal concepção histórica está toda a doutrina do comunismo científico Deste ponto em diante os adversários teóricos do socialismo não são mais chamados a discutir a possibilidade abstrata da socialização democrática dos meios de produção4 como se disto fosse possível extraíremse ligações das atitudes gerais e comuníssimas da assim chamada natureza humana Ao contrário aqui se trata de reconhecer ou de não reconhecer no curso presente das coisas humanas uma necessidade que transcende cada simpatia e cada aprovação subjetiva nossa Nos países que mais pro3 Há uns bons anos oito já nos cursos universitários que intitulo ou gênese do socialismo moderno ou história geral do socialismo ou da interpretação materialista da História tive oportunidade e tempo de aprofundarme em tal literatura e reduzila a uma certa evidência prospectiva e sistemática Coisa já difícil mas sobretudo na Itália onde não existe tradição de escolas socialistas e onde a vida do partido é tão nova que não propicia o exemplo instrutivo de formação e de processo Mas este ensaio não é a reprodução de uma de minhas aulas As aulas não são feitas com livros nem publicando aulas se fazem livros verdadeiros no sentido explícito e pleno da palavra 4 É preciso insistir sobre a expressão democrátca socialização dos meios de produção porque a outra propriedade coletiva além de conter um erro teórico ao empregar a definição jurídica em lugar do fato econômico real na mente de muitos se confunde com incremento dos monopólios com a crescente estratificação dos serviços públicos e com todas as outras fantasmagorias do sempre renascente socialismo de Estado cujo segredo é aumentar os meios econômicos da opressão em mãos da classe dos opressores 90 91 gedraram encontrase ou não a sociedade a ponto de alcançar o comunismo pelas leis imanentes à sua própria transformação dada sua atual estrutura econômica e considerando os atritos que ela por si e em si mesma necessariamente produz até romperse e dissolverse Este é o tema da discussão desde que tal doutrina apareceu E esta é conjuntamente a regra de conduta que se impõe à ação dos partidos socialistas sejam eles compostos unicamente por proletários ou acolham em suas fileiras homens saídos de outras classes que fazem papel de voluntários no exército do proletariado Por isso nós socialistas que de bom grado nos deixamos chamar científicos se não se tentar com tal epíteto confundirnos com os positivistas que são nossos hóspedes freqüentes mas nem sempre bem aceitos e a seu bel prazer monopolizam a palavra ciência não lutamos para sustentar uma tese abstrata e genérica como se fôssemos causídicos ou sofistas nem nos apressamos em demonstrar a racionalidade de nossos objetivos Nossos objetivos são unicamente a expressão teórica e a explicação pacífica dos dados que nos oferece a interpretação do processo que se cumpre através de nós e em torno a nós e que está inteiro nas relações objetivas da vida social da qual somos sujeito e objeto causa e efeito escopo e parte Nossos objetivos são racionais não porque se fundamentam em argumentos extraídos da razão da discussão mas porque são deduzidos da consideração objetiva das coisas o que equivale dizer que são deduzidos a partir da elucidação do seu processo que não é nem pode ser resultado de nosso arbítrio mas ao contrário vence e submete nosso arbítrio O manifesto dos comunistas por sua eficácia específica não pode ser substituído por nenhum dos escritos anteriores ou posteriores de seus próprios autores que por extensão e porte científico são tão maiores Todavia ele nos oferece em sua clássica simplicidade a expressão genuína desta situação o proletariado moderno é se coloca cresce e se desenvolve na História contemporânea como o sujeito concreto como a força positiva de cuja ação inevitavelmente revolucionária o comunismo deverá necessariamente resultar E por isso por tal enunciação de presságio teoricamente fundamentada e expressa em frases breves rápidas concisas e memoráveis este escrito constitui um conjunto ou mais ainda um viveiro inexaurível de gens de pensamento que o leitor pode indefinidamente fecundar e multiplicar conservando a força original e originária da coisa recémnascida e não ainda desenvolta e desviada do campo de sua própria produção Observação esta que se dirige principalmente àqueles que fazendo profissão de douta ignorância ou pior sendo fanfarrões charlatães ou alegres esportistas oferecem precursores donos aliados e mestres de todos os gêneros como presente à doutrina do comunismo crítico ultrajando o senso comum e a cronologia vulgar Ou seja enquadram nossa doutrina materialista da História na concepção quase sempre fantástica e genérica demais da evolução universal já reduzida por muitos em nova metáfora de romance metafísico Ou seja procuram em tal doutrina um derivado do darwinismo que apenas de certo modo mas em senso bastante lato é um caso análogo deste Ou ainda favorecem a aliança e o apadrinhamento daquela filosofia positivista que brota de Comte degenerador reacionário do genial SaintSimon e deságua em Spencer quintessência do burguesismo anemicamente anárquico o que significa propiciarnos por meio de aliados e protetores nossos adversários declarados e decisivos Tal força germinativa tal eficácia tão clássica tal concisão de síntese de muitas séries e grupos de pensamentos em um escrito de tão poucas páginas 5 devemse à maneira como foi produzido Dois alemães foram seus autores mas não inseriram nele nem a substância nem a forma das opiniões pessoais que naquele tempo tinham sabor de imprecações de vulgaridade e de rancor na boca dos prófugos políticos ou de quem como era o caso deles abandonasse a pátria por iniciativa própria para desfrutar de ares mais respiráveis em outro lugar Também não introduziram diretamente as imagens das condições de seu país que eram pouco desenvolvidas política e socialmente ou seja economicamente apenas por alguns primeiros sinais e só em certos pontos do território comparáveis às que na França e na Inglaterra eram e mostravamse modernas Por outro lado trouxeram para o texto o pensamento filosófico motivo único pelo qual a pátria deles se colocara e se mantivera à altura da História contemporânea o pensamento filosófico que naquele tempo exatamente na pessoa deles assumia a notável transformação pela qual o materialismo já renovado por Feuerbach combinandose 5 São 23 páginas em corpo 8 na edição original Londres fevereiro de 1848 que eu devo à incomparável cortesia de Engels Digo aqui de passagem que venci a tentação de acrescentar a este escrito notas bibliográficas ou de literatura ou de remissão ou de citações porque se enveredasse por esse caminho teria feito um ensaio de erudição ou antes um livro mais que um opúsculo Mas o leitor acreditará na minha palavra de que não há alusão sinal ou malentendido nestas páginas que não se refira a fontes e fatos pertinentes ao tema e mais que isso à totalidade das fontes e dos fatos 92 93 com a dialética tornavase capaz de abraçar e de compreender o movimento da História nas suas causas mais íntimas e até então inexploradas porque latentes e difíceis de destrinchar Ambos comunistas e revolucionários mas não por instinto nem por puro impulso ou paixão eles tinham quase elaborada toda uma nova crítica da ciência econômica e tinham incorporado o nexo e o significado histórico do movimento proletário do lado de cá e do lado de lá da Mancha ou seja da França e da Inglaterra antes mesmo que fossem chamados a ditar no Manifesto o programa e a doutrina da Liga dos Comunistas Sediada em Londres e com notáveis ramificações no continente a Liga construíra uma boa trajetória de vida e de desenvolvimento próprio através de fases diversas Dos dois Engels era já há algum tempo autor de um ensaio crítico que superando qualquer restrição subjetiva e unilateral pela primeira vez tirava objetivamente a crítica da economia política dos antagonismos inerentes aos enunciados e aos conceitos da própria economia depois alcançara a fama com um livro sobre a condição dos operários ingleses que é a primeira tentativa bem sucedida de representar os movimentos da classe operária como resultante do próprio jogo das forças e dos meios de produção6 O outro Marx tinha acumulado no breve correr dos anos a experiência de publicista radical na Alemanha e igualmente em Paris e Bruxelas a excogitação quase madura dos primeiros rudimentos da concepção materialista da História a crítica teórica e vitoriosa dos pressupostos e das ilações da doutrina de Proudhon e a primeira elucidação precisa da origem do sobrevalor de compra e do uso da força de trabalho ou seja o primeiro germe das concepções cujas demonstrações reconexões e particularidades alcançaram a maturidade mais tarde no Capital Ambos ligados por muitas e várias vias de comunicação aos revolucionários dos vários países da Europa especialmente da França da Bélgica e da Inglaterra não compuseram o Manifesto como ensaio de opinião pessoal mas sobretudo como a doutrina de um partido que em seu âmbito estreito no ânimo nos intentos e na ação já era a primeira Internacional dos Trabalhadores Neste ponto começa o socialismo estritamente moderno Aqui está a linha divisória de todo o resto 6 Os Umrisse zu einer Kritik der Nationaloekonomie Apontamentos para uma Crítica da Economia Nacional foram publicados nos Deutsch Franzoesische Jahrbücher em Paris em 1844 pp 85114 O livro com o título Die Lage der arbeitenden Klasse in England A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra foi publicado em primeira edição em Leipzig em 1845 Publicado no Brasil pela Global 1986 94 A Liga dos Comunistas tornarase tal depois de ter sido Liga dos Justos e esta por sua vez por clara consciência de intentos proletários gradativamente se diferenciara da liga genérica dos prófugos isto é dos desgarrados Como modelo que traz em si em desenho quase embrionário a forma dos ulteriores movimentos socialistas e proletários ela atravessara as várias fases da conspiração e do socialismo igualitário Fora metafísica com Grün e utópica com Weitling Tendo sua sede principal em Londres aproximarase do movimento cartista refluindo em parte sobre ele em seu caráter intermitente por ser primeiro experimento e ponto premeditado por não ser mais conspiração ou seita esse movimento exemplificava a dura e penosa formação do partido verdadeiro e próprio da política proletária A tendência ao socialismo só alcançou a maturidade no Cartismo quando o movimento já estava próximo de fracassar e de fato fracassou Sois inesquecíveis Jones e Harney A Liga sentia o cheiro da revolução em toda parte porque a coisa estava no ar porque seu instinto e seu método de informação a levavam a isso e enquanto a revolução efetivamente estourava ela buscou na nova doutrina do Manifesto um instrumento de orientação que era ao mesmo tempo uma arma de combate Realmente internacional em parte pela qualidade e origem variada de seus membros mas bem mais ainda pelo instinto e pela vocação que todos eles tinham ela veio a assumir seu lugar no movimento geral da vida política como prenúncio claro e preciso de tudo o que hoje se pode chamar socialismo moderno se com a palavra moderno não se entender uma simples data de cronologia extrínseca mas diferentemente um sinal do processo interno ou seja morfológico da sociedade Uma longa intermissão de 1852 a 1864 o período da reação política e ao mesmo tempo do desaparecimento da dispersão e da reabsorção das velhas escolas socialistas separa a Internacional que mal começara com a Arbeiterbildungsverein em Londres da Internacional propriamente dita que de 1864 a 1873 tentou igualar pelas condições de luta as ações do proletariado na Europa e na América Outras intermissões teve a ação do proletariado sobretudo na Alemanha e especialmente na França da dissolução da Internacional de gloriosa memória até esta nova que hoje vive com outros meios e se desenvolve com outros modos todos de acordo com a situação política em que nos encontramos e com as sugestões de uma experiência mais larga e amadurecida Mas como os sobreviventes entre os que de novembro a dezembro de 1847 discutiram e aceitaram a nova doutrina reapareceram na cena pública da grande Internacional e reapareceram por último nesta nova doutrina também o Manifesto voltou continuamente à luz da publicidade fazendo de fato aquela volta ao mundo em todas as línguas dos países civilizados desígnio que seus autores haviam traçado desde o primeiro momento Esse é o verdadeiro prenúncio esses foram nossos verdadeiros precursores Mexeramse antes dos outros cedo com passo apressado mas firme exatamente aquele caminho que nós temos que percorrer e de fato estamos percorrendo Mas o nome de precursores não cai bem àqueles que percorreram caminhos que depois tenha sido conveniente abandonar ou seja para sair da metáfora àqueles que formularam doutrinas e iniciaram movimentos sem dúvida explicáveis pelos tempos e pelas circunstâncias em que nasceram mas que depois foram todos superados pela doutrina do comunismo crítico que é a teoria da revolução proletária Não é que essas doutrinas e tentativas tenham aparecido de modo acidental inútil e supérfluo Não há nada que seja absolutamente irracional no curso histórico dos acontecimentos porque nele não existe nada de imotivado e portanto meramente supérfluo Tampouco nos é possível nem mesmo hoje alcançar a consciência do comunismo crítico sem repassar mentalmente aquelas doutrinas percorrendo de novo o processo de seu aparecimento e desaparecimento O fato é que essas doutrinas não são passadas no tempo ou na memória mas foram intrinsecamente ultrapassadas tanto pela mudança da condição da sociedade quanto pelo progresso da inteligência das leis sobre as quais se apóiam sua formação e seu processo O momento em que se verifica tal passar que intrinsicamente é um ultrapassar é precisamente aquele em que aparece o Manifesto Como primeiro sinal da gênese do socialismo moderno este escrito que da nova doutrina apresenta apenas os traços mais gerais ou seja mais facilmente comunicáveis traz consigo os vestígios do terreno histórico em que nasceu o da França da Inglaterra e da Alemanha O terreno de propagação e difusão tornouse depois cada vez mais largo e hoje é tão vasto quanto o mundo civilizado Em todos os países onde a tendência à comunismo veio sucessivamente se desenvolvendo através dos antagonismos variadamente posicionados e no entanto a cada dia mais claros entre burguesia e proletariado o processo da primeira formação continuou se repetindo em parte ou no todo Os partidos proletários que continuamente se constituíram voltaram a percorrer os estágios de formação que os pioneiros percorreram pela primeira vez entretanto tal processo se fez de país em país e de ano em ano cada vez mais breve tanto pelas crescentes evidência urgência e energia dos antagonismos quanto porque assimilar uma doutrina ou uma orientação é muito mais fácil que produzilas pela primeira vez Também por isso nossos colaboradores de cinqüenta anos atrás foram internacionais porque deram ao proletariado das várias nações com o próprio exemplo e experiência a pista antecipada e geral do trabalho a cumprir Mas a consciência teórica do socialismo está hoje como antes e como sempre estará na compreensão de sua necessidade histórica ou seja na consciência da forma de sua gênese e esta se reflete como campo restrito de observação e como exemplo conciso na própria formação do Manifesto Ele mesmo por colocarse como instrumento de luta não apresenta indícios aparentes de sua origem porque se exprime por um conteúdo de enunciados e não por um conjunto de demonstrações A demonstração está inteira no imperativo da necessidade Mas a formação pode ser toda refeita e hoje refazêla significa entendermos verdadeiramente a doutrina do Manifesto De fato há uma análise que separando abstratamente os fatores de um organismo os destrói enquanto elementos participantes da unidade do complexo Mas há outro tipo de análise e só essa tem valor para a compreensão da História é a que distingue e separa os elementos apenas para reconhecer a necessidade objetiva da participação deles no resultado Hoje é opinião popular que o socialismo é um fruto normal e portanto inevitável da História atual Sua ação política que por certo admite de agora em diante adiamentos e atrasos mas não mais reabsorção total e aniquilamento decididamente começou com a Internacional Por trás dela porém está o Manifesto Sua doutrina é acima de tudo a luz teórica levada ao movimento proletário o qual de resto se gerara e continua a gerarse independentemente da ação de qualquer doutrina Além disso ele é mais que essa luz O comunismo crítico só surge no momento em que o movimento proletário além de ser resultado de condições sociais já se fortaleceu a ponto de entender que essas condições são mutáveis e a ponto de perceber com que meios e em que sentido podem ser mudadas Não bastava que o socialismo fosse um resultado da História além disso era necessário entender como era tal resultado intrinsecamente e a que acontecimentos conduzia sua agitação A expressão de tal consciência a saber o proletariado como resultado necessário da sociedade moderna traz em si a missão de suceder à burguesia de sucedêla como força produtora de uma nova ordem de convivência em que os antagonismos de clas 95 ses deverão desaparecer faz do Manifesto um momento característico do curso geral da História Ele é uma revelação mas não como visão de apocalipse ou promessa de milênio É a revelação científica e medida do caminho que percorre a nossa sociedade civil que a sombra de Fourier me proteja pela maneira como é expressa tal revelação assume a palavra decisiva e diria mesmo fulminante de quem expressa no fato o próprio fato Nessa medida o Manifesto nos restitui a história interna de sua origem que ao mesmo tempo justifica sua doutrina e explica seu efeito singular e sua maravilhosa eficácia Sem nos perdermos em muitos detalhes aqui estão as séries e grupos de elementos que reunidos e transformados naquela rápida e oportuna síntese constituem a essência de todo desenvolvimento ulterior do socialismo científico O tema imediato direto e intuitivo é dado pela França e pela Inglaterra que já tinham colocado na cena política pós1830 um movimento operário que às vezes se mescla e às vezes se distingue dos outros movimentos revolucionários corre dos extremos da revolta instintiva até o desenho prático do partido político por exemplo a Carta e a democracia social e gera diversas formas instáveis e passageiras de comunismo ou de semicominismo como a que na época era chamada socialismo Para reconhecer em tais movimentos não mais o aparecimento fugaz de perturbações meteóricas mas o fato novo da História era necessária uma teoria que não fosse nem um simples complemento da tradição democrática nem a condenação subjetiva dos inconvenientes então reconhecidos da economia da concorrência que como é sabido passavam então pelo pensamento e pela fala de muitos A nova teoria foi exatamente a obra pessoal de Marx e Engels partindo da forma abstrata que a dialética de Hegel já tinha descrito sumariamente e nos aspectos generalíssimos eles transferiram o conceito do devir histórico por processo de antítese para a explicação concreta das lutas de classes E pela primeira vez entenderam esse movimento histórico que parecera passagem de uma para outra forma de idéias como a transição para uma outra forma da anatomia social subjacente ou seja de uma para outra forma da produção econômica Elevando ao nível de teoria aquela necessidade da nova revolução social que era mais ou menos implícita na consciência instintiva do proletariado e nos seus movimentos apaixonados e súbitos essa concepção histórica no ato de reconhecer a intrínseca e imanente necessidade da revolução transformava o próprio conceito de revolução O que parecia possível às seitas de conspiradores como fato que se possa querer inten de país em país e de ano em ano cada vez mais breve tanto pelas crescentes evidência urgência e energia dos antagonismos quanto porque assimilar uma doutrina ou uma orientação é muito mais fácil que produzilas pela primeira vez Também por isso nossos colaboradores de cinqüenta anos atrás foram internacionais porque deram ao proletariado das várias nações com o próprio exemplo e experiência a pista antecipada e geral do trabalho a cumprir Mas a consciência teórica do socialismo está hoje como antes e como sempre estará na compreensão de sua necessidade histórica ou seja na consciência da forma de sua gênese e esta se reflete como campo restrito de observação e como exemplo conciso na própria formação do Manifesto Ele mesmo por colocarse como instrumento de luta não apresenta indícios aparentes de sua origem porque se exprime por um conteúdo de enunciados e não por um conjunto de demonstrações A demonstração está inteira no imperativo da necessidade Mas a formação pode ser toda refeita e hoje refazêla significa entendermos verdadeiramente a doutrina do Manifesto De fato há uma análise que separando abstratamente os fatores de um organismo os destrói enquanto elementos participantes da unidade do complexo Mas há outro tipo de análise e só essa tem valor para a compreensão da História é a que distingue e separa os elementos apenas para reconhecer a necessidade objetiva da participação deles no resultado Hoje é opinião popular que o socialismo é um fruto normal e portanto inevitável da História atual Sua ação política que por certo admite de agora em diante adiamentos e atrasos mas não mais reabsorção total e aniquilamento decididamente começou com a Internacional Por trás dela porém está o Manifesto Sua doutrina é acima de tudo a luz teórica levada ao movimento proletário o qual de resto se gerara e continua a gerarse independentemente da ação de qualquer doutrina Além disso ele é mais que essa luz O comunismo crítico só surge no momento em que o movimento proletário além de ser resultado de condições sociais já se fortaleceu a ponto de entender que essas condições são mutáveis e a ponto de perceber com que meios e em que sentido podem ser mudadas Não bastava que o socialismo fosse um resultado da História além disso era necessário entender como era tal resultado intrinsecamente e a que acontecimentos conduzia sua agitação A expressão de tal consciência a saber o proletariado como resultado necessário da sociedade moderna traz em si a missão de suceder à burguesia de sucedêla como força produtora de uma nova ordem de convivência em que os antagonismos de clas 96 sional e ao qual se possa estar predisposto por vontade própria tornavase um processo a ser facilitado sustentado e secundado A revolução se tornava objeto de uma política cujas condições são dadas pela situação complexa da sociedade um resultado que o proletariado deve alcançar através de várias lutas e meios variados de organização ainda não cogitados pela velha tática das revoltas E isto porque o proletariado não é um acessório uma excrescência um mal eliminável desta sociedade em que vivemos mas é o seu substrato sua condição essencial seu efeito inevitável e por sua vez a causa que conserva e mantém viva a própria sociedade que não se pode emancipar senão emancipando tudo e todos ou seja revolucionando integralmente a forma de produção Como a Liga dos Justos se tornara Liga dos Comunistas despojandose das formas simbólicas e conspiratórias voltandose gradualmente para os meios da propaganda e da ação política algum tempo depois que a insurreição de Barbès e Blanqui fracassou 1839 assim a doutrina nova que a própria Liga aceitava e fazia sua superou definitivamente as idéias que guiavam a ação conspiratória e converteu em fim e resultado objetivo de um processo aquilo que os conspiradores pensavam que estivesse na ponta de um projeto deles ou que pudesse ser a emanação e o eflúvio de seu heroísmo E aqui está uma outra linha ascendente na ordem dos fatos uma outra conexão de conceitos e de doutrinas O comunismo conspiratório o blanquismo da época nos faz remontar através de Buonarroti e em parte através de Bazard e da Carbonária até chegar à conspiração de Babeuf que foi verdadeiro herói de tragédia antiga que tromba com o destino por ignorar a incongruência do próprio projeto com a condição econômica do tempo ainda não apta a pôr na cena política um proletariado munido de explícita consciência de classe De Babeuf através de alguns elementos menos conhecidos do período jacobino passando Boissel e Fauchet se remonta ao intuitivo Morelly e ao versátil e genial Mably e se assim se quiser até o caótico testamento do cura Meslier rebelião instintiva e violenta do bom senso contra a selvagem opressão do pobre camponês Foram todos igualitaristas esses precursores do socialismo violento protestatário conspiratório como também foram igualitaristas a maioria dos próprios conspiradores Por singular mas inevitável deslumbramento todos eles adotaram uma arma de combate mas interpretandoa e generalizandoa pelo avesso aquela mesma doutrina da igualdade que desenvolvida como direito natural paralelamente à formação da teoria eco 97 nômica fora instrumento na mão da burguesia que conquistava gradualmente sua posição atual para converter a sociedade do privilégio na do liberalismo político e econômico e do código civil 7 Por tal ilação imediata que no fundo era simples ilusão isto é por serem todos os homens naturalmente iguais eles teriam que ser iguais também nas posses acreditavase que o apelo à razão encerrasse em si cada elemento e força de persuasão e propaganda e que a rápida instantânea e violenta tomada de posse dos instrumentos exteriores do poder político fosse o único instrumento para trazer à ordem os renitentes Mas onde nasceram e como se regulam essas desigualdades que parecem tão irracionais à luz de um tão simples e simplista conceito de justiça O Manifesto surge como a negação decisiva do princípio de igualdade assim tão ingênua e toscamente compreendido No ato em que anuncia como inevitável a abolição das classes na futura forma de produção coletiva fala destas mesmas classes como um fato como são como nasceram e como se tornaram um fato que não é a exceção nem derroga a exceção a um princípio abstrato mas pelo contrário é o próprio processo da História Como o proletariado moderno pressupõe a burguesia esta não vive sem ele E um e outra são o resultado de um processo de formação que fundamenta tudo no modo de produzir os meios necessários à vida isto é tudo se fundamenta no modo da produção econômica A sociedade burguesa surgiu da sociedade corporativa e feudal e dela surgiu lutando e revolucionando o que tinha diante de si para apoderarse dos instrumentos e dos meios de produção que depois todos eles culminam na formação e no alargamento e na reprodução e multiplicação do capital Descrever a origem e o progresso da burguesia nas suas várias fases expor seus sucessos no desenvolvimento colossal da técnica e na conquista do mercado mundial indicar as conseqüentes transformações políticas que são a expressão de tais conquistas as defesas e o resultado significa fazer ao mesmo tempo a história do proletariado Este em sua condição atual é inerente à época da sociedade burguesa e teve e terá tantas e tantas fases quantas tem esta própria sociedade até sua dissolução O antagonismo 7 Proliferaram nestes últimos anos muitos juristas que procuraram nas correções ao Código Civil os meios práticos para elevar a condição do proletariado Mas porque não pedem ao Papa que assuma a chefia da Liga dos Livres pensadores Entre outros é notável o caso daquele escritor italiano que recentemente tratando da luta de classes pediu que ao lado do Código que garante os direitos do capital se elabore um outro que garanta os direitos do trabalho 100 101 entre ricos e pobres entre gozosos e sofridos opressores e oprimidos não é algum acontecimento acidental e facilmente removível como parecera aos entusiastas amantes da justiça Ao contrário é um fato de necessária correlação dado o princípio diretivo da atual forma de produção como aparece na necessidade do assalariado Esta necessidade é dúplice em si mesma O capital só pode apoderarse da produção proletarizandose e só pode continuar a existir a ser frutífero a acumularse a multiplicarse e a transformarse se assalariar os proletarizados E estes por sua vez só podem existir e renovarse entregandose como mercadoria como força de trabalho cujo uso é abandonado ao critério isto é às conveniências dos possuidores de capital A harmonia entre capital e trabalho está toda nisto o trabalho é a força viva com a qual os proletários continuamente põem em movimento e reproduzem com novo acréscimo o trabalho acumulado no capital Este nexo que é resultado de um desenvolvimento que é toda a essência íntima da História moderna propicia a chave para entender a nova razão da luta de classes da qual a concepção comunista se tornou auxílio e expressão é por outro lado feito de tal maneira que nenhum protesto do coração e do sentimento nenhuma argumentação de justiça pode resolvêlo ou desfazêlo Por tais razões aqui por mim apresentadas até onde espero com plausível popularidade o comunismo igualitário permanecia vencido A sua impotência prática era igual à sua incapacidade teórica de perceber as causas das injustiças ou seja das desigualdades que queria corajosa ou irrefletidamente sepultar e eliminar de repente A partir daí compreender a História se tornava a principal preocupação dos teóricos do comunismo E como se poderia contrapor à dura realidade da História um almejado e até mesmo perfeitíssimo ideal Nem se poderia afirmar que o comunismo seja o estado natural e necessário da vida humana de todos os tempos e lugares em relação ao qual todo o curso das formações históricas deve parecer uma série de desvios e de aberrações Nem que a ele se pode chegar ou se transformar por abnegação espartana e por resignação cristã Ele pode ser e efetivamente deve ser e será a consequência da dissolução desta nossa sociedade capitalista Mas nela a dissolução não pode ser inoculada artificialmente nem importada ab extra Ela se dissolverá pelo próprio peso diria Maquiavel Cairá como forma de produção que gera em si mesma a constante e progressiva rebelião das forças produtivas contra as relações jurídicas e políticas da produção e no entanto só continua a viver enquanto viver porque aumenta continuamente a concorrên cia que gera as crises e estende vertiginosamente sua esfera de ação condições intrínsecas de sua morte inevitável Como aconteceu com a morte natural em outro ramo de ciência também na forma social a morte se transformou em caso fisiológico O Manifesto não apresentou nem devia apresentar o projeto da sociedade futura Por outro lado disse como a presente sociedade se dissolverá pela dinâmica progressiva de suas forças imanentes Para isso recorreu principalmente à exposição do desenvolvimento da burguesia e a fez em traços rápidos que são capítulo exemplar da filosofia da História suscetível a retoques acréscimos e acima de tudo a amplo desenvolvimento mas que não admite correção no que lhe é intrínseco 8 SaintSimon e Fourier ainda que não tenham sido reproduzidos no teor de suas idéias nem imitados no encaminhamento de suas abordagens permaneciam por tal elevação teórica justificados e confirmados Ambos ideólogos eles tinham superado a época liberal dentro dela mesma em uma antecipação de singular genialidade que no horizonte por eles visualizado culminava com a Grande Revolução O primeiro subverteu a interpretação da história do direito à economia e da política à física social e em meio a muitas incertezas de entendimento idealista e de entendimento positivo quase encontrou a gênese do terceiro estado O outro por ignorância de detalhes desconhecidos ou por ele desprezados e por exuberância de engenho não disciplinado fantasiou uma grande sequência de épocas históricas vagamente diferenciadas e marcadas por certos sinais do princípio diretivo das formas de produção e de distribuição Em seguida alinhavou o argumento da construção de uma sociedade em que os antagonismos atuais desaparecessem Entre esses antagonismos com perspicácia genial descobriu um que estudou com amor especial o círculo vicioso da produção Sem o saber concorria com Sismondi que na mesma época com outro intuito e por outras vias a partir do exemplo das crises e dos apontados inconvenientes da grande indústria e da concorrência impiedosa explicava com timidez o fiasco da ciência econômica recémelaborada Do alto da serena meditação sobre o mundo futuro dos harmoniosos Fourier olhou com sereno desprezo para a miséria dos civilizados e escreveu tranqüilo a sátira da História Idéologos tanto um quanto outro ignoraram a dura luta que o proletariado é convocado a sustentar antes de por termo à época da exploração e dos antagonismos e por necessidade subjetiva de concluir se tornaram um projetista e o outro um utopista9 Mas adivinharam alguns aspectos notáveis dos princípios diretivos da sociedade sem antagonismos O primeiro concebeu claramente o governo técnico da sociedade sem domínio do homem sobre o homem E Fourier adivinhou divisou e previu através de tantas extravagâncias de sua luxuriante e irrefreada fantasia não poucos aspectos notáveis da psicologia e da pedagogia daquela convivência futura na qual segundo a expressão do Manifesto o livre desenvolvimento de cada um é condição do livre desenvolvimento de todos O saintsimonismo já se havia dissipado quando o Manifesto apareceu Por outro lado o fourierismo florescia na França por sua própria índole não como partido mas como escola Quando a escola tentou alcançar a utopia por meio da lei os proletários parisienses já tinham sido derrotados nas jornadas de junho por aquela burguesia que derrotandoos propiciou a si mesma o domínio de um apogeu insigne e aventureiro que durou vinte anos Não como voz de uma escola mas como promessa ameaça e vontade de um partido vinha à luz a nova doutrina dos comunistas críticos Seus autores e sequazes não viviam de fantasia do futuro mas com o ânimo completamente voltado para a experiência e para as necessidades do presente Viviam da consciência dos proletários cujo instinto ainda não submetido pela experiência em Paris e na Inglaterra estimulava a subverter o domínio da burguesia com velocidade de ações não dirigidas por uma tática estudada Esses comunistas difundiram na Alemanha as idéias revolucionárias foram os defensores das vítimas de junho e tiveram na Neue Rheinische Zeitung um órgão político que hoje tantos anos depois ainda faz escola especialmente pelos seus textos que esparsamente vêm sendo reproduzidos Cessadas as contingências históricas que em 1848 impulsionaram os proletários para a frente da cena política a doutrina do Manifesto não encontrou mais nem base nem terreno de difusão Esperou anos para difundirse porque foram necessários anos antes que o proletariado pudesse por outras vias e com outros modos voltar à cena como força política fazer dessa doutrina seu órgão intelectual e encontrar nela os meios de orientação 8 Tal desenvolvimento é O Capital de Marx que neste caso eu não me sinto qualificado para chamar de filosofia da História 9 Não sou contrário a reconhecer como Anton Menger que SaintSimon não foi verdadeiramente utopista como foram de forma acentuada típica e clássica Fourier e Owen Nova Gazeta Renana N da T 102 103 Mas desde o dia em que apareceu ela foi a crítica antecipada daquele socialismus vulgaris que vegetou pela Europa e especialmente na França desde o golpe de Estado até o aparecimento da Internacional que em seu breve período de vida não teve tempo de vencêlo esgotálo eliminálo totalmente Esse socialismo vulgar se alimentava se não de outras idéias mais desconexas principalmente das doutrinas e mais ainda dos paradoxos de Proudhon que já há muito tempo superado por Marx só foi praticamente vencido durante a Comuna quando seus sequazes pela mais salutar lição dos fatos foram obrigados a contrariar as doutrinas do mestre Desde que apareceu esta nova doutrina do comunismo foi a crítica implícita de todas as formas de socialismo de Estado de Louis Blanc a Lassalle O socialismo de Estado embora ainda mesclado a tendências revolucionárias se concentrava inteiro na fábula no Hokus Pokus do direito ao trabalho Esta expressão é insidiosa se implica questão que se dirija a um governo mesmo de burgueses revolucionários É absurdo econômico se se tem em mente suprimir a variável desemprego que influi na variação dos salários ou seja nas condições da concorrência Pode ser artifício de politiquieiros se é empregada para aplacar as turbulências de uma massa agitada de proletários nãoorganizados É uma futilidade teórica para quem conceba claramente o curso de uma revolução vitoriosa do proletariado que não pode deixar de encaminhar a socialização dos meios de produção mediante a tomada de posse deles ou seja não pode deixar de encaminhar à forma econômica em que não há nem mercadoria nem salariado onde o direito ao trabalho e o dever de trabalhar se unem na necessidade comum a todos de que todos trabalhem A fábula do direito ao trabalho acaba na tragédia das jornadas de junho A discussão parlamentar que se fez sobre elas em seguida foi paródia O choroso e retórico Lamartine aquele grande oportunista tinha tido ocasião de pronunciar a última ou a penúltima de suas festejadas frases a experiência dos povos são as catástrofes e bastava isto para a ironia da História Mas o Manifesto esse escrito de tão pequeno porte de estilo tão distante da insinuação retórica de uma fé ou de uma crença possibilitou a consolidação de muitos pensamentos e a reunião de germes com potencial de largo desenvolvimento E não foi porém nem pretendeu ser o código do socialismo nem o catecismo do comunismo crítico nem o vade mecum da revolução proletária Podemos bem deixar as quintessências para Schäffle por conta de quem também deixamos de bom grado a famosa frase a questão social é uma questão de ventre O ventre de Schäffle por muitos anos se exibiu pelo mundo para deleite de tantos esportistas do socialismo e para alívio de tantos policiais O comunismo crítico mal começava com o Manifesto deveria desenvolverse e de fato se desenvolveu O complexo de doutrinas que hoje são comumente chamadas marxismo só alcançou a verdadeira maturidade entre os anos 60 e 70 Certamente desenvolveuse muito a partir do opúsculo Trabalho assalariado e Capital 10 no qual pela primeira vez em termos precisos se toca em como da compra e do uso da mercadoria trabalho se obtém um produto superior ao custo o que era o nó da questão não resolvida da maisvalia até as amplas complicadas e multilaterais considerações do livro O Capital Esse livro esgota a gênese da época burguesa em toda sua íntima estrutura econômica e supera intelectualmente essa mesma época porque a explica em seus procedimentos em suas leis particulares e nos antagonismos que ela organicamente produz e que organicamente a dissolvem E corre como variante do movimento proletário que fracassou em 1848 até este de nossos dias que depois de ter reaparecido na superfície da vida política em meio a muitas dificuldades veio se desenvolvendo com tal e tanta constância de processo mas com lentidão de movimentos estudados Até poucos anos atrás esta regularidade de movimento progressivo no proletariado só era notada e admirada na Alemanha onde a democracia social como árvore em terreno próprio da conferência operária de Nuremberg de 1868 em diante veio crescendo normalmente em processo constante Mas depois o que acontecia na Alemanha se repetiu de várias formas em outros países Ora nesse desenvolvimento amplo do marxismo e nesse crescimento do movimento do proletariado nos modos compassados da ação política não houve talvez como dizem muitos uma atenuação do caráter belicoso da forma originária do comunismo crítico Ou talvez tenha sido uma passagem da revolução para a assim chamada evolução Ou pelo contrário uma aquiescência do espírito revolucionário às exigências do reformismo Estas reflexões e objeções surgiram e surgem continuamente tanto no seio do socialismo pela boca dos mais inflamados de ânimo e de fantasia entre seus seguidores quanto do lado dos adversários para quem é van 104 105 10 Digo opúsculo referindome à forma a que foi reduzido o escrito com fim de propaganda em 1884 Originalmente foram arquivos da Neue Rheinische Zeitung abril de 1849 que reproduziam conferências proferidas no Círculo Operário Alemão de Bruxelas em 1847 tagem generalizar os casos particulares de insucesso as pausas as demoras para afirmar que o comunismo absolutamente não tem futuro Quem avaliar o atual movimento proletário e o seu curso variado e complicado sob a impressão do Manifesto quando sua leitura não for acompanhada de outros conhecimentos pode facilmente acreditar que existia alguma coisa exageradamente juvenil e prematura na firme autoconfiança daqueles comunistas de cinqüenta anos atrás Nas palavras deles há como um grito de batalha e o eco da vibrante eloquência de alguns oradores do cartismo e quase o anúncio de um novo 93 feito de modo a não dar lugar a um novo Termidor E todavia o Termidor veio e se repetiu muitas vezes no mundo em formas variadas e mais ou menos explícitas ou dissimuladas foram seus autores de 1848 aos dias de hoje exradicais à francesa ou expatriotas à italiana ou burocratas à alemã na idéia adoradores do deus Estado e na prática bons servos do deus dinheiro ou parlamentares à inglesa finórios conhecedores dos artifícios e expedientes da arte de governo ou até mesmo policiais com máscara de anarquistas de Chicago e similares De um lado os muitos protestos contra o socialismo e aqui e ali os argumentos de pessimistas e de otimistas contra a probabilidade do seu sucesso A muitos parece que a constelação do Termidor não deve mais desaparecer do céu da História ou seja falando de forma mais prosaica para esses o liberalismo que é a sociedade dos iguais em direito presumido sinaliza o extremo limite da evolução humana e para além dele só pode acontecer o regresso A isto de bom grado se acomodam todos aqueles que de maneira geral recolocam a razão e o fim de todo progresso unicamente na sucessiva extensão da forma burguesa Sejam otimistas ou pessimistas todos encontram as colunas de Hércules do gênero humano Não raras vezes acontece que tal sentimento na sua forma pessimista atue inconscientemente sobre muitos dos que junto com outros déclassés vão engrossar as fileiras do anarquismo Há também os que se lançam mais além e assim se põem a teorizar sobre a objetiva inverossimelhança dos assuntos do comunismo crítico O enunciado do Manifesto que diz que a simplificação de todas as lutas de classe em uma única luta traz consigo a necessidade da revolução proletária seria intrinsecamente falacioso para estes polemistas que teorizam Essa nossa doutrina seria infundada como a que pretende extrair uma ilação científica e uma regra de conduta prática da argumentada previsão de um fato presumido o qual na opinião divergente destes bons e pacíficos opositores seria um simples ponto teórico deslocável e diferenciável ao infinito A suposta inevitável e resolutiva colisão entre as forças produtivas e a forma de produção nunca aconteceria segundo eles porque se dispersa em infinitos atritos particulares se multiplica nas colisões parciais da concorrência econômica é retardada e obstruída pelos expedientes e vilências da arte de governo Em outros termos a sociedade presente ao contrário de rachar e dissolverse renovaria perpetuamente a obra de seu reaparecimento e retoque Cada movimento proletário que não fosse reprimido com violência como aconteceu em junho de 1848 e em maio de 1871 cessaria por lenta exaustão como aconteceu com o cartismo que acabou no Trade Unionismo cavalo de batalha deste modo de argumentar honra e vaidade dos economistas vulgares e dos sociólogos baratos Cada movimento proletário moderno seria meteórico e não orgânico seria uma perturbação e não um processo e à mercê de tais críticos mesmo contra nossa vontade nós seríamos ainda hoje utopistas A previsão histórica que está no fundo da doutrina do Manifesto e que depois na seqüência o comunismo crítico ampliou e especificou com a mais larga e minuciosa análise do mundo presente teve por certo pelas circunstâncias do tempo em que apareceu pela primeira vez calor de batalha e vivíssima cor de expressão Mas não implicava com não implica ainda hoje nem uma data cronológica nem a pintura antecipada de uma configuração social como foi e é próprio das antigas e novas profecias e dos apocalipses O heróico Frei Dolcino não havia surgido de novo para ecoar pelas terras o grito de batalha pela profecia de Gioacchino di Fiore Nem se comemorava novamente em Münster a ressurreição do reino de Jerusalém Não mais taboristas ou milenaristas Não mais Fourier que esperasse chez soi com hora marcada por anos a fio o candidato da humanidade Não era mais o caso de que o iniciador de uma nova vida começasse por iniciativa própria a conceber com meios premeditados e de modo unilateral e artificial o primeiro embrião de uma associação que refizesse como enxerto a planta homem como aconteceu com Bellers através de Owen e Cabet até o empreendimento dos fourieristas do Texas que foi a catástrofe ou mais ainda a tumba do utopismo ilustrada por um singular epitáfio o emudecimento da eloquência quente de Cconsiderant Não é mais a seita que em ato de religiosa abstinência se retira do mundo pudica e timidamente para celebrar em um círculo reservado a perfeita idéia da comunidade como os Irmãozinhos nos confins das colônias socialistas da América Ao contrário na doutrina do comunismo crítico é a sociedade inteira que em um momento de seu processo geral descobre a causa de seu caminho fatal e em um ponto saliente da curva se ilumina para explicar a lei de seu movimento A previsão com a qual o Manifesto acenava pela primeira vez não era cronológica de prenúncio ou de promessa mas para dizêla em uma palavra que a meu ver exprime tudo sucintamente morfológica Sob o estrépito e o brilho das paixões sobre as quais habitualmente se exercita a conversação cotidiana mais aquém dos movimentos visíveis das vontades que agem de acordo com planos que é o que os cronistas e historiadores vêem e narram mais abaixo do aparelho jurídico e político da nossa convivência civilizada muito atrás das significações que a religião e a arte dão ao espetáculo e à experiência da vida está e consiste e se altera e transforma a estrutura elementar da sociedade que sustenta todo o resto O estudo anatômico de tal estrutura subjacente é a Economia E porque a convivência humana muitas vezes mudou ou parcialmente ou integralmente no seu aparelho exterior mais visível e nas suas manifestações ideológicas religiosas artísticas e similares antes de tudo é preciso encontrar os móveis e as razões de tais mudanças que os historiadores habitualmente relatam nas mutações mais ocultas e menos visíveis à primeira vista dos processos econômicos da estrutura subjacente Ou seja é preciso voltarse para o estudo das diferenças que permeiam as várias formas da produção quando se tratar de épocas históricas nitidamente distintas e propriamente ditas e onde se tratar de explicar a sucessão de tais formas ou seja a substituição de uma pela outra é preciso estudar as causas de erosão e estiolamento da forma que morre e por último quando se quiser entender o fato histórico concreto e determinado é necessário estudar e explicar os atritos e os contrastes que nascem dos vários concorrentes ou seja as classes suas subdivisões e os laços destas e daquelas que formam uma determinada configuração Quando o Manifesto diz que a História até hoje nada mais é que a história das lutas de classes e que nelas está a razão de todas as revoluções e de todos os retrocessos ele faz duas coisas a um só tempo Dá ao comunismo os elementos de uma nova doutrina e aos comunistas o fio condutor para reconhecer nos intrincados acontecimentos da vida política as condições do movimento econômico subjacente Nos cinqüenta anos decorridos daquela época até hoje a previsão genérica de uma nova era histórica tornouse para os socialistas a arte minuciosa de entender caso a caso aquilo que convém e que se deve fazer porque por si mesma essa era nova está em contínua formação O comunismo tornouse uma arte porque os proletários se tornaram ou foram levados a se tornar um partido político O espírito revolucionário se plasma diariamente na organização proletária A anunciada conjunção dos comunistas e dos proletários¹ é hoje um fato Estes cinqüenta anos foram a prova sempre crescente da rebelião ampliada das forças produtivas contra as formas da produção À parte esta lição intuitiva dos fatos nós utopistas não temos outra resposta a oferecer àqueles que ainda falam de perturbações meteóricas que segundo a opinião deles reverterão todas à calma desta insuperada e insuperável época de civilização E tal lição basta Passados onze anos da publicação do Manifesto Marx encerrava em clara e transparente fórmula os princípios retores da interpretação materialista da História no prefácio de um livro que é o precursor de O Capital² Eis reproduzida a passagem O primeiro trabalho que empreendi para resolver as dúvidas que me assaltavam foi uma revisão crítica da Filosofia do Direito de Hegel trabalho cuja introdução apareceu nos Anais Francoalemães publicados em Paris em 1844 Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado as relações jurídicas bem como as formas do Estado não podem ser explicadas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano estas relações têm ao contrário suas raízes nas condições materiais de existência em seu conjunto condições estas que Hegel a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII compreendia sob o nome de sociedade civil Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade deve ser procurada na economia política Eu havia começado o estudo desta última em Paris e o continuara em Bruxelas onde eu me havia estabelecido em conseqüência de uma sentença de expulsão ditada pelo Sr Guizot contra mim O resultado geral a que cheguei e que uma vez obtido serviu de guia para meus estudos pode formularse resumidamente assim Na produção social da própria existência os homens entram em relações determinadas necessárias independentes de sua vontade estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolv¹ Capitulu II do Manifesto² Zur kritik der politischen Oekonomie Berlim 1859 pp IVVI do prefácio A tradução da passagem para o português é de Florestan Fernandes MARX K Contribuição à Crítica da Economia Política São Paulo Florna 1946 pp 3032 vimento de suas forças produtivas materiais O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social política e intelectual Não é a consciência dos homens que determina a realidade ao contrário é a realidade social que determina sua consciência Em certa fase de seu desenvolvimento as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou o que não é mais que sua expressão jurídica com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então De formas evolutivas das forças produtivas que eram essas relações convertemse em seus entraves Abrese então uma era de revolução social A transformação que se produziu na base econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura Quando se consideram tais transformações convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais e as formas jurídicas políticas religiosas artísticas ou filosóficas em resumo as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até ao fim Do mesmo modo que não se pode julgar uma tal época de abalos pela consciência que ela tem de si mesma É preciso ao contrário explicar esta consciência pelas condições da vida material pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade Eis por que a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver pois aprofundando a análise verseá sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvêlo existem ou estão em vias de existir Esboçados em largos traços os modos de produção asiáticos antigos feudais e burgueses modernos podem ser designados como outras tantas épocas progressivas da formação social econômica As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social antagônica não no sentido de um antagonismo individual mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver este antagonismo Com esta formação social termina pois a préHistória da sociedade humana Enquanto Marx assim escrevia já há muitos anos havia abandonado a arena política à qual só retornaria mais tarde nos tempos da Internacional A reação havia derrotado a revolução na Itália na Áustria na Hungria na Alemanha quer a revolução patriótica quer a liberal ou a democrática A burguesia de sua parte vencera ao mesmo tempo os proletários na França e na Inglaterra As condições indispensáveis ao desenvolvimento do movimento democrático e proletário desapareceram de uma penada As fileiras não certamente muito numerosas dos comunistas do Manifesto que se haviam mesclado à revolução e logo após participaram de todas as ações de resistência e de insurreição popular contra a reação assistiram finalmente ao bloqueio de sua atividade com o memorável processo de Colônia Os sobreviventes do movimento tentaram um recomeço em Londres mas rapidamente Marx Engels e outros deram as costas aos revolucionários profissionais e retiraramse da ação imediata A crise passou Persistia uma longa pausa Ela era o sintoma da lenta desaparição do movimento cartista ou seja do movimento proletário do país que é a coluna vertebral do sistema capitalista Naquele momento a História não dava razão às ilusões dos revolucionários Antes de dedicarse quase que exclusivamente à prolongada incubação dos fundamentos que ele já havia encontrado na crítica da economia política Marx ilustrou a história do período revolucionário de 194850 em vários escritos em particular as lutas de classes na França narrandoas de tal maneira que se a revolução na forma que assumia naquele momento estava falida não por isso se desmentia a teoria revolucionária da História¹³ traço apenas esboçado no Manifesto mas que já assumia seu papel de condutor de toda a exposição Mais ainda o texto que tem como título O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte¹⁴ foi a primeira tentativa de plasmar a nova concepção histórica no relato de uma ordem de fatos compreendidos em parâmetros tempo³ Os artigos publicados na Neue Rheinische Zeitung PolitischOekonomische Revue Hamburgo 1850 foram recentemente reproduzidos por Engels Berlim 1895 em opúsculo precedido de um prefácio seu O título do opúsculo é precisamente As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 ⁴ Este escrito de Marx foi publicado em uma revista de Nova York em 1852 Depois foi muitas vezes reproduzido na Alemanha Hoje pode ser lido também em francês Lille 1891 e Delory vimento de suas forças produtivas materiais O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social política e intelectual Não é a consciência dos homens que determina a realidade ao contrário é a realidade social que determina sua consciência Em certa fase de seu desenvolvimento as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou o que não é mais que sua expressão jurídica com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então De formas evolutivas das forças produtivas que eram essas relações convertemse em seus entraves Abrese então uma era de revolução social A transformação que se produziu na base econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura Quando se consideram tais transformações convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais e as formas jurídicas políticas religiosas artísticas ou filosóficas em resumo as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até ao fim Do mesmo modo que não se pode julgar uma tal época de abalos pela consciência que ela tem de si mesma É preciso ao contrário explicar esta consciência pelas condições da vida material pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade Eis por que a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver pois aprofundando a análise verseá sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvêlo existem ou estão em vias de existir Esboçados em largos traços os modos de produção asiáticos antigos feudais e burgueses modernos podem ser designados como outras tantas épocas progressivas da formação social econômica As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social antagônica não no sentido de um antagonismo individual mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver este antagonismo Com esta formação social termina pois a préHistória da sociedade humana Enquanto Marx assim escrevia já há muitos anos havia abandonado a arena política à qual só retornaria mais tarde nos tempos da Internacional A reação havia derrotado a revolução na Itália na Áustria na Hungria na Alemanha quer a revolução patriótica quer a liberal ou a democrática A burguesia de sua parte vencera ao mesmo tempo os proletários na França e na Inglaterra As condições indispensáveis ao desenvolvimento do movimento democrático e proletário desapareceram de uma penada As fileiras não certamente muito numerosas dos comunistas do Manifesto que se haviam mesclado à revolução e logo após participaram de todas as ações de resistência e de insurreição popular contra a reação assistiram finalmente ao bloqueio de sua atividade com o memorável processo de Colônia Os sobreviventes do movimento tentaram um recomeço em Londres mas rapidamente Marx Engels e outros deram as costas aos revolucionários profissionais e retiraramse da ação imediata A crise passou Persistia uma longa pausa Ela era o sintoma da lenta desaparição do movimento cartista ou seja do movimento proletário do país que é a coluna vertebral do sistema capitalista Naquele momento a História não dava razão às ilusões dos revolucionários Antes de dedicarse quase que exclusivamente à prolongada incubação dos fundamentos que ele já havia encontrado na crítica da economia política Marx ilustrou a história do período revolucionário de 194850 em vários escritos em particular as lutas de classes na França narrandoas de tal maneira que se a revolução na forma que assumia naquele momento estava falida não por isso se desmentia a teoria revolucionária da História¹³ traço apenas esboçado no Manifesto mas que já assumia seu papel de condutor de toda a exposição Mais ainda o texto que tem como título O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte¹⁴ foi a primeira tentativa de plasmar a nova concepção histórica no relato de uma ordem de fatos compreendidos em parâmetros tempo³ Os artigos publicados na Neue Rheinische Zeitung PolitischOekonomische Revue Hamburgo 1850 foram recentemente reproduzidos por Engels Berlim 1895 em opúsculo precedido de um prefácio seu O título do opúsculo é precisamente As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 ⁴ Este escrito de Marx foi publicado em uma revista de Nova York em 1852 Depois foi muitas vezes reproduzido na Alemanha Hoje pode ser lido também em francês Lille 1891 e Delory A sociologia se desenvolve como um instrumento de análise da sociedade e das suas relações sociais Seu desenvolvimento se deu em um contexto de transição geopolítica histórica e científica sendo marcada pela construção de uma metodologia que visou abordar como um todo as ciências humanas e as ciências sociais Com a revolução industrial uma série de mudanças atingiram a sociedade principalmente o corpo social trabalhador que teve que moldar o seu ritmo ao ritmo das fábricas Como resposta houve um despertar dos cientistas para compreender essa nova realidade concreta inclusive dos movimentos sociais construídos como instrumento de mudanças dos efeitos deletérios causados Nesse viés o evolucionismo social que interpretar e categorizar um determinado corpo social como selvagens ou como civilizados vinculado a uma noção de que com o passar do tempo as formações sociais seriam mais complexas como a minimização de comportamento tratados como bárbaros ou promíscuo Essa concepção não é mais aceita na contemporaneidade Tylor irá construir uma noção a partir das tribos indígenas mexicanas pensando em uma convergência entre as diversas culturas por estarem vinculadas a princípios de ação e pensamentos comuns Em determinadas tribos que iniciavam seu processo de desenvolvimento há a presença de animismo onde entidades naturais são representadas por deuses Comte irá organizar uma ciência baseada nas bases que compreendem as ciências exatas a sociologia será uma tipologia de física social que irá fundamentado em leis vinculados a evolução e progresso social Nesse âmbito o estado teológico seria o primeiro o segundo seria o metafísico até chegar na última etapa o positivo marcado por afastamento de pensamentos supersticiosos e uma aproximação efetiva da razão e da objetividade Por fim Spencer visava compreender a vida social a partir de estruturas básicas Karl Marx sociólogo do século XIX que buscou interpretar e criticar o mundo capitalista durante o contexto da Segunda Revolução Industrial e após a revolução francesa Ele e Friedrich Engels foram responsáveis pela composição do manifesto político mais conhecido da história que é o manifesto comunista Nesse viés a base fundamental está atrelada a concepção de materialismo histórico e dialético sendo esse a origem da realidade social está nas condições materialistas baseada na relação materialista de produção ou seja da forma como o sistema econômico funciona e essa relação é contraditória sendo marcada pela luta de classes a história de todas as sociedades que gera transformações no sistema econômico vigente caráter dialético Sendo assim as relações sociais são relações de produção Marx e Engels vão dizer que é preciso transformar a realidade e não apenas interpretála Fundamentado nessa concepção a burguesia é os detentores do meio de produção e o proletariado são os sujeitos que vendem sua mão de obra No capitalismo são esses dois recortes sociais que praticam a luta de classes Em seguida eles explicam a realidade concreta que fundamenta esse construto expondo que o proletariado por meio do prática do trabalho estranhado isto é o estranhamento a exteriorização do trabalho faz com que o trabalhador não reconheça o trabalho o objeto produto do trabalho e nem a si mesmo O trabalho é externo ao trabalhador não pertence a ele Como se o trabalho não fosse seu próprio já que pertence ao burguês e não a si mesmo Resultando no estranhamento de si próprio a perda de si mesmo da essência humana do homem pelo próprio homem o auto estranhamento Isso pode gerar a retificação desse homem ou sejacoisificação e substituição do homem Em contrapartida ocorre um processo de humanização das coisas vinculado a uma hipervalorização dos objetos Nesse contexto o homem trata as mercadorias como um objeto de adoração deixandoas de ter sua utilidade útil e passa a atribuir um valor simbólico quase que divino o ser humano compara a transcendência que o artefato representa Somado a isso por meio do conceito de mais valia os autores ainda expõe a exploração do trabalho do proletariado onde a burguesia fica com a maior parte do lucro enquanto o proletariado recebe apenas uma pequena parcela Fundamentado nessas concepções a alienação vem como um processo que torna o trabalhador incapaz de reconhecer a realidade de exploração Produção socializada mas há privatização dos produtos e dos meios de produção Isso é reforçado pela superestrutura ideologia social pautada na estrutura agindo como instrumento de dominação A produção socializada mas há privatização do produto e dos meios de produção Na segunda seção Marx e Engels introduzem as concepções referente ao Partido Comunista que tem como fundamento os interesses dos trabalhadores tem como objetivo por meio transformar o proletariado em uma classe coesa com interesses comuns e bem estruturados derrubar o domínio da burguesia redistribuindo o poder político abolindo a propriedade privada a essência da acumulação de riqueza A acumulação de riqueza só beneficia a burguesia Posteriormente traz as concepções de socialismo reacionário retoma fundamentos da estrutura feudal socialismo conservador é produto da burguesia a partir da adesão de algumas exigências da burguesia e o socialismo crítico utópico que visam criticar de forma efetiva as classes e as estruturas sociais Por fim ressaltam que há um apoio a diversos movimentos que desafiam a ordem social e política existente concluindo com um apelo a união dos trabalhadores para uma mudança efetiva na realidade de exploração que esses se encontram Durkheim é considerado como o pai da sociologia uma vez que foi um dos primeiros sociólogos que pensou em metodologias e instrumentos específicos para a sociologia Nesse viés o sociólogo é responsável por institucional e dá caráter científico à sociologia Sofreu influência do Positivismo de Auguste Comte pensando em uma investigação neutra e o funcionalismo de Spencer que compreendia a sociedade como um corpo vivo Os órgãos precisam estar em funcionamento pleno para que o corpo funcione da maneira correta Enfatizou na coesão social na moralidade solidariedade em oposição à tradição da teoria dos conflitos Em sua teoria a patologia social é a consequência da anomia doenças sociais e estão vinculadas a problemas de ordem moral O fenômeno social seria todo o tipo de fenômeno que ocorre na sociedade Essas coerências que fossem possíveis de observar são os fatos sociais Sob essa ótica a educação deve reforçar os padrões de comportamento ético Os fatos sociais objeto de estudo da sociologia são meios de agir pensar ou sentir que são externos aos indivíduos têm sua própria realidade fora das vidas e percepções individuais e possuem caráter coercitivo sobre os indivíduos e as pessoas geralmente não percebem essa natureza E possuem algumas características são difíceis de serem aprendidos é possível analisar seus efeitos e suas expressões e comparálos através de estudos de bases comparativas dependem de uma organização definida se ocorre tentativa de violar as regras elas reagem contra o indivíduo para impedir seu ato Ainda que de fato seja possível se libertar dessas regras isso jamais ocorre sem que seja obrigado ao indivíduo lutar contra elas A coerção dá origem aos hábitos que serão passados pela educação produzindo assim o ser social Podemos analisar seus feitos ou suas expressões e comparálos através de estudos comparativos se constituem como objeto de investigação de fenômenos que apresentem características comuns e analisálos dessa forma Considerálos sob um ângulo em que se apresentem isolados de suas manifestações individuais consciência coletiva A anomia Social ocorre quando os indivíduos perdem a dimensão normativareguladoras devido às rápidas mudanças ou instabilidade na sociedade ocorre a perda de um ponto de referência para normas e desejos Pode ocorrer devido a falta de regramento e a perda da Solidariedade O suicidio é um fato social que apenas podia ser explicado por outros fatos sociais Era um fenômeno com características padronizadas que podem ser em função da presença de integração excessiva como o fatalístico o indivíduo é regulado demais pela sociedade e como o altruísta o indivíduo está integrado em excesso o indivíduo valoriza mais a sociedade que a si mesmo ou em função da ausência de Integração Social como a anomia falta de regulação social e a egoísta quando o indivíduo está excessivamente isolado ou com laços sociais enfraquecidos Já a Solidariedade é a consciência coletiva que daria uma coesão entre as pessoas gerando uma teia de interdependência entre indivíduos de uma sociedade É mantida quando os indivíduos são integrados com sucesso em grupo de sociais e regulados por um conjunto de valores e costumes compartilhados consciência coletiva

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