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RESENHA: REFLEXÕES SOBRE ALFABETIZAÇÃO,\nde Emília Ferreiro - São Paulo: Cortez e Autores Associados, 1985.\nSílvia de M. Gasparian COLELLO (*)\nTradicionalmente os educadores consideram que a alfabetização depende única e exclusivamente do amadurecimento de certas habilidades infantis (capacidades motoras, perceptivas e discriminatórias). A possibilidade de escrever está vinculada ao exercício mecânico de desenhar ou reproduzir letras.\nEm Reflexões Sobre Alfabetização, Emília Ferreiro defende tese contrária, demonstrando que a aprendizagem da língua escrita requer um esforço cognitivo que se processa a partir de problemas essencialmente conceituais enfrentados pela criança. Tal distinção é fundamental, pois, quando a escrita deixa de ser compreendida como uma simples transcrição gráfica e passa a ser concebida como um sistema de representação da linguagem, a alfabetização assume o caráter de aprendizagem conceitual (e não puramente técnica), isto é, uma efetiva conquista de saber.\nNo desenvolvimento desta teoria, a autora toma como base os seguintes princípios:\n1º - a criança é um ser inteligente e ativo na construção do conhecimento;\n2º - na alfabetização, o processo de elaboração cognitiva não é consequência necessária do ensino sistemático promovido\n(*) Professora Assistente do Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. REFLEXÕES SOBRE ALFABETIZAÇÃO...\n\npela escola;\nAo lado dos conhecimentos específicos e convenionais que so podem ser obtidos por meio de professores ou informantes alfabetizados (nome das letras, sinais de pontuação, uso de parágrafos, de letras maiúsculas e a própria direção da escrita), a criança, por si só, é capaz de elaborar hipóteses para compreender o funcionamento da escrita. Ainda que distante da \"escrita convencional\", estas tentativas infantis configuram-se como formas extremamente criativas na produção do conhecimento, surpreendentes pelo seu caráter endógeno.\nNa elaboração de suas hipóteses, a criança recebe informações do meio, que são sempre processadas no nível intelectivo. Alguns dados são imediatamente assimilados, outros, modificados, sofrendo uma assimilação deformada em função das concepções da criança e, por último, existem dados que são simplesmente desconsiderados. Vemos, pois, que a construção da língua escrita implica muito mais que a mera coleção de informações. Longe de ser arbitrário, cada estágio dessa conquista corresponde à construção de um esquema conceitual.\nTrata-se, portanto, de uma ativa elaboração pessoal, pela qual a criança re-inventa o sistema de representação, construindo suas hipóteses, testando-as e substituindo-as por outras, quando se convence da inadequação das primeiras. Tal evolução depende da oportunidade que o indivíduo tem de integrar com a escrita nas suas mais diversas manifestações, chegando, assim, a idéias cada vez mais precisas do seu funcionamento (produção e interpretação).\nOra, sabemos que esta oportunidade não se restringe à sala de aula. Segundo Emília Ferreiro, \"a criança vê mais letras fora do que dentro da escola\" e, na maior parte das vezes, não costuma ficar alheia a essas manifestações próprias do seu mundo. É natural que crianças que vivam num ambiente rico em experiências de leitura e escrita tenham maior facilidade de compreender o seu uso e funcionamento. Mas, regra geral, isso SÍLVIA DE M. GASPARIAN COLELLO\n\nnão é o que ocorre com indivíduos de classes menos favorecidas, privados quantitativa e qualitativamente das vivências de leitura e escrita. A evidente distância de informação que separa um grupo social de outro no início da escolarização explica-se pela desigualdade das experiências vividas, não podendo ser atribuída a fatores puramente cognitivos.\nA construção da língua escrita inicia-se, portanto, muito antes do período escolar. Ao descrever a evolução deste processo, Emília Ferreiro aponta três etapas fundamentais nos sucessivos estágios de leitura e escrita:\n\n1º - Distinção entre o modo de representação icónico e não icónico, o que permite compreender a escrita como um meio alternativo de representação.\n2º - Busca de formas diferenciadas para a produção escrita a partir de critérios quantitativos e qualitativos.\n3º - Compreensão do caráter fonético da escrita e atenção às propriedades sonoras da palavra.\nAo desconsiderar a psicogênese da língua escrita, isto é, os problemas enfrentados pela criança e as soluções que ela admite em cada estágio de evolução, os educadores tratam o indivíduo como ser passivo, incapaz de construir o seu próprio conhecimento. A consequência disso se faz sentir na pensão de controlar o processo de aprendizagem pela seriação de dificuldades (do \"fácil para o difícil\"), numa sequência artificial e estranha à criança. É justamente por não coincidir com as conceitualizações naturais desta que os métodos de alfabetização estão longe de intervir satisfatoriamente na evolução da aprendizagem infantil.\nNesse sentido, a maior contribuição da obra em pauta é promover uma revisão das práticas pedagógicas e das próprias concepções subjacentes ao ensino elementar que: 1º - subestimam os conhecimentos já conquistados pelas crianças, suas vivências lingüísticas e sua produções escritas (consideradas como simples rabiscos); 2º - superestimam as capacidades infan REFLEXÕES SOBRE ALFABETIZAÇÃO... - 215 -\ntis, pois mesmo partindo de \"um marco supostamente zero de conhecimento\", os alfabetizadores pressupõem o domínio de certas idéias óbvias para o adulto alfabetizado, mas nem sempre conquistadas por aqueles que entram na escola (como, por exemplo, a natureza fonética da escrita).\nA distância que se instaura entre \"aquele que ensina\" e \"aquele que aprende\" será tanto maior quanto mais elementares forem as conceitualizações infantis. Com efeito, em pesquisas realizadas no México no início dos anos 80, a autora demonstrou que, nas escolas com maior índice de reprovação, 71% dos alunos, mesmo sofrendo as influências da tradicional alfabetização escolar, passaram por escritas não alfabéticas, o que nos permite concluir que, nas atuais circunstâncias, a escola pouco faz para atender crianças que nela ingressam sem ter tido suficientes oportunidades de refletir a respeito da língua escrita e do seu modo de representação.\n\nFrente a essa realidade, Emília Ferreira procura apontar alguns caminhos para o ensino elementar e para a alfabetização, chamando a atenção para a necessidade de:\n\n1° - abandonar a visão de adulto alfabetizado. O conhecimento da evolução psicogenética permite ao professor adaptar seu ponto de vista ao da criança e criar condições para que ela faça suas próprias descobertas;\n2° - distinguir os métodos ou procedimentos de ensino do processo de aprendizagem, porque nem sempre o segundo é consequência direta, natural e necessária do primeiro. Na relação ensino-aprendizagem, é preciso dar prioridade ao aluno quanto às suas possibilidades de assimilação, fazendo dele o centro da ação pedagógica;\n3° - considerar a diferença entre escrever (compreender o modo de construção do sistema de representação) e copiar (desenhar letras e repetir mecanicamente os modelos apresentados) para valorizar o processo de construção infantil na conquista do conhecimento significativo; 4° - compreender a leitura como atividade inteligente (insensível à interpretação e do conhecimento), que não se reduz ao exercício de pura adivinhação ou de reconhecimento das letras;\n5° - abolir todas as práticas mecânicas de aprendizagem da escrita que procuram seriar, controlar e dirigir o conhecimento, como se ele pudesse ser introduzido de fora para dentro (como, por exemplo, determinar a época da alfabetização ou a ordem de apresentação das letras e das dificuldades ortográficas).\n\nEm síntese, Emília Ferreira propõe uma verdadeira revolução conceitual a respeito da alfabetização. Os 4 artigos que compõem esta obra funcionam como um convite aos educadores para repensar as atuais práticas pedagógicas, mudando o seu modo de encarar a língua escrita e a sua concepção de aprendizagem. O primeiro passo nessa direção é ver o aluno como ser ativo, alguém que pensa, que constrói o conhecimento de modo criativo e sobrado inteligente. (Recebido para publicação em 18/10/89 e liberado em 27/11/90)\n\nR. Fac. Educ., São Paulo, v. 17, ns. 1/2, p. 212-216, jan/fev. 1991