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Coleção Educação Experiência e Sentido Jacques Rancière O mestre ignorante Cinco lições sobre a emancipaçào intelectual Tradução Lilian do Valle a Autêntica Belo Horizonte 2002 O mestre ignorante Cinco lições sobre a emancipação intelectual Le Maitre Ignorant de Jacques Rancière Word copyright Librairie Artheme Fayard 1987 Projeto gráfico da capa Jairo Alvarenga Fonseca Sobre O Nalário rie Nice 1919 Amedeo Modigliani Coordenadores da coleção Jorge Carrara Walter Kohan Revisão Fnck Ramalho RancièreJacques R185m C mestre ignorante cinco lições sobre a emancipação intelectualJacques Rancière tradução de Lilian do Valle Belo Horizonte Auténtica 2002 144p Educação Experiência e Sentido 1 ISBN 8575260456 1 Filosofia da educação I Valle Lilian do II Título III Série 2002 Todos os direitos no Brasil reservados pela Autêntica Editora Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida seja por meios mecânicos eletrônicos seja via cópia xerográfica sem a autorização prévia da editora 0al CDU 3701 Auténtica Editora Rua Januária 437 Floresta 31110060 Belo Horizonte MG PABX 55 31 3423 3022 TELEVENDAS 0800 2831322 wwwautenticaeditoracombr email autenticarilautenticaeditoracombr APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO A experiência e não a verdade é o que dá sentido à escritura Digamos com Foucault que escrevemos para transformar o que sabe mos e não para transmitir o já sabido Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de escritura essa experiên cia em palavras nos permita liberarnos de certas verdades de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa diferentes do que vimos sendo Também a experiência e não a verdade é o que dá sentido à edu cação Educamos para transformar o que sabemos não para transmitir o já sabido Se alguma coisa nos anima a educar é a possibilidade de que esse ato de educação essa experiência em gestos nos permita liberar nos de certas verdades de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa para além do que vimos sendo A coleção Educação Experiência e Sentido propõese a tes temunhar experiências de escrever na educação de educar na es critura Essa coleção não é animada por nenhum propósito revela dor convertedor ou doutrinário definitivamente nada a revelar ninguém a converter nenhuma doutrina a transmitir Tratase de apresentar uma escritura que permita que enfim nos livremos das verdades pelas quais educamos nas quais nos educamos Quem sabe assim possamos ampliar nossa liberdade de pensar a educação e de nos pensarmos a nós próprios como educadores O leitor po derá concluir que se a filosofia é um gesto que afirma sem conces sões a liberdade do pensar então esta é uma coleção de filosofia da educação Quiçá os sentidos que povoam os textos de Educação Experiência e Sentido possam testemunháIo Jorge Larrosa e Walter Kohan Coordenadores da Coleção Jorge Lanosa é Professor de Teoria e História da Educação da Universidade de Barcelona e Walter Kohan é Professor Titular de Filosofia da Educação da UERJ ÍNDICE 9 Prefácio à edição brasileira Jacques Rancière 15 Unia aventura intelectual A ordem explicadora 17 O acaso e a vontade 21 O mestre emancipador 25 O círculo da potência 27 31 A lição do ignorante A ilha do livro 32 Calipso e o serralheiro 36O mes tre e Sócrates 40O poder do ignorante 42 Os negócios de cada um 44 O cego e seu cão 49 Tudo está em tudo 52 55 A razão dos iguais Cérebros e folhas 56 Um animal atento 59 Uma von tade servida por uma inteligência 64 O princípio da veraci dade 66 A razão e a língua 69 Eu também sou pintor 74 A lição dos poetas 76 A comunidade dos iguais 80 83 A sociedade do desprezo As leis da gravidade 84 A paixão da desigualdade 88 A loucura retórica 91 Os inferiores superiores 94 O rei filósofo e o povo soberano 97 Como desrazoar razoavel mente 99 A palavra no Aventino 104 107 O emancipador e suas imitações O método emancipador e o método socia 1 08 Eman cipação dos homens e instrução do povo 111 Os homens do progresso 114 De carneiros e homens 118 O círculo dos progressistas 122 Sobre a cabeça do povo 127 O triunfo do Velho 132 A sociedade pedagogizada 135 Os contos da panecástica 139 0 túmulo da emancipação 143 PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA Qual o sentido de propor ao leitor brasileiro deste início de terceiro milênio a história de Joseph Jacotot seja em aparência a história de um extravagante pedagogo francês dos inícios do século XIX Mas haveria já qualquer sentido em propôla quinze anos mais cedo aos cidadãos da França apesar de tudo supostamente apaixonada por tudo quanto é antigüidade nacional A história da pedag ogia decerto conhece suas extravagâncias E estas por tanto quanto se devem à própria estranheza da relação pedagógica foram freqüentemente mais instrutivas do que as proposições mais racionais No entanto no caso de Joseph Jacotot o que está em jogo é bem mais do que apenas um artigo entre tantos no grande museu de curiosida des pedagógicas Pois tratase aqui de uma voz solitária que em um momento vital da constituição dos ideais das práticas e das institui ções que ainda governam nosso presente ergueuse como uma disso nância inaudita como uma dessas dissonâncias a partir das quais não se pode mais construir qualquer harmonia da instituição pedagógica e que portanto é preciso esquecer para poder continuar a edificar esco las programas e pedagogias mas também como uma dessas disso nâncias que em certos momentos talvez seja preciso escutar ainda para que o ato de ensinar jamais perca inteiramente a consciência dos paradoxos que lhe fornecem sentido Revolucionário na França de 1789 exilado nos Países Baixos quando da restauração da monarquia Joseph Jacotot foi levado a tomar a palavra no exato momento em que se instala toda uma lógica de pensamento que poderia ser assim resumida acabar a revolução no duplo sentido da palavra por um termo em suas desordens reali zando a necessária transformação das instituições e mentalidades de que foi a encarnação antecipada e fantasmática passar da fase das febres igualitárias e das desordens revolucionárias à constituição de uma nova ordem de sociedades e governos que conciliasse o pro gresso sem o qual as sociedades perdem o elã e a ordem sem a qual elas se precipitam de crise em crise Quem pretende conciliar ordem 9 COLPO Eoocrno EXPERT NC E SE DO e progresso encontra naturalmente seu modelo em uma instituição que simboliza sua união a instituição pedagógica lugar material e simbólico onde o exercício da autoridade e a submissão dos sujei tos não têm outro objetivo além da progressão destes sujeitos até o limite de suas capacidades o conhecimento das matérias do progra ma para a maioria a capacidade de se tornar mestre por sua vez para os melhores Nesta perspectiva o que deveria portanto arrematar a era das revoluções era a sociedade da ordem progressiva a ordem idêntica à autoridade dos que sabem sobre os que ignoram ordem votada a redu zir tanto quanto possível a distância entre os primeiros e os segundos Na França dos anos 1830 isto é no país que havia feito a experiência mais radical da Revolução e que assim se acreditava chamada por excelência a completar esta revolução por meio da instituição de uma ordem moderna razoável a instrução tornavase uma palavra de or dem central governo da sociedade pelos cidadãos instruídos e forma ção das elites mas também desenvolvimento de formas de instrução destinadas a fornecer aos homens do povo conhecimentos necessá rios e suficientes para que pudessem a seu ritmo superar a distân cia que os impedia de se integrarem pacificamente na ordem das sociedades fundadas sobre as luzes da ciência e do bom governo Fazendo passar os conhecimentos que possui para o cérebro daqueles que os ignoram segundo uma sábia progressão adaptada ao nível das inteligências limitadas o mestre era ao mesmo tempo um paradigma filosófico e o agente prático da entrada do povo na sociedade e na ordem governamental modernas Esse paradigma pode servir para pedagogos mais ou menos rígidos ou para liberais Mas estas diferenças não desmerecem em nada a lógica do conjunto do modelo que atribui ao ensino a tarefa de reduzir tanto quanto possí vel a desigualdade social reduzindo a distância entre os ignorantes e o saber Foi sobre esta questão exatamente que Jacotot fez escutar para seu tempo e para o nosso sua nota absolutamente dissonante Ele preveniu a distância que a Escola c a sociedade pedagogi zada pretendem reduzirá aquela de que vivem e que não cessam de reproduzir Quem estabelece a igualdade como objetivo a ser atingi do a partir da situação de desigualdade de fato a posterga até o infinito A igualdade jamais vem após como resultado a ser atingi 10 Prefácio do Ela deve sempre ser colocada antes A própria desigualdade social já a supõe aquele que obedece a uma ordem deve primeira mente compreender a ordem dada e em seguida compreender que deve obedecêla Deve portanto serjá igual a seu mestre para sub meterse a ele Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas e é sobre este saber sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar Instruirpode portanto significar duas coisas absolutamente opostas confirmar uma incapacidade pelo próprio ato que pretende reduzila ou inversamente forçar uma capacidade que se ignora ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas as conseqüências desse reconhecimento O primeiro ato chamase em brutecimento e o segundo emancipação No alvorecer da marcha triunfal do progresso para a instrução do povo Jacotot fez ouvir esta declaração estarrecedora esse progresso e essa instrução são a eter nização da desigualdade Os amigos da igualdade não têm que ins truir o povo para aproximálo da igualdade eles têm que emancipar as inteligências têm que obrigar a quem quer que seja a verificar a igualdade de inteligências Não se trata dc uma questão de método no sentido de formas particulares de aprendizagem tratase de uma questão propriamente filosófica saber se o ato mesmo de receber a palavra do mestre a palavra do outro é um testemunho de igualdade ou de desigualda de É uma questão política saber se o sistema de ensino tem por pressuposto unia desigualdade a ser reduzida ou uma igualdade a ser verificada É por isto que o discurso de Jacotot é o mais atual possível Se acreditei dever fazêlo ouvir ainda na França dos anos 80 é porque me pareceu que ele era o único que poderia libertar a reflexão sobre a Escola do debate interminável entre duas grandes estratégias de redução das desigualdades De um lado a chega da ao poder do Partido Socialista havia inscrito na ordem do dia as proposições da sociologia progressista que a obra de Pierre Bour dieu em particular encarnava Esta obra como se sabe instalava no âmago da desigualdade escolar a violência simbólica imposta por todas as regras tácitas do jogo cultural que asseguram a repro dução dos herdeiros e a autoeliminação dos filhos das classes populares Mas ela retira dessa situação c segundo a própria lógi ca do progressivismo duas conseqüências contraditórias Por um lado t t ColEDAO EDUCACÃO EXPERIENCInE SENTIDO ela propõe a redução da desigualdade pela explicitação das regras do jogo e pela racionalização das formas de aprendizagem De outro ela enuncia implicitamente a vanidade de qualquer reforma fazendo dessa violência simbólica um processo que reproduz indefinidamente suas próprias condições de existência Os reformistas governamen tais não estão porém muito interessados nesta duplicidade própria a toda pedagogia progressista Da sociologia de Pierre Bourdieu eles extraíram portanto um programa que visava reduzir as desi gualdades da Escola reduzindo a parte que cabia à grande cultura legítima tornandoa mais convivial mais adaptada às sociabilida des das crianças das camadas desfavorecidas isto é essencial mente dos filhos de emigrantes Este sociologismo restrito não fa zia infelizmente senão afirmar melhor o pressuposto central do progressivismo que determina que aquele que sabe se faça aces sível aos desiguais confirmando desta forma a desigualdade presente em nome da igualdade futura Eis porque ele deveria rapidamente suscitar uma reação con trária Na França a ideologia dita republicana reagiu prontamente denunciando esses métodos que adaptados aos pobres não podem ser jamais senão métodos de pobres e que começam por mergulhar os dominados na situação de que se tenta retirálos Para essa ide ologia o poder da igualdade residia ao contrário na universalidade de um saber igualmente distribuído a todos sem considerações de origem social em uma Escola bem separada da sociedade Entre tanto o saber não comporta por si só qualquer conseqüência igua litária A lógica da Escola republicana de promoção da igualdade pela distribuição do universal do saber fazse sempre ela própria prisioneira do paradigma pedagógico que reconstitui indefinidamen te a desigualdade que pretende suprimir A pedagogia tradicional da transmissão neutra do saber tanto quanto as pedagogias modernistas do saber adaptado ao estado da sociedade mantêmse de um mesmo lado em relação à alternativa colocada por Jacotot Todas as duas tomam a igualdade como objetivo isto é elas tomam a desigualdade como ponto de partida As duas estão sobretudo presas no círculo da sociedade peda gogizada Elas atribuem à Escola o poder fantasmático de realizar a igualdade social ou ao menos de reduzir a fratura social Mas 12 Prefácio este fantasma repousa ele próprio sobre uma visão da sociedade em que a desigualdade é assimilada à situação das crianças com retardo As sociedades do tempo de Jacotot confessavam a desigualdade e a divisão de classes A instrução era para elas um meio de instituir algumas mediações entre o alto e o baixo um meio de conceder aos pobres a possibilidade de melhorar individualmente sua condição e de dar a todos o sentimento de pertencer cada um em seu lugar a uma mesma comunidade Nossas sociedades estão muito longe desta franqueza Elas se representam como sociedades homogêneas em que o ritmo vivo e comum da multiplicação das mercadorias e das trocas anulou as velhas divisões de classes e fez com que todos par ticipassem das mesmas fruições e liberdades Não mais proletários apenas recémchegados que ainda não entraram no ritmo da moder nidade ou atrasados que ao contrário não souberam se adaptar às acelerações desse ritmo A sociedade se representa assim como uma vasta escola que tem seus selvagens a civilizar e seus alunos em difi culdade a recuperar Nestas condições a instrução escolar é cada vez mais encarregada da tarefa fantasmática de superar a distância entre a igualdade de condições proclamada e a desigualdade existente cada vez mais instada a reduzir as desigualdades tidas como residuais Mas a tarefa última desse sobreinvestimento pedagógico é finalmente le gitimar a visão oligárquica de uma sociedadeescola em que o governo não é mais do que a autoridade dos melhores da turma A estes me lhores da turma que nos governam é oferecida então mais uma vez a antiga alternativa uns lhes pedem que se adaptem através de uma boa pedagogia comunicativa às inteligências modestas e aos proble mas cotidianos dos menos dotados que somos outros lhes requerem ao contrário administrar a partir da distância indispensável a qual quer boa progressão da classe os interesses da comunidade Era bem isto que Jacotot tinha em mente a maneira pela qual a Escola e a sociedade infinitamente se simbolizam uma à outra re produzindo assim indefinidamente o pressuposto desigualitário em sua própria denegação Não que ele estivesse animado pela perspec tiva de uma revolução social Sua lição pessimista era ao contrário que o axioma igualitário não tem efeitos sobre a ordem social Mes mo que em última instância a igualdade fundasse a desigualdade ela não podia se atualizar senão individualmente na emancipação 13 COLEÇÃO Eooco ERRERifNCA E SEaIOÓ intelectual que deveria devolver a cada um a igualdade que a ordem social lhe havia recusado e lhe recusaria sempre por sua própria natureza Mas esse pessimismo também tinha seu mérito ele marca va a natureza paradoxal da igualdade ao mesmo tempo princípio último de toda ordem social e governamental e excluída de seu fun cionamento normal Colocando a igualdade fora do alcance dos pedagogos do progresso ele a colocava também fora do alcance das mediocridades liberais e dos debates superficiais entre aqueles que a fazem consistirem formas constitucionais e em hábitos da so ciedade A igualdade ensinava Jacotot não é nem formal nem real Ela não consiste nem no ensino uniforme de crianças da república nem na disponibilidade dos produtos de baixo preço nas estantes de supermercados A igualdade é fundamental e ausente ela é atual e intempestiva sempre dependendo da iniciativa de indivíduos e gru pos que contra o curso natural das coisas assumem o risco de veri fìcala de inventar as formas individuais ou coletivas de sua verifi cação Essa lição ela também é mais do que nunca atual Jacques Rancière Maio de 2002 CAPÍTULO PRIMEIRO Uma aventura intelectual No ano de 1818 Joseph Jacotot leitor de literatura francesa na Universidade de Louvain viveu uma aventura intelectual Uma longa e movimentada car reiradeveria no entanto têlo res guardado das surpresas dezenove anos comemorados em 1789 Ele então ensinava Retórica em Dijon e se preparava para o ofício de advogado Em 1792 havia servido como artilheiro nas tropas da Re pública Em seguida a Convenção o teve sucessivamente como ins trutor na Seção das Pólvoras Secretário do Ministro da Guerra e subs tituto do Diretor da Escola Politécnica De retorno a Dijon ele havia ensinado Análise Ideologia e Línguas Antigas Matemáticas Puras e Transcendentes e Direito Em março de 1815 a estima de seus compa triotas o havia tornado à sua revelia deputado A volta dos Bourbons o conduzira ao exílio onde obtivera da liberalidade do rei dos Países Baixos o posto de professor em meio período Joseph Jacotot conhecia as leis da hospitalidade e contava passar em Louvain dias tranqüilos Mas o acaso decidiu outra coisa Com efeito àss lições do mo desto leitor acorreram rapidamente os estudantes E entre aqueles que se dispuseram a delas bencliciarse um bom número ignorava o fran cês Joseph Jacotot por sua vez ignorava totalmente o holandês Não existia portanto língua na qual pudesse instruílos naquilo que lhe solicitavam Apesar disso ele quis responder às suas expectativas Para tanto era preciso estabelecer entre eles o laço mínimo de uma coisa comum Ora publicarase em Bruxelas naquela época uma edição hilíngüe do Telémaco estava encontrada a coisa comum e 15 CQECAC EoVCACUO EXPERIENCIA E SfNiIDO Uma aventura intelectual dessa forma Telêmaco entrou na vida de Joseph Jacotot Por meio de um intérprete ele indicou a obra aos estudantes e lhes solicitou que aprendessem amparados pela tradução o texto francês Quando eles haviam atingido a metade do livro primeiro mandou dizerlhes que repetissem sem parar o que haviam aprendido e quanto ao resto que se contentassem em lêlo para poder narrálo Era uma solução de improviso mas também em pequena escala uma experiência fi losófica no gosto daquelas tão apreciadas no Século das Luzes E Joseph Jacotot em 1818 permanecia um homem do século passado No entanto a experiência superou suas expectativas Ele soli citara aos estudantes assim preparados que escrevessem em francês o que pensavam de tudo quanto haviam lido Ele estava esperando por terríveis barbarismos ou mesmo por uma impotência absoluta Como de fato poderiam todos esses jovens privados de explica ções compreender e resolver dificuldades de uma língua nova para eles De toda forma era preciso verificar até onde esse novo cami nho aberto por acaso os havia conduzido e quais os resultados des se empirismo desesperado Mas qual não foi sua surpresa quando descobriu que seus alunos abandonados a si mesmos se haviam saído tão bem dessa difícil situação quanto o fariam muitos france ses Não seria pois preciso mais do que querer para poder Todos os homens seriam pois virtualmente capazes de compreender o que outros haviam feito e compreendido Tal foi a revolução que essa experiência do acaso provocou em seu espírito Até ali ele havia acreditado no que acreditam todos os professores conscienciosos que a grande tarefa do mestre é transmitir seus conhecimentos aos alunos para eleválos gradativamente à sua própria ciência Como eles sabia que não se tratava de entupir os alu nos de conhecimentos fazendoos repetir como papagaios mas tam bém que é preciso evitar esses caminhos do acaso onde se perdem os espíritos ainda incapazes de distinguir o essencial do acessório e o princípio da conseqüência Em suma o ato essencial do mestre era explicar destacar os elementos simples dos conhecimentos e Félix e Victor Ratier Enseignement universel Emancipation intellectuelle Journal dephilosophie pansa tique 1838 p 155 harmonizar sua simplicidade de princípio com a simplicidade de fato que caracteriza os espíritos jovens e ignorantes Ensinar era em um mesmo movimento transmitir conhecimentos e formar os espíritos levandoos segundo uma progressão ordenada do simples ao com plexo Assim progredia o aluno na apropriação racional do saber e na formação do julgamento e do gosto até onde sua destinação social o requeria preparandose para dar à sua educação uso compatível com essa destinação ensinar advogar ou governar para as elites conceber desenhar ou fabricar instrumentos e máquinas para as novas vanguar das que se buscavam agora arrancar da elite do povo fazer na carrei ra das ciências novas descobertas para os espíritos dotados desse gê nio particular Sem dúvida o procedimento desses homens de ciência divergia sensivelmente da ordem razoada dos pedagogos Mas não se extraía daí qualquer argumento contra essa ordem Ao contrário é pre ciso haver adquirido inicialmente uma formação sólida e metódica para dar vazão às singularidades do gênio Post hoc ergo propter hoc Assim raciocinam todos os professores conscienciosos Assim havia raciocinado e agido Joseph Jacotot em trinta anos de oficio Porém eis que um grão de areia vinha fortuitamente se introduzir na engrenagem Ele não havia dado a seus alunos nenhuma explicação sobre os primeiros elementos da língua Ele não lhes havia explicado a ortografia e as conjugações Sozinhos eles haviam buscado as pala vras francesas correspondentes àquelas que conheciam e as razões de suas desinências Sozinhos eles haviam aprendido acombináIas para fazer por sua vez frases francesas frases cuja ortografia e gramática tornavamse cada vez mais exatas à medida em que avançavam na leitura do livro mas sobretudo frases de escritores e não de inician tes Seriam pois supérfluas as explicações do mestre Ou se não o eram para que e para quem teriam então utilidade A ordem explicadora Uma súbita iluminação tornou assim brutalmente nítida no espírito de Joseph Jacotot essa cega evidência de todo o sistema de ensino a necessidade de explicações No entanto o que haveria de mais seguro do que essa evidência Ninguém nunca sabe de fato o 16 COECAO EDUCAÇÃO EAFEAIÈNCN f SErvüDO que compreendeu E para que compreenda é preciso que alguém lhe tenha dado uma explicação quea palavra do mestre tenha rompi do o mutismo da matéria ensinada Essa lógica não deixa entretanto de comportar certa obscuri dade Eis por exemplo um livro entre as mãos do aluno Esse livro é composto de um conjunto de raciocínios destinados a fazer o aluno compreender uma matéria Mas eis que agora o mestre toma a pa lavra para explicar o livro Ele faz um conjunto de raciocínios para explicar o conjunto de raciocínios em que o livro se constitui Mas por que teria o livro necessidade de tal assistência Ao invés de pa gar um explicador o pai de familia não poderia simplesmente dar o livro a seu filho não poderia este compreender diretamente os racio cínios do livro E caso não o fizesse por que então compreenderia melhor os raciocínios que lhe explicarão aquilo que não compreen deu Teriam esses últimos uma natureza diferente E não seria ne cessário nesse caso explicar ainda a forma de compreendêlos A lógica da explicação comporta assim o princípio de uma regressão ao infinito a reduplicação das razões não tem jamais razão de se deter O que detém a regressão e concede ao sistema seu funda mento é simplesmente que o explicador é o únicojuiz do ponto em que a explicação está ela própria explicada Ele é o únicojuiz dessa questão em si mesma vertiginosa teria o aluno compreendido os raciocínios que lhe ensinam a compreender os raciocínios É aí que o mestre supera o pai de família como poderia esse último assegu rarse de que seu filho compreendeu os raciocínios do livro O que falta ao pai de família o que sempre faltará ao trio que forma com a criança e o livro é essa arte singular do explicador a arte da distân cia O segredo do mestre é saber reconhecer a distância entre a maté ria ensinada e o sujeito a instruir a distância também entre apren der e compreender O explicador é aquele que impõe e abole a distância que a desdobra e que a reabsorve no seio de sua palavra Esse status privilegiado da palavra não suprime a regressão ao infinito senão para instituir unia hierarquia paradoxal Na ordem do explicador com efeito é preciso uma explicação oral para explicar a explicação escrita Isso supõe que os raciocínios são mais claros imprimemse melhor no espírito do aluno quando veiculados pela palavra do mestre que se dissipa no instante do que no livro onde estão 1x Uma aventura intelectual inscritas para sempre em caracteres indeléveis Como entender esse pri vilégio paradoxal da palavra sobre a escrita do ouvido sobre a vista Que relação existiria pois entre o poder da palavra e o do mestre Mas a esse paradoxo logo seguese outro as palavras que a criança aprende melhor aquelas em cujo sentido ela penetra mais fa cilmente de que se apropria melhor para seu próprio uso são as que aprende sem mestre explicador antes de qualquer mestre explicador No rendimento desigual das diversas aprendizagens intelectuais o que todos os filhos dos homens aprendem melhor é o que nenhum mestre lhes pode explicar a língua materna Falase a eles e falase em torno deles Eles escutam e retêm imitam e repetem erram e se corrigem acertam por acaso e recomeçam por método e em idade muito tenra para que os explicadores possam realizar sua instrução são capazes quase todos qualquer que seja seu sexo condição social e cor de pele de compreender e de falar a língua de seus pais E então essa criança que aprendeu a falar por sua própria inte ligência e por intermédio de mestres que não lhe explicam a língua começa sua instrução propriamente dita Tudo se passa agora como se ela não mais pudesse aprender com o recurso da inteligência que lhe serviu até aqui como se a relação autônoma entre a aprendiza gem e a verificação lhe fosse a partir daí estrangeira Entre uma e outra uma opacidade agora se estabeleceu Tratase de compreen dere essa simples palavra recobre tudo com um véu compreender é o que a criança não pode fazer sem as explicações fornecidas em certa ordem progressiva por um mestre Mais tarde por tantos mes tres quanto forem as matérias a compreender A isso se soma a estra nha circunstância de que as explicações depois que se iniciou a era do progresso não cessam de se aperfeiçoar para melhor explicar melhor fazer compreender melhor ensinar a aprender sem que ja mais se possa verificar um aperfeiçoamento correspondente na dita compreensão Antes pelo contrário começa a erguerse um triste ru mor que não mais deixará de se amplificar de um contínuo declínio na eficácia do sistema explicativo a carecer evidentemente de novo aperfeiçoamento para tornar as explicações mais fáceis de serem com preendidas por aqueles que não as compreendem A revelação que acometeu Joseph Jacotot se relaciona ao se guinte é preciso inverter a lógica do sistema explicador A explicação 19 COLECAO EDVCASAO NCIA SENTIDO não é necessária para socorrer uma incapacidade de compreender É ao contrário essa incapacidade a ficção estruturante da concepção explicadora de mundo É o explicador que tem necessidade do inca paz e não o contrário é ele que constitui o incapaz como tal Explicar alguma coisa a alguém é antes de mais nada demonstrarlhe que não pode compreendêla por si só Antes de ser o ato do pedagogo a expli cação é o mito da pedagogia a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes espíritos maduros e imaturos capazes e incapazes inteligentes e bobos O procedimento próprio do explicador consiste nesse duplo gesto inaugural por um lado ele de creta o começo absoluto somente agora tem início o ato de aprender por outro lado ele cobre todas as coisas a serem aprendidas desse véu de ignorância que ele próprio se encarrega de retirar Até ele o peque no homem tateou às cegas num esforço de adivinhação Agora ele vai aprender Ele escutava palavras e as repetia Tratase agora de ler e ele não escutará as palavras se não escuta as silabas e as silabas se não escuta as letras que ninguém poderia fazêlo escutar nem o livro nem seus pais somente a palavra do mestre O mito pedagógico dizíamos divide o mundo em dois Mas devese dizer mais precisa mente que ele divide a inteligência em duas Há segundo ele uma inteligência inferior e uma inteligência superior A primeira registra as percepções ao acaso retém interpreta e repete empiricamente no es treito círculo dos hábitos e das necessidades É a inteligência da crian cinha e do homem do povo A segunda conhece as coisas por suas razões procede por método do simples ao complexo da parte ao todo É ela que permite ao mestre transmitir seus conhecimentos adaptan doos às capacidades intelectuais do aluno e verificar se o aluno en tendeu o que acabou de aprender Tal é o princípio da explicação Tal será a partir daí para Jacotot o princípio do embrutecimento Entendãmolo bem e para isso afastemos as imagens feitas O embrutecedor não é o velho mestre obtuso que entope a cabeça de seus alunos de conhecimentos indigestos nem o ser maléfico que pra tica a dupla verdade para assegurar seu poder e a ordem social Ao contrário é exatamente por ser culto esclarecido e de boafé que ele é mais eficaz Mais ele é culto mais se mostra evidente a ele a distan cia que vai de seu saber à ignorância dos ignorantes Mais ele é escla recido e lhe parece óbvia a diferença que há entre tatear às escuras e 20 Uma aventura intelectual buscar com método mais ele se aplicará em substituir pelo espírito a letra pela clareza das explicações a autoridade do livro Antes de qualquer coisa dirseá é preciso que o aluno compreenda e para isso que a ele se forneçam explicações cada vez melhores Tal é a preocupação do pedagogo esclarecido a criança está compreenden do Ela não compreende Encontrarei maneiras novas de explicar lhe mais rigorosas em seu princípio mais atrativas em sua forma e verificarei que ele compreendeu Nobre preocupação Infelizmente é essa pequena palavra exa tamente essa palavra de ordem dos esclarecidos compreender a causadora de todo o mal É ela que interrompe o movimento da ra zão destrói sua confiança em si expulsaa de sua via própria ao quebrar em dois o mundo da inteligência ao instaurar a ruptura entre o animal que tateia e o pequeno cavalheiro instruído entre o senso comum e a ciência A partir do momento em que se pronuncia essa palavra de ordem da dualidade todo aperfeiçoamento na maneira de fazer compreender essa grande preocupação dos metodistas e dos progressistas se torna um progresso no embrutecimento A criança que balbucia sob a ameaça das pancadas obedece à férula eis tudo ela aplicará sua inteligênciaem outra coisa Aquele contudo que foi explicado investirá sua inteligência em um trabalho do luto compre ender significa para ele compreender que nada compreenderá a me nos que lhe expliquem Não é mais à férula que ele se submete mas à hierarquia do mundo das inteligências Quanto ao resto ele perma nece tão tranqüilo quanto o outro se a solução do problema é muito difícil de buscar ele terá a inteligência de arregalar os olhos O mes tre é vigilante e paciente Ele notará quando a criança já não estiver entendendo e a recolocará no bom caminho por meio de uma re explicação Assim a criança adquire uma nova inteligência a das explicações do mestre Mais tarde ela poderá por sua vez conver terse em um explicador Ela possui os meios Ela no entanto os aperfeiçoará ela será um homem do progresso O acaso e a vontade É assim que corre o mundo dos explicadores explicados E como correria também para o professor Jacotot se o acaso não o houvesse 21 COLEÇÃO buvcAO ExpreiErvon E SENpJo colocado em presença de um fato e Joseph Jacotot pensava que todo raciocínio deve partir dos fatos e ceder diante deles Porém não concluamos com isso que se tratava de um materialista Ao contrá rio como Descartes que provava o movimento ao andar mas tam bém como seu contemporâneo o muito realista e religioso Maine de Biran ele tinha os fatos do espirito que age e que toma consciência de sua atividade como mais seguros do que qualquer coisa material E era bem disso que se tratava o fato era que alguns estudantes se ensinaram a falar e a escrever em francês sem o socorro de suas explicações Ele nada lhes havia transmitido de sua ciência nada explicado quanto aos radicais e as flexões da língua francesa Ele nem mesmo havia procedido à maneira desses pedagogos reforma dores que como o preceptor do Emilio perdem seus alunos para melhor guiálos e balizam astuciosamente todo um percurso com obstáculos que precisam superar sozinhos Ele os havia deixado sós com o texto de Fénelon uma tradução nem mesmo interlinear como era uso nas escolas e a vontade de aprender o francês Ele somente lhes havia dado a ordem de atravessar uma floresta cuja saída ignora va A necessidade o havia constrangido a deixar inteiramente de fora sua inteligência essa inteligência mediadora do mestre que une a inteligência impressa nas palavras escritas àquela do aprendiz E ao mesmo tempo ele havia suprimido essa distância imaginária que é o princípio do embrutecimento pedagógico Tudo se deu a rigor entre a inteligência de Fénelon que havia querido fazer um certo uso da língua francesa a do tradutor que havia querido fornecer o equiva lente em holandês e a inteligência dos aprendizes quequeriam apren der a lingua francesa E ficou evidente que nenhuma outra inteligên cia era necessária Sem perceber ele os havia feito descobrir o que ele próprio com eles descobria todas as frases e por conseguinte todas as inteligências que as produzem são de mesma natureza Com preender não é mais do que traduzir isto é fornecer o equivalente de um texto mas não sua razão Nada há atrás da página escrita ne nhum fundo duplo que necessite do trabalho de unia inteligência ou tra a do explicador nenhuma lingua do mestre nenhuma lingua da lingua cujas palavras e frases tenham o poder de dizer a razão das palavras e frases de um texto E disso os estudantes flamengos ha viam fornecido a prova para falar do Telemaco eles não tinham à 22 Uma aventura intelectual sua disposição senão as palavras do TeMmaco Bastam portanto as frases de Fénelon para compreender as frases de Fénelon e para dizer o que delas se compreendeu Aprender e compreender são duas ma neiras de exprimir o mesmo ato de tradução Nada há aquém dos textos a não ser a vontade de se expressar isto é de traduzir Se eles haviam compreendido a língua ao aprender Fénelon não era sim plesmente pela ginástica que compara uma página à esquerda com uma página à direita Não é a aptidão de mudar de coluna que conta mas a capacidade de dizer o que se pensa nas palavras de outrem Se eles haviam aprendido isso com Fénelon é porque o ato de Fénelon escritor era ele próprio um ato de tradutor para traduzir uma lição de política em um relato legendário Fénelon havia transposto em francês do seu século o grego de Homero o latim de Virgílio e a lingua culta ou primitiva de cem outros textos do conto infantil à história erudita Ele havia aplicado a essa dupla tradução a mesma inteligência que eles empregavam por sua vez para relatar com fra ses de seu livro o que pensavam desse livro Mas a inteligência que os fizera aprender o francês emTelêmaco era a mesma que os havia feito aprender a lingua materna observando e retendo repetindo e verificando associando o que buscavam apren der àquilo que já conheciam fazendo e refletindo sobre o que haviam feito Eles haviam procedido como não se deve proceder como fazem as crianças poradivinhação E a questão assim se impunha não se ria necessário inverter a ordem admitida dos valores intelectuais Não seria esse método maldito da adivinhação o verdadeiro movimento da inteligência humana que toma posse de seu próprio poder E sua proscrição não marcaria na verdade a vontade de dividir em dois o mundo da inteligência Os metodistas opõem o método mau do aca so ao caminho da razão Mas eles se dão antecipadamente aquilo que querem provar Eles supõem um pequeno animal que se chocan do com as coisas explora um mundo que ainda não é capaz de ver mas que essas coisas precisamente lhe ensinarão a discernir Mas o filhote de homem é antes de qualquer outra coisa um ser de palavra A criança que repete as palavras aprendidas e o estudante flamengo perdido em seuTelêmaco não se guiam pelo acaso Todo o seu esforço toda a sua exploração é tencionada pelo seguinte uma palavra humana lhes foi dirigida a qual querem reconhecer e à 23 Co mau EoucAçAoi ExaFeiFNCwe SENT vO qual querem responder não na qualidade de alunos ou de sábios nias na condição de homens como se responde a alguém que vos fala e não a quem vos examina sob o signo da igualdade O fato estava lá eles haviam aprendido sozinhos e sem mestre explicador Ora o que se dá uma vez é sempre possível De resto essa descoberta deveria ser responsável por uma reviravolta nos prin cípios do professor Jacotot Mas o homem Jacotot estava mais pre parado para reconhecer a variedade daquilo que se pode esperar de um homem Seu pai havia sido açougueiro antes de cuidar das con tas de seu avô o carpinteiro que havia enviado seu neto ao colégio Ele próprio era professor de retórica quando escutou ecoar o apelo às armas em 1792 O voto de seus companheiros o havia feito capi tão de artilharia e ele se distinguira como um notável artilheiro Em 1793 na Seção das Pólvoras esse latinista havia se tornado instrutor de química para a formação acelerada dos operários que seriam en viados para aplicarem todos os cantos do território as descobertas de Fourcroy Na casa desse mesmo Fourcroy ele havia conhecido Vau quelin filho de camponês que se dera uma formação em química às escondidas de seu patrão Na Escola Politécnica ele tinha visto che gar jovens que comissões improvisadas haviam selecionado com base no duplo critério de vivacidade de espírito e de patriotismo E ele os havia visto tornaremse muito bons matemáticos menos pela matemá tica que Monge ou Lagrange lhes explicava do que por aquela que praticavam diante deles Ele próprio havia aparentemente aproveita do suas funções administrativas para construir uma competência de matemático que mais tarde exerceria na Universidade de Dijon As sim como havia acrescentado o hebraico às línguas antigas que ensina va e composto um Ensaio sobre a gramática hebraica Ele pensava só Deus sabe a razão que essa língua tinha futuro Enfim ele havia construído para si a contragosto mas com o maior rigor uma compe tência de representante do povo Em suma ele sabia que a vontade dos indivíduos e o perigo da Pátria poderiam fazer nascer capacidades inéditas em circunstâncias em que a urgência obrigava a queimar as etapas da progressão explicativa Ele pensava que este estado de ex ceção comandado pelas necessidades da Nação em nada diferia em seu princípio da urgência que rege a exploração do mundo pela criança ou dessa outra exigência que rege a via singular dos sábios e 24 Uma aventura intelectual dos inventores Por meio da experiência da criança do sábio e do revolucionário o método do acaso praticado com sucesso pelos es tudantes flamengos revelava seu segundo segredo Esse método da igualdade era antes de mais nada um método da vontade Podiase aprender sozinho e sem mestre explicador quando se queria pela tensão de seu próprio desejo ou pelas contingências da situação O mestre emancipador Essas contingências haviam tomado na circunstância a forma de recomendação feita por Jacotot Disso advinha uma conseqüência capital não mais para os alunos mas para o Mestre Eles haviam aprendido sem mestre explicador mas não sem mestre Antes não sabiam e agora sim Logo Jacotot havia lhes ensinado algo No entanto ele nada lhes havia comunicado de sua ciência Não era portanto a ciência do Mestre que os alunos aprendiam Ele havia sido mestre por força da ordem que mergulhara os alunos no círculo de onde eles podiam sair sozinhos quando retirava sua inteligência para deixar as deles entregues àquela do livro Assim se haviam disso ciado as duas funções que a prática do mestre explicador vai religar a do sábio e a do mestre Assim se haviam igualmente separado liberadas uma da outra as duas faculdades que estão em jogo no ato de aprender a inteligência e a vontade Entre o mestre e o aluno se estabelecera uma relação de vontade a vontade relação de domina ção do mestre que tivera por conseqüência uma relação inteiramente livre da inteligência do aluno com aquela do livro inteligência do livro que era também a coisa comum o laço intelectual igualitário entre o mestre c o aluno Esse dispositivo permitia destrinchar as categorias misturadas do ato pedagógico e definir exatamente o em brutecimento explicador Há embrutecimento quando uma inteligên cia é subordinada a outra inteligência O homem e a criança em particular pode ter necessidade de um mestre quando sua vontade não é suficientemente forte para colocála e mantêla em seu caminho Mas a sujeição é puramente de vontade a vontade Ela se torna embru tecedora quando liga uma inteligência a uma outra inteligência No ato de ensinar e de aprender há duas vontades e duas inteligências Chamarseá embrutecimento à sua coincidência Na situação 25 CoieCAO EDUGrJAO EPEFiÉNCIA e SE experimental criada por Jacotot o aluno estava ligado a uma vonta de a de Jacotot e a uma inteligência a do livro inteiramente distin tas Chamarseá emancipação à diferença conhecida e mantida entre as duas relações o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade Essa experiência pedagógica abria assim uma ruptura com a lógica de todas as pedagogias A prática dos pedagogos se apóia na oposição da ciência e da ignorância Eles se distinguem pelos meios escolhidos para tornar sábio o ignorante métodos duros ou suaves tradicionais ou modernos passivos ou ativos mas cujo rendimento se pode comparar Desse ponto de vista poderseia numa primeira apro ximação comparar a rapidez dos alunos de Jacotot com a lentidão dos métodos tradicionais Mas na verdade nada havia aí a comparar O confronto dos métodos supõe um acordo mínimo no que se refere aos fins do ato pedagógico transmitir os conhecimentos do mestre ao alu no Ora Jacotot nada havia transmitido O método era puramente o do aluno E aprender mais ou menos rapidamente o francês é em si mesmo uma coisa de pouca conseqüência A comparação não mais se estabelecia entre métodos mas entre dois usos da inteligência e entre duas concepções da ordem intelectual Avia rápida não era a melhor pedagogia Ela era uma outra via a da liberdade via que Jacotot havia experimentado nos exércitos no ano Il na fabricação das pólvoras ou na instalação da Escola Politécnica a via da liberdade respondendo à urgência do perigo mas também à confiança na capacidade intelectu al de cada ser humano Por detrás da relação pedagógica estabelecida entre a ignorância e a ciência seria preciso reconhecer a relação filo sófica muito mais fundamental entre o embrutecimento e a emancipa ção Havia assim não dois mas quatro termos em jogo O ato de aprender podia ser reproduzido segundo quatro determinações diver samente combinadas por um mestre emancipador ou por um mestre embrutecedor por um mestre sábio ou por um mestre ignorante A última proposição era a mais dura de suportar Passa ainda a idéia de que um sábio deve se dispensar de toda a explicação sobre sua ciência Mas como admitir que um ignorante possa ser causa de ciência para um outro ignorante A própria experiência de Jacotot era ambígua no que se refere à sua condição de professor de francês Mas já que ela havia ao menos mostrado que não era o saber do 26 Urna aventura intelectual mestre que ensinava ao aluno nada o impedia de ensinar outra coisa além de seu próprio saber ensinar o que ignorava Joseph Jacotot dedicouse então a variar as experiências a repetir de propósito o que o acaso havia uma vez produzido Ele se põs assim a ensinar duas matérias em que sua incompetência era patente a pintura e o piano Os estudantes de Direito queriam ainda que lhe fosse atribu ída uma cátedra que estava livre em sua faculdade Mas a Universi dade de Louvain já se inquietava demais em relação a esse leitor extravagante por quem os alunos desertavam dos cursos magistrais para espremerse à noite em uma sala muito pequena e apenas ilu minada por duas velas e ouvilo dizer É preciso que eu lhes ensine que nada tenho a ensinarlhes 2 De modo que a autoridade consulta da respondeu não reconhecer nele títulos que o habilitassem para tal ensino Mas à época ele se ocupava precisamente de experimentar a distância entre o título e o ato Ao invés pois de fazer em francês um curso de direito ele ensinou os estudantes a pleitear em holandês Eles o fizeram muito bem mas ele continuava a ignorar o holandês O círculo da potência A experiência pareceu suficiente a Jacotot para esclarecêlo podese ensinar o que se ignora desde que se emancipe o aluno isso é que se force o aluno a usar sua própria inteligência Mestre é aquele que encerra uma inteligência em um círculo arbitrário do qual não poderá sair se não se tornar útil a si mesma Para emancipar um ignorante é preciso e suficiente que sejamos nós mesmos emanci pados isso é conscientes do verdadeiro poder do espírito humano O ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ignora se o mestre acredita que ele o pode e o obriga a atualizar sua capacidade círculo da potência homólogo a esse círculo da impotência que ligava o aluno ao explicador do velho método que denominaremos a partir daqui simplesmente de o Velho Mas a relação de forças é bem par ticular O círculo da impotência está sempre dado ele é a própria mar cha do mundo social que se dissimula na evidente diferença entre a Som maire des leFons pnbllqnes dr Al Jacobi tnr lesprinciprr de lenseignement nniuecel publicado porJ S Van de Weyer Bruxelas 1822 p I 27 COLLUO EoocACAo EGEkENCI e SNOOO ignorância e a ciência O círculo da potência quanto a ele só vigora em virtude de sua publicidade Mas não pode aparecer senão como uma tautologia ou um absurdo Como poderá o mestre sábio aceitar que é capaz de ensinar tão bem aquilo que ignora quanto o que sabe Ele só poderá tomar essa argumentação da potência intelectual como uma desvalorização de sua ciência E o ignorante por sua vez não se acredita capaz de aprender por si mesmo menos ainda de instruir um outro ignorante Os excluídos do mundo da inteligência subscre vem eles próprios o veredicto de sua exclusão Em suma o círculo da emancipação deve ser começado Aí está o paradoxo Pois refletindo bem o método que ele propõe é o mais velho de todos e não pára de ser ratificado todos os dias em todas as circunstâncias em que o indivíduo tem necessidade de se apropriar de um conhecimento que não tem como fazer que lhe seja explicado Não há homem sobre a Terra que não tenha aprendido alguma coisa por si mesmo e sem mestre explicador Chamemos a essa maneira de aprender Ensino Universal e poderemos afirmar o En sino Universal existe de fato desde o começo do mundo ao lado de todos os métodos explicadores Esse ensino por si só formou de fato todos os grandes homens Mas eis o que é estranho Todo homem faz essa experiência mil vezes em sua vida e no entanto jamais ocor reu a alguém dizer ao outro aprendi muitas coisas sem explicações e crcio yue como eu também o podeis nem eu nem quem quer que seja havia pensado em empregar esse método para instruir os outros Bastaria dizer à inteligência que dormita em cada um Age quod agis continua a fazer o que fazes aprende o fato imitao conhecete a ti mesmo é a marcha da natureza4 Repete metodicamente o método do acaso que te deu a medida de teu poder A mesma inteligência está em ação em todos os atos do espírito humano Este é no entanto o salto mais difícil Quando necessário todos praticam esse método mas ninguém está pronto a reconhecêIo nin guém quer enfrentar a revolução intelectual que ele implica O círculo E seiçnemeul Cruel Innçnr moleruelle 6 ecl Paris 1836 p 448 c Journal de Prninncipailinn iuleeduee t III p 121 Ensei uemeol uuirerse Inngue rbangirr 2 ed Paris 1829 p 219 28 Uma aventura intelectual social a ordem das coisas proíbe que ele seja reconhecido pelo que é o verdadeiro método pelo qual cada um aprende e pelo qual cada um descobre a medida de sua capacidade É preciso ousar reconhecêlo c prosseguir a verificação aberta de seu poder Sem o que o método da impotência o Velho durará tanto quanto a ordem das coisas Quem gostaria de começar Havia à época muitos tipos de homens de boa vontade que se preocupavam com a instrução do povo homens da ordem queriam levar o povo a se colocar acima de seus apetites brutais homens de revolução queriam conduzilo à cons ciência de seus direitos homens de progresso desejavam pela ins trução atenuar o abismo entre as classes homens de indústria so nhavam por seu intermédio conceder às melhores inteligências populares os meios de uma promoção social Todas estas boas in tenções encontravam um obstáculo os homens do povo têm pouco tempo e menos ainda dinheiro para investir nessa aquisição As sim procuravase um meio econômico de difundir o mínimo de ins trução julgada necessária e suficiente para conforme o caso realizar o aprimoramento das populações laboriosas Entre os progressistas e os industriais um método desfrutava então de grande reputação o Ensino Mútuo Ele permitia reunirem um vasto local um grande nú mero de alunos divididos em destacamentos dirigidos pelos mais avançados entre eles que eram promovidos à função de monitores Desse modo o mandamento e a lição do mestre irradiavamse por intermédio desses monitores sobre toda a população a ser instruída A perspectiva agradava aos amigos do progresso é assim que a ciên cia se difunde dos píncaros até as mais modestas inteligências A felicidade e a liberdade a acompanham Essa espécie de progresso para Jacotot cheirava a rédeas Um carrossel aperfeiçoado dizia ele Ele sonhava com outra coisa a títu lo de ensino mútuo que cada ignorante pudesse se fazer para outro ignorante um mestre que revelaria a ele seu poder intelectual Mais exatamente seu problema não era a instrução do povo instruemse os recrutas que se engajam soh sua bandeira os subalternos que de vem poder compreender as ordens o povo que se quer governar à maneira progressiva isto é sem direito divino e somente segundo a hierarquia das capacidades O problema era a emancipação que todo homem do povo pudesse conceber sua dignidade de homem medir a 29 COTO EDUGG o ExPtRIENOA E SENTIDO dimensão dc sua capacidade intelectual e decidir quanto a seu uso Os amigos da instrução asseguravam que era essa a condição de uma verdadeira liberdade Em seguida reconheciam dever ao povo essa instrução e estavam prontos a brigar entre si para fixar aquela que the deveria ser concedida Jacotot não via que liberdade podia resul tar para o povo dos deveres de seus instrutores Ele pressentia ao contrário que estava em jogo uma nova forma de embrutecimento Quem ensina sem emancipar embrutece E quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender Ele aprenderá o que quiser nada talvez Ele saberá que pode aprender porque a mesma inteligência está em ação em todas as produções humanas que um homem sempre pode compreender a palavra de um outro homem O impressor de Jacotot tinha um filho que era débil mental Todos se preocupavam por não poder fazer nada a respeito Jacotot lhe ensinou o hebraico e a criança tornouse um excelente litógrafo A língua é evidente jamais lhe serviu para nada a não ser para saber o que as inteligências mais bem dotadas e mais instru ídas ainda ignoravam e não se tratava do hebraico As coisas estavam portanto muito claras não se tratava aí de um método para instruir o povo mas da graça a ser anunciada aos pobres eles podiam tudo o que pode um homem Bastava anunciar Jacotot decidiu consagrarse a isso Ele proclamou que se pode ensi nar o que se ignora e que um pai de família pobre e ignorante é capaz se emancipado de fazer a educação de seus filhos sem recorrer a qualquer explicador E indicou o meio de se realizar esse Ensino Universal aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto segundo o princípio de que todos os homens têm igual inteligência Houve comoção em Louvain em Bruxelas e em Haia tomou se carruagem em Paris e Lion da Inglaterra e da Prússia se veio escutar a boa nova quc depois foi levada a São Petersburgo e a Nova Orleans A novidade chegou até o Rio de Janeiro Durante alguns anos a polêmica instalouse e a República do saber tremeu em suas bases E tudo isso porque um homem de espírito um sábio renoma do e um pai de família virtuoso havia enlouquecido por não saber o holandês 30 CAPÍTULO SEGUNDO A lição do ignorante Desembarquemos pois juntamente com Telêmaco na Ilha de Calipso Penetremos com um desses visitantes no antro do Touco na instituição de Mademoiselle Marcellis em Louvain em casa de Mon sieur Deschuyfeleere um curtumeiro de quem ele fez um latinista na Escola Normal Militar de Louvain onde o príncipe filósofo Frederick dOrange encarregou o fundador do Ensino Universal de instruir os futuros instrutores militares Imaginai recrutas sentados nos bancos escolares e sussurrando todos ao mesmo tempo Calipso Calipso não etc etc dois meses depois eles sabiam ler escrever e contar Du rante essa educação primária nós aprendíamos um o inglês outro o alemão esse fortificação aquele química etc etc Mas o Fundador sabe tudo isso Nem um pouco mas nós lhe explicávamos e eu vos asseguro que ele aproveitou lindamente a escola normal Estou confuso então todos vós sabíeis química Não mas nós aprendíamos e lhe ensinávamos Eis o Ensino Universal É o discípulo que faz o mestre Há uma ordem na loucura como em toda coisa Comecemos pelo começo Telêmaco Tudo está on tudo diz o louco E a malícia pública acrescenta e tudo está no Telêmaco Pois Telêmaco é aparen temente o livro que serve para tudo O aluno quer aprender a ler Quer Ensegrremm nt Memel rNatGémattgaes 2 ed Paris 1829 p 5051 31 A haro do ignorante aprender o inglês ou o alemão a arte de pleitear ou a de combater O louco colocará imperturbável um Telêmaco em suas mãos e o aluno começará a repetir Calipso Calipso não Calipso não podia e assim em diante até que ele saiba o número prescrito de livros do Telêmaco e que possa relatar os outros De tudo que ele aprende a forma das letras o lugar ou as terminações das palavras as imagens os raciocínios os sentimentos dos personagens as lições de moral lhe será pedido que fale que diga o que ele vê o que pensa disso o que faz com isso Somente uma condição será imperativa de tudo o que disser deverá demonstrar a materialidade no livro Serlheá so licitado que faça composições e improvisações nas mesmas condi ções ele deverá empregar as palavras e as maneiras do livro para construir suas frases deverá mostrar no livro os fatos relacionados com seus raciocinios Em suma de tudo o que dirá o mestre deverá poder verificar a materialidade no livro A ilha do livro O livro Telêmaco ou um outro O acaso colocou Telêmaco à disposição de Jacotot a comodidade o aconselhou a guardálo Telê maco está traduzido em muitas línguas e facilmente disponível nas livrarias Não é uma obraprima da língua francesa Mas seu estilo é puro o vocabulário variado a moral severa Aprendese aí mitologia e geografia Escutase aí através da tradução francesa o latim de Virgílio e o grego de Homero Tratase enfim de um livro clássico um desses em que uma língua apresenta o essencial de suas formas e de seus poderes Um livro que é um todo um centro ao qual se pode associar tudo o que se aprender de novo um círculo no interior do qual é possível compreender cada uma dessas novas coisas encon trar os meios de dizer o que se vê o que se pensa disso o que se faz com isso Este é o primeiro princípio do Ensino Universal é preciso aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto Para come çar é preciso aprender qualquer coisa O Palice diria a mesma coi sa O Palice talvez maso Velho quanto a ele diz é preciso apren der tal coisa e depois tal outra e ainda uma outra tal Seleção progressão incompletude esses são os princípios Aprendemse 32 algumas regras e alguns elementos que são aplicados a alguns tre chos escolhidos de leitura alguns exercícios correspondendo aos ru dimentos adquiridos Em seguida passase a um nível superior ou tros rudimentos outro livro outros exercícios outro professor A cada etapa cavase o abismo da ignorância que o professor tapa antes de cavar um outro Fragmentos se acrescentam peças isoladas de um saber do explicador que levam o aluno a reboque de um mes tre que elejamais atingirá O livro nunca está inteiro a lição jamais acabada O mestre sempre guarda na manga um saber isto é uma ignorância do aluno Entendi isso diz o aluno satisfeito Isso é o que você pensa cor rige o mestre Na verdade há uma dificuldade de que até aqui eu o poupei Ela será explicada quando chegarmos ã lição correspondente O que quer dizer isso pergunta o aluno curi oso Eu poderia lhe explicar responde o mestre mas seria prematu ro você não entenderia Isso lhe será explicado no ano que vem Há sempre uma distãncia a separar o mestre do aluno que para ir mais além sempre ressentirá a necessidade de um outro mestre de expli cações suplementares Assim Aquiles triunfante passeia em torno de Tróia com o cadáver de Heitor amarrado à sua carruagem A progres são racional do saber é uma mutilação indefinidamente reproduzida Todo homem que é ensinado não é senão uma metade de homem Não nos perguntemos se o pequeno cavalheiro instruído sofre dessa mutilação A virtude do sistema é transformar a perda em pro veito O pequeno cavalheiroavança Foilhe ensinado algo logo ele aprendeu logo ele pode esquecer Atrás de si escavase novamente o abismo da ignorância Eis no entanto a maravilha da coisa essa ignorância a partir daí é a dos outros O que ele esqueceu ele ul trapassou Ele não está mais em situação de soletrar e a gaguejar como as inteligências grosseiras e os pequeninos da turma infantil Não há papagaios em sua escola Não se sobrecarrega a memória formase a inteligência Eu compreendi diz a criança não sou um papagaio Mais ela esquece mais lhe parece evidente que compreendeu Mais ela se torna inteligente mais pode contemplar do alto aqueles que deixou para trás os que permanecem na antecâmara do saber diante do livro mudo aqueles que repetem por não serem suficientemente inteligentes Log dabne4itrnrde l enrefgnenent nnirerrel angénérn1nfnlælte Louvain 1829 p 6 33 COLEÇÃO EDUCAÇAOI EXPERIÊNCIA E SENTIDO para compreender Eis a virtude dos explicadores o ser que inferiori zaram eles o amarram pelo mais sólido dos laços ao país do embrute cimento a consciência de sua superioridade Essa consciência de resto não mata os bons sentimentos O pequeno cavalheiro instruído se comoverá talvez com a ignorância do povo e pretenderá trabalhar para sua instrução Saberá que a coisa é difícil diante de cérebros que a rotina endureceu ou que a falta de método perdeu Mas se ele é devotado ele saberá que há um tipo de explicações adaptado para cada categoria na hierarquia das inteli gências ele buscará se colocar a seu nível Passemos agora uma outra história O louco o Fundador como o chamam seus sectários entra em cena com seu Telêmaco um livro uma coisa Toma e lê diz ele ao pobre Eu não sei ler responde o pobre Como compreenderia eu o que está escrito no livro Da forma como compreendeste todas as coisas até aqui comparando dois fatos Vou te relatar um fato a primeira frase do livro Calipso Calipso não Eis agora um segundo fato as palavras estão escritas aí Não reconhe ces nada A primeira palavra que te disse era Calipso não será também a primeira palavra na folha Olha bem até que estejas certo de reconhe cêla em meio a uma multidão de outras palavras Para tanto será preci so que me digas tudo o que vês Há aí signos que a mão traçou sobre o papel cujos chumbos a mão reuniu na gráfica Contame essa palavra Fazeme o relato das aventuras isto é das idas e vindas dos desvios em uma palavra dos trajetos da pena que escreveu essa palavra sobre o papel ou do buril que a gravou sobre o cobre Saberias tu reconhecer aí a letra O que um de meus alunos serralheiro de profissão denomina a redonda a letra L que ele chama de o esquadro Contame a forma de cada letra como descreverias as formas de um objeto ou lugar desconhe cido Não digas que não podes Tu sabes ver tu sabes falar tu sabes mostrar tu podes te lembrar O que mais é preciso Uma atenção abso luta para ver e rever dizer e redizer Não procures me enganar e te enganar Foi bem isso que viste O que pensas disso Não és um ser pensante Ou acreditas ser apenas corpo O fundador Sganarelle mu dou tudo isso tens uma alma como eu journal de Pémmtápation intellectuelle t III 18351836 p 15 Journdde énamcipation ìnteectnele t lI 18351836 p 380 34 A lição do ignorante Falarseá em seguida do que fala o livro o que pensas de Calipso da dor de uma deusa de uma primavera eterna Mostra me o que te faz dizer o que dizes O livro é uma fuga bloqueada não se sabe que caminho traçará o aluno mas sabese de onde ele não sairá do exercício de sua liberda de Sabese ainda que o mestre não terá o direito de se manter longe mas à sua porta O aluno deve ver tudo por ele mesmo comparar in cessantemente e sempre responder à tríplice questão o que vês o que pensas disso o que fazes com isso E assim até o infinito Mas esse infinito não é mais um segredo do mestre é a marcha do aluno O livro quanto a ele está pronto e acabado E um todo que o aluno tem em mãos que ele pode percorrer inteiramente com um olhar Não há nada que o mestre lhe subtraia e nada que ele possa subtrair ao olhar do mestre O círculo abole a trapaça E antes de mais nada essa grande trapaça que é a incapacidade eu não posso eu não compreendo Não há nada a compreender Tudo está no livro Basta relatar a forma de cada signo as aventuras de cada frase a lição de cada livro É preciso começar a falar Não digas que não podes Tu sabes dizer eu não posso Diga em seu lugar Calipso não podia E terás começado Terás começado por um caminho que já conhecias e que deverás daqui por diante seguir sem dele te afastares Não digas eu não posso dizer Ou então aprende a dizêlo à maneira de Calipso ou de Telêmaco de Narval ou de Idomenéia O outro circulo já foi começado o da potência Não cessarás de encontrar maneiras de dizer eu não posso e cedo poderás dizer tudo Viagem em um círculo Compreendese que as aventuras do fi lho de Ulisses sejam para isso o manual e Calipso a primeira pala vra Calipso a escondida É preciso justamente descobrir que nada há de escondido não há palavras por trás das palavras língua que diga a verdade da língua Aprendemse signos e ainda signos frases e ainda frases Repetemse frasespmntas Decoramse livros inteiros E o Velho indignase eis o que significa para vós aprender qualquer coisa Primeiramente vossas crianças repetem como papagaios Elas cultivam uma só faculdade a memória enquanto nós exercemos a in teligência o gosto e a imaginação Vossas crianças decoram Este é vosso primeiro erro E eis o segundo vossas crianças não aprendem 35 COIKAO EJUCACAO EYP3ifNCA e SFMioo de cor Dizeis que elas o fazem mas é impossível Os cérebros huma nos são incapazes de tal esforço de memória Argumento viciado Discurso de um círculo a um outro círculo O Velho diz que a memória infantil é incapaz de tais esforços porque a impotência em geral é uma palavra de ordem Ele diz que a memória não é a mesma coisa que a inteligência ou a imaginação porque usa a arma comum àqueles que pretendem reinar sobre a ignorância a divi são Ele crê que a memória é fraca porque não crê no poder da inteligên cia humana Ele a crê inferior porque crê em inferiores e superiores Em suma seu duplo argumento é mais ou menos o seguinte há seres infe riores e superiores os inferiores não podem o que podem os superiores É só o que o Velho conhece Ele tem necessidade do desigual mas não desse desigual estabelecido pelo decreto do príncipe senão do desigual por si só que está em todas as mentes e em todas as frases Para tanto dispõe de uma arma branca a diferença isso não é aquilo tal coisa é completamente diferente de tal outra não se pode comparar a memória não é inteligência repetir não é saber comparação não é razão há o fundo e a forma Qualquer farinha pode ser moída no moinho da distinção O argumento pode assim se modernizar tender ao científico e ao humanitário há etapas no desenvolvimento da inteligência uma inteligência infantil não é a inteligência de um adulto é preciso não sobrecarregar a inteligência da criança senão podese comprometer sua saúde e colocarem risco o desenvolvimento de suas faculdades Tudo o que o Velho pede é que se lhe concedam suas negações e diferenças isso não é isso é diferente isso é mais isso é menos Eis o que é amplamente suficien te para erigir todos os tronos da hierarquia das inteligências Calipso e o serralheiro Deixemos falar o Velho Examinemos os fatos Há uma vontade que rege e uma inteligência que obedece Chamemos de atenção o ato que faz agir essa inteligência sob a coerção absoluta de uma vontade Esse ato não é diferente quer se trate da forma de uma letra a ser reconhecida de uma frase a ser memorizada de uma relação a estabe lecer entre dois seres matemáticos dos elementos de um discurso a ser 36 A lição do ignorante composto Não há uma faculdade que registra uma outra que com preende uma outra que julga O serralheiro que denomina o Ode redonda e o L de esquadro já pensa por meio de relações E inventar é da mesma ordem que recordar Deixemos que os explicadores for mem o gosto e a imaginação dos pequenos cavalheiros deixe mos que dissertem sobre o gênio dos criadores Nós nos contentare mos em fazer como esses criadores como Racine que aprendeu de cor traduziu repetiu e imitou Eurípides Bossuet que fez o mesmo com Tertuliano Rousseau com Amyot Boileau com Horácio e Juve nal como Demóstenes que copiou oito vezes Tucídides Hooft que leu cinqüenta e duas vezes Tácito Sêneca que recomenda a leitura sempre renovada de um mesmo livro Haydn que repetiu indefinida mente seis sonatas de Bach Miguelangelo sempre ocupado em refa zer o mesmo torso s A potência não se divide Não há senão um poder o de ver e de dizer de prestar atenção ao que se vê e ao que se diz Aprendemse frases e ainda frases descobremse fatos isto é relações entre coisas e ainda outras relações que são de mesma natu reza aprendese a combinar letras palavras frases idéias Não se dirá que adquirimos a ciência que conhecemos a verdade ou que nos tomamos gênios Saberemos contudo que na ordem intelectual po demos tudo o que pode um homem Eis o que quer dizer Tudo está em tudo a tautologia é a po tência Toda a potência da língua está no todo de um livro Todo conhecimento de si como inteligência está no domínio de um livro de um capítulo de uma frase de uma palavra Tudo está em tudo e tudo está em Telêmaco arrebentamse de rir os provocadores pe gando os discípulos de surpresa tudo está também no primeiro livro de Telénraco E em sua primeira palavra As matemáticas estão no Telêmaco E na primeira palavra de Telêmaco E o discí pulo sente o solo desaparecer sob seus pés e chama o mestre em seu socorro o que se deve responder Era preciso dizer que vós acreditais que todas as obras hu manas estão na palavra Calipso porque essa palavra é uma obra da inteligência humana Aquele que fez a adição de frações é o mesmo ser intelectual que o que fez a palavra Calipso Este artista sabia o Gonod Nowtle exposition de la méthode de Joseph Jamtol Paris 1830 p 1213 37 CoeCAO EDUCAÇÃO E4ERIENCiA E SENTIDO grego escolheu uma palavra que si gnificaardilosa escondida Este artista assemelhase àquele que imaginou os meios de escrever a palavra da qual se trata Ele se assemelha àquele que fez o papel sobre o qual se escreve àquele que emprega a pena nessa tarefa àquele que talha as penas com um canivete àquele que fez o cani vete com o ferro àquele que forneceu o ferro a seus semelhantes àquele que fez a tinta àquele que imprimiu a palavra Calipso àquele que fez a máquina de impressão àquele que explica os efeitos de tal máquina àquele que generalizou essas explicações àquele que fez a tinta de impressão etc etc etc Todas as ciências todas as artes a anatomia e a dinâmica etc etc são frutos da mesma inteli gência que fez a palavra Calipso Um filósofo abordando uma ter ra desconhecida adivinhou que ela era habitada ao ver uma figura geométrica na areia São passos de homem disse Seus camara das acreditaram que estava louco porque as linhas que ele lhes mostrava não se pareciam com passos Os sábios do aperfeiçoado século XIX arregalam os olhos abestalhados quando se lhes mos tra a palavra Calipso e que lhes é dito Há aí dedo humano Eu aposto que o representante da escola normal francesa dirá olhando a palavra Calipso Ele pode dizêlo e repetilo mas isso não tem a forma de um dedo Tudo está en tudo Eis tudo o que está em Calipso a potência da inteligência que está presente em toda manifestação humana A mesma inteligência faz os nomes e os signos matemáticos A mesma inteligência faz os signos e os raciocínios Não há dois tipos de espíritos Há desigualdade nas manifestações da inteligência segundo a energia mais ou menos gran de que a vontade comunica à inteligência para descobrir e combinar relações novas mas não há hierarquia de capacidade intelectual É a tomada de consciência dessa igualdade de natureza que se chama eman cipação e que abre o caminho para toda aventura no país do saber Pois se trata de ousar se aventurar e não de aprender mais ou menos bem ou mais ou menos rápido O método Jacotot não é melhor é diferente Por isso os procedimentos colocados em prática importam pouco neles mesmos É o Telémaco mas poderia ser qualquer outro Começase pelo texto e não pela gramática pelas palavras inteiras e Lugue maternelle p 464465 38 A lição do ignorante não pelas sílabas Não é que seja preciso aprender assim para aprender melhor e que o método Jacotot seja o ancestral do método global De fato vaise mais rápido começando por Calipso e não por B A BA Mas a rapidez não é senão um efeito da potência adquirida uma conseqüência do princípio emancipador O antigo método faz co meçar pelas letras porque dirige os alunos segundo o princípio da desigualdade intelectual e sobretudo da inferioridade intelectual das crianças Acredita que as letras são mais fáceis de distinguir do que as palavras é um erro mas enfim ele assim o crê Ele crê que uma inteligência infantil não está apta senão a aprender C A CA e que é preciso uma inteligência adulta isto é superior para aprender Calipso Em suma B A BA tal como Calipso é uma bandeira incapacidade contra capacidade Soletrar é um ato de contrição antes de ser um meio de aprender É por isso que se poderia mudar a ordem dos procedimentos sem nada mudar quanto à oposição dos princí pios Um dia o Velho talvez pensará em fazer ler por palavras e então talvez nós fizéssemos nossos alunos soletrarem No que resul taria essa modificação aparentemente significativa Nada Nossos alunos não deixariam de ser emancipados e os do Velho não seriam menos embrutecidos O Velho não embrutece seus alunos ao fazê los soletrar mas ao dizerlhes que não podem soletrar sozinhos por tanto ele não os emanciparia ao fazêlos ler palavras inteiras por que teria todo o cuidado em dizerlhes que sua jovem inteligência não pode dispensar as explicações que ele retira de seu velho cére bro Não é pois o procedimento a marcha a maneira que emancipa ou embrutece é o princípio O princípio da desigualdade o velho princípio embrutece não importa o que se faça o princípio da igual dade o princípio Jacotot emancipa qualquer que seja o procedimen to o livro o fato ao qual se aplique O problema é revelar uma inteligência a ela mesma Qualquer coisa serve para fazêlo É Telêmaco mas pode ser uma oração ou unia canção que a criança ou o ignorante saiba de cor Há sempre alguma coisa que o ignorante sabe e que pode servir de termo de comparação ao qual é possível relacionar uma coisa nova a ser lonroml de Pémmcifaou intellechrelle t III 18351836 p 9 lonrna de fémiwdpatìmr intellechrele p 11 39 Coecw EUQ 1 CAO EXPENDNT IA SENTIDO conhecida Disso testemunha o serralheiro que arregala os olhos quan do lhe é dito que ele pode ler Ele não conhece sequer as letras No entanto se ele colocar os olhos nesse calendário será que não sabe a ordem dos meses e que não pode assim adivinhar janeiro fevereiro março Ele só sabe contar um pouco Mas quem o impede de con tar bem lentamente seguindo as linhas para reconhecer escrito at o que já sabe Ele sabe que se chama Guillaume e que o dia de seu santo padroeiro é 16 de janeiro Ele saberá perfeitamente encontrar a palavra Ele sabe que fevereiro só tem vinte e oito dias Ele vê clara mente uma coluna que é mais curta que as outras e assim ele reco nhecerá 28 E assim por diante Há sempre alguma coisa que o mes tre pode lhe pedir que descubra sobre a qual pode interrogálo e verificar o trabalho de sua inteligência O mestre e Sócrates Com efeito são esses os dois atos fundamentais do mestre ele interroga provoca uma palavra isto é a manifestação de uma inteli gência que se ignorava a si própria ou se descuidava Ele verifica que o trabalho dessa inteligência se faz com atenção que essa pala vra não diz qualquer coisa para se subtrair à coerção Dirseá que para isso é preciso um mestre muito hábil e muito sábio Ao contrá rio a ciência do mestre sábio torna muito difícil para ele não arrui nar o método Conhecendo as respostas suas perguntas para elas orientam naturalmente o aluno É o segredo dos bons mestres com suas perguntas eles guiam discretamente a inteligência do aluno tão discretamente que a fazem trabalhar mas não o suficiente para abandonála a si mesma Há um Sócrates adormecido em cada expli cador E é preciso admitir que o método Jacotot isso é o método do aluno difere radicalmente do método do mestre socrático Por suas interrogações Sócrates leva o escravo de Mênon a reconhecer as verdades matemáticas que nele estão Há aí talvez um caminho para o saber mas ele não é em nada o da emancipação Ao contrário Sócrates deve tomar o escravo pelas mãos para que esse possa reen contrar o que está nele próprio A demonstração de seu saber é ao mesmo tempo a de sua impotência jamais ele caminhará sozinho e A lição do ignorante aliás ninguém lhe pede que caminhe senão para ilustrar a lição do mestre Nela Sócrates interroga um escravo que está destinado a permanecer como tal O socratismo é assim uma forma aperfeiçoada do embruteci mento Como todo mestre sábio Sócrates interroga para instruir Ora quem quer emancipar um homem deve interrogálo à maneira dos homens e não à maneira dos sábios para instruirse a si próprio e não para instruir um outro E isto somente o fará bem aquele que de fato não sabe mais do que seu aluno que jamais fez a viagem antes dele o mestre ignorante este não poupará à criança o tempo que lhe for necessário para darse conta da palavra Calipso Mas alguém poderá perguntar o que tem ela a ver com Calipso e quando sequer ela ouviria falar disso Deixemos então Calipso de lado Mas que criança não ouviu falar do PaiNosso não sabe de cor a oração Nesse caso a coisa está dada e o pai de família pobre e ignorante que quer ensinar seu filho a ler não estará embaraçado Ele sempre encontrará em sua vizinhança alguma pessoa atenciosa e suficiente mente letrada capaz de copiar para ele essa oração Com isso o pai ou a mãe pode começar a instrução de seu filho perguntandolhe onde está o Pai Se a criança é atenta ele dirá que a primeira palavra que está no papel deve ser o Pai pois é a primeira na frase Nosso será então necessariamente a segunda palavra a criança poderá comparar distinguir conhecer essas duas palavras e reconhecêIas em qualquer parte Que pai ou mãe não saberia perguntar à criança às voltas com o texto da oração o que ele vê o que com isso pode fazer ou o que disso pode dizer ou o que pensa sobre o que disse ou fez Fazêlo da mesma forma como interrogaria um vizinho sobre o instrumento que tem em mãos e sobre o uso que dá ao objeto Ensi nar o que se ignora é simplesmente questionar sobre tudo que se ignora Não é preciso nenhuma ciência para fazer tais perguntas O ignorante pode tudo perguntar e somente suas questões serão para o viajante do país dos signos questões verdadeiras a exigir o exercí cio autônomo de sua inteligência Que seja diz o contraditor Mas o que faz a força do interroga dor faz também a incompetência do verificador Como saberá ele Jwmnaldr lémmndnation intellyduelle t VI 18411842 p 72 40 41 COLEÇÃO EDUCAÇÃO EXPERIENCIA E SENTIDO que a criança não divaga O pai ou a mãe sempre poderão pedir à criança Mostrame Pai ou Céus Mas como poderão eles verificar se a criança indica corretamente a palavra solicitada A dificuldade só crescerá à medida em que a criança avança se ela avança em sua aprendizagem O mestre e o aluno ignorantes não estariam nesse caso representando a fábula do cego e do paralítico O poder do ignorante Comecemos por tranqüilizar o contraditor não se fará do igno rante o depositário da ciência infusa sobretudo dessa ciência do povo que se oporia à dos sábios É preciso ser sábio para julgar os resultados do trabalho para verificar a ciência do aluno O ignoran te por sua vez fará menos e mais ao mesmo tempo Ele não verifi cará o que o aluno descobriu verificará se ele buscou Ele julgará se estava atento Ora basta ser homem para julgar do fato do trabalho Tão bem quanto o filósofo que reconhece passos de homem nas linhas na areia a mãe sabe ver nos olhos em toda a expressão de seu filho quando ele faz um trabalho qualquer quando ele mostra palavras de uma frase se ele está atento ao que faz O que o mestre ignorante deve exigir de seu aluno é que ele prove que estu dou com atenção É pouco Vejamos então tudo o que essa exi gência tem para o aluno de uma tarefa interminável Vejamos tam bém a inteligência que ela pode dar ao examinador ignorante Quem impede essa mãe ignorante mas emancipada de observar a cada vez que pergunta onde está Pai se a criança mostra sempre a mesma palavra quem se oporá a que ela esconda essa palavra e pergunte qual é a palavra que está debaixo de meu dedo Etc etc Imagem piedosa receita de mulheres Esse foi o julgamento do portavoz oficial da tribo dos explicadores Podese ensinar o que se ignora é ainda uma máxima de dona de casa Ao que se respon derá que a intuição maternal não exerce aqui nenhum privilégio Jsoma de fémanripntion intellectuelle p 73 II Idem 2 Lorain Réfutation de a méthodeJacotot Paris 1830 p 90 42 A lição do ignorante doméstico O dedo que esconde a palavra Pai é o mesmo que está em Calipso a escondida ou a ardilosa a marca da inteligência humana a mais elementar das astúcias da razão humana a verdadeira aquela que é própria a cada um e comum a todos essa razão que se manifes ta exemplarmente ali onde o saber do ignorante e a ignorância do mestre agindo fazem a demonstração dos poderes da igualdade in telectual O homem é um animal que distingue perfeitamente bem quando aquele que fala não sabe o que diz Essa capacidade é o laço que une os homens A prática do mestre ignorante não é um simples expediente que permite ao pobre que não tem tempo nem dinheiro nem saber instruir seus filhos É a experiência crucial que libera os puros poderes da razão lá onde a ciência não pode mais vir a seu socorro O que um ignorante pode uma vez todos os ignoran tes podem sempre Pois não há hierarquia na ignorância E o que os ignorantes e os sábios podem comumente é a isso que se deve cha mar o poder do ser inteligente como tal Poder de igualdade que é ao mesmo tempo de dualidade e de comunidade Não há inteligência onde há uma agregação ligadura de um espírito a outro espírito Há inteligência ali onde cada um age narra o que ele fez e fornece os meios de verificação da realidade de sua ação A coisa comum situada entre as duas inteligências é a caução dessa igualdade e isso em um duplo sentido Uma coisa ma terial é antes de mais nada o único ponto de comunicação entre dois espíritos 14 A ponte é a passagem mas também a distância mantida A materialidade do livro mantém a igual distância os dois espíritos enquanto a explicação é anulação de um pelo outro Mas a coisa é igualmente uma instância sempre disponível de verificação material o ato do examinador ignorante é de levar o examinado aos objetos materiais às frases às palavras escritas em um livro a uma coisa que ele possa verificar com seus sentidos 15 O examinado está sempre sujeito a uma verificação no livro aberto na materialidade de cada palavra na trajetória de cada signo A coisa o livro exorciza a toue cunleruel p 271 e Journal de lémnnripation ine0ednel t III 1835 1836 p 323 loomed de lEnmircipalion intellerhrelh t lit 18351836 p 253 I Journal de lémmrcipaliare intelerpelle r III 18351836 p 259 43 COICAo EaVCnGAO EXPERIENCIA e SfNIIpO cada vez a trapaça da incapacidade e aquela do saber Por isso o mes tre ignorante poderá eventualmente estender sua competência até a verificação não tanto da ciência do pequeno cavalheiro instruido mas da atenção que ele dá ao que diz e faz Vós podeis por esse meio até mesmo prestar serviço a um de vossos vizinhos que se encontra por circunstâncias independentes de sua vontade forçado a enviar seu fi lho ao colégio Se o vizinho vos pede para verificar o que sabe o pe queno colegial não estareis em nada embaraçado com essa requisição ainda que não tenhais estudos O que estais aprendendojovem amigo direis ã criança Grego O quê Esopo O quê As Fábulas Que fábula conheceis A primeira Onde está a primeira palavra Eila aqui Passaime vosso livro Recitaime a quarta palavra Colo caia por escrito O que escrevestes não se parece com a quarta palavra do livro Vizinho essa criança não sabe o que diz saber Essa é uma prova de que lhe faltou atenção quando estudava ou quando indicou o que diz saber Aconselhaio a estudar Voltarei a passar e vos direi se está aprendendo o grego que ignoro que sou incapaz de ler É assim que o mestre ignorante pode instruir tanto aquele que sabe quanto o ignorante verificando se ele está pesquisando conti nuamente Quem busca sempre encontra Não encontra necessaria mente aquilo que buscava menos ainda aquilo que é preciso encon trar Mas encontra alguma coisa nova a relacionar à coisa que já conhece O essencial é essa contínua vigilância essa atenção que jamais se relaxa sem que venha a se instalar a dcsrazão em que excelem tanto aquele que sabe quanto o ignorante O mestre é aquele que mantém o que busca em seu caminho onde está sozinho a procu rar e o faz incessantemente Os negócios de cada um Mas ainda é preciso para verificar essa procura saber o que quer dizer procurar Esse é o cerne de todo o método Para emanci par a outrem é preciso que se tenha emancipado a si próprio É pre ciso conhecerse a si mesmo como viajante do espírito semelhante a Journade lémancpeionhrtelleNme t IV 18361837 p 280 44 A lição do ignorante todos os outros viajantes como sujeito intelectual que participa da potência comum dos seres intelectuais Como se tem acesso a esse conhecimento de si Um campo nês um artista pai de família se emancipará intelectualmente se refletir sobre o que é e o que faz na ordem social A coisa pare cerá simples c mesmo simplória para quem desconhece o peso do velho mandamento que a filosofia pela voz de Platão instituiu como destino para o artesão Não faças nada além de teu próprio negócio que não é de pensar no que quer que seja mas simplesmente fazer essa coisa que esgota a definição dc teu ser se tu és sapateiro calça dos e crianças que serão sapateiros Não é a ti que o oráculo délfico recomenda conhecerse E mesmo se a divindade brincalhona se di vertisse em semear na alma de teu filho um pouco do ouro do pensa mento é à raça de ouro aos guardiães da pólis que incumbiria a tarefa de educálo para tornálo um deles É bem verdade que a era do progresso pretendeu abalar a rigi dez do velho mandamento Com os enciclopedistas decretou que nada mais se fizesse como rotina nem mesmo o trabalho dos arte sãos E sabia que não há ator social por mais ínfimo que seja que não se constitua ao mesmo tempo em um ser pensante O cidadão Destutt de Tracy relembrou no alvorecer do novo século Todo homem que fala tem idéias de ideologia de gramática de lógica e de eloqüência Todo homem que age tem princípios de moral pri vada e de moral social Todo ser apenas por vegetar desenvolve suas noções de física e de cálculo e somente pelo fato de viver com seus semelhantes desenvolve sua pequena coleção de fatos históricos e sua maneira dejulgálos Impossível portanto que os sapateiros façam apenas calçados que não sejam também à sua maneira gramáticos moralistas e físicos Este é o primeiro problema enquanto os artesãos e os cam poneses formarem essas noções de moral de cálculo ou de física segundo a rotina de seu meio ou o acaso de seus encontros a marcha Enseignrmrnl enread I nngme maternele 6 ed Paris 1836 p 422 Destutt de Trace Obrerraions sur le système camel dinsnctan publique Pads ano IX 45 COLEAO EoucACAo EGEFIFNOA E SENiIDO racional do progresso será duplamente contrariada retardada pelos rotineiros e supersticiosos ou perturbada pelo açodamento dos vio lentos Fazse portanto necessário que um mínimo de instrução retirado dos princípios da razão da ciência e do interesse geral im bua de noções sadias cabeças que sem isso as formarão falhas Escu sado mencionar que essa empreitada será tão mais proveitosa quanto mais ela subtrair o filho do camponês ou do artesão do meio natural produtor dessas falsas idéias No entanto essa evidência encontra ra pidamente sua contradição a criança que deve ser subtraída à rotina e à superstição deve no entanto voltar à sua atividade e à sua condição E a era do progresso foi desde sua aurora advertida do perigo mortal que há em separar a criança do povo da condição para qual está votada e das idéias relativas a essa condição Assim ela se esbarra com essa contradição sabese agora que as ciências dependem todas de prin cípios simples que são acessíveis a todos os espíritos que delas de sejarem se apropriar desde que sigam o método adequado Mas a mesma natureza que abre a carreira das ciências a todos os espíritos quer uma ordem social em que as classes estejam separadas e os indivíduos conformados ao estado social que lhes é destinado A solução encontrada para essa contradição é a balança orde nada da instrução e da educação a repartição dos papéis devidos ao mestreescola e ao pai de família Um afugenta pelas luzes da instru ção as idéias falsas que a criança deve a seu meio familiar o outro afugenta pela educação as aspirações extravagantes que o escolar poderia tirar de sua jovem ciência e o traz de volta à condição dos seus O pai de família incapaz de tirar de sua prática rotineira as condições para a instrução intelectual de seu filho mostrase em troca todopoderoso para lhe ensinar pela palavra e pelo exemplo a virtude que há em se manterem sua condição A família é ao mesmo tempo fonte da incapacidade intelectual e princípio de objetividade ética Esse duplo caráter se traduz por uma dupla limitação da cons ciência de si do artesão a consciência de que aquilo quefaz depende de uma ciência que não é a sua a consciência de que aquilo que é o conduz a não fazer nada além de seu próprio negócio Digamolo mais simplesmente a balança harmoniosa da ins trução e da educação é a de um duplo embrutecimento A isso se opõe exatamente a emancipação tomada de consciência por parte 46 A Iiçõo do ignorante de cada homem de sua natureza de sujeito intelectual fórmula carte siana da igualdade posta ao revés Descartes dizia eu penso logo sou e esse belo pensamento do grande filósofo é um dos princípios do Ensino Universal Nós invertemos seu pensamento e dizemos eu sou homem logo penso A inversão inclui o sujeito homem na igualdade do cogito O pensamento não é um atributo da substância pensante mas um atributo da humanidade Para transformar o co nhecete a ti mesmo em princípio da emancipação de todo ser hu mano é preciso fazer operar contra o interdito platônico uma das etimologias da fantasia do Crátilo o homem o anthropos é o ser que examina o que vê que se conhece nessa reflexão sobre seu ato Toda a prática do Ensino Universal se resume na questão o que pen sas disso Todo seu poder está na consciência da emancipação que ela atualiza no mestre e suscita no aluno O pai poderá emancipar seu filho se começar por se conhecer a si próprio isto é por exami nar os atos intelectuais de que é o sujeito por observar a maneira como utiliza nesses atos seu poder de ser pensante A consciência da emancipação é antes de tudo o inventário das competências intelectuais do ignorante Ele conhece sua língua Ele sabe igualmente usála para protestar contra seu estado ou para interrogar os que sabem ou acreditam saber mais do que ele Ele conhece seu ofício seus instrumentos e uso ele seria capaz se ne cessário de aperfeiçoálos Ele deve começar a refletir sobre essas capacidades e sobre a maneira como as adquiriu Avaliemos melhor essa reflexão Não se trata de opor os saberes manuais e do povo a inteligência do instrumento e do operário à ciência das escolas ou à retórica das elites Não se trata de perguntar quem cons truiu Tebas e suas sete portas para reivindicar o lugar de construtores e de produtores na ordem social Tratase ao contrário de reconhecer que não há duas inteligências que toda obra da arte humana é a realização das mesmas virtualidades intelectuais Em toda parte tratase de obser var de comparar de combinar de fazer e de assinalar como se fez Em toda parte é possível essa reflexão essa volta sobre si mesmo que não é Sonmmire des rpms pebiques de Al J acolo p 23 Platão Cretao399 c Único entra todos os animais o homem foi justamente chamado e ntRepos porque ele examina o que viu anatisnia baerpópe 47 COIEOAO EDUCAÇÃO EXPERIÊNCIA E SENTIDO a pura contemplação de uma substância pensante mas a atenção incon dicionada a seus atos intelectuais ao caminho que descrevem e a possi bilidade de avançar sempre investindo a mesma inteligência na con quista de novos territórios Permanece embrutecido aquele que opõe a obra das mãos operárias e do povo que nos alimenta às nuvens da retóri ca A fabricação de nuvens é uma obra da arte humana que exige nem menos nem mais tanto trabalho tanta atenção intelectual quanto a fa bricação de calçados e de maçanetas M Lerminier o acadêmico dis serta sobre a incapacidade intelectual do povo M Lerminier é um em brutecido Mas um embrutecido não é um tolo nem um preguiçoso E seríamos embrutecidos por nossa vez se não reconhecêssemos em suas dissertações a mesma arte a mesma inteligência o mesmo trabalho que os daqueles que transformam a madeira a pedra ou o couro Somente se reconhecermos o trabalho de M Lerminier seremos capazes de reco nhecer a inteligênciamanifestada pela obra dos mais humildes As cam ponesas pobres dos arredores de Grenoble fabricam luvas pagamse lhes trinta centavos a dúzia Mas desde que se emanciparam elas se aplicam a olhar a estudar a compreender uma luva bem confeccionada Elas adivinharão o sentido de todas as frases de todas as palavras dessa luva Acabarão por falar tão bem quanto as mulheres da cidade que ganham sete francos por dúzia Tratase somente de aprender uma lín gua que se fala com tesouras agulha e linha A questão sempre está limitada nas sociedades humanas a compreender e falar uma língua A idealidade material da língua refuta qualquer oposição entre raça de ouro e raça de ferro qualquer hierarquia ainda que inverti da entre os homens votados ao trabalho manual e os homens desti nados ao exercício do pensamento Qualquer obra da língua se com preende e se executa da mesma maneira É por isso que o ignorante pode assim que se conheceu a si mesmo verificar a pesquisa de seu filho no livro que não consegue ler mesmo não conhecendo as maté rias que o filho estuda se este lhe diz como está fazendo saberá reconhecer se está fazendo ou não obra de pesquisador Pois ele sabe o que é pesquisar e não tem senão uma coisa a pedir a seu filho que é virar e revirar suas palavras e frases como ele próprio vira e revira seus instrumentos quando pesquisa I ìnteìaremen miirerreL Aftuigne 3 ed Paris 1830 p 349 48 A lição do ignorante O livro Telémaco ou outro colocado entre duas inteligên cias resume essa comunidade ideal que se inscreve na materialidade das coisas O livro é a igualdade das inteligências Por isso um mes mo mandamento filosófico prescrevia ao artesão só fazer seus pró prios negócios e condenava a democracia do livro O filósoforei platônico opunha à palavra viva a letra morta do livro pensamento tornado matéria à disposição dos homens da matéria discurso ao mesmo tempo mudo e tagarela errando ao acaso entre aqueles cujo único negócio é pensar O privilégio explicador é somente a moeda de troco desse interdito E o privilégio que o método Jacotot con cede ao livro à manipulação dos signos à mnemotécnica é a perfeita inversão da hierarquia dos espíritos que marcava em Platão a críti ca da escrita 0 O livro sela a nova relação entre dois ignorantes que a partir daí se reconhecem como inteligências E essa nova relação transforma a relação embrutecedora da instrução intelectual e da edu cação moral Em vez da instância disciplinadora da educação inter vém a decisão da emancipação que torna o pai ou a mãe capaz de representar para seu filho o papel do mestre ignorante em quem se encarna a exigência incondicionada da vontade Exigência incondi cionada o pai emancipador não é um pedagogo gentil mas um mes tre intratável O mandamento emancipador não conhece negociações Ele comanda absolutamente um sujeito que supõe capaz de coman darse a si mesmo O filho verificará no livro a igualdade das inteli gências desde que o pai ou a mãe verifiquem a radicalidade da pes quisa que ele está realizando A célula familiar já não é mais então o lugar de um retrocesso que conduz o artesão à consciência de sua nulidade Ela é o lugar de uma nova consciência de uma superação de si que estende o próprio negócio de cada um até o ponto em que ele se faz exercício integral da razão comum O cego e seu cão Pois é exatamente isso que se trata de verificar a igualdade de princípio dos seres falantes Ao forçar a vontade do filho o pai Cf Platão Pedro 274 e 277 a e J Rancière I Pbilosophe el set pouffes Fayard 1983 p 66 e seg 49 COLECAO EoucACAO EXPO CIA E SENTIDO de família pobre verifica que eles têm a mesma inteligência que seu filho pesquisa como ele e o que o filho busca no livro é a inteligência daquele que o escreveu para verificar se ela procede exatamente como a sua Essa reciprocidade é o cerne do método emancipador o principio de uma filosofia nova que o Fundador juntando duas palavras gregas batizou de panecdstica porque ela busca o todo da inteligência humana em cada manifestação intelec tual Decerto não o havia compreendido bem o proprietário que enviou seu jardineiro para se formar em Louvain pretendendo tor nálo instrutor de seus filhos Não há performances pedagógicas especiais a serem esperadas de um jardineiro emancipado ou de um mestre ignorante em geral O que pode essencialmente um emancipado é ser emancipador fornecer não a chave do saber mas a consciência daquilo que pode uma inteligência quando ela se considera como igual a qualquer outra e considera qualquer outra como igual ã sua A emancipação é a consciência dessa igualdade dessa recipro cidade que somente ela permite que a inteligência se atualize pela verificação O que embrutece o povo não é a falta de instrução mas a crença na inferioridade de sua inteligência E o que embrutece os inferiores embrutece ao mesmo tempo os superiores Pois só verifica sua inteligência aquele que fala a um semelhante capaz de verificar a igualdade das duas inteligências Ora o espírito superior se condena a jamais ser compreendido pelos inferiores Ele só se assegura de sua inteligência desqualificando aqueles que lhe poderi am recusar esse reconhecimento Tal como o sábio que sabe que os espíritos femininos são inferiores aos espíritos masculinos e que passa toda sua existência a dialogarcom um serque não pode compreendê lo Que intimidade que doçura nas conversações amorosas nos casais nas famílias Aquele que fala nunca está certo de ter sido compreendido Ele tem um espirito e um coração um grande espíri to um coração sensível mas o cadáver ao qual a cadeia social o amarrou ou a amarrou Oh infelicidade Dirseá que a admira ção de seus alunos e do mundo exterior o consola dessa desgraça doméstica Mas o que vale o julgamento de um espírito inferior Journal de emancipation ìnlelechrelle t V 1838 p 168 50 A liçáo do ignorante sobre um espirito superior Dizei ao poeta eu apreciei muito vossa última obra ele vos responderá mordendo os lábios muito me hon rais isso é meu caro não saberia me envaidecer com o sufrágio de vossa pequena inteligência 24 Mas essa crença na desigualdade intelectual e na superioridade de sua própria inteligência não é em nada uma exclusividade dos sábios e dos poetas eminentes Sua força vem do fato de que ela envol ve toda a população sob a aparência de humildade Eu não posso vos declara o ignorante que incitais a se instruir Eu não sou mais do que um operário Percebei bem o que está contido no silogismo An tes de tudo eu não posso significa eu não quero por que faria eu semelhante esforço O que quer dizer também eu poderia sem dú vida fazêlo pois sou inteligente mas não sou senão um operário gente como eu não o consegue meu vizinho não o conseguiria De que isso me serviria então já que trato com imbecis Assim vai a crença na desigualdade Não há espirito superior que não encontre um mais superior ainda para rebaixálo não há espí rito inferior que não encontre outro mais inferior ainda para despre zar A toga professoral de Louvain é bem pouca coisa em Paris E o artesão parisiense sabe como lhe são inferiores os artesãos de provín cia que sabem por sua vez como são atrasados os camponeses No dia em que esses últimos pensarem que conhecem as coisas e que a toga de Paris abriga um fantasista o cerco se fechará A superioridade universal dos inferiores se unirá à inferioridade universal dos superio res para criar um mundo em que nenhuma inteligência poderá se reco nhecer em seu igual Ora a razão se perde ali onde um homem fala a um outro que nada lhe Ode replicar Não há espetáculo mais belo mais instrutivo do que o espetáculo do homem que fala Porém o ouvinte deve se reservar o direito de pensar no que acabou de ouvir e o expositor deve convidálo a tanto Logo é preciso que o ouvinte verifique se o expositor está atualmente no uso de sua razão se dela está escapando ouse a está abraçando Sem essa verificação autoriza da exigida pela própria igualdade das inteligências não vejo numa conversa mais do que um discurso entre o cego e seu cão Enseignement mùrerzel AIémnóetpostmmes Paris 1841 p 176 25 fnnnml de emanciialio loteccne t III 183536 p 334 51 COLEÇÃO EoucnDAoL EPE4iFNOA e SENTiDO Resposta à fábula do cego e do paralítico o cego que fala a seu cão é o apólogo do mundo das inteligências desiguais Percebese bem que se trata de filosofia e de humanidade não de receitas de pedagogia infantil O Ensino Universal é em primeiro lugar a uni versal verificação do semelhante de que todos os emancipados são capazes todos aqueles que decidiram pensar em si como homens semelhantes a qualquer outro Tudo está em tudo Tudo está em tudo A tautologia da potência é também a da igualdade que busca o dedo da inteligência em toda obra de homem Esse é o sentido do exercício que tanto surpreendeu Baptiste Frous sard homem de progresso e diretor de escola em Grenoble que veio acompanhar em Louvain os dois filhos do deputado Casimir Perier Membro da Sociedade dos Métodos de Ensino Baptiste Froussard já havia ouvido falar do Ensino Universal e deve ter reconhecido na classe de Mlle Marcellis exercícios que o presidente dessa Socieda de M de Lasteyrie havia descrito Ele observou jovens moças se gundo o costume fazerem composições em quinze minutos umas sobre o último homem outras sobre o retorno do exilado e escrever sobre esses temas peças de literatura que como assegurava o funda dor não fariam feio entre as mais belas páginas de nossos melhores autores Essa afirmação levantava vivas reservas nos visitantes ilus tres Mas M Jacotot havia encontrado o meio de convencêlos já que em toda evidência eles próprios podiam ser contados entre os melhores escritores da época bastavalhes submeteremse à mesma prova e dar aos alunos a possibilidade de comparar M de Lasteyrie se havia prestado de bom grado ao exercício Mas o mesmo não su cedeu com M Guigniaut o enviado da Escola Normal de Paris que se mostrara incapaz de ver qualquer dedo humano em Calipso mas que em troca havia visto em uma composição a ausência indescul pável de um circunflexo sobre a palavra croître Convidado para a prova ele se tinha apresentado com uma hora de atraso sendolhe solicitado que voltasse no dia seguinte Mas à tarde ele havia reto mado o caminho de Paris levando em suas bagagens como peça de acusação esse i vergonhosamente privado de seu circunflexo 52 A Iição do ignorante Após a leitura das composições Baptiste Froussard assistiu às sessões de improvisação Tratavase de um exercício essencial do Ensino Universal aprender a falar sobre todos os assuntos à quei maroupa com um começo um desenvolvimento e um fim Apren der a improvisar era antes de qualquer outra coisa aprender a ven cer a si próprio a vencer esse orgulho que se disfarça de humildade para declarar sua incapacidade de falar diante de outrem isso é a recusa de submeterse a seu julgamento Era em seguida aprender a começar e a terminar a fazer por si mesmo um todo a aprisionar a língua em um círculo Assim duas alunas haviam improvisado com toda segurança sobre a morte do ateu após o que M Jacotot para afugentar essas tristes idéias pediu a outra aluna para improvisar sobre o vôo de unta mosca Estava decretada a hilaridade na sala mas M Jacotot colocou as coisas no lugar não se tratava de rir era preciso falar E sobre esse tema aéreo durante oito minutos e meio a jovem disse coisas encantadoras estabelecendo relações cheias de graça e de frescor de imaginação Baptiste Froussard havia participado da lição de música M Jacotot havia lhe solicitado fragmentos de poesia francesa sobre os quais as jovens alunas haviam improvisado melodias com acompa nhamento que interpretaram de modo adorável Muitas vezes ainda ele havia voltado à casa de Mlle Marcellis conduzindo ele mesmo exercícios de composição de moral e de metafísica todos realizados com uma facilidade e um talento admiráveis Porém eis o exercício que mais o surpreendeu um dia M Jacotot havia se dirigido às alu nas Senhoritas sabeis que há arte em toda obra humana em uma máquina a vapor como em um vestido em uma obra de literatura como em um sapato Muito bem Vós me fareis uma composição so bre a arte em geral relacionando vossas palavras vossas expressões vossos pensamentos a uma ou outra passagem dos autores que vos serão indicados de maneira a poder tudo justificar ou verificar Diversas obras foram então trazidas a Baptiste Froussard que indicou pessoalmente a uma certa passagem de Athalie a outra um capítulo da gramática a outra ainda uma passagem de Bossuet um capítulo da geografia a divisão aritmética de Lacroix e assim por B Froussard l rttre B sesantis an sujet dr n méthode de ilf Jacoal Paris 1829 p 6 53 COLtcAO EnucAoO EPEAlNGA E SENTIDO diante Não lhe foi preciso esperar muito pelos resultados desse es tranho exercício sobre coisas tão pouco comparáveis Ao fim de meia hora novamente o estupor o invadiu ao perceber a qualidade das composições que haviam sido feitas em sua presença e dos comen tários improvisados que as justificavam Ele admirou em particular uma explicação da arte feita sobre a passagem de Athalie acompa nhada de uma justificativa ou verificação somente comparável se gundo ele à mais brilhante lição de literatura que já escutara Nesse dia mais do que nunca Baptiste Froussard compreen deu em que sentido se pode dizer que tudo está em tudo Ele já sabia que M Jacotot era um pedagogo surpreendente e podia presumir a qualidade dos alunos formados sob sua orientação Contudo ele vol tou para casa tendo compreendido uma coisa a mais as alunas de Mlle Marcellis de Louvain tinham a mesma inteligência que as ar tesãs de Grenoble e mesmo muito mais difícil de admitir que as artesãs dos arredores de Grenoble 54 CAPÍTULO TERCEIRO A ratão dos iguais E preciso refletir melhor sobre a razão desses efeitos Nós orientamos as crianças a partir da opinião da igualdade das inteli gências Mas o que é uma opinião É dizem os explicadores um sen timento que formamos sobre os fatos superficialmente observados As opiniões crescem muito particularmente nos cérebros fracos e populares e se opõem à ciência que conhece as verdadeiras razões dos fenômenos Se desejardes vos ensinaremos a ciência Devagar Nós vos concedemos que uma opinião não é uma ver dade Porém é isso que nos interessa quem não conhece a verdade busca por ela e há muitas descobertas a serem feitas no caminho O único erro seria tomar nossas opiniões como verdades Isso sem dúvida é o que se faz cotidianamente Mas esta é justamente a úni ca coisa em que queremos nos distinguir nós adeptos do louco pensamos que nossas opiniões são opiniões e nada mais Nós obser vamos certos fatos Nós acreditamos que tal poderia ser a razão para esses fatos Faremos e podereis fazer também algumas experiências para verificar a solidez dessa opinião Parecenos inclusive que o procedimento não é totalmente inédito Não é assim que agem fre qüentemente os físicos e os químicos Mas nesse caso falase em tom respeitoso de hipótese de método científico Mas na verdade pouco nos importa o respeito Limitemonos aos fatos vimos crianças e adultos aprenderem sozinhos sem mes tre explicador a ler a escrever a tocar música ou a falar línguas 55 COLEÇÃO EoorsCno EXPERIENCE E SENI NO estrangeiras Acreditamos que esses fatos poderiam se explicar pela igual dade das inteligências É uma opinião cuja verificação estamos perse guindo É bem verdade que há nisso uma dificuldade Físicos e químicos isolam os fenômenos físicos colocandoos em relação a outros fenôme nos físicos Ao produzir as supostas causas para esses fenômenos eles se habilitam a reproduzir seus efeitos conhecidos Tal caminho nos está interditado Jamais poderemos dizer tomemos duas inteligências iguais e submetâmolas a tal ou tal condição Conhecemos a inteligência por seus efeitos Não podemos entretanto isolála ou medila Estamos re duzidos a multiplicar as experiências inspiradas por essa opinião E ja mais podermos afirmar todas as inteligências são iguais Isso é inegável Nosso problema contudo não é provar que todas as inteligências são iguais É ver o que se pode fazer a partir dessa suposição E para isso bastanos que essa opinião seja possí vel isto é que nenhuma verdade contrária seja demonstrada Cérebros e folhas Mas é precisamente o contrário que é patente dizem os espíri tos superiores É evidente aos olhos de todos que as inteligências são desiguais Primeiramente não há na natureza dois seres idênticos Observai as folhas que caem dessa árvore Elas vos parecem exata mente parelhas Observai mais de perto para vos dissuadirdes Em meio a esses milhares de folhas não há duas assemelhadas A indivi dualidade é a lei do mundo Como essa lei que se aplica a vegetais não se aplicaria a fortiori a esse ser infinitamente mais elevado na hierarquia vital que é a inteligência humana Logo todas as inteli gências são diferentes Além disso sempre houve sempre haverá e há em toda parte seres desigualmente dotados para as coisas da inte ligência sábios e ignorantes pessoas de espírito e tolos espíritos abertos e cérebros obtusos Sabemos o que se diz a esse respeito a diferença das circunstâncias do meio social a educação Pois bem façamos uma experiência tomemos duas crianças saídas do mesmo meio educadas da mesma maneira Tomemos dois irmãos enviêmolos à mesma escola submetidos aos mesmos exercícios O que veremos Um será mais bem sucedido do que o outro Logo 56 A razão dos iguais existe uma diferença intrínseca E essa diferença devese ao seguinte um dos dois é mais inteligente mais dotado tem mais recursos do que o outro Logo vêse bem que as inteligências são desiguais O que responder a essas evidências Comecemos pelo começo por essas folhas que tanto interessam aos espíritos superiores Nós as reconheceremos tão diferentes quanto eles quiserem Indagaremos ape nas como no entanto se passa da diferença das folhas à desigualdade das inteligências A desigualdade é apenas um gênero da diferença e não é dele que se fala no caso das folhas Uma folha é um ser material enquanto que um espírito é imaterial Como concluir sem paralogis mo das propriedades das folhas às propriedades do espírito É bem verdade que nesse terreno têmse agora rudes adversá rios os fisiologistas As propriedades do espírito dizem os mais radi cais dentre eles são na realidade propriedades do cérebro humano Diferença e desigualdade reinam aí como na configuração de todos os outros órgãos do corpo humano Tanto quanto pesa o cérebro vale a inteligência Sobre a questão se debruçam frenólogos e crani óscopos este aqui dizem tem a bossa do gênio esse outro não tem a bossa dos matemáticos Abandonemos esses protuberantes ao exa me de suas protuberâncias e reconheçamos a seriedade da questão Podese com efeito imaginar um materialismo conseqüente Esse só conheceria cérebros e poderia aplicar a eles tudo que se aplica aos seres materiais Para ele efetivamente as proposições de emancipa ção intelectual não seriam mais do que sonhos de cérebros bizarros afetados por uma forma particular da velha doença do espírito que é conhecida pelo nome de melancolia Nesse caso os espíritos superio res isso é os cérebros superiores de fato comandariam os espíritos inferiores como o homem comanda os animais Se assim o fosse simplesmente ninguém discutiria a desigualdade das inteligências Os cérebros superiores não se dariam ao trabalho inútil de demons trar sua superioridade a cérebros inferiores incapazes por defini ção de compreendêlos Contentarseiam em dominálos E nisso não encontrariam qualquer obstáculo sua superioridade intelectual exercerseia de fato assim como acontece com a superioridade físi ca Não haveria mais necessidade de leis de assembléias e de gover nos na ordem política tanto quanto não haveria mais necessidade de ensino de explicações e de academias na ordem intelectual 57 COIEÇAO EDUCAAO EEERIfNCIA E SENTIDO Mas tal não é o caso Temos governos e leis Temos espíritos superiores que buscam instruir e convencer os espíritos inferiores Mais estranho ainda os apóstolos da desigualdade das inteligências em sua imensa maioria não seguem os fisiologistas e fazem pouco dos cranióscopos A superioridade de que se vangloriam não se mede segundo eles por esses instrumentos O materialismo seria uma ex plicação cômoda de sua superioridade mas para eles tratase ainda de uma outra coisa Sua superioridade é espiritual Eles são espiritua listas antes de tudo porque têm uma boa opinião de si mesmos Eles acreditam na alma imaterial e imortal Mas como o que é imaterial seria susceptível de mais e do menos Tal é a contradição dos espíri tos superiores Eles querem uma alma imortal um espírito distinto da matéria e querem inteligências diferentes Mas é a matéria que faz as diferenças Se nos atemos à desigualdade é preciso aceitar as localizações cerebrais se nos atemos à unidade do princípio espiri tual é preciso afirmar que é a mesma inteligência que se aplica em circunstãncias diferentes a objetos materiais diferentes No entanto os espíritos superiores não querem saber nem de uma superioridade que fosse somente material nem de uma espiritualidade que os fizes se iguais aos inferiores Eles reivindicam as diferenças dos materia listas no seio da elevação própria ã imaterialidade Eles maquiam as bossas dos cranióscopos em dons inatos da inteligência Eles bem percebem essa fragilidade tal como sabem que é pre ciso conceder algo aos inferiores ainda que por pura precaução Eis portanto como resolvem as coisas há em todo homem dizem eles uma alma imaterial Ela permite ao niais humilde conhecer as gran des verdades do bem e do mal da consciência e do dever de Deus e do julgamento Quanto a isso somos todos iguais e até concedemos que os mais humildes freqüentemente nos superariam Que isso lhes baste pois e não aspirem ademais a essas capacidades intelectuais que são privilégio muitas vezes pesadamente adquirido daqueles que têm por tarefa cuidar dos interesses gerais da sociedade E que não venham nos dizer que essas diferenças são puramente sociais Basta ver essas duas crianças saídas do mesmo meio formadas pelo mesmo mestre Um é mais bem sucedido o outro fracassa Logo Que seja Logo vejamos essas crianças e vejamos também vossos logo Um é mais bem sucedido do que o outro umfato Se 58 A razõo dos iguais ele é mais bem sucedido dizeis é porque é mais inteligente é aqui que a explicação tornase obscura Haveis mostrado um outrofato que se ria a causa do primeiro Se um fisiologista descobrisse que um dos cérebros era mais estreito ou mais leve do que o outro isso seria um fato Ele poderia legitimamente logar Vós porém não mostrais outro fato Ao dizer Ele é mais inteligente vós simplesmente resumis as idéias que relatam esse fato Vós o haveis nomeado Entretanto onome de um fato não é sua causa e sim no máximo sua metáfora Vós haveis relatado o fato uma primeira vez dizendo Ele é mais bem sucedido e o haveis relatado com outro nome ao afirmar Ele é mais inteligente Contudo não há mais no segundo enunciado do que havia no primeiro Esse homem é mais bem sucedido do que esse outro porque ele tem mais espírito isso significa exatamente ele é mais bem sucedido porque é mais bem sucedido j Esse jovem tem muito mais recursos dizse Eu pergunto o que é ter mais recursos e recomeçais a me relatar a história das duas crianças logo niais recur sos digo a mini mesmo significa em francês o conjunto de fatos que acabo de ouvir mas esta expressão não os explica absolutamente Impossível pois romper o círculo É preciso mostrar a causa da desigualdade ainda que isso signifique ter que tomála empresta da dos protuberantes ou limitarse a uma tautologia A desigualdade das inteligências explica a desigualdade das manifestações intelec tuais como a virtus dormitiva explica os efeitos do ópio Um animal atento Sabemos que uma justificação da igualdade das inteligências seria igualmente tautológica Seguiremos portanto um outro cami nho só falaremos daquilo que vemos nomearemos os fatos sem pre tender atribuirlhes uma causa Primeiro fato Vejo que o homem faz coisas que os outros animais não fazem Chamo a esse fato a meu gosto espírito ou inteligência nada explico dou um nome ao que vejo 2 Posso dizer igualmente que o homem é um animal razoável lureFçnrnien nnüarrel ague érnnóére 2 ed Paris 1829 p 228229 IGFdrm p 229 59 COLCUa EDVCACAO ExPfRtNCIA E Semmo Com isso consignarei o fato de que o homem dispõe de uma lingua gem articulada da qual se serve para fazer palavras figuras compara ções a fim de comunicar seu pensamento aos semelhantes Em segun do lugar quando comparo dois homens vejo que nos primeiros momentos da vida eles têm absolutamente a mesma inteligência isto é fazem exatamente as mesmas coisas com o mesmo objetivo com a mesma intenção Digo que esses dois homens têm uma inteligência igual e essa expressão inteligência igual é um signo abreviado de to dos os fatos que constatei ao observar duas crianças em tenra idade Mais tarde verei outros fatos Constatarei que essas duas inte Iigenciasjá não fazem as mesmas coisas não mais obtêm os mesmos resultados Poderei afirmar se quiser que a inteligência de um é mais desenvolvida do que a do outro se estou consciente de que ainda aí estou apenas relatando um novo fato Nada me impede então de fazer uma suposição Não direi que a faculdade de um é inferior ã do outro somente suporei que ela não foi igualmente exercida Nada me concede certeza quanto a isso mas nada me prova o contrário Bastame saber que esta falta de exercício é possível e que muitas ex periências o atestam De modo que deslocarei ligeiramente a tautolo gia não direi que ele é menos bem sucedido porque é menos inteli gente Direi que talvez ele tenha realizado um trabalho menos bom porque trabalhou menos bem que não viu bem porque não olhou bem Direi que ele dedicou a seu trabalho menor atenção Assim fazendo é bem possível que eu não tenha avançado mui to mas já o suficiente para sair do círculo A atenção não é nem uma bossa do cérebro nem uma qualidade oculta E um fato imaterial em seu princípio e material em seus efeitos temos mil e um meios de verificar sua presença sua ausência ou sua maior ou menor intensida de E para isso que tendem todos os exercícios do Método Universal Enfim a desigualdade de atenção é um fenômeno cujas causas possí veis nos são razoavelmente sugeridas pela experiência Sabemos por que crianças pequenas demonstram uma inteligência tão semelhante em sua exploração do mundo e em seu aprendizado da linguagem O instinto e a necessidade os conduzem de forma idêntica Todas têm mais ou menos as mesmas necessidades a serem satisfeitas e todos querem igualmente entrar na sociedade dos humanos na sociedade dos seres falantes E para isso é preciso que a inteligência trabalhe 60 A razão dos iguais sem repouso Esta criança está rodeada de objetos que lhe falam to dos ao mesmo tempo em línguas diferentes é preciso que ela os estu de separadamente e em seu conjunto eles não têm entre si qualquer relação e freqüentemente se contradizem Ela nada pode adivinhar sobre esses idiomas que a natureza fala ao mesmo tempo a seu olho a seu tato a todos os seus sentidos É preciso que esteja sempre repetin do para poder se lembrar de tantos signos absolutamente arbitrários Quanta atenção é necessária para tudo isso Dado esse grande passo a necessidade se faz menos imperiosa a atenção menos constante e a criança se habitua a aprender pelos olhos de outrem As circunstâncias se diversificam e ela desenvolve as capacidades intelectuais que lhe são solicitadas A mesma coisa se passa com os homens do povo É inútil discutir se sua inteligência menor é um efeito da natureza ou da sociedade eles desenvolvem a inteligên cia que suas necessidades e circunstâncias exigem Ali onde a neces sidade cessa a inteligência repousa a menos que uma vontade mais forte se faça ouvir e diga continua vê o que fizeste e o quepodes fazer se aplicares a mesma inteligência que já empregaste investindo em toda coisa a mesma atenção não te deixando distrair em teu caminho Resumamos essas observações e diremos o homem é urna vontade servida por unta inteligência Talvez o fato de vontades desigualmente imperiosas seja suficiente para explicar a desigualda de das performances intelectuais O homem é unta vontade servida por unta inteligência Essa fórmula é herdeira de uma longa história Resumindo o pensamento dos espíritos fortes do século XVIII SaintLambert havia afirmado O homem é unta organização viva servida por uma inteligência A fórmula recendia o materialismo que a inspirava c quando da Res tauração o apóstolo da contrarevolução o Visconde de Bonald a havia estritamente invertido O homem proclamava é unta inteli gência servida por órgãos Mas essa inversão realizava uma restau ração bastante ambígua da inteligência 0 que havia desagradado ao Visconde na fórmula do filósofo não era o fato de que ela deixava muito pouco para a inteligência humana Ele mesmo se preocupava nurser 7wgre matereek 6 ed Paris 1836 p 199 61 COLEÇÃO EDUCACAO EXPERIENCIA E SENTIDO bem pouco com ela O que ao contrário o havia descontentado era o modelo republicano de um rei a serviço da organização coletiva O que ele queria restaurar era a boa ordem hierárquica um rei que co manda e sujeitos que obedecem A inteligênciarainha para ele não era certamente aquela da criança ou do operário tensionado para a apropriação do mundo dos signos era a inteligência divinajá inscri ta nos códigos dados aos homens pela divindade na própria língua que não devia sua origem nem à natureza nem à arte humana mas ao puro dom divino A parte que cabia à vontade humana era a de se submeter a essa inteligênciajá manifestada inscrita nos códigos na linguagem comum das instituições sociais Esse a priori conduzia a um certo paradoxo Para assegurar o triunfo da objetividade social e da objetividade da linguagem sobre a filosofia individualista das Luzes Bonald devia reavaliar as formu lações mais materialistas dessa filosofia Para rejeitar toda anteriori dade do pensamento sobre a linguagem para negar à inteligência qual quer direito à pesquisa da verdade que lhe fosse própria ele deveria se alinhar com aqueles que haviam reduzido as operações do espírito ao puro mecanismo das sensações materiais e dos signos da linguagem e isso até o ponto de zombar daqueles monges do Monte Athos que contemplando o movimento de seu umbigo se acreditavam habitados pela inspiração divina Assim a conaturalidade entre os signos da linguagem e as idéias do entendimento que o século XVIII havia bus cado e que o trabalho dos Ideólogos havia perseguido se via recupera da invertida em proveito de um primado do instituído no âmbito de uma visão teocrática e sociocrática da inteligência O homem escre ve o Visconde pensa sua fala antes de falar seu pensamento Teoria materialista da linguagem que não oculta o pio pensamento que a ani ma Guardiã fiel e perpétua do sagrado legado das verdades fundamen tais da ordem social a sociedade considerada em geral as dá a conhecer a todos os seus filhos à medida em que entram na grande famflia 6 Bonald Recberrhespliornpbignes mr lespremiers objets des connaúvmces morales Pa ris 1818 t I P 67 5 Bonald 1 itanon prmsiire ronsidade dans er premiers temps pads s wales madères de la ration Burin comp Iies Paris 1859 p 1161 Recberrbes pbdosophiques p 105 62 A razão dos iguais Face a esses pensamentos fortes uma mão enraivecida rabis cou em seu exemplar as seguintes linhas Comparese a toda essa tagarelice escandalosa a resposta do oráculo sobre a sábia ignorância de Sócrates Não é a mão de Joseph Jacotot mas a do colega de M de Bonald na Câmara o Cavaleiro Maine de Biran que um pouco adiante derruba em duas linhas todo o edifício do Visconde a ante rioridade dos signos da linguagem nada muda à preeminência do ato intelectual que para cada filho de homem lhes fornece sentido O homem só aprende a falar ligando idéias às palavras que recebe de sua ama Coincidência surpreendente à primeira vista Para come çar vêse mal que pode estar aproximando o antigo lugartenente das guardas de Luís XVI e o antigo capitão dos exércitos do ano I o castelão administrador e o professor da Escola Normal Central o revolucionário exilado e o deputado da Câmara monárquica Na melhor das hipóteses podese cogitar o fato de o primeiro contar vinte anos quando do início da Revolução ter abandonado aos vinte e cinco anos o tumulto parisiense e ter meditado longamente à dis tância sobre o sentido e a virtude que poderia assumir em meio a tantas transformações o velho adágio socrático Jacotot o entende à maneira dos moralistas Maine de Biran como os metafísicos Ainda assim eles conservam uma visão comum que sustenta a mesma afir mação do primado do pensamento sobre os signos da linguagem uma mesma avaliação da tradição analítica e ideológica no seio da qual um e outro formaram o pensamento Não é mais na transparên cia recíproca dos signos da linguagem e das idéias do entendimento que se deve buscar o conhecimento de si e o poder da razão O arbi trário da vontade revolucionária e imperial recobriu inteiramente essa terra prometida das línguas bem feitas a que outrora aspirava a razão E a certeza do pensamento é anterior às transparências da lin guagem sejam elas republicanas ou teocráticas Ela se apóia sobre seu ato próprio a tensão do espírito que precede e orienta as combi nações de signos A divindade da época revolucionária e imperial a vontade reencontra sua racionalidade no seio do esforço de cada um sobre si mesmo da autodeterminação do espírito como atividade Maine de Biran Les Recherches philosophiques de M de Bonald in Œarres complète Pans 1939 t XII p 252 63 COLECTO EDUCACÑO ExPERENO E SENTIDO A inteligência é atenção c busca antes de ser combinação de idéias A vontade é potência de se mover de agir segundo movimento pró prio antes de ser instância de escolha Uma vontade servida por uma inteligência Essa mudança fundamental encontrase registrada em nova reviravolta da definição de homem o homem é uma vontade servi da por unta inteligência A vontade é o poder racional a ser desa trelado das querelas dos ideístas e dos coisistas É também nesse sentido que se deve precisar a igualdade cartesiana do cogito Opor seá a esse sujeito pensante que só se conhecia como tal divorcian dose de todo sentido e de todo corpo um novo sujeito pensante que se experimenta na ação que exerce sobre si mesmo tanto quan to sobre os corpos Dessa forma segundo os princípios do Ensino Universal Jacotot fazia sua própria tradução da célebre análise cartesiana do pedaço de cera Eu quero olhar e vejo Quero escu tar e ouço Quero tatear e meu braço se estende passeia pela super fície dos objetos ou penetra em seu interior minha mão se abre se desenvolve se estende se fecha meus dedos se afastam ou se apro ximam para obedecer à minha vontade Nesse ato de tateio só co nheço minha vontade de tatear Essa vontade não é nem meu braço nem minha mão nem meu cérebro nem o tateio Essa vontade sou eu é minha alma é minha potência é minha faculdade Sinto essa vontade ela está presente em mim ela sou eu quanto à maneira como sou obedecido não a sinto não a conheço senão por seus atos Considero a ideificação como um tatear Tenho sensações quando me apraz ordeno a meus sentidos forneceIas Tenho idéias quando quero ordeno a minha inteligência buscáIas tatear A mão e a inteligência são escravos cada uma com suas atribuições O homem é uma vontade servida por uma inteligência t Tenho idéias quando quero Descartes conhecia o poder da von tade sobre o entendimento Porém ele o conhecia justamente como poder do falso como causa de erro a precipitação em afirmar apesar Journnlde Prmauapntion intellerheelle t IV 18361837 p 430431 64 A razõo dos iguais da idéia não ser clara e distinta É preciso dizer ao contrário que é a falta de vontade que faz errar a inteligência O pecado original do espirito não é a precipitação é a distração é a ausência Agir sem vontade ou sem reflexão não produz um ato intelectual O efeito que daí resulta não pode ser classificado entre as produções da inteligên cia nem comparado com elas Na inação não se pode ver nem mais nem menos ação não há nada O idiotismo não é uma faculdade é a ausência ou o sono ou o repouso dessa faculdade O ato da inteligência é ver e comparar o que vê Ela o faz inicialmente segundo o acaso Élhe preciso procurar repetir criar as condições para ver de novo o que ela já viu para ver fatos seme lhantes para ver fatos que poderiam ser a causa do que ela viu Élhe preciso ainda formar palavras frases figuras para dizer aos outros o que viu Em suma por mais que isso incomode aos gênios o modo mais freqüente de exercício da inteligência é a repetição E a repeti ção é enfadonha O primeiro vício é o da preguiça É mais fácil se ausentar ver pela metade dizer o que não se vê dizer o que se acre dita ver Assim se formam frases de ausências os logo que não tradu zem qualquer aventura do espírito Eu não posso é o exemplo des sas frases de ausência Eu não posso não é o nome de nenhum fato Nada se passa no espirito que corresponda a essa asserção A rigor ela não quer dizer nada De forma que a palavra se carrega ou se esvazia de acordo com a vontade que contrai ou relaxa a ação da inteligência A significação é obra de vontade Esse é o segredo do Ensino Universal É também esse o segredo daqueles que são cha mados gênios o trabalho incessante para dobrar o corpo aos hábitos necessários para ordenar à inteligência novas idéias novas maneiras de exprimilas para refazer intencionalmente o que o acaso produziu e transformar circunstâncias infelizes em boas ocasiões de sucesso Isso é verdade para os oradores como para as crianças Eles se formam em assembléias como nós nos formamos na vida Aquele que even tualmente fez rir de si na última sessão podia aprender a fazer rir sempre e quando quisesse se estudasse todas as relações que leva ram a essas vaias que o desconcertaram fechandolhe para sempre a boca Esse foi o início de Demóstenes Ele aprendeu fazendo sem Enseignement nnirersel Droit etphilosophie pnnernsteque Paris 1838 p 278 65 COLEÇÃO EoucAÇÁQ ExaExiNCw e SfNFOO querer que dele se risse como poderia excitar reações contra Esqui ncs Mas Demóstenes não era preguiçoso Ele não podia sêIo Um indivíduo pode tudo o que quiser proclama ainda o Ensino Universal Mas não nos enganemos sobre o que esse querer signifi ca O Ensino Universal não é a chave do sucesso oferecida aos em preendedores pela exploração dos prodigiosos poderes da vontade Nada seria mais contrário ao pensamento da emancipação do que esse reclame de circo E o Mestre se irrita quando os discípulos abrem sua escola sob a insígnia de Quem quer pode A única insígnia que vale é a da igualdade das inteligências O Ensino Universal não é um método de hussardos É bem verdade que os ambiciosos e os conquis tadores lhe fornecem uma comprovação selvagem Sua paixão é uma fonte insaciável de idéias e eles se tornam rapidamente capazes de comandar generais sábios ou financistas cuja ciência ignoram Mas o que nos interessa não é esse efeito teatral O que os ambiciosos ga nham de poder intelectual não se julgando inferiores a ninguém eles tornam a perder considerandose superiores a todos os outros O que nos interessa é a exploração dos poderes de cada homem quando ele se julga igual a todos os outros e julga todos os outros iguais a si Por vontade compreendemos essa volta sobre si do ser racional que se co nhece como capaz de agir Essa fonte de racionalidade essa consciên cia essa estima de si como ser racional em ato que alimenta o movi mento da inteligência O ser racional é antes de tudo um ser que conhece sua potência que jamais se mente a esse respeito O princípio da veracidade Há duas mentiras fundamentais a daquele que proclama eu digo a verdade e a daquele que afirma eu não posso dizer O ser razoável que se volta sobre si mesmo sabe o nada dessas duas proposições O fato primeiro é a impossibilidade de se ignorar a si próprio O indiví duo não pode mentir a si próprio somente pode se esquecer Eu não posso d assim uma frase de esquecimento de si de que o indivíduo razoável abdicou Nenhum gênio maligno pode se interpor entre a Furegnemenl tmiverarL Langue mate elk 6 ed Paris 1836 p 330 66 A razão dos iguais consciência e seu ato Mas é preciso também inverter o adágio so crático Ninguém é voluntariamente mau proclamava ele Diremos o inverso Toda asneira vem do vício Ninguém erra senão por maldade isto é por preguiça por desejo de não mais ouvir falar do que um ser razoável deve a si mesmo O princípio do mal não está em uma consciência errada sobre o bem que é o fim da ação Está na infidelidade a si Conhecete a ti mesmo não quer mais dizer à ma neira platônica saiba onde está teu bem Mas sim volta a ti ao que em ti não pode te enganar Tua impotência não é mais do que pregui ça em caminhar Tua humildade não é senão temor orgulhoso de tro peçar ante o olhar dos outros Tropeçar não é nada o mal está em divagar sair de seu caminho não mais prestar atenção ao que se diz esquecerse do que se é Segue portanto teu caminho O princípio de veracidade está no coração da experiência de emancipação Ele não é a chave de nenhuma ciência senão a relação privilegiada de cada um com a verdade aquela quc o coloca em seu caminho em sua órbita de pesquisador É o fundamento moral do po der de conhecer E essa fundação ética do poder de conhecer é um pensamento da época um fruto da meditação sobre a experiência re volucionária e imperial No entanto a maior parte dos pensadores da época pensa diferentemente de Jacotot Para eles a verdade que rege o assentimento intelectual se identifica ao laço que une os homens A verdade é o que os congraça o erro é rompimento e solidão A socie dade sua instituição o objetivo que persegue eis o que define o que rer com o qual o indivíduo deve se identificar para atingir uma percep ção justa Assim pensam Bonald o teocrata e em seguida Buchez o socialista ou Auguste Comte o positivista Menos severos são os eclé ticos com seu senso comum e suas grandes verdades escritas no cora ção de cada um filósofo ou sapateiro Contudo são todos homens de agregação E Jacotot rompe com isso Que se diga se assim se deseja que a verdade congraça Porém o que congraça homens o que os une é a nãoagregação Afugentemos a representação desse cimento social que petrifica as cabeças pensantes do período pósrevolucionário Os homens se unem porque são homens isto é seres distantes A lingua gem não os refine Ao contrário é sua arbitrariedade que forçandoos 8rurourrurut unions e I nnçim iuritrrne0e 6 ed Paris 1836 p 33 67 CoOOCO EDUCACAO EXPERIENCIA SENTIDO a traduzir os põe em comunicação de esforços mas também em comunidade de inteligência o homem é um ser que sabe muito bem quando aquele que fala não sabe o que diz A verdade não agrega absolutamente os homens Ela não se dá a eles Ela existe independente de nós e não se submete ao despeda çamento de nossas frases A verdade existe por si mesma ela é o que é e não o que é dito Dizer depende do homem mas a verdade não depende Mas nem por isso ela nos é estrangeira e não esta mos exilados de seu país A experiência de veracidade nos liga a seu núcleo ausente nos faz dar voltas em torno de seu centro Podemos primeiramente ver e mostrar verdades Assim ensinei o que igno ro é uma verdade É o nome de um fato que existiu que pode se reproduzir Quanto à razão desse fato ela é por hora uma opinião e isso pode durar talvez para sempre Mas com essa opinião damos voltas em torno da verdade de frases em frases O essencial é não mentir não dizer que se viu quando se manteve os olhos fechados não contar senão o que se viu não acreditar que se deu uma explica ção quando tudo o que se fez foi nomear Assim cada um de nós descreve em tomo da verdade sua pará bola Não há duas órbitas semelhantes E é por isso que os explicado res põem nossa revolução em perigo Essas órbitas das concepções humanitárias se cruzam raramente e não têm senão alguns pontos em comum As linhas mistas que descrevem jamais coincidem sem uma perturbação que suspende a liberdade e por conseguinte o uso da inteligência que dela deriva O aluno sente que ele jamais teria seguido o caminho em que acaba de ser precipitado e se esquece de que há mil sendas abertas para a vontade nos espaços intelectuais Essa coinci dência de órbitas é o que denominamos embrutecimento Compreen demos porque o embrutecimento é tão mais profundo quanto essa co incidência se faz mais sutil menos perceptível E por isso queo método socrático aparentemente tão próximo do Ensino Universal representa a forma mais temível de embrutecimento O método socrático da inter rogação que pretende conduzir o aluno a seu próprio saber é de fato journal de emancipation inlectuee t IV 18361837 p 187 EnseiGnrment miersE1 Droit elphilosophiepanécasdque Paris 1838 p 42 A raid dos iguais aquele de um amestrador de cavalos Ele comanda as evoluções as marchas e contramarchas De sua parte conserva o repouso e a dig nidade do comando durante o manejo do espirito que está dirigindo De desvios em desvios o espirito chega a um fim que não havia sequer entrevisto quando da partida Ele se espanta se volta percebe seu guia o espanto se transforma em admiração e essa admiração o embrutece O aluno sente que sozinho e abandonado a si mesmo ele não teria seguido essa rota 1 Ninguém tem relação com a verdade se não está em sua órbita própria Que ninguém se gabe no entanto dessa singularidade pro clamando Amicus Plato sed reagis arnica veritas Essa é uma frase teatral Aristóteles que a profere não faz diferente de Platão Como ele relata suas opiniões narra suas aventuras intelectuais colhe em seu caminho algumas verdades Quanto à verdade ela não confia em filósofos que se dizem seus amigos ela só é amiga de si mesma A razão e a língua A verdade não se diz Ela é una e a linguagem despedaça ela é necessária e as línguas são arbitrárias Antes mesmo da proclamação do Ensino Universal essa tese da arbitrariedade das Ifnguas fez do ensino de Jacotot objeto de escândalo Sua aula inaugural em Louvain havia tomado por tema essa questão herdada do século XVIII de Diderot e do abade Batteux seria natural a construção direta que dispõe o sujeito antes do verbo e do atributo Teriam os escrito res franceses direito de considerar essa construção como marca da superioridade intelectual de sua Ifngua Ele tomava o partido da negativa Com Diderot julgava a ordem inversa tão natural ou mais do que a dita ordem natural acreditava a linguagem do senti mento anterior à da análise Mas sobretudo recusava a própria idéia de uma ordem natural e as hierarquias que poderia induzir Todas as línguas eram igualmente arbitrárias Não havia lingua da inteligência língua mais universal do que as outras 1 Enseignement naieerL Droll rt phìlosophie panécastigne Paris 1838 p 41 68 69 COLEDAO EDUUAO ExvEFItrvCA E SENTIDO A réplica não tardaria No número seguinte do Observateur Belge revista literária de Bruxelas um jovem filósofo Van Meenen denunciava essa tese corno uma caução teórica fornecida à oligarquia Cinco anos mais tarde após a publicação da Língua materna era a vez de umjovemjurista próximo a Van Meenen que havia acompanhado e mesmo publicado os cursos de Jacotot inflamarse Em seu Essai sur le livre de Monsieur Jacotot Jean Sylvain Van de Weyer admoesta o professor de francês que juntamente com Bacon Hobbes Locke Harris Condillac Dmnarsais Rousseau Destutt de Tracy e Bonald ousa ainda sustentar que o pensamento é anterior à linguagem A posição desses jovens e impetuosos contraditores é fácil de compreender Eles representam a jovem Bélgica patriota liberal e hancófone em estado de insurreição intelectual contra a dominação holandesa Destruir a hierarquia das línguas e a universalidade da língua francesa era para eles dar vantagem à língua da oligarquia holandesa língua atrasada da fração menos civilizada mas também lingua secreta do poder Seguindoos oCourrierde la Meuse acusa rá o método Jacotot de chegar no momento certo para impor sem maiores dificuldades a língua e a civilizaçãoentre aspas holande sas Mas as coisas foram ainda mais profundas Os jovens defensores da identidade belga e da pátria intelectual francesa haviam lido eles também as Recherches philosophiques do Visconde de Bonald Da obra haviam retirado uma idéia fundamental a analogia entre as leis da linguagem as leis da sociedade e as leis do pensamento sua uni dade de principio com a lei divina Eles sem dúvida se afastavam quanto ao resto da mensagem filosófica e política do Visconde Eles queriam unia monarquia nacional e constitucional e pretendiam que o espirito encontrasse livremente em si as grandes verdades metafísi cas morais e sociais inscritas pela divindade no coração de cada um Seu líder filosófico era um jovem professor de Paris chamado Vic tor Cousin Na tese da arbitrariedade das línguas eles viam a irracio nalidade introduzirse no cerne da comunicação nesse caminho da descoberta do verdadeiro em que a meditação do filósofo deveria comunica rse cont o senso comum do homem do povo No paradoxo do leitor de Louvain eles viam perpetuado o vício desses filósofos que freqüentemente confundiram cm seus ataques sob o nome de preconceitos tanto os erros funestos cujo berço haviam descoberto 70 A razão dos iguais bem próximo a eles quanto as verdades fundamentais a que impu tavam a mesma origem porque a eles a verdadeira permanecia ocul tada cm profundezas inexpugnáveis ao bisturi da argumentação e ao microscópio de uma verbosa metafísica onde há muito haviam desaprendido a descer se deixando guiar unicamente pela claridade de um senso reto e de um coração simples iS O fato é Jacotot não deseja reaprender esse tipo de descida Ele não escuta as frases em cascatas com esse senso reto e esse cora ção simples Ele nada quer com essa liberdade medrosa que se ga rante no acordo das leis do pensamento com as leis da linguagem e aquelas da sociedade A liberdade não se garante por nenhuma har monia preestabelecida Ela se toma ela se conquista e se perde so mente pelo esforço de cada um E não existe razão assegurada porjá estar escrita nas construções da língua e das leis da cidade As leis da lingua nada têm a ver com a razão e as leis da cidade têm tudo a ver com a desrazão Se há lei divina é o pensamento em si mesmo em sua veracidade sustentada que se faz a única testemunha O homem não pensaporque fala isso seria precisamente submeter o pensa mento à ordem material existente o homem pensa porque existe Resta que o pensamento deve se dizer se manifestar por obras se comunicar a outros seres pensantes Ele deve fazêlo através de línguas de significações arbitrárias Mas nada justifica que se veja nisso um obstáculo para a comunicação Somente os preguiçosos tre meriam frente à idéia desse arbitrário vendoo como o túmulo da razão Ao contrário é porque não há código dado pela divindade lingua da língua que a inteligência humana emprega toda a sua arte em se fazer entender e em entender o que a inteligência vizinha lhe significa O pensamento não se dizem verdade ele se exprime em veracidade Ele se divide ele se relata ele se traduz por um outro que fará para si um outro relato uma outra tradução com uma úni ca condição a vontade de comunicar a vontade de adivinhar o que o outro pensou e que nada afora seu relato garante que nenhum dicio nário universal explicacomo deve ser entendido A vontade adivinha a vontade É nesse esforço comum que toma sentido a definição de homem como una vontade servida por uma inteligência Penso e 13 Ybterroenr beige 1818 t XVI n 426 p 142143 71 COLEÇÃO EDUCAÇÃO Ex ERIENOA E SENADO quero comunicar meu pensamento imediatamente minha inteligên cia emprega com arte signos quaisquer os combina os compõe os analisa e eis uma expressão uma imagem um fato material que será desde então para mim o retrato de um pensamento isto é de um fato imaterial A cada vez que contemplálo este retrato me recordará meu pensamento sobre o qual então pensarei Posso as sim falar a mim mesmo quando quiser No entanto um dia eu me encontro face a outro homem eu repito em sua presença meus gestos e palavras e ele se assim o quiser vai me adivinhar Ora não se pode convir com palavras a significação de palavras Um quer falar o outro quer adivinhar eis tudo Desse concurso de vontades resulta um pensamento visível para dois homens ao mes mo tempo A princípio ele existe imaterialmente para alguém que em seguida o diz a si mesmo dandolhe uma forma para seu ouvi do ou para seus olhos e que enfim deseja que essa forma que esse ser material reproduza para um outro homem o mesmo pensa mento primitivo Essas criações ou se assim se prefere essas meta morfoses são o efeito de duas vontades que se ajudam entre si As sim o pensamento tornase palavra depois esta palavra ou vocábulo volta a ser pensamento uma idéia se faz matéria e essa matéria se faz idéia e tudo isso é o efeito da vontade Os pensamentos voam de um espírito a outro nas asas da palavra Cada vocábulo é enviado com a intenção de carregar um só pensamento mas apesar disso essa pala vra esse vocábulo essa larva se fecunda pela vontade do ouvinte e o representante de uma mônada tornase o centro de uma esfera de idéias que irradiam em todos os sentidos de forma que o falante para além do que quis dizer disse realmente uma infinidade de coi sas ele formou o corpo de uma idéia com tinta e essa matéria desti nada a envolver misteriosamente um só ser imaterial contém real mente um mundo desses seres desses pensamentos Talvez agora se compreenda melhor a razão dos prodígios do Ensino Universal os recursos que põe em ação são simplesmente os de toda situação de comunicação entre dois seres racionais A relação de dois ignorantes com o livro que eles não saben ler somente radica liza esse esforço de todos os instantes para traduzir e contratraduzir 23nseigarment universe Droitetphilosophiepanéantique Paris 1838 p 1113 72 A razão dos iguais os pensamentos em palavras e as palavras em pensamentos Essa von tade que preside à operação não é uma receita de taumaturgo Eta é esse desejo de compreender e de se fazer compreender sem o qual nenhum homem jamais daria sentido às materialidades da linguagem É preciso entendercompreenderem seu verdadeiro sentido não o der risório poder de suspender os véus das coisas mas a potência de tradu ção que confronta um falante a outro falante É essa mesma potência que permite ao ignorante arrancar o segredo do livro mudo Não há contrariamente ao ensinamento do Fedro dois tipos de discursos um dos quais privado do poder de se socorrer a si próprio e condena do a sempre dizer estupidamente a mesma coisa Toda palavra dita ou escrita é uma tradução que só ganha seu sentido na contratradução na invenção das causas possíveis para o som que ouviu ou para o traço escrito vontade de adivinhar que se apega a todos os indícios para saber o que tem a lhe dizer um animal racional que a considera como a alma de um outro animal racional Talvez agora se compreenda melhor igualmente o escândalo que faz de relatar e de adivinhar as duas operações mestras da inteli gência Sem dúvida os dizedores de verdade e os espíritos superiores conhecem outras maneiras de transformar o espírito em matéria e a matéria em espírito Compreendese que eles as calem aos profa nos Para esses últimos como para todo ser racional resta assim esse movimento da palavra que é ao mesmo tempo distância conhe cida e sustentada em relação à verdade e consciência de humanidade desejosa de comunicarse com outras e de verificar sua similitude com elas O homem é condenado a sentir e se calar ou se quer falar a falar indefinidamente pois ele sempre tem o que retificar para mais ou para menos naquilo que acaba de dizer porque o que quer que se diga é preciso apressarse em acrescentar não é isso e como a retificação não é mais plena do que o primeiro dito temse nesse fluxo e refluxo um meio perpétuo de improvisação Improvisar é como se sabe um dos exercícios canônicos do Ensino Universal Mas é antes ainda o exercício da virtude primeira de nossa inteligência a virtude poética A impossibilidade que é a nossa de dizer a verdade mesmo quando a sentimos nos faz falar Enseignement universe Droit et philosophiepanérartique Paris 1838 p 231 73 COLEÇÃO EUCnCAO ExEExiEnCw E 5EN77o como poetas narrar as aventuras de nosso espírito c verificar se são compreendidas por outros aventureiros comunicar nosso sentimen to e vêlo partilhado por outros seres sencientes A improvisação é o exercício pelo qual o ser humano se conhece e se confirma em sua natureza de ser razoável isto é de animal que faz palavras figuras comparações para contar o que pensa a seus semelhantes A virtu de de nossa inteligência está menos em saber do que em fazer Sa ber não é nada fazer é tudo Mas esse fazer é fundamentalmente ato de comunicação E portanto falar é a melhor prova da capaci dade de fazer o que quer que seja No ato de palavra o homem não transmite seu saber ele poetiza traduz e convida os outros a fazer a mesma coisa Ele se comunica como artesão alguém que maneja as palavras como instrumentos O homem se comunica com o homem por meio de obras de sua mão tanto quanto por palavras de seu discur so Quando o homem age sobre a matéria as aventuras desse corpo tornamse a história das aventuras de seu espírito E a emancipação do artesão é antes de mais nada a retomada dessa história a consciên cia de que sua atividade material é da natureza do discurso Ele se comu nica comopoeta um ser que crê que seu pensamento é comunicável sua emoção partilhável Por isso o exercício da palavra e a concepção de qualquer obra como discurso são um prelúdio para toda aprendizagem na lógica do Ensino Universal É preciso que o artesãofale de suas obras para se emancipar é preciso que o aluno fale da arte que quer aprender Falar das obras dos homens é o meio de conhecer a arte humana Eu também sou pintor Daí o estranho método pelo qual o Fundador entre outras loucu ras fez aprender o desenho e a pintura Primeiro ele pede ao aluno para falar sobre o que vai representar Por exemplo um desenho a ser copiado Seria perigoso dar à criança explicações sobre as medidas Eurrtwemrnt uuìreixrl a Insigne 3 ed Pa 1830 p 163 16iAem p 314 Dun rpGilmopGie pmiérnr6gne p 91 Emrióneiurni universe Mzrigae 3 ed Paris 1830 p 347 A razáo dos iguais que deve tomar antes de começar sua obra Sabese porque o risco é que com isso a criança se sinta incapaz Partirseá portanto da vonta de que a criança tem de imitar Mas essa vontade será verificada Al guns dias antes de colocar um lápis em suas mãos serlheá oferecido um desenho para que observe e serlheá pedido que dê conta do que observou Ela talvez diga à princípio poucas coisas do gênero Essa cabeça é bonita Mas o exercício será repetido a mesma cabeça lhe será reapresentada sendolhe solicitado que observe ainda e que de novo fale mesmo que seja para repetir o que já disse Assim ela se tornará mais atenta mais consciente de sua capacidade mais capaz de imitar Nós sabemos a razão desse efeito que é completamente dife rente da memorização visual e do adestramento gestual O que a crian ça verificou por meio desse exercício é que a pintura é uma linguagem que o desenho que lhe é dado a imitar lhe fala Mais tarde ela será colocada diante de um quadro e lhe será solicitado que improvise acer ca da unidade de sentimento presente por exemplo nessa pintura de Poussin que representa o enterro de Fócion Os especialistas sem dú vida se indignarão como pretender saber que é isso que Poussin quis colocarem seu quadro O que esse discurso hipotético tem a ver com a arte pictural de Poussin e com aquela que o aluno deve adquirir Responderseá que não se pretende saber o que Poussain quis fazer o exercício consiste apenas em imaginar o que ele pode ter querido fazer Verificase dessa forma que todo saber fazer é um querer dizer e que essequerer dizer se dirige a todo ser razoável Em suma verificase que o ut poesis pictura que os artistas do Renasci mento haviam reivindicado invertendo o adágio de Horácio não é o saber reservado unicamente aos artistas a pintura como a escultura a gravura e qualquer outra arte é uma língua que pode ser compreendida e falada por qualquer um que tenha inteligência de sua língua Em matéria de arte como se sabe eu não posso se traduz habitualmente por isso não nie diz nada A verificação da unidade de sentimento isto é do querer dizer da obra será assim meio de emancipação para aquele que não sabe pintar o exato equivalente da verificação no que respeita ao livro da igualdade de inteligências Decerto o que se pretende não é longe disso fazer obras de arte Os visitantes que apreciam as composições literárias dos alunos de Jacotot freqüentemente torcem o nariz diante de seus desenhos e 74 75 COLECAO EDuCACAO EPEPIFNCIA E Ervnoo pinturas Não se trata de formar grandes pintores mas homens eman cipados capazes de dizer eu também sou pintor fórmula em que não entra qualquer orgulho mas bem ao contrário o justo sentimento do poder de todo ser razoável Não há orgulho em dizer em voz alta Eu também sou pintor O orgulho consiste em dizer baixinho sobre os outros Vocês também não são pintores 2 E eu também sou pintor significa eu também tenho uma alma sentimentos a comunicar a meus semelhantes Método do Ensino Universal que é idêntico à sua moral Dizse no Ensino Universal que todo homem que tem alma nasceu com a alma Acreditase no Ensino Universal que o homem sente prazer e pena e que só incumbe a ele saber quando como e por que concurso de circunstâncias experimentou essa pena ou esse prazer Mais ainda o homem sabe que há outros seres que a ele se asseme lham e aos quais poderá comunicar os sentimentos que experimenta desde que os situe nas circunstâncias às quais deve suas penas e seus prazeres Assim que ele conhece o que o comoveu ele pode se exerci tar em comover os outros se ele estuda a escolha e o emprego dos meios de comunicação É uma língua que ele deve aprender 23 A lição dos poetas É preciso aprender Todos os homens têm em comum essa capacidade de experimentar o prazer e a pena Mas essa similitude não é para cada um senão uma virtualidade a ser verificada E ela só pode sêlo através do longo caminho do dissemelhante Devo verificar a razão de meu sentimento mas não posso fazêlo aventu randoos nessa floresta de signos que por si sós não querem dizer nada não mantêm qualquer acordo O que se concebe bem repita se com Boileau se enuncia claramente Essa frase não quer dizer nada Como todas as frases que deslizam subrepticiamente do pen samento para a matéria ela não exprime nenhuma aventura intelec tual Bem conceber é próprio do homem razoável Bem enunciar é uma obra de artesão que supõe o exercício dos instrumentos da Enseignement minuet Lingue maternelle 6 ed Paris 1836 p 149 Enseignement universel Mutique 3 ed Paris 1830 p 322 76 A razão dos iguais língua É bem verdade que o homem razoável tudo pode fazer Mas ele deve aprender a língua própria a cada uma das coisas que quer fazer sapato máquina ou poema Consideremos por exemplo essa terna mãe que vê seu filho voltar de uma longa guerra Ela experi menta uma comoção que não lhe permite falar Mas esses longos abraços esses enleios de um amor que parece temer uma nova sepa ração esses olhos onde a alegria brilha em meio a lágrimas essa boca que sorri para servir de intérprete para a equívoca linguagem do choro esses beijos esses olhares essa atitude esses suspiros mesmo esse silêncio 4 em resumo toda essa improvisação não é muito mais eloqüente do que os poemas Sentis a emoção Experi mentai entretanto comunicála é preciso transmitir a instantaneida de dessas idéias e desses sentimentos que se contradizem e se nuan çam até o infinito fazêlos viajar no maqui de palavras e frases E isso não se inventa Pois nesse caso seria preciso supor um tertius entre a individualidade desse pensamento e a língua comum O que i mplicaria em uma outra língua mas como seu inventor seria enten dido É preciso aprender buscar nos livros os instrumentos dessa ex pressão Decerto que não nos livros dos gramáticos eles ignoram com pletamente essa viagem E não no livro dos oradores eles não buscam se fazer adivinhar eles querem se fazer escutar Eles nada querem dizer eles querem comandar ligar as inteligências submeter as vonta des forçar a ação É preciso aprender com aqueles que trabalharam o abismo entre o sentimento e a expressão entre a linguagem muda da emoção e o arbitrário da língua com os que tentaram fazer escutar o diálogo mudo da alma com ela mesma que comprometeram todo o crédito de sua palavra no desafio da similitude dos espíritos Aprendamos portanto com esses poetas decorados com o título de gênios São eles que nos revelarão o segredo dessa palavra impo nente O segredo do gênio é o do Ensino Universal aprender repetir imitar traduzir decompor recompor No século XIX é bem verdade certos gênios começam a invocar uma inspiração mais do que humana Mas os clássicos não partilham do alimento desse tipo de gênios Raci ne não tem vergonha de ser o que é um miserável Ele aprende Eurípi des e Virgílio de cor cono um papagaio Ele procura traduzilos Enseionement rmárrrel agar maternelle 6 ed Paris 1836 p 281 77 COLEÇÃO EUVCACAO EReRINCUe Servnoo decompõe suas expressões as recompõe de outra maneira Ele sabe que ser poeta é traduzir duas vezes traduzir em versos franceses a dor de uma mãe a cólera de uma rainha ou a fúria de uma amante é também traduzir a tradução que Euripides ou Virgílio fizeram Do Hipólito de Euripides é preciso traduzir não somente Fedro o que era de se esperar mas também Atalie e Josabeth Pois Racine não se ilude sobre o que faz Não acredita conhecer melhor os sentimen tos humanos do que seus ouvintes Se Racine conhecesse melhor do que eu o coração de uma mãe ele perderia seu tempo tentando me dizer o que leu eu jamais encontraria sua observação em minhas lembranças e não ficaria comovido Esse grande poeta supõe exata mente o contrário ele só trabalha só se esforça tanto apaga cada palavra modifica cada expressão porque espera que seus leitores compreenderão tudo precisamente como ele próprio compreende 2 Como todo criador Racine aplica instintivamente o Método isto é a moral do Ensino Universal Ele sabe que não existem homens de grandes pensamentos somente homens de grandes expressões Ele sabe que todo o poder do poeta se concentra em dois atos a tradução e a contratradução Ele sabe que em certo sentido o poema é sem pre a ausência de um outro poema como poema mudo que a ternura de uma mãe ou a fúria de uma amante improvisam Em poucos raros efeitos o primeiro se aproxima do segundo até o ponto de imitálo como em Corneille em uma ou três sílabas Eu ou ainda Que morra De resto está suspenso pela contratradução que fará o ou vinte É essa contratradução que produzirá a emoção do poema é essa esfera de idéias reluzentes que reanimará as palavras Todo o esforço todo o trabalho do poeta é de suscitar essa aura em torno de cada palavra da expressão É por isso que ele analisa disseca traduz as expressões dos outros que ele apaga c corrige sem cessar as suas Ele se esforça para tudo dizer sabendo que não se pode dizer tudo mas que é essa tensão incondicional do tradutor que abre a possibi lidade de outra tensão de outra vontade a língua não permite dizer tudo e é preciso que eu recorra e meu próprio gênio ao gênio de todos os homens para adivinhar o que Racine quis dizer o que ele A razão dos iguais diria na qualidade de homem o que ele diz quando não fala o que não pode dizer enquanto não é somente poeta 2B Modéstia verdadeira do gênio isto é do artista emancipado ele emprega toda sua potência toda sua arte em nos mostrar seu poe ma como ausência de um outro cujo conhecimento ele nos concede o crédito de possuir tão bem quanto ele próprio Acreditamonos Raci ne e temos razão Essa crença nada tem a ver coin uma pretensão qualquer de ilusionista Ela não implica de nenhuma maneira que nossos versos valem os de Racine nem que o valerão em breve Signi fica para começo que nós entendemos o que Racine tem a nos dizer que seus pensamentos não são absolutamente de espécie diferente dos nossos e que suas expressões se completam apenas pela nossa contra tradução Nós sabemos antes de mais nadapar ele mesmo que somos homens iguais a ele E igualmente por seu intermédio conhecemos a potência da língua que nos faz sabêlo por meio do arbitrário dos sig nos Nossa igualdade com Racine nós a conhecemos como o fruto do trabalho de Racine Seu gênio é de ter realizado sua obra sobre as bases do princípio da igualdade das inteligências de não ter se acredi tado superior àqueles a quem falava de ter inclusive trabalhado para que aqueles que prediziam que ele passaria como o vento Restanos verificar essa igualdade conquistar essa potência por nosso trabalho Isso não significa fazer tragédias iguais àquelas de Racine mas em pregar tanta atenção tanta pesquisa da arte para relatar o que sentimos e dálo a experimentar aos outros por meio do arbitrário da língua ou da resistência de toda matéria à obra de nossas mãos A lição emanci padora do artista oposta termo a termo à lição embrutecedora do pro fessor é a de que cada um de nós é artista na medida em que adota dois procedimentos não se contentar em ser homem de um ofício mas pretender fazer de todo trabalho um meio de expressão não se conten tar em sentir mas buscar partilhálo O artista tem necessidade de igual dade tanto quanto o explicador tem necessidade de desigualdade E ele esboça assim o modelo de uma sociedade razoável onde mesmo aquilo que é exterior à razão a matéria os signos da linguagem é transpassado pela vontade razoável a de relatar e de fazer experi mentar aos outros aquilo pelo que se é semelhante a eles Enseignement nniuerse lmqur maternelle 6 ed Paris 1836 p 284 78 arment universel ILggne maternele 6 ed Paris 1836 p 282 79 COLECAO EDUCAçJO EXPERIENCA E SENTIDO A comunidade dos iguais Podese assim sonhar com uma sociedade de emancipados que seria uma sociedade de artistas Tal sociedade repudiaria a di visão entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem entre os que possuem e os que não possuem a propriedade da inteligência Ela não conheceria senão espíritos ativos homens que fazem que falam do que fazem e transformam assim todas as suas obras em meios de assinalar a humanidade que neles há como nos demais Tais homens saberiam que ninguém nasce com mais inteligência do que seu vizinho que a superioridade que alguém manifesta é so mente o fruto de uma aplicação tão encarniçada ao exercício de manejar as palavras quanto a aplicação de outro a manejar instru mentos que a inferioridade de outrem é a conseqüência de circuns tâncias que não o obrigaram a buscar mais Em suma eles saberiam que a perfeição alcançada por um ou outro em sua arte não é mais do que a aplicação particular do poder comum a todo ser razoável que qualquer um pode experimentar quando se retira para esse es paço íntimo da consciência em que a mentirajá não faz mais senti do Eles saberiam que a dignidade do homem é independente de sua posição que o homem não nasceu para tal ou tal posição par ticular mas para ser feliz em si mesmo independentemente da sor te e que esse reflexo de sentimento que brilha nos olhos de uma esposa de um filho ou de um amigo queridos apresenta para uma alma sensível objetos bastante próprios a satisfazêla Tais homens não perderiam seu tempo criando falanstérios onde as vocações respondessem às paixões ou comunidades de iguais organizações econômicas capazes de distribuir harmoniosa mente as funções e os recursos comuns Para unir o gênero huma no não há melhor laço do que essa inteligência idêntica em todos É ela ajusta medida do semelhante iluminando a doce inclinação do coração que nos leva à ajuda e ao amor recíprocos É ela que fornece ao semelhante os meios de aquilatar a dimensão dos servi ços que pode esperar do semelhante e de preparar por sua vez as A razão dos iguais condições para testemunharlhe seu reconhecimento Mas não fale mos à moda dos utilitaristas O principal serviço que o homem pode esperar do homem referese a essa faculdade de comunicar entre si o prazer e a pena a esperança e o medo para se comove rem reciprocamente Se os homens não tivessem a faculdade uma faculdade igual de se comoverem e de se enternecerem reci procamente eles se tornariam rapidamente estrangeiros uns aos outros eles se dispersariam ao acaso sobre o globo e as sociedades se dissolveriam 1 0 exercício dessa potência é ao mesmo tem po o mais doce de todos os nossos prazeres e a mais imperiosa de todas as nossas necessidades Não nos perguntemos portanto quais seriam as leis desse povo de sábios seus magistrados suas assembléias e tribunais O homem que obedece à razão não tem necessidade de leis nem de magistrados Os estóicos já sabiam disso a virtude que se conhece a si própria é potência para todas as outras Mas sabemos que essa razão não é privilégio dos sábios Os insensatos são os únicos a fazer questão da desigualdade e da dominação a querer ter razão A razão começa ali onde cessam os dis cursos ordenados pelo objetivo de ter razão e onde se reconhece a igual dade não uma igualdade decretada por lei ou pela força nem uma igual dade recebida passivamente mas uma igualdade em ato verificada a cada passo por esses caminhantes que em sua constante atenção a si próprios e em sua infinita revolução em tomo da verdade encontram as frases próprias para se fazerem compreender pelos outros De modo que é preciso inverter as questões dos zombeteiros Como se perguntam eles uma coisa como a igualdade das inteligên cias é pensável E como sua opinião poderia se instalar sem provo car desordem na sociedade É preciso perguntar ao contrário como a inteligência é possível sem a igualdade A inteligência não é po tência de compreensão que se encarregaria ela própria de comparar seu saber a seu objeto Ela é potência de se fazer compreender que passa pela verificação do outro E somente o igual compreende o igual Igualdade e inteligência são termos sinõnimos assim como razão e vontade Essa sinonimia que funda a capacidade intelectual Enseignement universe Langue maternelle 6 ed Pads 1836 p 243 80 Eenteignement nnireaeC Mtuigue 3 ed Paris 1830 p 338 81 COLEÇÃO EDUCACAO EXPERIÊNCIA SENTIDO de cada homem é também aquela que torna uma sociedade em geral possível A igualdade das inteligências é o laço comum do gênero humano a condição necessária e suficiente para que uma socieda de de homens exista Se os homens se considerassem como iguais a constituição estaria logo pronta 2 É verdade que nós não sabemos que os homens são iguais Nós dizemos que eles talvez sejam Essa é a nossa opinião e nós bus camos com aqueles que acreditam nisso como nós verificála Mas nós sabemos que esse talvez é exatamente o que torna uma sociedade de homens possível CAPiTULO QUARTO A sociedade do desprezo rjournal de philosophie panécastique t V 1838 p 265 82 Mas não há sociedade possível Há somente a sociedade que existe Nós nos perdíamos em nossos sonhos eis que batem à nossa porta É o enviado do Ministério da Instrução Pública que vem co municar a M Jacotot o decreto real acerca das condições requeridas para manter uma escola no território do reino É o oficial delegado pela Escola Militar de Delft para pôr ordem nessa bizarra Escola Normal Militar de Louvain É o carteiro trazendo a última publica ção dos Annales Academice Lovaniensis com a oratio de nosso cole ga Franciscus Josephus Dumbeck a investir contra o Método Univer sal novo corruptor da juventude Cum porro educatio universum populum amplectatur cujus virtus primaria posita est in unitatis con centu perversa methodus hanc unitatem solvit civitatemque scindit in partes sibi adversas Absit tamen hic a nostra patria furor Enitendum est studiosis juvenibus ut litera rum et pulchri studio ducti non solum turpem desidiam fugiant ut gravissimum malum sed ut studeant Pudori illi et Modestiae jam antiquitus divinis honoribus cultce Sic tantum optimi erunt civis legum vindices bonarum ar tium doctores divinorum præceptorum interpretes patrite defenso res gentis totius decora Tu quoque haec Audi Regia Majestas Tibi enim civium tuorum eorumque adeo juvenum cura demandata est Officium est sacrum dissipandi ejusmodi magistros tollendi has 83 COLEÇÃO EDUCAÇÃO ExrtaÉNON E SENÜ00 scholas umbraticas Annales Academiaæ Lovaniensis vol IX 18251826 p 216 220 222 O reino dos PaísesBaixos é pequeno mas civilizado como qual quer grande Estado Nele a autoridade pública elege como uma de suas primeiras preocupações a educação das jovens almas e a harmo nia dos corações cidadãos Aí a possibilidade de abrir uma escola não é dada a qualquer um sobretudo não a alguém que não somente não apresenta certificado de capacidade mas ainda orgulhase de ensinar o que ignora excitando os zombeteiros contra mestres submestres rei tores inspetores comissários e ministros que têm uma idéia um pouco mais elevada de seus deveres para com a juventude e a ciência Absit hic a nostra patria furor Digâmolo à nossa maneira Levantando sua ignóbil cabeça o embrutecimento gritame para trás inovador insensato A espécie de que queres me privar está ligada a mim por laços indissolúveis Eu sou aquele que foi que é e que será sobre a Terra enquanto as almas habitarem corpos de argila Hoje mais do que nunca não podes esperar sucesso Eles acreditam estar fazendo progressos e suas opiniões são solidamente estabelecidas sobre esse pivô riome de teus esforços eles não se moverão As leis da gravidade Nós nos perdíamos contemplando a rotação dos espíritos pen santes em torno da verdade Os movimentos da matéria obedecem entretanto a outras leis as da atração e da gravitação Todos os Ainda que a educação envolva a totalidade do potro e que rua primeira virtu resida na harmonia unitária um método pert zoo destrói essa unidade e cinde a sociedade em dois partidos opostos Afugentemos essa loucura de nosso pals Os jovens estudiosos devem se e fmrar não somente guiador pela amor pelo belo e pelar letras para fugir à preguiça como o mal mau grave mar também para se apegarem a esse Pudor a essa Modéstia celebrador desde semprepelaAntigüidade com honras dianas Somente assim serão cidadãos de elite vingado res das leis mestre M virtude intérpretes dos mandamentos divinas defensores da pálio honra de toda uma ram E tu também escuta Real Majestade lair i a ti que jai confiado o mudado de teus sujeitos sobretudo nessa tenra r idade F um dei sagrado aniquilar mestres dessa témpera srprimir essas escolas de trevas Annales Academias lnvanienrì vol IX 18251826 pp 216 220 222 Journal de lemanàpation intellectuelle t III 18351836 p 223 84 A sociedade do desprezo corpos se precipitam estupidamente para o centro Havíamos dito que nada se devia induzir das folhas aos espíritos e da matéria ao imaterial A inteligência não segue as leis da matéria Isso porém só é válido para a inteligência de cada indivíduo tomado separadamen te ela é indivisível sem comunidade sem partilha Ela não pode portanto ser propriedade de nenhum conjunto sem o que ela não mais seria propriedade das partes Logo é preciso concluir que a inteligência está somente nos indivíduos mas que ela não está em sua reunião A inteligência está em cada unidade intelectual a reu nião dessas unidades é necessariamente inerte e sem inteligência Na cooperação de duas moléculas intelectuais que nomeamos ho mens há duas inteligências elas têm a mesma natureza mas não há inteligência única que presida essa reunião Na matéria a gravidade é força única a animar a massa e as moléculas na classe dos seres intelectuais a inteligência somente dirige indivíduos sua reunião está submetida às leis da matéria Havíamos observado indivíduos racionais atravessar camadas de materialidade lingüística para significarem mutuamente seus pen samentos Mas esse comércio só é possível sobre as bases de uma relação inversa que submete a reunião das inteligências às leis de qualquer congregação as leis da matéria Esse é o pivô material do embrutecimento para se religarem entre si as inteligências imateriais devem estar submetidas às leis da matéria A livre revolução de cada inteligência em torno do ausente astro da verdade o vôo distante da livre comunicação sobre as asas da palavra encontramse contraria dos desviados pela gravitação universal em direção ao centro do universo material Tudo se passa como se a inteligência vivesse em um mundo dual E talvez seja necessário conceder algum crédito à hipótese dos maniqueístas eles viam desordem na criação explican doa pelo concurso de duas inteligências Não é só que haja um prin cípio do bem e um princípio do mal É mais profundamente que dois princípios inteligentes não fazem uma criação inteligente Quando o Visconde de Bonald proclama a restauração da inteligência divina ordenadora da linguagem e da sociedade humana alguns homens de progresso são tentados a reabilitar em contraposição as hipóteses dos Mélanges posthumes p 118 85 COLECAO EDUCACAO EXPERIENCIA SENTIDO heresiarcas e dos maniqueístas Eles comparam os poderes da inteli gência dos sábios e inventores aos sofismas e às desordens das assem bléias deliberantes identificando a ação de dois princípios antagôni cos Assim o fazem J Bentham e seu discípulo J Mill testemunhas da loucura das assembléias conservadoras inglesas e J Jacotot testemu nha da loucura das assembléias revolucionárias francesas Não acusemos porém de forma precipitada a divindade au sente nem desculpemos levianamente os autores dessas loucuras Talvez seja preciso simplificar a hipótese a divindade é una a criatura é que é dupla A divindade deu à criatura uma vontade e uma inteligência para responder às necessidades de sua existência Ela as concedeu aos indivíduos não à espécie A espécie não tem necessidade nem de uma nem de outra Ela não precisa cuidar de sua conservação São os indivíduos que a conservam Somente eles pre cisam de uma vontade razoável para guiar livremente a inteligência posta a seu serviço Em troca não existe qualquer razão a esperar do conjunto social Ele existe porque existe eis tudo E ele só pode ser arbitrário Sabemos em que condição ele poderia se fundar na nature za no caso da desigualdade das inteligências Nesse caso como vi mos a ordem social seria natural As leis humanas as leis de conven ção seriam inúteis para conservála A obediência a essas leis não seria mais um dever nem uma virtude derivaria da superioridade da inteligência de cádis e janízaros e esta espécie comandaria pela mes ma razão que o homem reina sobre os animais 4 Bem vemos que não é assim Logo apenas a convenção pode reinar na ordem social Mas seria a convenção necessariamente de sarrazoada Observamos que o arbitrário da língua não consistia em qualquer prova contra a racionalidade da comunicação Poderseia portanto imaginar uma outra hipótese que cada uma das vontades individuais que compõem o gênero humano seja razoável Nesse caso tudo se passaria como se o gênero humano fosse ele próprio razoá vel As vontades se harmonizariam e as assembléias humanas segui riam uma linha reta sem solavancos sem desvios sem aberrações Como conciliar porém uma tal uniformidade com a liberdade de Eenseignenient universe Langue étrangère 2 ed Paris 1829 p 75 86 A sociedade do desprezo vontades individuais que podem cada uma quando melhor lhe apraz usar ou não a razão O momento da razão para um corpúsculo não é o mesmo para os átomos vizinhos Sempre há em cada instante razão irreflexão paixão calma atenção vigília sono repouso caminhada em todos os sentidos logo em um dado instante uma corporação uma nação uma espécie um gênero estão ao mesmo tempo na razão e na desrazão e o resultado não depende em nada da vontade dessa massa Logo é precisamente porque cada homem é livre que uma reunião de homens não o é 5 O Fundador sublinhou os seus logo não é uma verdade in contestável que ele nos apresenta é uma suposição uma aventura de seu espírito que ele está narrando a partir dos fatos que obser vou Já vimos que o espírito a aliança da vontade e da inteligência conhecia duas modalidades fundamentais a atenção e a distração Basta que haja distração que a inteligência se disperse para que seja levada pela gravitação da matéria Eis porque alguns filósofos e teólogos explicam o pecado original como uma simples distra ção Nesse sentido podemos dizer com eles que o mal não é mais do que ausência Mas sabemos também que essa ausência é uma recusa Aquele que se distrai não vê por que razão deveria prestar atenção A distração é de início preguiça desejo de subtrairse ao esforço A própria preguiça não é todavia torpor da carne ela é ato de um espírito que subestima sua própria potência A comuni cação razoável se funda na igualdade entre a estima de si e a estima dos outros Ela favorece a contínua verificação dessa igualdade A preguiça que faz com que as inteligências caiam na gravidade ma terial tem por princípio o desprezo Esse desprezo procura se fazer passar por modéstia eu não posso diz o ignorante que pretende absterse da tarefa de aprender Sabemos por experiência o que essa modéstia significa O desprezo por si é sempre também des prezo pelos outros Eu não posso diz o aluno que não quer sub meter sua improvisação ao julgamento de seus pares Não com preendo vosso método diz o interlocutor não sou competente nada sei sobre o assunto Compreendese rapidamente o que isso quer dizer Isso não é o senso comum pois eu não compreendo Mélanges posthumes p 116 87 COLEÇÃO Eouuco EXPERIENCIA EENXIDO um homem como eu E assim ocorre em todas as idades e em todas as camadas da sociedade Esses seres que se pretendem de safortunados pela natureza não querem mais do que pretextos para se dispensarem do estudo que lhes desagrada do exercício de que não gostam Quereis uma prova Esperai um instante deixai que falem escutai até o fim Não ouvis por detrás da precaução orató ria desse modesto personagem que não tem diz ele espírito poéti co a solidez de julgamento que ele se atribui Que perspicácia a distinguilo Nada lhe escapa e se o deixais livre a metamorfose enfim se opera eis a modéstia transformada em orgulho Os exem plos estão em todas as vilas como em todas as cidades Reconhe cese a superioridade de outrem em um gênero para melhor fazer reconhecer nossa própria em outro gênero e não é difícil ver na continuação de seu discurso que nossa superioridade sempre aca ba por ser a nossos olhos a superioridade superior A paixão da desigualdade Podese portanto atribuir a causa da distração pela qual a inte ligência consente com o destino da matéria a uma só paixão o des prezo a paixão pela desigualdade Não é o amor pela riqueza nem por qualquer bem que perverte a vontade é a necessidade de pensar sob o signo da desigualdade A esse respeito Hobbes fez um poema mais atento do que Rousseau o mal social não vem do primeiro que pensou em dizer Isso me pertence ele vem do primeiro que pen sou em dizer Não és igual a mim A desigualdade não é a conse qüência de nada ela é uma paixão primitiva ou mais exatamente ela não tem outra causa a não ser a igualdade A paixão pela desi gualdade é a vertigem da igualdade a preguiça diante da enorme tarefa que ela requer o medo diante de um ser racional que se respei ta a si próprio É mais fácil se comparar estabelecer a troca social como um comércio de glória e de desprezo em que a cada inferiori dade que se confessa recebese em contrapartida uma superiorida de Assim a igualdade dos seres racionais vacila na desigualdade Enseignement universel Musique 3 ed Paris 1830 p 52 Enseignement universel Langue maternelle 6 ed Paris 1836 p 278 88 A sociedade do desprezo social Para permanecer em nossa metáfora cosmológica diremos que é a vontade da preponderância que submeteu a vontade livre ao sistema material da gravidade que fez com que o espírito caísse no mundo cego da gravitação É a desrazão da desigualdade que faz o indivíduo renunciar a si próprio à incomensurável imaterialidade de sua essência e engendra a agregação como fato e o reino da ficção coletiva O amor da dominação obriga os homens a se protegerem uns dos outros no seio de uma ordem convencional que não pode ser razoável posto que somente é feita da dcsrazão de cada um dessa submissão à lei de outrem que o desejo de lhe ser superior fatalmente acaba por implicar Esse ser de nossa imaginação a que chamamos gênero humano se compõe da loucura de cada um de nós sem parti cipar de nossa sabedoria individual Não acusemos pois a necessidade cega ou o destino desafortu nado da alma presa a um corpo de argila e submetida à divindade ma léfica da matéria Não há nem divindade maléfica nem massa fatal nem mal radical Apenas essa paixão ou essa ficção da desigualdade que desenvolve suas conseqüências Por isso podese descrever a sub missão social de duas maneiras aparentemente contraditórias Podese dizer que a ordem social está submetida a uma necessidade material irrevogável que ela roda como os planetas segundo leis eternas que nenhum indivíduo pode mudar Mas podese igualmente dizer que ela não é mais do que uma ficção E que nenhum gênero espécie corporação tem qualquer realidade Somente os indivíduos são reais somente eles têm uma vontade e uma inteligência a totalidade da or dem que os submete ao gênero humano às leis da sociedade e às diver sas autoridades não é mais do que uma criação da imaginação Estes dois modos de falar acabam por se equivaler é a desrazão de cada um que cria e recria incessantemente essa massa arrasadora essa ficção derrisória à qual cada cidadão deve submeter sua vontade mas da qual também cada homem tem meios de subtrair sua inteligência O que fazemos o que dizemos nos tribunais como nas assembléias na guerra é regido por suposições Tudo é ficção somente a consciên cia e a razão de cada um de nós é invariável O estado de sociedade é aliás fundado nesses princípios Se o homem obedecesse à razão leis Enseuiguement universel Langue maternelle 6 ed Paris 1836 p 91 89 Coleúo EoucnCo EXPERIENCIA E SENTIDO magistrados tudo seria inútil mas as paixões o conduzem ele se re volta e por isso é punido de maneira humilhante Cada um de nós se encontra forçado a buscar em um o apoio contra o outro É evi dente que a partir do momento em que os homens se põem em socie dade para buscar proteção uns contra os outros essa necessidade recíproca anuncia uma alienação da razão que não promete qual quer resultado razoável O que pode a sociedade senão nos acor rentar ao estado infeliz a que nós mesmos nos votamos Assim o mundo social não é apenas o mundo da nãorazão mas o da desrazão isto é de uma atividade da vontade pervertida possuída pela paixão da desigualdade Continuamente os indivíduos ligando se uns aos outros pela comparação reproduzem esta desrazão esse embrutecimento que as instituições codificam e que os explicadores solidificam nos cérebros Essa produção da desrazão é um trabalho no qual os indivíduos empregam tanta arte e tanta inteligência quanto o fariam para a comunicação razoável das obras de seu espírito Sim plesmente esse trabalho é um trabalho de luto A guerra é a lei da ordem social Não imaginemos entretanto sob esse nome de guerra nenhuma fatalidade de forças materiais nenhum desencadeamento de hordas dominadas por instintos bestiais A guerra como qualquer obra humana é antes de tudo ato de palavra Mas essa palavra recusa a aura de idéias irradiantes do contratradutor suscitado por uma outra inteligência ou por um outro discurso A inteligência não mais se ocu pa de adivinhar e de se fazer adivinhar Ela tem por objetivo o silêncio do outro a ausência de réplica a queda dos espíritos na agregação material do consentimento A vontade pervertida não cessa de empregar a inteligência mas sobre a hase de uma distração fundamental Ela habitua a inteligên cia a só ver o que concorre para a preponderância o que serve para anular outra inteligência O universo da desrazão social é feito de vontades servidas por inteligências No entanto cada uma dessas vontades dá por sua missão destruir uma outra vontade impedindo a outra inteligência de ver E sabemos que este resultado não é muito difícil de se obter Basta deixar agir a radical exterioridade da or dem da língua em relação à ordem da razão A vontade razoável 9 Enseignement universel Longue maternelle 6 ed Pans 1836 p 362363 90 A sociedade do desprezo guiada por sua ligação distante com a verdade e por sua vontade de falar a seu semelhante controla essa exterioridade ela a supera pela força da atenção A vontade distraída tendo abandonado a via da igualdade fará uso contrário dessa exterioridade sobre o modo retórico para precipitar a agregação dos espíritos sua queda no universo da atração material A loucura retórica Poder da retórica dessa arte de raciocinar que se esforça em anular a razão Desde que as revoluções da Inglaterra e da França reinstalaram o poder das assembléias deliberantes no centro da vida política espíritos curiosos renovaram a grande interrogação de Pla tão e de Aristóteles sobre esse poder da falsificação que imita o poder da verdade Assim em 1816 o genebrino Étienne Dumont traduziu para o francês o Traité des sophismes parlamentaires de seu amigo Jeremy Bentham Jacotot não menciona essa obra mas sua marca está sensível nos desenvolvimentos da Langue mater nelle consagrados à retórica Como Bentham Jacotot coloca no centro de sua análise a desrazão das assembléias deliberantes O léxico que ele usa para falar do assunto é bastante próximo da quele empregado por Dumont E sua análise da falsa modéstia lem bra o capítulo de Bentham sobre o argumento ad verecundiam 1 Se é a mesma comédia cujas engrenagens um e outro desmontam seu olhar e sua moral diferem contudo radicalmente Bentham polemi za contra as assembléias conservadoras inglesas Ele mostra a devas tação produzida pelo argumento de autoridade que em diferentes 1 A cada vez que se assinala um vício de nossas instituições propondose um remédio levantase imediatamente um grande funcionário que sem discutir a proposição exclama com ar compungido Eu não estou preparado para exa minar a questão confesso minha incapacidade etc Mas eis o sentido escondi do dessas palavras Se um homem como eu bem colocado e dotado de um génio proporcional a essa dignidade confessa sua incapacidade quanto não haveria de presunção quanto nao haveria de loucura de parte daqueles que pretendem ter urna opinião já formada É um método indireto de intimida ção é a arrogáncia sob um ténue véu de modéstia Traité des sophismes paremenlaires trad Regnault Paris 1840 p 84 91 CaIKAO EDVCACAO EPfR1ÈNCIA E SENTIDO roupagens é empregado pelos beneficiários da ordem existente para se opor a qualquer reforma progressista Ele denuncia as alegorias que hipostasiam a ordem instituída as palavras que lançam confor me a oportunidade um véu róseo ou sinistro sob as coisas os sofis mas que servem para assimilar qualquer proposição de reforma ao espectro da anarquia Para ele esses sofismas se explicam pelo jogo de interesses seu sucesso pela fraqueza intelectual das raças parla mentares e pelo estado de servidão em que a autoridade os mantém De forma que os homens desinteressados e formados para a liberda de podem combatêlos eficazmente E Dumont menos impetuoso que seu amigo insiste na esperança razoável que assimila a marcha das instituições morais à das ciências físicas Não haveria em mo ral como em física erros que a filosofia fez desaparecer E pos sível atacar os falsos argumentos até o ponto em que eles não mais ousem se mostrar Não tomo por prova mais do que a doutrina tanto tempo famosa mesmo na Inglaterra sobre odireito divino dos reis e sobre a obediência passiva dos povos Assim é possível confrontar na própria cena política os prin cípios da razão desinteressada com os sofismas do interesse privado Isso supõe a cultura de uma razão que opõe a exatidão de suas deno minações às analogias às metáforas e alegorias que invadiram o cam po da política criando seres a partir de palavras forjando por meio dessas palavras raciocínios absurdos e dessa forma ocultando a ver dade com o véu do preconceito De forma que a expressão figurada de corpo politico produziu um grande número de idéias falsas e bizar ras Uma analogia unicamente fundada em metáforas serviu de base para pretensos argumentos e a poesia invadiu o domínio da razão 2 A essa linguagem figurada cuja figuração concede ao interesse não ra zoável todos os seus disfarces é possível opor uma linguagem verda deira onde as palavras recubram exatamente as idéias Jacotot rejeita tal otimismo Não há linguagem da razão Há so mente um controle da razão sobre a intenção de falar A linguagem poética que se reconhece como tal não contradiz a razão Ao contrário Dumont prefácio de Bentham lactique des assemblées parlementaires Geneve 1816 p XV 2 Ibidem p 6 A sociedade do desprezo ele recomenda a cada sujeito falante não tomar o relato de suas aventu ras de espirito pela voz da verdade Cada sujeito falante é o poeta de si próprio e das coisas A perversão se introduz quando esse poema se dá por outra coisa além do poema quando pretende se impor como verdade e forçar a ação A retórica é uma poesia pervertida Isso quer dizer também que em sociedade não se sai da ficção A metáfora é solidária com a demissão original da vontade O corpo politico é uma ficção mas uma ficção não é uma expressão figurada à qual se poderá opor uma definição exata do conjunto social Há de fato uma lógica dos corpos à qual ninguém pode cones sujeito político se subtrair O homem pode ser dotado de razão o cidadão não pode sêlo Não há retórica razoável não há discurso político razoável A retórica como se disse tem por princípio a guerra Não busca a compreensão mas o aniquilamento da vontade adversa A retórica é uma palavra de revolta contra a condição poética do ser falante Ela fala para fazer calar Tu não falarás mais não pensarás mais tu farás o seguinte tal é seu programa Sua eficácia é regulada por sua própria suspensão A razão ordena que se fale sempre a desrazão retórica não fala senão para fazer advir o momento do silêncio Momento do ato dirseia habitualmente em homenagem àquele que da palavra faz uma ação Mas esse momento é muito pelo contrário o da falta de ato da inteligência ausente da vontade subjugada dos homens submetidos à única lei da gravidade Os sucessos do orador são obra do momento ele suspende um decreto como se assalta uma fortificação A ex tensão dos períodos a ordem literária a elegância todas as qualidades do estilo não se constituem no mérito de semelhantes discursos É uma frase uma palavra por vezes uma entonação um gesto que desperta ram o povo adormecido e levantaram a massa que sempre tende a recair por força de seu próprio peso Enquanto Manlius pode mostrar o Capitólio esse gesto o salvou A cada vez que Fócion podia aproveitar a oportunidade de dizer uma frase Demóstenes era vencido Mirabeau o havia compreendido ele que dirigia os movimentos comandava as pau sas através de frases e palavras respondiaselhe em três pontos ele replicava discutia longamente para mudar pouco a pouco a disposi ção dos espíritos em seguida abandonando abruptamente os hábitos parlamentares ele fechava a discussão com uma só palavra Por mais longo que seja o discurso de um orador não é seu tamanho não são 92 93 COLfCha EDUCAfJFO EPEPIÈNCN E SENTIDO seus desenvolvimentos que lhe concedem a vitória o mais frágil anta gonista oporá períodos a períodos desenvolvimentos a desenvolvi mentos O orador é aquele que triunfa é aquele que pronunciou a pala vra a frase que fez pesar a balança 3 Vêse que essa superioridade se julga a si própria ela é a supe rioridade da gravidade O homem superior que faz pesar a balança será sempre aquele que pressente melhor quando e como ela vai pe sar O que melhor submete os outros é aquele que se submete a si próprio E submetendose à sua própria desrazão ele faz triunfar a desrazão da massa Sócrates já ensinava a Alcibíades como a Cáli cles quem pretende ser mestre do povo é forçado a ser seu escravo Enquanto Alcibíades divertese com a figura simplória de um sapa teiro em sua barraca e glosa sobre a estupidez dessas pessoas o filósofo se contenta em lhe replicar Por que então não vos sentis mais à vontade quando se trata de falar perante essas pessoas Os inferiores superiores Isso funcionava antigamente dirá o espírito superior habituado à grave palavra das assembléias censitárias isso valia para as assem bléias demagógicas compostas pela escumalha que giravam feito catavento de Demóstenes a Esquines de Esquines a Demóstenes Examinemos porém melhor as coisas Essa estupidez que leva o povo ateniense a inclinarse ora por Esquines ora por Demóstenes tem um conteúdo muito preciso O que o faz inclinarse alternativa mente ora para um ora para outro não é sua ignorância ou sua ver satilidade É que cada um sabe em um instante preciso encarnar melhor a estupidez específica do povo ateniense o sentimento de sua evidente superioridade sobre o povo imbecil dos tebanos Em resumo o móvel que faz girar as massas é o mesmo que anima os espíritos superiores o mesmo que faz girar a sociedade sobre si pró pria de geração em geração o sentimento da desigualdade das inte ligências esse sentimento que para distinguir os espíritos superio res os confunde na crença universal Ainda hoje o que permite ao Enseignement universel Langue maternelle 6 ed Paris 1836 p 328329 16Journal de Pémmnrzzsation intellerluede t IV 18361837 p 357 94 A sociedade do desprezo pensador desprezar a inteligência do operário senão o desprezo do operário pelo camponês do camponês por sua mulher de sua mulher pela esposa do vizinho e assim indefinidamente A desrazão social encontra sua fórmula resumida no que se poderia chamar de parado xo dos inferiores superiores cada um se submete àquele que consi dera como seu inferior estando submetido à lei da massa pela pró pria pretensão de se distinguir Não oponhamos pois a essas assembléias demagógicas a sere nidade radiosa de assembléias de notáveis graves e respeitáveis Em toda parte onde homens se agregam sob as bases de sua superioridade eles se sujeitam à lei das massas materiais Uma assembléia oligárqui ca uma reunião de pessoas honradas ou de gente de capacidade obedecerá portanto bem mais provavelmente à estúpida lei da maté ria do que uma assembléia democrática Um senado tem uma condu ta que não pode mudar por si próprio e o orador que o encoraja a manterse no caminho que segue e no sentido da marcha que já empre ende é sempre mais bem sucedido do que todos os outros s Appius Claudius o homem da oposição radical a qualquer reivindicação da plebe foi o orador senatorial por excelência porque compreendeu melhor do que qualquer outro a inflexibilidade do movimento que atraía para sua direção própria as cabeças da elite romana Sua máquina retórica a máquina dos homens superiores engasgou como se sabe uma só vez quando os plebeus se reuniram no Aventino Nesse dia para evitar o desastre foi preciso um louco isso é um homem razoável capaz dessa extravagância impossível e incompreensível para Appius Claudius ir escutar os plebeus supondo que suas bocas emitiam uma língua e não apenas um punhado de ruídos falarlhes supondo que eles tinham inteligência para compreender as palavras dos espíritos superio res em resumo considerálos como seres igualmente razoáveis A parábola do Aventino relembra o paradoxo da ficção desi gualitária a desigualdade social não é concebível possível senão sobre a base da igualdade primeira das inteligências A desigualdade não pode se pensar a ela própria Em vão até Sócrates aconselha a Cálicles que para sair do círculo do mestreescravo ele aprenda a verdadeira igualdade que é proporção de modo a assim entrar no 5 Enseignement universel Iaugue maternelle 6 ed Paris 1836 p 339 95 COLEfAO EUUCAÇAO EXPERIENCIA SfNTIDO círculo daqueles que pensam a justiça a partir da geometria A cada vez que há casta o superior submete sua razão à lei do inferior Uma assembléia de filósofos é um corpo inerte que gira sobre o eixo de sua própria desrazão a desrazão de todos Em vão a sociedade desiguali tária busca se compreender a si própria darse fundamentos naturais E precisamente porque não há qualquer razão natural para a domina ção que a convenção comanda e comanda absolutamente Os que ex plicam a dominação pela superioridade recaem na velha aporia o su perior cessa de sêlo quando cessa de dominar Monsieur le Duc de Lévis acadêmico e Par de França inquietase com as conseqüências sociais do sistema Jacotot se a igualdade das inteligências é proclama da como as mulheres obedecerão a seus maridos e os administrados a seus administradores Não estivera o Senhor Duque distraído como todos os espíritos superiores ele observaria que é seu sistema o da desigualdade das inteligências que é subversivo da ordem social Se a autoridade depende da superioridade intelectual o que acontecerá no dia em que o administrado convencido ele também da desigualdade das inteligências acreditar reconhecer um imbecil na figura de seu prefeito Não lhe será preciso então testar ministros e prefeitos bur gomestres e chefes de gabinete afim de verificar sua superioridade E como assegurarse de quejamais se meterá entre eles um imbecil qual quer cujo defeito reconhecido levará os cidadãos à desobediência Somente os partidários da igualdade das inteligências podem compreender isto se o cádi se faz obedecer por seus escravos o branco pelos negros é porque ele não lhes é nem superior nem inferior em inteligência Se as circunstâncias e as convenções separam e hierarqui zam os homens criando a dominação e forçando à obediência é por que elas são as únicas a poder fazêlo É precisamente porque nós somos todos iguais por natureza que devemos ser todos desiguais pe las circunstâncias A igualdade permanece a única razão da desi gualdade A sociedade só existe pelas distinções e a natureza não apresenta senão igualdades É impossível que a igualdade subsista de fato por muito tempo mas mesmo quando destruída ela permanece ainda a única explicação razoável para as distinções convencionais 16 Enseignement universe Langue nmternelle 6 ed Paris 1836 p 109 Enseignement universe Meesigue 3 ed Paris 1830 p 194195 96 A sociedade do desprezo A igualdade das inteligências ainda faz mais pela desigualdade ela prova que a abolição da ordem existente seria tão pouco razoável quanto essa própria ordem Se me fosse perguntado o que pensais da organização das sociedades humanas Esse espetáculo me parece con trário à natureza responderia eu Nada aí está em seu lugar posto que há lugares diferentes para seres não diferentes De tal modo que quan do se propõe à razão mudar esta ordem ela é obrigada a reconhecer sua insuficiência Ordem por ordem lugares por lugares diferenças por diferenças não há qualquer motivo razoável para a mudança O rei filósofo e o povo soberano Assim a igualdade permanece a única capaz de explicar uma desigualdade que os desigualitários serão sempre impotentes para pensar O homem razoável conhece a razão da desrazão cidadã No entanto ele a reconhece ao mesmo tempo como insuperável Ele é o único a conhecer o círculo da desigualdade Mas ele próprio na condição de cidadão aí está preso Não há senão uma razão ora ela não organizou a ordem social De forma que a felicidade não poderia estar presente Os filósofos sem dúvida têm razão em denunciar aqueles que buscam racionalizar a ordem existente Esta ordem não tem razão Mas eles se iludem perseguindo a idéia de uma ordem social enfim racional São bastante conhecidas duas figu ras extremas e simétricas dessa pretensão o velho sonho platônico do rei filósofo e o sonho moderno da soberania do povo Não resta dúvida de que como qualquer outro homem um rei também pode ser filósofo Mais precisamente na condição de homem ele o é Mas como chefe um rei tem a razão de seus ministros que têm a razão de seus chefes de gabinete que por sua vez têm a razão de todo mundo Ele não depende é bem verdade da razão de seus superiores mas somente da razão dos inferiores O rei filósofo ou o filósofo rei faz parte da sociedade e ela lhe impõe como aos outros suas leis suas superioridades e suas corporações explicadoras 1 bide p 195 Enseignement universe Langue maternelle 6 ed Paris 1836 p 365 97 COLEORO EVCACAO EXPERIÊNCIA E SENTIDO A sociedade do desprezo Por isso mesmo a outra figura do sonho filosófico a soberania do povo não se mostra mais sólida Pois esta soberania que se apre senta como um ideal a realizar ou como um princípio a impor sem pre existiu Ainda ecoam na história os nomes desses reis que perde ram o trono por haver desconsiderado esse fato nenhum deles reina senão pelo peso que lhes atribui a massa Os filósofos se indignam O povo dizem não pode alienar sua soberania Objetarseá que tal vez ele não possa mas que ele sempre o fez desde o princípio dos tempos Os reis não fazem os povos por mais que queiram Mas os povos podem fazer chefes e eles sempre assim quiseram O povo se aliena em seu chefe exatamente da mesma forma como o chefe se aliena em seu povo Essa sujeição recíproca é o próprio princípio da ficção política como alienação original da razão em relação à paixão da desigualdade O paralogismo dos filósofos consiste em imaginar um povo de homens Mas esta é uma expressão contraditória um ser impossível Não há senão povos de cidadãos de homens que aliena ram sua razão à ficção desigualitária Não confundamos essa alienação com uma outra Não estamos afirmando que o cidadão é o homem ideal revestido os despojos do homem real o habitante de um céu político igualitário que recobriria a realidade da desigualdade entre os homens concretos Afirmamos que há igualdade entre os homens isto é entre indivíduos que se vêem somente como seres razoáveis E que é ao contrário o cidadão o habitante da ficção política o ser decaído no país da desigualdade O homem razoável sabe pois que não existe ciência política que não há política da verdade A verdade não decide qualquer con flito da praça pública Ela não fala ao homem senão na solidão de sua consciência Ela se retira assim que explode o conflito entre duas consciências Quem espera reencontrála deve em todo caso saber que ela caminha solitária e sem cortejo Em troca as opiniões políti cas jamais vêm sem um imponente cortejo Fraternidade ou morte dizem elas ou ainda quando chega sua vez Legitimidade ou morte Oligarquia ou morte etc O primeiro termo varia mas o segundo é sempre expresso ou subentendido nas bandeiras nos estandartes das 2 Le Contrat social Journal dephilosophiepa icastique t V 1838 p 62 98 opiniões À direita lêse Soberania de A ou morte À esquerda So berania de B ou morte Nunca falta a morte conheço inclusive fi lantropos que dizem Supressão da pena de morte ou morte 2 A verdade quanto a ela não proclama sanções nunca vem ligada à morte Digâmolo portanto com Pascal sempre se encontrou um meio de conceder a justiça à força mas estáse longe de encontrar aquele de conceder força à justiça Esse projeto é por si só sem sentido Uma força é uma força Pode ser razoável empregála É porém insensato querer tornála razoável Como desrazoar razoavelmente Resta pois ao homem razoável submeterse à loucura cidadã esforçandose para não perder sua razão Os filósofos acreditam ter encontrado o meio a obediência não pode ser passiva dizem eles não pode haver deveres sem direitos Mas isso é falar distraidamen te Não há nada nunca haverá na idéia de dever que implique a idéia de direito Quem se aliena se aliena absolutamente Supor uma con trapartida para isso é um pobre subterfúgio da vaidade sem outro efeito além de racionalizar a alienação tornandoa capaz de melhor enredar aquele que acredita preservar seus direitos O homem razoá vel não se permite essas dissimulações Ele sabe que a ordem social nada tem a lhe oferecer de melhor do que a superioridade dessa or dem sobre a desordem Uma ordem qualquer desde que não possa ser perturbada eis o que são as organizações sociais desde o come ço do mundo 32 O monopólio da violência legítima é ainda o que se encontrou de melhor para limitar a violência deixando à razão os asilos em que ela pode se exercer mais livremente De modo que o homem razoável jamais se considera acima das leis A superioridade que em caso contrário ele se atribuiria o faria cair no destino co mum desses superiores inferiores que constituem a espécie humana e entretêm sua desrazão Ele considera a ordem social como um misté rio situado para além do poder da razão obra de uma razão superior 2 faurrral dephilosophiepanécattique t V 1838 p 211 2 Enseignement universel l ngue étrangère 2 ed Paris 1829 p 123 99 COLEÇÃO EDUCAÇÃO EXPERIÊNCIA E SENDO que determina o sacrifício parcial de sua própria razão Ele se subme terá na qualidade de cidadão ao que a desrazão dos governantes exi ge evitando apenas adotar as razões que ela proclama Mas ele não abdica de sua razão ele apenas a reconduz a seu princípio primeiro A vontade razoável como vimos é antes de qualquer coisa a arte de se vencer a si próprio A razão se conservará fiel controlando seu pró prio sacrifício O homem razoável é virtuoso Ele aliena parcialmente sua razão ao comando da desrazão para manter esse foco de naciona lidade que é a capacidade de se vencer a si próprio Eis como a razão conservará sempre um refúgio inexpugnável no seio da desrazão A desrazão social é a guerra em suas duas faces o campo de batalha e o tribunal O campo de batalha é o verdadeiro retrato da sociedade a implicação exata e integral da opinião que a funda Quando dois homens se encontram eles se tratam polidamente como se acreditassem serem iguais em inteligência mas quando um dos dois está no meio do país do outro já não se fazem mais tantas ceri mônias abusase da força como da razão tudo no intruso denota uma origem bárbara Ele é tratado sem boas maneiras como a um idiota Sua pronúncia faz dobrar de rir a inabilidade dos gestos e tudo nele anuncia a espécie bastarda à qual pertence esse é um povo desa jeitado aquele é leviano e frívolo o outro é grosseiro outro ainda orgulhoso e afetado Em geral cada povo se crê de boa fé superior a outro e basta que as paixões se intrometam eis que a guerra explode matase tanto quanto se pode de uma parte e de outra como se esma gam insetos Mais se mata mais se é glorioso Ése recompensado por cabeça abatida pedese uma medalha por uma aldeia queimada uma grande comenda no caso de uma cidade grande segundo a tarifa e esse tráfico de sangue é chamado de amor à pátria é em nome da pátria que vos lançais como bestas selvagens sobre o povo vizinho e se vos perguntassem o que é a pátria vos mataríeis uns aos outros antes de chegar a um acordo sobre a questão Apesar disso dizem em coro os filósofos e a consciência co mum é preciso distinguir Há guerras injustas guerras de conquista que o delírio de dominação engendra e há guerrasjustas aquelas em que se defende o solo da pátria atacada O antigo artilheiro Joseph Esee nement universe Lampe maternelle ed Paris 1836 p 289290 100 A sociedade do desprezo Jacotot deve sabêlo ele que defendeu em 1792 a pátria em perigo e que em 1815 se opôs com todas as suas forças de parlamentar ao retorno do rei trazido pelos invasores Mas sua experiência lhe per mitiu observar que a moral da coisa era completamente diferente do que parecia no início O defensor da pátria atacada faz como cida dão o que faria como homem Ele não tem que sacrificar sua razão à virtude Pois a razão ordena ao animal razoável fazer o que puder para conservar a qualidade de ser vivo A razão nesses casos se reconcilia com a guerra e o egoísmo com a virtude Não há pois mérito particular em nada disso Em compensação aquele que obe dece às ordens da pátria conquistadora faz se é razoável o meritório sacrifício de sua razão ao mistério da sociedade É preciso maior virtude para guardar sua fortaleza interior e para saber uma vez o dever cumprido voltar à natureza reconverter em virtude do livre exame o domínio de si investido na obediência cidadã Mas para isso a guerra dos exércitos é ainda a menor das pro vações da razão Nessa situação ela se contenta em administrar sua própria suspensão Bastalhe o autodomínio para obedecer à voz da autoridade cuja potência é sempre mais do que suficiente para fa zerse escutar por todos sem qualquer equívoco Bem mais perigosa é a ação nesses lugares em que a autoridade ainda está se estabele cendo em meio a paixões contraditórias nas assembléias em que se delibera sobre a lei nos tribunais em que se julga sobre sua aplica ção Esses lugares apresentam à razão um mesmo mistério diante do qual tudo o que se pode fazer é inclinarse Em meio à confusão das paixões e dos sofismas da desrazão a balança pende a lei faz ouvir sua voz à qual tratarseá de obedecer como a um general Contudo esse mistério exige do homem razoável sua participação Ele conduz a razão não mais somente para o terreno do sacrifício mas para outro que está certo de ser o seu o do raciocínio quando como bem sabe o homem razoável tudo o que interessa é o combate somente preva lecem as leis da guerra O sucesso depende da habilidade e da força do lutador não de sua razão Eis porque pela arma da retórica a paixão reina aí A retórica como se sabe nada tem a ver com a ra zão Mas seria a recíproca verdadeira Não seria a razão de forma geral esse controle de si próprio que permite ao ser que fala reali zar em qualquer domínio uma obra de artista A razão não seria ela 101 CoLEço EDUCACAO EXPERIÉNCA e SENTIDO própria se não facultasse o poder de falar na assembléia como em todo lugar A razão é o poder de aprender todas as línguas Ela pode portanto aprender a língua da assembléia e do tribunal Ela pode aprender a praticar a desrazão É preciso pois tomar o partido de Aristóteles contra Platão é vergonhoso para um homem razoável se deixar abater no tribu nal vergonhoso para Sócrates ter abandonado a vitória e sua pró pria vida nas mãos de Meletos e Anitos É preciso aprender a lín gua de Anitos e Meletos a língua dos oradores que se aprende como todas as outras ou mesmo mais facilmente do que qualquer outra pois seu vocabulário e sua sintaxe estão presos a um estreito círculo Aí o tudo está em tudo se aplica melhor do que em qual quer outra circunstância É pois preciso aprender qualquer coisa um discurso de Mirabeau por exemplo e a isso relacionar todo o resto Essa retórica que tanto trabalho exige dos aprendizes do Ve lho é para nós como um jogo Sabemos tudo antecipadamente tudo está em nossos livros basta mudar os nomes Mas sabemos também que os exageros no tamanho dos perío dos e nos ornamentos do estilo não são a quintessência da arte orató ria Sua função não é persuadir os espíritos mas distraílos O que captura o decreto como a fortaleza é o assalto a palavra o gesto que decidem A sorte de uma assembléia é muitas vezes decidida por um audacioso que primeiro entre todos grita Votação Aprenda mos pois nós também a arte de gritar na hora certa Votação Não digamos que isso é indigno de nós e da razão A razão não precisa de nós somos nós que precisamos dela Nossa pretensa dignidade não é senão preguiça e covardia semelhante àquela de uma criança que não quer improvisar diante de seus colegas Daqui a pouco talvez nós gritemos também Votação Mas o gritaremos com o bando de medrosos que estará fazendo eco ao orador vitorioso aquele que terá ousado o que nós por preguiça não ousamos Tratarseia assim de fazer do Ensino Universal uma escola de cinismo politico renovando os sofismas denunciados por Ben tham Quem quiser compreender a lição do razoável desrazoante I nseignememt mnfverset Langue maternelle 6 ed Paris 1836 p 359 102 A sociedade do desprezo deve buscáIa na lição do mestre ignorante Tratase assim em todo caso de verificar o poder da razão observar o que se pode fazer com ela o que ela pode fazer para manterse ativa no seio da própria desrazão Preso ao círculo da loucura social o razoável desrazoante demonstra que a razão do indivíduo jamais cessa de exercer seu po der No campo fechado das paixões dos exercícios da vontade dis traída é preciso mostrar que a vontade atenta sempre pode o que elas podem e ainda mais E o que podem seus escravos a rainha das paixões pode fazer melhor do que qualquer uma delas O sofisma mais sedutor mais verossímil será sempre obra daquele que sabe me lhor o que é um sofisma Quem conhece a linha reta dela se afasta quando é preciso tanto quanto é preciso e jamais em excesso Qual quer que seja a superioridade que nos conceda a paixão ela se confun de a si mesma posto que é uma paixão A razão vê tudo como é ela mostra ela esconde dos olhos tanto quanto julga conveniente nem mais nem menos Não é uma lição de esperteza mas de constân cia Aquele que sabe permanecer fiel a si em meio ã desrazão exerce rá sobre as paixões do outro o mesmo domínio que exerce sobre as suas Tudo se faz pelas paixões estou consciente mas tudo se po deria fazer ainda melhor mesmo essas bobagens pela razão Eis o princípio único do Ensino Universal B Estaríamos poderseia objetar assim tão distantes de Só crates Também ele ensinava no Fedro como na República o filó sofo pratica a boa mentira aquela que é o justo necessário e suficien te pois só ele conhece a mentira Nisso consiste precisamente toda a diferença nós supomos quanto a nós que todos sabem o que é a mentira É esse inclusive o critério pelo qual definimos o ser razoá vel sua incapacidade de se mentir Não nos referimos portanto ao privilégios dos sábios mas ao poder dos homens razoáveis E esse poder se resume em uma opinião a da igualdade das inteligências É essa opinião que faltou a Sócrates e que Aristóteles não pôde corrigir A mesma superioridade que permite ao filósofo estabele cer as pequenas distinções imperceptíveis o dissuade de falar a 2 Enseignement universel Ligue maternele 6 ed Paris 1836 p 356 Ibidem p 342 103 CoeCo Eoucncno EVE EWEN SENTIDO companheiros de escravidão 27 Sócrates não quis fazer um discur so para agradar ao povo para seduzir a grande besta Ele não quis estudar a arte dos sicofantas Anitos e Meletos Ele pensou e quase todos o louvam por tal que isso equivaleria a permitir em sua pes soa a decadência da filosofia Mas o fundo de sua opinião é Anitos e Meletos são sicofantas imbecis não há portanto nenhuma em seu discurso somente uma espécie de cozinha Não há aí o que apren der Ora os discursos de Anitos e Meletos são uma manifestação da inteligência humana ao mesmo título do que os de Sócrates Não estamos afirmando que são tão bons Diremos apenas que proce dem da mesma inteligência Sócrates o ignorante se imaginou quanto a ele superior aos oradores de tribunal teve preguiça de apren der sua arte e consentiu com a desrazão do mundo Por que agiu de tal modo Pela mesma razão que perdeu Laios Édipo e todos os heróis trágicos ele acreditou no oráculo délfico pensou que a divin dade o havia eleito que ela lhe havia dirigido uma mensagem especi al Ele partilhou da loucura dos seres superiores a crença no gênio Um ser inspirado pela divindade não aprende os discursos de Anitos não os repete não busca quando é preciso apropriarse de sua arte Por isso é que os Anitos são mestres na ordem social Mas não o serão eles de toda maneira perguntarseá ain da De que serve triunfar no fórum se sabemos que de toda forma nada pode mudar a ordem das sociedades Para que servem os in divíduos razoáveis ou emancipados como os denominais que salvam sua vida e conservam sua razão se eles nada podem para mudar a sociedade estando reduzidos à triste vantagem de desra zoar melhor do que os loucos A palavra no Aventino Respondamos antes de tudo que nem sempre o pior está asse gurado já que em toda ordem social é sempre possível a todos os indivíduos serem razoáveis A sociedadejamais o será mas ela pode reconhecer o milagre de momentos de razão que são aqueles não da coincidência das inteligências que é antes embrutecimento mas n Fedro 263e 104 A sociedade do desprezo do reconhecimento recíproco das vontades razoáveis Quando o Se nado desrazoava fazíamos coro com Appius Claudius Era o meio mais rápido de pôr fim à questão voltar mais cedo à cena do Aventi no Agora é Menenius Agripa que tem a palavra E pouco importa o detalhe do que diz aos plebeus O essencial é que lhes fala e eles escutam lhe falam e ele escuta Ele lhes fala de membros e de estô mago e isso talvez não seja muito lisonjeiro Mas o que ele lhes exprime é a igualdade dos seres que falam sua capacidade de com preender desde logo que se reconhecem como igualmente marcados pelo signo da inteligência Ele lhes diz que são como estômagos isso depende da arte que se aprende estudando e repetindo decom pondo e recompondo os discursos dos outros digãmolo anacronica mente isto depende do Ensino Universal Mas ele lhes fala como a homens e por esse mesmo gesto faz deles homens isto depende da emancipação intelectual No momento em que a sociedade está ame açada de ser dividida por sua própria loucura a razão fazse ação social salvadora exercendo a totalidade de seu poder próprio o poder da igualdade reconhecida entre os seres intelectuais Esse momento da guerra civil desatada de poder reconquis tado e vitorioso da razão valeu todo o longo e aparentemente inútil tempo em que a razão foi guardada e em que aprendeu com Appius Claudius a arte de desrazoar melhor do que ele Há uma vida da razão que pode se manter fiel a si própria na desrazão social e aí operar É para isso que é necessário trabalhar Quem sabe com igual atenção compor em nome da causa as diatribes de Appius Clau dius ou as fábulas de Menenius Agripa é um aluno do Ensino Uni versal Quem reconhece com Menenius e Agripa que todo homem nasceu para compreender o que qualquer homem tem a lhe dizer co nhece a emancipação intelectual Esses felizes encontros são muito pouco dizem os impacientes ou os satisfeitos E a história do Aventino é muito velha No entanto exatamente nesse momento outras vozes se fazem ouvir vozes bem diferentes para afirmar que o Aventino é o início de nossa história a do conhecimento de si que faz de plebeus de ontem e de proletá rios de hoje homens capazes de tudo que pode um homem Em Paris um outro excêntrico sonhador PierreSimon Ballanche relata à sua maneira a mesma história do Aventino e lê a mesma lei proclamada 105 COLEÇÃO EoucACAO EXPERIENCIA SENEDO a da igualdade dos seres que falam da potência adquirida por aque les que se reconhecem marcados pelo signo da inteligência e que assim se tornam capazes de gravar seu nome no horizonte E ele faz uma estranha profecia A história romana tal como ela nos foi apre sentada até o presente após haver regulado uma parte de nossos des tinas após haver entrado sob uma forma na composição de nossa vida social de nossos costumes de nossas opiniões de nossas leis vem sob outra forma regular nossos novos pensamentos os que de vem entrar na composição de nossa vida social futura Nas ofici nas de Paris ou de Lion algumas cabeças sonhadoras escutam essa história e a relatam por sua vez à sua própria maneira Sem dúvida essa profecia da nova era é um sonho Mas eis o que não é um sonho sempre se pode mesmo no fundo da loucura desigualitária verificar a igualdade das inteligências e prestar con tas dessa verificação A vitória do Aventino é muito real mas de certo ela não se situa lá onde pensamos Os tribunos que a plebe conquistou desrazoavam tanto quanto os outros Apesar disso o fato de que cada plebeu se sinta homem se acredite capaz acredite seu filho e qualquer outro capaz de exercer as prerrogativas da inteligên cia isso é mais do que nada Não pode haver um partido dos eman cipados uma assembléia ou uma sociedade emancipada Mas todo homem pode a cada instante emanciparse e emancipar a um outro anunciar a outros esse benefício e aumentar o número de homens que se reconhecem como tais e não mais fazem de conta que são superiores inferiores Uma sociedade um povo um Estado serão sempre desra zoáveis Mas podese multiplicar o número de homens que farão uso na condição de indivíduos da razão e dominarão na condição de cidadãos a arte de desrazoar o mais razoavelmente possível Podese portanto dizer e é preciso dizer Se cada família fizesse o que digo logo a nação estaria emancipada não da eman cipação que os sábios concedem por suas explicações ù altura das inteligências do povo mas da emancipação que conquistamos mesmo contra os sábios quando nos instruímos a nós próprios 0 Essais de palingénésie sociale Formule générale de lhistoire de tous les peuples appliquée à lhistoire du peuple romain Revue de Paris av 1829 p 155 Magede lémancipation intelleetuelle Pans 1841 p 15 106 CAPÍTULO QUINTO O emancipador e suas imitações A ssim o dever dos discípulos de Joseph Jacotot é bem sim ples Eles devem anunciar a todos em todo lugar e circunstância a boa nova ou o benefício podese ensinar aquilo que se ignora Um pai de família pobre e ignorante pode portanto começar a instrução de seus filhos Cabe ainda fornecer o princípio desta instrução é preciso aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto segundo esse princípio todas as inteligências são iguais Devese anunciálo e estar pronto para a verificação falar ao po bre fazêlo falar do que ele é e do que sabe mostrarlhe como instruir seu filho copiar a oração que a criança sabe de cor levála a aprender de cor o primeiro capítulo de Telêmaco livro que lhe será oferecido estar disponível para as solicitações daqueles que querem aprender com um mestre do Ensino Universal aquilo que ele ignora envidar portanto todos os esforços para convencer o ignorante de seu poder um discípulo de Grenoble não podia convencer uma mulher pobre e idosa a aprender a ler e a escrever Ele então lhe ofereceu dinheiro para obter seu con sentimento Em cinco meses ela aprendeu e agora emancipa seus netos Eis o que se deve fazer sabendose que o conhecimento de Telêmaco ou de qualquer outra coisa é por si mesmo indiferente O problema não é fazer sábios mas elevar aqueles que se julgam inferiores em inteligência fazêlos sair do charco em que se encon tram abandonados não o da ignorância mas do desprezo de si do Manne populaire de h méthode Jacoto par k Dr Reter de Briglou Paris 1830 p 3 107 COLEÇÃO EouCAçAO EXPE2IËNCIA SENTIDO desprezo em si da criatura razoável O desafio é fazêlos homens emancipados e emancipadores Método emancipador e método social Não se trata de incluir o Ensino Universal nos programas dos partidos reformadores nem a emancipação intelectual entre as ban deiras da sedição Somente um homem pode emancipar um homem Somente um indivíduo pode ser razoável e somente por meio de sua própria razão Há sem dúvida cem maneiras de instruir também se aprende na escola dos embrutecedores um professor é uma coisa decerto menos manipulável do que um livro mas que pode ser apren dida observálo imitálo dissecálo recompôlo experimentar o que de sua pessoa oferece Sempre se aprende ao escutar um homem falar Um professor não é nem mais nem menos inteligente do que qualquer outro homem ele geralmente fornece uma grande quantidade defatos à observação daqueles que procuram Há porém somente uma ma neira de emancipar Jamais um partido um governo um exército uma escola ou uma instituição emancipará uma única pessoa Essa não é uma proposição metafísica A experiência foi feita em Louvain sob o patrocínio de Sua Majestade o Rei dos Países Bai xos Sabese que ele era um soberano esclarecido Seu filho o Prínci pe Frederick era apaixonado pela filosofia Responsável pelos exérci tos ele os queria modernos e instruídos à maneira prussiana Ele se interessava por Jacotot incomodavalhe a desgraça em que este últi mo era mantido pelas autoridades acadêmicas de Louvain queria ter podido fazer qualquer coisa por ele e ao mesmo tempo pelo exército holandês O exército naqueles tempos era terreno propício para expe rimentação de idéias reformadoras e novas pedagogias O Príncipe convenceu então seu pai a criar em Louvain uma Escola Normal Mi litar cuja responsabilidade pedagógica foi confiada a Jacotot A intenção era boa mas o presente era de grego Jacotot era um mestre não um dirigente Seu método era próprio para formar homens emancipados mas não instrutores militares ou sequer servidores em qualquer especialidade social Entendamonos bem um homem eman cipado pode ser instrutor militar tanto quanto serralheiro ou advogado 108 O emancipador e suas imitações Um Ensino Universal contudo não pode sem se deturparespecializar se na produção de uma categoria determinada de atores sociais sobre tudo se esses atores são instrutores de corporações O Ensino Universal pertence às famílias e o melhor que um soberano esclarecido poderia fazer em prol de sua propagação seria proteger a livre circulação desse benefício dos efeitos de sua autoridade Não que um rei esclarecido não possa estabelecer onde e quando quiser o Ensino Universal mas tal estabelecimento jamais vingaria pois o género humano pertence ao velho método É claro que pela glória do soberano sempre se poderia tentar a experiência Ela seguramente fracassaria mas há fracassos que são instrutivos Somente uma garantia se fazia necessária a absoluta concentração do poder a supressão de todos os intermediários da cena social em proveito unicamente da dupla rei e filósofo Para tanto era preciso primeiramente afastar todos os conselheiros do velho método à maneira dos países civilizados isto é concedendolhes uma promo ção em segundo lugar expurgar todos os outros intermediários que não os escolhidos pelo filósofo em terceiro lugar outorgar todo poder ao filósofo Farseá o que eu disser tudo o que eu disser nada além do que eu disser e a responsabilidade caberá somente a mim Nada ordenarei ao contrário os intermediários me perguntarão o que deve ser feito e como deve ser feito para em seguida submeter o todo ao soberano Serei considerado não como um funcionário que se empre ga mas como um filósofo que se deve consultar Enfim o estabeleci mento do Ensino Universal será considerado por um tempo como o principal e o primeiro de todos os negócios do Reino 2 Essas são condições que nenhuma monarquia civilizada poderia aceitar sobretudo em se tratando de um fracasso eminente O Rei no entanto fazia questão da experiência e na qualidade de hóspede reco nhecido Jacotot aceitou essa experiência bastarda de coabitação com uma comissão militar de instrução sob a autoridade do comandante da região de Louvain Nessas bases a Escola foi criada em março de 1827 e os alunos a princípio abismados ao escutar de um intérpre te que seu professor nada tinha a lhes ensinar devem ter podido descobrir aí alguma vantagem já que ao termo do período regula mentar solicitaram por petição o prolongamento de sua estadia na 2 Enseignement universel Mathématique 22 ed Paris 1829 p 97 109 COLEÇÃO EDUCAÇÃO EXPERIÊNCIA SENTIDO Escola onde desejavam aprender pelo Método Universal as línguas a História a Geografia as Matemáticas a Física a Química o Dese nho Topográfico e Fortificações Mas o Mestre não poderia estar satisfeito com esse Ensino Universal desbaratado nem com os con flitos quotidianos com as autoridades acadêmicas civis e com a hie rarquia militar Ele precipitou com suas explosões a dissolução da Escola Ele havia obedecido ao Rei ao formar por um método ace lerado instrutores militares Mas ele tinha melhor a fazer do que fabricar tenentes espécie que jamais faltará em qualquer socieda de Ele aliás preveniu solenemente seus alunos eles não deveriam jamais lutar pela adoção do Ensino Universal no Exército Eles não deviam tampouco esquecer que haviam presenciado uma aventura de espírito um pouco mais ampla do que a fabricação de oficiais subal ternos Vós haveis formado subtenentes em alguns meses é verdade Mas obstinarse a obter resultados tão tímidos quanto os das escolas européias tanto civis quanto militares é desbaratar o Ensino Univer sal Se a sociedade se beneficiar de vossas experiências contentandose com elas tanto melhor vós sereis úteis ao Estado Entretanto não vos esqueçais jamais de que haveis presenciado resultados de ordem muito superior ao que haveis obtido e aos quais sereis reduzidos Aproveitai pois a emancipação intelectual para vós e vossos filhos Ajudai aos po bres Mas limitaivos a fazer para vosso país tenentes e cidadãos acadê micos Não precisais mais de mim para avançar por essas veredas O discurso do Fundador aos seus discípulos militares e ele teve discípulos fiéis figura no frontispício do volume Ensino Uni versaL Matemáticas obra em que segundo o exasperante hábito do Mestre em toda matéria não há uma só palavra sobre matemática Ninguém é discípulo do Ensino Universal se não leu e compreendeu nessa obra a história da Escola Normal Militar de Louvain se não se convenceu dessa oposição o Ensino Universal não é nem pode ser um método social Ele não pode ser difundido nas instituições da sociedade nem por iniciativa delas Não que os emancipados não sejam respeitosos da ordem social eles sabem que de toda maneira ela é menos nociva do que a desordem Mas é tudo o que lhe conce dem e decerto nenhuma instituição poderseia contentar com tão Ibidem p 12 110 O emancipador e suas imitações pouco Não é suficiente que a desigualdade se faça respeitar ela quer ser objeto de crença e de amor Ela quer ser explicada Toda institui ção é uma explicação em ato da sociedade uma encenação da desi gualdade Seu princípio é e será sempre antitético ao do método fun dado sobre a opinião da igualdade e da recusa das explicações O Ensino Universal não pode se dirigir senão a indivíduos jamais a sociedades As sociedades de homens reunidos em nações desde os Lapões até os Patagônios precisam para sua estabilidade de uma forma de uma ordem qualquer Aqueles que são encarregados da manutenção dessa ordem necessária devem explicar e fazer explicar que ela é a melhor possível e impedir qualquer explicação contrária Esse é o objetivo das constituições e das leis Portanto repousando sobre uma explicação toda ordem social sempre exclui qualquer outra explicação e sobretudo rejeita o método da emancipação intelectu al fundado sobre a inutilidade e mesmo sobre o perigo de toda explicação no ensino O Fundador reconheceu inclusive que o cida dão de um Estado deveria respeitar a ordem social de que faz parte e a explicação dessa ordem mas estabeleceu também que a lei só exigia do cidadão que suas ações e palavras fossem conformes à or dem não podendo imporlhe pensamentos opiniões crenças que o habitante de um país antes de ser um cidadão era um homem que a famflia era um santuário em que o pai é o supremo árbitro e que em conseqüência era aí e somente aí que a emancipação intelectual po deria ser semeada com sucesso 4 Afirmemolo pois o Ensino Uni versal não vingará ele não se estabelecerá na sociedade Mas ele não morrerá porque é o método natural do espírito humano o de todos os homens que buscam seu próprio caminho 0 que os discípu los podem fazer a seu favor é anunciar a todos os indivíduos a todos os pais e mães de família o meio de ensinar aquilo que se ignora segundo o princípio da igualdade das inteligências Emancipação dos homens e instrução do povo É pois preciso anunciar o Ensino Universal a todos Antes de tudo aos pobres sem qualquer dúvida eles não têm outro meio de se 4 Journal dr pla7oropyie pnnécnrtìgne t V 1838 p 112 111 COIEçjO EOUCACAO ExFENiENCiA E SfNâoo instruírem não podem pagar explicadores particulares nem passar longos anos nos bancos escolares Acima de tudo é sobre eles que pesa mais fortemente o preconceito da desigualdade das inteligên cias São eles que devem ser reerguidos de sua posição de humilha ção O Ensino Universal é o método dos pobres Mas ele não é um método depobres É um método de homens isto é de inventores Quem o empregar quaisquer que sejam sua ciência e posição social multiplicará seus poderes intelectuais É preciso pois anunciálo aos príncipes aos ministros e aos poderosos eles não podem instituir o Ensino Universal podem no entanto aplicálo na instrução de seus filhos E podem usar seu prestígio social para anunciar ampla mente o benefício Assim o rei esclarecido dos Países Baixos teria feito melhor em ensinar às suas crianças o que ignorava e emprestar sua voz para a difusão das idéias emancipadoras nas famílias do reino Dessa forma o antigo colega de Joseph Jacotot o General de La Fayette pode ria têIo anunciado ao Presidente dos Estados Unidos país novo sobre o qual ainda não pesavam séculos de embrutecimento universitário Aliás nos dias que se seguiram à Revolução de julho de 1830 o Fundador deixou Louvain para em Paris indicar aos liberais e aos progressistas vencedores os meios de concretizar seus belos pensamentos a respeito do povo o General La Fayette só precisava difundir o Ensino Universal entre os homens da Guarda Nacional Casimir Perier velho entusiasta da doutrina e futuro Primeiro Ministro estava agora em condições de anunciar amplamente o benefício M Banhe Ministro da Instrução Pública de M Laffitte veio por iniciativa própria consultarse com Jacotot O que é preciso para organizar a instrução que o governo deve ao povo e que pretende fornecer segundo os melhores métodos Nada respondeu o Fundador o governo não deve instrução ao povo pela simples razão de que não se deve às pessoas aquilo que elas po dem conquistar por si próprias Ora a instrução é como a liberdade não se concede conquistase Então o que é preciso fazer pergun tou o Ministro Basta retrucoulhe anunciar que estou em Paris hospedado no Hotel Corneille onde recebo todos os dias os pais de família pobres para indicarlhes os meios de emancipar seus filhos É preciso dizêlo a todos os que se preocupam com a ciência com o povo ou com os dois ao mesmo tempo Os sábios também devem aprendêlo eles têm os meios de decuplicar sua potência intelectual 112 O emancipador e suas imitações Eles só se acreditam capazes de ensinar o que sabem Conhecemos bem essa lógica social da falsa modéstia pela qual aquilo ao que se renuncia estabelece a solidez do que é anunciado Pois os sábios os que pesqui sam é claro e não os que explicam o saber dos outros querem talvez algo mais novo e menos convencional Se eles começarem a ensinar o que ignoram talvez descubram poderes intelectuais insuspeitados que os colocarão no caminho de novas descobertas É preciso dizêlo aos republicanos que querem um povo livre e igual e imaginam que isso é uma questão de leis e de constituições É preciso dizêlo a todos os homens de progresso de coração generoso e cérebro em ebulição inventores filantropos e filomáticos politécni cos fourieristas ou saintsimonianos que percorrem os países da Euro pa e os campos do saber em busca de invenções técnicas de melhora mentos agronômicos de sistemas econômicos de métodos pedagógicos instituições morais revoluções arquiteturais procedimentos tipográfi cos publicações enciclopédicas etc destinados ao aperfeiçoamento fí sico intelectual e moral da classe mais pobre e mais numerosa eles podem fazer pelos pobres muito mais do que crêem e com custos muito menores Eles gastam tempo e dinheiro na experimentação e promoção de celeiros de grãos e fossas de purina fertilizantes e métodos de conser vação para melhorar as culturas e enriquecer camponeses limpar as imun dícies dos pátios de fazenda e os preconceitos das cabeças rústicas Há porém um meio bem mais simples do que esse com um velhoTelêmaco ou mesmo com uma pluma e papel para escrever uma oração eles podem emancipar os camponeses tornálos conscientes de seu poder intelectual e os camponeses se ocuparão eles próprios do aperfeiçoa mento de suas culturas e da conservação de seus grãos O embruteci mento não é uma superstição inveterada mas tenor frente à liberdade a rotina não é ignorância mas covardia e orgulho das pessoas que renunciam a sua própria potência pelo simples prazer de constatar a impotência do vizinho Basta emancipar Não vos arruineis com pu blicações para inundar advogados notários e farmacêuticos de sub prefeituras de enciclopédias destinadas a ensinar aos habitantes do campo os meios mais saudáveis de conservar ovos marcar carneiros apressar o amadurecimento do melão salgar a manteiga desinfectar a água fabricar açúcar de beterraba e fazer cerveja com cascas de lenti lhas Mostrailhes antes como fazer o filho repetir Calipso Calipso não Calipso nãopodia E vereis de que serão capazes 113 COIECAO EDUCACAO EXPERIENCIA SENTIDO Essa é a única vantagem a vantagem única da emancipação inte lectual cada cidadão é também um homem que realiza uma obra com a pluma com a purina ou qualquer outro instrumento Cada inferior superior é também um igual que narra e faz com que o outro narre o que viu É sempre possível trabalhar essa relação consigo mesmo re conduzila à sua veracidade primeira para despenar no homem social o homem razoável Quem não busca introduzir o método do Ensino Universal nas engrenagens da máquina social pode suscitar essa ener gia toda nova que fascina os apaixonados pela liberdade essa potência sem gravidade nem aglomeração que se propaga como um raio pelo contacto de dois pólos Quem abandona as engrenagens da máquina social tem a sorte de fazer circular a energia elétrica da emancipação Deixaremos de lado apenas os embrutecidos do Velho e os pode rosos à moda antiga Elesjá se inquietavam com os malefícios da instru ção dos filhos do povo imprudentemente cortados de sua condição O que dizer então da emancipação e da igualdade das inteligências da afirmação de que marido e mulher têm a mesma inteligência Um visi tante perguntou a M Jacotot se em tais condições as mulheres ainda permanecerão belas Privemos pois de resposta esses embrutecidos deixemolos dando voltas em torno de seu círculo acadêmiconobiliário Sabemos que é precisamente isso que define a visão embrutecedora de mundo acreditar na realidade da desigualdade imaginar que os superi ores na sociedade são efetivamente superiores e que a sociedade estaria em perigo se fosse difundida sobretudo nas classes mais baixas a idéia de que essa superioridade é tão somente uma ficção convencionada De fato somente um emancipado pode escutar com tranqüilidade que a ordem social é inteiramente convencional e assim mesmo obedecer escrupulosamente a seus superiores que ele sabe seus iguais Ele sabe o que pode esperar da ordem social e não causará aí muita confu são Os embrutecidos nada têm a temer mas eles jamais o saberão Os homens do progresso Deixemolos pois entregues à doce e inquieta consciência de seu próprio gênio Mas ao lado desses não faltam homens de progresso que não deveriam temer a mudança das velhas hierar quias intelectuais Entendemos homens de progresso no sentido 114 O emancipador e suas imitações literal do termo homens que caminham que não se preocupam com a classe social daquele que afirmou alguma coisa mas vão conferir por si próprios se a coisa é verdadeira viajantes que per correm toda a Europa em busca de todos os procedimentos méto dos ou instituições dignos de serem imitados que ao escutar falar de alguma experiência nova aqui ou acolá se deslocam vão obser var os fatos buscam reproduzir as experiências que não vêem porque se passaria seis anos aprendendo algo se está provado que se pode aprendêlo em dois que pensam sobretudo que saber não é nada em si e quefazeré tudo que as ciências não são feitas para serem explica das mas para produzir descobertas novas e invenções úteis que por tanto ao escutar falar de invenções aproveitáveis não se contentam em louváIas ou em comentáIas mas oferecem se possível sua fábri ca ou sua terra seus capitais ou sua devoção para restála Não faltam viajantes e inovadores desse tipo para se interes sarem ou mesmo para se entusiasmarem com a idéia das aplica ções possíveis do método de Jacotot Podem ser professores em ruptura com o Velho Assim como o Professor Durietz que se nu triu desde a juventude com Locke e Condillac Helvétius e Condor cet e cedo partiu para o ataque contra o edifício empoeirado de nossas góticas instituições Professor da Escola Central de Lille ele havia fundado na cidade um estabelecimento inspirado nos prin cípios desses mestres Vítima do ódio ideologívoro votado pelo Imperador a qualquer instituição que não se enquadrasse em seu objetivo de escravização universal sempre pronto a liberarse dos métodos que procedem por recuos ele veio aos Países Baixos realizar a educação do filho do Príncipe de Hatzfeld Embaixador da Prússia Foi aí que ouviu falar do método Jacotot de visita ao estabelecimento que um antigo aluno da Escola Politécnica M de Séprès fundara a partir desses princípios reconheceu sua confor midade com seus próprios princípios e decidiu propagar o método por toda parte onde fosse Foi o que fez durante cinco anos em São Petersburgo em casa do Grande Marechal Paschoff do Príncipe Sher bretoff e de outros dignitários amigos do progresso antes de voltar à França mas não sem de passagem divulgar a emancipação em ounmldepGilospGiepnnécrligne tV 1838 p 277 115 COLpo EDUUÇAO EPERIÉNCA E EVODO Riga e Odessa na Alemanha e na Itália Agora ele pretendia le vantar o machado contra a árvore das abstrações e arrancar daí se pudesse até as fibras de suas últimas raízes Ele falou de seus projetos a M Ternaux o ilustre fabricante de lençóis de Sedan deputado da extremaesquerda liberal Não se po deria encontrar ninguém melhor em matéria de industrial esclareci do Ferdinand Ternaux não se havia contentado em reerguer a fábri ca decadente de seu pai fazendoa prosperar em meio aos distúrbios da Revolução e do Império Ele ainda quis fazer uma obra útil para a indústria nacional em geral favorecendo a produção de caxemiras Para tanto recrutou um orientalista da Biblioteca Nacional e o en viou ao Tibete para de lá trazer um rebanho de mil e quinhentas cabras a serem aclimatadas aos Pirineus Ardoroso amigo da liberda de e das Luzes quis verificar por si mesmo os resultados do método Jacotot Convencido prometeu apoio e com sua ajuda Durietz ga nhou forças para aniquilar os mercadores de supinos e gerúndios e outros sátrapas do monopólio universitário Ferdinand Ternaux não era o único fabricante a avançar assim Em Mulhouse a Sociedade Industrial instituição pioneira criada gra ças ao dinamismo filantrópico dos irmãos Dolfus confiou a seu jo vem animador o Doutor Penot a responsabilidade por um curso de Ensino Universal para os operários Em Paris um fabricante mais modesto o tintureiro Beauvisage ouviu falar do método Operário fezse sozinho e quis estender seus negócios fundando uma nova fábrica na região da Somme Mas ele não queria se separar de seus irmãos de origem Republicano e membro da Maçonaria sonhou trans formar seus operários em associados Esse sonho chocouse infeliz mente com uma realidade menos inspiradora Em sua fábrica como em todas as outras os operários se invejavam entre si e só se punham de acordo quando se tratava de ir contra o patrão Ele queria lhes fornecer uma instrução que destruísse neles o velho homem e per mitisse a realização de seu ideal Para tanto se dirigiu aos irmãos Ratier discípulos fervorosos do método que pregavam a emancipação to dos os domingos na feira de tecidos lhldem p 279 116 O emancipador e suas imitações Além dos industriais há também os militares de progresso prin cipalmente entre os oficiais de engenharia e de artilharia guardiães da tradição revolucionária e politécnica É assim que o subtenente Schoelcher filho de um rico fabricante de porcelana e oficial de enge nharia em Valenciennes visita regularmente Joseph Jacotot que ali se encontra provisoriamente retirado Um dia ele se faz acompanhar de seu irmão Victor que escrevia em diversosjornais e havendo visitado os Estados Unidos voltara indignado que existisse ainda em pleno século XIX essa denegação da humanidade que se chama escravatura Mas o arquétipo de todos esses progressistas é seguramente o Conde de Lasteyrie septuagenário e presidente fundador e alma da Sociedade de Incentivo à Indústria Nacional da Sociedade da Instru ção Elementar da Sociedade para o Ensino Mútuo da Sociedade Cen tral de Agronomia da Sociedade Filantrópica da Sociedade de Méto dos de Ensino da Sociedade da Vacina da Sociedade Asiática do Journal déducation et dinstruction e do Journal des connaissances usuelles Abstenhamonos entretanto de rir imaginando de pronto um acadêmico barrigudo dormindo tranqüilamente em todas essas cadeiras presidenciais Pois ao contrário M de Lasteyrie tornouse conhecido por sua vivacidade Em sua juventude já havia visitado a Inglaterra a Itália e a Suíça para aprimorar seus conhecimentos em economia e aperfeiçoar a gestão de seus domínios Inicialmente parti dário da Revolução tal como seu cunhado o Marquês de La Fayette assim mesmo precisou por volta do ano III refugiarse na Espanha Ali aprendeu a língua a ponto de traduzir diversas obras anticlericais estudou os carneiros da raça merino a ponto de publicar dois livros sobre o assunto e impressionouse com os méritos dessa espécie a pon to de trazer todo um rebanho para França Ele ainda percorreu a Ho landa a Dinamarca a Suécia de onde importou a rutabaga a No ruega e a Alemanha Dedicouse à engorda de animais às fossas para conservação de grãos à cultura de algodoeiros assim como dos pas téisdetintureiro dos indigoteiros e de outros vegetais próprios à produção da cor azul Em 1812 soube da invenção por Senefelder da litografia Partiu imediatamente para Munique onde aprendeu o procedimento sendo responsável pelo primeiro prelo litográfico da França Os poderes pedagógicos dessa nova indústria o haviam orien tado para as questões de instrução Assim ele passou a militar pela 117 COLEÇÃO EoucnrJo EXPERIENCE E Semioo introdução do Ensino Mútuo pelo método Lancaster Mas não se trata va em nada de um exclusivista Entre outras sociedades ele fundou a Sociedade dos Métodos de Ensino para estudo de todas as inovações pedagógicas Tendo sido informado pelo rumor público dos milagres que se faziam na Bélgica decidiuse a ir ver pessoalmente as coisas Ainda ágil em seus setenta anos ele haveria de viver outros vinte escrevendo livros e fundando sociedades e revistas para com bater o obscurantismo e promover a ciência e a filosofia ele to mou a carruagem viu o Fundador visitou a instituição de Mlle Marcellis propôs exercícios de improvisação e de composição às alunas verificando que eram capazes de escrever tão bem quanto ele A opinião da igualdade das inteligências não lhe causava medo Ele percebia que isso representava um grande incentivo para a aqui sição da ciência e da virtude tanto quanto um golpe desferido con tra as aristocracias intelectuais bem mais funestas do que qualquer poder material Ele esperava comprovar sua exatidão então pen sava ele desaparecerão as pretensões desses gênios orgulhosos que acreditandose privilegiados pela natureza se imaginam igualmen te em direito de dominar seus semelhantes e de rebaixálos quase à condição dos animais a fim de gozar com exclusividade dos dons materiais que a fortuna cega distribui e que sabem adquirir aqueles que se aproveitam da ignorância dos homensDe retorno ele anun ciou portanto à Sociedade dos Métodos de Ensino era um imenso passo que acabava de ser dado pela civilização e a felicidade da es pécie humana A Sociedade devia examinar esse novo método e re comendálo como um dos mais destacados entre aqueles que se mos travam próprios a acelerar os progressos da instrução popular De carneiros e de homens M Jacotot apreciava o zelo do Conde Mas viuse rapidamen te obrigado a denunciar suadistração Pois que se tratava sem dúvi da de uma e das mais estranhas para quem aplaudia a idéia de eman cipação ir submetêla à aprovação de uma Sociedade dos Métodos Lastevrie Résumé de la métbode de Penseignemeet universe daprè3 Al Jacotot Paris 1829 p XXVIIXXVIII 118 O emancipador e suas imitações Com efeito o que é uma Sociedade dos Métodos Um areópago de espíritos superiores que obram pela instrução das famílias e para tan to buscam selecionar os melhores métodos Isso supõe evidentemen te que as familias são incapazes de selecionálos por si próprias já que para tanto seria forçoso que elasjá fossem instruídas Nesse caso elas não mais precisariam que alguém as instruísse E nesse caso elas não mais teriam necessidade da Sociedade o que é contraditório com a hipótese É um velho truque o das sociedades eruditas ao qual todos sempre foram e provavelmente sempre estarão cegos Impede se o povo de se dar ao trabalho de examinar A Revista se encarrega de ver a Sociedade se prontifica ajulgar e para darse o ar de importân cia que impressiona aos preguiçosos jamais se louva jamais se repro va nem de mais nem de menos Pois a admiração entusiástica sempre anuncia um pequeno espírito louvandose ou reprovandose comedi damente além de se conquistar uma reputação de imparcialidade con quistase ademais um posto acima daqueles que sãojulgados valese mais do que eles e com sagacidade se distinguiu o bom do medíocre e do péssimo O relatório é uma excelente explicação embrutecedora que não pode deixar de fazer sucesso Aliás nele se invocam pequenos axiomas com os quais se recheia o discurso nada há de perfeito É preciso desconfiar dos exageros O tempo é que deverá sancionar Um dos personagens toma a palavra e diz Meus caros estabe lecemos entre nós que todos os bons métodos passariam por nosso crivo e que a Nação Francesa confiaria nos resultados que sairiam de nossas análises As populações dos diferentes Departamentos de Fran ça não podem ter sociedades como a nossa para dirigilas em seus julgamentos É bem verdade que há aqui e ali em certos centros alguns pequenos crivos mas o melhor crivo o crivo por excelência só em Paris pode ser encontrado Todos os bons métodos disputam entre si a honra de serem depurados verificados em vosso cadinho Somente um tem o direito de se revoltar mas nós o dominamos e ele passará por aí tanto quanto os outros A inteligência dos membros é o vasto laboratório onde se analisam legitimamente todos os méto dos Em vão o Universal se debate contra nossos regulamentos que nos concedem o direito de julgálo tal como faremos Eusegarment universel Unique maternelle 6 ed Paris 1836 p 446 e 448 119 CoieCAo EDUCAGAO Ea4fRÚNOA e SENiIDO Não se pense no entanto que a Sociedade dos métodos tenha julgado o método Jacotot com malevolência Ela compartilhava as idéias progressistas de seu presidente e soube reconhecer tudo o que havia de bom nesse método É bem verdade que algumas vozes sar cásticas se ergueram no areópago de professores para denunciar essa maravilhosa simplificação oferecida ao ofício de ensinar E é bem ver dade também que alguns espíritos permaneceram céticos diante dos curiosos detalhes que seu incansável presidente havia relatado de sua viagem Fora da Sociedade outras vozes ecoavam denunciando a encenação do charlatão as visitas cuidadosamente preparadas as im provisações aprendidas de cor as composições inéditas copiadas das obras do Mestre os livros que se abriam sozinhos nos lugares certos Riase igualmente do mestre ignorante de violão cujo aluno havia tocado uma música completamente diferente daquela que tinha sob seus olhos 9 Mas os membros da Sociedade dos métodos não eram homens de acreditar apenas em palavras M Froussard cético foi verificar o relato de M Lasteyrie e voltou convencido M Boutmy verificou o entusiasmo de M Froussard e em seguida M Baudoin o de M Boutmy Todos voltaram convencidos Mais precisamente eles voltaram todos convencidos do progresso eminente que representa va esse novo método de ensino Mas eles não se preocuparam nem um pouco em anunciáIo aos pobres em por meio dele instruir os próprios filhos nem em empregálo para ensinar o que ignoravam Eles reivindicaram sua adoção pela Sociedade na escolaortomática que essa organizava a fim de demonstrar concretamente a excelência dos novos métodos A maioria da Sociedade tanto quanto M Las teyrie se opuseram a isso a Sociedade não podia adotar um método excluindo todos os outros métodosjá propostos ou a serem propos tos ainda Se o fizesse ela estaria prescrevendo limites para a per fectibilidade e destruindo aquilo que se constituía em sua fé filosó fica e razão de ser prática o aperfeiçoamento progressivo de todos os bons métodos passados presentes e futuros 1 Assim ela rejeitou esse exagero mas imperturbavelmente serena e objetiva concedeu ao ensino do método Jacotot uma sala da escola ortomática CE Remarques sur la méthode dr d1 Jarotol Bruxelas 1827 e L Uuirersnéprotegée Jar Pr mine des disdplrs de Joseph Jacotol Paris e Londres 1830 Journaldéducation el d instruction IVe année p 8183 e 264266 120 O emancipador e suns imitações Nisso consistia toda a inconseqüência de M de Lasteyrie no passado não lhe havia ocorrido convocar uma comissão para apreciar o valor dos carneiros merino ou da litografia ou ainda estabelecer um relatório sobre a necessidade de importar uns e outros Ele havia to mado a iniciativa de importálos testandoos em seu próprio benefí cio Mas para a importação da emancipação ele havia procedido de maneira bem diferente tratavase segundo ele de uma questão públi ca a ser considerada em sociedade Essa infeliz distinção repousava em uma não menos infeliz identificação ele havia confundido o povo a instruir com um rebanho de carneiros Os rebanhos de carneiros não se conduzem por si sós ele pensara que o mesmo se passava com os homens é claro que era preciso emancipálos mas cabia aos espíritos esclarecidos fazêlo e para tanto eles deveriam compartilhar suas lu zes de modo a encontrar os melhores métodos os melhores instru mentos de emancipação Para ele emancipar queria dizer substituir as trevas pela luz ele havia pensado que o método Jacotot era um méto do de instrução como todos os outros um sistema de iluminação dos espíritos a ser comparado aos outros uma invenção sem dúvida exce lente mas de mesma natureza que todas as que propunham semana após semana um novo aperfeiçoamento para a instrução do povo o panlexígrafo de Bricaille o citolégio de Dupont a estequiotécnica de Montémont a estereometria de Ottin a tipografia de Painparé e Lupin a taquigrafia de CoulonThévenot a estenografia de Fayet a caligrafia de Carsteairs o método polonês de Jazwinski o método galiano o método Lévi os métodos de Sénocq Coupe Lacombe Mesnager Schlott Alexis de Noailles e cem outros cujas obras e memórias atluíam para os escritórios da Sociedade A partir daí tudo estava dito Sociedade comissão exame relatório Revista há pontos positi vos e negativos o tempo é que deverá sancionar nec probatis nec improbatis e assim até a consumação dos tempos No caso de melhorias agrícolas e industriais M de Lasteyrie agira à maneira do Ensino Universal ele havia observado comparado refle tido imitado testado corrigido por si próprio Mas quando se tratou de anunciar a emancipação intelectual aos pais de família pobres e ig norantes ele sedistraira esquecerase de tudo Ele traduzira igualdade por PROGRESSO e emancipação dos pais de famílias pobres por INS TRUÇÃO DO POVO Para se ocupar desses seres de razão dessas 121 COLECAO EDUCACAO EXPERIENCIA E SENTIDO ontologias era preciso a intervenção de outros seres de razão de cor porações Um homem pode conduzir um rebanho de carneiros Mas no caso do rebanho POVO era preciso um rebanho chamado SOCIE DADE ERUDITA UNIVERSIDADE COMISSÃO REVISTA etc em resumo embrutecimento a velha regra da ficção social A emanci pação intelectual pretendera deixála para trás no entanto eila que ressurge em seu caminho erigida em tribunal encarregado de triar em seus princípios e exercícios aquilo que convinha ou não às famílias julgando em nome do progresso ou mesmo da emancipação do povo O círculo dos progressistas Não era pois uma simples inconseqüência devida ao cérebro cansado de M de Lasteyrie mas uma contradição que vai de encon tro à emancipação intelectual quando essa se dirige àqueles que como ela desejam a felicidade dos pobres aos homens de progresso O oráculo do embrutecimento bem havia prevenido o Fundador Hoje menos do que nunca não podes esperar sucesso Eles se crêem pro gressistas e suas opiniões estão solidamente estabelecidas nessa base Riome de teus esforços Eles não arredarão de lá A contradição é simples de se expor dissemos um homem de progresso é um homem que caminha que vai ver que experimenta modifica sua prática que verifica seu saber e assim infinitamente Essa é a definição literal da palavra progresso No entanto um ho mem de progresso é também outra coisa um homem que pensa a partir da opinião do progresso e erige essa opinião à condição de explicação dominante da ordem social Com efeito sabemos que a explicação não é apenas o instrumento embrutecedor dos pedagogos mas o próprio laço da ordem social Quem diz ordem diz hierarquização A hierarquização supõe explicação fic ção distributiva justificadora de uma desigualdade que não tem outra explicação senão sua própria existência O quotidiano do trabalho ex plicador não é mais do que a menor expressão de uma explicação domi nante que caracteriza uma sociedade Modificando a forma e os limites dos impérios guerras e revoluções mudam a natureza das explicações dominantes Mas essa mudança é circunscrita em limites bastante 122 O emancipador e suas imitações estreitos Sabemos de fato que a explicação é obra da preguiça Bastalhe introduzir a desigualdade o que se faz sem qualquer difi culdade A hierarquia mais elementar é a do berne do mal A relação lógica mais simples é a do antes e depois Nesses quatro termos o bem e o mal o antes e o depois temse a matriz de todas as explica ções Antes isso era melhor dizem alguns o legislador ou a divin dade haviam organizado as coisas os homens eram frugais e felizes os chefes paternais se faziam obedecer a fé dos ancestrais era res peitada as funções bem distribuídas os corações unidos Agora as palavras se corrompem as distinções se confundem as hierarquias se misturam e a solicitude para com os pequenos se perde juntamen te com o respeito para com os grandes Busquemos pois conservar ou revivificar o que em nossas distinções ainda nos une ao princípio do bem A felicidade é para amanhã respondem os outros o gênero humano era como uma criança entregue aos caprichos e aos tenores de sua imaginação acalentada pelos contos de amas ignaras subme tida à força bruta dos déspotas e à superstição dos padres Agora os espíritos se esclarecem os hábitos se civilizam a indústria difunde seus benefícios os homens descobrem seus direitos e a instrução lhes revela seus deveres para com as ciências A partir de agora será a capacidade que deverá decidir a hierarquia social E caberá à ins trução revelála e desenvolvêla Encontramonos em uma época em que uma explicação domi nante está em vias de sucumbir à força conquistadora de uma outra Tempos de transição Eis o que explica a inconseqüência dos homens de progresso como o Conde Antes quando a Universidade balbuci avaBarbara Celarente Baraliptonencontravamse a seu lado gen tishomens ou médicos burgueses ou gente de Igreja que a deixavam falar ocupandose de outra coisa faziam talhar e polir lentes ou as poliam eles próprios para experiências de ótica reservavam nos açou gues os olhos das bestas para estudar sua anatomia informavamse entre si de suas descobertas e debatiam suas hipóteses Assim se reali zavam nos poros da velha sociedade progressos isso é atualizações da capacidade humana de compreender e de fazer O Senhor Conde tem ainda um pouco desses gentishomens experimentadores Mas no caminho ele foi aspirado pela força crescente da nova explicação da nova desigualiticação o Progresso Já não são mais os curiosos e os 123 CoLeUo EouQClo ETEERIENCIA SENTIDO espíritos indômitos que agora aperfeiçoam tal ou tal ramo das ciências tal ou tal meio técnico E a sociedade que se aperfeiçoa que pensa sua ordem sob o signo do aperfeiçoamento É a sociedade que progride e uma sociedade só pode progredir socialmente isto é todos juntos e ordeiramente O Progresso é a nova maneira de dizer a desigualdade Mas essa forma de dizer tem uma força bem mais temível que a antiga Esta era continuamente obrigada a agir de maneira contrária a seu principio Antes era melhor dizia ela quanto mais avançamos mais vamos em direção à decadência Essa opinião dominante tinha entretan to o defeito de não ser aplicável na prática explicadora dominante a dos pedagogos Esses últimos deviam de fato supor que a criança se aproximava da perfeição ao se afastar de sua origem ao crescer passan do sob a orientação que forneciam de sua ignorância própria à ciência que dispensavam Cada prática pedagógica explica a desigualdade do saber como um mal e um mal redutível em uma progressão infini ta em direção ao bem Cada pedagogia é espontaneamente pro gressista Assim havia discordância entre a grande explicação e os pequenos explicadores Ambos embruteciam mas em desordem E a desordem do embrutecimento deixava espaço para a emancipação Esses tempos estão em vias de acabar A partir daqui a ficção dominante e o quotidiano do embrutecimento caminham no mesmo sentido E isso por uma razão muito simples O Progresso é a ficção pedagógica erigida em ficção de toda a sociedade O cerne da ficção pedagógica é a representação da desigualdade como retardo aí a in ferioridade se deixa apreender em sua inocência nem mentira nem violência não é mais do que um retardo que se constata para colocar se em condições de superálo É claro que nunca o conseguiremos a própria natureza cuida disso haverá sempre retardo sempre haverá desigualdade Mas podese assim exercer continuamente o privilé gio de reduzila daí retirando um duplo proveito As pressuposições dos progressistas são a absolutização social dos pressupostos da pedagogia antes tateavase às cegas as palavras mais ou menos mal recolhidas da boca das mães e amas não esclareci das por adivinhação as idéias falsas retiradas do primeiro contato com o universo material Agora começa uma nova era em que o ho memcriança ganha o caminho reto de sua maturidade O guia mostra 124 O emancipador e suor imitações o véu colocado sobre todas as coisas e começa a levantálo como convém ordenadamente passo a passo progressivamente É neces sário retardar um pouco o progresso Métodos são necessários Sem método sem um bom método a criançahomem ou o povocriança é presa das ficções da infância da rotina e dos preconceitos Com o método ele põe seus passos nos passos daqueles que avançam racio nalmente progressivamente Com eles erguese numa aproximação indefinida Jamais o aluno alcançará o mestre nem o povo sua elite esclarecida no entanto a esperança de chegar lá os faz avançar pelo bom caminho o das explicações aperfeiçoadas O século do Progresso é o dos explicadores triunfantes da humanidade pedagogizada A for ça temível do novo embrutecimento é que ele imita ainda a marcha dos homens de progresso à maneira antiga que ele ataca o antigo embrute cimento em termos apropriados para à menor distração revidar e co locar por terra espíritos que acabam de descobrir a emancipação O que significa também que a vitória que se anuncia dos pro gressistas sobre o Velho é também a vitória do Velho através de sua própria oposição o triunfo absoluto da desigualdade instituída a ra cionalização exemplar dessa instituição Este é o fundamento sólido sobre o qual se erige o poder perene do Velho O Fundador tentou mostrar aos progressistas de boa fé Os explicadores de indústria e todo o mundo já repetiu vejam os progressos da civilização O povo tem necessidade de artes e tudo o que se lhe vendia era o latim de nenhum uso para ele Ele vai desenhar construir máquinas etc Filó sofos tendes razão e admiro vosso zelo sob o domínio de um Grande Mestre que não vos vem em socorro molemente estendido em seu trono de línguas mortas Admiro vossa devoção vosso objetivo filan trópico é sem dúvida mais útil do que o do Velho Mas vossos meios não serão os seus Vosso método não é o seu Não temeis ser acusa dos tal como ele de manter a supremacia dos mestres explicadores A boa vontade corre o risco de se tornar assim uma circunstância agravante O Velho sabe o que quer o embrutecimento e age em conseqüência Os progressistas quanto a eles gostariam de liberar Journal de lemnncipntio intellectuelle t IV 18361837 p 328 Pnseìgnement universel MntGénmtique 2 ed Paris 1829 p 2122 125 COIECAO EDVCACaO EXPERI ENCIA E SENTIDO os espíritos e promover as capacidades populares Mas o que propõem é aperfeiçoar o embrutecimento ao aperfeiçoar as explicações Este é o círculo dos progressistas Eles querem arrancar os es píritos da velha rotina da dominação dos padres e dos obscurantis tas de toda sorte Para isso é preciso métodos e explicações mais racionais É preciso testar e comparar por meio de comissões e de relatórios É preciso empregar na instrução do povo um pessoal qua lificado e diplomado instruído nos novos métodos e vigiado em sua execução É preciso sobretudo evitar as improvisações dos incom petentes não deixar aos espíritos formados pelo acaso ou pela roti na que ignoram as explicações aperfeiçoadas e os métodos progres sistas a possibilidade de abrir escolas e de ensinar qualquer coisa de qualquer maneira É preciso evitar que as famílias lugares de repro dução rotineira e da superstição inveterada dos saberes empíricos e dos sentimentos mal esclarecidos assegurem a instrução das crian ças E preciso um sistema bem ordenado de instrução pública L pre ciso uma Universidade e um Grande Mestre Em vão dirseá que os gregos e os romanos não tinham Universidade nem Grande Mestre e que as coisas não iam assim tão mal No tempo do progresso não é preciso mais para os mais ignorantes entre os povos atrasados do que uma curta temporada em Paris para se convencerem que Ani tos e Meletos assinalaram desde então a necessidade de uma orga nização que regulasse 1 que é preciso explicar 2 o que é preciso explicar 3 como será preciso explicar Sem estas precauções bem se vê 1 que nossos sapateiros poderiam ostentarEnsino Uni versal junto a suas insígnias como se fazia em Roma e Atenas por falta de uma organização previdente 2 que o alfaiate pretenderá explicar as superfícies regradas sem prévio exame como se viu em Roma e que assim acontecerá o que se deve a todo preço evitar que as velhas explicações se transmitissem de geração em geração em detrimento das explicações aperfeiçoadas O aperfeiçoamento da instrução é assim antes de tudo o aper feiçoamento das coleiras ou antes o aperfeiçoamento da representa ção da utilidade das coleiras A revolução pedagógica permanente tor nase o regime normal pelo qual a instituição explicadora se racionaliza Enseignement universe Mathématequ es 2 ed Paris 1829 143 126 O emancipador e suas imitações sejustifica assegurando ao mesmo tempo a perenidade do princípio e das instituições do Velho Lutando por métodos novos pelo Ensino Mútuo de Lancaster os progressistas lutaram primeiramente para mostrar a necessidade de se terem melhores coleiras Sabeis que não aceitamos Lancaster e adivinhais porquê No entanto acabamos por vos permitir vosso Lancasteriano Sabeis por que É que a coleira ain da está lá Preferiríamos vêla em outras mãos Enfim não é preciso desesperar de nada enquanto houver coleira Vossa geometria aplica da não é tampouco de nosso gosto entretanto ela é formalmente aplicada 10 Permitiuse o Lancasteriano em breve vos seria permitido o ensino industrial Era uma coleira tão boa quanto qualquer outra não só porque podia fornecer instrução mas sobretudo porque podia levar à crença na ficção desigualitária Era um outro ardil que não se oporia ao mais antigo senão para melhor afirmar seu princípio o prin cípio de todos os ardis Dávamos voltas em torno do latim o instrutor escudeiro vai nos fazer dar voltas em torno das máquinas Se não se presta atenção o embrutecimento vai se tornar maior à proporção que for menos sensível e mais facilmente justificável Sobre a cabeça do povo Avancemos o Ensino Universal também pode tornarse um bom método integrado à renovação do embrutecimento um mé todo natural que respeita o desenvolvimento intelectual da criança ao mesmo tempo em que fornece a seu espírito a melhor das ginásti cas um método ativo que lhe concede o hábito de raciocinar por si própria e de enfrentar sozinha as dificuldades que forma a seguran ça da palavra e o sentido das responsabilidades uma boa formação clássica que ensina a língua dos grandes escritores e despreza o jar gão dos gramáticos um método prático e expeditivo que queima as custosas e intermináveis etapas dos colégios para formar jovens es clarecidos e industriosos prontos a se lançarem nas carreiras úteis ao aperfeiçoamento social Quem pode mais pode menos e um método capaz de ensinar o que se ignora permite ensinar facilmente Ibidem p 22 Ibidem p 21 127 COLEÇÃO EDUCACÃO EXPERI NcA E SENTIDO o que se sabe Bons mestres abrem escolas sob sua insígnia mestres experimentados como Durietz como ojovem Eugene Boutmy como M de Séprès antigo politécnico que transferiu sua instituição de Anvers a Paris e uma plêiade de outros ainda em Paris Rouen Metz ClermontFerrand Poitiers Lyon Grenoble Nantes Mar seille Sem falar nas instituições religiosas mas ainda assim es clarecidas como o estabelecimento do Verbo Encarnado onde M Guillard que viajou a Louvain desenvolve um ensino baseado no Co nhecete a ti mesmo como os seminários de Pamiers de Senlis e ou tros convertidos pelo incansável elo do discípulo Deshoullières Es sas instituições não nos referimos éclaro às cópias que proliferam se destacam pela exatidão com que seguem os exercícios do Méto do Calipso Calipso não Calipso não podia e em seguida as improvisaçõs as composições as verificações os sinônimos etc Em suma todo o ensino de Jacotot é seguido a não ser por um ou dois detalhes por exemplo aí não se ensina o que se ignora Mas não é ignorante quem quer e M Boutmy não pode ser culpado por conhe cer profundamente as línguas antigas nem M de Séprès por ser um matemático dos mais brilhantes Os prospectos não falam também da igualdade das inteli gências Mas essa é apenas como se sabe uma opinião do Funda dor Ele próprio nos ensinou a separar estritamente as opiniões dos fatos e a fundar qualquer demonstração somente sobre os últimos Para quê chocar previamente os espíritos céticos ou ainda não in teiramente convencidos com a brutalidade desta opinião Melhor mostrarlhes os fatos os resultados do método para demonstrar a força do principio É também por esta razão que não se expõe o nome de Jacotot Falase sobretudo de método natural método reconhecido pelas melhores cabeças do passado Sócrates e Mon taigne Locke e Condillac O próprio Mestre não disse que não há método Jacotot somente o método do aluno o método natural do espírito humano Para que então brandir seu nome como um es pantalho Em 1828 Durietz já havia prevenido o Fundador ele queria levantar o machado contra a árvore das abstrações mas ele não o faria à moda dos madeireiros Ele queria se impor discre tamente permitindose inclusive alguns sucessos ostensivos para 128 O emancippdor e suas imitações preparar o triunfo do método Ele queria chegar à emancipação in telectual por meio do Ensino Universal Mas a revolução vitoriosa de 1830 oferecia um palco bem mais amplo para esta tentativa Em 1831 a ocasião foi propiciada pelo mais moderno dos progressistas o jovem jornalista Émile de Girardin Ele tinha vinte e seis anos Era o neto do Marquês de Girardin que havia protegido o autor do Emilio Bastardo é bem verdade mas inaugura vamse tempos em que ninguém mais se envergonharia de seu nasci mento Ele podia sentir a chegada da nova era e de novas forças o trabalho e a indústria a instrução profissional e a economia doméstica a opinião pública e a imprensa Ele zombava dos latinistas e dos pe dantes Ele zombava dos jovens tolos que as boas familias da provín cia enviavam a Paris para cursar Direito e cortejar jovens mais ofere cidas Ele queria elites ativas terras fertilizadas pelas últimas descobertas da química um povo instruido sobre tudo o que pode con correr para sua felicidade material e esclarecido sobre a balança dos direitos dos deveres e dos interesses que faz o equilibrio das sociedades modemas Ele queria que tudo isso acontecesse rapidamente que aju ventude se preparasse por meio de métodos rápidos para se fazer o quanto antes útil à comunidade queria que as descobertas dos sábios e dos inventores logo penetrassem na vida dos ateliês dos lares e até nos lugares mais recônditos a fim de engendrar novos pensamentos Ele queria um órgão para difundir esses benefícios sem mais tardar É bem verdade que havia o Journal des connaissances usuelles de Lasteyrie Mas esse tipo de publicações era muito oneroso e assim fatalmente reservado ao público que dele não tinha qualquer necessidade Para que vulgarizar a ciência para acadêmicos e a economia doméstica para mu lheres do mundo Por isso ele lançou através de uma gigantesca cam panha de subscrições e de publicidade o Journal des connaissances utiles com uma tiragem de cem mil exemplares Para financiálo e prolongar sua ação ele fundou uma nova sociedade Chamoua sim plesmente Sociedade Nacional para a Emancipação Intelectual O preço dessa emancipação era simples As constituições tal como os edifícios precisam de um solo firme e nivelado dizia ele A instrução fornece um nível às inteligências um solo para as idéias j Journal de philosophie panémrtique t V 1838 p 279 129 CoIECAO EoucnÇAP ENFfciHaa E SENnoo A instrução das massas coloca em perigo os governos absolutos Sua ignorância ao contrário coloca em perigo os governos republicanos pois para revelar às massas seus direitos os debates parlamentares não esperam até que elas possam exercêlos com discernimento E a partir do momento em que um povo conhece seus direitos não há mais outro meio de governar além de instruílo O que todo gover no republicano precisa então é um vasto sistema de ensino gradu ado nacional e profissional que leve luz à obscuridade das mas sas que substitua todas as distinções arbitrárias que designe para cada classe seu nível para cada homem seu lugar Essa nova ordem era sem dúvida a da dignidade reconhecida da população trabalhadora de seu lugar preponderante na ordem social A emancipação intelectual era a inversão da velha hierarquia ligada ao privilégio da instrução Até ali a instrução havia sido o monopólio das classes dirigentes que justificavam sua hegemonia pelo fato bem conhecido de que as crianças do povo uma vez ins truídas não mais aceitavam o status de seus pais Era preciso inverter a lógica social do sistema A partir de então a instrução não seria mais um privilégio a falta de instrução é que seria uma incapacidade Era preciso para obrigar o povo a se instruir que em 1840 qualquer ho mem de vinte anos que não soubesse ler fosse declarado civilmente incapaz era preciso que lhe fosse imediatamente reservado um dos primeiros números do sorteio que condenavam ao serviço militar jo vens de pouca sorte Esta obrigação a pesar sobre o povo seria ao mesmo tempo uma obrigação contraída em seu favor Era preciso en contrar métodos expeditivos para que até 1840 toda juventude france sa soubesse ler Tal foi a divisa da Sociedade Nacional para a Eman cipação Intelectual Esparramai a instrução sobre a cabeça do povo vós lhe deveis esse batismo Junto às pias batismais se mantinha o secretário da sociedade rompido com a Sociedade dos Métodos admirador entusiasta do Ensino Universal Eugène Boutmy No primeiro número do Jornal ele prometia indicar métodos expeditivos para a instrução das mas sas Ele manteve sua palavra em um artigo intitulado O ensino por si próprio O mestre deveria lerem voz alta Calipso e o aluno repetir l der enooairtmrær Miles 3e année 1833 p 63 130 O emancipador e suas imitações Calipso em seguida separando bem as palavras Calipso não Ca lipso não podia etc O método se chamava Ensino Universal Natu ral em homenagem à natureza que ensinava ela própria seus filhos Um honorável deputado M Victor de Tracy havia instruído assim quarenta camponeses de sua comuna com tal sucesso que eles pude ram lhe escrever uma carta na qual registravam sua viva gratidão por terem sido introduzidos na vida intelectual Que cada correspon dente do Jornal fizesse o mesmo e logo a lepra da ignorância desa pareceria inteiramente do corpo social A Sociedade que pretendia estimular instituições exempla res interessouse igualmente pelo estabelecimento de M de Sé près Ela enviou seus comissários para examinar o novo método de autodidaxia que ensinava osjovens a refletir a falar e a raciocinar a partir dos fatos segundo o método natural que sempre foi o das grandes descobertas A situação do estabelecimento situado à Rue de Monceau num bairro parisiense renomado pelo seu ar deixa va hem pouco a desejar no que se refere à salubridade de sua ali mentação de sua higiene e de sua ginástica tanto quanto por seus sentimentos morais e religiosos Em três anos de ensino secundário e por um preço máximo de oitocentos francos por ano a Instituição comprometiase a tornar os alunos aptos a apresentaremse para qualquer exame de modo que um pai de família podia prever exa tamente o custo da instrução de seu filho calculando sua rentabili dade Nessas condições a Sociedade conferiu à Instituição de M de Séprès o título de Liceu Nacional Os pais que para lá enviassem seus filhos assumiam a responsabilidade de ler cuidadosamente os programas para determinar a carreira a que destinavam esses jovens Em contrapartida uma vez essa carreira determinada os comissários da Sociedade cuidariam para que a orientação desejada pelos pais fosse escrupulosamente seguida a fim de que o aluno aprendesse tudo o que poderia fazêlo distinguirse em sua profissão e que não aprendesse nada de supérfluo 1 Mas os comissários não tiveram infelizmente a possibilidade de levar muito além sua colaboração com a obra do Liceu Nacional Uma instituição agrícola bretã is lonroal der mnnaissaoes aîes 2e année n2 1832 p 1921 Ibidem 3 année p 208210 131 CoieGO EDVCACAO EPEBIfNCiR SENTIDO destinada a difundir os conhecimentos agronômicos e ao mesmo tempo regenerar uma parte dajuventude ociosa das cidades precipi tou a Sociedade Nacional para a Emancipação Intelectual em um abismo financeiro Mas ela ao menos havia semeado para o futuro Era um bom jornal o dos conhecimentos úteis Havíamos tomado vosso termo de emancipação intelectual e emancipávamos nossos as sinantes através de explicações Esta emancipação não oferece qual quer perigo Quando um cavalo recebe antolhos e é montado por um bom cavaleiro sabese onde vai Ele mesmo nada sabe mas podese estar tranqüilo por entre montes e vales ele jamais se desviará O triunfo do Velho Eis como o Ensino Universal e a própria expressão emancipa ção intelectual puderam ser colocados a serviço dos progressistas que trabalhavam eles próprios para maior benefício do Velho A divisão de trabalho se operava assim aos progressistas os métodos e patentes as revistas e jornais que entretinham o amor pelas explica ções pelo aperfeiçoamento indefinido de seu aperfeiçoamento ao Velho instituições e exames a gestão dos fundamentos sólidos da instituição explicadora e o poder de sanção social Por isso todas essas patentes de invenções que se chocam com o vazio do sistema explicador explicações de leitura escrita metamorfoseada línguas tornadas acessíveis quadros sinóticos métodos aperfeiçoados etc e tantas outras belas coisas copiadas em livros novos que oferecem novas explicações para os mais antigos o todo recomendado aos explicadores especializados de nossa época que se riem e com ra zão uns dos outros e de suas profecias Jamais como hoje em dia os donos de patentes foram merecedores de tanta lástima Eles são tão numerosos que quase não encontram um aluno que não tenha sua pequena explicação aperfeiçoada de modo que serão brevemente reduzidos a se explicarem reciprocamente suas respectivas explica ções o Velho zomba de suas brigas os excita nomeia comissões para julgálos contudo por mais que as comissões aprovem todos os aperfeiçoamentos ele jamais cede seu velho cetro a qualquer um Journal de Pemnmtipation intelkttuelle IV 18361837 p 328 132 O emancipador e suas imitações deles Divide et impera O Velho reserva para si os colégios as universidades e conservatórios e não concede aos outros mais do que patentes dizlhes que já é muito e eles acreditam Tal como o tempo o sistema explicador se alimenta de seus próprios filhos aos quais devora à medida que são produzidos uma nova explicação um novo aperfeiçoamento nascem e morrem em seguida para dar lugar a milhares de outros Assim se renovará o sistema explicador assim se preservarão os colégios de latim e as universidades de grego Gritarseá mas os colégios ficarão Zombarseá mas os doutíssimos e sapientíssimos continuarão a se saudar compenetrados em seus velhos costumes de cerimônia o jovem método industrial investirá diante dos maneiris mos científicas de seu avô no entanto os industriais empregarão ainda suas regras e seus compassos aperfeiçoados para construir o trono em que o Velho senil reinará sobre todos os ateliês Em uma palavra enquanto houver madeira sobre a terra os industriais farão cátedras explicadoras Eis como a vitória dos luminosos sobre os obscurantistas em andamento colaborou para o rejuvenescimento da mais antiga causa defendida pelos obscurantistas a desigualdade das inteligências E de fato essa divisão de papéis nada tinha de inconseqüente o que fundava a distração dos progressistas era a mesma paixão que funda qualquer distraçãoa opinião da desigualdade É bem verdade que a ordem social não obriga ninguém a acreditar na desigualdade nem impede qualquer um de anunciar a emancipação aos indivíduos e às familias Mas esse simples anúncio que os policiais jamais serão suficientes para impedir encontra também a resistência mais impe netrável a da hierarquia intelectual que não tem outro poder a não ser o da racionalização da desigualdade O progressivismo é a forma moderna desse poder purificada de toda mistura com as formas ma teriais de autoridade tradicional os progressistas não têm outro po der senão a ignorância a incapacidade do povo que embasa seu sa cerdócio Como sem abrir o abismo sob seus pés diriam aos homens do povo que não precisam recorrer a eles para serem homens livres e instruídos acerca de tudo que convém a sua dignidade Cada um t Enseignement universe Mathématiques 2 ed Paris 1829 p 191192 133 CoLEço EDUCAÇAO EXPERIENCIA E SENTIDO desses pretensos emancipadores tem seu rebanho de emancipados em que coloca sela rédeas e brida Todos se unem portanto para rejeitar o único método que não é bom o método funesto isto é o método da má emancipação o método o antimétodo Jacotot Os que calam esse nome próprio sabem o que fazem Pois esse é o nome que faz por si só toda a diferença que diz igualdade das inteligências e cava o abismo sob os pés de todos os provedores de instrução e de felicidade para o povo É preciso que o nome seja calado que o anúncio não se propague E que o charlatão o saiba de uma vez por todas Tu podes gritar por escrito os que não sabem ler não podem saber senão por nós o que imprimiste e seríamos bem tolos em anunciarlhes que eles não têm necessidade de nossas expli cações Se dermos lições de leitura a alguns continuaremos a empre gar todos os bons métodos jamais os que poderiam passar a idéia da emancipação intelectual Guardemonos de começar pela leitura das orações pois a criança que as conhece poderia acreditar que as teria adivinhado por si própria E sobretudo que elajamais descubra que aquele que sabe ler as orações pode aprender a ler sozinho todo o resto guardemonos dejamais pronunciar estas palavras emanci padoras aprender e relacionar O que mais do que tudo era preciso evitar era que os pobres soubessem que eles podiam se instruir por suas próprias capacida des que eles tinham capacidades essas capacidades que sucediam agora na ordem social e política aos antigos títulos de nobreza E a melhor coisa a fazer era instruílos isto é darlhes a medida de sua incapacidade Por toda parte se abriam escolas mas cm nenhum lu gar se desejava anunciar a possibilidade de aprender sem mestre ex plicador A emancipação intelectual tinha fundado sua política so bre um princípio não buscar penetrar as instituições sociais passar pelos indivíduos e pelas famílias Mas chegarase aunt momento em que esta separação que era a possibilidade da emancipação come çava a se tornar caduca Instituições sociais corporações intelectuais e partidos políticos vinham agora bater às portas das famílias se diri gir a todos os indivíduos para instruilos Até então a Universidade e Profil et philosophie pnnrcnsdgrre p 342 Profit etphilosophie pnnrcasligrre p 330331 134 O emancipador e suns imitações seu exame de admissão só controlavam o acesso a certas profis sões alguns milhares de advogados de médicos c de universitári os Todo o resto das carreiras sociais estava aberto àqueles que se haviam formado à sua guisa Não era preciso por exemplo bachare larse para ser politécnico Mas com o sistema de explicações aper feiçoadas instauravase também o de exames aperfeiçoados Des de então com a ajuda dos aperfeiçoadores o Velho bloqueava cada vez mais com seus exames a liberdade de aprender por outro meio além de suas explicações e pela nobre ascensão de seus graus A partir daí o exame aperfeiçoado representação exemplar da onisci ência do mestre e da incapacidade do aluno em jamais igualarse a ele se ergueria como poder incontornável da desigualdade das inte ligências sobre o caminho de quem pretendesse caminhar na socie dade por seus próprios pés A emancipação intelectual via assim suas defesas as falhas da antiga ordem inexoravelmente investi dos pelos avanços da máquina explicadora A sociedade pedagogizada Para isso todos conspiravam e tanto mais quanto mais que riam a república e a felicidade do povo Os republicanos têm por princípio a soberania do povo mas eles sabem perfeitamente que o povo soberano não pode ser identificado com a multidão ignorante e inteiramente entregue à defesa de seus interesses materiais Eles sa bem perfeitamente que a república significa igualdade de direitos e de deveres mas que ela não pode decretar a igualdade das inteligên cias E é claro que a inteligência de um camponês atrasado não é a mesma que a de um líder republicano Uns pensam que a desigualda de inevitável concorre para a diversidade social como a infinita va riedade de folhas concorre para a inesgotável riqueza da natureza Basta que ela não impeça que a inteligência inferior compreenda seus direitos e sobretudo seus deveres Outros pensam que o tempo pouco a pouco progressivamente atenuará esta deficiência causada por sé culos de opressão e de obscuridade Em ambos os casos a causa da igualdade da boa igualdade da igualdade não funesta tem o mesmo requisito a instrução do povo a instrução dos ignorantes pelos sábios 135 COIEÇAO EUUCAÇAO EXPERIENCIA E SENTIDO dos homens mergulhados em suas preocupações materiais egoístas pelos homens devotados de indivíduos fechados em seu particula rismo pela universalidade da razão e do poder públicos O que se denomina instrução pública isto é a instrução de um povo empírico programada por representantes do conceito soberano de povo A Instrução Pública é assim o braço secular do progresso o meio de equalizar progressivamente a desigualdade vale dizer de de sequalizar indefinidamente a igualdade Tudo sempre se sustenta em um só princípio a desigualdade das inteligências Admitido esse prin cípio não haveria em boa lógica senão uma conseqüência a ser dedu zida a direção de uma multidão estúpida pela casta inteligente Os republicanos e todos os homens de progresso sinceros sentem um salto no coração diante dessa conseqüência Todo seu esforço consiste em aceitar o princípio recusando a conseqüência É o que faz o eloqüente autor do Livro do povo M de Lamennais Sem dúvida reconhece honestamente os homens não possuem faculdades iguais 24 Mas o homem do povo deveria por esta razão ser condenado à obediência passiva ser reduzido ao nível dos animais Não pode ser assim Su blime atributo da inteligência a soberania de si distingue o homem da besta É certo que a repartição desigual desse sublime atributo põe em perigo a cidade de Deus que o predicador convida o povo a edificar Mas ela permanece possível se o povo souber servirse com sabedoria de seu direito conquistado O meio para que ele não seja depreciado o meio para que ele se sirva de seu direito com sabedo ria o meio para construir igualdade com a desigualdade é a instru ção do povo isto é a interminável compensação de seu atraso Tal é a lógica que se institui a da redução das desigualda des Quem consentiu com a ficção da desigualdade das inteligências que recusou a única igualdade que a ordem social poderia comportar só pode mesmo correr de ficção em ficção e de ontologia em corpora ção para conciliar povo soberano e povo atrasado desigualdade de inteligências e reciprocidade de direitos e deveres A Instrução Públi ca a ficção social instituída da desigualdade como atraso é a mágica que conciliará todos esses seres de razão E ela o fará ampliando ao l r livreeívpnepk Pads 1838 p 65 eJournaldephiosopinepanecaslùue t M 1838 p144 z Cit aproximada do Iivre dupeupk p 73 inJourna4k philasophiepanerartique p 145 136 O emancipador e suas imitações infinito o campo de suas explicações e dos exames que as controlam Nesse sentido o Velho sempre ganhará com as novas cátedras dos industriais e com a fé luminosa dos progressistas Contra isso nada mais há a fazer além de redizer sempre a esses homens supostamente sinceros que prestem mais atenção Mudai esta forma quebrai esta coleira rompei rompei todo pacto com o Velho Imaginai que ele não é mais imbecil do que vós Pensai sobre isso e dizeime o que vos parece 26 Mas como poderiam eles escutar o que se segue Como escutar que a missão dos luminosos não é esclarecer os obscurantistas Qual homem de ciência e de devoção aceitaria dei xar sua lucerna sobre o alqueire e o sal da terra sem sabor E como as jovens plantas frágeis os espíritos infantis do povo acreditariam sem o benfazejo orvalho das explicações Quem poderia compreender que o meio para eles de elevaremse na ordem intelectual não era aprender com os sábios o que ignoravam mas ensinar a outros igno rantes Este discurso um homem pode com muita dificuldade com preendêlo mas nenhuma capacidade jamais o entenderá Joseph Jacotot ele próprio nunca não o teria escutado sem o acaso que o fizera mestre ignorante Somente o acaso é forte o suficiente para derrubar a crença instituída encamada na desigualdade Bastaria no entanto umnada Bastaria que os amigos do povo por um curto instante fixassem sua atenção sobre esse ponto de partida sobre esse primeiro princípio que se resume em um sim ples e bastante antigo axioma metafísico a natureza do todo não pode ser a mesma do que a das partes O que se fornece de raciona Iidade à sociedade tomase aos indivíduos que a compõem E o que ela recusa aos indivíduos a sociedade poderá tomar para si mas jamais poderá devolverlhes Dáse com a razão o mesmo que com a igualdade que é seu sinônimo É preciso escolher entre atribuila a indivíduos reais ou à sua fictícia reunião É preciso escolher entre fazer uma sociedade desigual com homens iguais ou uma socieda de igual com homens desiguais Quem tem só um pouco de gosto pela igualdade não deveria hesitar os indivíduos são seres reais e a sociedade uma ficção Enselgnemenl universel Mathématiques 2 ed Paris 1829 p 22 137 CaIECAO EDUCACTAo EMPEIÈNCA E SENiIDO Bastaria aprender a ser homens iguais em uma sociedade desi gual é isto que emancipar significa Esta coisa tão simples é no entanto a mais dificil de compreender sobretudo desde que a nova explicação o progresso misturou de forma inextricável a igualda de e seu contrário A tarefa à qual as capacidades e os corações repu blicanos se consagram é construir uma sociedade igual com homens desiguais reduzir indefinidamente a desigualdade Porém quem to mou esse partido só tem um meio de Ieválo a tenho a pedagogiza ção integral da sociedade isto é a infantilização generalizada dos indivíduos que a compõem Mais tarde chamarseá a issofoonaçiio contínuacoextensividade entre a instituição explicadora e a soci edade A sociedade dos inferiores superiores será igual ela reduzirá suas desigualdades quando se houver transformado inteiramente em uma sociedade de explicadores explicados A singularidade a loucura de Joseph Jacotot foi a de pressentir o momento em que a jovem causa da emancipação a da igualdade dos homens estava em vias de se transformarem causa do progresso social E o progresso social era antes de qualquer outra coisa o progresso na capacidade de a ordem social ser reconhecida como ordem racional Essa crença só poderia se desenvolverem detrimen to do esforço de emancipação dos indivíduos razoáveis ao preço do sufocamento das virtualidades humanas contidas na idéia de igualda de Unia enorme máquina de promoção da igualdade pela instrução estava sendo constituída Tratavase da igualdade representada so cializadadesignaizada própria para ser aperteiçoada isto é retar dada de comissão em comissão de relatório em relatório de reforma em reforma até a consumação dos tempos Jacotot foi o único a pen sar esse ocultamento da igualdade sob o progresso da emancipação sob a instrução Entendamos bem seu século conheceu uma profu são de oradores antiprogressistas cuja lucidez os ares do tempo pre sente de desgaste do progresso obrigam a homenagear Porém tal vez seja honra excessiva eles simplesmente odiavam a igualdade Odiavam o progresso porque como os progressistas confundiam no com a igualdade Jacotot foi o único igualitário a perceber que a representação e a institucionalização do progresso acarretava a renúncia à aventura intelectual e moral da igualdade e que a instrução pública era o trabalho do luto da emancipação Um saber dessa ordem 138 O emancipador e suas imitações provoca uma horrorosa solidão Jacotot acostumouse a essa solidão Rejeitou qualquer tradução pedagógica e progressista da igualdade emancipadora Ele fez saber aos discípulos que escondiam seu nome sob a insígnia do método natural ninguém na Europa estava em condições de carregar esse nome o nome do louco O nome Jacotot era o nome próprio desse saber a uma só vez desesperado e irônico da igualdade dos seres razoáveis sepultada sob a ficção do progresso Os contos da panecástica Não havia nada a fazer senão manter a distância agarrada a esse nome próprio Assim Jacotot cuidou de colocar as coisas em seu devido lugar Para os progressistas que vinham vêlo reservava um crivo Quando eles se inflamavam por causa da igualdade ele lhes dizia suavemente podese ensinar o que se ignora Esse crivo mostravase infelizmente muito eficaz Era como apoiar sobre uma mola quejamais deixava de responder A palavra diziam eles unani memente era mal escolhida Havia ainda os discípulos dentre os quais uma pequena falange que incumbiase agora de carregar a bandeira face aos professores do Ensino Universal Natural Com eles procedia à sua maneira pacificamente Ele os dividia em duas classes a dos discípulos ensinadores ou explicadores do método Jacotot que buscavam conduzir os alunos do Ensino Universal à emancipação intelectual e os discípulos emancipadores que só ins truíam a partir da premissa da emancipação ou mesmo nada ensi navam contentandose em emancipar pais de família na medida em que lhes mostravam como ensinar a seus filhos o que ignoravam Está claro que nem por isso tinham o mesmo peso para ele que preferia um emancipado ignorante um só a cem milhões de sábios instruidos pelo Ensino Universal e não emancipados 7 Porém o pró prio termo de emancipação havia se tornado equivoco Após o fra casso do empreendimento de Girardin M de Séprès tomara o título LÉmancipation para seu jornal generosamente alimentado pelos melhores trabalhos dos alunos do Liceu Nacional A ele estava liga da uma Sociedade para a Propagação do Ensino Universal cujo 2 lnnrua rle Peruanrlpatiou inlelrtuel t III 18351836 p 276 139 COEEÇ20 EDuCAAO EPE1Ndn E SENTIDO vicepresidente defendia de forma bastante eloqüente a necessida de de professores qualificados e a impossibilidade de que pais de família pobres pudessem se ocupar eles próprios da instrução de seus filhos Era preciso marcar a diferença o jornal de Jacotot que seus dois filhos redigiam a partir do que ele ditava sua enfermidade o impedia de escrever ele era obrigado a lutar para sustentar uma cabeça que não mais queria se manter ereta este jornal portanto tomou o título de Jornal de Filosofia Panecástica À sua imagem seus fiéis criaram uma Sociedade de Filosofia Panecástica Desse nome ninguém tentaria apropriarse Sabemos o que isso significava em cada manifestação inte lectual há o todo da inteligência humana Opanecástico é um amante de discursos tal como o maligno Platão e o ingênuo Fedro Mas à diferença desses protagonistas de Platão ele não reconhecia uma hierarquia entre os oradores nem entre seus discursos O que lhe interessava ao contrário era buscar sua igualdade Tampouco ele esperava de qualquer discurso a verdade Pois a verdade se sente não se diz Ela fornece uma regra para a conduta do orador mas ela jamais se manifesta em suas frases O panecástico também não jul ga a moralidade dos discursos A moral que conta para ele é aquela que preside ao ato de falar e de escrever aquela da intenção de comunicar do reconhecimento do outro como sujeito intelectual capaz de compreender o que outro sujeito intelectual quer lhe di zer O panecástico se interessa por todos os discursos por todas as manifestações intelectuais com um só objetivo verificar se eles põem em ação a mesma inteligência verificar traduzindoos uns nos outros a igualdade das inteligências Isso supunha a adoção de uma atitude inédita em relação aos debates da época A batalha intelectual acerca do povo e de sua capacidade está na moda M de Lamennais publicara o Livre du Peuple M Lerminier saintsimoniano arrependido e oráculo da Revue des deux mondes havia denunciado a inconseqüência Mme George Sand havia por sua vez tomado a si a bandeira do povo e de sua soberania O Journal de philosophie panécastique analisa va cada uma destas manifestações intelectuais Cada qual pretendia trazer ao campo político o testemunho da verdade Tratavase de uma questão do interesse do cidadão mas ao panecástico ela de 140 O emancipador e suas imitações nada interessava O que lhe importava era a cascata de refutações era a arte que uns e outros empregavam para exprimiro que queriam dizer Ele mostrava como ao traduziremse eles traduziam mil ou tros poemas mil outras aventuras do espírito humano obras clássi cas como até mesmo o Barba Azul ou as réplicas proletárias da Praça Maubert Essa pesquisa não era um prazer de erudito Era uma filosofia a única que o povo podia praticar As velhas filosofias diziam a verdade e ensinavam a moral Elas supunham que para tanto era preciso ser muito sábio A panecástica não dizia a verda de nem pregava qualquer moral Além disto era simples e fácil como o relato que cada qual faz de suas aventuras intelectuais É a história de cada um de nós Qualquer que seja vossa especiali dade pastor ou rei podeis discorrer sobre o espírito humano A inte ligência está em ação em todos os ofícios ela pode ser encontrada em todos os degraus da escala social o pai e o filho ignorantes um e outro podem entreterse de panecástica O problema dos proletários excluídos da sociedade oficial e da representação política não era diferente daquele dos sábios e dos poderosos como esses últimos eles só podiam tornarse ho mens no sentido pleno da palavra pelo reconhecimento da igual dade A igualdade não se concede nem se reivindica ela se prati ca ela se verifica E os proletários não podiam verificála senão reconhecendo a igualdade de inteligência de seus líderes e de seus adversários Eles sem dúvida tinham interesse em lutar por exem plo pela liberdade de imprensa atacada pelas leis de setembro de 1835 eles deviam contudo reconhecer que para defendêla o ra ciocínio de seus defensores não dispunha nem de mais força nem menos do que dispunham de seus adversários para refutála Pre tendo dizem em resumo alguns que se tenha a liberdade de dizer tudo aquilo que se deve ter a liberdade de dizer Não quero respondiam em suma os outros que se tenha a liberdade de dizer tudo aquilo que não se deve lera liberdade de dizer O importante a manifestação da liberdade estava em outro lugar na arte igual que para sustentar essas posições antagônicas uns traduziam dos ou tros na estima nascida da comparação pelo poder da inteligência a Droit etphilosophie paneeasligne p 214 141 COLECAO EDJCnCAO EYGERIÉnCA E SErmoo que não cessa de se exercer no próprio seio da desrazão retórica no reconhecimento daquilo que falar pode querer dizer para quem re nuncia à pretensão de ter razão e de dizer a verdade ao preço da morte do outro Apropriarse dessa arte conquistar essa razão era isto que contava para os proletários É preciso ser homem antes de ser cidadão Qualquer que seja o partido que como cidadão ele possa tomar nessa luta como panecástico ele deve admirar o espíri to de seus adversários Um proletário expulso da classe dos eleitores e por motivo ainda mais forte da classe dos elegíveis não é obriga do a considerarjusto o que lhe parece como uma usurpação nem de amar os usurpadores Mas ele deve estudar a arte daqueles que lhe explicam como ele é despojado para o seu próprio bem 20 Nada havia a fazer senão persistir em indicar essa via extrava gante que consistia em identificar em cada frase em cada ato olado da igualdade A igualdade não era um objetivo a atingir mas um ponto de partida uma suposição a ser mantida em qualquer circuns tãnciu A verdade jamais falaria por si própria Ela jamais existiria sem a verificação sempre e em toda parte E isso não era um discur so a fazer ao povo mas apenas um exemplo ou antes exemplos a serem demonstrados em uma conversa Isso era uma moral do fra casso e dadistância a ser mantida até o fim com aqueles que quises sem partilhála Buscai a verdade e não a encontrareis batei à sua porta e ela não vos abrirá mas essabusca vos será útil para aprender a fazer I renunciai a beber dessa fonte mas não cesseis de buscar beber aí 1 Vinde e poetizaremos Viva a Filosofia Panecástica Ela é uma contadora de histórias que jamais chega ao fim de seus contos Ela se entrega ao prazer da imaginação sem ter qualquer conta a prestar à verdade que velada ela só enxerga por debaixo de seus disfarces Ela se contenta em admirar essas máscaras anali sálas sem se atormentar quanto ao semblante que está por debaixo O Velho jamais está satisfeito ele levanta uma máscara se regozija mas sua alegria dura pouco ele percebe rapidamente que a máscara que retirou cobria uma outra e assim até a consumação dos que buscam verdades A supressão dessas máscaras superpostas é o que 21 Ihroil rlghrloroghregtucWrque p 293 142 O emancipador e suas imitações se chama de história da filosofia Oh Que bela história Prefiro porém os contos panecásticos O túmulo da emancipação Assim se concluem as Miscelâneas póstumas de Filosofia Pa necóstica publicados em 1841 pelos filhos de Joseph Jacotot Vic tor o médico e Fortuné o advogado O Fundador havia morrido em 7 de agosto de 1840 Sobre sua lápide no Cemitério PèreLachaise os discípulos fizeram gravar o credo da emancipação intelectual Creio que Deus criou a alma humana capaz de se instruir por si própria e sem mestres Mas estas coisas decididamente não se escrevem nem mesmo sobre o mármore de uma tumba Alguns meses mais tarde a inscrição seria profanada A notícia da profanação foi publicada no Journal de lémancipation intellectuelle cuja responsabilidade Fortuné e Vic tor Jacotot haviam assumido Nunca é contudo possível substituir a voz de um solitário nem mesmo quando durante vários lustros com ele se colaborou intimamente De número em número avolu maramse no Journal os relatórios que M Devaureix advogado na Corte de Lion preparava acerca da atividade do Instituto do Verbo Encarnado que como estamos lembrados M Louis Guillard diri gia nessa cidade segundo os princípios que aprendera em sua via gem a Louvain o ensino deveria ser baseado no Conhecete a ti mes mo Assim o exame de consciência cotidianamente praticado pelas jovens almas dos pensionistas davalhes a força moral que conduzia ao sucesso de sua aprendizagem intelectual Os panecásticos puros e empedernidos sobressaltaramse com essa curiosa aplicação da doutrina emancipadora publicada no nú mero de setembro de 1842 Não era mais porém tempo de debate Dois meses após era a vez de o Journal de lémancipation intellec anelle silenciarse O Fundador havia predito que o Ensino Universal não vinga ria É bem verdade que havia acrescentado também que elejamais morreria t19é4éyer posthumes p 349331 143
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Coleção Educação Experiência e Sentido Jacques Rancière O mestre ignorante Cinco lições sobre a emancipaçào intelectual Tradução Lilian do Valle a Autêntica Belo Horizonte 2002 O mestre ignorante Cinco lições sobre a emancipação intelectual Le Maitre Ignorant de Jacques Rancière Word copyright Librairie Artheme Fayard 1987 Projeto gráfico da capa Jairo Alvarenga Fonseca Sobre O Nalário rie Nice 1919 Amedeo Modigliani Coordenadores da coleção Jorge Carrara Walter Kohan Revisão Fnck Ramalho RancièreJacques R185m C mestre ignorante cinco lições sobre a emancipação intelectualJacques Rancière tradução de Lilian do Valle Belo Horizonte Auténtica 2002 144p Educação Experiência e Sentido 1 ISBN 8575260456 1 Filosofia da educação I Valle Lilian do II Título III Série 2002 Todos os direitos no Brasil reservados pela Autêntica Editora Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida seja por meios mecânicos eletrônicos seja via cópia xerográfica sem a autorização prévia da editora 0al CDU 3701 Auténtica Editora Rua Januária 437 Floresta 31110060 Belo Horizonte MG PABX 55 31 3423 3022 TELEVENDAS 0800 2831322 wwwautenticaeditoracombr email autenticarilautenticaeditoracombr APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO A experiência e não a verdade é o que dá sentido à escritura Digamos com Foucault que escrevemos para transformar o que sabe mos e não para transmitir o já sabido Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de escritura essa experiên cia em palavras nos permita liberarnos de certas verdades de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa diferentes do que vimos sendo Também a experiência e não a verdade é o que dá sentido à edu cação Educamos para transformar o que sabemos não para transmitir o já sabido Se alguma coisa nos anima a educar é a possibilidade de que esse ato de educação essa experiência em gestos nos permita liberar nos de certas verdades de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa para além do que vimos sendo A coleção Educação Experiência e Sentido propõese a tes temunhar experiências de escrever na educação de educar na es critura Essa coleção não é animada por nenhum propósito revela dor convertedor ou doutrinário definitivamente nada a revelar ninguém a converter nenhuma doutrina a transmitir Tratase de apresentar uma escritura que permita que enfim nos livremos das verdades pelas quais educamos nas quais nos educamos Quem sabe assim possamos ampliar nossa liberdade de pensar a educação e de nos pensarmos a nós próprios como educadores O leitor po derá concluir que se a filosofia é um gesto que afirma sem conces sões a liberdade do pensar então esta é uma coleção de filosofia da educação Quiçá os sentidos que povoam os textos de Educação Experiência e Sentido possam testemunháIo Jorge Larrosa e Walter Kohan Coordenadores da Coleção Jorge Lanosa é Professor de Teoria e História da Educação da Universidade de Barcelona e Walter Kohan é Professor Titular de Filosofia da Educação da UERJ ÍNDICE 9 Prefácio à edição brasileira Jacques Rancière 15 Unia aventura intelectual A ordem explicadora 17 O acaso e a vontade 21 O mestre emancipador 25 O círculo da potência 27 31 A lição do ignorante A ilha do livro 32 Calipso e o serralheiro 36O mes tre e Sócrates 40O poder do ignorante 42 Os negócios de cada um 44 O cego e seu cão 49 Tudo está em tudo 52 55 A razão dos iguais Cérebros e folhas 56 Um animal atento 59 Uma von tade servida por uma inteligência 64 O princípio da veraci dade 66 A razão e a língua 69 Eu também sou pintor 74 A lição dos poetas 76 A comunidade dos iguais 80 83 A sociedade do desprezo As leis da gravidade 84 A paixão da desigualdade 88 A loucura retórica 91 Os inferiores superiores 94 O rei filósofo e o povo soberano 97 Como desrazoar razoavel mente 99 A palavra no Aventino 104 107 O emancipador e suas imitações O método emancipador e o método socia 1 08 Eman cipação dos homens e instrução do povo 111 Os homens do progresso 114 De carneiros e homens 118 O círculo dos progressistas 122 Sobre a cabeça do povo 127 O triunfo do Velho 132 A sociedade pedagogizada 135 Os contos da panecástica 139 0 túmulo da emancipação 143 PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA Qual o sentido de propor ao leitor brasileiro deste início de terceiro milênio a história de Joseph Jacotot seja em aparência a história de um extravagante pedagogo francês dos inícios do século XIX Mas haveria já qualquer sentido em propôla quinze anos mais cedo aos cidadãos da França apesar de tudo supostamente apaixonada por tudo quanto é antigüidade nacional A história da pedag ogia decerto conhece suas extravagâncias E estas por tanto quanto se devem à própria estranheza da relação pedagógica foram freqüentemente mais instrutivas do que as proposições mais racionais No entanto no caso de Joseph Jacotot o que está em jogo é bem mais do que apenas um artigo entre tantos no grande museu de curiosida des pedagógicas Pois tratase aqui de uma voz solitária que em um momento vital da constituição dos ideais das práticas e das institui ções que ainda governam nosso presente ergueuse como uma disso nância inaudita como uma dessas dissonâncias a partir das quais não se pode mais construir qualquer harmonia da instituição pedagógica e que portanto é preciso esquecer para poder continuar a edificar esco las programas e pedagogias mas também como uma dessas disso nâncias que em certos momentos talvez seja preciso escutar ainda para que o ato de ensinar jamais perca inteiramente a consciência dos paradoxos que lhe fornecem sentido Revolucionário na França de 1789 exilado nos Países Baixos quando da restauração da monarquia Joseph Jacotot foi levado a tomar a palavra no exato momento em que se instala toda uma lógica de pensamento que poderia ser assim resumida acabar a revolução no duplo sentido da palavra por um termo em suas desordens reali zando a necessária transformação das instituições e mentalidades de que foi a encarnação antecipada e fantasmática passar da fase das febres igualitárias e das desordens revolucionárias à constituição de uma nova ordem de sociedades e governos que conciliasse o pro gresso sem o qual as sociedades perdem o elã e a ordem sem a qual elas se precipitam de crise em crise Quem pretende conciliar ordem 9 COLPO Eoocrno EXPERT NC E SE DO e progresso encontra naturalmente seu modelo em uma instituição que simboliza sua união a instituição pedagógica lugar material e simbólico onde o exercício da autoridade e a submissão dos sujei tos não têm outro objetivo além da progressão destes sujeitos até o limite de suas capacidades o conhecimento das matérias do progra ma para a maioria a capacidade de se tornar mestre por sua vez para os melhores Nesta perspectiva o que deveria portanto arrematar a era das revoluções era a sociedade da ordem progressiva a ordem idêntica à autoridade dos que sabem sobre os que ignoram ordem votada a redu zir tanto quanto possível a distância entre os primeiros e os segundos Na França dos anos 1830 isto é no país que havia feito a experiência mais radical da Revolução e que assim se acreditava chamada por excelência a completar esta revolução por meio da instituição de uma ordem moderna razoável a instrução tornavase uma palavra de or dem central governo da sociedade pelos cidadãos instruídos e forma ção das elites mas também desenvolvimento de formas de instrução destinadas a fornecer aos homens do povo conhecimentos necessá rios e suficientes para que pudessem a seu ritmo superar a distân cia que os impedia de se integrarem pacificamente na ordem das sociedades fundadas sobre as luzes da ciência e do bom governo Fazendo passar os conhecimentos que possui para o cérebro daqueles que os ignoram segundo uma sábia progressão adaptada ao nível das inteligências limitadas o mestre era ao mesmo tempo um paradigma filosófico e o agente prático da entrada do povo na sociedade e na ordem governamental modernas Esse paradigma pode servir para pedagogos mais ou menos rígidos ou para liberais Mas estas diferenças não desmerecem em nada a lógica do conjunto do modelo que atribui ao ensino a tarefa de reduzir tanto quanto possí vel a desigualdade social reduzindo a distância entre os ignorantes e o saber Foi sobre esta questão exatamente que Jacotot fez escutar para seu tempo e para o nosso sua nota absolutamente dissonante Ele preveniu a distância que a Escola c a sociedade pedagogi zada pretendem reduzirá aquela de que vivem e que não cessam de reproduzir Quem estabelece a igualdade como objetivo a ser atingi do a partir da situação de desigualdade de fato a posterga até o infinito A igualdade jamais vem após como resultado a ser atingi 10 Prefácio do Ela deve sempre ser colocada antes A própria desigualdade social já a supõe aquele que obedece a uma ordem deve primeira mente compreender a ordem dada e em seguida compreender que deve obedecêla Deve portanto serjá igual a seu mestre para sub meterse a ele Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas e é sobre este saber sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar Instruirpode portanto significar duas coisas absolutamente opostas confirmar uma incapacidade pelo próprio ato que pretende reduzila ou inversamente forçar uma capacidade que se ignora ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas as conseqüências desse reconhecimento O primeiro ato chamase em brutecimento e o segundo emancipação No alvorecer da marcha triunfal do progresso para a instrução do povo Jacotot fez ouvir esta declaração estarrecedora esse progresso e essa instrução são a eter nização da desigualdade Os amigos da igualdade não têm que ins truir o povo para aproximálo da igualdade eles têm que emancipar as inteligências têm que obrigar a quem quer que seja a verificar a igualdade de inteligências Não se trata dc uma questão de método no sentido de formas particulares de aprendizagem tratase de uma questão propriamente filosófica saber se o ato mesmo de receber a palavra do mestre a palavra do outro é um testemunho de igualdade ou de desigualda de É uma questão política saber se o sistema de ensino tem por pressuposto unia desigualdade a ser reduzida ou uma igualdade a ser verificada É por isto que o discurso de Jacotot é o mais atual possível Se acreditei dever fazêlo ouvir ainda na França dos anos 80 é porque me pareceu que ele era o único que poderia libertar a reflexão sobre a Escola do debate interminável entre duas grandes estratégias de redução das desigualdades De um lado a chega da ao poder do Partido Socialista havia inscrito na ordem do dia as proposições da sociologia progressista que a obra de Pierre Bour dieu em particular encarnava Esta obra como se sabe instalava no âmago da desigualdade escolar a violência simbólica imposta por todas as regras tácitas do jogo cultural que asseguram a repro dução dos herdeiros e a autoeliminação dos filhos das classes populares Mas ela retira dessa situação c segundo a própria lógi ca do progressivismo duas conseqüências contraditórias Por um lado t t ColEDAO EDUCACÃO EXPERIENCInE SENTIDO ela propõe a redução da desigualdade pela explicitação das regras do jogo e pela racionalização das formas de aprendizagem De outro ela enuncia implicitamente a vanidade de qualquer reforma fazendo dessa violência simbólica um processo que reproduz indefinidamente suas próprias condições de existência Os reformistas governamen tais não estão porém muito interessados nesta duplicidade própria a toda pedagogia progressista Da sociologia de Pierre Bourdieu eles extraíram portanto um programa que visava reduzir as desi gualdades da Escola reduzindo a parte que cabia à grande cultura legítima tornandoa mais convivial mais adaptada às sociabilida des das crianças das camadas desfavorecidas isto é essencial mente dos filhos de emigrantes Este sociologismo restrito não fa zia infelizmente senão afirmar melhor o pressuposto central do progressivismo que determina que aquele que sabe se faça aces sível aos desiguais confirmando desta forma a desigualdade presente em nome da igualdade futura Eis porque ele deveria rapidamente suscitar uma reação con trária Na França a ideologia dita republicana reagiu prontamente denunciando esses métodos que adaptados aos pobres não podem ser jamais senão métodos de pobres e que começam por mergulhar os dominados na situação de que se tenta retirálos Para essa ide ologia o poder da igualdade residia ao contrário na universalidade de um saber igualmente distribuído a todos sem considerações de origem social em uma Escola bem separada da sociedade Entre tanto o saber não comporta por si só qualquer conseqüência igua litária A lógica da Escola republicana de promoção da igualdade pela distribuição do universal do saber fazse sempre ela própria prisioneira do paradigma pedagógico que reconstitui indefinidamen te a desigualdade que pretende suprimir A pedagogia tradicional da transmissão neutra do saber tanto quanto as pedagogias modernistas do saber adaptado ao estado da sociedade mantêmse de um mesmo lado em relação à alternativa colocada por Jacotot Todas as duas tomam a igualdade como objetivo isto é elas tomam a desigualdade como ponto de partida As duas estão sobretudo presas no círculo da sociedade peda gogizada Elas atribuem à Escola o poder fantasmático de realizar a igualdade social ou ao menos de reduzir a fratura social Mas 12 Prefácio este fantasma repousa ele próprio sobre uma visão da sociedade em que a desigualdade é assimilada à situação das crianças com retardo As sociedades do tempo de Jacotot confessavam a desigualdade e a divisão de classes A instrução era para elas um meio de instituir algumas mediações entre o alto e o baixo um meio de conceder aos pobres a possibilidade de melhorar individualmente sua condição e de dar a todos o sentimento de pertencer cada um em seu lugar a uma mesma comunidade Nossas sociedades estão muito longe desta franqueza Elas se representam como sociedades homogêneas em que o ritmo vivo e comum da multiplicação das mercadorias e das trocas anulou as velhas divisões de classes e fez com que todos par ticipassem das mesmas fruições e liberdades Não mais proletários apenas recémchegados que ainda não entraram no ritmo da moder nidade ou atrasados que ao contrário não souberam se adaptar às acelerações desse ritmo A sociedade se representa assim como uma vasta escola que tem seus selvagens a civilizar e seus alunos em difi culdade a recuperar Nestas condições a instrução escolar é cada vez mais encarregada da tarefa fantasmática de superar a distância entre a igualdade de condições proclamada e a desigualdade existente cada vez mais instada a reduzir as desigualdades tidas como residuais Mas a tarefa última desse sobreinvestimento pedagógico é finalmente le gitimar a visão oligárquica de uma sociedadeescola em que o governo não é mais do que a autoridade dos melhores da turma A estes me lhores da turma que nos governam é oferecida então mais uma vez a antiga alternativa uns lhes pedem que se adaptem através de uma boa pedagogia comunicativa às inteligências modestas e aos proble mas cotidianos dos menos dotados que somos outros lhes requerem ao contrário administrar a partir da distância indispensável a qual quer boa progressão da classe os interesses da comunidade Era bem isto que Jacotot tinha em mente a maneira pela qual a Escola e a sociedade infinitamente se simbolizam uma à outra re produzindo assim indefinidamente o pressuposto desigualitário em sua própria denegação Não que ele estivesse animado pela perspec tiva de uma revolução social Sua lição pessimista era ao contrário que o axioma igualitário não tem efeitos sobre a ordem social Mes mo que em última instância a igualdade fundasse a desigualdade ela não podia se atualizar senão individualmente na emancipação 13 COLEÇÃO Eooco ERRERifNCA E SEaIOÓ intelectual que deveria devolver a cada um a igualdade que a ordem social lhe havia recusado e lhe recusaria sempre por sua própria natureza Mas esse pessimismo também tinha seu mérito ele marca va a natureza paradoxal da igualdade ao mesmo tempo princípio último de toda ordem social e governamental e excluída de seu fun cionamento normal Colocando a igualdade fora do alcance dos pedagogos do progresso ele a colocava também fora do alcance das mediocridades liberais e dos debates superficiais entre aqueles que a fazem consistirem formas constitucionais e em hábitos da so ciedade A igualdade ensinava Jacotot não é nem formal nem real Ela não consiste nem no ensino uniforme de crianças da república nem na disponibilidade dos produtos de baixo preço nas estantes de supermercados A igualdade é fundamental e ausente ela é atual e intempestiva sempre dependendo da iniciativa de indivíduos e gru pos que contra o curso natural das coisas assumem o risco de veri fìcala de inventar as formas individuais ou coletivas de sua verifi cação Essa lição ela também é mais do que nunca atual Jacques Rancière Maio de 2002 CAPÍTULO PRIMEIRO Uma aventura intelectual No ano de 1818 Joseph Jacotot leitor de literatura francesa na Universidade de Louvain viveu uma aventura intelectual Uma longa e movimentada car reiradeveria no entanto têlo res guardado das surpresas dezenove anos comemorados em 1789 Ele então ensinava Retórica em Dijon e se preparava para o ofício de advogado Em 1792 havia servido como artilheiro nas tropas da Re pública Em seguida a Convenção o teve sucessivamente como ins trutor na Seção das Pólvoras Secretário do Ministro da Guerra e subs tituto do Diretor da Escola Politécnica De retorno a Dijon ele havia ensinado Análise Ideologia e Línguas Antigas Matemáticas Puras e Transcendentes e Direito Em março de 1815 a estima de seus compa triotas o havia tornado à sua revelia deputado A volta dos Bourbons o conduzira ao exílio onde obtivera da liberalidade do rei dos Países Baixos o posto de professor em meio período Joseph Jacotot conhecia as leis da hospitalidade e contava passar em Louvain dias tranqüilos Mas o acaso decidiu outra coisa Com efeito àss lições do mo desto leitor acorreram rapidamente os estudantes E entre aqueles que se dispuseram a delas bencliciarse um bom número ignorava o fran cês Joseph Jacotot por sua vez ignorava totalmente o holandês Não existia portanto língua na qual pudesse instruílos naquilo que lhe solicitavam Apesar disso ele quis responder às suas expectativas Para tanto era preciso estabelecer entre eles o laço mínimo de uma coisa comum Ora publicarase em Bruxelas naquela época uma edição hilíngüe do Telémaco estava encontrada a coisa comum e 15 CQECAC EoVCACUO EXPERIENCIA E SfNiIDO Uma aventura intelectual dessa forma Telêmaco entrou na vida de Joseph Jacotot Por meio de um intérprete ele indicou a obra aos estudantes e lhes solicitou que aprendessem amparados pela tradução o texto francês Quando eles haviam atingido a metade do livro primeiro mandou dizerlhes que repetissem sem parar o que haviam aprendido e quanto ao resto que se contentassem em lêlo para poder narrálo Era uma solução de improviso mas também em pequena escala uma experiência fi losófica no gosto daquelas tão apreciadas no Século das Luzes E Joseph Jacotot em 1818 permanecia um homem do século passado No entanto a experiência superou suas expectativas Ele soli citara aos estudantes assim preparados que escrevessem em francês o que pensavam de tudo quanto haviam lido Ele estava esperando por terríveis barbarismos ou mesmo por uma impotência absoluta Como de fato poderiam todos esses jovens privados de explica ções compreender e resolver dificuldades de uma língua nova para eles De toda forma era preciso verificar até onde esse novo cami nho aberto por acaso os havia conduzido e quais os resultados des se empirismo desesperado Mas qual não foi sua surpresa quando descobriu que seus alunos abandonados a si mesmos se haviam saído tão bem dessa difícil situação quanto o fariam muitos france ses Não seria pois preciso mais do que querer para poder Todos os homens seriam pois virtualmente capazes de compreender o que outros haviam feito e compreendido Tal foi a revolução que essa experiência do acaso provocou em seu espírito Até ali ele havia acreditado no que acreditam todos os professores conscienciosos que a grande tarefa do mestre é transmitir seus conhecimentos aos alunos para eleválos gradativamente à sua própria ciência Como eles sabia que não se tratava de entupir os alu nos de conhecimentos fazendoos repetir como papagaios mas tam bém que é preciso evitar esses caminhos do acaso onde se perdem os espíritos ainda incapazes de distinguir o essencial do acessório e o princípio da conseqüência Em suma o ato essencial do mestre era explicar destacar os elementos simples dos conhecimentos e Félix e Victor Ratier Enseignement universel Emancipation intellectuelle Journal dephilosophie pansa tique 1838 p 155 harmonizar sua simplicidade de princípio com a simplicidade de fato que caracteriza os espíritos jovens e ignorantes Ensinar era em um mesmo movimento transmitir conhecimentos e formar os espíritos levandoos segundo uma progressão ordenada do simples ao com plexo Assim progredia o aluno na apropriação racional do saber e na formação do julgamento e do gosto até onde sua destinação social o requeria preparandose para dar à sua educação uso compatível com essa destinação ensinar advogar ou governar para as elites conceber desenhar ou fabricar instrumentos e máquinas para as novas vanguar das que se buscavam agora arrancar da elite do povo fazer na carrei ra das ciências novas descobertas para os espíritos dotados desse gê nio particular Sem dúvida o procedimento desses homens de ciência divergia sensivelmente da ordem razoada dos pedagogos Mas não se extraía daí qualquer argumento contra essa ordem Ao contrário é pre ciso haver adquirido inicialmente uma formação sólida e metódica para dar vazão às singularidades do gênio Post hoc ergo propter hoc Assim raciocinam todos os professores conscienciosos Assim havia raciocinado e agido Joseph Jacotot em trinta anos de oficio Porém eis que um grão de areia vinha fortuitamente se introduzir na engrenagem Ele não havia dado a seus alunos nenhuma explicação sobre os primeiros elementos da língua Ele não lhes havia explicado a ortografia e as conjugações Sozinhos eles haviam buscado as pala vras francesas correspondentes àquelas que conheciam e as razões de suas desinências Sozinhos eles haviam aprendido acombináIas para fazer por sua vez frases francesas frases cuja ortografia e gramática tornavamse cada vez mais exatas à medida em que avançavam na leitura do livro mas sobretudo frases de escritores e não de inician tes Seriam pois supérfluas as explicações do mestre Ou se não o eram para que e para quem teriam então utilidade A ordem explicadora Uma súbita iluminação tornou assim brutalmente nítida no espírito de Joseph Jacotot essa cega evidência de todo o sistema de ensino a necessidade de explicações No entanto o que haveria de mais seguro do que essa evidência Ninguém nunca sabe de fato o 16 COECAO EDUCAÇÃO EAFEAIÈNCN f SErvüDO que compreendeu E para que compreenda é preciso que alguém lhe tenha dado uma explicação quea palavra do mestre tenha rompi do o mutismo da matéria ensinada Essa lógica não deixa entretanto de comportar certa obscuri dade Eis por exemplo um livro entre as mãos do aluno Esse livro é composto de um conjunto de raciocínios destinados a fazer o aluno compreender uma matéria Mas eis que agora o mestre toma a pa lavra para explicar o livro Ele faz um conjunto de raciocínios para explicar o conjunto de raciocínios em que o livro se constitui Mas por que teria o livro necessidade de tal assistência Ao invés de pa gar um explicador o pai de familia não poderia simplesmente dar o livro a seu filho não poderia este compreender diretamente os racio cínios do livro E caso não o fizesse por que então compreenderia melhor os raciocínios que lhe explicarão aquilo que não compreen deu Teriam esses últimos uma natureza diferente E não seria ne cessário nesse caso explicar ainda a forma de compreendêlos A lógica da explicação comporta assim o princípio de uma regressão ao infinito a reduplicação das razões não tem jamais razão de se deter O que detém a regressão e concede ao sistema seu funda mento é simplesmente que o explicador é o únicojuiz do ponto em que a explicação está ela própria explicada Ele é o únicojuiz dessa questão em si mesma vertiginosa teria o aluno compreendido os raciocínios que lhe ensinam a compreender os raciocínios É aí que o mestre supera o pai de família como poderia esse último assegu rarse de que seu filho compreendeu os raciocínios do livro O que falta ao pai de família o que sempre faltará ao trio que forma com a criança e o livro é essa arte singular do explicador a arte da distân cia O segredo do mestre é saber reconhecer a distância entre a maté ria ensinada e o sujeito a instruir a distância também entre apren der e compreender O explicador é aquele que impõe e abole a distância que a desdobra e que a reabsorve no seio de sua palavra Esse status privilegiado da palavra não suprime a regressão ao infinito senão para instituir unia hierarquia paradoxal Na ordem do explicador com efeito é preciso uma explicação oral para explicar a explicação escrita Isso supõe que os raciocínios são mais claros imprimemse melhor no espírito do aluno quando veiculados pela palavra do mestre que se dissipa no instante do que no livro onde estão 1x Uma aventura intelectual inscritas para sempre em caracteres indeléveis Como entender esse pri vilégio paradoxal da palavra sobre a escrita do ouvido sobre a vista Que relação existiria pois entre o poder da palavra e o do mestre Mas a esse paradoxo logo seguese outro as palavras que a criança aprende melhor aquelas em cujo sentido ela penetra mais fa cilmente de que se apropria melhor para seu próprio uso são as que aprende sem mestre explicador antes de qualquer mestre explicador No rendimento desigual das diversas aprendizagens intelectuais o que todos os filhos dos homens aprendem melhor é o que nenhum mestre lhes pode explicar a língua materna Falase a eles e falase em torno deles Eles escutam e retêm imitam e repetem erram e se corrigem acertam por acaso e recomeçam por método e em idade muito tenra para que os explicadores possam realizar sua instrução são capazes quase todos qualquer que seja seu sexo condição social e cor de pele de compreender e de falar a língua de seus pais E então essa criança que aprendeu a falar por sua própria inte ligência e por intermédio de mestres que não lhe explicam a língua começa sua instrução propriamente dita Tudo se passa agora como se ela não mais pudesse aprender com o recurso da inteligência que lhe serviu até aqui como se a relação autônoma entre a aprendiza gem e a verificação lhe fosse a partir daí estrangeira Entre uma e outra uma opacidade agora se estabeleceu Tratase de compreen dere essa simples palavra recobre tudo com um véu compreender é o que a criança não pode fazer sem as explicações fornecidas em certa ordem progressiva por um mestre Mais tarde por tantos mes tres quanto forem as matérias a compreender A isso se soma a estra nha circunstância de que as explicações depois que se iniciou a era do progresso não cessam de se aperfeiçoar para melhor explicar melhor fazer compreender melhor ensinar a aprender sem que ja mais se possa verificar um aperfeiçoamento correspondente na dita compreensão Antes pelo contrário começa a erguerse um triste ru mor que não mais deixará de se amplificar de um contínuo declínio na eficácia do sistema explicativo a carecer evidentemente de novo aperfeiçoamento para tornar as explicações mais fáceis de serem com preendidas por aqueles que não as compreendem A revelação que acometeu Joseph Jacotot se relaciona ao se guinte é preciso inverter a lógica do sistema explicador A explicação 19 COLECAO EDVCASAO NCIA SENTIDO não é necessária para socorrer uma incapacidade de compreender É ao contrário essa incapacidade a ficção estruturante da concepção explicadora de mundo É o explicador que tem necessidade do inca paz e não o contrário é ele que constitui o incapaz como tal Explicar alguma coisa a alguém é antes de mais nada demonstrarlhe que não pode compreendêla por si só Antes de ser o ato do pedagogo a expli cação é o mito da pedagogia a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes espíritos maduros e imaturos capazes e incapazes inteligentes e bobos O procedimento próprio do explicador consiste nesse duplo gesto inaugural por um lado ele de creta o começo absoluto somente agora tem início o ato de aprender por outro lado ele cobre todas as coisas a serem aprendidas desse véu de ignorância que ele próprio se encarrega de retirar Até ele o peque no homem tateou às cegas num esforço de adivinhação Agora ele vai aprender Ele escutava palavras e as repetia Tratase agora de ler e ele não escutará as palavras se não escuta as silabas e as silabas se não escuta as letras que ninguém poderia fazêlo escutar nem o livro nem seus pais somente a palavra do mestre O mito pedagógico dizíamos divide o mundo em dois Mas devese dizer mais precisa mente que ele divide a inteligência em duas Há segundo ele uma inteligência inferior e uma inteligência superior A primeira registra as percepções ao acaso retém interpreta e repete empiricamente no es treito círculo dos hábitos e das necessidades É a inteligência da crian cinha e do homem do povo A segunda conhece as coisas por suas razões procede por método do simples ao complexo da parte ao todo É ela que permite ao mestre transmitir seus conhecimentos adaptan doos às capacidades intelectuais do aluno e verificar se o aluno en tendeu o que acabou de aprender Tal é o princípio da explicação Tal será a partir daí para Jacotot o princípio do embrutecimento Entendãmolo bem e para isso afastemos as imagens feitas O embrutecedor não é o velho mestre obtuso que entope a cabeça de seus alunos de conhecimentos indigestos nem o ser maléfico que pra tica a dupla verdade para assegurar seu poder e a ordem social Ao contrário é exatamente por ser culto esclarecido e de boafé que ele é mais eficaz Mais ele é culto mais se mostra evidente a ele a distan cia que vai de seu saber à ignorância dos ignorantes Mais ele é escla recido e lhe parece óbvia a diferença que há entre tatear às escuras e 20 Uma aventura intelectual buscar com método mais ele se aplicará em substituir pelo espírito a letra pela clareza das explicações a autoridade do livro Antes de qualquer coisa dirseá é preciso que o aluno compreenda e para isso que a ele se forneçam explicações cada vez melhores Tal é a preocupação do pedagogo esclarecido a criança está compreenden do Ela não compreende Encontrarei maneiras novas de explicar lhe mais rigorosas em seu princípio mais atrativas em sua forma e verificarei que ele compreendeu Nobre preocupação Infelizmente é essa pequena palavra exa tamente essa palavra de ordem dos esclarecidos compreender a causadora de todo o mal É ela que interrompe o movimento da ra zão destrói sua confiança em si expulsaa de sua via própria ao quebrar em dois o mundo da inteligência ao instaurar a ruptura entre o animal que tateia e o pequeno cavalheiro instruído entre o senso comum e a ciência A partir do momento em que se pronuncia essa palavra de ordem da dualidade todo aperfeiçoamento na maneira de fazer compreender essa grande preocupação dos metodistas e dos progressistas se torna um progresso no embrutecimento A criança que balbucia sob a ameaça das pancadas obedece à férula eis tudo ela aplicará sua inteligênciaem outra coisa Aquele contudo que foi explicado investirá sua inteligência em um trabalho do luto compre ender significa para ele compreender que nada compreenderá a me nos que lhe expliquem Não é mais à férula que ele se submete mas à hierarquia do mundo das inteligências Quanto ao resto ele perma nece tão tranqüilo quanto o outro se a solução do problema é muito difícil de buscar ele terá a inteligência de arregalar os olhos O mes tre é vigilante e paciente Ele notará quando a criança já não estiver entendendo e a recolocará no bom caminho por meio de uma re explicação Assim a criança adquire uma nova inteligência a das explicações do mestre Mais tarde ela poderá por sua vez conver terse em um explicador Ela possui os meios Ela no entanto os aperfeiçoará ela será um homem do progresso O acaso e a vontade É assim que corre o mundo dos explicadores explicados E como correria também para o professor Jacotot se o acaso não o houvesse 21 COLEÇÃO buvcAO ExpreiErvon E SENpJo colocado em presença de um fato e Joseph Jacotot pensava que todo raciocínio deve partir dos fatos e ceder diante deles Porém não concluamos com isso que se tratava de um materialista Ao contrá rio como Descartes que provava o movimento ao andar mas tam bém como seu contemporâneo o muito realista e religioso Maine de Biran ele tinha os fatos do espirito que age e que toma consciência de sua atividade como mais seguros do que qualquer coisa material E era bem disso que se tratava o fato era que alguns estudantes se ensinaram a falar e a escrever em francês sem o socorro de suas explicações Ele nada lhes havia transmitido de sua ciência nada explicado quanto aos radicais e as flexões da língua francesa Ele nem mesmo havia procedido à maneira desses pedagogos reforma dores que como o preceptor do Emilio perdem seus alunos para melhor guiálos e balizam astuciosamente todo um percurso com obstáculos que precisam superar sozinhos Ele os havia deixado sós com o texto de Fénelon uma tradução nem mesmo interlinear como era uso nas escolas e a vontade de aprender o francês Ele somente lhes havia dado a ordem de atravessar uma floresta cuja saída ignora va A necessidade o havia constrangido a deixar inteiramente de fora sua inteligência essa inteligência mediadora do mestre que une a inteligência impressa nas palavras escritas àquela do aprendiz E ao mesmo tempo ele havia suprimido essa distância imaginária que é o princípio do embrutecimento pedagógico Tudo se deu a rigor entre a inteligência de Fénelon que havia querido fazer um certo uso da língua francesa a do tradutor que havia querido fornecer o equiva lente em holandês e a inteligência dos aprendizes quequeriam apren der a lingua francesa E ficou evidente que nenhuma outra inteligên cia era necessária Sem perceber ele os havia feito descobrir o que ele próprio com eles descobria todas as frases e por conseguinte todas as inteligências que as produzem são de mesma natureza Com preender não é mais do que traduzir isto é fornecer o equivalente de um texto mas não sua razão Nada há atrás da página escrita ne nhum fundo duplo que necessite do trabalho de unia inteligência ou tra a do explicador nenhuma lingua do mestre nenhuma lingua da lingua cujas palavras e frases tenham o poder de dizer a razão das palavras e frases de um texto E disso os estudantes flamengos ha viam fornecido a prova para falar do Telemaco eles não tinham à 22 Uma aventura intelectual sua disposição senão as palavras do TeMmaco Bastam portanto as frases de Fénelon para compreender as frases de Fénelon e para dizer o que delas se compreendeu Aprender e compreender são duas ma neiras de exprimir o mesmo ato de tradução Nada há aquém dos textos a não ser a vontade de se expressar isto é de traduzir Se eles haviam compreendido a língua ao aprender Fénelon não era sim plesmente pela ginástica que compara uma página à esquerda com uma página à direita Não é a aptidão de mudar de coluna que conta mas a capacidade de dizer o que se pensa nas palavras de outrem Se eles haviam aprendido isso com Fénelon é porque o ato de Fénelon escritor era ele próprio um ato de tradutor para traduzir uma lição de política em um relato legendário Fénelon havia transposto em francês do seu século o grego de Homero o latim de Virgílio e a lingua culta ou primitiva de cem outros textos do conto infantil à história erudita Ele havia aplicado a essa dupla tradução a mesma inteligência que eles empregavam por sua vez para relatar com fra ses de seu livro o que pensavam desse livro Mas a inteligência que os fizera aprender o francês emTelêmaco era a mesma que os havia feito aprender a lingua materna observando e retendo repetindo e verificando associando o que buscavam apren der àquilo que já conheciam fazendo e refletindo sobre o que haviam feito Eles haviam procedido como não se deve proceder como fazem as crianças poradivinhação E a questão assim se impunha não se ria necessário inverter a ordem admitida dos valores intelectuais Não seria esse método maldito da adivinhação o verdadeiro movimento da inteligência humana que toma posse de seu próprio poder E sua proscrição não marcaria na verdade a vontade de dividir em dois o mundo da inteligência Os metodistas opõem o método mau do aca so ao caminho da razão Mas eles se dão antecipadamente aquilo que querem provar Eles supõem um pequeno animal que se chocan do com as coisas explora um mundo que ainda não é capaz de ver mas que essas coisas precisamente lhe ensinarão a discernir Mas o filhote de homem é antes de qualquer outra coisa um ser de palavra A criança que repete as palavras aprendidas e o estudante flamengo perdido em seuTelêmaco não se guiam pelo acaso Todo o seu esforço toda a sua exploração é tencionada pelo seguinte uma palavra humana lhes foi dirigida a qual querem reconhecer e à 23 Co mau EoucAçAoi ExaFeiFNCwe SENT vO qual querem responder não na qualidade de alunos ou de sábios nias na condição de homens como se responde a alguém que vos fala e não a quem vos examina sob o signo da igualdade O fato estava lá eles haviam aprendido sozinhos e sem mestre explicador Ora o que se dá uma vez é sempre possível De resto essa descoberta deveria ser responsável por uma reviravolta nos prin cípios do professor Jacotot Mas o homem Jacotot estava mais pre parado para reconhecer a variedade daquilo que se pode esperar de um homem Seu pai havia sido açougueiro antes de cuidar das con tas de seu avô o carpinteiro que havia enviado seu neto ao colégio Ele próprio era professor de retórica quando escutou ecoar o apelo às armas em 1792 O voto de seus companheiros o havia feito capi tão de artilharia e ele se distinguira como um notável artilheiro Em 1793 na Seção das Pólvoras esse latinista havia se tornado instrutor de química para a formação acelerada dos operários que seriam en viados para aplicarem todos os cantos do território as descobertas de Fourcroy Na casa desse mesmo Fourcroy ele havia conhecido Vau quelin filho de camponês que se dera uma formação em química às escondidas de seu patrão Na Escola Politécnica ele tinha visto che gar jovens que comissões improvisadas haviam selecionado com base no duplo critério de vivacidade de espírito e de patriotismo E ele os havia visto tornaremse muito bons matemáticos menos pela matemá tica que Monge ou Lagrange lhes explicava do que por aquela que praticavam diante deles Ele próprio havia aparentemente aproveita do suas funções administrativas para construir uma competência de matemático que mais tarde exerceria na Universidade de Dijon As sim como havia acrescentado o hebraico às línguas antigas que ensina va e composto um Ensaio sobre a gramática hebraica Ele pensava só Deus sabe a razão que essa língua tinha futuro Enfim ele havia construído para si a contragosto mas com o maior rigor uma compe tência de representante do povo Em suma ele sabia que a vontade dos indivíduos e o perigo da Pátria poderiam fazer nascer capacidades inéditas em circunstâncias em que a urgência obrigava a queimar as etapas da progressão explicativa Ele pensava que este estado de ex ceção comandado pelas necessidades da Nação em nada diferia em seu princípio da urgência que rege a exploração do mundo pela criança ou dessa outra exigência que rege a via singular dos sábios e 24 Uma aventura intelectual dos inventores Por meio da experiência da criança do sábio e do revolucionário o método do acaso praticado com sucesso pelos es tudantes flamengos revelava seu segundo segredo Esse método da igualdade era antes de mais nada um método da vontade Podiase aprender sozinho e sem mestre explicador quando se queria pela tensão de seu próprio desejo ou pelas contingências da situação O mestre emancipador Essas contingências haviam tomado na circunstância a forma de recomendação feita por Jacotot Disso advinha uma conseqüência capital não mais para os alunos mas para o Mestre Eles haviam aprendido sem mestre explicador mas não sem mestre Antes não sabiam e agora sim Logo Jacotot havia lhes ensinado algo No entanto ele nada lhes havia comunicado de sua ciência Não era portanto a ciência do Mestre que os alunos aprendiam Ele havia sido mestre por força da ordem que mergulhara os alunos no círculo de onde eles podiam sair sozinhos quando retirava sua inteligência para deixar as deles entregues àquela do livro Assim se haviam disso ciado as duas funções que a prática do mestre explicador vai religar a do sábio e a do mestre Assim se haviam igualmente separado liberadas uma da outra as duas faculdades que estão em jogo no ato de aprender a inteligência e a vontade Entre o mestre e o aluno se estabelecera uma relação de vontade a vontade relação de domina ção do mestre que tivera por conseqüência uma relação inteiramente livre da inteligência do aluno com aquela do livro inteligência do livro que era também a coisa comum o laço intelectual igualitário entre o mestre c o aluno Esse dispositivo permitia destrinchar as categorias misturadas do ato pedagógico e definir exatamente o em brutecimento explicador Há embrutecimento quando uma inteligên cia é subordinada a outra inteligência O homem e a criança em particular pode ter necessidade de um mestre quando sua vontade não é suficientemente forte para colocála e mantêla em seu caminho Mas a sujeição é puramente de vontade a vontade Ela se torna embru tecedora quando liga uma inteligência a uma outra inteligência No ato de ensinar e de aprender há duas vontades e duas inteligências Chamarseá embrutecimento à sua coincidência Na situação 25 CoieCAO EDUGrJAO EPEFiÉNCIA e SE experimental criada por Jacotot o aluno estava ligado a uma vonta de a de Jacotot e a uma inteligência a do livro inteiramente distin tas Chamarseá emancipação à diferença conhecida e mantida entre as duas relações o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade Essa experiência pedagógica abria assim uma ruptura com a lógica de todas as pedagogias A prática dos pedagogos se apóia na oposição da ciência e da ignorância Eles se distinguem pelos meios escolhidos para tornar sábio o ignorante métodos duros ou suaves tradicionais ou modernos passivos ou ativos mas cujo rendimento se pode comparar Desse ponto de vista poderseia numa primeira apro ximação comparar a rapidez dos alunos de Jacotot com a lentidão dos métodos tradicionais Mas na verdade nada havia aí a comparar O confronto dos métodos supõe um acordo mínimo no que se refere aos fins do ato pedagógico transmitir os conhecimentos do mestre ao alu no Ora Jacotot nada havia transmitido O método era puramente o do aluno E aprender mais ou menos rapidamente o francês é em si mesmo uma coisa de pouca conseqüência A comparação não mais se estabelecia entre métodos mas entre dois usos da inteligência e entre duas concepções da ordem intelectual Avia rápida não era a melhor pedagogia Ela era uma outra via a da liberdade via que Jacotot havia experimentado nos exércitos no ano Il na fabricação das pólvoras ou na instalação da Escola Politécnica a via da liberdade respondendo à urgência do perigo mas também à confiança na capacidade intelectu al de cada ser humano Por detrás da relação pedagógica estabelecida entre a ignorância e a ciência seria preciso reconhecer a relação filo sófica muito mais fundamental entre o embrutecimento e a emancipa ção Havia assim não dois mas quatro termos em jogo O ato de aprender podia ser reproduzido segundo quatro determinações diver samente combinadas por um mestre emancipador ou por um mestre embrutecedor por um mestre sábio ou por um mestre ignorante A última proposição era a mais dura de suportar Passa ainda a idéia de que um sábio deve se dispensar de toda a explicação sobre sua ciência Mas como admitir que um ignorante possa ser causa de ciência para um outro ignorante A própria experiência de Jacotot era ambígua no que se refere à sua condição de professor de francês Mas já que ela havia ao menos mostrado que não era o saber do 26 Urna aventura intelectual mestre que ensinava ao aluno nada o impedia de ensinar outra coisa além de seu próprio saber ensinar o que ignorava Joseph Jacotot dedicouse então a variar as experiências a repetir de propósito o que o acaso havia uma vez produzido Ele se põs assim a ensinar duas matérias em que sua incompetência era patente a pintura e o piano Os estudantes de Direito queriam ainda que lhe fosse atribu ída uma cátedra que estava livre em sua faculdade Mas a Universi dade de Louvain já se inquietava demais em relação a esse leitor extravagante por quem os alunos desertavam dos cursos magistrais para espremerse à noite em uma sala muito pequena e apenas ilu minada por duas velas e ouvilo dizer É preciso que eu lhes ensine que nada tenho a ensinarlhes 2 De modo que a autoridade consulta da respondeu não reconhecer nele títulos que o habilitassem para tal ensino Mas à época ele se ocupava precisamente de experimentar a distância entre o título e o ato Ao invés pois de fazer em francês um curso de direito ele ensinou os estudantes a pleitear em holandês Eles o fizeram muito bem mas ele continuava a ignorar o holandês O círculo da potência A experiência pareceu suficiente a Jacotot para esclarecêlo podese ensinar o que se ignora desde que se emancipe o aluno isso é que se force o aluno a usar sua própria inteligência Mestre é aquele que encerra uma inteligência em um círculo arbitrário do qual não poderá sair se não se tornar útil a si mesma Para emancipar um ignorante é preciso e suficiente que sejamos nós mesmos emanci pados isso é conscientes do verdadeiro poder do espírito humano O ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ignora se o mestre acredita que ele o pode e o obriga a atualizar sua capacidade círculo da potência homólogo a esse círculo da impotência que ligava o aluno ao explicador do velho método que denominaremos a partir daqui simplesmente de o Velho Mas a relação de forças é bem par ticular O círculo da impotência está sempre dado ele é a própria mar cha do mundo social que se dissimula na evidente diferença entre a Som maire des leFons pnbllqnes dr Al Jacobi tnr lesprinciprr de lenseignement nniuecel publicado porJ S Van de Weyer Bruxelas 1822 p I 27 COLLUO EoocACAo EGEkENCI e SNOOO ignorância e a ciência O círculo da potência quanto a ele só vigora em virtude de sua publicidade Mas não pode aparecer senão como uma tautologia ou um absurdo Como poderá o mestre sábio aceitar que é capaz de ensinar tão bem aquilo que ignora quanto o que sabe Ele só poderá tomar essa argumentação da potência intelectual como uma desvalorização de sua ciência E o ignorante por sua vez não se acredita capaz de aprender por si mesmo menos ainda de instruir um outro ignorante Os excluídos do mundo da inteligência subscre vem eles próprios o veredicto de sua exclusão Em suma o círculo da emancipação deve ser começado Aí está o paradoxo Pois refletindo bem o método que ele propõe é o mais velho de todos e não pára de ser ratificado todos os dias em todas as circunstâncias em que o indivíduo tem necessidade de se apropriar de um conhecimento que não tem como fazer que lhe seja explicado Não há homem sobre a Terra que não tenha aprendido alguma coisa por si mesmo e sem mestre explicador Chamemos a essa maneira de aprender Ensino Universal e poderemos afirmar o En sino Universal existe de fato desde o começo do mundo ao lado de todos os métodos explicadores Esse ensino por si só formou de fato todos os grandes homens Mas eis o que é estranho Todo homem faz essa experiência mil vezes em sua vida e no entanto jamais ocor reu a alguém dizer ao outro aprendi muitas coisas sem explicações e crcio yue como eu também o podeis nem eu nem quem quer que seja havia pensado em empregar esse método para instruir os outros Bastaria dizer à inteligência que dormita em cada um Age quod agis continua a fazer o que fazes aprende o fato imitao conhecete a ti mesmo é a marcha da natureza4 Repete metodicamente o método do acaso que te deu a medida de teu poder A mesma inteligência está em ação em todos os atos do espírito humano Este é no entanto o salto mais difícil Quando necessário todos praticam esse método mas ninguém está pronto a reconhecêIo nin guém quer enfrentar a revolução intelectual que ele implica O círculo E seiçnemeul Cruel Innçnr moleruelle 6 ecl Paris 1836 p 448 c Journal de Prninncipailinn iuleeduee t III p 121 Ensei uemeol uuirerse Inngue rbangirr 2 ed Paris 1829 p 219 28 Uma aventura intelectual social a ordem das coisas proíbe que ele seja reconhecido pelo que é o verdadeiro método pelo qual cada um aprende e pelo qual cada um descobre a medida de sua capacidade É preciso ousar reconhecêlo c prosseguir a verificação aberta de seu poder Sem o que o método da impotência o Velho durará tanto quanto a ordem das coisas Quem gostaria de começar Havia à época muitos tipos de homens de boa vontade que se preocupavam com a instrução do povo homens da ordem queriam levar o povo a se colocar acima de seus apetites brutais homens de revolução queriam conduzilo à cons ciência de seus direitos homens de progresso desejavam pela ins trução atenuar o abismo entre as classes homens de indústria so nhavam por seu intermédio conceder às melhores inteligências populares os meios de uma promoção social Todas estas boas in tenções encontravam um obstáculo os homens do povo têm pouco tempo e menos ainda dinheiro para investir nessa aquisição As sim procuravase um meio econômico de difundir o mínimo de ins trução julgada necessária e suficiente para conforme o caso realizar o aprimoramento das populações laboriosas Entre os progressistas e os industriais um método desfrutava então de grande reputação o Ensino Mútuo Ele permitia reunirem um vasto local um grande nú mero de alunos divididos em destacamentos dirigidos pelos mais avançados entre eles que eram promovidos à função de monitores Desse modo o mandamento e a lição do mestre irradiavamse por intermédio desses monitores sobre toda a população a ser instruída A perspectiva agradava aos amigos do progresso é assim que a ciên cia se difunde dos píncaros até as mais modestas inteligências A felicidade e a liberdade a acompanham Essa espécie de progresso para Jacotot cheirava a rédeas Um carrossel aperfeiçoado dizia ele Ele sonhava com outra coisa a títu lo de ensino mútuo que cada ignorante pudesse se fazer para outro ignorante um mestre que revelaria a ele seu poder intelectual Mais exatamente seu problema não era a instrução do povo instruemse os recrutas que se engajam soh sua bandeira os subalternos que de vem poder compreender as ordens o povo que se quer governar à maneira progressiva isto é sem direito divino e somente segundo a hierarquia das capacidades O problema era a emancipação que todo homem do povo pudesse conceber sua dignidade de homem medir a 29 COTO EDUGG o ExPtRIENOA E SENTIDO dimensão dc sua capacidade intelectual e decidir quanto a seu uso Os amigos da instrução asseguravam que era essa a condição de uma verdadeira liberdade Em seguida reconheciam dever ao povo essa instrução e estavam prontos a brigar entre si para fixar aquela que the deveria ser concedida Jacotot não via que liberdade podia resul tar para o povo dos deveres de seus instrutores Ele pressentia ao contrário que estava em jogo uma nova forma de embrutecimento Quem ensina sem emancipar embrutece E quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender Ele aprenderá o que quiser nada talvez Ele saberá que pode aprender porque a mesma inteligência está em ação em todas as produções humanas que um homem sempre pode compreender a palavra de um outro homem O impressor de Jacotot tinha um filho que era débil mental Todos se preocupavam por não poder fazer nada a respeito Jacotot lhe ensinou o hebraico e a criança tornouse um excelente litógrafo A língua é evidente jamais lhe serviu para nada a não ser para saber o que as inteligências mais bem dotadas e mais instru ídas ainda ignoravam e não se tratava do hebraico As coisas estavam portanto muito claras não se tratava aí de um método para instruir o povo mas da graça a ser anunciada aos pobres eles podiam tudo o que pode um homem Bastava anunciar Jacotot decidiu consagrarse a isso Ele proclamou que se pode ensi nar o que se ignora e que um pai de família pobre e ignorante é capaz se emancipado de fazer a educação de seus filhos sem recorrer a qualquer explicador E indicou o meio de se realizar esse Ensino Universal aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto segundo o princípio de que todos os homens têm igual inteligência Houve comoção em Louvain em Bruxelas e em Haia tomou se carruagem em Paris e Lion da Inglaterra e da Prússia se veio escutar a boa nova quc depois foi levada a São Petersburgo e a Nova Orleans A novidade chegou até o Rio de Janeiro Durante alguns anos a polêmica instalouse e a República do saber tremeu em suas bases E tudo isso porque um homem de espírito um sábio renoma do e um pai de família virtuoso havia enlouquecido por não saber o holandês 30 CAPÍTULO SEGUNDO A lição do ignorante Desembarquemos pois juntamente com Telêmaco na Ilha de Calipso Penetremos com um desses visitantes no antro do Touco na instituição de Mademoiselle Marcellis em Louvain em casa de Mon sieur Deschuyfeleere um curtumeiro de quem ele fez um latinista na Escola Normal Militar de Louvain onde o príncipe filósofo Frederick dOrange encarregou o fundador do Ensino Universal de instruir os futuros instrutores militares Imaginai recrutas sentados nos bancos escolares e sussurrando todos ao mesmo tempo Calipso Calipso não etc etc dois meses depois eles sabiam ler escrever e contar Du rante essa educação primária nós aprendíamos um o inglês outro o alemão esse fortificação aquele química etc etc Mas o Fundador sabe tudo isso Nem um pouco mas nós lhe explicávamos e eu vos asseguro que ele aproveitou lindamente a escola normal Estou confuso então todos vós sabíeis química Não mas nós aprendíamos e lhe ensinávamos Eis o Ensino Universal É o discípulo que faz o mestre Há uma ordem na loucura como em toda coisa Comecemos pelo começo Telêmaco Tudo está on tudo diz o louco E a malícia pública acrescenta e tudo está no Telêmaco Pois Telêmaco é aparen temente o livro que serve para tudo O aluno quer aprender a ler Quer Ensegrremm nt Memel rNatGémattgaes 2 ed Paris 1829 p 5051 31 A haro do ignorante aprender o inglês ou o alemão a arte de pleitear ou a de combater O louco colocará imperturbável um Telêmaco em suas mãos e o aluno começará a repetir Calipso Calipso não Calipso não podia e assim em diante até que ele saiba o número prescrito de livros do Telêmaco e que possa relatar os outros De tudo que ele aprende a forma das letras o lugar ou as terminações das palavras as imagens os raciocínios os sentimentos dos personagens as lições de moral lhe será pedido que fale que diga o que ele vê o que pensa disso o que faz com isso Somente uma condição será imperativa de tudo o que disser deverá demonstrar a materialidade no livro Serlheá so licitado que faça composições e improvisações nas mesmas condi ções ele deverá empregar as palavras e as maneiras do livro para construir suas frases deverá mostrar no livro os fatos relacionados com seus raciocinios Em suma de tudo o que dirá o mestre deverá poder verificar a materialidade no livro A ilha do livro O livro Telêmaco ou um outro O acaso colocou Telêmaco à disposição de Jacotot a comodidade o aconselhou a guardálo Telê maco está traduzido em muitas línguas e facilmente disponível nas livrarias Não é uma obraprima da língua francesa Mas seu estilo é puro o vocabulário variado a moral severa Aprendese aí mitologia e geografia Escutase aí através da tradução francesa o latim de Virgílio e o grego de Homero Tratase enfim de um livro clássico um desses em que uma língua apresenta o essencial de suas formas e de seus poderes Um livro que é um todo um centro ao qual se pode associar tudo o que se aprender de novo um círculo no interior do qual é possível compreender cada uma dessas novas coisas encon trar os meios de dizer o que se vê o que se pensa disso o que se faz com isso Este é o primeiro princípio do Ensino Universal é preciso aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto Para come çar é preciso aprender qualquer coisa O Palice diria a mesma coi sa O Palice talvez maso Velho quanto a ele diz é preciso apren der tal coisa e depois tal outra e ainda uma outra tal Seleção progressão incompletude esses são os princípios Aprendemse 32 algumas regras e alguns elementos que são aplicados a alguns tre chos escolhidos de leitura alguns exercícios correspondendo aos ru dimentos adquiridos Em seguida passase a um nível superior ou tros rudimentos outro livro outros exercícios outro professor A cada etapa cavase o abismo da ignorância que o professor tapa antes de cavar um outro Fragmentos se acrescentam peças isoladas de um saber do explicador que levam o aluno a reboque de um mes tre que elejamais atingirá O livro nunca está inteiro a lição jamais acabada O mestre sempre guarda na manga um saber isto é uma ignorância do aluno Entendi isso diz o aluno satisfeito Isso é o que você pensa cor rige o mestre Na verdade há uma dificuldade de que até aqui eu o poupei Ela será explicada quando chegarmos ã lição correspondente O que quer dizer isso pergunta o aluno curi oso Eu poderia lhe explicar responde o mestre mas seria prematu ro você não entenderia Isso lhe será explicado no ano que vem Há sempre uma distãncia a separar o mestre do aluno que para ir mais além sempre ressentirá a necessidade de um outro mestre de expli cações suplementares Assim Aquiles triunfante passeia em torno de Tróia com o cadáver de Heitor amarrado à sua carruagem A progres são racional do saber é uma mutilação indefinidamente reproduzida Todo homem que é ensinado não é senão uma metade de homem Não nos perguntemos se o pequeno cavalheiro instruído sofre dessa mutilação A virtude do sistema é transformar a perda em pro veito O pequeno cavalheiroavança Foilhe ensinado algo logo ele aprendeu logo ele pode esquecer Atrás de si escavase novamente o abismo da ignorância Eis no entanto a maravilha da coisa essa ignorância a partir daí é a dos outros O que ele esqueceu ele ul trapassou Ele não está mais em situação de soletrar e a gaguejar como as inteligências grosseiras e os pequeninos da turma infantil Não há papagaios em sua escola Não se sobrecarrega a memória formase a inteligência Eu compreendi diz a criança não sou um papagaio Mais ela esquece mais lhe parece evidente que compreendeu Mais ela se torna inteligente mais pode contemplar do alto aqueles que deixou para trás os que permanecem na antecâmara do saber diante do livro mudo aqueles que repetem por não serem suficientemente inteligentes Log dabne4itrnrde l enrefgnenent nnirerrel angénérn1nfnlælte Louvain 1829 p 6 33 COLEÇÃO EDUCAÇAOI EXPERIÊNCIA E SENTIDO para compreender Eis a virtude dos explicadores o ser que inferiori zaram eles o amarram pelo mais sólido dos laços ao país do embrute cimento a consciência de sua superioridade Essa consciência de resto não mata os bons sentimentos O pequeno cavalheiro instruído se comoverá talvez com a ignorância do povo e pretenderá trabalhar para sua instrução Saberá que a coisa é difícil diante de cérebros que a rotina endureceu ou que a falta de método perdeu Mas se ele é devotado ele saberá que há um tipo de explicações adaptado para cada categoria na hierarquia das inteli gências ele buscará se colocar a seu nível Passemos agora uma outra história O louco o Fundador como o chamam seus sectários entra em cena com seu Telêmaco um livro uma coisa Toma e lê diz ele ao pobre Eu não sei ler responde o pobre Como compreenderia eu o que está escrito no livro Da forma como compreendeste todas as coisas até aqui comparando dois fatos Vou te relatar um fato a primeira frase do livro Calipso Calipso não Eis agora um segundo fato as palavras estão escritas aí Não reconhe ces nada A primeira palavra que te disse era Calipso não será também a primeira palavra na folha Olha bem até que estejas certo de reconhe cêla em meio a uma multidão de outras palavras Para tanto será preci so que me digas tudo o que vês Há aí signos que a mão traçou sobre o papel cujos chumbos a mão reuniu na gráfica Contame essa palavra Fazeme o relato das aventuras isto é das idas e vindas dos desvios em uma palavra dos trajetos da pena que escreveu essa palavra sobre o papel ou do buril que a gravou sobre o cobre Saberias tu reconhecer aí a letra O que um de meus alunos serralheiro de profissão denomina a redonda a letra L que ele chama de o esquadro Contame a forma de cada letra como descreverias as formas de um objeto ou lugar desconhe cido Não digas que não podes Tu sabes ver tu sabes falar tu sabes mostrar tu podes te lembrar O que mais é preciso Uma atenção abso luta para ver e rever dizer e redizer Não procures me enganar e te enganar Foi bem isso que viste O que pensas disso Não és um ser pensante Ou acreditas ser apenas corpo O fundador Sganarelle mu dou tudo isso tens uma alma como eu journal de Pémmtápation intellectuelle t III 18351836 p 15 Journdde énamcipation ìnteectnele t lI 18351836 p 380 34 A lição do ignorante Falarseá em seguida do que fala o livro o que pensas de Calipso da dor de uma deusa de uma primavera eterna Mostra me o que te faz dizer o que dizes O livro é uma fuga bloqueada não se sabe que caminho traçará o aluno mas sabese de onde ele não sairá do exercício de sua liberda de Sabese ainda que o mestre não terá o direito de se manter longe mas à sua porta O aluno deve ver tudo por ele mesmo comparar in cessantemente e sempre responder à tríplice questão o que vês o que pensas disso o que fazes com isso E assim até o infinito Mas esse infinito não é mais um segredo do mestre é a marcha do aluno O livro quanto a ele está pronto e acabado E um todo que o aluno tem em mãos que ele pode percorrer inteiramente com um olhar Não há nada que o mestre lhe subtraia e nada que ele possa subtrair ao olhar do mestre O círculo abole a trapaça E antes de mais nada essa grande trapaça que é a incapacidade eu não posso eu não compreendo Não há nada a compreender Tudo está no livro Basta relatar a forma de cada signo as aventuras de cada frase a lição de cada livro É preciso começar a falar Não digas que não podes Tu sabes dizer eu não posso Diga em seu lugar Calipso não podia E terás começado Terás começado por um caminho que já conhecias e que deverás daqui por diante seguir sem dele te afastares Não digas eu não posso dizer Ou então aprende a dizêlo à maneira de Calipso ou de Telêmaco de Narval ou de Idomenéia O outro circulo já foi começado o da potência Não cessarás de encontrar maneiras de dizer eu não posso e cedo poderás dizer tudo Viagem em um círculo Compreendese que as aventuras do fi lho de Ulisses sejam para isso o manual e Calipso a primeira pala vra Calipso a escondida É preciso justamente descobrir que nada há de escondido não há palavras por trás das palavras língua que diga a verdade da língua Aprendemse signos e ainda signos frases e ainda frases Repetemse frasespmntas Decoramse livros inteiros E o Velho indignase eis o que significa para vós aprender qualquer coisa Primeiramente vossas crianças repetem como papagaios Elas cultivam uma só faculdade a memória enquanto nós exercemos a in teligência o gosto e a imaginação Vossas crianças decoram Este é vosso primeiro erro E eis o segundo vossas crianças não aprendem 35 COIKAO EJUCACAO EYP3ifNCA e SFMioo de cor Dizeis que elas o fazem mas é impossível Os cérebros huma nos são incapazes de tal esforço de memória Argumento viciado Discurso de um círculo a um outro círculo O Velho diz que a memória infantil é incapaz de tais esforços porque a impotência em geral é uma palavra de ordem Ele diz que a memória não é a mesma coisa que a inteligência ou a imaginação porque usa a arma comum àqueles que pretendem reinar sobre a ignorância a divi são Ele crê que a memória é fraca porque não crê no poder da inteligên cia humana Ele a crê inferior porque crê em inferiores e superiores Em suma seu duplo argumento é mais ou menos o seguinte há seres infe riores e superiores os inferiores não podem o que podem os superiores É só o que o Velho conhece Ele tem necessidade do desigual mas não desse desigual estabelecido pelo decreto do príncipe senão do desigual por si só que está em todas as mentes e em todas as frases Para tanto dispõe de uma arma branca a diferença isso não é aquilo tal coisa é completamente diferente de tal outra não se pode comparar a memória não é inteligência repetir não é saber comparação não é razão há o fundo e a forma Qualquer farinha pode ser moída no moinho da distinção O argumento pode assim se modernizar tender ao científico e ao humanitário há etapas no desenvolvimento da inteligência uma inteligência infantil não é a inteligência de um adulto é preciso não sobrecarregar a inteligência da criança senão podese comprometer sua saúde e colocarem risco o desenvolvimento de suas faculdades Tudo o que o Velho pede é que se lhe concedam suas negações e diferenças isso não é isso é diferente isso é mais isso é menos Eis o que é amplamente suficien te para erigir todos os tronos da hierarquia das inteligências Calipso e o serralheiro Deixemos falar o Velho Examinemos os fatos Há uma vontade que rege e uma inteligência que obedece Chamemos de atenção o ato que faz agir essa inteligência sob a coerção absoluta de uma vontade Esse ato não é diferente quer se trate da forma de uma letra a ser reconhecida de uma frase a ser memorizada de uma relação a estabe lecer entre dois seres matemáticos dos elementos de um discurso a ser 36 A lição do ignorante composto Não há uma faculdade que registra uma outra que com preende uma outra que julga O serralheiro que denomina o Ode redonda e o L de esquadro já pensa por meio de relações E inventar é da mesma ordem que recordar Deixemos que os explicadores for mem o gosto e a imaginação dos pequenos cavalheiros deixe mos que dissertem sobre o gênio dos criadores Nós nos contentare mos em fazer como esses criadores como Racine que aprendeu de cor traduziu repetiu e imitou Eurípides Bossuet que fez o mesmo com Tertuliano Rousseau com Amyot Boileau com Horácio e Juve nal como Demóstenes que copiou oito vezes Tucídides Hooft que leu cinqüenta e duas vezes Tácito Sêneca que recomenda a leitura sempre renovada de um mesmo livro Haydn que repetiu indefinida mente seis sonatas de Bach Miguelangelo sempre ocupado em refa zer o mesmo torso s A potência não se divide Não há senão um poder o de ver e de dizer de prestar atenção ao que se vê e ao que se diz Aprendemse frases e ainda frases descobremse fatos isto é relações entre coisas e ainda outras relações que são de mesma natu reza aprendese a combinar letras palavras frases idéias Não se dirá que adquirimos a ciência que conhecemos a verdade ou que nos tomamos gênios Saberemos contudo que na ordem intelectual po demos tudo o que pode um homem Eis o que quer dizer Tudo está em tudo a tautologia é a po tência Toda a potência da língua está no todo de um livro Todo conhecimento de si como inteligência está no domínio de um livro de um capítulo de uma frase de uma palavra Tudo está em tudo e tudo está em Telêmaco arrebentamse de rir os provocadores pe gando os discípulos de surpresa tudo está também no primeiro livro de Telénraco E em sua primeira palavra As matemáticas estão no Telêmaco E na primeira palavra de Telêmaco E o discí pulo sente o solo desaparecer sob seus pés e chama o mestre em seu socorro o que se deve responder Era preciso dizer que vós acreditais que todas as obras hu manas estão na palavra Calipso porque essa palavra é uma obra da inteligência humana Aquele que fez a adição de frações é o mesmo ser intelectual que o que fez a palavra Calipso Este artista sabia o Gonod Nowtle exposition de la méthode de Joseph Jamtol Paris 1830 p 1213 37 CoeCAO EDUCAÇÃO E4ERIENCiA E SENTIDO grego escolheu uma palavra que si gnificaardilosa escondida Este artista assemelhase àquele que imaginou os meios de escrever a palavra da qual se trata Ele se assemelha àquele que fez o papel sobre o qual se escreve àquele que emprega a pena nessa tarefa àquele que talha as penas com um canivete àquele que fez o cani vete com o ferro àquele que forneceu o ferro a seus semelhantes àquele que fez a tinta àquele que imprimiu a palavra Calipso àquele que fez a máquina de impressão àquele que explica os efeitos de tal máquina àquele que generalizou essas explicações àquele que fez a tinta de impressão etc etc etc Todas as ciências todas as artes a anatomia e a dinâmica etc etc são frutos da mesma inteli gência que fez a palavra Calipso Um filósofo abordando uma ter ra desconhecida adivinhou que ela era habitada ao ver uma figura geométrica na areia São passos de homem disse Seus camara das acreditaram que estava louco porque as linhas que ele lhes mostrava não se pareciam com passos Os sábios do aperfeiçoado século XIX arregalam os olhos abestalhados quando se lhes mos tra a palavra Calipso e que lhes é dito Há aí dedo humano Eu aposto que o representante da escola normal francesa dirá olhando a palavra Calipso Ele pode dizêlo e repetilo mas isso não tem a forma de um dedo Tudo está en tudo Eis tudo o que está em Calipso a potência da inteligência que está presente em toda manifestação humana A mesma inteligência faz os nomes e os signos matemáticos A mesma inteligência faz os signos e os raciocínios Não há dois tipos de espíritos Há desigualdade nas manifestações da inteligência segundo a energia mais ou menos gran de que a vontade comunica à inteligência para descobrir e combinar relações novas mas não há hierarquia de capacidade intelectual É a tomada de consciência dessa igualdade de natureza que se chama eman cipação e que abre o caminho para toda aventura no país do saber Pois se trata de ousar se aventurar e não de aprender mais ou menos bem ou mais ou menos rápido O método Jacotot não é melhor é diferente Por isso os procedimentos colocados em prática importam pouco neles mesmos É o Telémaco mas poderia ser qualquer outro Começase pelo texto e não pela gramática pelas palavras inteiras e Lugue maternelle p 464465 38 A lição do ignorante não pelas sílabas Não é que seja preciso aprender assim para aprender melhor e que o método Jacotot seja o ancestral do método global De fato vaise mais rápido começando por Calipso e não por B A BA Mas a rapidez não é senão um efeito da potência adquirida uma conseqüência do princípio emancipador O antigo método faz co meçar pelas letras porque dirige os alunos segundo o princípio da desigualdade intelectual e sobretudo da inferioridade intelectual das crianças Acredita que as letras são mais fáceis de distinguir do que as palavras é um erro mas enfim ele assim o crê Ele crê que uma inteligência infantil não está apta senão a aprender C A CA e que é preciso uma inteligência adulta isto é superior para aprender Calipso Em suma B A BA tal como Calipso é uma bandeira incapacidade contra capacidade Soletrar é um ato de contrição antes de ser um meio de aprender É por isso que se poderia mudar a ordem dos procedimentos sem nada mudar quanto à oposição dos princí pios Um dia o Velho talvez pensará em fazer ler por palavras e então talvez nós fizéssemos nossos alunos soletrarem No que resul taria essa modificação aparentemente significativa Nada Nossos alunos não deixariam de ser emancipados e os do Velho não seriam menos embrutecidos O Velho não embrutece seus alunos ao fazê los soletrar mas ao dizerlhes que não podem soletrar sozinhos por tanto ele não os emanciparia ao fazêlos ler palavras inteiras por que teria todo o cuidado em dizerlhes que sua jovem inteligência não pode dispensar as explicações que ele retira de seu velho cére bro Não é pois o procedimento a marcha a maneira que emancipa ou embrutece é o princípio O princípio da desigualdade o velho princípio embrutece não importa o que se faça o princípio da igual dade o princípio Jacotot emancipa qualquer que seja o procedimen to o livro o fato ao qual se aplique O problema é revelar uma inteligência a ela mesma Qualquer coisa serve para fazêlo É Telêmaco mas pode ser uma oração ou unia canção que a criança ou o ignorante saiba de cor Há sempre alguma coisa que o ignorante sabe e que pode servir de termo de comparação ao qual é possível relacionar uma coisa nova a ser lonroml de Pémmcifaou intellechrelle t III 18351836 p 9 lonrna de fémiwdpatìmr intellechrele p 11 39 Coecw EUQ 1 CAO EXPENDNT IA SENTIDO conhecida Disso testemunha o serralheiro que arregala os olhos quan do lhe é dito que ele pode ler Ele não conhece sequer as letras No entanto se ele colocar os olhos nesse calendário será que não sabe a ordem dos meses e que não pode assim adivinhar janeiro fevereiro março Ele só sabe contar um pouco Mas quem o impede de con tar bem lentamente seguindo as linhas para reconhecer escrito at o que já sabe Ele sabe que se chama Guillaume e que o dia de seu santo padroeiro é 16 de janeiro Ele saberá perfeitamente encontrar a palavra Ele sabe que fevereiro só tem vinte e oito dias Ele vê clara mente uma coluna que é mais curta que as outras e assim ele reco nhecerá 28 E assim por diante Há sempre alguma coisa que o mes tre pode lhe pedir que descubra sobre a qual pode interrogálo e verificar o trabalho de sua inteligência O mestre e Sócrates Com efeito são esses os dois atos fundamentais do mestre ele interroga provoca uma palavra isto é a manifestação de uma inteli gência que se ignorava a si própria ou se descuidava Ele verifica que o trabalho dessa inteligência se faz com atenção que essa pala vra não diz qualquer coisa para se subtrair à coerção Dirseá que para isso é preciso um mestre muito hábil e muito sábio Ao contrá rio a ciência do mestre sábio torna muito difícil para ele não arrui nar o método Conhecendo as respostas suas perguntas para elas orientam naturalmente o aluno É o segredo dos bons mestres com suas perguntas eles guiam discretamente a inteligência do aluno tão discretamente que a fazem trabalhar mas não o suficiente para abandonála a si mesma Há um Sócrates adormecido em cada expli cador E é preciso admitir que o método Jacotot isso é o método do aluno difere radicalmente do método do mestre socrático Por suas interrogações Sócrates leva o escravo de Mênon a reconhecer as verdades matemáticas que nele estão Há aí talvez um caminho para o saber mas ele não é em nada o da emancipação Ao contrário Sócrates deve tomar o escravo pelas mãos para que esse possa reen contrar o que está nele próprio A demonstração de seu saber é ao mesmo tempo a de sua impotência jamais ele caminhará sozinho e A lição do ignorante aliás ninguém lhe pede que caminhe senão para ilustrar a lição do mestre Nela Sócrates interroga um escravo que está destinado a permanecer como tal O socratismo é assim uma forma aperfeiçoada do embruteci mento Como todo mestre sábio Sócrates interroga para instruir Ora quem quer emancipar um homem deve interrogálo à maneira dos homens e não à maneira dos sábios para instruirse a si próprio e não para instruir um outro E isto somente o fará bem aquele que de fato não sabe mais do que seu aluno que jamais fez a viagem antes dele o mestre ignorante este não poupará à criança o tempo que lhe for necessário para darse conta da palavra Calipso Mas alguém poderá perguntar o que tem ela a ver com Calipso e quando sequer ela ouviria falar disso Deixemos então Calipso de lado Mas que criança não ouviu falar do PaiNosso não sabe de cor a oração Nesse caso a coisa está dada e o pai de família pobre e ignorante que quer ensinar seu filho a ler não estará embaraçado Ele sempre encontrará em sua vizinhança alguma pessoa atenciosa e suficiente mente letrada capaz de copiar para ele essa oração Com isso o pai ou a mãe pode começar a instrução de seu filho perguntandolhe onde está o Pai Se a criança é atenta ele dirá que a primeira palavra que está no papel deve ser o Pai pois é a primeira na frase Nosso será então necessariamente a segunda palavra a criança poderá comparar distinguir conhecer essas duas palavras e reconhecêIas em qualquer parte Que pai ou mãe não saberia perguntar à criança às voltas com o texto da oração o que ele vê o que com isso pode fazer ou o que disso pode dizer ou o que pensa sobre o que disse ou fez Fazêlo da mesma forma como interrogaria um vizinho sobre o instrumento que tem em mãos e sobre o uso que dá ao objeto Ensi nar o que se ignora é simplesmente questionar sobre tudo que se ignora Não é preciso nenhuma ciência para fazer tais perguntas O ignorante pode tudo perguntar e somente suas questões serão para o viajante do país dos signos questões verdadeiras a exigir o exercí cio autônomo de sua inteligência Que seja diz o contraditor Mas o que faz a força do interroga dor faz também a incompetência do verificador Como saberá ele Jwmnaldr lémmndnation intellyduelle t VI 18411842 p 72 40 41 COLEÇÃO EDUCAÇÃO EXPERIENCIA E SENTIDO que a criança não divaga O pai ou a mãe sempre poderão pedir à criança Mostrame Pai ou Céus Mas como poderão eles verificar se a criança indica corretamente a palavra solicitada A dificuldade só crescerá à medida em que a criança avança se ela avança em sua aprendizagem O mestre e o aluno ignorantes não estariam nesse caso representando a fábula do cego e do paralítico O poder do ignorante Comecemos por tranqüilizar o contraditor não se fará do igno rante o depositário da ciência infusa sobretudo dessa ciência do povo que se oporia à dos sábios É preciso ser sábio para julgar os resultados do trabalho para verificar a ciência do aluno O ignoran te por sua vez fará menos e mais ao mesmo tempo Ele não verifi cará o que o aluno descobriu verificará se ele buscou Ele julgará se estava atento Ora basta ser homem para julgar do fato do trabalho Tão bem quanto o filósofo que reconhece passos de homem nas linhas na areia a mãe sabe ver nos olhos em toda a expressão de seu filho quando ele faz um trabalho qualquer quando ele mostra palavras de uma frase se ele está atento ao que faz O que o mestre ignorante deve exigir de seu aluno é que ele prove que estu dou com atenção É pouco Vejamos então tudo o que essa exi gência tem para o aluno de uma tarefa interminável Vejamos tam bém a inteligência que ela pode dar ao examinador ignorante Quem impede essa mãe ignorante mas emancipada de observar a cada vez que pergunta onde está Pai se a criança mostra sempre a mesma palavra quem se oporá a que ela esconda essa palavra e pergunte qual é a palavra que está debaixo de meu dedo Etc etc Imagem piedosa receita de mulheres Esse foi o julgamento do portavoz oficial da tribo dos explicadores Podese ensinar o que se ignora é ainda uma máxima de dona de casa Ao que se respon derá que a intuição maternal não exerce aqui nenhum privilégio Jsoma de fémanripntion intellectuelle p 73 II Idem 2 Lorain Réfutation de a méthodeJacotot Paris 1830 p 90 42 A lição do ignorante doméstico O dedo que esconde a palavra Pai é o mesmo que está em Calipso a escondida ou a ardilosa a marca da inteligência humana a mais elementar das astúcias da razão humana a verdadeira aquela que é própria a cada um e comum a todos essa razão que se manifes ta exemplarmente ali onde o saber do ignorante e a ignorância do mestre agindo fazem a demonstração dos poderes da igualdade in telectual O homem é um animal que distingue perfeitamente bem quando aquele que fala não sabe o que diz Essa capacidade é o laço que une os homens A prática do mestre ignorante não é um simples expediente que permite ao pobre que não tem tempo nem dinheiro nem saber instruir seus filhos É a experiência crucial que libera os puros poderes da razão lá onde a ciência não pode mais vir a seu socorro O que um ignorante pode uma vez todos os ignoran tes podem sempre Pois não há hierarquia na ignorância E o que os ignorantes e os sábios podem comumente é a isso que se deve cha mar o poder do ser inteligente como tal Poder de igualdade que é ao mesmo tempo de dualidade e de comunidade Não há inteligência onde há uma agregação ligadura de um espírito a outro espírito Há inteligência ali onde cada um age narra o que ele fez e fornece os meios de verificação da realidade de sua ação A coisa comum situada entre as duas inteligências é a caução dessa igualdade e isso em um duplo sentido Uma coisa ma terial é antes de mais nada o único ponto de comunicação entre dois espíritos 14 A ponte é a passagem mas também a distância mantida A materialidade do livro mantém a igual distância os dois espíritos enquanto a explicação é anulação de um pelo outro Mas a coisa é igualmente uma instância sempre disponível de verificação material o ato do examinador ignorante é de levar o examinado aos objetos materiais às frases às palavras escritas em um livro a uma coisa que ele possa verificar com seus sentidos 15 O examinado está sempre sujeito a uma verificação no livro aberto na materialidade de cada palavra na trajetória de cada signo A coisa o livro exorciza a toue cunleruel p 271 e Journal de lémnnripation ine0ednel t III 1835 1836 p 323 loomed de lEnmircipalion intellerhrelh t lit 18351836 p 253 I Journal de lémmrcipaliare intelerpelle r III 18351836 p 259 43 COICAo EaVCnGAO EXPERIENCIA e SfNIIpO cada vez a trapaça da incapacidade e aquela do saber Por isso o mes tre ignorante poderá eventualmente estender sua competência até a verificação não tanto da ciência do pequeno cavalheiro instruido mas da atenção que ele dá ao que diz e faz Vós podeis por esse meio até mesmo prestar serviço a um de vossos vizinhos que se encontra por circunstâncias independentes de sua vontade forçado a enviar seu fi lho ao colégio Se o vizinho vos pede para verificar o que sabe o pe queno colegial não estareis em nada embaraçado com essa requisição ainda que não tenhais estudos O que estais aprendendojovem amigo direis ã criança Grego O quê Esopo O quê As Fábulas Que fábula conheceis A primeira Onde está a primeira palavra Eila aqui Passaime vosso livro Recitaime a quarta palavra Colo caia por escrito O que escrevestes não se parece com a quarta palavra do livro Vizinho essa criança não sabe o que diz saber Essa é uma prova de que lhe faltou atenção quando estudava ou quando indicou o que diz saber Aconselhaio a estudar Voltarei a passar e vos direi se está aprendendo o grego que ignoro que sou incapaz de ler É assim que o mestre ignorante pode instruir tanto aquele que sabe quanto o ignorante verificando se ele está pesquisando conti nuamente Quem busca sempre encontra Não encontra necessaria mente aquilo que buscava menos ainda aquilo que é preciso encon trar Mas encontra alguma coisa nova a relacionar à coisa que já conhece O essencial é essa contínua vigilância essa atenção que jamais se relaxa sem que venha a se instalar a dcsrazão em que excelem tanto aquele que sabe quanto o ignorante O mestre é aquele que mantém o que busca em seu caminho onde está sozinho a procu rar e o faz incessantemente Os negócios de cada um Mas ainda é preciso para verificar essa procura saber o que quer dizer procurar Esse é o cerne de todo o método Para emanci par a outrem é preciso que se tenha emancipado a si próprio É pre ciso conhecerse a si mesmo como viajante do espírito semelhante a Journade lémancpeionhrtelleNme t IV 18361837 p 280 44 A lição do ignorante todos os outros viajantes como sujeito intelectual que participa da potência comum dos seres intelectuais Como se tem acesso a esse conhecimento de si Um campo nês um artista pai de família se emancipará intelectualmente se refletir sobre o que é e o que faz na ordem social A coisa pare cerá simples c mesmo simplória para quem desconhece o peso do velho mandamento que a filosofia pela voz de Platão instituiu como destino para o artesão Não faças nada além de teu próprio negócio que não é de pensar no que quer que seja mas simplesmente fazer essa coisa que esgota a definição dc teu ser se tu és sapateiro calça dos e crianças que serão sapateiros Não é a ti que o oráculo délfico recomenda conhecerse E mesmo se a divindade brincalhona se di vertisse em semear na alma de teu filho um pouco do ouro do pensa mento é à raça de ouro aos guardiães da pólis que incumbiria a tarefa de educálo para tornálo um deles É bem verdade que a era do progresso pretendeu abalar a rigi dez do velho mandamento Com os enciclopedistas decretou que nada mais se fizesse como rotina nem mesmo o trabalho dos arte sãos E sabia que não há ator social por mais ínfimo que seja que não se constitua ao mesmo tempo em um ser pensante O cidadão Destutt de Tracy relembrou no alvorecer do novo século Todo homem que fala tem idéias de ideologia de gramática de lógica e de eloqüência Todo homem que age tem princípios de moral pri vada e de moral social Todo ser apenas por vegetar desenvolve suas noções de física e de cálculo e somente pelo fato de viver com seus semelhantes desenvolve sua pequena coleção de fatos históricos e sua maneira dejulgálos Impossível portanto que os sapateiros façam apenas calçados que não sejam também à sua maneira gramáticos moralistas e físicos Este é o primeiro problema enquanto os artesãos e os cam poneses formarem essas noções de moral de cálculo ou de física segundo a rotina de seu meio ou o acaso de seus encontros a marcha Enseignrmrnl enread I nngme maternele 6 ed Paris 1836 p 422 Destutt de Trace Obrerraions sur le système camel dinsnctan publique Pads ano IX 45 COLEAO EoucACAo EGEFIFNOA E SENiIDO racional do progresso será duplamente contrariada retardada pelos rotineiros e supersticiosos ou perturbada pelo açodamento dos vio lentos Fazse portanto necessário que um mínimo de instrução retirado dos princípios da razão da ciência e do interesse geral im bua de noções sadias cabeças que sem isso as formarão falhas Escu sado mencionar que essa empreitada será tão mais proveitosa quanto mais ela subtrair o filho do camponês ou do artesão do meio natural produtor dessas falsas idéias No entanto essa evidência encontra ra pidamente sua contradição a criança que deve ser subtraída à rotina e à superstição deve no entanto voltar à sua atividade e à sua condição E a era do progresso foi desde sua aurora advertida do perigo mortal que há em separar a criança do povo da condição para qual está votada e das idéias relativas a essa condição Assim ela se esbarra com essa contradição sabese agora que as ciências dependem todas de prin cípios simples que são acessíveis a todos os espíritos que delas de sejarem se apropriar desde que sigam o método adequado Mas a mesma natureza que abre a carreira das ciências a todos os espíritos quer uma ordem social em que as classes estejam separadas e os indivíduos conformados ao estado social que lhes é destinado A solução encontrada para essa contradição é a balança orde nada da instrução e da educação a repartição dos papéis devidos ao mestreescola e ao pai de família Um afugenta pelas luzes da instru ção as idéias falsas que a criança deve a seu meio familiar o outro afugenta pela educação as aspirações extravagantes que o escolar poderia tirar de sua jovem ciência e o traz de volta à condição dos seus O pai de família incapaz de tirar de sua prática rotineira as condições para a instrução intelectual de seu filho mostrase em troca todopoderoso para lhe ensinar pela palavra e pelo exemplo a virtude que há em se manterem sua condição A família é ao mesmo tempo fonte da incapacidade intelectual e princípio de objetividade ética Esse duplo caráter se traduz por uma dupla limitação da cons ciência de si do artesão a consciência de que aquilo quefaz depende de uma ciência que não é a sua a consciência de que aquilo que é o conduz a não fazer nada além de seu próprio negócio Digamolo mais simplesmente a balança harmoniosa da ins trução e da educação é a de um duplo embrutecimento A isso se opõe exatamente a emancipação tomada de consciência por parte 46 A Iiçõo do ignorante de cada homem de sua natureza de sujeito intelectual fórmula carte siana da igualdade posta ao revés Descartes dizia eu penso logo sou e esse belo pensamento do grande filósofo é um dos princípios do Ensino Universal Nós invertemos seu pensamento e dizemos eu sou homem logo penso A inversão inclui o sujeito homem na igualdade do cogito O pensamento não é um atributo da substância pensante mas um atributo da humanidade Para transformar o co nhecete a ti mesmo em princípio da emancipação de todo ser hu mano é preciso fazer operar contra o interdito platônico uma das etimologias da fantasia do Crátilo o homem o anthropos é o ser que examina o que vê que se conhece nessa reflexão sobre seu ato Toda a prática do Ensino Universal se resume na questão o que pen sas disso Todo seu poder está na consciência da emancipação que ela atualiza no mestre e suscita no aluno O pai poderá emancipar seu filho se começar por se conhecer a si próprio isto é por exami nar os atos intelectuais de que é o sujeito por observar a maneira como utiliza nesses atos seu poder de ser pensante A consciência da emancipação é antes de tudo o inventário das competências intelectuais do ignorante Ele conhece sua língua Ele sabe igualmente usála para protestar contra seu estado ou para interrogar os que sabem ou acreditam saber mais do que ele Ele conhece seu ofício seus instrumentos e uso ele seria capaz se ne cessário de aperfeiçoálos Ele deve começar a refletir sobre essas capacidades e sobre a maneira como as adquiriu Avaliemos melhor essa reflexão Não se trata de opor os saberes manuais e do povo a inteligência do instrumento e do operário à ciência das escolas ou à retórica das elites Não se trata de perguntar quem cons truiu Tebas e suas sete portas para reivindicar o lugar de construtores e de produtores na ordem social Tratase ao contrário de reconhecer que não há duas inteligências que toda obra da arte humana é a realização das mesmas virtualidades intelectuais Em toda parte tratase de obser var de comparar de combinar de fazer e de assinalar como se fez Em toda parte é possível essa reflexão essa volta sobre si mesmo que não é Sonmmire des rpms pebiques de Al J acolo p 23 Platão Cretao399 c Único entra todos os animais o homem foi justamente chamado e ntRepos porque ele examina o que viu anatisnia baerpópe 47 COIEOAO EDUCAÇÃO EXPERIÊNCIA E SENTIDO a pura contemplação de uma substância pensante mas a atenção incon dicionada a seus atos intelectuais ao caminho que descrevem e a possi bilidade de avançar sempre investindo a mesma inteligência na con quista de novos territórios Permanece embrutecido aquele que opõe a obra das mãos operárias e do povo que nos alimenta às nuvens da retóri ca A fabricação de nuvens é uma obra da arte humana que exige nem menos nem mais tanto trabalho tanta atenção intelectual quanto a fa bricação de calçados e de maçanetas M Lerminier o acadêmico dis serta sobre a incapacidade intelectual do povo M Lerminier é um em brutecido Mas um embrutecido não é um tolo nem um preguiçoso E seríamos embrutecidos por nossa vez se não reconhecêssemos em suas dissertações a mesma arte a mesma inteligência o mesmo trabalho que os daqueles que transformam a madeira a pedra ou o couro Somente se reconhecermos o trabalho de M Lerminier seremos capazes de reco nhecer a inteligênciamanifestada pela obra dos mais humildes As cam ponesas pobres dos arredores de Grenoble fabricam luvas pagamse lhes trinta centavos a dúzia Mas desde que se emanciparam elas se aplicam a olhar a estudar a compreender uma luva bem confeccionada Elas adivinharão o sentido de todas as frases de todas as palavras dessa luva Acabarão por falar tão bem quanto as mulheres da cidade que ganham sete francos por dúzia Tratase somente de aprender uma lín gua que se fala com tesouras agulha e linha A questão sempre está limitada nas sociedades humanas a compreender e falar uma língua A idealidade material da língua refuta qualquer oposição entre raça de ouro e raça de ferro qualquer hierarquia ainda que inverti da entre os homens votados ao trabalho manual e os homens desti nados ao exercício do pensamento Qualquer obra da língua se com preende e se executa da mesma maneira É por isso que o ignorante pode assim que se conheceu a si mesmo verificar a pesquisa de seu filho no livro que não consegue ler mesmo não conhecendo as maté rias que o filho estuda se este lhe diz como está fazendo saberá reconhecer se está fazendo ou não obra de pesquisador Pois ele sabe o que é pesquisar e não tem senão uma coisa a pedir a seu filho que é virar e revirar suas palavras e frases como ele próprio vira e revira seus instrumentos quando pesquisa I ìnteìaremen miirerreL Aftuigne 3 ed Paris 1830 p 349 48 A lição do ignorante O livro Telémaco ou outro colocado entre duas inteligên cias resume essa comunidade ideal que se inscreve na materialidade das coisas O livro é a igualdade das inteligências Por isso um mes mo mandamento filosófico prescrevia ao artesão só fazer seus pró prios negócios e condenava a democracia do livro O filósoforei platônico opunha à palavra viva a letra morta do livro pensamento tornado matéria à disposição dos homens da matéria discurso ao mesmo tempo mudo e tagarela errando ao acaso entre aqueles cujo único negócio é pensar O privilégio explicador é somente a moeda de troco desse interdito E o privilégio que o método Jacotot con cede ao livro à manipulação dos signos à mnemotécnica é a perfeita inversão da hierarquia dos espíritos que marcava em Platão a críti ca da escrita 0 O livro sela a nova relação entre dois ignorantes que a partir daí se reconhecem como inteligências E essa nova relação transforma a relação embrutecedora da instrução intelectual e da edu cação moral Em vez da instância disciplinadora da educação inter vém a decisão da emancipação que torna o pai ou a mãe capaz de representar para seu filho o papel do mestre ignorante em quem se encarna a exigência incondicionada da vontade Exigência incondi cionada o pai emancipador não é um pedagogo gentil mas um mes tre intratável O mandamento emancipador não conhece negociações Ele comanda absolutamente um sujeito que supõe capaz de coman darse a si mesmo O filho verificará no livro a igualdade das inteli gências desde que o pai ou a mãe verifiquem a radicalidade da pes quisa que ele está realizando A célula familiar já não é mais então o lugar de um retrocesso que conduz o artesão à consciência de sua nulidade Ela é o lugar de uma nova consciência de uma superação de si que estende o próprio negócio de cada um até o ponto em que ele se faz exercício integral da razão comum O cego e seu cão Pois é exatamente isso que se trata de verificar a igualdade de princípio dos seres falantes Ao forçar a vontade do filho o pai Cf Platão Pedro 274 e 277 a e J Rancière I Pbilosophe el set pouffes Fayard 1983 p 66 e seg 49 COLECAO EoucACAO EXPO CIA E SENTIDO de família pobre verifica que eles têm a mesma inteligência que seu filho pesquisa como ele e o que o filho busca no livro é a inteligência daquele que o escreveu para verificar se ela procede exatamente como a sua Essa reciprocidade é o cerne do método emancipador o principio de uma filosofia nova que o Fundador juntando duas palavras gregas batizou de panecdstica porque ela busca o todo da inteligência humana em cada manifestação intelec tual Decerto não o havia compreendido bem o proprietário que enviou seu jardineiro para se formar em Louvain pretendendo tor nálo instrutor de seus filhos Não há performances pedagógicas especiais a serem esperadas de um jardineiro emancipado ou de um mestre ignorante em geral O que pode essencialmente um emancipado é ser emancipador fornecer não a chave do saber mas a consciência daquilo que pode uma inteligência quando ela se considera como igual a qualquer outra e considera qualquer outra como igual ã sua A emancipação é a consciência dessa igualdade dessa recipro cidade que somente ela permite que a inteligência se atualize pela verificação O que embrutece o povo não é a falta de instrução mas a crença na inferioridade de sua inteligência E o que embrutece os inferiores embrutece ao mesmo tempo os superiores Pois só verifica sua inteligência aquele que fala a um semelhante capaz de verificar a igualdade das duas inteligências Ora o espírito superior se condena a jamais ser compreendido pelos inferiores Ele só se assegura de sua inteligência desqualificando aqueles que lhe poderi am recusar esse reconhecimento Tal como o sábio que sabe que os espíritos femininos são inferiores aos espíritos masculinos e que passa toda sua existência a dialogarcom um serque não pode compreendê lo Que intimidade que doçura nas conversações amorosas nos casais nas famílias Aquele que fala nunca está certo de ter sido compreendido Ele tem um espirito e um coração um grande espíri to um coração sensível mas o cadáver ao qual a cadeia social o amarrou ou a amarrou Oh infelicidade Dirseá que a admira ção de seus alunos e do mundo exterior o consola dessa desgraça doméstica Mas o que vale o julgamento de um espírito inferior Journal de emancipation ìnlelechrelle t V 1838 p 168 50 A liçáo do ignorante sobre um espirito superior Dizei ao poeta eu apreciei muito vossa última obra ele vos responderá mordendo os lábios muito me hon rais isso é meu caro não saberia me envaidecer com o sufrágio de vossa pequena inteligência 24 Mas essa crença na desigualdade intelectual e na superioridade de sua própria inteligência não é em nada uma exclusividade dos sábios e dos poetas eminentes Sua força vem do fato de que ela envol ve toda a população sob a aparência de humildade Eu não posso vos declara o ignorante que incitais a se instruir Eu não sou mais do que um operário Percebei bem o que está contido no silogismo An tes de tudo eu não posso significa eu não quero por que faria eu semelhante esforço O que quer dizer também eu poderia sem dú vida fazêlo pois sou inteligente mas não sou senão um operário gente como eu não o consegue meu vizinho não o conseguiria De que isso me serviria então já que trato com imbecis Assim vai a crença na desigualdade Não há espirito superior que não encontre um mais superior ainda para rebaixálo não há espí rito inferior que não encontre outro mais inferior ainda para despre zar A toga professoral de Louvain é bem pouca coisa em Paris E o artesão parisiense sabe como lhe são inferiores os artesãos de provín cia que sabem por sua vez como são atrasados os camponeses No dia em que esses últimos pensarem que conhecem as coisas e que a toga de Paris abriga um fantasista o cerco se fechará A superioridade universal dos inferiores se unirá à inferioridade universal dos superio res para criar um mundo em que nenhuma inteligência poderá se reco nhecer em seu igual Ora a razão se perde ali onde um homem fala a um outro que nada lhe Ode replicar Não há espetáculo mais belo mais instrutivo do que o espetáculo do homem que fala Porém o ouvinte deve se reservar o direito de pensar no que acabou de ouvir e o expositor deve convidálo a tanto Logo é preciso que o ouvinte verifique se o expositor está atualmente no uso de sua razão se dela está escapando ouse a está abraçando Sem essa verificação autoriza da exigida pela própria igualdade das inteligências não vejo numa conversa mais do que um discurso entre o cego e seu cão Enseignement mùrerzel AIémnóetpostmmes Paris 1841 p 176 25 fnnnml de emanciialio loteccne t III 183536 p 334 51 COLEÇÃO EoucnDAoL EPE4iFNOA e SENTiDO Resposta à fábula do cego e do paralítico o cego que fala a seu cão é o apólogo do mundo das inteligências desiguais Percebese bem que se trata de filosofia e de humanidade não de receitas de pedagogia infantil O Ensino Universal é em primeiro lugar a uni versal verificação do semelhante de que todos os emancipados são capazes todos aqueles que decidiram pensar em si como homens semelhantes a qualquer outro Tudo está em tudo Tudo está em tudo A tautologia da potência é também a da igualdade que busca o dedo da inteligência em toda obra de homem Esse é o sentido do exercício que tanto surpreendeu Baptiste Frous sard homem de progresso e diretor de escola em Grenoble que veio acompanhar em Louvain os dois filhos do deputado Casimir Perier Membro da Sociedade dos Métodos de Ensino Baptiste Froussard já havia ouvido falar do Ensino Universal e deve ter reconhecido na classe de Mlle Marcellis exercícios que o presidente dessa Socieda de M de Lasteyrie havia descrito Ele observou jovens moças se gundo o costume fazerem composições em quinze minutos umas sobre o último homem outras sobre o retorno do exilado e escrever sobre esses temas peças de literatura que como assegurava o funda dor não fariam feio entre as mais belas páginas de nossos melhores autores Essa afirmação levantava vivas reservas nos visitantes ilus tres Mas M Jacotot havia encontrado o meio de convencêlos já que em toda evidência eles próprios podiam ser contados entre os melhores escritores da época bastavalhes submeteremse à mesma prova e dar aos alunos a possibilidade de comparar M de Lasteyrie se havia prestado de bom grado ao exercício Mas o mesmo não su cedeu com M Guigniaut o enviado da Escola Normal de Paris que se mostrara incapaz de ver qualquer dedo humano em Calipso mas que em troca havia visto em uma composição a ausência indescul pável de um circunflexo sobre a palavra croître Convidado para a prova ele se tinha apresentado com uma hora de atraso sendolhe solicitado que voltasse no dia seguinte Mas à tarde ele havia reto mado o caminho de Paris levando em suas bagagens como peça de acusação esse i vergonhosamente privado de seu circunflexo 52 A Iição do ignorante Após a leitura das composições Baptiste Froussard assistiu às sessões de improvisação Tratavase de um exercício essencial do Ensino Universal aprender a falar sobre todos os assuntos à quei maroupa com um começo um desenvolvimento e um fim Apren der a improvisar era antes de qualquer outra coisa aprender a ven cer a si próprio a vencer esse orgulho que se disfarça de humildade para declarar sua incapacidade de falar diante de outrem isso é a recusa de submeterse a seu julgamento Era em seguida aprender a começar e a terminar a fazer por si mesmo um todo a aprisionar a língua em um círculo Assim duas alunas haviam improvisado com toda segurança sobre a morte do ateu após o que M Jacotot para afugentar essas tristes idéias pediu a outra aluna para improvisar sobre o vôo de unta mosca Estava decretada a hilaridade na sala mas M Jacotot colocou as coisas no lugar não se tratava de rir era preciso falar E sobre esse tema aéreo durante oito minutos e meio a jovem disse coisas encantadoras estabelecendo relações cheias de graça e de frescor de imaginação Baptiste Froussard havia participado da lição de música M Jacotot havia lhe solicitado fragmentos de poesia francesa sobre os quais as jovens alunas haviam improvisado melodias com acompa nhamento que interpretaram de modo adorável Muitas vezes ainda ele havia voltado à casa de Mlle Marcellis conduzindo ele mesmo exercícios de composição de moral e de metafísica todos realizados com uma facilidade e um talento admiráveis Porém eis o exercício que mais o surpreendeu um dia M Jacotot havia se dirigido às alu nas Senhoritas sabeis que há arte em toda obra humana em uma máquina a vapor como em um vestido em uma obra de literatura como em um sapato Muito bem Vós me fareis uma composição so bre a arte em geral relacionando vossas palavras vossas expressões vossos pensamentos a uma ou outra passagem dos autores que vos serão indicados de maneira a poder tudo justificar ou verificar Diversas obras foram então trazidas a Baptiste Froussard que indicou pessoalmente a uma certa passagem de Athalie a outra um capítulo da gramática a outra ainda uma passagem de Bossuet um capítulo da geografia a divisão aritmética de Lacroix e assim por B Froussard l rttre B sesantis an sujet dr n méthode de ilf Jacoal Paris 1829 p 6 53 COLtcAO EnucAoO EPEAlNGA E SENTIDO diante Não lhe foi preciso esperar muito pelos resultados desse es tranho exercício sobre coisas tão pouco comparáveis Ao fim de meia hora novamente o estupor o invadiu ao perceber a qualidade das composições que haviam sido feitas em sua presença e dos comen tários improvisados que as justificavam Ele admirou em particular uma explicação da arte feita sobre a passagem de Athalie acompa nhada de uma justificativa ou verificação somente comparável se gundo ele à mais brilhante lição de literatura que já escutara Nesse dia mais do que nunca Baptiste Froussard compreen deu em que sentido se pode dizer que tudo está em tudo Ele já sabia que M Jacotot era um pedagogo surpreendente e podia presumir a qualidade dos alunos formados sob sua orientação Contudo ele vol tou para casa tendo compreendido uma coisa a mais as alunas de Mlle Marcellis de Louvain tinham a mesma inteligência que as ar tesãs de Grenoble e mesmo muito mais difícil de admitir que as artesãs dos arredores de Grenoble 54 CAPÍTULO TERCEIRO A ratão dos iguais E preciso refletir melhor sobre a razão desses efeitos Nós orientamos as crianças a partir da opinião da igualdade das inteli gências Mas o que é uma opinião É dizem os explicadores um sen timento que formamos sobre os fatos superficialmente observados As opiniões crescem muito particularmente nos cérebros fracos e populares e se opõem à ciência que conhece as verdadeiras razões dos fenômenos Se desejardes vos ensinaremos a ciência Devagar Nós vos concedemos que uma opinião não é uma ver dade Porém é isso que nos interessa quem não conhece a verdade busca por ela e há muitas descobertas a serem feitas no caminho O único erro seria tomar nossas opiniões como verdades Isso sem dúvida é o que se faz cotidianamente Mas esta é justamente a úni ca coisa em que queremos nos distinguir nós adeptos do louco pensamos que nossas opiniões são opiniões e nada mais Nós obser vamos certos fatos Nós acreditamos que tal poderia ser a razão para esses fatos Faremos e podereis fazer também algumas experiências para verificar a solidez dessa opinião Parecenos inclusive que o procedimento não é totalmente inédito Não é assim que agem fre qüentemente os físicos e os químicos Mas nesse caso falase em tom respeitoso de hipótese de método científico Mas na verdade pouco nos importa o respeito Limitemonos aos fatos vimos crianças e adultos aprenderem sozinhos sem mes tre explicador a ler a escrever a tocar música ou a falar línguas 55 COLEÇÃO EoorsCno EXPERIENCE E SENI NO estrangeiras Acreditamos que esses fatos poderiam se explicar pela igual dade das inteligências É uma opinião cuja verificação estamos perse guindo É bem verdade que há nisso uma dificuldade Físicos e químicos isolam os fenômenos físicos colocandoos em relação a outros fenôme nos físicos Ao produzir as supostas causas para esses fenômenos eles se habilitam a reproduzir seus efeitos conhecidos Tal caminho nos está interditado Jamais poderemos dizer tomemos duas inteligências iguais e submetâmolas a tal ou tal condição Conhecemos a inteligência por seus efeitos Não podemos entretanto isolála ou medila Estamos re duzidos a multiplicar as experiências inspiradas por essa opinião E ja mais podermos afirmar todas as inteligências são iguais Isso é inegável Nosso problema contudo não é provar que todas as inteligências são iguais É ver o que se pode fazer a partir dessa suposição E para isso bastanos que essa opinião seja possí vel isto é que nenhuma verdade contrária seja demonstrada Cérebros e folhas Mas é precisamente o contrário que é patente dizem os espíri tos superiores É evidente aos olhos de todos que as inteligências são desiguais Primeiramente não há na natureza dois seres idênticos Observai as folhas que caem dessa árvore Elas vos parecem exata mente parelhas Observai mais de perto para vos dissuadirdes Em meio a esses milhares de folhas não há duas assemelhadas A indivi dualidade é a lei do mundo Como essa lei que se aplica a vegetais não se aplicaria a fortiori a esse ser infinitamente mais elevado na hierarquia vital que é a inteligência humana Logo todas as inteli gências são diferentes Além disso sempre houve sempre haverá e há em toda parte seres desigualmente dotados para as coisas da inte ligência sábios e ignorantes pessoas de espírito e tolos espíritos abertos e cérebros obtusos Sabemos o que se diz a esse respeito a diferença das circunstâncias do meio social a educação Pois bem façamos uma experiência tomemos duas crianças saídas do mesmo meio educadas da mesma maneira Tomemos dois irmãos enviêmolos à mesma escola submetidos aos mesmos exercícios O que veremos Um será mais bem sucedido do que o outro Logo 56 A razão dos iguais existe uma diferença intrínseca E essa diferença devese ao seguinte um dos dois é mais inteligente mais dotado tem mais recursos do que o outro Logo vêse bem que as inteligências são desiguais O que responder a essas evidências Comecemos pelo começo por essas folhas que tanto interessam aos espíritos superiores Nós as reconheceremos tão diferentes quanto eles quiserem Indagaremos ape nas como no entanto se passa da diferença das folhas à desigualdade das inteligências A desigualdade é apenas um gênero da diferença e não é dele que se fala no caso das folhas Uma folha é um ser material enquanto que um espírito é imaterial Como concluir sem paralogis mo das propriedades das folhas às propriedades do espírito É bem verdade que nesse terreno têmse agora rudes adversá rios os fisiologistas As propriedades do espírito dizem os mais radi cais dentre eles são na realidade propriedades do cérebro humano Diferença e desigualdade reinam aí como na configuração de todos os outros órgãos do corpo humano Tanto quanto pesa o cérebro vale a inteligência Sobre a questão se debruçam frenólogos e crani óscopos este aqui dizem tem a bossa do gênio esse outro não tem a bossa dos matemáticos Abandonemos esses protuberantes ao exa me de suas protuberâncias e reconheçamos a seriedade da questão Podese com efeito imaginar um materialismo conseqüente Esse só conheceria cérebros e poderia aplicar a eles tudo que se aplica aos seres materiais Para ele efetivamente as proposições de emancipa ção intelectual não seriam mais do que sonhos de cérebros bizarros afetados por uma forma particular da velha doença do espírito que é conhecida pelo nome de melancolia Nesse caso os espíritos superio res isso é os cérebros superiores de fato comandariam os espíritos inferiores como o homem comanda os animais Se assim o fosse simplesmente ninguém discutiria a desigualdade das inteligências Os cérebros superiores não se dariam ao trabalho inútil de demons trar sua superioridade a cérebros inferiores incapazes por defini ção de compreendêlos Contentarseiam em dominálos E nisso não encontrariam qualquer obstáculo sua superioridade intelectual exercerseia de fato assim como acontece com a superioridade físi ca Não haveria mais necessidade de leis de assembléias e de gover nos na ordem política tanto quanto não haveria mais necessidade de ensino de explicações e de academias na ordem intelectual 57 COIEÇAO EDUCAAO EEERIfNCIA E SENTIDO Mas tal não é o caso Temos governos e leis Temos espíritos superiores que buscam instruir e convencer os espíritos inferiores Mais estranho ainda os apóstolos da desigualdade das inteligências em sua imensa maioria não seguem os fisiologistas e fazem pouco dos cranióscopos A superioridade de que se vangloriam não se mede segundo eles por esses instrumentos O materialismo seria uma ex plicação cômoda de sua superioridade mas para eles tratase ainda de uma outra coisa Sua superioridade é espiritual Eles são espiritua listas antes de tudo porque têm uma boa opinião de si mesmos Eles acreditam na alma imaterial e imortal Mas como o que é imaterial seria susceptível de mais e do menos Tal é a contradição dos espíri tos superiores Eles querem uma alma imortal um espírito distinto da matéria e querem inteligências diferentes Mas é a matéria que faz as diferenças Se nos atemos à desigualdade é preciso aceitar as localizações cerebrais se nos atemos à unidade do princípio espiri tual é preciso afirmar que é a mesma inteligência que se aplica em circunstãncias diferentes a objetos materiais diferentes No entanto os espíritos superiores não querem saber nem de uma superioridade que fosse somente material nem de uma espiritualidade que os fizes se iguais aos inferiores Eles reivindicam as diferenças dos materia listas no seio da elevação própria ã imaterialidade Eles maquiam as bossas dos cranióscopos em dons inatos da inteligência Eles bem percebem essa fragilidade tal como sabem que é pre ciso conceder algo aos inferiores ainda que por pura precaução Eis portanto como resolvem as coisas há em todo homem dizem eles uma alma imaterial Ela permite ao niais humilde conhecer as gran des verdades do bem e do mal da consciência e do dever de Deus e do julgamento Quanto a isso somos todos iguais e até concedemos que os mais humildes freqüentemente nos superariam Que isso lhes baste pois e não aspirem ademais a essas capacidades intelectuais que são privilégio muitas vezes pesadamente adquirido daqueles que têm por tarefa cuidar dos interesses gerais da sociedade E que não venham nos dizer que essas diferenças são puramente sociais Basta ver essas duas crianças saídas do mesmo meio formadas pelo mesmo mestre Um é mais bem sucedido o outro fracassa Logo Que seja Logo vejamos essas crianças e vejamos também vossos logo Um é mais bem sucedido do que o outro umfato Se 58 A razõo dos iguais ele é mais bem sucedido dizeis é porque é mais inteligente é aqui que a explicação tornase obscura Haveis mostrado um outrofato que se ria a causa do primeiro Se um fisiologista descobrisse que um dos cérebros era mais estreito ou mais leve do que o outro isso seria um fato Ele poderia legitimamente logar Vós porém não mostrais outro fato Ao dizer Ele é mais inteligente vós simplesmente resumis as idéias que relatam esse fato Vós o haveis nomeado Entretanto onome de um fato não é sua causa e sim no máximo sua metáfora Vós haveis relatado o fato uma primeira vez dizendo Ele é mais bem sucedido e o haveis relatado com outro nome ao afirmar Ele é mais inteligente Contudo não há mais no segundo enunciado do que havia no primeiro Esse homem é mais bem sucedido do que esse outro porque ele tem mais espírito isso significa exatamente ele é mais bem sucedido porque é mais bem sucedido j Esse jovem tem muito mais recursos dizse Eu pergunto o que é ter mais recursos e recomeçais a me relatar a história das duas crianças logo niais recur sos digo a mini mesmo significa em francês o conjunto de fatos que acabo de ouvir mas esta expressão não os explica absolutamente Impossível pois romper o círculo É preciso mostrar a causa da desigualdade ainda que isso signifique ter que tomála empresta da dos protuberantes ou limitarse a uma tautologia A desigualdade das inteligências explica a desigualdade das manifestações intelec tuais como a virtus dormitiva explica os efeitos do ópio Um animal atento Sabemos que uma justificação da igualdade das inteligências seria igualmente tautológica Seguiremos portanto um outro cami nho só falaremos daquilo que vemos nomearemos os fatos sem pre tender atribuirlhes uma causa Primeiro fato Vejo que o homem faz coisas que os outros animais não fazem Chamo a esse fato a meu gosto espírito ou inteligência nada explico dou um nome ao que vejo 2 Posso dizer igualmente que o homem é um animal razoável lureFçnrnien nnüarrel ague érnnóére 2 ed Paris 1829 p 228229 IGFdrm p 229 59 COLCUa EDVCACAO ExPfRtNCIA E Semmo Com isso consignarei o fato de que o homem dispõe de uma lingua gem articulada da qual se serve para fazer palavras figuras compara ções a fim de comunicar seu pensamento aos semelhantes Em segun do lugar quando comparo dois homens vejo que nos primeiros momentos da vida eles têm absolutamente a mesma inteligência isto é fazem exatamente as mesmas coisas com o mesmo objetivo com a mesma intenção Digo que esses dois homens têm uma inteligência igual e essa expressão inteligência igual é um signo abreviado de to dos os fatos que constatei ao observar duas crianças em tenra idade Mais tarde verei outros fatos Constatarei que essas duas inte Iigenciasjá não fazem as mesmas coisas não mais obtêm os mesmos resultados Poderei afirmar se quiser que a inteligência de um é mais desenvolvida do que a do outro se estou consciente de que ainda aí estou apenas relatando um novo fato Nada me impede então de fazer uma suposição Não direi que a faculdade de um é inferior ã do outro somente suporei que ela não foi igualmente exercida Nada me concede certeza quanto a isso mas nada me prova o contrário Bastame saber que esta falta de exercício é possível e que muitas ex periências o atestam De modo que deslocarei ligeiramente a tautolo gia não direi que ele é menos bem sucedido porque é menos inteli gente Direi que talvez ele tenha realizado um trabalho menos bom porque trabalhou menos bem que não viu bem porque não olhou bem Direi que ele dedicou a seu trabalho menor atenção Assim fazendo é bem possível que eu não tenha avançado mui to mas já o suficiente para sair do círculo A atenção não é nem uma bossa do cérebro nem uma qualidade oculta E um fato imaterial em seu princípio e material em seus efeitos temos mil e um meios de verificar sua presença sua ausência ou sua maior ou menor intensida de E para isso que tendem todos os exercícios do Método Universal Enfim a desigualdade de atenção é um fenômeno cujas causas possí veis nos são razoavelmente sugeridas pela experiência Sabemos por que crianças pequenas demonstram uma inteligência tão semelhante em sua exploração do mundo e em seu aprendizado da linguagem O instinto e a necessidade os conduzem de forma idêntica Todas têm mais ou menos as mesmas necessidades a serem satisfeitas e todos querem igualmente entrar na sociedade dos humanos na sociedade dos seres falantes E para isso é preciso que a inteligência trabalhe 60 A razão dos iguais sem repouso Esta criança está rodeada de objetos que lhe falam to dos ao mesmo tempo em línguas diferentes é preciso que ela os estu de separadamente e em seu conjunto eles não têm entre si qualquer relação e freqüentemente se contradizem Ela nada pode adivinhar sobre esses idiomas que a natureza fala ao mesmo tempo a seu olho a seu tato a todos os seus sentidos É preciso que esteja sempre repetin do para poder se lembrar de tantos signos absolutamente arbitrários Quanta atenção é necessária para tudo isso Dado esse grande passo a necessidade se faz menos imperiosa a atenção menos constante e a criança se habitua a aprender pelos olhos de outrem As circunstâncias se diversificam e ela desenvolve as capacidades intelectuais que lhe são solicitadas A mesma coisa se passa com os homens do povo É inútil discutir se sua inteligência menor é um efeito da natureza ou da sociedade eles desenvolvem a inteligên cia que suas necessidades e circunstâncias exigem Ali onde a neces sidade cessa a inteligência repousa a menos que uma vontade mais forte se faça ouvir e diga continua vê o que fizeste e o quepodes fazer se aplicares a mesma inteligência que já empregaste investindo em toda coisa a mesma atenção não te deixando distrair em teu caminho Resumamos essas observações e diremos o homem é urna vontade servida por unta inteligência Talvez o fato de vontades desigualmente imperiosas seja suficiente para explicar a desigualda de das performances intelectuais O homem é unta vontade servida por unta inteligência Essa fórmula é herdeira de uma longa história Resumindo o pensamento dos espíritos fortes do século XVIII SaintLambert havia afirmado O homem é unta organização viva servida por uma inteligência A fórmula recendia o materialismo que a inspirava c quando da Res tauração o apóstolo da contrarevolução o Visconde de Bonald a havia estritamente invertido O homem proclamava é unta inteli gência servida por órgãos Mas essa inversão realizava uma restau ração bastante ambígua da inteligência 0 que havia desagradado ao Visconde na fórmula do filósofo não era o fato de que ela deixava muito pouco para a inteligência humana Ele mesmo se preocupava nurser 7wgre matereek 6 ed Paris 1836 p 199 61 COLEÇÃO EDUCACAO EXPERIENCIA E SENTIDO bem pouco com ela O que ao contrário o havia descontentado era o modelo republicano de um rei a serviço da organização coletiva O que ele queria restaurar era a boa ordem hierárquica um rei que co manda e sujeitos que obedecem A inteligênciarainha para ele não era certamente aquela da criança ou do operário tensionado para a apropriação do mundo dos signos era a inteligência divinajá inscri ta nos códigos dados aos homens pela divindade na própria língua que não devia sua origem nem à natureza nem à arte humana mas ao puro dom divino A parte que cabia à vontade humana era a de se submeter a essa inteligênciajá manifestada inscrita nos códigos na linguagem comum das instituições sociais Esse a priori conduzia a um certo paradoxo Para assegurar o triunfo da objetividade social e da objetividade da linguagem sobre a filosofia individualista das Luzes Bonald devia reavaliar as formu lações mais materialistas dessa filosofia Para rejeitar toda anteriori dade do pensamento sobre a linguagem para negar à inteligência qual quer direito à pesquisa da verdade que lhe fosse própria ele deveria se alinhar com aqueles que haviam reduzido as operações do espírito ao puro mecanismo das sensações materiais e dos signos da linguagem e isso até o ponto de zombar daqueles monges do Monte Athos que contemplando o movimento de seu umbigo se acreditavam habitados pela inspiração divina Assim a conaturalidade entre os signos da linguagem e as idéias do entendimento que o século XVIII havia bus cado e que o trabalho dos Ideólogos havia perseguido se via recupera da invertida em proveito de um primado do instituído no âmbito de uma visão teocrática e sociocrática da inteligência O homem escre ve o Visconde pensa sua fala antes de falar seu pensamento Teoria materialista da linguagem que não oculta o pio pensamento que a ani ma Guardiã fiel e perpétua do sagrado legado das verdades fundamen tais da ordem social a sociedade considerada em geral as dá a conhecer a todos os seus filhos à medida em que entram na grande famflia 6 Bonald Recberrhespliornpbignes mr lespremiers objets des connaúvmces morales Pa ris 1818 t I P 67 5 Bonald 1 itanon prmsiire ronsidade dans er premiers temps pads s wales madères de la ration Burin comp Iies Paris 1859 p 1161 Recberrbes pbdosophiques p 105 62 A razão dos iguais Face a esses pensamentos fortes uma mão enraivecida rabis cou em seu exemplar as seguintes linhas Comparese a toda essa tagarelice escandalosa a resposta do oráculo sobre a sábia ignorância de Sócrates Não é a mão de Joseph Jacotot mas a do colega de M de Bonald na Câmara o Cavaleiro Maine de Biran que um pouco adiante derruba em duas linhas todo o edifício do Visconde a ante rioridade dos signos da linguagem nada muda à preeminência do ato intelectual que para cada filho de homem lhes fornece sentido O homem só aprende a falar ligando idéias às palavras que recebe de sua ama Coincidência surpreendente à primeira vista Para come çar vêse mal que pode estar aproximando o antigo lugartenente das guardas de Luís XVI e o antigo capitão dos exércitos do ano I o castelão administrador e o professor da Escola Normal Central o revolucionário exilado e o deputado da Câmara monárquica Na melhor das hipóteses podese cogitar o fato de o primeiro contar vinte anos quando do início da Revolução ter abandonado aos vinte e cinco anos o tumulto parisiense e ter meditado longamente à dis tância sobre o sentido e a virtude que poderia assumir em meio a tantas transformações o velho adágio socrático Jacotot o entende à maneira dos moralistas Maine de Biran como os metafísicos Ainda assim eles conservam uma visão comum que sustenta a mesma afir mação do primado do pensamento sobre os signos da linguagem uma mesma avaliação da tradição analítica e ideológica no seio da qual um e outro formaram o pensamento Não é mais na transparên cia recíproca dos signos da linguagem e das idéias do entendimento que se deve buscar o conhecimento de si e o poder da razão O arbi trário da vontade revolucionária e imperial recobriu inteiramente essa terra prometida das línguas bem feitas a que outrora aspirava a razão E a certeza do pensamento é anterior às transparências da lin guagem sejam elas republicanas ou teocráticas Ela se apóia sobre seu ato próprio a tensão do espírito que precede e orienta as combi nações de signos A divindade da época revolucionária e imperial a vontade reencontra sua racionalidade no seio do esforço de cada um sobre si mesmo da autodeterminação do espírito como atividade Maine de Biran Les Recherches philosophiques de M de Bonald in Œarres complète Pans 1939 t XII p 252 63 COLECTO EDUCACÑO ExPERENO E SENTIDO A inteligência é atenção c busca antes de ser combinação de idéias A vontade é potência de se mover de agir segundo movimento pró prio antes de ser instância de escolha Uma vontade servida por uma inteligência Essa mudança fundamental encontrase registrada em nova reviravolta da definição de homem o homem é uma vontade servi da por unta inteligência A vontade é o poder racional a ser desa trelado das querelas dos ideístas e dos coisistas É também nesse sentido que se deve precisar a igualdade cartesiana do cogito Opor seá a esse sujeito pensante que só se conhecia como tal divorcian dose de todo sentido e de todo corpo um novo sujeito pensante que se experimenta na ação que exerce sobre si mesmo tanto quan to sobre os corpos Dessa forma segundo os princípios do Ensino Universal Jacotot fazia sua própria tradução da célebre análise cartesiana do pedaço de cera Eu quero olhar e vejo Quero escu tar e ouço Quero tatear e meu braço se estende passeia pela super fície dos objetos ou penetra em seu interior minha mão se abre se desenvolve se estende se fecha meus dedos se afastam ou se apro ximam para obedecer à minha vontade Nesse ato de tateio só co nheço minha vontade de tatear Essa vontade não é nem meu braço nem minha mão nem meu cérebro nem o tateio Essa vontade sou eu é minha alma é minha potência é minha faculdade Sinto essa vontade ela está presente em mim ela sou eu quanto à maneira como sou obedecido não a sinto não a conheço senão por seus atos Considero a ideificação como um tatear Tenho sensações quando me apraz ordeno a meus sentidos forneceIas Tenho idéias quando quero ordeno a minha inteligência buscáIas tatear A mão e a inteligência são escravos cada uma com suas atribuições O homem é uma vontade servida por uma inteligência t Tenho idéias quando quero Descartes conhecia o poder da von tade sobre o entendimento Porém ele o conhecia justamente como poder do falso como causa de erro a precipitação em afirmar apesar Journnlde Prmauapntion intellerheelle t IV 18361837 p 430431 64 A razõo dos iguais da idéia não ser clara e distinta É preciso dizer ao contrário que é a falta de vontade que faz errar a inteligência O pecado original do espirito não é a precipitação é a distração é a ausência Agir sem vontade ou sem reflexão não produz um ato intelectual O efeito que daí resulta não pode ser classificado entre as produções da inteligên cia nem comparado com elas Na inação não se pode ver nem mais nem menos ação não há nada O idiotismo não é uma faculdade é a ausência ou o sono ou o repouso dessa faculdade O ato da inteligência é ver e comparar o que vê Ela o faz inicialmente segundo o acaso Élhe preciso procurar repetir criar as condições para ver de novo o que ela já viu para ver fatos seme lhantes para ver fatos que poderiam ser a causa do que ela viu Élhe preciso ainda formar palavras frases figuras para dizer aos outros o que viu Em suma por mais que isso incomode aos gênios o modo mais freqüente de exercício da inteligência é a repetição E a repeti ção é enfadonha O primeiro vício é o da preguiça É mais fácil se ausentar ver pela metade dizer o que não se vê dizer o que se acre dita ver Assim se formam frases de ausências os logo que não tradu zem qualquer aventura do espírito Eu não posso é o exemplo des sas frases de ausência Eu não posso não é o nome de nenhum fato Nada se passa no espirito que corresponda a essa asserção A rigor ela não quer dizer nada De forma que a palavra se carrega ou se esvazia de acordo com a vontade que contrai ou relaxa a ação da inteligência A significação é obra de vontade Esse é o segredo do Ensino Universal É também esse o segredo daqueles que são cha mados gênios o trabalho incessante para dobrar o corpo aos hábitos necessários para ordenar à inteligência novas idéias novas maneiras de exprimilas para refazer intencionalmente o que o acaso produziu e transformar circunstâncias infelizes em boas ocasiões de sucesso Isso é verdade para os oradores como para as crianças Eles se formam em assembléias como nós nos formamos na vida Aquele que even tualmente fez rir de si na última sessão podia aprender a fazer rir sempre e quando quisesse se estudasse todas as relações que leva ram a essas vaias que o desconcertaram fechandolhe para sempre a boca Esse foi o início de Demóstenes Ele aprendeu fazendo sem Enseignement nnirersel Droit etphilosophie pnnernsteque Paris 1838 p 278 65 COLEÇÃO EoucAÇÁQ ExaExiNCw e SfNFOO querer que dele se risse como poderia excitar reações contra Esqui ncs Mas Demóstenes não era preguiçoso Ele não podia sêIo Um indivíduo pode tudo o que quiser proclama ainda o Ensino Universal Mas não nos enganemos sobre o que esse querer signifi ca O Ensino Universal não é a chave do sucesso oferecida aos em preendedores pela exploração dos prodigiosos poderes da vontade Nada seria mais contrário ao pensamento da emancipação do que esse reclame de circo E o Mestre se irrita quando os discípulos abrem sua escola sob a insígnia de Quem quer pode A única insígnia que vale é a da igualdade das inteligências O Ensino Universal não é um método de hussardos É bem verdade que os ambiciosos e os conquis tadores lhe fornecem uma comprovação selvagem Sua paixão é uma fonte insaciável de idéias e eles se tornam rapidamente capazes de comandar generais sábios ou financistas cuja ciência ignoram Mas o que nos interessa não é esse efeito teatral O que os ambiciosos ga nham de poder intelectual não se julgando inferiores a ninguém eles tornam a perder considerandose superiores a todos os outros O que nos interessa é a exploração dos poderes de cada homem quando ele se julga igual a todos os outros e julga todos os outros iguais a si Por vontade compreendemos essa volta sobre si do ser racional que se co nhece como capaz de agir Essa fonte de racionalidade essa consciên cia essa estima de si como ser racional em ato que alimenta o movi mento da inteligência O ser racional é antes de tudo um ser que conhece sua potência que jamais se mente a esse respeito O princípio da veracidade Há duas mentiras fundamentais a daquele que proclama eu digo a verdade e a daquele que afirma eu não posso dizer O ser razoável que se volta sobre si mesmo sabe o nada dessas duas proposições O fato primeiro é a impossibilidade de se ignorar a si próprio O indiví duo não pode mentir a si próprio somente pode se esquecer Eu não posso d assim uma frase de esquecimento de si de que o indivíduo razoável abdicou Nenhum gênio maligno pode se interpor entre a Furegnemenl tmiverarL Langue mate elk 6 ed Paris 1836 p 330 66 A razão dos iguais consciência e seu ato Mas é preciso também inverter o adágio so crático Ninguém é voluntariamente mau proclamava ele Diremos o inverso Toda asneira vem do vício Ninguém erra senão por maldade isto é por preguiça por desejo de não mais ouvir falar do que um ser razoável deve a si mesmo O princípio do mal não está em uma consciência errada sobre o bem que é o fim da ação Está na infidelidade a si Conhecete a ti mesmo não quer mais dizer à ma neira platônica saiba onde está teu bem Mas sim volta a ti ao que em ti não pode te enganar Tua impotência não é mais do que pregui ça em caminhar Tua humildade não é senão temor orgulhoso de tro peçar ante o olhar dos outros Tropeçar não é nada o mal está em divagar sair de seu caminho não mais prestar atenção ao que se diz esquecerse do que se é Segue portanto teu caminho O princípio de veracidade está no coração da experiência de emancipação Ele não é a chave de nenhuma ciência senão a relação privilegiada de cada um com a verdade aquela quc o coloca em seu caminho em sua órbita de pesquisador É o fundamento moral do po der de conhecer E essa fundação ética do poder de conhecer é um pensamento da época um fruto da meditação sobre a experiência re volucionária e imperial No entanto a maior parte dos pensadores da época pensa diferentemente de Jacotot Para eles a verdade que rege o assentimento intelectual se identifica ao laço que une os homens A verdade é o que os congraça o erro é rompimento e solidão A socie dade sua instituição o objetivo que persegue eis o que define o que rer com o qual o indivíduo deve se identificar para atingir uma percep ção justa Assim pensam Bonald o teocrata e em seguida Buchez o socialista ou Auguste Comte o positivista Menos severos são os eclé ticos com seu senso comum e suas grandes verdades escritas no cora ção de cada um filósofo ou sapateiro Contudo são todos homens de agregação E Jacotot rompe com isso Que se diga se assim se deseja que a verdade congraça Porém o que congraça homens o que os une é a nãoagregação Afugentemos a representação desse cimento social que petrifica as cabeças pensantes do período pósrevolucionário Os homens se unem porque são homens isto é seres distantes A lingua gem não os refine Ao contrário é sua arbitrariedade que forçandoos 8rurourrurut unions e I nnçim iuritrrne0e 6 ed Paris 1836 p 33 67 CoOOCO EDUCACAO EXPERIENCIA SENTIDO a traduzir os põe em comunicação de esforços mas também em comunidade de inteligência o homem é um ser que sabe muito bem quando aquele que fala não sabe o que diz A verdade não agrega absolutamente os homens Ela não se dá a eles Ela existe independente de nós e não se submete ao despeda çamento de nossas frases A verdade existe por si mesma ela é o que é e não o que é dito Dizer depende do homem mas a verdade não depende Mas nem por isso ela nos é estrangeira e não esta mos exilados de seu país A experiência de veracidade nos liga a seu núcleo ausente nos faz dar voltas em torno de seu centro Podemos primeiramente ver e mostrar verdades Assim ensinei o que igno ro é uma verdade É o nome de um fato que existiu que pode se reproduzir Quanto à razão desse fato ela é por hora uma opinião e isso pode durar talvez para sempre Mas com essa opinião damos voltas em torno da verdade de frases em frases O essencial é não mentir não dizer que se viu quando se manteve os olhos fechados não contar senão o que se viu não acreditar que se deu uma explica ção quando tudo o que se fez foi nomear Assim cada um de nós descreve em tomo da verdade sua pará bola Não há duas órbitas semelhantes E é por isso que os explicado res põem nossa revolução em perigo Essas órbitas das concepções humanitárias se cruzam raramente e não têm senão alguns pontos em comum As linhas mistas que descrevem jamais coincidem sem uma perturbação que suspende a liberdade e por conseguinte o uso da inteligência que dela deriva O aluno sente que ele jamais teria seguido o caminho em que acaba de ser precipitado e se esquece de que há mil sendas abertas para a vontade nos espaços intelectuais Essa coinci dência de órbitas é o que denominamos embrutecimento Compreen demos porque o embrutecimento é tão mais profundo quanto essa co incidência se faz mais sutil menos perceptível E por isso queo método socrático aparentemente tão próximo do Ensino Universal representa a forma mais temível de embrutecimento O método socrático da inter rogação que pretende conduzir o aluno a seu próprio saber é de fato journal de emancipation inlectuee t IV 18361837 p 187 EnseiGnrment miersE1 Droit elphilosophiepanécasdque Paris 1838 p 42 A raid dos iguais aquele de um amestrador de cavalos Ele comanda as evoluções as marchas e contramarchas De sua parte conserva o repouso e a dig nidade do comando durante o manejo do espirito que está dirigindo De desvios em desvios o espirito chega a um fim que não havia sequer entrevisto quando da partida Ele se espanta se volta percebe seu guia o espanto se transforma em admiração e essa admiração o embrutece O aluno sente que sozinho e abandonado a si mesmo ele não teria seguido essa rota 1 Ninguém tem relação com a verdade se não está em sua órbita própria Que ninguém se gabe no entanto dessa singularidade pro clamando Amicus Plato sed reagis arnica veritas Essa é uma frase teatral Aristóteles que a profere não faz diferente de Platão Como ele relata suas opiniões narra suas aventuras intelectuais colhe em seu caminho algumas verdades Quanto à verdade ela não confia em filósofos que se dizem seus amigos ela só é amiga de si mesma A razão e a língua A verdade não se diz Ela é una e a linguagem despedaça ela é necessária e as línguas são arbitrárias Antes mesmo da proclamação do Ensino Universal essa tese da arbitrariedade das Ifnguas fez do ensino de Jacotot objeto de escândalo Sua aula inaugural em Louvain havia tomado por tema essa questão herdada do século XVIII de Diderot e do abade Batteux seria natural a construção direta que dispõe o sujeito antes do verbo e do atributo Teriam os escrito res franceses direito de considerar essa construção como marca da superioridade intelectual de sua Ifngua Ele tomava o partido da negativa Com Diderot julgava a ordem inversa tão natural ou mais do que a dita ordem natural acreditava a linguagem do senti mento anterior à da análise Mas sobretudo recusava a própria idéia de uma ordem natural e as hierarquias que poderia induzir Todas as línguas eram igualmente arbitrárias Não havia lingua da inteligência língua mais universal do que as outras 1 Enseignement naieerL Droll rt phìlosophie panécastigne Paris 1838 p 41 68 69 COLEDAO EDUUAO ExvEFItrvCA E SENTIDO A réplica não tardaria No número seguinte do Observateur Belge revista literária de Bruxelas um jovem filósofo Van Meenen denunciava essa tese corno uma caução teórica fornecida à oligarquia Cinco anos mais tarde após a publicação da Língua materna era a vez de umjovemjurista próximo a Van Meenen que havia acompanhado e mesmo publicado os cursos de Jacotot inflamarse Em seu Essai sur le livre de Monsieur Jacotot Jean Sylvain Van de Weyer admoesta o professor de francês que juntamente com Bacon Hobbes Locke Harris Condillac Dmnarsais Rousseau Destutt de Tracy e Bonald ousa ainda sustentar que o pensamento é anterior à linguagem A posição desses jovens e impetuosos contraditores é fácil de compreender Eles representam a jovem Bélgica patriota liberal e hancófone em estado de insurreição intelectual contra a dominação holandesa Destruir a hierarquia das línguas e a universalidade da língua francesa era para eles dar vantagem à língua da oligarquia holandesa língua atrasada da fração menos civilizada mas também lingua secreta do poder Seguindoos oCourrierde la Meuse acusa rá o método Jacotot de chegar no momento certo para impor sem maiores dificuldades a língua e a civilizaçãoentre aspas holande sas Mas as coisas foram ainda mais profundas Os jovens defensores da identidade belga e da pátria intelectual francesa haviam lido eles também as Recherches philosophiques do Visconde de Bonald Da obra haviam retirado uma idéia fundamental a analogia entre as leis da linguagem as leis da sociedade e as leis do pensamento sua uni dade de principio com a lei divina Eles sem dúvida se afastavam quanto ao resto da mensagem filosófica e política do Visconde Eles queriam unia monarquia nacional e constitucional e pretendiam que o espirito encontrasse livremente em si as grandes verdades metafísi cas morais e sociais inscritas pela divindade no coração de cada um Seu líder filosófico era um jovem professor de Paris chamado Vic tor Cousin Na tese da arbitrariedade das línguas eles viam a irracio nalidade introduzirse no cerne da comunicação nesse caminho da descoberta do verdadeiro em que a meditação do filósofo deveria comunica rse cont o senso comum do homem do povo No paradoxo do leitor de Louvain eles viam perpetuado o vício desses filósofos que freqüentemente confundiram cm seus ataques sob o nome de preconceitos tanto os erros funestos cujo berço haviam descoberto 70 A razão dos iguais bem próximo a eles quanto as verdades fundamentais a que impu tavam a mesma origem porque a eles a verdadeira permanecia ocul tada cm profundezas inexpugnáveis ao bisturi da argumentação e ao microscópio de uma verbosa metafísica onde há muito haviam desaprendido a descer se deixando guiar unicamente pela claridade de um senso reto e de um coração simples iS O fato é Jacotot não deseja reaprender esse tipo de descida Ele não escuta as frases em cascatas com esse senso reto e esse cora ção simples Ele nada quer com essa liberdade medrosa que se ga rante no acordo das leis do pensamento com as leis da linguagem e aquelas da sociedade A liberdade não se garante por nenhuma har monia preestabelecida Ela se toma ela se conquista e se perde so mente pelo esforço de cada um E não existe razão assegurada porjá estar escrita nas construções da língua e das leis da cidade As leis da lingua nada têm a ver com a razão e as leis da cidade têm tudo a ver com a desrazão Se há lei divina é o pensamento em si mesmo em sua veracidade sustentada que se faz a única testemunha O homem não pensaporque fala isso seria precisamente submeter o pensa mento à ordem material existente o homem pensa porque existe Resta que o pensamento deve se dizer se manifestar por obras se comunicar a outros seres pensantes Ele deve fazêlo através de línguas de significações arbitrárias Mas nada justifica que se veja nisso um obstáculo para a comunicação Somente os preguiçosos tre meriam frente à idéia desse arbitrário vendoo como o túmulo da razão Ao contrário é porque não há código dado pela divindade lingua da língua que a inteligência humana emprega toda a sua arte em se fazer entender e em entender o que a inteligência vizinha lhe significa O pensamento não se dizem verdade ele se exprime em veracidade Ele se divide ele se relata ele se traduz por um outro que fará para si um outro relato uma outra tradução com uma úni ca condição a vontade de comunicar a vontade de adivinhar o que o outro pensou e que nada afora seu relato garante que nenhum dicio nário universal explicacomo deve ser entendido A vontade adivinha a vontade É nesse esforço comum que toma sentido a definição de homem como una vontade servida por uma inteligência Penso e 13 Ybterroenr beige 1818 t XVI n 426 p 142143 71 COLEÇÃO EDUCAÇÃO Ex ERIENOA E SENADO quero comunicar meu pensamento imediatamente minha inteligên cia emprega com arte signos quaisquer os combina os compõe os analisa e eis uma expressão uma imagem um fato material que será desde então para mim o retrato de um pensamento isto é de um fato imaterial A cada vez que contemplálo este retrato me recordará meu pensamento sobre o qual então pensarei Posso as sim falar a mim mesmo quando quiser No entanto um dia eu me encontro face a outro homem eu repito em sua presença meus gestos e palavras e ele se assim o quiser vai me adivinhar Ora não se pode convir com palavras a significação de palavras Um quer falar o outro quer adivinhar eis tudo Desse concurso de vontades resulta um pensamento visível para dois homens ao mes mo tempo A princípio ele existe imaterialmente para alguém que em seguida o diz a si mesmo dandolhe uma forma para seu ouvi do ou para seus olhos e que enfim deseja que essa forma que esse ser material reproduza para um outro homem o mesmo pensa mento primitivo Essas criações ou se assim se prefere essas meta morfoses são o efeito de duas vontades que se ajudam entre si As sim o pensamento tornase palavra depois esta palavra ou vocábulo volta a ser pensamento uma idéia se faz matéria e essa matéria se faz idéia e tudo isso é o efeito da vontade Os pensamentos voam de um espírito a outro nas asas da palavra Cada vocábulo é enviado com a intenção de carregar um só pensamento mas apesar disso essa pala vra esse vocábulo essa larva se fecunda pela vontade do ouvinte e o representante de uma mônada tornase o centro de uma esfera de idéias que irradiam em todos os sentidos de forma que o falante para além do que quis dizer disse realmente uma infinidade de coi sas ele formou o corpo de uma idéia com tinta e essa matéria desti nada a envolver misteriosamente um só ser imaterial contém real mente um mundo desses seres desses pensamentos Talvez agora se compreenda melhor a razão dos prodígios do Ensino Universal os recursos que põe em ação são simplesmente os de toda situação de comunicação entre dois seres racionais A relação de dois ignorantes com o livro que eles não saben ler somente radica liza esse esforço de todos os instantes para traduzir e contratraduzir 23nseigarment universe Droitetphilosophiepanéantique Paris 1838 p 1113 72 A razão dos iguais os pensamentos em palavras e as palavras em pensamentos Essa von tade que preside à operação não é uma receita de taumaturgo Eta é esse desejo de compreender e de se fazer compreender sem o qual nenhum homem jamais daria sentido às materialidades da linguagem É preciso entendercompreenderem seu verdadeiro sentido não o der risório poder de suspender os véus das coisas mas a potência de tradu ção que confronta um falante a outro falante É essa mesma potência que permite ao ignorante arrancar o segredo do livro mudo Não há contrariamente ao ensinamento do Fedro dois tipos de discursos um dos quais privado do poder de se socorrer a si próprio e condena do a sempre dizer estupidamente a mesma coisa Toda palavra dita ou escrita é uma tradução que só ganha seu sentido na contratradução na invenção das causas possíveis para o som que ouviu ou para o traço escrito vontade de adivinhar que se apega a todos os indícios para saber o que tem a lhe dizer um animal racional que a considera como a alma de um outro animal racional Talvez agora se compreenda melhor igualmente o escândalo que faz de relatar e de adivinhar as duas operações mestras da inteli gência Sem dúvida os dizedores de verdade e os espíritos superiores conhecem outras maneiras de transformar o espírito em matéria e a matéria em espírito Compreendese que eles as calem aos profa nos Para esses últimos como para todo ser racional resta assim esse movimento da palavra que é ao mesmo tempo distância conhe cida e sustentada em relação à verdade e consciência de humanidade desejosa de comunicarse com outras e de verificar sua similitude com elas O homem é condenado a sentir e se calar ou se quer falar a falar indefinidamente pois ele sempre tem o que retificar para mais ou para menos naquilo que acaba de dizer porque o que quer que se diga é preciso apressarse em acrescentar não é isso e como a retificação não é mais plena do que o primeiro dito temse nesse fluxo e refluxo um meio perpétuo de improvisação Improvisar é como se sabe um dos exercícios canônicos do Ensino Universal Mas é antes ainda o exercício da virtude primeira de nossa inteligência a virtude poética A impossibilidade que é a nossa de dizer a verdade mesmo quando a sentimos nos faz falar Enseignement universe Droit et philosophiepanérartique Paris 1838 p 231 73 COLEÇÃO EUCnCAO ExEExiEnCw E 5EN77o como poetas narrar as aventuras de nosso espírito c verificar se são compreendidas por outros aventureiros comunicar nosso sentimen to e vêlo partilhado por outros seres sencientes A improvisação é o exercício pelo qual o ser humano se conhece e se confirma em sua natureza de ser razoável isto é de animal que faz palavras figuras comparações para contar o que pensa a seus semelhantes A virtu de de nossa inteligência está menos em saber do que em fazer Sa ber não é nada fazer é tudo Mas esse fazer é fundamentalmente ato de comunicação E portanto falar é a melhor prova da capaci dade de fazer o que quer que seja No ato de palavra o homem não transmite seu saber ele poetiza traduz e convida os outros a fazer a mesma coisa Ele se comunica como artesão alguém que maneja as palavras como instrumentos O homem se comunica com o homem por meio de obras de sua mão tanto quanto por palavras de seu discur so Quando o homem age sobre a matéria as aventuras desse corpo tornamse a história das aventuras de seu espírito E a emancipação do artesão é antes de mais nada a retomada dessa história a consciên cia de que sua atividade material é da natureza do discurso Ele se comu nica comopoeta um ser que crê que seu pensamento é comunicável sua emoção partilhável Por isso o exercício da palavra e a concepção de qualquer obra como discurso são um prelúdio para toda aprendizagem na lógica do Ensino Universal É preciso que o artesãofale de suas obras para se emancipar é preciso que o aluno fale da arte que quer aprender Falar das obras dos homens é o meio de conhecer a arte humana Eu também sou pintor Daí o estranho método pelo qual o Fundador entre outras loucu ras fez aprender o desenho e a pintura Primeiro ele pede ao aluno para falar sobre o que vai representar Por exemplo um desenho a ser copiado Seria perigoso dar à criança explicações sobre as medidas Eurrtwemrnt uuìreixrl a Insigne 3 ed Pa 1830 p 163 16iAem p 314 Dun rpGilmopGie pmiérnr6gne p 91 Emrióneiurni universe Mzrigae 3 ed Paris 1830 p 347 A razáo dos iguais que deve tomar antes de começar sua obra Sabese porque o risco é que com isso a criança se sinta incapaz Partirseá portanto da vonta de que a criança tem de imitar Mas essa vontade será verificada Al guns dias antes de colocar um lápis em suas mãos serlheá oferecido um desenho para que observe e serlheá pedido que dê conta do que observou Ela talvez diga à princípio poucas coisas do gênero Essa cabeça é bonita Mas o exercício será repetido a mesma cabeça lhe será reapresentada sendolhe solicitado que observe ainda e que de novo fale mesmo que seja para repetir o que já disse Assim ela se tornará mais atenta mais consciente de sua capacidade mais capaz de imitar Nós sabemos a razão desse efeito que é completamente dife rente da memorização visual e do adestramento gestual O que a crian ça verificou por meio desse exercício é que a pintura é uma linguagem que o desenho que lhe é dado a imitar lhe fala Mais tarde ela será colocada diante de um quadro e lhe será solicitado que improvise acer ca da unidade de sentimento presente por exemplo nessa pintura de Poussin que representa o enterro de Fócion Os especialistas sem dú vida se indignarão como pretender saber que é isso que Poussin quis colocarem seu quadro O que esse discurso hipotético tem a ver com a arte pictural de Poussin e com aquela que o aluno deve adquirir Responderseá que não se pretende saber o que Poussain quis fazer o exercício consiste apenas em imaginar o que ele pode ter querido fazer Verificase dessa forma que todo saber fazer é um querer dizer e que essequerer dizer se dirige a todo ser razoável Em suma verificase que o ut poesis pictura que os artistas do Renasci mento haviam reivindicado invertendo o adágio de Horácio não é o saber reservado unicamente aos artistas a pintura como a escultura a gravura e qualquer outra arte é uma língua que pode ser compreendida e falada por qualquer um que tenha inteligência de sua língua Em matéria de arte como se sabe eu não posso se traduz habitualmente por isso não nie diz nada A verificação da unidade de sentimento isto é do querer dizer da obra será assim meio de emancipação para aquele que não sabe pintar o exato equivalente da verificação no que respeita ao livro da igualdade de inteligências Decerto o que se pretende não é longe disso fazer obras de arte Os visitantes que apreciam as composições literárias dos alunos de Jacotot freqüentemente torcem o nariz diante de seus desenhos e 74 75 COLECAO EDuCACAO EPEPIFNCIA E Ervnoo pinturas Não se trata de formar grandes pintores mas homens eman cipados capazes de dizer eu também sou pintor fórmula em que não entra qualquer orgulho mas bem ao contrário o justo sentimento do poder de todo ser razoável Não há orgulho em dizer em voz alta Eu também sou pintor O orgulho consiste em dizer baixinho sobre os outros Vocês também não são pintores 2 E eu também sou pintor significa eu também tenho uma alma sentimentos a comunicar a meus semelhantes Método do Ensino Universal que é idêntico à sua moral Dizse no Ensino Universal que todo homem que tem alma nasceu com a alma Acreditase no Ensino Universal que o homem sente prazer e pena e que só incumbe a ele saber quando como e por que concurso de circunstâncias experimentou essa pena ou esse prazer Mais ainda o homem sabe que há outros seres que a ele se asseme lham e aos quais poderá comunicar os sentimentos que experimenta desde que os situe nas circunstâncias às quais deve suas penas e seus prazeres Assim que ele conhece o que o comoveu ele pode se exerci tar em comover os outros se ele estuda a escolha e o emprego dos meios de comunicação É uma língua que ele deve aprender 23 A lição dos poetas É preciso aprender Todos os homens têm em comum essa capacidade de experimentar o prazer e a pena Mas essa similitude não é para cada um senão uma virtualidade a ser verificada E ela só pode sêlo através do longo caminho do dissemelhante Devo verificar a razão de meu sentimento mas não posso fazêlo aventu randoos nessa floresta de signos que por si sós não querem dizer nada não mantêm qualquer acordo O que se concebe bem repita se com Boileau se enuncia claramente Essa frase não quer dizer nada Como todas as frases que deslizam subrepticiamente do pen samento para a matéria ela não exprime nenhuma aventura intelec tual Bem conceber é próprio do homem razoável Bem enunciar é uma obra de artesão que supõe o exercício dos instrumentos da Enseignement minuet Lingue maternelle 6 ed Paris 1836 p 149 Enseignement universel Mutique 3 ed Paris 1830 p 322 76 A razão dos iguais língua É bem verdade que o homem razoável tudo pode fazer Mas ele deve aprender a língua própria a cada uma das coisas que quer fazer sapato máquina ou poema Consideremos por exemplo essa terna mãe que vê seu filho voltar de uma longa guerra Ela experi menta uma comoção que não lhe permite falar Mas esses longos abraços esses enleios de um amor que parece temer uma nova sepa ração esses olhos onde a alegria brilha em meio a lágrimas essa boca que sorri para servir de intérprete para a equívoca linguagem do choro esses beijos esses olhares essa atitude esses suspiros mesmo esse silêncio 4 em resumo toda essa improvisação não é muito mais eloqüente do que os poemas Sentis a emoção Experi mentai entretanto comunicála é preciso transmitir a instantaneida de dessas idéias e desses sentimentos que se contradizem e se nuan çam até o infinito fazêlos viajar no maqui de palavras e frases E isso não se inventa Pois nesse caso seria preciso supor um tertius entre a individualidade desse pensamento e a língua comum O que i mplicaria em uma outra língua mas como seu inventor seria enten dido É preciso aprender buscar nos livros os instrumentos dessa ex pressão Decerto que não nos livros dos gramáticos eles ignoram com pletamente essa viagem E não no livro dos oradores eles não buscam se fazer adivinhar eles querem se fazer escutar Eles nada querem dizer eles querem comandar ligar as inteligências submeter as vonta des forçar a ação É preciso aprender com aqueles que trabalharam o abismo entre o sentimento e a expressão entre a linguagem muda da emoção e o arbitrário da língua com os que tentaram fazer escutar o diálogo mudo da alma com ela mesma que comprometeram todo o crédito de sua palavra no desafio da similitude dos espíritos Aprendamos portanto com esses poetas decorados com o título de gênios São eles que nos revelarão o segredo dessa palavra impo nente O segredo do gênio é o do Ensino Universal aprender repetir imitar traduzir decompor recompor No século XIX é bem verdade certos gênios começam a invocar uma inspiração mais do que humana Mas os clássicos não partilham do alimento desse tipo de gênios Raci ne não tem vergonha de ser o que é um miserável Ele aprende Eurípi des e Virgílio de cor cono um papagaio Ele procura traduzilos Enseionement rmárrrel agar maternelle 6 ed Paris 1836 p 281 77 COLEÇÃO EUVCACAO EReRINCUe Servnoo decompõe suas expressões as recompõe de outra maneira Ele sabe que ser poeta é traduzir duas vezes traduzir em versos franceses a dor de uma mãe a cólera de uma rainha ou a fúria de uma amante é também traduzir a tradução que Euripides ou Virgílio fizeram Do Hipólito de Euripides é preciso traduzir não somente Fedro o que era de se esperar mas também Atalie e Josabeth Pois Racine não se ilude sobre o que faz Não acredita conhecer melhor os sentimen tos humanos do que seus ouvintes Se Racine conhecesse melhor do que eu o coração de uma mãe ele perderia seu tempo tentando me dizer o que leu eu jamais encontraria sua observação em minhas lembranças e não ficaria comovido Esse grande poeta supõe exata mente o contrário ele só trabalha só se esforça tanto apaga cada palavra modifica cada expressão porque espera que seus leitores compreenderão tudo precisamente como ele próprio compreende 2 Como todo criador Racine aplica instintivamente o Método isto é a moral do Ensino Universal Ele sabe que não existem homens de grandes pensamentos somente homens de grandes expressões Ele sabe que todo o poder do poeta se concentra em dois atos a tradução e a contratradução Ele sabe que em certo sentido o poema é sem pre a ausência de um outro poema como poema mudo que a ternura de uma mãe ou a fúria de uma amante improvisam Em poucos raros efeitos o primeiro se aproxima do segundo até o ponto de imitálo como em Corneille em uma ou três sílabas Eu ou ainda Que morra De resto está suspenso pela contratradução que fará o ou vinte É essa contratradução que produzirá a emoção do poema é essa esfera de idéias reluzentes que reanimará as palavras Todo o esforço todo o trabalho do poeta é de suscitar essa aura em torno de cada palavra da expressão É por isso que ele analisa disseca traduz as expressões dos outros que ele apaga c corrige sem cessar as suas Ele se esforça para tudo dizer sabendo que não se pode dizer tudo mas que é essa tensão incondicional do tradutor que abre a possibi lidade de outra tensão de outra vontade a língua não permite dizer tudo e é preciso que eu recorra e meu próprio gênio ao gênio de todos os homens para adivinhar o que Racine quis dizer o que ele A razão dos iguais diria na qualidade de homem o que ele diz quando não fala o que não pode dizer enquanto não é somente poeta 2B Modéstia verdadeira do gênio isto é do artista emancipado ele emprega toda sua potência toda sua arte em nos mostrar seu poe ma como ausência de um outro cujo conhecimento ele nos concede o crédito de possuir tão bem quanto ele próprio Acreditamonos Raci ne e temos razão Essa crença nada tem a ver coin uma pretensão qualquer de ilusionista Ela não implica de nenhuma maneira que nossos versos valem os de Racine nem que o valerão em breve Signi fica para começo que nós entendemos o que Racine tem a nos dizer que seus pensamentos não são absolutamente de espécie diferente dos nossos e que suas expressões se completam apenas pela nossa contra tradução Nós sabemos antes de mais nadapar ele mesmo que somos homens iguais a ele E igualmente por seu intermédio conhecemos a potência da língua que nos faz sabêlo por meio do arbitrário dos sig nos Nossa igualdade com Racine nós a conhecemos como o fruto do trabalho de Racine Seu gênio é de ter realizado sua obra sobre as bases do princípio da igualdade das inteligências de não ter se acredi tado superior àqueles a quem falava de ter inclusive trabalhado para que aqueles que prediziam que ele passaria como o vento Restanos verificar essa igualdade conquistar essa potência por nosso trabalho Isso não significa fazer tragédias iguais àquelas de Racine mas em pregar tanta atenção tanta pesquisa da arte para relatar o que sentimos e dálo a experimentar aos outros por meio do arbitrário da língua ou da resistência de toda matéria à obra de nossas mãos A lição emanci padora do artista oposta termo a termo à lição embrutecedora do pro fessor é a de que cada um de nós é artista na medida em que adota dois procedimentos não se contentar em ser homem de um ofício mas pretender fazer de todo trabalho um meio de expressão não se conten tar em sentir mas buscar partilhálo O artista tem necessidade de igual dade tanto quanto o explicador tem necessidade de desigualdade E ele esboça assim o modelo de uma sociedade razoável onde mesmo aquilo que é exterior à razão a matéria os signos da linguagem é transpassado pela vontade razoável a de relatar e de fazer experi mentar aos outros aquilo pelo que se é semelhante a eles Enseignement nniuerse lmqur maternelle 6 ed Paris 1836 p 284 78 arment universel ILggne maternele 6 ed Paris 1836 p 282 79 COLECAO EDUCAçJO EXPERIENCA E SENTIDO A comunidade dos iguais Podese assim sonhar com uma sociedade de emancipados que seria uma sociedade de artistas Tal sociedade repudiaria a di visão entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem entre os que possuem e os que não possuem a propriedade da inteligência Ela não conheceria senão espíritos ativos homens que fazem que falam do que fazem e transformam assim todas as suas obras em meios de assinalar a humanidade que neles há como nos demais Tais homens saberiam que ninguém nasce com mais inteligência do que seu vizinho que a superioridade que alguém manifesta é so mente o fruto de uma aplicação tão encarniçada ao exercício de manejar as palavras quanto a aplicação de outro a manejar instru mentos que a inferioridade de outrem é a conseqüência de circuns tâncias que não o obrigaram a buscar mais Em suma eles saberiam que a perfeição alcançada por um ou outro em sua arte não é mais do que a aplicação particular do poder comum a todo ser razoável que qualquer um pode experimentar quando se retira para esse es paço íntimo da consciência em que a mentirajá não faz mais senti do Eles saberiam que a dignidade do homem é independente de sua posição que o homem não nasceu para tal ou tal posição par ticular mas para ser feliz em si mesmo independentemente da sor te e que esse reflexo de sentimento que brilha nos olhos de uma esposa de um filho ou de um amigo queridos apresenta para uma alma sensível objetos bastante próprios a satisfazêla Tais homens não perderiam seu tempo criando falanstérios onde as vocações respondessem às paixões ou comunidades de iguais organizações econômicas capazes de distribuir harmoniosa mente as funções e os recursos comuns Para unir o gênero huma no não há melhor laço do que essa inteligência idêntica em todos É ela ajusta medida do semelhante iluminando a doce inclinação do coração que nos leva à ajuda e ao amor recíprocos É ela que fornece ao semelhante os meios de aquilatar a dimensão dos servi ços que pode esperar do semelhante e de preparar por sua vez as A razão dos iguais condições para testemunharlhe seu reconhecimento Mas não fale mos à moda dos utilitaristas O principal serviço que o homem pode esperar do homem referese a essa faculdade de comunicar entre si o prazer e a pena a esperança e o medo para se comove rem reciprocamente Se os homens não tivessem a faculdade uma faculdade igual de se comoverem e de se enternecerem reci procamente eles se tornariam rapidamente estrangeiros uns aos outros eles se dispersariam ao acaso sobre o globo e as sociedades se dissolveriam 1 0 exercício dessa potência é ao mesmo tem po o mais doce de todos os nossos prazeres e a mais imperiosa de todas as nossas necessidades Não nos perguntemos portanto quais seriam as leis desse povo de sábios seus magistrados suas assembléias e tribunais O homem que obedece à razão não tem necessidade de leis nem de magistrados Os estóicos já sabiam disso a virtude que se conhece a si própria é potência para todas as outras Mas sabemos que essa razão não é privilégio dos sábios Os insensatos são os únicos a fazer questão da desigualdade e da dominação a querer ter razão A razão começa ali onde cessam os dis cursos ordenados pelo objetivo de ter razão e onde se reconhece a igual dade não uma igualdade decretada por lei ou pela força nem uma igual dade recebida passivamente mas uma igualdade em ato verificada a cada passo por esses caminhantes que em sua constante atenção a si próprios e em sua infinita revolução em tomo da verdade encontram as frases próprias para se fazerem compreender pelos outros De modo que é preciso inverter as questões dos zombeteiros Como se perguntam eles uma coisa como a igualdade das inteligên cias é pensável E como sua opinião poderia se instalar sem provo car desordem na sociedade É preciso perguntar ao contrário como a inteligência é possível sem a igualdade A inteligência não é po tência de compreensão que se encarregaria ela própria de comparar seu saber a seu objeto Ela é potência de se fazer compreender que passa pela verificação do outro E somente o igual compreende o igual Igualdade e inteligência são termos sinõnimos assim como razão e vontade Essa sinonimia que funda a capacidade intelectual Enseignement universe Langue maternelle 6 ed Pads 1836 p 243 80 Eenteignement nnireaeC Mtuigue 3 ed Paris 1830 p 338 81 COLEÇÃO EDUCACAO EXPERIÊNCIA SENTIDO de cada homem é também aquela que torna uma sociedade em geral possível A igualdade das inteligências é o laço comum do gênero humano a condição necessária e suficiente para que uma socieda de de homens exista Se os homens se considerassem como iguais a constituição estaria logo pronta 2 É verdade que nós não sabemos que os homens são iguais Nós dizemos que eles talvez sejam Essa é a nossa opinião e nós bus camos com aqueles que acreditam nisso como nós verificála Mas nós sabemos que esse talvez é exatamente o que torna uma sociedade de homens possível CAPiTULO QUARTO A sociedade do desprezo rjournal de philosophie panécastique t V 1838 p 265 82 Mas não há sociedade possível Há somente a sociedade que existe Nós nos perdíamos em nossos sonhos eis que batem à nossa porta É o enviado do Ministério da Instrução Pública que vem co municar a M Jacotot o decreto real acerca das condições requeridas para manter uma escola no território do reino É o oficial delegado pela Escola Militar de Delft para pôr ordem nessa bizarra Escola Normal Militar de Louvain É o carteiro trazendo a última publica ção dos Annales Academice Lovaniensis com a oratio de nosso cole ga Franciscus Josephus Dumbeck a investir contra o Método Univer sal novo corruptor da juventude Cum porro educatio universum populum amplectatur cujus virtus primaria posita est in unitatis con centu perversa methodus hanc unitatem solvit civitatemque scindit in partes sibi adversas Absit tamen hic a nostra patria furor Enitendum est studiosis juvenibus ut litera rum et pulchri studio ducti non solum turpem desidiam fugiant ut gravissimum malum sed ut studeant Pudori illi et Modestiae jam antiquitus divinis honoribus cultce Sic tantum optimi erunt civis legum vindices bonarum ar tium doctores divinorum præceptorum interpretes patrite defenso res gentis totius decora Tu quoque haec Audi Regia Majestas Tibi enim civium tuorum eorumque adeo juvenum cura demandata est Officium est sacrum dissipandi ejusmodi magistros tollendi has 83 COLEÇÃO EDUCAÇÃO ExrtaÉNON E SENÜ00 scholas umbraticas Annales Academiaæ Lovaniensis vol IX 18251826 p 216 220 222 O reino dos PaísesBaixos é pequeno mas civilizado como qual quer grande Estado Nele a autoridade pública elege como uma de suas primeiras preocupações a educação das jovens almas e a harmo nia dos corações cidadãos Aí a possibilidade de abrir uma escola não é dada a qualquer um sobretudo não a alguém que não somente não apresenta certificado de capacidade mas ainda orgulhase de ensinar o que ignora excitando os zombeteiros contra mestres submestres rei tores inspetores comissários e ministros que têm uma idéia um pouco mais elevada de seus deveres para com a juventude e a ciência Absit hic a nostra patria furor Digâmolo à nossa maneira Levantando sua ignóbil cabeça o embrutecimento gritame para trás inovador insensato A espécie de que queres me privar está ligada a mim por laços indissolúveis Eu sou aquele que foi que é e que será sobre a Terra enquanto as almas habitarem corpos de argila Hoje mais do que nunca não podes esperar sucesso Eles acreditam estar fazendo progressos e suas opiniões são solidamente estabelecidas sobre esse pivô riome de teus esforços eles não se moverão As leis da gravidade Nós nos perdíamos contemplando a rotação dos espíritos pen santes em torno da verdade Os movimentos da matéria obedecem entretanto a outras leis as da atração e da gravitação Todos os Ainda que a educação envolva a totalidade do potro e que rua primeira virtu resida na harmonia unitária um método pert zoo destrói essa unidade e cinde a sociedade em dois partidos opostos Afugentemos essa loucura de nosso pals Os jovens estudiosos devem se e fmrar não somente guiador pela amor pelo belo e pelar letras para fugir à preguiça como o mal mau grave mar também para se apegarem a esse Pudor a essa Modéstia celebrador desde semprepelaAntigüidade com honras dianas Somente assim serão cidadãos de elite vingado res das leis mestre M virtude intérpretes dos mandamentos divinas defensores da pálio honra de toda uma ram E tu também escuta Real Majestade lair i a ti que jai confiado o mudado de teus sujeitos sobretudo nessa tenra r idade F um dei sagrado aniquilar mestres dessa témpera srprimir essas escolas de trevas Annales Academias lnvanienrì vol IX 18251826 pp 216 220 222 Journal de lemanàpation intellectuelle t III 18351836 p 223 84 A sociedade do desprezo corpos se precipitam estupidamente para o centro Havíamos dito que nada se devia induzir das folhas aos espíritos e da matéria ao imaterial A inteligência não segue as leis da matéria Isso porém só é válido para a inteligência de cada indivíduo tomado separadamen te ela é indivisível sem comunidade sem partilha Ela não pode portanto ser propriedade de nenhum conjunto sem o que ela não mais seria propriedade das partes Logo é preciso concluir que a inteligência está somente nos indivíduos mas que ela não está em sua reunião A inteligência está em cada unidade intelectual a reu nião dessas unidades é necessariamente inerte e sem inteligência Na cooperação de duas moléculas intelectuais que nomeamos ho mens há duas inteligências elas têm a mesma natureza mas não há inteligência única que presida essa reunião Na matéria a gravidade é força única a animar a massa e as moléculas na classe dos seres intelectuais a inteligência somente dirige indivíduos sua reunião está submetida às leis da matéria Havíamos observado indivíduos racionais atravessar camadas de materialidade lingüística para significarem mutuamente seus pen samentos Mas esse comércio só é possível sobre as bases de uma relação inversa que submete a reunião das inteligências às leis de qualquer congregação as leis da matéria Esse é o pivô material do embrutecimento para se religarem entre si as inteligências imateriais devem estar submetidas às leis da matéria A livre revolução de cada inteligência em torno do ausente astro da verdade o vôo distante da livre comunicação sobre as asas da palavra encontramse contraria dos desviados pela gravitação universal em direção ao centro do universo material Tudo se passa como se a inteligência vivesse em um mundo dual E talvez seja necessário conceder algum crédito à hipótese dos maniqueístas eles viam desordem na criação explican doa pelo concurso de duas inteligências Não é só que haja um prin cípio do bem e um princípio do mal É mais profundamente que dois princípios inteligentes não fazem uma criação inteligente Quando o Visconde de Bonald proclama a restauração da inteligência divina ordenadora da linguagem e da sociedade humana alguns homens de progresso são tentados a reabilitar em contraposição as hipóteses dos Mélanges posthumes p 118 85 COLECAO EDUCACAO EXPERIENCIA SENTIDO heresiarcas e dos maniqueístas Eles comparam os poderes da inteli gência dos sábios e inventores aos sofismas e às desordens das assem bléias deliberantes identificando a ação de dois princípios antagôni cos Assim o fazem J Bentham e seu discípulo J Mill testemunhas da loucura das assembléias conservadoras inglesas e J Jacotot testemu nha da loucura das assembléias revolucionárias francesas Não acusemos porém de forma precipitada a divindade au sente nem desculpemos levianamente os autores dessas loucuras Talvez seja preciso simplificar a hipótese a divindade é una a criatura é que é dupla A divindade deu à criatura uma vontade e uma inteligência para responder às necessidades de sua existência Ela as concedeu aos indivíduos não à espécie A espécie não tem necessidade nem de uma nem de outra Ela não precisa cuidar de sua conservação São os indivíduos que a conservam Somente eles pre cisam de uma vontade razoável para guiar livremente a inteligência posta a seu serviço Em troca não existe qualquer razão a esperar do conjunto social Ele existe porque existe eis tudo E ele só pode ser arbitrário Sabemos em que condição ele poderia se fundar na nature za no caso da desigualdade das inteligências Nesse caso como vi mos a ordem social seria natural As leis humanas as leis de conven ção seriam inúteis para conservála A obediência a essas leis não seria mais um dever nem uma virtude derivaria da superioridade da inteligência de cádis e janízaros e esta espécie comandaria pela mes ma razão que o homem reina sobre os animais 4 Bem vemos que não é assim Logo apenas a convenção pode reinar na ordem social Mas seria a convenção necessariamente de sarrazoada Observamos que o arbitrário da língua não consistia em qualquer prova contra a racionalidade da comunicação Poderseia portanto imaginar uma outra hipótese que cada uma das vontades individuais que compõem o gênero humano seja razoável Nesse caso tudo se passaria como se o gênero humano fosse ele próprio razoá vel As vontades se harmonizariam e as assembléias humanas segui riam uma linha reta sem solavancos sem desvios sem aberrações Como conciliar porém uma tal uniformidade com a liberdade de Eenseignenient universe Langue étrangère 2 ed Paris 1829 p 75 86 A sociedade do desprezo vontades individuais que podem cada uma quando melhor lhe apraz usar ou não a razão O momento da razão para um corpúsculo não é o mesmo para os átomos vizinhos Sempre há em cada instante razão irreflexão paixão calma atenção vigília sono repouso caminhada em todos os sentidos logo em um dado instante uma corporação uma nação uma espécie um gênero estão ao mesmo tempo na razão e na desrazão e o resultado não depende em nada da vontade dessa massa Logo é precisamente porque cada homem é livre que uma reunião de homens não o é 5 O Fundador sublinhou os seus logo não é uma verdade in contestável que ele nos apresenta é uma suposição uma aventura de seu espírito que ele está narrando a partir dos fatos que obser vou Já vimos que o espírito a aliança da vontade e da inteligência conhecia duas modalidades fundamentais a atenção e a distração Basta que haja distração que a inteligência se disperse para que seja levada pela gravitação da matéria Eis porque alguns filósofos e teólogos explicam o pecado original como uma simples distra ção Nesse sentido podemos dizer com eles que o mal não é mais do que ausência Mas sabemos também que essa ausência é uma recusa Aquele que se distrai não vê por que razão deveria prestar atenção A distração é de início preguiça desejo de subtrairse ao esforço A própria preguiça não é todavia torpor da carne ela é ato de um espírito que subestima sua própria potência A comuni cação razoável se funda na igualdade entre a estima de si e a estima dos outros Ela favorece a contínua verificação dessa igualdade A preguiça que faz com que as inteligências caiam na gravidade ma terial tem por princípio o desprezo Esse desprezo procura se fazer passar por modéstia eu não posso diz o ignorante que pretende absterse da tarefa de aprender Sabemos por experiência o que essa modéstia significa O desprezo por si é sempre também des prezo pelos outros Eu não posso diz o aluno que não quer sub meter sua improvisação ao julgamento de seus pares Não com preendo vosso método diz o interlocutor não sou competente nada sei sobre o assunto Compreendese rapidamente o que isso quer dizer Isso não é o senso comum pois eu não compreendo Mélanges posthumes p 116 87 COLEÇÃO Eouuco EXPERIENCIA EENXIDO um homem como eu E assim ocorre em todas as idades e em todas as camadas da sociedade Esses seres que se pretendem de safortunados pela natureza não querem mais do que pretextos para se dispensarem do estudo que lhes desagrada do exercício de que não gostam Quereis uma prova Esperai um instante deixai que falem escutai até o fim Não ouvis por detrás da precaução orató ria desse modesto personagem que não tem diz ele espírito poéti co a solidez de julgamento que ele se atribui Que perspicácia a distinguilo Nada lhe escapa e se o deixais livre a metamorfose enfim se opera eis a modéstia transformada em orgulho Os exem plos estão em todas as vilas como em todas as cidades Reconhe cese a superioridade de outrem em um gênero para melhor fazer reconhecer nossa própria em outro gênero e não é difícil ver na continuação de seu discurso que nossa superioridade sempre aca ba por ser a nossos olhos a superioridade superior A paixão da desigualdade Podese portanto atribuir a causa da distração pela qual a inte ligência consente com o destino da matéria a uma só paixão o des prezo a paixão pela desigualdade Não é o amor pela riqueza nem por qualquer bem que perverte a vontade é a necessidade de pensar sob o signo da desigualdade A esse respeito Hobbes fez um poema mais atento do que Rousseau o mal social não vem do primeiro que pensou em dizer Isso me pertence ele vem do primeiro que pen sou em dizer Não és igual a mim A desigualdade não é a conse qüência de nada ela é uma paixão primitiva ou mais exatamente ela não tem outra causa a não ser a igualdade A paixão pela desi gualdade é a vertigem da igualdade a preguiça diante da enorme tarefa que ela requer o medo diante de um ser racional que se respei ta a si próprio É mais fácil se comparar estabelecer a troca social como um comércio de glória e de desprezo em que a cada inferiori dade que se confessa recebese em contrapartida uma superiorida de Assim a igualdade dos seres racionais vacila na desigualdade Enseignement universel Musique 3 ed Paris 1830 p 52 Enseignement universel Langue maternelle 6 ed Paris 1836 p 278 88 A sociedade do desprezo social Para permanecer em nossa metáfora cosmológica diremos que é a vontade da preponderância que submeteu a vontade livre ao sistema material da gravidade que fez com que o espírito caísse no mundo cego da gravitação É a desrazão da desigualdade que faz o indivíduo renunciar a si próprio à incomensurável imaterialidade de sua essência e engendra a agregação como fato e o reino da ficção coletiva O amor da dominação obriga os homens a se protegerem uns dos outros no seio de uma ordem convencional que não pode ser razoável posto que somente é feita da dcsrazão de cada um dessa submissão à lei de outrem que o desejo de lhe ser superior fatalmente acaba por implicar Esse ser de nossa imaginação a que chamamos gênero humano se compõe da loucura de cada um de nós sem parti cipar de nossa sabedoria individual Não acusemos pois a necessidade cega ou o destino desafortu nado da alma presa a um corpo de argila e submetida à divindade ma léfica da matéria Não há nem divindade maléfica nem massa fatal nem mal radical Apenas essa paixão ou essa ficção da desigualdade que desenvolve suas conseqüências Por isso podese descrever a sub missão social de duas maneiras aparentemente contraditórias Podese dizer que a ordem social está submetida a uma necessidade material irrevogável que ela roda como os planetas segundo leis eternas que nenhum indivíduo pode mudar Mas podese igualmente dizer que ela não é mais do que uma ficção E que nenhum gênero espécie corporação tem qualquer realidade Somente os indivíduos são reais somente eles têm uma vontade e uma inteligência a totalidade da or dem que os submete ao gênero humano às leis da sociedade e às diver sas autoridades não é mais do que uma criação da imaginação Estes dois modos de falar acabam por se equivaler é a desrazão de cada um que cria e recria incessantemente essa massa arrasadora essa ficção derrisória à qual cada cidadão deve submeter sua vontade mas da qual também cada homem tem meios de subtrair sua inteligência O que fazemos o que dizemos nos tribunais como nas assembléias na guerra é regido por suposições Tudo é ficção somente a consciên cia e a razão de cada um de nós é invariável O estado de sociedade é aliás fundado nesses princípios Se o homem obedecesse à razão leis Enseuiguement universel Langue maternelle 6 ed Paris 1836 p 91 89 Coleúo EoucnCo EXPERIENCIA E SENTIDO magistrados tudo seria inútil mas as paixões o conduzem ele se re volta e por isso é punido de maneira humilhante Cada um de nós se encontra forçado a buscar em um o apoio contra o outro É evi dente que a partir do momento em que os homens se põem em socie dade para buscar proteção uns contra os outros essa necessidade recíproca anuncia uma alienação da razão que não promete qual quer resultado razoável O que pode a sociedade senão nos acor rentar ao estado infeliz a que nós mesmos nos votamos Assim o mundo social não é apenas o mundo da nãorazão mas o da desrazão isto é de uma atividade da vontade pervertida possuída pela paixão da desigualdade Continuamente os indivíduos ligando se uns aos outros pela comparação reproduzem esta desrazão esse embrutecimento que as instituições codificam e que os explicadores solidificam nos cérebros Essa produção da desrazão é um trabalho no qual os indivíduos empregam tanta arte e tanta inteligência quanto o fariam para a comunicação razoável das obras de seu espírito Sim plesmente esse trabalho é um trabalho de luto A guerra é a lei da ordem social Não imaginemos entretanto sob esse nome de guerra nenhuma fatalidade de forças materiais nenhum desencadeamento de hordas dominadas por instintos bestiais A guerra como qualquer obra humana é antes de tudo ato de palavra Mas essa palavra recusa a aura de idéias irradiantes do contratradutor suscitado por uma outra inteligência ou por um outro discurso A inteligência não mais se ocu pa de adivinhar e de se fazer adivinhar Ela tem por objetivo o silêncio do outro a ausência de réplica a queda dos espíritos na agregação material do consentimento A vontade pervertida não cessa de empregar a inteligência mas sobre a hase de uma distração fundamental Ela habitua a inteligên cia a só ver o que concorre para a preponderância o que serve para anular outra inteligência O universo da desrazão social é feito de vontades servidas por inteligências No entanto cada uma dessas vontades dá por sua missão destruir uma outra vontade impedindo a outra inteligência de ver E sabemos que este resultado não é muito difícil de se obter Basta deixar agir a radical exterioridade da or dem da língua em relação à ordem da razão A vontade razoável 9 Enseignement universel Longue maternelle 6 ed Pans 1836 p 362363 90 A sociedade do desprezo guiada por sua ligação distante com a verdade e por sua vontade de falar a seu semelhante controla essa exterioridade ela a supera pela força da atenção A vontade distraída tendo abandonado a via da igualdade fará uso contrário dessa exterioridade sobre o modo retórico para precipitar a agregação dos espíritos sua queda no universo da atração material A loucura retórica Poder da retórica dessa arte de raciocinar que se esforça em anular a razão Desde que as revoluções da Inglaterra e da França reinstalaram o poder das assembléias deliberantes no centro da vida política espíritos curiosos renovaram a grande interrogação de Pla tão e de Aristóteles sobre esse poder da falsificação que imita o poder da verdade Assim em 1816 o genebrino Étienne Dumont traduziu para o francês o Traité des sophismes parlamentaires de seu amigo Jeremy Bentham Jacotot não menciona essa obra mas sua marca está sensível nos desenvolvimentos da Langue mater nelle consagrados à retórica Como Bentham Jacotot coloca no centro de sua análise a desrazão das assembléias deliberantes O léxico que ele usa para falar do assunto é bastante próximo da quele empregado por Dumont E sua análise da falsa modéstia lem bra o capítulo de Bentham sobre o argumento ad verecundiam 1 Se é a mesma comédia cujas engrenagens um e outro desmontam seu olhar e sua moral diferem contudo radicalmente Bentham polemi za contra as assembléias conservadoras inglesas Ele mostra a devas tação produzida pelo argumento de autoridade que em diferentes 1 A cada vez que se assinala um vício de nossas instituições propondose um remédio levantase imediatamente um grande funcionário que sem discutir a proposição exclama com ar compungido Eu não estou preparado para exa minar a questão confesso minha incapacidade etc Mas eis o sentido escondi do dessas palavras Se um homem como eu bem colocado e dotado de um génio proporcional a essa dignidade confessa sua incapacidade quanto não haveria de presunção quanto nao haveria de loucura de parte daqueles que pretendem ter urna opinião já formada É um método indireto de intimida ção é a arrogáncia sob um ténue véu de modéstia Traité des sophismes paremenlaires trad Regnault Paris 1840 p 84 91 CaIKAO EDVCACAO EPfR1ÈNCIA E SENTIDO roupagens é empregado pelos beneficiários da ordem existente para se opor a qualquer reforma progressista Ele denuncia as alegorias que hipostasiam a ordem instituída as palavras que lançam confor me a oportunidade um véu róseo ou sinistro sob as coisas os sofis mas que servem para assimilar qualquer proposição de reforma ao espectro da anarquia Para ele esses sofismas se explicam pelo jogo de interesses seu sucesso pela fraqueza intelectual das raças parla mentares e pelo estado de servidão em que a autoridade os mantém De forma que os homens desinteressados e formados para a liberda de podem combatêlos eficazmente E Dumont menos impetuoso que seu amigo insiste na esperança razoável que assimila a marcha das instituições morais à das ciências físicas Não haveria em mo ral como em física erros que a filosofia fez desaparecer E pos sível atacar os falsos argumentos até o ponto em que eles não mais ousem se mostrar Não tomo por prova mais do que a doutrina tanto tempo famosa mesmo na Inglaterra sobre odireito divino dos reis e sobre a obediência passiva dos povos Assim é possível confrontar na própria cena política os prin cípios da razão desinteressada com os sofismas do interesse privado Isso supõe a cultura de uma razão que opõe a exatidão de suas deno minações às analogias às metáforas e alegorias que invadiram o cam po da política criando seres a partir de palavras forjando por meio dessas palavras raciocínios absurdos e dessa forma ocultando a ver dade com o véu do preconceito De forma que a expressão figurada de corpo politico produziu um grande número de idéias falsas e bizar ras Uma analogia unicamente fundada em metáforas serviu de base para pretensos argumentos e a poesia invadiu o domínio da razão 2 A essa linguagem figurada cuja figuração concede ao interesse não ra zoável todos os seus disfarces é possível opor uma linguagem verda deira onde as palavras recubram exatamente as idéias Jacotot rejeita tal otimismo Não há linguagem da razão Há so mente um controle da razão sobre a intenção de falar A linguagem poética que se reconhece como tal não contradiz a razão Ao contrário Dumont prefácio de Bentham lactique des assemblées parlementaires Geneve 1816 p XV 2 Ibidem p 6 A sociedade do desprezo ele recomenda a cada sujeito falante não tomar o relato de suas aventu ras de espirito pela voz da verdade Cada sujeito falante é o poeta de si próprio e das coisas A perversão se introduz quando esse poema se dá por outra coisa além do poema quando pretende se impor como verdade e forçar a ação A retórica é uma poesia pervertida Isso quer dizer também que em sociedade não se sai da ficção A metáfora é solidária com a demissão original da vontade O corpo politico é uma ficção mas uma ficção não é uma expressão figurada à qual se poderá opor uma definição exata do conjunto social Há de fato uma lógica dos corpos à qual ninguém pode cones sujeito político se subtrair O homem pode ser dotado de razão o cidadão não pode sêlo Não há retórica razoável não há discurso político razoável A retórica como se disse tem por princípio a guerra Não busca a compreensão mas o aniquilamento da vontade adversa A retórica é uma palavra de revolta contra a condição poética do ser falante Ela fala para fazer calar Tu não falarás mais não pensarás mais tu farás o seguinte tal é seu programa Sua eficácia é regulada por sua própria suspensão A razão ordena que se fale sempre a desrazão retórica não fala senão para fazer advir o momento do silêncio Momento do ato dirseia habitualmente em homenagem àquele que da palavra faz uma ação Mas esse momento é muito pelo contrário o da falta de ato da inteligência ausente da vontade subjugada dos homens submetidos à única lei da gravidade Os sucessos do orador são obra do momento ele suspende um decreto como se assalta uma fortificação A ex tensão dos períodos a ordem literária a elegância todas as qualidades do estilo não se constituem no mérito de semelhantes discursos É uma frase uma palavra por vezes uma entonação um gesto que desperta ram o povo adormecido e levantaram a massa que sempre tende a recair por força de seu próprio peso Enquanto Manlius pode mostrar o Capitólio esse gesto o salvou A cada vez que Fócion podia aproveitar a oportunidade de dizer uma frase Demóstenes era vencido Mirabeau o havia compreendido ele que dirigia os movimentos comandava as pau sas através de frases e palavras respondiaselhe em três pontos ele replicava discutia longamente para mudar pouco a pouco a disposi ção dos espíritos em seguida abandonando abruptamente os hábitos parlamentares ele fechava a discussão com uma só palavra Por mais longo que seja o discurso de um orador não é seu tamanho não são 92 93 COLfCha EDUCAfJFO EPEPIÈNCN E SENTIDO seus desenvolvimentos que lhe concedem a vitória o mais frágil anta gonista oporá períodos a períodos desenvolvimentos a desenvolvi mentos O orador é aquele que triunfa é aquele que pronunciou a pala vra a frase que fez pesar a balança 3 Vêse que essa superioridade se julga a si própria ela é a supe rioridade da gravidade O homem superior que faz pesar a balança será sempre aquele que pressente melhor quando e como ela vai pe sar O que melhor submete os outros é aquele que se submete a si próprio E submetendose à sua própria desrazão ele faz triunfar a desrazão da massa Sócrates já ensinava a Alcibíades como a Cáli cles quem pretende ser mestre do povo é forçado a ser seu escravo Enquanto Alcibíades divertese com a figura simplória de um sapa teiro em sua barraca e glosa sobre a estupidez dessas pessoas o filósofo se contenta em lhe replicar Por que então não vos sentis mais à vontade quando se trata de falar perante essas pessoas Os inferiores superiores Isso funcionava antigamente dirá o espírito superior habituado à grave palavra das assembléias censitárias isso valia para as assem bléias demagógicas compostas pela escumalha que giravam feito catavento de Demóstenes a Esquines de Esquines a Demóstenes Examinemos porém melhor as coisas Essa estupidez que leva o povo ateniense a inclinarse ora por Esquines ora por Demóstenes tem um conteúdo muito preciso O que o faz inclinarse alternativa mente ora para um ora para outro não é sua ignorância ou sua ver satilidade É que cada um sabe em um instante preciso encarnar melhor a estupidez específica do povo ateniense o sentimento de sua evidente superioridade sobre o povo imbecil dos tebanos Em resumo o móvel que faz girar as massas é o mesmo que anima os espíritos superiores o mesmo que faz girar a sociedade sobre si pró pria de geração em geração o sentimento da desigualdade das inte ligências esse sentimento que para distinguir os espíritos superio res os confunde na crença universal Ainda hoje o que permite ao Enseignement universel Langue maternelle 6 ed Paris 1836 p 328329 16Journal de Pémmnrzzsation intellerluede t IV 18361837 p 357 94 A sociedade do desprezo pensador desprezar a inteligência do operário senão o desprezo do operário pelo camponês do camponês por sua mulher de sua mulher pela esposa do vizinho e assim indefinidamente A desrazão social encontra sua fórmula resumida no que se poderia chamar de parado xo dos inferiores superiores cada um se submete àquele que consi dera como seu inferior estando submetido à lei da massa pela pró pria pretensão de se distinguir Não oponhamos pois a essas assembléias demagógicas a sere nidade radiosa de assembléias de notáveis graves e respeitáveis Em toda parte onde homens se agregam sob as bases de sua superioridade eles se sujeitam à lei das massas materiais Uma assembléia oligárqui ca uma reunião de pessoas honradas ou de gente de capacidade obedecerá portanto bem mais provavelmente à estúpida lei da maté ria do que uma assembléia democrática Um senado tem uma condu ta que não pode mudar por si próprio e o orador que o encoraja a manterse no caminho que segue e no sentido da marcha que já empre ende é sempre mais bem sucedido do que todos os outros s Appius Claudius o homem da oposição radical a qualquer reivindicação da plebe foi o orador senatorial por excelência porque compreendeu melhor do que qualquer outro a inflexibilidade do movimento que atraía para sua direção própria as cabeças da elite romana Sua máquina retórica a máquina dos homens superiores engasgou como se sabe uma só vez quando os plebeus se reuniram no Aventino Nesse dia para evitar o desastre foi preciso um louco isso é um homem razoável capaz dessa extravagância impossível e incompreensível para Appius Claudius ir escutar os plebeus supondo que suas bocas emitiam uma língua e não apenas um punhado de ruídos falarlhes supondo que eles tinham inteligência para compreender as palavras dos espíritos superio res em resumo considerálos como seres igualmente razoáveis A parábola do Aventino relembra o paradoxo da ficção desi gualitária a desigualdade social não é concebível possível senão sobre a base da igualdade primeira das inteligências A desigualdade não pode se pensar a ela própria Em vão até Sócrates aconselha a Cálicles que para sair do círculo do mestreescravo ele aprenda a verdadeira igualdade que é proporção de modo a assim entrar no 5 Enseignement universel Iaugue maternelle 6 ed Paris 1836 p 339 95 COLEfAO EUUCAÇAO EXPERIENCIA SfNTIDO círculo daqueles que pensam a justiça a partir da geometria A cada vez que há casta o superior submete sua razão à lei do inferior Uma assembléia de filósofos é um corpo inerte que gira sobre o eixo de sua própria desrazão a desrazão de todos Em vão a sociedade desiguali tária busca se compreender a si própria darse fundamentos naturais E precisamente porque não há qualquer razão natural para a domina ção que a convenção comanda e comanda absolutamente Os que ex plicam a dominação pela superioridade recaem na velha aporia o su perior cessa de sêlo quando cessa de dominar Monsieur le Duc de Lévis acadêmico e Par de França inquietase com as conseqüências sociais do sistema Jacotot se a igualdade das inteligências é proclama da como as mulheres obedecerão a seus maridos e os administrados a seus administradores Não estivera o Senhor Duque distraído como todos os espíritos superiores ele observaria que é seu sistema o da desigualdade das inteligências que é subversivo da ordem social Se a autoridade depende da superioridade intelectual o que acontecerá no dia em que o administrado convencido ele também da desigualdade das inteligências acreditar reconhecer um imbecil na figura de seu prefeito Não lhe será preciso então testar ministros e prefeitos bur gomestres e chefes de gabinete afim de verificar sua superioridade E como assegurarse de quejamais se meterá entre eles um imbecil qual quer cujo defeito reconhecido levará os cidadãos à desobediência Somente os partidários da igualdade das inteligências podem compreender isto se o cádi se faz obedecer por seus escravos o branco pelos negros é porque ele não lhes é nem superior nem inferior em inteligência Se as circunstâncias e as convenções separam e hierarqui zam os homens criando a dominação e forçando à obediência é por que elas são as únicas a poder fazêlo É precisamente porque nós somos todos iguais por natureza que devemos ser todos desiguais pe las circunstâncias A igualdade permanece a única razão da desi gualdade A sociedade só existe pelas distinções e a natureza não apresenta senão igualdades É impossível que a igualdade subsista de fato por muito tempo mas mesmo quando destruída ela permanece ainda a única explicação razoável para as distinções convencionais 16 Enseignement universe Langue nmternelle 6 ed Paris 1836 p 109 Enseignement universe Meesigue 3 ed Paris 1830 p 194195 96 A sociedade do desprezo A igualdade das inteligências ainda faz mais pela desigualdade ela prova que a abolição da ordem existente seria tão pouco razoável quanto essa própria ordem Se me fosse perguntado o que pensais da organização das sociedades humanas Esse espetáculo me parece con trário à natureza responderia eu Nada aí está em seu lugar posto que há lugares diferentes para seres não diferentes De tal modo que quan do se propõe à razão mudar esta ordem ela é obrigada a reconhecer sua insuficiência Ordem por ordem lugares por lugares diferenças por diferenças não há qualquer motivo razoável para a mudança O rei filósofo e o povo soberano Assim a igualdade permanece a única capaz de explicar uma desigualdade que os desigualitários serão sempre impotentes para pensar O homem razoável conhece a razão da desrazão cidadã No entanto ele a reconhece ao mesmo tempo como insuperável Ele é o único a conhecer o círculo da desigualdade Mas ele próprio na condição de cidadão aí está preso Não há senão uma razão ora ela não organizou a ordem social De forma que a felicidade não poderia estar presente Os filósofos sem dúvida têm razão em denunciar aqueles que buscam racionalizar a ordem existente Esta ordem não tem razão Mas eles se iludem perseguindo a idéia de uma ordem social enfim racional São bastante conhecidas duas figu ras extremas e simétricas dessa pretensão o velho sonho platônico do rei filósofo e o sonho moderno da soberania do povo Não resta dúvida de que como qualquer outro homem um rei também pode ser filósofo Mais precisamente na condição de homem ele o é Mas como chefe um rei tem a razão de seus ministros que têm a razão de seus chefes de gabinete que por sua vez têm a razão de todo mundo Ele não depende é bem verdade da razão de seus superiores mas somente da razão dos inferiores O rei filósofo ou o filósofo rei faz parte da sociedade e ela lhe impõe como aos outros suas leis suas superioridades e suas corporações explicadoras 1 bide p 195 Enseignement universe Langue maternelle 6 ed Paris 1836 p 365 97 COLEORO EVCACAO EXPERIÊNCIA E SENTIDO A sociedade do desprezo Por isso mesmo a outra figura do sonho filosófico a soberania do povo não se mostra mais sólida Pois esta soberania que se apre senta como um ideal a realizar ou como um princípio a impor sem pre existiu Ainda ecoam na história os nomes desses reis que perde ram o trono por haver desconsiderado esse fato nenhum deles reina senão pelo peso que lhes atribui a massa Os filósofos se indignam O povo dizem não pode alienar sua soberania Objetarseá que tal vez ele não possa mas que ele sempre o fez desde o princípio dos tempos Os reis não fazem os povos por mais que queiram Mas os povos podem fazer chefes e eles sempre assim quiseram O povo se aliena em seu chefe exatamente da mesma forma como o chefe se aliena em seu povo Essa sujeição recíproca é o próprio princípio da ficção política como alienação original da razão em relação à paixão da desigualdade O paralogismo dos filósofos consiste em imaginar um povo de homens Mas esta é uma expressão contraditória um ser impossível Não há senão povos de cidadãos de homens que aliena ram sua razão à ficção desigualitária Não confundamos essa alienação com uma outra Não estamos afirmando que o cidadão é o homem ideal revestido os despojos do homem real o habitante de um céu político igualitário que recobriria a realidade da desigualdade entre os homens concretos Afirmamos que há igualdade entre os homens isto é entre indivíduos que se vêem somente como seres razoáveis E que é ao contrário o cidadão o habitante da ficção política o ser decaído no país da desigualdade O homem razoável sabe pois que não existe ciência política que não há política da verdade A verdade não decide qualquer con flito da praça pública Ela não fala ao homem senão na solidão de sua consciência Ela se retira assim que explode o conflito entre duas consciências Quem espera reencontrála deve em todo caso saber que ela caminha solitária e sem cortejo Em troca as opiniões políti cas jamais vêm sem um imponente cortejo Fraternidade ou morte dizem elas ou ainda quando chega sua vez Legitimidade ou morte Oligarquia ou morte etc O primeiro termo varia mas o segundo é sempre expresso ou subentendido nas bandeiras nos estandartes das 2 Le Contrat social Journal dephilosophiepa icastique t V 1838 p 62 98 opiniões À direita lêse Soberania de A ou morte À esquerda So berania de B ou morte Nunca falta a morte conheço inclusive fi lantropos que dizem Supressão da pena de morte ou morte 2 A verdade quanto a ela não proclama sanções nunca vem ligada à morte Digâmolo portanto com Pascal sempre se encontrou um meio de conceder a justiça à força mas estáse longe de encontrar aquele de conceder força à justiça Esse projeto é por si só sem sentido Uma força é uma força Pode ser razoável empregála É porém insensato querer tornála razoável Como desrazoar razoavelmente Resta pois ao homem razoável submeterse à loucura cidadã esforçandose para não perder sua razão Os filósofos acreditam ter encontrado o meio a obediência não pode ser passiva dizem eles não pode haver deveres sem direitos Mas isso é falar distraidamen te Não há nada nunca haverá na idéia de dever que implique a idéia de direito Quem se aliena se aliena absolutamente Supor uma con trapartida para isso é um pobre subterfúgio da vaidade sem outro efeito além de racionalizar a alienação tornandoa capaz de melhor enredar aquele que acredita preservar seus direitos O homem razoá vel não se permite essas dissimulações Ele sabe que a ordem social nada tem a lhe oferecer de melhor do que a superioridade dessa or dem sobre a desordem Uma ordem qualquer desde que não possa ser perturbada eis o que são as organizações sociais desde o come ço do mundo 32 O monopólio da violência legítima é ainda o que se encontrou de melhor para limitar a violência deixando à razão os asilos em que ela pode se exercer mais livremente De modo que o homem razoável jamais se considera acima das leis A superioridade que em caso contrário ele se atribuiria o faria cair no destino co mum desses superiores inferiores que constituem a espécie humana e entretêm sua desrazão Ele considera a ordem social como um misté rio situado para além do poder da razão obra de uma razão superior 2 faurrral dephilosophiepanécattique t V 1838 p 211 2 Enseignement universel l ngue étrangère 2 ed Paris 1829 p 123 99 COLEÇÃO EDUCAÇÃO EXPERIÊNCIA E SENDO que determina o sacrifício parcial de sua própria razão Ele se subme terá na qualidade de cidadão ao que a desrazão dos governantes exi ge evitando apenas adotar as razões que ela proclama Mas ele não abdica de sua razão ele apenas a reconduz a seu princípio primeiro A vontade razoável como vimos é antes de qualquer coisa a arte de se vencer a si próprio A razão se conservará fiel controlando seu pró prio sacrifício O homem razoável é virtuoso Ele aliena parcialmente sua razão ao comando da desrazão para manter esse foco de naciona lidade que é a capacidade de se vencer a si próprio Eis como a razão conservará sempre um refúgio inexpugnável no seio da desrazão A desrazão social é a guerra em suas duas faces o campo de batalha e o tribunal O campo de batalha é o verdadeiro retrato da sociedade a implicação exata e integral da opinião que a funda Quando dois homens se encontram eles se tratam polidamente como se acreditassem serem iguais em inteligência mas quando um dos dois está no meio do país do outro já não se fazem mais tantas ceri mônias abusase da força como da razão tudo no intruso denota uma origem bárbara Ele é tratado sem boas maneiras como a um idiota Sua pronúncia faz dobrar de rir a inabilidade dos gestos e tudo nele anuncia a espécie bastarda à qual pertence esse é um povo desa jeitado aquele é leviano e frívolo o outro é grosseiro outro ainda orgulhoso e afetado Em geral cada povo se crê de boa fé superior a outro e basta que as paixões se intrometam eis que a guerra explode matase tanto quanto se pode de uma parte e de outra como se esma gam insetos Mais se mata mais se é glorioso Ése recompensado por cabeça abatida pedese uma medalha por uma aldeia queimada uma grande comenda no caso de uma cidade grande segundo a tarifa e esse tráfico de sangue é chamado de amor à pátria é em nome da pátria que vos lançais como bestas selvagens sobre o povo vizinho e se vos perguntassem o que é a pátria vos mataríeis uns aos outros antes de chegar a um acordo sobre a questão Apesar disso dizem em coro os filósofos e a consciência co mum é preciso distinguir Há guerras injustas guerras de conquista que o delírio de dominação engendra e há guerrasjustas aquelas em que se defende o solo da pátria atacada O antigo artilheiro Joseph Esee nement universe Lampe maternelle ed Paris 1836 p 289290 100 A sociedade do desprezo Jacotot deve sabêlo ele que defendeu em 1792 a pátria em perigo e que em 1815 se opôs com todas as suas forças de parlamentar ao retorno do rei trazido pelos invasores Mas sua experiência lhe per mitiu observar que a moral da coisa era completamente diferente do que parecia no início O defensor da pátria atacada faz como cida dão o que faria como homem Ele não tem que sacrificar sua razão à virtude Pois a razão ordena ao animal razoável fazer o que puder para conservar a qualidade de ser vivo A razão nesses casos se reconcilia com a guerra e o egoísmo com a virtude Não há pois mérito particular em nada disso Em compensação aquele que obe dece às ordens da pátria conquistadora faz se é razoável o meritório sacrifício de sua razão ao mistério da sociedade É preciso maior virtude para guardar sua fortaleza interior e para saber uma vez o dever cumprido voltar à natureza reconverter em virtude do livre exame o domínio de si investido na obediência cidadã Mas para isso a guerra dos exércitos é ainda a menor das pro vações da razão Nessa situação ela se contenta em administrar sua própria suspensão Bastalhe o autodomínio para obedecer à voz da autoridade cuja potência é sempre mais do que suficiente para fa zerse escutar por todos sem qualquer equívoco Bem mais perigosa é a ação nesses lugares em que a autoridade ainda está se estabele cendo em meio a paixões contraditórias nas assembléias em que se delibera sobre a lei nos tribunais em que se julga sobre sua aplica ção Esses lugares apresentam à razão um mesmo mistério diante do qual tudo o que se pode fazer é inclinarse Em meio à confusão das paixões e dos sofismas da desrazão a balança pende a lei faz ouvir sua voz à qual tratarseá de obedecer como a um general Contudo esse mistério exige do homem razoável sua participação Ele conduz a razão não mais somente para o terreno do sacrifício mas para outro que está certo de ser o seu o do raciocínio quando como bem sabe o homem razoável tudo o que interessa é o combate somente preva lecem as leis da guerra O sucesso depende da habilidade e da força do lutador não de sua razão Eis porque pela arma da retórica a paixão reina aí A retórica como se sabe nada tem a ver com a ra zão Mas seria a recíproca verdadeira Não seria a razão de forma geral esse controle de si próprio que permite ao ser que fala reali zar em qualquer domínio uma obra de artista A razão não seria ela 101 CoLEço EDUCACAO EXPERIÉNCA e SENTIDO própria se não facultasse o poder de falar na assembléia como em todo lugar A razão é o poder de aprender todas as línguas Ela pode portanto aprender a língua da assembléia e do tribunal Ela pode aprender a praticar a desrazão É preciso pois tomar o partido de Aristóteles contra Platão é vergonhoso para um homem razoável se deixar abater no tribu nal vergonhoso para Sócrates ter abandonado a vitória e sua pró pria vida nas mãos de Meletos e Anitos É preciso aprender a lín gua de Anitos e Meletos a língua dos oradores que se aprende como todas as outras ou mesmo mais facilmente do que qualquer outra pois seu vocabulário e sua sintaxe estão presos a um estreito círculo Aí o tudo está em tudo se aplica melhor do que em qual quer outra circunstância É pois preciso aprender qualquer coisa um discurso de Mirabeau por exemplo e a isso relacionar todo o resto Essa retórica que tanto trabalho exige dos aprendizes do Ve lho é para nós como um jogo Sabemos tudo antecipadamente tudo está em nossos livros basta mudar os nomes Mas sabemos também que os exageros no tamanho dos perío dos e nos ornamentos do estilo não são a quintessência da arte orató ria Sua função não é persuadir os espíritos mas distraílos O que captura o decreto como a fortaleza é o assalto a palavra o gesto que decidem A sorte de uma assembléia é muitas vezes decidida por um audacioso que primeiro entre todos grita Votação Aprenda mos pois nós também a arte de gritar na hora certa Votação Não digamos que isso é indigno de nós e da razão A razão não precisa de nós somos nós que precisamos dela Nossa pretensa dignidade não é senão preguiça e covardia semelhante àquela de uma criança que não quer improvisar diante de seus colegas Daqui a pouco talvez nós gritemos também Votação Mas o gritaremos com o bando de medrosos que estará fazendo eco ao orador vitorioso aquele que terá ousado o que nós por preguiça não ousamos Tratarseia assim de fazer do Ensino Universal uma escola de cinismo politico renovando os sofismas denunciados por Ben tham Quem quiser compreender a lição do razoável desrazoante I nseignememt mnfverset Langue maternelle 6 ed Paris 1836 p 359 102 A sociedade do desprezo deve buscáIa na lição do mestre ignorante Tratase assim em todo caso de verificar o poder da razão observar o que se pode fazer com ela o que ela pode fazer para manterse ativa no seio da própria desrazão Preso ao círculo da loucura social o razoável desrazoante demonstra que a razão do indivíduo jamais cessa de exercer seu po der No campo fechado das paixões dos exercícios da vontade dis traída é preciso mostrar que a vontade atenta sempre pode o que elas podem e ainda mais E o que podem seus escravos a rainha das paixões pode fazer melhor do que qualquer uma delas O sofisma mais sedutor mais verossímil será sempre obra daquele que sabe me lhor o que é um sofisma Quem conhece a linha reta dela se afasta quando é preciso tanto quanto é preciso e jamais em excesso Qual quer que seja a superioridade que nos conceda a paixão ela se confun de a si mesma posto que é uma paixão A razão vê tudo como é ela mostra ela esconde dos olhos tanto quanto julga conveniente nem mais nem menos Não é uma lição de esperteza mas de constân cia Aquele que sabe permanecer fiel a si em meio ã desrazão exerce rá sobre as paixões do outro o mesmo domínio que exerce sobre as suas Tudo se faz pelas paixões estou consciente mas tudo se po deria fazer ainda melhor mesmo essas bobagens pela razão Eis o princípio único do Ensino Universal B Estaríamos poderseia objetar assim tão distantes de Só crates Também ele ensinava no Fedro como na República o filó sofo pratica a boa mentira aquela que é o justo necessário e suficien te pois só ele conhece a mentira Nisso consiste precisamente toda a diferença nós supomos quanto a nós que todos sabem o que é a mentira É esse inclusive o critério pelo qual definimos o ser razoá vel sua incapacidade de se mentir Não nos referimos portanto ao privilégios dos sábios mas ao poder dos homens razoáveis E esse poder se resume em uma opinião a da igualdade das inteligências É essa opinião que faltou a Sócrates e que Aristóteles não pôde corrigir A mesma superioridade que permite ao filósofo estabele cer as pequenas distinções imperceptíveis o dissuade de falar a 2 Enseignement universel Ligue maternele 6 ed Paris 1836 p 356 Ibidem p 342 103 CoeCo Eoucncno EVE EWEN SENTIDO companheiros de escravidão 27 Sócrates não quis fazer um discur so para agradar ao povo para seduzir a grande besta Ele não quis estudar a arte dos sicofantas Anitos e Meletos Ele pensou e quase todos o louvam por tal que isso equivaleria a permitir em sua pes soa a decadência da filosofia Mas o fundo de sua opinião é Anitos e Meletos são sicofantas imbecis não há portanto nenhuma em seu discurso somente uma espécie de cozinha Não há aí o que apren der Ora os discursos de Anitos e Meletos são uma manifestação da inteligência humana ao mesmo título do que os de Sócrates Não estamos afirmando que são tão bons Diremos apenas que proce dem da mesma inteligência Sócrates o ignorante se imaginou quanto a ele superior aos oradores de tribunal teve preguiça de apren der sua arte e consentiu com a desrazão do mundo Por que agiu de tal modo Pela mesma razão que perdeu Laios Édipo e todos os heróis trágicos ele acreditou no oráculo délfico pensou que a divin dade o havia eleito que ela lhe havia dirigido uma mensagem especi al Ele partilhou da loucura dos seres superiores a crença no gênio Um ser inspirado pela divindade não aprende os discursos de Anitos não os repete não busca quando é preciso apropriarse de sua arte Por isso é que os Anitos são mestres na ordem social Mas não o serão eles de toda maneira perguntarseá ain da De que serve triunfar no fórum se sabemos que de toda forma nada pode mudar a ordem das sociedades Para que servem os in divíduos razoáveis ou emancipados como os denominais que salvam sua vida e conservam sua razão se eles nada podem para mudar a sociedade estando reduzidos à triste vantagem de desra zoar melhor do que os loucos A palavra no Aventino Respondamos antes de tudo que nem sempre o pior está asse gurado já que em toda ordem social é sempre possível a todos os indivíduos serem razoáveis A sociedadejamais o será mas ela pode reconhecer o milagre de momentos de razão que são aqueles não da coincidência das inteligências que é antes embrutecimento mas n Fedro 263e 104 A sociedade do desprezo do reconhecimento recíproco das vontades razoáveis Quando o Se nado desrazoava fazíamos coro com Appius Claudius Era o meio mais rápido de pôr fim à questão voltar mais cedo à cena do Aventi no Agora é Menenius Agripa que tem a palavra E pouco importa o detalhe do que diz aos plebeus O essencial é que lhes fala e eles escutam lhe falam e ele escuta Ele lhes fala de membros e de estô mago e isso talvez não seja muito lisonjeiro Mas o que ele lhes exprime é a igualdade dos seres que falam sua capacidade de com preender desde logo que se reconhecem como igualmente marcados pelo signo da inteligência Ele lhes diz que são como estômagos isso depende da arte que se aprende estudando e repetindo decom pondo e recompondo os discursos dos outros digãmolo anacronica mente isto depende do Ensino Universal Mas ele lhes fala como a homens e por esse mesmo gesto faz deles homens isto depende da emancipação intelectual No momento em que a sociedade está ame açada de ser dividida por sua própria loucura a razão fazse ação social salvadora exercendo a totalidade de seu poder próprio o poder da igualdade reconhecida entre os seres intelectuais Esse momento da guerra civil desatada de poder reconquis tado e vitorioso da razão valeu todo o longo e aparentemente inútil tempo em que a razão foi guardada e em que aprendeu com Appius Claudius a arte de desrazoar melhor do que ele Há uma vida da razão que pode se manter fiel a si própria na desrazão social e aí operar É para isso que é necessário trabalhar Quem sabe com igual atenção compor em nome da causa as diatribes de Appius Clau dius ou as fábulas de Menenius Agripa é um aluno do Ensino Uni versal Quem reconhece com Menenius e Agripa que todo homem nasceu para compreender o que qualquer homem tem a lhe dizer co nhece a emancipação intelectual Esses felizes encontros são muito pouco dizem os impacientes ou os satisfeitos E a história do Aventino é muito velha No entanto exatamente nesse momento outras vozes se fazem ouvir vozes bem diferentes para afirmar que o Aventino é o início de nossa história a do conhecimento de si que faz de plebeus de ontem e de proletá rios de hoje homens capazes de tudo que pode um homem Em Paris um outro excêntrico sonhador PierreSimon Ballanche relata à sua maneira a mesma história do Aventino e lê a mesma lei proclamada 105 COLEÇÃO EoucACAO EXPERIENCIA SENEDO a da igualdade dos seres que falam da potência adquirida por aque les que se reconhecem marcados pelo signo da inteligência e que assim se tornam capazes de gravar seu nome no horizonte E ele faz uma estranha profecia A história romana tal como ela nos foi apre sentada até o presente após haver regulado uma parte de nossos des tinas após haver entrado sob uma forma na composição de nossa vida social de nossos costumes de nossas opiniões de nossas leis vem sob outra forma regular nossos novos pensamentos os que de vem entrar na composição de nossa vida social futura Nas ofici nas de Paris ou de Lion algumas cabeças sonhadoras escutam essa história e a relatam por sua vez à sua própria maneira Sem dúvida essa profecia da nova era é um sonho Mas eis o que não é um sonho sempre se pode mesmo no fundo da loucura desigualitária verificar a igualdade das inteligências e prestar con tas dessa verificação A vitória do Aventino é muito real mas de certo ela não se situa lá onde pensamos Os tribunos que a plebe conquistou desrazoavam tanto quanto os outros Apesar disso o fato de que cada plebeu se sinta homem se acredite capaz acredite seu filho e qualquer outro capaz de exercer as prerrogativas da inteligên cia isso é mais do que nada Não pode haver um partido dos eman cipados uma assembléia ou uma sociedade emancipada Mas todo homem pode a cada instante emanciparse e emancipar a um outro anunciar a outros esse benefício e aumentar o número de homens que se reconhecem como tais e não mais fazem de conta que são superiores inferiores Uma sociedade um povo um Estado serão sempre desra zoáveis Mas podese multiplicar o número de homens que farão uso na condição de indivíduos da razão e dominarão na condição de cidadãos a arte de desrazoar o mais razoavelmente possível Podese portanto dizer e é preciso dizer Se cada família fizesse o que digo logo a nação estaria emancipada não da eman cipação que os sábios concedem por suas explicações ù altura das inteligências do povo mas da emancipação que conquistamos mesmo contra os sábios quando nos instruímos a nós próprios 0 Essais de palingénésie sociale Formule générale de lhistoire de tous les peuples appliquée à lhistoire du peuple romain Revue de Paris av 1829 p 155 Magede lémancipation intelleetuelle Pans 1841 p 15 106 CAPÍTULO QUINTO O emancipador e suas imitações A ssim o dever dos discípulos de Joseph Jacotot é bem sim ples Eles devem anunciar a todos em todo lugar e circunstância a boa nova ou o benefício podese ensinar aquilo que se ignora Um pai de família pobre e ignorante pode portanto começar a instrução de seus filhos Cabe ainda fornecer o princípio desta instrução é preciso aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto segundo esse princípio todas as inteligências são iguais Devese anunciálo e estar pronto para a verificação falar ao po bre fazêlo falar do que ele é e do que sabe mostrarlhe como instruir seu filho copiar a oração que a criança sabe de cor levála a aprender de cor o primeiro capítulo de Telêmaco livro que lhe será oferecido estar disponível para as solicitações daqueles que querem aprender com um mestre do Ensino Universal aquilo que ele ignora envidar portanto todos os esforços para convencer o ignorante de seu poder um discípulo de Grenoble não podia convencer uma mulher pobre e idosa a aprender a ler e a escrever Ele então lhe ofereceu dinheiro para obter seu con sentimento Em cinco meses ela aprendeu e agora emancipa seus netos Eis o que se deve fazer sabendose que o conhecimento de Telêmaco ou de qualquer outra coisa é por si mesmo indiferente O problema não é fazer sábios mas elevar aqueles que se julgam inferiores em inteligência fazêlos sair do charco em que se encon tram abandonados não o da ignorância mas do desprezo de si do Manne populaire de h méthode Jacoto par k Dr Reter de Briglou Paris 1830 p 3 107 COLEÇÃO EouCAçAO EXPE2IËNCIA SENTIDO desprezo em si da criatura razoável O desafio é fazêlos homens emancipados e emancipadores Método emancipador e método social Não se trata de incluir o Ensino Universal nos programas dos partidos reformadores nem a emancipação intelectual entre as ban deiras da sedição Somente um homem pode emancipar um homem Somente um indivíduo pode ser razoável e somente por meio de sua própria razão Há sem dúvida cem maneiras de instruir também se aprende na escola dos embrutecedores um professor é uma coisa decerto menos manipulável do que um livro mas que pode ser apren dida observálo imitálo dissecálo recompôlo experimentar o que de sua pessoa oferece Sempre se aprende ao escutar um homem falar Um professor não é nem mais nem menos inteligente do que qualquer outro homem ele geralmente fornece uma grande quantidade defatos à observação daqueles que procuram Há porém somente uma ma neira de emancipar Jamais um partido um governo um exército uma escola ou uma instituição emancipará uma única pessoa Essa não é uma proposição metafísica A experiência foi feita em Louvain sob o patrocínio de Sua Majestade o Rei dos Países Bai xos Sabese que ele era um soberano esclarecido Seu filho o Prínci pe Frederick era apaixonado pela filosofia Responsável pelos exérci tos ele os queria modernos e instruídos à maneira prussiana Ele se interessava por Jacotot incomodavalhe a desgraça em que este últi mo era mantido pelas autoridades acadêmicas de Louvain queria ter podido fazer qualquer coisa por ele e ao mesmo tempo pelo exército holandês O exército naqueles tempos era terreno propício para expe rimentação de idéias reformadoras e novas pedagogias O Príncipe convenceu então seu pai a criar em Louvain uma Escola Normal Mi litar cuja responsabilidade pedagógica foi confiada a Jacotot A intenção era boa mas o presente era de grego Jacotot era um mestre não um dirigente Seu método era próprio para formar homens emancipados mas não instrutores militares ou sequer servidores em qualquer especialidade social Entendamonos bem um homem eman cipado pode ser instrutor militar tanto quanto serralheiro ou advogado 108 O emancipador e suas imitações Um Ensino Universal contudo não pode sem se deturparespecializar se na produção de uma categoria determinada de atores sociais sobre tudo se esses atores são instrutores de corporações O Ensino Universal pertence às famílias e o melhor que um soberano esclarecido poderia fazer em prol de sua propagação seria proteger a livre circulação desse benefício dos efeitos de sua autoridade Não que um rei esclarecido não possa estabelecer onde e quando quiser o Ensino Universal mas tal estabelecimento jamais vingaria pois o género humano pertence ao velho método É claro que pela glória do soberano sempre se poderia tentar a experiência Ela seguramente fracassaria mas há fracassos que são instrutivos Somente uma garantia se fazia necessária a absoluta concentração do poder a supressão de todos os intermediários da cena social em proveito unicamente da dupla rei e filósofo Para tanto era preciso primeiramente afastar todos os conselheiros do velho método à maneira dos países civilizados isto é concedendolhes uma promo ção em segundo lugar expurgar todos os outros intermediários que não os escolhidos pelo filósofo em terceiro lugar outorgar todo poder ao filósofo Farseá o que eu disser tudo o que eu disser nada além do que eu disser e a responsabilidade caberá somente a mim Nada ordenarei ao contrário os intermediários me perguntarão o que deve ser feito e como deve ser feito para em seguida submeter o todo ao soberano Serei considerado não como um funcionário que se empre ga mas como um filósofo que se deve consultar Enfim o estabeleci mento do Ensino Universal será considerado por um tempo como o principal e o primeiro de todos os negócios do Reino 2 Essas são condições que nenhuma monarquia civilizada poderia aceitar sobretudo em se tratando de um fracasso eminente O Rei no entanto fazia questão da experiência e na qualidade de hóspede reco nhecido Jacotot aceitou essa experiência bastarda de coabitação com uma comissão militar de instrução sob a autoridade do comandante da região de Louvain Nessas bases a Escola foi criada em março de 1827 e os alunos a princípio abismados ao escutar de um intérpre te que seu professor nada tinha a lhes ensinar devem ter podido descobrir aí alguma vantagem já que ao termo do período regula mentar solicitaram por petição o prolongamento de sua estadia na 2 Enseignement universel Mathématique 22 ed Paris 1829 p 97 109 COLEÇÃO EDUCAÇÃO EXPERIÊNCIA SENTIDO Escola onde desejavam aprender pelo Método Universal as línguas a História a Geografia as Matemáticas a Física a Química o Dese nho Topográfico e Fortificações Mas o Mestre não poderia estar satisfeito com esse Ensino Universal desbaratado nem com os con flitos quotidianos com as autoridades acadêmicas civis e com a hie rarquia militar Ele precipitou com suas explosões a dissolução da Escola Ele havia obedecido ao Rei ao formar por um método ace lerado instrutores militares Mas ele tinha melhor a fazer do que fabricar tenentes espécie que jamais faltará em qualquer socieda de Ele aliás preveniu solenemente seus alunos eles não deveriam jamais lutar pela adoção do Ensino Universal no Exército Eles não deviam tampouco esquecer que haviam presenciado uma aventura de espírito um pouco mais ampla do que a fabricação de oficiais subal ternos Vós haveis formado subtenentes em alguns meses é verdade Mas obstinarse a obter resultados tão tímidos quanto os das escolas européias tanto civis quanto militares é desbaratar o Ensino Univer sal Se a sociedade se beneficiar de vossas experiências contentandose com elas tanto melhor vós sereis úteis ao Estado Entretanto não vos esqueçais jamais de que haveis presenciado resultados de ordem muito superior ao que haveis obtido e aos quais sereis reduzidos Aproveitai pois a emancipação intelectual para vós e vossos filhos Ajudai aos po bres Mas limitaivos a fazer para vosso país tenentes e cidadãos acadê micos Não precisais mais de mim para avançar por essas veredas O discurso do Fundador aos seus discípulos militares e ele teve discípulos fiéis figura no frontispício do volume Ensino Uni versaL Matemáticas obra em que segundo o exasperante hábito do Mestre em toda matéria não há uma só palavra sobre matemática Ninguém é discípulo do Ensino Universal se não leu e compreendeu nessa obra a história da Escola Normal Militar de Louvain se não se convenceu dessa oposição o Ensino Universal não é nem pode ser um método social Ele não pode ser difundido nas instituições da sociedade nem por iniciativa delas Não que os emancipados não sejam respeitosos da ordem social eles sabem que de toda maneira ela é menos nociva do que a desordem Mas é tudo o que lhe conce dem e decerto nenhuma instituição poderseia contentar com tão Ibidem p 12 110 O emancipador e suas imitações pouco Não é suficiente que a desigualdade se faça respeitar ela quer ser objeto de crença e de amor Ela quer ser explicada Toda institui ção é uma explicação em ato da sociedade uma encenação da desi gualdade Seu princípio é e será sempre antitético ao do método fun dado sobre a opinião da igualdade e da recusa das explicações O Ensino Universal não pode se dirigir senão a indivíduos jamais a sociedades As sociedades de homens reunidos em nações desde os Lapões até os Patagônios precisam para sua estabilidade de uma forma de uma ordem qualquer Aqueles que são encarregados da manutenção dessa ordem necessária devem explicar e fazer explicar que ela é a melhor possível e impedir qualquer explicação contrária Esse é o objetivo das constituições e das leis Portanto repousando sobre uma explicação toda ordem social sempre exclui qualquer outra explicação e sobretudo rejeita o método da emancipação intelectu al fundado sobre a inutilidade e mesmo sobre o perigo de toda explicação no ensino O Fundador reconheceu inclusive que o cida dão de um Estado deveria respeitar a ordem social de que faz parte e a explicação dessa ordem mas estabeleceu também que a lei só exigia do cidadão que suas ações e palavras fossem conformes à or dem não podendo imporlhe pensamentos opiniões crenças que o habitante de um país antes de ser um cidadão era um homem que a famflia era um santuário em que o pai é o supremo árbitro e que em conseqüência era aí e somente aí que a emancipação intelectual po deria ser semeada com sucesso 4 Afirmemolo pois o Ensino Uni versal não vingará ele não se estabelecerá na sociedade Mas ele não morrerá porque é o método natural do espírito humano o de todos os homens que buscam seu próprio caminho 0 que os discípu los podem fazer a seu favor é anunciar a todos os indivíduos a todos os pais e mães de família o meio de ensinar aquilo que se ignora segundo o princípio da igualdade das inteligências Emancipação dos homens e instrução do povo É pois preciso anunciar o Ensino Universal a todos Antes de tudo aos pobres sem qualquer dúvida eles não têm outro meio de se 4 Journal dr pla7oropyie pnnécnrtìgne t V 1838 p 112 111 COIEçjO EOUCACAO ExFENiENCiA E SfNâoo instruírem não podem pagar explicadores particulares nem passar longos anos nos bancos escolares Acima de tudo é sobre eles que pesa mais fortemente o preconceito da desigualdade das inteligên cias São eles que devem ser reerguidos de sua posição de humilha ção O Ensino Universal é o método dos pobres Mas ele não é um método depobres É um método de homens isto é de inventores Quem o empregar quaisquer que sejam sua ciência e posição social multiplicará seus poderes intelectuais É preciso pois anunciálo aos príncipes aos ministros e aos poderosos eles não podem instituir o Ensino Universal podem no entanto aplicálo na instrução de seus filhos E podem usar seu prestígio social para anunciar ampla mente o benefício Assim o rei esclarecido dos Países Baixos teria feito melhor em ensinar às suas crianças o que ignorava e emprestar sua voz para a difusão das idéias emancipadoras nas famílias do reino Dessa forma o antigo colega de Joseph Jacotot o General de La Fayette pode ria têIo anunciado ao Presidente dos Estados Unidos país novo sobre o qual ainda não pesavam séculos de embrutecimento universitário Aliás nos dias que se seguiram à Revolução de julho de 1830 o Fundador deixou Louvain para em Paris indicar aos liberais e aos progressistas vencedores os meios de concretizar seus belos pensamentos a respeito do povo o General La Fayette só precisava difundir o Ensino Universal entre os homens da Guarda Nacional Casimir Perier velho entusiasta da doutrina e futuro Primeiro Ministro estava agora em condições de anunciar amplamente o benefício M Banhe Ministro da Instrução Pública de M Laffitte veio por iniciativa própria consultarse com Jacotot O que é preciso para organizar a instrução que o governo deve ao povo e que pretende fornecer segundo os melhores métodos Nada respondeu o Fundador o governo não deve instrução ao povo pela simples razão de que não se deve às pessoas aquilo que elas po dem conquistar por si próprias Ora a instrução é como a liberdade não se concede conquistase Então o que é preciso fazer pergun tou o Ministro Basta retrucoulhe anunciar que estou em Paris hospedado no Hotel Corneille onde recebo todos os dias os pais de família pobres para indicarlhes os meios de emancipar seus filhos É preciso dizêlo a todos os que se preocupam com a ciência com o povo ou com os dois ao mesmo tempo Os sábios também devem aprendêlo eles têm os meios de decuplicar sua potência intelectual 112 O emancipador e suas imitações Eles só se acreditam capazes de ensinar o que sabem Conhecemos bem essa lógica social da falsa modéstia pela qual aquilo ao que se renuncia estabelece a solidez do que é anunciado Pois os sábios os que pesqui sam é claro e não os que explicam o saber dos outros querem talvez algo mais novo e menos convencional Se eles começarem a ensinar o que ignoram talvez descubram poderes intelectuais insuspeitados que os colocarão no caminho de novas descobertas É preciso dizêlo aos republicanos que querem um povo livre e igual e imaginam que isso é uma questão de leis e de constituições É preciso dizêlo a todos os homens de progresso de coração generoso e cérebro em ebulição inventores filantropos e filomáticos politécni cos fourieristas ou saintsimonianos que percorrem os países da Euro pa e os campos do saber em busca de invenções técnicas de melhora mentos agronômicos de sistemas econômicos de métodos pedagógicos instituições morais revoluções arquiteturais procedimentos tipográfi cos publicações enciclopédicas etc destinados ao aperfeiçoamento fí sico intelectual e moral da classe mais pobre e mais numerosa eles podem fazer pelos pobres muito mais do que crêem e com custos muito menores Eles gastam tempo e dinheiro na experimentação e promoção de celeiros de grãos e fossas de purina fertilizantes e métodos de conser vação para melhorar as culturas e enriquecer camponeses limpar as imun dícies dos pátios de fazenda e os preconceitos das cabeças rústicas Há porém um meio bem mais simples do que esse com um velhoTelêmaco ou mesmo com uma pluma e papel para escrever uma oração eles podem emancipar os camponeses tornálos conscientes de seu poder intelectual e os camponeses se ocuparão eles próprios do aperfeiçoa mento de suas culturas e da conservação de seus grãos O embruteci mento não é uma superstição inveterada mas tenor frente à liberdade a rotina não é ignorância mas covardia e orgulho das pessoas que renunciam a sua própria potência pelo simples prazer de constatar a impotência do vizinho Basta emancipar Não vos arruineis com pu blicações para inundar advogados notários e farmacêuticos de sub prefeituras de enciclopédias destinadas a ensinar aos habitantes do campo os meios mais saudáveis de conservar ovos marcar carneiros apressar o amadurecimento do melão salgar a manteiga desinfectar a água fabricar açúcar de beterraba e fazer cerveja com cascas de lenti lhas Mostrailhes antes como fazer o filho repetir Calipso Calipso não Calipso nãopodia E vereis de que serão capazes 113 COIECAO EDUCACAO EXPERIENCIA SENTIDO Essa é a única vantagem a vantagem única da emancipação inte lectual cada cidadão é também um homem que realiza uma obra com a pluma com a purina ou qualquer outro instrumento Cada inferior superior é também um igual que narra e faz com que o outro narre o que viu É sempre possível trabalhar essa relação consigo mesmo re conduzila à sua veracidade primeira para despenar no homem social o homem razoável Quem não busca introduzir o método do Ensino Universal nas engrenagens da máquina social pode suscitar essa ener gia toda nova que fascina os apaixonados pela liberdade essa potência sem gravidade nem aglomeração que se propaga como um raio pelo contacto de dois pólos Quem abandona as engrenagens da máquina social tem a sorte de fazer circular a energia elétrica da emancipação Deixaremos de lado apenas os embrutecidos do Velho e os pode rosos à moda antiga Elesjá se inquietavam com os malefícios da instru ção dos filhos do povo imprudentemente cortados de sua condição O que dizer então da emancipação e da igualdade das inteligências da afirmação de que marido e mulher têm a mesma inteligência Um visi tante perguntou a M Jacotot se em tais condições as mulheres ainda permanecerão belas Privemos pois de resposta esses embrutecidos deixemolos dando voltas em torno de seu círculo acadêmiconobiliário Sabemos que é precisamente isso que define a visão embrutecedora de mundo acreditar na realidade da desigualdade imaginar que os superi ores na sociedade são efetivamente superiores e que a sociedade estaria em perigo se fosse difundida sobretudo nas classes mais baixas a idéia de que essa superioridade é tão somente uma ficção convencionada De fato somente um emancipado pode escutar com tranqüilidade que a ordem social é inteiramente convencional e assim mesmo obedecer escrupulosamente a seus superiores que ele sabe seus iguais Ele sabe o que pode esperar da ordem social e não causará aí muita confu são Os embrutecidos nada têm a temer mas eles jamais o saberão Os homens do progresso Deixemolos pois entregues à doce e inquieta consciência de seu próprio gênio Mas ao lado desses não faltam homens de progresso que não deveriam temer a mudança das velhas hierar quias intelectuais Entendemos homens de progresso no sentido 114 O emancipador e suas imitações literal do termo homens que caminham que não se preocupam com a classe social daquele que afirmou alguma coisa mas vão conferir por si próprios se a coisa é verdadeira viajantes que per correm toda a Europa em busca de todos os procedimentos méto dos ou instituições dignos de serem imitados que ao escutar falar de alguma experiência nova aqui ou acolá se deslocam vão obser var os fatos buscam reproduzir as experiências que não vêem porque se passaria seis anos aprendendo algo se está provado que se pode aprendêlo em dois que pensam sobretudo que saber não é nada em si e quefazeré tudo que as ciências não são feitas para serem explica das mas para produzir descobertas novas e invenções úteis que por tanto ao escutar falar de invenções aproveitáveis não se contentam em louváIas ou em comentáIas mas oferecem se possível sua fábri ca ou sua terra seus capitais ou sua devoção para restála Não faltam viajantes e inovadores desse tipo para se interes sarem ou mesmo para se entusiasmarem com a idéia das aplica ções possíveis do método de Jacotot Podem ser professores em ruptura com o Velho Assim como o Professor Durietz que se nu triu desde a juventude com Locke e Condillac Helvétius e Condor cet e cedo partiu para o ataque contra o edifício empoeirado de nossas góticas instituições Professor da Escola Central de Lille ele havia fundado na cidade um estabelecimento inspirado nos prin cípios desses mestres Vítima do ódio ideologívoro votado pelo Imperador a qualquer instituição que não se enquadrasse em seu objetivo de escravização universal sempre pronto a liberarse dos métodos que procedem por recuos ele veio aos Países Baixos realizar a educação do filho do Príncipe de Hatzfeld Embaixador da Prússia Foi aí que ouviu falar do método Jacotot de visita ao estabelecimento que um antigo aluno da Escola Politécnica M de Séprès fundara a partir desses princípios reconheceu sua confor midade com seus próprios princípios e decidiu propagar o método por toda parte onde fosse Foi o que fez durante cinco anos em São Petersburgo em casa do Grande Marechal Paschoff do Príncipe Sher bretoff e de outros dignitários amigos do progresso antes de voltar à França mas não sem de passagem divulgar a emancipação em ounmldepGilospGiepnnécrligne tV 1838 p 277 115 COLpo EDUUÇAO EPERIÉNCA E EVODO Riga e Odessa na Alemanha e na Itália Agora ele pretendia le vantar o machado contra a árvore das abstrações e arrancar daí se pudesse até as fibras de suas últimas raízes Ele falou de seus projetos a M Ternaux o ilustre fabricante de lençóis de Sedan deputado da extremaesquerda liberal Não se po deria encontrar ninguém melhor em matéria de industrial esclareci do Ferdinand Ternaux não se havia contentado em reerguer a fábri ca decadente de seu pai fazendoa prosperar em meio aos distúrbios da Revolução e do Império Ele ainda quis fazer uma obra útil para a indústria nacional em geral favorecendo a produção de caxemiras Para tanto recrutou um orientalista da Biblioteca Nacional e o en viou ao Tibete para de lá trazer um rebanho de mil e quinhentas cabras a serem aclimatadas aos Pirineus Ardoroso amigo da liberda de e das Luzes quis verificar por si mesmo os resultados do método Jacotot Convencido prometeu apoio e com sua ajuda Durietz ga nhou forças para aniquilar os mercadores de supinos e gerúndios e outros sátrapas do monopólio universitário Ferdinand Ternaux não era o único fabricante a avançar assim Em Mulhouse a Sociedade Industrial instituição pioneira criada gra ças ao dinamismo filantrópico dos irmãos Dolfus confiou a seu jo vem animador o Doutor Penot a responsabilidade por um curso de Ensino Universal para os operários Em Paris um fabricante mais modesto o tintureiro Beauvisage ouviu falar do método Operário fezse sozinho e quis estender seus negócios fundando uma nova fábrica na região da Somme Mas ele não queria se separar de seus irmãos de origem Republicano e membro da Maçonaria sonhou trans formar seus operários em associados Esse sonho chocouse infeliz mente com uma realidade menos inspiradora Em sua fábrica como em todas as outras os operários se invejavam entre si e só se punham de acordo quando se tratava de ir contra o patrão Ele queria lhes fornecer uma instrução que destruísse neles o velho homem e per mitisse a realização de seu ideal Para tanto se dirigiu aos irmãos Ratier discípulos fervorosos do método que pregavam a emancipação to dos os domingos na feira de tecidos lhldem p 279 116 O emancipador e suas imitações Além dos industriais há também os militares de progresso prin cipalmente entre os oficiais de engenharia e de artilharia guardiães da tradição revolucionária e politécnica É assim que o subtenente Schoelcher filho de um rico fabricante de porcelana e oficial de enge nharia em Valenciennes visita regularmente Joseph Jacotot que ali se encontra provisoriamente retirado Um dia ele se faz acompanhar de seu irmão Victor que escrevia em diversosjornais e havendo visitado os Estados Unidos voltara indignado que existisse ainda em pleno século XIX essa denegação da humanidade que se chama escravatura Mas o arquétipo de todos esses progressistas é seguramente o Conde de Lasteyrie septuagenário e presidente fundador e alma da Sociedade de Incentivo à Indústria Nacional da Sociedade da Instru ção Elementar da Sociedade para o Ensino Mútuo da Sociedade Cen tral de Agronomia da Sociedade Filantrópica da Sociedade de Méto dos de Ensino da Sociedade da Vacina da Sociedade Asiática do Journal déducation et dinstruction e do Journal des connaissances usuelles Abstenhamonos entretanto de rir imaginando de pronto um acadêmico barrigudo dormindo tranqüilamente em todas essas cadeiras presidenciais Pois ao contrário M de Lasteyrie tornouse conhecido por sua vivacidade Em sua juventude já havia visitado a Inglaterra a Itália e a Suíça para aprimorar seus conhecimentos em economia e aperfeiçoar a gestão de seus domínios Inicialmente parti dário da Revolução tal como seu cunhado o Marquês de La Fayette assim mesmo precisou por volta do ano III refugiarse na Espanha Ali aprendeu a língua a ponto de traduzir diversas obras anticlericais estudou os carneiros da raça merino a ponto de publicar dois livros sobre o assunto e impressionouse com os méritos dessa espécie a pon to de trazer todo um rebanho para França Ele ainda percorreu a Ho landa a Dinamarca a Suécia de onde importou a rutabaga a No ruega e a Alemanha Dedicouse à engorda de animais às fossas para conservação de grãos à cultura de algodoeiros assim como dos pas téisdetintureiro dos indigoteiros e de outros vegetais próprios à produção da cor azul Em 1812 soube da invenção por Senefelder da litografia Partiu imediatamente para Munique onde aprendeu o procedimento sendo responsável pelo primeiro prelo litográfico da França Os poderes pedagógicos dessa nova indústria o haviam orien tado para as questões de instrução Assim ele passou a militar pela 117 COLEÇÃO EoucnrJo EXPERIENCE E Semioo introdução do Ensino Mútuo pelo método Lancaster Mas não se trata va em nada de um exclusivista Entre outras sociedades ele fundou a Sociedade dos Métodos de Ensino para estudo de todas as inovações pedagógicas Tendo sido informado pelo rumor público dos milagres que se faziam na Bélgica decidiuse a ir ver pessoalmente as coisas Ainda ágil em seus setenta anos ele haveria de viver outros vinte escrevendo livros e fundando sociedades e revistas para com bater o obscurantismo e promover a ciência e a filosofia ele to mou a carruagem viu o Fundador visitou a instituição de Mlle Marcellis propôs exercícios de improvisação e de composição às alunas verificando que eram capazes de escrever tão bem quanto ele A opinião da igualdade das inteligências não lhe causava medo Ele percebia que isso representava um grande incentivo para a aqui sição da ciência e da virtude tanto quanto um golpe desferido con tra as aristocracias intelectuais bem mais funestas do que qualquer poder material Ele esperava comprovar sua exatidão então pen sava ele desaparecerão as pretensões desses gênios orgulhosos que acreditandose privilegiados pela natureza se imaginam igualmen te em direito de dominar seus semelhantes e de rebaixálos quase à condição dos animais a fim de gozar com exclusividade dos dons materiais que a fortuna cega distribui e que sabem adquirir aqueles que se aproveitam da ignorância dos homensDe retorno ele anun ciou portanto à Sociedade dos Métodos de Ensino era um imenso passo que acabava de ser dado pela civilização e a felicidade da es pécie humana A Sociedade devia examinar esse novo método e re comendálo como um dos mais destacados entre aqueles que se mos travam próprios a acelerar os progressos da instrução popular De carneiros e de homens M Jacotot apreciava o zelo do Conde Mas viuse rapidamen te obrigado a denunciar suadistração Pois que se tratava sem dúvi da de uma e das mais estranhas para quem aplaudia a idéia de eman cipação ir submetêla à aprovação de uma Sociedade dos Métodos Lastevrie Résumé de la métbode de Penseignemeet universe daprè3 Al Jacotot Paris 1829 p XXVIIXXVIII 118 O emancipador e suas imitações Com efeito o que é uma Sociedade dos Métodos Um areópago de espíritos superiores que obram pela instrução das famílias e para tan to buscam selecionar os melhores métodos Isso supõe evidentemen te que as familias são incapazes de selecionálos por si próprias já que para tanto seria forçoso que elasjá fossem instruídas Nesse caso elas não mais precisariam que alguém as instruísse E nesse caso elas não mais teriam necessidade da Sociedade o que é contraditório com a hipótese É um velho truque o das sociedades eruditas ao qual todos sempre foram e provavelmente sempre estarão cegos Impede se o povo de se dar ao trabalho de examinar A Revista se encarrega de ver a Sociedade se prontifica ajulgar e para darse o ar de importân cia que impressiona aos preguiçosos jamais se louva jamais se repro va nem de mais nem de menos Pois a admiração entusiástica sempre anuncia um pequeno espírito louvandose ou reprovandose comedi damente além de se conquistar uma reputação de imparcialidade con quistase ademais um posto acima daqueles que sãojulgados valese mais do que eles e com sagacidade se distinguiu o bom do medíocre e do péssimo O relatório é uma excelente explicação embrutecedora que não pode deixar de fazer sucesso Aliás nele se invocam pequenos axiomas com os quais se recheia o discurso nada há de perfeito É preciso desconfiar dos exageros O tempo é que deverá sancionar Um dos personagens toma a palavra e diz Meus caros estabe lecemos entre nós que todos os bons métodos passariam por nosso crivo e que a Nação Francesa confiaria nos resultados que sairiam de nossas análises As populações dos diferentes Departamentos de Fran ça não podem ter sociedades como a nossa para dirigilas em seus julgamentos É bem verdade que há aqui e ali em certos centros alguns pequenos crivos mas o melhor crivo o crivo por excelência só em Paris pode ser encontrado Todos os bons métodos disputam entre si a honra de serem depurados verificados em vosso cadinho Somente um tem o direito de se revoltar mas nós o dominamos e ele passará por aí tanto quanto os outros A inteligência dos membros é o vasto laboratório onde se analisam legitimamente todos os méto dos Em vão o Universal se debate contra nossos regulamentos que nos concedem o direito de julgálo tal como faremos Eusegarment universel Unique maternelle 6 ed Paris 1836 p 446 e 448 119 CoieCAo EDUCAGAO Ea4fRÚNOA e SENiIDO Não se pense no entanto que a Sociedade dos métodos tenha julgado o método Jacotot com malevolência Ela compartilhava as idéias progressistas de seu presidente e soube reconhecer tudo o que havia de bom nesse método É bem verdade que algumas vozes sar cásticas se ergueram no areópago de professores para denunciar essa maravilhosa simplificação oferecida ao ofício de ensinar E é bem ver dade também que alguns espíritos permaneceram céticos diante dos curiosos detalhes que seu incansável presidente havia relatado de sua viagem Fora da Sociedade outras vozes ecoavam denunciando a encenação do charlatão as visitas cuidadosamente preparadas as im provisações aprendidas de cor as composições inéditas copiadas das obras do Mestre os livros que se abriam sozinhos nos lugares certos Riase igualmente do mestre ignorante de violão cujo aluno havia tocado uma música completamente diferente daquela que tinha sob seus olhos 9 Mas os membros da Sociedade dos métodos não eram homens de acreditar apenas em palavras M Froussard cético foi verificar o relato de M Lasteyrie e voltou convencido M Boutmy verificou o entusiasmo de M Froussard e em seguida M Baudoin o de M Boutmy Todos voltaram convencidos Mais precisamente eles voltaram todos convencidos do progresso eminente que representa va esse novo método de ensino Mas eles não se preocuparam nem um pouco em anunciáIo aos pobres em por meio dele instruir os próprios filhos nem em empregálo para ensinar o que ignoravam Eles reivindicaram sua adoção pela Sociedade na escolaortomática que essa organizava a fim de demonstrar concretamente a excelência dos novos métodos A maioria da Sociedade tanto quanto M Las teyrie se opuseram a isso a Sociedade não podia adotar um método excluindo todos os outros métodosjá propostos ou a serem propos tos ainda Se o fizesse ela estaria prescrevendo limites para a per fectibilidade e destruindo aquilo que se constituía em sua fé filosó fica e razão de ser prática o aperfeiçoamento progressivo de todos os bons métodos passados presentes e futuros 1 Assim ela rejeitou esse exagero mas imperturbavelmente serena e objetiva concedeu ao ensino do método Jacotot uma sala da escola ortomática CE Remarques sur la méthode dr d1 Jarotol Bruxelas 1827 e L Uuirersnéprotegée Jar Pr mine des disdplrs de Joseph Jacotol Paris e Londres 1830 Journaldéducation el d instruction IVe année p 8183 e 264266 120 O emancipador e suns imitações Nisso consistia toda a inconseqüência de M de Lasteyrie no passado não lhe havia ocorrido convocar uma comissão para apreciar o valor dos carneiros merino ou da litografia ou ainda estabelecer um relatório sobre a necessidade de importar uns e outros Ele havia to mado a iniciativa de importálos testandoos em seu próprio benefí cio Mas para a importação da emancipação ele havia procedido de maneira bem diferente tratavase segundo ele de uma questão públi ca a ser considerada em sociedade Essa infeliz distinção repousava em uma não menos infeliz identificação ele havia confundido o povo a instruir com um rebanho de carneiros Os rebanhos de carneiros não se conduzem por si sós ele pensara que o mesmo se passava com os homens é claro que era preciso emancipálos mas cabia aos espíritos esclarecidos fazêlo e para tanto eles deveriam compartilhar suas lu zes de modo a encontrar os melhores métodos os melhores instru mentos de emancipação Para ele emancipar queria dizer substituir as trevas pela luz ele havia pensado que o método Jacotot era um méto do de instrução como todos os outros um sistema de iluminação dos espíritos a ser comparado aos outros uma invenção sem dúvida exce lente mas de mesma natureza que todas as que propunham semana após semana um novo aperfeiçoamento para a instrução do povo o panlexígrafo de Bricaille o citolégio de Dupont a estequiotécnica de Montémont a estereometria de Ottin a tipografia de Painparé e Lupin a taquigrafia de CoulonThévenot a estenografia de Fayet a caligrafia de Carsteairs o método polonês de Jazwinski o método galiano o método Lévi os métodos de Sénocq Coupe Lacombe Mesnager Schlott Alexis de Noailles e cem outros cujas obras e memórias atluíam para os escritórios da Sociedade A partir daí tudo estava dito Sociedade comissão exame relatório Revista há pontos positi vos e negativos o tempo é que deverá sancionar nec probatis nec improbatis e assim até a consumação dos tempos No caso de melhorias agrícolas e industriais M de Lasteyrie agira à maneira do Ensino Universal ele havia observado comparado refle tido imitado testado corrigido por si próprio Mas quando se tratou de anunciar a emancipação intelectual aos pais de família pobres e ig norantes ele sedistraira esquecerase de tudo Ele traduzira igualdade por PROGRESSO e emancipação dos pais de famílias pobres por INS TRUÇÃO DO POVO Para se ocupar desses seres de razão dessas 121 COLECAO EDUCACAO EXPERIENCIA E SENTIDO ontologias era preciso a intervenção de outros seres de razão de cor porações Um homem pode conduzir um rebanho de carneiros Mas no caso do rebanho POVO era preciso um rebanho chamado SOCIE DADE ERUDITA UNIVERSIDADE COMISSÃO REVISTA etc em resumo embrutecimento a velha regra da ficção social A emanci pação intelectual pretendera deixála para trás no entanto eila que ressurge em seu caminho erigida em tribunal encarregado de triar em seus princípios e exercícios aquilo que convinha ou não às famílias julgando em nome do progresso ou mesmo da emancipação do povo O círculo dos progressistas Não era pois uma simples inconseqüência devida ao cérebro cansado de M de Lasteyrie mas uma contradição que vai de encon tro à emancipação intelectual quando essa se dirige àqueles que como ela desejam a felicidade dos pobres aos homens de progresso O oráculo do embrutecimento bem havia prevenido o Fundador Hoje menos do que nunca não podes esperar sucesso Eles se crêem pro gressistas e suas opiniões estão solidamente estabelecidas nessa base Riome de teus esforços Eles não arredarão de lá A contradição é simples de se expor dissemos um homem de progresso é um homem que caminha que vai ver que experimenta modifica sua prática que verifica seu saber e assim infinitamente Essa é a definição literal da palavra progresso No entanto um ho mem de progresso é também outra coisa um homem que pensa a partir da opinião do progresso e erige essa opinião à condição de explicação dominante da ordem social Com efeito sabemos que a explicação não é apenas o instrumento embrutecedor dos pedagogos mas o próprio laço da ordem social Quem diz ordem diz hierarquização A hierarquização supõe explicação fic ção distributiva justificadora de uma desigualdade que não tem outra explicação senão sua própria existência O quotidiano do trabalho ex plicador não é mais do que a menor expressão de uma explicação domi nante que caracteriza uma sociedade Modificando a forma e os limites dos impérios guerras e revoluções mudam a natureza das explicações dominantes Mas essa mudança é circunscrita em limites bastante 122 O emancipador e suas imitações estreitos Sabemos de fato que a explicação é obra da preguiça Bastalhe introduzir a desigualdade o que se faz sem qualquer difi culdade A hierarquia mais elementar é a do berne do mal A relação lógica mais simples é a do antes e depois Nesses quatro termos o bem e o mal o antes e o depois temse a matriz de todas as explica ções Antes isso era melhor dizem alguns o legislador ou a divin dade haviam organizado as coisas os homens eram frugais e felizes os chefes paternais se faziam obedecer a fé dos ancestrais era res peitada as funções bem distribuídas os corações unidos Agora as palavras se corrompem as distinções se confundem as hierarquias se misturam e a solicitude para com os pequenos se perde juntamen te com o respeito para com os grandes Busquemos pois conservar ou revivificar o que em nossas distinções ainda nos une ao princípio do bem A felicidade é para amanhã respondem os outros o gênero humano era como uma criança entregue aos caprichos e aos tenores de sua imaginação acalentada pelos contos de amas ignaras subme tida à força bruta dos déspotas e à superstição dos padres Agora os espíritos se esclarecem os hábitos se civilizam a indústria difunde seus benefícios os homens descobrem seus direitos e a instrução lhes revela seus deveres para com as ciências A partir de agora será a capacidade que deverá decidir a hierarquia social E caberá à ins trução revelála e desenvolvêla Encontramonos em uma época em que uma explicação domi nante está em vias de sucumbir à força conquistadora de uma outra Tempos de transição Eis o que explica a inconseqüência dos homens de progresso como o Conde Antes quando a Universidade balbuci avaBarbara Celarente Baraliptonencontravamse a seu lado gen tishomens ou médicos burgueses ou gente de Igreja que a deixavam falar ocupandose de outra coisa faziam talhar e polir lentes ou as poliam eles próprios para experiências de ótica reservavam nos açou gues os olhos das bestas para estudar sua anatomia informavamse entre si de suas descobertas e debatiam suas hipóteses Assim se reali zavam nos poros da velha sociedade progressos isso é atualizações da capacidade humana de compreender e de fazer O Senhor Conde tem ainda um pouco desses gentishomens experimentadores Mas no caminho ele foi aspirado pela força crescente da nova explicação da nova desigualiticação o Progresso Já não são mais os curiosos e os 123 CoLeUo EouQClo ETEERIENCIA SENTIDO espíritos indômitos que agora aperfeiçoam tal ou tal ramo das ciências tal ou tal meio técnico E a sociedade que se aperfeiçoa que pensa sua ordem sob o signo do aperfeiçoamento É a sociedade que progride e uma sociedade só pode progredir socialmente isto é todos juntos e ordeiramente O Progresso é a nova maneira de dizer a desigualdade Mas essa forma de dizer tem uma força bem mais temível que a antiga Esta era continuamente obrigada a agir de maneira contrária a seu principio Antes era melhor dizia ela quanto mais avançamos mais vamos em direção à decadência Essa opinião dominante tinha entretan to o defeito de não ser aplicável na prática explicadora dominante a dos pedagogos Esses últimos deviam de fato supor que a criança se aproximava da perfeição ao se afastar de sua origem ao crescer passan do sob a orientação que forneciam de sua ignorância própria à ciência que dispensavam Cada prática pedagógica explica a desigualdade do saber como um mal e um mal redutível em uma progressão infini ta em direção ao bem Cada pedagogia é espontaneamente pro gressista Assim havia discordância entre a grande explicação e os pequenos explicadores Ambos embruteciam mas em desordem E a desordem do embrutecimento deixava espaço para a emancipação Esses tempos estão em vias de acabar A partir daqui a ficção dominante e o quotidiano do embrutecimento caminham no mesmo sentido E isso por uma razão muito simples O Progresso é a ficção pedagógica erigida em ficção de toda a sociedade O cerne da ficção pedagógica é a representação da desigualdade como retardo aí a in ferioridade se deixa apreender em sua inocência nem mentira nem violência não é mais do que um retardo que se constata para colocar se em condições de superálo É claro que nunca o conseguiremos a própria natureza cuida disso haverá sempre retardo sempre haverá desigualdade Mas podese assim exercer continuamente o privilé gio de reduzila daí retirando um duplo proveito As pressuposições dos progressistas são a absolutização social dos pressupostos da pedagogia antes tateavase às cegas as palavras mais ou menos mal recolhidas da boca das mães e amas não esclareci das por adivinhação as idéias falsas retiradas do primeiro contato com o universo material Agora começa uma nova era em que o ho memcriança ganha o caminho reto de sua maturidade O guia mostra 124 O emancipador e suor imitações o véu colocado sobre todas as coisas e começa a levantálo como convém ordenadamente passo a passo progressivamente É neces sário retardar um pouco o progresso Métodos são necessários Sem método sem um bom método a criançahomem ou o povocriança é presa das ficções da infância da rotina e dos preconceitos Com o método ele põe seus passos nos passos daqueles que avançam racio nalmente progressivamente Com eles erguese numa aproximação indefinida Jamais o aluno alcançará o mestre nem o povo sua elite esclarecida no entanto a esperança de chegar lá os faz avançar pelo bom caminho o das explicações aperfeiçoadas O século do Progresso é o dos explicadores triunfantes da humanidade pedagogizada A for ça temível do novo embrutecimento é que ele imita ainda a marcha dos homens de progresso à maneira antiga que ele ataca o antigo embrute cimento em termos apropriados para à menor distração revidar e co locar por terra espíritos que acabam de descobrir a emancipação O que significa também que a vitória que se anuncia dos pro gressistas sobre o Velho é também a vitória do Velho através de sua própria oposição o triunfo absoluto da desigualdade instituída a ra cionalização exemplar dessa instituição Este é o fundamento sólido sobre o qual se erige o poder perene do Velho O Fundador tentou mostrar aos progressistas de boa fé Os explicadores de indústria e todo o mundo já repetiu vejam os progressos da civilização O povo tem necessidade de artes e tudo o que se lhe vendia era o latim de nenhum uso para ele Ele vai desenhar construir máquinas etc Filó sofos tendes razão e admiro vosso zelo sob o domínio de um Grande Mestre que não vos vem em socorro molemente estendido em seu trono de línguas mortas Admiro vossa devoção vosso objetivo filan trópico é sem dúvida mais útil do que o do Velho Mas vossos meios não serão os seus Vosso método não é o seu Não temeis ser acusa dos tal como ele de manter a supremacia dos mestres explicadores A boa vontade corre o risco de se tornar assim uma circunstância agravante O Velho sabe o que quer o embrutecimento e age em conseqüência Os progressistas quanto a eles gostariam de liberar Journal de lemnncipntio intellectuelle t IV 18361837 p 328 Pnseìgnement universel MntGénmtique 2 ed Paris 1829 p 2122 125 COIECAO EDVCACaO EXPERI ENCIA E SENTIDO os espíritos e promover as capacidades populares Mas o que propõem é aperfeiçoar o embrutecimento ao aperfeiçoar as explicações Este é o círculo dos progressistas Eles querem arrancar os es píritos da velha rotina da dominação dos padres e dos obscurantis tas de toda sorte Para isso é preciso métodos e explicações mais racionais É preciso testar e comparar por meio de comissões e de relatórios É preciso empregar na instrução do povo um pessoal qua lificado e diplomado instruído nos novos métodos e vigiado em sua execução É preciso sobretudo evitar as improvisações dos incom petentes não deixar aos espíritos formados pelo acaso ou pela roti na que ignoram as explicações aperfeiçoadas e os métodos progres sistas a possibilidade de abrir escolas e de ensinar qualquer coisa de qualquer maneira É preciso evitar que as famílias lugares de repro dução rotineira e da superstição inveterada dos saberes empíricos e dos sentimentos mal esclarecidos assegurem a instrução das crian ças E preciso um sistema bem ordenado de instrução pública L pre ciso uma Universidade e um Grande Mestre Em vão dirseá que os gregos e os romanos não tinham Universidade nem Grande Mestre e que as coisas não iam assim tão mal No tempo do progresso não é preciso mais para os mais ignorantes entre os povos atrasados do que uma curta temporada em Paris para se convencerem que Ani tos e Meletos assinalaram desde então a necessidade de uma orga nização que regulasse 1 que é preciso explicar 2 o que é preciso explicar 3 como será preciso explicar Sem estas precauções bem se vê 1 que nossos sapateiros poderiam ostentarEnsino Uni versal junto a suas insígnias como se fazia em Roma e Atenas por falta de uma organização previdente 2 que o alfaiate pretenderá explicar as superfícies regradas sem prévio exame como se viu em Roma e que assim acontecerá o que se deve a todo preço evitar que as velhas explicações se transmitissem de geração em geração em detrimento das explicações aperfeiçoadas O aperfeiçoamento da instrução é assim antes de tudo o aper feiçoamento das coleiras ou antes o aperfeiçoamento da representa ção da utilidade das coleiras A revolução pedagógica permanente tor nase o regime normal pelo qual a instituição explicadora se racionaliza Enseignement universe Mathématequ es 2 ed Paris 1829 143 126 O emancipador e suas imitações sejustifica assegurando ao mesmo tempo a perenidade do princípio e das instituições do Velho Lutando por métodos novos pelo Ensino Mútuo de Lancaster os progressistas lutaram primeiramente para mostrar a necessidade de se terem melhores coleiras Sabeis que não aceitamos Lancaster e adivinhais porquê No entanto acabamos por vos permitir vosso Lancasteriano Sabeis por que É que a coleira ain da está lá Preferiríamos vêla em outras mãos Enfim não é preciso desesperar de nada enquanto houver coleira Vossa geometria aplica da não é tampouco de nosso gosto entretanto ela é formalmente aplicada 10 Permitiuse o Lancasteriano em breve vos seria permitido o ensino industrial Era uma coleira tão boa quanto qualquer outra não só porque podia fornecer instrução mas sobretudo porque podia levar à crença na ficção desigualitária Era um outro ardil que não se oporia ao mais antigo senão para melhor afirmar seu princípio o prin cípio de todos os ardis Dávamos voltas em torno do latim o instrutor escudeiro vai nos fazer dar voltas em torno das máquinas Se não se presta atenção o embrutecimento vai se tornar maior à proporção que for menos sensível e mais facilmente justificável Sobre a cabeça do povo Avancemos o Ensino Universal também pode tornarse um bom método integrado à renovação do embrutecimento um mé todo natural que respeita o desenvolvimento intelectual da criança ao mesmo tempo em que fornece a seu espírito a melhor das ginásti cas um método ativo que lhe concede o hábito de raciocinar por si própria e de enfrentar sozinha as dificuldades que forma a seguran ça da palavra e o sentido das responsabilidades uma boa formação clássica que ensina a língua dos grandes escritores e despreza o jar gão dos gramáticos um método prático e expeditivo que queima as custosas e intermináveis etapas dos colégios para formar jovens es clarecidos e industriosos prontos a se lançarem nas carreiras úteis ao aperfeiçoamento social Quem pode mais pode menos e um método capaz de ensinar o que se ignora permite ensinar facilmente Ibidem p 22 Ibidem p 21 127 COLEÇÃO EDUCACÃO EXPERI NcA E SENTIDO o que se sabe Bons mestres abrem escolas sob sua insígnia mestres experimentados como Durietz como ojovem Eugene Boutmy como M de Séprès antigo politécnico que transferiu sua instituição de Anvers a Paris e uma plêiade de outros ainda em Paris Rouen Metz ClermontFerrand Poitiers Lyon Grenoble Nantes Mar seille Sem falar nas instituições religiosas mas ainda assim es clarecidas como o estabelecimento do Verbo Encarnado onde M Guillard que viajou a Louvain desenvolve um ensino baseado no Co nhecete a ti mesmo como os seminários de Pamiers de Senlis e ou tros convertidos pelo incansável elo do discípulo Deshoullières Es sas instituições não nos referimos éclaro às cópias que proliferam se destacam pela exatidão com que seguem os exercícios do Méto do Calipso Calipso não Calipso não podia e em seguida as improvisaçõs as composições as verificações os sinônimos etc Em suma todo o ensino de Jacotot é seguido a não ser por um ou dois detalhes por exemplo aí não se ensina o que se ignora Mas não é ignorante quem quer e M Boutmy não pode ser culpado por conhe cer profundamente as línguas antigas nem M de Séprès por ser um matemático dos mais brilhantes Os prospectos não falam também da igualdade das inteli gências Mas essa é apenas como se sabe uma opinião do Funda dor Ele próprio nos ensinou a separar estritamente as opiniões dos fatos e a fundar qualquer demonstração somente sobre os últimos Para quê chocar previamente os espíritos céticos ou ainda não in teiramente convencidos com a brutalidade desta opinião Melhor mostrarlhes os fatos os resultados do método para demonstrar a força do principio É também por esta razão que não se expõe o nome de Jacotot Falase sobretudo de método natural método reconhecido pelas melhores cabeças do passado Sócrates e Mon taigne Locke e Condillac O próprio Mestre não disse que não há método Jacotot somente o método do aluno o método natural do espírito humano Para que então brandir seu nome como um es pantalho Em 1828 Durietz já havia prevenido o Fundador ele queria levantar o machado contra a árvore das abstrações mas ele não o faria à moda dos madeireiros Ele queria se impor discre tamente permitindose inclusive alguns sucessos ostensivos para 128 O emancippdor e suas imitações preparar o triunfo do método Ele queria chegar à emancipação in telectual por meio do Ensino Universal Mas a revolução vitoriosa de 1830 oferecia um palco bem mais amplo para esta tentativa Em 1831 a ocasião foi propiciada pelo mais moderno dos progressistas o jovem jornalista Émile de Girardin Ele tinha vinte e seis anos Era o neto do Marquês de Girardin que havia protegido o autor do Emilio Bastardo é bem verdade mas inaugura vamse tempos em que ninguém mais se envergonharia de seu nasci mento Ele podia sentir a chegada da nova era e de novas forças o trabalho e a indústria a instrução profissional e a economia doméstica a opinião pública e a imprensa Ele zombava dos latinistas e dos pe dantes Ele zombava dos jovens tolos que as boas familias da provín cia enviavam a Paris para cursar Direito e cortejar jovens mais ofere cidas Ele queria elites ativas terras fertilizadas pelas últimas descobertas da química um povo instruido sobre tudo o que pode con correr para sua felicidade material e esclarecido sobre a balança dos direitos dos deveres e dos interesses que faz o equilibrio das sociedades modemas Ele queria que tudo isso acontecesse rapidamente que aju ventude se preparasse por meio de métodos rápidos para se fazer o quanto antes útil à comunidade queria que as descobertas dos sábios e dos inventores logo penetrassem na vida dos ateliês dos lares e até nos lugares mais recônditos a fim de engendrar novos pensamentos Ele queria um órgão para difundir esses benefícios sem mais tardar É bem verdade que havia o Journal des connaissances usuelles de Lasteyrie Mas esse tipo de publicações era muito oneroso e assim fatalmente reservado ao público que dele não tinha qualquer necessidade Para que vulgarizar a ciência para acadêmicos e a economia doméstica para mu lheres do mundo Por isso ele lançou através de uma gigantesca cam panha de subscrições e de publicidade o Journal des connaissances utiles com uma tiragem de cem mil exemplares Para financiálo e prolongar sua ação ele fundou uma nova sociedade Chamoua sim plesmente Sociedade Nacional para a Emancipação Intelectual O preço dessa emancipação era simples As constituições tal como os edifícios precisam de um solo firme e nivelado dizia ele A instrução fornece um nível às inteligências um solo para as idéias j Journal de philosophie panémrtique t V 1838 p 279 129 CoIECAO EoucnÇAP ENFfciHaa E SENnoo A instrução das massas coloca em perigo os governos absolutos Sua ignorância ao contrário coloca em perigo os governos republicanos pois para revelar às massas seus direitos os debates parlamentares não esperam até que elas possam exercêlos com discernimento E a partir do momento em que um povo conhece seus direitos não há mais outro meio de governar além de instruílo O que todo gover no republicano precisa então é um vasto sistema de ensino gradu ado nacional e profissional que leve luz à obscuridade das mas sas que substitua todas as distinções arbitrárias que designe para cada classe seu nível para cada homem seu lugar Essa nova ordem era sem dúvida a da dignidade reconhecida da população trabalhadora de seu lugar preponderante na ordem social A emancipação intelectual era a inversão da velha hierarquia ligada ao privilégio da instrução Até ali a instrução havia sido o monopólio das classes dirigentes que justificavam sua hegemonia pelo fato bem conhecido de que as crianças do povo uma vez ins truídas não mais aceitavam o status de seus pais Era preciso inverter a lógica social do sistema A partir de então a instrução não seria mais um privilégio a falta de instrução é que seria uma incapacidade Era preciso para obrigar o povo a se instruir que em 1840 qualquer ho mem de vinte anos que não soubesse ler fosse declarado civilmente incapaz era preciso que lhe fosse imediatamente reservado um dos primeiros números do sorteio que condenavam ao serviço militar jo vens de pouca sorte Esta obrigação a pesar sobre o povo seria ao mesmo tempo uma obrigação contraída em seu favor Era preciso en contrar métodos expeditivos para que até 1840 toda juventude france sa soubesse ler Tal foi a divisa da Sociedade Nacional para a Eman cipação Intelectual Esparramai a instrução sobre a cabeça do povo vós lhe deveis esse batismo Junto às pias batismais se mantinha o secretário da sociedade rompido com a Sociedade dos Métodos admirador entusiasta do Ensino Universal Eugène Boutmy No primeiro número do Jornal ele prometia indicar métodos expeditivos para a instrução das mas sas Ele manteve sua palavra em um artigo intitulado O ensino por si próprio O mestre deveria lerem voz alta Calipso e o aluno repetir l der enooairtmrær Miles 3e année 1833 p 63 130 O emancipador e suas imitações Calipso em seguida separando bem as palavras Calipso não Ca lipso não podia etc O método se chamava Ensino Universal Natu ral em homenagem à natureza que ensinava ela própria seus filhos Um honorável deputado M Victor de Tracy havia instruído assim quarenta camponeses de sua comuna com tal sucesso que eles pude ram lhe escrever uma carta na qual registravam sua viva gratidão por terem sido introduzidos na vida intelectual Que cada correspon dente do Jornal fizesse o mesmo e logo a lepra da ignorância desa pareceria inteiramente do corpo social A Sociedade que pretendia estimular instituições exempla res interessouse igualmente pelo estabelecimento de M de Sé près Ela enviou seus comissários para examinar o novo método de autodidaxia que ensinava osjovens a refletir a falar e a raciocinar a partir dos fatos segundo o método natural que sempre foi o das grandes descobertas A situação do estabelecimento situado à Rue de Monceau num bairro parisiense renomado pelo seu ar deixa va hem pouco a desejar no que se refere à salubridade de sua ali mentação de sua higiene e de sua ginástica tanto quanto por seus sentimentos morais e religiosos Em três anos de ensino secundário e por um preço máximo de oitocentos francos por ano a Instituição comprometiase a tornar os alunos aptos a apresentaremse para qualquer exame de modo que um pai de família podia prever exa tamente o custo da instrução de seu filho calculando sua rentabili dade Nessas condições a Sociedade conferiu à Instituição de M de Séprès o título de Liceu Nacional Os pais que para lá enviassem seus filhos assumiam a responsabilidade de ler cuidadosamente os programas para determinar a carreira a que destinavam esses jovens Em contrapartida uma vez essa carreira determinada os comissários da Sociedade cuidariam para que a orientação desejada pelos pais fosse escrupulosamente seguida a fim de que o aluno aprendesse tudo o que poderia fazêlo distinguirse em sua profissão e que não aprendesse nada de supérfluo 1 Mas os comissários não tiveram infelizmente a possibilidade de levar muito além sua colaboração com a obra do Liceu Nacional Uma instituição agrícola bretã is lonroal der mnnaissaoes aîes 2e année n2 1832 p 1921 Ibidem 3 année p 208210 131 CoieGO EDVCACAO EPEBIfNCiR SENTIDO destinada a difundir os conhecimentos agronômicos e ao mesmo tempo regenerar uma parte dajuventude ociosa das cidades precipi tou a Sociedade Nacional para a Emancipação Intelectual em um abismo financeiro Mas ela ao menos havia semeado para o futuro Era um bom jornal o dos conhecimentos úteis Havíamos tomado vosso termo de emancipação intelectual e emancipávamos nossos as sinantes através de explicações Esta emancipação não oferece qual quer perigo Quando um cavalo recebe antolhos e é montado por um bom cavaleiro sabese onde vai Ele mesmo nada sabe mas podese estar tranqüilo por entre montes e vales ele jamais se desviará O triunfo do Velho Eis como o Ensino Universal e a própria expressão emancipa ção intelectual puderam ser colocados a serviço dos progressistas que trabalhavam eles próprios para maior benefício do Velho A divisão de trabalho se operava assim aos progressistas os métodos e patentes as revistas e jornais que entretinham o amor pelas explica ções pelo aperfeiçoamento indefinido de seu aperfeiçoamento ao Velho instituições e exames a gestão dos fundamentos sólidos da instituição explicadora e o poder de sanção social Por isso todas essas patentes de invenções que se chocam com o vazio do sistema explicador explicações de leitura escrita metamorfoseada línguas tornadas acessíveis quadros sinóticos métodos aperfeiçoados etc e tantas outras belas coisas copiadas em livros novos que oferecem novas explicações para os mais antigos o todo recomendado aos explicadores especializados de nossa época que se riem e com ra zão uns dos outros e de suas profecias Jamais como hoje em dia os donos de patentes foram merecedores de tanta lástima Eles são tão numerosos que quase não encontram um aluno que não tenha sua pequena explicação aperfeiçoada de modo que serão brevemente reduzidos a se explicarem reciprocamente suas respectivas explica ções o Velho zomba de suas brigas os excita nomeia comissões para julgálos contudo por mais que as comissões aprovem todos os aperfeiçoamentos ele jamais cede seu velho cetro a qualquer um Journal de Pemnmtipation intelkttuelle IV 18361837 p 328 132 O emancipador e suas imitações deles Divide et impera O Velho reserva para si os colégios as universidades e conservatórios e não concede aos outros mais do que patentes dizlhes que já é muito e eles acreditam Tal como o tempo o sistema explicador se alimenta de seus próprios filhos aos quais devora à medida que são produzidos uma nova explicação um novo aperfeiçoamento nascem e morrem em seguida para dar lugar a milhares de outros Assim se renovará o sistema explicador assim se preservarão os colégios de latim e as universidades de grego Gritarseá mas os colégios ficarão Zombarseá mas os doutíssimos e sapientíssimos continuarão a se saudar compenetrados em seus velhos costumes de cerimônia o jovem método industrial investirá diante dos maneiris mos científicas de seu avô no entanto os industriais empregarão ainda suas regras e seus compassos aperfeiçoados para construir o trono em que o Velho senil reinará sobre todos os ateliês Em uma palavra enquanto houver madeira sobre a terra os industriais farão cátedras explicadoras Eis como a vitória dos luminosos sobre os obscurantistas em andamento colaborou para o rejuvenescimento da mais antiga causa defendida pelos obscurantistas a desigualdade das inteligências E de fato essa divisão de papéis nada tinha de inconseqüente o que fundava a distração dos progressistas era a mesma paixão que funda qualquer distraçãoa opinião da desigualdade É bem verdade que a ordem social não obriga ninguém a acreditar na desigualdade nem impede qualquer um de anunciar a emancipação aos indivíduos e às familias Mas esse simples anúncio que os policiais jamais serão suficientes para impedir encontra também a resistência mais impe netrável a da hierarquia intelectual que não tem outro poder a não ser o da racionalização da desigualdade O progressivismo é a forma moderna desse poder purificada de toda mistura com as formas ma teriais de autoridade tradicional os progressistas não têm outro po der senão a ignorância a incapacidade do povo que embasa seu sa cerdócio Como sem abrir o abismo sob seus pés diriam aos homens do povo que não precisam recorrer a eles para serem homens livres e instruídos acerca de tudo que convém a sua dignidade Cada um t Enseignement universe Mathématiques 2 ed Paris 1829 p 191192 133 CoLEço EDUCAÇAO EXPERIENCIA E SENTIDO desses pretensos emancipadores tem seu rebanho de emancipados em que coloca sela rédeas e brida Todos se unem portanto para rejeitar o único método que não é bom o método funesto isto é o método da má emancipação o método o antimétodo Jacotot Os que calam esse nome próprio sabem o que fazem Pois esse é o nome que faz por si só toda a diferença que diz igualdade das inteligências e cava o abismo sob os pés de todos os provedores de instrução e de felicidade para o povo É preciso que o nome seja calado que o anúncio não se propague E que o charlatão o saiba de uma vez por todas Tu podes gritar por escrito os que não sabem ler não podem saber senão por nós o que imprimiste e seríamos bem tolos em anunciarlhes que eles não têm necessidade de nossas expli cações Se dermos lições de leitura a alguns continuaremos a empre gar todos os bons métodos jamais os que poderiam passar a idéia da emancipação intelectual Guardemonos de começar pela leitura das orações pois a criança que as conhece poderia acreditar que as teria adivinhado por si própria E sobretudo que elajamais descubra que aquele que sabe ler as orações pode aprender a ler sozinho todo o resto guardemonos dejamais pronunciar estas palavras emanci padoras aprender e relacionar O que mais do que tudo era preciso evitar era que os pobres soubessem que eles podiam se instruir por suas próprias capacida des que eles tinham capacidades essas capacidades que sucediam agora na ordem social e política aos antigos títulos de nobreza E a melhor coisa a fazer era instruílos isto é darlhes a medida de sua incapacidade Por toda parte se abriam escolas mas cm nenhum lu gar se desejava anunciar a possibilidade de aprender sem mestre ex plicador A emancipação intelectual tinha fundado sua política so bre um princípio não buscar penetrar as instituições sociais passar pelos indivíduos e pelas famílias Mas chegarase aunt momento em que esta separação que era a possibilidade da emancipação come çava a se tornar caduca Instituições sociais corporações intelectuais e partidos políticos vinham agora bater às portas das famílias se diri gir a todos os indivíduos para instruilos Até então a Universidade e Profil et philosophie pnnrcnsdgrre p 342 Profit etphilosophie pnnrcasligrre p 330331 134 O emancipador e suns imitações seu exame de admissão só controlavam o acesso a certas profis sões alguns milhares de advogados de médicos c de universitári os Todo o resto das carreiras sociais estava aberto àqueles que se haviam formado à sua guisa Não era preciso por exemplo bachare larse para ser politécnico Mas com o sistema de explicações aper feiçoadas instauravase também o de exames aperfeiçoados Des de então com a ajuda dos aperfeiçoadores o Velho bloqueava cada vez mais com seus exames a liberdade de aprender por outro meio além de suas explicações e pela nobre ascensão de seus graus A partir daí o exame aperfeiçoado representação exemplar da onisci ência do mestre e da incapacidade do aluno em jamais igualarse a ele se ergueria como poder incontornável da desigualdade das inte ligências sobre o caminho de quem pretendesse caminhar na socie dade por seus próprios pés A emancipação intelectual via assim suas defesas as falhas da antiga ordem inexoravelmente investi dos pelos avanços da máquina explicadora A sociedade pedagogizada Para isso todos conspiravam e tanto mais quanto mais que riam a república e a felicidade do povo Os republicanos têm por princípio a soberania do povo mas eles sabem perfeitamente que o povo soberano não pode ser identificado com a multidão ignorante e inteiramente entregue à defesa de seus interesses materiais Eles sa bem perfeitamente que a república significa igualdade de direitos e de deveres mas que ela não pode decretar a igualdade das inteligên cias E é claro que a inteligência de um camponês atrasado não é a mesma que a de um líder republicano Uns pensam que a desigualda de inevitável concorre para a diversidade social como a infinita va riedade de folhas concorre para a inesgotável riqueza da natureza Basta que ela não impeça que a inteligência inferior compreenda seus direitos e sobretudo seus deveres Outros pensam que o tempo pouco a pouco progressivamente atenuará esta deficiência causada por sé culos de opressão e de obscuridade Em ambos os casos a causa da igualdade da boa igualdade da igualdade não funesta tem o mesmo requisito a instrução do povo a instrução dos ignorantes pelos sábios 135 COIEÇAO EUUCAÇAO EXPERIENCIA E SENTIDO dos homens mergulhados em suas preocupações materiais egoístas pelos homens devotados de indivíduos fechados em seu particula rismo pela universalidade da razão e do poder públicos O que se denomina instrução pública isto é a instrução de um povo empírico programada por representantes do conceito soberano de povo A Instrução Pública é assim o braço secular do progresso o meio de equalizar progressivamente a desigualdade vale dizer de de sequalizar indefinidamente a igualdade Tudo sempre se sustenta em um só princípio a desigualdade das inteligências Admitido esse prin cípio não haveria em boa lógica senão uma conseqüência a ser dedu zida a direção de uma multidão estúpida pela casta inteligente Os republicanos e todos os homens de progresso sinceros sentem um salto no coração diante dessa conseqüência Todo seu esforço consiste em aceitar o princípio recusando a conseqüência É o que faz o eloqüente autor do Livro do povo M de Lamennais Sem dúvida reconhece honestamente os homens não possuem faculdades iguais 24 Mas o homem do povo deveria por esta razão ser condenado à obediência passiva ser reduzido ao nível dos animais Não pode ser assim Su blime atributo da inteligência a soberania de si distingue o homem da besta É certo que a repartição desigual desse sublime atributo põe em perigo a cidade de Deus que o predicador convida o povo a edificar Mas ela permanece possível se o povo souber servirse com sabedoria de seu direito conquistado O meio para que ele não seja depreciado o meio para que ele se sirva de seu direito com sabedo ria o meio para construir igualdade com a desigualdade é a instru ção do povo isto é a interminável compensação de seu atraso Tal é a lógica que se institui a da redução das desigualda des Quem consentiu com a ficção da desigualdade das inteligências que recusou a única igualdade que a ordem social poderia comportar só pode mesmo correr de ficção em ficção e de ontologia em corpora ção para conciliar povo soberano e povo atrasado desigualdade de inteligências e reciprocidade de direitos e deveres A Instrução Públi ca a ficção social instituída da desigualdade como atraso é a mágica que conciliará todos esses seres de razão E ela o fará ampliando ao l r livreeívpnepk Pads 1838 p 65 eJournaldephiosopinepanecaslùue t M 1838 p144 z Cit aproximada do Iivre dupeupk p 73 inJourna4k philasophiepanerartique p 145 136 O emancipador e suas imitações infinito o campo de suas explicações e dos exames que as controlam Nesse sentido o Velho sempre ganhará com as novas cátedras dos industriais e com a fé luminosa dos progressistas Contra isso nada mais há a fazer além de redizer sempre a esses homens supostamente sinceros que prestem mais atenção Mudai esta forma quebrai esta coleira rompei rompei todo pacto com o Velho Imaginai que ele não é mais imbecil do que vós Pensai sobre isso e dizeime o que vos parece 26 Mas como poderiam eles escutar o que se segue Como escutar que a missão dos luminosos não é esclarecer os obscurantistas Qual homem de ciência e de devoção aceitaria dei xar sua lucerna sobre o alqueire e o sal da terra sem sabor E como as jovens plantas frágeis os espíritos infantis do povo acreditariam sem o benfazejo orvalho das explicações Quem poderia compreender que o meio para eles de elevaremse na ordem intelectual não era aprender com os sábios o que ignoravam mas ensinar a outros igno rantes Este discurso um homem pode com muita dificuldade com preendêlo mas nenhuma capacidade jamais o entenderá Joseph Jacotot ele próprio nunca não o teria escutado sem o acaso que o fizera mestre ignorante Somente o acaso é forte o suficiente para derrubar a crença instituída encamada na desigualdade Bastaria no entanto umnada Bastaria que os amigos do povo por um curto instante fixassem sua atenção sobre esse ponto de partida sobre esse primeiro princípio que se resume em um sim ples e bastante antigo axioma metafísico a natureza do todo não pode ser a mesma do que a das partes O que se fornece de raciona Iidade à sociedade tomase aos indivíduos que a compõem E o que ela recusa aos indivíduos a sociedade poderá tomar para si mas jamais poderá devolverlhes Dáse com a razão o mesmo que com a igualdade que é seu sinônimo É preciso escolher entre atribuila a indivíduos reais ou à sua fictícia reunião É preciso escolher entre fazer uma sociedade desigual com homens iguais ou uma socieda de igual com homens desiguais Quem tem só um pouco de gosto pela igualdade não deveria hesitar os indivíduos são seres reais e a sociedade uma ficção Enselgnemenl universel Mathématiques 2 ed Paris 1829 p 22 137 CaIECAO EDUCACTAo EMPEIÈNCA E SENiIDO Bastaria aprender a ser homens iguais em uma sociedade desi gual é isto que emancipar significa Esta coisa tão simples é no entanto a mais dificil de compreender sobretudo desde que a nova explicação o progresso misturou de forma inextricável a igualda de e seu contrário A tarefa à qual as capacidades e os corações repu blicanos se consagram é construir uma sociedade igual com homens desiguais reduzir indefinidamente a desigualdade Porém quem to mou esse partido só tem um meio de Ieválo a tenho a pedagogiza ção integral da sociedade isto é a infantilização generalizada dos indivíduos que a compõem Mais tarde chamarseá a issofoonaçiio contínuacoextensividade entre a instituição explicadora e a soci edade A sociedade dos inferiores superiores será igual ela reduzirá suas desigualdades quando se houver transformado inteiramente em uma sociedade de explicadores explicados A singularidade a loucura de Joseph Jacotot foi a de pressentir o momento em que a jovem causa da emancipação a da igualdade dos homens estava em vias de se transformarem causa do progresso social E o progresso social era antes de qualquer outra coisa o progresso na capacidade de a ordem social ser reconhecida como ordem racional Essa crença só poderia se desenvolverem detrimen to do esforço de emancipação dos indivíduos razoáveis ao preço do sufocamento das virtualidades humanas contidas na idéia de igualda de Unia enorme máquina de promoção da igualdade pela instrução estava sendo constituída Tratavase da igualdade representada so cializadadesignaizada própria para ser aperteiçoada isto é retar dada de comissão em comissão de relatório em relatório de reforma em reforma até a consumação dos tempos Jacotot foi o único a pen sar esse ocultamento da igualdade sob o progresso da emancipação sob a instrução Entendamos bem seu século conheceu uma profu são de oradores antiprogressistas cuja lucidez os ares do tempo pre sente de desgaste do progresso obrigam a homenagear Porém tal vez seja honra excessiva eles simplesmente odiavam a igualdade Odiavam o progresso porque como os progressistas confundiam no com a igualdade Jacotot foi o único igualitário a perceber que a representação e a institucionalização do progresso acarretava a renúncia à aventura intelectual e moral da igualdade e que a instrução pública era o trabalho do luto da emancipação Um saber dessa ordem 138 O emancipador e suas imitações provoca uma horrorosa solidão Jacotot acostumouse a essa solidão Rejeitou qualquer tradução pedagógica e progressista da igualdade emancipadora Ele fez saber aos discípulos que escondiam seu nome sob a insígnia do método natural ninguém na Europa estava em condições de carregar esse nome o nome do louco O nome Jacotot era o nome próprio desse saber a uma só vez desesperado e irônico da igualdade dos seres razoáveis sepultada sob a ficção do progresso Os contos da panecástica Não havia nada a fazer senão manter a distância agarrada a esse nome próprio Assim Jacotot cuidou de colocar as coisas em seu devido lugar Para os progressistas que vinham vêlo reservava um crivo Quando eles se inflamavam por causa da igualdade ele lhes dizia suavemente podese ensinar o que se ignora Esse crivo mostravase infelizmente muito eficaz Era como apoiar sobre uma mola quejamais deixava de responder A palavra diziam eles unani memente era mal escolhida Havia ainda os discípulos dentre os quais uma pequena falange que incumbiase agora de carregar a bandeira face aos professores do Ensino Universal Natural Com eles procedia à sua maneira pacificamente Ele os dividia em duas classes a dos discípulos ensinadores ou explicadores do método Jacotot que buscavam conduzir os alunos do Ensino Universal à emancipação intelectual e os discípulos emancipadores que só ins truíam a partir da premissa da emancipação ou mesmo nada ensi navam contentandose em emancipar pais de família na medida em que lhes mostravam como ensinar a seus filhos o que ignoravam Está claro que nem por isso tinham o mesmo peso para ele que preferia um emancipado ignorante um só a cem milhões de sábios instruidos pelo Ensino Universal e não emancipados 7 Porém o pró prio termo de emancipação havia se tornado equivoco Após o fra casso do empreendimento de Girardin M de Séprès tomara o título LÉmancipation para seu jornal generosamente alimentado pelos melhores trabalhos dos alunos do Liceu Nacional A ele estava liga da uma Sociedade para a Propagação do Ensino Universal cujo 2 lnnrua rle Peruanrlpatiou inlelrtuel t III 18351836 p 276 139 COEEÇ20 EDuCAAO EPE1Ndn E SENTIDO vicepresidente defendia de forma bastante eloqüente a necessida de de professores qualificados e a impossibilidade de que pais de família pobres pudessem se ocupar eles próprios da instrução de seus filhos Era preciso marcar a diferença o jornal de Jacotot que seus dois filhos redigiam a partir do que ele ditava sua enfermidade o impedia de escrever ele era obrigado a lutar para sustentar uma cabeça que não mais queria se manter ereta este jornal portanto tomou o título de Jornal de Filosofia Panecástica À sua imagem seus fiéis criaram uma Sociedade de Filosofia Panecástica Desse nome ninguém tentaria apropriarse Sabemos o que isso significava em cada manifestação inte lectual há o todo da inteligência humana Opanecástico é um amante de discursos tal como o maligno Platão e o ingênuo Fedro Mas à diferença desses protagonistas de Platão ele não reconhecia uma hierarquia entre os oradores nem entre seus discursos O que lhe interessava ao contrário era buscar sua igualdade Tampouco ele esperava de qualquer discurso a verdade Pois a verdade se sente não se diz Ela fornece uma regra para a conduta do orador mas ela jamais se manifesta em suas frases O panecástico também não jul ga a moralidade dos discursos A moral que conta para ele é aquela que preside ao ato de falar e de escrever aquela da intenção de comunicar do reconhecimento do outro como sujeito intelectual capaz de compreender o que outro sujeito intelectual quer lhe di zer O panecástico se interessa por todos os discursos por todas as manifestações intelectuais com um só objetivo verificar se eles põem em ação a mesma inteligência verificar traduzindoos uns nos outros a igualdade das inteligências Isso supunha a adoção de uma atitude inédita em relação aos debates da época A batalha intelectual acerca do povo e de sua capacidade está na moda M de Lamennais publicara o Livre du Peuple M Lerminier saintsimoniano arrependido e oráculo da Revue des deux mondes havia denunciado a inconseqüência Mme George Sand havia por sua vez tomado a si a bandeira do povo e de sua soberania O Journal de philosophie panécastique analisa va cada uma destas manifestações intelectuais Cada qual pretendia trazer ao campo político o testemunho da verdade Tratavase de uma questão do interesse do cidadão mas ao panecástico ela de 140 O emancipador e suas imitações nada interessava O que lhe importava era a cascata de refutações era a arte que uns e outros empregavam para exprimiro que queriam dizer Ele mostrava como ao traduziremse eles traduziam mil ou tros poemas mil outras aventuras do espírito humano obras clássi cas como até mesmo o Barba Azul ou as réplicas proletárias da Praça Maubert Essa pesquisa não era um prazer de erudito Era uma filosofia a única que o povo podia praticar As velhas filosofias diziam a verdade e ensinavam a moral Elas supunham que para tanto era preciso ser muito sábio A panecástica não dizia a verda de nem pregava qualquer moral Além disto era simples e fácil como o relato que cada qual faz de suas aventuras intelectuais É a história de cada um de nós Qualquer que seja vossa especiali dade pastor ou rei podeis discorrer sobre o espírito humano A inte ligência está em ação em todos os ofícios ela pode ser encontrada em todos os degraus da escala social o pai e o filho ignorantes um e outro podem entreterse de panecástica O problema dos proletários excluídos da sociedade oficial e da representação política não era diferente daquele dos sábios e dos poderosos como esses últimos eles só podiam tornarse ho mens no sentido pleno da palavra pelo reconhecimento da igual dade A igualdade não se concede nem se reivindica ela se prati ca ela se verifica E os proletários não podiam verificála senão reconhecendo a igualdade de inteligência de seus líderes e de seus adversários Eles sem dúvida tinham interesse em lutar por exem plo pela liberdade de imprensa atacada pelas leis de setembro de 1835 eles deviam contudo reconhecer que para defendêla o ra ciocínio de seus defensores não dispunha nem de mais força nem menos do que dispunham de seus adversários para refutála Pre tendo dizem em resumo alguns que se tenha a liberdade de dizer tudo aquilo que se deve ter a liberdade de dizer Não quero respondiam em suma os outros que se tenha a liberdade de dizer tudo aquilo que não se deve lera liberdade de dizer O importante a manifestação da liberdade estava em outro lugar na arte igual que para sustentar essas posições antagônicas uns traduziam dos ou tros na estima nascida da comparação pelo poder da inteligência a Droit etphilosophie paneeasligne p 214 141 COLECAO EDJCnCAO EYGERIÉnCA E SErmoo que não cessa de se exercer no próprio seio da desrazão retórica no reconhecimento daquilo que falar pode querer dizer para quem re nuncia à pretensão de ter razão e de dizer a verdade ao preço da morte do outro Apropriarse dessa arte conquistar essa razão era isto que contava para os proletários É preciso ser homem antes de ser cidadão Qualquer que seja o partido que como cidadão ele possa tomar nessa luta como panecástico ele deve admirar o espíri to de seus adversários Um proletário expulso da classe dos eleitores e por motivo ainda mais forte da classe dos elegíveis não é obriga do a considerarjusto o que lhe parece como uma usurpação nem de amar os usurpadores Mas ele deve estudar a arte daqueles que lhe explicam como ele é despojado para o seu próprio bem 20 Nada havia a fazer senão persistir em indicar essa via extrava gante que consistia em identificar em cada frase em cada ato olado da igualdade A igualdade não era um objetivo a atingir mas um ponto de partida uma suposição a ser mantida em qualquer circuns tãnciu A verdade jamais falaria por si própria Ela jamais existiria sem a verificação sempre e em toda parte E isso não era um discur so a fazer ao povo mas apenas um exemplo ou antes exemplos a serem demonstrados em uma conversa Isso era uma moral do fra casso e dadistância a ser mantida até o fim com aqueles que quises sem partilhála Buscai a verdade e não a encontrareis batei à sua porta e ela não vos abrirá mas essabusca vos será útil para aprender a fazer I renunciai a beber dessa fonte mas não cesseis de buscar beber aí 1 Vinde e poetizaremos Viva a Filosofia Panecástica Ela é uma contadora de histórias que jamais chega ao fim de seus contos Ela se entrega ao prazer da imaginação sem ter qualquer conta a prestar à verdade que velada ela só enxerga por debaixo de seus disfarces Ela se contenta em admirar essas máscaras anali sálas sem se atormentar quanto ao semblante que está por debaixo O Velho jamais está satisfeito ele levanta uma máscara se regozija mas sua alegria dura pouco ele percebe rapidamente que a máscara que retirou cobria uma outra e assim até a consumação dos que buscam verdades A supressão dessas máscaras superpostas é o que 21 Ihroil rlghrloroghregtucWrque p 293 142 O emancipador e suas imitações se chama de história da filosofia Oh Que bela história Prefiro porém os contos panecásticos O túmulo da emancipação Assim se concluem as Miscelâneas póstumas de Filosofia Pa necóstica publicados em 1841 pelos filhos de Joseph Jacotot Vic tor o médico e Fortuné o advogado O Fundador havia morrido em 7 de agosto de 1840 Sobre sua lápide no Cemitério PèreLachaise os discípulos fizeram gravar o credo da emancipação intelectual Creio que Deus criou a alma humana capaz de se instruir por si própria e sem mestres Mas estas coisas decididamente não se escrevem nem mesmo sobre o mármore de uma tumba Alguns meses mais tarde a inscrição seria profanada A notícia da profanação foi publicada no Journal de lémancipation intellectuelle cuja responsabilidade Fortuné e Vic tor Jacotot haviam assumido Nunca é contudo possível substituir a voz de um solitário nem mesmo quando durante vários lustros com ele se colaborou intimamente De número em número avolu maramse no Journal os relatórios que M Devaureix advogado na Corte de Lion preparava acerca da atividade do Instituto do Verbo Encarnado que como estamos lembrados M Louis Guillard diri gia nessa cidade segundo os princípios que aprendera em sua via gem a Louvain o ensino deveria ser baseado no Conhecete a ti mes mo Assim o exame de consciência cotidianamente praticado pelas jovens almas dos pensionistas davalhes a força moral que conduzia ao sucesso de sua aprendizagem intelectual Os panecásticos puros e empedernidos sobressaltaramse com essa curiosa aplicação da doutrina emancipadora publicada no nú mero de setembro de 1842 Não era mais porém tempo de debate Dois meses após era a vez de o Journal de lémancipation intellec anelle silenciarse O Fundador havia predito que o Ensino Universal não vinga ria É bem verdade que havia acrescentado também que elejamais morreria t19é4éyer posthumes p 349331 143