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Cursos Gerais ·

Gestão Ambiental

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM ESTUDOS INTERDISCIPLINARES SOBRE MULHERES GÊNERO E FEMINISMO LETÍCIA WONS INTRODUZINDO O PRIMEIRO PRODUTO MENSTRUAL QUE NÃO ABSORVE NADA COLETORES MENSTRUAIS E TRANSFORMAÇÕES NAS ORDENS PRÁTICOSIMBÓLICAS DA MENSTRUAÇÃO Salvador 2019 Letícia Wons INTRODUZINDO O PRIMEIRO PRODUTO MENSTRUAL QUE NÃO ABSORVE NADA Coletores menstruais e transformações nas ordens práticosimbólicas da menstruação Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres Gênero e Feminismos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas na Universidade Federal da Bahia para obtenção de título de Mestra Orientação Professora Doutora Ângela Maria Freire de Lima e Souza Salvador 2019 Wons Letícia W865 Introduzindo o primeiro produto menstrual que não absorve nada coletores menstruais e transformações nas ordens práticosimbólicas da menstruação Letícia Wons 2019 165 f il Orientadora Ângela Maria Freire de Lima e Souza Dissertação mestrado Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e Ciências humanas Salvador 2019 1 Relações de gênero 2 Feminismo 3 Mulheres Menstruação 4 Mulheres na ciência I Lima e Souza Ângela Maria Freire de II Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e Ciências humanas III Título CDD 3054 LETÍCIA WONS INTRODUZINDO O PRIMEIRO PRODUTO MENSTRUAL QUE NÃO ABSORVE NADA Coletores menstruais e transformações nas ordens práticosimbólicas da menstruação Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres Gênero e Feminismos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas na Universidade Federal da Bahia para obtenção de título de Mestra Salvador 12 de dezembro de 2019 BANCA EXAMINADORA Professora Doutora Ângela Maria Freire de Lima e Souza Universidade Federal da Bahia UFBA Professora Doutora Izaura Santiago da Cruz Universidade Federal da Bahia UFBA Professora Doutora Cecília Maria Bacellar Sardenberg Universidade Federal da Bahia UFBA Dedico este trabalho à mulher que me deu a vida Minha mãe amada Santina AGRADECIMENTOS Pelos caminhos misteriosos que fazem as coisas acontecerem tais quais acontecem pelos fatores que vão se enroscando e dando sentido a cada próximo passo por ser entusiasta em analisar situações de viagem no tempo e acreditar apaixonadamente que não é possível mudar nada no passado porque o tempo não é linear e tudo o que se mudaria é exatamente o jeito que já aconteceu e não há alternativa imune a tal viagem apenas ignorância de tal feito enfim por encontrar fascinante beleza no poder e responsabilidade das decisões e dos aprendizados concentrome em expressar meus agradecimentos aos fatores que me trouxeram até a conclusão deste trabalho Com muito afeto aos ápices serenos de deslumbramento à exuberância cotidiana das nuvens coloridas ao nascer e deitar dos dias às ladeiras e assimetrias que tanto amo nesta cidade às pessoas que aqui vivem e me arrebatam desde o sotaque e muito além agradeço a Salvador o lugar que escolhi chamar de casa Agradeço a exatamente tudo que vivi nos últimos três anos inclusive as dores mais doídas inclusive a ausência de sensibilidade à dor Agradeço ao período em que me afastei do mestrado no qual não via sentido no mestrado nem na vida agradeço por me levar à busca de ajuda e por me fazer paciente e atenta confiante na sabedoria dos desenrolares alegre às reticências Agradeço à magia do tempo e sua fantástica relatividade Agradeço aos amores de minha vida aos amores de minha vida aos amores de minha vida minha mãe Santina meu pai Nelson minha irmã May e meu irmão Dudu os amores de minha vida Agradeço pela existência de cada um de vocês por mobilizarem verdades no meu peito Agradeço também à tecnologia que faz celulares serem uma realidade e me permitem estar pertinho de vocês mesmo com o coração carente da convivência diária Vocês são minha luz Só em digitar isso aqui já fico toda lacrimosa vocês sabem Agradeço à professora Ângela e aos malabarismos do universo que a fizeram ofertar a disciplina de Gênero e Ciência precisamente no meu primeiro semestre como aluna no PPGNEIM Agradeço por todas as vezes que expressou sua confiança em minha pessoa e no meu trabalho Agradeço pelo olhar tão carinhoso que tem sobre mim pois as minhas qualidades que te encantam são as mesmas que me davam senso de autenticidade desde a infância e é uma delícia ter alguém que me recorde delas Agradeço a Gabi minha parceira fiel nessa jornada de nos tornarmos mestras na vida soteropolitana uma das mulheres mais sábias e generosas que tenho a honra de conhecer Agradeço a J K Rowling que me despertou o amor pelos livros pela empatia e bondade pela imaginação e que me fez crente no poder das palavras Agradeço à vizinhança do Santo Antônio Além do Carmo que me recebeu nesta cidade ofereceume a mesa e me mostrou poesia em forma de lar Agradeço a Danilo que me apresentou à Yoga caminho ao qual me entrego e me dedico banhada em reverência a cada respiração Agradeço à oportunidade outrora inacreditável de morar por oito meses abraçada pelo mar e pelas árvores que subiam à minha janela foi o espaçotempo de minha necessária primavera Agradeço às amigues de Curitiba Lê Fer Rena Helen Lou pela presença em longos áudios ou nas breves visitas por caminharem comigo ao longo das diferentes etapas de quem me torno Agradeço a Ju imprescindível para a existência desta dissertação acompanhandome com destreza sensibilidade e respeito nas aventuras em sentir os sabores de cada dia Agradeço a Jaque e Pedro que disponibilizaram seus espaços para eu realizar os encontros desta pesquisa Agradeço a Cibele que me iniciou nos caminhos da ginecologia política Agradeço a Leona Chalmers que inventou essa coisinha maravilhosa que insiro na vagina todos os meses para recolher meu sangue Agradeço a todas as mulheres que ofereceram seu tempo voz e conhecimentos e contribuíram nas rodas de conversa que dão conteúdo a este texto Agradeço a todas as sensações que despertei nos alvoreceres de fevereiro deste ano Agradeço ao sol que me beija a pele e me faz feliz agradeço mil vezes ao sol agradeço ao sol todos os dias RESUMO O coletor menstrual é um objeto de silicone em formato de taça a ser inserido no canal vaginal para recolher o fluxo da menstruação Como o substantivo sugere ele coleta o sangue uterino ao invés de absorvêlo característica única entre os dispositivos menstruais Sua invenção remonta a 1937 atravessando diferentes momentos de tentativas de comercialização no Brasil foi somente na última década que conquistou um público consumidor A fim de compreender sua tardia emergência esta pesquisa tem como objetivo investigar as transformações nas ordens práticosimbólicas da menstruação que o uso do copinho vem promovendo Para tanto destaco dois elementos orientadores por um lado ele apresenta propriedades que demandam acuidade de percepção às características únicas dos corpos das pessoas que o utilizam e possibilita um contato inédito ao sangue menstrual invulnerado em cor cheiro textura e volume tensionando estigmas menstruais e processos correntes de alienação corporal Por outro a disseminação do coletor ocorre no Brasil a partir de redes de mulheres que constroem conhecimento através da troca de suas experiências num movimento horizontalizado que desafia normas de etiqueta menstrual imperativos de manter a menstruação sob a alcunha do segredado e rearticula forças na disputa pelo poder simbólico da menstruação Argumento que a partir do uso desse dispositivo estão ocorrendo transformações nos discursos considerados legítimos sobre corpo saúde sexualidade e autonomia principalmente no que concerne à autoridade médica e midiática frente à percepção corporal desenvolvida pelas usuárias do copinho Esta pesquisa está alinhada aos preceitos epistemológicos do feminismo perspectivista encarando criticamente os valores de objetividade racionalismo e fundacionalismo que ocultam o viés androcêntrico na produção de saber científico A fim de afinar posicionamento epistemológico metodologia e as qualidades próprias do assunto em investigação elenco como ferramenta de coleta de dados a técnica de grupos focais procurando acessar esse tipo de conhecimento em rede no momento mesmo da pesquisa Em três encontros com mulheres usuárias de coletor menstrual na cidade de Salvador investigo a difusão de novos valores e costumes acerca do sangue menstrual Palavraschave coletor menstrual menstruação epistemologias feministas ginecologia política gênero e ciência corpo ABSTRACT INTRODUCING THE FIRST MENSTRUAL PRODUCT THAT DOESNT ABSORB ANYTHING Menstrual cups and transformations in practicalsymbolic orders of menstruation Menstrual cup is a bellshaped silicon object designed to be inserted inside the vagina in order to gather menstrual fluids It collects uterine blood instead of absorbing it an unique feature among menstrual devices Its invention goes back to 1937 going through different moments in attempting to commercialize it in Brazil it was only on the last decade that the cup has conquered its own public Trying to understand this late emergency the aim of this research is to investigate transformations that the cup has been promoting in practicalsymbolic orders of menstruation To archieve that two main elements are focused first this device presents properties that demand acuity of perception to the unique body characteristics of the ones who use it and it also makes possible an unprecedented contact to menstrual blood unscathed in color texture smell and volume tensioning menstrual stigma and current body alienation processes Second the cups diffusion in Brazil occurs through womens networks that build knowledge exchanging experiences in a horizontal movement that defies menstrual etiquette norms imperatives of keeping menstruation under secrecy and rearticulates forces competing for menstruation symbolic powers I argue that through the usage of this device transformations in legit speeches about body health sexuality and autonomy are occurring especially in what concerns to medical and media authority confronted by body perception developed by cups users This research is aligned to epistemological precepts of feminist perspectivism facing critically objectiveness rationalism and fundacionalism values that hide androcentric bias in scientific knowledge production In order to tune epistemological positioning methodology and the own qualities of the subject in question I choose as data collecting tool the technique of focal groups looking for access this kind of networked knowledge in the very moment of research In three meetings with menstrual cup users in Salvador city I investigate the diffusion of new values and manners regarding menstrual blood Key words menstrual cup menstruation feminist epistemologies political gynecology gender and science body LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURA 01 Dobraduras para inserção do coletor menstrual 15 FIGURA 02 Meu coletor e minha menstruação 22 FIGURA 03 Ilustração de vulva e clitóris Corte transversal da glande do clitóris 42 FIGURA 04 Escultura vulva vagina e clitóris modelo didático 43 FIGURA 05 Fotografia do colo do útero cérvix e paredes vaginais realizada com espéculo no primeiro dia do ciclo menstrual 44 FIGURA 06 Anarcha Betsey e Lucy 53 FIGURA 07 Patente de saco catamenial 1867 68 FIGURA 08 Biografia de Chalmers em livro de sua autoria 69 FIGURA 09 Registro de patente do coletor Tassette 71 FIGURA 10 Outdoor do coletor Tassette em Times Square 72 FIGURA 11 Anúncio do coletor Tassaway 74 FIGURA 12 Coletores históricos Tassette Tassaway The Keeper e Instead 77 FIGURA 13 Anúncio do coletor Tassette enfatizando que o produto foi desenvolvido por uma mulher 78 FIGURA 14 Mooncup primeiro coletor produzido em silicone e Misscup primeiro coletor brasileiro 79 FIGURA 15 Coletores de fabricação brasileira primeiro semestre de 2019 respectivamente Inciclo Fleurity Korui Violeta Cup FreeCup e Lumma em três versões 80 FIGURA 16 Pinturas com sangue menstrual 133 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 12 2 MENSTRUAÇÃO POR UMA PERSPECTIVA EPISTEMOLÓGICA FEMINISTA 23 21 Sistema sexual ciência e crítica feminista 25 22 Ordens práticosimbólicas da menstruação 36 23 O que é menstruação Narrativas biológicas 49 3 INSERINDO O COPINHO COLETANDO DADOS 67 31 Breve histórico dos dispositivos menstruais 67 32 Escolha metodológica e percurso da pesquisa 80 33 Grupos focais adaptação desenvoltura e assertividade 87 331 Adaptação 88 332 Desenvoltura 99 333 Assertividade 112 4 SENTIDOS DA MENSTRUAÇÃO SABERES EM DISPUTA 125 41 Desenvolvendo percepção significados em fluxo 125 42 Redes de mulheres conhecimentos horizontalizados 140 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 154 REFERÊNCIAS 159 APÊNDICE 165 12 1 INTRODUÇÃO O título deste trabalho é uma referência a um anúncio publicitário do coletor menstrual Tassaway de julho de 19711 Hoje na maioria das vezes que converso com alguém sobre esse dispositivo há surpresa e incredulidade diante da informação de sua longevidade O copinho como é conhecido nacionalmente vem se consolidando como novo produto menstrual no Brasil na última década mas sua invenção é ainda mais remota que a data do anúncio A primeira vez que o coletor menstrual foi patenteado fabricado e comercializado remonta à década de 1930 Desde então houve diferentes tentativas de alcançar um público consumidor mas apenas ao fim dos anos 1980 ele se tornou um produto disseminado em território estrangeiro Desde que comecei a usar o coletor menstrual questiono os motivos dessa lacuna e esta dissertação é um esforço em investigar transformações nos valores e costumes acerca da menstruação a fim de compreender o recente ou tardio sucesso do copinho O coletor menstrual é um objeto maleável em formato de taça produzido em silicone medicinal ou mais raramente elastômero termoplástico borracha e látex2 Como sugere o substantivo ele é capaz de coletar o sangue menstrual diretamente no canal vaginal ao invés de absorvêlo o que acarreta em profundas diferenças em relação a outros dispositivos Sua originalidade abrange técnicas corporais MAUSS 2003 que são necessárias para adaptação a seu uso percepção das particularidades da própria anatomia força pélvica altura e posição do colo do útero e contato direto com o fluxo menstrual apreensão invulnerada de cor volume textura e cheiro do sangue uterino e secreções vaginais Além disso é um produto reutilizável com durabilidade de três a dez anos a depender do cuidado com sua higienização recomendase ferver o coletor em panelas esmaltadas ou recipientes de vidro ao início e fim de cada período Assim o copinho vai à contramão da indústria dos absorventes descartáveis 1 É possível encontrar a reprodução desse anúncio no Capítulo 3 página 72 2 Elastômero termoplástico TPE é um material polimérico que apresenta propriedades físicoquímicas semelhantes à borracha Todas as marcas de fabricação nacional utilizam apenas silicone medicinal metade delas possui certificação pela ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária Algumas marcas estrangeiras são produzidas nos demais materiais Disponível em httpscosmeticosanvisagovbrsgasfaces relatorioExternoconsultaExternaxhtml Acesso em nov 2019 13 e abre espaço para outras modalidades de dispositivos3 que exaltam valores de redução de danos ambientais e economia financeira4 Estimase que durante a vida fértil cada pessoa que faz uso de dispositivos menstruais descartáveis utiliza cerca de dez mil unidades uma média de vinte por ciclo gerando em torno de cento e cinquenta quilos de lixo individualmente Se considerarmos que há por volta de setenta milhões de pessoas menstruantes no país o número de toneladas de resíduos é realmente impactante Esse descarte não é passível de processo de reciclagem e abandonado ao ambiente leva mais de cem anos para se decompor enquanto libera toxinas no solo Além do absorvente em si também há de se levar em conta os componentes extras como a embalagem e serviços a logística de transporte das matérias primas e do produto que também geram volumoso impacto ambiental Por ser fabricado majoritariamente em silicone material quimicamente inerte o coletor não contém substâncias potencialmente danosas em contato à mucosa genital que exposta a elementos externos os envia diretamente à circulação sanguínea O consumo de produtos químicos tóxicos via cutânea pode ser até mais nocivo que sua ingestão oral pois não há metabolização desses elementos Os absorventes descartáveis contêm muitos componentes que podem desencadear problemas ao organismo Bisfenol A e Bisfenol S químicos plásticos que possuem estrutura análoga ao estrogênio podem causar disrupção endócrina e afetar o desenvolvimento embrionário flatatos substâncias capazes de tornar plásticos rígidos em plásticos maleáveis podem causar problemas reprodutivos câncer de mama e disrupção endócrina dioxinas geradas a partir do processo de branqueamento dos absorventes com cloro além de carcinogênica pode afetar o sistema imunológico e também causar disrupção hormonal agrotóxicos como o glifosato o cultivo do algodão matéria prima básica dos absorventes descartáveis é responsável por cerca de vinte por cento do consumo de pesticidas no planeta o glifosato pode ser carcinogênico rayon ou seda artificial pode causar ressecamento da proteção natural da mucosa vaginal desencadeando alergias comichões e corrimentos neutralizadores de odor e perfumes poliéster polietileno polipropileno parabenos também podem causar disrupção hormonal e ser carcinogênicos 3 Concomitante ao sucesso do coletor há um resgate aos bioabsorventes ou absorventes de pano que ganham novos designs Atualmente outro produto reutilizável que está conquistando consumidoras é a calcinha menstrual que possui diferentes camadas de fino tecido de tecnologia absorvente e dispensa o uso dos descartáveis indicando durabilidade de cerca de dois anos Algumas marcas nacionais de coletor menstrual também vendem esses produtos 4 O preço médio de um coletor menstrual atualmente varia entre quarenta a noventa reais Considerando seu uso por até dez anos o valor é muito menor que o gasto mensal com descartáveis durante o mesmo intervalo de tempo 14 acarretando principalmente em câncer de mama além disso os absorventes internos notoriamente criam ambiente propício para a proliferação da bactéria Staphylococcus aureus que pode gerar um processo inflamatório grave conhecido como Síndrome do Choque Tóxico Ainda infecções como candidíase de recorrência podem estar associadas ao uso dos absorventes externos ou internos devido ao abafamento que ocasionam facilitando o alastramento de fungos É impressionante como quase todas as mulheres com as quais converso sobre dispositivos menstruais têm alguma queixa aos absorventes e invariavelmente narram suas complicações como algo que acontece apenas com elas eu tenho alergia à absorvente é uma frase a ser revista pois aloca o problema nos corpos e não no produto Mesmo aquelas que não identificam sinais imediatos como coceiras vermelhidão e infecções podem estar sofrendo consequências de disrupção hormonal como cólicas intensas durante a menstruação ou sintomas de inchaço sensibilidade nas mamas fadiga e alterações bruscas de humor devido ao excesso estrogênico durante a fase lútea prémenstrual5 As qualidades de segurança de matériaprima redução de danos ambientais e economia financeira que o coletor menstrual apresenta são motivos atraentes para adesão ao dispositivo mas é a partir de sua utilização e dos processos de adaptação que ele demanda que o coletor realmente vem conquistando usuárias fieis Como pretendo mostrar neste trabalho o uso do coletor é capaz de suscitar novas maneiras de relacionarse com o sangue menstrual Comecei a aprender isso através de minha própria experiência com o copinho e faço essa afirmação assumindo o que Donna Haraway 1995 p 29 chama de objetividade corporificada e portanto responsável Nesse sentido considero imprescindível a explicitação de minha posição como usuária e entusiasta do coletor Admitir a pertinência de minha experiência com esse objeto é dar a chance ao público leitor de situar meu posicionamento enquanto produtora do conteúdo deste texto é também valorizar modos de apreensão de conhecimento que escapam à lógica discursiva reveladas num processo de sociologia carnal 5 O estrogênio em excesso na fase lútea não é um problema desencadeado exclusivamente pelos absorventes muitos cosméticos e perfumes são compostos por parabenos substância de estrutura similar ao estrógeno O consumo de alimentos de origem animal produzidos pela agroindústria também pode colaborar para o desequilíbrio endócrino De modo geral há um problema ambiental com o resíduo de drogas de hormônios sintéticos expelidas pela urina que afetam sistemas hidrográficos numa contaminação em larga escala 15 demonstração em ação das possibilidades e virtudes distintivas de uma sociologia carnal que relata por completo o fato de que o agente social é um animal que sofre um ser de carne e sangue nervos e vísceras habitado por paixões e dotados de conhecimentos incorporados e habilidades e que isso também é verdadeiro para os sociólogos Isso significa que precisamos trazer o corpo do sociólogo de volta ao jogo e tratar o seu organismo inteligente não como obstáculo para a compreensão como definiria o intelectualismo no qual a nossa concepção comum da prática intelectual se baseia mas como vetor de conhecimento do mundo social WACQUANT 2011 p 18 Uso exclusivamente o coletor há seis anos e integro o grupo de early adopters REIS RIBEIRO 2016 ou adotantes precoces6 visto que a fabricação nacional do produto remonta ao ano de 2010 e sua expansão mais expressiva aconteceu somente a partir de 2015 À época em que conheci o coletor as informações acerca dele ainda eram escassas e apenas duas pessoas de meu convívio o utilizavam aprendi a manejálo com o suporte do manual de instruções que acompanhava o produto e a partir daí fui observando os problemas cogitando soluções e experimentando diferentes ângulos e dobras para conseguir alocálo confortavelmente Por ser maleável o coletor permite várias dobraduras para realizar sua inserção depois de introduzido ele se abre e volta ao formato original em taça FIGURA 01 DOBRADURAS PARA INSERÇÃO DO COLETOR MENSTRUAL7 6 Early Adopters Visionários ou Adotantes Precoces que assim como os Inovadores compram novos conceitos de produtos no início de seus ciclos de vida mas diferente dos inovadores os visionários não são apaixonados por tecnologia Eles entendem e apreciam os benefícios de uma nova tecnologia mas relacionam esses benefícios aos seus interesses NEVES 2014 REIS RIBEIRO 2016 p 32 7 Essas dobras são nomeadas respectivamente C S E lábia lábia béllis caracol triângulo clave de sol 7 7 duplo ou tulipa diamante meio diamante origami punch down meio punch down 16 Fonte Korui Disponível em httpswwwkoruicombr15formasdedobraroseucoletormenstrualcom fotosreais Acesso em nov 2019 Uma vez bem posicionado ele não é sentido no interior do corpo e forma uma vedação no canal vaginal que impede vazamentos No primeiro ciclo que tentei usálo senti dor desconforto e o sangue vazou enquanto eu dormia desisti logo no primeiro dia No segundo ciclo aconteceu a mesma coisa No terceiro eu nem tentei usar No quarto compreendi que o que me machucava era o cabinho que fica na parte inferior do coletor e resolvi cortálo ele era incongruente à minha anatomia e eu tinha segurança em conseguir retirar o coletor sem sua ajuda pois fui entendendo que o copinho ficava baixo bem próximo à entrada do canal vaginal e que se eu me agachasse e fizesse movimento de expulsão com a musculatura pubococcígea eu o alcançava facilmente8 Do mesmo modo aprendi que sua introdução para mim ficava mais fácil se estivesse em pé com uma perna elevada apoiada numa cadeira ou no vaso sanitário Além disso descobri que a dobra triângulo se abria perfeitamente no formato de minha vagina e consegui verificar que o coletor estava totalmente desdobrado no interior do canal passando meu dedo por todo o seu redor Desde então venho usando o coletor em absolutamente todos os dias que produzo menstruação Uso o mesmo copinho desde 2013 e ainda pretendo passar mais alguns anos em sua companhia até ser necessário comprar um novo Nunca mais senti desconfortos e nenhuma gota de sangue vazou somente nos processos de retirada para higienização eu vejo e toco meu fluxo e nesses momentos o contato com minha menstruação é visceral lambuzo meus dedos sinto seu cheiro fresco mesclado aos aromas da flora vaginal observo os coágulos de sangue inteirinhos e noto as texturas de muco acompanhando o conteúdo líquido Percebo todas as camadas e tons de minha menstruação A isso eu nunca havia tido acesso antes do coletor É importante ressaltar que essas técnicas de ajuste dizem respeito a meu corpo outras pessoas encontrão outras dobraduras diferentes posições para inserção e retirada e avaliarão a necessidade e conforto do cabinho9 Esse é um aspecto fundamental sobre o coletor 8 Para retirar o coletor é preciso desfazer a vedação introduzindo um dedo na vagina e apertando a ponta inferior do copinho para liberar passagem de ar Ele pode permanecer dentro do corpo por um período de oito a doze horas inclusive durante o sono ou na prática de exercícios físicos 9 Cada corpo reage de uma maneira ao coletor e inclusive há casos em que o uso não é recomendado na presença de ISTs infecções sexualmente transmissíveis e condições de desequilíbrios da flora vaginal como candidíase e vaginose principalmente enquanto se faz uso de medicamentos tópicos em forma de pomada na vagina No que concerne aos desequilíbrios da flora o coletor pode ser um aliado à prevenção pois diferentemente dos absorventes descartáveis não interfere na umidade natural da vagina nem absorve as secreções de proteção produzidas no canal Casos de cistite e infecção urinária talvez impeçam o uso do 17 menstrual o processo de descoberta e percepção do próprio corpo Desde 2015 quando estava começando a formular um projeto de pesquisa para seleção no programa de pós graduação venho acompanhando grupos online de discussão sobre coletor menstrual nas mídias digitais10 numa postura de participação observante WACQUANT 2011 O maior desses grupos intitulado Coletores Brasil menstrual cups11 possuía cerca de quarenta e cinco mil membras quando me inscrevi e atualmente são mais de oitenta e três mil Destaco que uma reunião tão expressiva de pessoas a dialogar sobre menstruação é definitivamente inédita principalmente considerando os imperativos de manter os assuntos desse sangue sob a postura do segredado FÁVERI VENSON 2007 A partir da participação nesses espaços nas mídias digitais acessei diversos depoimentos de experiências muito diferentes à minha conhecendo outros impasses dúvidas e soluções para o uso do coletor Eu imediatamente fiquei fascinada com a profusa comunicação que se dava nesse meio e a maneira como dezenas de milhares de mulheres ajudavam umas às outras a conhecer o copinho e a si mesmas Acompanhei diariamente a comunicação desenvolvida por essas redes e por mais que em meu uso pessoal já estivesse devidamente adaptada às técnicas e conhecimentos que o coletor demandava ainda assim dedicava horas em leitura de diálogos entre aquelas mulheres que conversavam sobre seus fluxos dividiam descrições detalhadas de seus canais vaginais exprimiam dúvidas e forneciam dicas auxiliavam umas às outras a fazer a melhor escolha de marca modelo e tamanho de acordo com as características únicas de seus corpos instruíam diferentes maneiras de higienizar seus produtos relatavam conversas e até confrontos com profissionais da saúde que desconheciam ou desaconselhavam o dispositivo e partilhavam histórias cotidianas de seus ambientes familiares de estudos ou trabalho onde precisavam gerir o uso do coletor O que foi mais prontamente evidente nesse meio era a coletor uma vez que o objeto pode fazer pressão contra a uretra já sensível O coletor é contraindicado para sangramento puerperal ou pósabortamento Também não é aconselhado no caso de doenças inflamatórias pélvicas A situação de útero retrovertido não intefere no uso do coletor a curva de adaptação é a mesma daquelas que tem o útero em posição regular exigindo em ambos os casos percepção da posição do cérvix Usuárias de dispositivo intrauterino podem usar o copinho desde que tenham cuidado em sua retirada desfazendo bem a vedação antes de puxálo para fora Fatores que não impedem o uso do coletor mas devem ser avaliados de acordo com o conforto de cada menstruante incluem endometriose vaginismo e ectopia cervical Além disso evidentemente pessoas que escolhem se abster de qualquer tipo de penetração não encontrarão no coletor um dispositivo viável 10 Menstrual activism actualizes demands made visible since the second wave of feminism in the 1960s and 1970s with a new third wave gaze that also incorporates internet and the social networks as well as discussions about intersections with ethnicracial LGBT and class related social movements among many others Bobel 2010 MANICA RIOS 2016 p 16 11 Facebook Disponível em httpswwwfacebookcomgroupsColetoresBrasilMenstrualCups Acesso em maio 2019 18 adesão apaixonada dessas mulheres ao dispositivo com incontáveis relatos sobre como o copinho vinha afetando irrevogavelmente seus sentidos sobre menstruação Se a princípio optavam pelo coletor como uma alternativa aos absorventes descartáveis ao longo do uso reconheciam tantas vantagens que muitas vezes o consideravam não apenas superior aos absorventes mas até mesmo fora de comparabilidade são dispositivos com propostas demandas experiências e efeitos absolutamente diferentes O fato dessas repercussões só virem a ocorrer mais de setenta anos após a invenção do coletor despertou a curiosidade de meu olhar enquanto cientista social Uma explicação exclusivamente econômica não me parecia satisfatória alguns poderiam argumentar que é evidente que um produto com tão longa durabilidade fosse preterido pela indústria de higiene em relação aos descartáveis que geram tanto lucro Porém a partir de tão abundante troca de saberes entre mulheres nas mídias digitais eu depreendia que muitos fatores sociais culturais e históricos marcavam essa lacuna A partir de minha trajetória de descobertas com meu corpo não apenas no que concerne à menstruação mas inclusive decidi me alinhar a epistemólogas feministas como Jaggar 1997 Farganis 1997 Berman 1997 Fausto Sterling 1985 e Haraway 1995 para investigar os paradigmas que sustentam a recente emergência do copinho e também aqueles que impediram sua consolidação outrora O feminismo perspectivista conduz as reflexões que aqui apresento ciente da potência das conexões parciais O eu cognoscente é parcial em todas suas formas nunca acabado completo dado ou original é sempre construído e alinhavado de maneira imperfeita e portanto capaz de juntarse a outro de ver junto sem pretender ser outro Eis aqui a promessa de objetividade um conhecedor científico não procura a posição de identidade com o objeto mas de objetividade isto é de conexão parcial Estou argumentando a favor de políticas e epistemologias de alocação posicionamento e situação nas quais parcialidade e não universalidade é a condição de ser ouvido nas propostas a fazer de conhecimento racional São propostas a respeito da vida das pessoas a visão desde um corpo sempre um corpo complexo contraditório estruturante e estruturado versus a visão de cima de lugar nenhum do simplismo HARAWAY 1995 p 2630 Definitivamente não pretendo dissimular um olhar distanciado às experiências de usuárias de coletor menstrual tampouco presumo que minha percepção tem valor de análise social por si só Porém reconheço que ela constitui o guia através do qual sou capaz de formular perguntas Meu principal objetivo é investigar transformações nas ordens prático 19 simbólicas da menstruação SARDENBERG 1994 que o uso do coletor vem instigando Para tanto destaco dois objetivos específicos analisar as características particulares do coletor menstrual que demandam percepção e proporcionam contato ao corpo e à menstruação de uma maneira que nenhum outro dispositivo o faz nesse esforço avaliarei as transformações nos estigmas menstruais e nos processos de alienação corporal já apontados YOUNG 2005 como operantes nas sociedades ocidentais onde o paradigma orientador são os preceitos da ciência moderna examinar a disseminação do coletor no Brasil a partir de redes de mulheres que constroem conhecimento através da troca de suas experiências num movimento horizontalizado que desafia normas de etiqueta menstrual YOUNG 2005 e imperativos de manter a menstruação sob a alcunha do segredado FÁVERI VENSON 2007 assim irei ponderar sobre a rearticulação de forças na disputa pelo poder simbólico da menstruação SARDENBERG 1994 principalmente no que concerne à autoridade médica e midiática diante da percepção e saberes desenvolvidos pelas usuárias do copinho Para buscar respostas realizei uma revisão da literatura acadêmica acerca da menstruação em estudos produzidos em sociologia antropologia história biologia design e comunicação a maior parte de meus achados são trabalhos em língua estrangeira evidenciando a lamentável lacuna de pesquisas brasileiras sobre menstruação nas ciências humanas Esta dissertação é um passo para mitigar essa falta e espero que inspire outros trabalhos Ao lado dos textos acadêmicos também consultei reportagens de revistas e jornais assim como acervos de museus online dedicados à menstruação ou à patente de dispositivos menstruais Ao longo dos últimos quatro anos realizei participação observante em grupos de discussões sobre coletor menstrual nas mídias digitais nas redes sociais das principais marcas nacionais de copinho assim como nas dinâmicas em páginas e perfis voltados a coletores e ginecologia principalmente nas plataformas Facebook e Instagram Entre 04 e 06 agosto de 2017 participei da 2ª Imersão em Autoformação Ginecológica facilitada por Cibele Cê educadora popular na Casa AmarEla no bairro de Itapuã Essa imersão me iniciou nos movimentos latinoamericanos de ativismo por ginecologia 20 autônoma12 e abriu um panorama para me aproximar de outras iniciativas de difusão de saberes contrahegemônicos no que concerne à saúde e sexualidade13 No mês de março de 2018 entre os dias 02 e 04 busquei novamente participar de um encontro com Cibele desta vez na Casa Guió no Rio Vermelho A Oficina de Ginecologia Política foi uma oportunidade de consolidar os conteúdos que havia acessado no ano anterior e principalmente experimentar mais uma vez a potência maravilhosa que é integrar uma roda de mulheres partilhando histórias emoções e conhecimentos sobre seus corpos Agradeço calorosamente à oportunidade de conhecer Cibele pois com ela pude alicerçar muitas ideias que pairavam em meu peito há tempos A referência de Margie Profet fundamental na construção do primeiro capítulo desta dissertação foime apresentada por ela nessas oficinas A ginecologia política é um propósito pelo qual me apaixono Precisamos reconhecer esse espaço que durante muito tempo foi escondido de nós para conseguir explorálo livremente indagálo a partir de uma perspectiva própria isenta de medos tabus preconceitos moral ou padronizações médicas compreender a história que os órgãos genitais carregam pelo mundo e a nossa própria e peculiar história O que você reconhece dos seus genitais Que nome você dá a eles Você sente vergonha O que te disseram sobre essas partes quando você era pequena SAN MARTÍN 2015 p 47 Por fim na investida de dialogar presencialmente com outras usuárias de coletor menstrual decidi trabalhar com o método de grupos focais articulando três encontros na cidade de Salvador em janeiro deste ano Os diálogos concebidos nessas reuniões dão conteúdo às reflexões que levanto e me colocam em comunicação a outras visões sobre um tema que me é tão íntimo Contei com a participação de doze mulheres que em profundidade 12 Ginecologia autônoma preza por formular mecanismos de consentimento informado em quaisquer decisões que tomemos sobre nossa saúde e sexualidade Assim como práticas de ginecologia natural não pretende substituir a ginecologia convencional enquanto especialidade médica a intenção é estimular percepção corporal autonomia no cuidado atenção e registro de sinais físicos mentais e emocionais ao longo do ciclo cultivando autorresponsabilidade e protagonismo na gestão de nossos corpos Defender ginecologia autônoma não é descartar levianamente a clínica médica e os saberes consolidados nesse campo mas incitar condutas que tensionem a hierarquia médicopaciente e preparem um olhar alerta às imbricações entre as instituições de saúde e as indústrias farmacêutica e cosmética Tratase principalmente de promover informações seguras sobre direitos reprodutivos e sexuais e disseminar práticas de acompanhamento e leitura dos sinais corporais Ginecologia autônoma não reivindica uma autonomia liberal individualizada ao contrário firmase sobre o princípio de que autonomia se constrói coletivamente na troca de saberes entre mulheres e compartilhamento de nossos processos e reflexões 13 O trabalho de Beatriz Sabô cientista política e mestranda em bioética é atualmente uma de minhas grandes inspirações brasileiras nesse sentido Com o projeto Vulva Política ela vem utilizando ferramentas das mídias digitais e facilitando oficinas presenciais para promover discussões sobre direitos sexuais e reprodutivos em caminhos de autonomia O projeto está disponível em httpsvulvapoliticacom Acesso maio 2019 21 partilharam suas impressões sobre o copinho Saliento que os resultados dessas conversas não devem ser lidos de modo a engessar uma definição singular sobre quem são essas figuras que usam coletor mas servem para apontar caminhos de transformação nos valores e discursos operantes nas ordens práticosimbólicas da menstruação A média de idade das participantes desses encontros é de trinta e um anos e a maioria possui ensino superior completo inclusive algumas com pósgraduação Aponto desde já a sugestão de futuras pesquisas que contemplem um público ainda mais jovem que é bastante expressivo na adesão ao dispositivo Para encaminhar o desdobramento deste trabalho indico o percurso dos assuntos apresentados O primeiro capítulo é voltado a identificar o panorama vigente das ordens práticosimbólicas da menstruação relacionando discursos científicos e valores de senso comum Nele aponto a inextricabilidade entre a explicação biológica sobre o sangue menstrual baseada numa ideia de falência e os processos de alienação corporal corroborados pela etiqueta menstrual que deprecia a menstruação como substância abjeta Assim quero estabelecer o pano de fundo em relação ao qual os enunciados e experiências acerca do coletor agora se erigem No segundo capítulo apresento uma descrição do histórico dos dispositivos menstruais ao longo do século XX detalhando os momentos em que houve tentativa de comercialização dos coletores assim como a emergência e consolidação dos produtos descartáveis Em seguida justifico minhas decisões metodológicas e exponho o percurso de constituição dos grupos focais Por fim trago ao texto as palavras das mulheres que contribuíram nesta pesquisa analisando suas falas com o auxílio de três termos que qualificam tanto o conteúdo quanto a dinâmica de cada encontro No terceiro capítulo investigo sentidos da menstruação em termos de capacidades sensoriais de aprendizagem despertadas a partir do uso do coletor e também em termos de avaliação dos rumos que vêm tomando os valores e comportamentos acerca do sangue menstrual Também perscruto a disputa de saberes em torno da menstruação principalmente considerando a relevância de redes de mulheres articuladas em discussões sobre corpo saúde e autonomia Para concluir elaboro considerações finais onde indico alguns limites e potências dos ativismos menstruais assim como sugestões de pesquisa nesse campo Desejo acionando as mais sinceras e poderosas energias de meu coração que este trabalho proporcione momentos de reflexão instigação de curiosidade busca por aprofundar confirmar ou enfrentar informações aqui sugeridas introspecção de mergulho em cada trajetória pessoal e ânimo de agência para as pessoas que vierem a lêlo O grande propósito 22 dessa jornada a qual me dedico é partilhar e proliferar esses assuntos que tanto me movem e que sei que conduzem potências profundas Espero que seja uma leitura fértil e prazerosa reconheço que me expresso num estilo um tanto truncado ao adicionar caminhos paralelos de narrativa em notas de rodapé assim também é minha linguagem oral portanto indico sossego na leitura Que a ginecologia política se expanda no Brasil e que este texto inspire outras acadêmicas e cientistas a se engajarem nas pesquisas em gênero ciência e corporalidade Amém FIGURA 02 MEU COLETOR E MINHA MENSTRUAÇÃO14 Fonte Imagem autoral dez 2019 14 Registro após doze horas de uso do coletor no primeiro dia de ciclo menstrual O útero produz em média trinta a oitenta mililitros de menstruação a cada ciclo 23 2 MENSTRUAÇÃO POR UMA PERSPECTIVA EPISTEMOLÓGICA FEMINISTA O que é menstruação Essa pergunta conduz as reflexões deste capítulo Um fenômeno corriqueiro e inescapável na vida da vasta maioria das mulheres15 não alcançou interesse notável na produção acadêmica nacional nas áreas das humanidades é inquietante para mim a escassez de pesquisas atualizadas sobre o tema principalmente no que se refere às percepções cotidianas das mulheres brasileiras sobre seus períodos menstruais Tal como qualquer outro fenômeno fisiológico o menstruar é investido de significados crenças e condutas específicas sendo assim vivido e percebido de diferentes maneiras entre as épocas e sociedades Além disso menstruar também se mostra como um fator estruturante em torno do qual se constroem noções culturais sobre diferenças de gênero atribuindo características próprias ao que se entende por feminino e masculino Mas será suficiente investigar a menstruação como um fenômeno natural sobre o qual se inscrevem atributos culturais Afinal que natureza é essa Como aprendemos o que é este mecanismo fisiológico que nos faz sangrar mensalmente Qual é a explicação biológica para a menstruação A biologia assim como qualquer outro ramo científico é um conhecimento histórico e socialmente localizado Uma intrépida tradição de epistemólogas feministas consolidou em seu escopo fortes críticas ao caráter androcêntrico e racista da Ciência Moderna indicando como suas bases de pensamento carregam pressupostos autoilusórios nos quais ideais de objetividade distanciamento neutralidade universalismo fundacionalismo e racionalidade negligenciam e rejeitam o engajamento responsável pelo conhecimento produzido As críticas feministas à ciência mostram como linguagem metáforas objetivos e procedimentos científicos operam de modo a corroborar as relações de poder instituídas na sociedade 15 Toda vez que utilizar o termo mulheres neste texto estou me referindo a mulheres que menstruam Não ignoro que há mulheres que não compartilham a experiência da menstruação ou então que há pessoas que não se identificam enquanto mulheres mas que menstruam também Pessoas menstruantes é uma saída razoável para promover inclusão de gênero mas ao longo da redação desta dissertação me vi muitas vezes amarrada pelas prescrições generificantes da língua portuguesa Optei por manter a palavra mulheres ou o adjetivo feminino para me referir a esses corpos que menstruam principalmente pela carga histórica dos discursos científicos aqui apresentados e também porque essa era a autoidentificação das usuárias de coletor menstrual que colaboraram com participação nesta pesquisa Porém saliento que a análise da percepção da menstruação pode e deve ser estendida para além da cisgeneridade e que no estágio atual do debate sobre estratégias de linguagem ainda não é possível encontrar uma resposta devidamente inclusiva 24 Entendida como objetiva baseada em métodos rigorosos e replicáveis e portanto tidos como imparciais a ciência é a ferramenta mais poderosa de legitimação de ideias de que dispomos A preciosidade do pensamento científico é justamente sua abertura à refutação porém sabemos que o status de verdade científica é comumente interpretado como verdade incontestável uma vez que a própria lógica subjacente à ciência separa irreconciliavelmente sujeito e objeto investigador assim mesmo no masculino e mundo presumindo que a realidade tem uma estrutura ou natureza objetiva independente e não afetada pela compreensão humana ou por suas perspectivas JAGGAR BORDO 1997 p 9 A noção de distanciamento que se estabelece com essa postura reforça uma relação de autoridade entre investigador e fenômeno observado reiterando as afirmações produzidas pela pesquisa como comprovações de alguma realidade incólume Dessa forma imaginase um mundo abundante de fatos a ser descobertos e investigados a separação rígida entre ciência e natureza acompanhada das outras dicotomias rígidas e generificantes sobre as quais o pensamento científico se sustenta16 nos remete a uma concepção de fatos puros intocados verdadeiros Sondra Farganis argumenta que a presunção de objetividade sugere que existe um método racional de investigação o método científico que pode ser utilizado independentemente do contexto social ou dos fenômenos que estão sendo investigados que qualquer bom cientista bem treinado e honesto pode aplicar esse método neutro bem definido ao objeto que está sendo investigado e obter dados objetivos não tendenciosos que os fatos dados são fatos os resultados relatados são inflexíveis imutáveis e não afetados por interesse pessoal A especificidade das condições sob as quais os dados foram obtidos não se mantém pois eles se tornam generalizados e consolidados como fatos sólidos FARGANIS 1997 p 255 Meu interesse ao indagar o que é menstruação certamente se dedica a perscrutar as regras significados rituais e convenções simbólicas evocadas em nossa sociedade no que 16 Prenhe da razão dualista cartesiana característica do pensamento iluminista tal estruturação é baseada em uma lógica binária construída a partir de pares de opostos por exemplo sujeitoobjeto mentecorpo razãoemoção objetividadesubjetividade transcendenteimanente culturanatureza ativopassivo etc Para as feministas o ponto chave é que essas dicotomias se constroem por analogia com base nas diferenças percebidas entre os sexos e nas desigualdades de gênero Assim os conceitos de sujeito mente razão objetividade transcendência cultura dentre outros que estruturam os princípios da Ciência Moderna foram identificados com o masculino ao passo que os demais termos das dicotomias objeto corpo emoção subjetividade imanência natureza etc sobre os quais os primeiros se impõem hierarquicamente fazem parte do que historicamente se construiu como o feminino SARDENBERG 2002 p 95 25 concerne ao sangue menstrual e sujeitos menstruantes Para tanto não quero partir da premissa de que a menstruação é um fato objetivo do corpo explicado de antemão às imbricações sociais como se os atributos culturais se inscrevessem sobre um fenômeno natural autoevidente Ao contrário acredito que a própria explicação fisiológica também possui uma narrativa cujo pano de fundo coincide com os valores hegemônicos da sociedade que produz tal conhecimento Assim acompanho a sugestão da antropóloga Daniela Manica 2002 p 4 em tomar a menstruação como um conceito desessencializála a fim de perceber os diferentes sentidos que este conceito toma nas enunciações e as relações com outras questões que surgem nas falas sobre menstruação Além de questionar o que é menstruação pensando nas ordens práticosimbólicas SARDENBERG 1994 a partir das quais o fluxo menstrual é percebido e vivenciado também quero examinar o que é menstruação no que se refere à sua explicação biológica ou seja questionando em que termos e sob quais pressupostos o conhecimento científico sobre menstruação é construído e disseminado Procuro neste capítulo considerar as imbricações entre saber científico e senso comum principalmente porque o imaginário de fatos sólidos atribuído à ciência é informado por discursos pejorativos sobre o sangue menstrual ao mesmo tempo em que os ratifica 21 SISTEMA SEXUAL CIÊNCIA E CRÍTICA FEMINISTA A ciência é uma forma de discurso está sujeita a definições de termos delineação de normas e formulação de critérios no sentido daquilo que vale para o conhecimento e de quem é considerado como autoridade Quando olhamos a ciência dessa forma somos encorajados a enfocar as normas que determinam se algo é verdadeiro ou falso e as condições nas quais um conjunto de normas prevalece sobre outro Também nos tornamos capazes de ver que os discursos são sempre políticos isto é dependem de quem escreve o texto que estabelece as fronteiras e determina os valores FARGANIS 1997 p 228 O modelo sustentado pelas ciências biomédicas no qual se inclui os dizeres científicos sobre a menstruação é um desenvolvimento relativamente recente vinculado à emergência do 26 campo da endocrinologia e da bioquímica Cecília Sardenberg 1994 p 336 nos lembra de que tão recente é a medicalização do sistema sexual quanto a concomitante transferência de controle de seus cuidados para o domínio masculino o deslocamento do parto domiciliar assistido por parteiras e doulas para o parto hospitalar protagonizado por médicos obstetras em sua maioria homens é exemplo disso Precisamos considerar que o conhecimento científico sobre os órgãos sexuais das mulheres é informado a partir do projeto colonial que suprime saberes dissidentes à lógica racionalista da epistemologia moderna As práticas e valores que guiam saberes tradicionais difundidos geracionalmente por mulheres em diferentes contextos culturais são menosprezados e descartados perante o presunçoso olhar branco e androcêntrico justificado por critérios irresponsáveis de objetividade distanciada As percepções das mulheres sobre os próprios corpos e os conhecimentos produzidos coletivamente são reprovados nos esquemas de legitimação das verdades ocidentais Desde a perseguição medieval àquelas que curavam suas congêneres através de conhecimentos empíricos e autônomos à instituição religiosa até o empreendimento genocida e colonizador que desmantelou esquemas de organização e transmissão de saberes de diversos povos estabelecese para as mulheres a interdição dualista entre sujeito e corpo Para perscrutar a variação histórica da ideia de sexo no pensamento médico filosófico e político apresento a reflexão sobre como diferentes epistemes sustentam diferentes modelos da biologia do sistema sexual no imaginário científico Laqueur 2001 apresenta os caminhos históricos pelos quais percorre a compreensão ocidental sobre sexo trazendo como ponto essencial os séculos XVIII e XIX quando há uma profunda mudança que não apenas inverte o que se pensava sobre sexo até então como também inscreve valores sobre feminilidade e masculinidade atrelados às noções de sexo Antes do século XVIII o modelo que imperava era o do sexo único entendiase as anatomias associadas às mulheres e aos homens como se fossem uma só distinguindose apenas pela interioridade e exterioridade Toda a produção de modelos anatômicos e as preocupações médicas e científicas trabalhavam com a ideia de que as mulheres carregavam em si um aparato genitalsexual semelhante ao dos homens porém invertido É como se toda a genitália masculina fosse recolhida para dentro e os órgãos eram então pensados de modo espelhado Nesse sentido estabeleceuse por exemplo analogias entre pênis e clitóris lábios e escroto ovários e testículos Alguns termos utilizados à época fazem referência direta a essas analogias as tubas uterinas nomeadas como canais deferentes ou os ovários chamados de testículos femininos 27 Sob tal esquema de modo geral homem e mulher constituíam um só ser com uma ligeira e bem aparente inversão de posição de seus órgãos Laqueur começa a identificar essa tendência desde o pensamento na Grécia Antiga principalmente em Aristóteles passando pelos escritos de Galeno até chegar ao Iluminismo quando um ideal de sujeito universal racional e contratualista requeria uma figura sem gênero Ele mostra como esse sujeito é sim generificado pois por mais que o modelo de sexo único se estabelecesse sobre uma noção de semelhança há uma inescapável hierarquia que compõe um eixo cuja causa final é masculina Esse problema fica evidente no momento em que Laqueur estuda as ilustrações de anatomia em tratados médicos históricos e contemporâneos e nos mostra como esses modelos exemplificam os modos de pensar as intenções e preocupações de determinada época e lugar Ele ressalta que nos modelos anatômicos a figura evocada é sempre um corpo masculino as ilustrações que representassem uma mulher só apareciam na medida em que se pretendia mostrar sua diferença em relação ao modelo de ser humano o homem Partese do princípio de que o corpo humano é masculino e o corpo da mulher só é retratado quando necessário remeter àquilo que é nãohomem A partir disso podemos ver como o modelo de sexo único por mais que se constitua a partir de certa ideia de semelhança invertida ainda assim produz um escalonamento entre masculino universal e feminino contrário Desde a obra de Simone de Beauvoir 1980 no fim da primeira metade do século passado as teorias feministas reconhecem a categoria do Outro como fundamental na análise sobre a construção da noção de mulher na filosofia ocidental Toda a maneira de pensar a anatomia até então levava à ideia de que mulheres eram essencialmente homens mas num grau abaixo faltandonos força e intensidade de calor vital tratavase de um homem imperfeito inferior e internalizado A partir do século XVIII as concepções sobre sexo e anatomia passam a mudar radicalmente e deixando o modelo de sexo único a lógica do modelo de dois sexos se erige É importante frisar que essa transição não se dá por inovações tecnológicas ou avanços da medicina para que a mudança ocorra todo o paradigma que dá sentido ao pensamento científico precisou passar a operar sobre novas bases e isso só acontece por conta de novas demandas sociopolíticas O mundo era outro a episteme que orientava os saberes era outra17 Esta sociedade que então produz 17 Para explorar esse argumento podemos acompanhar Michel Foucault 2007 em As Palavras e as Coisas Tecendo uma crítica à história das ciências e à história das ideias Foucault desenvolve uma análise que não se pauta na continuidade do saber e na causalidade entre diferentes tipos de pensar Ele nega a suposição de que condições materiais promovem determinados tipos de pensamento ou que entre pensamentos distintos em épocas diferentes um seja tributário daquele que lhe é anterior Foucault ao longo de uma extensa argumentação em sua arqueologia do saber demonstra que há autonomia entre pensamentos que 28 conhecimento científico é uma sociedade pautada em ideais igualitários republicanos e não pode mais conviver com a contradição entre a ideia de sexo único e a evidente desigualdade social entre homens e mulheres requerse pois que haja uma separação inconciliável entre o ser masculino e o ser feminino É assim que o modelo de dois sexos emerge e se estabelece por conta de uma sociedade que precisava manter mulheres fora da esfera pública burguesa que se consolidava e para tanto respaldavase em argumentos biológicos que afirmavam e afirmam até hoje que sexo masculino e sexo feminino são fenômenos essencialmente opostos A afirmação era a de que os próprios papéis sociais dos homens e das mulheres estavam baseados na natureza graças ao que seus corpos ditavam Nas palavras de um teórico do século XIX a tentativa de alterar a relação atual entre os sexos não é uma revolta contra alguma lei arbitrária instituída por um déspota ou uma maioria não é uma tentativa de romper o jugo de uma mera convenção é uma luta contra a Natureza uma guerra travada para inverter precisamente as condições sob as quais não apenas o homem mas todas as espécies mamíferas atingiram seu atual desenvolvimento BAGEHOT apud FEE 1976 190 MARTIN 2006 p 73 Nesse contexto são empregadas justificativas naturalistas para a condição social das mulheres a anatomia sexual distinta serve como ferramenta para estabelecer limites de reivindicações de espaços de diferentes ordens Por exemplo desde o momento em que o discurso científico veicula como plausível a ideia de que mulheres têm seus comportamentos passivamente induzidos por seus órgãos sexuais o útero tornase alvo de acusações e é visto como órgão volúvel responsável por insensatez e incapacidades Antes sob o modelo de sexo único reprodução era pensada como se a ovulação fosse dependente de estimulação do coito e do orgasmo feminino assim como se observava que homens precisavam ejacular para ocorrer uma gravidez admitiase que o prazer das mulheres também era imprescindível no processo A partir do modelo de dois sexos a ovulação passou a ser entendida como mecanismo espontâneo que tem um ciclo próprio e separado de atividade sexual o interesse que se forma acerca do útero e suas propriedades cíclicas é um discurso que vai cada vez mais afirmando costumamos imaginar como contínuos como sendo um o desenvolvimento do outro A possibilidade lógica dos conhecimentos se deve antes à episteme em que estão inseridos do que ao desenvolvimento temporal das ideias ou da acuidade racional e técnica pela qual são produzidos Para Foucault não é porque nos racionalizamos cada vez mais que pudemos desenvolver as ciências que compreendemos hoje essas ciências não são possíveis a partir de condições materiais ou históricas que as permitam mas a partir de um determinado pano de fundo de pensamento que lhes dá sentido e que permite que pensemos as coisas que pensamos A isso Foucault denomina a priori histórico um princípio orientador Em suas palavras é aquilo que numa dada época recorta na experiência um campo de saber possível define o modo de ser dos objetos que aí aparecem arma o olhar cotidiano de poderes teóricos e define as condições em que se pode sustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como verdadeiro FOUCAULT 2007 p 219 29 mulheres enquanto seres temperamentais passivos sujeitas a mudanças periódicas imprevisíveis e inconstantes não poderiam então participar de atividades públicas que exigiriam concentração linear de acordo com os valores racionalistas que vieram a reger a nova episteme Toda a analogia que antes poderia ser feita entre corpo e fluidos de homens e mulheres passou a ser inconcebível o corpo das mulheres tornouse território de culpas e inépcia a menstruação seria o sinal forte e externo de toda a perturbação que útero e ovários18 causariam nesse novo ser feminino Analisando a emergência da ginecologia enquanto especialidade médica no século XIX Fabíola Rohden 2002 demarca o campo moralizador no qual esses conhecimentos nasciam Muitas vezes as teses sobre menstruação ou mesmo sobre puberdade feminina caracterizam a vida da mulher a partir das passagens que sofre em função da preparação exercício e perda da capacidade reprodutiva Não há nada equivalente para o homem ou seja a vida masculina não é problematizada pela medicina a partir da capacidade ou não de reprodução como acontece com as mulheres a constituição desse ramo da medicina está atrelada à crença de que o sexo e a reprodução são mais fundamentais para a natureza da mulher do que para a do homem A ginecologia teria legitimado essa visão Mais do que isso é a crença na singularidade do corpo feminino como determinado à reprodução que possibilitou a formação dessa especialidade que definiu as mulheres como um grupo particular de pacientes e um tipo distinto na espécie humana É nessa perspectiva que a ginecologia constituiuse com pretensões muito mais amplas do que o simples tratamento das doenças femininas Ela partiu do estudo das próprias diferenças sexuais Uma das suas proposições era a ideia de que essas diferenças não estavam contidas nos órgãos genitais mas na totalidade fisiológica e psicológica dos indivíduos os médicos se ocupavam com a tarefa de encontrar evidências da inferioridade feminina É certo que eles também se esmeravam em descrever a doçura e as virtudes morais da mulher mas ao mesmo tempo multiplicavam as suas patologias os seus desregramentos causados em última instância pelo predomínio do seu sistema genital A mulher segundo eles era governada pela sua fisiologia a qual era inerentemente patológica ROHDEN 2002 p 105 115116 Assim colocado podemos observar que a ciência não apenas investiga o corpo mas também o cria cognoscitivamente aquilo que costumamos entender como natural e fixo é 18 No final do século XIX era comum a retirada cirúrgica de órgãos saudáveis a fim de curar patologias comportamentais Histeria e desejos sexuais excessivos eram motivos para remoção dos ovários Laqueur indica ainda uma interessante contradição Se a mulher fosse castrada ficaria masculinizada da mesma forma que homens castrados se tornariam efeminados a ovariotomia fazia com que as mulheres cessassem de menstruar e acarretava outras mudanças nas características sexuais secundárias que as tornavam mais semelhantes aos homens Por outro lado a retirada dos ovários também tornava a mulher mais feminina ou pelo menos mais como os defensores da operação achavam que elas deviam ser LAQUEUR 2001 p 260 grifo meu Atualmente podemos considerar que ovariotomia e histerectomia são substituídas por tratamentos com pílulas adesivos anéis e injeções de hormônios sintéticos as políticas de regulação de comportamento das mulheres pela autoridade médica permanecem FAUSTOSTERLING 1985 30 uma construção em acordo com a conjuntura dominante19 Os modelos anatômicos com os quais nos deparamos em livrostexto de medicina e biologia são representações imbrincadas no pano de fundo de pensamento de seu contexto social Se num momento anterior a Igreja era capaz de definir e assegurar posições sociais entre homens e mulheres no Ocidente desta vez é o conhecimento biológico que vai garantir tais hierarquias através de um discurso improvavelmente contestado por ser entendido como objetivo e neutro As representações produzidas pelas ciências biológicas suscitam uma noção de corpo estável e ahistórico no momento em que lançam mão de descrições compreendidas como separadas da agência e intenção de quem as elabora e do contexto no qual esses modelos são formulados É preciso pensar o corpo enquanto estruturante e estruturado pela cultura enquanto receptáculo de símbolos culturais mas também como produtor de sentido MALUF 2001 Laqueur está argumentando que fatos biológicos são produtos de representações sociais e que relações sociais muitas vezes se sustentam e se justificam ao aludir a certas características assumidas como incontestavelmente por sua natureza fundantes da ordem social A visão dominante desde o século XVIII remete a dois sexos estáveis e distintos que por suas características anatômicas e fisiológicas delimitam pertencimentos e funções nas esferas política econômica e cultural Assim se cria todo um imaginário de sexos opostos e este modelo não denota uma relação de igualdade ou desigualdade mas de total diferença e incomensurabilidade Acompanhando debates contemporâneos entre profissionais da ginecologia no que concerne à supressão do sangramento uterino a partir de drogas de hormônios sintéticos Daniela Manica 2002 compila argumentos médicos que atualizam a dinâmica entre conhecimento científico e manutenção de relações de poder Um exemplo é o discurso de Eliezer Berenstein médico obstetra que se posiciona contrariamente ao uso de drogas andrógenas por ele denominadas hormônios masculinos como método contraceptivo e como base de sua justificativa elenca ciclicidade hormonal como fator definidor e imprescindível de constituição das mulheres A notória responsabilização exclusiva de 19 Fabíola Rohden 2002 p 121 apresenta exemplo do fundacionalismo presente na ciência moderna ou seja presunção da investigação de fatos sólidos naturais ressaltando a consonância entre ideais estéticos historicamente contextualizados e a produção científica em vigência No caso do século XIX A imagem médica da beleza feminina se confundia com a representação da boa esposa e mãe produtora de muitas crianças Sua feminilidade se refletiria em um corpo arredondado volumoso seios generosos ancas desenvolvidas qualidades apropriadas à maternidade Os médicos constatavam impressionados como a beleza ideal das mulheres é delineada pela natureza em virtude da função primordial que lhes cabe E era a partir dessas evidências fornecidas pela natureza que a medicina deveria se orientar Era o modelo da mãe que deveria ser usado para pensar o equilíbrio físico mental e moral da mulher A questão é que esses médicos esqueciam que a definição de beleza que eles pregavam e que eles preferiam acreditar que nada mais era do que uma expressão da natureza consistia no fundo em uma reafirmação das suas próprias convicções 31 mulheres pelo trabalho doméstico e de cuidados constituindo jornada dupla entre trabalho remunerado e nãoremunerado é assim essencializada pelo ginecologista É a ciclicidade propiciada pela variação hormonal a cada mês uma das responsáveis pela maior adaptabilidade e criatividade inerentes ao sexo feminino tais como cuidar da casa dos filhos e do trabalho tudo praticamente ao mesmo tempo Não quer dizer que para usufruir de todas as vantagens proporcionadas pela múltipla ação hormonal é preciso menstruar como fenômeno de eliminação de sangue mas sim ciclarse mensalmente apanágio da feminilidade BERENSTEIN 2001 25 apud MANICA 2002 11 Se esse tipo de pérola sexista ainda é exaustivamente comum em discursos científicos pareceme interessante ponderar sobre as reverberações das teorias feministas no que concerne aos usos da ciência suas metas linguagem e valores Indagando qual foi o impacto do feminismo na ciência desde as formulações críticas das epistemologias feministas Evelyn Fox Keller 2006 analisa e expõe os efeitos das ideologias de gênero no esquema abstrato subjacente aos modos de pensar nos campos tradicionais do trabalho acadêmico principalmente na área das ciências naturais e as construções de novas narrativas científicas que se distanciam de um viés androcêntrico Um dos exemplos que a autora perscruta é o que se chama de efeitos maternos na fertilização20 onde ela demonstra como núcleo e citoplasma aparecem nas pesquisas de biologia como tropos para macho e fêmea espermatozoide e óvulo mente e corpo respectivamente e como são qualificadas e hierarquizadas as partes da célula de acordo com as representações sociais generificadas sobre gametas21 Até bem recentemente o espermatozoide era descrito como ativo vigoroso e autoimpelido o que lhe permitia atravessar a capa do óvulo e penetrar o óvulo ao qual entregava seus genes e onde ativava o programa de desenvolvimento Por contraste o óvulo seria passivamente transportado ou varrido através da trompa de falópio até que assaltado penetrado e fertilizado pelo espermatozoide O ponto a ressaltar não é que se trata de uma descrição sexista 20 Efeitos maternos agora se referem a aquelas influências de longo prazo sobre a biologia da progênie e mesmo sobre a evolução da espécie resultando em algum aspecto do comportamento ou fisiologia maternos Por essa definição ampliada o papel do óvulo permitindo ou iniciando a fertilização pode ser descrito como um efeito materno como também pode ser descrito e o é o papel do citoplasma originário do óvulo no zigoto em desenvolvimento KELLER 2006 p 25 21 Keller demonstra que a disputa de proeminência entre as qualidades de núcleo e citoplasma foi orientadora do encaminhamento da Biologia do Desenvolvimento ao longo do século XX quando o Discurso de Ação do Gene se sobrepôs às pesquisas de embriologia atribuindo à genética primazia causal e caráter de agência 32 é claro que é mas que os detalhes técnicos que elaboram essa descrição foram pelo menos até os últimos anos impressionantemente consistentes o trabalho experimental forneceu descrições químicas e mecânicas da motilidade do espermatozoide de sua aderência à membrana do óvulo e de sua capacidade de efetuar a fusão das membranas A atividade do óvulo suposta não existente a priori não requeria qualquer mecanismo e tal mecanismo não foi encontrado As mais recentes pesquisas sobre o tema enfatizam rotineiramente a atividade do óvulo na produção de proteínas ou moléculas necessárias à aderência e penetração FOX KELLER 2006 p 17 O argumento da autora é que ao revestir o óvulo de características atribuídas ao feminino de acordo com valores dominantes na sociedade com destaque à questão da passividade22 não somente toda a descrição da fecundação recorre a um vocabulário repleto de representações de gênero como também a própria condução da pesquisa é absolutamente regida por tais pressupostos Não se encontra respostas para perguntas que não são feitas23 Se feminilidade é sinônimo de passividade e se o óvulo é uma célula feminina por que haveria de se pensar em descobrir mecanismos de atividade nessa célula Os conhecimentos são priorizados ou descartados de acordo com os interesses de quem produz ciência governos indústrias agências de fomento Se esses espaços não são ocupados por pessoas interessadas nessas questões essas questões nunca chegam a se tornar temas de pesquisa Para que haja pessoas interessadas é preciso incentivar e proporcionar acesso à diversificação dos perfis de pessoas realizando ciência de acordo com marcadores sociais raça gênero orientação sexual região e principalmente transformar os paradigmas de pensamento que possibilitam as elucubrações das pessoas em sociedade de modo que elas tenham a chance de formular tais questões Mais uma vez não se trata de avanço tecnológico para o desenvolvimento científico mas de mudanças epistemológicas que orientam as bases do pensamento nas ciências 22 Desde a ideia de que o papai planta uma sementinha na mamãe como se a potência de uma nova vida se devesse apenas ao gameta paterno até expressões como eu fui o espermatozoide vencedor novamente como se a informação genética de um novo ser estivesse contida apenas nessa célula reiterase na linguagem cotidiana tais preconceitos científicos 23 Um exemplo notório de ignorância sistemática nos estudos biológicos é a questão do orgasmo feminino e a estrutura do clitóris A partir da argumentação freudiana da passagem do orgasmo clitoriano para um inventado orgasmo vaginal marcando um suposto amadurecimento psíquico das mulheres o entendimento anatômico desse órgão exclusivamente voltado ao prazer foi amplamente negligenciado ao longo do século XX A descrição completa da anatomia clitoriana a partir de pesquisas com dissecção de cadáveres foi realizada apenas em 1998 pela urologista australiana Helen OConnell que relata em reportagem para Melissa Fyfe 2018 sua indignação perante os livrostexto utilizados como referência em cursos de medicina Para acompanhar essa discussão recomendo o documentário Clitóris Prazer Proibido França 2004 apresentado pelo canal GNT e disponível em httpsyoutubeWmcu2mYZdRY Acesso em set 2018 E também o curta Orgasmo Feminino da série de documentários Explicando produzida pela rede de streaming Netflix Disponível em httpswwwnetflixcomtitle80216752 Acesso em set 2018 33 Considerese por exemplo que o trabalho sobre efeitos maternos dos genes e da recuperação citoplásmica na Drosophila começou no início dos anos 70 sendo mais tarde levado a ponto notável por Christiane NüssleinVolhard e seus colegas Esse trabalho ao estabelecer o papel crítico desempenhado pela estrutura citoplásmica do óvulo antes da fertilização é amplamente considerado como central para o recente renascimento da Biologia do Desenvolvimento Mas não dependeu de novas técnicas Em verdade Ashburner diz que ele poderia ter sido realizado 40 anos antes se alguém tivesse tido a ideia Tudo o que ele requeria era alguma genética padrão um gene mutante e um microscópio de dissecação tudo disponível na década de 1930 Então por que não foi feito antes Ashburner diz que ninguém teve a ideia mas isso não é exato Ao contrário sugiro o que faltou foi motivação Esses experimentos são extremamente difíceis e demorados seria preciso ter confiança de que valiam o esforço Ou posto de outra maneira não havia campo em que a ideia pudesse ter deitado raízes Enquanto se acreditasse que a mensagem genética do zigoto produz o organismo que o citoplasma é um mero substrato passivo por que se dar tanto trabalho Na década de 1970 porém o discurso da ação do gene já começava a perder terreno Vários tipos de mudanças acima e além do óbvio progresso técnico da Biologia Molecular contribuíram para seu declínio FOX KELLER 2006 p 22 Ruth Berman 1997 indica cinco aspectos a partir dos quais podemos discernir preconceitos na prática corrente da ciência discriminação vocacional em esquema generificado que influencia tanto a escolha de carreiras quanto a possibilidade de ascensão dentro das carreiras escolhidas controle da administração de fundos pelo segmento dominante da sociedade o que define as prioridades de pesquisa mulheres como alvos especiais da tecnologia médica acarretando em meios de controle sobre nossos corpos uso de linguagem influenciada pelo gênero descrições articuladas a partir de retórica de gênero e metáforas de dominação abusos e distorções da metodologia da ciência sugerindo a inferioridade das mulheres estatísticas enviesadas que pretendem estabelecer diferenças entre homens e mulheres como naturais intrínsecas e fixas Quando a pesquisa científica e tecnológica não é consciente de seu próprio viés androcêntrico os resultados obtidos sempre são reconhecidos como neutros e objetivos Londa Schiebinger 2014 mostra através da agnotologia que políticas de produção de ignorância limitam a criatividade e excelência científicas e seus benefícios para a sociedade podendo inclusive custar caro tanto em termos financeiros quanto em termos de vida Os padrões e modelos de referência utilizados pela ciência saúde medicina e engenharia têm implicações no ensino e disseminação dos conhecimentos bem como na formulação de hipóteses no desenho de produtos e elaboração de leis Quando os modelos de referência são unicamente elaborados por médias gerais baseadas em um corpo masculino tido como padrão 34 rapazes brancos robustos com cerca de 70 kg outros segmentos da população são considerados como desviantes da norma e podem até chegar a sofrer sérios danos Os exemplos na área da tecnologia são abundantes as mulheres são comumente esquecidas nas modelagens de engenharia básica Por exemplo os protocolos de teste para acidentes automobilísticos consideram as pessoas de baixa estatura principalmente mulheres mas homens também como motoristas forade posição por se sentarem muito perto da direção Motoristas foradeposição têm maior probabilidade de se machucar em caso de acidentes A noção de que pessoas de baixa estatura são motoristas foradeposição sugere que o problema esteja no motorista de tamanho menor que a média mas na verdade o problema está nas tecnologias poltronas de automóveis e painéis de instrumentos que não são desenhadas em proporções que levem em consideração a segurança de todos os tipos de motoristas SCHIEBINGER 2014 p86 Esse é um exemplo de que mesmo as áreas de conhecimento que parecem mais afastadas de aspectos subjetivos como a engenharia também fazem escolhas em seus projetos e essas escolhas são influenciadas pelo contexto social e produzem consequências para a sociedade Schiebinger aponta que a presença de mulheres enquanto pesquisadoras afeta o campo em que se inserem para alertar o olhar do que está sendo deixado de fora quando pressuposições sexistas regem as hipóteses levantadas De acordo com ela arqueólogas têm questionado as histórias da origem da humanidade centradas nas figuras do homem caçador e da mulher coletora uma vez que essas histórias constroem e reforçam a divisão de gênero do trabalho nos moldes ocidentais biólogas têm questionado a prática do não registro do sexo da célula omissão esta que traz sérias implicações para o futuro das terapias com célulastronco palioantropólogas têm questionado o costume de sexualizar fósseis de esqueletos de tamanho pequeno caracterizandoos como pertencentes a fêmeas apenas com base no tamanho e como consequência identificando os sítios em que são encontrados como espaços domésticos SCHIEBINGER 2014 p 87 Estes são alguns dos exemplos que desvanecem a aura de objetividade e neutralidade atribuída ao fazer científico Não é sem razão que no século XIX ganhou impulso ao lado da craniometria a pelvimetria inicialmente como meio de classificar as raças com base nas capacidades cranianas e pélvicas24 O tamanho da pélvis poderia ser relacionado 24 Minha formação como cientista social destacou as intenções coloniais da constituição da antropologia enquanto disciplina acadêmica Ao longo do século XX houve consistentes esforços em desvincular os propósitos da antropologia ao caráter evolucionista de suas origens é preciso reconhecer que a antropologia física serviu para justificar o racismo científico no início do século passado Podemos estabelecer uma 35 com o tamanho da cabeça fetal e assim dar parâmetros para a estimativa do cérebro e das faculdades intelectuais de cada raça Mas enquanto a craniometria era aplicada para a mensuração do cérebro no homem na mulher a pelvimetria era vista como mais adequada E enquanto o homem europeu era definido como superior frente a outras raças pela medição do seu crânio a mulher europeia ganhava o título análogo mas em termos de maior capacidade pélvica Nada mais natural já que homens e mulheres eram especializados para funções diferentes e complementares Essa diferença indiscutível e até mesmo mensurável justificava por exemplo a capacidade inferior da mulher para os estudos já que era determinada prioritariamente para a maternidade ROHDEN 2002 p 121 Uma das respostas apontadas para esse problema seria o que Schiebinger 2014 p 86 chama de inovações gendradas estimular a excelência em ciência e tecnologia pela integração de uma análise de sexo e gênero em todas as fases da pesquisa básica e aplicada Já Ruth Berman 1997 define esse tipo de proposta como posturas reformistas campanhas educacionais na comunidade científica que procuram mostrar a injustiça das pressuposições aplicadas sem aprofundar o questionamento sobre o que sustenta tais pressuposições Esse viés assume que as práticas da ciência moderna sua metodologia e base de pensamento são fundamentalmente corretos e que bastaria uma campanha de conscientização para aprimorar os maus usos da ciência Berman discorda salientando que as mudanças necessárias se dão num plano para além do científico é preciso transformar as estruturas de poder da sociedade Pode a prática da boa ciência fazer diferença num mau contexto político e num meio social de sexismo racismo e hierarquia de classes Será que ela não será esmagada tanto por outras más teorias como mais acentuadamente pelas realidades políticas sexistas e racistas Como pode o preconceito na prática da ciência ser eliminado sem que também se elimine sua origem social Será o preconceito dos cientistas tão superficial que pode ser basicamente eliminado só com sua revelação Ou será que é parte integrante da maneira de pensar da linguagem da filosofia fundamental da civilização ocidental com sua história dicotômica de dominação de uma população produtiva por uma elite dominante Poderia nossa civilização sequer ter evitado incorporar esse preconceito em sua estrutura conceitual básica BERMAN 1997 p246 Procurarei demonstrar nas próximas seções que no que concerne à menstruação os saberes veiculados se dão em diferentes instâncias ou micropoderes FOUCAULT 1988 das mulheres menstruantes do senso comum da ginecologia na medicina hegemônica da indústria de dispositivos higiênicos da grande mídia dos livros didáticos da escola e da aproximação ao surgimento da ginecologia enquanto especialidade médica em seus esforços por ratificar uma misoginia científica 36 academia25 Todos esses discursos são imbrincados e afetam uns aos outros A menstruação é pensada como algo negativo como uma sobra relutante do corpo sangue sujo fenômeno repugnante e incômodo que não pode ser discutido em público não deve ser mencionado nem evidente nos espaços de educação e trabalho é compreendida como responsável por alterações comportamentais que confinam as mulheres no âmbito pejorado do emocional e do irracional Esse pensamento reforça estruturas de poder em nossa sociedade nas quais nós mulheres somos inferiorizadas Campanhas reformistas não são o suficiente para alterar esse quadro pois a ciência não é algo descolado da sociedade ao contrário é profundamente afetada pelos valores do senso comum e pelas relações de poder estabelecidas 22 ORDENS PRÁTICOSIMBÓLICAS DA MENSTRUAÇÃO A fim de analisar esses processos discursivos que produzem efeitos por não ser apreendidos acompanho Cecília Sardenberg 1994 em sua proposta de pensar parâmetros téoricometodológicos para refletir sobre menstruação numa perspectiva sócioantropológica Há de se considerar o menstruar como um fato social e cultural que implica em crenças expectativas atitudes e rituais próprios associados às concepções nativas sobre corpo parentesco higiene doença reprodução e gênero Ou seja não há como desvincular a análise dos valores sobre menstruação de análises que percorram também as impressões sobre esses outros aspectos senão sob o risco de cair em reducionismos e causalidades simples Sardenberg argumenta que os significados e condutas associados à menstruação são parte de sistemas simbólicos mais amplos que só fazem sentido em referência a uma estrutura total de pensamento pertencendo sempre a uma lógica cultural específica Esses significados e condutas atuam como elementos estruturantes e estruturados nos trâmites das relações sociais nas quais se constroem as identidades de gênero É desta maneira que Sardenberg define o conceito de ordens práticosimbólicas da menstruação A partir daí acrescenta 25 Religião certamente também é uma instância que exerce forte influência nas concepções sobre menstruação na análise desta dissertação não discorro sobre os valores religiosos acerca dos corpos das mulheres mas aqui indico essa lacuna e a sugestão para outras pesquisas 37 Na medida em que elas as ordens práticosimbólicas são interiorizadas no processo de socialização e enculturação podese afirmar que embora sangrar todo mês seja destino de toda e qualquer mulher a experiência vivida da menstruação será significativamente diferente para mulheres situadas em diferentes contextos históricos culturais sociais SARDENBERG 1994 p 332 O conceito de ordens práticosimbólicas é uma boa ferramenta para pensar qual é o paradigma que sustenta discursos de ideologias de gênero nas metáforas e modelos científicos como também aponta sentidos para a construção das identidades das mulheres Menstruação não apenas é entendida como um demarcador de diferenças entre homens e mulheres mas inclusive entre mulheres os momentos de menarca e menopausa por exemplo prescrevem a observância de uma série de papéis atitudes e comportamentos correspondentes ao novo status adquirido Perscrutar os valores que sustentam os discursos e disputas sobre o poder simbólico da menstruação é também buscar compreender os novos espaços e possibilidades que nós mulheres alcançamos enquanto sujeito em nossa sociedade Atualmente o volume de pesquisa sobre as percepções das mulheres brasileiras sobre menstruação ainda é muito escasso26 Sardenberg afirma que a literatura sócioantropológica se dedicou mais aos ritos iniciáticos associados à menarca aos tabus alimentares e proibições em atividades sagradas e profanas e à prática de isolamento de mulheres em algumas sociedades Em sua compilação relativa a tais estudos Sardenberg 1994 p 327 indica que pesquisas feministas atentas ao viés androcêntrico nas análises ditas tradicionais na antropologia fazem novas leituras da literatura etnográfica disponível revelando o double bias nas pesquisas onde homens antropólogos questionam assuntos acerca do menstruar a homens informantes tomando essas explicações como definitivas Acrescento que recentemente também existem alguns estudos nacionais que se voltam aos discursos hegemônicos sobre menstruação na medicina publicidade e grande mídia mas a lacuna sobre os pontos de vista das mulheres ainda persiste e é nesta falta que pretendo contribuir Sardenberg ainda salienta que o conceito sugerido deve ser pensado sempre no plural quando se trata de sociedade brasileira visto que esta sendo tão segmentada e culturalmente complexa é capaz de conter não apenas uma mas várias ordens práticosimbólicas da menstruação Os significados atribuídos ao menstruar variam entre diferentes classes sociais 26 O estudo mais extenso sobre esse tema já completa quinze anos de publicação uma dissertação de mestrado na área de tocoginecologia AMARAL 2003 38 grupos étnicos gerações e regiões Já em 1994 a autora identificava um momento de profundo desmapeamento em relação à menstruação devido às reformulações dos discursos publicitários da indústria dos absorventes e também aos debates acerca dos direitos reprodutivos das mulheres Pretendo mostrar nos próximos capítulos que vinte e cinco anos depois esse desmapeamento continua evidente justamente porque o tema da menstruação cada vez mais escapa de sua condição de reforçado ocultamento mais que isso finalmente podemos identificar movimentos de mulheres enquanto produtoras de novos discursos sobre menstruação contestando os saberes instituídos a partir de suas experiências com o coletor menstrual Para Sardenberg as sociedades modernas se mostram mais abertas à luta pelo poder simbólico em torno da menstruação e da construção social do ser mulher e assim para o confronto entre os diferentes discursos e as ordens práticosimbólicas a eles subjacentes Por certo esse confronto não acontece somente no nível da sociedade mas também no íntimo das mulheres SARDENBENG 1994 p343 A fim de pensar como se dão os processos de consolidação dos valores sociais acerca da menstruação é interessante acompanhar a trajetória de mulheres e suas experiências precisamente porque esse assunto foi historicamente vivido de maneira íntima e relegado à constante interdição de conversas em esfera pública Quero refletir sobre essa interdição para além de um processo estagnante busco o que esses ocultamentos revelam A mera proibição é um poder pobre em seus recursos econômico em seus procedimentos monótono nas táticas que utiliza incapaz de invenção e como que condenado a se repetir sempre FOUCAULT 1988 p 83 Ou seja a proibição estabelece limites mas não produz não é eficaz Seria ingênuo considerar que o poder se exerce apenas no sentido da obediência para operar é preciso que seja propositivo e mais sutil do que enunciados imperativos é somente mascarando uma parte importante de si mesmo que o poder é tolerável Seu sucesso está na proporção daquilo que consegue ocultar dentre seus mecanismos FOUCAULT 1988 p 83 A experiência da menstruação enquanto algo a ser segredado foi tema de análise das historiadoras Marlene de Fáveri e Anamaria Venson 2007 Acompanhando mulheres da região de Santa Catarina numa ampla faixa geracional as pesquisadoras conseguiram identificar costumes acerca da menstruação ao longo do século XX evidenciando principalmente as restrições e dificuldades de acesso à informação que mulheres hoje idosas 39 enfrentaram durante o início da vida fértil Aqui cabe uma reflexão sobre qual é o propósito de se manter a menstruação em segredo a quem beneficia essa restrição de diálogo Ou ainda a quem beneficia que assuntos acerca do menstruar sejam circunscritos a espaços e sujeitos específicos Nesse sentido acompanho a análise sobre a história da sexualidade de Michel Foucault 1988 que vai à contramão da hipótese repressiva comum no pensamento ocidental de que desde a emergência da camada burguesa houve um maciço silenciamento acerca do sexo O argumento do autor é que ao contrário o constante pudor e suposto apagamento do sexo estão inseridos numa lógica de produção de saberes que operam como dispositivos de controle e poder Haveria uma incitação institucional em campos específicos de exercício de poder constituindo uma larga dispersão dos aparelhos inventados para dele do sexo falar para fazêlo falar para obter que fale de si mesmo para escutar registrar transcrever e redistribuir o que dele se diz FOUCAULT 1988 p 35 Esse detalhe exaustivamente acumulado através de instituições familiares educacionais jurídicas e de saúde revela a centralidade que o sexo ocupa no esforço de construção da verdade Por ser compreendido a partir de um princípio de latência intrínseca e postulado de causalidade geral FOUCAULT 1988 p 65 seria necessário um escrutínio constante sobre o sexo Daí a incessante vontade de saber explorada por incitações reguladas e polimorfas Para Foucault o sexo não é reprimido ao contrário está sob perene prolixidade Mesmo o silêncio em sua perspectiva é eloquente O próprio mutismo aquilo que se recusa dizer ou que se proíbe mencionar a discrição exigida entre certos locutores não constitui propriamente o limite absoluto do discurso ou seja a outra face de que estaria além de uma fronteira rigorosa mas sobretudo os elementos que funcionam ao lado de com e em relação a coisas ditas nas estratégias de conjunto Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz é preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer como são distribuídos os que podem e os que não podem falar que tipo de discurso é autorizado ou que forma de discrição é exigida a uns e outros Não existe um só mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam os discursos FOUCAULT 1988 p29 Não pretendo afirmar que são análogas as concepções de sexo de Foucault e minha leitura sobre a situação da menstruação pois acredito que há diferenças consideráveis acerca da extensão e desdobramentos de tal prolixidade Ainda assim ressalto que os mecanismos de produção de saberpoder sobre o que se entende por feminino são evidentes na distribuição de 40 legitimidade de discursos acerca do menstruar acionando micropoderes que se entrecruzam e se reforçam na elaboração das ordens práticosimbólicas As mulheres entrevistadas por Fáveri e Venson atribuem seus conhecimentos a experiências pessoais e observações empíricas tentativa e erro de lidar com seus fluxos e desencorajamento de se aprofundar em questões de saúde do sistema sexual Mesmo as pequenas redes de conversas entre conhecidas vizinhas amigas parentes são conduzidas como coisas do privado como segredo num processo que culmina no aprender a envergonharse O uso de metáforas para se referir ao corpo ou à menstruação é constante evitando nomear diretamente os fenômenos e lançando mão de inúmeros eufemismos disfemismos e figuras de linguagem Devese notar que essa característica não é exclusiva dos tempos antigos mas se estende até os dias de hoje Uma pesquisa conduzida em 2015 pela empresa Clue27 em parceria com a International Womens Health Coalition reuniu dados de mais de 90 mil pessoas distribuídas em 190 países a fim de investigar costumes relacionados à menstruação entre as consumidoras de seu serviço O estudo revelou cerca de cinco mil vocábulos como metáfora para menstruação em diferentes línguas28 Podese encontrar também uma vasta compilação29 de expressões circulantes em várias nacionalidades no polêmico Museum of Menstruation30 cujo acervo é compartilhado online No Brasil algumas das expressões mais populares são naqueles dias amplamente utilizado em discursos publicitários regra em alusão às prescrições de comportamento atreladas ao fluxo incômodo estar indisposta estar de boi e estar de chico Esta última é um bom exemplo para pensar como essas figuras de 27 Clue é um aplicativo de monitoramento do ciclo menstrual disponível para smartphones Os menstruapps estão entre os mais populares na categoria aplicativos de saúde nas appstores Felizi Varon 2016 discutem de que maneira os algoritmos vendidos como tecnologias matemáticas científicas e portanto neutras analisam e processam as informações sobre nossos corpos e as consequências de concentração e comercialização de dados pessoais sobre saúde e sexualidade reunidos pelas empresas que fornecem esses serviços para a indústria farmacêutica cosmética e até para a produção acadêmica 28 Disponível em httpshellocluecomarticlesculturetopeuphemismsforperiodbylanguage Acesso em set 2018 Em 2017 a empresa lançou uma campanha online a fim de questionar os eufemismos sobre menstruação através da hashtag justsayperiod sem reparar que period também é um eufemismo Mais tarde Clue reconheceu sua contradição assinalando o quão arraigado é o uso de metáforas que mesmo uma postura engajada em romper com esse costume pode acabar por reiterálo 29 Disponível em httpwwwmumorgwordshtml Acesso em set 2018 30 O museu criado como hobby pessoal por Harry Finley um designer gráfico estadunidense despertou muitas reações negativas desde sua fundação na década de 1990 Não apenas o tema do museu é estigmatizado o próprio fundador recebeu profusas críticas por ser um homem à frente de um museu da menstruação As controvérsias de sua história permeada por excentricidades são investigadas na reportagem de Arielle Pardes 2015 41 linguagem não apenas suavizam e escondem a menstruação mas também a pejoram de forma agressiva Por todo o país e em diferentes gerações a expressão estar de chico é repetida de modo irrefletido e normalmente não se sabe explicar quem é o tal do Francisco que dá origem ao termo Chico no português europeu é sinônimo de porco de onde vem o prefixo de chiqueiro Ao dizermos que estamos de chico acabamos por reafirmar noções de sujeira e ojeriza ao sangue menstrual Os usos de eufemismos não apenas atestam valores sociais vinculados à menstruação como também expõem o quão distanciadas estamos das percepções e identificação com nossos corpos Quando não sabemos nomear partes de nosso ser ou somos constrangidas a não nomeálas não é somente a comunicação que fica inibida mas o próprio reconhecimento de si Em última instância aquilo que não é nomeado não existe na consciência Quanto menos conhecemos nossos corpos menores as chances de têlos como fonte de poder e prazer É muito comum o uso da palavra vagina como termo geral para se referir à vulva por exemplo se alguém diz que uma vagina é feia ou bonita eu me pergunto se a pessoa pegou um espéculo para conferir tal apreciação estética Esse hábito apaga toda a complexidade de nossa anatomia sexual externa incluindo glande do clitóris lábios externos e internos glândulas lubrificantes e ejaculatórias ou parauretrais31 estas ainda sob o espectro da agnotologia32 abertura da uretra abertura da vagina e o notório hímen que é tão violentado em nosso vocabulário33 monte púbico pelos Sabemos que estes últimos são 31 Designadas respectivamente como glândulas de Bartholin e glândulas de Skene pela ciência hegemônica Assim como as trompas de Falópio que prefiro chamar como tubas uterinas são evidências da colonização científica patriarcal sobre os corpos das mulheres É um posicionamento político nomeálas pela função 32 A capacidade ejaculatória das mulheres ainda é desacreditada e pouco investigada por pesquisas científicas Há estudos que se concentram na tentativa de provar que a ejaculação expelida pelas glândulas parauretrais é simples incontinência urinária ignorando e desqualificando os relatos das mulheres sobre seus próprios corpos Regardless of the biological basis of female ejaculation the physical experience is at its heart a pure expression of female sexual pleasure Insisting that female ejaculation is really just confused urination doesnt just denigrate sic womens ability to understand our own bodies it also positions female sexual pleasure as filthy dirty and ultimately less than the celebrated male orgasm Disponível em httpswwwtheguardiancomcommentisfree2015jan17thequestionisntiffemaleejaculationisrealits whyyoudonttrustwomen totellyou Acesso em set 2018 33 O hímen é uma membrana elástica que se expande com a penetração não necessariamente sexual É muito comum recorrer a expressões como romper furar rasgar perder o hímen para descrever a primeira penetração Essas palavras carregam conotações violentas que normatizam a ideia de que tem que sangrar mesmo e a primeira vez dói depois acostuma como se devêssemos esperar e tolerar desconforto físico como se sexo fosse algo presumivelmente desprazeroso para nós mulheres algo ao qual precisamos nos resignar O hímen não possui vascularização ou enervação suficiente que acarrete em dor e sangramento isto pode acontecer por musculatura pélvica ainda não alongada e também por falta de devida lubrificação Devese portanto considerar a disposição preparo confiança e principalmente excitação da pessoa para o necessário relaxamento do assoalho pélvico e produção de fluidos lubrificantes Além disso no que concerne 42 compulsoriamente removidos através do imperativo estético da depilação Os lábios internos como prefiro chamálos ao invés de lábios menores ou pequenos lábios vêm sendo cirurgicamente removidos numa escala vertiginosa34 consequência de disforia por representações pornográficas infantilizantes CALABRESE RIMA SCHICK 2010 e do próprio vocabulário sob o qual são designados Reduzir a elaborada e maravilhosa genitália feminina ao termo vagina é exemplo de um esforço intencional e não subjetivo ou seja estimulado por diferentes micropoderes de subjugar heterocentricamente a sexualidade das mulheres a serviço da manutenção do foco no prazer sexual dos homens que costuma se concentrar na penetração quantas mulheres desconhecem a estrutura completa do clitóris glande prepúcio corpo crura bulbo e todo seu potencial Os eufemismos da menstruação são concomitantes a uma série de apagamentos redundando num tipo de buraco imaginário entre nossas pernas35 Esses apagamentos não operam apenas em negativação eles também estabelecem impossibilidades de elucubração e agência FIGURA 03 ILUSTRAÇÃO DE VULVA E CLITÓRIS CORTE TRANSVERSAL DA GLANDE DO CLITÓRIS36 ao vocabulário as expressões tirar a virgindade de ou perder a virgindade difundem ideias de dano e assalto Prefiro nomear o acontecimento simplesmente como início da vida sexual eu iniciei minha vida sexual com tal pessoa quando eu iniciei minha vida sexual tinha tantos anos Assim não se está perdendo mas ganhando ganhando experiência sensações memórias 34 Mesmo apresentando riscos de comprometimento de sensibilidade sexual a labioplastia é crescentemente banalizada como procedimento cosmético O Brasil é o país que disparadamente mais realiza cirurgias desse tipo De acordo com a International Society of Aesthetic Plastic Surgery 23115 cirurgias desse tipo foram executadas em território nacional em 2016 correspondendo a 1674 de sua incidência global Disponível em httpswwwisapsorgmedicalprofessionalsisapsglobalstatistics Acesso em set 2018 35 Daí o receio relatado por muitas mulheres antes de experimentar o coletor menstrual aflitas que o objeto irá se perder lá dentro leigas sobre a anatomia do canal vaginal e principalmente do cérvix 36 Ilustrações da anatomia interna do clitóris como este corte transversal que mostra seu suprimento sanguíneo e nervoso não são facilmente encontradas em livrostexto de medicina Jessica Pin 2019 afirma que até este ano não havia nos Estados Unidos um único livro com tal imagem ela tornouse ativista por cliteracia após sofrer dano decorrente de uma cirurgia vulvar Ver mais em httpsmediumcomjessica86 theneedlessomissionofclitoralanatomyfrommedicaltextbooks87756656e8a6 Acesso em nov 2019 43 Fonte Stefanie Grübl Disponível em httpwwwvielmaat Acesso em nov 2019 FIGURA 04 ESCULTURA VULVA VAGINA E CLITÓRIS MODELO DIDÁTICO Fonte Coletivo É do Clitóris Disponível em httpwwwmeuclitoriscombr Acesso em nov 2019 44 FIGURA 05 FOTOGRAFIA DO COLO DO ÚTERO CÉRVIX E PAREDES VAGINAIS REALIZADA COM ESPÉCULO NO PRIMEIRO DIA DO CICLO MENSTRUAL Fonte Beautiful Cervix Project Disponível em httpsbeautifulcervixcomproject2443 Acesso em maio 2019 As falas das mulheres entrevistadas por Fáveri e Venson são marcadas por pausas e silêncios evidenciando a falta de prática de conversar sobre temas do corpo As historiadoras apontam que a maneira segredada e codificada de falar da fisiologia feminina não é mera decorrência de desconhecimento mas uma prática cultural inclusa numa lógica específica de pensar mulheres aprenderam na experiência da menstruação que ser mulher é ser discreta é ser calada é aceitar o seu corpo com resignação e sem indagações afinal mistério é um atributo do feminino FÁVERI VENSON 2007 p 70 Esse mistério se estende em diferentes âmbitos e mesmo para além das redes de conversas mais privadas na publicidade na mídia tradicional nos consultórios médicos e em salas de aula a menstruação é referida através de metáforas e na maioria das vezes de forma pejorativa destacando os sintomas de malestar e encobrindo as complexidades e idiossincrasias dos corpos sob a alcunha do incontrolável e do incômodo37 Nessas instâncias tais construções discursivas têm seus propósitos a interdição de certas palavras a decência das expressões todas as censuras do vocabulário poderiam muito bem ser apenas dispositivos secundários com relação a essa 37 Excelentes análises sobre menstruação na publicidade e em programas televisivos foram produzidas por MIGUEL et al 2016 e NATANSOHN 2005 45 grande sujeição maneiras de tornála moralmente aceitável e tecnicamente útil FOUCAULT 1988 p 24 Assim vemos que discrição é um imperativo no que concerne menstruação De acordo com a análise fenomenológica de Iris Young 2005 esconder as evidências de estar menstruada e não conversar sobre o assunto ou conversar apenas com pessoas muito específicas são traços de uma etiqueta menstrual que impõe uma constante autodisciplina sobre o comportamento38 Young define etiqueta menstrual enquanto normas que prescrevem quem pode falar o que sobre menstruação que tipo de linguagem é apropriada e o que não deve ser dito sob nenhuma circunstância são regras que recomendam o uso de determinados produtos como eles devem ser adquiridos carregados estocados descartados e referidos nas conversas A principal finalidade dessa etiqueta é regular o comportamento das mulheres para garantir que nossos fluxos menstruais permaneçam imperceptíveis e privados Tratase de um mecanismo de constrangimento inibindo a possibilidade de troca de experiências entre mulheres e compartilhamento do que identificamos como problemas e suas viáveis soluções Ao tratar dessas regras Young propõe uma reflexão sobre a opressão social das mulheres enquanto pessoas que menstruam destacando a vergonha associada à menstruação ao lado dos esforços por esconder seus sinais e o desencaixe entre mulheres e os lugares públicos como escolas e ambientes de trabalho que se recusam a acomodar nossas necessidades39 Ao considerar a presença na esfera pública a autora abre uma discussão sobre estes espaços institucionais que assumem um corpo padrão com necessidades padrão esse corpo não menstrua Ela argumenta que nas sociedades ocidentais recebemos constantemente a mensagem de que nós mulheres podemos e devemos participar da mesma maneira que homens nas atividades sociais que nossa fisiologia e o fato de menstruarmos não devem ser motivos de impedimento de atuação no espaço público ou execução de atividades físicas mas 38 Young 2005 p 122 assinala a diferença entre etiqueta menstrual e tabu menstrual termo bastante presente em estudos antropológicos Rules of etiquette appear in social systems drained of this cosmological significance in social interaction There is something more minute and even trivial about manners than the taboos associated with sacred spaces and events etiquette involves a micromanagement of behavior whereas taboos invoke major fault lines of the social system When there are menstrual taboos the whole woman must be confined closeted or kept away from certain people processes or substances The system of menstrual etiquette on the other hand does not constrain the woman herself from involvement in spaces and activities also involving nonmenstruating persons Rather it concerns a selfdiscipline she must apply in those settings 39 O filme Period End of sentence Absorvendo o Tabu na tradução brasileira de 2018 dirigido por Rayka Zehtabchi acompanha a jornada de mulheres indianas desafiando a etiqueta menstrual de seu contexto cultural Recebeu premiação do Oscar como melhor documentário curtametragem em 2019 feito que ressalta a relevância que o ativismo menstrual vem alcançando recentemente 46 que ao mesmo tempo somos constantemente intimidadas a jamais revelar a condição de estarmos menstruadas A mensagem de que uma mulher menstruada é perfeitamente normal implica que ela esconda os sinais de sua menstruação O corpo normal o corpo padrão o corpo que se assume que todos sejam é um corpo que não está sangrando pela vagina Então para ser normal e para ser considerada normal a mulher menstruada não deve falar sobre seu sangramento e precisa ocultar as evidências dele40 YOUNG 2005 p107 Young afirma que esse contexto de permanente medo de ser lançada à vergonha é responsável por um investimento de energia emocional na ansiedade sobre conseguir satisfazer as demandas dessa etiqueta A autora inclusive aponta a recorrência de piadas e julgamentos sobre menstruação e comportamento feminino e a falta de pesquisas que documentem as atitudes e discursos dos homens perante o tema da menstruação41 A autodisciplina em tomar cuidado com as evidências de sangue menstrual diante de família colegas e até mesmo estranhos estabelece uma relação de poder posto que as meninasmulheres se diferenciam dos meninoshomens na medida em que elas aprendem que devem temer o olhar deles esconder recear FÁVERI VENSON 2007 p 9 Em análise de peças publicitárias de absorventes averiguouse que muitas vezes a figura masculina está presente como coadjuvante da cena olhando e admirando a mulher protagonista Nesses anúncios o homem é um participante não ativo está em segundo plano como alguém que quer passar despercebido como uma sombra MIGUEL et al 2016 p 35 O uso recorrente da palavra proteção nessas campanhas publicitárias pode ser entendido como proteção contra o próprio sangue menstrual percebido como repulsivo como também proteção contra o olhar alheio e o estigma da menstruação Como aponta Foucault 1988 p 16 o ponto importante será saber sob que formas através de que canais fluindo através de 40 Tradução livre No original The message that a menstruating woman is perfectly normal entails that she hide the signs of her menstruation The normal body the default body the body that everybody is assumed to be is a body not bleeding from the vagina Thus to be normal and to be taken as normal the menstruating woman must not speak about her bleeding and must conceal evidence of it YOUNG 2005 p 107 41 Recorrentemente sofremos ataques e constrangimentos a despeito dos motivos de nossas atitudes mas apenas por ser quem somos No matter how hard she works to conceal this fact of her womanliness however others especially men always have it as a switch to beat her with a stigma with which to mark her as deviant a threat of exposure with which to harass and humiliate her When a woman becomes angry impatient or easily hurt in workplace interaction some of her coworkers may attribute her behavior to hormones in complete ignorance of her current menstrual state There is little research that aims to document male attitudes to menstruation YOUNG 2005 p 116 47 que discursos o poder consegue chegar às mais tênues e mais individuais das condutas não há uma lei imperativa que condene o fenômeno da menstruação mas uma multiplicidade de correlações de força que disciplinam os corpos e pejoram mulheres Frente a tantas interdições e constrangimentos Young destaca o sentimento de nojo e consequente alienação que meninas e mulheres carregam a respeito de si demarcando um senso de distância perante o fluxo da menstruação Identificar o período menstrual como sujo bagunçado incômodo irritante como algo a se recear é algo comum da menarca à menopausa A menstruação então aparece para as mulheres como uma punição ou um fato inconveniente com o qual se deve lidar e não como um aspecto de seu ser enquanto sujeito Resignarse com a visita indesejada mais um dos tantos eufemismos todos os meses durante metade da vida é uma postura que concebe a menstruação como um fardo como um agente exterior que nos viola reiteradamente e não como algo que produzimos e nos constitui Essa alienação corporal se fundamenta numa fragmentação do eu e do corpo reforçando a sensação de que os processos físicos e emocionais da menstruação são fora de controle intempestivos e abusivos Nessa perspectiva não só o fluxo sanguíneo mas também outros processos fisiológicos tais como a menopausa e o trabalho de parto são percebidos como estados pelos quais nós mulheres passamos ou fatos que acontecem conosco e precisamos aguentar e não como algo que realizamos MANICA 2006 Os sentimentos de asco aversão e vergonha sobre menstruação podem ser remetidos às crenças de que o sangue menstrual pertence a uma categoria distinta e inferior do sangue que corre nas veias Como nos mostram Miguel et al 2006 nos anúncios publicitários de absorventes é constante a presença de elementos florais destacando que seus produtos são necessários para camuflar um suposto odor desagradável que a menstruação exala42 Não se 42 Existe uma extensa gama de produtos higienizadores voltados à desodorização dos órgãos sexuais femininos como sabonetes íntimos duchas vaginais desodorantes hidratantes Os componentes químicos desses produtos alteram o equilíbrio da flora vaginal e causam os problemas que prometem resolver a vagina é um órgão autolimpante e a limpeza da vulva pode ser feita apenas com água Observamos hoje uma massificação desses produtos inclusive recomendados por profissionais da ginecologia reiterando as noções de que os corpos das mulheres são intrinsicamente sujos e vergonhosos Esses discursos não são recentes Por exemplo até a década de 1940 era comum nos Estados Unidos a diluição de desinfetantes destinados à limpeza doméstica para realizar duchas vaginais Embora obviamente deve ter causado dor e irritação muitos médicos recomendavam essa prática a suas pacientes Lysol fazia propaganda e normalmente continha uma nota na parte inferior do anúncio de uma linha ou duas sobre a sua eficácia como um produto de higiene pessoal Esses anúncios estavam cheios de simbolismo como desinfetante Lysol mata germes em cantos escuros As mulheres usaram os mesmos produtos para limpar suas vaginas e para limpar seus pisos banheiro e mobiliário Em essência as mulheres eram apenas outro dispositivo elétrico da casa para ser limpos e desinfetados WILKINS 2010 p 9 48 indica compreensivelmente que é a exposição prolongada ao ar sob o abafamento dos próprios absorventes e seus componentes químicos que produz tais odores Há também uma ubíqua substituição simbólica do sangue pelo líquido azul permitindo assim uma purificação do sangue tornandoo mostrável para o público Nesse sentido há uma adequação de cores para o imaginário social e o azul assume o papel de limpeza e purificação trazendo novamente o sangue da menstruação como algo sujo e impuro o azul é tudo que o vermelho não é MIGUEL et al 2006 p 30 Em diversas culturas a menstruação é entendida como agente poluidor dotado de impurezas e potenciais contaminantes que se estendem à mulher menstruada justificando restrições e tabus Essas elaborações estão associadas aos esquemas explicativos que cada sociedade formula sobre parentesco e reprodução em relação e contraste a outros fluidos corporais como o esperma Sardenberg 1994 reúne ocorrências desses esquemas cosmológicos na literatura da antropologia O arranjo que elucida as compreensões de reprodução em nossa sociedade é informado pelo conhecimento científico por isso é necessário analisar as narrativas biológicas para compreender como elas corroboram as noções de repugnância e sujeira em relação ao fluxo menstrual O conceito de etiqueta menstrual dialoga com o que Foucault observa nas enunciações sobre o sexo definiuse de maneira muito mais estrita onde e quando não era possível falar dele em que situações entre quais locutores e em que relações sociais estabeleceramse assim regiões senão de silêncio absoluto pelo menos de tato e discrição FOUCAULT 1988 p 21 Entre aquilo que se diz ou aquilo que se cala o que se permite e o que se esconde há uma disciplinarização não pela proibição direta mas por mecanismos de controle espalhados por instâncias cujos efeitos são de conjunto Não é raro que médicos ginecologistas concordem com visões de menstruação como causadora de doenças catameniais ou como sendo em si mesma uma doença43 Fáveri e Venson 2007 p 86 nos 43 Em 1920 o médico austríaco Béla Schick cunhou o termo menotoxina em artigo intitulado Das Menstruationsgift O veneno menstrual na tentativa de confirmar cientificamente crenças populares de que mulheres menstruadas são tóxicas aos elementos naturais ao seu redor Essas crenças se estendem de diversas maneiras entre as culturas e no que concerne ao pensamento ocidental podemos remeter ao pensador grego Plínio 7779 dC p 2151 que afirmava Her very look even will dim the brightness of mirrors blunt the edge of steel and take away the polish from ivory A swarm of bees if looked upon by her will die immediately brass and iron will instantly become rusty and emit an offensive odour while dogs which may have tasted of the matter so discharged are seized with madness and their bite is venomous and incurable Os experimentos de Schick consistiam em dar um ramo de flores para uma mulher menstruada 49 mostram que nas falas de suas entrevistadas apareceram noções da menstruação como uma doença especial um estado de debilidade semelhante ao estado doentio Mesmo nos dicionários encontramos os termos doença ligeira ou perda uterina excessiva de sangue expressões que refletem a cultura Assim menstruar aparece sob um caráter funesto maléfico tóxico e insalubre Essa conotação doentia está inserida na lógica de pensar os corpos das mulheres como imperfeitos As etapas da fisiologia feminina são investidas de elaborações culturais Tanto mistério em torno dos corpos das mulheres serve para justificar a necessidade de regulálos constantemente ao controle social a magia a religião e contemporaneamente a medicina produzem discursos sobre a complicada fisiologia feminina Ideias que aproximam as mulheres da natureza e que produzem o homem como o ser completamente humano Tais elaborações são feitas de modo que o corpo de homem seja representado com uma certa racionalidade com uma certa lógica enquanto o corpo de mulher é produzido como descontrolado complexo carregado do mistério que cabe à natureza FÁVERI VENSON 2007 p 84 23 O QUE É MENSTRUAÇÃO NARRATIVAS BIOLÓGICAS O saber científico não deve ser confundido com o discurso médico uma vez que o primeiro só adquire seu estatuto quando confrontado com outros estudos num campo estabelecido e o segundo é resultante tanto dos conhecimentos produzidos academicamente mas também da prática clínica e sua imbricação com o senso comum não operando sob o tipo de validação que o meio científico requer a medicina ocupa uma posição socialmente compreendida como de autoridade e exerce mediação entre conhecimento científico e público segurar e um para uma mulher não menstruada Ao comprovar que as flores da primeira murcharam antes ele criou o termo menotoxina que serviu de inspiração para várias outras pesquisas ineficazes ao longo do século XX A ideia foi tão persistente que se acreditava que menotoxinas eram secretadas pela saliva urina suor leite lágrimas e inclusive no ar expirado por mulheres Whats worse the presence of the menotoxin in the female body began to expand beyond menstruation Any woman who was postmenarcheal and pre menopausal could be found to have the menotoxin in her system So the menotoxin which first was an explanation for the presence of menstruation in women became a way of diagnosing women as ill and again since now all reproductivelyaged women could secrete it from any bodily fluid at any time the state of being female essentially made one pathological CLANCY 2011 Esse tipo de teoria não é apenas androcêntrica é misógina mesmo 50 leigo A palavra do médico é revestida de caráter de verdade contra a qual não se deve ou não se pode discutir MANICA 2002 e NATANSOHN 2005 mostram que o discurso médico na ginecologia é protagonizado por homens tanto em congressos acadêmicos quanto em teleconsultas médicas44 Pacientes invisíveis consultam médicos incorpóreos relações que têm a mesma duração de um bloco de programa sem a mediação dos laboratórios do tato dos instrumentos clássicos de diagnóstico e que não obstante produzem discursos legítimos do campo médico e demandas permanentes do público A medicina prescreve explica e ensina também através da televisão às mulheres o que elas sentem NATANSOHN 2005 p 288 Manica analisa como nos debates entre profissionais da ginecologia livros publicados artigos e fóruns de discussão congressos de ginecologia e obstetrícia a menstruação ocupa posicionamentos ambíguos na suposta oposição entre natureza e cultura oscilando entre esses domínios de acordo com as intenções ideológicas dos discursos Em certos momentos o menstruar é associado a concepções sobre natureza feminina a ciclicidade hormonal é demarcadora de incapacidades e se reafirmam noções de que o sangramento mensal contunde as mulheres com debilidades fragilidades sofrimento e inaptidões nesse ponto de vista há uma essencialização da feminilidade e prescrição de papéis sociais associados ao imperativo da fertilidade e da maternidade Em outros momentos a menstruação se distancia do âmbito da natureza e é compreendida como produto da cultura e da sociedade contemporânea como fenômeno que só ocorre com tamanha frequência devido aos costumes que levam à queda da taxa de fecundidade e enquanto consequência de menos gestações e períodos de amamentação durante a vida fértil a menstruação tal qual hoje a conhecemos seria assim um produto cultural recente Também nessa perspectiva a maternidade é colocada como destino inequívoco das mulheres Mais adiante mostrarei que tais concepções estão fundamentadas na própria explicação biológica da menstruação que é ancorada na função reprodutora Manica argumenta que natureza e cultura são palavras polissêmicas não possuem significados fixos e que a fim de relacionar a menstruação a determinadas ideias de 44 Programas televisivos onde especialistas aqueles que além de exercer a prática da medicina também dominam as regras discursivas da mídia de broadcasting respondem a questões trazidas pelas espectadoras estas são em sua maioria mulheres pertencentes à classe média baixa e baixa NATANSOHN 2005 p 291 e buscam nas informações veiculadas nesses programas os saberes médicos que de outra maneira não conseguem acessar 51 feminilidade e modernidade diferentes sentidos são atribuídos pelos médicos ao que se entende por natural ou cultural As tecnologias médicofarmacológicas são o centro dessas discussões uma vez que é a partir dos usos de métodos de contracepção por drogas de hormônios sintéticos que se avalia a naturalidadeimprescindibilidade ou artificialidadedescartabilidade da menstruação e assim a necessidade de sua ocorrência ou possibilidade de supressão por tais drogas Em ambos os pontos de vista existe um louvor à natureza mas um à natureza tal qual se observa e outro a uma natureza primordial Há de se lembrar das dicotomias orientadoras do paradigma científico no qual mulhercorpoemoçãonatureza é submetida a homemmenterazãocultura O debate científico sobre os riscos e benefícios das tecnologias disponíveis é conduzido menos por critérios de consequências para a saúde e mais a partir de argumentos que falam de uma moralidade feminina com forte viés androcêntrico Como salienta Farganis 1997 p 227 o conhecimento não é apenas um conjunto de argumentos mas também um reflexo de interesses É evidente no artigo que se trata de um debate entre homens e estes homens enunciam seu veredicto sobre a supressão da menstruação a partir de suas concepções sobre o que uma mulher deveria ser tal como o faziam os cirurgiões especializados em ovariotomias no século XIX como nos mostra Laqueur O valor da menstruação ou sua inutilidade são medidos pelo ponto de vista de que a menstruação não tem função em si de que é apenas a evidência de um ciclo mal aproveitado para a reprodução O viés androcêntrico do discurso ginecológico45 é encontrado de maneira semelhante na pesquisa de Natansohn Nos programas televisivos voltados à audiência de mulheres abundam médicos de especialidades diversas para falar de tudo aquilo que falta ou sobra na insubordinada fisiologia feminina 2005 p 288 Ali os discursos médicos são fundamentados em representações unívocas sobre o que é ser mulher e a menstruação costuma aparecer como alvo principal dos investimentos argumentativos sobre medicalização e patologização de nossos corpos A insistência no uso de tecnologias médicofarmacológicas a fim de regularizar dominar o ciclo menstrual é constante 45 Os primórdios da ginecologia no século XIX precisam ser avaliados com consideração ao androcentrismo dos saberes elaborados a diferença entre a ginecologia e a antropologia consiste principalmente em uma grande assimetria enquanto a primeira tratava da mulher frequentemente associada aos primitivos e às crianças representando um homem incompleto ou incivilizado a antropologia tratava da humanidade a partir do modelo masculino Mas a antropologia não cuidava das doenças masculinas e nem mesmo a andrologia teve sucesso A relação intrínseca entre a patologia e a natureza feminina exigia a criação de uma ciência específica ao passo que embora existissem as doenças caracteristicamente masculinas como as desordens na próstata e testículos a patologia do sistema sexual masculino não determinava a natureza do homem ROHDEN 2002 p 120 52 A menstruação tem sido em geral considerada perigosa e as mulheres por sua vez são o veículo desse perigo Elas têm sido perseguidas por estereótipos tanto na medicina como na psiquiatria e na literatura de forma simplificada e redutora capaz de capturar e aprisionar nesse padrão aquilo que aparece como desconhecido misterioso Para fugir desses estereótipos parece ser necessário camuflar o sangramento e as alterações que ele produz parece necessário liberarse daquele corpo instável cíclico cheio de humores e secreções incontrolável e ameaçador NATANSOHN 2005 p 294 Os programas analisados por Natansohn assim como os congressos observados por Manica também veiculam discursos em que mulheres são reduzidas aos supostos ditames da natureza sendo esta compreendida como fator primordial imaculado anterior à vida em sociedade e superior aos desejos e demandas das mulheres A retórica da vontade da natureza é apresentada como indiscutível e as tentativas das mulheres de contornála são admitidas como possíveis mas fadadas a uma disputa perene O corpo é tido como espaço de confronto entre a mulher moderna e os fatos biológicos Como já vimos o corrente saber científico carrega fortes premissas de objetividade fundacionalismo e neutralidade assim tais fatos biológicos são mobilizados pelos discursos médicos como exteriores à construção de conhecimento e isentos de relações de poder É imprescindível destacar que a história da ginecologia foi construída sobre práticas marcadamente misóginas e racistas como atestam os experimentos conduzidos pelo estadunidense James Marion Sims considerado o pai da ginecologia nada mais sugestivo que um título bem patriarcal e celebrado pela comunidade médica Na metade do século XIX Sims desenvolveu tratamentos cirúrgicos para fístula vesicovaginal tomando como cobaias mulheres negras escravizadas a patologia um rompimento entre os tecidos dos órgãos sexuais acontecia por decorrência de violência sexual fórceps realizados com brutalidade durante partos e condições de trabalho atrozes Elas não tinham evidentemente condições de formular consentimento pois este sabemos implica em autonomia Essas mulheres passaram por dezenas de cirurgias agressivas sem condições de segurança sanitária sem intervalo para recuperação e sem métodos anestésicos uma vez que ideologias racistas propagavam a ideia e ainda propagam de que pessoas negras são mais resistentes à dor Em suma sem dignidade Dentre as mulheres violentadas por Sims há o registro do nome de três delas Anarcha Betsey e Lucy que merecem ser lembradas e honradas46 A relutância da 46 O projeto Glándula de Anarcha el poder de nombrar propõe a substituição dos termos de colonização patriarcal glândulas de Bartholin e glândulas de Skene Alexander Skene foi um colaborador de John 53 comunidade médica em admitir os primórdios truculentos da ginecologia é analisada por SPETTEL WHITE 2011 FIGURA 06 ANARCHA BETSEY E LUCY Fonte Jules Arthur Sisterly Resilience Disponível em httpsthoughtsonartcom20190518julesarthurs workforresilientsisterhoodproject Acesso em nov 2019 Ainda sobre a construção de enunciações das ciências Anne FaustoSterling 1985 bióloga feminista analisa a produção científica a respeito do que se chama de síndrome pré menstrual SPM47 e estudos sobre menopausa Se entendemos que o discurso médico é derivado da pesquisa científica mas não somente esta precisa ser o alvo de escrutínio das epistemologias feministas De acordo com Lima e Souza 2002 p 80 as pessoas que são treinadas cotidianamente para o trabalho científico aprendem e incorporam o modelo dominante de produção do conhecimento e o reproduzem sem contestação para serem aceitos por seus pares e se sentirem adequados ao trabalho que executam A revisão de literatura de Marion Sims por glândulas de Lucy e Betsey cada uma das lubrificantes e glândulas de Anarcha parauretrais O projeto apresenta um necessário acervo de informações sobre as histórias dessas mulheres Disponível em httpsanarchaglandhotglueme Acesso em nov 2019 47 Popularmente denominada tensão prémenstrual ou TPM vem sendo rebatizada por feministas entusiastas da ginecologia política como tempo para mim ou tempo para meditar 54 FaustoSterling nos mostra que no que concerne à SPM a despeito da profusa publicação de estudos científicos não há definição e metodologias consistentes que permitam replicação e comparação de pesquisas quanto menos análises desprovidas de pressupostos androcêntricos ou fundacionalistas Não há consenso sobre que período é o prémenstrual imediatamente após a ovulação Uma semana antes do fluxo menstrual Duas Os dias de fluxo também contam muitas pesquisas são baseadas num ciclo ideal de vinte e oito dias regulares a formação de amostras são enviesadas pelos objetivos das pesquisas e nem mesmo há consenso de que nós mulheres experimentamos mudanças emocionais cíclicas consistentes que precisem ser explicadas Procurando por respostas nós encontramos um campo de pesquisa repleto de estudos pobremente desenhados Tamanhos de amostras e medidas inadequadas escolhas inapropriadas de sujeitos testes projetados para obter resultados desejados e uso de análises estatísticas pobres ou nãoexistentes são apenas alguns dos problemas Que tão numerosos cientistas estiveram aptos por longo tempo para conduzir pesquisas assim medíocres atesta tanto as agendas sociais inconscientes de muitos dos pesquisadores quanto a inadequação teórica da estrutura de investigação utilizada no campo como um todo48 FAUSTOSTERLING 1985 p 101 As pesquisas sobre SPM compartilham a premissa da primazia biológica as mudanças hormonais causariam mudanças comportamentais mas não o contrário Ao estabelecer essa linha unidirecional de causalidade ignorase que nossos corpos incorporam e confirmam expectativas sociais FaustoSterling clama por modelos explicativos mais complexos nos quais seja avaliada a inextricabilidade entre produção endócrina e vida social Outra premissa nessas pesquisas é a da negativação da menstruação a formulação dos questionários aplicados é evidência de que os pesquisadores avaliam as experiências sobre ciclo menstrual de antemão aos informes das mulheres pesquisadas conduzindo suas respostas Em questionário elaborado por Rudolf Moos médico e pesquisador da Universidade de Stanford FAUSTO STERLING 1985 p 102103 dentre quarenta e sete sintomas listados como possíveis de ocorrência ao longo do ciclo apenas cinco expressavam conotação positiva Ao receber um questionário desse tipo em mãos as mulheres pesquisadas tendem a reproduzir o que a 48 Tradução livre No original In looking for answers we encounter a research field filled with poorly designed studies Inadequate sample sizes and measures inappropriate choice of subjects tests designed to obtain a desired outcome and poor or nonexistent use of statistical analysis are but some of the problems That so many scientists have been able for so long to do such poor research attests to both the unconscious social agendas of many of the researchers and to the theoretical inadequacy of the research framework used in the field as a whole FAUSTOSTERLING 1985 p 101 55 pesquisa espera muitas mulheres crescem com a expectativa de que deveriam se sentir mal logo antes de seus períodos e essa crença as predispõe a lembrar seletivamente de se sentirem mal nas vésperas da menstruação mas não em outros momentos do mês49 FAUSTO STERLING 1985 p 103 Os comportamentos e emoções negativas são tema de interesse nas pesquisas sobre SPM enquanto que fatores positivos são descartados como algo pontual e atípico para o qual a pesquisa biológica é desnecessária O caráter androcêntrico desses estudos pode ser observado na própria tentativa de averiguar e posteriormente medicalizar distúrbios emocionais associados ao ciclo Algumas pesquisas afirmam que é possível que cem por cento das mulheres experimentem sintomas desses distúrbios FaustoSterling 1985 p 96 questiona se essa afirmação é correta e a totalidade das mulheres compartilha esses fatores então se trata de um distúrbio comparado a quem Seriam os homens o padrão pressuposto de equilíbrio emocional As pesquisas científicas sobre ciclo menstrual usam estereótipos masculinos como controle de normalidade A partir de sua revisão de publicações infelizmente é exatamente isso que esteve acontecendo nos campos da ciência Precisamos indagar sobre as consequências desses estudos irresponsáveis e não assumidamente enviesados pois são eles que servem de argumento para a clínica ginecológica invasiva para a prescrição compulsória de drogas farmacêuticas para ratificar noções culturais de que nós mulheres somos instáveis e descontroladas de que nossos corpos são sujos e abjetos interpelar essas pesquisas é um caminho para transformar a relação de alienação corporal que separa de modo dicotômico mente e corpo e coloca este como inimigo como um fardo ao qual devemos nos resignar Ao ver a ciência como um discurso como uma maneira de falar sobre o mundo a feminista pode desconstruir a relação complexa entre ciência e poder trazendo à superfície os meios pelos quais o discurso científico reforça o poder e o papel que este desempenha ao criar ativamente o discurso científico FARGANIS 1997 p 232 A pesquisa científica transborda os limites institucionais nos quais é produzida e é disseminada pela sociedade de diversas maneiras a partir do jornalismo da militância da clínica médica das ficções na indústria do entretenimento e principalmente a partir da 49 Tradução livre No original Many women grow up with the expectation that they should feel bad just before their periods and this belief can certainly predispose them to selectively remember feeling bad just before menstruation but not at other times of the month FAUSTOSTERLING 1985 p 103 56 escola O estudo da biologia nas salas de aula do Ensino Básico está imbrincado às atividades científicas são práticas sociais em comunicação e é a partir delas que a maioria das pessoas acessa os conhecimentos instituídos e legitimados como fatos A escola é um espaço elementar de construção daquilo que se entende por menstruação até mesmo porque a menarca ocorre em idade escolar Compreender o modo como se explica o ciclo menstrual para jovens meninas e meninos em sala de aula é fundamental para analisarmos como as narrativas biológicas dialogam com os valores sociais das ordens práticosimbólicas da menstruação Pinho Lima e Souza 2014 p 165 definem livros didáticos como artefatos culturais presentes no cotidiano escolar na vida de centenas de alunas e alunos às vezes como única fonte de obtenção do conhecimento científico ora silenciando ora legitimando atores sociais e construindo as identidades de gênero Analisando livros didáticos as autoras examinam a iconografia cuja incidência de imagens masculinas reitera a ideia dos corpos dos homens como algo neutro lógico e legítimo de representatividade em contraste aos corpos de mulheres que aparecem apenas nas seções sobre sistema reprodutor a linguagem empregada e suas metáforas generificadas o recorrente uso do termo homem como sinônimo de humanidade ah as conquistas do homem A evolução do homem e a questão da invisibilidade de mulheres cientistas nesses materiais Elas argumentam que esses livros são os principais determinantes dos currículos escolares influenciando os planos de aula de docentes o sequenciamento dos conteúdos as atividades e avaliações Os sinais de gênero aparecem na vasta iconografia dos livros didáticos de Biologia Folhear um livro de Biologia do Ensino Médio do começo ao fim é ver desfilar diante dos olhos o maior número de imagens masculinas No momento de ensinar Biologia as imagens parecem ter um papel neutro em relação à discriminação das mulheres porque trata de uma disciplina científica e aparentemente distanciada de preconceitos ideológicos Ledo engano A iconografia machista não se limita a ignorar a mulher ou estereotipála A crítica não é pelo que ela omite ou pela estatística mas principalmente pelo que ela transmite PINHO LIMA E SOUZA 2014 p 161 No contexto dessas considerações Emily Martin 2006 faz uma análise das metáforas adotadas pelas narrativas das ciências biológicas averiguando a representação da menstruação enquanto reprodução fracassada como se cada ciclo fosse evidência da frustração de uma concepção Ela salienta que comportamentos culturais que não são reconhecidos podem se infiltrar despercebidamente em textos científicos por meio de palavras avaliativas MARTIN 2006 p 94 Tomemos como exemplo o breve trecho que diz respeito ao ciclo 57 menstrual no livro de Sônia Lopes e Sergio Rosso 2016 p 15 aprovado pelo Programa Nacional do Livro Didático50 e bastante difundido nos currículos brasileiros Nas mulheres toda a gametogênese está relacionada a modificações hormonais que também preparam o útero para uma eventual gravidez A atuação dos hormônios será analisada no capítulo 4 deste livro A parede uterina fica espessa e caso a fecundação não ocorra a gametogênese não se completa o ovócito II degenera e o espessamento da parede uterina descama Essa descamação da parede uterina é a menstruação Ao ponderar sobre as escolhas de vocabulário51 empregues podemos notar como a experiência da menstruação é negativada mesmo quando revestida de caráter descritivo e pretensamente distanciado A menstruação é associada à ideia de degeneração e não é à toa que noções de sangue sujo e nojo permeiem recorrentemente as percepções sobre fluxo menstrual e sua explicação não se dá por vias de argumentação afirmativas mas ao contrário é mostrada como um processo que não se completa um discurso baseado pela falta falta da fecundação da realização da gravidez falta de sexo reprodutivo e aqui se evidencia o viés heteronormativo se sobrepondo à ampla gama de possibilidades de vivência da sexualidade52 A menstruação acaba por ser apresentada como produto da falência de um plano natural como se fosse a relutante resignação de um corpo destinado à maternidade Martin 2006 p 9596 compila vários exemplos de livros utilizados como referência em faculdades de medicina nos quais o leitor se confronta numa rápida sucessão com degenera decaem desaparecem espasmos degeneração enfraquecidos falta 50 Disponível em httpwwwfndegovbrpnld2018 Acesso set 2018 51 Nesse livro LOPES ROSSO 2016 p 1617 também podemos encontrar vários exemplos dos problemas para uma educação sexual positiva no que concerne a alguns aspectos que elenquei em seção anterior Afirma se que o hímen é uma membrana geralmente rompida na primeira relação sexual da mulher grifo meu o clitóris é um pequeno órgão erétil não há nenhuma menção ou ilustração da grandiosa estrutura interna do clitóris a vulva é chamada de pudendo feminino afinal há algo mais digno de pudor e vergonha do que a genitália feminina Nossa cultura falocêntrica não permite que sejam elaboradas expressões como pudendo masculino nesse mesmo material e possui lábios maiores grandes lábios e lábios menores pequenos lábios termos que contribuem para sentimentos de inadequação corporal É importante salientar que o livro de Lopes e Rosso não é exceção ao contrário esse vocabulário é predominante nos livros de biologia para o Ensino Básico 52 Como argumenta Gayle Rubin em sua análise sobre as qualificações morais das práticas sexuais sociedades ocidentais modernas avaliam os atos sexuais de acordo com um sistema hierárquico de valores sexuais Heterossexuais maritais e reprodutivos estão sozinhos no topo da pirâmide erótica RUBIN 1994 p 13 58 expelidos deterioração cessa morre perda53 Um desses textos inclusive ensina que a menstruação é o útero chorando pela falta de um bebê GANONG 1985 63 apud MARTIN p 92 Essa narrativa orientada pelo eixo da reprodução corrobora a compreensão das etapas de transformação do corpo desde a menarca como um encaminhamento para a função inequívoca de reprodutora Fáveri Venson 2007 p 76 observam nas falas de suas entrevistadas que elas se preparam para ser mulheresmães Não estão proibidas de exercer a sexualidade no entanto sua sexualidade é controlada e definida sexualidade para maternidade A fim de analisar essas escolhas de vocabulário e metáforas científicas Martin percorre um caminho confluente ao de Laqueur e sua categorização de modelo de sexo único e modelo de dois sexos No primeiro modelo de anatomias semelhantes e hierarquicamente invertidas procurase analogias entre os fenômenos fisiológicos mesmo que os homens não menstruassem podiam sangrar por outros meios como por intermédio do procedimento de sangrias Tratase de um paradigma que entende o corpo conforme um sistema de entrada e saída buscando equilíbrio O sangramento era então considerado saudável uma vez que o modelo remete a um escalonamento que privilegia o masculino o sangue menstrual era visto como impuro mas o processo de expelilo não era percebido como intrinsicamente patológico A partir do século XIX e a instauração do modelo de dois sexos o processo em si passa a ser visto enquanto distúrbio54 uma vez que agora os sexos são incomensuráveis e a menstruação é como disse o ginecologista Berenstein que citei mais acima apanágio da feminilidade Separamse os sexos e o sangramento é desqualificado e considerado doentio mesmo na mais saudável das mulheres um verme ainda que inofensivo e despercebido corrói periodicamente as raízes da vida ELLIS 1904 293 apud MARTIN 2006 77 53 A menopausa entendida como ápice da falência é também descrita por termos pejorativos os ovários param de responder e deixam de produzir Em todo o resto há regressão declínio atrofia encolhimento e perturbação MARTIN 2006 p 88 54 Essa visão é o pano de fundo de textos misóginos como o de Elsimar Coutinho médico baiano que alcançou notoriedade internacional com seu livro Menstruação a sangria inútil 2000 Coutinho é um especialista midiático como define Natansohn figura recorrente nos programas de televisão brasileiros e por vezes na imprensa estrangeira Uma das controvérsias que o envolvem diz respeito à sua convicção sobre a origem de todos os males brasileiros que para ele seria a alta taxa de fertilidade das mulheres pobres Enquanto ele se apresenta como campeão do planejamento familiar é considerado por diversas frentes especialmente do movimento feminista como incentivador ideológico de campanhas de esterilização massivas para mulheres pobres NATANSOHN 2005 p 292 59 As metáforas acionadas pelas narrativas biológicas remetem ao contexto de emergência do capitalismo industrial os acontecimentos fisiológicos são explicados por descrições econômicas em termos de bens disponíveis gastos e rendas o corpo é visto como um negócio que pode estar no lucro ou prejuízo Essas referências persistem até agora Ao explicar a menstruação a partir de uma argumentação pela negativa remetese à ideia de um empreendimento que deu errado como se todo o esforço dispendido pelo organismo decepcionasse a linha de produção Mais ainda a menstruação também transmite a noção de uma produção desvirtuada fabricando produtos sem uso fora das especificações invendáveis desperdícios sucatas55 MARTIN 2006 p 93 Os corpos das mulheres são assim descontrolados e perigosos pois não se adequam aos preceitos mecanicistas da ciência Lembremos a sugestão de Sardenberg de analisar as ordens práticosimbólicas da menstruação em relação aos esquemas explicativos de parentesco e reprodução nas sociedades com tamanha pejoração nas narrativas biológicas não é de se surpreender que os valores de senso comum associados ao sangue menstrual sejam tão vilipendiosos Os enunciados científicos e as demandas de etiqueta menstrual e as interdições e alienação subjacentes constituem discursos que se reforçam reciprocamente A ojeriza voltada ao sangue menstrual integra o saber científico corrente Devemos agora questionar há outras maneiras de explicar o que é menstruação senão pela perspectiva de reprodução fracassada Martin esboça uma possibilidade56 Vamos primeiro considerar a natureza teleológica do sistema seu objetivo pressuposto de implantar um óvulo fertilizado E se uma mulher tiver feito de tudo ao seu alcance para evitar que o óvulo fosse implantado em seu útero como controle 55 Martin é perspicaz ao revelar o viés androcêntrico da noção de desperdício Consideremos este trecho de um texto que descreve a fisiologia reprodutiva masculina e que chega a esse ponto a partir de um ângulo levemente diferente Os mecanismos que norteiam a extraordinária transformação celular de espermátide em espermatozóide maduro permanecem obscuros Talvez a característica mais surpreendente da espermatogênese seja sua incomparável magnitude um ser humano normal do sexo masculino pode fabricar centenas de milhares de espermas por dia Ainda que este texto considere abertamente positiva essa produção imensa de esperma na verdade apenas cerca de um espermatozoide em um bilhão consegue fertilizar o óvulo se partirmos do mesmo ponto de vista que considera a menstruação como um produto desperdiçado temos aqui sem dúvida algo pelo qual realmente vale a pena chorar MARTIN 2006 p 97 56 A transformação do vocabulário é inextrincável à transformação das metas e procedimentos científicos Fox Keller 2006 p 19 demonstra essa relação nas pesquisas sobre efeitos maternos na fertilização Mesmo o amplamente utilizado manual The Molecular Biology of the Cell parece ter abraçado uma equidade pelo menos nominal sobre o assunto aqui fertilização é definida como o processo pelo qual óvulo e espermatozoide se encontram e fundem Essas referências igualitárias não são retóricas estão baseadas numa descrição que está agora firmemente apoiada por um rico acervo de mecanismos que os pesquisadores identificaram em anos recentes podese dizer que os pesquisadores os encontraram porque procuraram por eles 60 de natalidade ou abstinência de sexo heterossexual Ainda assim seria apropriado falar que o objetivo único de seu ciclo menstrual é a implantação A partir do ponto de observação da mulher talvez o sentido fosse melhor captado se disséssemos que o objetivo do ciclo é a produção de fluxo menstrual Pense por um momento o quanto isso poderia mudar a descrição dos livros de medicina Uma queda nos níveis anteriormente elevados de progesterona e estrogênio cria o ambiente apropriado para reduzir as camadas excessivas de tecido endométrico A constrição dos vasos sanguíneos capilares provoca uma baixa no nível de oxigênio e nutrientes abrindo caminho para uma produção vigorosa de fluidos menstruais Como parte da renovação do endométrio restante os capilares começam a se reabrir contribuindo com algum sangue e fluido seroso no volume do material endométrico que já começa a fluir Não vejo nenhuma razão para o que o sangue em si não pudesse ser considerado um produto desejado do ciclo da mulher exceto quando a mulher tem intenção de engravidar MARTIN 2006 p 103 Estou de acordo com a sugestão de Martin e ainda acredito que podemos ir além como argumenta Haraway 1995 p 15 as feministas têm que insistir numa explicação melhor do mundo não basta mostrar a contingência histórica radical e os modos de construção de tudo A grande ousadia científica a partir de um ponto de vista feminista seria investigar um sentido adaptativo para a ocorrência da menstruação uma função própria do fluxo menstrual que definitivamente desmantelasse argumentos de que menstruação é uma sangria inútil57 Margie Profet 1993 visionária assim como sugere seu nome foi a primeira cientista a conduzir uma investigação na área de biologia evolutiva a fim de explicar por que nós mulheres menstruamos rechaçando a retórica da reprodução fracassada Seu argumento é de que o ciclo menstrual demanda um grande custo para o organismo ainda na linguagem industrial tanto em termos de nutrientes eliminação de ferro e tecido quanto 57 Aqui estou questionando as explicações científicas sobre a ocorrência de produção e exteriorização de fluxo menstrual como sangramento mensal Podemos também considerar num sentido mais amplo a ocorrência de todo o ciclo menstrual uma vez que este vem sendo compulsoriamente suprimido a partir da clínica ginecológica com a prescrição de drogas de hormônios sintéticos Os hormônios sexuais produzidos pelo corpo fazem parte do sistema endócrino de maneira ampla comunicandose com diversas funções em nosso organismo em termos físicos psíquicos energéticos e emocionais Manter o entendimento do ciclo menstrual apenas pela função reprodutiva dá vazão para o massificado e irrefletido desligamento do eixo hipotalâmico pituitárioovariano a partir do uso de fármacos contraceptivos Para uma mulher que esteja evitando gravidez não há hesitação em recomendar a interrupção da produção fisiológica de estrógeno e progesterona um homem também interessado em contracepção receberia a sugestão de desligar por completo sua produção de testosterona substituindoa por uma sintética testosterina O desenvolvimento de um contraceptivo hormonal masculino é permeado por preocupações que não se estendem às drogas oferecidas às mulheres A castração química é uma realidade para aquelas que consomem essas drogas os extensos relatos sobre queda de libido não deveriam ser denominados efeitos colaterais mas simplesmente efeitos Importante também considerar que a prescrição de drogas de hormônios sintéticos para mulheres se dá por motivos muito além de contracepção é sugerida como medicamento para variadas patologias Nos parâmetros da masculinidade parece absurda a ideia de abrir mão de hormônios sexuais precisamos considerar que estrógeno e progesterona fazem muito mais do que preparar o corpo para gestar um bebê Recentemente a educadora Lisa HendricksonJack 2019 vem inclusive sugerindo a percepção do ciclo menstrual como um quinto sinal vital ao lado de pulsação temperatura taxa de respiração e pressão sanguínea 61 em termos reprodutivos pois limita a janela de fertilidade portanto há de existir um motivo funcional para a renovação mensal do revestimento do útero e a produção de fluxo sanguíneo expelido de outro modo a seleção natural teria se encarregado há muito de eliminar tamanho esforço contínuo Se a menstruação fosse apenas um subproduto de uma concepção mal sucedida por que simplesmente não mantemos o endométrio até que um dia talvez ocorra uma gravidez Ou então por que o corpo não reabsorve o tecido intrauterino assim como o estômago renova constantemente seu revestimento interno em questão de poucos dias58 Profet argumenta que se a menstruação fosse um mero subproduto não existiriam mecanismos especialmente projetados para sua ocorrência como as artérias espiraladas que se contraem e dilatam para induzir o sangramento nem características exclusivas do sangue menstrual sua baixa coagulação que permite o fluxo Profet constrói a hipótese de que a menstruação é uma defesa contra patógenos transportados por espermatozoides Espermatozoides são vetores de doenças59 PROFET 1993 p 341 com essa afirmação ela certamente gerou polêmica na comunidade científica acostumada com valores androcêntricos É importante compreender que Profet não está interessada em tentar virar o jogo e qualificar os corpos dos homens como sujos impuros abjetos os patógenos carregados por espermatozoides que aderem a sua estrutura caudal poderiam ser provenientes dos órgãos genitais masculinos mas também da própria flora vaginal e colo do útero O muco cervical é uma barreira importante para impedir a entrada de patógenos nos órgãos superiores de nosso sistema sexual mas é justamente nos períodos próximos à ovulação60 que o muco fica mais fino e o colo mais aberto se há sexo heterossexual penetrativo sem contracepção de barreira é exatamente esse o momento em que útero tubas uterinas e ovários estão mais expostos a agentes externos 58 Martin aponta que os livros de medicina costumam descrever o processo de renovação da mucosa estomacal em termos muito mais positivos que os voltados ao tecido endométrico Não há nenhuma referência à degeneração enfraquecimento deterioração ou reparo Podese escolher entre olhar para o que acontece com o revestimento do estômago e do útero negativamente como falência e decomposição necessitando de reparos ou positivamente como produção e reabastecimento contínuos Como dois lados da mesma moeda o estômago que tanto mulheres como homens têm cai no lado positivo já o útero que apenas as mulheres têm cai no lado negativo MARTIN 2006 p 99100 59 Tradução livre No original Sperm are vectors of disease PROFET 1993 p 341 60 Em muitas espécies o sangue estral coincide com o período de ovulação e cópula Entre os seres humanos seres sociais que realizam práticas sexuais independentemente de imperativos reprodutivos haveria então o desenvolvimento de um sistema mais complexo e espaçado de proteção 62 A microscopia eletrônica demonstrou que o espermatozoide humano pode ser explorado como veículo de transporte por um vasto espectro de bactérias Patógenos que são relativamente inócuos como flora no trato reprodutivo inferior podem se tornar perniciosas no trato reprodutivo superior causando abortos espontâneos e infertilidade61 PROFET 1993 p 341 Segundo Profet nosso sistema sexual funciona de modo a revezar entre a provisão de um ambiente hostil a patógenos e receptivo a gametas O ciclo menstrual seria assim especialmente desenhado para alternar entre esses objetivos conflitivos e não apenas para construir um berço para o óvulo se implantar expressão encontrada em livros de medicina por MARTIN 2006 p 91 Profet vê então a menstruação como um eficiente método de proteção tanto de modo mecânico o sangue menstrual ajuda a expelir camadas de tecido potencialmente infectado após relação sexual quanto de modo imunológico devido a grande concentração de leucócitos62 que combatem patógenos e fagocitam tais tecidos As defesas possibilitadas pela menstruação incluiriam 1 Derramar tecido epitelial Essa é uma importante defesa contra patógenos e toxinas para todos os órgãos expostos ao ambiente externo incluindo a pele trato gastrointestinal pulmões olhos e trato urogenital 2 Secretar células imunológicas e anticorpos A rede de defesa contra patógenos primordial do corpo é o sistema imunológico 3 Reduzir o pH Um ambiente ácido geralmente é mais hostil a patógenos 4 Aumentar os níveis de lactoferrina A proteína lactoferrina é bactericida porque prende ferro muito eficazmente privando então bactérias desse elemento essencial63 PROFET 1993 p342 61 Tradução livre No original Electron microscopy has shown that human sperm can be exploited as vehicles of transport by a wide spectrum of bacteria Pathogens that are relatively innocuous as flora of the lower reproductive tract can become pernicious in the upper reproductive tract causing spontaneous abortion or infertility PROFET 1993 p 341 62 Com muito prazer encontrei uma passagem em seu artigo que evidencia o uso de coletores menstruais na década de 60 mesmo durante o longo período de latência entre sua invenção e o alcance de um mercado consumidor amplo registrase que o coletor possibilitava pesquisa científica In a study by De Merre et al 1967 the number of leukocytes per cubic millimeter of menstrual blood collected from intravaginal cups was about three times as high as that of venous blood on the first day of menstruation and twice as high on the third day PROFET 1993 p 345 grifo meu 63 Tradução livre No original 1 Shedding epitelial tissue This is an important defense against pathogens and toxins for all organs exposed to the external environment including the skin gastrointestinal tract lungs eyes and genitourinary tract 2 Secreting immune cells and antibodies The bodys primary network of defenses against pathogens is the immune system 3 Reducing pH An acidic environment generally is more hostile to pathogens 4 Increasing lactoferrin levels The protein lactoferrin is bactericidal because it binds iron very efficiently thus depriving bacteria of this essential element PROFET 1993 p 342 63 Profet realiza uma extensa argumentação no que concerne aos caminhos de biologia evolutiva investigando a ocorrência de menstruação aberta ou oculta em outras espécies mamíferas Não estenderei essa discussão aqui mas acho importante retomar a parte final de seu artigo em que ela analisa dados clínicos e aponta implicações médicas decorrentes de sua teoria Ao descrever a menstruação por vias de argumentação positivas nas quais se encontra uma função própria para o fluxo menstrual Profet vai de encontro a toda a clínica médica e indústria farmacêutica que apoia e lucra com a supressão da menstruação Se o sangue menstrual é um importante meio de defesa é preciso considerar que um súbito aumento de fluxo ou sua ocorrência em momento atípico podem ser indicadores de que o corpo está reagindo a uma infecção instalada É comum que médicos prescrevam tratamentos com drogas de hormônios sintéticos para diminuir ou estancar o fluxo acreditando que o próprio sangue é responsável pela proliferação de doenças64 Profet recomenda o contrário ao invés de combater o sangramento devese realizar exames para averiguar a possibilidade de infecção que a abundância menstrual estaria denunciando65 Se menstruação é uma adaptação tecnologias contraceptivas de supressão menstrual promoveriam em alguns casos infecções uterinas Mulheres que nunca tiveram intercurso sexual provavelmente poderiam suprimir menstruação com segurança mas para aquelas com histórico de intercurso sexual é preciso ser cuidadosa acerca de supressão mesmo que estejam correntemente abstinentes sexualmente Uma vez que o útero foi colonizado por bactérias ele pode se beneficiar de limpezas periódicas para prevenir a recolonização por vestígios persistentes de patógenos Mulheres que optam por suprimir a menstruação deveriam não apenas estar especialmente alertas aos sinais e sintomas de infecções como também deveriam tentar prevenir infecções com o uso de alguma forma de proteção de barreira66 PROFET 1993 p 368 64 Assim registra Natansohn 2005 p 293 na fala do ginecologista José Bento Você já imaginou se o parceiro tem alguma doença sexualmente transmissível com aquele monte de sangue que a bactéria adora que aquilo lá é um caldo de cultura pra bactéria um alimento para a bactéria Profet contraargumenta esse tipo de afirmação a partir da acentuada presença de lactoferrina no sangue menstrual 65 No Capítulo 4 abordarei o conceito de literacia corporal ferramenta de compreensão dos sinais corporais com ênfase na percepção de sinais próprios do ciclo menstrual 66 Tradução livre No original If menstruation is an adaptation menstruationsuppressing contraceptive technologies would in some cases promote uterine infection Women who have never had sexual intercourse probably could suppress menstruation safely but women with a history of sexual intercourse may want to be cautious about suppressing menstruation even if they are currently sexually abstinent Once the uterus has been colonized by bacteria it may benefit from periodic cleansing in order to prevent tenacious strains of pathogens from recolonizing it Women who opt to suppress menstruation should not only be especially alert to the signs and symptoms of infection they should also try to prevent infection by using some form of barrier protection PROFET 1993 p 368 64 À época de sua publicação o estudo de Margie Profet foi recebido ao mesmo tempo com admirado entusiasmo e cética desconfiança Sua carreira foi alavancada a partir de artigos lançados nas revistas Quarterly Review of Biology e Evolutionary Theory a respeito de três temas analisados sob a perspectiva da imunologia menstruação alergias e enjoos matinais Essas publicações lhe renderam o Genius Grant conferido pela MacArthur Foundation em 1993 prêmio com qual ela pôde financiar a publicação de dois livros Mesmo com esse apoio institucional e o posicionamento confiante de alguns pesquisadores67 sua teoria sobre menstruação foi muito mais acolhida pela imprensa do que por demais cientistas Com manchetes como A curse no more68 e Radical new view of the role of menstruation Profet figurou reportagens na revista People e no jornal The New York Times além de outros periódicos Na academia a única resposta substancial à teoria da menstruação como defesa foi elaborada em 1996 por Bervely Strassmann que procurou refutar os argumentos de Profet e elaborar sua própria análise evolutiva sobre a razão da existência do fluxo menstrual Enquanto cientista social minha intenção ao apresentar a teoria de Profet não é conferir a validade de suas hipóteses mas apontar que é possível realizar pesquisa científica contornando os preceitos pejorativos das ordens práticosimbólicas da menstruação que tomam o fluxo menstrual como sujo vergonhoso repulsivo e inútil Assim orienta Farganis 1997 p 227 o analista social não está interessado na verdade da ciência e sim em seus aspectos sociais isto é nas formas pelas quais ela é praticada e defendida O problema que aqui podemos identificar é que mesmo que Profet tenha sido capaz de contornar tais valores eles ainda são hegemônicos na sociedade Talvez isso explique por que a despeito de sua contribuição vanguardista para a biologia evolutiva a pesquisa de Profet tenha caído em esquecimento pela comunidade científica e não foi ampla e seriamente investigada por seus pares Ao indagar sobre o impacto dos feminismos na ciência Fox Keller pondera se as mudanças constatadas nas agendas de pesquisa seriam resultado da maior presença de mulheres no meio científico Depois de deparar com o exasperante protagonismo 67 Como relata a reportagem de Natalie Angier 1993 Its an astonishing piece of work said Dr Donald Symons a professor of anthropology and an evolutionary theorist at the University of California at Santa Barbara Its a fitting together of many disparate elements into one coherent explanatory system and its wonderful Its exactly what a scientific theory should be Hers is the first real attempt at a functional analysis of menstruation and Im really sure shes on the right track said Dr George C Williams a professor emeritus of ecology and evolution at the State University of New York at Stony Brook Im sure her approach will turn out to be extremely fruitful stimulating people to look for evidence for or against the hypothesis 68 Em tradução livre Não mais uma maldição Curse maldição é um disfemismo bastante utilizado em língua inglesa para se referir à menstruação 65 histórico de homens nos difamatórios discursos médicos e científicos sobre menstruação é um alívio querer acreditar que apenas uma mulher poderia pensar da maneira como Profet pensou que apenas uma mulher poderia ter empreendido a tarefa científica de romper com a narrativa da reprodução fracassada e do sangue sujo Afinal foi mesmo o olhar de uma mulher que enxergou a necessidade de se realizar uma análise evolutiva da menstruação69 Mas Profet é uma figura solitária rodeada ainda por uma ciência sexista Fox Keller alerta que somente a promoção de inserção de mulheres nos espaços científicos não é capaz de transformar os paradigmas da ciência e reorientar suas perguntas de pesquisa até mesmo porque muitas vezes as mulheres cientistas sofrem pressões específicas para se adequar ao pensamento e práticas vigentes em busca de legitimar sua presença em espaços historicamente dominados por homens Segundo ela nem mesmo a produção epistemológica feminista surtiu grande impacto transformador as reorientações que aconteceram no campo científico se deveriam mais às oportunidades de aberturas cognitivas produzidas pelas mudanças sociais decorrentes dos movimentos de militância Os feminismos provocaram novos ângulos novas maneiras de ver o mundo de ver mesmo as coisas comuns FOX KELLER 2006 p 30 inclusive para aquelas pessoas que não se reconhecem como feministas O gênero faz diferença para as mulheres na ciência não por causa do que trazem com seus corpos e às vezes nem mesmo pelo que podem trazer com sua socialização mas pelas percepções que as culturas da ciência trazem à comunidade tanto das mulheres quanto do gênero e por sua vez por causa do que tais percepções trazem para os valores comuns de disciplinas científicas particulares Foram as próprias mulheres que mudaram o fazer da ciência Por seu próprio exemplo trouxeram uma nova legitimação dos valores tradicionalmente femininos para a prática da ciência Assim colocado minha resposta seria provavelmente não diria que a presença corriqueira de mulheres em posições de liderança e autoridade na ciência ajudou a erodir o sentido de rótulos tradicionais de gênero no próprio campo em que trabalhavam e para todos os que estavam trabalhando nesse campo FOX KELLER 2006 p 2931 69 Atualmente mais mulheres estão engajadas em desmantelar estigmas menstruais a partir de argumentos científicos ainda que seus trabalhos sejam pouco difundidos frente ao domínio da indústria médico farmacêutica e da indústria cosmética Barranco et al 2016 grupo de pesquisadoras da Universidade de Granada empenhamse em inverter a crença do sangue menstrual como contaminante a perspectiva sob a qual estudos acerca de menotoxinas foram realizados perguntando quão contaminada está nossa menstruação Ao observar crescentes queixas de dores menstruais e casos de endometriose as pesquisadoras passaram a procurar por produtos químicos danosos que estivessem sendo expelidos pela menstruação uma perspectiva que afinal assemelhase a de defesa imunológica de Profet Em 2015 elas recolheram amostras de sangue utilizando coletores menstruais e constataram acentuada presença de parabenos e benzofenomas no material Os parabenos possuem estrutura molecular parecida com os estrógenos ocasionando um efeito endócrino disruptivo Parabenos são amplamente encontrados em produtos cosméticos de shampoos e hidratantes até aqueles desodorantes próprios para região íntima e inclusive em absorventes descartáveis externos e internos 66 A menos que os valores sociais negativos acerca da menstruação sejam assim erodidos a voz de Profet continuará ressoando como uma excentricidade no pensamento científico Mesmo que existam pesquisas que procurem demonstrar que o sangue menstrual não é uma substância imunda e abjeta continuaremos a ser constantemente solapadas por discursos hegemônicos que reiteram sua asquerosidade A condução de estudos científicos e afirmações médicas que perpetuam estereótipos negativos sobre menstruação consegue muito mais evidência do que os estudos que procuram refutálos A suposição reformista de que as mulheres podem conseguir uma parte igual de poder e privilégio numa ciência ou sociedade dominada por um estrato dirigente dedicado a manter sua hegemonia e que proclama de fato sua inevitabilidade e naturalidade é intrinsecamente insustentável Para trabalhar eficazmente dentro dessa instabilidade precisamos evitar nos iludir ou exagerar nossos sucessos eventuais limitados e frequentemente temporários ou nos culpar indevidamente pelos fracassos Assim quando a ciência de uma sociedade é reconhecida como uma expressão de sua ideologia o repetido ressurgimento em nossa mídia de hipóteses biológicas deterministas em novos disfarces não constitui mais um fenômeno misterioso ou aberrante Representa a maneira de pensar necessária à preservação de uma sociedade baseada na hegemonia de uma elite que também está incorporada na forma de pensar de seus cientistas BERMAN 1997 p 247248 67 3 INSERINDO O COPINHO COLETANDO DADOS Neste capítulo irei apresentar o coletor menstrual a partir da perspectiva de algumas mulheres usuárias do dispositivo na cidade de Salvador Para tanto primeiramente vou expor um panorama histórico dos dispositivos menstruais industrializados a fim de identificar os momentos de invenção tentativas de comercialização e efetiva instauração do coletor como produto presente na vida de mulheres em relação aos modelos descartáveis analisando suas relações com etiquetas menstruais vigentes e estigma sobre o sangue Em seguida argumentarei as escolhas metodológicas para condução desta pesquisa salientando a inextricabilidade entre posição epistemológica atributos próprios do assunto pesquisado e técnica de coleta de dados alinhada a tais características Irei então descrever o percurso de realização da pesquisa e a resolução de desafios no decorrer da investigação Adiante retratarei os grupos de mulheres participantes deste estudo a partir de três palavraschave que identifico como definidoras dos encontros promovidos adaptação desenvoltura e assertividade 31 BREVE HISTÓRICO DOS DISPOSITIVOS MENSTRUAIS70 Durante a maior parte do século XX o uso de faixas de tecidos nos dias de menstruação era o recurso mais comum para conter o fluxo Pequenos pedaços de pano dobrados em três camadas forravam as roupas íntimas das mulheres e se escondiam entre os varais de roupa lavada todos os meses Vários protótipos de dispositivos menstruais foram patenteados desde o século XIX sem nunca terem sido fabricados quanto menos comercializados É o caso do saco catamenial registrado pela primeira vez em 1867 por um 70 As informações presentes nesta seção foram compiladas no já citado Museum of Menstruation e nos diversos sites das marcas dos produtos aqui descritos 68 homem identificado como S L Hockert pode ser considerado um predecessor dos coletores por prefigurar a ideia de um objeto de uso interno que recolhesse o sangue menstrual mas também apresentava características idiossincráticas como um fio rígido que atravessa o canal vaginal acoplado por um prego a um cinto em torno do abdômen FIGURA 07 PATENTE DE SACO CATAMENIAL 1867 Fonte Catamenial Patents Disponível em httpspatentsgooglecompatentUS70843 Acesso em mar 2019 Ainda sem grande relevância comercial na década de 1890 surgiu na Alemanha o primeiro absorvente descartável registrado pela marca Hartmanns em 1896 as Listers Towels da Johnson Johnson também descartáveis foram desenvolvidas nos Estados Unidos Foi apenas após a primeira guerra mundial que uma empresa realmente começou a fabricar e distribuir absorventes em larga escala KimberlyClark inspirada pelos usos que enfermeiras francesas faziam de ataduras de celulose durante a guerra criou os absorventes descartáveis da marca Kotex em 1921 Para estimular as vendas e contornar os pudores e restrições que a etiqueta menstrual da época demandava das mulheres para a aquisição de produtos íntimos foram elaboradas nos estabelecimentos comerciais pequenas caixas onde as clientes depositavam dinheiro sem precisar se comunicar diretamente com o farmacêutico e este a entregava o produto já bem embalado de modo discreto Em 1926 surge no mercado 69 estadunidense o absorvente da marca Modess que mais tarde se tornou um fenômeno mundial inclusive no Brasil Em 1933 Modess começou a ser importado para nosso país mas o uso dos paninhos permaneceria ainda por décadas quase unânime Durante a década de 1930 outros dispositivos surgiram nos Estados Unidos mas não alcançaram sucesso em 1933 Earle Hass médico osteopata desenvolveu Tampax absorvente interno com aplicador vendido em pequena escala Em 1937 depois de diversos registros de modelos de copos menstruais71 a pioneira tentativa de comercialização do coletor menstrual foi efetivamente empreendida Leona Watson Chalmers atriz e cantora vinha desde 1935 elaborando um dispositivo que a permitisse atuar sob as fortes luzes dos holofotes em figurinos diáfanos e alvos sem ocasionar manchas nos tecidos ou marcas de cintas e fivelas sob as roupas Ela desenvolveu um modelo que inovava em relação aos sacos catameniais catalogados até então pois sua prioridade era que o dispositivo se sustentasse autonomamente através da anatomia do canal vaginal dispensando a necessidade de apetrechos externos que dificultavam seus movimentos nos palcos Chalmers foi a mulher responsável por patentear fabricar e divulgar o coletor Tassette reutilizável e produzido em borracha Esse era um material abundante durante a segunda guerra mundial mas rígido demais duro e pesado para um coletor A inventora procurou estabelecer parceria com médicos e farmacêuticos para disseminar sua criação e inclusive lançou livros com os títulos The intimate side of a womans life 1937 e Womans personal hygiene 1941 a fim de elucidar dúvidas sobre saúde ginecológica e uso de seu produto Tanto o coletor quanto o absorvente interno ainda eram encarados com muita desconfiança pois precisavam ser inseridos no canal vaginal e requeriam constante manipulação da genitália e penetração dos dedos indo contra as normas de decoro e moralidade vigentes FIGURA 08 BIOGRAFIA DE CHALMERS 1937 EM LIVRO DE SUA AUTORIA72 71 Para acompanhar as tentativas de elaboração dos dispositivos menstruais desde o século XIX é possível acessar patentes completas com ilustrações e descrições no acervo Catamenial Patents disponível em httpscatamenialpatentswordpresscominternalproducts Acesso em fev 2019 72 Tradução livre Durante sua estreante carreira como atriz e cantora Leona Chalmers se tornou agudamente consciente das necessidades de improvisos especiais nos métodos utilizados para higiene íntima feminina tema que a interessava há bastante tempo Quando sua filha nasceu ela decidiu deixar os palcos e devotar seu tempo no desenvolvimento de produtos mais seguros mais limpos e mais confortáveis para esse propósito Focando atenção especial em proteção sanitária Sra Chalmers solicitou a ajuda de diversos ginecologistas 70 Fonte Museum of Menstruation Disponível em httpwwwmumorgCupPat1htm Acesso em mar 2019 reconhecidos que trabalharam junto dela no projeto O coletor menstrual TASSETTE é o resultado de anos de pesquisa incansável e experimentos e merece alta posição na higiene pessoal das mulheres 71 FIGURA 09 REGISTRO DE PATENTE DO COLETOR TASSETTE Fonte Catamenial Patents Disponível em httpspatentsgooglecompatentUS2089113 Acesso em mar 2019 Enquanto esses dispositivos enfrentaram décadas de latência entre os produtos de higiene menstrual o absorvente descartável externo utilizado com a ajuda de alfinetes cintas e suspensórios foi ganhando cada vez mais confiança entre consumidoras inclusive brasileiras Em 1945 Modess começou a ser industrializado no Brasil e investiu bastante em publicidade a fim de conquistar maior público e derrubar preconceitos anunciando um modelo de mulher moderna e distribuindo panfletos de educação reprodutiva para convencer mulheres e meninas a respeito de vantagens do absorvente descartável73 Na década 73 Outro exemplo é da marca Kotex como nos mostra Felitti 2016 p 178 Las niñas escolarizadas reciben información desde un enfoque predominantemente biomédico sea por parte de sus docentes sea por profesionales de la salud que participan de proyectos financiados por empresas de higiene femenina A mediados del siglo XX para captar al público consumidor joven las empresas comenzaron a crear sus propias oficinas educativas En 1946 KimberlyClark fabricante de Kotex se unió a Disney para lanzar el corto animado La historia de la menstruación The history of menstruation Este audiovisual iba acompañado de un pequeño libro que tenía el formato de un diario íntimo con el título Muy personalmente tuyo Very personally yours Algunas investigaciones afirman que esta película fue utilizada en los Estados Unidos durante 35 años y vista por alrededor de 105 millones de niñas y jóvenes Luker 20078591 En este corto se dice que la menstruación no es una enfermedad se aconseja bañarse y estar activa descartando movimientos bruscos El 72 de 1950 foi criada a figura de Anita Galvão uma espécie de serviço de atendimento à consumidora constituído por seis pedagogas para o qual eram endereçadas cartas contendo dúvidas das correspondentes Tanto foi o êxito da referência de Anita Galvão que as consumidoras passaram inclusive a confidenciar em suas cartas problemas pessoais e conjugais buscando apoio nessa figura solícita Desde então Modess se tornou tamanho sucesso no Brasil que serve até hoje como metonímia para absorvente74 Ainda na década de 1950 Judith Esser Mittag uma ginecologista alemã desenvolveu o ob um absorvente interno sem aplicador ele só foi ganhar espaço no mercado brasileiro duas décadas depois Em 1959 Leona Chalmers negociou com o empresário aposentado Robert Oreck e foi criada a empresa Tassette Inc em uma nova tentativa de comercializar o coletor menstrual Oreck conduzia seus empreendimentos em família e nem ele ou seus filhos ficaram entusiasmados com a proposta de Chalmers até que sua esposa Shirley Oreck experimentou um exemplar de Tassette e o aprovou Houve um forte investimento na produção e divulgação do coletor e Tassette figurou inclusive um outdoor na Times Square em Nova York no ano de 1961 sob o eufemismo da ilustração de uma tulipa para representar o dispositivo FIGURA 10 OUTDOOR DO COLETOR TASSETTE EM TIMES SQUARE75 modelo de feminidad al que apela se basa en la compostura y la discreción y tiene como horizonte la heterosexualidad el matrimonio y la maternidad 74 À época o único concorrente direto de Modess era a marca Miss das Indústrias York 75 Tradução livre Dizse representar o primeiro anúncio em outdoor na Times Square voltado a um item de higiene pessoal feminina essa placa de 9X12metros promovendo Tassette foi erguida na Broadway com 46ª rua em Nova York 73 Fonte Korui Disponível em httpswwwkoruicombrwpcontentuploads201707TasTimSqjpg Acesso em mar2019 A historiadora Kelly ODonnell 2017 relata que a empresa enfrentava dificuldades de orçamento pois o empreendimento dos coletores ia à contramão dos produtos descartáveis que ascendiam à época estes alavancavam a partir dos estigmas menstruais de sujeira e ojeriza jogar a menstruação e seus sinais no lixo era afirmação de modernidade As clientes conquistadas por Tassette demoravam muito a voltar a consumir o produto justamente por sua durabilidade que podia perdurar anos Dessa maneira não se formava mercado de consumo do coletor e uma versão descartável para concorrer com os absorventes parecia ser a saída Em 1969 foi lançado Tassaway um coletor nãoreutilizável Com investimento milionário em acordos com redes de farmácias e lojas de conveniências publicidade em revistas populares e até mesmo comercial na televisão no ano de 1971 ODONNELL 2017 a empresa vendeu cerca de cinco milhões de caixas cada uma contendo oito coletores e cativou algumas usuárias entusiastas inclusive nos grupos de ativismo feministas que começavam a se articular O célebre livro Our bodies ourselves BOSTON WOMENS HEALTH BOOK COLLECTIVE 1970 chegou a sugerir o uso de Tassaway mas em 1972 a 74 empresa havia decidido sair do mercado deixando para trás algumas clientes inconformadas como relata ODonnell 2017 Usuárias fieis de Tassaway não estavam felizes com a perda de seu produto preferido Em escritos de 1981 uma pessoa exfuncionária da empresa estimou que mais de vinte mil mulheres escreveram cartas para a companhia nos anos seguintes ao fenecimento do coletor Algumas estavam desesperadas e às vezes até mesmo um tanto raivosas e exigentes Uma mulher suplicou Acuda Eu esgotei seu produto e não consigo encontrálo nas prateleiras de nenhuma loja em nenhum lugar Se vocês retiraram seu produto do mercado ela clama por favor me enviem um suprimento de dois anos do que lhes restou até que sua empresa comece a vender Tassaway novamente Ela estava claramente incomodada Estou cansada de ficar encharcada manchada e coçando POR FAVOR RESPONDA RÁPIDO Ao final de junho de 1977 outra mulher implorou Vocês precisam me vender alguns ou me encaminhar para alguém que estoque seu produto Eu não consigo viver sem ele e não há nada que chegue nem mesmo perto de comparação Socorro Mas essas mulheres não obtiveram resposta O estoque remanescente de Tassaways adquirido por atacado por grandes cadeias e farmácias locais diminuiu enquanto consumidoras fieis acumularam os últimos coletores As cem mil caixas finais de Tassaway foram vendidas em lotes diretamente a mulheres individualmente76 FIGURA 11 ANÚNCIO DO COLETOR TASSAWAY77 76 Tradução livre No original Loyal Tassaway users were not happy about losing their preferred product Writing in 1981 a former company official estimated that more than 20000 women wrote letters to the company in the years following the cups demise Some were desperate and even sometimes quite angry and demanding One woman pleaded Help I have run out of your product and cannot find it on the shelf of any store anywhere If you have taken your product off the market she urges please send me a two years supply of what you have left until your company starts selling Tassaway again She was clearly distraught I am tired of flooding soiling and itching PLEASE RESPOND SOON As late as June 1977 another woman begged You have just got to sell me some or refer me to someone who carries your product I cant live without it and there is just nothing that even comes close to compare with it Help But these women received no replies The remaining stock of Tassaways bought in bulk by large chains and local pharmacies dwindled as loyal customers hoarded the last cups The last 100000 boxes of Tassaways were sold in case lots directly to individual women ODONNELL 2017 77 Tradução livre Introduzindo o primeiro produto menstrual que não absorve nada Chamase Tassaway Um pequeno copo que coleta seu fluxo menstrual ao invés de absorvêlo como tampões e forros fazem E desenhado para te proporcionar a proteção interna gentil que outros produtos menstruais não conseguem Com Tassaway não há mais preocupação sobre chegar ao banheiro feminino antes de um acidente Sem mais forros volumosos cintos ou fivelas para vestir Sem mais papelão e fios Tassaway é feito de material suave e flexível que é amaciado com o calor corporal Então uma vez que você o dobra e insere ele se adapta ao formato interior de seu corpo O que significa que não há chance de vazamentos ou qualquer odor E porque Tassaway coleta mais que tampões ou forros você não precisa trocálo com tanta frequência Mesmo nos dias mais pesados Tassaway é a primeira coisa a surgir em trinta anos que não é um tampão ou um forro É tão novo e diferente que toda a ideia pode parecer um pouco estranha para você Mas se funciona melhor que aquilo que você vem usando todos esses anos e nós te devolvemos seu dinheiro se você não concordar não acha que vale uma tentativa 75 Fonte Museum of Menstruation Disponível em httpwwwmumorgTassawayAdgif Acesso em mar 2019 Enquanto a curta e pontualmente impactante existência do coletor se dava em solo estadunidense no Brasil a década de 1970 foi marcada por duas grandes novidades em 1974 houve o lançamento do ob primeiro absorvente interno produzido no país e da marca de absorventes externos Sempre Livre pertencente à companhia Johnson Johnson Nesse ano foi lançado o primeiro absorvente com cola aderente à calcinha aposentando definitivamente o uso de cintas e alfinetes Com o passar do tempo diversas versões foram criadas no mercado dos absorventes em 1979 surgiu a versão desodorante em 1989 as opções de cobertura seca e suave na década de 90 uma linha especial para adolescentes além dos absorventes com abas os de versão noturna e de versão ultrafina No começo dos anos 2000 as novidades eram os formatos anatômicos que se ajustam às calcinhas mais estreitas comumente usadas no Brasil e a versão termocontrol que anuncia evitar o abafamento da vulva Frente a tantas inovações Modess foi perdendo espaço a partir da década de 1990 e definitivamente foi retirado do mercado brasileiro em 2008 76 A publicidade em torno dos absorventes sempre foi profusa e a linguagem utilizada nos anúncios precisou ser criativa para tergiversar pudores Como MIGUEL et al 2016 demonstram em análise de 157 anúncios publicitários veiculados entre 1950 e 2015 no Brasil e no exterior estratégias de abstração das funções corporais e emprego de metáforas higienizadoras são recursos amplamente utilizados para vender tais produtos sem tensionar os estigmas vigentes Com efeito é inclusive reforçando o estigma menstrual que as campanhas se alicerçam Enunciados pedagogizantes e exaltação de imagens de mulher moderna diferentes de acordo com as décadas mas invariavelmente limitantes orientam valores sobre feminilidade78 Enquanto os absorventes industrializados adentravam o cotidiano das mulheres a ponto de se tornarem itens presentes e inevitáveis a cada ciclo a partir da menarca o coletor menstrual ressurgiu silenciosamente nos Estados Unidos no final da década de 1980 Em um momento no qual havia um público interessado em alternativas ecológicas aos produtos descartáveis tanto pelos movimentos de ativismo de preservação ambiental quanto pelo pânico promovido por centenas de casos de Síndrome do Choque Tóxico pelo uso de absorventes internos houve um ligeiro resgate dos absorventes de pano e em 1987 Lou Crawford antiga usuária de Tassaway ODONNELL 2017 foi a responsável por desenvolver The Keeper o primeiro coletor menstrual a obter sucesso de mercado Reutilizável e produzido em látex oferecia duas opções de tamanho para contemplar mulheres que haviam ou não vivido uma gestação Em 1989 o coletor Gynaeseal foi lançado na Austrália e oferecia um aplicador para realizar a inserção assim como o fazem algumas marcas de absorvente interno Gynaeseal não conquistou muitas usuárias pois esse sistema de aplicação se mostrava mais trabalhoso do que inserir com as próprias mãos Em 1996 foi lançado nos Estados Unidos o Instead um coletor descartável de polietileno que mais tarde passou a se chamar Softcup Este coletor é atualmente vendido sob a marca Prudence no Brasil e é um modelo que pode ser utilizado inclusive durante sexo penetrativo pois se aloca próximo ao colo do útero ao contrário dos demais coletores que ficam posicionados à entrada do canal vaginal seu formato e maleabilidade são semelhantes a um diafragma ressalto que não é um método contraceptivo 78 Recentemente o fenômeno do femverstising feminist advertising ou publicidade feminista está reformulando as estratégias de marketing de grandes empresas e há bastante controvérsia sobre o uso do conceito empoderamento no que concerne a essas novas campanhas Para acompanhar um estudo de caso NASCIMENTO DANTAS 2015 77 FIGURA 12 COLETORES HISTÓRICOS TASSETTE TASSAWAY THE KEEPER E INSTEAD Fonte Museum of Menstruation Disponível em httpwwwmumorgMenCupshtm Acesso em mar2019 Finalmente em 2002 foi lançado o primeiro coletor produzido em silicone medicinal material hipoalergênico que passou a ser referência para coletores de alta qualidade Mooncup do Reino Unido foi criado por Su Hardy Ao longo da primeira década do século XXI vários outros coletores foram produzidos e alcançaram bastante sucesso principalmente na Europa Estados Unidos e Canadá Em 2004 o canadense DivaCup foi desenvolvido por Francine e Carinne Chambers em 2005 o finlandês Lunette foi elaborado por Heli Kurjanen Em 2010 Mariana Betioli lançou no Brasil a primeira marca fabricada nacionalmente Misscup que passou a se chamar Inciclo foi por cerca de cinco anos a única opção brasileira para aquelas que não queriam importar o produto É bastante relevante notar o protagonismo de mulheres no empreendimento com coletores desde Leona Chalmers na década de 1930 até as marcas atuais Já em 1937 em um dos primeiros anúncios de Tassette proclamavase Foi preciso uma mulher para aliviar a mais penosa provação das mulheres79 79 Tradução livre No original It took a woman to ease womens most trying ordeal Vintage Ads Disponível em httpsvintageadslivejournalcom2976225html Acesso em mar 2019 78 FIGURA 13 ANÚNCIO DO COLETOR TASSETTE ENFATIZANDO QUE O PRODUTO FOI DESENVOLVIDO POR UMA MULHER SETEMBRO 193780 Fonte Vintage Ads Disponível em httpsvintageadslivejournalcom2976225html Acesso em mar 2019 80 Tradução livre Sra Leona W Chalmers inventa proteção invisível tão confortável que você nunca irá senti la tão segura que você sempre ficará à vontade Foi preciso uma mulher para aliviar a mais penosa provação das mulheres Dispositivos volumosos para proteção sanitária sempre causaram extremo concernimento às mulheres A função natural e periódica normalmente não é nem pela metade tão dolorosa para a mulher moderna e ativa quanto o medo de sujeira e odor e as possíveis irritações de forros inseguros Sra Leona W Chalmers autoridade em higiene interna e autora de O lado íntimo da vida da mulher decidiu fazer algo a respeito e ela fez Guiada por ginecologistas e outros médicos que realizam um estudo dos delicados órgãos fêmeos Sra Chalmers criou o Tassette Hoje esse coletor macio de borracha pura oferece às mulheres maduras proteção sanitária cientificamente segura Ele bane o medo de odor e sujeira Ele elimina completamente o problema de descarte Médicos o recomendam por suas qualidades nãoirritantes Sem cintos sem fivelas sem forros Usuárias regulares de Tassette dizem que nunca o sentem pois é tão confortável nunca pensam sobre ele pois é tão seguro elas aproveitam paz mental porque ele é invisível Tassette é feito em tamanho único Apenas um dólar e você o usa mês após mês Se seu farmacêutico ainda não recebeu seu estoque de Tassettes nos envie um dólar e nós iremos felizmente despachar a você um Tass ette em pacote discreto e uma cópia GRÁTIS de novo livreto A conquista sobre o desconforto feminino que ilustra e descreve completamente o uso dessa incrível nova proteção Envie seu cupom hoje Tassette Aceito para publicidade pela Associação Médica Americana Patente solicitada 79 Em 2019 existem seis marcas de fabricação brasileiras São elas Inciclo Fleurity Violeta Cup FreeCup Korui e Lumma Esta última oferece um coletor próprio para sexo penetrativo em versão reutilizável o que é novidade no mercado81 Acompanhei o lançamento e recepção de algumas dessas marcas desde 2015 É muito recente a expansão desse mercado e é notável a abundante variedade de modelos que atendem a diferentes necessidades Hoje é possível escolher entre marcas nacionais de acordo com diversos critérios formatos ranhuras comprimentos bordas diâmetros texturas cabinhos furos de vedação capacidade de volume gradação em mililitros maleabilidade ou rigidez venda física ou por internet e é claro preço Há controvérsias sobre o uso de corantes na fabricação de coletores mas é comum que cor seja também um critério entre consumidoras inclusive para aquelas que deliberadamente optam pelos transparentes Além disso algumas dessas marcas ampliam seus negócios abrangendo o incipiente comércio de absorventes de tecido calcinhas e biquínis menstruais e acessórios para higienização de coletores A publicidade dessas marcas acompanha a efervescência das mídias digitais e aposta nas plataformas onde há interação direta entre as consumidoras como Facebook Instagram e Youtube Uma análise das estratégias simbólicas argumentativas e afetivas mobilizadas pelas campanhas publicitárias dos coletores ainda está para ser feita e deixo aqui como sugestão de tema para comunicólogas interessadas82 FIGURA 14 MOONCUP PRIMEIRO COLETOR PRODUZIDO EM SILICONE E MISSCUP PRIMEIRO COLETOR BRASILEIRO 81 Também conhecido como coletor cervical ou disco cervical Atualizo a informação de que a marca Inciclo também está lançando um coletor desse modelo em novembro de 2019 com o nome Lovin 82 Como aponta Felitti os discursos publicitários acerca do coletor menstrual atualmente são muito diferentes daqueles mobilizados no início do século XX por Tassette Chalmers buscaba facilitar el deporte durante la menstruación y ofrecer una protección invisible que diera confianza a las mujeres En una publicidad se afirmaba que la copa podía evitar la pesadilla de la menstruación el terror del olor el sentimiento de impureza MUM web beneficios muy distintos opuestos incluso a los que difunden las promotoras de este dispositivo en la actualidad FELITTI 2016 p 182 80 Fonte Tn2Magazine Misscup Campinas Disponível em httpswwwtn2magazineiemooncupreview httpmisscupcampinasblogspotcom Acesso em 2019 FIGURA 15 COLETORES DE FABRICAÇÃO BRASILEIRA PRIMEIRO SEMESTRE DE 2019 RESPECTIVAMENTE INCICLO FLEURITY KORUI VIOLETA CUP FREECUP E LUMMA EM TRÊS VERSÕES Fonte Papo de Copinho Disponível em httpsyoutubeB1BniiHArYg Acesso em mar 2019 32 ESCOLHA METODOLÓGICA E PERCURSO DA PESQUISA Para investigar a questão orientadora desta pesquisa a saber se a emergência do coletor menstrual vem transformando as ordens práticosimbólicas da menstruação vigentes elenquei como objetivos específicos 1 analisar as características próprias do coletor que demandam conhecimento e toque do corpo e do fluxo tensionando os estigmas menstruais e aquilo que Young 2005 denomina alienação corporal e 2 analisar a construção desse 81 conhecimento que em observação prévia acompanhamento de redes sociais nas mídias digitais desde 2015 apresentase de maneira horizontalizada em redes de mulheres desafiando as normas de etiqueta menstrual YOUNG 2005 os imperativos de manter a menstruação sob a alcunha do segredado FÁVERI VENSON 2007 e rearticulando forças na disputa pelo poder simbólico da menstruação SARDENBERG 1994 assim como os discursos legítimos sobre corpo saúde sexualidade e autonomia principalmente no que concerne à autoridade médica e midiática frente à percepção corporal desenvolvida pelas mulheres usuárias do copinho Sendo assim decidi que a técnica metodológica em consonância mais afinada para essa perspectiva é a realização de grupos focais uma vez que tal ferramenta poderia permitir acessar esse tipo de conhecimento em rede no momento mesmo da pesquisa Em um primeiro instante planejava trabalhar a partir de uma série de entrevistas com mulheres usuárias de coletor menstrual mas constatei que esse formato individualizado não contemplaria a proficuidade que os grupos poderiam fomentar alinhados à própria lógica já encontrada nas mídias digitais e àquilo que identifiquei a respeito da construção dos conhecimentos sobre coletores corpos e menstruação Dessa maneira a escolha metodológica dos grupos focais é baseada nas características intrínsecas do assunto pesquisado e como ele se apresenta Luciana Kind 2004 em artigo orientador para o uso da técnica do grupo focal enfatiza o caráter relacional do procedimento os dados obtidos são diferentes de uma compilação de entrevistas individuais num mesmo espaço físico As informações produzidas pelos grupos focais surgem justamente a partir do diálogo da troca da escuta da interação da experiência compartilhada e da discussão Da mesma maneira o acesso escolha informações para adaptação técnicas corporais queixas e soluções para o uso dos coletores são elaboradas a partir desses recursos coletivos muito mais do que num percurso isolado busca solitária eou passividade frente a informações ou num sentido hierárquico figura que pressupõe deter conhecimento instruindo a figura supostamente ignorante Os grupos focais utilizam a interação grupal para produzir dados e insights que seriam dificilmente conseguidos fora do grupo Os dados obtidos então levam em conta o processo do grupo tomados como maior do que a soma das opiniões sentimentos e pontos de vista individuais em jogo A despeito disso o grupo focal conserva o caráter de técnica de coleta de dados adequado a priori para investigações qualitativas Tomemos então o grupo focal como um procedimento de coleta de dados no qual o pesquisador tem a possibilidade de ouvir vários sujeitos ao mesmo tempo além de observar as interações características do processo grupal Tem como objetivo obter uma variedade de informações 82 sentimentos experiências representações de pequenos grupos acerca de um tema determinado KIND 2004 p 125 A autora salienta que a técnica de grupos focais é indicada quando a interação pode fomentar respostas mais interessantes que o discurso isolado quando a pressão de participantes homogêneos facilita suas reflexões e também incita opiniões contrárias quando o tema não é tão delicado a ponto de constranger respostas e quando todos os participantes estão aptos a discutir o assunto KIND 2004 p 127 Essas condições são contempladas em minha escolha de recorte para composição da amostra para Aschidamini Saupe 2004 p 10 a amostra é intencional e os critérios sexo idade escolaridade diferenças culturais estado civil e outros podem variar devendo todavia ter pelo menos um traço comum importante para o estudo proposto Elenquei como fator comum entre as participantes a situação de usarem coletor menstrual não importava se gostavam ou não se se consideravam bem adaptadas ou não a extensão do período de tempo desde que o adquiriram ou se utilizavam outros dispositivos concomitantemente O único critério era que tivessem alguma experiência com o uso do coletor menstrual Aschidamini Saupe 2004 p 10 também enfatizam a importância de que a decisão para participar de um grupo focal deve ser individual e livre de coação cabendo à pesquisadora explicitar as condições da pesquisa e cuidados éticos acionados Iniciei o processo de chamada para os grupos no começo de dezembro de 2018 e recorri a redes já conhecidas em Salvador e na internet para divulgar a pesquisa e convocar usuárias de coletor Assim elaborei um panfleto onde me apresentava e indicava a proposta da pesquisa e o divulguei em grupos no Facebook e WhatsApp sobre coletores menstruais ginecologia política antropologia feminista e estudos de gênero além de contar com a ajuda de colegas mestrandas vizinhas e conhecidas na cidade inclusive uma revendedora de coletores que poderia me colocar em contato direto com outras usuárias Estive ciente de que essa divulgação implicaria num recorte das mulheres acessadas seriam mulheres já engajadas nesses assuntos Ainda assim em minhas observações das redes sobre o copinho sempre foi notável o entrelaçamento entre usuárias do dispositivo e circuitos feministas Entendi que esse não seria um problema de amostra desde que eu evidenciasse no texto tal circunstância Em uma semana obtive resposta de nove mulheres e procurei conciliar suas disponibilidades de horário para marcarmos o primeiro encontro Sete delas indicaram poder participar no dia 19 de dezembro à noite Enquanto isso encarei a questão de encontrar um 83 lugar propício para a reunião Kind 2004 p 129 aconselha que o ambiente ideal para a realização de grupos focais deve propiciar privacidade ser confortável estar livre de interferências sonoras ser de fácil acesso para os participantes Além disso Aschidamini Saupe 2004 p 11 recomendam que o local deve ser neutro isto é fora do ambiente de trabalho eou convívio dos participantes e de fácil acesso A princípio considerei realizar o encontro na Universidade Federal da Bahia mas a opção me desagradava tanto pelo teor de formalidade que tal ambiente poderia representar para algumas participantes quanto devido à minha própria trajetória nesse espaço o desenrolar de minha pósgraduação foi marcado por graves períodos de afastamento nos quais estive adoecida e priorizei o cuidado com a saúde física e emocional Por mais que à época de dezembro eu estivesse convictamente disposta e ativa nos estudos e frequentasse ocasionalmente o campus da universidade ainda assim aquele não era um lugar no qual me sentia suficientemente confortável para produzir o encontro A segunda opção era em minha própria residência onde eu tinha condições de receber visitas essa possibilidade também não contemplava minhas premissas pois considerei cuidadosamente que as informações pessoais presentes num espaço doméstico poderiam provocar constrangimentos das participantes em relação a mim e também o contrário Por fim tive a chance de encontrar um amigo que se interessou em meu estudo e ofereceu acesso ao espaço cultural que promove no Pelourinho Agradeço com todo carinho a Pedro Mota que cedeu generosamente uma sala no Espaço D IDEIA aoseuredor83 no Centro Histórico de Salvador A localização não apenas era de fácil acesso às participantes como também afagava um espaço afetivo para mim pois ali aos arredores no bairro do Santo Antônio Além do Carmo encontrei minha primeira morada soteropolitana e fui acolhida nesta cidade Conheci o local previamente e articulei providências para melhor receber as participantes decidi que nos sentaríamos em círculo no chão sobre almofadas e esteiras tomando o cuidado de disponibilizar também cadeiras caso alguém se sentisse assim mais 83 Em apresentação no site do estabelecimento No espaço circundante ocorre todo tipo de manifestação que o sentido humano utiliza como referência da própria existência A conexão e a troca entre os seres quaisquer a interpretação além da emissão da mensagem a ilusão o gesto o senso comum correntes magnéticas numa troca de olhares Por que você se sente envolvido nisso Por que entende por que reage Por que você existe Aoseuredor é o exercício de observação e assimilação das mensagens do ambiente que nos rodeia da compreensão dos movimentos humanos e elaboração das novas ideias para como um espelho refletir a identidade de Salvador como inspiração pra ela mesma D IDEIA aoseuredor então é uma REDE DE COLABORADORES empenhados em provocar o intercâmbio das retóricas firmado na identidade e na colaboração coletiva pelo esforço de transformação social sem relação convencional com as lógicas de mercado Disponível em httpswwwdideiaorgaideiafbclidIwAR3y52LwGoyhI6q7u8grFQ2JsqQv4vsdyGx l4I8HkBiNjm6tfrv7kC8pA Acesso em abr 2019 84 confortável A ideia era promover um ambiente agradável e íntimo evitando as conotações rígidas que pesquisa acadêmica tende a implicar Planejei um café e algumas frutas e quitutes para o encontro Infelizmente no dia 19 recebi várias mensagens de desistência e optei por postergar a reunião receosa de que não houvesse quórum suficiente Com ligeira ansiedade sugeri um encontro no sábado de manhã dia 22 de dezembro Nesse ínterim criei um grupo de WhatsApp para manter comunicação com as participantes e entre elas até então estava gerenciando conversas individuais Esperava assim que a confirmação da presença de cada uma reforçasse o compromisso entre todas além de poder tirar dúvidas gerais de maneira mais eficiente Quatro haviam confirmado até sextafeira e duas haviam indicado um talvez o que já era uma quantidade ótima para o encontro Ainda assim sabia que aquele era o sábado anterior às festividades natalinas e que muito provavelmente algumas cancelariam No sábado pela manhã recebi mais uma vez notícias de desistência Foi oportunidade de exercitar a calma e a perseverança afinal já estava alerta de que era muito plausível que isso fosse acontecer Sabia também que a partir dali até o fim da primeira semana de janeiro não conseguiria promover nenhum encontro então reforcei entre as mulheres interessadas a proposta de nos reunirmos no mês seguinte e enquanto isso dediqueime a ampliar a divulgação das chamadas a fim de atingir mais mulheres Fiz algumas alterações no panfleto e escolhi substituir o termo grupo focal por roda de conversa ainda explicitando o caráter de pesquisa acadêmica e minha condição de mestranda Acredito que o segundo termo foi mais atrativo Logo na primeira semana do ano conseguimos acordar um encontro para o dia 09 de janeiro uma quartafeira à tarde Mais mulheres haviam entrado em contato e o grupo no WhatsApp estava maior Desta vez decidi que realizaria a reunião mesmo que algumas desistissem Seria ocasião de testar as capacidades de diálogo dentre o número de participantes que se apresentassem Em preparação para o encontro elaborei um roteiro de perguntas e convidei minha colega do PPGNEIM Gabriela Monteiro para participar como relatora do grupo Agradeço com todo o coração à disponibilidade e amizade de Gabi que sempre foi fundamental em minha trajetória acadêmica e na vida soteropolitana presenteandome com sua generosa parceria desde a seleção para o mestrado em 2016 Com ela discuti previamente algumas ideias para elaboração do roteiro e ouvi suas experiências de trabalho com grupos focais em sua atuação como assessora no Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste Gabi me inspirou e me fortaleceu Ela acompanha minha 85 pesquisa desde o projeto de seleção até o texto entregue para qualificação compartilhando comigo suas próprias experiências nas tentativas de se adaptar ao coletor menstrual e me auxiliando nos impasses acadêmicos e emocionais Sua função como relatora era me ajudar a traçar estratégias para os próximos encontros possibilitando uma avaliação de minha postura na condução das conversas e na eficiência do roteiro proposto Assim define Kind 2004 p 130 O observador é fundamental para validar a investigação que utiliza grupo focal Um dos papéis mais importantes do observador é analisar a rede de interações presentes durante o processo grupal Cabe a ele também apontar as reações do moderador com relação ao grupo suas dificuldades e limitações Assim como no caso do moderador o conhecimento prévio do tema auxilia no registro que cabe ao observador O papel principal do observador é viabilizar a discussão após o término do grupo com o moderador quando o primeiro expõe suas impressões e registros com o intuito de redefinir o temário evitar conclusões precipitadas por parte do moderador avaliar as intervenções feitas etc A partir da avaliação da relatoria após o primeiro encontro pude reparar aprimoramentos necessários no roteiro de perguntas que propunha frente às lacunas constatadas no diálogo entre as pesquisadas Com auxílio de minha orientadora redefini o temário para os encontros seguintes a fim de otimizar o tempo disponível para os grupos e perscrutar minhas categorias de análise com estratégias que fossem sutis e reveladoras O roteiro teve um formato semiestruturado dividido em três blocos Apliquei as perguntas de acordo com o fluxo das conversas mantendo livre a ordem dos questionamentos desde que verificasse que as informações a ser obtidas estivessem em diálogo Acrescentei ou suprimi questões ao passo em que as discussões se encaminhavam respeitando a criatividade dos assuntos que as mulheres traziam à roda Cada encontro teve duração em torno de duas horas e meia O modelo padrão do roteiro pode ser encontrado na seção Apêndice p 165 Também foi em diálogo com relatora e orientadora que pude refletir sobre os limites de minhas falas nos encontros procurando constantemente me adaptar às demandas das mulheres participantes e mensurar a pertinência de dividir com elas minhas próprias experiências com o coletor menstrual De acordo com meu posicionamento epistemológico sempre estive engajada em promover trocas que evitassem perpetuar uma enganosa e improfícua separação de autoridade entre pesquisadora e pesquisadas desde o princípio explicitei minha condição de usuária de coletor e foi somente na prática dos grupos que assimilei a adequação do compartilhamento de minhas experiências e reflexões pessoais em 86 resposta ao perfil de cada um dos encontros zelando pelo cuidado de me manifestar apenas após ouvir as respostas das mulheres participantes Notei que relatar meus processos de descobertas e adaptação com o coletor menstrual impulsionava o diálogo em direção a um ambiente de conforto e descontração Para tanto era imprescindível salientar a diversidade das experiências a partir dos próprios exemplos que elas traziam e enfatizar que não havia respostas certas ou erradas às minhas perguntas Estou de acordo com Farganis 1997 p 230 que defende o reconhecimento de que ambos o observador e o observado têm biografias sociais específicas que cada um é uma pessoa concreta encarnada num corpo e ocupando um momento no tempo e que portanto cada um tem seus valores Ao posicionar minhas impressões eu esperava permitir às participantes que realizassem suas próprias leituras sobre minha figura e interagissem em diálogo a um ponto de vista estabelecido Assim afastome da pretensão de onisciência e ao revelar minhas dúvidas causos e curiosidades procuro localizar os saberes veiculados gostaria de sugerir como isso nos permite construir uma doutrina utilizável mas não inocente da objetividade Quero uma escrita feminista do corpo que enfatize metaforicamente a visão outra vez porque precisamos resgatar este sentido para encontrar nosso caminho através de todos os truques e poderes visualizadores das ciências e tecnologias modernas que transformam os debates sobre a objetividade Precisamos aprender em nossos corpos dotados das cores e da visão estereoscópica dos primatas como vincular o objetivo aos nossos instrumentos teóricos e políticos de modo a nomear onde estamos e onde não estamos nas dimensões do espaço mental e físico que mal sabemos como nomear Assim de modo não muito perverso a objetividade revelase como algo que diz respeito à corporificação específica e particular e não definitivamente como algo a respeito da falsa visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades A moral é simples apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva Esta é uma visão objetiva que abre e não fecha a questão da responsabilidade pela geração de todas as práticas visuais A perspectiva parcial pode ser responsabilizada tanto pelas suas promessas quanto por seus monstros destrutivos Todas as narrativas culturais ocidentais a respeito da objetividade são alegorias das ideologias das relações sobre o que chamamos de corpo e mente sobre distância e responsabilidade embutidas na questão da ciência para o feminismo A objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento localizado não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto Desse modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver HARAWAY 1995 p 21 No primeiro encontro foi bastante desafiador regular tais intervenções mas descobri que cada um dos grupos demonstrava diferentes expectativas quanto a me ouvir Esse foi um aspecto bastante instigante na pesquisa e fico muito satisfeita em poder desenvolver essa habilidade pendular de expressão e escuta Enquanto moderadora minha tarefa era manter os grupos em interação Kind 2004 p 129 assinala que 87 o estilo de moderação diz respeito à atitude e ao comportamento do moderador diante do grupo mais amigável provocativo mais ativo menos ativo etc Muitas vezes é o ritmo do grupo que determina o estilo de moderação Um moderador mais experiente pode mudar seu estilo quando o grupo o exige Esse ajustamento ficou evidente ao longo dos diferentes encontros realizados Foi muito gratificante constatar que reuni mulheres com vivências bastante distintas com o coletor menstrual e como cada encontro articulou modos característicos de comunicação entre as participantes no desenrolar das conversas Apresentarei os grupos em diante 33 GRUPOS FOCAIS ADAPTAÇÃO DESENVOLTURA E ASSERTIVIDADE A partir desta seção irei reproduzir por completo alguns trechos dos encontros destacarei em itálico expressões que examino como valiosas perante as questões levantadas Uma vez que os dados obtidos por grupos focais são produto da interação entre participantes considero imprescindível manter em texto essas dinâmicas se minha escolha metodológica foi por uma ferramenta coletiva de construção de dados não gostaria que a apresentação desses dados se desse de modo desagregado escondendo o sentido dialógico das informações obtidas Expor esses diálogos pormenorizadamente é também uma estratégia para permitir que as pessoas que leiam meu texto façam suas próprias interpretações sobre as contradições repetições interrupções vocabulário hesitações insistências discordâncias ênfases e interações nas falas das participantes Dada minha perspectiva tão intrincada ao tema da pesquisa enquanto assídua usuária de coletor menstrual acredito que trazer trechos demasiadamente fragmentados para a versão final do texto poderia comprometer o investimento mínimo de confiança narrativa necessário do público leitor Reconheço que minha experiência com o dispositivo integra esta dissertação desde seu princípio pois foi inserindo um copinho em minha vagina tocando meu sangue sentindo seu cheiro descartandoo na pia ou em vasos de plantas observando as diferenças de volume de 88 meu fluxo a cada mês e acompanhando grupos de discussão sobre coletores ao longo de pelo menos quatro anos que passei a elaborar perguntas que se tornassem tópicos de pesquisa Graças a este conhecimento visceral sobre o universo em escrutínio WACQUANT 2011 p 17 fui capaz de levantar hipóteses sobre transformações nas ordens práticosimbólicas da menstruação Ao mesmo tempo esforçome para que minha experiência não seja o fio condutor da análise84 e acredito que apresentar conversas em extensão é oferecer uma oportunidade para que quem leia realize ponderações próprias sobre os discursos dessas mulheres Acredito que toda leitura deve ser feita a partir um olhar de suspeita aqui explicito as condições de meu ponto de vista para informar esse olhar Além disso a escolha de exposição minuciosa é uma atitude em sentido oposto ao costume definido por Fáveri Venson 2007 de conservar os assuntos do sangue menstrual no âmbito do segredado Minha intenção é não apenas comentar as falas dessas mulheres mas principalmente viabilizar acesso às suas palavras Como já afirmei não considero que a menstruação sofra monolítico silenciamento mas regulamento e disciplinarização constantes através de diferentes instâncias que exercem efeito de conjunto Tanto o corriqueiro uso de eufemismos para se referir ao fluxo quanto as normas de etiqueta menstrual vigentes são indícios da manutenção da menstruação sob tais condições de ocultamento e vergonha Espero que o registro das conversas promovidas por esta pesquisa colabore para o tensionamento das fronteiras dessas condições e inspire leitoras a questionar seus próprios limites no que concerne à prática de dialogar acerca de seu sangue ciclo e corpo Eis aqui amostras ainda extraordinárias de mulheres conversando sobre menstruação 331 ADAPTAÇÃO 84 Nessa sociologia carnal avalio os conselhos de Wacquant vire nativo mas vire nativo armado ou seja equipado com suas ferramentas teóricas e metodológicas com um estoque cheio de problemáticas herdadas da sua disciplina com capacidade de reflexividade e análise e guiado uma vez que você tenha passado pelo drama da iniciação por um esforço constante para objetivar a experiência e construir o objeto ao invés de se permitir ser ingenuamente tornado e construído por ele Vá em frente vire nativo mas retorne sociólogo WACQUANT 2011 p 15 89 Escolhi denominar cada grupo com uma palavra que exprimisse o fluxo das conversas O primeiro realizado no dia 09 de janeiro com Lena Luana Bianca e Joane85 86 recebe o nome de adaptação Essa é a leitura que realizei tanto sobre cada uma das participantes no que concerne às suas relações com o coletor quanto sobre o próprio ritmo de interação no encontro Era também a minha adaptação na realização dos grupos focais O diálogo transcorreu em ritmo hesitante de início as questões pareciam ser respondidas mais em minha direção do que coletivamente Eu notava que elas esperavam que eu guiasse uma ordem de respostas e houve momentos curtos de silêncio a cada etapa de perguntas que atravessávamos Nesses instantes deparei pela primeira vez com a expectativa que eu dividisse meus conhecimentos87 sobre coletores e assim fui aprendendo a mensurar minhas colocações O desenrolar comedido da conversa produziu reflexões detalhadas pausadas e também reveladoras houve ocasiões em que as mulheres ali presentes afirmavam estar acessando memórias outrora despercebidas graças à escuta dos relatos alheios JOANE engraçado a gente conversando essas coisas fica com vontade de fazer sei lá a história de sua menstruação não é que eu nem me lembrava disso mas quando vocês começaram a falar eu lembrei As justificativas de tomada de decisão em contribuir no grupo focal demonstravam seus anseios em dialogar presencialmente com outras mulheres acerca do uso dos coletores e indicavam vontade de aprimorar seus manejos do copinho LUANA eu conheci Letícia na oficina de Cibele na última que eu fiz também lá na Casa Guió e aí teve um momento lá na oficina que a gente se apresenta também ela falou um pouquinho da pesquisa dela já me chamou atenção achei muito bacana ela poder estar estudando isso a gente ter gente pesquisando isso e deixa eu ver o que mais só tem uns dois anos eu acho que eu uso o coletor acho que mais na frente ela vai perguntar né a gente vai poder trocar mas o outro interesse também de estar aqui hoje é porque eu estava sentindo falta de estar entre mulheres e isso pesa bastante do ano passado pra cá com tudo né que a gente vem passando eu tava meu deus preciso preciso também foi um outro motivo 85 A fim de preservar o caráter de anonimato da pesquisa utilizo nomes fictícios para todas as participantes 86 Lena 27 anos psicóloga e arteterapeuta Luana 29 anos gestora de saúde coletiva Bianca 29 anos musicista Joane 34 anos educadora política e escritora 87 Não endosso uma separação hierárquica entre pesquisadora e pesquisadas ou sujeito sobre objeto mas reconheço que há marcações e expectativas que se movimentam nesses encontros Era evidente que ali eu ocupava uma posição que as faziam me considerar uma especialista no assunto especialmente esse grupo cujas participantes apresentavam ansiedade em aprimorar sua experiência com o coletor 90 de estar aqui mas também porque tem algumas coisas específicas né do coletor mesmo que eu acho bacana inclusive dúvidas que eu tenho e também poder ouvir vocês eu sei que vai ser muito bom conhecer outras experiências de outras mulheres converso pouco sobre isso que algumas amigas que eu tenho tentei inclusive compartilhar né pra estimular o uso algumas não se adaptaram outras usam sim mas eu gostaria de trocar mais sobre isso LENA e eu vim muito por interesse também tanto nessa perspectiva de compartilhar de ouvir de vocês como é que está isso porque pra mim eu ainda tenho algumas dificuldades em usar o coletor eu não sei se é o que eu estou usando se tá apropriado então eu acho seria um momento muito bacana eu uso também há uns dois anos mais ou menos mas para mim também ainda é um pouco desafiador eu ainda intercalo com ob Quando Luana menciona do ano passado pra cá ela faz referência ao período eleitoral de 2018 tema sobre o qual conversávamos pouco antes de iniciar a roda sobre coletores Anteriormente minha intenção era promover os grupos focais no mês de novembro do ano passado mas a efervescência política e sentimentos compartilhados de desolação nos meios feministas inclusive usuárias de coletor exigiu que retraçasse meus planos Fiquei comovida com a motivação de Luana em estar presente e reconheço em mim o fôlego e potência despertados por esses encontros de mulheres voltados à discussão de saberes e autonomia sobre o corpo é algo que eu também preciso preciso Além disso sentime amparada e agradecida às demais participantes que afirmaram estar motivadas a colaborar com a pesquisa a partir de um senso de solidariedade acadêmica BIANCA eu fui despejando todas as coisas do coletor já né risos não sei acho que todo mundo aqui faz pósgraduação acho que esse foi um dos motivos que eu vim que é difícil né pesquisar principalmente quando tu precisa de opinião de outras pessoas né desse feedback como é difícil conseguir esse feedback Uma característica comum entre as participantes desse grupo é que todas relatavam graves alergias aos produtos descartáveis e encontraram no coletor uma alternativa para tal problema Bianca que utiliza coletor menstrual há cerca de dez anos priorizou o uso do copinho ao encarar desajustes entre esse dispositivo e o método contraceptivo que escolhia BIANCA eh eh eu foi muito bom pra mim o coletor porque meu fluxo sempre foi muito assim pequeno foi muito pouco e o absorvente externo aquele normal ele fazia muito mal pra minha pele irrita a pele é um horror aquilo né e aí o ob também não servia porque mesmo o mini ficava me secava toda também e irritava então quando eu descobri o coletor não tinha no Brasil ainda eu comprei um da Finlândia e eu pensei meu deus isso vai salvar minha vida porque eu até 91 tinha tomado eu comecei acho que sei lá com 16 anos a tomar depo Depo Provera aquele de três em três meses pra parar de menstruar mas aí não dava mais eu tinha tinha até a prescrição médica para não ficar tomando muito tempo de parar eu falar ai meu deus vou ter que fazer isso e aí que descobri o coletor e aí foi ótimo e sempre usei usei inclusive durante tinha uma época em que eu tinha o DIU de cobre usei por dois anos o DIU de cobre com o coletor com a minha ginecologista dizendo isso vai dar merda isso vai dar merda até que um dia deu merda fui tirar o coletor e veio o DIU junto fazer o quê e aí continuo continuo com o coletor inclusive a médica falou ah podemos botar de novo porque eu gosto realmente desse método de anticoncepcional né o DIU pra evitar hormônio e tal mas no fim eu poder continuar usando o coletor pesou mais O coletor menstrual pode ser utilizado concomitantemente ao DIU dispositivo intrauterino como inclusive sua experiência de dois anos atesta a cautela necessária é que o fio do contraceptivo que sai pelo colo do útero tenha um comprimento curto para que não seja agarrado durante a retirada do copinho Com esse cuidado os dois dispositivos podem ser empregues Ainda assim a titubeante capacidade de percepção dos acontecimentos do corpo parece ser o que mais afligia Bianca que recorria à sensação de segurança depositada nas tecnologias médicas BIANCA então o problema do DIU com o coletor é que o coletor faz essa pressão né e aí tem que tirar o vácuo do coletor antes de tirar o coletor então tem uma tecnicazinha lá que até minha ginecologista falou enfia o dedão lá eu tenho o colo bem baixo então pra mim não foi muito difícil você enfia o dedão lá do ladinho e dá uma apertada pra sair o vácuo e depois puxa mas era um controle eu tava numa paranoia constante de que ia sair do lugar eu acho que eu tive o DIU por dois anos um pouco mais de dois anos eu acho que eu fiz uns cinco ultrassons porque me batia uma paranoia assim do nada eu sentia uma cólica eu pensava ai meu deus perfurou meu útero ai meu deus e aí eu ia correndo na gineco pra fazer ultrassom transvaginal pra ver se tava no lugar nunca tinha saído do lugar até que um dia veio junto com com o coletor e eu me lembro de tipo eu achei que se um dia se fosse sair se fosse mover eu ia passar muita dor tava ali na minha mão o negócio não senti dor nenhuma simplesmente veio junto e aí como até como eu passei muita aflição por causa disso eu decidi que não sei se o DIU vai ser pra mim nessa nessa encarnação risos porque era muita aflição porque né LETÍCIA você ficava insegura BIANCA eh eu ficava insegura não era nem pela questão da gravidez era essa questão de que o DIU também eu usava o DIU de cobre que ele é maior do que o hormonal e tal quando dá errado de tipo perfura o útero e alguma coisa pode ser bem complicado eu tinha uma paranoia que ia perfurar e aí até que saiu e sei lá eu continuei com o copinho eu não estou não vou demonizar o copinho risos foi uma experiência que passou e agora eu sei que sei lá foi tranquilo por um tempo mas eu ainda acho que não valeu cem por cento a pena tipo eu não faria de novo né vale a pena mas não faria de novo LETÍCIA tentou BIANCA eh tentei mas eh assim o coletor é um sistema entre vários sistemas e é definitivamente o melhor de todos que eu conheço então mesmo que tenha 92 alguns contratempos às vezes ainda é muito superior aos outros métodos que eu já experimentei né então pra mim principalmente por causa dessa coisa que eu tenho de pele e por causa do fluxo baixo eu acho que por causa desse meu contexto principalmente é uma coisa é assim enquanto eu tar viva essa encarnação vai ser o coletor A característica de adaptação que Bianca expressa nesse trecho pode ser remetida àquilo que Young 2005 chama de alienação corporal uma separação cartesiana entre eu e corpo e senso de distância e resignação aos acontecimentos fisiológicos Todas as participantes desse primeiro grupo declararamse em adaptação quando questionadas sobre o uso do coletor para além de incômodos com vazamentos e cólicas a questão da adaptação que aqui levanto diz respeito à percepção corporal O constante receio de Bianca de que o DIU saísse de posição sem que ela conseguisse se certificar é um sinal para compreender por que ela se identifica em adaptação mesmo utilizando o coletor há uma década Durante as conversas Bianca destacou sua confiança na dicotomia mentecorpo BIANCA tenho feito um esforço consciente pra conectar a menstruação com o resto da minha vida porque é fácil de sei lá pelo menos pra mim é fácil de separar a cabeça do corpo e reparar o que tu quer do que teu corpo quer de uma certa forma né A partir dessa fala considero que os dilemas de Bianca sobre o uso concomitante de coletor e DIU aquilo que ela chama de paranoias relacionamse a esse pretenso distanciamento no qual ela se identifica como algo distinto do corpo o que tu quer do que teu corpo quer O vínculo entre adaptação e percepção do corpo aparece também no relato de Joane ao narrar suas tentativas de usar o copinho ela aponta a necessidade de aprimorar o conhecimento da própria anatomia sentindo o colo do útero com os dedos para aprender a reconhecer a disposição de seus órgãos sexuais O percurso de encontrar conforto com o coletor é marcado pelo acesso a novas informações sobre o corpo e pelo diálogo com outras mulheres JOANE no meu caso eu nunca cheguei nesse lugar nunca me adaptei risos quando Lena falou eu fiquei assim me deu um alívio porque eu a minha relação não foi não foi fluida né com o uso do coletor e eu ganhei esse em 2012 não tinha sido não tinha pesquisado né não fazia ideia do que era a altura do colo do meu útero nunca nem tinha pensado sobre isso né o nível de alienação da gente mesmo sobre o próprio corpo é muito grande e aí ele não era adequado pra mim 93 esse coletor ele ele ficava perdido assim eu não conseguia tirar ele de volta sabe e eu passava por isso sempre era muito sofrido eu amarrei um fio dental nele pra tentar puxar o povo falava de cortar o cabinho eu gente se eu cortar o cabinho eu vou ter que ir pro hospital pra poder tirar né porque eu não conseguia achar mesmo ele ele subia eu não conseguia tirar né depois eu soube que enfim tem diferença da altura do colo do útero você tem que botar o dedo e ver qual é que é o mais adequado pra você mas eu não tinha essa informação e aí ele ficava lá e toda vez eu tinha que eu me machucava porque eu precisava puxar a pontinha com a ponta da minha unha pra poder conseguir trazer uma parte pelo menos pra eu pegar com a pontinha do dedo aí eu sempre me arranhava e aí eu sentia cólica vazava e eu não conseguia tirar aí tentei um mês dois três quatro eu acho que eu devo ter tentado uns cinco a seis meses né mas sempre era muito ruim muito sofrido e aí chegou uma hora que eu disse não tem condição e ainda tinha o fato do trabalho que como eu tava trabalhando né com com um emprego que às vezes muitos meses eu tava viajando eu não tinha condição de me dedicar àquilo ali sabe ou tar em banheiro de casas de outras pessoas de hotel enfim não não tava não tava sendo possível não tava sendo viável tava sendo sofrido aí eu disse ah sabe de uma coisa vamos deixar pra outro momento que as coisas estiverem as circunstâncias mais favoráveis mas a gente volta pra isso então eu desisti dele sei lá no começo de 2013 eu acho eu desisti do do coletor com planos de um dia voltar a tentar mas eu sempre deixava de novo pra depois e aí quando eu passei no mestrado aí eu disse não agora que eu vou ter tempo e vou usar o coletor eu passo a menstruação todinha em casa e vou comprar o coletor certo e vou abandonar esses absorvente nojento né industrial aí eu comprei um outro coletor e dessa vez eu fui pra uma outra menina lá em minha cidade que era tipo uma consultora e a gente foi acho que umas acho que a gente comprou uns 15 coletores sabe assim todas as amigas compraram juntas as que não usavam ainda na cidade tipo a gente comprou todo mundo fez uma encomenda aí a mulher foi no dia da reunião levar os coletores e ela deu uns presentinhos foi um momento bem legal e ela era uma pessoa super disponível que eu mandava um WhatsApp pra ela dizia ah qual é a melhor forma de dobrar e não sei o quê e aí ela mandava vídeo faz assim faz assado e tal então foi bem legal Joane diz ficar aliviada ao ouvir o relato de Lena que também não se considera bem adaptada essa se mostrou uma questão importante em sua trajetória com o uso do coletor pois as dificuldades que enfrentava lhe causavam uma sensação de isolamento como se ela estivesse num estado de impotência na tentativa de conhecer a própria anatomia No decorrer do encontro ela declara eu percebi que eu não sou menos empoderada do que ninguém porque eu não tava usando o copinho perfeitamente Em outro momento Joane compartilhou uma história de sua adolescência na qual sofreu alergia severa a absorventes e seguiu o conselho da mãe para que usasse recortes de tecido em substituição temporária aos industrializados como os panos não eram apropriados para se ajustar a suas vestimentas ela passou por situação de vazamento e resistiu a provocações constrangedoras no ambiente de estudos um colega ao ver seu sangue a apelidou de vulva dilacerada Ouvindo Bianca e Joane exporem queixas acerca dos absorventes descartáveis Lena compartilhou sua experiência 94 LENA eu tive essa alergia a vida inteira pra mim usar absorvente externo era muito sofrido principalmente aqueles secos JOANE sim LENA aquilo para mim era terrível eu olhava pra aquilo dali morria era horrível JOANE aquilo queima não é LENA eh gente é uma coisa ali não foi uma mulher que fez aquilo não risos e aí na minha adolescência eu só podia usar um que era tipo um pequenininho e era tipo um real e pouco só que era difícil de achar eu não conseguia achar ele assim e aí quando eu achava eu comprava assim logo em quantidade mas ainda assim ele às vezes dava alergia aí depois que eu fui descobrir o ob e que aí as coisas melhoraram um pouco mas antes disso foi a treva Seu comentário sobre a invenção dos descartáveis me faz agradecer a existência de Leona Chalmers Componentes químicos perigosos presentes nos absorventes industrializados para branquear o produto indicam a prioridade em oferecer uma aparência limpa complacente ao estigma menstrual para proteger dessa coisa abjeta que seria o sangue em detrimento da saúde das usuárias Em busca de soluções a descoberta do coletor menstrual aconteceu por internet para Lena e Bianca e através de recomendação de amigas para Luana e Joane LUANA eu acho que pra mim acho foi mais por causa dessa amiga mesmo assim porque ela falava muito bem acho que com ela deu muito certo e aí foi mais esse desejo de experimentar mesmo ah já que dá pra experi porque o absorvente mesmo é muito chato também né é incômodo em várias coisas e no meu caso já meu fluxo é sempre foi muito intenso muito forte bastante sangue e aí era já passei por situações de vazar do absorvente que eu usava antes né hoje também não uso mais desse sintético uso de pano e aí então eu pensei ah o coletor pode me ajudar nisso também né e aí vou experimentar mas foi assim vou experimentar não sei se vou usar mesmo no início né pensei mais assim LENA eu fiquei muito resistente no início eu demorei assim acho que um ano risos ou mais pesquisando e vendo vídeo no Youtube e eu perguntava pras minhas amigas e ninguém usava oxente ninguém usa isso como assim parece ser tão maravilhoso e ninguém usa mas aí depois eu eu resolvi criei coragem e comprei o meu mas foi foi difícil assim no início muita pesquisa pra poder comprar JOANE eu acho que no meu caso assim essa minha amiga né que é nossa uma figura uma referência pra mim que é minha melhor amiga a gente tudo a gente partilha e também ela trabalha com alimentação com tudo então ela sempre me apresenta coisas muito que são muito do bem né eu confio plenamente nela eu gosto das coisas que ela traz pra minha vida e ela começou a usar o copinho eu acho que lá por assim mais ou menos acho que lá por 2010 que eu me lembro que eu fui usar uns dois anos depois dela né e eu me lembro quando comecei a usar então acho que mais ou menos por 2010 assim ela já era uma assim uma usuária eu falo usuária 95 LETÍCIA uhum JOANE era tipo usuária LETÍCIA usuária de coletor risos JOANE a usuária já religiosa do coletor e amava o coletor e evangelizava sobre o coletor e aí eu ficava assim tipo tá uma hora eu vou entrar nessa porque isso é legal mas eu tava com preguiça de passar pela transição eu acho eu acho que eu tava assim tipo mais na frente eu vejo isso quando eu tiver dinheiro eu compro um né aí levou um tempo ainda né tipo eu me lembro que a gente viajava e tal e ela sempre com o coletor e falando e mostrando e não sei o que lá e eu olhava aquilo ali eu dizia não parece ok uma hora eu chego lá mas não sei não levei um tempo ainda pra me mobilizar Acompanhando suas histórias vejo que mesmo quando o primeiro contato tenha ocorrido através de outras mulheres o processo de aprendizagem do uso foi por bastante tempo vivido de maneira relativamente solitária o que pode ter contribuído para o longo período de adaptação LUANA eh no meu caso como eu falei né foi apresentado por uma amiga mas pensando hoje no contexto eu acho que tenho alguns grupos de amigas que usam e outros também que eu tentei apresentar uma delas aceitou experimentou mas teve dificuldades e desistiu e aí acho que tem outras coisas maiores que eu acho que seria necessário inclusive mais investimento talvez de minha parte também mais diálogo mesmo outras coisas maiores que eu falo assim são questões mais estruturais mesmo de consciência de conhecer nosso corpo e de formação política que ajudam a gente nesse processo também quando a gente tem essa possibilidade de tar inseridas nesses meios mas quando a gente não tá eu acho que é mais difícil então eu vejo assim né tem essas amigas que também ainda não infelizmente ainda não estão nesse processo até fica mais difícil mesmo e aí enfim ela desistiu eu não tentei a voltar também a ver como é que tá por esses tempos88 Quando Luana conta suas primeiras experiências de inserção e retirada do copinho usa palavras como medo desespero e prefere atribuir a outra pessoa a manipulação de seu canal vaginal para alcançar o coletor Esse é um aspecto que marca também um senso de desidentificação ao corpo desconfiança sobre a capacidade de sentir e conduzir a musculatura 88 Felitti 2016 analisa a propagação de dispositivos como os absorventes de pano e coletores menstruais na Argentina A relevância do acesso à formação política reclamado por Luana é uma questão fundamental Las posiciones del feminismo y del movimiento de mujeres son diversas y ponen el acento en diferentes lugares Del mismo modo los significados creencias y prácticas en relación al ciclo menstrual varían en cada cultura y en cada mujer La duración del ciclo la intensidad del sangrado las señales corporales y anímicas se modifican durante las etapas vitales La diversidad étnica de clase religiosa de nacionalidad de edad también se pone en juego cuando se trata de acceder a la información y a los productos antes enumerados Ya sea por tabúes morales religiosos falta de educación o de recursos económicos limitaciones comerciales y otras muchas razones hay mujeres que pueden o no acceder a estos dispositivos FELITTI 2016 p 186 96 pélvica receio de que um objeto vá se perder no buraco imaginário entre as pernas Terceirizar a tarefa de tocar em nossos órgãos sexuais é hábito comum para mulheres em nossa sociedade muitas têm a vagina manuseada por médicos ou parceiros sexuais antes mesmo de assumir para si a execução desse toque Ao longo de minha participação observante de grupos de discussão sobre coletores em redes sociais acompanhei muitas mulheres em dúvida e aflição sobre o uso do copinho antes de experimentálo demonstrando ansiosa preocupação de que não conseguiriam retirar o objeto sozinhas89 Esse receio é evidência da forte alienação corporal fomentada nas ordens práticosimbólicas da menstruação pautadas no estigma sobre o sangue ao lado do nojo sobre os fluidos corporais também há o desconhecimento sobre as características únicas da própria anatomia o desestímulo ao toque na genitália e à sua observação Luana relaciona seus progressos na adaptação ao coletor ao aprendizado de exerciociozinhos que a auxiliaram a desenvolver percepção no canal vaginal A troca de informação com a amiga que primeiro a recomendou o dispositivo foi importante nesse processo LUANA com relação ao uso assim do cotidiano através de alguns vídeos mesmo que eu assisti no Youtube eh e muito na conversa com ela também quando eu tinha alguma dúvida ou alguma dificuldade a primeira vez de tirar foi horrível eu fiquei desesperada achei que não ia sair risos na época eu tava com outro companheiro eu pedi ajuda pra ele eu fiquei muito desesperada pensei gente não vai sair eu não tou conseguindo não sei e tá escorregando meu dedo não vai e tá sambando risos e agora o que que eu vou fazer se eu não conseguir tirar primeiro assim acho que as duas primeiras foi assim que deu aquele medo mas depois eu vi que não aí fui aprendendo a usar alguns exerciciozinhos né que dá pra gente pressionar ajuda ele a descer e a pegar melhor com o dedo e apoiar e aí ela mesma que me deu a dica também de cortar um pouquinho o cabinho pra não machucar não ficar incomodando né esses detalhes foi muito com ela assim e aí a questão da higienização também ela orientou e também com o próprio coletor vem um manualzinho né orientando algumas coisas LENA eu penso que as desvantagens seja nessa perspectiva dessa adaptação eu sei que muitas mulheres desistem por conta dessa adap talvez pela falta de tipo grupos como esse aqui de sentarem conversarem não tenta assim não vamos fazer isso não não vamos desistir vamos pensar talvez em outras possibilidades mas essa adaptação ainda é um pouco um pouco complicada mas sem dúvida assim as vantagens super superam as desvantagens porque essa perspectiva da gente poder ter esse contato com nosso corpo isso é revolucionário da gente medir o nosso colo de tocar lá dentro de ver como é que é de conversar com outras mulheres sobre isso de conversar de falar sobre nosso corpo isso é revolucionário compensa qualquer adaptação difícil mesmo que não role mas só o fato de você tentar de você medir de você sabe já é muito válido 89 Somese a isso as dúvidas infelizmente ainda tão corriqueiras sobre a possibilidade de urinar enquanto o coletor está inserindo expondo uma lamentável ignorância sobre a diferença entre os orifícios da uretra e da vagina 97 Durante o desenrolar da conversa as participantes desenvolveram uma dinâmica de compartilhamento de experiências orientando umas às outras na superação de dúvidas e sugerindo técnicas para aprimorar o uso do coletor O desejo que Lena e Luana expressavam de ampliar o diálogo com outras mulheres para superar seus desafios de adaptação estava tomando contornos no próprio encontro entre elas LENA machucava muito aí eu cortei eu cortei o meu cabinho eu quase lixei assim pra não ficar nada porque era horrível eu perguntava gente qual a utilidade desse cabinho que não serve pra nada risos JOANE ajuda muita gente risos LENA mas aí foi isso eu descobri eu não sei se é verdade se é tipo imaginação da minha cabeça mas ele não vaza quando eu faço a dobra e deixo os furinhos pro ar entendeu LUANA eu não entendi não LENA porque o meu tem furinhos JOANE o meu tem também tem uns furinhos LENA o seu tem também e eu fizer a dobra e na dobra que eu for encaixar se eu tapar os furinhos certamente vai vazar JOANE hum LENA se eu não porque ele tem um negócio de não travar você tem que ver se ele tá travado você tem que dar meio ou uma rodadinha ou uma puxadinha porque ele vaza quando não tá travado e aí se você tapa o ar na hora de encaixar ele meio que não não isola LUANA eh eu vou experimentar porque o meu também ainda vaza e eu já comprei o segundo pra tentar ver se não vazava e aí eu não sei eu nunca medi eu também não tenho essa noção preciso aprender sobre isso e entender porque que o meu vaza ainda também né ou se enfim não sei o que me ajudou muito foi depois que eu fiz a oficina com Cibele né porque na verdade eu conheci o coletor antes da oficina então eu também era totalmente alienada do meu corpo de altura de útero de inclusive até a questão de colocar o dedo mesmo no canal vaginal tipo pra mim não era uma eu não fazia isso então depois da oficina e do coletor na verdade primeiro o coletor que a oficina que aí eu disse não é meu corpo mudou totalmente a relação e aí me ajudou também depois da oficina a entender um pouquinho melhor mas eu ainda tenho essa dúvida e com relação a essa questão de vazar eu já tentei experimentar posições de colocar ele então tipo agachadi assim de cócoras ou então com perna apoiada na cama e no vaso ou deitada mas ainda não foi não foi com posição pelo menos experimentei essas três geralmente pra mim o que é mais fácil é de cócoras mesmo no banheiro mas eu ainda não consegui perceber se tem diferença isso porque continua vazando principalmente se for nos primeiros dias BIANCA pois é minha experiência também é bem assim não senti ficar vou tentar esse negócio vamos ver se vai fazer diferença se dá certo risos mas aí eu também não não anoto se deu certo ou não é sempre uma adivinhação 98 Mesmo apresentando uma dica às demais mulheres Lena expressa hesitação ao sugerir algo desconfiando de sua própria experiência no ajuste do coletor a seu canal vaginal Quando diz não saber se é verdade se é tipo imaginação da minha cabeça mostra que a despeito de seus êxitos em evitar vazamentos procurando deixar os furinhos pro ar ela ainda duvida da validez de sua técnica enquanto não confirmada por dados provenientes de fontes legitimadas Essa hesitação e desconfiança das próprias percepções são características daquilo que vejo como adaptação ao lado dos processos solitários de compreender o coletor Elas dizem não sentir não conseguir perceber não ter essa noção apontando que gostariam de desenvolver essas capacidades sensoriais Ainda que todas as participantes do primeiro grupo relatassem inadequações às suas expectativas de uso do coletor seus depoimentos mostram que elas acolhem as dificuldades com respeito a seus limites90 paciência curiosidade e principalmente perseverança de que o processo vale a pena LENA e assim eu me sinto às vezes um pouco não sei é porque minhas amigas elas não costumam usar a maioria usa anticoncepcional ainda e algumas eu ainda fico naquela de vamos tenta vamos tenta eu comprei aquele que vem dois aí eu prometi um pra uma amiga aí ela tá se você me der eu uso aí eu vou te dar ela ainda não risos ainda não é o meu tempo mas eu me sinto um pouco sozinha nesse aspecto de círculo de pessoas que usem porque eu não não tenho não JOANE eu no meu caso eu senti assim o contrário que era justamente todo mundo era tão feminista tão consciente e todo mundo se dava bem com copinho menos eu aí teve uma hora que eu comecei a me achar menos mulher sabe pensava poxa elas não produzem mais lixo e eu produzo aí eu ficava triste assim ficava me sentindo menos né assim menos menos eu sentia isso sentia que elas tavam já num nível de empoderamento de autoconhecimento que eu não tava conseguindo acessar aí foi bem frustrante quando eu desisti do copinho a primeira vez né nunca desisti do copinho na verdade mas dei um bom intervalo até tentar de novo e aí eu sentia isso que as minhas amigas usavam e nessa segunda leva nessa segunda vez que eu fui tentar foi no começo de 2016 que eu voltei né a que o copinho voltou pra minha vida então assim também todo mundo se adaptou tipo em dois meses e eu continuava vazando e sentindo cólica pensei porra né todo mundo se dá bem com esse negócio menos eu não é possível o povo fala maravilhas nunca mais quer deixar e eu aqui nessa agonia mas depois fui desconstruindo isso na minha cabeça também né de perceber que isso é um processo de conhecer meu próprio corpo e me relacionar com ele e não de ficar substituindo uma forma de eu me reprimir me julgar por outra que essa não era a lógica né que eu tinha que me acolher independente ainda que eu não conseguisse nunca usar o copinho eu tinha que me acolher então foi interessante acho que foi um processo de acolhida inclusive do que é menstruar 90 Mientras se procura afirmar que la menstruación es positiva cuando se critican las formas en las cuales desde hace al menos 100 años millones de mujeres la atienden absorventes descartáveis el discurso muta del terreno de la libertad al de la responsabilidad o el de la culpa Tener en cuenta esto es clave para que el movimiento de recuperación de la sangre menstrual no termine por generar una nueva imposición nuevos dogmatismos y obligaciones para las mujeres algo que también sucede con los modelos de maternaje FELITTI 2016 p 200 99 sabe que terminou virando uma questão mais ampla depois que eu parei de brigar com o fato de que eu tinha dificuldade um pouco isso mas assim é porque eu também eu vivi numa bolha né a bolha da militância feminista que todo mundo tem consciência mas um dia desses minha mãe veio dizer que história é essa de você enfiar alho na vagina e aí era sei lá minha prima que no grupo das primas falou que o copinho tava numa promoção quem queria comprar eu disse gente usem copinho copinho é maravilhoso ginecologia natural é tudo de bom eu mesma tou com candidíase e tou botando alho na minha buceta toda noite risos aí foi assim aí as primas ficaram horrorizadas e foram contar pra minha tia que foi contar pra minha mãe aí veio minha mãe né perguntar por que você não usa um Fluconazol né feito todo mundo aí lógico tem diferentes nichos dentro da família e tal eu noto que isso não é né as outras mulheres de minha família não usam não isso não rola na minha família mas dentro da bolha feminista aí sim isso é uma coisa popular mas no mundo lá fora né você vê que até pessoas que são minha mãe é enfermeira e ela tem a maior resistência eu comprei as os absorventes de pano e fui mostrar pra ela ó mãe como é lindo esse o meu é esse aqui é de estrelinha risos que eu escolhi e tal não sei o que lá aí ela olhou assim sabe eu vejo que ela acha uma coisa esquisita ela não fala pra não criar atrito mas ela falou do alho risos 332 DESENVOLTURA O segundo encontro que chamo de desenvoltura ocorreu no dia 16 de janeiro com a presença de Maria Vera e Sandra91 O diálogo nesse grupo ocorreu de maneira fluida e descontraída com bastante interação entre as participantes que levantavam perguntas umas às outras e expressavam divertimento e admiração ao ouvir os relatos ali compartilhados Mesmo durante a exaustiva tarefa de transcrição dos encontros encontrei entusiasmo escutando tantas vezes esses arquivos de áudio As mulheres desse grupo estabeleceram rapidamente uma dinâmica íntima e despudorada de narração de histórias e troca de conhecimentos suas reflexões acerca de menstruação causaram impressões ressoantes e declarações de estima e afeto entre elas Relatos de alergias e desconfortos causados por produtos descartáveis também constituíram o principal motivo para a aproximação ao coletor menstrual nesse grupo Mais uma vez a presença de mulheres compartilhando informações se mostrou preciosa para o incentivo ao uso do dispositivo 91 Maria 27 anos fonoaudióloga e atriz Vera 30 anos professora Sandra 40 anos professora e artista plástica 100 MARIA no meu caso eu tinha uma amiga minha da época da faculdade que ela tava numa tentativa de abandonar eh anticoncepcionais e ela comentava assim compartilhando a dificuldade que era pra ela mas ela tava eh assim se estruturando pra conseguir abandonar a pílula e tal e aí eu nunca usei pílula quer dizer já usei mas nunca me adaptei foi uma coisa assim de meses e eu abandonei mas ela falou pô Maria encontrei uns espaços na internet de Facebook que as mulheres e que é um grupo destinado a isso uma espécie de rede de apoio mesmo e também de sugestões de dicas que as mulheres compartilham várias coisas aí eu falei pô mas eu não uso anticoncepcional aí ela comentou pô mas acesse porque discutese várias outras coisas aí eu não lembro o nome do grupo LETÍCIA e você lembra que ano foi isso MARIA ah isso foi 2014 eu tava na faculdade ainda e aí eu entrei nesse grupo e de fato discutiamse diversas coisas e entre as diversas coisas tinha as meninas que falavam sobre o uso do coletor menstrual aí esse foi o primeiro contato que eu tive porra que parada é essa né e tal blablabla e daí em 2015 foi quando eu comprei meu primeiro coletor eu vou falar um pouco da decisão né de quando eu decidi comprar eu fui trabalhar no interior aqui na Bahia num lugar bem distante aqui de Salvador é tipo seiscentos quilômetros daqui e era um lugar muito quente sertão muito quente e eu tive uma série de infecções ginecológicas porque eu usava jeans eu trabalhava na eh eu sou fonoaudióloga né eu trabalhava na prefeitura municipal na secretaria municipal de saúde e aí eu usava muito jeans e eu lembro que era muito desconfortável estar menstruada por conta do absorvente e aí eu tive algumas infecções assim meio que de recorrência acho que por conta de tudo né mudança esse clima e tal e aí que eu decidi comprar o coletor rapaz vou experimentar isso aqui que eu acho que talvez amenize eh enfim essas infecções né era muito desconfortável gente o calor do absorvente com o jeans o lugar era muito quente de verdade e aí a minha decisão veio daí né de tornar minha menstruação menos desconfortável por conta do uso dos absorventes descartáveis aí eu comprei em 2015 em acho que sei lá em março de 2015 Assim como no grupo anterior nenhuma se considerava plenamente ajustada ao copinho no que concerne à ocorrência de vazamentos Porém isso não era necessariamente qualificado como um problema duas diziam até gostar que vazasse um pouquinho e acolhiam esse aspecto como positivo no uso do coletor tomando como um sinal de momento propício para higienização Vejo desenvoltura tanto no fluxo do diálogo quanto em suas percepções e segurança acerca do dispositivo e de fenômenos corporais em ocorrência MARIA eu não me considero adaptada não eh nos primeiros meses era aquela ansiedade assim tipo brincar com colocar tirar e ver a quantidade do fluxo e era meio uma brincadeira mesmo divertido essa descoberta mas com o passar do tempo às vezes eu ficava muito irritada quando o coletor vazava assim eu ficava decepcionada porra que que eu faço pra esse coletor encaixar aqui direito que tá vazando e meio noiada também até tipo eita sentei aqui agora acho que não deu bom e aí eu ficava meio noiada com isso e tal hoje eu sinto que estou mais adaptada mas eu não acho que eu tou super adaptada não às vezes eu sou 101 surpreendida assim e aí teve uma época que eu tava quase desistindo inclusive conversei um pouco com a minha irmã que ela falou pô Maria vi outras formas de usar ela falou dessa coisa de botar o cabo inverter né o material e tal enfim e aí eu fui dar uma pesquisada na internet de novo e umas meninas que indicavam outras formas outras dobras pra colocar pra usar é que eu fui experimentando e hoje eu entendo mais ou menos como é que é o encaixe quando eu sei que de fato ele tá fechadinho ali vedado eu tenho um dicas assim aí eu ah não acho que tá vedado mas ainda assim às vezes eu sou surpreendida eu acho que eu ainda tou me adaptando na real LETÍCIA essas dicas você diz assim é pela sensação que você tem quando você insere ele ou você faz um teste ou MARIA eh é tipo um teste assim é uma força que eu entendo que tá com a pressãozinha certa ali LETÍCIA que você sente a pressãozinha assim MARIA eh uma rodadinha e uma puxadinha aqui eu porra não tá LETÍCIA uhum e você Vera VERA eh eu já compreendo que o tamanho do coletor que eu uso é um tamanho um pouco menor pra o meu canal vaginal comprei o mesmo tamanho porque eu sei e eh e sei que vai vazar LETÍCIA hm me explica essa compra risos VERA eu já comprei não e não vaza muito vaza um pouco eu sei que vai vazar mas só que eu não sei o que é mas eu gosto de estar menstruada e quero ter certeza LETÍCIA entendi VERA só isso LETÍCIA ah pra você é de boa assim VERA é mas precisava só um pouquinho assim tanto que eu uso concomitante absorvente de pano e coletor entende quando o fluxo tá muito forte aí eu uso os dois concomitante e eu sei não isso aqui vai vazar um pouquinho e é o melhor pro meu canal vaginal mas na verdade essa compra menor foi porque eu achei que era o encaixe perfeito mas só que tem que ser um pouco maior o meu coletor mas eu me sinto tão bem com ele Desenvoltura pode ser depreendida aqui no sentido de curiosidade de desembaraço e interesse no uso do coletor como algo a se brincar O processo de adaptação de Maria também é influenciado pela colaboração e apoio de outras mulheres presencialmente e online graças a essas redes ela conheceu outras formas de usar passando a realizar testes para verificar a adequação de dobras à sua anatomia A questão do encaixe do coletor aparece como um aspecto que revela consonância com os sinais corporais é uma força que eu entendo que tá com a pressãozinha certa e firmeza nas próprias percepções mesmo não sendo o tamanho recomendado Vera decide é o melhor pro meu canal vaginal SANDRA mas isso que eu ia falar mas eu não vejo problema em vazar não 102 VERA não eu também não eu fico de boa ele coleta tanto sangue que eu fico é um resquiciozinho assim LETÍCIA eh e tem gente que é assim como você usa concomitante coletor com absorvente de pano né ou reveza entre eles pra sentir pra deixar o fluxo sair mesmo SANDRA eh eu também eu revezo porque eu não gosto de dormir com o coletor LETÍCIA vocês usam absorvente de pano SANDRA eh geralmente eu uso ou eu não uso nada VERA eu também LETÍCIA e deixa SANDRA eh porque de noite desce mas é assim ele acumula então é mais quando você levanta então quando eu levanto eu vou no banheiro correndo risos VERA mas às vezes é uma inundação SANDRA às vezes é risos pela gravidade né por mais que o folículo desça ele fica estacionado LETÍCIA no canal SANDRA a não ser que você esteja deitada aí sei lá vira na cama assim né risos eh e quem usa absorvente acha que desce à noite porque ele é absorvente que acho que muita gente confunde com ob com Tampax aí fala ai quando eu uso ob Tampax não vaza eu falo suga entendeu e o copinho ele acumula né aí às vezes ele acumula mas o movimento às vezes ele fica cheio eu nunca sei quando é que é isso é uma coisa que eu pensei há mais de dez anos eu nunca sei quando LETÍCIA quando é o tempo de você tirar SANDRA eh por isso que eu falei que eu gosto quando vaza porque geralmente eu falo eita é hora de tirar risos LETÍCIA é um sinal você vê ali umas gotinhas saindo né SANDRA eh ou tá mal colocado ou é hora de tirar Vera e Sandra demonstram descontração para lidar com o sangramento e comentar sobre ocasionais inundações Uma vez que o coletor exige contato direto com a menstruação durante os processos de inserção retirada e higienização do dispositivo usuárias de coletor são habituadas ao sangue aqui elas riem e comentam sobre casualidades do período menstrual com desembaraço Ainda que as duas declarem se orientar por pequenos vazamentos para identificar o volume do fluxo no copinho dentro do canal vaginal Sandra aponta uma característica única do coletor ele acumula ao contrário dos absorventes internos e externos inclusive os de pano que sugam ou espalham o que promove melhor compreensão do volume de sangue produzido a cada ciclo De acordo com ela aquelas que têm apenas a experiência do absorvente desconhecem o ritmo de sangramento durante o sono 103 Sandra é fervorosa entusiasta do copinho e sua relação com o dispositivo tem longa data Até a ocasião desse encontro eu nunca havia conhecido uma mulher brasileira que tivesse experiência com a primeira marca consolidada de coletor menstrual depois da invenção de Tassette SANDRA é na década de 90 VERA uau sério década de 90 SANDRA risos LETÍCIA era o The Keeper na época não era SANDRA então eh a primeira vez foi minha mãe que falou né VERA gente que legal SANDRA porque minha mãe ela é toda alternativa e tal e aí na época na década de 90 eu não me lembro direito se existia algum industrializado mas eu lembro que existia já um tipo de coletor que era meio marrom LETÍCIA era marrom é o The Keeper esse que não era de silicone ele é de látex SANDRA ele era meio durão LETÍCIA isso SANDRA ele era assim não era tão né eu lembro que minha mãe tentou me convencer a usar aquilo ali eu minha mãe você tá maluca risos e ela não é melhor não sei o quê blablabla mas aí eu não usei logo assim no começo MARIA e você é daqui SANDRA de Salvador eh eu sou criada aqui eh praticamente aqui na verdade eu morava em São Paulo mas eu nasci em Minas MARIA a gente pode fazer perguntas é assim mesmo LETÍCIA pode risos isso aqui é uma conversa é a ideia pode conversar SANDRA eu nasci mesmo em 78 em 81 eu vim morar em Salvador 90 eu fui morar em São Paulo isso foi eu menstruei em 91 isso foi mais ou menos em 91 92 e aí foi mais ou menos em 91 a minha mãe aí se você perguntar como minha mãe usava a minha mãe usava porque ela era alternativa e tinha muitos amigos estrangeiros e acho que vinha de fora LETÍCIA essa é uma marca estadunidense SANDRA eh minha mãe usava o paninho várias coisas tudo menos na época também não tinha muita opção tinha um que era Modess LETÍCIA as marcas de absorvente SANDRA eh não tinha muita opção Modess e era umas coisas horrorosas VERA mostra foto de The Keeper no celular LETÍCIA é esse MARIA deixa eu ver LETÍCIA esse marronzinho aí isso SANDRA era uma coisa assim o marrom e olha antes eu já tinha visto na gaveta de minha mãe tive todos os pensamentos possíveis risos LETÍCIA revelações na gaveta de mamãe 104 SANDRA era isso e aquele negócio de fazer lavagem vaginal né eu olhava a primeira vez na vida e falava que que é isso que minha mãe usa risos eu achava né que aquilo era vibrador risos LETÍCIA então sua introdução ao coletor foi com sua mãe na década de 90 SANDRA no final da década de 90 que eu comecei a usar porque eu morei fora e aí eu comprei um em Berlim LETÍCIA nossa VERA esse meu é de lá SANDRA foi assim que eu comecei a usar e eu me adaptei melhor quando eu tive meu filho LETÍCIA então e você começou a usar no final dos anos 90 quando você tava fora você já conhecia mais pessoas como foi que você decidiu tentar porque com a sua mãe não te convenceu pelo jeito você decidiu de outra maneira SANDRA então essa é uma história pra eu contar LETÍCIA diga SANDRA não sei quantos anos mas foi muitos anos eu só usava absorvente interno e eu tive uma síndrome uma coisa horrível VERA foi aquela do choque tóxico SANDRA é horrível porque eu só usava eu dormia LETÍCIA direto SANDRA eu era eu não tinha muita opção de absorvente eu tenho alergia sou altamente alérgica eu sou assim toda machucada com alergia agora eu uso pra vir pra cá eu tomei antialérgico e absorvente qualquer marca na época eu nem tento mais usar absorvente quando eu viajo quando eu tenho eu prefiro usar nada mas na época eu comecei a usar por causa disso eu tive eu fiquei mal fiquei no hospital e aí fui na ginecologista e ela falou que eu não poderia que eu tava altamente eh tinha danificado e que eu tinha que ficar muitos anos sem usar absorvente interno e eu achei aquilo estranho estranho porque eu queria entender mais aí eu descobri que é uma síndrome que é causada por causa dos produtos químicos que tem no absorvente e não porque ele fica lá dentro né e você fica como até hoje fica muito sensível e tal e eu tinha alergia a absorvente então tava toda crecada aí eu tinha feito essa viagem e lá as alemãs usam fazem supositório de como é nome daquilo de agave como é o nome daquilo de babosa eu fui introduzida nos LETÍCIA na ginecologia natural SANDRA ginecologia natural e aí elas me convenceram você tem que usar coletor pra você ter uma relação com o seu sangue porque eu fiquei com nojinho sabe falei ai o que que eu tenho minha vagina não sei o quê aí elas não mas você tem que usar e a médica ela disse que não podia colocar mais nada lá dentro risos eu vou colocar de novo e era um horror porque eu não queria ir pra praia não queria sabe nos dias de menstruação eu me escondia em casa ficava em reclusão Sandra chama sua mãe de alternativa e em outros momentos da conversa também usou o termo hippie o que a aproxima das descrições de público que The Keeper alcançou no final da década de 1980 principalmente a partir de movimentos de ativismo ecológico A 105 palavra alternativa também me lembrou do termo descolada acionado por Joane no primeiro grupo remetendo a um posicionamento inovador e contestante JOANE é porque assim a gente era muito descolada né risos a gente era muito descoladas e aí tem essa minha melhor amiga que é a figura mais saudável que existe no mundo ela é sempre muito vanguarda em tudo que é saudável mesmo né e aí eu lembro que foi Ísis que que era essa figura que foi a primeira que foi atrás que tinha que encomendar e vem de São Paulo e era um negócio difícil não era uma coisa fácil de conseguir né e ali foi a primeira vez que eu ouvi falar A partir da Síndrome do Choque Tóxico causada pelo uso incorreto do absorvente interno Sandra demonstra insatisfação com o atendimento médico que orienta que ela não podia colocar mais nada lá dentro Assim mesmo incentivada pelas amigas estrangeiras a conhecer o coletor Sandra estava insegura sobre a inserção de um objeto em sua vagina uma vez que a ginecologista não forneceu explicação suficiente para sua condição eu achei aquilo estranho estranho porque eu queria entender mais aí eu descobri que é uma síndrome que é causada por causa dos produtos químicos Tendo estabelecido uma relação de nojinho com o fluxo menstrual o caminho apontado pelas amigas é propositivo você tem que usar coletor pra você ter uma relação com o seu sangue Mais uma vez os conhecimentos partilhados em redes de mulheres são orientadores no uso do copinho SANDRA aí fui no ginecologista o ginecologista falou que precisa de um tratamento que eu tinha que tomar antibiótico eu tive que tomar injeção foi horrível horrível horrível horrível horrível LETÍCIA você não podia usar ob SANDRA eu não podia usar o ob nunca mais LETÍCIA você ficou meio que sem porque com o absorvente externo você já não se dava bem com o ob você já não podia e aí lembrouse dos coletores teve as influências SANDRA e aí eu tava viajando e aí as pessoas que eu tava convivendo falavam toda vez que eu ficava menstruada era um terror porque eu experimentava os absorventes da Alemanha não gostava de nenhum e aí a tia de minhas amigas era bem alternativa tinha umas calcinhas e tal não sei o quê VERA mano essas mana são tudo ó acena positivamente com a mão risos SANDRA aí eu falei ai eu vou tentar o tratamento porque eu tou muito sensível foram acho que foram três anos que ficou muito sensível relação sexual era um temor foi horrível foi horrível então foi depois que eu comecei a usar coletor que minha saúde vol assim no canal voltou aí eu tinha arrumado um namorado e aí acabou a bagaça risos incompreensível a piriquita risos mas 106 antes disso foi horrível viu gente é sério foi horrível sim foi quase poderia ter causado um trauma pra vida não sei assim LETÍCIA sim sim SANDRA eu fiquei muito traumatizada tanto que todo mundo fala em ob eu falo eu demonizo logo eu falo essa desgraça risos mas eu sei que eu usei errado eu só usava ob eu ficava menstruada e botava LETÍCIA e sem fazer as trocas no horário certo TININHA não eu ficava doze horas aí eu tomava banho trocava ficava mais doze horas eu não queria ver a menstruação e eu não sou contra de tirar a menstruação que nem eu lembro que várias pessoas falavam ah já que você tem tanto nojo por que você não faz a cirurgia eu falei não porque eu acho que tem que menstruar só que eu não gostava LETÍCIA não gostava da sua experiência da menstruação só mas você não tinha nada contra a menstruação em si SANDRA eu só não gostava da minha condição é o desconforto eu tinha alergia gente eu sou altamente alérgica é sério se eu mostrar pra vocês aqui eu fiz uma depilação pra ir pra praia geralmente eu vou cabeluda mas aí eu fui com minhas primas ai pelo menos tira esse cabelo ficaram enchendo o saco pra eu passar gilete nossa eu tou empelada eu sou muito alérgica e absorvente sempre foi um caos pra mim que eu colocava absorvente e ficava abafada machucada aí a menstruação virava um transtorno entendeu porque eu não sabia como isso que minha mãe lá na década de 90 ela usava LETÍCIA se tivesse ouvindo a mãe desde o começo risos SANDRA eh risos MARIA mainha é sábia LETÍCIA e você se lembra como foi que você aprendeu a usar ele a inserir a fazer dobra SANDRA foi com as minhas amigas LETÍCIA foi com as amigas SANDRA eh com as minhas amigas que ficavam dando dica é isso eu tinha um entrave eu tinha trauma de colocar coisa né tipo então pra mim eu falava ah meu deus do céu vai começar de novo e aí elas não você dobra e tal vê se é melhor de cócoras deitada eu fui conhecendo o jeito melhor né e acho que cada corpo tem um jeito melhor né eu era alongadinha na época mas sempre tive dificuldade pouco alongamento nas pernas e tal então eu sempre tive que arrumar um jeito de colocar assim Mais adiante na conversa Sandra explica seu posicionamento sobre não aderir à supressão da menstruação mesmo com suas condições de alergia e consequências do Choque Tóxico Ela apresenta uma perspectiva muito comum nos meios voltados à ginecologia natural que elogia o ciclo menstrual com referência aos demais ciclos da natureza SANDRA ah vou falar que eu gosto de falar mesmo pra mim é uma dádiva ser mulher sinceramente eu poder menstruar ter filhos sabe eu entendo que tem 107 gente que acha que a mulher moderna entrou em crise em relação a isso essa questão né eh acho um erro esse tabu assim questões de saúde ok mas acho um erro essa teoria científica do doutor Elsimar LETÍCIA Elsimar Coutinho SANDRA que a mulher não precisa menstruar que é desnecessário que pode LETÍCIA sangria inútil né é como ele chama SANDRA sangria inútil eh eu acho que é uma dádiva eu acho que gente é a nossa maior eh mostra de que a gente tem uma ligação muito forte com a na eu fico até arrepiada falando isso com a natureza nossa fico toda arrepiada é sério assim é uma dádiva poder passar por esse ciclo que tem a ver com a natureza que tem a ver com a lua tem a ver com tudo entendeu talvez eh por isso que eu acho que homem também nos deixou nessa situação né o patriarcado o machismo acho que tem muito a ver com uma certa invejinha risos dessa nossa eu acho que nós somos especiais de uma certa forma o gênero feminino tem uma não sei se é gênero mas poder pra procriar menstruar e tudo isso eh faz a gente algo muito especial na minha opinião pra mim menstruar é uma dádiva e tanto que a gente tem prazo isso é uma coisa que tem prazo então a gente tem que aproveitar bastante esse prazo que é o período né tem um período tem um término acaba e eu acho que eu gostaria muito que as pessoas olhassem de uma outra forma mesmo pra esse ciclo não só o ciclo da reprodução mesmo né porque as mulheres modernas eu digo isso porque eu sou feminista sou de movimentos e eu já ouvi coisas absurdas assim tipo eh não tem que menstruar mesmo não sei o quê não sei o quê que atrapalha que porra de filho só pra que é claro filho é quando a gente quer mesmo por isso que a gente usa tem o contraceptivo não é porque a gente está apta a engravidar mas é uma escolha acho certíssimo se a mulher não quer ter filho não quer não quer tou não a fim não vejo nenhum problema nisso agora não querer menstruar acho que se não for uma questão de saúde como tem gente que tem sangue como é endo LETÍCIA endometriose SANDRA endometriose grave eu conheço pessoas que ficam doentes que precisam se internar num quarto escuro e só sair daqui a cinco seis dias aí sim se você vai cortar pra ter um alívio e poder viver esses dias ok é uma questão de saúde né agora por uma questão de ai eu não quero ver sangue não sei o quê não sei o quê ai eu acho isso uma visão assim tão desconectada da existência da natureza e acho que nós mulheres nos distanciamos muito dessa relação que é dessa que tem muito a ver com o ciclo menstrual né de se conhecer eu acho eu acho é minha opinião Como vimos no capítulo anterior discursos que aproximam mulheres a certas ideias de natureza são veiculados no paradigma científico e na história da medicina como modo de produzir o homem como ser completamente humano a este caberia coerência racionalidade e perfeição no mecanicismo corporal sem produção desvirtuada substâncias inúteis a ser excretadas mensalmente A ginecologia enquanto especialidade médica se constituiu justamente nesse esforço O homem ser humano é colocado ao lado da cultura do pensamento e da transcendência ou seja da atividade de dominação Do outro lado do binarismo mulheres teriam corpos subjugados à vontade superior da natureza aos imperativos culturais sob roupagem biológica da maternidade e estes corpos passivos seriam fadados à confusão descontrole mistério e ilogicidade Nesse sentido a indústria 108 farmacêutica oferece drogas para domar esse corpo inapreensível e regular estancar a ciclicidade menstrual Ao suprimir a produção endócrina das mulheres tais drogas estariam adequando esses corpos à lógica linear da produtividade industrial e do pensamento cartesiano Nessa perspectiva a retórica da vontade da natureza aparece como modo de essencializar expectativas culturais sobre mulheres Natureza é compreendida como território inferior e incoerente que deve ser submetida à inteligência do homem Quando algumas feministas reclamam um louvor à natureza é preciso compreender que há outro investimento de sentido para este conceito distante daquele que fundamenta o pensamento científico moderno Como aponta Manica 2002 natureza e cultura são termos polissêmicos e recebem diferentes conotações de acordo com as intenções ideológicas daqueles que os empregam Quando Sandra fica arrepiada falando sobre uma ligação muito forte com a natureza ela encara natureza como território de profunda inteligência maravilhosa complexidade lógica e coerência infinitesimal Outras mulheres compartilham dessa perspectiva e se posicionam criticamente à prescrição compulsória de drogas de hormônios sintéticos lamentando esta e outras desconexões promovidas pelas sociedades ocidentais Ainda que esta não seja mais aquela natureza a ser dominada continua sendo algo assombrosamente mobilizador o que possibilita a perpetuação da noção de vontade superior inescapável que pode abrir margens para novos imperativos justificados por essa força tão venerável A afirmação de conexão entre feminino e natureza é fervorosamente controversa entre correntes de pensamento feministas Há conflito principalmente entre os pontos de vista mais construcionistas e aqueles que celebram o sagrado feminino De um lado acusações sobre os perigos de resgatar discursos essencialistas que reproduzam a assentada lógica dicotômica sujeitoobjeto mentecorpo razãoemoção culturanatureza masculinofeminino apontando também o prejuízo de definir mulheres em função de capacidade reprodutiva e o estereótipo da maternidade caindo num universalismo da condição feminina De outro afirmações sobre potências suprimidas por uma epistemologia patriarcal fundada na prepotência racional e que estende a tudo uma lógica linear e ignorante da corporalidade As reivindicações de militantes feministas vinculadas ao movimento pela saúde das mulheres para maiores medidas de segurança encontravam eco também nos grupos ambientalistas que denunciavam a poluição das indústrias de cuidado feminino A 109 partir de um plano mais individual outras feministas ligadas à espiritualidade buscavam recuperar o positivo da menstruação considerandoa uma forte fonte de poder feminino apelando a danças rituais e poesias Um pouco mais tarde inspiradas em um ethos punk foram se desenvolvendo posições mais radicais não havia de se melhorar a indústria de higiene feminina mas abolila Por sua vez em oposição ao essencialismo que para elas preparava o espiritualismo relativizaram a relação entre as mulheres e a menstruação nem sempre as mulheres menstruavam e nem todas as pessoas que menstruavam eram mulheres dando mostras de sua forte vinculação com a teoria queer As posições do feminismo e do movimento de mulheres são diversas e colocam ênfase em diferentes lugares92 FELITTI 2016 p186 Enquanto a fala de Sandra louva uma potência geradora nas mulheres também recorre à disseminada visão da menstruação em função da reprodução como vimos com Emily Martin 2006 esta lógica implica em entender o sangue menstrual como evidência de um processo fracassado Aprofundarei a questão dos significados da menstruação no próximo capítulo Por ora aponto que mesmo compreendendo a menstruação em relação à possibilidade de maternidade Sandra valoriza a dádiva de poder passar por esse ciclo atenta aos estigmas estereotípicos comuns em nossa sociedade que desqualificam as pujantes atividades endócrinas das mulheres Tais estigmas estão alinhados aos processos de alienação corporal a partir de uma lacuna educacional que ignora as capacidades criativas e produtivas de cada etapa do ciclo menstrual folicular ovulatória e lútea caindo em clichês detratores acerca da ação de hormônios produzidos pelo corpo Mais uma vez Sandra expressa sua desenvoltura ao contestar acusações misóginas e mal informadas SANDRA meu filho é o primeiro ele me olha assim o que foi minha mãe estou menstruada aaah VERA ah tipo eh SANDRA tipo nãnãnãnã ele vem e fala tá de TPM eu pare com isso VERA teu filho é adolescente 92 Tradução livre No original Los reclamos de militantes feministas vinculadas al movimiento por la salud de las mujeres por mayores medidas de seguridad encontraban eco también en los grupos ambientalistas que denunciaban la polución de las industrias del cuidado femenino Desde un plano más individual otras feministas ligadas a la espiritualidad buscaban recuperar lo positivo de la menstruación considerándola una fuente de poder femenino apelando a danzas rituales y poesías Un poco más tarde inspiradas en un ethos punk fueron desarrollándose posiciones más radicales no había que mejorar la industria de la higiene femenina sino abolirla A su vez en oposición al esencialismo que para ellas aparejaba el espiritualismo relativizaron la relación entre las mujeres y la menstruación no siempre las mujeres menstruaban y no todas las personas que menstruaban eran mujeres dando muestras de su fuerte vinculación con la teoría queer Las posiciones del feminismo y del movimiento de mujeres son diversas y ponen el acento en diferentes lugares FELITTI 2016 p 186 110 SANDRA é pare com isso olhe esse machismo seu aí risos TPM a gente fala ah que TPM o quê gente estar de TPM é uma coisa que inventaram sinceramente a gente tá eu entendo que a gente tenha TPM mas acho que a gente tem que se pô é dizer que trinta dia quinz então eu tenho TPM trinta dias por mês porque é claro que alguns dias antes durante eu também tenho irritação então assim eu acho que essa coisa científica assim a gente vai criando criam uns sabe uns aí vira assim ah tá na TPM isso me irrita profundamente porque parece assim ah deixa ela assim ah nãnãnã e eu não acho isso e como isso vem é tão forte na sociedade meu filho tem onze anos e ele faz isso desde oito ou nove que ele fala ai minha mãe já sei você tá na TPM daí menino você tá falando isso da onde LETÍCIA nem sabe direito o que é SANDRA você nem sabe que porra é TPM risos sabe eu não gosto de me colocar nessa caixinha da TPM eu acho acho MARIA ah eu acho que tem uma parada sim tem um eu não costumo chamar TPM eu falo período é o período prémenstrual porque é de tensão e também de não tensão SANDRA eu tenho pós também então eu tenho durante MARIA ahn SANDRA durante eu fico insuportável tipo hoje mesmo por isso que eu me atraso tomo banhos fico tensa nervosa explosiva antes tamb por isso que eu falo é difícil antes depois durante VERA por isso que eh o processo de autoobservação do corpo é pessoal SANDRA eh VERA não adianta a gente tratar todos os corpos de forma a TPM é todo mundo igual fica irritado não sei o quê não SANDRA isso VERA dizer que na TPM eu fico sei lá emotiva SANDRA eu já ouvi isso VERA eu é que tenho que saber disso SANDRA já ouvi dois dias depois que acabou minha menstruação meu chefe ai ela tá na TPM eu escutei ele falar não sei o quê ai ela tá na época tá na TPM eu entrei na sala e falei tou não falei mesmo não tou na TPM não explodi assim VERA eu sou raivosa naturalmente risos SANDRA ele aí você toda nervosa eu falei cara tem dois dias que acabou minha menstruação risos e você fica aí cochichando dizendo que eu tou na TPM risos que raiva MARIA e qualquer tensão qualquer estresse SANDRA qualquer coisa é TPM VERA eh risos MARIA qualquer coisa é TPM SANDRA eu acho que isso enfraquece fragiliza a mulher também no sentido que ah a gente tem uma coisa diferente a gente tem coisa que é diferente do homem mas eu não gosto desse lugar de ah também da fragilidade sabe eu acho que a gente tem uma diferença a gente menstrua a gente pari nãnãnã MARIA mas também se estressa igual é explosiva igual não só por isso né SANDRA eh não gosto desse lugar de nãnãnã acho que isso ajuda a imbecilizar a mulher assim como se a mulher fosse ai uma coisinha assim 111 Para concluir volto à sugestão de que o uso do coletor pode proporcionar o estabelecimento de uma relação com o sangue Essa ideia apareceu como um conselho para Sandra na década de 1990 e parece ser um princípio bastante difundido entre usuárias de coletor pois foi manifestada em depoimentos em todos os encontros repetidamente Inclusive as participantes do grupo anterior que enfrentavam desajustes à adaptação do copinho expressavam valorizar esse aspecto nas palavras de Luana da relação com a menstruação e comigo mesma que eu acho que eu ainda estou em processo Pensando em relação olho para a desenvoltura tão característica das mulheres do segundo grupo focal aqui relação é fundamentada em conhecimento prático na apreensão sensorial na curiosidade de aprendizado disposição ao diálogo e em observação rotineira e certa fascinação pelos fenômenos corporais Em suma relação é exercida a partir de habilidades de percepção VERA eu me sinto mais segura usando coletor LETÍCIA segura em que sentido VERA segura no sentido físico mesmo assim eu sei que vaza um pouquinho mas como eu sei que esse vazamento não é um vazamento são só eh é uma coisa muito pequena então eu me sinto segura de usar coletor acho que é por isso que meu corpo se adaptou minha vida se adaptou a ele de uma forma muito muito fluida inclusive aí quando eu vejo de pessoas que não se adaptaram né que muita gente não se adaptou ao coletor mas o meu corpo se adaptou nossa incrível SANDRA eu queria até acrescentar eu acho que uma coisa que eu sinto de diferente que eu gosto que é diferente de você ter um absorvente que é algo que absorve e te tira essa sua relação com o seu sangue eu gosto do coletor justamente porque eu passo a ter uma relação com a menstruação de olhar pro meu sangue pros pedaços né tipo não é uma coisa cheia de sangue do mesmo sangue que a gente tem na veia é uma outra ele tem uma outra textura ele vem com pedacinhos ele tem um cheiro e com o tempo você vai dependendo do que você come às vezes é assim muda o cheiro né se for uma época eu já fui vegetariana logo quando comecei a usar não comia carne o meu sangue era muito diferente de hoje hoje eu voltei a comer carne é diferente é outro sangue antes de eu ter filho era um tipo de sangue depois que eu tive filho meu sangue diminuiu meu sangue é diferente VERA seu parto foi normal SANDRA não cesariana mas eu tava esperando ser normal mas foi cesariana porque nasceu com mais do que quarenta semanas mas pra mim essa é a diferença eu me sinto me relacionando com a menstruação de uma forma íntima conhecendo meu corpo melhor e e tudo eu fico até fazendo umas analogias ai hoje eu tou com cólica o fluxo tá assim tá assado ah tá vindo dessa vez não tá tendo tanta cólica o fluxo tá mais fino que até tem umas coisas que normalmente a gente às vezes não vê de cara assim olha fica fazendo analogias né de como foi o ciclo dessa vez ou da outra vez 112 MARIA pra mim foi aquela coisa do alívio assim pra mim eu sentia a necessidade fisiológica de deixar de usar absorvente descartável por conta das infecções vaginais que eu tive e por conta do ambiente que eu tava e tal então tipo assim e porra eu posso nunca tive problema com menstruação assim nunca eu tinha ansie eu ficava ansiosa esperando a menstruação chegar quando eu ainda não tinha menstruado então possibilitou uma outra forma de eu experimentar minha menstruação né essa coisa de ver quantidade eu sempre achei coágulos incríveis assim eu ficava VERA ah eu também acho incrível risos MARIA gente que coisa incrível que cor é essa que vida é essa e aí eh é esse contato mesmo né com a cor com o cheiro com a quantidade com até esse trabalho de porra pera aí deixa eu ver como é que tá aqui como é que eu me adapto até esse processo de adaptação eu acho que tá muito relacionado a acaba forçando mesmo a um processo de autoconhecimento então acho que embutido nesse uso eh também vem esse processo de autoconhecimento do próprio corpo do próprio sentido de como é o teu fluxo você cria uma outra relação eu acho que não tem como eh sem contar também assim não foi a minha motivação mas eu entendo que isso faz parte que é a diminuição de resíduo né velho não foi o que me motivou não é o motivo principal de eu usar coletor menstrual mas eu acho também que é uma coisa que tá embutido 333 ASSERTIVIDADE O terceiro encontro aconteceu no dia 24 de janeiro em lugar diferente dos anteriores Desta vez contei com a colaboração de Jaqueline de Almeida revendedora de coletores menstruais para alcançar mais mulheres disponíveis à pesquisa Jaqueline abriu as portas de sua residência com o nome Casa das Águas Mãe Preta93 localizada no Quilombo Urbano Alto da Sereia no bairro Rio Vermelho para me receber Sou profusamente grata à sua generosidade tanto por facilitar conexões quanto por oferecer ao grupo sua hospitalidade Enquanto preparávamos café e lanches logo antes da roda de conversa iniciar ela mencionou que aquele espaço vinha sendo ocupado apenas por mulheres na última década foi muito agradável promover esse encontro num lugar abraçado pelo mar e repleto de livros e objetos que fazem referência a cuidados do corpo 93 Um espaço ocupado há dez anos somente por mulheres tem atualmente como guardiã Jaqueline de Almeida preta mãe Relações Públicas e Terapeuta Integrativa Sistêmica Desde 2016 a Casa das Águas acolhe vivências para mulheres facilitadas por Jaqueline Atualmente são realizados Grupos de Estudos sobre Saúde e BemEstar da Mulher e Oficinas de Iniciação em Saboaria e Cosmetologia Natural e Rodas sobre Autocuidado A Casa também realiza parcerias com terapeutas e educadoras na promoção de atividades culturais e de autoconhecimento Disponível em httpsmahuwacomterapiawordpresscom Acesso em maio 2019 113 O terceiro e último grupo foi constituído exclusivamente por mulheres negras dentre as sete mulheres presentes dos grupos anteriores três eram negras e quatro brancas num total de cinco participantes Ana Iara Cíntia Solange e Simone94 Ana e Cíntia são mães e trouxeram suas crianças que ficaram brincando no ambiente externo durante nossa conversa Uma das participantes Solange estava acompanhada de sua irmã Simone que não usa coletor menstrual mas que ouviu o debate e por vezes contribuiu com suas reflexões sobre menstruação Foi intrigante acompanhar as reações das usuárias de coletor aos comentários desta mulher que utilizava produtos descartáveis principalmente no que se refere a pudores sobre o corpo e relações de diálogo com as pessoas de suas convivências sobre o fluxo menstrual Chamo esse grupo de assertividade pois mesmo que as experiências ali compartilhadas fossem muito distintas entre si havia o eixo comum de que todas essas mulheres se posicionavam com convicção em seus valores acerca de autonomia sobre o corpo Além disso o modo de comunicação desenvolvido por esse grupo foi composto de depoimentos longos nos quais as participantes fundamentavam seus pontos de vista em profundidade inclusive sem hesitar em apontar insatisfações com o coletor e um uso mais pontual do dispositivo Consideroas assertivas pois cada uma relatou situações em que afirmaram suas decisões frente a outras pessoas prezando pela coerência e perseverança em suas escolhas Iara foi uma das primeiras mulheres a entrar em contato comigo quando comecei a fazer chamadas para os grupos focais Ela mora em Camaçari região metropolitana de Salvador e expressou bastante vontade de participar da pesquisa mesmo com empecilhos de distância e incompatibilidade de horários Com muita satisfação conseguimos nos organizar de modo que ela estivesse presente no último grupo Desde a primeira vez em que nos falamos ela dizia sentir falta de conhecer pessoas com quem conversar presencialmente sobre suas experiências com coletores menstruais e logo no início de nosso encontro compartilhou o contexto de sua sociabilidade IARA é da relação que eu tive com a menstruação que era pra mim sempre foi um incômodo sempre foi algo ruim eh mas eu sempre fui ensinada por minha mãe que na verdade sempre foi tabu menstruação sempre foi um tabu eh eu sempre 94 Ana 32 anos professora Iara 25 anos analista de sistemas Cíntia 34 anos terapeuta Solange 34 anos policial militar Simone 35 anos arquiteta 114 tive que usar absorvente externo eh eu não podia inserir nada na minha vagina então com o tempo eu fui me libertando de várias coisas como eu tinha eu sempre alisava meu cabelo odiava meu cabelo e aí eu comecei a me libertar disso então eu nesse período assim de libertação que eu fui conhecendo alternativas pra coisas que pra mim eram daquele jeito sempre foi daquele jeito depois descobrindo essas alternativas que eu fui vendo que poxa tinha alternativa pra todo todo o sofrimento que eu passo pra alisar o cabelo todo o sofrimento que eu passo na menstruação eh eu posso melhorar então foi essas pesquisas que eu fui fazendo que eu descobri me interessei é uma coisa que eu me anima muito eu quero conversar com todo mundo mas nem todo mundo aceita eh é um tabu pra todo mundo falar de menstruação é estranho isso né porque SOLANGE você acha IARA toda mulher menstrua e enfim eh no meu caso eu vi o coletor assim foi no Facebook também propaganda também só que foi há muitos anos atrás talvez uns cinco seis anos atrás numa época que eu ainda era religiosa ANA vinte você tinha vinte anos né vinte dezenove anos IARA eh eu ainda era religiosa e era virgem então quando eu vi aquilo eu eu nunca que eu vou introduzir isso na minha nunca eu vou perder minha virgindade primeiro eu vou perder minha virgindade com isso aqui e na época eu achei um absurdo um absurdo eh e aí foram passando os tempos eh eu saí da religião e nessa época eu fiquei com a mente um pouco mais aberta eh mas ainda assim eu não me interessava tanto eu lembro que um dia eu ia tomar banho de piscina queria muito tomar banho de piscina minha menstruação tinha descido eu ai não acredito não vou tomar banho de piscina não vou aí uma amiga minha me deu um absorvente interno não coloca você vai poder ir pra piscina e não sei o quê na época eu já tinha perdido já tinha perdido minha virgindade eu ah eu já perdi minha virgindade eu posso colocar esse absorvente interno botei na maior dificuldade eh não gostei muito mas eu vi que poxa é melhor do que absorvente externo eu não fico me sentindo molhada não fico enfim e aí pouco tempo depois eu comecei a usar absorvente interno absorvente interno já tinha até esquecido que existia coletor e aí já acho que 2017 talvez eu comecei a ver propaganda de coletor novamente e aí que eu poxa eu já uso absorvente interno por que eu não uso isso ah mas é muito grande ah vai alargar minha vagina eu vou ficar vai alargar minha vagina eu não vou usar não vou usar não vou usar mas eh absorvente interno sempre me incomodava era bom era bom porque eu não me sentia menstruada mas tirar era horrível eh aquela era horrível era horrível tirar colocar também aquela coisa seca entrando na vagina arranhando eu odiava essa parte né mas enfim eu comecei a assistir vídeos eh tem um canal no Youtube acho que é Papo de Copinho LETÍCIA Papo de Copinho IARA amei esse canal eh me ajudou a desmistificar muita coisa e aí eu entrei no grupo de coletores comecei a pesquisar comecei a me interessar A questão da virgindade marcou a relação de Iara com sua mãe que segundo ela ficou muito triste ao saber que a filha estava usando dispositivos internos e havia feito sexo com seu noivo antes do casamento A menstruação que era um assunto tabu compreendida como incômodo e sofrimento passou a ser para Iara algo sobre o que ela declarava querer conversar com todo mundo movida pela vontade de partilhar descobertas que a trouxeram à sensação de estar se libertando Sua aproximação ao coletor se deu na mesma época em que decidiu assumir o cabelo natural processos que também foram concomitantes para mim 115 em meados de 2013 Acompanhando relatos em redes sociais identifico que é comum que o interesse pelo coletor menstrual ocorra simultaneamente à elaboração e questionamento de outros aspectos corporais principalmente o uso de drogas de hormônios sintéticos para contracepção ou tratamento de certos sintomas Muitas vezes aquelas que se voltam ao copinho estão também se engajando em busca de informações e mudanças de hábitos em termos de direitos reprodutivos consumos alimentares e de cosméticos e imperativos estéticos em nossa sociedade95 As decisões de Iara sobre seu corpo foram vividas de maneira solitária em seu meio cotidiano mas na internet ela encontrou redes de discussão inspiração e apoio de mulheres com interesses semelhantes Iara apenas aderiu aos dispositivos internos depois de iniciar sua vida sexual mantendose resoluta em seu conceito sobre virgindade O receio de que o coletor menstrual ou absorventes internos pode causar uma perda da virgindade é algo que vem sendo discutido por campanhas publicitárias de algumas marcas Atualmente há no mercado brasileiro copinhos de tamanho ligeiramente menor voltados ao consumo adolescente Nessas campanhas discutese a construção social da ideia de virgindade e é questionada a imprescindibilidade do hímen intacto na definição de iniciação às atividades sexuais Para Iara esse era um fator importante mas há muitas mulheres que consideram que a inviolabilidade do hímen não é um requisito demarcador Infelizmente nesta pesquisa não tive a oportunidade de conversar presencialmente com mulheres virgens que usam coletor menstrual Superada a questão da virgindade outro aspecto que causou hesitação em Iara foi o receio de que o coletor pudesse alargar sua vagina Essa é uma ideia comumente acionada por discursos machistas que procuram regular o comportamento sexual das mulheres o medo de ficar arrombada é superado com informações básicas sobre a elasticidade própria da vagina Lembreime de Sandra no grupo anterior que se divertia com tal ideia SANDRA eu lembro de uma coisa que tinha na propaganda do meu primeiro lá na Alemanha que tinha uma coisa que era que eu dava risada que era assim não deixa sua vagina frouxa tinha um texto que a galera kákákákáká ficava rindo fazendo piada eu falava sério que tá escrito isso aí tá que dizia assim não se preocupe 95 Em 2013 ano em que adquiri meu coletor vivi esse combo de questionamentos corporais ao lado do uso do copinho iniciei uma transição capilar alisava os cabelos com química há dez anos deixei de ingerir drogas de hormônios sintéticos e entrei em processo de remissão de transtorno alimentar amém 116 LETÍCIA que não alarga sua buceta não SANDRA que não alarga sua buceta risos era uma piada isso LETÍCIA então mas isso tem é um estigma total uma ferramenta acusatória pras mulheres SANDRA isso várias amigas falam ah meu deus mas esse negócio aqui eu vou ficar arrombada risos LETÍCIA vou ficar frouxa e por outro lado também tem assim fisioterapeutas pélvicas mulheres que trabalham com pompoarismo e tal SANDRA sim LETÍCIA que super dizem que o uso do coletor é ótimo pra você exercitar mesmo a musculatura da região SANDRA eu tenho uma amiga que diz que tem tudo a ver com pompoarismo A questão do desconforto em inserir um objeto no canal vaginal foi unânime no terceiro grupo mesmo que por motivos distintos Enquanto Iara enfrentou prescrições de sua orientação religiosa familiar Solange remeteu ao esforço de superação de constrangimentos decorrentes de experiências dolorosas da sexualidade SOLANGE então o coletor né que ele ele começou a apresentar na minha timeline e aí o que pegava pra mim é exatamente essa resenha né de tipo assim de caralho mano esse negócio de ficar introduzindo coisas dentro da minha vagina né era uma coisa muito que incomodava era uma ideia que me desconcertava por demais né e aí tá em jogo tipo a relação com a sexualidade né e as experiências de sexualidade de sexo que eu tive e tal né assim muito constrangedoras né assim diversas pra mulheres é muito doloroso né muito cheio de de constrangimentos de embaraços mesmo eh e aí eu acho que foi tipo assim mais ou menos há uns dois ou três anos que aconteceu eu adquiri o meu coletor né LETÍCIA a primeira vez que você viu essa a publicidade foi em que ano mais ou menos SOLANGE eu não lembro ao certo mas foi antes por exemplo de 2017 LETÍCIA tá SOLANGE né então eu já tava me envolvendo com essa proposta de monitorar o meu ciclo com essa proposta de abrir mão do contraceptivo né as pílulas contraceptivas eh tava nessa pegada de estabelecer uma relação de ver minha vulva né voltar a me masturbar era algo que eu tinha desaprendido aos treze anos e tal e aí aí chegou essa mensagem pra mim no Facebook essas propagandas na timeline mas eu só consegui uns três ou dois anos depois comprar né o meu coletor e passar essa experimentação porque até hoje eu tou nessa experimentação tem mais ou menos LETÍCIA tá adaptando ainda SOLANGE eh eu ainda tou em situação de adaptação perceber o meu corpo como ele reage e quando eu avanço né em termos de tar mexendo né bulinando aquela região digamos assim e e foi até hoje são experiências digamos assim tortuosas né risos mas uma palavra que eu posso dizer desse processo é uma deserotização da minha vagina 117 LETÍCIA hum SOLANGE eu estou numa relação de deseroti deserotização dela né vendo a partir de sua organicidade mesmo como organismo como parte do meu corpo né como meu nariz que eu enfio o dedo né risos ou a minha boca que eu enfio a pasta de dente né pra manter a higiene e tal então eu estou caminhando pra essa relação assim IARA isso eh eu me adaptei muito melhor muito melhor a esse outro coletor e perdi medo né de minha vagina é é isso que eh assim é o que a Solange falou né é uma parte do corpo como qualquer outra a gente não precisa ter medo de se tocar de como a gente toca em qualquer outra parte do corpo né qualquer outra quando a gente se conhecer né enfim eh e nossa eu acabei descobrindo coisas assim de mim que eu jamais poderia se eu não tivesse esse interesse né Adaptarse ao uso do coletor menstrual demandou de Solange um investimento em elaborar questões de sua sexualidade praticando o hábito de observar sua vulva e se masturbar coisas que ela diz ter antes desaprendido Ao mesmo tempo tocar seu corpo também é parte de um processo que ela chama de deserotização percebendo seus órgãos sexuais a partir de um olhar por si e para si Desenvolver uma compreensão do corpo sem recorrer à perspectiva de um parceiro sexual é um intuito importante para Solange e as demandas de utilização do copinho fazem parte desse percurso Por sua vez Iara que relatava receios sobre a inserção do coletor descobriu que a gente não precisa ter medo de se tocar Ana e Cíntia compartilham experiências com coletor pré e pósparto percebendo mudanças de anatomia e necessidade de procurar por outro tamanho de copinho Elas assim como outras preferem não fazer uso contínuo do coletor durante o período menstrual intercalando com absorventes de pano ou sangramento livre CÍNTIA eh então a minha questão da adaptação foi nesse primeiro né nessa primeira tentativa assim de não sei não dava não dava certo acho que era também falta um pouco de contato porque apesar de como eu falei né de ter parido eu sempre tive uma relação assim enfim de me olhar no espelho olhar minha vulva de me masturbar desde sempre mas mesmo com as as informações né maternas no meu ouvido mas eh eu tive no parto uma laceração isso me deixou muito frustrada né não foi corte feito pelo médico né não foi enfim lacerou né abriu entre o períneo e o ânus assim e teve que dar ponto e não ficou gatinha assim então essa coisa de ter que tocar ali de ter que ver eu fiquei muito frustrada assim eu ficava que merda velho de ter que lidar com isso agora ficou feio não sei o quê então nesse período foi eu ainda tava numa resistência assim né de olhar de e não talvez tão bem né por conta de processo de pósparto né ficar lidando com essas coisas assim enfim não dava certo vazava né e esse relato que eu dei assim que foi de sair na rua eu ficava só usando em casa né eh dormi com ele também pra fazer experimentação né que tem gente que tem as horas que ele pode ser utilizado durante doze horas até 118 tem a indicação também de poder utilizar mas acho que eu só fiz isso uma vez assim não me senti segura também de ficar usando LETÍCIA por tanto tempo CÍNTIA eh não por tanto tempo LETÍCIA à noite CÍNTIA por tanto tempo e dormindo né aí desisti assim eh mas foi isso assim depois que veio esse segundo coletor eu já tava também em outro movimento né eu tava pensando mais um pouco também e aí tranquilo assim não tenho problema mas não tenho essa eu gosto de usar acho prático né principalmente quando é pra ir pra rua passar muito tempo fora longe de casa mas pra ficar com ele em casa eu não uso de jeito nenhum LETÍCIA não usa CÍNTIA eu só coloco quanto eu tou na hora de sair de casa que eu vou pra lugares mais longe se não eu uso paninho eu ainda uso paninho eu tenho três modelos diferentes que eu adquiri não quatro que era um diferente eu comprei a mais assim porque eu gosto de usar em casa até pra dormir também e e faço também os movimentos de não usar calcinha né e quando a gente começa a ficar mais atenta a gente percebe o momento que o sangue vai dar aquela que vai sair aquele tanto que ele não fica assim SOLANGE escorrendo CÍNTIA escorrendo né SOLANGE um monte que a gente imagina né CÍNTIA imagina né que é dito pra mim que tem aquela aquele sangue o tempo todo SOLANGE são momentos né que ele vai descer CÍNTIA tem momentos que ele desce e se a gente tá na percepção dá pra sentir aí já fiquei sem calcinha também hoje eu fico com calcinha enfim durmo sem sangue pra tudo o que é lado risos mas é isso mesmo é isso mesmo é essa experiência pra mim tipo fazer treinar treinar jogar capoeira velho com tipo fazer uma atividade física assim puxada pesada e ficar tranquilíssima assim com o coletor foi tipo hors concours desses últimos tempos de ter usado né poder usar porque é isso com pano eu acho que tem um momento que acontece isso eu gosto também de usar mas tem uma hora que enche o saco também e você quer fazer algo sei lá quer esticar seu dia vai pra uma praia fazer uma atividade física sabendo que você pode ficar tranquila assim se der se o seu uso já tiver adaptado se tiver tudo organizadinho você fica lá de ponta cabeça e ele tá certinho no lugar então essa liberdade essa palavra é meio complexa assim mas essa possibilidade que a gente tem de sentir mais eh livre assim né menos tensa né porque o período menstrual ou seja o absorvente comum ou os abios né os absorventes de pano em situações em determinadas situações ele pode te deixar tensa né porque fica naquela vou vazar vou manchar como é que eu troco como é que eu deixo e o coletor te dá mais essa segurança acho que ele eh ter ele não como um óóóóó risos mas como essa possibilidade eu tenho essa possibilidade uso coletor uso pano não uso nada pego uma fraldinha lá e uso né e ter ele como mais assim esse complemento mais eh seguro né e principalmente desse nosso trânsito na rua né porque é muito isso é em casa é um outro lugar né esse espaço em que a gente é colocada nessa condição de estarmos em casa né mulher em casa e não sei o quê mas quando a gente tem essa possibilidade de ir pra rua né de transitar na rua e poder ficar mais firme né mais tranquila isso dá mais segurança pra gente também menos lugar de sofrimento 119 Utilizar o coletor como uma possibilidade complementar a outros dispositivos foi algo regular entre todos os grupos A maioria das mulheres que participaram dos encontros eram também adeptas dos absorventes de pano enquanto que apenas uma Lena dizia recorrer por vezes a absorventes internos descartáveis Esse dado me fez considerar meu próprio uso do copinho que é exclusivo há seis anos durante todos os dias de fluxo tenho o coletor inserido na vagina retirandoo apenas para o descarte do sangue A vontade dessas mulheres de deixar o sangue fluir para fora do canal vaginal me instiga a assim como elas buscar por novas experimentações O sangramento livre é uma prática interessante para desenvolver a atenção aos sinais do corpo e o exercício da musculatura pélvica96 Como coloca Cíntia tem momentos que ele desce e se a gente tá na percepção dá pra sentir Compartilhei com elas uma experiência que tive uns três ciclos antes de nosso encontro LETÍCIA eu tive no ano passado eu nunca esqueço porque pra mim foi muito marcante assim mesmo eu sabia que eu ia ficar menstruada digamos assim naquela semana não sabia que dia porque meu ciclo ele varia assim tem uma ampla faixa de variação mas eu sabia que ia vir assim eu tava tava na rua eu tava perto de casa já faltava só umas três quadras pra chegar em casa e eu senti um negócio foi a primeira vez que eu senti aquilo eu pensei eu tou afinada com meu ciclo pra eu ter sentido isso eu senti eu pensei assim acabou de sair do colo do meu útero a primeira gota da menstruação eu senti isso foi isso que eu senti acabou de sair tá lá dentro do meu canal vaginal ainda né eu posso caminhar tranquilamente até em casa não vai quando eu chegar eu vou abaixar a calcinha não vai ter nenhuma gotinha de sangue na minha calcinha mas eu vou inserir o dedo na minha vagina e eu vou ver tipo um pouquinho do muco rosadinho vai tar branco mas vai tar rosadinho porque eu senti uma gota saindo do colo do cheguei em casa e eu olhei na minha calcinha minha calcinha não tinha nada coloquei o dedo tinha um nadinha cor de rosa ali daí eu gente tou em sintonia risos alguma coisa tá rolando e eu acho muito bonito assim quando isso acontece A relação dessas mulheres com o sangue menstrual é assertiva tanto nas decisões que realizam prezando por autonomia de escolha sobre a maneira de lidar com a menstruação quanto na afirmação dessas escolhas perante familiares colegas de trabalho e parceiros amorosos 96 Felitti comenta beneficios do sangramento livre e estigmas que tal prática enfrenta Lejos de cualquier intervencionismo se posiciona el sangrado libre que implica no usar ningún elemento que contenga la sangre y ser consciente de las señales del cuerpo Como explica una promotora catalana de esta modalidad Lo que se aprende con el sangrado libre es a escuchar el bajo vientre y a mover voluntariamente la musculatura para expulsar la menstruación del útero tonifica la musculatura genital y nos hace aprender a moverla a conciencia lo cual tiene muchos beneficios a nivel de salud disminución del dolor menstrual aumento del placer sexual y los orgasmos y mejora del parto Si el hecho de usar toallas de tela o la copa menstrual generan sorpresa o burlas ante el sangrado libre las críticas y el sarcasmo se expanden FELITTI 2016 p 183 120 SOLANGE eu tenho como eu tenho melhorado a relação com o coletor ou seja eh como eu tenho precisado tirar e colocar ele menos vezes porque no início como não sabe como encaixa você fica tirando e botando tirando e botando tirando e botando tirando e botando acaba machucando a pepeca né aí assim que desgraça tá entendendo mas como eu tou construindo um ritmo né tou entendendo melhor como é a adaptação dele no meu corpo qual é o melhor quais são os procedimentos depois que encaixa né pra ele de fato alocarse lá eh aí eu tenho conseguido ficar com menos incômodo com incômodo nenhum na vagina né e isso me agrada muito essa resenha de ficar botando e tirando tirando e botando isso acabava realmente machucando o a vagina e tal e aí eu atualmente eh por conta de alguns incômodos ainda né com relação à labuta com o coletor porque ainda assim você tem que colocar e tirar né ainda é uma experiência um tanto tensa pra mim como como é quando eu vou pro ginecologista ainda é uma experiência tensa né introduzir isso e retirar isso né eh então quando eu posso estar em casa eu fico livre coloco panos específicos em locais de assento né quando eu posso assentar e manchar de sangue não vai ter problema durmo livre também né a depender se eu vou ali perto de casa vou vou livre também né geralmente eu tenho saias assim longas e de forro né aí se escorrer eu limpo assim e tá tudo certo são saias bem estampadas assim sabe aí ninguém identifica o que é estampa e o que é sangue risos aí eu tenho me permitido ficar assim né fluindo quando eu tou em casa mas quando eu tou no trabalho né ou tou por exemplo vou precisar pegar a moto pra sair aí eu aí eu uso o coletor e tal aí tem sido dessa maneira assim eh eu não sei com o passar dos tempos a minha relação com o sangue não era de nojo era de trauma né que como criança eu tive algumas experiências aí com relação ao sangue então quando eu via sangue eu desmaiava né então SIMONE ela tem problema com sangue não com sangue de menstruação SOLANGE eh SIMONE não com menstruação com sangue SOLANGE eh e é algo que eu venho trabalhando ao longo da vida e já melhorei em vários aspectos inclusive e aí ter contato com sangue menstrual foi algo que no início foi tenso né é aquela quantidade de sangue junta ali né eh mas ter tido a oportunidade de me inserir nesse espaço feminino e feminista né de ressignificar o corpo de olhar e tocar o próprio corpo né de se apropriar do próprio corpo de fazer os usos que quer fazer desse corpo né então eu trabalho num meio muito masculino né num meio predominantemente masculino e tipo assim eu me permito a tratar do meu ciclo menstrual com naturalidade mesmo né tipo assim por exemplo às vezes logo quando o sangue desce eu tenho cólica então eu não fico fazendo contenção né das dores né fazendo cara de blasé enquanto tou com dor eu boto tá com dor é tou menstruada risos tipo assim dou a real mesmo né vou digo pros meninos pera aí que eu vou aqui trocar meu sangue e tal e né porque também não é tão eu falo quando vou no banheiro fazer xixi eu pego vou fazer xixi aqui viu galera assim né sei lá a gente vai sair pra rua você vai demorar pra ir pra casa então primeiro vou fazer xixi né tá eh e em casa e outros meios talvez possa parecer um pouco artificial mas eu tenho a sensação que às vezes eu falo como quem quer tensionar mesmo né eh pode parecer artificial né como a coisa é conduzida mas eu tenho a sensação que às vezes eu falo pra tensionar mesmo pra o tema entrar na roda risos LETÍCIA dar uma provocada SOLANGE pras pessoas saírem ali do lugar eu digo peraí meu deus peraí que meu COPINHO vou aqui no banheiro que meu COPINHO como assim teu copinho aí né ou então minha mãe ou quem quer que seja chega lá em casa e vê meus panos de sangue né na cadeira minha cadeira em outra cadeira né que que é isso Solange risos esse aí é meu sangue o que que é isso Solange o sangue descendo por aqui assim né o que que é isso Solange minha mãe né 121 eh o que que é isso Solange é meu sangue eu vou com saia limpo risos coisas do tipo assim né eu não te ensinei isso risos é uma coisa que sairia realmente da boca de dona Sônia né eu não te ensinei isso você não aprendeu essas coisas comigo mas então pra responder de modo um tanto sistemático né eu lido eu falo dessas coisas no meu ambiente de trabalho também pra tensionar né eh então eu acho que eu sinto que eu falo não só porque é natural mas como alguém que quer confrontar essa realidade que eu vivo LETÍCIA uhum SOLANGE essa realidade com esta realidade A intenção de Solange de fazer os usos que quer fazer desse corpo e confrontar tensionar conduzir conversas em direção a tratar do ciclo com naturalidade mostra uma postura ativamente engajada em burlar as regras vigentes de etiqueta menstrual que foram perpetuadas em outras gerações eu não te ensinei isso você não aprendeu essas coisas comigo ou que são implícitas entre os homens de seu convívio Ao tomar a iniciativa de acionar o tema da menstruação ela se precave de comentários como aqueles que Sandra outrora relatou ter ouvido de seu chefe No que concerne à etiqueta menstrual Iris Young 2005 p116 considera que uma mulher em seu ambiente de trabalho é sujeita a sofrer qualquer coisa desde leves provocações até sérios assédios em humilhante abjeção sob o olhar jocoso de homens maliciosos97 A etiqueta menstrual não está apenas no uso metafórico das palavras nos espaços demarcados onde se pode ou não dialogar nas pessoas com as quais é escusável tratar do assunto mas também nas atitudes que se espera que mulheres assumam para esconder o fato de estarem menstruadas e passar por esse período de modo sigiloso e solitário De acordo com Young o corpo admitido como normal é o corpo que não menstrua assim a menstruação deve ser vivida de maneira velada principalmente nos ambientes de estudo e trabalho a maior parte das mulheres que experimenta desconforto físico eou emocional antes ou durante seus períodos esforçase em alto nível para esconder de colegas de trabalho e supervisores que menstruação faz trabalhar ser mais difícil para elas98 YOUNG 2005 p116 Solange assim como várias outras participantes das rodas de conversa faz questão de explicitar o fato de estar menstruada para as pessoas a seu redor 97 Tradução livre No original A woman in the workplace is liable to suffer anything from mild teasing to serious harassment to abject humiliation under the gaze of joking or malicious men YOUNG 2005 p 116 98 Tradução livre No original Most women who experience physical andor emotional discomfort before or during their periods that is try hard to work at their highest level and to conceal from coworkers and supervisors that menstruation makes working more difficult for them YOUNG 2005 p 116 122 SANDRA esse assunto é um assunto corriqueiro na minha vida risos eu falo o tempo inteiro meus amigos gays que não menstruam mas adoram ouvir VERA adoram falar sobre isso SANDRA risos e eu divido o ateliê ainda com dois então é tudo junto e misturado trinta dias mas eh ah eu sempre falo de menstruação com muita gente eu sou uma eu levanto a bandeira pro copinho assim todo mundo eu falo para de usar absorvente ah eu compro absorvente para de comprar é a indústria é JohnsonJohnson a indústria do papel eu fico assim do plástico e tal que eu acho que é uma coisa importante e fora que as plantas todo mundo que fala ai suas plantas estão lindas eu falo é menstruação as pessoas não entendem risos falam como assim menstruação meu amor taquem menstruação nas suas plantas VERA as amigas mãe os boys que eu fico eu sempre informo sobre as coisas eh alunos e alunas eu sou professora da educação básica então eu converso muito ahn colegas de trabalho nossa realmente eu acho que eu sou tipo assim eu converso com muita gente sobre menstruação muita gente LETÍCIA um assunto comum cotidiano VERA sim CÍNTIA então eu falo com todo mundo risos todas as mulheres possíveis assim até com minha mãe que antes né não existia conversa enfim a gente não dialoga né mas eu falo ah tou menstruada né enfim com minha filha ela vê eu já explico pra ela do coletor como é como funciona enfim tou sempre nessa disponibilidade né falando conversando sobre falando sobre menstruação e como se tornou algo também tão recorrente da minha vida então eu hoje em dia falo tranquilamente assim no espaço que eu ocupo com homens sem homens tou menstruada é assim como ah tou gripada99 bem natural assim IARA eh eu sou programadora de sistemas e só tem homem só tem homem no meu ambiente né eh e mas eu não antigamente eu tinha esses problemas de ai eu tou menstruada ai será que vazou ai todo mundo vai ver meu deus eu não tenho mais esse problema até porque eu tou ali morrendo de dor e vou ficar segurando aquilo só pra mim meus amigos falam quando eles tão com dor de cabeça eles falam quando eles tão gripados eu não vou falar de problema que de uma dor que eu tou sentindo naquele momento até pra eles terem um pouco mais de de consciência eh um pouco mais de sensibilidade comigo quando eu tou nesse momento né eh de ah se tem que fazer um trabalho mais pesado se tem que poxa eu tou sentindo dor eu deixo claro que eu tou sentindo dor que eu tou passando por isso SOLANGE negocia IARA eh SOLANGE ah isso eu entendo 99 É importante ressaltar que algumas falas de Cíntia Solange Verônica e Joane aproximaram a indisposição sentida durante o período menstrual a um estado doentio como nessa comparação sobre estar gripada Ainda que não pareça tão diferente da perspectiva debilitante do termo doenças catameniais elas subvertem a conotação da menstruação como um estado de incapacidade e se engajam em perceber e acolher as diferentes fases do ciclo considerando suas tendências de vigor Aprofundarei essa questão no próximo capítulo 123 Considerando as ordens práticosimbólicas experimentadas por mulheres idosas na pesquisa de Fáveri Venson 2007 a diferença de valores e comportamentos em relação às usuárias de coletor é gritante As historiadoras falam sobre um processo de aprender a incorporar a vergonha sobre o período menstrual e associar o sentido de mistério e segredo exigido da menstruação como demarcação de feminilidade da mesma maneira que a menstruação a menopausa ocorre numa semiclandestinidade O prazer feminino é negado e mesmo reprovado pois se fala de frigidez feminina quase como se fosse um fato da natureza e não como o resultado de práticas sociais Mesmo nas conversas entre mulheres durante as entrevistas elas referiamse à experiência da menstruação como algo que precisa ser silenciado segredado Perguntadas sobre a menarca elas falavam de modo evasivo e desajeitado Na perspectiva dessas mulheres falar sobre menstruação é constrangedor é vergonhoso Elas usam uma linguagem codificada falam entre pausas e silêncios evidenciando que não mantêm a prática de falar sobre os assuntos do corpo FÁVERI VENSON 2007 p 68 É curioso que as autoras sugerem que é também relevante o fato de que elas não tinham as possibilidades que temos hoje elas contavam com os forrinhos e remédios caseiros FÁVERI VENSON 2007 p 92 quando é justamente a negação das possibilidades a que se referem absorventes descartáveis e drogas farmacêuticas e inclusive o retorno aos forrinhos sob o formato dos absorventes de pano contemporâneos e à ginecologia natural uso de ervas banhos de assento vaporizações que vêm estimulando mulheres a estabelecer relações com seu sangue e tensionar expectativas de etiqueta menstrual As entrevistadas de Fáveri Venson estão longe de apresentar desenvoltura e assertividade mas os depoimentos das mulheres com quem conversei nos grupos focais sugerem que o uso de descartáveis não as ajudaria a cultivar tais atitudes As usuárias de coletor desta pesquisa demonstram questionar de forma retórica e prática a etiqueta menstrual que exige o ocultamento do período elas são interessadas em promover melhor acuidade na percepção do corpo desafiando os processos de alienação corporal constatados nas ordens práticosimbólicas que pejoram a menstruação Encontro nelas uma visão positiva sobre os desenrolares de valores e costumes acerca do fluxo menstrual 124 ANA nunca quis esconder eu lembro de ter um problema de negação assim que não gostava de estar menstruada por causa da dor da cólica então eu queria estar mais brincando queria tar correndo outras coisas e tava ah com dor ali então era chata essa parte mas de contar tem que falar porque eu acho que o tabu só quebra se a gente falar né então falo com a maior assim naturalidade com as pessoas que eu tou menstruada tou com o coletor acho que esse negócio aqui tem que difundir isso né que estamos num motivo de educação de consciência então em todos os aspectos tem que falar mesmo pra galera então falar falo muito falo pros meus alunos falo com a galera toda né que tou menstruada com dor com cólica ai não tá legal e tudo eh tento inserir meus companheiros né que já tive na vida aí sobre menstruação que eu não tou legal de transar sim ou não às vezes dá fogo ou não dá enfim essas coisas que acontecem eh meu filho também que é um homem eu acho que isso depende muito da geração dos homens né então eu acho que gerações mais antigas talvez tenha uma certa resistência em olhar né não é nem culpa a forma como eles são criados moldados né eh tem esse afastamento mas meu filho acho que vai crescer em outra geração obviamente CÍNTIA uhum ANA então eu preciso preparálo pra a mulher que ele vai se relacionar sei lá as meninas também que ele vai ser amigo então eu falo pra ele digo tudo pra ele que eu menstruo sabe o que é menstruação sabe o que é um copo né o copinho que tem o sangue que aquilo dali não é um nojo eu mostro pra ele minha vulva eu digo pra ele o que é que ele vai tomar banho eu tento não ficar fazendo terrorismo né CÍNTIA uhum ANA tipo ali e pá aquilo um tabu porque aí eles crescem mais né abertos CÍNTIA sim ANA pra ele tentar crescer nesse ritmo meu companheiro também assim né no sentido de mostrar pra ele mesmo qualquer fluido sai de mim qualquer porra sai de mim tipo cândida eu ó pra isso aqui velho e aí tem que mostrar porque né é como se fosse também uma simbiose ele entra em você também de uma certa maneira por que também não mostrar é algo a ser compartilhado então pra mim falar mesmo é o sentido pra quebrar com esse tabu que existe e falar de maneira natural mesmo é de escuta como é que você vai ter um relacionamento que de afastamento então eu sempre falei mesmo pra minha mãe pro meu pai não escondo tou com cólica ai quando eu coloquei o DIU principalmente o ciclo menstrual aumentou muito então os primeiros meses foram bem punks então meu pai e minha mãe me deram uma guarita pra eu poder tipo dormir me recolher né eu tive muito enjoo eu lembro e cólicas constantes então meu pai tinha que saber lá em casa que eu tava menstruada essa é a função dele eu pronto fique com meu filho passe um tempo com ele pra eu poder dormir um pouco eu tou muito cansada eu tou com muita dor tou com muita cólica então sempre foi algo que eu nunca escondi para os mais velhos ah eu tou menstruada tou sangrando e aí acontece então trato da maneira mais natural pra poder quebrar com essa com esse resquício que a gente tem né de olhar de forma diferente e suja algo que na verdade não é né 125 4 SENTIDOS DA MENSTRUAÇÃO SABERES EM DISPUTA Neste capítulo irei examinar alguns sentidos da menstruação Primeiramente penso em sentidos no que concerne à capacidade sensorial de aprendizagem ao corpo como vetor de conhecimento não mero objeto dele Qualificarei o conceito de percepção e defenderei sua aplicação para examinar as potencialidades que o coletor menstrual promove de romper as inclinações à alienação corporal suscitada por correntes ordens práticosimbólicas da menstruação Percepção tem como fundamento a inextricabilidade sujeitocorpo A partir daí irei apresentar considerações das participantes dos grupos focais sobre o que chamam de acolher o período menstrual e também suas escolhas de descarte do sangue coletado pelo copinho a fim de compreender os significados que elas atribuem à menstruação Num segundo momento irei refletir sobre sentidos numa perspectiva de localização e deslocamento ou seja avaliarei os rumos que os saberes e comportamentos acerca da menstruação vêm tomando a partir da consolidação dos coletores menstruais na última década Assim busco assinalar as instâncias em disputa da legitimidade sobre o poder simbólico da menstruação indicando que as usuárias do coletor menstrual têm exercido pressão nessas dinâmicas principalmente a partir de movimentos horizontais de construção de conhecimento 41 DESENVOLVENDO PERCEPÇÃO SIGNIFICADOS EM FLUXO Conforme indiquei no capítulo anterior o coletor menstrual aparece para as participantes dos grupos focais como possibilidade de criar uma relação com a menstruação Essa expressão foi acionada em diversos momentos das conversas e procuro agora fundamentar essa ideia 126 JOANE o que eu acho que foi o mais legal pra mim do coletor foi porque meio que me obrigou a ter uma relação com minha menstruação sabe assim uma relação que não fosse justamente como me livrar desse incômodo mas sim de que isso aqui é uma coisa que eu vivo isso aqui é minha saúde é parte da minha experiência e como é que eu me relaciono com isso né e isso eu sinto que na minha vida entrou a partir da experiência com o coletor e que não sei inclusive nos últimos tempos eu tenho sentido mais forte assim eu tinha até comentado que na minha menstruação anterior eu fiquei pesquisando arte menstrual a menstruação todinha e assim meio que me preparando sabe tipo porra na próxima eu vou pintar avisei até a Fábia eu digo olha eu vou botar um negócio aqui no quintal e a próxima menstruação vou fazer uns negócios aqui eu vou fazer uma arte aí ele disse beleza Fábio é meu companheiro de casa assim a gente divide a casa não é não temos relacionamento amoroso não e aí assim eu acho que o coletor ele foi realmente assim esse marco na minha vida de que tipo se fazer xixi fazer cocô não são incômodos são parte da vida por que que menstruar é uma coisa tão ruim né uma coisa que eu sempre achava um saco tipo ai eu vou menstruar vai ter tal viagem eu acho que o coletor na minha vida eu acho que foi o momento em que a menstruação parou de ser lida como um incômodo e não que eu não me sinto incomodada com o que ela traz mas eu acho que eu fui tirando ela e ainda tou não tou dizendo que eu sabe assim que hoje em dia eu amo menstruar não ainda tenho várias questões mas eu coloco isso inclusive em outro lugar inclusive num lugar de poder e isso começou eu acho nesse período do coletor a primeira vez que eu vi meu sangue aquilo ali foi uma doideira eu assim eu disse gente era isso você nunca viu ele fica ali espalhado e fede aquele negócio de absorvente e aí eu vi ele era quentinho ele era denso ele era lindo eu disse como ele é lindo eu fiquei espalhando assim no box risos então isso foi assim aí depois eu botava nas plantinhas na varanda né assim me sentindo a maior bruxona da terra né então eu acho que isso assim começar a fazer estabelecer não vou nem dizer fazer as pazes que eu não sei nem se é isso mas estabelecer uma relação eu e a menstruação Ao sugerir que o uso do copinho vem transformando as ordens práticosimbólicas da menstruação a partir de suas características particulares que demandam inserção dos dedos na vagina e proporcionam contato com o sangue menstrual invulnerado em textura cor cheiro e volume argumento que o coletor promove um tipo de percepção jamais despertada por outros dispositivos Escolho o termo percepção para referir às capacidades de alinhamento aos fenômenos corporais atenção aos sinais fisiológicos compreensão das características únicas da própria anatomia e contínuo interesse em desenvolver literacia corporal FISCHMANN 2018 Autonomia é um valor imprescindível para exercitar percepção pois os conhecimentos que essa capacidade produz dizem respeito a corpos específicos e só podem ser desenvolvidos por esses corpos não há como alguém realizar percepção para outra pessoa Tratase de um processo de observação e sensibilidade às condições individuais aqui a noção de autonomia mesmo que a princípio individualizada tem um caráter marcadamente político pois requer diálogo para descobrir e fundamentar informações coletivamente Percepção é aquilo que vai à contramão da alienação corporal cartesiana pois assimila corpo como indistinguível do ser rejeitando a separação entre material e imaterial físico e 127 mental sensível e racional Estimar percepção é ir de encontro ao ponto de vista branco e androcêntrico que enaltece valores de racionalidade ao descartar das ferramentas de saber científico aspectos socialmente considerados do âmbito do feminino ou do dito primitivo como corpo e emoção Se a análise de Young 2005 p 101 retratava a menstruação como um fato incômodo com o qual elas precisam lidar e gerir mas não um aspecto de seu ser como sujeito100 encontro nos depoimentos das participantes desta pesquisa notável conexão ao fluxo menstrual a menstruação deixa de ser um fenômeno distanciado como um agente exterior que nos molesta mês após mês e passa a ser percebida como algo que nos constitui Percepção pode ser discernida em todas as vezes que as usuárias de coletor nos grupos focais falam sobre as descobertas proporcionadas pelo uso do copinho entendendo que tá com a pressãozinha certa usando os dedos para sentir a posição do colo do útero não fazia ideia do que era a altura do colo do meu útero nunca nem tinha pensado sobre isso e adquirindo a habilidade de inserir o coletor e se certificar de que ele está devidamente vedado Percepção se revela quando Vera afirma é o melhor pro meu canal vaginal a despeito das recomendações padronizadas sobre qual modelo adquirir Percepção está na segurança de Sandra em dormir menstruada sem utilizar qualquer dispositivo sentindo que enquanto está deitada o fluxo não desce Percepção partilhada também por Cíntia e Solange que decidem praticar sangramento livre quando estão em casa confiando em sua acuidade de senso sobre seus fluxos Percepção é evidente em todas as vezes que essas mulheres relataram fazer analogias entre as características de densidade cheiro e cor do sangue de um ciclo e os acontecimentos e estados emocionais que vivenciaram no mês anterior Percepção é responsável pelas descobertas que fazem Iara realizar que a gente não precisa ter medo de se tocar A improficiência de percepção também pode ser encontrada nas dificuldades de adaptação na desconfiança de que o copinho possa alargar a vagina nas paranoias de Bianca com o uso concomitante de coletor e DIU no buraco imaginário que a vagina se torna no desespero de Luana ao não conseguir retirar o coletor e tá escorregando meu dedo não vai e tá sambando Foi preciso longo tempo de ponderações para decidir por um termo que bem expressasse essas habilidades Logo de início descartei a ideia de consciência corporal pois entendo que essa locução pode reproduzir o dualismo mentecorpo definitivamente não pretendo submeter corporalidade a qualquer formulação lógica nem acho necessário elevá 100 Tradução livre No original Menstruation is an annoying fact that they must deal with and manage but is not an aspect of their being as subjects YOUNG 2005 p 101 128 la ao valorizado plano da consciência Uma expressão nativa é autoconhecimento palavra recorrentemente empregue por usuárias de coletor para descrever os processos que o dispositivo promove no que concerne a saberes do corpo Porém considero que autoconhecimento não é um conceito que se adequa a esta pesquisa pois carrega conotações conflitantes nas diferentes áreas das ciências humanas e inclusive no senso comum É uma palavra popularmente ligada a caminhos de espiritualidade e por vezes vista com desconfiança por algumas correntes filosóficas ou da psicologia Outro termo que surgiu no contexto da pesquisa foi propriocepção palavra que remete à capacidade em reconhecer a localização espacial do corpo sua posição e orientação a força exercida pelos músculos e a posição de cada parte do corpo em relação às demais sem utilizar a visão101 Esse termo me foi apresentado durante a Imersão em Autoformação Ginecológica com Cibele Cê quando realizando alguns exercícios aprendi a sentir meus ovários e útero da mesma forma que sei imediatamente sentir e perceber meu estômago ou meu coração Propriocepção foi uma competência incentivada a ser desenvolvida por Cibele sob o argumento de que nós mulheres somos estimuladas a reconhecer a presença do útero apenas no sentido da dor costumamos perceber esse órgão somente a partir da sensação da cólica Desde então desenvolver propriocepção se tornou algo importante para mim e me empenho em exercitar essas capacidades102 À época pareceume uma boa maneira de comunicar esse senso de si desenvolvido por um entendimento sensorial das partes do corpo dos órgãos sexuais seus movimentos e atividades Porém mesmo que devidamente empregue nesse contexto da ginecologia política a palavra propriocepção é consolidada no campo da fisioterapia e também traz consigo conotações desajustadas a esta pesquisa Passei então a considerar o uso da palavra percepção mesmo abraçando sua aparente simplicidade e desenvolvendo em mim as potencialidades de significado que a habilidade de perceber evoca Nesse ínterim conheci o conceito de literacia corporal cunhado por Laura Weschler em 2005 e difundido no Brasil recentemente por Carolina Fischmann antropóloga e instrutora do Método Justisse de Percepção de Fertilidade Para Fischmann literacia corporal tem uma dimensão política que termos como autoconhecimento não abrangem Ela utiliza a expressão percepção menstrual em seu 101 Disponível em httpsptwikipediaorgwikiPropriocepC3A7C3A3o Acesso em maio 2019 102 Entregome aos caminhos da Yoga nessa jornada que ao lado da psicoterapia foi imprescindível para a construção desta dissertação 129 ofício como instrutora para se referir à capacidade de sentir observar e interpretar metodicamente certos sinais ao longo do ciclo menstrual Para reduzir a uma frase podemos dizer que literacia corporal é um processo sem fim de aprendizagem e conexão com o próprio corpo Assim como a alfabetização começa pela compreensão de símbolos letras e palavras e vai progressivamente se complexificando em frases construções gramaticais complexas formas poéticas de se expressar etc o conhecimento que possuímos do corpo também vai se construindo e ganhando novos sentidos se tivermos as ferramentas necessárias e a disposição para nos dedicarmos a isso Laura Weschler 2012 criou este conceito justamente comparando o pequeno conhecimento de mulheres sobre seu corpo com o analfabetismo o conceito de literacia corporal me ocorreu depois de ler um romance que ilustrava o desempoderamento causado pelo analfabetismo A incapacidade de ler diminui a autoestima e oportunidades para participar na troca de ideias A conexão entre isso e a vida de mulheres e meninas é óbvia inclusive a educação de meninas é um ponto chave em qualquer trabalho internacional para o desenvolvimento Eu fico chocada que a maioria das mulheres em países desenvolvidos vivem um outro tipo de iliteracia nós não somos ensinadas a ler ou a entender nossos próprios corpos Pelo contrário somos ensinadas a desconfiar de nossos corpos e aceitar vários métodos artificiais para controlálo Pela minha definição literacia corporal é adquirida quando aprendemos a observar graficar fazer gráficos seguindo algum método sistematizado de percepção de fertilidade e interpretar os eventos do nosso ciclo menstrual Esta é uma habilidade de vida que nos ajuda a entender como nossa saúde sexual saúde reprodutiva saúde em geral e bemestar estão conectadas ao ciclo menstrual Literacia corporal colabora ou talvez até nos obriga a termos consentimento informado em qualquer decisão sobre cuidados com nossa saúde Algumas das coisas que eu vejo ocorrer com frequência entre mulheres que entram neste processo de adquirir literacia corporal são melhoria na autoestima novas percepções sobre o efeito do machismo comportamento sexual menos arriscado maior capacidade para dialogar com profissionais de saúde maiores cuidados com seu bemestar etc Assim como uma pessoa alfabetizada consegue acessar uma gama maior de conhecimentos e decidir com mais consciência uma pessoa que tenha literacia corporal poderá tomar decisões mais bem informadas sobre sua saúde e sua fertilidade FISCHMANN 2018 O conceito de literacia corporal vem sendo propagado em estudos sobre direitos sexuais e reprodutivos nos Estados Unidos e Canadá e em circuitos de ativismo menstrual De acordo com Fischmann também está começando a ser empregue em referência a práticas alimentares e estilo de vida transbordando o escopo da menstruação e fertilidade Gosto do conceito pois faz alusão a essa condição imprescindível para romper as limitações de alienação corporal disposição a observar e interpretar sinais corporais de maneira bem informada O modo como emprego o conceito de percepção inclui literacia corporal mas também vai além dela A palavra literacia remete obviamente à capacidade de leitura quando falo de percepção indico um tipo de conhecimento que não precisa passar pelo plano do discursivo É um conhecimento que pode ser analítico mas também estritamente sensorial 130 ou afetivo Ou seja para mim percepção pode incluir o aprendizado de informações sobre anatomia sexual escrutínio de explicações científicas do ciclo menstrual e propriedades do fluxo da menstruação mas esses dados exteriores à experiência apreendida por cada pessoa servem apenas como ferramentas para elaborar outro tipo de processo de conhecimento Enquanto literacia remete a uma interpretação sistemática dos dados que um corpo fornece percepção diz respeito a um aprendizado sobre o corpo mas principalmente através do corpo com o corpo Fischmann em seu ofício de acompanhamento de ciclos e fertilidade fala de percepção menstrual a partir de um viés rigorosamente metódico essa não é minha intenção mas ainda encontro aproximações entre meu uso desse termo e sua abordagem Percepção menstrual foi a principal ferramenta que eu encontrei para trabalhar a literacia corporal Ela é como um mindfullness da fertilidade Para mim a percepção menstrual foi a porta de entrada para compreender na minha vivência corpórea e não só intelectual um vasto mundo de determinantes biológicos psicológicos e sociais com os quais nos confrontamos a todo momento na criação dos nossos eus FISCHMANN 2018 Como venho apontando a habilidade de percepção que o coletor menstrual promove diz respeito ao conhecimento sensorial do sangramento uterino como coloca Joane a primeira vez que eu vi meu sangue e dos formatos disposições e texturas da própria anatomia sexual principalmente diante dos processos de adaptação ao dispositivo quando é preciso desenvolver segurança sobre o posicionamento do copinho Além desses aspectos a percepção também se desdobra em uma atitude de identificação com os estados de ânimo físico e emocional durante o período menstrual afastandose da sensação de que as ocorrências fisiológicas da menstruação são processos exteriores desagradáveis e indesejáveis Ao contrário de uma visão debilitante as mulheres participantes dos grupos focais assumem a menstruação como um estado que faz parte da gente Em todas as conversas o período menstrual foi descrito como um momento no qual a introspecção é valorizada os incômodos comumente associados à menstruação se deveriam muito mais às demandas externas de uma sociedade baseada em produtividade linear do que às condições de seus corpos BIANCA a gente também é influenciada pela sociedade ainda mais né porque a gente tem que estar sempre produtiva e aí ahn ajuda bastante né você ter um contato assim com teu ciclo por exemplo esse mês inclusive eu fiz de propósito o dia que era pra eu ficar menstruada eu falei não eu não vou me 131 convidaram lá pra fazer um negócio e eu falei eu não vou eu não fui falei ah não posso ir preciso fazer outra coisa fazer outra coisa era ficar em casa de boa e tipo SER tá ligado porque preciso ser às vezes e eu fico pensando se eu teria chegado nisso sem ter me inserido nesse meio porque eu não sou muito eu tive contato com o pouco que eu tenho de contato com ginecologia natural e esse tipo de coisa foi através de grupos que eu entrei em contato por causa do coletor né e aí você escuta essas outras coisas e tal não sei se eu teria entrado em contato com essas informações se não fosse por isso e acho que sei lá de uma forma indireta o coletor também teve esse pró de ter proporcionado esse acesso a esses conhecimentos acesso a essas outras esses outros discursos que talvez eu não teria ouvido falar LUANA eh e acho que pra mim entra como mais uma coisa nesse processo também da relação com a menstruação e comigo mesma que eu acho que eu ainda estou em processo né e inclusive nesse exercício mesmo de me acolher mais e respeitar mais também isso né de que somos cíclicas nem sempre estaremos pra fora estaremos sabe dispostas disponíveis mas que é importante que a gente também tenha o nosso momento eh eu tou tentando conhecer um pouco mais disso eu comecei a me aproximar mais não menstruação não é essa coisa que nos vendem né da forma que nos apresentam não é bem assim não é uma coisa mais especial né faz parte da gente é do nosso ciclo enfim e aí eu acho que ainda venho construindo muito ainda assim isso então tem momentos porque inclusive a própria rotina né como ela falou não nos permite viver a nossa menstruação como a gente gostaria né de às vezes estar em casa tar mais tranquila tar naquele nosso momento e aí isso que nos coloca de frente pra ela e aí não vamos abafar isso vamos tomar remédio pra enfim fazer coisas eh pra dar conta na verdade desse modo de vida produtivo de ter que tar no trabalho mesmo menstruada e aí então essa relação ela é sabe ela é bem viva o tempo inteiro tou nesse processo mas tenho tentado cada vez mais tentar conhecer mesmo e respeitar e sempre que possível assim estar em casa sempre que possível não marcar nada naquele dia isso aí isso só é possível porque hoje em dia eu conheço meu ciclo também é algo que você dá um start você pera aí onde é que eu tava que não tava conectada com meu corpo assim ou melhor o que é que esse sistema faz que nos afasta de nós mesmas assim de uma forma tão brutal né tão violenta Em seus relatos a relação com a menstruação pode ser uma atitude subversiva na qual elas priorizam a quietude necessária para o acolhimento do período menstrual frente a outras exigências do convívio em sociedade Essa tomada de decisão acontece a partir do acesso a esses outros discursos tão dissonantes da solidão observada por Fáveri Venson 2007 p 77 na qual a prática do segredo do medo da vergonha e essa experiência particular de temer o corpo marcava o senso de identidade de suas entrevistadas VERA é um momento eh de muita subversão porque se a gente for observar a gente tá sem estar menstruada fazendo coisas trabalhando e de repente você tá menstruada você tem que parar então se você realmente acolher esse parar você tá sendo totalmente subversiva porque o mundo quer que você continue SANDRA isso VERA que você continue caminhando que você continue fazendo tudo e você fala não eu não vou continuar caminhando eu não vou de uma forma muito pacífica 132 SANDRA aceitar aquele momento VERA acho que por isso isso pro patriarcado é de adoecer de como que você vai parar se tudo acontece aí o mercado tudo sabe dinheiro minha filha não eu vou parar tipo assim sabe então é meu momento de ser subversiva de verdade sacou de falar não eu não vou fazer nada eu não vou estudar não vou ler texto de faculdade não vou fazer nada não quero não vou quer dizer tem épocas de menstruação que eu até quero fazer alguma coisa né mas tem mas não não quero fazer nada tipo isso saca MARIA pra mim é muito de renovação assim mesmo vou medir até a palavra porque enfim acho que essa subversão esse momento de você assim parar de o seu corpo fala mais alto assim acho que quando a gente tá numa onda né a gente aqui do ocidente numa onda de de despreocupação de desconexão com o seu próprio corpo então eu acho que a menstruação eu quando tou menstruada poder parar poder não ter que parar que às vezes não é só poder SANDRA eh VERA poder e ter MARIA sabe é quando o corpo fala mais alto você vê que a natureza tá ali quando você diz velho eu tenho fundamento também eu tenho isso aqui assim e aí dá essa possibilidade de renovação velho VERA é isso mesmo MARIA eu mesma esse mês eu já queria menstruar de novo assim velho já aconteceu tanta coisa nesse janeiro risos que eu pelo amor de deus menstruação venha que eu quero recomeçar VERA eu quero morrer um pouco SANDRA eu quero morrer um pouco risos MARIA sério velho eu tava pensando nisso ontem eu já queria menstruar velho já deu pera aí sabe chega aí eh mas enfim então eu acho que força a gente a tar nesse outro lugar e de uma maneira forçosamente natural tem uma contradição aí né mas enfim eh é foda Acolher aceitar conectar conhecer ter um contato respeitar fazer parte são expressões que constantemente aparecem nas falas dessas usuárias de coletor remetendo à relação viva com a menstruação que elas descobrem a partir do uso do dispositivo O contato com o sangue parece desencadear interesse em perceber o corpo para além do fluxo material num sentido mais amplo sobre o significado da menstruação em sociedade O fluxo do cotidiano e o ritmo do trabalho são colocados em questionamento diante da percepção do ciclo menstrual Considerando os significados e potências da menstruação Daniela Manica e Clarice Rios 2016 investigam o uso do coletor no que concerne a suas políticas de tornar visível o invisível Elas investigam o copinho a partir de sua qualidade de coletar ao invés de absorver mantendo as propriedades do sangue acessíveis aos sentidos A análise das pesquisadoras se concentra nos usos do coletor como material artístico através do qual 133 mulheres vêm usando o próprio sangue para realizar performances pinturas e fotografias num processo geral de tornar experiências corporais relevantes compartilhadas narradas e debatidas para além de uma estrutura estritamente biomédica103 MANICA RIOS 2016 p 19 Após o encontro dos grupos focais Joane me enviou imagens de sua primeira experiência utilizando sangue menstrual como substância para pintura FIGURA 16 PINTURAS COM SANGUE MENSTRUAL Fonte Imagem disponibilizada diretamente pela autora 103 Tradução livre No original The experience with the use of menstrual cup though is being articulated in social networks as a revolution that will eventually substitute the use of disposable artifacts Felitti 2016 Communities of Facebook and numerous blogs are addressing the issue working as an important source of apprenticeship of body techniques and feminist empowerment Yet menstruation is only one of subjects discussed through this medium Other themes related to fertility and reproduction such as pregnancy birth breastfeeding and childcare are also frequent topics in these communities We would like to suggest that there is in this context a more general process of making bodily experiences relevant shared narrated and debated beyond an strictly biomedical framework In these discussion groups and on tutorial videos shared online not only do women hear about the menstrual cup but they also learn how to buy the different brands available to insert and take off how to care for it and what can be done with the menstrual blood collected by the cup In this context many women engage with the plastic experience of painting and drawing with their own blood and share these images online On many occasions social networks have blocked them or had their postsimages censured MANICA RIOS 2016 p 19 134 Nós argumentamos que esse dispositivo tem exercido um papel chave em trazer a experiência menstrual à tona mesmo se não intencionalmente e como tal é central na mobilização estéticopolítica do sangue menstrual Ao invés de misturar o sangue menstrual ao algodão como os absorventes normalmente fazem o copo de silicone permite que o sangue se mantenha líquido e palpável proporcionando às mulheres uma nova oportunidade em sua experiência com menstruação uma experiência plástica com sua cor textura e cheiro O coletor menstrual é agora apresentado como uma ferramenta para aprimorar o conhecimento e poder feminino em sintonia com premissas de cuidado tanto do corpo quanto do ambiente uma vez que o copinho não é descartável104 MANICA RIOS 2016 p 15 O contato direto com as propriedades do fluxo menstrual facilita a possibilidade de interpretar suas características em comparação a observações dos afazeres humores e disposições na vida cotidiana Ferramentas como diários aplicativos de celular105 e mandalas106 são utilizadas pelas participantes da pesquisa como forma de registrar os sinais percebidos e atividades realizadas num esforço em exercitar literacia corporal As propriedades do sangue uterino são imediatamente acessíveis às usuárias de coletor transformandose por vezes em dados para analisar fenômenos recorrentes ou atípicos em seus ciclos CÍNTIA engraçado que você falou e eu lembrei que esse mês eu senti um cheiro muito de ferro né que algumas mulheres já me relataram assim que sentiam um cheiro de ferro eu não sentia tanto tinha época até que eu sentia um aroma 104 Tradução livre No original We argue that this device has played a key role in bringing the menstrual experience to the fore even if unintentionally and as such it is central to the aestheticopolitical mobilization of menstrual blood Instead of mixing menstrual blood with cotton as the absorbents usually do the silicon cup allows the blood to remain liquid and palpable providing women a new affordance Latour 2005 72 in their experience with menstruation a plastic experience with its color texture and smell The menstrual cup is now presented as a tool to enhance feminine knowledge and power in tune with premises of care both of the body and of the environment since the cup is not disposable MANICA RIOS 2016 p 15 105 Críticas similares às de Felizi Varon 2016 sobre aplicativos voltados ao ciclo menstrual foram apontadas por Joane no primeiro encontro dos grupos eu ia falar uma coisa nesse sentido também que a gente fazia parte de um grupo lá na minha cidade que tinha muitas meninas que usavam esses aplicativos né só que a gente tinha uma mana nossa que era da segurança da informação e aí ela fez a maior campanha bem didática pra gente não usar isso assim porque é isso a gente tá vivendo num momento do capital que o que tem de mais precioso são os algoritmos do que a gente gere e aí essa produção dos algoritmos né do corpo das mulheres sendo comprado e beneficiando as indústrias farmacêuticas que financiam a produção desses aplicativos então é assim é um campo bem bem controverso né apesar de que lógico eu acho que é um caminho de autoconhecimento mas dentro de um lugar que a gente não tem mais controle 106 A mandala lunar é um infográfico mensal em formato circular orientado pelas fases da lua Com a mandala é possível fazer o registro e acompanhamento de sinais de fertilidade fluidos corporais aspectos da pele atividade sexual estados de humor dores disposição energética consumo de substâncias regulações do sono exercícios físicos emoções apetite comportamentos e quaisquer outras características que a pessoa considerar relevantes O registro é feito à mão utilizando símbolos e cores 135 floral sei lá uma coisa mais adocicada mas esse mês eu senti ferro sabe aquela coisa bem eh ferrugem risos e foi um mês que eu fiz muito trabalho eu não treinei né mas assim eu fiz trabalho de corpo muito intenso lá na oficina de palhaçaria durante três dias e um trabalho de exaustão do corpo né de ir até respira fundo para e eu tava eu tava sentindo que eu tava pra menstruar como se eu fosse menstruar a qualquer instante aí quando veio veio nessa força assim com esse cheiro né de ferro assim como se tivesse mobilizado coisas a leitura que eu faço as mobilizações que tão no peito ela veio dessa maneira mais eu senti mais forte mais intensa e a observação que eu faço é assim eu faço com a mandala também mas é na autopercepção assim né tentando me perceber mesmo observar sentindo as mudanças né do meu corpo mudanças do muco uma coisa que eu era desligada depois eu percebi que antes do período menstrual eu tava com uma cândida né sempre vinha nesse período e é normal também que pode acontecer uma baixa né a mudança das organizações ali da flora e tudo o mais eu fiquei durante muito tempo vindo a candidíase ali alguns dias antes uma coceira enlouquecida aquele muco menstruou tipo passou e nesse ciclo agora não veio mas aí vou fazendo essas percepções assim não tão regular com a com a mandala mas isso é falta de tipo vai eu tenho até que atualizar esses últimos eh ontem e hoje mesmo né de fazer como processos de de meditação assim mesmo né antes de dormir que tá tudo mais tranquilo e aí fazer essas auto observações aproveito pra escrever também tentar fazer ter o recurso da a ferramenta né da mandala que é interessante mas quanto mais poder tar compreendendo em mim mesma o funcionamento do corpo os sinais que ele dá esse caminho mais que que eu busco assim pra mim é relação de de autotransformação assim sabe eu aproveito o período menstrual pra direcionar né tem negócio que tá meio degringolou ali antes né do período do ciclo então eu é como um ritual mesmo como magia mesmo a maneira como eu utilizo a menstruação sabendo que eu vou ter acesso a esse sangue e que ali eu vou enfim olhar pra ele e né trazer acessar informações trazer informações como processo de liberação de cura nos últimos períodos nos últimos ciclos é o que eu tenho feito assim compreendendo que ele faz parte de todo o movimento que eu faço de autoconhecimento Cíntia descreve sua relação com a menstruação a partir de uma ligação afetiva a seu sangue Diferente de Joane e Solange que decidem naturalizar107 a menstruação comparandoa a outros fluidos corporais inclusive considerados excrementos Cíntia considera o sangue menstrual como uma potência de magia ritual e cura Manica Rios 2016 p 21 apresentam exemplos de elaboradas obras de arte e argumentam que esses dispositivos também incentivam performances menos articuladas por usuárias de coletor menstrual em geral Fazendo isso elas orquestram uma lenta porém profunda reconfiguração 107 Naturalizar tratar com naturalidade foram expressões utilizadas profusamente nos grupos focais Por um lado remetiam à comparação do sangue menstrual a outros fluidos corporais enfatizando sua ocorrência orgânica para se contrapor a estigmas menstruais Ou seja uma abordagem que procura na normalização biológica a contestação da pejoração do sangue menstrual como asqueroso Por outro lado essas expressões também se referiam à postura de diálogo sobre assuntos do corpo num sentido de tratar de maneira leve conversar sem pudores ou ainda desvencilharse da carga cultural as exigências de etiqueta menstrual A ideia do que é natural realmente abarca muitos sentidos concomitantes até onde eu puder eh me naturalizar o máximo possível dentro desse sistema eu me permito a tratar do meu ciclo menstrual com naturalidade mesmo eu falo não só porque é natural mas como alguém que quer confrontar essa realidade que eu vivo então falo com a maior assim naturalidade com as pessoas que eu tou menstruada etc 136 dos usos simbólicos de seus processos corporais108 A pintura de Joane e a magia de Cíntia fazem parte dessas reconfigurações SOLANGE tem uma dimensão que ela é eu posso chamar de ideológica política né que aí já não é bem a relação com a menstruação propriamente dita não é mas é já na tensão com as pessoas né ao falar o que é o ciclo menstrual né de que é preciso respeitar que a mulher não é linear e por isso que a gente é lida de outro modo que não é compreendido nossos processos né nossa ciclicidade então a minha relação com ela é panfletária né risos digamos assim e também eh e ela também é tipo é sinal né eh aí mesmo quando ela não está ali em modo concreto né mas a expectativa de menstruar ou o período prémenstrual ou quando eu termino de menstruar ela vai dar ela dá sinais pra mim do meu estado de humor né de acolher esses estados de humor de compreender de alocar esses estados de humor de prever esses estados de humor né então tem também tem essa relação com essas raízes de acolhimento de compreensão com essas raízes né cada momento do ciclo menstrual mas quando eu penso nela propriamente dita né nessa labuta com o sangue ainda é essa eh essa secreção que o corpo produz e que eu tou numa sociedade que não lida bem com isso e eu preciso dar um encaminhamento a esse sangue Dar um encaminhamento ao sangue é uma questão reveladora sobre os significados da menstruação O descarte do conteúdo coletado pelo copinho é uma pista interessante a ser examinada a fim de entender os processos de construir uma relação com o sangue Quando Sardenberg 1994 p 342 analisa as disputas sobre o poder simbólico da menstruação na década de 1990 aponta que para a indústria dos absorventes descartáveis é importante que as mulheres continuem a menstruar se possível com fluxos cada vez mais abundantes mas que mantenham muita vergonha sobre essa coisa da natureza procurando sempre escondêla E para as mulheres usuárias de coletor menstrual O dispositivo por ser reutilizável não exige fluxos cada vez mais abundantes para avolumar o lucro de suas fabricantes Ao mesmo tempo é inegável que o copinho possibilita um ocultamento impecável do fluxo menstrual além de não deixar nenhum sinal de uso à mostra nem mesmo um fiozinho como é o caso dos absorventes internos não produzir nenhum odor ao manter o sangramento vedado no interior do canal vaginal também não se torna resíduo descartável acumulando evidências de menstruação nas lixeiras Ou seja o coletor permite que suas usuárias atravessem o período menstrual sem deixar nenhum resquício da situação de estar menstruadas se assim desejarem 108 Tradução livre No original Although the performances described here refer to carefully designed artwork these devices also invite less articulated performances by menstrual cup users in general In doing that they orchestrate a slow but deep reconfiguration of the symbolic uses of bodily processes MANICA RIOS 2016 p 21 137 De certa maneira algumas qualidades do uso do coletor poderiam ser incrementadas pelo estigma menstrual e a manutenção da vergonha sobre o sangue Quanto mais constrangedor for exibir sinais de menstruação mais interessantes parecem essas características do copinho Porém vimos no relato das participantes dos grupos focais que elas fazem questão de conversar sobre menstruação e compartilhar com as pessoas de seu convívio seja membros da família ou colegas de trabalho o fato de estarem menstruadas A manutenção da vergonha não ressoa entre elas mesmo que as propriedades do coletor permitam o imperativo do ocultamento Na ocasião ótima de viver um período menstrual em segredo elas fazem questão de comunicálo Pensando no descarte do sangue recolhido pelo copinho é muito comum que seja despejado em ralos de pia e chuveiro ou mesmo em vasos sanitários atitude que demonstra uma visão do uso do coletor como dispositivo higiênico essa ação faz sentido principalmente para aquelas que como Solange procuram lidar com o sangue como qualquer outro fluido corporal em sua organicidade mesmo Porém há também outras formas de descarte que compreendem um potencial nutritivo artístico ou sagrado ao fluxo menstrual Devolver o sangue à terra ou plantar a lua é uma prática bastante comentada nos grupos de redes sociais voltados a coletores ou ginecologia natural Sandra não demonstra pudores em informar às pessoas de sua convivência sobre o uso que faz de seu sangue SANDRA e como você rega as plantas eu hoje mesmo tava no banheiro lá de casa e eu tenho uma torneirinha do lado da privada né aí eu sempre tenho um baldinho onde eu jogo VERA você joga o sangue e mistura com água SANDRA é isso pra jogar nas plantas porque antigamente eu juntava e fazia um ritual VERA sim SANDRA aí às vezes eu esquecia e passava do prazo e tinha que jogar uma garrafa aí eu ah não aí hoje eu fiz isso e esqueci aí chegou uma visita e entrou no banheiro e saiu assim ah aconteceu alguma coisa com o gatinho que tem sangue no balde risos eu falei não é meu sangue menstrual risos a minha amiga falou ah hesitante legal risos então assim eu não encaro eu falo isso pra todo mundo eu falo gente esse negócio de encarar a menstruação como uma coisa suja eh eu acho assim o ganho que eu tenho eu posso falar que eu tenho um ganho o melhor pras minhas plantas tipo não tem composto não tem que não é uma coisa absurda é uma coisa assim que eu aprendi coisa do tipo eu aprendi um pouco mais da parte química também da dos resíduos assim da menstruação porque tem planta que não curte também VERA samambaia SANDRA samambaia gosta nossa samambaia ama 138 VERA samambaia eu tenho uma linda SANDRA samambaia eu tenho uma samambaia no banheiro do ateliê LETÍCIA muito providencial SANDRA justamente risos e tá linda maravilhosa os meninos ficam menina essa sua samambaia é bafo essa samambaia é bafo inclusive tá nos stories de um monte de gente que vai lá em casa risos tem foto com a samambaia Para Sandra menstruação não é uma substância a ser abandonada no ralo ela diz aprender um pouco mais da parte química observando a reação das plantas em sua casa ao sangue de cada mês que de acordo com sua percepção exibe diferentes propriedades a depender de sua alimentação e fase da vida Além disso faz questão de compartilhar suas técnicas de jardinagem com as visitas que recebe em casa menstruação meu amor taquem menstruação nas suas plantas A despeito da eficácia orgânica do sangue menstrual utilizado como adubo109 o que é interessante para esta análise é o significado que Sandra confere ao sangue menstrual aqui não há vez para menotoxinas menstruação está longe de ser associada à sujeira impureza substância repulsiva ou contaminante Ao contrário é entendida como prolífica potente e nutritiva Iris Young 2005 p 104 observa que a emergência de dispositivos menstruais descartáveis ao longo do século XX acarretou num novo tipo de alienação nesse contexto higienizador não haveria oportunidades de elaboração de significação reflexiva sobre a menstruação uma revolução na cultura de consumo no início do século XX estendeu aos produtos industrializados a gestão do fluxo menstrual Campanhas publicitárias de companhias como Kotex substituíram a visão da menstruação como debilitante por um entendimento da menstruação como um processo saudável que em última instância é sujo apresentando um problema de higiene que requer a utilização de seus produtos A despeito das implicações liberadoras dessa mudança na interpretação cultural da menstruação de uma condição confinante a um processo comum Brumberg argumenta que a cultura americana do século XX produziu uma nova alienação para meninas e mulheres sobre seus processos corporais Nós não temos uma oportunidade socialmente sancionada enquanto meninas e mulheres para refletir sobre o significado da sexualidade e da reprodução Ao passo que algumas outras sociedades marcam momentos de menarca e menstruação com rituais cósmicos a sexualmente igualitária sociedade de consumo contemporânea nivela o processo a somente outra forma de sujeira a ser descartada Brumberg sugere que mulheres precisam compartilhar significados para conferir a suas experiências 109 Adeptas da prática salientam os benefícios para as plantas a partir da abundância de fósforo potássio e nitrogênio no sangue menstrual Para plantar é lua é recomendado diluir o sangue em água e aplicar a mistura diretamente na terra não nas folhas 139 menstruais significação reflexiva Enquanto eu ainda não sei o que isso pode ser na prática a consideração de Brumberg levanta uma importante questão110 YOUNG 2005 p 104 Young não sabia dizer o que isso poderia ser na prática mas usuárias de coletor menstrual podem oferecer algumas pistas Consideremos as performances menstruais analisadas por Manica Rios 2016 p 02 que argumentam que esses dois aspectos coletores menstruais e ciberespaço convergem para tornar a experiência da menstruação individual e coletivamente relevante em novas e criativas maneiras mais notadamente em performances artísticas que consistem em tornar o sangue menstrual visível111 A prática de plantar a lua pode conferir um sentido afetivo simbólico e utilitário ao sangue Além destes as mulheres do terceiro grupo encontram diferentes destinos a seus fluxos desde um descarte exclusivamente higiênico a um descarte associado à experimentação com as texturas do sangue a fim de confrontar traumas com a substância e também um descarte com sentido simbólico e ritualizado direcionando informações através da menstruação ANA agora ultimamente quando eu uso o coletor eu jogo eu descarto mesmo no vaso quando eu tou numa região de mar de praia mais na água no mar rio natureza eu tento ser realmente mais conectada com o local mas quando eu tou na minha casa mesmo não tem a planta infelizmente enfim eu tou ali naquela no sistema então descarto ele eu já guardei outras vezes já plantei usei em planta e tal fiz experiências deu bem certo positivas mas a depender do local acho que depende muito CÍNTIA eh então eu tenho um processo ainda de ritualização digamos assim de desde que eu soube né desse movimento de entrar né de voltar pra essa conexão usando os paninhos e eu tenho uma vida que é dessa possibilidade de estar em casa sempre né de trabalhar em casa de fazer meus movimentos e aí e fazer esse autoestudo também né dessa autoobservação de cheirar o sangue de tocar né e percebendo como é que eu passei o período anterior né minha 110 Tradução livre No original a revolution in consumer culture in the early twentieth century extended to readymade products for managing menstrual flow Advertising campaigns by companies like Kotex replace the view of menstruation as debilitating with an understanding of menstruation as a healthy process that is nevertheless dirty presenting a hygiene problem that needs managing with their products Despite the liberating implications of this shift in the cultural interpretation of menstruation from a confining condition to a normal process Brumberg argues that twentiethcentury American culture produced a new alienation for girls and women from their bodily processes We do not have a socially sanctioned opportunity as girls and women to reflect on the meaning of sexuality and reproduction Whereas some other societies mark moments of menarche and menstruation with cosmic ritual contemporary sexual egalitarian and consumer society level the process to just another form of dirt to be disposed of Brumberg suggests that women need shared meanings to give their menstrual experience reflective significance While I dont know quite what this might mean in practice Brumbergs account raises an important question YOUNG 2005 p 104 111 Tradução livre No original We argue that these two aspects converge to make the experience of menstruation individually and collectively relevant in new and creative ways most notably in artistic performances that rely on making menstrual blood visible MANICA RIOS 2016 p 02 140 ovulação como é que tava minhas emoções como é que isso reflete na cor do sangue no cheiro enfim eu ao contrário de Ana assim eu sou uma mãe muito até onde eu puder ser do contra risos eh não do contra assim mas até onde eu puder eh me naturalizar o máximo possível dentro desse sistema eu vou tentar fazer isso e até por isso minhas escolhas também de moradia de trabalho e tudo mais porque pra mim passa por um processo de saúde também né de prevenção então esse autocuidado o autoconhecimento autoobservação pra mim é um processo de prevenção autoestudo e aí eu rego minhas plantas tanto que eu falo aqui é muito severo de salitre né e aí eu percebo o quanto as plantas realmente seguram a onda e com certeza é por conta do sangue porque se não fosse eh talvez já elas já tivessem ido assim eu sei que eu tenho mão pra cuidar de planta mas o sangue dá essa força assim pra elas então se eu vejo que tem uma plantinha que tá mais assim debilitada é nela que eu fico regando né colocando mais e enfim já fiz rituais também assim já risos canalizei informações direcionei informações através de meu sangue como processo de cura de relações questões minhas mesmo quando eu sinto que o negócio tá mais tensionado eu vou no sangue esses processos ritualizados e atualmente o que eu eh eu decidi pegar um vasinho que eu tinha de colocar meu sangue e colocar uma terra e aí eu despejo o sangue do coletor nele agora nessa terra direto o outro sangue do absorvente de pano como tá ali diluído é onde eu rego as plantas mas esse puro eu coloco na terra e fico assim eu fico triste quando eu estou num lugar tipo casa de minha mãe né mas eu já coloquei um pouquinho assim né risos nas plantinhas de minha mãe eu aproveito mas nos lugares assim que realmente não dá eu eu enfim eu emano uma informação ali pra que aquele sangue indo aquela água vire outra coisa SOLANGE quando eu ouvi a pergunta eu fiquei pensando sobre que eu não tenho uma relação também ritualizada né eu tenho eu gosto de rituais né rituais são movimentos importantes na minha vida né no processo de autoconhecimento espiritualização né mas com meu sangue eu ainda tou nesse processo de deserotização né que é deserotização da vagina e de naturalização do sangue ainda tou nesse caminho de me relacionar com esse sangue não traumático né e aí eu até me vi brincando com o sangue parece criança pequena mesmo tipo assim sei lá vou derrubar na pia aí eu derrubo na mão e fico esmagando assim pra sentir a textura né derramo no lugar de banho pra ver o quanto de estrago que faz assim né risos no lugar de banho né tipo isso né eh aí ele vem coagulado e pra sentir o coágulo sentir o sangue que não tá coagulado aí sentindo essas coisas de ficar cheirando aí de cheirar em diferentes circunstâncias botar aqui de esperar secar pra ver se fede né coisas assim risos né mas já tentei colocar nas plantinhas mas rolou isso não entrou de modo natural né então fiquei desapegada ainda tou nessa resenha de ver esse sangue derramando de ver esse sangue manchando as coisas impregnando tinturando as coisas e isso e ficar de boa né eu tou nesse processo IARA já eu não tenho essa relação não descarto no vaso até porque até pouco tempo eu mudei essa semana pra minha casinha finalmente saí de casa eh então eu jogo no vaso lavo na pia se eu não tomar banho se eu tomo banho eu jogo ali no chuveiro mesmo no banho mesmo não lembro de ter descartado em outro lugar somente em eh vaso sanitário e lavo na pia 42 REDES DE MULHERES CONHECIMENTOS HORIZONTALIZADOS 141 Desenvolver uma relação com a menstruação aprender a usar o copinho dar um encaminhamento a esse sangue e conferir significados diferentes da visão estigmatizante da sujeira são processos que acontecem em comunicação a outras usuárias de coletor Bianca pondera eu fico pensando se eu teria chegado nisso sem ter me inserido nesse meio e constata que foi a partir do coletor que ela passou a acessar discursos que valorizam o acolhimento do período menstrual Simone valoriza a oportunidade de me inserir nesse espaço feminino e feminista a partir do qual pôde exercitar suas percepções sobre o sangue e fortalecer sua assertividade no diálogo com as pessoas que a circulam Maria conheceu o coletor a partir de um grupo de discussões na internet que era uma espécie de rede de apoio mesmo e também de sugestões de dicas que as mulheres compartilham várias coisas Iara diz que as informações partilhadas por outras usuárias nas mídias digitais ajudou a desmistificar sua hesitação em inserir os dedos na vagina É a partir de redes de mulheres que o coletor vem conquistando novas consumidoras muito mais do que por uma resposta solitária a sugestões de campanhas publicitárias ou ainda por orientação de profissionais de saúde Confiar nesse novo dispositivo requer a troca de saberes entre mulheres que expõem suas experiências orientam umas às outras e partilham os proveitos de acessar capacidades de percepção Avaliando as possibilidades de expansão comercial dos coletores no Brasil Reis Ribeiro 2016 destacam a forma desarticulada de disseminação de informações sobre o produto e procuram reunir dados para auxiliar empresas nacionais a desenvolver estratégias de vendas Vale ressaltar que compreendese também a importância da aprovação e suporte da comunidade já adepta especialmente quando participante ativa de grupos de discussão e compartilhamento de informações a respeito dos mesmos Isto porque esta fatia de pessoas tem alto potencial de propagação dessas informações bem como estão em constante contato com o públicoalvo que se interessa por questões do próprio corpo e está aberto a novas possibilidades se portando assim como voz de legitimação sobre o que seria adequado ou não consumir no âmbito brasileiro de coletores menstruais REIS RIBEIRO 2016 p 35 Acredito que essa desarticulação é justamente a potência dos coletores Aprimorar o design das embalagens manuais de instruções e sites das empresas é um trabalho necessário ao qual as autoras se dedicam a colaborar mas é preciso salientar que os caminhos de difusão de saberes sobre o dispositivo têm um caráter intrinsecamente autônomo e esse é o ponto mais interessante sobre as repercussões que o coletor exerce nas transformações das ordens prático 142 simbólicas da menstruação Adquirir segurança na compreensão do próprio corpo num processo que se inicia com adaptação tornase desenvolto e redunda em assertividade é um aspecto essencial das qualidades do coletor no que concerne à expressão resoluta de decisões sobre si Esse processo precisa ser independente e horizontal para se realizar com destreza inclusive contestando as instâncias que historicamente vêm pejorando o sangue seja o conhecimento científico abarrotado de menotoxinas e úteros chorosos por um óvulo não fecundado seja as representações midiáticas que têm tanto pavor de menstruação que covardemente a eufemizam com um patético líquido azul Desmantelar o caráter privado e segredado do período menstrual e trazer à tona o assunto em conversas cotidianas é um movimento que propicia rompimentos de estigma ao sangue absolutamente necessários para a adesão ao uso do produto que requer contato direto com a substância Conversar sobre o sangue menstrual faz parte do processo de desenvolver percepção e conseguir uma boa adaptação ao coletor São processos que implicam ao mesmo tempo em autonomia e coletividade confiança nas próprias observações e sensações e troca de conhecimentos com outras mulheres para ampliar e fundamentar os saberes acessados nessa empreitada É a partir de redes de mulheres que as participantes desta pesquisa puderam sanar dúvidas descobrir diferentes formas de dobrar e inserir o copinho esses detalhes foi muito com ela e encontrar apoio para continuar investigando com seus corpos eu tava quase desistindo inclusive conversei um pouco com a minha irmã que ela falou pô Maria vi outras formas de usar Aquelas que apresentaram maior dificuldade com adaptação ao coletor são justamente as que mais ansiavam por expandir suas redes e entrar em diálogo com outras mulheres eu perguntava pras minhas amigas e ninguém usava eu me sinto um pouco sozinha nesse aspecto de círculo de pessoas que usem A descoberta da existência do copinho e a decisão de experimentálo são marcadamente influenciadas por recomendação de outras usuárias acho que foi mais por causa dessa amiga mesmo assim porque ela falava muito bem acho que com ela deu muito certo e por uma credibilidade que outras instâncias dentre os micropoderes em disputa discursiva sobre a menstruação não alcançam essa minha amiga né que é nossa uma figura uma referência pra mim eu confio plenamente nela eu gosto das coisas que ela traz pra minha vida Quando comecei a usar coletor realizei consultas com duas médicas ginecologistas que não conheciam o dispositivo Cinco anos depois Lena também encontra essa situação 143 LENA eu fiquei besta porque eu fui há uns quatro meses pra ginecologista e é uma ginecologista que eu gosto bastante que ela tem uma perspectiva mais natural e tal e ela não conhecia aí eu fiquei meia hora assim oxe você não conhece risos é sério você tá de brincadeira comigo né ah depois de muito tempo que ela foi tirar lá da memória o que era mas eu fiquei assim bestificada porque ela não conhecia como é que pode e uma ginecologista que é referência na cidade que é tipo que eu gosto de estar com ela e ela não conhecia Nas mídias digitais acompanhei dezenas de relatos sobre confrontos com profissionais de saúde que eram ignorantes sobre o copinho ou o criticavam abertamente principalmente a partir do argumento de que as usuárias não seriam capazes de higienizar devidamente o objeto Esse comentário reafirma o monopólio da autoridade médica na gestão de nossos corpos depreciando nossa capacidade de nos responsabilizarmos pelos cuidados básicos com a saúde e mantendo a carga de mistério e inacessibilidade a nossos órgãos sexuais Obviamente medidas de higienização são necessárias para o uso do coletor e aprender a fervêlo no início e ao final de cada período é parte simples de sua adaptação nenhuma das participantes dos grupos focais mencionou dificuldades nesse sentido Outra disputa que se evidencia é o descompasso entre a compulsória prescrição de tecnologias médico farmacêuticas e o desestímulo ao coletor por um lado produtos que apresentam possíveis danos colaterais graves mas geram volumosos lucros por outro um dispositivo de material seguro e durável que só precisa ser substituído com quase uma década de uso IARA eu conversei com a minha ginecologista ela não usa isso não SOLANGE sério IARA não usa isso não por que você não usa absorvente interno CÍNTIA meu deus IARA mas assim ela é bem CÍNTIA ela fundamentou pelo menos IARA não não ela era bem mais velha ela não menstrua mais eh e tem muito tempo que ela não né eu acho que mais por conta disso ela eu sempre usei absorvente interno ah então por que você não usa você não usa pílula pílula anticoncepcional aí você toma eh como que fala LETÍCIA contínua IARA contínua e não menstrua para de menstruar e eu eu nunca gostei de pílula anticoncepcional eh de injetar tanto hormônio assim no meu corpo então eu fiquei eu fiquei até assim um pouquinho chateada poxa a maioria dos ginecologistas que eu vou sempre ah você não usa pílula você usa camisinha 144 mas por que você não usa essa pílula aqui aí passa por que você não usa aquele anel que você coloca lá e não sei que né não ANA a minha ela também um pouco por causa disso que ela é mais velha mas ela também quebrei com ela porque ela falou comigo assim SOLANGE saiu no fight ANA eh assim quebrei dei uma resposta que ela ficou SOLANGE xiiii ANA ela falou assim eu falei puxa eu tou usando um coletor tem tanto tempo né aí eu lembro que antes da consulta também passou que eu tava pra colocar o DIU eu falei que não queria mais hormônio ela disse que entenderia tá de boa né ela compreende e tal que tinha alguns sintomas que não tavam me fazendo muito bem na época aí eu fui pra colocar o DIU mas também ela sugeriu o anel contraceptivo que é que é um anel de hormônio que você coloca na vagina e deixa lá por vinte e um dias eu acho né pra ele fazer efeito ali na hora e o anel não é um copinho mas assim ele é desse tamanho né um anel um anel de elástico você dobra e também coloca no canal vaginal deixa lá e é como se fosse uma pílula no caso e aí ela sugeriu o anel aí depois eu falei do copinho que eu tava usando o copinho pra menstruação né como forma de colher e tal essas coisas e ela disse assim nossa um copo de silicone inserido em você eu falei poxa você me recomendou um anel velho risos não é também de introduzir tirar eh é preciso CÍNTIA pronto ANA eh depois nunca mais falou assim depois ela eh realmente tem razão né era de boa e tal pra usar é tranquilo eu falei o material que era né é liberado e tudo então ela falou ah então é tranquilo eu acho que é o lance da introdução né um corpo lá né em você então acho que assim meio que é meio estranho também é tabu falta de conhecimento e não ter acesso também A prescrição de drogas de hormônios sintéticos como panaceia para qualquer sintoma no sistema sexual parece ser o encaminhamento unívoco ao qual profissionais da medicina ginecológica têm acesso em suas formações112 A revolucionária pílula contraceptiva da segunda onda feminista que inegavelmente proporcionou autonomia sexual de maneira outrora nunca antes possível e segue sendo uma ferramenta importante para os direitos reprodutivos atua hoje também como um sistema inquestionado de desligamento massivo da fisiologia das mulheres Um dos exemplos mais notórios é a indicação de pílulas anticoncepcionais para o tratamento de Síndrome de Ovários Policísticos majoritariamente 112 Na contramão da orientação hegemônica algumas feministas vêm formulando espaços de produção e disseminação de saberes que buscam abordagens mais alinhadas à percepção do ciclo menstrual como fonte de informação de saúde rejeitando a visão da fisiologia feminina como inerentemente patológica Mariana Stock criadora da casa PrazerEla articula em 2019 cursos de Sexualidade positiva para profissionais de saúde voltados a médicas ginecologistas enfermeiras e obstetrizes Disponível em httpwwwprazerela combrprodutosexualidadepositivaparamedicasenfermeiraseobstetrizes23e24denovembro Acesso em out 2019 145 mal diagnosticada113 apenas a partir de ultrassom de ovários com aparência multifolicular quando há outros critérios necessários para o diagnóstico nesse caso os hormônios sintéticos inibem o processo de ovulação e logo a proliferação e maturamento dos folículos ovarianos mas não trata a causa do desequilíbrio endócrino que está promovendo a dificuldade de liberação adequada dos óvulos vinculada a uma síndrome metabólica de resistência à insulina predisposição genética causas inflamatórias e deficiência de zinco114 aspectos que não são tratados por fármacos hormonais o que cria uma dependência do uso constante destes para mascarar a síndrome Prescrever tais drogas como solução para qualquer sintoma ou desconforto nos órgãos do sistema sexual é uma postura que confirma a inclinação da clínica ginecológica a considerar a menstruação como sangria inútil ou o ciclo menstrual como circunscrito ao âmbito da reprodução e fertilidade logo passível de ser descartado por aquelas que não desejam engravidar ignorando uma abordagem abrangente da atuação e importância dos hormônios sexuais produzidos no corpo Há entre as participantes da pesquisa uma desconfiança salutar às recomendações médicas a maior parte delas considera importante realizar consultas com profissionais da ginecologia mas não estão dispostas a acatar toda e qualquer indicação feita em sua direção Elas questionam pesquisam e mantêm uma postura ativa no diálogo com a autoridade médica Suas experiências lhes mostraram que nem sempre as sugestões feitas por profissionais são benéficas para sua saúde física e emocional principalmente a prescrição de fármacos hormonais mas também o uso de sabonetes íntimos e absorventes descartáveis inclusive os horripilantes de uso diário evidência máxima de uma visão pejorativa à vagina e seus fluidos regulares LUANA e uma coisa que eu esqueci de comentar nos dispositivos é essa coisa do protetor diário também né dessa indústria horrorosa assim o quanto também que eu acho que foi mais não sei se foi no período do ensino médio e da faculdade tinha uma coisa assim na época do ciclo de amigas que era essa coisa do uso do protetor diário era muito comum inclusive isso no período que a gente 113 Lara Briden médica naturopata e autora do livro Period Repair Manual 2015 indica que os sintomas vinculados à SOP podem ser confundidos com o quadro de amenorreia hipotalâmica desligamento do ciclo ovulatóriomenstrual por nutrição insuficiente Ver mais em httpswwwlarabridencomyoumightnot havepcos Acesso em nov 2019 114 Halana Andrezzo médica ginecologista e obstetra atuante no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde denuncia a postura tutelar e infantilizadora recorrente no atendimento nos consultórios ginecológicos ela também aponta os problemas de diagnóstico equivocado de SOP e possibilidades de tratamento coerentes em httpscasadeamaterasuwordpresscom20170609ovariospolicisticosinformacaoparacombater medicalizacao Acesso em out 2019 146 tava ovulando que eu não sabia que era ovulação né que a gente ficava assim isso que é você tar ovulando é corrimento115 é normal mas tá sujando a calcinha então tem que usar protetor diário então acabava usando quase o mês inteiro eu parando pra pensar hoje assim porque eu usava também né não só no período menstrual ficava usando muito frequentemente protetor diário inclusive falava pra minha ginecologista e ela achava normal ela nunca me recomendou não usar o protetor diário evitar e tal também tive a experiência de emendar a cartela de anticoncepcional eu tomei por mais de dez anos né porque desde que eu menstruei a ginecologista passou com essa justificativa né de que ia regularizar a menstruação116 de que ia melhorar a espinha de blablabla e aí fui nessa então usei por muito tempo e aí quando tinha coisas assim tipo na época mesmo eu lembro na época do vestibular emendava cartela tipo assim quando eu tinha alguns eventos algumas coisas que eu tinha o risco de estar menstruada naquele período eu preferia emendar pra não correr esse risco né enfim na época eu pensava assim LENA eu fico assim muito viajando nessa perspectiva de o quanto que as demandas externas fazem com que a gente tenha que negar o nosso ciclo velho JOANE sim LENA tipo emendar e assim não é uma ou outra acho que todas nós a maioria de nós JOANE sim claro LENA em algum momento fez isso Por outro lado há também experiências consideradas pelas participantes da pesquisa como positivas na dinâmica com professionais da ginecologia Bianca afirma que a médica que a atende também é usuária de coletor e compreende e incentiva seu uso Sandra passou pela mesma situação inclusive relatando algo que até então eu não havia escutado uma parceria entre o consultório e uma marca de coletores Na época em que comecei a usar o produto sua comercialização acontecia majoritariamente por internet ou através de poucas revendedoras117 atualmente é possível encontrar o copinho em algumas farmácias e lojas de departamento 115 Literacia corporal é urgente para que mulheres aprendam a reconhecer em si os sinais de seus corpos Compreender e perceber a diferença de muco cervical descamação vaginal lubrificação e corrimentos devidos a infecções é imprescindível para autogestão da saúde para ter segurança nas decisões sobre a pertinência do uso de tecnologias médicofarmacológicas para a desenvoltura da vida sexual e inclusive para a autoestima 116 É importante salientar que drogas de hormônios sintéticos não regulam a menstruação mas a suprimem quer seja por uso contínuo ou pausado Menstruação é etapa de um ciclo endócrino As pílulas anticoncepcionais ou injeções anéis e adesivos inibem a ovulação consequente da abundância de estrogênio a formação de corpo lúteo e secreção de progesterona ou seja a produção biológica de hormônios sexuais Portanto o sangue que flui nos intervalos de uso desses fármacos é um sangramento induzido por privação dos hormônios sintéticos que simula a menstruação mas não pode ser considerada como tal uma vez que não ocorrem as demais etapas do ciclo menstrual folicular ovulatória e lútea Receitar drogas contraceptivas para regular a menstruação é uma falácia 117 O esquema de vendas por revendedoras está alinhado à lógica prolífera de redes de mulheres que trocam experiências Joane desenvolveu sua adaptação na segunda tentativa de uso do coletor quando contou com o auxílio daquela que a entregou o copinho em mãos aí eu comprei um outro coletor e dessa vez eu fui pra uma outra menina lá em minha cidade que era tipo uma consultora ela era uma pessoa super disponível que eu 147 BIANCA inclusive a ginecologista que me ajudou com DIU ela falou olha tem risco mas ela mesmo usava ela falou assim eu uso coletor também eu sei que é muito melhor ainda mais eu tenho eu tenho uma doença de pele que me afeta na virilha então realmente usar absorvente externo é muito ruim pra mim e o ob também é muito ruim pra mim ela falou realmente tu tem essa esse contexto aí que o coletor é melhor vamos continuar usando vamos monitorando sempre me apoiou muito SANDRA eu voltei a frequentar a ginecologista que eu ia há muitos anos atrás e desde aquela época ela era super incentivadora falava eu tenho vontade se eu tivesse uma clínica de vender ela é da UFBA porque eu falo e as pacientes tudo fecham elas torcem a cara e torcem o nariz e não sei o quê e recentemente quando eu tive lá tinha um representante de uma marca que eu não lembro qual era é uma marca que tá bombando nas farmácias aí tinha um representante lá no consultório e aí a gente conversou rapidamente sobre isso que ela tava falando que agora ela tem até amostras ela recebe até amostras dependendo tipo uma paciente que ela sabia do meu histórico né do quando eu comecei com ela em dois mil e pouco tal quando eu entrei na faculdade eu contei porque ela perguntou ah e na menstruação você usa o quê menstrua absorvente essas coisas né porque ela cismou que eu tinha eu sempre tinha cândida ela cismou que eu usava protetor de calcinha e eu discuti com ela que eu não usava eu usava calcinha de pano ela falou não é possível você deve tar usando alguma coisa passa sabonete nãnãnãnãnã aí eu lembro que eu falei ah então eu uso coletor e foi nisso que ela falou ah que bom e isso foi na época nos anos dois mil LETÍCIA e ela conhecia já o coletor SANDRA já LETÍCIA genial SANDRA ela era a louca mas é que ela é obstetra ginecologista obstetra e ela que faz parto humanizado LETÍCIA eh isso pra mim tá sendo novidade saber que agora tem representante de coletor menstrual nos consultórios ginecológicos SANDRA tem a indústria tá indo no mesmo dia eu ia passar na farmácia pra comprar um remédio e comprar umas coisinhas tal na farmácia São Paulo ali do Campo Grande e tinha foi engraçado porque eu encontrei uma amiga que estava indo comprando o coletor pela primeira vez ajudei ela a escolher risos agora a doutora essa médica ela me falou uma coisa interessante quando eu tive a síndrome do choque tóxico na época eu perguntei pra ela ah me disseram que eu não podia usar mais nada assim e tal aí foi ela que me explicou que o copinho ele é um corpo estranho mas ele não causa problema assim que é diferente do ob que tem um monte de que o problema do ob é que não só o tempo que eu usei eu usei demais e então eu fiquei com intoxicação pelo produto químico que vem e que tem nos absorventes também viu né só que os absorventes ficam mais ali no externo mas você acha que também não tá ali LETÍCIA a mucosa da vulva também é sensível como o canal vaginal SANDRA exatamente então a doutora vale a pena conhecer ela uma fofa mandava um WhatsApp pra ela dizia ah qual é a melhor forma de dobrar e não sei o quê e aí ela mandava vídeo faz assim faz assado e tal então foi bem legal 148 LETÍCIA que legal SANDRA só não gostei nessa época nessa época fiquei meio irritada com ela ela ficava pare de usar absorvente protetor de calcinha eu ficava eu nunca gastei dinheiro na minha vida com essa porra Não é preciso que profissionais de saúde façam uso do coletor nem que o recomendem entusiasticamente mas esperamos que nos dias de hoje ao menos conheçam o dispositivo e suas características oferecendo explicações seguras e suporte para quem o deseja utilizar Enquanto isso a autoridade médica é desacreditada por aquelas que se interessam pelo copinho e as redes de troca de informações entre mulheres se estabelecem nesse âmbito como fontes com maior legitimidade nos assuntos da menstruação do que os dizeres ratificados pela hegemonia científica As usuárias de coletor menstrual que participaram desta pesquisa apresentam posicionamentos críticos aos pressupostos de investigação modos de operação e disseminação de conhecimentos de saberes científicos eu acho que essa coisa científica assim a gente vai criando criam uns sabe uns aí vira assim ah tá na TPM Também é importante destacar que a ciência hegemônica deixa a desejar na produção de estudos que interessam usuárias de coletor A par da toxicidade dos absorventes descartáveis mulheres que usam o copinho têm o costume de questionar a segurança dos materiais dos dispositivos menstruais e mesmo confiando no silicone118 dirigem indagações 118 Em 2015 o lançamento de uma marca brasileira gerou muita movimentação em um grupo nas mídias digitais pois se desconfiava a partir de substanciais evidências que o material utilizado pela empresa não era 100 silicone Esse episódio foi permeado por controvérsias uma postura desrespeitosa da empresa na comunicação com o público e um verdadeiro trabalho detetivesco conduzido coletivamente pelas mulheres que dialogavam na plataforma Algumas que exerciam profissões em laboratórios inclusive se voluntariaram a fazer um exame do material e comprovar a segurança do produto uma vez que o trato da empresa era zombeteiro trazia muitas informações contraditórias e até fabricava sites falsos para dissimular os próprios erros na condução da campanha de lançamento Essa é a primeira empresa fabricante de coletores da qual eu tenho notícia que é fundada por homens trabalhavam anteriormente com importação de plásticos Acompanhei o caso com entusiasmo maravilhada com a articulação daquelas mulheres com a maneira minuciosa como esquadrinhavam todas as informações sobre a incipiente marca e demandavam explicações satisfatórias Sua insistência resultou numa visita técnica à fábrica quando uma das participantes do grupo filmou e compartilhou sua inspeção Nos anos seguintes não acompanhei as redes sociais desta marca Reconheço que teve um papel importante na expansão do mercado consumidor do copinho em território nacional pois foi a primeira a oferecer promoções com descontos no sistema dois em um incentivando que duas mulheres fizessem a encomenda juntas Recentemente acessei uma de suas páginas nas redes sociais e não me surpreendi ao encontrar o eufemismo naqueles dias em seus anúncios mas confesso que fiquei raivosa ao me deparar com a blasfêmica imagem de um coletor preenchido por líquido azul Causoume profundo estranhamento como algo que está grotescamente fora de lugar Ao abrir a caixa de comentários imediatamente encontrei questionamentos sobre a imagem e a empresa parece não ter mudado muito de 2015 para cá Sua resposta usa um tom infantilizante e se perde em justificativas incabíveis desdenhando o discernimento de seu público Particularmente o que me vêm à cabeça é esses caras não sabem no que se meteram Toda a história do lançamento dessa marca e a atuação do público de usuárias merece um artigo talvez um dia eu o escreva 149 sobre as consequências do uso a longo prazo do dispositivo Infelizmente é difícil que estudos sejam financiados nesse sentido No primeiro e no segundo grupo focal recebi o mesmo questionamento MARIA e venha cá eu fico pensando assim numa porque na minha cabeça pelo pouco que eu entendi de coletor menstrual eh o uso assim em grande quantidade né uma grande quantidade de mulheres hoje eu acho que optam por usar o coletor menstrual se a gente for comparar quando Sandra começou a usar por exemplo e aí eu fico pensando também nos possíveis efeitos a longo prazo no uso do coletor menstrual assim eu comecei a entrar assim meio que nessa noia porque tem uma pressão ali né que tem um jogo de pressão ali e tal na musculatura e tal e também foi muito pensando nisso que eu passei a dar uma revezada assim à noite não usar o coletor LUANA não sei se eu colocaria como uma desvantagem na verdade é uma dúvida que esqueci de falar que eu escutei falar eh que aí eu acho justamente que tem a ver com a falta de pesquisa sobre o assunto que não se sabe a longo prazo ainda né a médio ou longo prazo se o uso do coletor também pode como é que ele vai agir também no corpo das mulheres né como exemplo por ele fazer o vácuo né se pode fazer alguma pressão e isso baixar ainda mais o colo do útero coisas assim é uma dúvida que ainda tenho mas quando eu escutei não foi algo que me impediu de usar né por conta disso mas também sempre fica lá aquela coisinha porque ao mesmo tempo é aquilo que a gente falou assim o absorvente externo também tem vários prejuízos a nossa saúde inclusive já conhecidos mas que não são divulgados e continuam aí as mulheres continuam usando e sentindo as alergias que as meninas disseram que têm entre outras coisas então acho que isso seria uma questão LETÍCIA a desvantagem então seria a falta de produção de informação LUANA sim isso e que a gente entende né que é intencional também o fato de não ter muito sobre isso e de não ter investimentos no tipo de pesquisa sobre o assunto a gente sabe por quê Na reta final de escrita desta dissertação foi publicada para minha feliz surpresa uma revisão quantitativa sobre o uso de coletores menstruais efetuada por um grupo de pesquisadoras do Reino Unido Quênia e Índia VAN EIJK et al 2019 Elas realizaram levantamento de estudos pontuais desde a década de 1960 até maio de 2019 observando reportes sobre a utilização do copinho O foco de suas investigações inclui vazamentos ao utilizar o dispositivo eventos adversos como abrasões vaginais e alterações na flora vaginal segurança em condições sanitárias precárias infecções e efeitos nos sistemas sexual digestivo e urinário além de aceitabilidade e disponibilidade do produto No total consultaram 43 publicações e 3319 participantes mas explicitam e enfatizam as limitações de resultados uma 150 vez que esses estudos foram produzidos sob grande variação de critérios Dadas essas condições três dos estudos consultados se voltavam a avaliar as questões que inquietaram Luana e Maria Em estudos que examinaram vagina e cérvix em acompanhamento posterior nenhum dano mecânico foi evidente decorrente do uso de coletor menstrual Riscos de infecções não pareceram ampliar com o uso de coletor menstrual e comparado a absorventes externos e internos alguns estudos indicam que há diminuição de risco de infecções Um estudo no Quênia que detectou menor vaginose bacteriana em usuárias de coletor menstrual do que naquelas que utilizavam absorventes descartáveis postulou que o material inerte do coletor menstrual pode colaborar com a manutenção do pH e microbioma vaginal saudável119 VAN EIJK et al 2019 p 390 As autoras salientam a necessidade de ampliação de pesquisas científicas sobre coletores menstruais Seu trabalho foi até agora o mais largo esforço de compilação de dados sobre uso do copinho e consequências para a saúde todavia tratase de uma revisão de estudos esparsos evidenciando a falta de pesquisa consistente ampla e atualizada A publicação tão recente evidencia o caráter pioneiro desse tema de estudos principalmente ao considerarmos que o dispositivo existe há mais de oitenta anos Ruth Berman 1997 p 248 aponta a afinidade entre objetivos de estudos científicos e os paradigmas estruturantes do contexto social não só os usos da ciência são controlados pelo segmento dominante da sociedade mas também sua ideologia As metas dos praticantes da ciência seu modo de pensar bem como suas ações são derivados do processo social dentro do qual operam Em 2019 Van Eijk et al deram um importante passo para a construção de saber científico sobre coletores menstruais para que esse trabalho prospere é preciso transformar as bases de valores e costumes estigmatizantes sobre menstruação uma vez que cientistas são afinal pessoas integrantes da sociedade assim como aqueles que controlam e distribuem recursos destinados à pesquisa De outro modo o grupo de autoras e demais responsáveis pelos poucos estudos produzidos até o momento permanecerão figuras à margem dos interesses da hegemonia científica com poucas oportunidades de financiamento e talvez relegadas ao esquecimento como a visionária Margie Profet 119 Tradução livre No original In studies that examined the vagina and cervix during followup no mechanical harm was evident from use of a menstrual cup Infection risk did not appear to increase with use of a menstrual cup and compared with pads and tampons some studies indicated a decreased infection risk A study in Kenya that detected lower bacterial vaginosis in users of a menstrual cup than in those who used sanitary pads postulated that the inert material of the menstrual cup might assist in maintaining a healthy vaginal pH and microbiome VAN EIJK 2019 p 390 151 Na disputa de legitimidade discursiva sobre menstruação usuárias de coletor vêm exercendo pressão sobre os defasados preceitos científicos acerca do sangue menstrual Desenvolver percepção corporal e cultivar uma relação com o sangramento uterino nos faz atentas para enunciados aviltantes a respeito de nossos corpos e fluxos Ambicionamos exigimos e promovemos ciência feminista ciência descolada dos moldes racionalistas que desconsideram corpo como via de conhecimento dos moldes objetivistas que hierarquizam com ares colonialistas e androcêntricos sujeito e objeto ainda sob a pretensão de distanciamento e imparcialidade e dos moldes fundacionalistas que separam rígida e arbitrariamente natureza e cultura tomando a primeira como fato puro isenta de elaboração moral Produzir e disseminar saberes que não sejam apenas sobre ou por mulheres mas também de relevância para as mulheres e suas nossas lutas este o objetivo maior do projeto feminista nas ciências e na academia Ele se formula a partir da constatação de que historicamente a Ciência Moderna objetificou a nós mulheres negounos a capacidade e autoridade do saber e vem produzindo conhecimentos que não atendem de todo aos nossos interesses emancipatórios SARDENBERG 2002 p 89 As participantes dos grupos focais desta pesquisa se interessam por ciência e buscam informações de qualidade sobre saúde e sexualidade Elas valorizam o conhecimento científico contudo são cautelosas acerca da autoridade discursiva estabelecida no arranjo atual de distribuição de poder Elas são alertas às práticas hierárquicas da clínica ginecológica e à monopolização de saberes do corpo por parte do prestigioso status da medicina Elas são questionadoras dos interesses das grandes indústrias farmacêutica cosmética e de higiene entusiastas de monitoramento do ciclo menstrual atentam os interesses dos aplicativos de smartphone voltados a esse fim elas compreendem também as premissas e efeitos pejorativos da vasta gama de produtos de desodorização e perfumaria genital direcionados aos corpos das mulheres De modo geral adeptas do copinho se engajam a conferir e exigir qualidade de material das fabricantes e também interrogar criticamente estratégias de marketing escolhidas pelas empresas É importante frisar que não se trata de um confronto generalizado à profissionais da ginecologia mas aos valores orientadores da clínica médica como instituição Assim como não há um descarte leviano da potência e importância do saber científico mas uma indagação de seus pressupostos e repercussões Estou de acordo com Berman 1997 p 272 que afirma 152 que a ciência e a tecnologia desta sociedade e o ponto de vista que as inspira são meios de controle demasiado poderosos tanto sobre a natureza como sobre as pessoas especialmente as mulheres para simplesmente serem ignorados ou rejeitados como ruins para nós A ciência é imprescindível para contestarmos falácias sobre nosso sistema sexual para derrubarmos visões depreciativas sobre nossos órgãos e fluidos corporais para fomentarmos informações seguras e exercermos autonomia no que concerne à saúde e sexualidade Portanto precisa ser examinada pelas lentes das epistemologias feministas Pabla Pérez San Martin 2015 p 72 ativista de redes de ginecologia política latinoamericanas reflete sobre a fecundidade destes movimentos vi que quem mergulha nesses processos produz revoluções que se espalham como sementes ao vento e que têm o poder de transformar a nossa visão assim como a de quem nos rodeia incluídos os agentes e especialistas de saúde que acompanham os nossos processos ANA até porque minha realidade de onde eu moro isso talvez seja muita loucura entende porque por exemplo esse tipo de coisa aqui nunca chegaria ao meu bairro não é o tipo de conversa que minhas vizinhas têm entendeu e também não posso chegar impactando elas com esse tipo de fala de relação é tudo muito aos poucos né é como se elas tivessem adormecidas ainda um pouco e não posso achar também porque elas tão adormecidas que elas tão tipo que é pior elas não né não é bem assim então eu tento ali adaptar minha realidade então quando eu escuto minhas vizinhas ou amigas mais próximas que não têm tanto acesso assim né com outra visão que não costumam acessar informação eu tento acolher então mostrar um outro lado da moeda de uma maneira uma linguagem mais eh que chegue nela uma linguagem ó vem por esse caminho já tentou pensar essa hipótese vai descansar né então por exemplo a moça trabalha lá onde eu moro é uma senhora tava com muita dor muita dor de cólica que ia chegar a menstruação e ela pô eu queria tomar um remédio e ela costuma ficar no prédio o dia todo o dia todo né faxinando e ela pode voltar mais cedo pra casa mas ela gosta de ficar ah coisa de pessoa mais velha de ficar por ali e tal conversando eu falei ô Rita vá pra casa descanse tem que ir mais cedo você tem a possibilidade de ir mais cedo pra casa então vá dormir descansar o corpo tá pedindo pra você deitar você tem que descansar quando vem a menstruação então essa maneira foi realmente ela largou as coisas foi pra casa mais cedo foi dormir mas eu tento adaptar com minha realidade entende eu não posso dizer pras minhas amigas ou colegas vizinhas minha tia que eu fiz uma pintura com o sangue da menstruação entende risos eu sei que eu não tou dizendo que isso não é o certo né que é errado enfim que isso é nojo mas tem que CÍNTIA o caminho tem que ser outro pra esse diálogo ANA eh isso CÍNTIA porque se não vira um distanciamento ANA um distanciamento e eu não quero que isso que assim ó minha amiga fica tipo que porcaria eu falei poxa mas vem cá o sangue não é dela então você tem que ter uns manejos pra chegar então eu adapto a minha realidade menstrual ao que eu vivo hoje eu tou aqui tou em minha casa tou na minha comunidade então tem que sempre realmente adaptar então pra mim assim é desconstrução né todos os dias 153 Os impactos do uso do coletor menstrual sobre as ordens práticosimbólicas da menstruação extravasam a intimidade daquelas que aderem ao dispositivo A experiência visceral que o copinho proporciona tão dissonante das conduções à alienação corporal mostrase de tal maneira intimamente contagiante que acaba por estimular o rompimento de prescrições de etiqueta menstrual Para além de usuárias valores e comportamentos desenvolvidos a partir do coletor estão começando a alcançar também mulheres que usam dispositivos descartáveis alcançar mulheres que atravessaram a menopausa e crianças que ainda não viveram a menarca alcançar familiares e colegas de trabalho assim como profissionais de saúde Seja pelo diálogo franco pela desenvoltura para tratar do assunto ou até mesmo pela provocação para tensionar ou pelo enfrentamento a discursos ofensivos o tema da menstruação vem conquistando cada vez mais espaços e abrindo caminhos para novas ordens práticosimbólicas Ainda é um movimento incipiente e de impacto localizado mas certamente desperta reverberações potentes nas pessoas que atinge Para que o coletor menstrual seja instrumento de transformação sobre preceitos alienantes enunciados pejorativos e condutas inseguras não é preciso que todas as menstruantes adiram a seu uso os efeitos sobre os significados e atitudes perante o sangue uterino acontecem permeando trocas entre mulheres Desde agora com poucos anos de presença em território nacional e um público ainda estreito mas não inexpressivo o copinho já transforma relações 154 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando escrevi o projeto desta pesquisa no final de 2015 eu já era entregue à experiência do coletor e nutria grata reverência às possibilidades de confiança agência e reflexões que o dispositivo me proporcionava Eu entendia que os aspectos sensoriais de contato com meu sangue consolidavam valores preciosos para mim no que diz respeito à celebração de meu corpo e promoção de perspectivas acolhedoras à impermanência e diversidade de manifestações corporais num contexto cujo paradigma encaminha principalmente as mulheres a lamentarem e recusarem seus corpos Desde lá observava através das mídias digitais que o copinho é uma promissora ferramenta de indagação de pressupostos culturais sobre menstruação e acompanhava processos concomitantes aos meus refletidos em outras usuárias Eu sabia da potência dos coletores e a vivia em meu corpo mas foi somente atravessando os três anos dedicados a esta dissertação que pude acessar aspectos mais profundos dessas resoluções aspectos que não se alicerçavam em elaborações discursivas desse processo Assim encontrei o conceito de percepção fundamental para a argumentação aqui exposta Durante a pósgraduação estive adoecida e foi necessário reviver a doença para encontrar o sentido de percepção não a partir da intelectualidade não a partir de hipóteses e referências teóricas mas de dentro do corpo em cada espaço de mim ao longo dos caminhos de desenvolvimento que escolhi psicoterapia e yoga Depois de meses afastada das atividades do mestrado realizei que esse período não me foi uma perda mas ao contrário foi imprescindível para a existência deste texto Entrar em diálogo com as participantes dos grupos focais permitiu que eu conferisse a especificidade de minha experiência Há de se identificar que diferente do relato de minha iniciação de uso do coletor que compartilhei na Introdução as mulheres com quem conversei expressaram outros desafios escolhas e práticas com o dispositivo A maior parte delas prefere associar o coletor menstrual a absorventes de pano sem adotálo como dispositivo exclusivo Mesmo sob processos de adaptação e ainda apresentando consideráveis ressalvas ao uso do copinho elas mostraram que não é preciso exaltar o coletor apaixonadamente para que os efeitos de questionamento e mudanças das ordensprático simbólicas da menstruação ocorram O aspecto mais importante não é alcançar ajuste perfeito ao copinho mas estabelecer uma relação com o sangue menstrual 155 Promover os grupos focais foi uma oportunidade de exercitar ginecologia política e trazer para o contato face a face as dinâmicas de troca que se avolumam nos meios digitais Minha intenção é produzir conhecimento situado e tenho convicção de que tanto nos encontros quanto na escrita estive continuamente engajada em apontar meus limites e pontos de partida para oferecer oportunidade de compreensão dos processos de construção desta pesquisa A ciência tornase assim o modelo paradigmático não do fechamento mas do que é contestável e contestado A ciência tornase o mito não do que escapa à ação e à responsabilidade humanas num domínio acima da disputa mas antes de prestação de contas e de responsabilidade por traduções e de solidariedades vinculando as visões cacofônicas e as vozes visionárias que caracterizam os saberes dos subjugados Uma divisão dos sentidos uma confusão entre voz e visão mais do que ideias claras e distintas tornase a metáfora para a base do racional Não buscamos os saberes comandados pelo falogocentrismo saudades da presença da Palavra única e verdadeira e pela visão incorpórea mas aqueles comandados pela visão parcial e pela voz limitada Não perseguimos a parcialidade em si mesma mas pelas possibilidades de conexões e aberturas inesperadas que o conhecimento situado oferece HARAWAY 1995 p 33 Cada encontro dos grupos focais transcorreu de modo singular em tons nitidamente diversos de dinâmica entre as participantes O primeiro hesitante e solidário o segundo bem humorado e sem pudores o terceiro denso e incisivo As contribuições dos depoimentos elaborados em grupo devem ser avaliadas visando o recorte de perfil das participantes seja por idade ou profissão como apontei desde o início a maior parte do público consumidor de coletores menstruais parece ser mais jovem que a amostra mas minha consistente participação observante nos espaços das mídias digitais principalmente o maior grupo da plataforma Facebook com mais de oitenta mil membras me deu segurança de que as impressões trabalhadas nos encontros são condizentes aos discursos regularmente manifestados nas redes de mulheres em comunicação acerca do coletor Esta é uma pesquisa qualitativa desenvolvida a partir de interlocução em profundidade e os resultados aqui obtidos apontam rumos relevantes para análise das ordens práticosimbólicas da menstruação Ainda assim ressalto que estudos de metodologia quantitativa também são necessários para acompanhar esse momento de emergência dos coletores menstruais e espero que este texto incentive outras pesquisadoras nessa empreitada A fim de conferir a execução do objetivo aqui proposto a saber a investigação de transformações nas ordens práticosimbólicas da menstruação a partir do uso do coletor 156 abrevio os argumentos apresentados ao longo desta dissertação primeiramente foi demonstrado que para confortável adaptação ao coletor menstrual é preciso desenvolver um tipo de conhecimento sensorial sobre o corpo e através do corpo a isto designei percepção Tratase de capacidade de alinhamento aos fenômenos corporais atenção aos sinais fisiológicos compreensão das características únicas da própria anatomia e contínuo interesse em desenvolver literacia corporal Este conhecimento é contrário às inclinações à alienação corporal suscitadas pelas correntes ordens práticosimbólicas informadas por uma série de micropoderes em consonância para estigmatizar o sangue uterino e desestimular às mulheres o toque e observação dos próprios órgãos sexuais Dentre esses micropoderes destaco o conhecimento científico como ratificante dos processos de alienação inclusive por conta dos paradigmas epistemológicos racionalistas que sustentam as produções da ciência hegemônica Como vimos percepção diz respeito à autonomia pois só pode ser exercida pelo sujeito que apreende Logo não é um tipo de capacidade terceirizável a parceiros sexuais ou profissionais de saúde requer investimento pessoal para sua realização Ao mesmo tempo o desenvolvimento da percepção é incentivado coletivamente através de trocas horizontais de conhecimentos entre usuárias do copinho e demais interessadas Relatos de experiências tentativas e sugestões dúvidas e informações são compartilhadas em plataformas nas mídias digitais ou nas redes de amizade que indicam em situação de credibilidade o uso do coletor A tomada de decisão e o percurso do aprendizado de técnicas corporais são definidos por esse tipo de estímulo mais do que por publicidade das empresas fabricantes recomendação médica ou algum discurso cientificamente legitimado É devido à inédita abertura de diálogo sobre menstruação que o coletor vêm se consolidando como dispositivo menstrual mais de setenta anos depois de sua invenção as mídias digitais são imprescindíveis para essa abertura uma vez que viabilizam a constituição de redes relacionais arranjadas em torno de interesses comuns propagando conteúdos produzidos por agentes diversificados Tal troca de conhecimentos acontece em contraposição direta às consolidadas etiquetas menstruais e processos de alienação corporal Esta pesquisa indica que vem ocorrendo uma significativa transformação nas ordens práticosimbólicas da menstruação Nos diálogos entre as participantes dos grupos focais podemos encontrar posicionamentos vivamente contrários ao estigma do sangue menstrual Elas apresentam fluência para designar a menstruação e órgãos sexuais sem uso de eufemismos palavras detratoras ou atenuantes Aqui esse sangue não é substância abjeta ou constrangedora é tópico despudorado de conversa nos meios em que essas mulheres se 157 inserem e acolhido como substância preciosa sinal de saúde física e emocional canal de observação de processos cíclicos a partir de sua materialidade em texturas cheiros cores e abundância O sangue está longe de ser algo impuro sujo ou contaminante ao contrário é inclusive visto como nutritivo ao ser devolvido à terra para benefício de plantas e utilizado como ferramenta de expressão e criação em experimentações artísticas A menstruação é entendida como constituinte das sujeitas e como possibilidade de renovação mensal No que concerne a essa ideia de renovação as participantes da pesquisa são atentas ao ciclo menstrual como um todo desde a menstruação até a fase lútea acompanhando suas diferentes disposições ao longo das semanas a fim de acolher cada etapa Porém é importante destacar que renovação não se estende a um tipo de argumento como aquele produzido por Margie Profet 1993 que justificava a existência da substituição do tecido endométrico por meio de sangramento como consequência evolutiva de uma espécie que adaptou um espaçamento entre momento de ovulação e momento de limpeza imunológica Ou seja um argumento que construía uma explicação para a menstruação que escapava à depreciativa lógica da reprodução fracassada Por mais que nos grupos focais tenham sido elaboradas interpretações da menstruação como via de limpeza emocional energética nutritiva as participantes mantêm a perspectiva da menstruação como condicionada à ausência de gravidez repetindo a narrativa biológica corrente de que o sangue menstrual apenas existe como resultado de uma concepção que não aconteceu É difícil ver como nossas ideias científicas correntes são permeadas por pressupostos culturais é mais fácil ver como conceitos científicos do passado ideias que agora parecem erradas ou simplistas podem ter sido afetados por conceitos culturais de uma época distante MARTIN 2006 p 67 Foi a partir de redes de ginecologia política de mulheres engajadas em produzir e disseminar ciência feminista que tive a oportunidade de encontrar o trabalho de Profet Espero que os valores que vêm sendo promovidos nessas transformações das ordens prático simbólicas da menstruação atinjam os paradigmas científicos de modo a pressionar os discursos biológicos sobre o fluxo menstrual descartando a explicação fundamentada na simples falência de um plano reprodutivo e investigando motivos concernentes à própria manutenção do sistema sexual para a renovação em forma de sangramento Por enquanto parece ser um longo caminho para que essas considerações reverberem inclusive entre as mais 158 entusiastas usuárias de copinho De todo modo essas formas de expressão veiculadas nos grupos focais indicam desafios epistemológicos que ainda precisamos aprofundar para o exercício da ciência Inclusive é necessário formular estratégias de difusão de perspectivas não hegemônicas sobre a ocorrência da menstruação Uma grande questão que me coloco é como tornar esses conhecimentos acessíveis No momento dentre as participantes da pesquisa o campo mais acentuado de disputa diz respeito ao uso de drogas de hormônios sintéticos Todas elas frisaram a importância de viver o ciclo menstrual produzindo hormônios pela própria fisiologia elas valorizam a menstruação como período de recolhimento e introspecção etapa considerada importante para a plena realização de todas as demais Elas se recusam a utilizar contraceptivos hormonais e muitas associam o início do uso do coletor ao processo de deixar de ingerir tais drogas A valorização do sangue menstrual em comparação ao sangramento por supressão hormonal resultante dos intervalos de consumo dos contraceptivos aponta uma brecha para despertar reflexão sobre a função desse fluxo de modo mais amplo no organismo Como toda pesquisa foi preciso estabelecer recortes de investigação para desenvolver as análises que apresento neste texto Alguns assuntos não cabiam ao escopo desta dissertação mas os indico como sugestão de tema para outras pesquisadoras Acho interessante a realização de etnografias virtuais nos espaços online de discussão sobre coletores menstruais uma descrição densa das dinâmicas dessas redes contribuiria para aprofundar o entendimento dos processos de abertura de diálogo sobre menstruação e novas etiquetas menstruais que se constituem Também indico a realização de análise dos discursos das marcas fabricantes de coletor em território nacional considerando os modos de comunicação com o público o vocabulário empregue os temas das campanhas as imagens produzidas Ainda é urgente um estudo sobre a emergência dos movimentos de ginecologia política no Brasil e também ginecologia autônoma e ginecologia natural uma vez que algumas mulheres vêm se dedicando com afinco à produção de conteúdo nas mídias digitais rodas de conversas presenciais cursos e oficinas Essas mulheres expressam demandas por estudos que rastreiem essas iniciativas é importante elaborarmos os sentidos de coesão entre esses trabalhos pois ao demonstrarmos a solidez desses movimentos eles são fecundos em sua coletividade Precisamente enquanto estou concluindo a escrita desta dissertação meu sangue aflora e a menstruação vem me saudar O corpo é sábio Que se inicie um novo ciclo 159 REFERÊNCIAS AMARAL Maria Clara Estanislau do Percepção e significado da menstruação para as mulheres 147f Dissertação de Mestrado Programa de pósgraduação em tocoginecologia área de Ciências Biomédicas Universidade Estadual de Campinas Campinas 2003 ANGIER Natalie Radical new view of role of menstruation The New York Times 1993 21 de setembro Science Times p 001 ASCHIDAMINI Ione SAUPE Rosita Grupo Focal Estratégia metodológica qualitativa um ensaio teórico Revista Cogitare Enfermagem v 09 n I 2004 p 0914 BARRANCO Enriqueta et al Determination of personal care products benzophenones and parabens in human menstrual blood Journal of Chromatography B n 1035 nov 2016 p 5766 BERMAN Ruth Do dualismo de Aristóteles à dialética materialista a transformação feminista da ciência e da sociedade In JAGGAR Alison e BORDO Susan ed Gênero corpo e conhecimento Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1997 p 241275 BOSTON WOMENS HEALTH BOOK COLLECTIVE Our bodies ourselves New England Free Press 1970 CALABRESE Sarah RIMA Brandi SCHICK Vanessa Evulvalution The portrayal of womens 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como objeto médico e mediático Estudos Feministas Florianópolis v 13 n 2 maioagosto 2005 p 287304 NASCIMENTO Maria Clara M DANTAS Juliana B A O femvertising em evidência estudo de caso likeagirl In XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação Rio de Janeiro set 2015 ODONNELL Kelly The whole idea might seem a little strange to you selling the menstrual cup Technologys stories dec 2017 Disponível em httpwww technologystoriesorgmenstrualcupsftnref8 Acesso em fev 2019 163 OGRADY Kathleen Is menstruation obsolete Third Space v 2 issue 1 nov 2002 PARDES Arielle How one man ran the worlds only menstrual museum from his basement Vice 2015 Disponível em httpswwwvicecomenusarticleexq54khow onemanrantheworldsonlymuseumofmenstruationfromhisbasement511 Acesso em set 2018 PIN Jessica The senseless omission of clitoral anatomy from medical textbooks Medium 2019 Disponível em httpsmediumcomjessica86theneedlessomissionofclitoral anatomyfrommedicaltextbooks87756656e8a6 Acesso em nov 2019 PLUMMER William A curse no more People v 40 n 15 out 1996 PROFET Margie Menstruation as a defense against pathogens transported by sperm The Quartely Review of Biology v 68 n 3 set1993 p 335386 REIS Suzana P RIBEIRO Carolina L Design gráfico aliado à saúde feminina apresentando o coletor menstrual a jovens mulheres 113f Trabalho de conclusão de curso Graduação em Design Projeto Visual Universidade Positivo Curitiba 2016 ROHDEN Fabíola Ginecologia gênero e sexualidade na ciência do século XIX Horizontes Antropológicos Porto Alegre ano 08 n 17 jun 2002 p 101125 ROHDEN Fabíola O corpo fazendo a diferença Mana Rio de Janeiro v 4 n 2 out1998 p 127141 RUBIN Gayle Pensando o Sexo Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade Tradução de Felipe B M Fernandes e revisão de Miriam P Grossi Do original RUBIN G Thinking Sex Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality 1984 In ABELOVE Henry BARALE Michèle e HALPERIN David eds The Lesbian and Gay Studies Reader Nova York Routledge 1994 SAN MARTÍN Pabla Pérez Manual de introdução à Ginecologia Natural Ginecosofía Ediciones Terceira edição solstício de inverno 2015 SARDENBERG Cecilia M B Da crítica feminista à ciência a uma ciência feminista In COSTA Ana Alice Alcântara SARDENBERG Cecilia Maria Bacellar Orgs Feminismo Ciência e Tecnologia Salvador Coleção Bahianas 2002 p 89120 164 SARDENBERG Cecilia M B De sangrias tabus e poderes a menstruação numa perspectiva sócioantropológica Estudos Feministas Florianópolis v 2 n 2 jan 1994 p 314344 SCHIEBINGER Londa Expandindo o kit de ferramentas agnotológicas Métodos de análise de sexo e gênero Revista Feminismos Salvador v 2 n 3 setdez 2014 p 85103 SHURE Natalie Why has it taken the menstrual cup so long to go mainstream Pacific Standard jul 2016 Disponível em httpspsmagcomnewswhyhasittakenthe menstrualcupsolongtogomainstream Acesso em fev 2019 SPETTEL Sara WHITE Mark D The portrayal of J Marion Sims controversial surgical legacy The Journal of Urology v 185 jun 2011 p 24242427 VAN EIJK Anna Maria et al Menstrual cup use leakage acceptability safety and availability a systematic review and metaanalysis Lancet Public Health v 04 n 08 jul 2019 p 37693 WACQUANT Loïc Habitus como assunto e ferramenta reflexões sobre tornarse um boxeador Estudos de Sociologia Recife v 2 n 17 2011 WILKINS Erin Tire o plugue da indústria de higiene feminina Madison Infoshop 2010 YOUNG Iris Marion On female body experience Throwing like a girl and other essays Oxford University Press 2005 165 APÊNDICE ROTEIRO PARA OS GRUPOS FOCAIS COMO CONHECEU O COLETOR Como descobriu a existência do coletor menstrual Como foi a decisão de experimentálo Como se informou a respeito De que maneira aprendeu a utilizálo Há pessoas com quem conversa sobre coletor Sobre menstruação Compartilha o fato de estar menstruada Como foi a adaptação com o coletor menstrual O QUE É O COLETOR Que outros dispositivos usavausa O que diferencia o coletor desses dispositivos O que mais gosta no coletor O que menos gosta Como é seu uso lugares públicos atividade sexual descarte do sangue monitoramento do ciclo O QUE É MENSTRUAÇÃO O que menstruação significa para você Comoquando você aprendeu o que é menstruação Qual é o sentido biológico da menstruação