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O CONTO POPULAR\nDoralice Fernandes Xavier Alcoforado\nProf. Assistente do Instituto de Letras da UFBA\nRESUMO - Determinant-se a estrutura canônica predominante em três tipos de conto e o procedimento instaurador do espaço maravilhoso complementos indispensáveis à compreensão da natureza do conto popular.\nABSTRACT - The canonical structure prevailing in three kinds of tales and the procedure that establishes the wonderful space are determined as elements which are indispensable to the understanding of the nature of a folk tale.\n\n... outra literatura, sem nome em sua antiguidade, vive a sonora, alimentada pelas fontes perpétuas da imaginação, colaboradora da criação primitiva, com seus gêneros, espécies, finalidades, vibração e movimento, continua, ruidosa e eterna, ignorada e temoosa, como no não solido e cacheira no meio do mato. (CASCUDO, 1978).\n\nINTRODUÇÃO\nOs gêneros na literatura popular, talvez mais do que na literatura erudita, estão condicionados a um modo de existência determinado por formas de produção. Isso ocorre, em uma abordagem de um texto folclórico, a necessidade de um estudo interdisciplinar para a exata compreensão do fenômeno: alguns motivos encontrados nas narrativas só podem ser explicados através das representações de práticas mágico-religiosas dos vários estádios do desenvolvimento da sociedade humana. Foi o que fez PROPP (s.d.), quando investigou o origem do conto popular em \"A Árvore Mágica sobre o Título\", publicado em Édito a Luz do Folclore, a respeito dos motivos, a inumação dos ossos e a árvore mágica que cresce do cadáver, encontrando nos contos de encantamento.\nQuando a oralidade é o único veículo de comunicação, como nas sociedades iletradas, as formas fixas artísticas são a maneira própria dessa sociedade transmitir seus valores e seus sentimentos às gerações mais novas. As correções que uma mãe deseja fazer a um filho, por exemplo, são efetuadas através de narrativas. É a partir declara que \"a sociedade define suas experiências, sua imaginação criadora e seus comentários para a sociedade\", pois cada \"gênero se caracteriza por um conjunto de relações entre seus elementos formais, seus registros temáticos e seus laços sociais possíveis\" (BEN-AMOS, 1974, 275). E através deste sistema de distinções e correlações que os gêneros populares tornam-se uma categoria de experiência cultural, veículo de comunicação de uma sociedade do segmento dela. A audiência é o canal de transmissão. Sem o que não haverá narrativa, consequentemente, as informações não podem circular. Em sintonia com a natureza do canal, a construção estética explora determinados procedimentos estilísticos que representem através de sons, gestos, entonação, as imagens do que se deseja transmitir. Em decorrência da sua natureza, os gêneros narrativos orais encerram uma mistura do épico com o dramático. O narrador do conto popular, por exemplo, supõe em uma só pessoa as funções de narrador, de ator e de criador. O passado do relato torna-se presente na encenação que, através da interação do ritmo, da gesticulação e da inflexão de voz, se comunica com a platéia de maneira envolvente e mais persuasiva que uma fria e simples narração.\n\n1 A ESTRUTURA DO CONTO POPULAR\nO conto popular, como forma verbal, é simultaneamente uma experiência do real e uma prática cultural de comunicação. Surge da necessidade de um tipo de sociedade falar da sua organização social e transmitir as suas experiências. Segundo os antropólogos, sua origem remonta às práticas religiosas, aos rituais, que também deram origem aos mitos.\n\nComo forma verbal, o conto popular apresenta uma construção, uma forma artística elaborada não apenas por uma imaginação individual, mas resultante, sobretudo, da criatividade de várias gerações. É uma criação da imaginação coletiva. É a \"soma de todo\", dizier André Jolles. Como uma forma coletiva, passa por instrumentos acompanhados em cada localidade, atualizando-se para melhor atender à instrumentalidade da forma e ganhando novo perfil, ao submeter-se aos impulsos criativos de cada novo executante, que será tanto mais significativos quanto mais exuberante for a sua imaginação criadora. O ato de transmissão de uma estrutura já canonizada não significa pura e simplesmente um ato de percepção da \"letra\". O texto recebido aciona a imaginação do executor que, estimulado pela platéia, acrescenta a nível da forma, elementos enriquecedores que vão lhe dar nova fisionomia. O texto transmitido não será o mesmo recebido, pois o executante leu currou o seu próprio texto que, a depender do grau conativo que atinja, poderá sustentar um sentido a nível manifesto e outro a nível latente. O entrelaçamento desses planos, por sua vez, possibilita a criação de um espaço simbólico, gerador de novos sentidos. A nível do simbólico se instaurará o jogo que transporta o ouvinte para um espaço de prazer, de entretenimento, de emoção que só o estético desencadeia. Esse lado lúdico do texto é o que mais atrai e prende e também o que o torna mais eficiente como instrumento de comunicação.\n\nComo veículo de comunicação, o conto popular é mais dependente de uma referencialidade extrema e de uma forma de existência e tem a sua vigência garantida nas várias adaptações que se operam a nível de significado.\nRemontando o conto popular é um veículo de comunicação de uma sociedade iletrada; posteriormente tornou-se veículo de uma classe, geralmente analfabeta ou semi-alfabeta que, não tendo acesso à cultura oficial, se vale das narrativas para transmitir seus valores, seu modo de existência e suas expectativas de vida. Assim, o conto veicula traços particulares, identificadores de certos segmentos sociais, confirmados em um contexto. Se defendendo o aceitamento universalmente, deve-se a falta de sucessivas migrações e colocam em contato com outras realidades e as permanecidas adaptações viabilizarem como instrumento de comunicação de uma nova cultura. Desse modo, ao quebrar essa distância temporal, destrói-se ou neutraliza-se a tensão existente entre texto e atualidade, o que não é possível no texto literário. A adaptação têm a função de colocar o conto em sintonia com as modificações estruturais encontradas em cada nova realidade. Assim, nos contos migrados para o Nordeste brasileiro, os palácios foram substituídos pelos engenhos de açúcar, pelas fazendas de gado, permanecendo, entretanto, na figura do dono do engenho ou da fazenda o mesmo status econômico e social do rei.\nA maior mobilidade da forma popular, porém, contraditoriamente, não lhe permite uma grande variabilidade de estrutura. Quanto mais tradicional, maiscredibilidade tem junto ao público ouvinte. Essa variabilidade resulta em algumas tipos de contos. CASCUDO (s.d.), em Contos Tradicionais do Brasil, admite a existência de doze tipos, baseando-se no índice de classificação Aarne-Thompson.\nPara o conhecimento mais profundo da estrutura dos contos populares, selecionamos uma amostra contendo contos de encantamento, de animais e de exemplo, que possibilitam a apreensão da estrutura que subjaz em cada um desses tipos.\nContos de encantamento. Os contos de encantamento ou de fadas, como são mais conhecidos, são aqueles que, partindo de uma identificação espaço-temporal, falam em um heroísmo a partir de elementos lingüísticos, pelos superbos heróis, o conhecido como herói e se casar com um descendente real. Esse herói dos contos de encantamento pode ser homem ou mulher do povo, via de regra, como um príncipe ou princesa que, circunstancialmente, por tempo limitado, perdeu sua condição social.\nDada a diversidade dos contos de encantamento, tem-se a impressão de que eles possuem grande variedade de estrutura. Apesar da diversidade de sua forma, uma leitura mais atenta revelará a presença de alguns elementos invariantes nesses presentes. Esses elementos constantes foram detectados por PROPP, em 1965-70, em Morfologia do Conto, ao descrever os contos maravilhosos russos e por que denominar os de funções. Os valores constantes da ação das personagens definem-se a partir da sua significação no desenvolvimento daintriga e são em número de 31 (trinta e um).\nPara a apresentação da estrutura do conto de encantamento, partiu-se para a análise descritiva das várias funções das ações das personagens de cada conto. Nesses contos, detectou-se a presença de elementos estruturais constantes, comuns a todos eles e que, mesmo quando não explicados, o seu espaço lhes era reservado. Tais elementos constituem-se nas invariantes estruturais menores que sustentam o modo desse tipo de conto. Assim, a partir da heroí, a tarefa difícil, a ajuda de elementos mágicos, o reconhecimento e o final feliz representam as funções constantes, indispensáveis à articulação da narrativa dos contos de encantamento. Se Propp destacou 31 (trinta e um), certamente essas cinco funções são as mais importantes, porque definidoras da sua natureza. A partida do herói, afastamento do seu habitat para passar por provações – A tarefa difícil – a que ele supera graças à intervenção do ajudante mágico, constituiu um emblema narrativo, origem de toda a sequência que formará o “universo” do conto de encantamento. A ação do ajudante mágico, por sua vez, possibilita a fantasia se espalhar, criando um espaço simbólico onde os significados a nível aparente remetem a outros mais profundos e amplos. O afastamento do herói e a consequente provação a que é submetido, pode subjazer à necessidade de um crescimento, de um amadurecimento que todo indivíduo precisa atingir para poder assumir um dos papéis definidos pela organização da sociedade. As tarefas difíceis por ele assumidas não se concretizariam sem a interferência de forças sobrenaturais, desencadeadas pelo ajudante mágico. A partir da instauração desse espaço simbólico, a imaginação aqui sai mais altos vôos nas parlendas da fantasia, possibilitando o enriquecimento do texto, a medida que esse nível simbólico lhe confere uma auto-referencialidade maior, como texto artístico em sua inamabilidade, e uma maior autenticidade como texto ficcional. Mesmo quando a ação do elemento mágico não está explicada, subentende-se a sua essência através de um domínio do espaço e do tempo, superior ao descobrimento natural humano; ou, então, o herói já se apresenta metamorfoseado em um animal (sapo, lagartijo, fera e tantos outros) o que pressupõe a existência desse espaço maravilhoso. Contos de exemplo. Nos contos de exemplo tem-se, como primeira função que desencadeia a intriga, um delito contra uma norma de caráter social. A infração dessa norma traz, como consequência, a condenação do infrator, geralmente à morte. Recorrem a sua sagacidade para tentar inverter a situação de desvantagem em que se encontra, o sagaz, de réu, se transforma em herói. O modelo de estrutura nos contos de exemplo estudados tem como elemento de transformação a sagacidade ressaltada e, de certa forma, incentivada. Ao contrário, a ambigüidade desenfreada e desestimulada sobre ela recai toda a força da punição. Em alguns deles, o esquema das funções varia ligeiramente sem, contudo ao modelo. O elemento estruturador do conto de exemplo – o antagonismo Bem versus Mal – conduz o desfecho para uma lição de moral, punindo com a morte os sentimentos negativos, nada altruístas, como inveja e ambição. Há a valorização do sentido de luta e da sagacidade. O fraco, o desprotegido, o simplório, porém sagaz, sempre sai vitorioso. Utiliza a sagacidade como arma contra os poderosos, sendo, ele, assim mesmo, permitido lançar mão de expedientes pouco recomendáveis nesses confrontos. A vitória tem um sabor de desforra, como se o fraco ali representasse toda uma classe massacrada pelas injustiças sociais. Seu herói tem traços dos heróis pícaros. Vale-se da malícia e da astúcia para inverter a situação de desvanecida diante de um episódio de própria vida. O mito do Malazartes nele circula. O tipo referido desses contos encontra-se bastante difundido até mesmo nos contos de encantamento, nas histórias, nos contos populares, onde sua situação de desigualdade não aparece apenas no plano social; fisicamente, também, caracteriza-se como um indivíduo fraco, amarelo, com cara de bobo. Tem-se como exemplo o João Grilo, imortalizado pelo cordel e “literarizado” por Ariano Suassuna em O Auto da Compadecida. Esses traços físicos ratificam sobretudo a desvantagem diante da vida. Como já está tematizado não tem um sino externo, aparentemente ninguém dá nada que “marrelo” e, por isso, esse tipo de herói sempre surpreende. Na verdade, o que há mesmo no conto de exemplo é a velha oposição Bem versus Mal, ido difundida, sobretudo, no interior, no meio rural, onde os remanescentes de uma obra catequética de inspiração maniqueísta ainda são muito fortes. A manutenção da realidade é valorizada como uma prática indispensável ao amadurecimento. Tais contos valorizam a esperteza e a astúcia no animal como equivalentes da inteligência no homem. A comparação entre a força física e a “força” da inteligência está tematizada no conto \"O Touro e o Homem\" em que a fortaleza do homem, testada por outros animais, é testada por um touro que se julga superior e sai para comprovar tal feito. Diante de tamanha ousadia, o homem diz-lhe um tirado de bacame. Instado, tempos depois, sobre o acontecido, responde o touro: “Ah! meu amigo, só com um espírito que ele me deu na cara, olin quem estava o fixeii” (CASCUDO, s.d. 269). Desses contos de animais estudados, dois foram totalmente a estrutura dos demais, tanto no que diz respeito a uma lógica estrutural que os aproxima das fábulas, como também por não apresentarem uma moral convencional de influência mista. O primeiro, O Macaco e o Negrinho de Cera, mistura dois mitos de contos distintos: a prisão do macaco pelo boneco de cera a morte do vem como carne de animal encantada. O motivo da prisão do macaco pelo boneco de cera circula em vários países da Europa. Mas o outro motivo, Cascudo diz ser de origem africana. A morte para quem come a carne encantada deve ser uma reminiscência de antigas proibições, adotadas pelo sistema do totemismo em que cada cíela escolha um animal, considerando seu antepassado e seu protetor. Matar o animal ou comer a sua carne constituía um tabu, tido por FREUD (1973) em Totem e Tabu, como o ponto central de todo o totem. No Reconcavo baiano, CAMPOS (1939) coletou o conto O Rei dos Pássaros – com esse mesmo motivo. Em outro conto, a Aranha Caranguejeira e o Quibungo, também recolhido por CAMPOS (Op. cit.), a personagem principal é a aranha, pouco referida nos contos brasileiros e muito popular em algumas regiões africanas. A anansi, assim chamada naquelas regiões, constituiu um animal mítico. O tecer da teia simboliza o trabalho dos aranha dos tecelões. A aranha é mítica lhe ensinou a ciência da tecelagem, diz BÁ (1982), em História Geral da África. Nesse conto, a aranha apresenta entre os seus traços características, a astúcia, a prudência, mas, sobretudo, a traição. Paga-o bem cu mal ao dodos os favores recebidos. Ludibria com o fim deliberado de maltratar, de espraiar o animal que desejar em sua mira. Revela-se uma estria de origem africana não apenas pelo tema abordado, mas pela presença da aranha. Como na maioria dos contos de animal, há a vitória do mais hábil, mais astuto, embora figura de em uma personagem má. Não se observa, porém, a luta maniqueísta do Bem contra o Mal de uma moral de influêcia cristã. Ao contrário, a moral é primitiva. Fala-se da ferocidade natural em que a lei da sobrevivência, na disputa pela vida, dá a vitória ao mais hábil, mais capaz, mais astuto, que sabe tirar proveito da situação. A astúcia é levada até às últimas conseqüências, sem a preocupação – preconiza da na moral ocidental – em reparar danos ou punir quem a utiliza. Nos primeiros tipos de contos examinados, constatou-se a predominância de uma estrutura canônica para cada um deles, que subjaza as variações de forma. O conto de animais é o que apresenta maior variedade de estrutura, não obstante nelas predominar o modelo da fábula clássica. A narrativa alegórica do conto de animal, de caráter c fantasia. Novas leis são instituídas, nova lógica passa a vigorar e uma nova ordem se instaura. O mundo físico e o mental se interpenetram, modificando as suas categorias. O tempo parece não fluir ou, então, se prolonga, apagando as noções convencionais de temporalidade (A Princesa do Sono-sem-Fim):\n\n... fado esta menina para que, quando o fuso lhe ferir a palma da mão, não morra mas fique dormindo cem anos, acordada que seja por um príncipe, case e seja feliz. (CASCUDO,s.d.,47-8)\n\nTambém as barreiras espaciais se desfaçam e o deslocamento das personagens se efetiva, contrariando as mais elementares leis físicas (A Filha do Peescaldor):\n\nMaria pegou o vestido, enrolou, guardou e se aguarrou no Sol. O Sol deixou maria na casa da Lua. (BIBLIOTECA,1981, V,6,27).\n\nConstata-se a ação de seres sobrenaturais como fadas, bruxas, gigantes que decidem sobre o destino das personagens, fazendo-as, o mais das vezes, juguetes dos seus caprichos. É comum a existência de objetos que geralmente funcionam como ajudantes mágicos dos heróis nos momentos difíceis em que a simples ação humana não é suficiente para desvencilhá-los das garras do inimigo, conduzindo-os à vitória (A Boa Misteriosa):\n\nAqui, o amarelo pegou os três objetos: \n-- Capa, me encapei! Carapuça, me escondi! Bota, me bote na casa de João José primeiro de aquela moça! (BIBLIOTECA, 1981, V,3,25)\n\nOs ajudantes mágicos também podem ser animais que falam e têm muito dos atributos humanos, chegando mesmo a orientar os heróis no confronto com seus antagonistas (O Filho do Lenhador):\n\nA hurrinha já sabia, adivinhava tudo no mundo, disse assim: \n-- Maria, na nua casa vai chegar um rapaz de branco, montado num cavalo preto. Esse rapaz é o cão. (Ibid., V,1,25)\n\nMecanismo de transformação muito comum nos contos de encantamento é a metamorfose: pessoas se transformam em animais por tempo determinado e, finda a provação, reassumem a forma humana. As metamorfoses materializam a transgressão dos limites entre palavra e coisa como um modo de pensamento, utilizando-se de operações predominantemente sensíveis, busca apreender abstrações como imagens, como coisas. O sobrenatural se instala a partir do momento em que as palavras passam a ser coisas.\n\nSitenibus, Feira de Santana, 3(5): 87-99-jan/jun, 1986 As metamorfoses geralmente acontecem por dois motivos: punição ou procrastinação. A punição pode ser motivada por uma desobediência a certo código que vedava o acesso de pessoas ao determinado lugar interdito. A violação dessas normas resulta numa penalidade. O ato ousado e punido combina a transformação do ser responsável em animal (João sem Medo): \"Não que eu pare, entrou no Reino a bruxa encantou-se e ele ficou transformado numa lagartixa.\" (BIBLIOTECA, 1981, V,6,16). O fato do antagonista ser colocado em uma situação de desvantagem em relação à personagem leva-o a punf-lá, valendo-se da ação de elementos mágicos. Em A Moura Torta, a beleza da moça provoca inveja na antagonista que, sabendo não poder concorrer em condições de igualdade, a transforma em pomba. \nA punição também pode se efetivar devido a uma blasfêmia da personagem por não aceitar a vontade de Deus, ou não respeitar os preceitos religiosos (O Voado de Plunzas e O Príncipe Lagartão). Por vezes, a metamorfose não tem a sua motivação explicativa, podendo, nesses casos, a personagem aparecer já transformada em animal, desde o início da ação narrativa ou se transformar ao desenrolar da fábula (A Moça Encantada): \"...eu trouxe um signo de do que eu me casar transformar-me numa serpente...\" (BIBLIOTECA,1981, V,9,5). A metamorfose geralmente se caracteriza pelo simples desejo do antagonista (João sem Medo) tôu com a ajuda de objetos \"enfeitiçados\" como o alfinete de A Moura Torta. Raríssimas vezes a agência do Mal se transforma em veiculo do Bem (José e Maria) ou assume diferentes formas para ajudar o herói apenas com o objetivo de recuperar algo que este lhe tirou (O Filho da Burra).\nPara que as pessoas metamorfoseadas assumam ou reassumam a forma humana, faz-se necessário, por vezes, cumprir um tempo de provação que, mais frequentemente, submeter-se a uma prova de fidelidade, às vezes, associada a um ato arrependimento (O Fiel Dom José), obedecer a certos precitos ou depender de um ato de coragem e valentia (João sem Medo). Desrepetida certas recomendações, garantir-lhe a duração da metamorfose é dobrada a descoberta e reparada por um período de provas, quase sempre severas, após o que pode-se chegar ao ser metamorfoseado (O Papagaio Real): \"Ai ingrato! Dobraste-me os encantos! Se me queres ver, só no reino de Aceolis.\" (CASCUDO, s.d.,45). Às vezes, a volta à condição humana não depende apenas de desejo; mas de eliminar a ação do instrumento mágico, agente da transformação (A Moura Torta) ou de destruir o elemento caracterizador da metamorfose (O Príncipe Lagartão).\nA existência desses seres e dos fenômenos sobrenaturais originam-se do movimento da evolução do homem em que os fenômenos da natureza tinham a sua causa ignorada. Ao definir uma lei geral que explica o mais antigo desejo de conhecer certos povos, Levy-Bruhl afirma que o homem primitivo não era capaz de conceber-se a si próprio e ao mundo como entidades distintas.(PROP, s.d.,44). As forças da natureza lhe pareciam coisas estranhas, misteriosas e superiores. Assimila-as, pessoalizando-as. Essa fase animista também faz parte de uma etapa da evolução mental da criança que não apenas concebe as coisas com vida, como também dotadas de intenção, como afirma PIAGET (1967), em Seis Estudos de Psicologia, ao tratar da evolução do pensamento nas várias fases de descobrimento da criança, justificando esse comportamento como uma confusão entre o mundo interior e o universo físico. A fase pré-lógica do pensamento em formação é comum ao homem primitivo e à criança. Em ambos, o pensamento verbal se estruturou no jogo simbólico, satisfazendo-o por meio da transformação do real. A ficção completa e realizar-se.\nTodorov, (1975), em Introdução à Literatura Fantástica, ao falar dos elementos sobrenaturais, afirma que a existência desses seres simboliza um sonho de poder do homem e um domínio sobre uma causalidade deficiente que não é capaz de explicar certos acontecimentos do dia a dia normalmente atribuídos ao acaso. Surge, assim, uma causalidade própria diferente daquela do mundo convencional, que substitui o acaso.\nEnquanto os contos de encantamento se estruturam e se definem pela existência de um espaço maravilhoso, os contos de exemplo e, sobretudo, os animais se caracterizam por um espaço alegórico. Ferencanando uma intenção moralizante bastante explícita, os contos de animais se estruturam como a fábula que também possui dois sentidos expressos, bastando que se acione um deles para se agigantando do outro sentido. Os temas são de natureza ética e remetem a valores considerados fundamentais em uma sociedade em formação. Como afirma PROP (1965-70) em As Transformações dos Contos Fantásticos, seriam as fábulas anteriores aos contos maravilhosos, pois frequentemente os contos de animais também objetivos enfatizar determinados traços temáticos ancestrais, indispensáveis ao descobrir o homem que trata se formava. Nos contos de exemplo, entretanto, como o próprio nome indica, a preocupação moralizante é mais explícita; são valores geralmente de fundo religioso, inspirados por uma ação catequética cristã.\nA percepção que o homem tem do universo não chega, nestes contos de exemplo, a atafalá-lo de uma ordem de mundo natural, convencional. Ao invés de extrapolar-se para o sobrenatural, como procedimento capaz de expressar, de forma tal, sua concepção de mundo, o homem busca uma relação simbólica para experimentá-lo. Através desse simbolismo, codifica as suas visões da realidade, a concreta, da sua experiência, e uma outra corrigida, a desejável, que transcende a realidade empírica a que espera atingir, não se dando o apaziguamento da relação sujeito/objeto como nos contos narrativolosos. Ao contrário, o homem coloca-se como observador dessa realidade e daí tem uma compreensão profunda que procura extrair de maneira simbólica. O simbolismo se estabelece na relação particular e universal, e co­múni­ca-se na alegoria estruturada através da superposição de, pelo menos, dois sentidos, em que o sentido explícitado, primeiro, particular, desaparece para dar lugar a outro, mais universal - aquele que se deseja atingir. Diz-se uma coisa com a intenção celebridade de apagar-la para remeter a outra.\nAntigamente o conto popular se constituía em um veículo de transmissão da história dos antepassados às gerações mais novas e de todo conhecimento necessário ao crescimento do grupo. E ainda o é, hoje em dia, nas sociedades literadas.\nSitenibus, Feira de Santana, 3(5):87-99-jan/jun, 1986 As transformações nas fábulas se encontram também em contos populares e episódios tidos como fantásticos, que invocam a figura do ousado, capaz de realizar ações que desafiavam o destino (ex.: O Filho do Lenhador). Portanto, essas narrativas são geradoras de conflitos narrativos, exigindo do receptor uma posição favorável ao herói, que assume o papel de benevolente ao trazer uma nova tensão a partir do riso ou do terror. Assim é que a dinâmica trágica do personagem se intensifica à medida em que as características que o definem se transformam ao longo da história.\nAs histórias com enredos de vivências emocionais profundas se tornam mais ricas e reveladoras de universos que se entrelaçam, como a relação entre a força do desejo enfraquecido pela dor que trabalha o herói. Nessa configuração, as metamorfoses se tornam, em seu sentido mais amplo e profundo, um modo de ilustrar a condição humana e a exploração dos vários lados do ser. É através desse padrão que os contadores de histórias buscam conscientizar seus ouvintes e pacote de saberes. As transformações são, então, uma forma de tornar visível a transitoriedade da vida, a possibilidade de outras identidades, revelando o caráter passageiro de todas as coisas. A personificação dos objetos, usualmente carregados de sentimentos, é uma maneira de dar voz a essas metamorfoses e suas repercussões.\nO próprio inconsciente relacional, em que as emoções e o significado da vida são resgatados, é, na ideia de simbolismo, uma estrutura que se opera como comunicação entre os personagens humanos e os elementos não humanos.\nAssim se estabelece uma relação simbólica que possibilita ao sujeito interpretar e repensar sua própria condição, numa tentativa intensa de preencher as lacunas deixadas pela existência. Em suma, as metamorfoses vão além do simples questionamento sobre o que é humano ou sobre o que estão as coisas, guiando sempre para uma crítica da condição existencial.\nEssa relação se intensifica por meio das múltiplas narrativas que compõem as fábulas, desde as que abordam crises de identidade até as que discutem a busca do heroísmo. É pela composição da narrativa que se estabelece uma conexão entre o legado das tradições e o poder da criação, permitindo que o público vivencie a transitoriedade da condição humana. Através dessas narrativas, os ouvintes são convidados a refletir sobre suas próprias transformações e seus próprios reencontros e eventos que marcam suas vidas.\nSitenibus, Feira de Santana, 3(5): 87-99-jan/jun, 1986 Para continuar dando cumprimento a essa sua instrumentalidade, porém, o conto popular passa por constantes adaptações em cada nova realidade que garantem a \"vivência cultural\" da sua função comunicativa.\n\nEmborabrasill\n MEC/PRONASE RURAL. Biblioteca da vida rural brasileira. Paraíba, See/UFPB/PRAC/NIUP/ FUNAPE, 1981. 10v. (Coleção Transcosa).\n\nCAMPOS, João da Silva. Contos e fábulas populares da Bahia. In: MAGALHÃES, Bahia prensa Nacional, 1939. 397p.\n\nCASCUDO, Luiz da Câmara, org.. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s. d. 448p.\n\nCHAMPI, Itemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo, Perspectiva, 1980. 184p. (Debates, 160).\n\nDUNDES, Alan. Oral Literature. In: CLIFTON, James, J. Introduction to cultural anthropology: Essays in the scope and methods of science of man. Boston, Houghton Mifflin Company, 1968. p.117-29.\n\nFREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: Obras completas. 3.ed, Madrid, Biblioteca Nueva, 1973. t.2, p.145-850.\n\nJOLLES, André. Formas simples. São Paulo, Cultrix, 1976. 222p.\n\nJUNG, Carl G. et alii. El hombre y sus símbolos. Madrid, Aguilar, 1960. 320p.\n\nPIAGET, Jean. Seus estudos de psicologia. Rio de Janeiro, forense, 1967. 140p.\n\nPROPP, Vladimir. Edipô da folclore: quatro estudos de etnografia histórico-cultural. Lisboa, Vega, s.d., 202p.\n\n- - - . Morphologie du conte; suivi de les transformations des contes merveilleux et de E. Mélièusk. L'étude structurelle et typologique du conte. Paris, Seuil, 1965-70. 254p.\n\nROMERO, Silvio. Contos populares do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1954. v.2. 1975. 191p. (Debates, 98).\n\nVANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, J., ed. História geral da África. São Paulo, Ática, 1982. p.157-79.