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CHOMSKY E O INATISMO CARTESIANO\n\nSérgio Sell (UFSC, UNISUL)\n\n1. Introdução\n\nA adesão ao inatismo é um dos pontos mais polêmicos da linguística chomskyana. Apesar de seu passado glorioso e de ter sido professado por grandes filósofos como Platão e Descartes, o inatismo chega ao século XX profundamente desacreditado. Podemos destacar três motivos para tal descrédito. Em primeiro lugar, o entusiasmo provocado pelas conquistas da ciência experimental levam ao positivismo e ao naturalismo que rejeitam terminantemente, por motivos metodológicos, os fundamentos do inatismo. Em segundo lugar, a nova psicologia que se desenvolve a partir do cientificismo, o behaviorismo, se estabelece, na primeira metade do século, como uma teoria hegemônica no estudo dos processos cognitivos, desqualificando de forma taxativa as pretensões de qualquer tratamento filosófico para tais questões. Por fim, a reação ao behaviorismo vai ocorrer principalmente em três frentes também avessas ao inatismo: a fenomenologia (principalmente no campo filosófico), o construtivismo (em especial no campo da psicologia) e o estruturalismo (no campo da lingüística).\n\nNessa disputa, o único consenso entre os oponentes acabou sendo a rejeição ao inatismo que passa a ser visto cada vez mais como uma perspectiva epistemológica superada e indefensável. Tudo isso só fez aumentar o escândalo da ressurreição do ideário inatista provocada por Chomsky.\n\nNeste artigo, busco reconstituir a trajetória do inatismo ao longo da história da filosofia, dando ênfase às versões modernas e ao uso\n\nsergiosell@terra.com.br 8 - Sérgio Sell\n\nchomskyanos desta perspectiva filosófica para a fundamentação epistemológica de sua teoria linguística. A bibliografia utilizada inclui alguns historiadores da filosofia (Bréhier, Hessen e Koyré), as principais obras de Descartes, (com as preciosas notas de Gérard Lebrun) e, em especial, três obras de Chomsky: Linguística Cartesiana, Linguagem e Pensamento e Reflexões sobre a Linguagem.\n\n2. As Origens do Inatismo\n\nO inatismo, genericamente falando, tem suas raízes na mais remota antiguidade. Antes mesmo do surgimento da filosofia, as religiões reencarnacionistas já apresentavam versões mais ou menos elaboradas a respeito deste assunto. Ao que parece, a filosofia começou a tratar deste tema com Pitágoras (séc. VI a.C.); porém sabe-se muito pouco da filosofia pitagórica pelo fato de ela ter se organizado como uma seita iniciática e apenas numa parte dos ensinamentos de seu líder podia ser revelado ao público. Mas, até onde se sabe, a reencarnação é a metempsicose criada por Platão (séc. IV a.C.) é quem vai elaborar a versão standard do inatismo na história do ocidente. Essa versão padrão ficou conhecida como \"douttrina da reminiscência\" e mantém-se ainda, de alguma forma, ligada à ideia de reencarnação. Vejamos como Platão apresenta essa concepção em uma passagem clássica encontrada no diálogo intitulado Menon.\n\nSócrates [a Menon] \"(...). Já que a alma é imortal e já que viveu diversas vidas, e já que tudo o que se passa aqui e no Hades, não há nada que não tenha aprendido. Também não é absolutamente surpreendente que sobre a virtude e sobre o resto, ela possa se lembrar do que soube anteriormente. Como tudo se conserva na natureza como a alma tudo aprendeu, nada impede que ela não se lembre de uma coisa \"o que os homens chamam de aprender\" ela reencontre em si mesma todas as outras, quanto que seja corajosa e não se canse de buscar; porque buscar e aprender não é senão relembrar\" (apud Rezende 1999: 51).\n\nWORKING PAPERS EM LINGUÍSTICA, UFSC, n.6, 2002 Chomsky e o Inatismo Cartesiano - 9\n\nUma versão um pouco diferente aparece nas filosofias de Plotino e de Santo Agostinho, recusando a ideia de reencarnação. Plotino (séc. III d.C.) defende a existência de um intelecto cósmico, do qual emanaria o nosso próprio intelecto. A parte racional da nossa alma seria, então, alimentada e iluminada continuamente de cima. Em Santo Agostinho (séc. IV-V d.C.), a função desse intelecto cósmico passa a ser atribuída a Deus e os conceitos supremos são irradiados por Deus para o nosso espírito.\n\nEssas formas de compreender o inatismo (de Platão, Plotino e Agostinho) têm como principal característica a defesa de que o que é inato é o próprio conteúdo conhecido. Na Idade Moderna, porém, ocorre uma mudança substancial em relação a essa ideia, surgindo uma nova concepção de inatismo. Nesse novo contexto, o que é inato não é o conteúdo do conhecimento como um todo, mas apenas as ideias mais abstratas que servem de fundamento para a compreensão das demais.\n\nO inatismo moderno começa com Herbert de Cherbury (1582-1648), que em uma obra de 1624, De Veritate, traz o inatismo para o nível da subjetividade. Se na perspectiva platônica tratava-se de ideias perfeitas, objetivamente existentes, cujo conhecimento estava em nós por já estarmos dividido alguma vida anterior, agora o inato refere-se à própria natureza do indivíduo. Se no ponto de vista defendido pelas filosofias de Plotino e de Santo Agostinho o inatismo se explica pela ação de um ser transcendente, agora trata-se de um conjunto de características imanentes ao próprio ser. Segundo essa nova visão, há certos \"princípios ou noções implantados na mente\" que \"levamos aos objetos a partir de nós mesmos ... [como] dom direto da natureza, como mandato do instinto natural\" (Chomsky 1969: 125).\n\nMas esses princípios precisam de uma experiência apropriada para serem ativados; caso contrário, permanecem latentes, até que algum objeto apropriado os desperte. Porém, não é a própria experiência que nos-los fornece; aliás, sem eles, sequer haveria qualquer experiência possível.\n\nWORKING PAPERS EM LINGUÍSTICA, UFSC, n.6, 2002 Chomsky faz notar o papel fundamental da obra de Herbert de Cherburry na inauguração de uma nova forma de conceber o ser humano em suas relações com o mundo e consigo mesmo:\n\nAo enfocar a atenção nos princípios interpretativos inatos que são condição prévia para a experiência e para o conhecimento, ao destacar que estes são implícitos e podem requerer estímulos externos para se ativar ou ser suscetíveis de introspecção, Herbert de Cherburry expressou grande parte da teoria psicológica que serve de base à linguística cartesiana, o mesmo que destacou os aspectos do conhecimento desenvolvidos por Descartes e, posteriormente, pelos platonistas ingleses, por Leibniz e por Kant (Ibid. p. 128-129).\n\nNo entanto, ainda que Herbart de Cherburry possa ser apontado como o precursor do inatismo moderno, é com Descartes que essa perspectiva filosófica ganha um destaque especial, à medida em que torna-se um dos pontos centrais de uma grande reformulação filosófica que marca a passagem definitiva da filosofia da mentalidade medieval à nova mentalidade moderna.\n\n3. O Inatismo Cartesiano e duas Grandes Confusões a ele Relacionadas\n\nDescartes, em muitos aspectos de sua filosofia, apenas reedi ta o pensamento de seus antecessores pré-modernos; em vários outros, opera pequenas adaptações para moldar-lhe à perspectiva moderna. Mas no que se refere ao inatismo, a mudança foi radical. O grande problema é que, seja por desatenção, seja por má fé, os críticos do cartesianismo raramente reconhecem essa diferença. Essa falta de distinção entre perspectivas tão diversas é capaz de gerar uma confusão tão grande que mesmo aqueles que hoje poderiam colocar-se numa posição de avaliação isenta são levados a uma interpretação equivocada do inatismo cartesiano. Em Reflexões Sobre a Linguagem, Chomsky observa que \"a designação 'teoria das idéias inatas' é geralmente mais usada pelos críticos do que pelos defensores da posição a que tal designação se refere\" e que \"ela só pode induzir em erro\" (Chomsky 1977: 19).\n\nEsse erro consiste em acreditar que as idéias estão em nossa mente, desde sempre, prontas para serem utilizadas conforme nossas conveniências. Mas as idéias inatas não estão necessariamente em ato em nosso pensamento e sim em potência. (cf. Koyré 1922: 211).\n\nUm outro erro, que pode ser encontrado com facilidade em leituras equivocas do cartesianismo, consiste em atribuir à razão o poder de fornecer idéias ou de obter conhecimento. Essa é uma confusão entre os conceitos de razão e entendimento. Descartes concebe o conhecimento humano como re-produção de algo em nossa mente através de uma representação. Como nosso entendimento só consegue trabalhar com idéias, cada conhecimento é uma idéia criada em nosso entendimento a partir de algum tipo de experiência. Descartes classifica essas experiências em três tipos aos quais correspondem nossas três faculdades cognitivas: aquelas que derivam do conhecimento, as que são criadas pela imaginação e as que são produzidas a partir dos dados dos sentidos. Note-se que a razão não faz parte da lista.\n\nQuando pensamos, estamos operando relações entre idéias, que estamos interligando-nas numa certa ordenação, que pode ou não ser adequada. As regras que servem para avaliar essa adequação são fornecidas pela razão. A razão não é, pois, uma fonte de conhecimentos, como algumas leituras poderiam tomá-la; ela é entendida mais propriamente como uma faculdade de julgar, tanto as idéias em si mesmas quanto as relações entre elas estabelecidas.\n\nMas a origem das confusões a respeito da noção cartesiana de inatismo não decorre apenas das leituras viciadas dos seus críticos. Descartes, ele próprio, contribuiu para o surgimento de uma má interpretação de seus pontos de vista. Num estudo clássico da filosofia cartesiana, Koyré nos chama a atenção para uma certa mudança ocorrida na concepção de inatismo. Num primeiro momento, nas obras principais, aparece a idéia de que \"o que nos é inato não é a idéia atualmente pensada e sim a faculdade de pensá-la\" (Koyré 1922: 211). Mas, ao referir-se ao inatismo em algumas cartas, Descartes aproxima-se muito da concepção agustiniana. Temos, portanto, duas versões do inatismo cartesiano.\n\n4. Optando por uma Versão Específica do Inatismo Cartesiano\n\nDas duas versões do inatismo cartesiano, uma visa ao debate público altamente qualificado, a outra, a um diálogo particular guiado por questões mais específicas envolvendo inclusive intenções pedagógicas relativas à filosofia clássica; uma aponta para o futuro e abre caminho para novas revoluções na filosofia, antecipando, por exemplo, as idéias de Kant, a outra é marcada por concessões feitas a concepções passadas; uma visa ser assumida pelos seguidores fiéis do filósofo francês, a outra vai servir de motivo de choque para seus críticos. Por qual delas devemos optar? Oh, difícil decisão! Mas, como nosso trabalho é fundamentalmente sobre a leitura que Chomsky faz de Descartes, vamos escolher a primeira versão, acompanhando a escolha feita pelo linguista norte-americano.\n\nDescartes apresenta a noção de idéias inatas a partir da referência a uma classificação usual das nossas idéias em três grupos: as idéias adventícias (fornecidas pelos sentidos), as idéias factícias (criadas pela imaginação) e as idéias inatas. \"Ora, dessas idéias [que estão em mim], umas me parecem ter nascido comigo, outras ser estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas por mim mesmo\" (Descartes 1996: 281).\n\nEssas três classes possuiriam características distintas e bem determinadas, como nos diz Koyré:\n\nAs idéias inatas são simples, elas não podem ser divididas e decompostas por um análise do nosso entendimento; elas são independentes da nossa vontade, que não pode mudá-las ou alterá-las, o que as distingue Chomsky e o Inatismo Cartesiano - 13\n\ncompletamente de todas as ideias factícias; elas não nos vêm de fora, como as ideias adventícias; e no nosso próprio entendimento que nós as encontramos, elas lhe parecem como um fundo inalterável e inalienável. (Koyré 1922: 210).\n\nMas é preciso notar que Descartes não dá o seu aval a essa classificação; ao contrário, ele a critica. Em uma nota comentando o trecho de Descartes citado acima, Gérard Lebrun esclarece que “parecem” indica que Descartes se coloca ao nível do senso comum. Aqui, com efeito, começa a crítica da classificação das ideias segundo o senso comum e dos preconceitos que ela implica [...]” (Descartes 1996: 281).\n\nPrecisamos então esclarecer melhor a teoria das ideias defendida por Descartes. Como já comentamos, o problema está no uso equívoco que o autor dá ao termo “inato”. A origem da controvérsia decorre do fato de que algumas vezes o termo é utilizado em oposição à fornecido pela experiência, ou à proveniente dos sentidos, e outras vezes aparece, num sentido muito mais apropriado, em oposição à aquilo cuja causa é externa ao sujeito. Para ilustrar melhor essa diferença, tomemos como exemplo uma ideia central da filosofia cartesiana, a ideia de Deus. No contexto da obra filosófica de Descartes, se tomarmos o termo inato no primeiro sentido, é óbvio que a ideia de Deus é inata (já que é evidente que tal ideia não provém dos sentidos). No entanto, na outra interpretação “a que estamos defendendo aqui a ideia de Deus não é inata uma vez que ela é produzida em nós a partir de uma percepção, a partir de sua impressão no nosso intelecto.\n\nNeste caso, a tipologia das ideias, acima apresentada, precisa ser reformulada. A nova tipologia continua tendo três espécies de ideias, que poderiam inclusive ser identificadas pelos antigos títulos (adventícias, factícias e inatas). Mas a nova classificação parte de um pressuposto diferente: a tese de que o nosso intelecto é regido por um conjunto de regras inatas (as quais não são ideias ou representações). Assim, teríamos um conjunto de ideias elaboradas a partir das sensações, um outro\nWORKING PAPERS EM LINGÜÍSTICA, UFSC, n.6, 2002 14 - Sérgio Sell\n\nconjunto de ideias, construídas pelo próprio sujeito por intermédio da imaginação, e um terceiro conjunto de ideias formadas a partir das verdades eternas que o sujeito é capaz de identificar como princípios que subjazem às regras do seu próprio intelecto e que são identificadas através de uma faculdade de percepção que Descartes denomina luz natural da razão ou intuição intelectual.\n\nAs verdades eternas não constituem parte intrínseca do entendimento; não estão nele desde sempre; no entanto este está predisposto a compreendê-las de forma imediata (ou seja, sem o concurso quer dos sentidos, quer da imaginação). Essa predisposição é o que se pode efetivamente chamar de “inato”. Note-se que essa versão da teoria das ideias inatas já traz de forma clara boa parte daquelas ideias cuja autoria costuma ser atribuída a Kant. Vê-se que a originalidade de Kant não está em postular que só o que é inato são os princípios do conhecimento, mas sim em identificar quais são esses princípios e recusar uma intuição intelectual (ou seja, Kant não inova, e sim rejeita uma das partes da inovação e esclarece e desenvolve as outras). Em Descartes, as ideias não são intuídas, mas fazem parte da própria estrutura humana e são formas a priori da intuição sensível.\n\nÉ claro que essa interpretação da teoria cartesiana das ideias não é a única e nem mesmo é a mais corrente nos dias de hoje; mas é uma interpretação possível e, principalmente, bem avalizada?. Mas, para além do esforço interpretativo dos comentaristas, talvez o maior testemunho da adequação desta leitura seja a forma como alguns filósofos, seguidores de Descartes, apresentam as suas próprias ideias seguindo a mesma linha da interpretação por nós aqui adotada.\n\nWORKING PAPERS EM LINGÜÍSTICA, UFSC, n.6, 2002 5. Inatismo Pós-Cartesiano\n\nNa defesa e propagação da concepção de inatismo que estamos analisando neste trabalho, a atuação de um certo grupo de filósofos foi fundamental. Refiro-me aos monges “solitários” da abadia de Port-Royal. Fundada em 1636 pelo Abade Saint Cyran, a abadia abrigava uma comunidade religiosa cujos membros se dedicavam à meditação, ao estudo e ao ensino. Sob a liderança intelectual de Antoine Arnauld (1612-94), o grupo recebeu forte influência de uma doutrina neo-agostiniana que havia sido formulada por Cornélio Jansenio. Apesar de numericamente restrito, o grupo Port-Royal exerceu um papel de grande destaque nos meios intelectuais da época a partir de uma considerável produção editorial.\n\nEmbora o grupo fosse marcado por uma certa liberdade de pensamento, Arnauld se destacou tanto pela importância de sua produção filosófica quanto pela liderança natural que exerceu sobre as ideias de boa parte de seus companheiros. Escreveu, junto com Pierre Nicole (1625-95), um manual intitulado A Lógica, ou A Arte de Pensar obra que teve uma influência imensa sobre a lógica e sobre a gnosiologia subsequente e que constituiu a mais perene codificação da filosofia cartesiana” (Abagnano 1982: 113).\n\nEm conjunto com Claude Lancelot (1615-95), escreveu a Gramática Geral e Raciocinada, obra que também assume as ideias de Descartes levando-as ao seu mais alto grau de desenvolvimento. Nos círculos intelectuais da época as duas obras passaram a ser identificadas pela denominação mais simples e genérica de Lógica e Gramática de Port-Royal.\n\nUma das teses fundamentais da teoria lingüística de Port-Royal é a existência de certos princípios inatos que regravam a linguagem humana, reeditando a versão cartesiana do inatismo. Esses princípios lingüísticos inatos formam um conjunto denominado gramática filosófica que serve de base para a formulação das gramáticas de todas as línguas naturais.\n\nMas não só os “seguidores” diretos de Descartes defendem a ideia de que o entendimento humano possui um conjunto de princípios anterior a qualquer experiência, princípios estes necessários para a própria\nWORKING PAPERS EM LINGÜÍSTICA, UFSC, n.6, 2002 inteligibilidade de qualquer experiência. Na Inglaterra e na Alemanha encontramos também autores e escolas relativamente independentes defendendo essa mesma concepção. É claro que Descartes não pode ser considerado o único a influenciar os novos sistemas teóricos que surgem em defesa do inatismo da estrutura cognitiva. Como já falamos acima, Herbert teve também uma importância capital. Principalmente na Inglaterra, onde a filosofia cartesiana encontrou acirrada resistência, as ideias desse autor, também inglês, puderam ser tomadas como referência e fonte de inspiração. Mas a importância de Descartes não pode ser menosprezada. O método e a perspicácia que caracterizam a produção teórica do filósofo francês permitiram-lhe alcançar uma clareza conceitual invejável, que pode servir de modelo e ponto de partida para novas elaborações interpretativas. Em seus trabalhos que resgatam a história do inatismo cartesiano, Chomsky chama a atenção para duas linhas de pensamento que, apesar de se constituírem como correntes teóricas independentes, desenvolvem as ideias de Descartes. Essas duas linhas são a da escola dos platonistas ingleses, cujo principal representante foi Ralph Cudworth (1617-88), e a que é representada pelo filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). A mesma concepção de inatismo defendida por Descartes, a encontramos magistralmente formulada em Cudworth, como nos reporta Chomsky:\n\nCudworth argumentou minuciosamente que o espírito possui um \"poder cognitivo\" inato que estabelece os princípios e conceitos que constituem o nosso conhecimento, quando estimulado pelos sentidos para assim o fazer. \"Mas as próprias coisas sensíveis (como por exemplo a luz e as cores) não são conhecidas e compreendidas nem pela paixão dos objetos sentidos, nem paralelamente estranhas ao acidental, mas sim por ideias intelectuais providas da própria mente, isto é, por algo inato e interno...\" (Chomsky 1977: 12). Mais uma vez a semelhança com as ideias de Kant é inegável. O que é considerado inato, tanto num quanto noutro autor, não é a própria ideia dos objetos externos, das impressões recebidas pelos sentidos, e sim a forma a partir da qual essa impressão será com-formada de modo a torná-la compreensível. Em outras palavras, é como se Cudworth já estivesse dizendo de alguma maneira: \"embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência\" (Kant 1983: 23)º.\n\nLeibniz vai na mesma direção, embora a filosofia deste autor seja bem mais complexa. Este autor formula a monadologia (teoria das \"mônadas\") segundo a qual cada indivíduo do universo é um mundo a parte, é um todo, incapaz de perceber, comunicar-se ou estabelecer qualquer outra relação com os demais indivíduos; formula também a teoria da \"harmonia preestabelecida\" segundo a qual as mônadas, embora incomunicáveis entre si, percebem o mundo e agem como se pudessem interagir umas com as outras. Para Leibniz, em cada mônada já está contida, em todos os detalhes, toda a história do universo (passado, presente e futuro); mas a mônada não tem plena consciência dessa história; o \"presente\" é justamente o ato dessa tomada de consciência em relação a certos detalhes.\n\nA teoria das mônadas permite a Leibniz formular uma solução para o problema das ideias inatas, apesar da equívoco da própria noção de inatismo. Em Descartes, como vimos acima, o uso equivoco do termo inato decorria de uma inadequada tipologia das ideias; em Leibniz, decorre da possibilidade de compreender o universo de duas maneiras distintas: o \"sistema comum\", que vê o universo como um conjunto de inúmeros indivíduos que interagem uns com os outros, e o sistema da harmonia preestabelecida, que descreve a percepção dessa interação como um certo grau de consciência que a mônada alcança de si mesma. Assim, como nos diz Bréhier, são aquelas sem as quais não se poderia pensar uma verdade: ideias de ser, de possível, de mesmo, de idêntico, que entram numa verdade inata, tais como: é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo. O conjunto de ideias inatas é próprio entendimento com que se pensa. Leibniz pode, então, aceitar o adágio escolástico, mas com uma restrição: \"nada há no entendimento que não tenha estado nos sentidos, exceto o próprio entendimento.\" (1979: 232-233).\n\nNovamente, o que é considerado inato é a estrutura lógica que permite a compreensão dos fenômenos, antecipando, mais uma vez, uma das teses centrais da filosofia kantiana.\n\nImmanuel Kant (1724-1804), a quem já fizemos diversas referências, foi, numa primeira fase de seu pensamento, seguidor do leibniziano Christian Wolff (1679-1754), tendo, no entanto, rompido com a tradição racionalista a partir do contato com o ceticismo do filósofo escocês David Hume (1711-1776). Nessa segunda fase de seu pensamento, chamada de criticismo, Kant reformula os termos da discussão do inatismo. O próprio termo inato desaparece, sendo substituído pela expressão latina a priori. Embora mude a abrangência da noção, o sentido não mudou: \"Por conhecimentos a priori entendemos não os que ocorrem independente desta ou daquela experiência, mas absolutamente independente de toda a experiência\" (Kant 1983: 24). Temos dito que a mudança ocorre apenas em relação à abrangência da noção. Em Kant, o que vai ser considerado a priori são os conhecimentos obtidos a partir do que ele chama de formas puras tanto da sensibilidade quanto do entendimento. Tais formas são enumeráveis e constituem um conjunto bastante reduzido. No primeiro grupo encontramos apenas duas: tempo e espaço. Na segunda, duas “tábuas” compostas cada uma por doze elementos agrupados em quatro classes de três; são as categorias puras e as formas puras de juízo8. Essa lista completa dos conhecimentos a priori inclui elementos que outras listas não contemplavam, como o tempo e o espaço; mas deixa de fora vários outros (inclusive alguns que Chomsky gostaria de não ver excluídos) como por exemplo os princípios fundamentais da gramática.\n\nApós Kant, o inatismo ressurge ainda no pensamento de alguns filósofos do romantismo, especialmente nas obras dos irmãos August Wilhelm Schlegel (1767-1845) e Friedrich Schlegel (1772-1829), de Wilhelm von Humboldt (1767-1835) e de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834). A partir da distinção entre forma orgânica e forma mecânica, elaborada inicialmente por Goethe, os românticos retomam o tema do inatismo, porém numa vertente ainda mais fortemente imanentista que aquela surgida no início da Idade Moderna. Podemos tomar uma passagem de Coleridge, citada por Chomsky em Linguística Cartesiana, para ilustrar essa reformulação do inatismo:\n\nA forma mecânica é quando em um material dado imprimimos uma forma predeterminada que não surja necessariamente das propriedades do material; como quando damos a uma massa de argila úmida a forma que nos parece para que a retenha quando endureça. Por outra parte, a forma orgânica é inata; se configura, segundo as circunstâncias, para partir de dentro e a plenitude do seu desenvolvimento e a mesma e idêntica que a perfeição de sua formação. A forma é igual à vida. A natureza, o primeiro artista genial, inesgotável em suas diversas capacidades, é igualmente inesgotável em formas; cada exterior é o rostos de que leva dentro, sua imagem verdadeira refletida e devolvida por um espelho côncavo...” (Apud Chomsky 1969: 57).\n\nWORKING PAPERS EM LINGUÍSTICA, URSC N.6, 2002 Também em Linguística Cartesiana, encontramos várias referências às formulações da concepção inatista de A. W. Schlegel:\n\n“Poder-se-ia comparar a razão humana com uma matéria infinitamente combustível que, não obstante, jamais se incendeia a si mesma. É preciso que se jogue uma faísca da alma. Para que a razão desperte, é preciso uma comunicação com um entendimento já formado. Mas o estímulo externo somente se requer para pôr em funcionamento os mecanismos inatos; não determina a forma do que se adquire. De fato, está claro que “este aprendizado [da linguagem] por meio da comunicação pressupõe já a capacidade de criar uma linguagem” (Apud Chomsky 1969: 132).\n\nEssa formulação do inatismo feita pelos românticos é a que mais vai influenciar as concepções linguísticas chomskyana.\n\n6. Chomsky e o Inatismo contemporâneo\n\nChomsky, inequavelmente, defende o inatismo. Esse parece ser um ponto sobre o qual não há há divergências. O que não significa ser um ponto isento de problema; muito pelo contrário. Justamente por ser um ponto que não desperte polêmica, o inatismo chomskiano tem sido muitas vezes mal interpretado. O inatismo de Chomsky chega a ser muitas vezes confundido com concepções incrivelmente deturpadas que só existem na imaginação daqueles que não aceitam a possibilidade de algo que não derive da experiência.\n\nApós a publicação de suas primeiras obras, Chomsky vê-se obrigado a esclarecer melhor vários pontos de sua teoria, nem sempre porque tenham sido explicados de forma obscura, mas muitas vezes movido pela necessidade de evitar ou mesmo corrigir uma leitura viciada de seus textos. Assim, a obra Reflexões Sobre a Linguagem (1975), pode ser considerada como uma retomada dos temas já discutidos na Linguística \n\nWORKING PAPERS EM LINGUÍSTICA, UFSC N.6, 2002 Cartesiana. Ao mesmo tempo em que re-formula e aprofunda as ideias já anteriormente apresentadas, Chomsky responde às críticas que lhe foram endereçadas a partir de concepções linguísticas concorrentes. As respostas às críticas feitas à sua concepção inatista merecem uma atenção tão especial nesse texto de 1975 que considero-o a melhor referência para discutir este aspecto da linguística chomskyana. Em seu sentido mais profundo, o tom da réplica que emerge do texto se assemelha ao daquela conhecida forma que mistura um pouco de desabafo com uma boa dose de desafio: sou sim, mas quem não é?\n\nInicialmente o tom é de defesa: “nunca usei o termo [teoria das ideias inatas], pois só pode induzir a erro” (Chomsky 1977: 19). Mas logo em seguida vem o contra-ataque: “toda a teoria da aprendizagem que mergeu em minha obra de atenção integra em si uma hipótese de ideias inatas” (Ibid). Note-se em primeiro lugar esse esforço no sentido de definir com exatidão os termos da discussão: é preciso diferenciar uma “teoria das ideias inatas” (que podemos encontrar em Platão, Plotino, Santo Agostinho e mesmo numa certa leitura, tardiamente, equivocada, de Descartes) de uma “hipótese de ideias inatas”. O contra-ataque que segue vem recheado de citações que propõem que mesmo aqueles autores que dão apoio às teorias contrárias ao inatismo, não conseguem coerentemente abandoná-lo. A lista começa com ninguém menos que Aristóteles (a quem muitas vezes se atribui a autoria da divisa nada há no intelecto que não tenha passado pelos sentidos). Diz o nosso autor:\n\nPoderíamos argumentar, na linha traçada por Aristóteles, que o mundo está estruturado de determinada maneira e que a mente humana é capaz de se perceber dessa estrutura, levando-se sucessivamente do particular à espécie, à classe, a um grau cada vez mais amplo de generalização, até atingir o conhecimento dos universais, a partir da percepção do particular. Uma “base de conhecimento pré-existente” é uma condição prévia da aprendizagem. Devemos possuir uma capacidade inata para atingir estados desenvolvidos de conhecimento que não são “nem inatos numa forma determinada, nem desenvolvidos por qualquer outro estado\n\nWORKING PAPERS EM LINGUÍSTICA, UFSC N.6, 2002 mais elevado de conhecimento, mas sim pela percepção sensorial\". Partindo de profundos pressupostos metafísicos, é possível imaginarmos que o espírito, \"construído de modo a ser capaz deste processo de \"indução\", poderia alcançar um profundo sistema de conhecimento. (Chomsky 1977: 11)\n\nOutro grande defensor da divisa anti-inatista é John Locke. Chomsky não o cita, talvez por achar que a resposta que Leibniz Endereça a esse autor seja suficiente para esclarecer qualquer controvérsia: \"nada há no intelecto humano que não tenha passado pelos sentidos, a não ser o próprio intelecto\" (Leibniz 1988: 58): Não cita, mas poderia fazê-lo, o Livro III do Ensaio Acerca do Entendimento Humano explicito: \"o objeto da sensação é uma fonte das ideias\" mas não a única; \"as operações de nossas mentes consistem na outra fonte de ideias\". Assim,\n\nParece-me que o entendimento não tem o menor vislumbre de quaisquer ideias se não as receber de uma das duas fontes. Os objetos externos suprem a mente com as ideias das qualidades sensíveis, que são todas as diferentes percepções produzidas em nós, e a mente supre o entendimento com ideias através de suas próprias operações. (Locke 1978: 160)\n\nÉ o próprio Locke quem mostra o ponto forte de sua crítica. Leibniz não fez mais que apenas enunciá-lo. Ao refutar a forma conteudista do inatismo, Locke, sem se dar conta, fortalece as bases do inatismo formal da tradição racionalista moderna.\nMas toda essa discussão, bem como a invocação de Aristóteles, é apresentada agora no âmbito de uma discussão sobre a capacidade cognitiva humana a partir de uma reflexão sobre o uso da linguagem e, principalmente, sobre as suas origens. Sucumbindo, desde o início da obra, a tentação de encarar a linguagem como um espelho do espírito, Chomsky expressa mais uma vez o seu entusiasmo com a possibilidade que o estudo da linguagem nos dá de descobrirmos princípios abstratos que determinam a sua estrutura e utilização, princípios estes que se apresentam universais por necessidade biológica e não apenas por mera causalidade histórica que provém de características mentais da espécie (Chomsky 1977: 10).\n\nChomsky vai escolher como caminho privilegiado para investigar as capacidades cognitivas humanas: o estudo de sua origem no indivíduo (o estudo de sua ontogênese, poderíamos dizer, ou ainda, de sua aprendizagem). E para investigar a origem das capacidades cognitivas em sua totalidade, propõe que investiguemos uma delas em particular, a linguagem, mantendo a expectativa de futuramente podermos estender às demais faculdades os avanços alcançados neste domínio específico.\nO inatismo ressurgem, então, não a partir de uma discussão filosófica, mas a partir da necessidade de se formular hipóteses empíricas frutíferas para a investigação científica dos mecanismos de uso da linguagem e de sua aquisição. A questão é deslocada para a elaboração de uma teoria da aprendizagem. Assim, a questão não é se a aprendizagem pressupõe uma estrutura inata \"evidente que pressupõe; nunca isso foi posto em causa\" mas sim o que são essas estruturas inatas em determinados campos (Chomsky 1977:20).\n\nEstas estruturas são consideradas não como algo transcendente, essencialmente misterioso, mas sim como algo submetido às mesmas leis que regem todos os fenômenos naturais. Segundo Chomsky, a lingüística não é uma ciência diferente de qualquer outra. Pode-se dizer, por exemplo, que \"existe uma similaridade entre a química, a biologia, a geologia e a lingüística ou qualquer outra ciência\". A diferença é que elas estão estudando diferentes sistemas específicos\" (Chomsky 1997).\nEssa especificidade do sistema investigado pela lingüística traz certas implicações e certas limitações metodológicas. Em primeiro lugar, tem-se o fato de que as estruturas ligadas às capacidades cognitivas evoluem durante a vida dos indivíduos, em função dos estímulos recebidos. Além disso, não é possível, pelo menos até agora, determinar com exatidão o grau de desenvolvimento alcançado por um indivíduo num determinado momento. E, mais ainda, não sabemos quais os mecanismos cerebrais associados às capacidades cognitivas e temos ainda poucos meios de investigá-los, seja por questões técnicas, seja por questões éticas que impedem a realização de experimentos cruciais com seres humanos. Chomsky lembra também que, no caso de outras capacidades cognitivas (por exemplo, o sistema visual), é um pouco mais fácil desenvolver pesquisas na medida em que se pode fazer analogias com estudos feitos com outros organismos (gatos, macacos, etc.) em que tal capacidade esteja, ao menos aparentemente, estruturada de forma semelhante aos seres humanos. Mas isso não é possível em relação à linguagem, dado que esta capacidade é exclusivamente humana.\nTudo isso leva Chomsky a argumentar que\n\nno caso do conhecimento humano, é o estudo das estruturas cognitivas básicas no âmbito da capacidade cognitiva, o seu desenvolvimento e utilização, que, na minha opinião, deveria ser prioritário, se quiséssemos alcançar um conhecimento profundo da mente e das suas realizações (Chomsky 1997: 34).\n\nEm outras palavras, se assumimos a postura científica de investigar a capacidade cognitiva humana, a melhor saída é investigar primeiramente qual a estrutura fundamental dessa capacidade ou, usando a terminologia de Locke, investigar em que consistem as operações de nossas mentes; ou, usando uma terminologia comum nos textos de Chomsky, investigar qual é o estágio inicial dessas faculdades. Uma vez que o problema tenha sido formulado nestes termos, o modus operandi científico é a formulação de uma hipótese experimental a respeito desse estágio inicial. A hipótese proposta por Chomsky é a de que o conjunto das capacidades cognitivas humanas possui uma estrutura fundamental determinada biologicamente. Essa, no entanto, não é uma boa hipótese científica devido a sua extensão: não sabemos exatamente quantas e quais sejam essas capacidades. Tal hipótese, apesar de seu valor heurístico, Chomsky e o Inatismo Cartesiano - 25\n\né irrefutável. Por outro lado, se o problema é apenas o escopo da hipótese que se estende a domínios imprecisamente estabelecidos, tem-se como uma alternativa viável restringir tal escopo a uma capacidade particular. É justamente essa a postura assumida por Chomsky ao formular a hipótese referindo-se especificamente à capacidade lingüística através da postulação de uma \"gramática universal\" (GU). Tal hipótese consiste em assumir, conjecturalmente, a existência de um \"sistema de princípios, condições e regras que constituem elementos ou características de todas as linguagens humanas não apenas por acaso, mas por necessidade [...] invariavelmente para todos os seres humanos\" (Chomsky 1997: 36).\n\nEsta sim é uma hipótese legitimamente científica uma vez que cria condições de verificação e de refutação. O que temos em Chomsky, portanto é uma versão do inatismo que não é dogmática mas tão somente hipotética. Uma versão científica10 do inatismo. Assim,\n\n[a] hipótese das ideias inatas pode, pois, ser formulada da seguinte maneira: a teoria lingüística, a teoria da GU, elaborada do modo acima delineado, é uma característica inata da mente humana. Em princípio, deveríamos poder descrevê-la em termos de biologia humana (Chomsky 1977: 41).\n\nNão obstante, parece que nunca é demais lembrar que não se está propondo, sequer hipoteticamente, a existência de conhecimentos inatos acerca do mundo. O que hipoteticamente é considerado inato é o conjunto de princípios fundamentais a partir dos quais se pode adquirir o uso da linguagem. Não são idéiasse sim regras, não qualquer regra, mas regras muito elementares, tão elementares que podem subjazer a gramáticas muito diferentes, a línguas muito distintas. Essas regras sequer podem ser regras gramaticais de fato; são antes regras metagramaticais: uma gramática \"é um sistema de regras e princípios que determinam as características formais e semânticas de frases\" (Chomsky 1977: 35) já a gramática universal \"é um esquematismo que determina a forma e o caráter de gramáticas e os princípios pelos quais as gramáticas se regem\" (Ibid. p. 236).\n\nWORKING PAPERS EM LINGUÍSTICA, UFSC, n.6, 2002 7. Conclusão\n\nPodemos perceber, ao longo deste artigo, que a relação de Chomsky com o inatismo não é simplesmente a de uma adesão a uma teoria filosófica anacrônica, mas sim fruto de uma tentativa de fundamentar epistemologicamente de forma mais adequada e produtiva a ciência da linguagem. Para isso, o linguísta norte-americano rompe com o preconceito quase universal em relação a essa perspectiva filosófica ao mesmo tempo em que se esforça em reelaborá-la em consonância com as exigências da mentalidade científica contemporânea.\n\nChomsky argumenta que, na maioria das vezes, a tão criticada doutrina inatista não passa de uma versão deturpada, simplista, parcial e às vezes até mesmo panfletária, feita pelos seus adversários ou pelo senso comum.\n\nApesar disso, ao mesmo tempo em que assume uma postura inatista, Chomsky pretende filiar-se à tradição cartesiana, o que é questionável pois, como vimos, os argumentos assumidos por Chomsky incluem, além de Descartes, vários outros pensadores, alguns dos quais assumidamente anti-cartesianos. Mesmo assim, sabe-se que Chomsky defende a cartesianidade do seu inatismo. Tal defesa merece ser melhor discutida em um trabalho posterior, específico sobre o tema.\n\nPor fim, o que fica evidente é que o inatismo, longe de ser uma perspectiva epistemológica morta e enterrada, reaparece no final do séc. XX e adentra o séc. XXI com vitalidade e força para travar batalha contra suas concorrentes.\n\nReferências Bibliográficas\n\nABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Lisboa: Editorial Presença, 1982.\n\nBRÉHIER, Émile. História da filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1979 [1938].\n\nWORKING PAPERS EM LINGUÍSTICA, UFSC, n.6, 2002 CHAUÍ, Marilena. Leibniz - vida e obra. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988.\n\nCHOMSKY, Noam. Lingüística cartesiana: un capítulo de la historia del pensamiento racionalista. Madrid: Editorial Gredos, 1969 [1966].\n\nCHOMSKY, Noam. Linguagem e pensamento. Petrópolis: Vozes, 1971 [1968].\n\nCHOMSKY, Noam. Reflexões sobre a linguagem. Lisboa: Edições 70, 1977 [1975]\n\nCHOMSKY, Noam. 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Teoria do Conhecimento, p.65.\n2 Pelos historiadores da filosofia citados (Bréhier, Koyré, Lebrun) e por vários outros comentadores de renome.\n\nWORKING PAPERS EM LINGÜÍSTICA, UFSC, n.6, 2002 Chomsky e o Inatismo Cartesiano - 29\n\n3 No trecho em itálico, Chomsky está citando Cudwort (True Intellectual System of the Universe) apud A. O. Lovejoy (Kant and the English Platonists).\n4 Esta é uma das mais conhecidas frases de Kant.\n5 Note-se aqui, também, uma antecipação da afirmação kantiana: “Necessidade e universalidade rigorosa são, portanto, seguras características de um conhecimento a priori” (Kant 1983: 24).\n6 Também chamada de fase crítica. A denominação se deve à decisão de fazer uma crítica das condições de possibilidade de termos conhecimentos. Nesse período, as principais obras de Kant trazem no próprio título a marca dessa decisão: Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática Crítica do Juízo\n\n7 A tabela das categorias contém os seguintes títulos e respectivos conceitos puros: 1. da quantidade (unidade, pluralidade, totalidade), 2. da qualidade (realidade, negação, limitação), 3. da relação (inércia e substancialidade; causalidade e dependência; comunidade); 4. da modalidade (possibilidade; existência; necessidade). (Kant 1983:74).\n8 A tabela dos juízos contém os seguintes títulos e respectivas formas de juízo: 1. Quantidade dos juízos (universais; particulares; singulares); 2. Qualidade (afirmativas; negativas; infinitos); 3. Relação (categorias; hipotéticos; disjuntivos); 4. Modalidade (problemas; assertores, apodíticos). (cf. Kant op. cit. p. 69).\n\n9 Os passages entre estas estão referenciadas aos Analíticos Posteriores de Aristóteles.\n10 Entendendo a nocão de cientificidade em sua acepção contemporânea, referindo-se a hipóteses experimentais significativas que restam a testes, e não a algo “provado”.\n\nWORKING PAPERS EM LINGÜÍSTICA, UFSC, n.6, 2002