·
Cursos Gerais ·
Linguística
Send your question to AI and receive an answer instantly
Preview text
Um lindo livro de memórias que evoca as grandes obras de Anne Frank e Viktor Frankl Muito mais que um livro uma obra de arte Adam Grant autor de Originais EDITH EVA EGER A BAILARINA DE AUSCHWITZ SEXTANTE A BAILARINA DE AUSCHWITZ EDITH EVA EGER A BAILARINA DE AUSCHWITZ SEXTANTE Título original The Choice Copyright 2017 por Dr Edith Eger Copyright da tradução 2019 por GMT Editores Ltda Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores tradução Débora Chaves preparo de originais Olga de Mello revisão Ana Grillo e Rebeca Bolite projeto gráfico e diagramação Valéria Teixeira capa Barbara van Ruyven bij Barbara adaptação de capa Ana Paula Daudt Brandão imagens de capa flor Shutterstock arame farpado Plainpicture foto da autora Jordan Engle adaptação para ebook Marcelo Morais CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ E28b Eger Edith Eva A bailarina de Auschwitz recurso eletrônico Edith Eva Eger tradução de Débora Chaves Rio de Janeiro Sextante 2019 recurso digital Tradução de The choice Formato ePub Requisitos do sistema Adobe Digital Editions Modo de acesso World Wide Web ISBN 9788543107257 recurso eletrônico 1 Eger Edith Eva 2 Holocausto judeu 19391945 Narrativas pessoais 3 Holocausto Sobreviventes História 4 Auschwitz Campo de concentração 5 Livros eletrônicos I Chaves Débora II Título 1954870 CDD 9405318 CDU 9410019391945 Todos os direitos reservados no Brasil por GMT Editores Ltda Rua Voluntários da Pátria 45 Gr 1404 Botafogo 22270000 Rio de Janeiro RJ Tel 21 25384100 Fax 21 22869244 Email atendimentosextantecombr wwwsextantecombr PARA AS CINCO GERAÇÕES DA MINHA FAMÍLIA PARA MEU PAI LAJOS QUE ME ENSINOU A SORRIR PARA MINHA MÃE ILONA QUE ME AJUDOU A ENCONTRAR O QUE EU PRECISAVA INTERNAMENTE PARA MINHAS LINDAS E EXTRAORDINÁRIAS IRMÃS MAGDA E KLARA PARA MEUS FILHOS MARIANNE AUDREY E JOHN PARA MEUS NETOS LINDSEY JORDAN RACHEL DAVID E ASHLEY E MEUS BISNETOS SILAS GRAHAM E HALE Sumário Prefácio de Philip Zimbardo PhD Parte I PRISÃO Introdução Eu tinha um segredo que me aprisionava Capítulo 1 As quatro perguntas Capítulo 2 O que você coloca em sua mente Capítulo 3 Dançando no inferno Capítulo 4 Fazendo estrelas Capítulo 5 Os degraus da morte Capítulo 6 Escolhendo uma folha de grama Parte II FUGA Capítulo 7 Meu libertador meu agressor Capítulo 8 Pela janela Capítulo 9 Ano que vem em Jerusalém Capítulo 10 Fuga Parte III LIBERDADE Capítulo 11 O dia da imigração Capítulo 12 Greener Capítulo 13 Você esteve lá Capítulo 14 De um sobrevivente para outro Capítulo 15 O que a vida esperava Capítulo 16 A escolha Capítulo 17 Então Hitler ganhou Capítulo 18 A cama de Goebbels Capítulo 19 Deixe uma pedra Parte IV CURA Capítulo 20 A dança da liberdade Capítulo 21 A garota sem mãos Capítulo 22 De alguma forma as águas se abrem Capítulo 23 O dia da libertação Agradecimentos Sobre a autora Informações sobre a Sextante Prefácio Por Philip Zimbardo PhD Numa primavera a convite do psiquiatrachefe da Marinha dos Estados Unidos a Dra Edith Eva Eger embarcou num avião de combate sem janelas para um dos maiores navios de guerra do mundo o portaaviões USS Nimitz fundeado ao largo da costa da Califórnia O avião desceu em direção a uma pista curta de 150 metros e aterrissou com o solavanco do gancho de retenção da cauda se encaixando no cabo de travamento que o impediu de cair no oceano Única mulher a bordo a Dra Eger foi acomodada na cabine do capitão Qual era sua missão Ela estava lá para ensinar cinco mil jovens marinheiros a lidar com a adversidade o trauma e o caos da guerra Em incontáveis ocasiões a Dra Eger foi a especialista clínica designada para tratar dos soldados incluindo os das Forças de Operações Especiais que sofriam de transtorno de estresse póstraumático e lesões cerebrais Antes de conhecer a Dra Eger pessoalmente telefonei para convidála a fazer uma palestra no curso de Psicologia do Controle da Mente ministrado por mim em Stanford Sua idade e seu tom de voz me levaram a imaginar uma vovozinha do Velho Mundo com um lenço amarrado na cabeça por um laçarote embaixo do queixo Quando ela se dirigiu a meus alunos percebi seu poder de cura Com um sorriso radiante brincos brilhantes cabelos dourados vestindo Chanel da cabeça aos pés conforme minha esposa me contou depois ela descreveu tenebrosas e angustiantes histórias de sobrevivência nos campos de extermínio nazistas de maneira bemhumorada exalando uma presença que só consigo descrever como pura luz A vida da Dra Eger foi pontuada por tragédias Ela foi presa em Auschwitz quando era apenas uma adolescente Apesar da tortura da fome e da constante ameaça de morte conservou a liberdade mental e espiritual Não se deixou abater pelos horrores que sofreu e saiu fortalecida pela experiência Na realidade sua sabedoria é resultado dos episódios mais traumáticos que viveu Ela é capaz de ajudar outras pessoas a se recuperar porque conseguiu passar sozinha do trauma à vitória Ela descobriu como usar sua experiência com a crueldade humana para levar aos outros a chance de encontrar a própria luz Seus ensinamentos já ajudaram militares como aqueles a bordo do USS Nimitz casais tentando reencontrar a intimidade pessoas que foram negligenciadas agredidas que são viciadas ou doentes que perderam entes queridos ou simplesmente a esperança E podem ajudar a todos nós que enfrentamos diariamente as decepções e os desafios da vida Sua mensagem nos inspira a fazer nossas próprias escolhas e a nos libertar do sofrimento No fim da palestra todos os meus trezentos alunos se levantaram espontaneamente para aplaudir Depois pelo menos cem jovens lotaram o pequeno palco esperando sua vez para agradecer e abraçar essa mulher extraordinária Em todas as minhas décadas como professor nunca vi um grupo de estudantes tão entusiasmado Ao longo dos vinte anos em que eu e Edie trabalhamos e viajamos juntos essa é a reação que me acostumei a testemunhar de cada público ao qual ela se dirige Desde um encontro motivacional em uma cidade de Michigan nos Estados Unidos quando conversamos com um grupo de jovens que enfrenta pobreza desemprego e um conflito racial crescente até Budapeste na Hungria local em que muitos de seus parentes morreram e onde ela falou para centenas de pessoas que tentavam se recuperar de um passado doloroso eu vi isso acontecer repetidas vezes as pessoas se transformam na presença de Edie Neste livro a Dra Eger mistura histórias de transformação dos pacientes com sua marcante experiência em Auschwitz Mas não foi apenas sua história dramática e arrebatadora que me fez querer compartilhar este livro com o mundo Foi sim o fato de Edie usar suas experiências para ajudar as pessoas a descobrir a própria liberdade Nesse sentido seu livro vai muito além de uma memória do Holocausto por mais importantes que esses relatos sejam para relembrarmos o passado Seu objetivo é ajudar cada um de nós a escapar da prisão da própria mente De certa forma todos somos prisioneiros e a missão de Edie é nos ajudar a entender que assim como agimos como nossos próprios carcereiros também podemos nos tornar nossos próprios libertadores Quando é apresentada ao público jovem muitas vezes Edie é chamada de a Anne Frank que não morreu porque ambas tinham origem e idade parecidas quando foram deportadas para os campos de concentração As duas jovens encarnam a inocência e a solidariedade que nos fazem acreditar na bondade intrínseca do ser humano a despeito da crueldade e da perseguição a que foram submetidas Obviamente no momento em que Anne Frank escreveu seu diário ela ainda não tinha passado pela dureza dos campos o que torna as observações de Edie como sobrevivente e psicóloga clínica e ótima avó especialmente emocionantes e convincentes Assim como outros livros importantes sobre o Holocausto este mostra tanto o poder da maldade quanto a força indomável do espírito humano diante dela Mas ele vai além Talvez o melhor livro para comparar com o de Edie seja outra memória do Holocausto o brilhante clássico de Viktor Frankl Em busca de sentido A Dra Eger compartilha o profundo conhecimento da humanidade de Frankl mas acrescenta o entusiasmo e a intimidade de uma vida como psicóloga clínica Frankl apresentou a psicologia dos prisioneiros que estavam com ele em Auschwitz A Dr Eger nos oferece a psicologia da liberdade Em meu trabalho estudei por muito tempo os fundamentos psicológicos das formas negativas de influência do meio social sobre o indivíduo Procurei entender os mecanismos através dos quais nos conformamos obedecemos e resistimos em situações em que a paz e a justiça só podem ser atingidas se escolhermos o caminho da ação heroica Edie me ajudou a descobrir que o heroísmo não é privilégio apenas daqueles que realizam façanhas extraordinárias ou que assumem riscos para proteger a si mesmos e aos outros embora ela tenha feito as duas coisas Mais que isso o heroísmo é uma mentalidade ou o acúmulo de nossos hábitos pessoais e sociais É um jeito de ser Um jeito especial de ver a si mesmo Ser herói pressupõe agir decisivamente nos momentos críticos da vida tentar resolver as injustiças ou criar uma mudança positiva no mundo Ser herói também exige grande coragem moral Cada um de nós tem um herói interior esperando para ser revelado Somos todos heróis em desenvolvimento Nosso treinamento para o heroísmo é a vida as circunstâncias cotidianas que nos convidam a cultivar os seguintes hábitos realizar ações de bondade diariamente demonstrar compaixão começando com a autocompaixão revelar o melhor dos outros e de nós mesmos conservar o amor inclusive nos relacionamentos mais desafiadores e celebrar e exercitar o poder de nossa liberdade mental Edie é duplamente heroína porque ensina as pessoas a amadurecer e a criar mudanças significativas e duradouras em si mesmas em seus relacionamentos e no mundo Há dois anos Edie e eu viajamos para Budapeste cidade onde a irmã dela morava quando os nazistas começaram a prender os judeus húngaros Visitamos uma sinagoga que havia no pátio de um memorial do Holocausto com paredes cobertas por uma lona com fotografias de antes durante e depois da guerra Fomos ver o memorial Sapatos às margens do Danúbio a exposição permanente de esculturas de sapatos instaladas numa das margens do rio Danúbio em homenagem aos judeus inclusive alguns familiares de Edie assassinados por militantes do Partido da Cruz Flechada um grupo húngaro de inspiração nazista durante a Segunda Guerra Mundial Obrigadas a ficar em pé na beira do rio e a tirar os sapatos seus bens mais valiosos elas eram baleadas e seus corpos jogados na água para serem levados pela correnteza O passado parecia palpável Ao longo do dia Edie foi ficando cada vez mais quieta Eu me perguntei se ela teria dificuldade em falar para um público de seiscentas pessoas naquela noite depois de uma jornada emocional que certamente havia revolvido memórias dolorosas Mas quando ela subiu ao palco não falou sobre o medo o trauma ou o horror que nossa visita provavelmente reavivou Optou por contar uma história de bondade uma ação de heroísmo diário que como ela nos relembrou acontece mesmo no inferno Não é incrível que o pior revele o que temos de melhor refletiu ela No fim do discurso que ela concluiu com seu tradicional passo de balé o grand battement Edie convidou Ok agora todo mundo dançando A plateia inteira se levantou Centenas de pessoas se dirigiram ao palco Não havia música mas todos nós dançamos Dançamos e cantamos e rimos e nos abraçamos numa inesquecível celebração da vida A Dra Eger é hoje uma das poucas pessoas vivas que sentiram na pele os horrores dos campos de concentração Seu livro relata o inferno e o trauma que ela e outros sobreviventes enfrentaram durante e após a guerra O livro é também uma mensagem universal de esperança e de possibilidade para todos os que estão tentando se libertar da dor e do sofrimento Sejam os que estão presos em casamentos ruins em famílias destrutivas em trabalhos que odeiam ou em suas próprias mentes os leitores descobrirão que é possível abraçar a alegria e a liberdade independentemente das circunstâncias A bailarina de Auschwitz é uma crônica extraordinária sobre heroísmo e cura resistência e compaixão sobrevivência com dignidade resistência mental e coragem moral Todos nós podemos aprender a curar nossa vida por meio do relato inspirador da Dra Eger e sua impressionante história pessoal SÃO FRANCISCO CALIFÓRNIA JANEIRO DE 2017 Psicólogo e professor emérito da Universidade de Stanford Philip Zimbardo é o criador do famoso experimento de aprisionamento de Stanford 1971 e autor de muitos livros relevantes incluindo O efeito Lúcifer Como pessoas boas se tornam más 2007 bestseller da lista do The New York Times e vencedor do prêmio literário William James como melhor livro de psicologia Ele é fundador e presidente do projeto Imaginação Heroica PARTE I PRISÃO I N T R O D U Ç Ã O Eu tinha um segredo que me aprisionava Eu não sabia da arma carregada escondida sob a camisa mas no momento em que o capitão Jason Fuller entrou em meu consultório em El Paso num dia de verão de 1980 senti um aperto no estômago e uma fisgada na nuca A guerra tinha me ensinado a perceber o perigo antes mesmo que eu fosse capaz de explicar por que estava com medo Jason era alto tinha o físico magro de um atleta mas seu corpo era tão rígido que ele mais parecia um pedaço de madeira do que um ser humano Seus olhos azuis eram distantes o queixo era duro e ele não falava ou não conseguia falar Eu o encaminhei para o sofá branco onde ele se sentou reto com as mãos nos joelhos Eu não conhecia Jason e não tinha ideia do que havia desencadeado seu estado catatônico Seu corpo estava próximo o suficiente para ser tocado e sua angústia era quase palpável mas ele estava longe perdido Nem parecia notar Tess minha cachorrinha poodle cinza que continuava parada atenta perto da mesa como uma segunda estátua viva na sala Respirei fundo e procurei uma maneira de começar Às vezes começo a primeira sessão com o paciente me apresentando e contando um pouco da minha história e da abordagem que utilizo Às vezes pulo direto para a parte de identificar e investigar os sentimentos que trouxeram o paciente ao meu consultório Com Jason parecia essencial não pressionar com informações demais ou pedir que ficasse vulnerável Ele estava completamente travado Eu precisava encontrar uma maneira de lhe oferecer a segurança de que ele precisava para arriscarse a me mostrar o que mantinha tão fortemente guardado Eu precisava prestar atenção ao sistema de alerta do meu corpo sem deixar meu senso de perigo encobrir a obrigação de perguntar Como posso ser útil Ele não respondeu Nem sequer piscou Ele me lembrava um personagem que havia sido transformado em pedra Que feitiço poderia libertálo Por que agora perguntei Essa era a minha arma secreta A pergunta que sempre faço a meus pacientes na primeira visita Preciso saber por que eles estão motivados a mudar Por que hoje entre todos os dias eles querem começar a trabalhar comigo Por que hoje é diferente de ontem da semana passada ou do ano passado Por que é diferente de amanhã Às vezes a dor nos empurra e às vezes a esperança nos puxa Perguntar Por que agora não é apenas fazer uma pergunta é perguntar tudo Um dos olhos dele se fechou momentaneamente mas ele não disse nada Conteme por que está aqui tentei novamente Ele continuou mudo Senti meu corpo ficar tenso e ser tomado por uma onda de incerteza e pela consciência das tênues e decisivas encruzilhadas onde nos encontrávamos dois seres humanos cara a cara ambos vulneráveis ambos correndo riscos enquanto nos esforçávamos para dar nome à angústia e descobrir sua cura Jason não havia chegado com uma indicação oficial Aparentemente viera ao meu consultório por conta própria Mas eu sabia por experiência pessoal e clínica que mesmo quando a pessoa decide se curar pode permanecer travada durante anos Considerando a gravidade dos sintomas que ele exibia se eu não fosse capaz de fazêlo falar minha única alternativa seria recomendálo a meu colega o psiquiatra chefe do Centro Médico do Exército William Beaumont onde fiz meu doutorado O Dr Harold Kolmer diagnosticaria a catatonia de Jason o internaria e provavelmente receitaria um medicamento antipsicótico como o Haldol Imaginei Jason numa camisola de hospital os olhos ainda vidrados e o corpo naquele momento tão tenso retorcendose em convulsões devido aos espasmos musculares muitas vezes provocados pelos remédios prescritos para controlar a psicose Confio totalmente no conhecimento de meus colegas psiquiatras e sou grata aos medicamentos que salvam vidas mas não gosto de pular direto para a internação se houver qualquer chance de sucesso com uma intervenção terapêutica Eu temia que se recomendasse internação e medicação para Jason sem primeiro explorar outras opções ele trocaria um tipo de entorpecimento por outro Os membros paralisados ganhariam movimentos involuntários da discinesia uma espécie de dança descoordenada de tiques e movimentos repetitivos que acontece quando o sistema nervoso envia o sinal para o corpo se mover sem a permissão da mente O sofrimento dele não importava a causa poderia ser silenciado mas não resolvido pelas drogas Talvez ele viesse a se sentir melhor ou sentir menos o que muitas vezes confundimos com a sensação de melhorar mas não ficaria curado E agora Eu pensava enquanto os minutos se arrastavam pesados e Jason continuava sentado estático em meu sofá Ele estava ali porque queria mas ainda assim permanecia aprisionado Eu tinha apenas uma hora Uma oportunidade Conseguiria fazêlo se abrir Conseguiria ajudálo a anular o potencial violento que eu sentia tão vividamente como o vento do arcondicionado na minha pele Conseguiria mostrar para ele que quaisquer que fossem seu problema e sua dor ele já possuía a chave para a própria liberdade Na época eu não tinha como saber que se fracassasse em fazer Jason falar naquele dia um destino bem pior do que um quarto de hospital o aguardava uma vida em uma prisão de verdade provavelmente no corredor da morte Na época eu só sabia que precisava tentar Enquanto analisava Jason entendi que para alcançálo não poderia apelar para os sentimentos Devia usar uma linguagem mais confortável e familiar para alguém das Forças Armadas Eu devia dar ordens Minha única esperança de destraválo era fazer com que o sangue circulasse pelo seu corpo Vamos dar uma caminhada falei Não perguntei Dei a ordem Capitão vamos levar Tess ao parque Agora Jason pareceu entrar em pânico por um momento Lá estava uma mulher uma estranha falando com um pesado sotaque húngaro e dizendo a ele o que fazer Vi que ele olhou ao redor como se estivesse pensando Como faço para sair daqui Mas ele era um bom soldado Ficou de pé Sim senhora respondeu Sim senhora Logo eu descobriria a origem do trauma de Jason e ele descobriria que apesar de nossas óbvias diferenças tínhamos muita coisa em comum Ambos conhecíamos a violência E ambos sabíamos como era ficar paralisado Eu também carregava uma ferida dentro de mim uma tristeza tão profunda que por muitos anos não fora capaz de falar a respeito com ninguém O passado ainda me assombrava uma sensação de atordoamento e ansiedade sempre surgia quando eu ouvia sirenes passos pesados ou homens gritando Isso eu aprendera é o trauma A sensação quase permanente no estômago de que alguma coisa está errada ou de que algo terrível está para acontecer faz as respostas automáticas do medo em meu corpo me dizerem para fugir me proteger me esconder do perigo que está em toda parte Meu trauma pode ainda aparecer em situações prosaicas Uma visão súbita ou um cheiro específico têm o poder de me transportar de volta para o passado No dia em que conheci o capitão Fuller fazia mais de trinta anos que eu tinha sido libertada dos campos de concentração do Holocausto Hoje mais de setenta anos se passaram O que aconteceu não pode ser esquecido muito menos mudado Porém ao longo do tempo aprendi que posso escolher como reagir ao passado Posso me sentir triste ou esperançosa posso ficar deprimida ou feliz Sempre temos essa escolha essa oportunidade de controle Estou aqui isso é agora aprendi a repetir para mim mesma sem parar até o pânico começar a diminuir O senso comum diz que se uma coisa incomoda ou provoca ansiedade você simplesmente não deve olhar para ela Não deve encarála Portanto temos o hábito de fugir dos traumas do passado das dificuldades dos conflitos e dos desconfortos Durante grande parte da minha vida adulta eu achei que minha sobrevivência no presente dependia de manter afastados o passado e o sofrimento que ele provocava Em meus primeiros anos como imigrante em Baltimore nos Estados Unidos nos anos 1950 eu nem sequer sabia como pronunciar Auschwitz em inglês Não que eu quisesse contar que estive lá Eu não queria que ninguém sentisse pena de mim Não queria que ninguém soubesse Eu queria falar inglês sem sotaque e me esconder do passado Na ânsia de me integrar e com medo de ser engolida pelos meus traumas me esforcei bastante para manter minha dor em segredo Eu ainda não tinha percebido que meu silêncio e meu desejo de aceitação ambos baseados no medo eram maneiras de fugir de mim mesma Nem que ao escolher não enfrentar diretamente a mim ou ao passado eu ainda escolhia não ser livre mesmo décadas depois de meu encarceramento Eu tinha um segredo que me aprisionava O capitão do Exército catatônico sentado imóvel no meu sofá me lembrou de algo que eu descobrira com o tempo que quando obrigamos nossas verdades e histórias a se esconderem os segredos podem se tornar o próprio trauma a própria prisão Longe de diminuir a dor o que nos recusamos a aceitar se torna tão intransponível quanto as paredes de tijolos e barras de aço Quando não nos permitimos sofrer por nossas perdas feridas e decepções estamos condenados a revivêlas A liberdade está em aprender a aceitar o que aconteceu Liberdade significa reunir coragem para desmantelar a prisão tijolo por tijolo Coisas ruins acontecem com todo mundo Não podemos mudar isso Se olharmos para a nossa certidão de nascimento por acaso lá está escrito que a vida será fácil Não mas muitas pessoas permanecem presas em um trauma ou dor incapazes de viver de maneira plena Isso no entanto é possível mudar Recentemente no Aeroporto de Nova York enquanto esperava meu voo de volta para casa em San Diego fiquei sentada analisando os rostos de cada estranho que passava O que vi me emocionou profundamente Vi tédio fúria tensão preocupação confusão desânimo decepção tristeza e o mais preocupante vazio Fiquei muito triste ao notar tão pouca alegria naqueles rostos Mesmo os momentos mais maçantes da vida são oportunidades para sentir esperança leveza felicidade A rotina faz parte da vida assim como o sofrimento e o estresse Por que algumas vezes nos esforçamos para nos sentirmos vivos e outras nos distanciamos da sensação de viver plenamente Por que é tão desafiador trazer vida para a vida Se você me perguntasse qual é o diagnóstico mais comum entre as pessoas que atendo eu não diria depressão ou transtorno de estresse póstraumático embora essas doenças sejam bastante recorrentes entre aqueles que conheço amo e oriento para a liberdade Eu diria que é a fome Temos fome Fome de aprovação de atenção de afeição Temos fome de liberdade para aceitar a vida e para realmente nos conhecermos e sermos nós mesmos Minha própria busca pela liberdade e meus anos de experiência como psicóloga clínica me ensinaram que o sofrimento é universal mas que o complexo de vítima é opcional Existe uma diferença entre ser vítima e assumir o papel de vítima Somos todos suscetíveis a nos tornar vítimas de alguma maneira Todos sofreremos algum tipo de aflição desgraça ou abuso causado por pessoas ou circunstâncias sobre as quais não temos controle Isso é ser vítima É algo que vem de fora É o valentão da escola o chefe furioso a esposa que agride o amante que trai a lei que discrimina o acidente que o leva para o hospital Em contrapartida o complexo de vítima vem de dentro Ninguém pode fazer você se sentir inferior a não ser você mesmo Nós nos tornamos vítimas não pelo que acontece conosco mas quando escolhemos nos agarrar ao sofrimento Desenvolvemos uma forma de pensar e de agir que é rígida culpada pessimista presa ao passado rancorosa punitiva e sem limites saudáveis Nós nos tornamos nossos próprios carcereiros quando escolhemos ficar confinados ao papel de vítima Quero deixar uma coisa bem clara Quando falo de vítimas e sobreviventes não estou culpando as vítimas muitas jamais tiveram chance de se defender Nunca poderia culpar aqueles que foram enviados para as câmaras de gás que morreram de fome ou mesmo os que correram na direção da cerca elétrica de arame farpado Sofro por todas as pessoas que são condenadas à violência e à destruição todos os dias E vivo para orientar os outros a se fortalecerem diante das adversidades da vida Também quero dizer que não existe uma hierarquia do sofrimento Não há nada que torne a minha dor maior ou menor que a sua nenhum gráfico no qual possamos registrar a importância relativa de uma dor sobre a outra As pessoas me dizem As coisas na minha vida estão muito difíceis agora mas não tenho o direito de reclamar não é Auschwitz Esse tipo de comparação pode nos levar a minimizar ou depreciar nosso sofrimento Ser um sobrevivente exige aceitação total do que aconteceu Menosprezar sua dor ou se punir porque se sente perdido isolado ou assustado com os desafios da vida por mais insignificantes que esses desafios pareçam para os outros também é escolher bancar a vítima Ao fazer isso não estamos vendo nossas opções Estamos nos julgando Não quero que você leia minha história e diga Meu sofrimento é menos importante Quero que você afirme Se você pode fazer isso eu também posso Certa manhã eu atendi a duas pacientes uma logo depois da outra As duas eram mães na faixa dos 40 anos A primeira tinha uma filha hemofílica que estava morrendo Ela passou a maior parte da consulta chorando e perguntando como Deus poderia tirar a vida da sua menina Sinto muito por aquela mulher que se dedicou totalmente a cuidar da filha e estava arrasada com a perda iminente Ela sentia raiva sofria e não sabia se conseguiria sobreviver àquela dor A paciente seguinte tinha acabado de chegar do clube não do hospital Ela também passou a maior parte da consulta chorando Estava chateada porque acabara de receber seu Cadillac novo e o carro tinha vindo no tom errado de amarelo Aparentemente seu problema era banal principalmente se comparado ao da outra paciente angustiada com a filha à beira da morte Mas eu a conhecia suficientemente bem para entender que suas lágrimas de decepção pela cor do carro eram na realidade lágrimas de decepção em relação a coisas mais importantes que não estavam acontecendo do jeito que ela esperava a solidão no casamento o filho que tinha sido expulso de mais uma escola as aspirações profissionais que ela abandonara para estar mais disponível para o marido e o filho Muitas vezes os pequenos aborrecimentos da vida simbolizam perdas maiores e as aflições aparentemente insignificantes representam sofrimentos mais intensos Percebi naquele dia quanto as duas pacientes que pareciam tão diferentes tinham em comum uma com a outra e com todas as pessoas em toda parte As duas estavam reagindo a situações que não podiam controlar e que haviam destruído suas expectativas Ambas lutavam e sofriam por algo que não era o que queriam ou esperavam que fosse estavam tentando conciliar o que era com o que deveria ser A dor de cada uma era real Cada mulher estava presa em seu drama que conhecemos quando nos encontramos em situações imprevistas as quais não nos sentimos preparados para enfrentar As duas mulheres mereciam minha compaixão As duas tinham tudo para se curar As duas como todos nós podiam escolher as atitudes e ações capazes de transformálas de vítimas em sobreviventes mesmo que as circunstâncias que enfrentavam não mudassem Sobreviventes não têm tempo para perguntar Por que eu Para os sobreviventes a única pergunta relevante é E agora Esteja você no início no meio do caminho ou no outono de sua vida quer tenha experimentado o sofrimento profundo ou esteja apenas começando a enfrentar dificuldades esteja se apaixonando pela primeira vez ou perdendo seu parceiro de vida para a velhice esteja se curando de uma situação transformadora ou em busca de pequenos ajustes que poderiam trazer mais alegria para sua vida eu adoraria ajudálo a descobrir como escapar do campo de concentração de sua mente e a se tornar a pessoa que deveria ser Eu adoraria ajudar você a se libertar do passado dos fracassos e dos medos da raiva e dos erros do arrependimento e do sofrimento sem solução e ter a liberdade de aproveitar a festa da vida em sua plenitude Não há como escolher viver livre de dor mas podemos escolher ser livres nos libertar do passado e aceitar o possível Convido você a escolher ser livre Como a chalá um pão típico judaico que minha mãe costumava fazer para nossa refeição de sextafeira à noite este livro é uma trança formada pela minha história de sobrevivência pela minha trajetória de cura e pelos casos de pessoas queridas que tive o privilégio de orientar Transmiti minha experiência da melhor forma que consegui lembrar As histórias dos pacientes refletem com precisão a essência das experiências deles embora eu tenha mudado os nomes e os detalhes que pudessem identificálos Em algumas situações criei composições a partir de pacientes que passavam por desafios semelhantes O que se segue é a história das escolhas grandes e pequenas que podem nos levar do trauma ao triunfo da escuridão à luz da prisão à liberdade C A P Í T U L O 1 As quatro perguntas Se eu pudesse resumir toda a minha vida em um momento em uma imagem estática seria o seguinte três mulheres vestindo casacos de lã escura esperam de braços dados em um pátio árido Estão exaustas Os sapatos estão sujos Elas esperam numa fila longa As três mulheres são minha mãe minha irmã Magda e eu Este é nosso último momento juntas Não sabemos disso Nós nos recusamos a pensar nisso Ou estamos cansadas demais para especular sobre o que nos espera É um momento de ruptura da mãe com as filhas e da vida como era antes com aquela que virá depois No entanto só em retrospecto podemos entender tudo isso Vejo nós três por trás como se eu fosse a próxima da fila Por que a memória me mostra a parte de trás da cabeça da minha mãe mas não o rosto dela Seu cabelo longo está trançado e preso no alto da cabeça Os cachos castanhoclaros de Magda tocam seu ombro Meu cabelo escuro está sob um lenço Minha mãe está no meio e Magda e eu nos inclinamos em sua direção É impossível saber se nós é que mantemos nossa mãe de pé ou se é o contrário se a força da nossa mãe é o pilar que sustenta Magda e eu Este momento é o limiar da maior perda da minha vida Depois de sete décadas eu ainda volto a essa imagem de nós três Eu a analiso como se o exame minucioso pudesse recuperar algo precioso Como se eu pudesse reconquistar a vida que antecede esse momento a vida que antecede a perda Como se isso fosse possível Eu voltei para poder ficar mais um pouquinho nesse momento em que estamos de braços dados e pertencemos umas às outras Olho para nossos ombros inclinados para a poeira na barra de nossos casacos Minha mãe Minha irmã Eu Nossas memórias da infância são muitas vezes fragmentos momentos rápidos ou flashes que juntos formam um álbum de recortes de nossa vida Esses fragmentos são tudo o que nos resta para entender a história que passamos a contar para nós mesmos sobre quem somos Mesmo antes do momento da nossa separação a lembrança que tenho de minha mãe é cheia de tristeza e perda Ainda assim eu a preservo Estamos sozinhas na cozinha onde ela embrulha o resto do strudel que fez com a massa que eu a vi cortar e dobrar como uma toalha pesada sobre a mesa da sala de jantar Leia para mim diz ela e eu pego a cópia desgastada de E o vento levou na mesa de cabeceira dela Já lemos esse livro todo uma vez antes Recomeçamos a leitura Faço uma pausa na misteriosa dedicatória escrita em inglês na página de rosto do volume traduzido A letra é de um homem mas não do meu pai Tudo o que minha mãe diz é que o livro foi um presente de um homem que ela conheceu quando trabalhou no Ministério das Relações Exteriores antes de conhecer meu pai Estamos sentadas em cadeiras de espaldar reto perto do fogão a lenha Leio o romance adulto fluentemente apesar de ter apenas 9 anos Estou feliz por você ser inteligente porque você não é bonita ela me disse mais de uma vez misturando elogio e crítica Ela pode ser dura comigo mas saboreio o momento Quando lemos juntas não preciso dividila com mais ninguém Mergulho nas palavras na história e na sensação de estar sozinha em um mundo com ela Scarlett volta para Tara no fim da guerra para encontrar a mãe morta e o pai em luto profundo Com Deus por testemunha diz Scarlett jamais sentirei fome novamente Minha mãe fecha os olhos e inclina a cabeça contra o encosto da cadeira Quero subir no colo dela Descansar minha cabeça em seu peito Quero que ela encoste seus lábios no meu cabelo Tara diz ela A América agora seria um lugar para se conhecer Adoraria que ela dissesse o meu nome com a mesma suavidade que reserva para um país onde nunca esteve Para mim todos os aromas da cozinha da minha mãe se misturam com o drama da abundância e da fome Tenho sempre essa lembrança mesmo na fartura Não sei se sinto saudade de minha mãe se é de mim ou de algo que partilhamos Sentamos com o fogão entre nós Quando eu tinha sua idade começa ela Agora que ela está falando tenho medo de me mexer e ela parar Quando tinha a sua idade os bebês dormiam juntos e minha mãe e eu dividíamos uma cama Numa manhã acordei com meu pai me chamando Ilonka acorde sua mãe ela ainda não fez o café da manhã nem separou as minhas roupas Virei para minha mãe que estava ao meu lado sob as cobertas mas ela não se mexeu Estava morta Ela nunca tinha me contado isso Quero saber cada detalhe sobre aquele momento em que a filha acordou ao lado da mãe que já tinha perdido Também quero desviar o olhar É assustador demais pensar nisso Quando ela foi sepultada à tarde achei que tinha sido enterrada viva Naquela noite papai disse para eu preparar a ceia da família Então fui lá e fiz Aguardo o resto da história Aguardo a lição no fim Ou algum consolo Hora de dormir É tudo o que minha mãe diz antes de se curvar para varrer as cinzas debaixo do fogão Passos avançam pelo corredor Posso sentir o cheiro de tabaco de meu pai antes mesmo do barulho metálico de suas chaves Senhoras chama ele Ainda estão acordadas Ele entra na cozinha com seus sapatos lustrados e o terno elegante um sorriso enorme estampado no rosto e um pequeno saco na mão que ele me entrega com um beijo estalado na testa Ganhei de novo gabase ele Sempre que meu pai joga cartas ou bilhar com os amigos divide o que ganha comigo Hoje trouxe um biscoito coberto com uma camada de açúcar rosa Se eu fosse Magda minha mãe sempre preocupada com o peso de minha irmã teria pegado o doce de minhas mãos Mas ela acenou com a cabeça e me deu permissão para comêlo Ela está em pé agora no meio do caminho entre o fogão e a pia Meu pai a intercepta e levanta a mão e a faz dar um giro pela cozinha o que ela faz rigidamente sem sorrir Ele a puxa para um abraço deixa uma das mãos nas costas dela e com a outra ele toca de leve em seu peito Minha mãe encolhe os ombros e o afasta Sou uma decepção para sua mãe meu pai meio que sussurra para mim quando saímos da cozinha Será que ele quer que ela ouça ou é um segredo só entre nós De qualquer forma é algo que eu guardo para refletir depois No entanto a amargura na voz dele me assusta Ela quer ir à ópera toda noite e ter uma vida cosmopolita extravagante Sou apenas um alfaiate Um alfaiate jogador de sinuca O tom de derrota na voz de meu pai me confunde Ele é conhecido e muito querido em nossa cidade Brincalhão parece estar sempre à vontade e animado É divertido conviver com ele Tem muitos amigos Ele adora comer principalmente o presunto que às vezes traz escondido para nossa casa kosher e que devora sobre o jornal no qual foi embrulhado empurrando pedaços do porco proibido na minha boca aguentando as acusações de mamãe de que é uma figura paterna fraca Sua alfaiataria lhe rendeu duas medalhas de ouro Ele não é bom apenas em fazer costuras alinhadas e bainhas retas Ele é um mestre da alta costura Foi assim que ele conheceu mamãe Ela procurou a alfaiataria porque precisava de um vestido e o trabalho dele tinha sido bem recomendado Mas ele queria ser médico não um alfaiate um sonho que o pai desestimulou e que de vez em quando ressurgia em demonstrações de decepção consigo mesmo Você não é só um alfaiate Papa garantia eu Você é o melhor alfaiate E você será a senhorita mais bemvestida de Košice respondia ele me afagando a cabeça Você tem o corpo perfeito para a altacostura Ele parece se recuperar e manda o desânimo de volta para as sombras Chegamos na porta do quarto que divido com Magda e com nossa irmã do meio Klara Já imagino Magda fingindo fazer o dever de casa e Klara tirando poeira de seu violino Papai e eu ficamos na porta um pouco mais nenhum dos dois pronto para se separar Queria que você fosse um menino sabia confidencia meu pai Dei um murro na porta quando você nasceu de tão zangado que fiquei ao ter outra menina mas agora você é a única com quem posso conversar completa Ele me dá um beijo na testa Amo receber tanta atenção de meu pai Como a atenção de mamãe ela é preciosa e instável Como se merecer o amor deles tivesse menos a ver comigo e mais com a solidão deles Como se minha identidade não tivesse nada a ver com o que sou e fosse apenas uma medida do que está faltando nos meus pais Boa noite Dicuka fala meu pai por fim Ele usa o apelido que minha mãe inventou para mim Ditzuka Essas sílabas sem sentido são carinhos para mim Diga a suas irmãs que está na hora de apagar as luzes Ao entrar no quarto Magda e Klara me recebem com a canção que inventaram para mim Elas a inventaram quando eu tinha 3 anos e um dos meus olhos ficou vesgo por causa de um procedimento médico malfeito Você é tão feia você é tão pequena elas cantam Você nunca vai arranjar um marido Desde o acidente eu abaixo a cabeça ao caminhar para não ter que ver as pessoas olhando para meu rosto torto Ainda não aprendi que o problema não é minhas irmãs me provocarem com uma canção maldosa o problema é eu acreditar nelas Estou tão convencida de minha inferioridade que nunca me apresento pelo nome Nunca digo às pessoas Eu sou Edie Klara é uma violinista prodigiosa Ela aprendeu o concerto para violino de Mendelssohn quando tinha 5 anos Digo Sou irmã da Klara Mas esta noite tenho algo especial A mãe da mamãe morreu quando ela tinha exatamente a minha idade conto a elas Estou tão segura da natureza privilegiada dessa informação que não me ocorreu que para minhas irmãs ela fosse notícia antiga que eu era a última e não a primeira a saber Você está brincando diz Magda com a voz cheia de sarcasmo tão óbvio que nem eu consigo reconhecer Ela tem 15 anos já tem seios lábios sensuais e cabelos ondulados Ela é a piadista da família Quando éramos mais jovens Magda me ensinou a jogar uvas da janela do nosso quarto nas xícaras de café dos fregueses sentados no pátio embaixo Inspirada nela logo inventarei minhas próprias brincadeiras mas até lá as apostas serão outras Minha amiga e eu vamos nos exibir para os garotos na escola ou nas ruas Me encontre às quatro no relógio da praça vamos falar cantarolando e dando uma piscadela Eles virão eles sempre vão às vezes eufóricos às vezes tímidos às vezes se vangloriando antecipadamente Da segurança de meu quarto minha amiga e eu vamos ficar na janela e assistir aos garotos chegando Não provoque demais reclama agora Klara com Magda Klara é mais jovem que Magda mas sai em minha defesa Sabe aquela fotografia em cima do piano pergunta ela Aquela de que Mama sempre comenta Aquela é a mãe dela Sei qual é a imagem a que ela se refere Olho para ela todos os dias da minha vida Ajudeme Ajudeme nossa mãe geme para o retrato enquanto tira o pó do piano e varre o chão Fico constrangida por nunca ter perguntado à nossa mãe ou a alguém quem era a pessoa da fotografia Além disso estou decepcionada que minha informação não tenha me proporcionado nenhum status especial com minhas irmãs Estou acostumada a ser a irmã calada a invisível Não me ocorreu que Magda estivesse cansada de ser a palhaça e Klara ressentida de ser a menina prodígio Ela não pode nem por um segundo deixar de ser extraordinária sob pena de perder tudo a adoração a que está acostumada e seu próprio senso de identidade Magda e eu precisamos nos esforçar para conseguir algo que temos certeza que nunca será suficiente Klara sabe que a qualquer momento pode cometer um erro fatal e perder tudo Klara toca violino desde que eu tinha 3 anos Não demorou muito para eu perceber o preço de seu incrível talento ela abriu mão de ser criança Nunca a vi brincar com bonecas Em vez disso ela ficava praticando violino em frente a uma janela aberta incapaz de desfrutar de seu gênio criativo a não ser que pudesse convidar a plateia de passantes para assistirlhe Mama ama Papa perguntei às minhas irmãs A distância entre nossos pais as coisas tristes que eles confessaram para mim me fizeram lembrar que eu nunca os vi arrumados e prontos para sair juntos Que pergunta comenta Klara Embora negue minha preocupação acho que vi um reconhecimento nos olhos dela Nunca voltamos a discutir isso embora eu tenha tentado Demorei anos para saber o que minhas irmãs já sabiam que o que chamamos de amor é muitas vezes algo mais condicional a recompensa para um desempenho com que você tem que se contentar Quando vestimos nossas camisolas e nos deitamos esqueço a preocupação com meus pais e penso em vez disso no meu professor de balé e em sua esposa da sensação que tenho ao subir as escadas para o estúdio pulando dois ou três degraus por vez e arrancar o uniforme da escola e colocar a malha e a meia Estudo balé desde os 5 anos quando minha mãe percebeu que eu não era o tipo musical mas que tinha outros talentos Hoje treinamos o espacate O professor de balé nos lembrou que força e flexibilidade são inseparáveis Para um músculo se flexionar outro deve se estender Para obter amplitude e flexibilidade é preciso manter o núcleo forte Guardo as instruções dele na cabeça como uma oração Lá vou eu com a coluna reta os músculos abdominais firmes as pernas totalmente estendidas Sei como respirar sobretudo quando me sinto presa Vejo meu corpo se estendendo como as cordas do violino de minha irmã encontrando o ponto exato de tensão que faz o instrumento todo vibrar Estou no chão Estou aqui Fazendo espacates completos Bravo meu professor de balé aplaude Fique exatamente como está Ele me levanta do chão acima de sua cabeça É difícil manter as pernas estendidas sem ter o chão como apoio mas por um momento eu me sinto como uma oferenda como pura luz Editke meu professor diz todo o seu êxtase na vida virá de dentro de você Precisei de anos para entender realmente o que ele quis dizer Por enquanto tudo o que sei é que posso respirar e girar e chutar e me curvar À medida que meus músculos se alongam e se fortalecem cada movimento cada pose parece gritar Eu sou eu sou eu sou Eu sou eu Sou alguém A memória é um solo sagrado Porém ela é também malassombrada É o lugar onde a raiva a culpa e o sofrimento circulam como pássaros famintos revirando os mesmos ossos velhos É o lugar onde busco a resposta para uma pergunta irrespondível Por que eu sobrevivi Tenho 7 anos e meus pais estão recebendo convidados para jantar Eles pedem que eu vá encher a jarra de água Da cozinha os ouço comentar em tom de brincadeira Podíamos ter evitado essa Acho que eles querem dizer que já eram uma família completa antes de meu nascimento Eles tinham uma filha que tocava piano e outra que tocava violino Eu sou desnecessária não sou suficientemente boa não há espaço para mim eu penso Essa é a maneira como interpretamos mal os fatos da nossa vida como temos certezas sem verificar nada como inventamos uma história para nós mesmos reforçando aquilo que está em nós e em que já acreditamos Aos 8 anos decido fugir de casa Quero testar a teoria de que sou dispensável invisível Vou ver se meus pais notam que desapareci Em vez de ir à escola pego o bonde para a casa de meus avós Confio que meus avós o pai de minha mãe e a madrasta dela vão me dar cobertura Eles estão envolvidos em uma guerra permanente com minha mãe por causa de Magda escondem biscoitos na gaveta da cômoda de minha irmã Eles me dão segurança embora concordem com as proibições Meus avós costumam ficar de mãos dadas algo que meus pais nunca fazem Seu amor não é forçado não há fingimento para sua aprovação Eles significam conforto o cheiro de carne e feijão cozido de pão doce de cholent um guisado delicioso que minha avó leva para a padaria cozinhar no Shabat quando a prática ortodoxa não permite que ela use o próprio forno Meus avós ficam felizes em me ver Está uma manhã maravilhosa Eu me sento na cozinha para comer rocambole de amêndoa mas a campainha toca e meu avô vai atender Um segundo depois ele volta correndo para a cozinha e como tem dificuldade para escutar dá seu aviso bem alto Se esconde Dicuka grita ele Sua mãe está aqui Ao tentar me proteger ele me revela O que me incomoda mais é o olhar no rosto da minha mãe quando ela me vê na cozinha dos meus avós Ela não está apenas surpresa ao me encontrar aqui é como se o simples fato de eu existir a surpreendesse Como se eu não fosse quem ela quer ou espera que eu seja Nunca serei bonita isso minha mãe deixou claro mas ela garantiu que quando eu completar 10 anos não terei mais que esconder o rosto Dr Klein de Budapeste vai consertar meu estrabismo No trem para Budapeste eu como chocolate e desfruto da atenção exclusiva da minha mãe Dr Klein é uma celebridade explica minha mãe o primeiro a realizar cirurgias oftalmológicas sem anestesia Estou muito absorvida pela aventura da viagem e pelo privilégio de ter a minha mãe só para mim para entender que ela está me alertando Nunca me passou pela cabeça que a cirurgia doeria Não até a dor me consumir Minha mãe e os parentes dela que indicaram o famoso Dr Klein seguram meu corpo agitado contra a maca Pior do que a dor que é imensa e infindável é a sensação das pessoas que me amam me imobilizando para que eu não me mexa Somente mais tarde bem depois que a cirurgia se provou bemsucedida consigo ver a cena do ponto de vista de minha mãe e entender como ela deve ter sofrido com o meu sofrimento Sintome muito mais feliz quando estou sozinha e posso me recolher em meu mundo interior Certa manhã quando estou com 13 anos e caminho para a escola ensaio os passos da coreografia do Danúbio azul que minha turma de balé vai apresentar em um festival à beira do rio A criatividade me domina e eu me deixo levar em uma nova dança de minha própria autoria Uma dança em que imagino meus pais se encontrando Interpreto os dois papéis Meu pai faz uma batida de perna dupla quando vê minha mãe entrar na sala Minha mãe faz um giro rápido e salta bem alto Meu corpo inteiro se arqueia numa gargalhada gostosa Nunca vi minha mãe se divertir nunca ouvi uma gargalhada sua daquela que faz balançar a barriga mas sinto em meu corpo a inexplorada fonte de sua felicidade Quando chego à escola o dinheiro que meu pai me deu para pagar o trimestre inteiro sumiu No alvoroço da dança perdi o dinheiro Verifico cada bolso e dobra de minha roupa mas não há nada Passo o dia inteiro com o medo de contar ao meu pai queimando as minhas entranhas Em casa ele não consegue me olhar quando levanta os punhos É a primeira vez que ele bate em mim na verdade em qualquer uma de nós Ele não diz uma palavra para mim quando acaba Na cama naquela noite quero morrer para que meu pai sofra pelo que fez comigo E então quero que meu pai morra Essas lembranças dão uma noção de minha força Ou da minha mágoa Talvez cada infância seja o terreno em que tentamos identificar nossa importância um mapa onde estudamos as dimensões e as fronteiras do nosso valor Talvez cada vida seja um estudo sobre as coisas que não temos mas que gostaríamos de ter e das coisas que temos mas que gostaríamos de não ter Levei muitas décadas para descobrir que eu podia me fazer uma pergunta diferente Não Por que eu vivo Mas O que eu posso fazer com a vida que recebi Os dramas humanos comuns de minha família ficavam piores por causa de fronteiras e guerras Antes da Primeira Guerra Mundial a região da Eslováquia onde nasci e fui criada era parte do Império AustroHúngaro mas em 1918 uma década antes do meu nascimento o Tratado de Versalhes redesenhou o mapa da Europa e criou um novo Estado A Tchecoslováquia foi formada pela junção da Eslováquia agrária a região da minha família que tinha origem húngara e eslovaca com as áreas mais industriais da Morávia e da Boêmia que eram originalmente tchecas e com a Rutênia subcarpática que atualmente faz parte da Ucrânia Com a criação da Tchecoslováquia Kassa a cidade onde nasci na Hungria virou Košice na Tchecoslováquia E minha família virou minoria duplamente Nossa origem era húngara mas vivíamos em um país majoritariamente tcheco e éramos judeus Embora existissem judeus na Eslováquia desde o século XI só em 1840 eles foram autorizados a se instalar em Kassa Mesmo assim funcionários municipais apoiados por guildas comerciais cristãs dificultavam a vida das famílias judias que queriam morar lá Na virada do século Kassa havia se tornado uma das maiores comunidades judaicas da Europa Ao contrário do que aconteceu em outros países do Leste Europeu como a Polônia os judeus húngaros não se instalaram em guetos razão pela qual minha família falava húngaro não ídiche Não éramos segregados e desfrutávamos de muitas oportunidades educacionais profissionais e culturais Ainda assim enfrentávamos preconceito O antissemitismo não foi uma invenção nazista À medida que crescia internalizei uma sensação de inferioridade e a crença de que era mais seguro não revelar que era judia para me integrar me misturar nunca me destacar Era difícil encontrar um sentido de identidade e pertencimento Então em novembro de 1938 a Hungria anexou Košice novamente e voltamos a nos sentir em casa Mamãe está em nossa varanda no antigo Palácio Andrássy que foi transformado em edifício com diversos apartamentos Ela pendurou um tapete oriental na nossa grade Não está limpando o tapete mas comemorando Sua Alteza Sereníssima o Almirante Miklós Horthy regente do Reino da Hungria chega hoje para acolher formalmente nossa cidade na Hungria Entendo a empolgação e o orgulho de meus pais Nós pertencemos Hoje eu também vou dançar para dar as boasvindas a Horthy Uso uma roupa típica húngara saia e colete de lã brilhante com bordados florais blusa branca de mangas bufantes laços rendas e botas vermelhas Quando dou o chute bem alto na beira do rio Horthy aplaude abraça os dançarinos me abraça Dicuka eu queria que fôssemos louras como Klara sussurrou Magda na hora de dormir Ainda estamos a anos de distância do toque de recolher e das leis discriminatórias mas o desfile de Horthy é o ponto de partida de tudo o que virá A cidadania húngara por um lado trouxe pertencimento mas exclusão por outro Estamos tão felizes de falar nossa língua nativa de sermos aceitos como húngaros mas essa aceitação depende de nossa assimilação Os vizinhos argumentam que apenas húngaros não judeus deviam ser autorizados a usar as vestes tradicionais Melhor não revelar que você é judia avisa minha irmã Magda Isso só vai fazer com que as outras pessoas queiram pegar as coisas bonitas que você tem Magda é a primogênita ela descreve o mundo para mim Ela apresenta os detalhes quase sempre de coisas complicadas para analisarmos e ponderarmos Em 1939 o ano em que a Alemanha nazista invadiu a Polônia os nazistas húngaros os nyilas ocupam o apartamento embaixo do nosso no Palácio Andrássy Eles cospem em Magda Eles nos expulsam Acabamos nos mudando para outro apartamento no Kossuth Lajos Utca número 6 numa rua secundária em vez de na rua principal o que é menos conveniente para o negócio do meu pai O apartamento ficou disponível porque os antigos ocupantes outra família judia partiu para a América do Sul Conhecemos algumas famílias judias que estão deixando a Hungria A irmã de meu pai Matilda já partiu há anos Ela mora em Nova York num lugar chamado Bronx numa área de imigrantes judeus A vida dela nos Estados Unidos parece mais difícil do que a nossa Não falamos sobre ir embora Mesmo em 1940 quando estou com 13 anos e os nyilas começam a prender os judeus de Kassa e mandálos para um campo de trabalhos forçados a guerra parece distante de nós Meu pai não é levado Não no começo Usamos a negação como proteção Se não prestarmos atenção então podemos continuar vivendo sem ser notados Podemos criar um mundo seguro em nossas mentes Podemos nos tornar invisíveis às ofensas Porém um dia em junho de 1941 Magda está na rua de bicicleta quando as sirenes soam Ela corre três quarteirões em busca de segurança na casa de nossos avós e encontra quase tudo destruído Eles sobreviveram graças a Deus Mas a senhoria deles não Foi um ataque único um só bairro arrasado por um bombardeio Disseram que os russos eram responsáveis pelos escombros e pelas mortes Ninguém acredita embora não seja possível refutar Temos sorte e somos ao mesmo tempo vulneráveis A única verdade sólida é a pilha de tijolos esmagados no lugar onde era a casa Destruição e ausência esses são os fatos A Hungria se alia à Alemanha na Operação Barbarossa Invadimos a Rússia Nessa época somos obrigados a usar a estrela amarela O truque é escondê la sob o casaco Porém mesmo com a estrela escondida eu sinto como se tivesse feito algo ruim algo passível de punição Que pecado imperdoável cometi Minha mãe está sempre perto do rádio Quando fazemos piquenique na beira do rio meu pai conta histórias sobre como era ser prisioneiro na Rússia durante a Primeira Guerra Mundial Sei que a experiência dele como prisioneiro de guerra seu trauma embora eu ainda não saiba que esse é o nome que se dá a isso tem algo a ver com comer porco e com seu distanciamento da religião Sei que a guerra está na origem de sua angústia Mas a guerra essa guerra ainda é em algum outro lugar Posso ignorála e ignoro Depois da escola passo cinco horas no estúdio de balé e começo também a fazer ginástica olímpica Embora no início encare como um exercício complementar ao balé a ginástica logo vira uma paixão uma arte com a mesma intensidade Entro no clube do livro formado por um grupo de meninas de meu colégio e por meninos de uma escola particular próxima Lemos Maria Antonieta retrato de uma mulher comum de Stefan Zweig Conversamos sobre a maneira de Zweig escrever como se estivesse dentro da mente de uma pessoa No clube do livro há um garoto chamado Eric que um dia repara em mim Sinto o olhar atento dele cada vez que falo Ele é alto tem sardas e é ruivo Imagino Versalhes Imagino o quarto de Maria Antonieta Imagino encontrar Eric lá Não sei nada sobre sexo mas sou romântica Vejo que ele presta atenção em mim e imagino Como seriam nossos filhos Eles também teriam sardas Eric se aproxima de mim depois da discussão Ele cheira bem como ar fresco ou como a grama na beira do rio Hornád onde em breve iremos passear Nossa relação tem peso e substância desde o início Conversamos sobre literatura e sobre a Palestina ele é um sionista dedicado Não são tempos para namoros despreocupados nossa ligação não é uma paixonite um namorico de criança Tratase de um amor em tempo de guerra O toque de recolher foi imposto aos judeus mas nós nos esgueiramos certa noite sem usar nossas estrelas amarelas Ficamos na fila do cinema Encontramos nossos lugares no escuro É um filme americano estrelado por Bette Davis Estranha passageira aprendi mais tarde é seu título americano mas em húngaro se chama Utazás a múltból Jornada para o passado Bette Davis interpreta uma filha solteira tiranizada pela mãe controladora Ela tenta encontrar a si mesma e se libertar mas é constantemente arrasada pelas críticas da mãe Eric vê o filme como uma metáfora política sobre autodeterminação e autoestima Eu vejo sinais de minha mãe e de Magda De minha mãe que adora Eric mas repreende Magda por seu namoro descompromissado que me pede para comer mais mas se recusa a encher o prato de Magda que está sempre silenciosa e introspectiva mas briga com Magda e cuja raiva nunca é direcionada a mim mas que me aterroriza da mesma forma As brigas em minha família a frente de batalha com a Rússia se aproximando nunca sabemos o que virá a seguir Na escuridão e no caos da incerteza Eric e eu criamos nossa própria luz Todo dia à medida que a liberdade e as escolhas se tornam cada vez mais restritas nós planejamos o futuro Nosso relacionamento é como uma ponte que nos permite sair das preocupações atuais e alcançar as alegrias futuras Planos paixão promessas Talvez a turbulência que nos rodeia dê a oportunidade para mais compromisso menos questionamento Ninguém sabe o que vai acontecer mas nós sabemos Temos um ao outro e o futuro uma vida a dois que podemos ver tão claramente quanto vemos nossas mãos quando as juntamos Vamos até a beira do rio em um dia de agosto de 1943 Eric traz uma câmera e me fotografa de maiô fazendo espacates na grama Imagino mostrar essa foto para nossos filhos um dia E contar a eles como mantivemos nosso amor e nosso compromisso Quando chego em casa naquele dia meu pai tinha sido levado para um campo de trabalhos forçados Ele é um alfaiate apolítico Como pode ser uma ameaça para alguém Por que foi escolhido Ele tem algum inimigo Existem muitas coisas que minha mãe não vai me dizer Será que ela não sabe Ou está me protegendo Ou se protegendo Ela não fala abertamente sobre os problemas mas nos longos meses em que meu pai fica longe posso sentir o quanto está triste e assustada Vejo que ela tenta preparar várias refeições com uma única galinha Ela tem enxaquecas Aceitamos um pensionista para compensar a perda de renda Ele é dono de uma loja do outro lado da rua Eu fico sentada na loja dele por longas horas só para estar perto de sua presença reconfortante Magda que é basicamente adulta agora e já saiu da escola descobre onde está nosso pai e o visita Ela o vê cambaleando sob o peso de uma mesa que ele tem que carregar de um lugar para outro Este é o único detalhe que ela me conta da visita Não sei o que significa esta imagem Não sei que tipo de trabalho meu pai é forçado a fazer em seu cativeiro nem quanto tempo ficará preso Tenho duas imagens de meu pai a que conheci a vida toda com o cigarro na boca a fita métrica em volta do pescoço o giz na mão para riscar o molde no tecido caro os olhos brilhando pronto para começar a cantar ou contar uma piada E esta nova imagem levantando uma mesa muito pesada em um lugar sem nome em uma terra de ninguém No meu aniversário de 16 anos fico em casa por causa de um resfriado e Eric vai lá me entregar 16 rosas e um primeiro beijo apaixonado Estou feliz mas também estou triste A que posso me agarrar O que dura Dou a foto que Eric tirou de mim na beira do rio a uma amiga Não me lembro a razão Por segurança Não tive nenhuma premonição de que logo iria embora bem antes do meu próximo aniversário De alguma forma eu devia saber que precisaria de alguém para preservar evidências da minha vida que precisaria plantar ao meu redor provas de minha existência como se espalhasse sementes Em algum momento no início da primavera depois de sete ou oito meses no campo de trabalhos forçados meu pai retorna É uma bênção ele foi liberado a tempo para o Pessach que será em uma ou duas semanas Isso é o que pensávamos Ele retoma sua fita métrica e o giz Não fala sobre onde esteve Sento no piso azul na academia de ginástica certo dia algumas semanas depois do retorno dele para fazer o aquecimento com uma rotina de solo estico as pontas dos pés flexiono os pés alongo as pernas os braços o pescoço e a coluna Eu me sinto novamente como eu mesma Não sou mais a baixinha vesga com medo de falar o próprio nome Não sou mais a filha com medo por sua família Sou uma artista e uma atleta com um corpo forte e flexível Não tenho a aparência de Magda ou a fama de Klara mas tenho um corpo ágil e expressivo cujo desenvolvimento é a única coisa verdadeira de que preciso Meu treinamento minha habilidade minha vida transbordam de possibilidades Os melhores de minha turma de ginástica formaram uma equipe de treinamento olímpico A Olimpíada de 1944 foi cancelada por causa da guerra mas isso só nos dá mais tempo de preparação para a competição Fecho os olhos e estendo os braços e o tronco para a frente entre as pernas Minha amiga me cutuca com o dedão eu levanto a cabeça e vejo nossa técnica vindo na minha direção Estamos meio apaixonadas por ela Não é uma paixão sexual É a adoração da heroína Às vezes voltamos para casa pelo caminho mais longo a fim de passar pela casa dela e andamos o mais lentamente possível na esperança de vêla de relance pela janela Temos ciúmes do que não sabemos da vida dela Com a promessa das Olimpíadas quando finalmente a guerra terminar grande parte do meu propósito se baseia no apoio e na fé que minha treinadora tem em mim Se eu conseguir absorver tudo o que ela tem a ensinar e se conseguir retribuir sua confiança então grandes coisas me aguardam Editke chama ela ao se aproximar usando o diminutivo de meu nome Edith Uma palavra por favor Seus dedos deslizam pelas minhas costas enquanto ela me leva até o corredor Apreensiva olho para ela Talvez ela tenha percebido o quanto melhorei no salto Talvez queira que eu lidere a equipe em mais exercícios de alongamento no fim do treino de hoje Talvez queira me convidar para jantar Estou pronta para dizer sim antes de ela sequer perguntar Não sei como lhe dizer isso começa ela então observa o meu rosto e olha na direção da janela iluminada pelo pôr do sol É a minha irmã pergunto antes mesmo de perceber a terrível cena se formando na minha cabeça Klara agora estuda no Conservatório de Budapeste Nossa mãe foi a Budapeste assistir ao concerto de Klara e buscála para passar o Pessach em casa Como minha técnica se apoia desajeitadamente ao meu lado no corredor incapaz de me encarar imagino que o trem tenha descarrilado Ainda é cedo demais para elas estarem viajando de volta para casa mas essa é a única tragédia em que consigo pensar Mesmo em tempo de guerra o primeiro desastre que passa pela minha cabeça é mecânico uma tragédia do erro humano não de criação humana embora eu saiba que alguns professores de Klara incluindo não judeus já fugiram da Europa por temerem o que está por vir Sua família está bem O tom dela não me convence Edith A decisão não foi minha mas sou eu que devo lhe dizer que sua vaga na equipe de treinamento olímpico vai para outra pessoa Acho que vou vomitar Sintome estrangeira em minha própria pele O que eu fiz Repasso os meses de treinamentos rigorosos em busca do que fiz de errado Não entendi Meu bem diz ela e agora olha direto para mim o que é pior porque posso ver que está chorando e naquele momento em que meus sonhos estão sendo destruídos não quero sentir pena dela A verdade simples é que por causa de sua origem você não está mais qualificada Penso nas crianças que cuspiram em mim e me chamaram de judia suja dos amigos judeus que pararam de ir à escola para evitar aborrecimentos e agora acompanham as lições pelo rádio Se alguém cospe em você cuspa de volta meu pai me instruiu É isso que você deve fazer Considero cuspir na minha técnica Mas revidar seria aceitar a notícia devastadora E eu não a aceito Não sou judia digo Lamento Editke Lamento muito Ainda quero você no estúdio Gostaria de pedir que treine a garota que a substituirá na equipe Mais uma vez os dedos dela tocam minhas costas Daqui a um ano minha coluna estará fraturada exatamente no ponto que ela agora acaricia Dentro de semanas minha própria vida estará em risco Mas aqui no corredor de minha adorada academia a sensação é de que minha vida já acabou Nos dias seguintes à minha expulsão da equipe de treinamento olímpico preparo minha vingança Não será uma vingança de ódio será uma vingança da perfeição Mostrarei à técnica que sou a melhor A atleta mais talentosa A melhor treinadora Vou treinar minha substituta tão meticulosamente que provarei a todos o erro que cometeram ao me cortar da equipe No dia em que minha mãe e Klara devem chegar de Budapeste faço estrelas no tapete vermelho do corredor de nosso apartamento imaginando minha substituta como minha aprendiz e eu como a principal atração Mamãe e Magda estão na cozinha Magda está picando maçãs para o charoset uma pasta de frutas frescas e secas vinho e especiarias Mamãe está preparando a matzá Concentradas no trabalho mal percebem a minha chegada Essa é a maneira como elas se relacionam agora Brigam o tempo todo e quando não estão brigando se tratam como se já estivessem num confronto direto As brigas costumavam ser sobre comida Mamãe sempre preocupada com o peso de Magda mas agora o conflito cresceu e virou uma hostilidade crônica e generalizada Onde está Klarie pergunto engolindo apressada algumas nozes picadas de uma tigela Em Budapeste responde Magda Mamãe joga a tigela no balcão Quero perguntar por que minha irmã não está conosco para o feriado Ela preferiu a música a nós Ou não teve permissão para faltar aula por causa de um feriado que nenhum de seus colegas celebra Mas não pergunto Tenho medo de que minha pergunta faça a raiva nitidamente latente de minha mãe explodir Volto para o quarto que dividimos meus pais Magda e eu Em qualquer outra noite principalmente num feriado teríamos nos reunido em torno do piano o instrumento que Magda toca e estuda desde que era novinha para que ela e papai se revezassem nos acompanhamentos das músicas Magda e eu não éramos prodígios como Klara mas ainda assim tínhamos paixões criativas que nossos pais reconheciam e estimulavam Depois que Magda tocava era a minha vez de me apresentar Dança Dicuka mamãe dizia E embora fosse mais uma exigência do que um convite eu desfrutava da atenção e dos elogios de meus pais Depois Klara a principal atração tocaria o violino e minha mãe se transformaria Mas não há música em nossa casa nessa noite Antes da refeição Magda tenta me animar relembrando do último Pessach quando enfiei umas meias no sutiã para impressionar Klara querendo mostrar que eu tinha me tornado mulher enquanto ela estava fora Agora você tem a própria feminilidade para ostentar por aí diz Magda À mesa ela continua a fazer palhaçadas enfiando os dedos na taça de vinho que colocamos para o profeta Elias como é o costume Elias que salva os judeus do perigo Em qualquer outra noite nosso pai poderia rir Em qualquer outra noite nossa mãe daria fim às besteiras com uma severa repreensão Mas hoje nosso pai está distraído demais para perceber e nossa mãe perturbada demais pela ausência de Klara para castigar Magda Quando abrimos a porta do apartamento para deixar o profeta entrar sinto um arrepio que não tem nada a ver com a noite fria Em alguma parte profunda de mim mesma eu sei o quanto precisamos de proteção agora Você tentou o consulado pergunta meu pai Ele não está nem fingindo dar seguimento ao seder Ninguém a não ser Magda consegue comer Ilona Tentei o consulado diz minha mãe É como estivesse em outro quarto Conte novamente o que Klara disse Novamente protesta mamãe Novamente Ela fala sem expressão os dedos mexendo no guardanapo Klara tinha ligado para seu hotel às quatro da madrugada O professor de Klara acabara de lhe contar que um exprofessor do Conservatório Béla Bartók hoje um compositor famoso havia ligado da América para dar um aviso os alemães na Tchecoslováquia e na Hungria iam começar a fechar o cerco os judeus seriam levados na manhã seguinte O professor de Klara a proibiu de voltar para casa Ele queria que ela pedisse a mamãe para também ficar em Budapeste e que mandasse buscar o restante da família Ilona por que você voltou para casa resmunga meu pai Mamãe o fuzila com o olhar E tudo o que nós nos esforçamos para conquistar aqui Deveríamos largar tudo E se vocês três não conseguissem chegar a Budapeste Você queria que eu vivesse com isso Não percebo que eles estão aterrorizados Escuto apenas as acusações e os desapontamentos que meus pais trocam rotineiramente entre si como o vaivém maquinal de um tear Veja o que você fez Veja o que você não fez Veja o que você fez Veja o que você não fez Depois entendo que aquela não foi uma discussão habitual que existe uma história e um peso para a briga que estão tendo agora Existem as passagens para a América que meu pai recusou Existe o oficial húngaro que se aproximou de mamãe com documentos falsos para a família inteira insistindo que fugíssemos Depois soubemos que ambos tiveram a oportunidade de escolher Agora eles se lastimam e escondem seu arrependimento com acusações Podemos fazer as quatro perguntas pergunto para interromper a melancolia de meus pais Essa é a minha função na família Ser a pacificadora entre meus pais e entre Magda e mamãe Não tenho controle sobre quaisquer planos que estejam sendo feitos do lado de fora de nossa porta Mas dentro de casa tenho um papel a desempenhar É minha função como filha mais nova fazer as quatro perguntas tradicionais da noite de Pessach Não preciso nem abrir o hagadah Sei o texto de cor Já sei quais são as perguntas No fim da refeição meu pai dá a volta na mesa beijando cada uma de nós na cabeça Ele está chorando Por que esta noite é diferente de todas as outras Antes do amanhecer nós saberemos C A P Í T U L O 2 O que você coloca em sua mente Eles chegam no escuro Batem na porta gritam Papai deixa que entrem ou eles forçam a entrada em nosso apartamento São soldados alemães ou nyilas Não consigo entender os barulhos que me acordam Minha boca ainda tem gosto de vinho do seder Os soldados invadem o quarto anunciando que estamos sendo removidos de nossa casa e reassentados em algum outro lugar Temos permissão para fazer uma mala para nós quatro Aparentemente não consigo comandar as pernas e fazêlas sair da cama de armar que fica aos pés da cama de meus pais mas mamãe se coloca em movimento imediatamente Antes que eu me dê conta ela já está vestida e pegando na parte alta do armário a caixinha em que eu sei que guarda um pedaço do saco amniótico que cobria a cabeça e o rosto de Klara como um capacete em seu nascimento As parteiras costumavam guardar essas membranas e vendêlas a marinheiros como proteção contra afogamento Mamãe não bota a caixa na mala mas no fundo do bolso de seu casaco como um amuleto Não sei se minha mãe pega aquilo para proteger Klara ou a todos nós Rápido Dicu Levante Vistase Não que as roupas tenham algum dia ajudado sua aparência sussurra Magda Sua provocação não dá folga Como saberei quando for a hora de realmente ter medo Mamãe está na cozinha agora embrulhando sobras de comida potes e panelas Na realidade ela vai nos manter vivas por duas semanas com os suprimentos que leva conosco agora um pouco de farinha e de gordura de galinha Papai anda de um lado para outro no quarto e na sala pegando livros candelabros roupas pondo as coisas no chão Pegue cobertores grita mamãe para ele Acho que se papai tivesse um biscoito essa seria a coisa que ele levaria somente pela alegria de me entregálo depois e ver um rápido momento de prazer em meu rosto Graças a Deus Mamãe é mais prática Quando ainda era criança ela assumiu o papel de mãe das irmãs mais novas e evitou que passassem fome ao longo de muitas temporadas de sofrimento Com Deus por testemunha imagino que ela esteja pensando agora enquanto faz a mala jamais sentirei fome novamente Ainda assim quero que ela deixe para lá os pratos e as ferramentas de sobrevivência volte para o quarto e me ajude a me vestir Ou pelo menos que se importe comigo Que me diga o que vestir Que diga para eu não me preocupar Que está tudo bem Os soldados pisam duro derrubam as cadeiras com suas armas Rápido Rápido Sinto uma raiva súbita de minha mãe Ela salvaria Klara antes de me salvar Preferiria pegar as coisas na despensa do que segurar minha mão no escuro Vou ter de encontrar meu próprio carinho minha própria sorte Apesar do frio da manhã escura de abril ponho o vestido de seda azul que usei no dia em que Eric me beijou Estico as pregas com os dedos Coloco o cinto de camurça azul Vou usar esse vestido para que seus braços possam me envolver mais uma vez Esse vestido vai me manter desejável protegida pronta para recuperar o amor Se eu tremer de frio será um símbolo de esperança um sinal de minha confiança em algo mais profundo melhor Imagino Eric e sua família também se vestindo atarantados no escuro Posso sentilo pensando em mim Uma corrente de energia se irradia dos meus ouvidos para os meus pés Fecho os olhos e me abraço permitindo que o resquício daquela lembrança de amor e esperança me mantenham aquecida A realidade se intromete em meu mundo particular Onde é o banheiro grita um dos soldados para Magda Minha irmã mandona sarcástica e coquete se encolhe diante daquele olhar Nunca a vi com medo Ela nunca perdeu uma oportunidade de provocar alguém de fazer as pessoas rirem Figuras de autoridade nunca tiveram qualquer influência sobre ela Na escola ela não se levantava quando uma professora entrava na sala como era o costume Elefánt o professor de matemática dela um homem muito baixo a repreendeu certo dia chamandoa pelo sobrenome Minha irmã se levantou na ponta dos pés e olhou para ele Ah o senhor está aí falou Não o tinha visto Mas hoje os homens empunhavam armas Ela não solta nenhuma observação rude nenhuma réplica revoltada Aponta humildemente para o corredor na direção da porta do banheiro O soldado a empurra para fora do caminho Ele segura uma arma Que outra prova de autoridade ele precisa Foi aí que comecei a perceber que as coisas sempre podem piorar Que todo momento guarda um potencial para a violência Nunca sabemos quando ou como vamos reagir Fazer o que mandam pode não salvar você Fora Agora Hora de fazer uma pequena viagem fala o soldado Mamãe fecha a mala e meu pai a carrega Ela abotoa o casaco cinza e é a primeira a seguir o oficial em comando até a rua Sou a próxima depois Magda Antes de chegarmos à carroça que está à nossa espera no meiofio eu me viro para ver papai sair de casa Ele está de frente para a porta a mala na mão parecendo confuso como um viajante que procura chaves nos bolsos na escuridão da noite Um soldado grita um insulto e escancara nossa porta dando um chute com o salto da bota Vá em frente Dê uma última olhada Aproveite essa festa para seus olhos Meu pai olha para o espaço escuro Por um momento parece atordoado como se não conseguisse decidir se o soldado estava sendo gentil ou indelicado Então o soldado chuta seu joelho e meu pai vem mancando em nossa direção para a carroça onde as outras famílias aguardam Fico dividida entre o desejo de proteger meus pais e a tristeza por eles não poderem me proteger Eric eu rezo para onde quer que estivermos indo ajude me a encontrálo Não se esqueça de nosso futuro Não se esqueça do nosso amor Magda não diz uma palavra quando nos sentamos lado a lado nos assentos de madeira Em minha lista de arrependimentos este se destaca não segurei a mão da minha irmã Assim que o dia amanhece a carroça para ao lado da fábrica de tijolos Jakab na periferia da cidade e somos conduzidos para dentro Tivemos sorte Como somos os primeiros a chegar nos abrigamos nos galpões de secagem A maior parte dos quase doze mil judeus que serão presos aqui dormirá sem um teto sobre suas cabeças Todos vão dormir no chão Cobriremos nossos corpos com os casacos e tiritaremos com o frio da primavera Taparemos os ouvidos quando por pequenas faltas as pessoas forem espancadas com cassetetes de borracha no centro do campo Não há água encanada Chegam baldes nunca suficientes em carroças puxadas a cavalo No início as rações combinadas com as panquecas que minha mãe faz com os restos que trouxe de casa são suficientes para nos alimentar mas depois de alguns dias a dor da fome se torna um incômodo constante Magda vê sua exprofessora de ginástica na barraca ao lado se esforçando para cuidar de um bebê recémnascido nessas condições de inanição O que vou fazer quando meu leite acabar sussurra ela para nós Meu bebê chora sem parar O campo tem dois lados divididos por uma rua Nosso lado é ocupado pelos judeus de nossa área da cidade Descobrimos que todos os judeus de Kassa estão sendo mantidos aqui na fábrica de tijolos Encontramos vizinhos comerciantes professores e amigos mas meus avós cuja casa ficava a trinta minutos de caminhada de nosso apartamento não estão no nosso lado do campo Portões e guardas nos separam do outro lado Não devemos cruzar Imploro ao guarda e ele me autoriza a procurar meus avós Passo pelas barracas sem paredes repetindo baixinho seus nomes Enquanto ando para cima e para baixo pelas filas de famílias amontoadas também repito o nome de Eric Digo a mim mesma que é apenas questão de tempo e perseverança Vou encontrálo ou ele vai me encontrar Não encontro meus avós Não encontro Eric Então certa tarde quando as carroças de água chegam e as multidões correm para recolher um pequeno balde ele me vê sentada sozinha guardando os casacos da família Ele beija minha testa meu rosto meus lábios Toco o cinto de camurça de meu vestido de seda agradecendo a boa sorte Combinamos de nos encontrar todo dia dali em diante Às vezes especulamos sobre o que nos acontecerá Os boatos dizem que seremos enviados para um lugar chamado Kenyérmező um campo de concentração onde trabalharemos e viveremos longe da guerra com nossas famílias Não sabemos que os boatos foram espalhados pela polícia húngara e pelos nyilas para nos dar falsas esperanças Depois da guerra pilhas de cartas de parentes preocupados permanecerão nos postos de correios fechadas com o endereço de Kenyérmező Não existe lugar algum com esse nome Os lugares que de fato existem e que esperam a chegada de nossos trens estão além da imaginação Depois da guerra Essa é a época em que eu e Eric nos permitimos pensar a respeito Iremos para a universidade Vamos nos mudar para a Palestina Continuaremos a frequentar os salões e clubes do livro que iniciamos na escola Terminaremos a leitura de A interpretação dos sonhos de Freud De dentro da fábrica de tijolos podemos ouvir o barulho dos bondes passando Eles estão ao nosso alcance Como seria fácil entrar em um deles Mas qualquer um que se aproxime da cerca externa é morto sem aviso prévio Uma garota um pouco mais velha do que eu tenta correr Eles penduram seu corpo no meio do campo como exemplo Meus pais não dizem uma palavra para mim ou Magda sobre a morte dela Tente pegar um pequeno torrão de açúcar recomenda papai Pegue um bloco de açúcar e guardeo Sempre mantenha alguma coisa doce em seu bolso Um dia soubemos que meus avós foram enviados num dos primeiros transportes que deixaram a fábrica Imagino que os encontraremos em Kenyérmező Dou um beijo de boanoite em Eric e imagino que os lábios dele são a coisa mais doce que encontrarei aqui Certa manhã bem cedo depois de cerca de um mês na fábrica nosso lado do campo foi esvaziado Tento encontrar alguém que passe uma mensagem para Eric Deixe para lá Dicu diz mamãe Ela e papai escreveram uma carta de adeus para Klara mas não têm como enviála Vejo mamãe jogar a carta na calçada como se estivesse batendo a cinza de um cigarro e vejo a carta desaparecer debaixo de seis mil pés A seda de meu vestido roça nas minhas pernas à medida que nos movimentamos e paramos nos movimentamos e paramos três mil pessoas andando na direção dos portões da fábrica empurradas para a longa fila de caminhões à nossa espera Mais uma vez nos amontoamos no escuro Um pouco antes de partirmos ouço meu nome É Eric Ele está me chamando através das ripas de madeira do caminhão Abro caminho na direção de sua voz Estou aqui digo enquanto o motor é acionado O espaço entre as ripas é muito estreito para que eu possa vêlo ou tocálo Nunca esquecerei seus olhos diz ele Nunca esquecerei suas mãos Repito essas frases sem parar quando embarcamos em um vagão lotado na estação de trem Não ouço os gritos dos oficiais nem o choro das crianças eu me consolo com a lembrança da voz de Eric Se eu sobreviver ao dia de hoje então poderei lhe mostrar os meus olhos as minhas mãos Respiro no ritmo de sua voz Se eu sobreviver hoje Se eu sobreviver hoje amanhã serei livre O vagão do trem é diferente de tudo que já vi Não é um trem de passageiros é para transportar gado ou carga Somos uma carga humana Centenas de pessoas em um vagão Cada hora parece uma semana A incerteza faz os momentos se alongarem A incerteza e o barulho incessante das rodas nos trilhos Um pedaço de pão é para ser dividido por oito pessoas Um balde de água Um balde para os dejetos corporais Cheiro de suor e de excrementos Pessoas morrem no caminho Todos dormimos em pé apoiados nos parentes encostados nos mortos Vejo um pai dar algo à filha um pacote de comprimidos Se eles tentarem fazer alguma coisa com você diz ele De vez em quando o trem para e algumas pessoas de cada vagão têm ordem de sair para pegar água Magda leva o balde uma vez Estamos na Polônia ela nos conta quando retorna Depois explica como descobriu Quando foi buscar água um homem no campo gritou uma saudação para ela em polonês e em alemão dizendo o nome da cidade e gesticulando freneticamente passou o dedo ao longo do pescoço Só queria nos assustar afirmou Magda O trem segue Meus pais se encostam um em cada lado de mim Eles não se falam Nunca os vejo se tocarem A barba de papai está crescendo grisalha Ele parece mais velho que o pai dele e isso me assusta Peço que faça a barba Não havia como saber que a juventude podia realmente salvar uma vida quando chegarmos ao fim dessa jornada É apenas intuição apenas uma garota sentindo falta do pai que ela conhece querendo que ele seja novamente o bon vivant o paquerador jovial o mulherengo Não quero que fique como o pai com os comprimidos que sussurra para a família Isso é pior do que a morte Quando beijo meu pai no rosto e peço Papa por favor faça a barba ele responde com raiva Para quê Para quê Para quê Fico envergonhada por falar a coisa errada e deixálo aborrecido comigo Por que falei a coisa errada Por que achei que era minha obrigação dizer a meu pai o que fazer Lembro da raiva dele quando perdi o dinheiro da escola Eu me encosto em mamãe buscando consolo Queria que meus pais se ajudassem em vez de se comportarem como estranhos Mamãe não fala muito Mas também não reclama muito Ela não quer morrer Ela simplesmente se voltou para dentro de si mesma Dicuka chama ela numa noite escura escute Não sabemos para onde estamos indo Não sabemos o que vai acontecer Só não se esqueça de que ninguém pode tirar de você o que você colocar na sua mente Embarco em outro sonho com Eric Acordo novamente Eles abrem as portas do vagão de gado e a luz brilhante do sol de maio invade o espaço Estamos desesperados para sair Corremos na direção do ar e da luz Praticamente caímos do vagão atropelando uns aos outros na ânsia de descer Depois de vários dias dentro de um trem em movimento incessante é difícil ficar em pé em terra firme Tentamos de todo jeito nos orientar descobrir nossa localização controlar nossos nervos e nossos corpos Vejo um conjunto compacto de casacos escuros de inverno numa estreita faixa de terra Vejo um ponto branco no lenço de alguém ou numa trouxa de tecido com os pertences de alguém o amarelo das estrelas obrigatórias Vejo a frase ARBEIT MACHT FREI O trabalho liberta Tem música tocando Papai fica alegre imediatamente Está vendo diz ele Não pode ser um lugar tão terrível Parecia que ele sairia dançando se a plataforma não estivesse tão lotada Vamos apenas trabalhar um pouco até a guerra acabar continua Os boatos que ouvimos na fábrica de tijolos devem ser verdadeiros Devemos estar aqui para trabalhar Procuro por plantações nos campos ao redor e imagino o corpo esguio de Eric na minha frente curvado para fazer a colheita Em vez disso vejo linhas horizontais contínuas as tábuas nos vagões de gado a interminável cerca de arame farpado os prédios baixos Ao longe algumas árvores e chaminés quebram a linha do horizonte desse lugar árido Homens uniformizados nos empurram Ninguém explica nada Eles simplesmente dão ordens Venha cá Vá para lá Os nazistas apontam e empurram Os homens são colocados numa fila separada Vejo papai acenar para nós Talvez os homens sejam enviados na frente para arranjar um lugar para suas famílias Imagino onde dormiremos essa noite Imagino onde comeremos Mamãe Magda e eu estamos de pé juntas numa fila longa de mulheres e crianças Avançamos lentamente até nos aproximarmos do homem que com um movimento do dedo indicador decidirá nossos destinos Ainda não sei que esse homem é o Dr Josef Mengele o infame Anjo da Morte Conforme avançamos na direção dele não consigo desviar meu olhar de seus olhos dominadores e frios À medida que nos aproximamos vejo de relance os dentes separados quando ele sorri o que lhe dá um ar juvenil Sua voz é quase gentil ao perguntar se alguém está doente e indicar aos que dizem sim que sigam para o lado esquerdo Se você tem mais de 14 anos e menos de 40 anos fique nesta fila diz outro oficial Acima de 40 vá para a esquerda Uma longa fila de idosos crianças e mães segurando bebês faz uma bifurcação à esquerda Minha mãe tem cabelo grisalho todo grisalho um grisalho precoce mas seu rosto é tão liso e sem rugas quanto o meu Magda e eu esprememos nossa mãe entre nós É a nossa vez Dr Mengele comanda Ele aponta a esquerda para minha mãe Começo a seguila Ele me segura pelo ombro Você verá sua mãe em breve diz ele Ele vai apenas tomar um banho E empurra a mim e Magda para a direita Não sabemos o significado de esquerda e direita Para onde estamos indo agora nós nos perguntamos O que vai nos acontecer Andamos em direção a uma parte diferente daquele campo árido Estamos cercadas de mulheres a maioria jovens Algumas parecem animadas quase em júbilo gratas por estarem respirando um ar puro e desfrutando do sol na pele depois do fedor implacável e do escuro claustrofóbico do trem Outras mordem os lábios O medo circula entre nós mas também a curiosidade Paramos na frente de outros prédios baixos Mulheres com vestidos listrados nos rodeiam Logo entendemos que elas são as prisioneiras encarregadas de mandar nas outras mas ainda não sabemos que somos prisioneiras aqui Desabotoei o casaco no sol e uma das garotas de vestido listrado vê minha seda azul Ela vem em minha direção com uma postura atrevida Olhe só para você diz ela em polonês e chuta terra em meus sapatos de saltos baixos Antes que eu me dê conta do que está acontecendo ela agarra os minúsculos brincos de coral e ouro que de acordo com a tradição húngara estão em minhas orelhas desde que nasci Ela dá um puxão e eu sinto uma dor aguda Ela coloca os brincos no bolso Apesar da dor eu queria desesperadamente que ela gostasse de mim Como sempre quero ser aceita Seu olhar de desdém machuca mais do que meus lóbulos rasgados Por que você fez isso pergunto Eu teria lhe dado os brincos Eu estava apodrecendo aqui enquanto você estava livre indo à escola e ao cinema diz ela Perguntome há quanto tempo ela está aqui Ela é magra mas musculosa É alta Podia ser uma bailarina Talvez eu a deixe tão zangada porque a faço se lembrar da vida normal Quando verei minha mãe pergunto a ela Me disseram que a veria logo Ela me olha com frieza e agressividade Não há empatia em seus olhos Não há nada a não ser raiva Ela aponta para a fumaça subindo de uma das chaminés a distância Sua mãe está queimando lá dentro É melhor você começar a falar dela no passado C A P Í T U L O 3 Dançando no inferno Todo o seu êxtase na vida virá de dentro de você disse meu professor de balé uma vez Eu não havia entendido o que ele queria dizer Até Auschwitz Magda olha para a chaminé no alto do prédio em que nossa mãe entrou A alma nunca morre diz ela Minha irmã encontra palavras de consolo Mas eu estou em choque Estou zonza não consigo pensar nas coisas incompreensíveis que estão acontecendo e que já aconteceram Não consigo imaginar minha mãe consumida pelas chamas Não consigo entender completamente que ela está morta E não posso perguntar a razão Não posso sequer sofrer Não agora Vou precisar de toda a minha atenção para sobreviver ao minuto seguinte Vou sobreviver se minha irmã estiver lá Vou sobreviver me grudando a ela como se fosse sua sombra Somos conduzidas até os silenciosos porém reverberantes chuveiros Roubam nosso cabelo Ficamos em pé do lado de fora tosquiadas e nuas esperando por nossos uniformes Insultos dos kapos e dos oficiais da SS atingem como flechas nossa pele nua e molhada Piores do que suas palavras são seus olhares Tenho certeza de que o desgosto com que eles nos encaram poderia rasgar minha pele quebrar minhas costelas O ódio deles é ao mesmo tempo possessivo e indiferente e isso me deixa doente Houve um tempo em que achei que Eric seria o primeiro homem a me ver nua Agora ele nunca vai ver o meu corpo sem as marcas do ódio Será que eles já me transformaram em algo sub humano Algum dia voltarei a ser a garota que eu era Nunca esquecerei seus olhos nunca esquecerei suas mãos Tenho que me controlar senão por mim mesma então por Eric Olho para minha irmã que está silenciosa em choque mas conseguiu não sair do meu lado em cada movimento desordenado de lugar para lugar em cada fila lotada Ela estremece quando o sol se põe segurando seus cachos cortados mechas grossas de seu cabelo destruído Ficamos nuas durante horas e ela segura seu cabelo como se ao fazer isso pudesse se controlar manter sua humanidade Ela está tão próxima de mim que estamos quase nos tocando e ainda assim tenho saudades dela Magda A garota confiante e sexy cheia de piadas Onde ela está Ela parece se fazer a mesma pergunta Ela procura por si mesma em seus tufos de cabelo As contradições desse lugar me irritam O assassinato acabamos de aprender é eficiente aqui Sistemático Mas parece não existir uma organização para a distribuição dos uniformes pelos quais esperamos quase o dia todo Os guardas são cruéis e rígidos ainda que pareça não haver ninguém responsável O exame minucioso que eles fazem de nossos corpos não sinaliza nosso valor significa apenas o quanto fomos esquecidas pelo mundo Nada faz sentido Mas a espera interminável a completa falta de reação tudo isso deve fazer parte do plano Como posso me manter firme num lugar em que a única estabilidade está nas cercas na morte na humilhação na permanente coluna de fumaça Magda finalmente fala Como estou pergunta ela Diga a verdade A verdade Ela parece um cão sarnento Uma estranha nua Não posso dizer isso é óbvio mas qualquer mentira machucaria tremendamente então preciso encontrar uma resposta impossível uma verdade que não doa Olho no azul feroz de seus olhos e penso que mesmo para ela fazer a pergunta Como estou é a coisa mais corajosa que já ouvi na vida Não existem espelhos aqui Ela está me pedindo para ajudála a encontrar e a encarar o próprio rosto Portanto falo a única coisa verdadeira que posso Seus olhos são muito lindos Nunca prestei atenção neles quando estavam cobertos por todo aquele cabelo É a primeira vez que percebo que temos uma escolha prestar atenção ao que perdemos ou prestar atenção ao que ainda temos Obrigada sussurra ela As outras coisas que quero lhe perguntar ou contar a ela parecem melhores quando não ditas As palavras não podem expressar essa nova realidade Do casaco cinza nos ombros de minha mãe onde me recosto ao trem que segue em frente O rosto entristecido de meu pai O que eu não daria para ter esses momentos tristes e angustiados de volta A transformação de meus pais em fumaça Dos dois meu pai e minha mãe Preciso admitir que papai também está morto Estou quase perguntando a Magda se podemos nos atrever a ter esperança de que não ficamos totalmente órfãs no espaço de um dia mas vejo que ela largou o cabelo no chão sujo Eles trazem os uniformes vestidos cinzentos mal cortados feitos de lã e algodão áspero O céu está escurecendo Eles nos levam para barracões soturnos e toscos onde dormiremos em beliches seis pessoas dividindo cada estrado É um alívio entrar no espaço horrendo deixar de ver a chaminé com sua fumaça interminável A kapo a jovem que roubou meus brincos nos distribui pelos beliches e explica as regras Ninguém pode sair à noite Há o balde nosso banheiro noturno Com nossas colegas de beliche Magda e eu tentamos deitar no estrado do alto Descobrimos que há mais espaço se alternamos cabeças e pés Ainda assim ninguém pode virar ou ajustar sua posição sem deslocar a outra pessoa Criamos um sistema para nos virarmos juntas coordenando nossos movimentos A kapo entrega uma tigela para cada nova prisioneira Não perca ela avisa Se você não tiver uma tigela não come No barracão escuro esperamos pela próxima ordem Receberemos uma refeição Seremos mandadas para dormir Ouvimos música Talvez eu esteja imaginando o som de instrumentos de sopro e cordas mas outra prisioneira explica que há uma orquestra aqui no campo comandada por uma violinista de nível internacional Klara eu penso No entanto a violinista que ela menciona é vienense Ouvimos conversas entrecortadas em alemão que vêm de fora do barracão A kapo se ajeita quando a porta abre com um estrondo Lá na entrada reconheço o oficial uniformizado da fila de seleção Sei que é ele a maneira como sorri com os lábios abertos o espaço entre os dentes da frente Dr Mengele aprendemos É um assassino refinado e amante das artes Ele passeia entre os barracões à noite procurando prisioneiras talentosas para divertilo Nesta noite com seu grupo de assistentes ele entra e olha as recémchegadas em seus vestidos largos os cabelos mal cortados Ficamos em pé imóveis encostadas nos beliches de madeira no canto da sala Ele nos examina Magda discretamente toca minha mão Dr Mengele faz uma pergunta e antes que eu perceba o que está acontecendo as garotas que estão bem junto de mim que sabem que fui bailarina e ginasta em Kassa me empurram para mais perto do Anjo da Morte Ele me analisa Não sei para onde olhar Olho para a frente diretamente para a porta aberta A orquestra está de prontidão bem do lado de fora Está em silêncio aguardando ordens Eu me sinto como Eurídice no Inferno esperando Orfeu tocar uma corda na sua lira capaz de derreter o coração de Hades e me libertar Ou como Salomé obrigada a dançar para o padrasto Herodes levantando véu após véu para expor seu corpo A dança lhe dá poder ou a dança tira seu poder Pequena dançarina diz Dr Mengele dance para mim Ele manda os músicos começarem a tocar A conhecida abertura da valsa Danúbio azul se insinua no espaço fechado e escuro Os olhos de Mengele estão fixos em mim Tenho sorte Conheço a coreografia do Danúbio azul a ponto de poder dançála até dormindo Mas meus braços e minhas pernas estão pesados como acontece nos pesadelos quando você está em perigo e não consegue fugir Dance ordena ele novamente Sinto que meu corpo começa a se mexer Primeiramente a batida de perna alta Depois a pirueta o giro os espacates Para o alto Conforme faço os passos e me curvo e giro posso ouvir Mengele falando com o assistente Ele não tira os olhos de mim mas cumpre com seus deveres enquanto assiste Posso ouvir sua voz acima da música Ele define com o outro oficial quais garotas entre as centenas serão mortas a seguir Se eu perder um passo se fizer algo que o desagrade posso estar entre elas Eu danço danço Estou dançando no inferno Não consigo olhar para o carrasco enquanto ele decide nossos destinos Fecho os olhos Foco na minha série nos meus anos de treinamento Cada linha e cada curva de meu corpo como as sílabas de um verso contam uma história uma garota chega para dançar e rodopia de entusiasmo e expectativa mas depois ela faz uma pausa para refletir e observar O que acontecerá nas próximas horas Quem ela vai encontrar Ela se vira em direção à fonte os braços estendidos para cima e fazendo movimentos circulares como se abraçasse a cena à sua volta Ela se curva para colher flores e as joga uma a uma para os admiradores e colegas brincalhões Lança as flores para as pessoas distribuindo símbolos de amor Posso ouvir os violinos Meu coração acelera Em minha escuridão pessoal interna ouço as palavras de minha mãe como se ela estivesse lá na sala sombria sussurrando Não se esqueça ninguém pode tirar de você o que você colocou em sua própria mente Dr Mengele minhas companheiras prisioneiras mortas de fome a desafiante que sobreviverá e a que logo estará morta todas até mesmo minha querida irmã desaparecem e a única palavra que existe é a que está dentro da minha cabeça O Danúbio azul termina e agora posso escutar Romeu e Julieta de Tchaikovsky O piso do barracão se transforma no palco da Ópera de Budapeste Danço para os meus fãs na plateia Danço no halo brilhante das luzes quentes Danço para meu amante Romeu quando ele me ergue bem acima do palco Danço por amor Danço pela vida Conforme eu danço descubro uma pérola de sabedoria que nunca esqueci Nunca saberei qual milagre me concedeu esse insight Ele salvará minha vida muitas vezes mesmo depois que o horror acabar Posso ver que o Dr Mengele o experiente assassino que nesta manhã matou minha mãe é mais patético do que eu Sou livre em minha mente algo que ele nunca será Ele terá que viver para sempre com o que fez Ele é mais prisioneiro do que eu Quando termino a série com um espacate gracioso rezo não por mim mas por ele Rezo para o bem dele para que ele não tenha que me matar Ele deve ter ficado impressionado com o meu desempenho porque jogou um pedaço de pão para mim um gesto que mais tarde salvará minha vida Conforme a tarde vira noite eu compartilho o pão com Magda e com nossas companheiras de beliche Sou grata por ter um pão Sou grata por estar viva Nas primeiras semanas em Auschwitz eu aprendo as regras de sobrevivência Se você conseguir roubar um pedaço de pão dos guardas vira heroína mas se roubar de uma prisioneira cairá em desgraça e estará morta A competição e a dominação não levam a lugar nenhum cooperação é o nome do jogo Sobreviver é transcender as próprias necessidades e se comprometer com alguém ou algo fora de si mesma Para mim esse alguém é Magda esse algo é a esperança de que verei Eric novamente amanhã quando estiver livre Para sobreviver nós invocamos um mundo interior um refúgio mesmo quando nossos olhos estão abertos Relembro uma colega prisioneira que conseguiu guardar uma foto dela mesma de antes de ser presa uma foto em que estava com cabelos compridos Isso permitia que ela se lembrasse de quem era que recordasse que aquela pessoa ainda existia Essa consciência tornouse o refúgio que conservou sua vontade de viver Lembro que alguns meses depois no inverno recebemos casacos velhos Eles simplesmente jogaram os casacos para nós aleatoriamente sem atenção ao tamanho Ficou a nosso encargo encontrar aquele que melhor coubesse e lutar por ele Magda teve sorte Jogaram para ela um casaco grosso longo e pesado com botões até o pescoço Ele era muito quente muito cobiçado Mas ela o trocou imediatamente O casaco que escolheu era uma coisinha fininha que mal cobria os joelhos deixando muito do peito exposto Para Magda vestir algo sexy era uma ferramenta de sobrevivência melhor do que ficar aquecida Sentirse atraente lhe dava algo lá dentro uma sensação de dignidade que era mais valiosa para ela do que o conforto físico Lembro que festejávamos mesmo quando estávamos morrendo de fome Cozinhávamos o tempo todo em Auschwitz Em nossa imaginação a toda hora celebrávamos e brigávamos sobre a quantidade de páprica que devia ser colocada no frango húngaro ou sobre como fazer o melhor bolo de chocolate com sete camadas Acordávamos às quatro horas da madrugada para a Appell a contagem e recontagem em que conferiam a presença de todas nós Ficávamos de pé na escuridão gelada sentindo o cheiro rico e aromático da carne cozinhando Marchávamos para o trabalho diário que podia ser em um galpão chamado Canadá onde recebíamos ordens para separar os pertences dos prisioneiros recémchegados ou em alojamentos que devíamos limpar e limpar e limpar ou nos crematórios onde as mais desafortunadas eram obrigadas e recolher dentes de ouro cabelos e peles dos cadáveres antes da cremação seguinte Conversávamos como se estivéssemos indo ao mercado planejando o cardápio semanal e discutíamos como verificar se as frutas e os vegetais estavam maduros Trocávamos receitas Veja como fazer uma palacsinta ou o crepe húngaro Quão fina devia ser a panqueca A quantidade de açúcar e de nozes Você coloca cominho em seu székely gulyás Você usa duas cebolas Não três Não somente uma e meia Salivávamos com nossos pratos imaginários e quando comíamos a única refeição verdadeira do dia sopa aguada com um pedaço de pão velho eu falava sobre o ganso que minha mãe havia trancado no sótão e alimentado diariamente com milho para o fígado crescer até chegar a hora de matar a ave e fazer patê Quando deitávamos nos beliches à noite e finalmente dormíamos também sonhávamos com comida O relógio da vila toca às 10h e meu pai entra em nosso apartamento com um pacote do açougueiro do outro lado da rua Hoje ele traz um pedaço de carne de porco escondido num jornal Dicuka venha provar ele me chama Que exemplo você é reclama mamãe dar porco a uma garota judia Mas ela fala isso quase sorrindo Ela está preparando strudel esticando a massa na mesa da sala de jantar amassandoa com as mãos e soprando embaixo até que fique fina como uma folha de papel O sabor das pimentas e das cerejas no strudel da minha mãe os ovos recheados que ela fazia a massa que cortava à mão tão rapidamente que eu tinha medo que perdesse um dedo a chalá o pão do Shabat para mamãe cozinhar envolvia uma criação artística tão importante quanto o prazer de apreciar a refeição pronta As fantasias culinárias nos reconfortaram em Auschwitz Assim como atletas e músicos podem melhorar sua técnica através da prática mental éramos artistas dos barracões sempre em plena criação O que fizemos em nossas mentes nos proporcionou uma espécie de apoio Certa noite encenamos um concurso de beleza no barracão Em frente aos beliches desfilamos com nossos vestidos cinza disformes nossa roupa íntima encardida Existe um provérbio húngaro que diz que a beleza se revela nos ombros Ninguém consegue fazer pose tão bem quanto Magda Ela ganha o concurso Mas ninguém está com sono Sugiro um concurso melhor diz Magda Quem tem os melhores peitos Ficamos nuas no escuro e desfilamos com nossos peitos à mostra Há poucos meses eu me exercitava mais de cinco horas por dia no estúdio Costumava pedir a papai que batesse na minha barriga de modo a sentir o quanto eu estava forte Eu podia até levantar e carregar papai Sinto aquele orgulho em meu corpo agora com o tronco nu e morrendo de frio no barracão Antes eu invejava os seios arredondados e atraentes de mamãe e sentia vergonha dos meus peitinhos minúsculos Mas são esses que nós valorizamos na Europa Caminho no escuro como uma modelo e ganho o concurso Minha irmã famosa diz Magda quando adormecemos É possível escolher o que o horror nos ensina Podemos ficar amargas com o sofrimento e o medo Hostis Paralisadas Ou podemos nos agarrar ao nosso lado infantil à parte animada e curiosa à parte que é inocente Outra noite eu aprendo que a jovem no beliche ao lado do meu era casada antes da guerra Insisto com ela por informações Como é estar casada pergunto Pertencer a um homem Não estou interessada em sexo não inteiramente Claro que a paixão me interessa Acima de tudo a ideia do pertencimento diário Em seu suspiro escuto o eco de algo lindo intocado pela perda Por alguns minutos quando ela fala eu vejo o casamento não como meus pais o vivenciaram mas como algo luminoso É mais promissor até mesmo do que o bemestar tranquilizador do afeto de meus avós Soa como amor um amor completo Quando minha mãe me disse Estou feliz por você ser inteligente porque você não é bonita essas palavras mexeram com meu medo de ser inadequada indigna Mas em Auschwitz a voz de minha mãe soa em meus ouvidos com um significado diferente Eu sou inteligente Eu sou esperta Vou resolver as coisas As palavras que ouço na minha cabeça fazem uma tremenda diferença em minha capacidade de manter a esperança Isso era verdade também para outras presas Descobrimos uma força interior na qual pudemos nos apoiar uma maneira de conversar com nós mesmas que ajudou a criar uma sensação de liberdade interna responsável por nosso equilíbrio moral que nos deu base e segurança mesmo quando as forças externas buscavam nos controlar e destruir Sou boa aprendemos a dizer Sou inocente De alguma forma algo bom resultará disto Conheci uma garota em Auschwitz que estava muito doente definhando Toda manhã eu achava que ia encontrála morta no beliche e todo dia temia que ela fosse enviada para a morte nas filas de seleção Mas ela me surpreendia Conseguia reunir forças toda manhã para trabalhar por mais um dia e mostrar um brilho de vida nos olhos sempre que enfrentava o dedo indicador de Mengele De noite ela praticamente desmaiava em seu beliche respirando com dificuldade Perguntei como ela conseguia seguir em frente Ouvi que vamos ser liberadas no Natal respondeu Ela guardava um calendário detalhado na cabeça fazendo a contagem regressiva dos dias e das horas até a nossa liberação e estava determinada a viver para ficar livre Então veio o Natal porém nossos libertadores não chegaram Ela morreu no dia seguinte Acredito que aquela voz interna de esperança a mantinha viva quando ela perdeu a esperança não conseguiu continuar Embora quase todos ao meu redor oficiais da SS kapos companheiras de prisão me dissessem a cada momento desde a Appell até o fim do dia de trabalho desde as filas de seleção até as filas de comida que eu nunca sairia viva do campo de concentração eu me esforcei para desenvolver uma voz interna que oferecia uma história alternativa Isso é temporário eu dizia a mim mesma Se eu sobreviver hoje amanhã serei livre Em Auschwitz todos os dias nos mandavam para os chuveiros e todo banho era carregado de incerteza Nunca sabíamos se ia sair gás ou água do cano Certo dia quando senti a água caindo sobre nós respirei aliviada Espalhei o sabão gorduroso em meu corpo Ainda não estava apenas pele e osso Aqui no silêncio depois do medo eu consigo me reconhecer Meus braços e pernas e a barriga ainda são firmes com minha musculatura de bailarina Eu me entrego à fantasia de Eric Somos estudantes universitários agora morando em Budapeste Vamos até um café com nossos livros para estudar Os olhos dele saem da página e passeiam pelo meu rosto Sinto que ele faz uma pausa nos meus olhos e lábios Bem quando imagino levantar o rosto para receber seu beijo percebo que a sala de banho ficou silenciosa Sinto um frio na barriga O homem que mais temo entre todos os outros está parado na porta O Anjo da Morte olha diretamente para mim Olho para o chão esperando que as outras comecem a respirar novamente para que eu saiba que ele foi embora Mas ele não sai Você chama ele Minha pequena bailarina Tento ouvir a voz de Eric mais alta do que a de Mengele Nunca esquecerei seus olhos Nunca esquecerei suas mãos Venha ordena ele Eu obedeço O que mais posso fazer Caminho na direção dos botões do casaco dele evitando os olhos de minhas companheiras prisioneiras porque não suporto a ideia de enxergar o meu medo refletido neles Respire respire digo a mim mesma Ele me leva nua e molhada pelo corredor até um escritório com uma mesa uma cadeira A água escorre de meu corpo no chão frio Ele se inclina sobre a mesa e olha para mim sem pressa Estou aterrorizada demais para pensar porém pequenas correntes de impulso percorrem o meu corpo como reflexos Dê um chute nele Um grand battement na cara Joguese no chão encolhase como uma bola e aguente firme Espero que seja lá o que ele pretenda fazer comigo acabe rapidamente Chegue mais perto diz ele Eu o encaro quando me aproximo mas não o vejo Foco apenas na parte viva de mim Sim eu consigo sim eu consigo Sinto o corpo dele ao me aproximar Um cheiro de mentol Sinto um gosto metálico na língua Enquanto estiver tremendo sei que estou viva Os dedos dele se ocupam com os botões Sim eu consigo sim eu consigo Penso em mamãe e em seu cabelo comprido Na maneira como ela o enrolava no alto da cabeça e o soltava como uma cortina à noite Estou nua com seu assassino mas ele não pode tirála de mim Quando estou perto o suficiente para que ele me toque com dedos que estou determinada a não sentir um telefone toca na outra sala Ele recua Fecha o casaco Não se mexa ordena enquanto abre a porta Escuto Mengele atender o telefone na outra sala com uma voz neutra e áspera Não penso Corro Minha lembrança seguinte é a de estar sentada ao lado de minha irmã enquanto devoramos a concha de sopa diária os pequenos pedaços de casca de batata que boiam no caldo como escamas O medo de que ele me encontrará e me punirá de que terminará o que começou de que me escolherá para morrer nunca me abandona O medo nunca desaparece Não sei o que acontecerá a seguir Mas enquanto isso posso me manter viva internamente Eu sobrevivi hoje repito na minha cabeça Eu sobrevivi hoje Amanhã serei livre C A P Í T U L O 4 Fazendo estrelas Em meados de 1944 Magda e eu percebemos que não chegam mais judeus húngaros ao campo Depois saberemos que em julho o primeiroministro Horthy cansado de se curvar à autoridade alemã interrompeu as deportações Ele demorou demais Centenas de milhares de húngaros já haviam sido mandados para os campos de concentração 400 mil foram assassinados em dois curtos meses Em outubro o governo de Horthy foi derrubado pelos nazistas Os duzentos mil judeus que ainda permaneciam na Hungria a maioria em Budapeste não foram levados para Auschwitz Fizeram uma marcha forçada de 320 quilômetros até a Áustria Mas não sabíamos de nada disso na época não sabíamos nada da vida ou da guerra fora do campo Numa manhã de inverno no fim do ano ficamos em pé em outra fila O frio dói Estamos prestes a ser tatuadas Espero a minha vez Enrolo a manga Apresento o braço Meus movimentos são automáticos faço o que se exige de mim e sinto tanto frio e tanta fome que estou quase paralisada Alguém sabe que estou aqui Eu costumava pensar nisso o tempo todo e agora a pergunta surge com dificuldade como se surgisse de trás de uma névoa densa e consistente Não consigo lembrar como eu pensava antes Preciso me recordar da imagem de Eric mas se penso nele de maneira muito consciente não consigo recriar seu rosto Preciso enganar a mim mesma na recordação me pegar desprevenida Onde está Magda Essa é minha primeira pergunta ao acordar quando seguimos para o trabalho e a última antes de cair no sono Olho ao redor para confirmar que ela ainda está ao meu lado Mesmo que nossos olhos não se encontrem sei que ela também está cuidando de mim Passei a guardar meu pão da refeição noturna para podermos dividilo pela manhã O funcionário com a agulha e a tinta está bem na minha frente agora Ele segura meu punho e começa a furar mas então me empurra para o lado Não vou desperdiçar tinta com você diz ele e me joga para uma fila diferente Essa fila é a morte diz a garota ao meu lado É o fim Ela está completamente grisalha como se estivesse coberta de poeira Alguém mais à frente na fila está rezando Num lugar onde a ameaça da morte é constante este momento ainda me comove De repente penso na diferença entre mortífero e mortal Auschwitz é as duas coisas As chaminés soltam fumaça incessantemente Todo instante pode ser o último Portanto por que se importar Por que investir Ainda assim se este momento este especificamente for o meu último na Terra devo desperdiçálo com resignação e derrota Devo passálo como se já estivesse morta Nunca sabemos o que a fila significa digo à garota ao meu lado E se o desconhecido nos deixasse curiosas em vez de amedrontadas Então vejo Magda Ela foi selecionada para uma fila diferente Se eu estiver sendo enviada para morrer se estiver sendo enviada para trabalhar se eles me removerem para um campo diferente como já começaram a fazer com outras pessoas Nada importa a não ser ficar com minha irmã e ela comigo Somos as poucas prisioneiras de sorte que ainda não ficaram completamente isoladas de seus familiares Não é exagero dizer que eu vivo para minha irmã Não é exagero dizer que minha irmã vive para mim Há uma confusão no pátio Não sei o que a fila significa A única coisa que sei é que preciso passar com Magda por seja lá o que vier a acontecer Mesmo que seja a morte Observo o fosso coberto por uma crosta de neve que nos separa Os guardas nos cercam Não tenho um plano O tempo é lento e o tempo é rápido Magda e eu nos encaramos Vejo seus olhos azuis Então estou em movimento fazendo estrelas Com as mãos no chão os pés no ar eu giro giro Um guarda me olha Ele está de cabeça para cima Ele está de cabeça para baixo Espero uma bala a qualquer instante Não quero morrer mas não consigo deixar de girar mais uma vez Ele não levanta a arma Está surpreso demais para atirar em mim Estou tonta demais para ver Ele pisca o olho para mim Ok ele parece dizer desta vez você venceu Nos poucos segundos em que atraí a atenção do guarda Magda cruzou correndo o pátio para se juntar a mim Nós nos misturamos à multidão de garotas esperando por seja lá o que acontecerá a seguir Somos levadas pelo pátio congelado na direção da plataforma de trem na qual desembarcamos seis meses antes onde fomos separadas de nosso pai onde andamos com nossa mãe entre nós até os últimos momentos de sua vida Havia música então Agora há silêncio se considerarmos que o vento não tem som A fúria constante do frio opressivo a boca escancarada e arfante da morte e do inverno já não parecem barulhentas para mim Minha cabeça está repleta de dúvidas e medo mas esses pensamentos são tão constantes que não parecem mais ser pensamentos Quase sempre é o fim Estamos apenas indo para um lugar trabalhar até o fim da guerra nos disseram Se pudéssemos escutar pelo menos dois minutos de notícias saberíamos que a guerra pode ser a próxima vítima Enquanto aguardamos para subir a rampa do vagão de gado os russos entram na Polônia de um lado e os americanos de outro Os nazistas estão esvaziando Auschwitz aos poucos Os prisioneiros que deixam para trás aqueles que conseguirem sobreviver mais um mês em Auschwitz logo serão libertados Nós nos sentamos no escuro à espera da partida do trem Um soldado da Wehrmacht o exército alemão não da SS enfia a cabeça na porta do vagão e fala conosco em húngaro Vocês têm que comer diz ele Não importa o que eles falem lembremse de comer porque vocês podem ser libertadas logo É esperança que ele está nos oferecendo Ou uma falsa promessa Uma mentira Este soldado é como os nyilas da fábrica de tijolos espalhando boatos uma voz de autoridade para silenciar nossa sabedoria interior Quem relembra a uma pessoa em estado de inanição que ela precisa comer Mas mesmo no escuro do vagão de gado o rosto dele iluminou quilômetros de cercas quilômetros de neve Era possível ver que os olhos dele eram gentis Que estranho que a gentileza agora pareça um truque de luz Perco a noção do tempo que ficamos em movimento Durmo no ombro de Magda ela no meu A voz de minha irmã me acorda Ela está conversando com alguém que não consigo enxergar no escuro Minha professora explica ela Aquela da fábrica de tijolos aquela cujo bebê chorava sem parar Em Auschwitz todas as mulheres com crianças pequenas foram mortas na câmara de gás desde o início O fato de ela ainda estar viva significa apenas uma coisa seu bebê morreu O que é pior ser uma criança que perdeu a mãe ou uma mãe que perdeu o filho Quando a porta se abre estamos na Alemanha Não há mais que duzentas de nós Ficamos alojadas no que deve ser uma colônia de férias para crianças com beliches e uma cozinha onde usamos as escassas provisões e preparamos nossas próprias refeições De manhã somos levadas para trabalhar em uma tecelagem Usamos luvas de couro Seguramos as rodas das máquinas de fiar para evitar que os fios embaracem Mesmo com as luvas as rodas cortam nossas mãos A exprofessora de Magda fica na máquina ao lado da de minha irmã Ela está chorando alto Imagino que seja porque suas mãos estão sangrando e doloridas Mas ela está chorando por causa de Magda Você precisa de suas mãos ela lamenta Você toca piano O que vai fazer sem as mãos A capataz alemã que coordena nosso trabalha a silencia Você tem sorte de estar trabalhando agora diz ela Logo será morta Na cozinha naquela noite preparamos nossa refeição noturna supervisionadas pelas guardas Escapamos das câmaras de gás diz Magda mas vamos morrer fabricando linhas É curioso que estejamos vivas Podemos não sobreviver à guerra mas sobrevivemos a Auschwitz Descasco batatas para nossa ceia Acostumada com as rações de fome sou incapaz de desperdiçar qualquer farelo de comida Escondo as cascas de batata na calcinha No momento em que as guardas estão em outra sala asso tudo no forno Quando as levamos ansiosamente à boca com as mãos doloridas as cascas ainda estão quentes demais para comer Escapamos da câmara de gás mas morreremos comendo cascas de batata alguém fala e a risada vem de um lugar profundo dentro de nós que não sabíamos que ainda existia Rimos como fiz todas as semanas em Auschwitz quando éramos forçadas a doar sangue para os soldados alemães feridos Eu me sentava com a agulha no braço e me divertia Boa sorte na hora de vencer a guerra com meu sangue de bailarina pacifista Eu não podia puxar meu braço ou teriam atirado em mim Não dava para desafiar meus opressores com uma arma ou um soco Mas eu podia encontrar um caminho para a minha própria força E há força em nossa gargalhada agora Nossa camaradagem e nossa alegria me lembram da noite em Auschwitz em que ganhei o concurso dos seios mais bonitos Nossa conversa nos alimenta Qual é o melhor país pergunta uma garota chamada Hava Debatemos enaltecendo os méritos de nossas terras Nenhum lugar é mais bonito que a Iugoslávia insiste Hava Essa é uma competição sem ganhadores Nosso lar já não é mais um lugar nem um país A pátria é um sentimento tão universal quanto específico Se conversamos muito sobre isso corremos o risco de que desapareça Depois de algumas semanas na tecelagem certa manhã os guardas da SS chegam com os vestidos listrados para substituir os cinza que usamos Embarcamos em outro trem só que dessa vez somos obrigadas a ficar no teto dos vagões com nossos uniformes listrados chamarizes humanos para desencorajar os ingleses de bombardearem o trem que carrega munição Da tecelagem para as balas alguém fala Senhoras fomos promovidas avisa Magda O vento no teto do vagão castiga e é arrasador Pelo menos não sinto fome quando estou com muito frio Será que prefiro morrer de frio ou por arma de fogo Gás ou arma de fogo O ataque acontece de repente Mesmo com prisioneiras no teto dos trens os ingleses nos bombardeiam Fumaça Gritos O trem para e eu pulo Sou a primeira a descer Corro direto para a encosta nevada que cobre os trilhos perto de uma fileira de árvores finas onde paro para tentar distinguir a figura de minha irmã na neve Recupero o fôlego Magda não está entre as árvores Não a vejo correndo do trem Bombas explodem e destroem os trilhos Vejo um monte de corpos ao lado do trem Magda Preciso escolher Posso correr Fugir para a floresta Lutar por uma vida A liberdade está tão perto questão de alguns passos Mas se Magda estiver viva e eu abandonála quem lhe dará pão E se ela estiver morta Isso dura um segundo o tempo do botão do obturador da máquina Clique floresta Clique trilhos Desço correndo a colina Magda está sentada na vala com uma garota morta no colo É Hava O sangue escorre do rosto de Magda Num vagão próximo homens estão comendo Eles também são prisioneiros mas não como nós Não vestem uniformes mas roupas civis E eles têm comida Prisioneiros políticos alemães imaginamos De qualquer maneira eles têm privilégios Estão comendo Hava morreu minha irmã está viva e eu só penso na comida A linda Magda está sangrando Agora que temos uma chance de pedir um pouco de comida você fica assim brigo com ela Você está muito ferida para flertar Enquanto puder ficar com raiva dela eu me poupo de sentir medo ou me poupo da dor às avessas invertida pelo que quase aconteceu Em vez de me alegrar de agradecer por estar viva de ter sobrevivido a mais um momento fatal estou furiosa com minha irmã Estou furiosa com Deus com o destino mas direciono minha confusão e sofrimento para o rosto sangrando de minha irmã Magda não responde ao meu insulto Ela não limpa o sangue Os guardas nos rodeiam gritando conosco cutucando corpos com suas armas para se certificar de que aquelas que não estão se mexendo estão realmente mortas Deixamos Hava na neve suja e nos juntamos às outras sobreviventes Você podia ter fugido diz Magda Ela fala isso como se eu fosse uma idiota Em menos de uma hora a munição é transferida para outros vagões do trem e nós voltamos para o teto com nossos uniformes listrados o sangue seco no rosto de Magda Somos prisioneiras e refugiadas Há muito perdemos a noção de tempo de calendário Magda é minha estrela guia Desde que ela esteja por perto tenho tudo de que preciso Somos arrancadas dos trens de munição numa manhã e caminhamos por dias seguidos A neve está começando a derreter dando lugar à grama morta Talvez estejamos andando há semanas As bombas caem às vezes perto Vemos cidades queimando Paramos em pequenas cidades por toda a Alemanha às vezes no sul às vezes no leste forçadas a trabalhar em fábricas ao longo do caminho Contar prisioneiros é uma preocupação da SS Não conto quantas de nós restam Talvez não conte porque sei que a cada dia o número diminui Não é um campo de concentração Mas existem dezenas de maneiras de se morrer As valas na lateral das estradas estão vermelhas com o sangue dos que foram baleados nas costas ou no peito dos que tentaram fugir e dos que não conseguiram acompanhar o ritmo As pernas de algumas garotas congelam e elas caem como as árvores derrubadas Exaustão Exposição Febre Fome Se os guardas não puxam o gatilho o corpo se encarrega disso Ficamos dias sem comer Chegamos ao alto de uma colina e vemos uma fazenda suas dependências um curral para gado Um minuto diz Magda correndo em direção à fazenda contornando as árvores e torcendo para não ser vista pelo guarda da SS que parou para fumar Observo Magda ziguezagueando em direção à cerca da horta Ainda é cedo para os vegetais da primavera mas eu comeria a ração do gado o talo seco dos vegetais Se um rato entrar no quarto em que dormimos vamos pegálo Tento não chamar a atenção para Magda com meu olhar Olho para o outro lado e quando volto a cabeça não consigo vêla Uma arma dispara Outra vez Alguém viu minha irmã Os guardas gritam conosco fazem a contagem com as armas em punho Outros tiros são disparados Nenhum sinal de Magda Me ajude me ajude Percebo que estou rezando para minha mãe Estou conversando com mamãe como ela costumava fazer com o retrato de minha avó que ficava em cima do piano Mesmo em trabalho de parto ela fez isso Magda me contou Na noite em que nasci Magda ouviu mamãe gritando Mãe me ajuda e logo depois o choro do bebê eu e nossa mãe dizendo Você me ajudou Falar com os mortos é um direito meu Mamãe nos ajude eu rezo Vejo uma sombra cinza entre as árvores Ela está viva Escapou das balas E de alguma forma agora ela escapa de ser vista Não respiro até Magda se juntar a mim novamente Havia batatas diz ela Se esses desgraçados não tivessem começado a atirar estaríamos comendo batatas Eu me imagino mordendo uma batata como se fosse uma maçã Eu nem perderia tempo limpandoa Comeria com terra e tudo Vamos trabalhar numa fábrica de munição perto da fronteira tcheca Descobrimos que é março Certa manhã não consigo sair do beliche no barracão onde dormimos Estou queimando em febre tremendo e fraca Levanta Dicuka ordena Magda Você não pode ficar doente Em Auschwitz quem não conseguia trabalhar supostamente era levado para um hospital mas então desaparecia Por que seria diferente agora Não há nenhuma infraestrutura para matar aqui nenhuma tubulação ou tijolos para este propósito Mas uma única bala mata da mesma forma Ainda assim não consigo me levantar Escuto a minha própria voz divagando sobre meus avós Eles vão nos deixar faltar à escola e nos levar para a confeitaria Nossa mãe não pode tirar os doces de nós De alguma forma sei que estou delirando mas não consigo recuperar a razão Magda diz para eu calar a boca e me cobre com um casaco para me manter aquecida caso a febre aumente mas acima de tudo para me manter escondida Não mexa um dedo sequer diz ela A fábrica fica perto do outro lado de uma pequena ponte sobre um rio que corre rápido Deitada embaixo do casaco finjo que não existo antecipando o momento em que minha ausência será notada e um guarda virá ao barracão me matar Magda será capaz de ouvir o tiro acima do barulho das máquinas Não sirvo para nada agora Eu me debato num sono delirante Sonho com fogo É um sonho bem familiar há quase um ano sonho em estar aquecida Acordo mas desta vez o cheiro da fumaça me sufoca O barracão está pegando fogo Tenho medo de correr para a porta de não conseguir chegar lá por causa das pernas fracas de isso me revelar Então ouço as bombas O zumbido e a explosão Como dormi no início do ataque Me arrasto para fora do beliche Onde é mais seguro Mesmo que eu pudesse correr para onde iria Escuto gritos A fábrica está pegando fogo A fábrica está pegando fogo Estou novamente consciente do espaço entre minha irmã e eu torneime especialista em medir o espaço Quantas mãos entre nós Quantas pernas Estrelas Agora há uma ponte Água e madeira E fogo Observo tudo da porta do barracão que finalmente alcancei e me encosto no batente A ponte para a fábrica está em chamas a fábrica envolta na fumaça Para quem sobreviveu a um bombardeio o caos é uma trégua Uma oportunidade de fuga Vejo Magda abrir uma janela e correr para as árvores Ela olha para cima por entre os galhos na direção do céu Pronta para correr o máximo possível até a liberdade Se ela fizer isso então estou fora de perigo Posso cair no chão e nunca mais levantar Que alívio seria Existir é uma tremenda obrigação Deixo minhas pernas se dobrarem Relaxo na queda E lá está Magda num halo de fogo Morta Me derrotando Vou alcançála Sinto o calor do fogo Agora vou me juntar a ela Agora Estou indo digo Espere por mim Não acompanho o momento em que ela deixa de ser um fantasma e se torna novamente de carne e osso De alguma forma ela me faz entender Magda cruzou a ponte em chamas para me encontrar Sua idiota digo você podia ter fugido Estamos em abril A grama nasce verde nas colinas O dia fica claro por mais tempo As crianças cospem em nós quando passamos pelos arredores de uma cidade Que triste eu penso essas crianças terem sofrido lavagem cerebral para me odiar Você sabe como vou me vingar diz Magda Vou matar uma mãe alemã Um alemão matou minha mãe vou matar uma mãe alemã Meu desejo é diferente Desejo que o garoto que cospe em nós perceba um dia que ele não precisa me odiar Na minha fantasia de vingança o garoto que agora grita Judeu sujo Verme segura um buquê de rosas e diz Agora eu sei não há razão para odiar você Nenhuma razão Nós nos abraçamos e perdoamos um ao outro Não conto minha fantasia para Magda Certo dia ao pôr do sol os soldados da SS nos empurram para o salão comunitário onde passaremos a noite Novamente não há comida Quem deixar as instalações será morto imediatamente avisa o guarda Dicuka sussurra Magda quando deitamos nas tábuas de madeira que serão nossas camas meu fim está próximo Cale a boca digo Ela está me assustando Seu desânimo é mais aterrorizante para mim do que uma arma apontada Ela não é disso Ela não desiste Talvez eu seja um peso para minha irmã Talvez ajudar a me manter forte durante minha doença tenha deixado Magda esgotada Você não vai morrer digo a ela Vamos comer esta noite Ah Dicuka diz ela e rola para a parede Vou mostrar a ela Vou mostrar que há esperança Vou conseguir um pouco de comida Vou reanimála Os homens da SS se reuniram perto da porta perto da última luz da tarde para comer suas rações Às vezes eles nos jogam um pedaço de comida apenas pelo prazer de verem que rastejamos Vou até eles de joelhos Por favor por favor peço Eles riem Um soldado segura um pedaço de carne enlatada na minha direção e eu dou um impulso para pegála mas ele a coloca na boca e todos riem mais alto Eles se divertem comigo dessa forma até eu ficar exausta Magda está adormecida Não desisto não quero decepcionála Os guardas encerram o piquenique para ir ao banheiro ou fumar e eu escapo por uma porta lateral Sinto o cheiro de esterco macieiras em flor e tabaco alemão A grama está úmida e fria Do outro lado de um muro de estuque há uma pequena horta pequenas cabeças de alface vagens de feijão a exuberante folhagem das cenouras Posso sentir o sabor das cenouras como se já as tivesse provado crocantes e terrosas Não é difícil pular o muro Ralo os joelhos um pouco ao me arrastar no alto e os pontos brilhantes de sangue são como um ar fresco em minha pele como algo que está no fundo e vem à tona Estou tonta Agarro as folhas da cenouras e puxo o som das raízes se soltando da terra parece o de uma costura rasgando As cenouras estão pesadas em minhas mãos Tufos de terra pendurados nas raízes Até a terra suja cheira a abundância como as sementes como tudo o que pode haver lá Subo novamente o muro a sujeira cobrindo meus joelhos Imagino o rosto de Magda mordendo o primeiro vegetal fresco que comemos em um ano Fiz uma coisa arriscada e ela rendeu frutos É isso que quero que Magda veja mais do que uma refeição mais do que os nutrientes se dissolvendo em seu sangue simplesmente esperança Pulo mais uma vez na terra Mas não estou sozinha Um homem olha para mim Ele segura uma arma É um soldado da Wehrmacht Pior do que a arma são os olhos dele olhos punitivos Como você ousa dizem os olhos dele Vou ensinála a obedecer Ele me coloca de joelhos Engatilha a arma e aponta para o meu peito Por favor por favor por favor Rezo como rezei com Mengele Por favor ajudeo a não me matar Estou tremendo As cenouras batem em minha perna Ele abaixa a arma por um segundo então a levanta novamente Clique Clique Pior do que o medo da morte é a sensação de estar presa e indefesa de não saber o que vai acontecer na próxima vez que respirar Ele me coloca de pé e me leva de volta para o prédio onde Magda dorme Ele usa a coronha da arma para me empurrar para dentro Mijando diz ele para o guarda de dentro e eles riem grosseiramente Seguro as cenouras enroladas no vestido Magda não acorda logo Tenho que colocar a cenoura na palma de sua mão para que ela abra os olhos Ela come tão rápido que morde a parte de dentro da bochecha Quando ela me agradece começa a chorar A SS nos acorda aos gritos pela manhã Hora de andar novamente Estou faminta e vazia e acho que devo ter sonhado com cenouras mas Magda me mostra um punhado da folhagem que ela guardou no bolso para depois Está murcha São restos que em uma vida anterior teríamos jogado fora ou dado para o ganso no sótão Mas essas folhas agora parecem encantadas como o caldeirão de um conto de fadas que se enche de ouro As cabeças marrons murchas das cenouras são a prova de um poder secreto Eu não devia ter me arriscado a ir pegálas mas me arrisquei Tinha grande chance de não sobreviver mas sobrevivi Os ses não são importantes Não são a única forma de controle Existe um princípio diferente uma autoridade diferente em funcionamento Estamos esqueléticas Estamos tão doentes e subnutridas que mal podemos andar muito menos seguir muito menos trabalhar Ainda assim as cenouras me deram força Se eu sobreviver hoje amanhã serei livre Repito o mantra em minha cabeça Fazemos fila para a contagem Ainda estou cantando para mim mesma Quando estamos prestes a sair na manhã fria para outro dia de horror acontece uma agitação na porta O guarda da SS grita em alemão e outro homem grita de volta forçando sua entrada na sala Prendo a respiração e seguro no cotovelo de Magda para não cair É o homem da horta Ele está olhando com severidade para todos na sala Onde está a garota que ousou quebrar as regras pergunta ele Meu corpo treme Não consigo me acalmar Ele voltou para se vingar Quer tornar a punição pública Ou sente que deve Alguém soube de sua bondade inexplicável para comigo e agora ele precisa pagar por ter se arriscado Ele precisa pagar pelo perigo que correu me fazendo pagar pelo meu risco Estremeço quase sem conseguir respirar de tanto medo Estou encurralada Sei o quanto estou próxima da morte Onde está a pequena criminosa pergunta ele novamente Ele vai me identificar a qualquer momento Ou vai perceber os restos da cenoura escapando do casaco de Magda Não consigo aguentar o suspense de esperar que ele me reconheça Me curvo e me arrasto na direção do homem Magda sussurra algo para mim mas é tarde demais Eu me agacho aos pés dele Vejo a lama em suas botas o nó da madeira do chão Você diz ele parecendo decepcionado Fecho os olhos Espero ele me chutar Espero ele me dar um tiro Algo pesado cai perto de meus pés Uma pedra Será que ele vai me apedrejar até a morte lentamente Não É um pão Um pequeno pão escuro de centeio Você deve estar com muita fome para fazer o que fez diz ele Gostaria de encontrar esse homem agora Ele é a prova de que doze anos do Reich de Hitler não são suficientes para tirar a bondade das pessoas Os olhos dele são os olhos de meu pai Verdes E cheios de alívio C A P Í T U L O 5 Os degraus da morte Andamos por dias ou semanas novamente Desde Auschwitz ficamos na Alemanha mas um dia chegamos à fronteira austríaca onde esperamos para atravessar Os guardas fofocam enquanto aguardamos em filas intermináveis que para mim se tornaram uma ilusão de ordenamento a ilusão que uma coisa naturalmente segue a outra É um alívio ficar parada Escuto a conversa dos guardas Falam que o presidente Roosevelt morreu Truman agora deve ir até o fim da guerra Como é estranho ouvir que lá fora no mundo além de nosso purgatório as coisas mudam Um novo rumo é traçado Esses eventos acontecem tão longe de nossa existência cotidiana que é um choque perceber que até mesmo nesse momento alguém está fazendo escolhas por mim Não sobre a minha pessoa especificamente Não tenho nome Mas alguém com autoridade está tomando uma decisão que determinará o que acontece comigo Norte sul leste ou oeste Alemanha ou Áustria O que deve ser feito com os judeus sobreviventes antes de a guerra acabar Quando a guerra acabar diz um guarda Ele não conclui o pensamento Esse é o tipo de conversa sobre o futuro que Eric e eu tínhamos antigamente Depois da guerra Se eu me concentrar do jeito certo será que consigo descobrir se ele ainda está vivo Finjo que espero do lado de fora da estação onde compro um bilhete mas tenho uma única chance de descobrir em qual cidade estou para encontrálo Praga Viena Dusseldorf Presov Paris Coloco a mão no bolso tateando por meu passaporte Eric meu amor estou a caminho Uma guarda da fronteira grita em alemão comigo e com Magda e nos encaminha a uma fila diferente Eu começo a me mexer mas Magda fica parada A guarda grita novamente Magda não se mexe não responde Ela está delirando Por que não me segue A guarda grita no rosto de Magda e Magda balança a cabeça Não entendo diz Magda para a guarda em húngaro É claro que ela entende Somos fluentes em alemão Sim você entende grita a guarda Não entendo repete Magda Sua voz está totalmente neutra Seus ombros estão retos e elevados O que não estou percebendo Por que ela está fingindo não entender Não há nada a ganhar com o desafio Ela enlouqueceu As duas continuam a discutir Só que Magda não está discutindo Ela apenas repete objetivamente calmamente que não compreende A guarda se descontrola Ela bate no rosto de Magda com a coronha da arma Bate novamente nos ombros de Magda Bate bate até que Magda cai e a guarda chama a mim e a outra garota para arrastála conosco Magda está machucada e tossindo mas seus olhos brilham Eu disse Não grita ela Eu disse Não Para ela é uma surra maravilhosa A prova de seu poder Ela se manteve firme enquanto a guarda se descontrolou A desobediência civil de Magda a faz se sentir como a autora da escolha não como vítima do destino Mas o poder que Magda experimenta dura pouco Logo estaremos caminhando novamente rumo a um lugar pior do que qualquer outro que vimos até então Chegamos a Mauthausen É um campo de concentração masculino em uma pedreira onde os prisioneiros são obrigados a cortar e carregar o granito que será usado para construir a cidade de fantasia de Hitler a nova capital da Alemanha uma nova Berlim Não vejo nada a não ser degraus e corpos Os degraus são de pedra branca e se estendem acima e à nossa frente como se nos levassem ao céu Os corpos estão por toda parte em pilhas Corpos retorcidos e inclinados como pedaços de uma cerca Corpos tão esqueléticos desfigurados e emaranhados que mal têm forma humana Ficamos em fila nos degraus brancos Os degraus da morte como são chamados Esperamos por outra seleção que imaginamos nos mandará para a morte ou para mais trabalho Boatos percorrem a fila Os prisioneiros em Mauthausen aprendemos têm que subir 186 degraus carregando um bloco de pedra de 50 quilos desde a pedreira lá embaixo seguindo uma fila Imagino os meus antepassados os escravos do faraó no Egito vergados sob o peso das pedras Aqui nos degraus da morte nos contam que quando você está subindo carregando uma pedra e alguém na sua frente tropeça ou cai você é o próximo a cair e assim sucessivamente até a fila inteira entrar em colapso e virar uma pilha Dizem que se você sobreviver é pior pois tem que ficar em pé encostada numa parede à beira de um precipício Fallschirmspringerwand é o nome em alemão a parede do paraquedista Sob a mira de uma arma você deve escolher entre receber um tiro ou empurrar o preso ao seu lado Simplesmente me empurre diz Magda Se chegarmos a esse ponto Faça o mesmo comigo digo Prefiro mil vezes cair a ver minha irmã levar um tiro Estamos fracas e famintas demais para dizer isso por educação Dizemos isso por amor mas também por autopreservação Não me dê outra coisa pesada para carregar Deixeme cair entre as pedras Eu peso menos bem menos que as pedras que os prisioneiros carregam nos degraus da morte Sou tão leve que poderia planar como uma folha ou uma pena descendo descendo Eu poderia cair agora Poderia simplesmente cair para trás em vez de dar o próximo passo Acho que estou vazia Não tenho peso para me segurar na terra Estou quase me entregando a essa fantasia de leveza de me liberar do peso de estar viva quando alguém à minha frente quebra o encanto Lá está o crematório diz ela Olho para cima Ficamos longe dos campos de extermínio por tantos meses que esqueci como as chaminés são altas De certa forma elas são tranquilizadoras Sentir a proximidade e a iminência da morte numa coluna de tijolos ver a chaminé como uma ponte que fará sua passagem do estado sólido para o gasoso considerarse já morta faz um certo sentido Ainda assim enquanto aquela chaminé produzir fumaça tenho algo por que lutar Tenho um propósito Morreremos pela manhã os boatos anunciam Posso sentir a resignação me oprimindo como a gravidade uma força constante e inevitável A noite cai e dormimos nos degraus Por que eles demoraram tanto para começar a seleção Minha coragem oscila Morreremos pela manhã Pela manhã morreremos Será que minha mãe sabia o que ia acontecer quando se juntou à fila de crianças e idosos Quando ela viu Magda e eu selecionadas para um caminho diferente Será que ela lutou contra a morte Ela a aceitou Permaneceu alheia até o fim Será que importa quando se morre se você tinha consciência de estar morrendo Morreremos pela manhã Pela manhã morreremos Escuto o boato a certeza repetida como se estivesse ecoando nas pedras Será que caminhamos tantas centenas de quilômetros para simplesmente desaparecer Quero organizar minha mente Não quero que meus últimos pensamentos sejam meros chavões tampouco frases desanimadas De que adianta O que tudo significa Não quero que meus últimos pensamentos sejam uma repetição dos horrores que vimos Quero me sentir viva Quero desfrutar da vida Penso na voz de Eric e em seus lábios Tento pensar em coisas que ainda podem me fazer vibrar Nunca esquecerei os olhos dele Nunca esquecerei as mãos dele É isso que quero lembrar calor no peito e um arrepio percorrendo a pele embora lembrar não seja a palavra certa Quero aproveitar meu corpo enquanto ainda tenho um Há uma eternidade em Kassa mamãe me proibiu de ler Naná de Émile Zola mas escondi o livro no banheiro e o li em segredo Se eu morrer amanhã morrerei virgem Por que tenho um corpo se nunca o conheci completamente Grande parte da minha vida foi um mistério Eu me lembro do dia em que fiquei menstruada pela primeira vez Voltei de bicicleta para casa do colégio e quando cheguei vi manchas de sangue na minha saia branca Fiquei assustada Corri para minha mãe chorando pedindo que ela me ajudasse a localizar o machucado Ela me deu um tabefe Eu não sabia que era uma tradição húngara estapear a garota quando ela menstrua pela primeira vez Eu não sabia nada sobre menstruação Ninguém nem minha mãe nem minhas irmãs nem professoras instrutoras ou amigas me explicaram qualquer coisa sobre minha anatomia Eu sabia que havia alguma coisa que os homens tinham e que as mulheres não tinham Nunca vi meu pai nu mas sentia aquela parte de Eric fazendo pressão em mim quando ele me abraçava Ele nunca pediu que eu o tocasse nunca me apresentou seu corpo Eu gostava da sensação de que tanto o corpo dele quanto o meu eram mistérios aguardando descobertas algo que provocava uma descarga de energia entre nós quando nos tocávamos Agora esse era um mistério que eu nunca resolveria Eu havia experimentado estrelinhas do desejo mas nunca conheceria a satisfação a promessa completa da galáxia luminosa Choro por causa disso agora nos degraus da morte É terrível perder ter perdido tudo o que conheci mãe pai irmã namorado país casa Por que também tenho que perder as coisas que não conheci Por que tenho que perder o futuro Meu potencial Os filhos que nunca terei O vestido de casamento que meu pai nunca fará Vou morrer virgem Não quero que esse seja o meu último pensamento Devo pensar em Deus Tento imaginar uma força irremovível Magda perdeu a fé Ela e muitas outras Não posso acreditar em um Deus que deixaria isso acontecer dizem Entendo o que elas querem dizer Mesmo assim nunca tive dificuldade em compreender que não é Deus que está nos matando em câmaras de gás em valas em precipícios em escadas com 186 degraus brancos Deus não comanda os campos da morte As pessoas comandam Mas eis aqui o horror novamente e eu não quero me entregar a ele Imagino Deus como uma criança dançando Alegre inocente e curiosa Também devo ser assim para estar próxima de Deus agora Quero manter viva até o fim a parte de mim que se maravilha que sonha Perguntome se alguém sabe que estou aqui se alguém sabe o que está acontecendo que existem lugares como Auschwitz e Mauthausen Será que meus pais podem me ver agora Gostaria de saber se Eric pode Tenho curiosidade em saber como é um homem nu Há muitos homens ao meu redor Homens que já não vivem Eu não vou ofendêlos se der uma olhada O pior delito seria renunciar à minha curiosidade eu me convenço Deixo Magda dormindo na escada e rastejo até a encosta barrenta onde os corpos são empilhados Não tiro a roupa de ninguém que esteja vestido Não vou mexer com os mortos Mas se um homem estiver despido vou olhar Vejo um homem com as pernas abertas Elas não parecem pertencer ao mesmo corpo mas posso imaginar o lugar onde as pernas se unem Vejo pelos como os meus escuros grossos e um pequeno apêndice É como um pequeno cogumelo uma coisa macia que sai da terra Que estranho as partes femininas serem todas escondidas e as dos homens tão expostas tão vulneráveis Fico satisfeita Não vou morrer ignorando a biologia que me fez Ao raiar do dia a fila começa a andar Não conversamos muito Alguns gritam Quase todos permanecem contidos em seu medo em sua tristeza em sua resignação ou em seu alívio Não conto a Magda o que vi na noite anterior Essa fila está andando rapidamente Não vai haver muito tempo Tento me lembrar das constelações que eu costumava identificar no céu estrelado Tento me lembrar do gosto do pão da minha mãe Dicuka diz Magda mas demoro algumas respirações para reconhecer meu nome Chegamos ao topo da escadaria O oficial encarregado da seleção está logo à frente Todo mundo é enviado na mesma direção Isso não é uma fila de seleção É um encaminhamento É realmente o fim Eles esperaram até o amanhecer para nos mandar para a morte Devemos fazer promessas umas para as outras Pedir perdão O que há para ser dito Cinco garotas na nossa frente agora O que devo dizer à minha irmã Duas garotas Então a fila para Somos levadas para um grupo de guardas da SS num portão Se vocês tentarem correr serão mortas gritam eles para nós Se ficarem para trás serão mortas Fomos salvas novamente Inexplicavelmente Andamos Esta é a Marcha da Morte de Mauthausen para Gunskirchen É a distância mais curta que fomos forçadas a percorrer mas estamos tão enfraquecidas a essa altura que somente cem das duas mil prisioneiras sobreviverão Magda e eu nos agarramos uma à outra determinadas a permanecer juntas a ficar de pé A cada hora centenas de garotas caem nas valas dos dois lados da estrada Fracas demais ou doentes demais para continuar andando elas são mortas no local Somos como a cabeça de um dentedeleão espalhando suas sementes levadas pelo vento sendo que uns poucos tufos brancos permanecem Fome é o meu único nome Tudo em mim dói tudo em mim está dormente Não consigo dar nem mais um passo Dói tanto que não consigo me obrigar a andar Sou basicamente um circuito de dor uma sensação que se retroalimenta Não percebo que tropecei até sentir os braços de Magda e das outras garotas me levantando Elas entrelaçaram os dedos para formar uma cadeira humana Você dividiu o seu pão diz uma delas As palavras não significam nada para mim Quando eu saboreei um pão Mas então a memória volta Nossa primeira noite em Auschwitz Mengele ordenando o início da música e me mandando dançar Este corpo dançou Esta mente sonhou com a Ópera de Budapeste Este corpo comeu aquele pão Eu sou aquela que tinha uma ideia fixa naquela noite e que volta a pensar nisso agora Mengele matou a minha mãe Mengele me deixou viver Uma garota que compartilhou uma casca comigo há quase um ano me reconheceu Ela gasta suas últimas forças para juntar seus dedos aos de Magda e das outras meninas e me levanta no ar De certa forma Mengele permitiu que este momento acontecesse Ele não matou nenhuma de nós naquela noite ou em qualquer outra noite Ele nos deu pão C A P Í T U L O 6 Escolhendo uma folha de grama Há sempre um inferno pior Esta é a nossa recompensa por viver Quando paramos de caminhar chegamos a Gunskirchen Lager É um subcampo de Mauthausen algumas poucas construções de madeira em uma floresta pantanosa perto de uma aldeia um campo construído para abrigar centenas de trabalhadores escravos onde agora se amontoam 18 mil pessoas Não é um campo de extermínio Não há câmaras de gás aqui nem crematório Mas não há dúvida de que estamos aqui para morrer Já é difícil dizer quem está vivo e quem está morto A doença passa por dentro e entre os nossos corpos Tifo Disenteria Piolho Feridas abertas Carne sobre carne Apodrecendo em vida Uma carcaça de cavalo meio consumida Coma a carne crua Quem precisa de faca para cortar a carne Simplesmente arranquea do osso Você dorme profundamente com três pessoas nas estruturas de madeira lotadas ou no chão Se alguém embaixo de você morre continue dormindo Ninguém tem força para tirar o morto dali Uma garota está toda encolhida de tanta fome Há um pé negro apodrecido Fomos levados para uma floresta fechada e úmida para sermos mortos em uma explosão gigantesca todos nós pegando fogo O lugar está todo preparado com bananas de dinamite Esperamos a explosão que nos consumirá em chamas Até esse momento chegar existem outros perigos inanição febre doenças Há apenas vinte latrinas no campo todo Se você não puder esperar a sua vez de defecar eles atiram em você lá mesmo onde suas fezes foram depositadas O lixo entra em combustão A terra é um lamaçal e se você tiver forças para andar seus pés chafurdam em uma polpa que é parte lama parte merda Faz cinco ou seis meses que saímos de Auschwitz Magda paquera É como consegue reagir diante da proximidade da morte Ela encontra um francês um cara de Paris que morou antes da guerra na Rue de alguma coisa um endereço que digo a mim mesma que nunca mais vou esquecer Mesmo nas profundezas desse horror existe química pessoa a pessoa com direito a nó na garganta e encantamento Vejo os dois conversando como se estivessem sentados num café no verão com pratinhos de comida entre eles É isso que os vivos fazem Usamos nossa vibração sagrada como anteparo para o medo Não estrague sua imaginação Acendaa como uma tocha Diga ao francês seu nome e devore o endereço dele saboreie mastigueo lentamente como se fosse um pedaço de pão Depois de poucos dias em Gunskirchen viro alguém que não consegue andar Embora eu não saiba estou com a coluna quebrada ainda hoje não sei quando a lesão ocorreu nem como Percebo apenas que cheguei ao fim de minhas reservas Eu me deito no meio daquela atmosfera pesada meu corpo entrelaçado com os de gente estranha todos juntos numa pilha alguns já mortos há muito tempo e outros como eu quase mortos Vejo coisas que sei que não são reais Eu as vejo misturadas com o que é real mas que não deveria ser Minha mãe lê para mim Scarlett chora Amei algo que não existe realmente Meu pai joga um biscoito para mim Klara começa um concerto para violino de Mendelssohn Ela toca ao lado da janela para que um transeunte a veja levante o olhar em sua direção e ela possa ter a atenção que deseja sem pedir diretamente É isso que os vivos fazem Nós ajustamos as cordas para que elas vibrem de acordo com as nossas necessidades Aqui no inferno eu vejo um homem comer carne humana Será que eu faria isso para salvar minha vida Será que consigo colocar na minha boca a pele pendurada nos ossos de uma pessoa e mastigar Tenho visto a dignidade da carne ser tirada com imperdoável crueldade Vi um garoto ser amarrado a uma árvore enquanto os oficiais da SS atiravam em seus pés suas mãos seus braços uma orelha uma criança inocente usada como alvo Ou a grávida que de alguma forma chegou a Auschwitz sem ser morta imediatamente Quando ela entrou em trabalho de parto os guardas amarraram suas pernas Nunca vi uma agonia como a dela Mas olhar alguém passando fome comer a carne de uma pessoa morta faz minha bile subir escurece a minha visão Não seria capaz Ainda assim preciso comer Preciso comer ou morrerei Na lama pisoteada cresce grama Olho para a folhagem observo os diferentes tamanhos e cores Vou comer grama Escolher essa folha de grama e não aquela outra Vou ocupar a mente com a escolha Isso é o que significa escolher Comer a grama ou comer carne Comer esta grama ou aquela Durmo a maior parte do tempo Não há nada para beber Perco a noção do tempo Estou quase sempre adormecida Mesmo acordada luto para me manter consciente Quando vejo Magda rastejando até mim com uma lata na mão uma lata que brilha no sol Uma lata de sardinhas A Cruz Vermelha por sua neutralidade foi autorizada a enviar ajuda aos prisioneiros Magda se enfiou numa fila e recebeu uma lata de sardinhas Mas não há como abrir É só uma nova forma de crueldade Mesmo uma boa intenção uma boa ação se torna uma bobagem Minha irmã está morrendo lentamente de fome minha irmã segura a comida na mão Ela agarra a lata da maneira que antes segurou seu cabelo tentando se manter firme Uma lata de peixe impossível de ser aberta é a parte mais humana dela agora Somos os mortos e os quase mortos Não sei dizer qual deles eu sou Tenho noção nos cantos da minha consciência que estou trocando o dia pela noite Quando abro os olhos não sei se dormi ou desmaiei nem por quanto tempo Não tenho condições de perguntar Quanto tempo Às vezes consigo perceber que estou respirando Às vezes tento mexer a cabeça para procurar Magda Às vezes não consigo me lembrar do nome dela Gritos me arrancam de um sono que parece a morte Os gritos devem ser o arauto da morte Espero pela explosão e pelo calor prometido Mantenho os olhos fechados e espero queimar Mas não há explosão Não há fogo Abro os olhos e vejo jipes passando devagar pela floresta de pinheiros que esconde o campo da estrada e do céu Os americanos chegaram Os americanos estão aqui é o que os moribundos estão gritando Os jipes parecem borrões flutuantes como se eu estivesse olhando através de água ou do calor intenso Poderia ser uma alucinação coletiva Alguém está cantando When the Saints Go Marching In Por mais de setenta anos essas impressões sensoriais ficaram guardadas comigo indeléveis Mas quando aconteceram eu não tive a menor ideia de seu significado Vejo homens exaustos Vejo bandeiras com estrelas e listras bandeiras americanas Vejo bandeiras com o número 71 Vejo um americano dando cigarros a prisioneiros tão famintos que comeram os cigarros com papel e tudo Observo um emaranhado de corpos Não sei dizer quais são as minhas pernas Tem alguém vivo aqui gritam os americanos em alemão Levante a mão se você está vivo Tento mover os dedos para sinalizar que estou viva Um soldado passa tão perto de mim que posso ver os respingos de lama em suas calças Posso sentir o cheiro de seu suor Estou aqui quero chamar Estou aqui Não tenho voz Ele faz uma busca entre os corpos Os olhos dele passam por mim mas ele não me vê Ele segura um pedaço de pano sujo no rosto Levante a mão se você pode me ouvir diz ele Ele mal tira o pano da boca quando fala Eu me esforço para encontrar meus dedos Vocês nunca sairão vivos daqui disseram a kapo que arrancou meus brincos o oficial da SS com a máquina de tatuar que não quis desperdiçar a tinta a capataz da tecelagem e o soldado da SS que atirou em nós na longa longa marcha É assim que eles sentem que estão certos O soldado grita alguma coisa em inglês Alguém fora do meu campo de visão grita de volta Eles estão indo embora E então um raio de luz explode no chão Eis o fogo Finalmente Estou surpresa que não faça barulho Os soldados voltam Meu corpo dormente de repente fica quente por causa das chamas eu penso ou da febre Nada disso Não há fogo O raio de luz não é fogo É o sol batendo na lata de sardinhas de Magda De propósito ou por acidente ela atraiu a atenção dos soldados com uma lata de peixe Eles estão voltando Temos mais uma chance Se posso dançar na minha imaginação posso fazer meu corpo ser visto Fecho os olhos e me concentro levantando as mãos acima da minha cabeça em um floreio Escuto os soldados gritarem novamente uns com os outros Um está muito próximo Mantenho os olhos fechados e continuo minha dança Imagino que estou dançando com ele Que ele me levanta sobre a cabeça como Romeu fez no alojamento com Mengele Que existe amor e ele nasce da guerra Que existe morte e sempre sempre o seu oposto Agora sinto a minha mão Sei que é a minha mão porque o soldado está tocando nela Abro os olhos Vejo que sua mão grande e escura envolve os meus dedos Ele pressiona algo na minha mão Bolinhas Bolinhas coloridas Vermelhas marrons verdes amarelas Comida diz o soldado Ele olha nos meus olhos Sua pele é a mais escura que eu já vi os lábios são grossos os olhos marromescuros Ele me ajuda a levar a mão até a boca E a soltar as bolinhas na língua seca A saliva se forma e eu sinto um gosto doce Eu sinto chocolate Eu me lembro do nome deste sabor Tenha sempre alguma coisa doce no bolso dizia meu pai Aqui está a doçura Mas e Magda Ela também foi encontrada Ainda não consigo falar não tenho voz Não consigo balbuciar um agradecimento Nem formar as sílabas do nome da minha irmã Mal consigo engolir os pequenos chocolates que o soldado me deu Mal consigo pensar em outra coisa que não seja o desejo por mais comida Ou por um copo de água A atenção dele está voltada para me retirar da pilha de corpos Ele tem de afastar os mortos de mim Eles estão flácidos no rosto nos membros Por mais esqueléticos que estejam são pesados e o soldado faz caretas e se contorce para levantálos O suor cobre seu rosto Ele tosse por causa do fedor e ajeita o pano sobre a boca Quem sabe há quanto tempo os mortos estão mortos Talvez apenas um suspiro ou dois me separe deles Não sei como dizer o quanto estou agradecida Mas sinto um formigamento de gratidão percorrer toda a minha pele Agora ele me carrega e me coloca no chão de costas a uma pequena distância dos cadáveres Posso ver pedaços do céu por entre as copas das árvores Sinto o ar úmido no rosto a umidade da grama lamacenta embaixo de mim Deixo a mente curtir a sensação Imagino o cabelo comprido e encaracolado de minha mãe a cartola e o bigode de meu pai Tudo o que sinto e que já senti um dia veio deles da união que me gerou Eles me embalaram em seus braços Fizeram de mim uma criança da Terra Lembrome da história que Magda conta sobre o meu nascimento Você me ajudou gritou minha mãe para a imagem da mãe dela Você me ajudou E agora Magda está ao meu lado na grama Ela segura sua lata de sardinhas Sobrevivemos à seleção final Estamos vivas Estamos juntas Estamos livres PARTE II FUGA C A P Í T U L O 7 Meu libertador meu agressor Quando eu me permitia imaginar esse momento o fim de meu encarceramento o fim da guerra pensava na alegria florescendo em meu peito Imaginei que gritaria o mais alto que pudesse ESTOU LIVRE ESTOU LIVRE Mas agora estou sem voz Somos um rio silencioso uma corrente de libertos que flui do cemitério Gunskirchen em direção à cidade mais próxima Sigo num carrinho improvisado As rodas rangem Mal consigo me manter consciente Não há alegria ou alívio nessa liberdade É uma caminhada lenta para fora da floresta É um rosto atordoado É mal se sentir vivo e voltar a dormir É o perigo de sofrer uma congestão depois de comer demais O perigo de ingerir o tipo errado de comida A liberdade é ferida piolho tifo barriga seca e olhos apáticos Tenho consciência da presença de Magda caminhando ao meu lado Da dor em todo o meu corpo quando o carrinho balança Por mais de um ano não pude me dar ao luxo de pensar no que doía e no que não doía Apenas pensei em acompanhar os outros em como me manter um passo à frente em conseguir um pouco de comida em caminhar rápido o suficiente em nunca parar em permanecer viva e não ser deixada para trás Agora que o perigo passou a dor interior e o sofrimento ao meu redor transformam consciência em alucinação Um filme mudo Uma marcha de esqueletos A maioria está fisicamente arrasada demais para caminhar Ficamos deitados em carrinhos apoiados em varas Nossos uniformes estão imundos e gastos tão esfarrapados e rasgados que mal cobrem a pele A pele mal cobre nossos ossos Somos uma aula de anatomia Cotovelos joelhos tornozelos maçãs do rosto articulações e costelas se projetam como perguntas O que somos agora Nossos ossos parecem obscenos nossos olhos são cavernas inexpressivas vazias escuras Rostos irreais Unhas pretas azuladas Somos lesões em movimento Um desfile de zumbis em câmara lenta Cambaleamos ao andar os carrinhos se arrastam pelos paralelepípedos Fila após fila enchemos a praça da cidade de Wels na Áustria A população nos olha das janelas Somos assustadores Ninguém fala Nós sufocamos a praça com nosso silêncio Os moradores correm para suas casas As crianças tapam os olhos Passamos pelo inferno e agora nos tornamos o pesadelo de outras pessoas O importante é comer e beber Não muito nem muito rápido É possível ter uma overdose de comida Alguns de nós não conseguem se controlar A moderação se dissolveu junto com nossa massa muscular com nossa carne Passamos fome por muito tempo Mais tarde vou saber que uma garota da minha cidade irmã de uma amiga de Klara foi libertada de Auschwitz e morreu por comer demais Manter o estado de inanição é tão mortal quanto sair dele É uma bênção então que eu só recupere a força necessária para mastigar de maneira intermitente Outra bênção é que os soldados americanos tenham pouca comida a oferecer na maior parte chocolate aquelas gotinhas coloridas de MM como aprendemos depois Ninguém quer nos abrigar Hitler morreu há menos de uma semana a Alemanha ainda está a dias de se render oficialmente A violência diminui em toda a Europa mas ainda é tempo de guerra Alimento e esperança são escassos para todos E nós as sobreviventes exprisioneiras ainda somos o inimigo para alguns Parasitas Vermes A guerra não acaba com o antissemitismo Os soldados americanos levam a mim e Magda para a casa de uma família alemã composta de mãe pai avó e três crianças É ali que vamos morar até ficarmos fortes para viajar Tenham cuidado os americanos nos avisam num alemão capenga Ainda não há paz Qualquer coisa pode acontecer Os adultos guardam todos os pertences da família num quarto e o pai faz questão de mostrar que está trancando a porta As crianças se revezam para nos observar e depois correm para se esconder atrás da mãe Somos alvo de fascínio e medo Estou acostumada com o olhar vazio e a crueldade automática da SS que lhes provoca um júbilo inadequado seu prazer pelo poder Estou acostumada à maneira como eles se vangloriam para se sentir importantes e aumentar a sensação de propósito e de controle A maneira como as crianças olham para nós é pior Somos uma ofensa à sua inocência É assim que as crianças nos olham como se fôssemos transgressoras O choque delas é mais amargo do que o próprio ódio Os soldados nos levam para o cômodo onde vamos dormir É o quarto das crianças Somos órfãs da guerra Eles me colocam num berço de madeira Estou pequena assim peso 32 quilos Não consigo andar sozinha Sou um bebê Mal consigo formar frases Penso em termos de dor de necessidade Eu choraria para ser abraçada mas não há ninguém para me abraçar Magda se encolhe como uma bola na pequena cama Um barulho do lado de fora de nossa porta me desperta Mesmo o descanso é frágil Sinto medo o tempo todo Temo o que já aconteceu e o que pode acontecer Barulhos no escuro trazem de volta a imagem de minha mãe guardando a membrana do nascimento de Klara no casaco e de meu pai olhando para nosso apartamento na madrugada em que fomos despejados Quando revivo o passado perco minha casa e meus pais mais uma vez Olho para as grades de madeira do berço e tento me acalmar e voltar a dormir ou pelo menos me acalmar Mas os barulhos continuam Estrondos e passos fortes Então a porta se abre Dois soldados americanos entram no quarto Eles tropeçam um no outro batem numa pequena prateleira A luz de um abajur ilumina o quarto escuro Um dos homens aponta para mim ri e segura a virilha Magda não está lá Não sei onde ela está se perto o suficiente para me ouvir se eu gritar ou escondida em algum lugar tão amedrontada quanto eu Ouço a voz de minha mãe Não ouse perder a virgindade antes de se casar ela nos recomendava antes até mesmo de eu saber o que era virgindade Não perdi Entendi a ameaça Não se arruíne Não seja uma decepção Agora uma brutalidade pode fazer mais do que me desonrar poderia me matar Estou frágil assim Não tenho medo apenas de morrer ou de sentir mais dor Tenho medo de perder o respeito de minha mãe O soldado empurra o amigo de volta para a porta para que ele monte guarda Ele se aproxima de mim e fala de maneira irritantemente amorosa com uma voz rascante perturbada Seu suor e o álcool de seu hálito têm um cheiro penetrante como mofo Preciso mantêlo longe de mim Não há nada para atirar nele Não consigo nem me sentar Tento gritar mas minha voz não passa de um murmúrio O soldado parado na porta está rindo De repente ele para de rir e fala com rispidez Não sei inglês mas sei que ele diz algo sobre um bebê O outro soldado se inclina contra a grade do berço Sua mão tateia a cintura Ele vai me usar Me esmagar Ele tira a arma e gesticula loucamente como se ela fosse uma tocha Aguardo suas mãos me apertarem Mas em vez disso ele se afasta Vai até a porta na direção do amigo A porta se fecha Estou sozinha no escuro Não consigo dormir Tenho certeza de que o soldado voltará Onde está Magda Será que algum outro soldado a pegou Ela definhou mas seu corpo está em melhor forma do que o meu e ainda guarda algum indício de sua feminilidade Para me acalmar tento organizar o que conheço dos homens e da paleta humana Eric gentil e otimista meu pai decepcionado com ele mesmo e com as circunstâncias às vezes derrotado às vezes se esforçando ao máximo encontrando as pequenas alegrias Dr Mengele lascivo e controlado o soldado da Wehrmacht que me flagrou com as cenouras frescas do chão punitivo porém misericordioso depois gentil o soldado americano que me tirou da pilha de corpos na Gunskirchen determinado e corajoso e agora este tipo novo A linha tênue que o torna um libertador e ao mesmo tempo um agressor uma presença pesada e vazia Um enorme vazio como se a humanidade tivesse deixado seu corpo Nunca vou saber onde Magda estava naquela noite Mesmo hoje ela não se lembra Mas vou levar algo vital daquela noite terrível algo que espero nunca esquecer O homem que quase me estuprou que poderia ter voltado para terminar o que começou também viu o horror Como eu ele provavelmente passou o resto da vida tentando afugentálo empurrálo para as bordas Naquela noite acredito que ele estava tão perdido na escuridão que quase foi consumido por ela Mas acabou não sendo Ele fez a escolha de não ser tragado pela escuridão Ele volta pela manhã Sei que é ele porque ainda cheira a álcool porque o medo me fez memorizar seu rosto embora o tenha visto na penumbra Abraço meus joelhos e gemo Pareço um animal Não consigo me controlar É um barulho monótono pungente pareço um inseto Ele se ajoelha ao lado do berço Está chorando Repete duas palavras Não sei o que elas significam mas lembro o som Me desculpe Me desculpe Ele me entrega uma sacola de pano É pesada demais para eu conseguir segurar então ele a esvazia para mim espalhando o conteúdo no colchão latinhas de ração do exército Ele me mostra as imagens nas latas Aponta e fala um maître louco explicando o menu e me convidando a escolher a próxima refeição Não consigo entender nada do que ele diz Analiso as imagens Ele abre uma lata e me alimenta com uma colher É presunto com qualquer coisa doce passas talvez Se meu pai não tivesse compartilhado os pedaços de porco que trazia escondido eu não saberia o gosto daquilo húngaros jamais misturariam presunto com qualquer coisa doce Continuo abrindo a boca recebendo outra colherada Claro que o perdoo Estou faminta e ele me traz comida Ele volta todos os dias Magda está bem o suficiente para flertar novamente e acho que em algum momento o soldado fez questão de voltar a esta casa porque gosta da atenção dela Mas dia após dia ele mal toma conhecimento da presença de minha irmã Ele vem por mim Sou eu o problema que ele precisa resolver Talvez ele esteja se penitenciando por sua quase agressão Ou talvez precise provar a si mesmo que a esperança e a inocência podem ser recuperadas a dele a minha a do mundo e que uma garota depauperada pode andar novamente Estou fraca e abalada demais para aprender a dizer ou soletrar o nome do soldado que durante seis semanas cuidou de mim que me tirava do berço segurava as minhas mãos e me incentivava a dar um passo por vez no quarto Quando tento me movimentar sinto as costas doerem como se queimadas por carvão em brasa Eu me concentro em transferir o peso de um pé para o outro tentando sentir o momento exato em que ocorre a transferência de peso Minhas mãos ficam suspensas apoiadas nos dedos dele Finjo que ele é meu pai o pai que gostaria que eu tivesse nascido menino e que depois me amou de qualquer maneira Você vai ser a garota mais bemvestida da cidade ele me disse infinitas vezes Quando penso em meu pai o calor sai das minhas costas e esquenta meu peito Há dor e amor Um bebê conhece esses dois lados do mundo que eu também estou reaprendendo Como Magda se sente fisicamente melhor do que eu ela tenta colocar nossas vidas em ordem Um dia em que a família alemã está fora de casa Magda abre os armários e encontra vestidos para usarmos Na tentativa de descobrir quem está vivo e onde poderemos refazer a vida quando chegar a hora de partirmos de Wels ela envia cartas para Klara para o irmão de nossa mãe em Budapeste e para a irmã da nossa mãe em Miskolc cartas que jamais serão lidas Não consigo escrever o meu próprio nome Muito menos um endereço Uma frase Tem alguém aí Um dia o soldado traz papel e lápis Começamos com o alfabeto Ele escreve um A maiúsculo Um a minúsculo Um B maiúsculo Um b minúsculo Ele me dá o lápis e acena com a cabeça Será que consigo fazer alguma letra Ele quer que eu tente Quer ver o quanto eu regredi o quanto me recordo Consigo escrever C e c D e d Eu me lembro Ele me encoraja me estimula a continuar E e e F e f Mas então hesito Sei que o G vem a seguir porém não consigo imaginálo nem pensar em como desenhálo na página Um dia ele traz um rádio que toca a música mais alegre que já ouvi Ela é animada Estimulante Ouço instrumentos de sopro Eles insistem que a gente se movimente sem intenção de nos convencer Mais que isso é um convite impossível de ser recusado O soldado e seus amigos mostram a Magda e a mim as danças que acompanham aquele som o jitterbug e o boogiewoogie Os homens formam pares como se fossem dançarinos de salão Até a maneira como eles seguram os braços é nova para mim Tratase de um estilo de dança de salão mais solto e versátil Informal mas não deselegante Como eles conseguem ser tão ágeis e animados e ao mesmo tempo tão flexíveis Tão dispostos Seus corpos acompanham seja qual for a música tocando Quero dançar dessa forma Quero que os meus músculos se lembrem de como dançar Certa manhã Magda vai tomar banho e volta tremendo para o quarto Seu cabelo está molhado a roupa meio aberta Ela se enrosca na cama com os olhos fechados Como estou grande demais para o berço agora cochilei na cama enquanto ela tomava banho e não sei dizer se ela sabe ou não que estou acordada Já faz mais de um mês desde a libertação Magda e eu passamos quase todas as horas dos últimos quarenta dias juntas neste quarto Recuperamos a força de nossos corpos reconquistamos a capacidade de conversar de escrever e até tentamos dançar Conseguimos falar sobre Klara e sobre nossa esperança de que ela esteja viva em algum lugar tentando nos encontrar Mas não conseguimos falar sobre o que passamos Talvez em nosso silêncio estejamos tentando criar uma área onde nossos traumas não entrem Wels é uma vida no limbo mas presumivelmente uma vida nova se insinua Talvez estejamos tentando dar uma à outra e aos outros um espaço vazio para lá construir o futuro Não queremos macular o ambiente com imagens de violência e perda Queremos poder ver algo além da morte Portanto concordamos tacitamente em não conversar sobre qualquer coisa que destrua nossa bolha de sobrevivência Agora minha irmã está tremendo e sofrendo Se eu disser a ela que estou acordada se perguntar o que houve de errado se virar testemunha de seu colapso ela não precisará encarar sozinha seja lá o que a faz tremer Mas se eu fingir que estou dormindo posso evitar ser um espelho que reflita essa nova dor e ser um espelho seletivo que reflita somente o que ela quer cultivar deixando o restante invisível No fim não preciso decidir o que fazer Ela começa a falar Antes de sair desta casa vou ter a minha vingança promete Raramente encontramos a família cuja casa ocupamos mas a raiva silenciosa e amarga dela me leva a pensar no pior Imagino o pai entrando no banheiro enquanto ela se despia O que ele murmuro Não Sua respiração está irregular Tentei usar o sabonete O banheiro começou a girar Você está doente Não Sim Não sei Você está com febre Não É o sabonete Não consegui tocálo Entrei em pânico Ninguém machucou você Não Foi o sabonete Você sabe o que dizem Que ele é feito de pessoas Daqueles que eles mataram Não sei se é verdade mas assim tão perto de Gunskirchen Talvez Ainda quero matar uma mãe alemã diz Magda Eu me lembro de todos os quilômetros que caminhamos no inverno quando essa era sua fantasia seu refrão Eu poderia fazer isso você sabe Existem maneiras diferentes de se obrigar a continuar Vou ter que encontrar a minha própria maneira de viver com o que aconteceu Ainda não sei qual é Estamos livres dos campos de extermínio mas ainda precisamos ficar livres para criar para construir uma vida e para escolher Até encontrarmos a liberdade estaremos apenas andando em círculos na mesma interminável escuridão Mais tarde médicos nos ajudarão a recuperar a saúde física mas ninguém explicará a dimensão psicológica da recuperação Muitos anos vão se passar antes de eu começar a entender isso Um dia o soldado americano e seus amigos vêm nos dizer que vamos deixar Wels e que os russos estão ajudando a transportar os sobreviventes para casa Eles vieram se despedir Trouxeram o rádio In the Mood de Glenn Miller começa a tocar e nos deixamos levar Com a coluna lesionada mal posso fazer os passos mas na minha imaginação e em meu espírito somos as melhores dançarinas Devagar devagar rápido rápido devagar Devagar devagar rápido rápido devagar Posso fazer isso também deixar braços e pernas soltos mas não frouxos Glenn Miller Duke Ellington Repito os grandes nomes das grandes orquestras várias vezes O soldado me conduz com cuidado num giro me inclina suavemente e me solta Ainda estou muito fraca mas posso sentir o potencial em meu corpo tudo o que serei capaz de fazer com ele quando estiver curada Muitos anos depois vou trabalhar com um amputado e ele explicará a desorientação de sentir um membro fantasma Quando danço Glenn Miller seis semanas após a libertação com minha irmã que está viva e com o soldado que quase me estuprou tenho membros fantasmas reversos A sensação não é de algo que perdi mas de uma parte de mim que está retornando e se revelando Sinto todo o potencial de meus membros e da vida que posso ter novamente Durante as longas horas no trem entre Wels e Viena passando pela Áustria ocupada pela Rússia eu coço as erupções cutâneas causadas pelos piolhos ou pela rubéola que ainda cobrem meu corpo Para casa Estamos indo para casa Mais dois dias e estaremos em casa No entanto é impossível sentir a alegria do regresso desvinculada da devastação da perda Sei que minha mãe e meus avós estão mortos e certamente meu pai também Estão mortos há mais de um ano Ir para casa sem eles é perdêlos novamente Talvez Klara eu me permito ter esperança Talvez Eric Na poltrona ao lado estão sentados dois irmãos Eles também são sobreviventes Órfãos De Kassa como nós Lester e Imre são seus nomes Depois saberemos que o pai deles foi baleado nas costas quando andava entre eles na Marcha da Morte Logo saberemos que estamos entre os setenta que sobreviveram dos mais de 15 mil deportados de nossa cidade Nós temos um ao outro dizem eles agora Temos sorte muita sorte Lester e Imre Magda e eu Somos anomalias Os nazistas não assassinaram apenas milhões de pessoas Eles assassinaram famílias Agora apesar da incompreensível lista de desaparecidos e mortos nossas vidas seguem em frente Depois descobriremos que pessoas foram deslocadas por toda a Europa Encontros Casamentos Nascimentos Ouviremos falar dos tíquetes especiais de racionamento emitidos para casais adquirirem roupas de casamento Também estudaremos os jornais da Administração das Nações Unidas para Auxílio e Reabilitação e vamos prender a respiração na esperança de encontrar nomes conhecidos na lista de sobreviventes espalhados por todo o continente Por enquanto não fazemos nada a não ser olhar pela janela do trem os campos vazios as pontes destruídas e em alguns lugares as incipientes e frágeis plantações A ocupação dos Aliados na Áustria durará mais dez anos O ambiente nas cidades em que passamos não é de alívio ou celebração mas de incerteza e fome A guerra acabou mas ainda não acabou Eu tenho lábios feios pergunta Magda ao nos aproximarmos dos arredores de Viena Ela está analisando seu reflexo no vidro da janela sobreposto à paisagem Por quê Você está planejando usálos brinco com ela na tentativa de persuadila a retomar seu incansável lado provocador Tento bloquear as minhas próprias fantasias impossíveis de que Eric esteja vivo em algum lugar que logo serei uma noiva do pósguerra com um véu improvisado Que estarei junto com meu amado para sempre nunca sozinha Falando sério diz ela Diga a verdade Sua ansiedade me faz lembrar de nosso primeiro dia em Auschwitz quando ela ficou de pé nua com a cabeça raspada segurando os fios de seu cabelo Talvez ela resuma o imenso pavor sobre o que acontecerá a seguir em temores mais específicos e pessoais o medo de não ser atraente o suficiente para encontrar um homem o medo de ter lábios feios Ou talvez suas perguntas tenham relação com uma incerteza mais profunda sobre seu valor essencial O que seus lábios têm de errado pergunto Mamãe os odiava Uma pessoa na rua elogiou meus olhos certa vez e ela disse Sim ela tem olhos lindos mas veja os lábios dela como são grossos A sobrevivência é preto no branco nenhum mas pode atrapalhar quando se luta pela vida Agora os mas se apresentam Temos pão para comer Sim mas não temos um tostão Você está engordando Sim mas o coração está pesado Você está viva Sim mas minha mãe está morta Lester e Imre decidem ficar em Viena por alguns dias mas prometem nos procurar em casa Magda e eu embarcamos em outro trem para uma viagem de oito horas na direção noroeste de Praga Um homem bloqueia a entrada para o vagão de trem Nasa lude desdenha ele Nosso povo Ele é eslovaco Os judeus devem andar em cima do vagão Os nazistas perderam murmura Magda mas é a mesma coisa de antes Não há outra maneira de chegar em casa Nós subimos para o teto do vagão formando fileiras com as outras pessoas desterradas Seguimos de mãos dadas Magda se senta ao lado de um jovem chamado Laci Gladstein Ele acaricia os dedos de Magda Os dedos do rapaz ainda são pele e osso Ninguém pergunta aos outros onde estiveram Nossos corpos e nossos olhos assustados dizem tudo o que é preciso saber Magda se recosta no peito magro de Laci em busca de aconchego Tenho ciúmes do consolo que eles parecem encontrar um no outro a atração o pertencimento Estou muito comprometida com meu amor por Eric com a esperança de que o encontrarei novamente para buscar os braços de um homem em que me apoiar agora Mesmo que não carregasse comigo a voz de Eric acho que teria muito medo de buscar conforto e intimidade Sou pele e osso estou coberta de bactérias e feridas Quem iria me querer Melhor não arriscar uma aproximação e ser rejeitada melhor não ter a confirmação de minha degradação Além disso quem forneceria o melhor abrigo agora Alguém que sabe o que passei um colega sobrevivente Ou alguém que não passou por isso e pode me ajudar a esquecer Alguém que me conhecia antes de minha ida ao inferno e que pode me ajudar a recuperar o meu antigo eu Ou alguém que consiga me olhar agora sem ver o que foi destruído Nunca esquecerei seus olhos Eric me disse Nunca esquecerei suas mãos Por mais de um ano eu me agarrei a essas palavras como a um mapa que poderia me levar à liberdade Mas e se Eric não conseguir aceitar o que eu me tornei E se nós nos encontrarmos e construirmos uma vida e acabarmos descobrindo que nossos filhos são filhos de fantasmas Eu me aconchego em Magda Ela e Laci falam sobre o futuro Vou ser médico diz ele É uma decisão generosa para um jovem que como eu estava praticamente morto um dois meses atrás Ele sobreviveu vai se curar e vai curar outras pessoas A ambição dele me tranquiliza E surpreende Ele saiu dos campos de extermínio com sonhos Parece um risco desnecessário Mesmo agora que conheço a fome e a atrocidade eu me lembro da dor dos pequenos sofrimentos do sonho arruinado pelo preconceito da maneira como minha técnica falou comigo quando me cortou da equipe de treinamento olímpico Eu me lembro de meu avô de como ele se aposentou da fábrica de máquinas de costura e esperava por sua pensão Lembro de quanto ele esperou esperou e como só conseguia falar disso Por fim ele recebeu o primeiro cheque Uma semana depois fomos levados para a fábrica de tijolos Algumas semanas mais tarde ele estava morto Não quero sonhar com a coisa errada Tenho um tio na América continua Laci No Texas Vou para lá vou trabalhar economizar para a faculdade Talvez eu também vá para a América diz Magda Ela deve estar pensando em tia Matilda no Bronx Todo mundo ao nosso redor no teto do vagão está falando sobre a América sobre a Palestina Por que continuar vivendo sobre as cinzas de nossas perdas Por que continuar se esforçando para sobreviver onde não nos querem Em breve seremos informados das restrições à imigração para os Estados Unidos e para a Palestina Não existe paraíso sem limites sem preconceitos Para onde quer que formos a vida poderá ser sempre assim Tento ignorar o medo de que a qualquer momento seremos bombardeados baleados jogados numa vala Ou na melhor das hipóteses forçados a viajar no teto do vagão Damos as mãos para nos proteger do vento Em Praga temos que trocar de trem novamente Ao nos despedirmos de Laci Magda dá a ele nosso velho endereço Kossuth Lajos Utca número 6 Ele promete manter contato Temos um tempo antes da próxima partida o suficiente para esticar as pernas sentar ao sol e comer nosso pão com tranquilidade Quero procurar um parque ver a exuberância da natureza das flores Fecho os olhos a cada passo e sinto os cheiros da cidade das ruas das calçadas e da agitação das pessoas Padarias cano de descarga dos carros perfumes É difícil acreditar que tudo isso existia enquanto estávamos no inferno Olho as vitrines das lojas Não importa que eu não tenha um tostão Vai importar é claro Em Košice a comida não será distribuída gratuitamente Mas neste momento eu me sinto completamente satisfeita só por ver que existem vestidos e meias à venda joias cachimbos e artigos de papelaria A vida e o comércio continuam Uma mulher avalia o tecido de um vestido de verão Um homem admira um colar As coisas não são importantes mas a beleza é Aqui está uma cidade cheia de pessoas que não perderam a capacidade de imaginar de produzir e de admirar as coisas bonitas Serei novamente uma moradora uma moradora de algum lugar Vou executar as tarefas cotidianas e comprar presentes Vou ficar na fila do correio Vou comer o pão que eu mesma assei Vou vestir roupas de altacostura em homenagem ao meu pai Vou à ópera em homenagem à minha mãe e como ela me sentarei na pontinha da cadeira para escutar Wagner e chorarei como ela chorava Vou à sinfônica e por Klara assistirei a todas as apresentações do concerto de violino de Mendelssohn Saudade e melancolia A urgência sugerida pelo crescendo da melodia depois a cadência ondulante seguida pelo estrépito dos acordes ressonantes Depois o tema mais sinistro nas cordas ameaçando o crescendo do solo de violino Em pé na calçada eu fecho os olhos para ouvir o eco do violino de minha irmã Magda me assusta Acorda Dicu Quando abro os olhos vejo um pôster anunciando um concerto com um solo de violino bem aqui no centro da cidade perto da entrada do parque A imagem do pôster é de minha irmã Naquele papel está Klarie segurando seu violino C A P Í T U L O 8 Pela janela Descemos do trem em Košice Nossa cidade natal não pertence mais à Hungria Agora ela faz parte novamente da Tchecoslováquia O brilho do sol de junho nos faz cerrar os olhos Não temos dinheiro para o táxi não temos dinheiro para nada não sabemos se o antigo apartamento da família está ocupado nem como vamos viver Mas estamos em casa Estamos prontas para procurar Klara que se apresentou em um concerto em Praga há algumas semanas Klara que está viva em algum lugar Cruzamos o parque Mestský em direção ao centro da cidade Pessoas estão em mesas ao ar livre em bancos Crianças se juntam em torno das fontes Lá está o relógio onde víamos os rapazes indo se encontrar com Magda Eis a sacada da loja de nosso pai as medalhas douradas brilhando na grade Ele está aqui Tenho tanta certeza disso que sinto o cheiro do tabaco dele sinto o bigode dele no meu rosto Mas as janelas da loja estão escuras Vamos em direção ao nosso apartamento na Kossuth Lajos Utca número 6 e na calçada perto do lugar onde a carroça estacionou para nos levar para a fábrica de tijolos ocorre um milagre Klara se materializa saindo pela porta da frente O cabelo dela está trançado e preso num coque igual ao de nossa mãe Ela carrega seu violino Quando nos vê deixa cair a caixa do violino na calçada e corre para mim murmurando Dicuka Dicuka Ela chora e me segura como se eu fosse um bebê e seus braços um berço Não nos abrace avisa Magda Estamos cheias de bactérias e feridas Acho que o que ela quer dizer é Querida irmã estamos desfiguradas Ela quer dizer Não deixe que o que passamos a magoe Não torne isso ainda mais difícil Não nos pergunte o que aconteceu Não desapareça sem deixar rastros Klara não para de me abraçar Esta é a minha irmãzinha diz para o estranho que passa Naquele momento ela virou minha mãe Ela já viu em nossos rostos que a posição está vazia e deve ser preenchida Faz pelo menos um ano e meio desde que nos vimos pela última vez Ela tem que ir à estação de rádio para tocar em um concerto Não temos condições de perdêla de vista não podemos ficar longe dela Fique fique pedimos Mas ela já está atrasada Se eu não tocar não comemos diz ela Rápido entrem Talvez seja uma bênção o fato de não haver tempo para conversar Não saberíamos por onde começar Embora seja um choque para Klara nos ver tão destruídas fisicamente talvez também seja uma bênção Há algo concreto que Klara pode fazer para demonstrar seu amor e alívio nos indicar o caminho da cura Isso vai precisar de mais do que descanso Talvez nunca nos recuperemos Mas há algo que ela pode fazer agora Ela nos leva para dentro e tira nossas roupas sujas Ela nos ajuda a deitar nos lençóis brancos da cama onde nossos pais dormiam e passa uma loção de calamina nas erupções que cobrem nossos corpos A erupção que nos faz coçar sem parar passa instantaneamente de nossos corpos para o dela de modo que ela mal consegue tocar por causa da queimação que sente em toda a pele Nosso reencontro é físico Magda e eu ficamos pelo menos uma semana deitadas na cama nuas os corpos lambuzados de calamina Klara não faz perguntas Não pergunta onde estão nossos pais Ela fala que não precisamos falar para não precisar ouvir Tudo o que ela nos conta é formulado como um milagre E é milagroso Estamos juntas Tivemos sorte Há poucos reencontros como o nosso Nosso tio e nossa tia irmãos de mamãe foram jogados de uma ponte e se afogaram no Danúbio Klara nos conta sem rodeios e de forma objetiva que escapou de ser identificada quando os últimos judeus remanescentes da Hungria foram presos Ficou morando na casa de seu professor disfarçada como não judia Um dia meu professor disse Você tem que aprender a Bíblia amanhã pois vai começar a ensinála Vai morar num convento Parecia a melhor maneira de me manter escondida O convento ficava a quase 320 quilômetros de Budapeste Usei um hábito de freira Mas um dia uma garota da academia de música me reconheceu e fugi em um trem para Budapeste Em algum momento no verão ela recebeu uma carta de nossos pais Era a carta que eles tinham escrito na fábrica de tijolos contando a Klara onde estávamos presos juntos e seguros e que achávamos que seríamos transferidas para um campo de trabalho chamado Kenyérmező Eu me lembro de ver minha mãe deixar a carta cair na rua durante nossa retirada da fábrica de tijolos já que não havia como enviála Na época achei que ela poderia ter jogado a carta fora por estar resignada Mas ao ouvir Klara contar sua história de sobrevivência vejo as coisas de forma diferente Ao soltar a carta mamãe não estava abrindo mão da esperança muito pelo contrário De qualquer forma se deixou cair a carta por se sentir derrotada ou por ter esperança assumiu um risco A carta apontava o dedo para minha irmã uma judia loura morando em Budapeste Dava inclusive seu endereço Enquanto nos arrastávamos no escuro rumo a Auschwitz alguém um estranho pegou a carta Ele poderia têla aberto e entregado Klara aos nyilas poderia ter jogado a carta no lixo ou a deixado na rua mesmo Mas esse estranho colocou um selo na carta e a enviou para Klara em Budapeste Isso é tão inacreditável para mim quanto o reaparecimento de minha irmã um truque de mágica a prova do laço que nos une uma prova também de que a gentileza ainda existia no mundo mesmo naquela época Em meio à terra pisada pelos pés de três mil pessoas muitas delas indo direto para uma chaminé na Polônia a carta de nossa mãe voou A garota loura colocou o violino de lado para abrir a carta Klara conta outra história com um final feliz Sabendo que tínhamos sido levados para a fábrica de tijolos que esperávamos ser mandados a qualquer hora para Kenyérmező ou para sabese lá onde ela foi ao consulado alemão em Budapeste pedir para ser enviada para onde estávamos No consulado o porteiro lhe disse Garotinha vá embora Não entre aí Não iam negar o pedido dela Ela tentou entrar escondida no prédio O porteiro a viu e lhe deu uma surra socou seus ombros braços barriga e rosto Mandoua ir embora dali Ele me deu uma surra e salvou minha vida nos conta ela Perto do fim da guerra quando os russos cercaram Budapeste os nazistas ficaram ainda mais determinados a livrar a cidade dos judeus Tínhamos que usar cartões de identificação com nome religião e foto Eles checavam os cartões o tempo todo e se vissem que você era judeu podiam matálo Eu não queria carregar o meu cartão mas tinha medo de precisar de algo que provasse quem eu era depois da guerra Então decidi pedir que uma amiga o guardasse Como ela morava do outro lado do porto era preciso cruzar a ponte para chegar lá Quando pisei na ponte os soldados estavam verificando documentos Eles disseram Por favor mostre sua identificação Eu disse que estava sem o cartão e não sei como me deixaram atravessar O cabelo louro e os olhos azuis os devem ter convencido Nunca voltei à casa de minha amiga para pegar o cartão Quando você não pode entrar pela porta entre pela janela nossa mãe costumava dizer Não existe porta para a sobrevivência ou para a recuperação Só janelas Trincos que você não consegue alcançar com facilidade vidraças pequenas demais espaços onde um corpo não deveria caber Mas você não consegue ficar onde está Precisa encontrar um jeito Depois da rendição alemã enquanto Magda e eu nos recuperávamos em Wels Klara foi novamente ao consulado desta vez ao consulado russo porque Budapeste foi libertada do controle nazista pelo Exército Vermelho Lá ela tentou descobrir o que tinha acontecido conosco Eles não tinham informações sobre nossa família mas em troca de um concerto gratuito eles se ofereceram para ajudála a voltar para casa em Košice Toquei para duzentos russos e depois fui trazida para casa no teto de um trem Eles cuidaram de mim quando paramos para dormir Ao abrir a porta de nosso antigo apartamento Klara encontrou tudo desarrumado nossos móveis e pertences saqueados Os quartos tinham sido usados como estábulo e o chão estava coberto de estrume de cavalo Enquanto reaprendíamos a comer a andar e a escrever nossos nomes em Wels Klara fazia concertos para ganhar dinheiro entre um concerto e outro limpava o chão E então nós chegamos Quando nossas erupções cutâneas sararam nos revezávamos para sair do apartamento Existe apenas um par de sapatos em bom estado para nós três Na minha vez de colocar os sapatos caminho devagar pela calçada na ida e na volta ainda muito fraca para ir longe Um vizinho me reconhece Estou surpreso de ver que você conseguiu sobreviver diz ele Você foi sempre uma criança tão magra Eu poderia me sentir vitoriosa Contra todas as expectativas um final feliz Mas eu me sinto culpada Por que eu Por que eu sobrevivi Não há explicação É um golpe de sorte Ou um erro As pessoas podem ser classificadas de duas maneiras as que sobreviveram e as que não conseguiram sobreviver As do segundo grupo não estão aqui para contar sua história O retrato de nossa avó materna agora está pendurado na parede Seu cabelo escuro está partido no meio e preso atrás num coque apertado Alguns fios encaracolados enfeitam a testa lisa Ela não sorri na foto mas os olhos dela são mais sinceros do que severos Ela nos observa sábia e sensata Magda conversa com o retrato como mamãe costumava fazer Às vezes pede ajuda Às vezes resmunga e esbraveja Esses nazistas cretinos malditos nyilas O piano em que ficava a foto foi levado O piano de tão presente em nosso cotidiano era quase invisível como a respiração Agora sua ausência domina o ambiente Magda se enfurece no espaço vazio Sem o piano falta algo nela também Um pedaço de sua identidade Um meio para se expressar Ela se irrita com a falta do piano Vibrante determinada obstinada Eu a admiro por isso Minha raiva se internaliza e congestiona meus pulmões Magda fica mais forte a cada dia que passa mas eu ainda estou fraca Minhas costas ainda doem o que dificulta meu caminhar e meu peito está pesado de tão congestionado Raramente saio de casa Mesmo que não estivesse doente não há lugar aonde eu queira ir Quando a morte é a resposta para cada pergunta por que caminhar Por que falar quando qualquer interação com os vivos serve para provar que você anda pelo mundo na companhia de uma congregação crescente de fantasmas Por que sentir falta de alguém em particular quando todo mundo tem tanta gente para lamentar Dependo de minhas irmãs Klara minha enfermeira devotada e Magda minha fonte de notícias minha conexão com o mundo lá fora Um dia ela chega em casa sem fôlego O piano diz ela Eu o encontrei Está numa cafeteria Nosso piano Temos que pegálo de volta O dono da cafeteria não acredita que ele seja nosso Klara e Magda se revezam implorando Elas descrevem os concertos de música de câmara em nossa sala de estar de como János Starker nosso amigo violoncelista outra criança prodígio do conservatório tocou com Klara em nossa casa no ano de sua estreia profissional Nada do que as duas dizem o convence Por fim Magda procura o afinador do piano e vai com ele ao café para conversar com o proprietário Depois de levantar a tampa do piano olhar seu interior e ler o número de série ele faz que sim com a cabeça este é o piano Elefánt Ele chama um grupo de homens para leválo de volta para o nosso apartamento Será que existe algo dentro de mim que possa verificar a minha identidade que possa me restaurar para mim mesma Se tal coisa existisse quem levantaria a tampa para ler o código Um dia chega um pacote de tia Matilda Avenida Valentine no Bronx diz o endereço do remetente Ela envia chá e margarina Nunca vimos gordura vegetal antes e portanto não temos noção de que é um substituto da manteiga para cozinhar e assar Simplesmente passamos no pão e comemos Reutilizamos os sacos de chá indefinidamente Quantas xícaras podemos preparar com as mesmas folhas De vez em quando nossa campainha toca e eu pulo na cama Esses são os melhores momentos Alguém está esperando do lado de fora e nos segundos antes de abrir a porta pode ser qualquer um Às vezes imagino que é papai Ele sobreviveu à primeira seleção afinal de contas Descobriu uma maneira de trabalhar de parecer jovem pelo resto da guerra e está aqui segurando um pedaço de giz uma fita métrica enrolada no pescoço como um cachecol Algumas vezes imagino Eric na varanda carregando um buquê de rosas Meu pai nunca chega É assim que temos certeza de que ele está morto Um dia Lester Korda um dos dois irmãos que viajaram com a gente no trem de Wels para Viena toca a campainha Ele veio ver como estávamos Pode me chamar de Csicsi diz ele Ele é como o ar fresco entrando em nosso velho apartamento Estamos num limbo permanente eu e minhas irmãs divididas entre olhar para trás e seguir em frente Grande parte de nossa energia é usada simplesmente para recuperar nossa saúde nossos pertences e o que havia em nossa vida antes da perda e do encarceramento O interesse e a solidariedade de Csicsi com relação ao nosso bemestar me fizeram lembrar que existe mais na vida do que apenas a recuperação Klara está na outra sala tocando violino Os olhos de Csicsi brilham quando ele ouve a música Posso conhecer a violinista pergunta ele Klara faz uma gentileza e toca uma czarda húngara Csicsi dança Talvez seja tempo de tocar nossa vida não de voltar ao que era mas seguir na direção de algo novo Ao longo do verão de 1945 Csicsi se torna um visitante regular Quando Klara tem de viajar para Praga para outro concerto Csicsi se oferece para ir com ela Devo preparar o bolo de casamento agora pergunta Magda Pare com isso diz Klara Ele tem uma namorada Está sendo apenas educado Você tem certeza de que não está se apaixonando pergunto Ele me faz lembrar de nossos pais diz ela e eu o faço lembrar dos dele Algumas semanas depois de voltar para casa embora fraca faço o trajeto a pé até o antigo apartamento de Eric Ninguém de sua família retornou O apartamento está vazio Prometo a mim mesma vir sempre que puder A dor de ficar longe é maior do que minha decepção a cada vigília Estar de luto por ele é lamentar a perda de mais do que uma pessoa Nos campos eu ansiava por sua presença física e me agarrava à promessa de nosso futuro Se eu sobreviver hoje amanhã serei livre A ironia da liberdade é a dificuldade cada vez maior de encontrar esperança e propósito Agora preciso aceitar o fato de que a pessoa que se casar comigo não conhecerá meus pais Se um dia eu tiver filhos eles não conhecerão os avós Não é apenas a minha perda que dói É a maneira como ela repercute no futuro e se perpetua Mamãe costumava me dizer para procurar um homem com uma testa grande porque isso significa que ele é inteligente Observe como ele usa o lenço dizia ela Certifiquese se sempre carrega consigo um limpo Certifiquese de que os sapatos dele são engraxados Ela não estará no meu casamento Ela nunca saberá quem eu me tornei quem eu escolhi Klara é minha mãe agora Ela faz isso por amor e com uma competência natural Também faz isso por culpa Ela não estava lá em Auschwitz para nos proteger Ela nos protegerá agora Ela cuida da cozinha Ela me dá comida na boca com uma colher como se eu fosse um bebê Eu a amo amo sua atenção amo ser abraçada e me sentir segura Mas também é sufocante Sua bondade não deixa espaço para mim Parece que ela precisa de algo em troca Não gratidão ou reconhecimento Algo mais profundo Posso sentir que ela depende de mim para ter o próprio senso de propósito Para ter sua razão de existir Ao cuidar de mim ela encontra a razão por ter sido poupada Meu papel é ser saudável o suficiente para ficar viva mas indefesa o suficiente para precisar dela Essa é a minha razão para ter sobrevivido No fim de junho minha coluna ainda não está boa A dor aguda é constante entre as omoplatas Meu peito ainda dói quando respiro De repente tenho febre Klara me leva para o hospital e insiste em que me deem um quarto particular e que eu receba o melhor atendimento Eu me preocupo com as despesas mas ela diz que terá apenas que tocar em mais concertos e que encontrará um jeito de pagar Reconheço o médico que me examina É o irmão mais velho da minha antiga colega de escola O nome dele é Gaby Lembro que sua irmã o chamava de Anjo Gabriel Ela morreu fico sabendo Morreu em Auschwitz Ele me pergunta se a vi lá alguma vez Gostaria de ter essa última imagem para ele se lembrar dela e cogito mentir contar alguma história que eu teria testemunhado da menina fazendo algo corajoso ou falando dele com carinho Mas não minto Prefiro enfrentar o vácuo desconhecido de meu pai e dos últimos minutos de Eric do que ouvir algo que apesar de reconfortante não é verdade O Anjo Gabriel me presta o primeiro atendimento médico desde a libertação Ele diagnostica que tenho tifo pneumonia pleurisia e fratura na coluna Faz um gesso removível que cobre todo o meu torso Colocoo na cama à noite e me encaixo nele minha concha de gesso As visitas de Gaby não são apenas terapêuticas para o corpo Ele não me cobra pelo atendimento médico Nós conversamos e relembramos Não posso viver o luto com minhas irmãs pelo menos não explicitamente É brutal demais presente demais Viver o luto com elas parece ser uma profanação do milagre da nossa reunião Nunca nos abraçamos e choramos mas com Gaby eu posso me permitir sofrer Um dia pergunto a ele sobre Eric Ele se lembra de Eric mas não sabe o que aconteceu Gaby tem colegas que trabalham no centro de repatriação nas montanhas Tatra Ele pedirá que tentem descobrir algo sobre Eric Certa tarde Gaby examina minha coluna Ele espera que eu me deite de bruços para me dizer o que descobriu Eric foi mandado para Auschwitz conta Morreu em janeiro um dia antes da libertação Eu solto um gemido Acho que meu peito vai estourar A explosão de tristeza é tão forte que as lágrimas não vêm somente um choro preso na garganta Não consigo pensar com clareza ou fazer perguntas sobre os últimos dias do meu amor sobre o sofrimento dele sobre seu estado de espírito quando seu corpo desistiu Estou consumida pela dor e pela injustiça de perdêlo Se ele tivesse sido capaz de aguentar por mais algumas horas talvez até apenas alguns segundos a mais podíamos estar juntos agora Fico deitada gemendo até ficar rouca À medida que o choque se dissipa entendo que de uma forma estranha a dor de saber é misericordiosa Não tenho tanta certeza da morte do meu pai Ter certeza de que Eric morreu é como receber um diagnóstico depois de muito tempo com dor Posso identificar a razão do sofrimento Posso definir o que tem de ser curado Mas um diagnóstico não é uma cura Não sei o que fazer com a voz de Eric agora com as lembranças com a esperança No fim de julho minha febre passa mas Gaby ainda não está satisfeito com minha recuperação Meus pulmões comprimidos durante muito tempo por causa da coluna fraturada estão cheios de fluidos Ele teme que eu tenha contraído tuberculose e recomenda que eu vá para um hospital especializado no tratamento nas montanhas Tatra perto do centro de repatriação onde ele soube da morte de Eric Klara me acompanhará até a vila mais próxima das montanhas Magda ficará no apartamento Depois do esforço para retomálo não podemos arriscar deixálo vazio nem por um dia por mais rara que seja a chance de aparecer um ocupante inesperado Klara toma conta de mim durante a viagem como se eu fosse uma criança Vejam a minha pequenina ela fala para os passageiros Sorrio para eles como uma criança que cresceu demais De fato pareço uma Meu cabelo que tinha caído por causa do tifo está começando a crescer macio como o de um bebê Klara me ajuda a cobrir a cabeça com um lenço Conforme ganhamos altitude o ar seco dos Alpes parece limpar meu peito mas ainda é difícil respirar Há uma secreção constante em meus pulmões É como se todas as lágrimas que não posso derramar para fora estivessem escoando para uma piscina interna Não consigo ignorar o sofrimento mas aparentemente também não consigo exteriorizálo Klara é esperada em Košice para outra apresentação na rádio seus concertos são nossa única fonte de renda e não pode me acompanhar até o hospital onde vou ficar até me recuperar mas ela não quer que eu vá sozinha Perguntamos no centro de repatriação se eles conhecem alguém que esteja indo para o hospital e recomendam um homem jovem hospedado em um hotel próximo que também vai fazer um tratamento lá Ao me aproximar dele no saguão do hotel ele está beijando uma garota Me encontre no trem murmura ele Quando o abordo na plataforma do trem ele ainda está beijando a garota Ele é grisalho tem pelo menos dez anos mais do que eu Completo 18 anos em setembro mas meus braços finos o peito reto e a cabeça careca me fazem parecer ter 12 Fico em pé ao lado do casal constrangida enquanto eles se abraçam insegura sobre como conseguir a atenção dele Estou chateada É esse o homem a quem estão me confiando O senhor poderia me ajudar finalmente pergunto O senhor deveria me acompanhar até o hospital Estou ocupado diz ele mal interrompendo o beijo para me responder Ele é como um irmão mais velho afastando a irmã chata Encontreme no trem Depois da atenção e adulação constante de Klara o desprezo dele magoa Não sei por que ele me incomoda tanto Será que é porque a namorada dele está viva e o meu namorado está morto Ou será que estou tão enfraquecida que sem a atenção ou aprovação de outra pessoa eu me sinto em risco de desaparecer completamente No trem ele compra um sanduíche para mim e um jornal para ele Não conversamos só trocamos nomes e formalidades Béla é o nome dele Para mim ele é apenas uma pessoa rude em um trem uma pessoa a quem devo pedir ajuda com relutância uma pessoa que reluta em ajudar Na estação somos informados de que precisamos andar até o hospital Agora não há o jornal para distraílo O que você fazia antes da guerra pergunta ele Percebo o que não tinha escutado antes ele é gago Quando digo que era ginasta e bailarina ele diz Isso me lembra uma piada Olho para ele com expectativa pronta para uma dose de humor húngaro pronta para o alívio que senti em Auschwitz quando Magda e eu promovemos o concurso de peitos com nossas colegas de beliche o estímulo do riso em tempos terríveis Havia um pássaro começa ele e o pássaro estava prestes a morrer de frio Uma vaca apareceu e o aqueceu um pouco fazendo cocô em cima dele Aí o pássaro começou a se recuperar Então veio um caminhão e atropelou o pássaro Um cavalo velho e sábio passou e viu o pássaro morto na estrada O cavalo disse Não falei que nem sempre estar na merda é ruim Béla ri da própria piada Mas eu me sinto insultada Sua intenção é fazer graça mas acho que ele tenta me dizer Você tem merda na cabeça Acho que ele quer dizer Você está um trapo não devia dizer que é uma bailarina com essa aparência Por um momento antes do insulto experimentei uma sensação de alívio ao receber a atenção dele ao ouvilo me perguntar sobre o que fazia antes da guerra e reconhecer a pessoa que um dia existiu em mim o eu que florescia antes da guerra A piada reforça o quanto a guerra me mudou e me feriu de maneira irreparável Dói que um estranho me diminua Dói porque ele está certo Estou um trapo Ainda assim não vou permitir que um homem insensível ou seu sarcasmo húngaro tenha a última palavra Vou mostrar a ele que uma bailarina alegre ainda vive em mim não importa quão curto esteja o meu cabelo quão magro esteja o meu rosto quão pesado esteja o sofrimento em meu peito Dou um salto à frente dele e faço espacates no meio da estrada Acaba que eu não tenho tuberculose Mesmo assim eles me mantêm durante três semanas no hospital para tratar o fluido que se forma em meus pulmões Tenho tanto medo de contrair tuberculose que uso os pés em vez das mãos para abrir as portas embora saiba que a doença não é transmitida pelo toque e por germes em maçanetas É ótimo não ter tuberculose mas ainda não estou bem Não sei como explicar a sensação de transbordamento no peito a pulsação misteriosa na testa É como se algo obscurecesse minha visão Depois essa sensação terá um nome Depois saberei que seu nome é depressão Agora tudo o que sei é que sair da cama exige esforço Há o esforço para respirar E o pior o esforço existencial Por que acordar O que há para se fazer Eu não pensava em suicídio em Auschwitz quando as coisas eram desesperadoras Eu estava cercada por pessoas que diziam A única maneira de você sair daqui é como um cadáver Mas as profecias terríveis me deram algo para lutar Agora que estou me recuperando agora que estou enfrentando o fato irrevogável de que meus pais não vão voltar que Eric nunca vai voltar os únicos demônios são os internos Penso em tirar a própria vida Quero uma saída para a dor Por que não optar por não sofrer Béla foi colocado no quarto exatamente acima do meu Um dia ele passa no meu quarto para me ver Vou fazer você rir e isso vai fazêla se sentir melhor Você vai ver Ele sacode a língua puxa as orelhas faz sons de animais como se estivesse entretendo um bebê É absurdo quase insultante embora eu não consiga me controlar A gargalhada transborda de mim como uma onda Não ria os médicos me avisaram como se a risada fosse uma tentação constante como se eu corresse o risco de rir até morrer Se você rir sofrerá mais Eles têm razão Realmente dói mas também é uma sensação boa Fico deitada sem dormir naquela noite pensando nele na cama bem acima da minha pensando em coisas para impressionálo coisas que estudei na escola No dia seguinte quando ele me visita digo tudo o que consegui lembrar ao longo da noite sobre mitos gregos invocando os deuses e deusas mais obscuros Falo sobre A interpretação dos sonhos de Freud o último livro que Eric e eu lemos junto Eu me exibo para ele do jeito que me apresentava para os convidados dos jantares organizados por meus pais minha vez na ribalta antes de Klara a protagonista assumir o palco Ele me observa como um professor olha para um aluno promissor Béla fala pouco sobre si mesmo mas sei que estudou violino e que gostava de ouvir gravações de música de câmara e de dar uma de maestro regendo no ar Béla tem 27 anos Eu sou apenas uma criança Ele tem outras mulheres em sua vida A mulher que estava beijando na plataforma de trem quando eu o interrompi E outra paciente aqui no hospital conta ele a melhor amiga de sua prima Marianna que ele namorou no colégio antes da guerra Ela está muito doente Não vai se recuperar Ele se diz seu noivo um gesto de esperança para ela em seu leito de morte um gesto de esperança para a mãe dela Meses mais tarde fico sabendo que Béla também tem uma esposa uma quase estranha com quem ele nunca teve intimidade uma não judia com quem fez um arranjo no papel nos primeiros dias da guerra na tentativa de proteger a família e a fortuna Não é amor É que estou ávida e eu o divirto Ele olha para mim do jeito que Eric olhou naquele dia no clube do livro há muito tempo como se eu fosse inteligente como se eu tivesse coisas interessantes para dizer Por enquanto isso é suficiente Na minha última noite no hospital para tuberculosos estou deitada em meu quarto confortável quando escuto uma voz do interior das montanhas do próprio centro da terra Subindo pelo piso e pelo colchão fino a voz me envolve me cobra Se você viver diz a voz tem que lutar por alguma coisa Vou escrever para você diz Béla pela manhã quando nos despedimos Não é amor Não espero isso dele Magda me encontra na estação de trem de Košice Klara tem se mostrado tão possessiva comigo desde o nosso reencontro que esqueci como é estar sozinha com Magda O cabelo dela cresceu Ondas emolduram seu rosto Seus olhos brilham novamente Ela parece bem E mal consegue esperar para contar as fofocas das três semanas em que estive fora Csicsi terminou com a namorada e agora está cortejando Klara descaradamente Os sobreviventes de Košice criaram um clube de entretenimento e ela já prometeu que eu me apresentaria E Laci o rapaz do teto do vagão escreveu para nos contar que seus parentes no Texas já assinaram uma declaração de apoio financeiro exigida a quem imigra para os Estados Unidos Logo ele vai se juntar aos parentes em um lugar chamado El Paso ela me conta onde trabalhará na loja de móveis da família e guardará dinheiro para a faculdade de medicina É melhor Klara não me humilhar se casando primeiro diz Magda É assim que será nossa cura Ontem canibalismo e assassinato Ontem escolhendo folhas de grama para comer Hoje costumes antiquados e propriedades regras e documentação que nos fazem sentir normais Minimizamos as perdas e o horror a terrível interrupção da vida vivendo como se nada disso tivesse acontecido Não seremos uma geração perdida Aqui tenho uma coisa para você diz minha irmã me passando um envelope com meu nome escrito à mão conforme aprendemos na escola Seu velho amigo passou para deixar Por um momento acho que ela quer dizer Eric Ele está vivo Meu futuro está dentro do envelope Ele esperou por mim Ou ele já seguiu em frente O envelope não é de Eric Ele não contém o meu futuro Na verdade guarda o meu passado Nele está uma foto minha talvez a última foto tirada antes de Auschwitz a foto em que estou fazendo espacates na beira do rio a foto que Eric tirou a foto que pedi que minha amiga Rebeka guardasse para mim Entre os dedos seguro a foto da pessoa que ainda vai perder os pais e que não sabe em quanto tempo ela vai perder o seu amor Magda me leva ao clube de entretenimento naquela noite Klara e Csicsi estão lá assim como Rebeka e o irmão de Csicsi Imre Gaby meu médico também está lá e talvez seja por isso que mesmo fraca como estou concordei em dançar Quero mostrar a Gaby que estou melhorando Quero mostrar que o tempo que ele dedicou a cuidar de mim fez a diferença que ele não desperdiçou seus esforços Peço a Klara e aos outros músicos que toquem Danúbio azul e começo meu roteiro o mesmo que encenei há pouco mais de um ano na primeira noite em Auschwitz a dança com que Josef Mengele me premiou com um pedaço de pão Os passos não mudaram mas meu corpo sim Não tenho mais músculos alongados e flexíveis nem força nas pernas ou no centro de meu corpo Sou uma magrela ofegante sem cabelo e com a coluna fraturada Fecho os olhos como fiz na prisão Naquela noite há muito tempo fechei os olhos para não ter que ver o olhar aterrorizador e assassino de Mengele e para evitar tropeçar e cair no chão diante da força de seu olhar Agora fecho os olhos para poder sentir o meu corpo não para fugir da sala mas para sentir o calor do entusiasmo do público À medida que encontro o caminho para os movimentos e os passos tão conhecidos para o grand battement para os espacates fico mais confiante e confortável E volto no tempo para os dias em que não imaginávamos nenhuma intromissão pior em nossa liberdade do que os toques de recolher e as estrelas amarelas Danço em direção à minha inocência Em direção à garota que subia correndo as escadas do estúdio de balé Em direção à mãe amorosa e sábia que levou a garota lá pela primeira vez Ajudeme eu peço Ajudeme Ajudeme a viver novamente Alguns dias depois chega um envelope grosso endereçado a mim É de Béla A primeira das muitas cartas que ele escreverá de início enviada do hospital para tuberculosos depois da casa onde nasceu e foi criado em Prešov a terceira maior cidade da Eslováquia distante apenas 32 quilômetros de Košice À medida que aprendo mais sobre Béla começo a juntar os fatos que ele me revela nessas cartas e monto uma vida O homem grisalho com uma gagueira e senso de humor sarcástico se torna uma pessoa que tem contornos A memória mais antiga de Béla segundo ele mesmo é de sair para passear com o avô um dos homens mais ricos do país e ter um biscoito negado na confeitaria Quando ele sair do hospital vai assumir os negócios do avô de venda no atacado da produção dos fazendeiros da região e de beneficiamento de café e trigo para toda a Eslováquia Béla é uma despensa cheia um país da abundância ele é uma festa Como minha mãe Béla perdeu um dos pais quando era bem jovem O pai que foi prefeito de Prešov e antes disso um famoso advogado dedicado aos pobres viajou para uma conferência em Praga no inverno quando Béla tinha 4 anos Ao descer do trem ele foi pego por uma avalanche de neve Ou foi isso que a polícia disse à mãe de Béla Béla suspeita que o pai uma figura controversa por ter se rebelado contra a elite de Prešov ao defender os pobres e marginalizados tenha sido assassinado mas a versão oficial era que ele tinha sufocado sob a neve Com a morte do pai Béla ficou gago A mãe de Béla nunca se recuperou da morte do marido até porque seu pai a manteve trancada em casa para impedir que ela conhecesse outros homens Durante a guerra a tia e o tio de Béla a convidaram para ficar com eles na Hungria onde estavam escondidos usando documentos de identificação falsos Um dia no mercado a mãe de Béla viu um grupo de soldados da SS e entrou em pânico Correu até eles e confessou Sou judia disse ela Eles a enviaram para Auschwitz e ela morreu na câmara de gás O restante da família exposta pela confissão da mãe de Béla teve que fugir para as montanhas O irmão de Béla George se mudou para os Estados Unidos antes da guerra Decidiu imigrar depois do dia em que andando numa rua em Bratislava a capital da Eslováquia foi atacado por gentios e teve os óculos quebrados Ele deixou o crescente antissemitismo da Europa para viver com o tioavô em Chicago Sua prima Marianna fugiu para a Inglaterra Béla mesmo tendo estudado na Inglaterra quando menino e falando inglês fluentemente se recusou a deixar a Eslováquia Queria proteger toda a família Isso não foi possível O avô morreu de câncer de estômago A tia e o tio convencidos a sair das montanhas pela promessa feita pelos alemães de tratar com civilidade todos os judeus que retornassem foram colocados no paredão e fuzilados Béla escapou dos nazistas se escondendo nas montanhas Ele mal conseguia segurar uma chave de fenda tinha medo de armas não queria lutar era desajeitado mas virou um partisan Pegou uma arma e juntouse aos russos que lutavam contra os nazistas Quando estava com os partisans contraiu tuberculose Ele não precisou sobreviver aos campos de concentração Em vez disso precisou sobreviver às florestas nas montanhas Por isso sou grata Nunca verei as chaminés gravadas em seus olhos Prešov fica a apenas uma hora de carro de Košice Num fim de semana Béla me visita e tira da sacola queijo suíço e salame Comida É isso que faz eu me apaixonar imediatamente Se eu conseguir manter seu interesse por mim ele vai alimentar a mim e a minhas irmãs é nisso que penso Não suspiro por ele do jeito que suspirava por Eric Não fantasio sobre beijálo nem anseio por têlo por perto Tampouco flerto com ele não de um jeito romântico Somos como dois náufragos olhando para o mar em busca de sinais de vida E vemos um lampejo um no outro Descubro que estou voltando a viver Sinto que vou pertencer a alguém Sei que Béla não é o amor de minha vida não da forma que Eric era Não estou tentando substituir Eric Porém Béla conta piadas e escreve cartas de vinte páginas e eu tenho uma escolha a fazer Quando conto a Klara que vou me casar com Béla ela não me felicita Ela se vira para Magda Ah dois complicados se juntando diz ela Como isso vai funcionar Depois à mesa ela fala comigo diretamente Você é uma criança Dicuka Não pode tomar decisões como esta Você ainda não voltou ao normal Nem ele Ele tem tuberculose É gago Você não pode se casar com ele Agora eu tenho uma nova motivação para esse casamento dar certo Tenho que provar que minha irmã está errada A objeção de Klara não é o único impedimento Há o fato de Béla ainda ser legalmente casado com a não judia que protegeu a fortuna da família dos nazistas e ela se recusa a se divorciar dele Eles nunca viveram juntos nunca tiveram um relacionamento de qualquer outro tipo que não o da conveniência para ela o dinheiro dele para ele a situação de gentia dela mas ela não concederá o divórcio pelo menos não até que ele concorde em lhe pagar uma grande soma de dinheiro E também tem a noiva nas montanhas Tatra morrendo de tuberculose Ele pede à prima Marianna que fugiu para a Inglaterra mas voltou depois da guerra que dê a notícia de que ele não se casará com a noiva Marianna fica furiosa com razão Você é horrível grita ela Você não pode fazer isso com ela Nem em um milhão de anos direi a ela que está quebrando sua promessa Béla pede que eu vá com ele ao hospital para que ele mesmo conte à moça Ela é graciosa e gentil comigo e está muito muito doente É desconcertante ver alguém fisicamente tão destruída É parecido demais com o passado recente Tenho medo de ficar tão perto da porta da morte Ela me diz que está feliz por Béla se casar com alguém como eu alguém com tanta energia e vida Fico satisfeita por ter a sua bênção Ainda assim penso que poderia ser eu naquela cama recostada em travesseiros amassados tossindo entre as palavras e enchendo o lenço de sangue Naquela noite Béla e eu nos hospedamos juntos no hotel onde nos conhecemos Em todas as suas visitas à Košice dormimos em quartos separados Nunca dividimos uma cama Nunca vimos um ao outro sem roupa Mas hoje é diferente Tento me lembrar das palavras proibidas no livro Naná de Zola O que mais pode me preparar para lhe dar prazer para buscar o meu próprio prazer Ninguém me instruiu a respeito da coreografia de intimidade Até agora a nudez foi degradante humilhante aterrorizante Preciso reaprender a habitar minha pele Você está tremendo diz Béla Está com frio Ele pega em sua mala um pacote embrulhado com uma fita brilhante Dentro da caixa enrolado em papel de seda está uma linda camisola Um presente extravagante Mas não é isso que me emociona De alguma forma ele sabia que eu precisaria de uma segunda pele Não que eu quisesse me proteger dele de meu futuro marido Não é proteção que busco mas uma maneira de me elevar de me estender uma maneira de iniciar o capítulo que ainda não foi escrito Estremeço quando ele desliza a camisola pela minha cabeça quando o tecido encosta nas minhas pernas O figurino certo pode melhorar a dança Eu rodopio para ele Izléses diz ele Elegante Estou tão feliz porque alguém está olhando para mim O olhar dele é mais do que um elogio Assim como as palavras da minha mãe uma vez me ensinaram a valorizar minha inteligência através dos olhos de Béla descubro um novo apreço por meu corpo e pela minha vida C A P Í T U L O 9 Ano que vem em Jerusalém Eu me casei com Béla Eger no dia 12 de novembro de 1946 na prefeitura de Košice Podíamos ter comemorado de maneira luxuosa na mansão dos Eger podíamos ter escolhido uma cerimônia judaica Mas sou uma menina tenho apenas 19 anos não tive a oportunidade de terminar o ensino médio Meus pais estão mortos Um velho amigo do meu pai que não é judeu tem visitado a mim e às minhas irmãs Ele é juiz e conhece o irmão de Béla George da faculdade de Direito o que o torna um elo entre a minha família e o meu futuro marido além de ser um elo com meu pai e por isso o escolhi para celebrar nosso casamento Nos quinze meses desde que Béla e eu nos conhecemos meu cabelo passou de uma penugem rala para ondas cheias Eu o deixo solto sob um casquete branco inclinado na cabeça Uso um vestido emprestado de viscose preta na altura do joelho de mangas compridas justas com ombreiras e gola branca Levo um pequeno buquê de lírios e rosas amarrado com uma fita larga de cetim Sorrio para fotografias na varanda da loja do meu pai Estão presentes apenas oito pessoas eu Béla Magda Klara Csicsi Imre e dois velhos amigos do meu pai um deles presidente de um banco e o outro o juiz que nos casa Béla gagueja quando fala seus votos e Klara me olha com reprovação A recepção é em nosso apartamento Klara preparou toda a comida Frango assado Cuscuz húngaro Batatas com manteiga e salsa E a torta Dobos com sete camadas de bolo de chocolate Tentamos criar um ambiente feliz mas as ausências nos pesam Órfão casa com órfã Depois vou escutar que casamos com nossos pais Mas eu direi que casamos com nossas questões não resolvidas Para Béla e eu a questão não resolvida é o luto Passamos a lua de mel em Bratislava no Danúbio Danço com meu marido as valsas que conhecíamos de antes da guerra Visitamos a Fonte de Maximiliano e a Colina da Coroação Béla finge ser o novo monarca apontando sua espada para o norte o sul o leste e o oeste prometendo defenderme Vemos a antiga cidade murada duplamente fortificada para enfrentar os turcos Achamos que a tempestade já passou Naquela noite no hotel acordamos com alguém batendo a nossa porta Policiais forçam a entrada em nosso quarto A polícia está constantemente checando os civis nossas vidas se tornam um labirinto de requisitos burocráticos com permissões oficiais necessárias até para as ninharias mais cotidianas Podem prendêlo sob qualquer pretexto Como meu marido é rico uma pessoa importante não deveria me surpreender termos sido seguidos Mas estou surpresa E com medo estou sempre com medo E também constrangida E zangada Essa é a minha lua de mel Por que estão nos incomodando Acabamos de nos casar diz Béla em eslovaco Cresci sabendo falar apenas húngaro mas Béla é fluente em tcheco em eslovaco e em outras línguas necessárias para seus negócios comerciais Ele mostra nossos passaportes a certidão de casamento tudo para confirmar nossas identidades e a razão de estarmos em um hotel Por favor não nos incomodem A polícia não dá explicação alguma para invadir nossa privacidade para suspeitar de nós Há algum motivo para seguirem Béla Será que o confundiram com outra pessoa Tento não considerar a intrusão como um presságio Foco na suavidade da voz do meu marido por baixo de sua gagueira Não temos nada a esconder Mas alerta é meu estado permanente E não consigo deixar de sentir que sou culpada de alguma coisa Que serei descoberta Minha transgressão é a vida E o início de uma alegria cautelosa No trem de volta para casa temos uma cabine particular Prefiro sua elegância simples ao hotel Posso me imaginar em uma história Somos exploradores colonos O movimento do trem dissipa a apreensão e o tumulto de meu cérebro e me ajuda a focar no corpo de Béla Ou talvez seja apenas o tamanho reduzido da cama Meu corpo me surpreende O prazer é um elixir Um bálsamo Procuramos um ao outro repetidas vezes enquanto o trem acelera noite adentro Tenho que correr para o banheiro quando vamos a Košice visitar minhas irmãs Vomito sem parar Serão boas notícias mas ainda não sei Nesse momento só sei que depois de um ano de uma recuperação lenta estou doente novamente O que você fez com meu bebê grita Klara Béla molha o lenço na água fria e passa no meu rosto Enquanto minhas irmãs continuam morando em Košice passo a ter uma inesperada vida de luxo Eu me mudo para a mansão Eger em Prešov um antigo monastério de meio século de existência amplo e comprido uma casa do tamanho de um quarteirão com cavalos e carruagens alinhadas ao longo da entrada O negócio de Béla fica no térreo e nós no andar de cima Inquilinos ocupam outras partes da casa enorme Uma mulher cuida de nossa roupa fervendo os lençóis passando tudo branco Comemos em uma louça com o sobrenome da família meu novo nome gravado em dourado Na sala de jantar há um botão que posso apertar para chamar Mariska a governanta na cozinha Não consigo parar de comer o pão de centeio que ela faz Aperto o botão e peço mais pão Vocês estão comendo feito porcos murmura ela para mim Ela não disfarça a infelicidade com minha entrada na família Sou uma ameaça a seu estilo de vida ao modo como ela administra a casa Fico condoída ao ver Béla dar a ela dinheiro para as compras Sou sua esposa e me sinto inútil Por favor me ensine a cozinhar peço a Mariska um dia Não quero você nesta cozinha responde ela Para me lançar em minha vida nova Béla me apresenta à elite de Prešov advogados médicos e empresários e suas esposas mas eu me sinto deslocada jovem e inexperiente ao lado deles Conheço duas mulheres da minha idade Ava Hartmann é uma mulher moderna casada com um milionário mais velho Ela usa o cabelo negro repartido na lateral Marta Vadasz é casada com o melhor amigo de Béla Bandi Ela é ruiva e tem um rosto gentil e paciente Observo Ava e Marta com atenção tentando entender como devo me comportar e o que dizer Ava Marta e as outras mulheres bebem conhaque Eu bebo conhaque Ava Marta e as outras mulheres fumam Numa noite depois de um jantar na casa de Ava ela preparou o melhor fígado picado que eu provei na vida com pimenta verde e cebolas comento com Béla que sou a única que não fuma No dia seguinte ele me traz uma cigarreira de prata e uma piteira prateada Não sei como usar a piteira nem mesmo como prender o cigarro na ponta inalar e soltar a fumaça Tento imitar as outras mulheres Eu me sinto como um papagaio elegante nada além de um eco envolta em roupas bonitas que meu pai não fez para mim Será que eles sabem onde estive Nos salões e sentada a mesas de jantar decoradas olho para nossos amigos e conhecidos e imagino será que eles perderam as mesmas coisas que Béla e eu perdemos Não falamos sobre isso A negação é o nosso escudo Ainda não sabemos o dano que perpetuamos ao nos afastar do passado ao manter nossa conspiração de silêncio Estamos convencidos de que quanto mais isolarmos o passado mais seguros e felizes seremos Tento relaxar na minha nova vida rica e privilegiada Não haverá mais batidas fortes na porta interrompendo o sono digo a mim mesma Apenas o conforto dos edredons e lençóis limpos Acabouse a fome Como sem parar o pão de centeio de Mariska e os bolinhos de peixe que têm uma mistura de chucrute com bryndza um queijo eslovaco de leite de ovelha Estou engordando As memórias e as perdas ocupam apenas uma fatiazinha de mim Vou lutar contra elas para que saibam o seu lugar Vejo minha mão levar a piteira prateada até o rosto e se afastar Finjo que é uma nova dança Posso aprender cada gesto O peso que estou ganhando não tem a ver apenas com o excesso de comida No início da primavera descubro que estou grávida Em Auschwitz não ficávamos menstruadas A tensão constante e a inanição ou talvez a magreza extrema interrompiam os ciclos menstruais Mas agora meu corpo antes faminto emaciado e largado para morrer abriga uma nova vida Conto as semanas desde que sangrei pela última vez e calculo que Béla e eu devemos têlo concebido em nossa lua de mel talvez no trem Ava e Marta contam que também estão grávidas Espero que meu médico o médico da família Eger o mesmo homem que fez o parto de Béla me dê os parabéns Mas em vez disso ele me dá uma bronca Você não está forte o suficiente diz ele insistindo que eu marque um aborto e logo Eu me recuso Corro para casa chorando Ele me segue Mariska o leva até o salão Sra Eger a senhora morrerá se tiver esta criança diz ele A senhora é muito magra muito fraca Olho diretamente em seus olhos Doutor vou gerar uma vida digo Boa noite Béla o acompanha até a porta Escuto meu marido se desculpando por meu desrespeito Ela é filha de um alfaiate não se pode esperar algo diferente explica ele As palavras que ele usa para me proteger fazem outro pequeno buraco em meu ego ainda frágil Mas à medida que meu útero se expande o mesmo acontece com minha autoconfiança e determinação Não me escondo nos cantos Engordo 22 quilos e quando caminho nas ruas empurro a barriga e observo o reflexo dessa minha nova versão desfilar pelas vitrines das lojas Não reconheço de imediato esse sentimento Depois eu me lembro É a sensação de estar feliz Klara e Csicsi se casam na primavera de 1947 e Béla e eu vamos à Košice para a cerimônia em nosso Opel Adam verde Outra ocasião importante na qual sinto falta de nossos pais outro dia feliz afetado pela ausência deles Mas estou grávida minha vida está completa não vou deixar a tristeza me puxar para baixo Magda toca no piano da família Ela canta a música que nosso pai costumava cantar Béla luta com ideias contraditórias me tirar para dançar ou me obrigar a sentar e descansar os pés Minhas irmãs colocam as mãos na minha barriga Essa vida nova dentro de mim pertence a todas É o nosso recomeço Um pedaço de nossos pais e avós que continuará no futuro Esse é o tema da conversa quando fazemos uma pausa da música e os homens acendem seus charutos O futuro O irmão de Csicsi Imre logo viajará para Sydney Nosso grupo familiar já é tão pequeno Não gosto da ideia de nos dispersarmos Prešov já parece muito distante de minhas irmãs Antes de a noite acabar antes de Béla e eu irmos para casa Klara puxa Magda e eu para o quarto Tenho que dizer uma coisa a você pequenina diz ela Pela testa franzida de Magda percebo que ela já sabe o que Klara vai falar Se Imre for para Sydney diz Klara nós também iremos Austrália Por causa do golpe comunista em andamento na Tchecoslováquia nossos amigos em Prešov também falam em emigrar talvez para Israel talvez para os Estados Unidos mas as políticas de imigração são menos rígidas na Austrália Ava e o marido também mencionaram Sydney mas é muito longe E a sua carreira pergunto a Klara Há orquestras em Sydney Você não fala inglês Tento qualquer desculpa como se ela ainda não tivesse refletido sobre essas mesmas objeções Csicsi fez uma promessa diz ela Um pouco antes de morrer seu pai pediu que ele tomasse conta do irmão Se Imre for nós vamos Então vocês duas estão me abandonando diz Magda Depois de todo aquele esforço para sobreviver achei que ficaríamos juntas Lembro da noite em abril apenas dois anos antes em que achei que Magda podia morrer quando me arrisquei a levar uma surra ou coisa pior por escalar um muro e colher cenouras frescas para ela Nós sobrevivemos a uma provação horrenda porque tínhamos a responsabilidade de proteger uma à outra e porque cada uma de nós se agarrou à outra como algo para se dedicar Tenho que agradecer à minha irmã por minha vida Vai se casar logo garanto a ela você vai ver Não existe ninguém mais sexy que você Ainda não entendo que a dor da minha irmã tem menos a ver com solidão e mais com a crença de que ela não merece ser amada Onde ela vê sofrimento inferno deficiência e perda eu vejo outra coisa Vejo sua coragem seu triunfo e sua força É como nosso primeiro dia em Auschwitz quando a ausência de seu cabelo revelou para mim com uma nitidez nova a beleza de seus olhos Você está interessada em alguém pergunto Quero fofocar como fazíamos quando éramos garotas Magda sempre oferece informações preciosas ou imitações engraçadas Ela consegue dar leveza às coisas mais pesadas Quero que ela sonhe Magda balança a cabeça Não estou pensando em uma pessoa explica Estou pensando em um lugar E aponta para um cartãopostal que escondeu na moldura do espelho de seu guardaroupa A imagem mostra um deserto árido uma ponte El Paso informam as letras na parte de cima da imagem É de Laci Ele partiu diz Magda Eu também posso Para mim El Paso parece o fim do mundo Laci a chamou para ficar com ele Dicuka minha vida não é um conto de fadas Não espero que um homem apareça para me salvar Ela bate com os dedos no colo como se estivesse tocando piano Há mais coisas que ela quer dizer Você se lembra do que Mama tinha no bolso no dia em que morreu Uma membrana do nascimento de Klarie E uma nota de dólar que tia Matilda havia enviado numa época qualquer dos Estados Unidos Por que não sei disso Havia tantas coisas que nossa mãe tinha feito para sinalizar a esperança Não apenas a nota de dólar da qual não me lembro e aquela membrana de que me lembro mas o schmaltz a gordura de galinha que ela embrulhou para cozinhar na fábrica de tijolos e a carta para Klara Magda parece refletir sobre a praticidade de nossa mãe e também sobre sua esperança Laci não vai casar comigo diz ela Mas de alguma forma eu vou para os Estados Unidos Ela escreveu para tia Matilda pedindo que ela enviasse uma declaração de apoio financeiro para patrocinar sua imigração Austrália Estados Unidos Enquanto a próxima geração se agita dentro de mim minhas irmãs ameaçam flutuar para longe Fui a primeira a escolher uma nova vida depois da guerra Agora são elas que estão escolhendo Fico feliz por minhas irmãs Ainda assim penso no dia durante a guerra em que eu estava doente demais para trabalhar e Magda foi para a fábrica de munições sem mim Quando a fábrica foi bombardeada Magda podia ter fugido para a liberdade No entanto optou por voltar ao alojamento para me resgatar Tive uma vida boa e tive sorte Não há necessidade alguma que ela acompanhe a minha sobrevivência agora Mas se há alguma coisa de que sinto falta naquele inferno é o entendimento de que a sobrevivência é uma questão de interdependência que não se consegue sobreviver sozinha Ao escolhermos destinos diferentes minhas irmãs e eu será que corremos perigo de destruir nossa ligação Béla está fora da cidade quando sinto as primeiras contrações numa manhã de setembro Elas são fortes o suficiente para me imobilizar Ligo para Klara Quando ela chega duas horas depois o médico ainda não está lá Entro em trabalho de parto no mesmo quarto em que Béla nasceu na mesma cama Enquanto me reviro de dor sinto uma conexão com a mãe dele uma mulher que não tive a oportunidade de conhecer Esse bebê que estou me esforçando para trazer ao mundo não terá avós O médico ainda não chegou Klara fica ao meu lado oferecendo água secando meu rosto Saia daqui grito com ela Não aguento seu cheiro Não posso ser um bebê e dar à luz um bebê Tenho que ter controle sobre meu corpo e ela está me distraindo No meio da clara falta de noção sobre o que estava acontecendo durante o trabalho de parto me vem à memória a agonia da mulher grávida em Auschwitz que teve as pernas amarradas Não consigo afastar seu rosto e sua voz do meu quarto Ela me assombra e me inspira Cada impulso de seu corpo e de seu coração apontavam para a vida embora ela e seu bebê estivessem condenados a uma morte indescritivelmente cruel A tristeza toma conta de mim Sou uma avalanche Vou me abrir no limiar exato de seu tormento Vou aceitar essa dor porque ela não tinha escolha Vou aceitar a minha dor para apagar a dela cada memória dela pois se essa dor não me destruir a memória pode acabar comigo O médico finalmente chega A bolsa das águas estoura e sinto o bebê sair de dentro de mim É uma menina grita Klara Por um momento eu me sinto completa Estou aqui Minha bebê está aqui Tudo está bem e certo Quero batizála de AnnaMarie um nome romântico meio afrancesado mas os comunistas têm uma lista dos nomes permitidos e AnnaMarie não está entre eles Então escolhemos o inverso Marianne uma homenagem à prima de Béla aquela que ainda me chama de idiota por ter destruído o noivado entre Béla e sua amiga que agora está morta Béla distribui charutos Ele não vai se curvar à tradição de distribuir charutos apenas no nascimento de filhos homens A chegada de sua filha será comemorada com todos os rituais todas as demonstrações de orgulho Ele me traz uma caixa de joias Dentro está uma pulseira dourada de quadrados interligados do tamanho de selos postais feita de dois tipos de ouro Ela parece ser pesada mas é leve Ao futuro diz Béla e a coloca no meu pulso Ele diz isso e eu sei o sentido da minha vida É isso que vou defender essa criança Meu compromisso com ela será tão completo e coeso quanto o círculo dourado no meu pulso Vejo o meu propósito Viverei para garantir que ela jamais passe pelo que eu passei Terei minha continuidade nela crescendo através de nossas raízes comuns criando um novo ramo um galho que se espalha na direção da esperança e da alegria Ainda assim tomamos precauções Nós a batizamos por segurança A mesma razão pela qual nossos amigos Marta e Bandi usam o sobrenome húngaro Vadasz que significa caçador em vez do sobrenome judeu Mas que tipo de controle nós realmente temos O bebê de Marta nasce morto Marianne nasceu com 45 quilos Ela ocupa todo o carrinho Devo amamentar pergunto à pediatra alemã Para o que você acha que servem os seus peitos responde ela Meu leite é abundante Tenho mais do que suficiente para alimentar Marianne e a bebê de minha amiga Ava Posso alimentar cada fome Eu represento a abundância Eu me inclino quando amamento a fim de que Marianne não precise se contorcer para alcançar o meu corpo sua fonte Dou a ela cada gota de leite Quando ela me esvazia eu me sinto mais plena Marianne é tão protegida abraçada cuidada e agasalhada que custo a acreditar quando ela adoece aos 14 meses em novembro de 1948 Sei identificar quando ela faz manha Ela está com fome eu penso Está cansada Mas quando dou uma checada à noite a febre está alta Ela está quente e os olhos vidrados Seu corpo reclama ela grita mas está doente demais para registrar minha presença ou não faço a menor diferença Ela não quer mamar Meus braços não a reconfortam A todo momento seu peito é sacudido por acessos de tosse forte Acordo a governanta Béla chama o médico o médico que fez o seu parto o parto de Marianne e anda de um lado para outro no quarto O médico é duro comigo Ela está com pneumonia Isso é vida ou morte diz ele Ele parece zangado como se a doença fosse culpa minha como se não quisesse me deixar esquecer que desde o início a vida de Marianne foi estruturada no risco na minha tola audácia Agora veja o que aconteceu Mas talvez o que soa como raiva seja só cansaço Ele vive para curar Com que frequência seus esforços são infrutíferos O que podemos fazer pergunta Béla Diganos o que fazer Já ouviu falar de penicilina Sim claro Consiga penicilina para seu bebê E rápido Béla olha para o médico confuso quando ele começa a abotoar seu casaco Você é o médico Onde está a penicilina pergunta ele Sr Eger não existe penicilina neste país Nada disso pode ser comprado legalmente Boa noite Boa sorte Eu pagarei o que for Sim diz o médico O senhor deve dar seu jeito Os comunistas sugiro quando o médico sai Eles libertaram a Eslováquia da ocupação nazista Os comunistas têm se aproximado de Béla cortejando sua riqueza e influência Eles lhe ofereceram o cargo de ministro da Agricultura com a condição de que se filie ao partido Béla faz que não com a cabeça É mais fácil conseguir no mercado negro diz ele Marianne recaiu num sono interrompido Preciso mantêla hidratada mas ela não aceita água ou leite Me dê dinheiro ordeno e me diga aonde ir Os operadores do mercado negro fazem seus negócios ao lado do comércio legal no centro da cidade Béla será reconhecido mas eu posso preservar meu anonimato Devo ir ao açougueiro e passar uma mensagem cifrada depois dizer outro código ao padeiro e então alguém me procurará O negociador do mercado negro me intercepta perto da florista Penicilina digo O suficiente para uma criança doente Ele ri com a impossibilidade de meu pedido Não existe penicilina aqui diz ele Terei que ir a Londres Posso viajar hoje e voltar amanhã Isso tem um preço A quantia que ele pede é duas vezes a quantidade de dinheiro que Béla embrulhou num jornal e colocou em minha bolsa Não hesito Informo o quanto pagarei a ele Digo o valor exato que carrego Isso precisa ser feito Se você não for procurarei outra pessoa Penso no guarda no dia em que deixamos Auschwitz nas estrelas que dei na piscada dele Tenho que me conectar com a parte desse homem que vai cooperar Vê esta pulseira Levanto a manga de meu vestido e mostro a pulseira de ouro que uso desde o dia em que Marianne nasceu Ele inclina a cabeça Talvez imaginando como ficará no pulso de sua esposa ou de sua namorada Talvez esteja calculando mentalmente o preço que vai conseguir pela pulseira Meu marido me deu isso quando nossa filha nasceu Agora estou dando a você a oportunidade de salvar a vida da nossa filha Vejo os olhos dele brilharem com algo maior do que a cobiça Me dê o dinheiro diz ele Fique com a pulseira O médico vem de novo na noite seguinte para ajudar a administrar a primeira dose de penicilina Ele aguarda até a febre de Marianne baixar e ela aceitar meu peito Eu sabia que você encontraria um jeito diz o médico Pela manhã Marianne já consegue sorrir Ela dorme enquanto mama Béla beija a testa dela beija o meu rosto Marianne está melhor mas outras ameaças surgem Béla recusa o cargo de ministro da Agricultura Os nazistas de ontem são os comunistas de hoje diz ele e seu Opel Adam conversível é jogado para fora da estrada certo dia Béla não se machuca mas o motorista sofre ferimentos leves Béla vai à casa do motorista levar alguns mantimentos e desejar uma pronta recuperação O motorista abre só uma fresta da porta A mulher o chama no outro cômodo Não o deixe entrar diz ela Béla escancara a porta e vê sobre a mesa deles uma das melhores toalhas de sua mãe Quando chega em casa Béla verifica o armário onde as melhores toalhas de mesa estão guardadas Muitos itens estão faltando Imagino que ele ficará zangado despedirá o motorista talvez outros empregados Ele dá de ombros Sempre use o que você tem de mais bonito me diz ele Nunca se sabe quando as coisas vão sumir Penso no apartamento de minha família coberto de estrume em nosso piano na cafeteria ali pertinho na maneira que os grandes momentos políticos como a mudança de comando do poder e a revisão de fronteiras também são sempre muito pessoais Košice vira Kassa e depois volta a ser Košice Não aguento mais digo a Béla Não consigo viver com um alvo nas costas Minha filha não vai perder os pais Não concorda ele Penso em tia Matilda Magda recebeu sua declaração de apoio financeiro e está esperando o visto Estou a ponto de sugerir a Béla que tentemos acompanhar Magda em sua viagem para os Estados Unidos Mas então lembro que minha irmã foi avisada que ela talvez leve anos para conseguir o visto pois mesmo com patrocínio a imigração é sujeita a restrição de cotas Não podemos confiar em um processo de muitos anos para nos proteger dos comunistas Precisamos de uma saída mais rápida No dia 31 de dezembro de 1948 Marta e Bandi vêm comemorar a passagem de ano em nossa casa Eles são sionistas fervorosos e brindam à saúde do novo Estado de Israel taça após taça Podíamos ir para lá diz Béla Podíamos começar um negócio Não é a primeira vez que me imagino na Palestina No ensino médio eu era sionista e Eric e eu nos imaginávamos vivendo juntos na Palestina depois da guerra No meio do preconceito e da incerteza não conseguimos impedir que nossos colegas cuspissem em nós nem que os nazistas se apossassem de nossas ruas mas podemos defender um lar futuro podemos construir um lugar seguro Não sei se devo acolher a sugestão de Béla de realizarmos um antigo sonho adiado ou se devo me preocupar por apostar numa ilusão numa expectativa que levará à decepção Israel é um Estado tão recente que ainda nem teve as primeiras eleições e já está em guerra com os vizinhos árabes Além do mais ainda não existe a Lei do Retorno legislação que vários anos depois concederá a qualquer judeu de qualquer país a possibilidade de emigrar e se estabelecer em Israel Teríamos de chegar lá ilegalmente confiando na Berihá a organização clandestina que ajudou os judeus a fugirem da Europa durante a guerra para arranjar nossa passagem em um navio Ainda clandestina a Berihá auxilia os refugiados os desabrigados os sem casa e os apátridas a encontrarem uma vida nova Mesmo que possamos garantir nossos lugares num barco nosso plano não é uma aposta certa Apenas um ano antes o navio Exodus levando 45 imigrantes judeus que buscavam asilo e reassentamento em Israel foi enviado de volta para a Europa Chega a véspera do anonovo Estamos esperançosos nos sentimos corajosos Nas últimas horas de 1948 nosso plano para o futuro toma forma Vamos usar a fortuna dos Eger e comprar o necessário para começar um negócio em Israel Nas semanas seguintes depois de muita pesquisa Béla decidirá que uma fábrica de macarrão é o investimento mais recomendado e lotaremos um contêiner com nossos pertences com o suficiente para nos sustentar ao longo dos primeiros anos em nosso novo lar Nós húngaros não encerramos uma noite de bebedeira sem tomar uma sopa de chucrute Mariska traz tigelas fumegantes de sopa Ano que vem em Jerusalém dizemos Nos meses seguintes Béla compra o contêiner que levará a fortuna dos Eger para a Itália e depois para Haifa de navio Ele compra os equipamentos básicos para uma fábrica de macarrão Cuido do acondicionamento da prataria da louça com as iniciais douradas Compro roupas para Marianne o suficiente para os próximos cinco anos e costuro joias nos bolsos e bainhas Mandamos os pertences na frente e pretendemos ir logo em seguida assim que a Berihá nos ajudar a achar um jeito No fim de um dia de inverno com Béla ausente em viagem a negócios uma carta registrada chega para ele de Praga Assino o recibo da carta que leio sem esperar que meu marido retorne Antes da guerra cidadãos tchecos que haviam emigrado para a América diz a carta podiam indicar qualquer parente que vivesse na Europa para se beneficiar da lei que concedia vistos de entrada no país a quem sofresse perseguição sem precisar se sujeitar às cotas que restringiam o número de refugiados nos Estados Unidos O tioavô de Béla Albert que se estabeleceu em Chicago no início dos anos 1900 indicou a família Eger Somos agora uma das duas famílias tchecas convidadas a se refugiar na América de acordo com o registro feito antes da guerra Béla deve se apresentar imediatamente no consulado americano em Praga com nossos documentos Nosso contêiner está a caminho de Israel Uma vida nova surge no horizonte Já organizamos tudo Já escolhemos Mas o meu coração acelera com essa notícia com essa inesperada oportunidade Podemos ir para a América como Magda mas sem precisar esperar Béla volta de viagem e eu imploro a ele para ir a Praga com nossos documentos Só para garantir insisto Só como precaução Mesmo relutante ele vai Coloco os papéis na primeira gaveta de meu guardaroupa junto com minhas roupas íntimas Só para garantir C A P Í T U L O 1 0 Fuga Em 19 de maio de 1949 chego em casa do parque com Marianne e Mariska está chorando Prenderam o Sr Eger choraminga ela Ele foi levado Durante meses sabíamos que nossos dias de liberdade estavam contados Além de tirarem o carro de Béla da estrada no ano anterior os comunistas haviam se apossado do negócio dele confiscado nosso carro grampeado nosso telefone Com nossa fortuna segura a caminho de Israel ficamos à espera dos arranjos de viagem da Berihá Ficamos porque não podíamos nos imaginar partindo Agora corro o risco de criar minha filha sem o pai Não vou aceitar isso Não vou Primeiro preciso afastar a preocupação e o medo que estão crescendo em mim Preciso excluir a possibilidade de Béla estar sendo torturado ou que já tenha sido morto Preciso agir como minha mãe na manhã em que fomos despejados de nosso apartamento e mandados para a fábrica de tijolos Preciso me tornar uma agente da criatividade e da esperança Preciso agir como uma pessoa que tem um plano Dou um banho em Marianne e almoço com ela Deixoa tirar uma soneca Estou ganhando tempo para pensar e garantindo que ela seja bem alimentada e tenha todo o conforto possível Quem sabe se vamos dormir hoje à noite ou onde Vivo um minuto de cada vez Não sei o que farei a seguir só que preciso encontrar uma maneira de tirar Béla da prisão e de manter nossa filha em segurança Reúno tudo o que pode ser útil sem levantar suspeita Enquanto Marianne dorme abro meu armário e pego o anel de diamantes que Béla encomendou para mim quando casamos É um anel lindo um diamante perfeito redondo numa base de ouro mas ele sempre me fez sentir constrangida então nunca o uso Hoje eu o coloco Guardo os documentos que Béla obteve no consulado americano em Praga por dentro do meu vestido na parte das costas presos ao meu corpo pelo cinto Não posso parecer uma pessoa que está fugindo Não posso usar nosso telefone grampeado para chamar alguém para me ajudar Mas não suporto deixar a casa sem avisar minhas irmãs Não espero que elas possam nos ajudar mas quero que saibam que estamos em perigo que há uma chance de que não nos vejamos novamente Ligo para Klara Ela atende e eu improviso Tento não chorar Tento não deixar minha voz tremer ou falhar Estou muito feliz que você esteja vindo nos visitar digo Não há nenhuma visita planejada Estou falando em código Espero que ela entenda Marianne tem perguntado pela tia Klarie Me confirme a hora de seu trem Ela começa a me corrigir ou a me questionar Depois de uma breve pausa Klara percebe que estou tentando lhe dizer alguma coisa Trem visita O que ela fará com essas pistas escassas Chegaremos esta noite diz ela Estarei na estação De alguma forma hoje à noite ela nos encontrará em um trem Isto é o que nós acabamos de combinar Ou nossa conversa foi codificada demais até mesmo para nós entendermos Coloco nossos passaportes em minha bolsa e espero Marianne acordar Ela tem sido treinada para ir ao banheiro desde os nove meses mas quando a visto após a soneca ela permite que eu lhe coloque uma fralda onde eu escondo minha pulseira Não levo nada além disso Não posso parecer uma pessoa que está fugindo Tudo o que eu falar no resto do dia não importa o tempo que levar para ficarmos em segurança será dito nessa linguagem que acho ameaçadora aquela maneira de ser que não é autoritária ou dominadora nem covarde ou fraca Ser passiva é deixar que os outros decidam por você Ser agressiva é decidir pelos outros Ser assertiva é decidir por si mesma E confiar que há o suficiente que você é o suficiente Ah mas estou tremendo Saio de casa com Marianne em meus braços Se eu agir corretamente não voltarei à mansão dos Eger não hoje talvez nunca Esta noite estaremos a caminho de nossa nova casa Mantenho minha voz baixa Converso sem parar com Marianne Nos doze meses desde o nascimento dela além da amamentação esse foi o meu sucesso como mãe falo a respeito de tudo com minha filha Narro o que estamos fazendo ao longo do dia Falo os nomes das ruas e das árvores Palavras são tesouros que ofereço a ela seguidamente Ela é capaz de falar em três idiomas húngaro alemão e eslovaco Kvetina diz ela apontando para uma flor falando a palavra em eslovaco Com Marianne reaprendo como é me sentir em segurança e ter curiosidade E em troca é isso que posso oferecer a ela Não posso evitar o perigo mas posso ajudála a saber onde está vivendo e entender sua própria importância Mantenho o monólogo para que não haja espaço para a voz do medo Sim a flor olha o carvalho todo desfolhado e lá está o caminhão de leite Agora nós vamos ver o homem na delegacia um prédio grande muito grande como a nossa casa mas com longos corredores Falo como se esse fosse um passeio normal como se eu pudesse ser para ela a mãe que preciso ser para mim mesma A delegacia é intimidadora Quando guardas armados me conduzem para dentro do prédio quase dou meiavolta e corro Homens em uniformes Homens com armas Não suporto essa demonstração de autoridade Isso me deixa desnorteada e deslocada Sintome perdida diante da ameaça deles Porém cada minuto que espero aumenta o perigo para Béla Ele já demonstrou que não se conforma em obedecer às regras E os comunistas já mostraram que não toleram dissidentes O que serão capazes de fazer para lhe dar uma lição para extrair aquela informação imaginada para dobrálo à vontade deles E quanto a mim Como serei punida quando revelar meu propósito aqui Invoco a confiança que demonstrei no dia em que comprei a penicilina do negociante do mercado negro Naquela ocasião o maior risco era o negociante dizer não Eu arriscaria mais ao não pedir o que era necessário para salvar a vida de Marianne Hoje manter uma postura assertiva pode levar à retaliação à prisão e à tortura Ainda assim não tentar também é arriscado O guarda está sentado em um banco atrás de um balcão alto É um homem grande Temo que Marianne diga que ele é gordo em alto e bom som e destrua nossas chances Olho nos olhos dele Sorrio Vou tratálo não pelo que ele é mas pelo que eu confio que seja Vou conversar com ele como se já tivesse o que desejo Obrigada senhor falo em eslovaco muito obrigada por devolver o pai de minha filha A testa dele se franze demonstrando confusão Mantenho os olhos nele Tiro meu anel de diamante Ofereçoo a ele Um reencontro entre um pai e uma filha é uma coisa linda continuo falando e girando a pedra de modo que ela brilhe como uma estrela na luz mortiça Ele olha o diamante e depois me encara por um momento interminável Ele vai ligar para seu superior Vai tirar Marianne dos meus braços e me prender também Ou aproveitará algo bom para ele mesmo e me ajudará Sinto um aperto no peito e meus braços doem enquanto ele avalia as possibilidades Por fim ele toca a campainha e coloca o anel no bolso Nome pergunta ele Eger Venha Ele me leva por uma porta e descemos algumas escadas Estamos indo buscar o papai digo a Marianne como se estivéssemos indo encontrálo no trem O lugar é sombrio e triste E existe uma inversão aqui Quantos dos que estão aprisionados são inocentes vítimas de um abuso de poder Não convivo com prisioneiros desde que eu estava entre eles Sintome quase envergonhada por estar desse lado das grades Estou aterrorizada pela possibilidade de que em um momento de horror arbitrário sejamos obrigados a trocar de lugar Béla está numa cela sozinho Ele veste as próprias roupas nada de uniforme e pula da cama quando nos vê esticando o braço entre as grades para segurar as mãos de Marianne Marchuka diz ele Está vendo minha caminha engraçada Ele acha que estamos aqui para uma visita Um de seus olhos está roxo Há sangue em seus lábios Percebo que ele apresenta duas facetas a inocente e feliz para Marianne e a inquisitiva para mim Por que eu trouxe uma criança a uma prisão Por que oferecer a Marianne uma imagem dele que ela nunca esquecerá mesmo que não entenda o que é Tento não ficar na defensiva Tento fazer com que meus olhos mostrem que ele pode confiar em mim Tento inundálo de amor a única coisa mais forte do que o medo Nunca o amei mais do que nesse momento quando ele sabe instintivamente inventar uma brincadeira para Marianne e assim transformar esse lugar assustador e desolador em algo inofensivo O guarda abre a cela Cinco minutos ele grita alto e então apalpa o bolso onde guardou o anel de diamante E recua para o fundo do corredor dando as costas para nós Puxo Béla para fora da cela e não respiro até estarmos novamente na rua Béla Marianne e eu Ajudo Béla a limpar o sangue dos lábios com seu lenço sujo Vamos na direção da estação de trem Não precisamos discutir sobre o que fazer É como se tivéssemos planejado tudo sua prisão a fuga repentina Combinamos tudo à medida que caminhamos em meio à sensação vertiginosa de andar rapidamente pela neve fofa pisando em pegadas deixadas por outras pessoas surpresos que elas estejam prontas para acomodar nossos pés e nossa velocidade É como se já tivéssemos feito essa jornada em outra vida e agora a repetimos de memória Fico feliz por Béla carregar Marianne Meus braços estão quase dormentes O importante é sair do país Escapar dos comunistas Chegar o mais próximo de onde os Aliados têm postos Na estação de trem deixo Béla e Marianne num banco mais isolado e vou sozinha comprar três bilhetes para Viena e alguns sanduíches Quem sabe quando comeremos novamente Ainda faltam 45 minutos para o próximo trem Quarenta e cinco minutos a mais para a cela vazia de Béla ser descoberta É claro que eles vão enviar guardas para a estação de trem É para a estação de trem que você vai quando quer localizar um fugitivo que é o que Béla é agora E eu sou sua cúmplice Para evitar a tremedeira me concentro em contar quantas vezes puxo o ar a fim de respirar Quando volto Béla está contando a Marianne uma história divertida sobre um pombo que pensa que é uma borboleta Tento não olhar para o relógio Sento no banco Marianne está no colo de Béla eu me encosto neles na tentativa de manter o rosto de Béla escondido Os minutos passam lentamente Desembrulho um sanduíche para Marianne Tento comer um pedaço Então um aviso faz os meus dentes baterem tão forte que não consigo comer Béla Eger por favor se apresente no balcão de informações o locutor fala monotonamente A voz se sobrepõe aos sons das transações nas bilheterias às reprimendas do pais aos filhos às separações e despedidas Não olhe sussurro Faça qualquer coisa mas não levante os olhos Béla faz cócegas em Marianne para que ela ria Estou preocupada que eles estejam fazendo muito barulho Béla Eger dirijase imediatamente ao balcão de informações chama o locutor Podemos sentir a urgência aumentando Enfim o trem rumo a oeste chega à estação Entre no trem digo Escondase no banheiro caso eles façam uma busca Tento não olhar para os policiais ao redor quando nos apressamos para embarcar Béla corre com Marianne nos ombros Ela grita encantada Não temos bagagem o que fazia sentido ao andar pelas ruas até aqui No entanto agora estou preocupada que a ausência de bagagem levante suspeitas Serão quase sete horas até Viena Se conseguirmos sair de Prešov ainda há o risco de a polícia embarcar em qualquer parada para fazer uma busca no trem Não há tempo para obter identidades falsas Somos quem somos Encontramos uma cabine vazia então trato de manter Marianne ocupada na janela contando os sapatos na plataforma Depois de tirar Béla da cadeia quase não posso tolerar a ideia de que ele saia do meu lado Não suporto o perigo contínuo e crescente Béla me beija beija Marianne e vai se esconder no banheiro Espero o trem começar a se movimentar Se conseguirmos ao menos sair da estação estaremos um pouco mais perto da liberdade um segundo mais perto do retorno de Béla O trem não se mexe Mama Mama eu rezo Ajudenos Mama Ajudenos Papa A porta da cabine se abre e um policial nos olha rapidamente antes de fechar a porta Escuto o som das botas dele conforme ele avança pelo corredor ouço os ruídos de outras portas abrindo e fechando o policial gritando o nome de Béla Converso com Marianne canto e a mantenho olhando pela janela Depois fico com medo de ver Béla ser retirado do trem algemado Finalmente o condutor levanta o banquinho da plataforma e embarca no trem As portas do vagão se fecham O trem começa a se mover Onde está Béla Ainda está no trem Conseguiu escapar à busca ou está a caminho da cadeia para uma surra certa ou coisa pior E se cada volta das rodas nos afasta e nos distancia da vida que podemos ter juntos Quando chegamos a Košice Marianne está dormindo no meu colo Ainda não há sinal de Béla Procuro Klara na plataforma Será que ela veio nos encontrar Csicsi virá Será que ela entendeu o perigo que estamos correndo Que preparações ela fez desde que nos falamos Um pouco antes de o trem deixar a estação de Košice a porta da cabine se abre e Béla entra eufórico por causa da adrenalina Tenho uma surpresa ele fala antes de eu conseguir acalmálo Marianne abre os olhos desorientada irritada Eu a nino e me aproximo de meu marido Béla está confiante Você não quer ver minha surpresa ele pergunta e abre a porta novamente Lá estão minha irmã Klara e Csicsi uma mala e o violino dela Algum lugar livre aqui pergunta Csicsi Pequenina diz Klara ao me puxar para junto de seu peito Béla quer contar como escapou da busca policial em Prešov e Csicsi quer contar como eles se encontraram aqui em Košice mas sou supersticiosa Parece que estamos contando com o ovo dentro da galinha Nas lendas nada de bom vem quando se conta vantagem Você deve deixar os deuses manterem a imagem de seu poder Ainda nem falei com Béla sobre o anel sobre como o tirei da prisão Ele não perguntou O trem está novamente em movimento Marianne adormece outra vez com a cabeça no colo do pai Csicsi e Klara falam aos sussurros sobre seus planos Viena é o lugar perfeito para aguardar os vistos australianos o momento é perfeito para deixar a Europa e encontrar com Imre em Sydney Ainda não consigo me imaginar em Viena Prendo a respiração a cada estação Spišska Nová Ves PopradTatry Liptovský Mikuláš Žilina Mais três paradas antes de Viena Trenčín não resulta em nenhuma catástrofe Nenhuma crise em Trnava Estamos quase lá Em Bratislava a fronteira o lugar de nossa lua de mel o trem se demora na estação Marianne acorda sentindo a quietude Dorme bebê dorme diz Béla Silêncio digo Silêncio Na plataforma no escuro vemos uma dúzia de soldados eslovacos se dirigindo para o trem Eles se espalham abordando os vagões em pares Logo estarão batendo em nossa porta Vão pedir nossa identificação Mesmo que não reconheçam o rosto de Béla verão seu nome no passaporte É tarde demais para se esconder Já volto diz Csicsi Ele sai para o corredor escutamos a voz dele a voz do condutor e o vemos descendo na plataforma bem quando os soldados chegam à nossa porta Nunca saberei o que Csicsi disse a eles Nunca saberei se dinheiro ou joias trocaram de mãos Tudo que sei é que depois de momentos excruciantes os soldados inclinaram os quepes para Csicsi deram meiavolta e retornaram à estação Como eu aguentava enfrentar a fila de seleção às vezes todo dia às vezes mais de uma vez ao dia Pelo menos numa fila de seleção o veredito vem rápido Csicsi volta para a cabine Meu coração parou de bater enlouquecidamente mas não consigo perguntar como ele convenceu os soldados a darem meiavolta Nossa segurança parece frágil demais para confiar Se falarmos abertamente sobre o alívio nos arriscamos a destruílo Permanecemos calados enquanto o trem segue para Viena Em Viena somos pequenas gotas em um fluxo de 250 mil pessoas que buscam refúgio e passagem para a Palestina ou para a América do Norte desde o fim da guerra Vamos nos abrigar no Hospital Rothschild localizado na parte da cidade ocupada pelos americanos O hospital é usado como centro para os refugiados do Leste Europeu Nós cinco ficamos no mesmo quarto com outras três famílias Embora já seja tarde Béla sai do quarto antes mesmo que eu acomode Marianne na cama Ele quer entrar em contato com Bandi e Marta os amigos com quem estávamos planejando ir para Israel para contar a eles onde estamos Afago as costas de Marianne enquanto ela dorme escutando a conversa sussurrada de Klara com uma mulher com quem dividimos o quarto Somos milhares aqui no Hospital Rothschild todos aguardando ajuda da Berihá Quando nos sentamos à mesa para comer a sopa de chucrute com Bandi e Marta na véspera do anonovo concebendo o plano para recomeçar a vida em Israel estávamos construindo algo não fugindo Mas agora num quarto apinhado de outros refugiados entendo o significado da Berihá Berihá é fuga em hebraico Estamos fugindo Nosso plano é viável A mulher em nosso quarto no Rothschild nos conta sobre os amigos que já emigraram para Israel Não é um lugar fácil de viver eles dizem Depois de um ano a guerra árabeisraelense está finalmente acabando mas o país ainda é uma zona de guerra As pessoas vivem em barracas e fazem o que é preciso numa época de profunda agitação política e hostilidades permanentes entre árabes e judeus Essa não é a vida para a qual nos preparamos quando empacotamos nossas coisas num contêiner De que servirá a prataria e a louça numa barraca cercada por conflitos violentos E as joias que costurei nas roupas de Marianne Elas só valem o que os outros pagam por elas Quem quer comer em pratos dourados que trazem nosso sobrenome Não é a ideia de trabalho duro ou de pobreza que faz aflorar essa resistência no meu estômago É a realidade de mais um tempo de guerra Por que recomeçar se nada se produz além do mesmo sofrimento No escuro esperando Béla voltar abro os documentos do consulado americano os papéis que insisti tanto para Béla recuperar em Praga e que cruzaram a fronteira conosco presos às minhas costas Duas famílias tchecas se qualificaram para emigrar para os Estados Unidos Só duas A outra família Béla soube quando foi à Praga já deixou a Europa e escolheu emigrar para Israel É a nossa vez se decidirmos ir Viro os papéis na mão olho as palavras borradas na penumbra e espero que elas se misturem em minhas mãos para se reorganizar América Dicuka posso ouvir minha mãe dizer É muito difícil entrar nos Estados Unidos As cotas são restritas Mas se a carta não for uma fraude uma farsa temos uma maneira de entrar Porém nossa fortuna está em Israel A carta deve ser um convite falso eu me convenço Ninguém o quer se você está sem um tostão Béla volta empolgado acordando nossos companheiros de quarto Ele conseguiu contatar Bandi no meio da noite Nossos amigos vêm amanhã à noite para Viena Vamos encontrálos na estação de trem na manhã seguinte e juntos viajaremos até a Itália onde Bandi com a ajuda da Berihá garantiu nossa passagem para Haifa de navio Vamos para Israel com Bandi e Marta como havíamos planejado desde a véspera do anonovo Vamos montar nossa fábrica de macarrão Temos sorte por deixar Viena logo que chegamos Não ficaremos anos aguardando como Klara e Csicsi talvez fiquem antes de irem para a Austrália No entanto eu não me sinto alegre com a perspectiva de deixar Viena em 36 horas de fugir do caos do pósguerra em Prešov apenas para levar minha filha de volta a uma zona de conflito Sento na beira da cama com os documentos do consulado americano no colo Percorro as letras com meus dedos Béla me observa Está um pouco tarde diz ele É seu único comentário Você não acha que devemos discutir isto O que há para discutir Nossa fortuna nosso futuro está em Israel Ele está certo Meio certo Nossa fortuna está em Israel provavelmente assando num contêiner no deserto Nosso futuro não Ele ainda não existe Nosso futuro é a soma de uma equação que é parte intenção e parte circunstância E nossas intenções podem mudar ou se dividir Quando finalmente me deito Klara sussurra para mim por cima do corpo adormecido de Marianne Pequenina escute o que vou dizer Você precisa amar o que está fazendo De outra forma não deve fazer Não vale a pena O que ela está me dizendo para fazer Discutir com Béla sobre algo que já decidimos Deixálo Ela é justamente a pessoa que eu esperava que defendesse as escolhas que fiz Sei que ela não quer ir para a Austrália mas vai para ficar ao lado do marido Ela melhor do que ninguém deve entender por que estou indo para Israel embora não queira Pela primeira vez em nossas vidas Klara está me dizendo para não fazer o que ela faz para não seguir o exemplo dela Pela manhã Béla sai rapidamente a fim de arranjar as coisas de que precisamos para a viagem para Israel Malas casacos roupas e outros itens necessários fornecidos aos refugiados pelo comitê judeu de distribuição conjunta a empresa de caridade americana que dá apoio ao Hospital Rothschild Vou à cidade com Marianne os documentos de Praga guardados na minha bolsa do jeito que Magda costumava esconder os doces parte tentação parte ajuda O que significa ser aquela família tcheca autorizada a emigrar Quem irá se recusarmos Ninguém O plano de Israel é um bom plano É o melhor que podemos fazer com o que temos Mas agora há uma oportunidade que não existia quando firmamos esse compromisso esse plano Agora temos uma nova possibilidade que não envolve morar em barracas em uma zona de guerra Não consigo me controlar Sem a permissão de Béla sem seu conhecimento peço indicações para chegar ao consulado dos Estados Unidos e entro lá com Marianne nos braços Vou pelo menos verificar se os papéis são um erro ou uma farsa Parabéns diz o funcionário quando mostro a ele os documentos Você pode ir assim que seus vistos forem processados Ele me entrega os formulários para nossos pedidos de visto Quanto vai custar Nada a senhora é uma refugiada A viagem é uma cortesia de seu novo país Fico tonta Uma tontura boa aquela que senti na noite anterior quando o trem deixou Bratislava com a minha família ainda completa Pego os formulários e levo para nosso quarto no Hospital Rothschild Mostro a Klara e Csicsi analiso as perguntas procurando pela armadilha Não demora e encontro a primeira Você já teve tuberculose TB Béla sim Ele não tem sintomas desde 1945 mas não importa quão saudável ele é agora É preciso apresentar radiografias junto ao formulário Existem cicatrizes nos pulmões dele O dano é visível E tuberculose não tem cura Como os traumas ela pode reaparecer a qualquer momento Israel então Amanhã Klara me vê colocando os formulários embaixo do colchão Lembra que aos 10 anos fui aceita na Juilliard e Mama não me deixou ir Vá para a América Dicu Mama gostaria que você fosse Mas e a tuberculose pergunto Estou tentando ser leal não à lei mas aos desejos de Béla às escolhas de meu marido Quando você não pode entrar pela porta entra pela janela Klara me relembra A noite chega Nossa segunda noite em Viena nossa última noite em Viena Espero até Marianne adormecer até Klara e Csicsi e as outras famílias irem para a cama Sento com Béla em cadeiras perto da porta Nossos joelhos se encostam Tento memorizar seu rosto para que eu possa descrevêlos para Marianne A testa grande os arcos perfeitos de suas sobrancelhas a suavidade de sua boca Querido Béla começo o que estou prestes a dizer não vai ser fácil de ouvir Não há maneira de evitar a dureza que será e não há maneira de me dissuadir do que falarei Sua linda testa fica vincada O que está acontecendo Se você for encontrar Bandi e Marta para ir para Israel amanhã como planejamos não vou culpálo Não vou tentar convencêlo do contrário mas eu fiz a minha escolha Não vou com você Estou levando Marchuka para a América PARTE III LIBERDADE C A P Í T U L O 1 1 O dia da imigração O dia da imigração 28 de outubro de 1949 foi o dia mais otimista e promissor da minha vida Depois de morar em um quarto lotado do Hospital Rothschild durante um mês e passar outros cinco em um pequeno apartamento em Viena aguardando os vistos estamos no limiar de nosso novo lar Um céu azul ensolarado iluminou o Atlântico enquanto estávamos no convés do navio de transporte de tropas norteamericano General R L Howze A Estátua da Liberdade apareceu minúscula à distância como uma bonequinha em uma caixa de música Então a cidade de Nova York ficou visível a silhueta dos prédios surgindo nítida onde durante semanas havia apenas horizonte Segurei Marianne contra a grade do convés Estamos na América eu disse a ela A terra das pessoas livres Acreditei que estivéssemos finalmente livres Assumimos o risco Agora segurança e oportunidades eram nossas recompensas Parecia uma equação justa e simples Milhares de milhas oceânicas nos separaram do arame farpado das buscas policiais dos campos para os condenados dos campos para os refugiados Ainda não sei que os pesadelos desconhecem a geografia que a culpa e a ansiedade vagueiam sem fronteiras Por vinte minutos no convés superior de um navio de passageiros em pé sob o sol de outubro com minha filha nos braços Nova York à vista acreditei que o passado não podia me alcançar aqui Magda já tinha vindo Em julho ela finalmente recebera o visto e havia viajado de navio para Nova York onde agora vivia com tia Matilda e seu marido no Bronx Ela trabalhava em uma fábrica de brinquedos encaixando cabeças em pequenas girafas É preciso uma Elefánt para fazer uma girafa ela brincou numa carta Em mais uma hora ou duas eu abraçaria minha irmã minha corajosa irmã suas piadas prontas para fazer transcender o sofrimento Enquanto Marianne e eu contávamos os quepes brancos entre o navio e a terra firme e eu agradecia as bênçãos recebidas Béla saiu da cabine onde estava fechando a mala Meu coração se encheu novamente de ternura por meu marido Nas semanas de viagem na cama minúscula do quarto que tremeu e sacudiu na água negra no ar negro eu me senti mais apaixonada por ele do que em nossos três anos juntos mais do que no trem em nossa lua de mel quando concebemos Marianne Em Viena em maio ele não foi capaz de decidir de escolher até o último minuto De mala na mão Béla ficou atrás de uma pilastra na estação de trem onde encontraria Bandi e Marta Ele viu nossos amigos chegarem e nos procurarem na plataforma E continuou escondido Ele viu o trem chegar escutou o aviso para os passageiros embarcarem Viu as pessoas entrando no trem Viu Bandi e Marta na porta do vagão esperando por ele Então escutou o funcionário no altofalante chamando seu nome Ele queria se juntar aos amigos queria embarcar no trem e depois no navio para resgatar sua fortuna Mas ficou ali paralisado atrás da pilastra Os passageiros embarcaram Bandi e Marta também Quando as portas dos vagões fecharam Béla finalmente se forçou a andar Contra sua vontade contra todas as apostas que tinha feito para o que imaginou que seria um futuro seguro ele assumiu o maior risco de sua vida Foi embora Agora a poucos minutos de nossa nova vida nos Estados Unidos nada parecia mais forte ou mais profundo do que termos feito a mesma escolha de trocar a segurança por uma oportunidade para nossa filha e de recomeçarmos juntos do zero Seu compromisso com nossa filha e com essa nova aventura comigo me tocou profundamente Ainda assim Eu estava preparada para abandonar nosso casamento e levar Marianne para os Estados Unidos Embora fosse doloroso estava disposta a sacrificar nossa família nossa parceria as coisas que Béla não conseguia aceitar perder E assim começamos a vida nova em um patamar desigual Embora a devoção de Béla por nós duas o tivesse levado a abrir mão de tudo ele ainda estava atordoado com o que havia perdido O que para mim era alívio e alegria para ele era sofrimento Por mais feliz que eu estivesse com a vida nova dava para sentir que a perda de Béla colocava uma pressão perigosa em todas as incógnitas à frente Portanto havia sacrifício na essência de nossa escolha E havia também uma mentira o relatório médico as radiografias que ele colocou dentro da pasta com nossos pedidos de visto Não podíamos permitir que o fantasma da antiga doença de Béla a tuberculose impedisse nosso futuro então Csicsi se passou por Béla e foi comigo ao exame médico Carregamos as imagens dos pulmões de Csicsi translúcidos como água mineral Quando os funcionários da naturalização liberaram Béla para a imigração foi o corpo de Csicsi e seu histórico médico que eles legitimaram como saudável Eu queria respirar livremente Valorizar nossa segurança e nossa sorte como milagres não ter de defendêlas com rigor e cautela Queria ensinar minha filha a se sentir confiante onde ela pisasse Lá estava ela o cabelo emoldurando seu rosto as bochechas vermelhas por causa do vento Liberdade ela gritou satisfeita com a nova palavra Num repente peguei a chupeta que estava pendurada num cordão em volta do pescoço dela e joguei no mar Se eu tivesse me virado teria visto Béla pedindo prudência Mas não me virei Somos americanos agora Crianças americanas não usam chupetas eu disse de maneira impetuosa ao jogar no mar o símbolo de segurança de minha filha como se fosse confete Eu queria que Marianne fosse o que eu queria ser alguém que faz parte que não é perseguida pela ideia de ser diferente de ser defeituosa de brincar eternamente de piqueesconde numa corrida incessante para fugir das garras do passado Ela não reclamou Estava empolgada pela novidade de nossa aventura distraída por meu ato estranho e aceitando a minha lógica Nos Estados Unidos faremos como os americanos como se eu soubesse o que os americanos faziam Eu queria confiar na minha escolha em nossa nova vida então reneguei qualquer traço de tristeza ou de medo Quando desci pela rampa de madeira para nosso novo lar já estava usando uma máscara Eu havia fugido Mas ainda não estava livre C A P Í T U L O 1 2 Greener Novembro de 1949 Pego um ônibus em Baltimore Amanhecer cinzento Ruas molhadas Estou indo para o trabalho para a confecção onde passo o dia inteiro cortando fios soltos das bainhas de shorts de meninos ganhando 7 centavos de dólar por dúzia A confecção me faz lembrar da fábrica de linhas na Alemanha em que eu e Magda trabalhamos depois de sermos levadas de Auschwitz Ar poeirento e seco concreto frio máquinas tão barulhentas que a capataz precisa gritar para ser ouvida Reduzam as idas ao banheiro grita ela Mas eu escuto a capataz do passado aquela que nos disse que trabalharíamos até estarmos completamente exauridas e então seríamos mortas Trabalho sem parar Para maximizar minha produtividade e meu pequeno salário Mas também porque trabalhar sem pausas é uma antiga necessidade um hábito impossível de substituir Quando consigo me cercar de barulho e urgência o tempo todo não fico sozinha com meus pensamentos nem por um momento Trabalho tanto que minhas mãos tremem sem parar no escuro quando chego em casa Como tia Matilda e o marido não tinham espaço nem recursos para acolher minha família afinal Magda já era uma boca extra para alimentar começamos nossa nova vida não no Bronx como eu havia imaginado mas em Baltimore Fomos morar com o irmão de Béla George sua esposa e as duas filhinhas num apartamento abarrotado em um prédio sem elevador George era um advogado famoso na Tchecoslováquia mas em Chicago onde morou inicialmente ao imigrar para os Estados Unidos nos anos 1930 ele ganhava a vida como vendedor de vassouras e produtos de limpeza de porta em porta Agora em Baltimore ele vende seguros Tudo na vida de George é difícil baseado no medo desencorajador Ele me segue pelos cantos do apartamento observando cada movimento que faço e instando para que eu feche a lata de café com mais força Ele está zangado com o passado com o fato de ter sido atacado em Bratislava e roubado em Chicago nos primeiros dias de imigrante Ele está zangado com o presente Não nos perdoa por termos chegado sem um tostão por termos desistido da fortuna dos Eger Eu me sinto tão constrangida na presença dele que não consigo descer as escadas sem tropeçar Um dia quando entro no ônibus para ir trabalhar minha cabeça está tão entupida do meu próprio descontentamento já se preparando para o ritmo barulhento da fábrica e ao mesmo tempo refletindo sobre o comportamento desagradável de George além de obcecada com as preocupações sobre dinheiro que demoro a perceber que o ônibus não deu a partida O ônibus permanece parado e os outros passageiros me olham de maneira desaprovadora balançando as cabeças Começo a suar frio É a sensação que tive quando acordei com os nyilas armados batendo em nossa porta ao amanhecer O medo que senti quando o soldado alemão apontou uma arma para o meu peito depois que peguei as cenouras A sensação de que errei de que serei punida e que minha vida está em perigo Estou tão dominada pela sensação de perigo e de ameaça que não consigo entender o que aconteceu subi no ônibus do jeito europeu eu me sentei e esperei o trocador me abordar para vender um bilhete Esqueci de colocar meu cartão na caixa que recolhe as passagens Agora o motorista do ônibus está gritando comigo Pague ou desça Pague ou desça Mesmo que eu falasse inglês não seria capaz de entendêlo Estou aterrorizada por imagens de arame farpado e armas apontadas pela fumaça espessa que sai das chaminés e escurece minha realidade atual e pelas paredes de prisões do passado se fechando sobre mim É o contrário do que aconteceu quando dancei para Josef Mengele na primeira noite em Auschwitz Na época eu me transportei do barracão diretamente para o palco da Ópera de Budapeste Na época minha visão interior me salvou Agora minha vida interior me leva a interpretar um simples erro um malentendido como uma catástrofe Nada no presente está realmente errado não há nada que não possa ser corrigido facilmente O homem está zangado e frustrado porque ele me entendeu mal porque não consigo compreendêlo Há gritos e conflitos Porém minha vida não está em perigo Ainda assim é dessa forma que entendo a situação atual Perigo perigo morte Pague ou desça Pague ou desça grita o motorista Ele se levanta de seu lugar E vem na minha direção Caio no chão cubro o meu rosto Ele está em cima de mim agora segurando meu braço tentando me levantar Eu me encolho no chão do ônibus chorando tremendo Uma passageira se apieda de mim É imigrante como eu A passageira pergunta primeiro em ídiche depois em alemão se eu tenho dinheiro conta as moedas em minha mão suada me ajuda a voltar para o meu lugar e se senta ao meu lado até que eu respire normalmente O ônibus parte Greener idiota alguém fala dissimuladamente quando ela se levanta e volta para o lugar dela Greener é como são chamados os imigrantes que receberam o green card que garante direito a residência e trabalho nos Estados Unidos Quando conto a Magda sobre o incidente em uma carta transformoo em uma piada em um esquete de comédia sobre um imigrante Mas algo mudou em mim naquele dia Serão necessários mais vinte anos para eu dominar a linguagem e o treinamento psicológico e entender que estava tendo um flashback As sensações físicas inquietantes coração disparado palmas das mãos suadas visão reduzida experimentadas naquele dia e que continuarei a ter muitas vezes na vida mesmo agora aos 80 e tantos anos são respostas automáticas ao trauma É por isso que eu me oponho à definição patológica do estresse póstraumático chamandoo de uma doença Não é uma reação doentia em relação a um trauma mas uma reação comum e natural No entanto naquela manhã de novembro em Baltimore eu não sabia o que estava acontecendo comigo Achei que meu colapso nervoso significava que eu estava profundamente perturbada Gostaria de saber à época que eu não era uma pessoa debilitada que estava sofrendo as consequências de uma vida interrompida Sobrevivi a Auschwitz a Mauthausen e à Marcha da Morte porque me aproximei de meu mundo interior Encontrei esperança e fé na minha vida interior mesmo rodeada de inanição tortura e morte Após o primeiro flashback passei a acreditar que demônios viviam no meu mundo interior Que havia algo maligno dentro de mim Meu mundo interior já não me confortava Na verdade ele se tornou uma fonte de sofrimento memórias ininterruptas perdas e medo Às vezes na fila da peixaria quando o vendedor chamava o meu nome eu enxergava o rosto de Mengele sobre o dele Algumas manhãs quando entrava na fábrica eu via minha mãe ao meu lado tão nitidamente quanto o dia e depois ela virava de costas e se afastava Tentei banir as memórias do passado Achei que era uma questão de sobrevivência Somente depois de muitos anos entendi que fugir não cura o sofrimento Fugir faz tudo piorar Nos Estados Unidos eu estava mais distante geograficamente do que jamais estive de minha antiga prisão Mas aqui fiquei mais presa psicologicamente do que estava antes Ao fugir do passado e do medo não encontrei a liberdade Criei uma cela com meu pavor e selei a fechadura com silêncio Marianne enquanto isso desabrochava Eu desejava que ela fosse normal normal normal E ela era Apesar do meu medo de que ela descobrisse que estávamos pobres que sua mãe tinha medo o tempo todo que a vida nos Estados Unidos não era o que eu imaginava Marianne era uma criança feliz Aprendeu inglês rapidamente na creche que frequentava sem pagar graças à simpatia que a diretora Sra Bower tinha por imigrantes Tornouse a miniassistente da Sra Bower e ajudava quando as outras crianças choravam ou faziam birra Ninguém pediu que assumisse esse papel mas ela tinha uma sensibilidade inata à dor dos outros e confiava em sua própria força Béla e eu a chamávamos de pequena embaixadora A Sra Bower enviava livros para me ajudar a aprender inglês e também incentivar o aprendizado de Marianne Tentei ler O galinho Chicken Little Não consegui entender os personagens Quem é o patinho sortudo Quem é o gansinho Goosey Loosey Marianne ri de mim Ela me ensina novamente Ela finge irritação Finjo que estou brincando que estou apenas fingindo não entender Mais do que a pobreza eu temia constranger minha filha Eu temia que ela tivesse vergonha de mim Nos fins de semana ela me acompanhava à lavanderia e me ajudava a programar as máquinas depois me levava ao mercado para comprar manteiga de amendoim e uma dezena de outros alimentos sobre os quais eu nunca tinha ouvido falar e cujos nomes eu não conseguia soletrar ou pronunciar Em 1950 o ano em que Marianne fez 3 anos ela insistiu que comêssemos peru no Dia de Ação de Graças como suas colegas Como dizer a ela que não podemos comprar um Paro no supermercado na véspera do Dia de Ação de Graças e tenho sorte Havia uma promoção de frango a 29 centavos de dólar por cada 450 gramas Escolho o menor Veja querida eu a chamo quando chego em casa Temos um peru um bebê peru Quero muito me encaixar por ela por nós três A alienação é a minha condição crônica mesmo entre nossos amigos imigrantes judeus No inverno em que Marianne completa 5 anos somos convidados para uma festa de Hanuká em que todas as crianças se revezam cantando canções típicas O anfitrião convida Marianne para cantar Estou muito orgulhosa de ver minha filha inteligente e precoce que já fala inglês como se fosse sua primeira língua feliz e com os olhos brilhando ao aceitar com segurança o convite para assumir seu lugar no centro da sala Depois das aulas do jardim de infância ela faz atividades em um programa coordenado por um judeu que se converteu ao Jews for Jesus uma organização judaica que prega a conversão ao cristianismo Marianne sorri para os convidados depois fecha os olhos e começa a cantar Jesus me ama isso eu sei pois a Bíblia assim me diz Os convidados olham para ela e para mim Minha filha desenvolveu a habilidade que mais quero que ela tenha a habilidade de se sentir à vontade em qualquer lugar Agora é exatamente sua falta de compreensão dos códigos que separam as pessoas que me faz querer me enfiar debaixo do assoalho e desaparecer Esse constrangimento essa sensação de exílio mesmo em minha própria comunidade não vem de fora Vem de dentro Foi a parte de mim que criou a própria prisão que achava que eu não merecia ter sobrevivido que eu nunca seria digna o suficiente para pertencer Marianne floresceu nos Estados Unidos mas Béla e eu nos esforçávamos muito Eu ainda sofria com meu próprio medo com as memórias aterrorizantes e o pânico que fervilhava logo abaixo da superfície Eu temia o ressentimento de Béla Ele não precisava se esforçar para aprender inglês como eu Quando garoto havia estudado em um colégio interno em Londres e falava um inglês tão fluente quanto tcheco eslovaco alemão e diversas outras línguas Porém sua gagueira ficou mais pronunciada nos Estados Unidos um sinal para mim de que ele estava atormentado pela escolha que eu havia lhe imposto Seu primeiro trabalho foi como carregador em um depósito Sabíamos que o esforço de carregar caixas pesadas era perigoso para alguém com tuberculose mas George e sua esposa Duci que era assistente social e nos ajudou a encontrar os empregos nos convenceram que tínhamos sorte por ter trabalho O salário era péssimo o trabalho exigente e humilhante mas era a realidade dos imigrantes Os imigrantes não trabalhavam como médicos advogados ou prefeitos independentemente de sua formação e experiência exceto minha notável irmã Klara que garantiu uma posição como violinista na Orquestra Sinfônica de Sydney logo que ela e Csicsi emigraram Os imigrantes dirigiam táxis trabalhavam por empreitada nas fábricas e abasteciam prateleira de mercados Eu internalizei o sentimento de desmerecimento Béla lutava contra essa sensação Ele se tornou malhumorado e explosivo Em nosso primeiro inverno em Baltimore Duci chegou em casa com um casaco de neve que comprou para Marianne O casaco tinha um zíper comprido Marianne quis experimentálo imediatamente Demorei séculos para colocar o casaco em cima das roupas de Marianne mas finalmente ficamos prontas para ir ao parque Descemos os cinco lances de escadas até a rua Quando chegamos na calçada Marianne disse que precisava fazer xixi Por que você não falou antes explode Béla Ele nunca havia gritado com Marianne Vamos sair desta casa sussurro naquela noite Como quiser princesa rosna ele Não o reconheço A raiva dele me assusta Não a raiva que eu mais temo é a minha própria Conseguimos guardar dinheiro suficiente e nos mudamos para um quartinho de serviço nos fundos de uma casa em Park Heights o maior bairro judeu de Baltimore Nossa senhoria é uma imigrante da Polônia mas está nos Estados Unidos há décadas desde bem antes da Guerra Ela nos chama de greeners e ri de nosso sotaque Ela mostra o banheiro na expectativa de que fiquemos encantados com a água encanada Penso em Mariska e no sininho que eu tocava quando queria mais pão É mais fácil fingir surpresa para atender as expectativas da nossa senhoria sobre quem somos do que explicar até para mim mesma o abismo entre o antes e o agora Béla Marianne e eu dividimos o quarto Apagamos a luz quando Marianne vai dormir e nos sentamos no escuro O silêncio entre nós dois não é do tipo íntimo ele é tenso e carregado uma corda começando a ceder com o peso de sua carga Nós nos esforçamos para ser uma família normal Em 1950 esbanjamos e vamos ao cinema ao lado da lavanderia na Avenida Park Heights Enquanto nossas roupas giram na máquina levamos Marianne para ver Os sapatinhos vermelhos um filme escrito estamos orgulhosos de saber por Emeric Pressburger um imigrante judeu húngaro Lembro muito do filme porque ele me emocionou de duas formas Sentada no escuro comendo pipoca com minha família senti um contentamento que havia se tornado raro para mim uma confiança de que tudo estava bem que podíamos ter uma vida feliz no pósguerra Mas o próprio filme os personagens a história me derrubaram pela força do reconhecimento Algo rompeu a minha máscara cautelosa e encarei diretamente o meu desejo O filme é sobre uma dançarina Vicky Page que atrai a atenção de Boris Lermontov o diretor artístico de uma famosa companhia de balé Ela faz bem o grand battement ela dança com paixão O lago dos cisnes e sente falta da atenção e consideração de Lermontov Não consigo tirar os olhos da tela Parece que estou assistindo à minha própria vida à vida que eu teria tido se não fosse Hitler se não tivesse havido uma guerra Por um momento acho que Eric está no assento ao lado esqueço que tenho uma filha Tenho apenas 23 anos mas a sensação é a de que a melhor parte da minha vida acabou Em determinado ponto no filme Lermontov pergunta a Vicky Por que você quer dançar Ela responde Por que você quer viver e Lermontov responde Não sei exatamente por quê mas eu preciso Vicky então diz Essa também é a minha resposta Antes de Auschwitz mesmo em Auschwitz eu teria dito o mesmo Havia uma luz interior permanente uma parte de mim que sempre festejou e dançou que nunca desistiu da vida Agora meu propósito básico é agir de tal forma que minha filha nunca conheça a minha dor É um filme triste O sonho de Vicky não se realiza como ela imaginou Quando ela dança o papel principal em um novo balé de Lermontov é perseguida por demônios Essa parte do filme é tão aterrorizante que eu mal posso assistir As sapatilhas de balé vermelhas de Vicky parecem assumir o controle elas a fazem dançar quase até a morte ela está dançando através de seus próprios pesadelos zumbis e cenários áridos um parceiro de dança feito de papel de jornal se desintegrando mas não consegue parar de dançar não consegue acordar Vicky tenta desistir de dançar Vicky esconde as sapatilhas vermelhas em uma gaveta Ela se apaixona por um compositor e se casa com ele No fim do filme é convidada para dançar mais uma vez no balé de Lermontov Seu marido lhe implora que não vá Lermontov a avisa Ninguém pode ter duas vidas Ela precisa escolher O que leva uma pessoa a fazer uma coisa e não outra eu me questiono Vicky calça as sapatilhas de balé vermelhas novamente Dessa vez elas a fazem dançar na beira de um edifício até morrer As outras dançarinas continuam o balé sem ela que vira um ponto de luz no espaço vazio onde estaria dançando Não é um filme sobre o trauma Na realidade ainda não entendo que estou experimentando um trauma Mas Os sapatinhos vermelhos me fornece um vocabulário de imagens me ensina algo sobre mim mesma e sobre a tensão entre minhas experiências internas e externas Há alguma coisa na maneira como Vicky coloca as sapatilhas vermelhas pela última vez e levanta voo que não parece uma escolha Parece uma atitude compulsiva Automática Do que ela tinha tanto medo O que a fez correr Seria algo com o qual ela não poderia viver ou algo sem o qual ela não poderia existir Você teria me trocado pela dança pergunta Béla no ônibus de volta para casa Imagino que ele está pensando da noite em Viena em que eu disse a ele que estava levando Marianne para os Estados Unidos com ou sem ele Ele já sabe que eu sou capaz de escolher alguém ou outra coisa Desarmo sua pergunta com uma evasiva Se você tivesse me visto dançar na época não pediria que eu escolhesse respondo Você nunca viu um grand battement como o meu Eu finjo eu finjo Em algum lugar no fundo do meu peito eu seguro um grito Não tive escolha O silêncio me deixa furiosa Hitler e Mengele escolheram por mim Não tive escolha Béla é o primeiro a entrar em colapso sob a pressão Acontece no trabalho Ele está levantando uma caixa e cai no chão sem conseguir respirar No hospital uma radiografia revela que a tuberculose voltou Ele parece mais desestruturado e pálido do que no dia em que o tirei da prisão o dia em que fugimos para Viena Os médicos o transferem para um hospital especializado em tuberculose Levo Marianne para visitálo todos os dias depois do trabalho mas tenho medo de que ela o veja cuspindo sangue que perceba a possibilidade de morte apesar de nossos esforços para esconder dela a gravidade da doença Ela tem 4 anos já sabe ler e traz livros ilustrados da Sra Bower para entreter o pai Ela também avisa às enfermeiras quando ele termina de comer ou precisa de mais água Sabe o que iria animar papai pergunta ela Uma irmãzinha Não nos permitimos tentar outro filho porque somos muito pobres É um alívio não ter a pressão da fome de outra pessoa pesando sobre a recuperação de Béla e sobre meu salário miserável Mas corta o meu coração ver a solidão de minha filha sua ânsia por uma companhia Isso me deixa com saudade de minhas próprias irmãs Magda conseguiu um emprego melhor em Nova York onde usa as habilidades de costura que aprendeu com nosso pai para fazer casacos para uma grife Ela não quer recomeçar em outra cidade mas eu imploro que venha para Baltimore Em Viena em 1949 por um breve período foi assim que imaginei minha vida criar Marianne com minha irmã em vez de com meu marido Era uma questão de escolha um sacrifício para evitar que minha filha vivesse em uma zona de guerra Agora se Béla morrer ou se ficar inválido será uma necessidade Moramos em um apartamento um pouco maior mas mesmo com os dois trabalhando lutamos para ter o que comer Não consigo imaginar como pagarei por tudo sozinha Magda concorda em pensar sobre o assunto Não se preocupe diz Béla tossindo no lenço Não vou deixar nossa menina crescer sem o pai Não vou Ele tosse e gagueja tanto que as palavras mal conseguem sair Béla de fato se recupera mas ainda está fraco Não tem condições de reassumir seu trabalho no depósito mas vai viver A equipe médica do hospital seduzida pelo bom humor e pelo charme de Béla promete ajudálo e encontrar um caminho profissional que nos tire da pobreza e lhe proporcione muitos anos de saúde Béla faz um teste vocacional que considera bobo até os resultados voltarem Ele tem aptidão para uma carreira como maestro ou contador o teste revela Nós podemos fazer uma vida nova no balé brinca ele Você como bailarina e eu como maestro da orquestra Você algum dia quis estudar música quando era jovem É perigoso brincar de e se com o passado Estudei música quando era jovem Como fui esquecer Ele estudou violino como minha irmã Ele escreveu sobre isso naquelas cartas quando me cortejava Ouvilo falar sobre isso agora é como ouvir que ele costumava usar um nome diferente Eu era muito bom Meus professores chegaram a dizer que eu poderia ir para o Conservatório e eu teria ido se não tivesse que tocar os negócios da família Meu rosto esquenta De repente estou zangada Não sei por quê Quero dizer algo para machucálo mas não sei se é a mim mesma que quero castigar Pense só digo se você tivesse continuado teria conhecido Klara primeiro em vez de mim Béla tenta compreender minha expressão Dá para vêlo decidindo se vai me provocar ou me tranquilizar Você realmente quer me convencer que eu não sou feliz por estar casado com você Foi um violino Não importa agora É então que entendo o que tem me chateado É a aparente facilidade com que meu marido deixou de lado um sonho antigo Se algum dia Béla se sentiu angustiado por ter desistido da música ele escondeu de mim O que havia de errado comigo para que eu ainda tivesse tanto desejo pelo que não foi Béla mostra ao antigo patrão no depósito os resultados do teste vocacional O chefe o apresenta a seu contador um homem generoso que concorda em colocá lo como assistente enquanto Béla frequenta um curso de contabilidade e se esforça para se diplomar Sintome inquieta Estive tão envolvida com preocupações financeiras e com a doença de Béla tão envolvida na rotina dura na fábrica e contando moedas para comprar mantimentos que as boas notícias me deixam sem rumo O alívio das preocupações abre um vazio inesperado que não sei como preencher Béla tem novas perspectivas um novo caminho mas eu não Troco de emprego várias vezes na tentativa de ganhar mais de me sentir melhor comigo mesma O dinheiro extra ajuda e os avanços levantam a moral por um tempo Mas a sensação não é duradoura Em uma empresa de seguros sou promovida de operadora de mimeógrafo e vou para o departamento de contabilidade Meu supervisor percebeu que eu trabalho duro e decidiu me ensinar Estou feliz na companhia das outras secretárias feliz de ser uma delas até que minha nova amiga me aconselha Nunca sente ao lado dos judeus no almoço eles fedem No fim das contas não faço parte Preciso esconder quem eu sou Na fábrica de malas onde vou trabalhar depois tenho um chefe judeu e acho que finalmente vou me encaixar Sintome confiante aceita Apesar de ser assistente administrativa certo dia que o telefone toca sem parar me ofereço para atender já que as secretárias estavam sobrecarregadas Meu chefe sai de seu escritório gritando Quem lhe deu autorização Você está querendo arruinar minha reputação Nenhum greener representará esta empresa Estou sendo claro O problema não é a bronca O problema é que acredito em sua avaliação sobre a minha falta de valor No verão de 1952 logo após a recuperação de Béla e alguns meses antes de Marianne fazer 5 anos Magda se muda para Baltimore Ela fica conosco por algumas semanas até encontrar um trabalho Preparamos uma cama para ela no espaço onde comemos perto da porta da frente O apartamento é abafado no verão mesmo à noite então Magda deixa a porta entreaberta quando vai dormir Cuidado avisa Béla Não sei em que tipo de palácio você morava no Bronx mas este bairro não é seguro Se você deixar a porta aberta alguém pode entrar Bem que eu queria ronrona Magda dando uma piscadela Minha irmã Seu sofrimento é visível apenas no humor que ela usa para transcendêlo Organizamos uma festinha de boasvindas para ela George e Duci vieram George reprova o pequeno gasto e alguns vizinhos do prédio incluindo nosso senhorio que traz seu amigo Nat Shillman um engenheiro naval aposentado Magda conta uma história engraçada sobre sua primeira semana nos Estados Unidos quando tia Matilda lhe comprou um cachorroquente na rua Na Europa quando você compra um cachorroquente de um vendedor de rua sempre recebe duas salsichas e elas vêm cobertas de chucrute e cebolas Matilda vai pagar pelo meu cachorroquente e volta com um pãozinho insignificante com uma salsichinha Achei que ela era pãoduro demais para pagar o preço cheio para duas salsichas ou que estava fazendo uma insinuação por conta do meu peso Fiquei magoada durante meses até o dia em que comprei meu próprio cachorroquente e vi que é assim que ele é feito aqui Todos os olhos estão em Magda em seu rosto expressivo esperando pela próxima coisa engraçada que ela vai dizer E ela tem mais sempre tem Nat está visivelmente fascinado por ela Quando os convidados vão embora e Marianne cai no sono sento com Magda em sua cama para fofocar como fazíamos quando éramos garotas Ela pergunta o que eu sei sobre Nat Shillman Sei que ele tem a idade de papai diz ela mas estou com uma sensação boa sobre ele Conversamos até eu quase pegar no sono na cama dela Não quero parar Há uma coisa que preciso perguntar a Magda algo que tem a ver com a minha angústia Mas se eu perguntar a ela sobre o medo o vazio então terei que admitir esses sentimentos e estou muito acostumada a fingir que eles não estão lá Você é feliz finalmente reúno coragem para perguntar Quero que ela diga que é para que eu possa ser também Quero que ela diga que nunca será feliz não de verdade de modo que eu saiba que a angústia não existe apenas em mim Dicuka aqui vai um conselho de sua irmã mais velha Ou você é sensível ou não é Quando você é sensível sofre mais Será que vamos ficar bem pergunto Algum dia Sim diz ela Não sei Mas uma coisa é certa Hitler com certeza nos ferrou Béla e eu agora ganhamos 60 dólares por semana o suficiente para tentarmos um segundo filho Fico grávida Minha filha nasce no dia 10 de fevereiro de 1954 Quando acordo da anestesia que os médicos americanos rotineiramente aplicavam em todas as mulheres em trabalho de parto na época ela está no berçário Peço para segurar minha bebê quero amamentála Quando a enfermeira a traz dormindo vejo que é perfeita Não tão grande quanto a irmã quando nasceu mas seu nariz é bem pequenininho e as bochechas macias Béla traz Marianne agora com 6 anos para ver a bebê Eu tenho uma irmã Eu tenho uma irmã comemora Marianne como se eu tivesse colocado dinheiro em um envelope e encomendado uma irmã para ela em um catálogo como se eu tivesse a capacidade de sempre atender os seus desejos Ela logo terá também uma prima pois Magda se casou com Nat Shillman em 1953 e está grávida de uma menina que nascerá em outubro Ela se chamará Ilona em homenagem à nossa mãe Batizamos nossa segunda filha de Audrey como Audrey Hepburn Ainda estou atordoada por causa da anestesia Nem a intensidade do trabalho de parto nem conhecer e amamentar minha bebê pela primeira vez ganharam do entorpecimento da minha vida escondida É uma reação automática esperar que algo ruim aconteça depois de algo bom Nos primeiros meses de vida de Audrey Béla estuda para seu exame de certificação de contador como se estivesse se preparando para o teste final para a prova crucial que determinará para sempre se ele encontrará ou não o seu lugar e a paz consigo mesmo e com nossas escolhas Ele não passa no teste Além disso dizem que com sua gagueira e seu sotaque nunca conseguirá um emprego independentemente de ser capaz de obter o certificado Sempre haverá uma pedra no caminho diz ele não importa o que eu faça Eu contesto o que ele diz e o tranquilizo Afirmo que encontraremos uma maneira mas não consigo calar a voz de minha irmã Klara em minha cabeça Dois complicados Como isso vai funcionar Choro no banheiro Faço isso em silêncio e saio fingindo estar animada Ainda não sei que o medo quando mantido escondido apenas se torna mais forte Não sei que meus hábitos de suprimir tudo de aplacar e de fingir estão apenas nos fazendo piorar C A P Í T U L O 1 3 Você esteve lá No verão de 1955 quando Marianne tinha 7 anos e Audrey 1 enchemos nosso velho Ford cinza de malas e saímos de Baltimore em direção a El Paso Texas Desmotivado pela falta de perspectivas de emprego cansado dos ressentimentos e julgamentos do irmão e preocupado com a própria saúde Béla entrou em contato com o primo Bob Eger em busca de aconselhamento Bob era filho adotivo do tioavô de Béla Albert que imigrou para Chicago com dois irmãos no início dos anos 1900 deixando o quarto irmão o avô de Béla em Prešov para administrar o negócio que Béla herdou após a guerra Foram os Egers de Chicago que financiaram a imigração de George para a América nos anos 1930 Eles também garantiram a oportunidade de obtermos nossos vistos ao registrarem a família Eger antes da guerra Eu era grata pela generosidade e visão dos Egers de Chicago sem os quais nunca poderíamos ter um lar nos Estados Unidos Mas fiquei preocupada quando Bob que vivia com a esposa e os dois filhos em El Paso disse a Béla Venha para o Oeste Não queria entrar em outro beco sem saída disfarçado de oportunidade Bob nos tranquilizou Segundo ele a fronteira era o lugar perfeito para começar do zero para se reinventar A economia estava crescendo em El Paso e numa cidade de fronteira os imigrantes eram menos segregados e marginalizados Ele ajudou Béla a encontrar um emprego como assistente de um contador profissional com um salário duas vezes maior do que tinha em Baltimore O ar do deserto será bom para os meus pulmões disse Béla Podemos alugar uma casa em vez de outro apartamento minúsculo Então eu concordei Tentamos transformar a mudança em uma aventura divertida em férias Dirigimos por estradas com paisagens deslumbrantes paramos em motéis com piscinas Para sobrar tempo para um mergulho refrescante antes do jantar pegávamos a estrada bem cedo Apesar da angústia com a mudança do custo da gasolina dos motéis e das refeições em restaurantes além dos quilômetros separando Magda de mim novamente me vi sorrindo com mais frequência Não a máscara de um sorriso desgastado para tranquilizar a família O sorriso verdadeiro marcado nas bochechas e nos olhos Senti uma camaradagem nova com Béla que ensinou piadas bobas a Marianne e brincou de jogar Audrey na água quando estávamos na piscina A primeira coisa que notei em El Paso foi o céu Aberto limpo vasto As montanhas ao norte da cidade também atraíram meu olhar Eu estava sempre olhando para cima Em determinadas horas do dia o ângulo do sol transformava a montanha num recorte de papelão desbotado num cenário de cinema os picos de um marrom monótono Então a luz mudava e as montanhas ficavam rosadas alaranjadas roxas vermelhas douradas azulescuras a cordilheira surgindo como o fole de um acordeão esticado expondo todas as suas dobras A cultura também me impressionou Eu esperava encontrar uma cidade de fronteira empoeirada e isolada de um filme de faroeste um lugar com homens estoicos e solitários e mulheres mais solitárias ainda Mas El Paso parecia mais europeia e cosmopolita do que Baltimore Era uma cidade bilíngue multicultural e sem uma segregação rígida E havia a fronteira em si a união dos mundos El Paso e Juárez em Chihuahua no México não eram cidades tão separadas assim pareciam as duas metades do mesmo todo O Rio Grande dividia a cidade entre os dois países mas a fronteira era tão arbitrária quanto marcante Lembreime de minha cidade natal Košice que virou Kassa e depois voltou a ser Košice em que a fronteira mudou tudo e ao mesmo tempo não mudou nada Meu inglês ainda era básico e eu não falava nada de espanhol Mas me senti menos marginalizada e condenada ao ostracismo do que em Baltimore onde morávamos em um bairro de judeus imigrantes na expectativa de encontrar acolhimento mas que em vez disso eu me sentia exposta Em El Paso nós fazíamos parte da mistura Certa tarde logo após nossa mudança estou no parque do bairro com Audrey quando ouço uma mãe chamar os filhos em húngaro Observo essa outra mãe húngara por alguns minutos esperando reconhecêla mas então rio de mim mesma Que ingenuidade imaginar que só porque a língua dela é familiar um espelho da minha própria voz podíamos ter algo em comum Ainda assim não consigo parar de acompanhar a brincadeira entre ela e os filhos não consigo ignorar a sensação de que a conheço De repente me lembro de uma coisa em que não penso desde a noite do casamento de Klara o cartãopostal preso no espelho de Magda em Košice A letra manuscrita sobre a imagem da ponte de El Paso Como pude esquecer que dez anos antes Laci Gladstein se mudou para essa cidade Laci o jovem que foi liberado conosco de Gunskirchen que estava no teto do trem que levou Magda e eu de Viena até Praga que segurou nossas mãos para nos confortar que eu achava que poderia se casar com Magda um dia que tinha vindo para El Paso trabalhar na loja de móveis dos tios para guardar dinheiro para a faculdade de medicina El Paso o lugar que no cartãopostal parecia o fim do mundo o lugar onde eu vivia agora Audrey me tira do devaneio pedindo para brincar no balanço Quando eu a pego no colo a húngara se aproxima com o filho Falo com ela em húngaro sem perceber Você é húngara digo Talvez conheça um velho amigo que veio para El Paso depois da guerra Ela me olha daquele jeito distraído que os adultos olham para as crianças como se minha pergunta fosse absurdamente ingênua Quem é seu amigo pergunta ela querendo me ajudar Laci Gladstein Lágrimas correm de seus olhos Sou irmã dele grita ela Ela entendeu meu código Velho amigo Depois da guerra Ele é médico diz ela Agora é conhecido como Larry Gladstone Como posso explicar o que senti naquele momento Dez anos haviam se passado desde que tinha viajado com Laci e outros sobreviventes expatriados em cima de um trem Naquela década ele havia realizado seu sonho de se tornar médico Saber disso faz com que nenhuma esperança ou ambição pareça fora de alcance Ele tinha se reinventado nos Estados Unidos Então eu também podia Mas isso é apenas metade da história Em pé num parque sob o sol quente do deserto eu estava de fato no fim do mundo mais longe no tempo e no espaço do que jamais estive daquela garota deixada para morrer em uma pilha de corpos em uma floresta úmida na Áustria Ao mesmo tempo nunca estive mais perto dela porque estava quase reconhecendo a existência dela para uma estranha encontrando um fantasma do passado em plena luz do dia enquanto minha filha pedia que eu empurrasse o balanço mais alto Talvez seguir em frente também signifique voltar Encontro o telefone de Larry Gladstone na lista telefônica e espero uma semana ou mais para ligar Sua esposa uma americana atende o telefone Ela anota a mensagem e pergunta diversas vezes como se escreve o meu nome Digo a mim mesma que ele não vai se lembrar de mim Naquela noite Bob e sua família vêm jantar em nossa casa Marianne pediu para eu fazer hambúrgueres e eu preparo a carne moída do jeito que minha mãe faria misturada com ovo alho e farinha de rosca depois enrolada como almôndegas e servida com couve de Bruxelas e batatas cozidas com sementes de cominho Quando levo a refeição à mesa Marianne revira os olhos Mãe diz ela eu queria hambúrgueres à moda americana Ela quer a carne achatada e servida entre dois pedaços de pão sem gosto com batatas fritas oleosas e um bocado de catchup insosso Ela está constrangida perante Dickie e Barbara seus primos americanos Sua desaprovação dói Fiz o que tinha prometido a mim mesma que não faria me sentir envergonhada O telefone toca e fujo da sala para atender Edith diz o homem Sra Eger Aqui é o Dr Larry Gladstone Ele fala em inglês mas sua voz é a mesma de antes Ela traz o passado para a minha cozinha o vento cortante no teto do trem Fico tonta Estou faminta como estava na época meio morta de fome Minha coluna lesionada dói Laci respondo com uma voz distante como se viesse pelo rádio de um outro cômodo Nosso passado em comum dominante embora não mencionado Nos encontramos novamente diz ele Conversamos em húngaro Ele conta sobre a esposa e seu trabalho filantrópico sobre as três filhas eu falo sobre minhas filhas e sobre as aspirações de Béla de se qualificar como contador Ele me convida a visitar seu consultório convida minha família para jantar na casa dele Portanto começa novamente uma amizade que vai durar o resto de nossas vidas Quando desligo o telefone o céu está ficando rosa e dourado Escuto as vozes de minha família na sala de jantar Dickie o filho de Bob pergunta à mãe sobre mim se eu sou realmente americana e por que meu inglês é tão ruim Meu corpo fica tenso do jeito que costuma ficar quando o passado se aproxima muito É como a mão que se projeta na frente das minhas filhas quando o carro freia muito abruptamente Um reflexo de proteção Desde a gravidez de Marianne quando desafiei o conselho do médico e decidi que minha vida sempre defenderia outra vida resolvi não deixar que os campos de extermínio projetassem uma sombra sobre as minhas filhas Essa convicção virou um propósito minhas filhas nunca poderão saber Elas nunca vão me imaginar esquelética e faminta sonhando com o strudel de minha mãe sob o céu enfumaçado Não serei uma imagem que elas não conseguem tirar da cabeça Vou protegêlas poupálas Mas as perguntas de Dickie me lembram que embora eu tenha optado do silêncio e também conte com a solidariedade ou a camuflagem pelo silêncio dos outros não posso decidir o que as outras pessoas dizem ou fazem quando não estou presente O que minhas filhas devem ouvir O que os outros dizem a elas apesar de meus esforços para manter a verdade escondida Para meu alívio a mãe de Dickie muda o rumo da conversa Ela sugere que Dickie e Barbara conversem com Marianne sobre os melhores professores da escola que ela iniciará no outono Será que Béla a instruiu para manter a conspiração do silêncio Ou ela intuiu É algo que ela faz para o meu bem para o bem das crianças para o bem dela Mais tarde quando eles se reúnem na porta na hora de ir embora escuto a mãe de Dickie sussurrar para ele em inglês Nunca pergunte a tia Dicu sobre o passado Não é uma coisa que conversamos Minha vida é um tabu na família Meu segredo está salvo Existem sempre dois mundos O que eu escolho e o que renego mas que insiste em se infiltrar mesmo sem a minha permissão Em 1956 Béla passa no exame de capacitação para contador e obtém o certificado Alguns meses antes de nosso terceiro filho Johnny nascer compramos uma casa modesta de três quartos em Fiesta Drive Não há nada atrás da casa a não ser deserto o chocalho das cobras e flores rosa cinza e vermelhas Escolhemos móveis de cores claras para mobiliar a sala de estar e de TV Lemos as manchetes dos jornais enquanto comemos o mamão papaia fresco que Béla compra no mercado dos produtores de Juárez depois de cruzar a fronteira nas manhãs de domingo Na Hungria há um levante com tanques soviéticos reprimindo a rebelião anticomunista Béla é lacônico com as meninas sua gagueira volta a piorar Está quente Estou com a barriga enorme Ligamos o climatizador e nos reunimos diante da TV na área de lazer para assistir à transmissão dos Jogos Olímpicos de verão em Melbourne Ligamos a TV bem na hora em que Ágnes Keleti uma judia de Budapeste da equipe feminina de ginástica se aquece para fazer sua rotina de solo Ela tem 35 anos é seis anos mais velha do que eu Se ela tivesse sido criada em Kassa ou eu em Budapeste teríamos treinado juntas Prestem atenção diz Béla para as meninas Ela é húngara como nós Assistir a Ágnes Keleti é como assistir à minha outra metade meu outro eu Aquela que não foi enviada para Auschwitz Keleti depois eu fico sabendo comprou documentos de uma menina cristã em Budapeste e fugiu para uma vila remota onde esperou a guerra acabar trabalhando como empregada doméstica Aquela cuja mãe sobreviveu Aquela que retomou a antiga vida antes da guerra que não deixou as dificuldades ou a idade destruírem seu sonho Ela levanta os braços alonga o corpo longilíneo está pronta para começar Béla torce enlouquecidamente Audrey o imita Marianne me observa a maneira como eu me inclino em direção à TV Ela não sabe que um dia fui ginasta muito menos que a mesma guerra que interrompeu a vida de Ágnes Keleti também interrompeu e ainda atrapalha a minha vida Mas percebo que minha filha está atenta à minha respiração suspensa à maneira como sigo o corpo de Keleti com o meu próprio corpo não apenas com os olhos Béla Marianne e Audrey aplaudem cada salto Acompanho sem fôlego o quanto Keleti está lenta e controlada quando ela se inclina sobre as pernas até tocar o chão e em seguida gira a partir de uma inclinação sentada frontal para um arco para trás e para cima em uma parada de mão tudo com movimentos graciosos e fluidos Sua série termina A concorrente soviética sobe no tablado Por causa do levante na Hungria as tensões entre os atletas húngaros e soviéticos estão especialmente preocupantes Béla vaia aos gritos A pequena Audrey de 2 anos faz o mesmo Digo aos dois para se calarem Observo Larisa Latynina da maneira que os juízes observam da maneira que Keleti deve estar observando Vejo que o grand battement dela talvez seja um pouco mais alto do que o de Keleti vejo a leveza de seus saltos a maneira como ela aterrissa num espacate completo Marianne dá um suspiro de aprovação Béla vaia novamente Ela é muito boa papai diz Marianne Ela é de um país de opressores e agressores diz Béla Ela não escolheu onde nasceu digo Béla dá de ombros Experimente girar assim quando seu país está sob ataque diz ele Nesta casa nós torcemos pelas húngaras No fim Keleti e Latynina dividem o ouro O ombro de Latynina encosta no de Keleti quando as duas se perfilam lado a lado na cerimônia de premiação Keleti faz caretas no pódio Mamãe por que você está chorando me pergunta Marianne Não estou respondo Negar Negar Negar Quem estou protegendo Minha filha Ou eu mesma Marianne fica cada vez mais curiosa e é uma leitora voraz Depois de ler todos os livros na seção infantil da biblioteca pública de El Paso ela começa a vasculhar as estantes de nossa casa lê meus livros de filosofia e literatura e também os livros de história de Béla Em 1957 quando completa 10 anos ela senta Béla e eu no sofá bege na sala de TV fica em pé na nossa frente como uma pequena professora e abre um livro que diz ter encontrado escondido atrás de outros em uma das prateleiras Ela aponta para a foto de uma pilha de cadáveres esqueléticos nus O que é isso pergunta Estou suando a sala gira Eu devia ter previsto que esse momento chegaria mas é tão surpreendente espantoso e aterrorizante para mim quanto entrar em casa e descobrir que o fosso do jacaré da praça San Jacinto foi instalado em nossa sala de jantar Encarar a verdade e encarar minha filha encarando a verdade é como enfrentar um monstro Saio correndo da sala para vomitar na pia do banheiro Escuto Béla contando à nossa filha sobre Hitler sobre Auschwitz Escuto Béla dizendo as palavras terríveis Sua mãe esteve lá Eu podia quebrar o espelho Não Não Não Quero gritar Eu não estive lá O que eu quero dizer é Isso não é um peso para você carregar Sua mãe é muito forte escuto Béla dizendo a Marianne Mas você precisa entender que é filha de uma sobrevivente você precisa sempre sempre protegêla Poderia ter sido uma oportunidade Para acalmar Marianne Para aliviála da necessidade de se preocupar ou ter pena de mim De dizer a ela o quanto seus avós a amariam De dizer a ela Tudo bem estamos seguras agora Mas não consigo sair do banheiro Não confio em mim mesma Se eu disser uma palavra sobre o passado vou ativar a raiva e a perda vou me afundar na escuridão e levála para lá junto comigo Foco nas crianças nas coisas que posso fazer para nos sentirmos seguros aceitos e felizes em nossa nova casa Há os rituais diários os destaques da semana e das estações do ano as coisas que fazemos por prazer as coisas com que contamos a prática incomum de Béla raspar sua cabeça calva pela manhã antes de levar Audrey para a escola de carro Béla indo fazer compras no mercado no imenso deserto atrás da nossa casa Inevitavelmente esqueço de acrescentar algo à lista e ligo para a loja à procura dele Os funcionários da mercearia conhecem a minha voz e o chamam pelo altofalante Sr Eger sua esposa está no telefone Eu cuido de nosso jardim corto a grama trabalho meio expediente no escritório de Béla que virou o contador querido e confiável de todos os imigrantes bemsucedidos em El Paso sírios mexicanos italianos judeus europeus Aos sábados as crianças o acompanham nas visitas aos clientes Se eu ainda não soubesse quanto Béla era adorado veria o amor de seus clientes por ele na afeição com que tratam nossos filhos Aos domingos Béla vai a Juárez comprar frutas na mercearia do Chuy e fazemos um grande brunch para a família em nossa casa escutamos discos dos musicais da Broadway cantamos juntos as músicas dos shows Béla consegue cantar sem gaguejar e depois vamos nadar na Associação Cristã de Moços com as crianças Vamos à praça San Jacinto no centro de El Paso no dia de Natal Não celebramos o Natal com presentes mas as crianças ainda assim escrevem cartas ao Papai Noel Trocamos presentes práticos como meias e roupas nos dias de Hanuká e comemoramos o anonovo com muita comida e com o desfile Sun Carnival que apresenta a rainha do verão as bandas escolares e os homens do Rotary Club com suas motocicletas Na primavera fazemos piqueniques ao ar livre em White Sands e em Santa Fe No outono fazemos compras para a volta às aulas Só de passar as mãos pelas roupas nas araras eu sei quais são os melhores tecidos e tenho habilidade para encontrar as melhores roupas pelos preços mais baixos Béla e eu temos esses costumes táteis ele na escolha de alimentos eu na escolha de roupas Vamos às fazendas mexicanas para a colheita do outono e nos fartamos de tamales caseiros Comida é amor Quando nossos filhos trazem boas notas nas cadernetas nós os levamos para tomar banana split na sorveteria atrás de casa Quando Audrey completa 9 anos faz um teste para a equipe de natação e vira uma atleta de competição Quando chegar ao ensino médio estará treinando seis horas por dia como eu costumava fazer na ginástica e no balé Quando Marianne faz 13 anos acrescentamos uma suíte máster à casa para que Marianne Audrey e Johnny tenham os próprios quartos Compramos um piano Marianne e Audrey fazem aulas de piano organizamos concertos de música de câmara como os que meus pais promoviam quando eu era menina e montamos festivais de bridge Béla e eu entramos em um clube de livros fundado por Molly Shapiro muito conhecida em El Paso por suas recepções nas quais reúne artistas e intelectuais Eu me matriculo num curso de inglês para estrangeiros na Universidade do Texas Meu inglês finalmente melhora a ponto de eu me sentir segura para em 1959 me inscrever na faculdade Há muito tempo sonho em continuar meus estudos outro sonho adiado mas que agora parece possível Vou à minha primeira aula de psicologia sento com os jogadores de basquete peço ajuda a Béla para escrever os trabalhos Tenho 32 anos Estamos felizes por dentro e por fora Mas há o jeito com que Béla olha para nosso filho Ele queria um menino mas não esperava por este filho Johnny nasceu com paralisia cerebral atetoide provavelmente causada por uma encefalite intrauterina e isso afetou seu controle motor Ele tinha dificuldade para fazer coisas que Marianne e Audrey aprenderam sem grandes esforços como se vestir falar e usar o garfo ou a colher para comer sozinho Ele era diferente delas Seus olhos eram caídos e ele babava Béla criticava Johnny e perdia a paciência com suas dificuldades Lembro como fui ridicularizada por ser vesga e sofria por meu filho Béla gritava de frustração com os desafios de Johnny Ele gritava em tcheco de modo que as crianças que falavam um pouco de húngaro apesar do meu desejo de que falassem apenas um inglês americano impecável não entendessem as palavras embora obviamente entendessem o tom Eu me escondia em nossa suíte Em 1960 quando Johnny tinha 4 anos eu o levei a uma consulta com o Dr Clark um especialista no Johns Hopkins que me disse Seu filho pode ser o que você fizer dele John fará tudo o que todo mundo faz mas vai demorar mais tempo para conseguir Pressionálo em excesso é contraproducente mas também é um erro não pressionálo o suficiente Você precisa pressionar no nível do potencial dele Parei de estudar para levar Johnny a suas sessões de terapia da fala de terapia ocupacional e também a todo tipo de médico e especialista que poderiam ajudar Audrey agora diz que suas memórias mais nítidas da infância não são na piscina mas nas salas de espera Decidi não aceitar que nosso filho tinha um comprometimento permanente Eu estava certa de que ele podia avançar se acreditássemos que isso era possível Mas quando ele era mais novo e comia com a mão mastigando com a boca aberta porque era o que conseguia fazer Béla olhou para ele com tamanho desapontamento e tristeza que eu senti que precisava proteger meu filho do pai O medo instalou uma tensão em nossas vidas confortáveis Certa vez quando Audrey tinha 10 anos eu estava perto de seu quarto onde ela brincava com uma amiga exatamente quando uma ambulância passou na frente de nossa casa com a sirene ligada Cobri a cabeça um hábito residual da guerra um movimento que ainda faço Antes de registrar conscientemente a sirene escutei Audrey gritando para a amiga Rápido venha para debaixo da cama Ela se atirou no chão e rolou para debaixo da cama A amiga riu e a imitou provavelmente achando que era uma brinncadeira Mas eu sabia que Audrey não estava brincando Ela realmente achava que sirenes sinalizavam perigo e que era preciso se proteger Sem querer sem qualquer ato consciente eu tinha ensinado isso a ela O que mais estávamos inconscientemente ensinando aos nossos filhos sobre segurança valores e amor Na noite do baile de formatura do ensino médio de Marianne ela está em pé na varanda da frente em seu vestido de seda com uma linda orquídea no pulso Assim que ela sai da varanda com seu par na festa Béla fala Divirtase docinho Você sabe sua mãe estava em Auschwitz quando tinha sua idade e os pais dela estavam mortos Grito com Béla quando Marianne vai embora Digo que ele se tornou uma pessoa amarga e fria que não tem o direito de arruinar a alegria da menina em uma noite tão especial nem o prazer indireto que senti pela felicidade dela Se ele não consegue se controlar eu também não vou me censurar Se Béla não consegue abençoar nossa filha com pensamentos felizes então ele também deve estar morto O fato de que você esteve em Auschwitz e ela não é um pensamento feliz Béla se defende Quero que Marianne se sinta satisfeita com a vida que tem Então não a envenene grito Pior do que o comentário de Béla é o fato de eu nunca ter falado com Marianne sobre isso Finjo não perceber que ela também está vivendo duas vidas a que vive por ela mesma e a que vive por mim porque eu não pude vivê la No outono de 1966 quando Audrey está com 12 anos Marianne no segundo ano da faculdade e Johnny com 10 anos cumprindo a previsão do Dr Clark de que com o apoio correto poderia desenvolver uma estabilidade física e acadêmica tenho tempo novamente para me dedicar ao meu progresso Volto a estudar Meu inglês agora é bom o suficiente para escrever meus trabalhos sem a ajuda de Béla com o auxílio dele a melhor nota que tirei foi um C mas agora só recebo notas A Sinto que estou finalmente progredindo e transcendendo as limitações de meu passado Mas mais uma vez os dois mundos que tentei manter separados colidem Estou sentada numa sala de conferências esperando a aula de Introdução à Ciência Política começar quando um homem de cabelos louros se senta atrás de mim Você esteve lá não esteve diz ele Lá Sinto a pânico começar a crescer Auschwitz Você é uma sobrevivente não é Estou tão abalada com a pergunta que não consigo pensar em também lhe fazer uma pergunta O que o faz acreditar que eu sou uma sobrevivente Como ele sabe Como adivinhou Nunca disse uma única palavra sobre a minha experiência a ninguém em minha vida atual nem mesmo a meus filhos Não tenho um número tatuado no braço Você não é uma sobrevivente do Holocausto pergunta ele novamente Ele é jovem talvez tenha 20 anos mais ou menos a metade da minha idade Algo em sua juventude em sua natureza séria na intensidade gentil de sua voz me relembra Eric a maneira como nos sentamos juntos no cinema depois do toque de recolher como ele me fotografou na beira do rio fazendo espacates como ele beijou meus lábios pela primeira vez com as mãos apoiadas no cinto fino que marcava minha cintura Passaramse 21 anos depois da libertação e ainda fico arrasada com a perda de Eric com a perda de nosso amor jovem e com a perda do futuro da visão que compartilhamos do casamento da família e do ativismo No ano em que passei encarcerada no ano em que sabese lá como eu escapei de uma morte que parecia obrigatória e inevitável não esqueci do verso de Eric Nunca esquecerei seus olhos nunca esquecerei suas mãos A memória era minha salvação E agora Escondi o passado Lembrar é ceder ao horror de novo Mas no passado também está a voz de Eric No passado está o amor que senti e que ficou em minha mente todos aqueles meses em que passei fome Eu sou uma sobrevivente digo tremendo Você leu isso Ele me mostra uma pequena brochura Em busca de sentido de Viktor Frankl Pareceme um texto de filosofia O nome do autor não diz nada Faço que não com a cabeça Frankl estava em Auschwitz explica o estudante Ele escreveu este livro logo após a guerra Acho que você vai achar interessante diz ele oferecendoo a mim Eu seguro o livro É fino Ele me enche de terror Por que eu voluntariamente retornaria para o inferno mesmo através do filtro da experiência de outra pessoa Mas não tenho coragem de rejeitar o gesto do jovem Sussurro um obrigada e guardo o livrinho em minha bolsa onde ele fica a noite toda como uma bombarelógio Começo a preparar o jantar e me sinto distraída e fora do meu corpo Peço a Béla para comprar mais alho no mercado e depois peço novamente para comprar mais pimentões Mal provo a comida Depois do jantar tomo a lição de ortografia de Johnny Lavo a louça Dou boanoite às crianças Béla vai para o escritório ouvir Rachmaninoff e ler o jornal Minha bolsa está no corredor perto da porta da frente com o livro ainda lá dentro Apenas o fato de saber que está em minha casa me provoca desconforto Não vou lêlo Não preciso Eu estava lá Vou me poupar o sofrimento Pouco depois da meianoite minha curiosidade vence o medo Eu me esgueiro até a sala onde me sento por um longo tempo sob a luz de um abajur segurando o livro Começo a ler Este livro não pretende ser um relato de fatos e eventos mas das experiências que milhões de prisioneiros sofreram repetidas vezes É a história do que aconteceu dentro de um campo de concentração contada por um de seus sobreviventes Sinto um formigamento na nuca Ele está falando comigo Está falando por mim Como era a vida em um campo de concentração segundo um prisioneiro comum Ele escreve sobre as três fases da vida de um prisioneiro começando com a chegada a um campo de extermínio e a ilusória sensação de alívio Sim eu me lembro muito bem de meu pai ouvir a música tocando na plataforma do trem e dizer que aquele lugar não poderia ser tão ruim me lembro da maneira como Mengele usava o dedo indicador para apontar quem viveria e quem morreria e lembro que ele me disse de maneira casual Você verá sua mãe em breve Depois há a segunda fase na qual a pessoa aprende a se adaptar ao impossível e ao inconcebível Aprende a aguentar as surras dos kapos a levantar independentemente do frio da fome do cansaço ou da doença a tomar a sopa e a guardar o pão a ver sua própria carne desaparecer e a escutar o tempo todo que a única saída é a morte Mesmo a terceira fase de soltura e libertação não acabou com o encarceramento escreve Frankl Ele pode continuar na amargura na desilusão e na busca de sentido e felicidade Estou olhando diretamente para aquilo que busquei esconder Conforme leio não me sinto paralisada nem presa de volta naquele lugar Para minha surpresa não sinto medo Para cada página que leio quero escrever outras dez E se contar a minha história afrouxar o poder que o medo tem em vez de aumentá lo E se falar sobre o passado trouxer a cura em vez da destruição E se o silêncio e a negação não forem as únicas escolhas a fazer na esteira da perda catastrófica Leio como Frankl caminha até seu local de trabalho na escuridão gelada O frio é cruel os guardas são brutais os prisioneiros tropeçam Em meio à dor física e à injustiça desumanizadora Frankl lembra do rosto da esposa Ele vê os olhos dela e seu coração se enche de amor na profundidade do inverno Ele entende como alguém que não tem nada ainda pode conhecer a felicidade seja ela apenas por um breve momento na contemplação de sua amada Meu coração se abre Eu choro É a minha mãe falando comigo na escuridão opressiva do trem através daquela página Lembrese ninguém pode tirar de você o que você colocou em sua mente Não podemos escolher desaparecer no escuro mas podemos escolher acender a luz Naquelas primeiras horas da alvorada do outono de 1966 eu leio uma frase que está no cerne do ensinamento de Frankl Tudo pode ser tirado de uma pessoa exceto uma coisa a última das liberdades humanas escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida escolher o próprio caminho Cada momento é uma escolha Não importa quão frustrante chata limitadora dolorosa ou opressiva for nossa experiência podemos sempre escolher como reagir Finalmente comecei a entender que eu também tenho uma escolha Essa compreensão mudará minha vida C A P Í T U L O 1 4 De um sobrevivente para outro Ninguém se cura em linha reta Em uma noite de janeiro de 1969 quando Audrey chega em casa de um trabalho como babá Béla e eu pedimos que ela e John se sentem no sofá marrom da sala de estar Não consigo olhar para Béla nem para meus filhos Meu olhar se fixa nas linhas modernas e simples do sofá em suas pernas finas Béla começa a chorar Alguém morreu pergunta Audrey Contem Johnny bate com os pés de maneira nervosa no sofá Está tudo bem nós amamos muito vocês mas sua mãe e eu decidimos que precisamos viver em casas separadas por um tempo diz Béla Ele gagueja ao falar as frases demoram uma eternidade O que você está dizendo pergunta Audrey O que está acontecendo Precisamos descobrir como ter mais paz em nossa família digo Não é culpa de vocês Vocês não se amam mais Sim diz Béla Eu amo Esse é o golpe dele a faca que ele aponta para mim Vocês de repente não estão felizes Achei que eram felizes Ou têm mentido para nós a vida inteira Audrey ainda estava com o dinheiro do trabalho como babá na mão pronta para entregar ao pai Quando Audrey fez 12 anos Béla abriu uma conta bancária no nome dela e lhe disse que depositaria o dobro de qualquer quantia que ela ganhasse dali para a frente Minha filha acaba jogando o dinheiro no sofá como se tivéssemos contaminado tudo o que é bom ou valioso Foi a soma de experiências não um súbito reconhecimento que me levou a pedir o divórcio de Béla Minha decisão tinha algo a ver com a história de minha mãe o que ela escolheu e o que não foi autorizada a escolher Antes de se casar com meu pai ela trabalhava num consulado em Budapeste ganhava o próprio dinheiro fazia parte de um círculo social cosmopolita e profissional Ela era bastante livre para a época mas a irmã mais nova se casou e a pressão se voltou para ela que tinha de fazer o que a sociedade e a família esperavam ou seja casarse antes que se tornasse um constrangimento para os seus Havia um homem que minha mãe amava alguém que ela conheceu no trabalho no consulado o homem que lhe deu E o vento levou com dedicatória mas o pai dela a proibiu de se casar com ele porque ele não era judeu Meu pai um alfaiate famoso tirou suas medidas para um vestido certo dia gostou de sua aparência e então mamãe optou por deixar a vida que tinha escolhido para si mesma em nome da vida que esperavam que ela levasse Ao casar com Béla temi ter feito a mesma coisa abdicar de assumir a responsabilidade por meus próprios sonhos em troca da segurança que ele me proporcionava Agora as qualidades que haviam me atraído nele sua capacidade de prover e cuidar pareciam sufocantes Nosso casamento era como uma abdicação de mim mesma Eu não queria o tipo de casamento que meus pais tiveram solitário e sem intimidade e não queria os sonhos partidos deles o de meu pai de ser médico o da minha mãe de ter uma carreira e de se casar por amor Mas o que eu quero para mim Eu não sabia Portanto elegi Béla como uma força a ser enfrentada Em vez de descobrir meu verdadeiro propósito e direção encontrei sentido em lutar contra ele contra as limitações que eu achava que ele me impunha Realmente Béla apoiava os meus estudos pagava minha faculdade adorava conversar comigo sobre os livros de filosofia e literatura que eu estava lendo e considerava as minhas listas de leitura e análises complementos interessantes para seu tema favorito História Talvez porque Béla de vez em quando expressasse algum ressentimento pelo tempo que eu dedicava à faculdade ou porque preocupado com minha saúde ele às vezes me advertia para diminuir o ritmo se enraizou em mim a ideia de que se eu quisesse progredir na vida teria que fazer isso por conta própria Eu estava muito ansiosa e cansada de me diminuir Lembrome de viajar com Audrey para uma competição de natação em San Angelo em 1967 quando ela tinha 13 anos Os outros pais que estavam acompanhando as filhas se reuniram no hotel à noite para beber e se divertir Percebi que se Béla tivesse ido estaríamos no centro das atividades não por apreciarmos a convivência com gente que gostava de beber mas porque Béla era um sedutor nato Quando ele via um grupo de pessoas não conseguia se afastar Qualquer espaço que ele ocupava virava um círculo social com todos atraídos para a relação de convívio por causa do ambiente que ele criava Eu admirava isso nele mas ao mesmo tempo me ressentia a ponto de ficar em silêncio para que a voz dele pudesse ressoar Assim como na minha família durante minha infância só havia espaço para uma estrela Nos churrascos dançantes semanais que organizávamos com os amigos em El Paso eu tinha que dividir a ribalta quando todo mundo abria espaço para mim e Béla na pista de dança Juntos éramos sensacionais nossos amigos diziam que era difícil desviar o olhar Éramos admirados como casal mas não havia espaço para mim Aquela noite em San Angelo achei desagradável o ruído e a embriaguez dos outros pais Prestes a me retirar para o quarto pois estava sozinha e com um pouco de pena de mim mesma me lembrei do que o livro de Frankl falava sobre a liberdade de escolher a minha própria reação para qualquer situação Fiz uma coisa que nunca havia feito antes Bati na porta do quarto de Audrey Surpresa em me ver Audrey me convidou para entrar Estava jogando cartas e assistindo à TV com as amigas Quando eu tinha sua idade disse eu também era atleta Audrey arregalou os olhos Vocês garotas são sortudas e lindas Vocês sabem o que é ter um corpo forte Trabalhar duro Fazer parte de uma equipe Disse a elas o que meu professor de balé me disse muito tempo antes Todo o seu êxtase na vida virá de dentro de você Dei boanoite e comecei a me dirigir para a porta mas antes de sair do quarto fiz um grand battement Os olhos de Audrey brilhavam de orgulho Suas amigas bateram palmas e assoviaram Eu não era a mãe calada com um sotaque estranho Eu era a artista a atleta a mãe que a filha admirava Internamente equacionei esse sentimento de autoestima e júbilo com a ausência de Béla Se eu queria sentir esse brilho com mais frequência talvez precisasse estar menos com ele Essa avidez por individualidade me sustentou também durante a faculdade Eu era voraz sempre em busca de mais conhecimento e também do respeito e da aprovação que podiam ser um sinal de que eu tinha valor Ficava acordada a noite inteira trabalhando em ensaios que já estavam bons por medo de que não estivessem bons ou que estivessem apenas suficientemente bons Quando um professor de Psicologia anunciou à turma no início do semestre que ele só dava notas C fui a seu escritório dizer a ele que eu só tirava A e perguntar o que podia fazer para manter meu desempenho acadêmico excepcional Ele me convidou a trabalhar como sua assistente o que aumentou meu aprendizado em sala de aula com uma experiência de campo oferecida apenas a alunos de pósgraduação Certa tarde alguns colegas de turma me convidaram para tomar uma cerveja depois da aula Senteime com eles num bar escuro perto do campus meu copo gelado sobre a mesa eu encantada com a energia juvenil a paixão política Eu os admirava advogados de justiça social pacifistas Estava feliz por ser incluída E triste também Esse estágio da minha vida fora encurtado Individualização e independência da minha família Namoro e romance Participação em movimentos sociais que promoviam mudança real Perdi minha infância para a guerra minha adolescência para os campos de extermínio e a primeira parte da minha vida adulta para a compulsão de nunca olhar para trás Virei mãe antes de passar pelo luto da morte de minha própria mãe Tentei me recuperar rápido demais e cedo demais Não foi culpa de Béla eu ter escolhido a negação e ter mantido escondidas até mesmo de mim minhas memórias opiniões e experiências Mas naquele momento eu o considerava responsável por prolongar a minha paralisia No dia da cerveja com os colegas uma delas pergunta como Béla e eu nos conhecemos Adoro uma boa história de amor disse ela Foi amor à primeira vista Não lembro como respondi mas sei que a pergunta me fez pensar novamente sobre o tipo de amor que eu gostaria de ter tido Com Eric houve faíscas um calor que percorria todo o meu corpo quando ele estava perto Nem Auschwitz matou a garota romântica que existia em mim a garota que dizia a si mesma todos os dias que poderia encontrálo novamente Depois da guerra o sonho morreu Quando conheci Béla eu não estava apaixonada estava com fome e ele me trouxe queijo suíço e salame Lembro de me sentir feliz nos primeiros anos com Béla quando estava grávida de Marianne andando até o mercado todas as manhãs para comprar flores conversando com ela no meu ventre dizendo a minha filha como ela iria florescer E ela tinha florescido todos os meus filhos tinham Agora eu estava com 40 anos a idade com que minha mãe morreu e eu ainda não havia florescido nem tido o amor que achava merecer Eu me senti enganada com um rito humano essencial sendo negado a mim presa a um casamento que tinha virado uma refeição consumida sem a expectativa de nutrição sem a esperança de matar a fome Meu sustento veio de uma fonte inesperada Um dia em 1968 quando cheguei em casa encontrei uma carta na caixa de correio endereçada a mim com uma letra manuscrita que parecia europeia enviada pela Universidade Southern Methodist de Dallas Não tinha nome acima do endereço do remetente apenas iniciais V F Quando abri a carta quase caí para trás De um sobrevivente para outro dizia a saudação A carta era de Viktor Frankl Depois da minha imersão préalvorada no livro Em busca de sentido dois anos antes escrevi um ensaio chamado Viktor Frankl e eu Escrevi para mim mesma como um exercício pessoal não acadêmico como a primeira tentativa de falar sobre o passado Timidamente esperançosa em relação à possibilidade de crescimento pessoal mostrei o ensaio a alguns professores e amigos e no fim ele acabou sendo publicado pela própria universidade Alguém tinha enviado anonimamente uma cópia do meu artigo para Frankl em Dallas onde ele trabalhava como professor visitante desde 1966 Frankl 23 anos mais velho do que eu já era um médico psiquiatra bemsucedido quando foi encarcerado em Auschwitz Tinha 39 anos Agora era o celebrado criador da Logoterapia Ele atendia fazia palestras e dava aulas no mundo todo Frankl se emocionara com meu pequeno ensaio a ponto de entrar em contato comigo de me tratar como uma colega sobrevivente e como uma profissional Escrevi sobre me imaginar no palco da Ópera de Budapeste na noite em que fui obrigada a dançar para Mengele Frankl escreveu que tinha feito algo similar em Auschwitz Nos piores momentos ele se imaginou como um homem livre dando palestras em Viena sobre a psicologia do encarceramento Ele também encontrara em um mundo interior proteção para a fome e a dor atual e também inspiração para sua esperança e senso de propósito dando a ele os meios e a razão para sobreviver O livro de Frankl e sua carta me ajudaram a encontrar palavras para nossa experiência em comum Assim começou uma correspondência e uma amizade que durariam muitos anos período em que tentaríamos juntos responder às perguntas que permeiam nossas vidas Por que sobrevivi Qual é o propósito da minha vida Qual é o significado do meu sofrimento Como posso ajudar a mim e aos outros a suportar as partes mais difíceis da vida e a sentir mais paixão e alegria Depois de trocar cartas durante vários anos nós nos encontramos pela primeira vez numa conferência que Frankl deu em San Diego nos anos 1970 Ele me convidou para ir aos bastidores conhecer sua esposa e pediu que eu fizesse uma análise crítica de sua palestra um momento extremamente importante ser tratada por meu mentor como uma igual Mesmo a primeira carta dele fomentou em mim a semente de uma missão a busca para encontrar sentido em minha vida ao ajudar os outros a encontrarem sentido a me curar para poder curar os outros e curar os outros para poder curar a mim mesma Isso também reforçou o meu entendimento apesar de mal aplicado quando me divorciei de Béla de que eu tinha a energia e a oportunidade assim como a responsabilidade de escolher meu próprio sentido minha própria vida Dei o primeiro passo consciente para encontrar o meu próprio caminho no fim dos anos 1950 quando percebi os desafios de desenvolvimento de Johnny e precisei de ajuda para atendêlos Uma amiga recomendou uma psicanalista junguiana que tinha estudado na Suíça Eu não conhecia quase nada de psicologia clínica tampouco de psicanálise junguiana especificamente mas depois de pesquisar um pouco sobre o assunto diversos conceitos junguianos me atraíram Gostei da ênfase nos mitos e arquétipos que me lembraram a literatura que eu adorava quando menina Fiquei fascinada com a noção de reunir as partes conscientes e inconscientes da psique de uma pessoa em um todo equilibrado Lembreime das imagens dissonantes entre o interior de Vicky Page e a experiência exterior de Os sapatinhos vermelhos Naturalmente eu estava sofrendo a angústia dos meus próprios conflitos interiores Não entrei conscientemente na terapia para curar essa tensão em mim eu só queria saber o que fazer com meu filho e acabar com as discordâncias entre mim e Béla sobre o modo de agir Mas fiquei intrigada com a visão de Carl Jung sobre a análise terapêutica É uma questão de dizer sim a si mesmo de se considerar a tarefa mais importante de ter consciência de tudo o que faz e de manter uma constância diante de si em todos os aspectos dúbios uma tarefa que verdadeiramente nos cobra o máximo Dizer sim a mim mesma Eu queria fazer isso Eu queria me desenvolver e melhorar Meu terapeuta me passou um trabalho de casa pediu que eu registrasse meus sonhos e os analisasse Neles quase sempre eu estava voando Eu podia escolher se voava muito perto ou muito longe do chão se muito rápido ou muito devagar Eu podia escolher quais paisagens sobrevoar catedrais europeias montanhas cobertas de florestas praias oceânicas Eu queria dormir para poder ter esses sonhos em que estava feliz e forte voando livremente no controle Encontrei nesses sonhos a força para transcender as suposições limitadoras que os outros muitas vezes impunham a meu filho Descobri o meu desejo de transcender o que percebi serem limitações impostas a mim Eu ainda não sabia que as limitações que precisavam ser superadas não estavam fora mas dentro Portanto quando anos depois sob a influência de Viktor Frankl comecei a questionar o que queria da vida foi fácil pensar que dizer não a Béla seria uma forma de dizer sim a mim mesma Nos meses depois do divórcio eu me senti melhor Sofri de enxaqueca por muitos anos minha mãe também tinha dores de cabeça debilitantes então presumi que eram hereditárias mas assim que Béla e eu nos separamos as dores desapareceram como as estações do ano Achei que era porque eu estava livre do mau humor de Béla de seus gritos de seu cinismo de sua irritação e de seu desapontamento As dores de cabeça sumiram assim como a necessidade de me esconder de me manter à parte Convidei estudantes e professores à minha casa promovi festas animadas me senti no centro de uma comunidade aberta ao mundo Achei que estava vivendo da maneira que queria Mas logo uma névoa se instalou O ambiente ao meu redor parecia cinzento Eu precisava lembrar a mim mesma de me alimentar Numa manhã de sábado em maio de 1969 sento sozinha na sala de TV É o dia da minha formatura na faculdade Tenho 42 anos estou me formando com honras em Psicologia pela Universidade do TexasEl Paso Não consigo me obrigar a ir à cerimônia Estou envergonhada demais Devia ter feito isso há muitos anos digo a mim mesma O que de fato eu quero dizer o subtexto de muitas das minhas escolhas e crenças é Não mereço ter sobrevivido Sou tão obcecada em provar o meu valor em conquistar meu lugar no mundo que não preciso mais de Hitler Eu me tornei minha própria carcereira dizendo a mim mesma Não importa o que você fizer nunca será boa o suficiente O que mais sinto falta de Béla é seu jeito de dançar Especialmente a valsa vienense Por mais cínico e ranzinza que seja ele também se permite ser alegre e deixa seu corpo expressar isso Béla pode se render ao ritmo e ainda assim comandar a dança e se manter firme Sonho com ele algumas noites Com sua infância e com as histórias que ele me contou nas cartas que enviou quando me cortejou Vejo o pai dele morrer numa avalanche ficando sem ar em meio a todo aquele branco Vejo sua mãe entrar em pânico no mercado em Budapeste e confessar sua identidade para a SS Penso na triste tensão na família de Béla provocada pelo papel da mãe na morte deles Penso em sua gagueira na maneira como o trauma precoce o marcou Num dia de verão Béla vem buscar John Ele está com um carro novo Nos Estados Unidos sempre tivemos carros populares carros detonados segundo nossos filhos Hoje ele está dirigindo um Oldsmobile com assentos de couro Comprou usado diz ele na defensiva mas orgulhoso Meu olhar de descrença não é para o carro É para a mulher elegante sentada no banco do carona Ele conheceu alguém Agradeço a necessidade de trabalhar para sustentar a mim e as crianças O trabalho é uma fuga Ele me dá um propósito claro Passo a trabalhar como professora de Estudos Sociais do sétimo e oitavo anos em El Paso Barrio Recebo propostas de trabalho das escolas mais cobiçadas das partes mais ricas da cidade mas quero trabalhar com alunos que são bilíngues e que estejam enfrentando os obstáculos que eu e Béla conhecemos quando chegamos à América pobreza e preconceito Quero conectar meus alunos a suas escolhas mostrar a eles que quanto mais escolhas tiverem menos vão se sentir como vítimas O mais difícil em meu trabalho é combater o negativismo na vida de meus alunos Às vezes seus próprios pais dizem que eles nunca vão progredir e que a educação não é um caminho viável para eles Você é tão insignificante tão feia que nunca encontrará um marido Conto aos alunos sobre minha vesguice sobre a musiquinha tola de minhas irmãs e que o problema não era o fato de elas cantarem esse tipo de canção para mim o problema era que eu acreditava nelas Mas não deixo que meus alunos saibam quão profundamente eu me identifico com eles como o ódio obliterou a minha infância como eu sei que a escuridão devora quem é ensinado a acreditar que não é importante Lembrome da voz que se elevou por entre as montanhas Tatra Se você vai viver tem que defender alguma coisa Meus alunos me dão algo para eu defender Mas ainda me sinto entorpecida e ansiosa solitária muito sensível e triste Os flashbacks continuam eles acontecem muitas vezes quando estou dirigindo Vejo um policial fardado na estrada vejo túneis e minha visão se afunila parece que vou desmaiar Não tenho um nome para essas experiências ainda não entendo que elas são uma manifestação psicológica do luto que ainda não vivi Um sinal que meu corpo envia como um lembrete dos sentimentos que bloqueei da vida consciente Uma tormenta que me domina quando não me permito sentir Quais são os sentimentos que me recuso a reconhecer Eles são como estranhos morando na minha casa invisíveis exceto pela comida que surrupiam pelos móveis que tiram do lugar pela trilha de lama que deixam no corredor O divórcio não me libertou da presença angustiante deles O divórcio esvazia o espaço de outras distrações dos alvos habituais da minha culpa e do meu rancor e me obriga a me sentar sozinha com meus sentimentos Às vezes eu ligo para Magda Ela e Nat também se divorciaram e ela casou com Ted Gilbert que tem uma idade mais próxima da dela e é um bom padrasto e ouvinte Ela e Nat mantiveram uma amizade forte Ele vai jantar na casa dela duas ou três vezes por semana Tenha cuidado com o que você faz quando está irrequieta recomenda minha irmã Você pode pensar coisas erradas Coisas sem importância Ele é muito isso muito aquilo já sofri o suficiente Você acaba sentindo falta das mesmas coisas que a deixavam louca É como se ela lesse a minha mente a pequena vantagem da dúvida a concessão de que talvez o divórcio não esteja resolvendo o que achei que estava danificado Certa noite uma mulher telefona para minha casa Ela está à procura de Béla Eu saberia onde ele pode estar É a namorada dele eu percebo Ela está ligando para a minha casa como se eu vigiasse meu exmarido como se eu devesse informações a ela como se eu fosse a secretária dele Nunca mais me telefone grito Depois de desligar fico agitada não consigo dormir Tento sonhar que estou voando um sonho lúcido mas não consigo decolar continuo caindo em vigília É uma noite terrível E muito útil Audrey está dormindo na casa de uma amiga Johnny já está na cama Não há como escapar do meu desconforto só resta sentir Choro tenho pena de mim mesma fico furiosa Sinto cada onda de ciúme de amargura de solidão de indignação de autopiedade e assim por diante Pela manhã embora não tenha dormido me sinto melhor Mais calma Nada mudou Ainda me sinto abandonada apesar do ilógico da situação pelo marido de quem eu decidi abrir mão Mas meu alvoroço e agitação seguiram em frente Não são características permanentes São estados de espírito que passam mudam Eu me sinto mais tranquila Terei muitas outras noites e dias assim Momentos em que estou sozinha em que começo a experimentar não afastar os meus sentimentos independentemente do quanto sejam doloridos Esse é o presente do meu divórcio o reconhecimento de que preciso enfrentar o que está dentro de mim Se vou realmente melhorar a minha vida não é Béla ou nossa relação que tem de mudar Sou eu Enxergo a necessidade de mudança mas não sei que tipo de mudança vai me ajudar a ser mais livre e feliz Busco uma nova terapeuta para ter outra perspectiva sobre o meu casamento mas a abordagem dela não é muito útil Ela aponta o dedo para mim e diz que forçar Béla a fazer as compras era uma emasculação que eu nunca deveria ter cortado a grama e tirado as responsabilidades masculinas dele Ela implica com coisas que estavam funcionando em meu casamento e as reformula como problemas e falhas Arranjo um novo emprego dessa vez numa escola do ensino médio onde dou aula de Introdução à Psicologia e atuo como conselheira Porém o propósito que me norteava no início de minha profissão começa a ser corroído pela burocracia das escolas pelas salas de aula numerosas e pela sobrecarga de casos que me impedem de trabalhar de maneira eficaz com os alunos individualmente Sei que tenho mais a oferecer embora ainda não saiba o que deveria fazer Este tema prevalece que meu trabalho mais importante e profundo tanto em termos pessoais quanto profissionais ainda está por vir e ainda se mostra confuso e indefinido Um casal de amigos Lili e Arpad são as primeiras pessoas a dizer o que esse trabalho implicará embora eu ainda não esteja pronta para reconhecer isso muito menos para assumilo Num fim de semana eles me convidam a visitálos no México Durante anos Béla e eu tiramos férias com eles mas dessa vez vou sozinha No domingo em que vou voltar para casa tomamos um café da manhã demorado com café frutas e ovos preparados por mim à moda húngara com pimentão e cebola Estamos preocupados com você diz Lili com sua voz calma carinhosa Sei que ela e Arpad ficaram surpresos com o divórcio Sei que eles acham que cometi um erro É difícil não ver a preocupação dela como julgamento Conto a eles sobre a namorada de Béla uma escritora ou musicista nunca consigo me lembrar Para mim ela não é uma pessoa mas uma ideia Béla seguiu em frente e me deixou para trás Meus amigos escutam compreensivos mas então se entreolham e Arpad pigarreia Edie diz ele me perdoe se eu estiver me intrometendo muito e você pode me mandar tomar conta da minha própria vida mas já pensou que resolver o seu passado pode vir a beneficiar você Resolver o passado Eu vivi aquilo o que mais há para resolver tenho vontade de perguntar Acabei com a conspiração do silêncio mas falar sobre o assunto não fez o medo e os flashbacks desaparecerem Na realidade falar parece ter piorado meus sintomas Não rompi o silêncio com meus filhos ou amigos de maneira formal mas não vivo temerosa de que eles me perguntem sobre o passado e tento aceitar as oportunidades para compartilhar minha história Recentemente quando uma amiga do tempo da faculdade que fez um mestrado em História quis me entrevistar para um ensaio sobre o Holocausto aceitei Achei que seria um alívio contar toda a minha história contudo estava trêmula ao sair da casa dela Ao chegar em casa vomitei exatamente como aconteceu uma década antes quando Marianne nos mostrou um livro com fotos dos prisioneiros nos campos de concentração O passado é passado digo a Lili e Arpad Não estou pronta para levar em consideração ou mesmo entender o conselho de Arpad para resolver o passado Porém como a carta de Viktor Frankl aquilo plantou uma semente dentro de mim algo que crescerá e se enraizará com o tempo Um sábado estou sentada na mesa na cozinha corrigindo as provas de meus alunos de Psicologia quando Béla liga É o dia dele com Audrey e John Minha mente se agita de medo Qual é o problema pergunto Nenhum Eles estão vendo TV Ele fica quieto espera a voz engrenar Vamos jantar diz ele finalmente Com você Comigo Estou ocupada respondo Realmente estou Marquei um encontro com um professor de Sociologia Já liguei para Marianne em busca de conselhos O que devo usar O que devo dizer O que devo fazer se ele me convidar para a casa dele Não durma com ele ela me recomendou Especialmente no primeiro encontro Edith Eva Eger pede meu exmarido por favor deixe as crianças passarem a noite com os amigos e aceite jantar comigo Seja lá o que for podemos conversar pelo telefone ou quando você trouxer as crianças Não diz ele Não Esta não é uma conversa para se ter ao telefone ou à porta de casa Presumo que tem a ver com as crianças e concordo encontrálo em nosso restaurante favorito onde sempre íamos para namorar Passo aí para buscar você diz ele Béla chega pontualmente Está vestido para um encontro de terno escuro e gravata de seda Ele se inclina para me dar um beijo no rosto e não quero me afastar quero sentir bem de perto seu perfume e seu rosto perfeitamente barbeado No restaurante em nossa antiga mesa ele segura minhas mãos É possível pergunta ele que nós tenhamos mais a construir juntos Sua pergunta faz minha mente girar como se já estivéssemos na pista de dança Tentar novamente Voltar E ela pergunto Ela é adorável Divertida uma ótima companhia E então Me deixe terminar Lágrimas começam a jorrar dos olhos dele e a escorrer pelo rosto Ela não é a mãe dos meus filhos Ela não me tirou da prisão em Prešov Ela nunca ouviu falar das montanhas Tatra Ela não consegue pronunciar frango paprikash muito menos preparálo para o jantar Edie ela não é a mulher que eu amo Ela não é você Os elogios me deixam feliz a aceitação de nosso passado em comum mas o que me impressiona é a disposição de Béla para o risco Isso sempre foi típico dele pelo menos até onde sei Ele optou por combater os nazistas na floresta Se arriscou a morrer doente ou alvejado por balas para impedir o inadmissível Já eu fui recrutada para o risco à força Béla escolheu o risco de maneira consciente e o escolhe novamente nessa mesa ao se permitir ficar vulnerável diante da possibilidade de rejeição Já me acostumei de tal modo a enumerar todas as formas como ele me decepciona que parei de levar em consideração quem ele é o que ele oferece Tenho que sair desse casamento ou vou morrer eu pensava Talvez os meses e anos que passei longe dele tenham me ajudado a amadurecer e a descobrir que não existe um Nós até que exista um Eu Agora que eu encarei a mim mesma de maneira um pouco mais plena posso ver que o vazio que senti em nosso casamento não era um sinal de que havia algo errado no relacionamento Era um vazio que carrego comigo mesma até agora um vácuo que nenhum homem ou realização algum dia preencherá Nada jamais compensará a perda de meus pais e da minha infância E ninguém mais é responsável pela minha liberdade Eu sou Em 1971 dois anos após o divórcio quando estou com 44 anos Béla se ajoelha e me oferece um anel de noivado Fazemos uma cerimônia judaica em vez do casamento civil que firmamos há mais de vinte anos Nossos amigos Gloria e John Lavis são as testemunhas Este é o seu verdadeiro casamento diz o rabino Ele diz isso porque dessa vez é um casamento judeu mas eu acho que ele também quer dizer que dessa vez estamos realmente escolhendo um ao outro não estamos correndo não estamos fugindo Compramos uma casa nova em Coronado Heights decoramos tudo com cores vivas vermelho laranja colocamos painéis solares e uma piscina Viajamos para os Alpes na Suíça em lua de mel e ficamos em um hotel com fontes termais O ar é frio A água é quente Sento no colo de Béla Montanhas escarpadas se alongam em direção ao céu as cores mudando sobre elas e também sobre as águas Nosso amor parece tão estável quanto a cadeia de montanhas tão reconfortante e fluido quanto a água adaptandose e mudando para preencher o formato que lhe damos Não foi a essência do nosso casamento que mudou Nós mudamos C A P Í T U L O 1 5 O que a vida esperava Realmente não importava o que esperávamos da vida mas o que a vida esperava de nós escreve Viktor Frankl no livro Em busca de sentido Em 1972 um ano depois que Béla e eu nos casamos novamente fui eleita professora do ano em El Paso Embora me sentisse honrada com o prêmio e considerasse um privilégio ajudar meus alunos tinha certeza de que ainda não havia descoberto o que a vida esperava de mim Você conquistou o maior reconhecimento no início de sua carreira não no fim disse o diretor de minha escola Nós esperamos grandes feitos de você Qual é o próximo Era a mesma pergunta que eu ainda me fazia Comecei a trabalhar com meu terapeuta junguiano novamente e apesar de sua advertência de que títulos não substituem o crescimento e o trabalho interior pensei em fazer uma pós graduação Eu queria entender por que as pessoas escolhem fazer uma coisa e não outra como resolvem os desafios diários e sobrevivem a experiências devastadoras como convivem com o passado e com seus erros como as pessoas se curam E se minha mãe tivesse alguém com quem conversar Ela teria tido um casamento mais feliz com meu pai ou escolhido uma vida diferente E os meus alunos ou meu próprio filho aqueles que disseram não é possível em vez de é possível Como eu poderia ajudar as pessoas a transcender suas crenças autolimitantes e se tornarem quem elas deveriam realmente ser no mundo Eu digo a meu diretor que estou pensando em fazer um doutorado mas não consigo expressar meu sonho sem impor limitações Não sei falo quando eu terminar o curso estarei com 50 anos Ele sorriu para mim Você vai fazer 50 anos de qualquer maneira respondeu ele Nos seis anos seguintes descobri que meu diretor e meu terapeuta junguiano estavam certos Não havia razão para me limitar para deixar que minha idade restringisse minhas escolhas Escutei o que minha vida estava me pedindo Em 1974 completei o mestrado em Psicologia Educacional da Universidade do TexasEl Paso e em 1978 o PhD em Psicologia Clínica na Universidade Saybrook Minha jornada acadêmica me levou a conhecer o trabalho de Martin Seligman e de Albert Ellis além de professores e mentores inspiradores como Carl Rogers e Richard Farson que me ajudaram a entender partes de mim mesma e a minha própria experiência Martin Seligman que mais tarde criou uma nova vertente em nossa área chamada Psicologia Positiva realizou uma pesquisa no fim dos anos 1960 que respondeu a uma pergunta que me incomodava desde o dia da libertação em Gunskirchen em maio de 1945 por que tantos prisioneiros perambularam fora dos portões dos campos mas acabaram voltando para os alojamentos enlameados e fétidos Frankl notou o mesmo fenômeno em Auschwitz Psicologicamente o que levava um prisioneiro libertado a rejeitar a liberdade Os experimentos de Seligman com cães que infelizmente precederam as atuais proteções contra a crueldade animal comprovaram o conceito que ele chamou de desamparo aprendido Quando os cachorros que recebiam choques dolorosos conseguiam interromper os choques pressionando uma alavanca eles rapidamente aprenderam a parar a dor Em experimentos seguintes esses cachorros descobriram que para escapar dos dolorosos choques administrados em um canil precisavam pular uma pequena barreira Os cachorros que não tinham meios de interromper a dor no entanto entenderam que estavam indefesos contra aquilo Quando receberam choques num canil ignoraram a rota de fuga e simplesmente se deitaram e choramingaram A partir disso Seligman concluiu que quando percebemos que não temos controle sobre as circunstâncias e acreditamos que nada do que fazemos é capaz de aliviar nosso sofrimento e melhorar nossa vida paramos de agir em nosso próprio benefício pois acreditamos que é inútil Foi isso que aconteceu nos campos de extermínio quando exprisioneiros saíam pelos portões mas acabavam voltando para a prisão onde ficavam sentados parados sem decidir o que fazer com a liberdade que finalmente tinha chegado Sofrer é inevitável e universal mas a maneira como reagimos ao sofrimento varia Em meus estudos fui influenciada por psicólogos cujos trabalhos revelaram nosso poder de realizar mudanças em nós mesmos Albert Ellis criador da Terapia Racional Emotiva Comportamental e um precursor da Terapia CognitivoComportamental me esclareceu sobre o quanto interiorizamos sentimentos negativos sobre nós mesmos e os comportamentos negativos e autodestrutivos que acompanham esses sentimentos Ellis mostrou que na base dos comportamentos menos eficazes e mais prejudiciais está um núcleo filosófico ou ideológico irracional Contudo esse núcleo é tão vital para nossas opiniões sobre nós mesmos e sobre o mundo que muitas vezes não temos consciência de que são apenas crenças nem que repetimos essas crenças de maneira recorrente para nós mesmos na vida cotidiana A crença determina nossos sentimentos tristeza raiva ansiedade etc e em troca nossos sentimentos influenciam nossos comportamentos fingir se isolar se automedicar para aliviar o desconforto Segundo Ellis para mudar o comportamento devemos mudar o sentimento e para mudar o sentimento devemos mudar o pensamento Assisti a uma sessão de terapia aberta conduzida por Ellis num palco em que a paciente era uma mulher jovem confiante e articulada mas frustrada em suas experiências de namoro Ela se achava incapaz de atrair o tipo de homem com quem gostaria de ter um relacionamento longo e buscava orientação para como encontrar e se conectar com os homens adequados Ela disse que tinha a tendência de ficar tímida e tensa quando conhecia um homem que considerava um bom candidato e que se comportava de uma maneira cautelosa e defensiva a ponto de esconder sua verdadeira personalidade e seu real interesse em conhecê lo Em poucos minutos o Dr Ellis a orientou para a principal convicção que estava implícita em seus namoros a certeza irracional de que sem perceber ela continuava repetindo sem parar até se convencer de que era verdade Nunca serei feliz Depois de um encontro ruim ela não apenas repetia para si mesma Oops fiz a mesma coisa novamente agi de maneira dura e pouco receptiva como também recaía em sua principal certeza de que nunca conquistaria a felicidade e que por isso mesmo não fazia sentido tentar Foi o medo produzido por essa convicção central que a deixou tão relutante em arriscarse a mostrar sua verdadeira personalidade o que por sua vez tornou mais provável que sua convicção derrotista se tornasse realidade Foi emocionante ver a autoimagem dela mudar visivelmente bem ali no palco Ela parecia escapar da convicção negativa como se estivesse tirando uma roupa velha De repente seus olhos ficaram mais brilhantes ela parecia mais alta o peito e os ombros mais abertos e calorosos como se estivesse criando uma superfície maior para a felicidade pousar O Dr Ellis avisou que dificilmente ela teria um encontro amoroso incrível de imediato Ele também disse que aceitar o desconforto dos encontros decepcionantes fazia parte do esforço de se livrar da convicção negativa A verdade é que teremos experiências desagradáveis na vida cometeremos erros e nem sempre conseguiremos o que desejamos Isso faz parte de ser humano O problema e base de nosso sofrimento constante é a convicção de que o desconforto os erros e as decepções sinalizam algo sobre o nosso valor é acreditar que merecemos todas as coisas desagradáveis que acontecem em nossas vidas Embora a minha maneira de construir afinidade seja diferente da técnica do Dr Ellis sua forma de levar os pacientes a reestruturarem e reformularem seus pensamentos prejudiciais influenciou profundamente a minha prática Carl Rogers um dos pensadores que mais me influenciou era um mestre em ajudar os pacientes a se aceitarem plenamente Segundo a teoria de Rogers quando a necessidade de desenvolvermos o nosso potencial entra em conflito com a necessidade de uma atenção positiva ou viceversa podemos optar por reprimir esconder ou negligenciar nossas verdadeiras personalidades e vontades Quando passamos a acreditar que não há nenhuma maneira de sermos amados e verdadeiros corremos o risco de negar nossa verdadeira natureza A autoaceitação foi a parte mais difícil da cura para mim algo que ainda luto para realizar O perfeccionismo surgiu na minha infância para satisfazer minha necessidade de aprovação No entanto esse perfeccionismo se transformou em mecanismo de enfrentamento ainda mais integrado para lidar com a minha culpa por ter sobrevivido O perfeccionismo é a convicção de que algo está quebrado você Portanto você disfarça seus defeitos com diplomas realizações elogios e ensaios mas nada disso pode solucionar o que acha que está resolvendo Ao tentar combater minha baixa autoestima eu estava na realidade reforçando minha sensação de falta de valor Ao aprender a oferecer aceitação e amor absolutos aos meus pacientes tive a sorte de aprender a importância de me oferecer o mesmo Rogers era brilhante em sua capacidade de valorizar os sentimentos dos pacientes e ajudálos a reformular o conceito que têm de si mesmos sem negar a própria verdade Ele ofereceu um olhar positivo incondicional e na segurança dessa aceitação total seus pacientes conseguiram projetar suas máscaras e inibições e habitar as próprias vidas de maneira mais autêntica Aprendi com o Dr Rogers as duas frases mais importantes em qualquer sessão terapêutica Ouvi você dizer e Conte mais Também aprendi a ler a linguagem corporal dos pacientes e a usar meu próprio corpo para comunicar minha aceitação e meu amor incondicional Não cruzo os braços e as pernas eu me abro Faço contato visual inclino o corpo para a frente crio uma ponte entre a minha pessoa e o paciente para que ele saiba que estou 100 com ele Espelho o estado de espírito de meus pacientes se eles querem ficar em silêncio fico quieta mas se eles querem raiva e gritos grito com eles ou seja adapto minha linguagem à linguagem dos meus pacientes como sinal de aceitação total Exibo um jeito de ser respiração abertura movimento escuta que pode promover crescimento e cura Estudar Seligman e Ellis e trabalhar com Rogers entre outros me ajudou a ser uma boa ouvinte ter boa capacidade de síntese e a criar uma abordagem terapêutica baseada na cognição e com uma percepção eclética e intuitiva Se eu tivesse que dar um nome à minha terapia provavelmente a chamaria de Terapia de Escolha já que a liberdade é uma questão de escolha choice em inglês a escolha da Compaixão do Humor do Otimismo da Intuição da Curiosidade e da Expressão Ser livre é viver o presente Se estamos presos ao passado Se ao menos eu tivesse ido lá em vez de aqui ou Se ao menos eu tivesse me casado com outra pessoa é porque estamos vivendo em uma prisão criada por nós mesmos Acontece o mesmo se passamos o tempo no futuro dizendo Não serei feliz até eu me formar ou Não serei feliz até encontrar a pessoa certa O único lugar onde podemos exercer nossa liberdade de escolha é no presente Essas são as ferramentas que meus pacientes usam para se liberar das expectativas dos papéis que desempenham ser pais amáveis e amorosos para eles mesmos parar de transmitir crenças e comportamentos de encarceramento e descobrir que no fim o amor é a resposta Oriento meus pacientes a entenderem o que causa e o que mantém seus comportamentos autodestrutivos No início esse tipo de comportamento surge como algo útil que satisfaz uma necessidade geralmente ligada a um dos três As aprovação afeição atenção Quando eles entendem por que desenvolveram um determinado comportamento menosprezar os outros ligarse a pessoas agressivas comer muito pouco comer demais etc podem assumir a responsabilidade de manter ou não o comportamento Podem inclusive escolher do que vão abrir mão a necessidade de aprovação a necessidade de comprar a necessidade de ser perfeita etc porque até mesmo a liberdade tem um preço Eles podem aprender a cuidar melhor deles mesmos e a descobrir a autoaceitação Só eu posso fazer o que posso fazer do jeito que posso fazer Para mim aprender que só eu posso fazer o que posso fazer do jeito que posso fazer significava destruir a realizadora compulsiva que existia em mim sempre buscando mais e mais diplomas e certificados na esperança de afirmar o meu valor Isso significava recompor o meu trauma ver em meu passado doloroso provas de minha força de meus talentos e de oportunidades para amadurecer em vez de confirmar minha fraqueza ou minha deterioração Em 1975 fui a Israel entrevistar sobreviventes do Holocausto para minha tese de doutorado Béla me acompanhou pois achei que a facilidade dele com idiomas incluindo o ídiche que aprendeu com os clientes em El Paso o tornaria um tradutor inestimável Eu queria explorar a desastrosa teoria do crescimento de meu professor Richard Farson que diz Muitas vezes é a situação de crise que na realidade nos melhora como seres humanos Paradoxalmente apesar de muitas vezes esses incidentes destruírem as pessoas eles são em geral experiências de crescimento Como resultado de tais adversidades a pessoa muitas vezes faz uma grande reavaliação da sua situação e a modifica de modo a refletir um entendimento mais profundo de suas próprias capacidades valores e metas Planejei entrevistar sobreviventes dos campos de concentração para descobrir como uma pessoa sobrevive e até mesmo prospera na sequência do trauma Como as pessoas conseguem criar vidas alegres com propósito e paixão independentemente do tipo de mágoa que sofreram independentemente das tristezas que sentiram E de que forma o próprio trauma cria uma oportunidade de crescimento positivo e de mudança Eu ainda não estava fazendo o que meu amigo Arpad tinha recomendado enfrentar meu próprio passado mas estava um passo mais perto de entrevistar pessoas que tinham o mesmo passado traumático que eu criando uma base para a minha própria cura acontecer Como a experiência de eventos trágicos contribuiu para o funcionamento cotidiano de meus entrevistados Conheci sobreviventes que voltaram a estudar que abriram negócios como Béla e eu tínhamos planejado fazer que construíram amizades fortes e que enfrentaram a vida diária com um sentimento de descoberta Israel não era um lugar tranquilo para os sobreviventes e não é fácil viver em meio ao preconceito e não se tornar você mesmo um agressor Conheci pessoas que enfrentaram os conflitos políticos e culturais com coragem e tranquilidade e que se revezam em turnos de guarda à noite em uma escola de modo que as crianças não encontrem bombas ao chegarem pela manhã Eu as admirava pelo que as levava a não se permitirem desistir ou ceder Eu admirava sua força de viver em meio a outra guerra e por não permitirem que as experiências horrendas do passado destruíssem o que viria a seguir Aguentar a prisão a desumanização a tortura a inanição e a perda devastadora não havia ditado o tipo de vida que conseguiram ter Naturalmente nem todos que entrevistei haviam prosperado Vi muitos pais taciturnos e muitos filhos que se culpavam por não saber lidar com o silêncio e o torpor dos pais Conheci sobreviventes que permaneceram no passado Nunca jamais perdoarei muitos me disseram Para eles perdoar significava esquecer ou desculpar Outros nutriam fantasias de vingança Eu nunca tinha fantasiado sobre vingança mas nos primeiros anos desafiadores em Baltimore eu fantasiei sim sobre confrontar os meus opressores queria ir atrás de Mengele no Paraguai onde ele havia se escondido para escapar da condenação no Tribunal de Nuremberg Imaginei fingir que era uma jornalista americana para entrar na casa dele Então revelaria minha identidade Sou a garota que dançou para você eu diria Você matou meus pais Você matou os pais de muitas crianças Como pode ser tão cruel Você era um médico Você fez o juramento de Hipócrates de não causar nenhum mal Você é um assassino frio Você não tem consciência A ideia era despejar minha fúria sobre seu corpo debilitado e acuado obrigálo a enfrentar sua vergonha É importante culpar os perpetradores Não se ganha nada fechando os olhos para o mal dando livre passagem às pessoas e não as responsabilizando Porém como meus companheiros sobreviventes me ensinaram você pode viver para desagravar o passado ou para enriquecer o presente Você pode viver preso ao passado ou deixálo ser a tábua de salvação que o ajuda a ter a vida que você quer agora Todos os sobreviventes que conheci tinham uma característica comum comigo e uns com os outros não tínhamos controle sobre os fatos mais angustiantes de nossas vidas mas tínhamos o poder de determinar como viveríamos após o trauma Os sobreviventes podem continuar a ser vítimas muito tempo depois de a opressão acabar ou podem aprender a se desenvolver Na pesquisa que fiz para a dissertação encontrei e expus minha convicção pessoal e meu critério clínico podemos escolher ser nossos próprios carcereiros ou podemos escolher ser livres Antes de deixarmos Israel Béla e eu visitamos Bandi e Marta Vadasz os amigos que Béla havia deixado esperando na estação ferroviária de Viena Eles moram em Ramat Gan perto de Tel Aviv Foi um encontro emocionante uma reunião com nossa vida não vivida a vida que quase tivemos Bandi ainda é muito politizado ainda um sionista ansioso para discutir o acordo de paz antecipado entre Israel e Egito sobre a ocupação de Israel da Península do Sinai Ele pode recitar com detalhes os atentados árabes com bombas em Jerusalém e Tel Aviv Debatendo entusiasticamente a estratégia militar de Israel ele e Béla nos mantêm à mesa bem depois de terminarmos de comer Os homens falam sobre a guerra mas Marta se vira para mim e pega na minha mão O rosto dela está mais cheio do que na juventude o cabelo ruivo menos viçoso já ficando grisalho Editke os anos foram generosos com você diz ela com um suspiro É a boa genética da minha mãe respondo E então a fila de seleção aparece na minha mente a pele lisa do rosto de minha mãe Esse momento é um fantasma que me atormenta ao longo dos anos Marta deve ter percebido que a minha mente viajou para outro lugar que a escuridão tomou conta de mim Desculpe diz ela Não foi minha intenção dizer que você conquistou isso com facilidade Você fez um elogio eu a tranquilizo Você continua gentil como me lembro de você Quando seu bebê nasceu morto Marta não deixou que o meu bebê saudável azedasse a nossa amizade e nunca ficava enciumada ou amarga Eu levava Marianne toda tarde para visitála Fiz isso todas as tardes de seu ano de luto Ela parece ler minha mente Você sabe diz ela nada foi mais difícil em minha vida do que perder meu bebê depois da guerra Aquele sofrimento foi terrível Ela faz uma pausa Ficamos sentadas em silêncio em nossa dor compartilhada e ainda assim separada Não acho que lhe agradeci diz ela finalmente Quando enterramos nosso filho você me falou duas coisas que eu nunca esqueci Você disse A vida será boa novamente e Se você conseguir sobreviver a isso conseguirá sobreviver a qualquer coisa Repeti essas frases para mim mesma várias vezes Ela busca as fotos das filhas na bolsa duas meninas nascidas em Israel no início dos anos 1950 Fiquei com muito medo de tentar outra vez Mas a vida tem uma maneira de resolver problemas eu acho Sofri fiquei de luto Então peguei todo o amor que eu tinha por meu bebê e decidi que não ia colocálo em minha perda mas no meu casamento e depois nos filhos que nasceriam Seguro os dedos dela com a minha mão Penso na linda imagem da semente A semente da minha vida e do amor foi introduzida em um solo difícil mas se enraizou e deu frutos Olho para Béla do outro lado da mesa penso em nossos filhos e na notícia que Marianne me deu recentemente de que ela e o marido Rob iriam começar uma família A próxima geração É aí que o amor que sinto por meus pais sobreviverá Ano que vem em El Paso prometemos ao partir Em casa escrevi a dissertação e completei o estágio clínico final no Centro Médico Militar William Beaumont no Texas Tive a sorte de conseguir fazer os estágios tanto do mestrado quanto do doutorado no William Beaumont Foi uma posição concorrida e desejada um cargo de prestígio um local onde os melhores palestrantes e professores se sucediam Eu não sabia que o verdadeiro benefício da posição seria a exigência de que eu olhasse mais intensamente para dentro de mim Um dia chego ao trabalho e visto o jaleco branco que traz no bolso meu nome DRA EGER DEPARTAMENTO DE PSIQUIATRIA Durante meu tempo no William Beaumont desenvolvi a reputação de ser uma pessoa disposta a ir além dos requisitos técnicos da minha posição como ficar a noite toda vigiando um suicida e assumir os casos mais desanimadores dos quais os outros profissionais abriram mão Hoje recebi dois novos pacientes ambos veteranos do Vietnã ambos paraplégicos Eles têm o mesmo diagnóstico lesão medular o mesmo prognóstico fertilidade e função sexual comprometidas improbabilidade de voltar a andar bom controle das mãos e do tronco No caminho para encontrá los ainda não sei que um deles terá um efeito transformador em mim O primeiro que conheço é Tom Ele está deitado na cama em posição fetal xingando Deus e o país Ele parece preso em seu corpo ferido em sua angústia em sua raiva Quando vou para a outra sala de veteranos encontro Chuck fora da cama e sentado em uma cadeira de rodas É interessante diz ele Recebi uma segunda chance na vida Não é incrível Ele está transbordando com a sensação de descoberta e de possibilidade Sento nesta cadeira de rodas e vou até o gramado saio pelo terreno e as flores ficam bem mais próximas Posso ver os olhos das crianças O importante quando conto essa história para meus pacientes atuais ou me dirijo ao público em uma palestra é que cada pessoa tem um pouco de Tom e de Chuck Ficamos destruídos pela perda e achamos que nunca vamos recuperar o sentimento de individualidade e de propósito que não vamos nos curar Porém apesar na verdade por causa das lutas e tragédias de nossas vidas cada um de nós tem a capacidade de abraçar a perspectiva que nos transforma de vítima em alguém bemsucedido Podemos optar por assumir a responsabilidade por nossas dificuldades e por nossa cura Podemos escolher ser livres O que ainda é difícil de admitir no entanto é que quando encontrei Tom sua raiva me atraiu Fodase América Tom grita quando entro no quarto naquele dia Foda se Deus Penso comigo mesma ele está desabafando a raiva Testemunhar a fúria dele desperta a enorme fúria que trago em mim a necessidade de expressá la de liberála Fodase Hitler Fodase Mengele Seria um baita alívio Mas sou a médica aqui Tenho que assumir o meu papel me apresentar como se estivesse no controle da situação e tendo as soluções mesmo que por dentro eu queira socar a parede derrubar uma porta gritar chorar e me jogar no chão Olho para o bolso do meu jaleco Dra Eger Departamento de Psiquiatria e por um momento nele parece estar escrito Dra Eger Impostora Quem sou eu na verdade Será que eu sei quem sou Estou muito assustada com a sensação da máscara se desmanchando de perceber o quanto sou perturbada de sentir toda a raiva que me assombra Por que eu Como isso pôde acontecer Minha vida mudou irremediavelmente e estou furiosa Era eletrizante ver Tom porque ele era muito explícito em expressar o que eu escondia Eu tinha muito medo da desaprovação e da raiva dos outros tinha medo da minha raiva como uma força destrutiva Não me permitia vivenciar os sentimentos temerosa de que se começasse a deixálos sair talvez eu nunca parasse e me transformasse em um monstro De certa forma Tom era mais livre do que eu pois ele se permitia sentir a raiva dizer as palavras que eu mal conseguia pensar muito menos falar Eu queria deitar no chão e gritar com ele Na terapia timidamente digo que quero experimentar expressar minha raiva mas com um profissional presente para me acalmar se eu não conseguir me controlar Deito no chão Tento gritar mas não consigo Estou assustada demais então me encolho cada vez mais Preciso sentir um limite ao meu redor uma fronteira onde exista algo em que me encostar Digo para meu terapeuta sentar sobre mim Ele é pesado seu peso quase me sufoca Acho que vou desmaiar Estou a ponto de pedir que ele me deixe levantar e desistir dessa experiência boba Mas então um grito sai de mim tão longo e forte e angustiado que me assusta Que dor horrorosa me faria produzir um barulho como aquele Não consigo parar de gritar A sensação é boa Mais de trinta anos de fantasmas silenciados saem uivando de mim agora despejando minha tristeza garganta afora A sensação é boa Eu grito grito empurro o peso que me esmaga Meu terapeuta não facilita as coisas e o esforço me faz chorar e suar O que acontece O que acontece quando uma parte de mim há muito tempo reprimida é liberada Nada acontece Sinto a força da ira e apesar de tudo ela não me mata Estou bem Estou bem Estou viva Ainda não é fácil falar sobre o passado É profundamente doloroso enfrentar o medo e a perda toda vez que eu me lembro ou falo do passado Mas a partir daquele momento entendi que os sentimentos independentemente de sua intensidade não são fatais E eles são temporários Reprimir os sentimentos apenas os torna mais difíceis de serem resolvidos A expressão é o oposto da depressão Em 1978 John se formou pela Universidade do Texas entre os dez alunos mais bem colocados e eu conquistei um PhD em Psicologia Clínica Foi um ano de triunfos para nossa família Decidi fazer minha licenciatura na Califórnia lá estava eu colocando novamente os meus sapatinhos vermelhos que além das necessidades do ego de provar o meu valor como se um pedaço de papel pudesse fazer isso tinha a vantagem prática de me permitir trabalhar em qualquer lugar do país Lembrei da luta de Béla para conquistar a licença de contador profissional e me preparei para uma jornada difícil Eu precisava de três mil horas de atendimento clínico para me credenciar para a prova mas consegui o dobro do exigido Não me inscrevi para fazer a prova antes de ter seis mil horas quase todas no William Beaumont onde conquistei uma reputação tão boa que fui convidada a conduzir sessões por trás de um vidro espelhado de modo que meus colegas psicólogos pudessem observar minha maneira de construir afinidades de estabelecer uma relação de confiança e de orientar os pacientes em suas novas escolhas Então chegou a hora de enfrentar o teste escrito Eu era péssima em testes de múltipla escolha precisei estudar durante meses para passar até mesmo no exame de motorista De alguma forma por meio de uma persistência corajosa ou por pura sorte passei no exame escrito Mas não na primeira tentativa Por fim fiz a prova oral que eu achava que seria a parte mais fácil do processo Dois homens conduziram a entrevista um de jeans e rabo de cavalo e o outro de terno e cabelo cortado curto Eles me entrevistaram durante horas O homem de rabo de cavalo falava de maneira dura lacônica me fazendo perguntas sobre estatísticas ética e questões legais O homem de cabelo curto fazia todo tipo de pergunta filosófica o que obrigava minha mente a trabalhar de maneira mais criativa e deixava meu espírito mais empenhado De maneira geral no entanto foi uma experiência desagradável Eu me senti tensa entorpecida e vulnerável Os examinadores não facilitaram seus rostos inexpressivos as vozes frias e o distanciamento emocional me tiraram do sério Era difícil me concentrar na pergunta seguinte quando a anterior havia me levado a acionar minha autocrítica e o desejo de voltar e rever o que tinha falado ou dizer algo qualquer coisa que provocasse um aceno de reconhecimento ou de incentivo Quando o teste finalmente acabou eu estava tonta com as mãos tremendo faminta e ao mesmo tempo enjoada e com dor de cabeça Eu estava certa de que tinha ido mal Ao chegar à porta da frente escutei passos atrás de mim como se alguém estivesse correndo para me alcançar Será que deixei a bolsa tamanha a desorientação Será que eles já iam me dizer que eu tinha sido reprovada Dra Eger o homem de cabelo curto chamou Cruzei os braços como se estivesse esperando uma punição Ele me alcançou fez uma pausa para recuperar o fôlego Meu maxilar e meus ombros travaram Por fim o homem estendeu a mão Dra Eger foi uma honra Você tem um conhecimento muito rico Seus futuros pacientes terão realmente muita sorte Quando voltei ao hotel pulei na cama como uma criança C A P Í T U L O 1 6 A escolha Meu alegre otimismo meu sentimento de realização profissional a sensação de que eu estava atingindo a plenitude da autoexpressão desapareceram quando montei meu consultório particular e atendi o primeiro paciente Eu o visitara no hospital em que ele estava internado havia um mês à espera de um diagnóstico fazendo um tratamento para o que acabou se revelando ser um câncer de estômago Ele estava aterrorizado Sentiase traído por seu corpo ameaçado por sua mortalidade e esmagado pela incerteza e pela solidão da doença E eu não conseguia alcançálo no lugar onde ele estava Toda a minha técnica em estabelecer um ambiente de cordialidade e confiança em construir uma ponte entre mim e o paciente desapareceu Eu me senti como uma criança fantasiada de médica com meu jaleco branco Uma fraude Minhas expectativas a meu respeito eram tão altas o medo do fracasso tão avassalador que eu não conseguia ver além de minha própria autorreferência para alcançar o homem que estava pedindo minha ajuda e meu amor Será que um dia voltarei a ter saúde ele perguntou e minha mente acionou rapidamente uma espécie de agenda interna Passando por teorias e técnicas meus olhos miraram a parede tentando disfarçar o quanto eu estava nervosa e assustada Não consegui ajudálo Ele não me convidou a voltar Percebi como havia percebido quando conheci Tom o veterano de guerra paraplégico que o meu sucesso profissional tinha que vir de um lugar profundo em mim não da garotinha tentando agradar os outros e conquistar aprovação mas do meu verdadeiro eu que era vulnerável e curioso e que estava se aceitando e pronto para amadurecer Em outras palavras comecei a articular um novo relacionamento com o meu trauma Não se tratava de silenciar reprimir evitar negar Era um poço ao qual eu podia recorrer uma fonte profunda de compreensão e intuição sobre meus pacientes sobre a dor deles e o caminho para a cura Meus primeiros anos de consultório me ajudaram a repensar o meu sofrimento como algo necessário e útil e também para moldar e desenvolver meus princípios terapêuticos mais sólidos Muitas vezes os pacientes que atendi refletiam as minhas próprias descobertas sobre a jornada para a liberdade Da mesma forma muitas vezes eles me ensinaram que a minha busca pela liberdade estava incompleta e me levaram na direção da cura Embora minha paciente fosse Emma conheci primeiro seus pais Eles nunca tinham conversado com ninguém muito menos com uma estranha sobre o segredo de sua família Emma a filha mais velha estava morrendo literalmente de fome Eles eram pessoas fechadas reservadas conservadoras uma família de descendentes de alemães Seus rostos estavam crispados de preocupação os olhos cheios de medo Estamos procurando uma solução prática me disse o pai de Emma na primeira visita Temos que fazêla voltar a comer Soubemos que você é uma sobrevivente acrescentou a mãe de Emma Achamos que Emma poderia aprender com você que você poderia inspirála Era doloroso ver o pânico o choque que sentiam em relação à vida de Emma Nada na vida os havia preparado para uma filha com transtorno alimentar Eles nunca tinham pensado que algo assim poderia acontecer com sua filha e com sua família Nenhuma das ferramentas parentais existentes surtia efeito positivo sobre a saúde de Emma Eu queria tranquilizálos aliviar sua aflição mas também queria que eles começassem a enxergar uma verdade que podia ser até mais dolorosa para eles do que a doença de Emma eles tinham uma parcela de responsabilidade Quando uma criança ou jovem é diagnosticado com anorexia o paciente identificado para tratamento é a criança mas o verdadeiro paciente é a família Eles queriam me contar cada detalhe dos comportamentos de Emma que os preocupava a comida que ela recusava ou fingia comer A comida que eles encontravam escondida nos guardanapos ou nas gavetas após as refeições em família a maneira como ela se afastava e se recolhia atrás de portas fechadas e as assustadoras mudanças no corpo dela Mas em vez disso pedi que falassem deles mesmos o que fizeram com nítido desconforto O pai de Emma era baixo e troncudo Havia sido jogador de futebol Percebi com malestar que ele se parecia muito com Hitler devido ao bigodinho fino ao cabelo escuro penteado rente ao couro cabeludo e ao jeito de falar meio latindo como se por trás de cada comunicação houvesse a insistência em não ser ignorado Depois nas sessões individuais com os pais de Emma perguntei a ele como tinha decidido abraçar a carreira policial Ele contou que mancava quando era criança e que o pai dele o chamava de anãocambeta Ele decidiu ser policial porque a profissão exigia força física e a disposição para correr riscos Ele queria provar ao pai que não era anão nem aleijado Quando você tem algo a provar você não é livre Apesar de não saber nada sobre a infância do pai de Emma no primeiro encontro dava para ver que vivia em uma prisão criada por ele mesmo dentro da imagem restrita de quem deveria ser Ele se comportava mais como um sargento severo do que como um marido solidário ou pai preocupado Ele não fazia perguntas ele conduzia um interrogatório Ele não reconhecia seus medos e vulnerabilidades afirmava o próprio ego Sua esposa tinha um visual ao mesmo tempo clássico e prosaico usando um vestido de algodão sob medida abotoado na frente e com um cinto fino parecendo muito alinhada com o tom e o discurso dele Ele falou durante alguns minutos sobre as frustrações no trabalho quando foi preterido em uma promoção e pude vêla procurar com cuidado um ponto de equilíbrio entre confirmar a indignação dele e atiçar sua ira Era nítido que ela havia aprendido que o marido precisava estar certo e que ele não aceitava ser confrontado ou contrariado Em nossa sessão individual fiquei impressionada com a desenvoltura dela em diferentes tarefas domésticas cortava a grama fazia muitos consertos e costurava as próprias roupas e a aparente contradição entre suas habilidades e o poder que dava ao marido o preço que ela pagava para manter a paz Seu hábito de evitar a todo custo conflitos com o marido era tão prejudicial para a saúde da filha e para a dinâmica familiar quanto o comportamento dominador dele Eles eram parceiros em transformar o controle não a conexão empática nem o amor incondicional na linguagem da família Isso é perda de tempo disse o pai de Emma depois de responder às perguntas sobre trabalho rotina familiar e como eles celebravam feriados Simplesmente diga o que temos que fazer Sim diga como podemos fazer Emma sentar à mesa na hora das refeições pediu a mãe Diga como podemos fazêla comer Sei que vocês estão preocupados com Emma e desesperados por respostas e soluções prontas Mas se vocês querem que Emma fique boa a primeira missão é entender que na anorexia a questão não é apenas o que Emma come mas também o que a está comendo Não era possível simplesmente curála e mandála de volta saudável eu disse a eles Convideios a me ajudar a serem meus terapeutas assistentes e a observarem a filha mas não com o propósito de obrigála a fazer ou ser qualquer coisa diferente e sim de prestar atenção em seus estados emocionais e comportamentos Juntos poderíamos construir uma imagem mais clara da paisagem emocional de Emma e nos familiarizarmos com os aspectos psicológicos da doença Ao pedir a ajuda e a cooperação deles eu esperava induzilos a entender o próprio papel na doença da filha Era um estímulo para que assumissem a responsabilidade pela contribuição em relação ao que estava comendo Emma Na semana seguinte encontrei Emma pela primeira vez Ela tinha 14 anos Era como encontrar o meu próprio fantasma Ela se parecia comigo em Auschwitz esquelética pálida definhando O cabelo louro comprido e pegajoso fazia o rosto parecer ainda mais magro Ela ficou em pé na porta do meu consultório as mangas extralongas escondendo as mãos Parecia uma pessoa com um segredo É importante ser sensível aos limites psicológicos desde os primeiros momentos do primeiro encontro com qualquer paciente novo Preciso intuir imediatamente se a pessoa quer que eu a pegue pela mão ou mantenha uma distância física se ela precisa que eu dê uma ordem ou faça uma sugestão sutil Para uma paciente com anorexia uma doença que tem tudo a ver com controle com regras implacáveis para o que e quando você come ou não come e com o que você revela ou oculta os primeiros momentos são críticos Por um lado a anorexia tem uma inescapável dimensão psicológica A falta de nutrientes faz com que a maior parte das poucas calorias consumidas sejam utilizadas pelas funções autônomas do corpo respiração excreção deixando o cérebro privado de fluxo de sangue o que leva ao pensamento distorcido e nos casos mais graves à paranoia Como psicóloga no início de um relacionamento terapêutico com uma pessoa com anorexia não posso esquecer que estou me comunicando com alguém cuja função cognitiva provavelmente está alterada Um gesto habitual como colocar a mão no ombro para encaminhar a pessoa até a cadeira por exemplo pode ser mal interpretado como algo ameaçador ou invasivo Quando cumprimentei Emma pela primeira vez tentei demonstrar simultaneamente simpatia e neutralidade em minha linguagem corporal Como a pessoa anoréxica é uma especialista em controle é importante desarmar sua necessidade de controle oferecendo liberdade Ao mesmo tempo é imprescindível criar um ambiente estruturado onde exista segurança nos rituais e nas regras claras Por conhecer seus pais eu sabia que a linguagem da família era cheia de críticas e culpas então comecei a sessão com um elogio Obrigada por vir disse eu Estou muito feliz por finalmente conhecê la E obrigada por ser pontual Quando ela preferiu se sentar no sofá expliquei que tudo o que ela me contasse seria confidencial a menos que sua vida estivesse em perigo Então fiz um convite aberto gentil Você sabe seus pais estão muito preocupados com você Eu estou interessada em saber a verdadeira história Há algo que você queira me dizer Emma não respondeu Ficou olhando para o tapete e puxando ainda mais as mangas sobre as mãos Tudo bem ficar em silêncio disse eu Mais silêncio se instalou entre nós Esperei Esperei mais um pouco Sabe comentei depois de um tempo tudo bem você precisar de algum tempo mas eu tenho uma papelada que devo colocar em dia Vou trabalhar na outra sala Quando estiver pronta me avise Ela me olhou com desconfiança Numa casa onde a disciplina punitiva é a regra as crianças se acostumam a ouvir ameaças Essas ameaças podem se intensificar rapidamente ou no outro extremo se mostrar vazias Embora eu falasse de forma educada ela estava avaliando se minhas palavras e o meu tom de voz iam se tornar uma crítica raivosa ou uma repreensão se eu ia realmente sair da sala ou se era alguém fácil de manipular Acho que ela ficou surpresa quando levantei atravessei a sala e abri a porta Só então quando minha mão estava na maçaneta ela falou Estou pronta Obrigada respondi voltando à cadeira Estou feliz em ouvir isso Ainda temos 40 minutos de sessão Vamos usálos bem Tudo bem se eu fizer algumas perguntas Ela deu de ombros Conte como é um dia normal para você A que horas você acorda Ela revirou os olhos mas respondeu à minha pergunta Continuei nessa linha Ela tinha um rádiorelógio ou só um alarme ou o pai ou a mãe iam acordála Ela gostava de ficar debaixo das cobertas um pouco mais ou saía da cama rapidamente Perguntei sobre coisas banais para entender o cotidiano dela mas nenhuma pergunta tinha a ver com comida É muito difícil alguém com anorexia ver vida fora da comida Eu já sabia por seus pais que o foco dela na comida era controlar a família que toda a atenção deles estava voltada para a doença dela Eu intuí que ela esperava que eu também só me interessasse por sua doença Eu estava tentando atrair a atenção dela para outras partes da vida e desmontar ou pelo menos suavizar suas estruturas defensivas Quando acabei de explorar um dia em sua vida fiz uma pergunta que ela não sabia responder O que você gosta de fazer perguntei Não sei respondeu ela Quais são os seus hobbies O que você gosta de fazer em seu tempo livre Não sei Fui até o quadro branco que mantinha no consultório e escrevi Não sei À medida que eu perguntava sobre os interesses dela suas paixões suas vontades eu colocava uma marca para cada vez que ela dizia Não sei O que você sonha fazer na vida Não sei Se você não sabe então chute Não sei Vou pensar sobre isso Muitas garotas na sua idade escrevem poemas Você escreve poemas Emma deu de ombros Às vezes Onde você gostaria de estar daqui a cinco anos Que tipo de vida e de carreira a atrai Não sei Estou percebendo que você fala muito Não sei Mas quando a única coisa que você pensa é Não sei isso me entristece pois significa que não está consciente de suas opções E sem opções ou escolhas você não está realmente vivendo Você pode fazer uma coisa por mim Você topa pegar essa caneta e fazer um desenho Acho que sim Ela foi até o quadro e tirou a mão magra de dentro da manga comprida para pegar a caneta Faça um desenho de você neste momento Como você se vê Ela tirou a tampa da caneta e com os lábios crispados desenhou rapidamente e se virou para que eu pudesse ver o desenho uma garota baixa gorda com o rosto em branco vazio Era um contraste devastador Emma esquelética ao lado de um desenho que a representava gorda e sem rosto Você se lembra de um momento em que se sentiu diferente Quando você era feliz bonita e divertida Ela pensou pensou mas não disse Não sei Por fim acenou com a cabeça e disse Quando tinha 5 anos Você poderia fazer um desenho dessa garota feliz Quando ela se afastou do quadro vi o desenho de uma bailarina de tutu fazendo um giro Senti a garganta fechar em um espasmo de reconhecimento Você fazia balé Sim Eu adoraria ouvir mais sobre isso Como se sentia quando estava dançando Ela fechou os olhos Eu vi seus calcanhares se juntarem na primeira posição Foi um movimento inconsciente seu corpo se lembrando O que você sente agora ao lembrar Você dá um nome a esse sentimento Ela acenou com a cabeça os olhos ainda fechados Liberdade Você gostaria de se sentir assim novamente Livre Cheia de vida Ela assentiu com a cabeça Colocou a caneta na bandeja e puxou novamente as mangas sobre as mãos E como se matar de fome a deixa mais perto deste objetivo de liberdade perguntei da maneira mais gentil e cordial que pude Não foi uma recriminação mas um esforço para fazêla tomar consciência da inflexibilidade de sua autossabotagem e de que ela tinha ido longe demais Foi um esforço fazêla responder às perguntas mais importantes no início de qualquer jornada em direção à liberdade O que estou fazendo agora Está funcionando É isso que me deixa mais para perto de meus objetivos ou mais distante Emma não respondeu à minha pergunta com palavras Mas em seu silêncio cheio de lágrimas eu podia sentir o reconhecimento de que ela precisava e queria mudar Quando encontrei com Emma junto com os pais pela primeira vez cumprimentei a todos com entusiasmo Tenho boas notícias disse eu compartilhando com eles minha esperança e confiança na nossa capacidade de trabalharmos como uma equipe Minha participação no trabalho foi condicionada à concordância deles de que Emma também devia estar sob os cuidados da equipe médica em uma clínica de distúrbios alimentares porque a anorexia é uma doença grave e potencialmente fatal Se Emma chegasse a um determinado peso que seria definido em uma consulta com a equipe médica da clínica teria que ser hospitalizada Não posso arriscar deixar você morrer por algo que pode ser evitado disse eu a Emma Um mês ou dois depois de ter começado a trabalhar com Emma seus pais me convidaram para ir à casa deles para uma refeição em família Conheci todos os irmãos da Emma Percebi que a mãe de Emma me apresentou a cada um dos filhos com qualificadores esta é Gretchen a tímida e Peter o engraçado e Derek o responsável Emma já tinha se apresentado para mim a doente Você dá nomes aos filhos e eles entram no jogo É por isso que acho útil perguntar aos pacientes Como a família te descrevia quando criança Na minha infância Klara era a prodígio Magda era a rebelde e eu era a confidente Eu era mais valiosa para os meus pais como ouvinte um repositório para seus sentimentos quando era invisível Com certeza à mesa Gretchen era tímida Peter era engraçado e Derek era responsável Eu queria ver o que aconteceria se eu quebrasse o código se convidasse uma das crianças a desempenhar um papel diferente Você tem um rosto muito bonito eu disse a Gretchen A mãe me chutou por baixo da mesa Não diga isso ela me recriminou baixinho Ela vai acabar ficando convencida Depois do jantar enquanto a mãe de Emma arrumava a cozinha Peter que ainda era um bebê puxou sua saia pedindo atenção Como ela o afastou suas tentativas de fazêla parar o que estava fazendo para pegálo no colo ficaram cada vez mais frenéticas Por fim ele engatinhou para fora da cozinha e foi direto para a mesinha de centro onde estavam alguns bibelôs de porcelana A mãe correu atrás dele o agarrou e bateu nele dizendo Eu já não disse para não mexer nisso A abordagem disciplinadora que prega é de pequeno que se torce o pepino criou um ambiente onde as crianças pareciam obter apenas atenção negativa atenção ruim afinal de contas era melhor do que nenhuma atenção O ambiente rigoroso a natureza binária das regras e dos papéis impostos às crianças a nítida tensão entre os pais tudo traz um ambiente perfeito para uma faminta emocional em casa Também presenciei a atenção bastante inapropriada que o pai deu à Emma E aí gatinha ele cumprimentou quando ela se juntou a nós na sala de estar após o jantar Eu a vi se encolher no sofá tentando se cobrir Controle disciplina punitiva incesto emocional não admira que Emma estivesse morrendo em meio à abundância Como todas as famílias aquela precisava de regras mas regras bem diferentes das que eles seguiam Então ajudei Emma e seus pais a criarem uma constituição familiar na qual ajudariam uns aos outros a cumprir uma lista de regras para melhorar o ambiente em casa Primeiro eles conversaram sobre os comportamentos que não estavam funcionando Emma disse aos pais que ficava assustada com o tanto que eles gritavam e culpavam um ao outro e de como se ressentia quando eles mudavam as regras ou as expectativas na última hora a hora de voltar para casa e as tarefas que ela tinha que terminar antes de poder assistir à TV por exemplo O pai disse que se sentia isolado na família e que parecia ser o único a disciplinar as crianças Curiosamente a mãe de Emma disse algo parecido que ela se sentia educando as crianças sozinha Da lista de hábitos e comportamentos ruins que eles queriam abandonar montamos uma relação de coisas que eles concordaram em começar a fazer 1 Em vez de culpar os outros assumir a responsabilidade por suas próprias ações e palavras Antes de dizer ou fazer alguma coisa perguntar Isso é legal Isso é importante Isso ajuda 2 Usar o trabalho em equipe para atingir objetivos em comum Se a casa precisa ser limpa cada membro da família tem uma tarefa apropriada para a idade Se a família está saindo para ir ao cinema escolher juntos qual filme ver ou se alternar na hora de escolher Pensar na família como um carro em que todos os pneus são integrados e trabalham juntos para ir onde é necessário nenhuma roda assume o controle nenhuma roda aguenta todo o peso 3 Ser consistente Se o horário de chegada já foi estabelecido a regra não pode mudar na última hora Em geral a regra na família de Emma era desistir de controlar o outro Tratei de Emma durante dois anos Nesse período ela completou o programa ambulatorial da clínica de transtorno alimentar Ela parou de jogar futebol uma coisa que seu pai a forçou a fazer quando ela entrou no ensino fundamental e voltou para a aula de balé e então começou outras aulas de dança salsa e dança do ventre A expressão criativa o prazer que ela tinha ao acompanhar a música e o ritmo levou a uma apreciação do seu corpo o que lhe deu uma autoimagem mais saudável Já no fim de nossa temporada juntas aos 16 anos ela conheceu um garoto na escola e se apaixonou Esse relacionamento lhe deu outra motivação para viver e ser saudável Quando ela parou a terapia comigo seu corpo havia voltado ao normal e seu cabelo estava forte e brilhante Ela tinha virado a versão atualizada do desenho da bailarina fazendo um rodopio No verão do primeiro ano de Emma no ensino médio sua família me convidou para um churrasco em sua casa Eles ofereceram um banquete maravilhoso costela feijão salada de batata à moda alemã pães caseiros Emma ficou ao lado do namorado encheu o prato de comida riu flertou Seus pais irmãos e amigos se espalharam satisfeitos pelo gramado e em cadeiras desmontáveis A comida já não era mais uma linguagem negativa na família Os pais de Emma embora não tivessem mudado completamente o tom de seu casamento ou da educação que davam aos filhos aprenderam a dar a Emma o que ela havia aprendido a dar a ela mesma o espaço e a confiança para encontrar o lado bom da vida Sem obrigação de viverem consumidos pelo medo do que podia acontecer com Emma eles se sentiam livres para viver a própria vida Agora uma vez por semana jogavam bridge à noite com um grupo de amigos e haviam deixado de lado boa parte da preocupação irritação e necessidade de controle que envenenara a vida da família por tanto tempo Fiquei aliviada e emocionada ao ver Emma voltar a ser Emma A jornada dela também me obrigou a refletir sobre mim mesma Edie Será que eu também estava fazendo uma jornada com minha própria bailarina interior Eu estava vivendo com sua curiosidade e com seu êxtase Na mesma época que Emma parou de fazer terapia minha primeira neta Lindsey filha de Marianne começou a ter aulas de balé Marianne me enviou uma foto de Lindsey de tutu rosa com os fofos pezinhos rechonchudos enfiados num par de minissapatilhas rosadas Chorei ao ver a foto Lágrimas de alegria claro Contudo havia também uma dor no meu peito que tinha a ver com perda Eu podia imaginar a vida de Lindsey florescendo a partir daquele momento Suas apresentações e recitais ela com certeza continuaria a estudar balé e dançaria O quebranozes todos os invernos de sua infância e adolescência e a felicidade que senti prevendo tudo que ela aguardaria com ansiedade não podia ser desvinculada da tristeza que eu sentia pela minha própria vida interrompida Quando nos entristecemos não é apenas pelo que aconteceu mas também pelo que não aconteceu Guardei um ano de horror dentro de mim Guardei em um lugar vazio e desocupado a imensa escuridão da vida que nunca aconteceria Suportei o trauma e a ausência pois não podia abrir mão de nenhuma parte de minha verdade ou mantêla com facilidade Encontrei outra pessoa parecida comigo a professora Agnes uma mulher que conheci em um spa em Utah onde fiz uma palestra para sobreviventes de câncer de mama sobre a importância do autocuidado na promoção da cura Ela era jovem estava com 40 e poucos anos mantinha o cabelo preto preso num coque baixo e usava um vestido tipo bata de cor neutra abotoado até o pescoço Se ela não fosse a primeira da fila de candidatas para uma sessão individual em meu quarto de hotel depois da palestra talvez eu não a tivesse notado Discreta mesmo quando estava na minha frente seu corpo mal era visível sob as roupas Desculpe tenho certeza de que existem outras pessoas que merecem mais o seu tempo disse ela quando abri a porta para convidála a entrar Eu a acompanhei até a cadeira perto da janela e ofereci um copo de água Ela parecia constrangida com as minhas pequenas gentilezas Sentouse bem na ponta da cadeira e segurou com uma postura rígida o copo de água como se tomar um gole fosse uma imposição na minha hospitalidade Eu realmente não preciso de uma hora inteira Tenho apenas uma pergunta rápida Sim querida Digame em que posso ser útil Ela tinha ficado interessada em algo que eu dissera na palestra Eu havia compartilhado um velho ditado húngaro que aprendi quando menina Não guarde a raiva em seu peito Dei um exemplo de convicções e sentimentos de autoencarceramento que mantive ao longo da vida a crença de que eu tinha que ser aprovada pelos outros e de que nada do que eu fizesse seria bom o suficiente para me tornar digna de ser amada E convidei as mulheres da plateia a se perguntarem Que sentimento ou crença está me prendendo Estou disposta a me livrar deste sentimento ou crença Agnes agora me pergunta Como sei se há alguma coisa me atrapalhando Essa é uma ótima pergunta Quando falamos sobre liberdade não há uma resposta que satisfaça todo mundo Você tem algum palpite Seu instinto lhe diz que há algo internamente tentando atrair sua atenção É um sonho Ela contou que desde o diagnóstico de câncer que recebera havia alguns anos e mesmo naquele momento que a doença estava em remissão tinha o mesmo sonho Nele ela está se preparando para realizar uma cirurgia Ela veste a bata azul coloca a máscara no rosto prende o cabelo comprido dentro de uma touca descartável e diante de uma pia lava as mãos repetidas vezes Quem é a paciente Não tenho certeza São pessoas diferentes Às vezes é meu filho às vezes é meu marido minha filha ou alguém do passado Por que você está realizando a cirurgia Qual é o diagnóstico do paciente Não sei Acho que muda Como você se sente quando está realizando a cirurgia Como se minhas mãos estivessem pegando fogo E como você se sente quando acorda Você se sente energizada ou cansada Depende Às vezes quero voltar a dormir para poder continuar trabalhando a cirurgia ainda não terminou Às vezes eu me sinto triste e cansada como se fosse um procedimento inútil O que você acha que esse sonho quer dizer Eu pensei em fazer Medicina mas tivemos que pagar o mestrado em Administração de meu marido então vieram os filhos e depois o câncer Nunca era a hora certa É por isso que eu queria falar com você Você acha que estou tendo esses sonhos porque devo fazer a faculdade de Medicina agora nessa fase tão tardia da vida Ou você acha que eu estou tendo esse sonho porque é hora de finalmente esquecer a fantasia de me tornar médica O que a atrai na medicina Ela pensou antes de responder Ajudar as pessoas mas também descobrir o que realmente está acontecendo descobrir a verdade o que está sob a superfície e resolver o problema A vida não é perfeita nem a medicina Como você sabe as doenças podem ser difíceis de tratar Dor cirurgia tratamentos mudanças físicas alterações de humor Não há garantia de recuperação O que a ajudou a viver com câncer Que verdades ou convicções você está usando para guiála ao longo da doença Não ser um peso Não quero que o meu sofrimento magoe ninguém mais Como você gostaria de ser lembrada Seus olhos acinzentados claros se encheram de lágrimas Como uma pessoa boa O que boa significa para você Generosa tranquila desprendida que faz o que é certo Uma pessoa boa pode reclamar Ou ficar zangada Esses não são os meus valores Ela me lembrou de mim mesma antes do veterano paraplégico provocar um encontro com a minha própria raiva A raiva não é um valor eu disse a Agnes É um sentimento Não significa que você é uma pessoa má Significa apenas que está viva Ela parecia cética Eu gostaria que você fizesse um exercício Você vai se virar do avesso Seja o que for que geralmente guarda para si vai botar para fora e tudo o que geralmente bota pra fora vai engolir Peguei um bloco oferecido pelo hotel e dei a ela com uma caneta Cada pessoa em sua família nuclear ganha uma frase Quero que escreva algo que jamais disse a essa pessoa Pode ser um desejo ou um segredo ou um arrependimento pode ser um detalhe como Eu gostaria que você colocasse suas meias sujas na máquina de lavar A única regra é que seja algo que você nunca disse em voz alta Ela deu um meio sorriso nervoso Você vai realmente me obrigar a dizer essas coisas O que você vai fazer com elas é decisão sua Você pode rasgar as folhas em pedacinhos e jogar tudo no vaso sanitário ou tocar fogo nelas Só quero que você coloque essas palavras para fora de seu corpo e as anote Ela ficou sentada em silêncio por alguns minutos e depois começou a escrever Várias vezes ela riscou alguma coisa Por fim levantou os olhos Como você se sente Um pouco tonta Confusa Sim Então está na hora de você se preencher novamente mas agora com as coisas que você geralmente dá às outras pessoas Recoloque internamente todo esse amor essa proteção e esse cuidado Pedi que Agnes se imaginasse diminuindo de tamanho ficando tão pequena a ponto de poder entrar pelo próprio ouvido Pedi que rastejasse pelo canal auditivo e descesse pela garganta e pelo esôfago até chegar ao estômago Enquanto ela viajava por dentro do próprio corpo pedi que encostasse suas pequenas mãos com muito amor em cada parte por onde passasse Nos pulmões no coração na coluna e ao longo de cada perna e braço Orientei que acariciasse cada órgão músculo osso e veia com mãos acolhedoras Leve amor a todos os lugares Seja sua própria provedora sua estimuladora especial disse eu Demorou um pouco para ela se acostumar e permitir que sua atenção se afastasse da experiência superficial Agnes ficou se mexendo na cadeira tirando uma mecha de cabelo da testa pigarreando mas de repente sua respiração tornouse mais profunda e lenta e o corpo ficou imóvel Bastante relaxada enquanto se aventurava internamente seu rosto parecia tranquilo Antes de eu orientála a sair pelo canal auditivo perguntei se havia alguma coisa que ela queria dizer sobre o que tinha sentido ou descoberto lá dentro Achei que seria muito escuro aqui dentro explicou ela Mas há muita luz Alguns meses depois Agnes me telefonou e contou novidades trágicas o câncer de mama já não estava em remissão Ele retornara e estava se espalhando rapidamente Ela disse Não sei quanto tempo eu tenho Agnes contou que planejava fazer o exercício de virar do avesso para extravasar a raiva e o medo inevitável que estava sentindo e para se preencher de amor e luz Ela disse que paradoxalmente quanto mais honesta era com a família sobre seus sentimentos mais negativos mais grata se sentia Ao marido disse como se sentia ressentida pelo fato de a carreira dele ter sido prioritária Falar com ele abertamente facilitou Agnes a reconhecer que ter mantido esse sentimento não ajudou ninguém e também descobrir que podia ver com mais nitidez todas as maneiras com que o marido a havia apoiado ao longo do casamento Ela entendeu que podia perdoálo Com o filho adolescente ela não escondeu seus medos sobre a morte tampouco garantiu que a proximidade da morte não deixava espaço para dúvidas Conversou de maneira franca sobre suas incertezas e disse a ele que às vezes simplesmente não sabemos Para a filha que era mais nova e ainda estava no ensino fundamental ela demonstrou o quanto estava zangada com os momentos que perderia como conhecer os primeiros namorados da jovem vêla abrindo as cartas de aceitação nas faculdades e ajudála a escolher o vestido de noiva Ela não reprimiu a raiva como uma emoção inaceitável Ao contrário descobriu o que havia por baixo dela assim como a profundidade e a urgência de seu amor Quando o marido de Agnes me telefonou para contar que ela tinha morrido ele disse que nunca superaria a dor mas que sua morte fora pacífica A qualidade do amor nas suas relações familiares se fortalecera nos últimos meses de vida de Agnes Ela tinha ensinado uma forma mais verdadeira de eles se relacionarem Depois que desliguei o telefone chorei Por culpa de ninguém uma pessoa linda tinha ido embora cedo demais Isso não era justo Era cruel E isso me fez pensar sobre minha própria mortalidade Se eu morresse amanhã morreria em paz Eu tinha realmente aprendido o que Agnes descobrira Encontrara luz dentro de minha própria escuridão Emma me ajudou a questionar como eu estava me relacionando com meu passado Agnes me ajudou a confrontar como eu estava me relacionando com meu presente E Jason Fuller o capitão do exército catatônico que veio ao meu consultório pela primeira vez numa tarde quente de 1980 que permaneceu imóvel e silencioso por longos minutos no sofá branco que obedeceu a ordem que eu finalmente lhe dei de me acompanhar ao parque aonde eu levaria meu cachorro para passear me ensinou como enfrentar uma decisão que determinaria o meu futuro O que aprendi com ele naquele dia afetaria a qualidade da minha vida em todos os anos que eu ainda teria e a qualidade do legado que escolhi passar para meus filhos netos e bisnetos À medida que caminhamos pelo parque o modo de andar de Jason desacelerou Da mesma forma seu rosto relaxou e cada passo trazia mais cor e suavidade Ele parecia mais jovem de repente menos vazio Ainda assim não falava Não planejei o que aconteceria quando voltássemos para o consultório Simplesmente nos mantive em movimento andando e respirando Cada minuto que Jason passava comigo indicava que ele sentindose suficientemente seguro poderia ser alcançado Depois de uma caminhada lenta pelo parque voltamos para o meu consultório Tomei água e ofereci um copo a ele O que viesse a acontecer eu sabia que não poderia ser apressado Eu tinha de fornecer um lugar de confiança absoluta onde Jason pudesse me contar qualquer coisa qualquer sentimento onde ele soubesse que estava seguro e que não seria julgado Ele se sentou novamente no sofá de frente para mim e eu me inclinei em sua direção Como mantêlo aqui comigo Não apenas fisicamente mas pronto para se abrir para se descobrir Juntos tínhamos que encontrar uma maneira de caminhar na direção da compreensão e da cura deixar as emoções e situações que o levaram à catatonia fluírem Para guiálo até o bemestar eu não podia forçálo a falar Precisava acompanhar seu atual estado de espírito suas escolhas e condições atuais permanecer aberta às oportunidades de revelação e mudança Gostaria de saber se você pode me ajudar disse eu finalmente Este é o tipo de abordagem que às vezes uso com um paciente relutante difícil Tiro a atenção do problema do paciente e me torno a pessoa com o problema Apelo para a compaixão do paciente Eu queria que Jason se visse como quem tinha força e possibilidade de oferecer soluções enquanto eu me mostrava como uma pessoa curiosa e meio desesperada pedindo ajuda Realmente quero saber por que você deseja passar o seu tempo aqui comigo Você é jovem é um soldado Eu sou simplesmente uma avó Você poderia me ajudar Ele começou a falar mas então sua garganta se fechou por causa da emoção e ele balançou a cabeça Como eu poderia ajudálo a conviver com seu tumulto interior ou exterior existente sem fugir ou se fechar Me pergunto se você poderia me ajudar a entender um pouco melhor como eu posso lhe ser útil Eu gostaria de ser a sua caixa de ressonância Você me ajudaria um pouco por favor Os olhos dele se fecharam como se ele estivesse reagindo a uma luz brilhante Ou reprimindo lágrimas Minha esposa disse ele finalmente com a garganta se fechando novamente depois de falar Não perguntei de que forma sua esposa o preocupava Não perguntei sobre os acontecimentos Segui na direção do sentimento em suas palavras Eu queria que ele me levasse diretamente profundamente à verdade em seu coração Eu queria que ele fosse a pessoa que eu achava que ele era capaz de ser a pessoa que poderia sair do entorpecimento e sentir Você não pode curar o que não pode sentir Aprendi isso da maneira mais difícil depois de décadas optando por ficar travada e entorpecida Como Jason eu tinha engavetado os meus sentimentos colocado uma máscara O que havia sob a máscara de Jason de sua mudez Perda Medo Parece que você está triste por causa de alguma coisa falei Eu estava tentando adivinhar Ou estava certa ou ele me corrigiria Não estou triste murmurou ele Estou zangado Muito zangado Eu poderia matála Sua esposa Aquela vaca está me traindo Enfim A verdade apareceu Era um começo Conte mais pedi A esposa estava tendo um caso ele me contou Seu melhor amigo o avisara Ele não conseguia acreditar que não havia percebido os sinais Ai meu Deus exclamou ele Ai meu Deus ai meu Deus Ele se levantou Começou a andar de um lado para outro Chutou o sofá Ele tinha se libertado da catatonia e agora estava se mostrando ensandecido agressivo Socou a parede até parar de tanta dor Era como se um interruptor tivesse sido acionado e toda a sua emoção emergisse como um facho de luz vindo de um holofote Ele não estava mais isolado e contido Estava agressivo Vulcânico Quando ele se mostrou desprotegido diante de tudo o que dói meu papel mudou Eu o guiei de volta aos seus sentimentos Devia ajudálo a sentir sem se afogar nos sentimentos sem se perder em sua intensidade Antes de eu poder dizer uma palavra ele ficou no meio da sala e gritou Não posso aceitar isso Vou matála Vou matar os dois Você está tão louco que poderia matála Sim Vou matar aquela vaca Vou fazer isso agora Olha só o que eu tenho Ele não estava exagerando Na verdade estava sendo bastante literal Tirou uma arma de baixo do cinto Vou matála agora Eu devia ter chamado a polícia Minha intuição quando Jason entrou pela porta não tinha sido um alarme falso Agora talvez fosse tarde demais Eu não sabia se Jason e a esposa tinham filhos mas o que imaginei quando Jason exibiu a arma foi o choro de crianças no funeral da mãe Jason atrás das grades as crianças perdendo ambos os pais no calor do impulso de um momento de vingança Não chamei a polícia Não chamei sequer minha assistente para avisála de que eu poderia precisar de ajuda Não havia tempo Não devia interrompêlo Eu ia acompanhar o movimento de sua intenção até a consequência E se você matar agora perguntei Vou fazer isso O que acontecerá Ela merece Ela sabe o que a espera Ela vai lamentar cada mentira que me contou na vida O que acontecerá com você se matar sua esposa Não me importa Ele estava apontando a arma para mim bem para o meu peito segurandoa com as duas mãos seu dedo no gatilho Eu era um alvo Ele podia descarregar sua raiva em mim Puxar o gatilho por engano atirar Não havia tempo para ter medo Seus filhos se importam Eu estava agindo por instinto Não fale nos meus filhos sibilou Jason Ele baixou a arma por um segundo Se puxasse o gatilho agora ele atingiria meu braço a cadeira não o meu coração Você ama seus filhos perguntei A raiva apesar de intensa nunca é a emoção mais importante Ela é apenas o limite externo a fina camada da superfície exposta de um sentimento bem mais forte O verdadeiro sentimento que geralmente está disfarçado sob a máscara de raiva é o medo Não é possível sentir amor e medo ao mesmo tempo Se eu pudesse apelar para o coração de Jason se eu conseguisse fazêlo sentir amor por pelo menos um segundo teria tempo suficiente para interromper o sinal de medo que estava prestes a se tornar violento Sua fúria já estava pausada Você ama seus filhos repeti Jason não respondeu Era como se ele estivesse preso na encruzilhada dos próprios sentimentos contraditórios Eu tenho três filhos falei Duas meninas e um menino E você Dois disse ele Uma menina e um menino Ele fez que sim com a cabeça Conteme sobre seu filho pedi Alguma coisa aconteceu com Jason Um sentimento novo que vi passar pelo rosto dele Ele se parece comigo disse Jason Tal pai tal filho Os olhos dele já não estavam mais focados em mim ou na arma seu olhar estava em outro lugar Ainda não era possível saber o que era esse sentimento novo mas dava para sentir que algo tinha mudado Segui o fio da meada Você quer que seu filho seja como você perguntei Não respondeu ele Por Deus não Por que não Ele fez que não com a cabeça Não estava querendo ir aonde eu o estava levando O que você quer perguntei baixinho Essa é uma pergunta que pode ser assustadora de responder uma pergunta que pode mudar sua vida Não consigo aceitar isso Não quero me sentir assim Você quer parar de sofrer Quero que aquela vaca pague Não vou deixar que ela me faça de bobo ele levantou a arma Você vai retomar o controle sobre sua vida Pode ter certeza que sim Agora eu estava suando Só eu poderia ajudálo a baixar a arma Não havia um roteiro a seguir Ela falhou com você Mais isso acaba agora Você vai se proteger Isso mesmo Você vai mostrar a seu filho como lidar com as coisas Como ser um homem Vou mostrar e ele como não deixar que outras pessoas o magoem Matando a mãe dele Jason ficou paralisado Se você matar a mãe dele será que não estará magoando seu filho Jason olhou para a arma em sua mão Nas consultas futuras ele acabou contando o que passou pela cabeça dele naquele momento Ele me contou sobre o pai um homem violento que o maltratava às vezes com palavras às vezes com os punhos e que é isso que um homem faz um homem é invulnerável um homem não chora um homem está no controle um homem dá as ordens Jason me contou que sempre quis ser um pai melhor do que o que teve mas não sabia como Ele não sabia como ensinar e orientar os filhos sem intimidálos Quando lhe pedi que refletisse sobre como sua escolha em buscar vingança afetaria o filho ele se viu subitamente obrigado a procurar uma possibilidade que até aquele momento não tinha conseguido considerar Um modo de vida que não perpetuasse a violência e a insegurança e que o levasse junto com o filho não ao encarceramento sedutor da vingança mas ao céu amplo e livre de seu potencial Se entendi alguma coisa sobre aquela tarde sobre minha vida inteira é que às vezes os piores momentos de nossas vidas aqueles que nos arrebatam em uma teia de desejos horrendos que ameaçam nos desgastar com a absoluta impossibilidade oferecida pelo sofrimento que devemos suportar são de fato os momentos que nos levam a entender o nosso valor É como se tomássemos consciência de nós mesmos como uma ponte entre tudo o que foi e será Ficamos cientes de tudo o que recebemos e do que podemos escolher perpetuar ou não É como uma vertigem que estimula e aterroriza é como o passado e o futuro que nos rodeiam como um cânion imenso porém transponível Pequenos que somos diante do grande esquema do universo e do tempo cada um de nós é um mecanismo que mantém a roda girando E o que vamos movimentar com a roda de nossa própria vida Vamos continuar apertando o mesmo botão da perda e do arrependimento Vamos mais uma vez nos comprometer e reviver todas as dores do passado Vamos abandonar as pessoas que amamos como resultado de nosso próprio abandono Vamos fazer nossas crianças carregarem o bastão de nossas perdas Ou vamos tirar o melhor do que conhecemos e deixar uma nova colheita florescer no campo de nossa vida Ao desejar vingança empunhar uma arma e ver a si mesmo no rosto do filho Jason foi subitamente capaz de perceber as escolhas disponíveis para ele Ele podia ter escolhido matar ou amar Eliminar ou perdoar Enfrentar a dor ou mais uma vez transmitir a dor Ele abaixou a arma Agora chorava soluçando como se ondas de tristeza quebrassem sobre o seu corpo Ele não conseguia suportar a imensidão do sentimento Ele caiu de joelhos abaixou a cabeça Quase dava para ver os diferentes sentimentos chegando a ele em ondas a dor a vergonha o orgulho ferido a confiança destruída a solidão e a imagem do homem que ele não podia ser e que nunca seria Ele não podia ser o homem que nunca perdeu nada Ele seria sempre o homem que foi espancado e humilhado pelo pai quando era jovem e que foi traído pela esposa Assim como eu sempre serei a mulher cujos pais foram assassinados com gás e tiveram os corpos queimados e transformados em fumaça Jason e eu sempre seremos o que todo mundo é gente que suportará o sofrimento Não podemos apagar o sofrimento mas somos livres para aceitar quem somos e o que fizeram conosco e então seguir em frente Jason se ajoelhou e chorou Eu me juntei a ele no chão As pessoas que amamos e em quem confiamos desapareceram ou nos decepcionaram Ele precisava ser confortado Eu o abracei Puxeio para perto do meu peito e ele desabou em meu colo Eu o confortei e nós choramos até que nossas lágrimas ensoparam a minha blusa de seda Antes de Jason sair de meu consultório exigi que ele deixasse a arma comigo Fiquei com a arma durante anos a ponto de esquecer que ela estava comigo Ao preparar a minha mudança para San Diego descobri a arma ainda carregada na gaveta de minha escrivaninha um lembrete da volatilidade e da dor que nós muitas vezes escolhemos esconder o potencial para o dano que persiste até que a enfrentamos conscientemente e o desmontamos Você está bem para ir embora agora perguntei Você está bem para ir para casa Não tenho certeza Vai ser desconfortável para você ficar sem a arma Você tem algum outro lugar para ir caso a raiva volte Se tiver vontade de machucar ou matar alguém Ele disse que podia ir para a casa do amigo que tinha lhe contado sobre a traição e que o aconselhou a vir me ver Precisamos combinar o que você dirá à sua esposa Elaboramos um roteiro Ele o anotou Ele diria a ela Estou muito triste e chateado Espero que encontremos tempo para conversar sobre isso hoje à noite Ele não teve permissão para falar mais nada até que estivessem sozinhos e somente se conseguisse se comunicar com palavras em vez de com violência Era para ele me ligar imediatamente caso se sentisse incapaz de ir para casa Se os sentimentos homicidas voltassem era para ele encontrar um lugar seguro para sentar ou fazer uma caminhada Feche a porta ou saia Seja você mesmo Respire respire e respire Os sentimentos passarão Prometa que me ligará se começar a perder o controle Retirese da situação fique seguro e me ligue Ele recomeçou a chorar Ninguém nunca se preocupou comigo como você está se preocupando Vamos formar uma boa equipe Sei que você não vai me decepcionar Jason voltou ao meu consultório dois dias depois e demos início a uma relação terapêutica que duraria cinco anos Mas antes de saber como a história dele acabaria eu tinha o meu próprio momento de decisão para enfrentar Assim que Jason saiu guardei a arma e me sentei na poltrona respirando fundo para lentamente recuperar a tranquilidade Aproveitei para olhar a correspondência que minha assistente entregara pouco antes da inesperada chegada de Jason Nela encontrei outra carta que mudou o curso da minha vida Era do capelão do exército americano David Woehr excolega em William Beaumont que estava dirigindo o Centro de Pesquisas Religiosas em Munique na Alemanha Lá ele era responsável pelo treinamento clínico de todos os capelães do exército dos Estados Unidos que atuavam na Europa A carta era um convite para fazer uma palestra para seiscentos capelães em um workshop no mês seguinte Em qualquer outra circunstância eu teria aceitado e ficado honrada e agradecida por ser útil Por causa de minha experiência clínica em William Beaumont e de meu sucesso no tratamento de pessoal da ativa e de combatentes veteranos fui convidada várias vezes para dar palestras para grandes audiências de militares e sempre senti que não era apenas uma honra mas também uma obrigação moral como exprisioneira de guerra e como pessoa libertada por soldados norteamericanos Mas o workshop de Dave seria na Alemanha e não em qualquer lugar da Alemanha Em Berchtesgaden o antigo retiro de Hitler nas montanhas da Baviera C A P Í T U L O 1 7 Então Hitler ganhou Não é o ar gelado que sopra do arcondicionado de meu consultório que me faz tremer Logo estarei fazendo 53 anos Não sou mais uma jovem mãe órfã fugindo da Europa arrasada Não sou mais a imigrante se escondendo de seu passado Agora sou a Dra Edith Eva Eger Eu sobrevivi Eu me esforcei para me curar Uso o que aprendi com meu passado traumático para ajudar os outros a se curarem Muitas vezes sou chamada por organizações de serviço social e de grupos militares para tratar pacientes com transtorno de estresse póstraumático Fui longe desde que fugi para os Estados Unidos Mas não voltei à Alemanha desde a guerra Naquela noite para me distrair da preocupação sobre como Jason estava lidando ao confrontarse com a esposa e para aliviar a minha própria indecisão ligo para Marianne em San Diego e pergunto o que ela acha que eu deveria fazer sobre Berchtesgaden Agora ela é mãe e psicóloga Nós trocamos informações com frequência sobre os pacientes mais desafiadores Assim como foi para Jason nos longos momentos em que ele apontou a arma para mim a decisão agora tem muito a ver com os meus filhos e com o tipo de ferida que carregarão com eles depois que eu morrer uma ferida curada ou uma ferida aberta Não sei mamãe diz Marianne Quero dizer para você ir Você sobreviveu e agora pode voltar e contar a sua história Isso é uma vitória e tanto Mas você se lembra daquela família dinamarquesa que é amiga da família que me hospedou nos tempos da faculdade Eles voltaram a Auschwitz achando que isso lhes traria paz mas apenas reacendeu o trauma Foi muito estressante Os dois sofreram ataques cardíacos quando voltaram para casa Eles morreram mamãe Relembro a ela que Berchtesgaden não é Auschwitz Estarei mais na geografia do passado de Hitler do que na minha embora até trivialidades cotidianas em El Paso possam despertar flashbacks Escuto sirenes e fico gelada vejo arame farpado em torno de um canteiro de obras e abandono o presente e começo a enxergar corpos azuis pendurados na cerca e fico paralisada de medo e lutando pela minha vida Se o dia a dia pode trazer de volta meu trauma como seria estar cercada de pessoas falando alemão Ou imaginar que estou entre antigos membros da Juventude Hitlerista ou ainda entrar na mesma sala onde Hitler e seus conselheiros estiveram Se você acha que há algum ganho vá Estarei do seu lado mas tem que valer a pena Afinal você não tem que provar nada para ninguém afirma Marianne Quando ela fala isso o alívio é imediato Obrigada Marchuka Agora me sinto segura Estou feliz Fiz o meu trabalho Amadureci Posso relaxar agora Posso terminar Posso dizer que estou honrada com o convite mas que é muito doloroso aceitar Dave entenderá Mas quando conto a Béla que decidi recusar o convite ele segura o meu ombro Se você não for à Alemanha então Hitler terá ganhado a guerra diz Não é o que eu quero ouvir Sintome como se tivesse sido atingida por um soco Sou obrigada a admitir que Béla tem razão num ponto é mais fácil colocar a culpa em alguém ou em alguma outra coisa por sua dor do que assumir a responsabilidade para acabar com a própria vitimização Nosso casamento me ensinou que todas as vezes que deixei minha raiva ou frustração desviar minha atenção do trabalho ou de meu crescimento foi mais fácil culpar Béla pela minha infelicidade do que assumir a minha responsabilidade A maioria de nós quer um ditador ainda que seja um benevolente para poder botar a culpa e dizer Você me obrigou a fazer isso Não tenho culpa Mas não podemos passar a vida debaixo do guardachuva de outra pessoa e depois reclamar que estamos nos molhando Uma boa definição de vítima é quando a pessoa mantém o foco longe dela ou quando busca alguém para culpar pelas circunstâncias atuais ou para determinar seu propósito seu destino ou seu valor E é por isso que Béla diz que se eu não for a Berchtesgaden então Hitler terá ganhado O que ele quer dizer é que permaneço na gangorra com o meu passado Enquanto eu puder colocar Hitler ou Mengele ou a ferida exposta da minha perda do outro lado da gangorra então de alguma forma estou absolvida tenho sempre uma desculpa É por isso que estou ansiosa E triste É por isso que não posso me arriscar a ir à Alemanha Não é errado me sentir ansiosa triste e amedrontada Não é que não exista um trauma real no âmago de minha vida muito menos que Hitler e Mengele e todos os outros perpetradores de violências ou crueldades não mereçam ser responsabilizados pelos danos que causaram Mas o fato é que se eu continuar nessa gangorra estarei culpando o passado pelo que escolhi fazer agora Há muito tempo o dedo de Mengele decidiu meu destino Ele decidiu que minha mãe morreria e que eu e Magda viveríamos Em cada fila de seleção o que estava em jogo era a vida e a morte a escolha nunca era minha Mesmo assim na prisão no inferno eu podia escolher como reagir quais seriam as minhas ações meu discurso e o que guardar em minha mente Eu podia escolher se me encostava na cerca eletrificada se me recusava a sair da cama ou se lutava e vivia se pensava na voz de Eric e no strudel de minha mãe se pensava em Magda do meu lado se reconhecia tudo o que ainda tinha para viver mesmo entre o horror e a perda Já se passaram 35 anos desde que saí do inferno Os ataques de pânico vêm a qualquer hora do dia ou da noite eles podem me acometer tanto no antigo bunker de Hitler quanto na minha sala de estar porque meu pânico não é resultado de gatilhos puramente externos Ele é expressão das memórias e dos medos internalizados Se eu me mantiver exilada de uma parte específica do globo terrestre estou de fato dizendo que quero exilar a parte de mim que está com medo Talvez exista algo que eu possa aprender ao me aproximar dessa parte E sobre o meu legado Há poucas horas Jason enfrentou um momento de decisão em sua vida o momento em que segurou a arma mas não puxou o gatilho quando pensou no legado que queria deixar para seus filhos quando ele escolheu algo que não fosse a violência Que legado eu quero transmitir O que deixarei no mundo quando morrer Já escolhi abandonar os segredos a negação e a vergonha Mas fiz de fato as pazes com meu passado Há mais coisas para resolver de modo que eu não perpetue mais sofrimento Penso na minha avó que morreu dormindo Na minha mãe cuja tristeza por causa dessa perda súbita na infância a deixou marcada com fome e medo desde muito cedo e que passou para as próprias filhas uma vaga sensação de perda E o que eu passarei além de sua pele macia seu cabelo grosso seus olhos intensos além da dor e do sofrimento e da raiva de têla perdido tão cedo E se eu tiver que voltar ao local de meu trauma para interromper o ciclo para criar um tipo diferente de legado Aceito o convite para ir a Berchtesgaden C A P Í T U L O 1 8 A cama de Goebbels Por telefone o pastor e médico David Woehr me resumiu a programação de minha visita Vou falar para seiscentos capelães militares reunidos num retiro pastoral clínico no Centro de Recreação das Forças Armadas no hotel General Walker no alto das montanhas da Baviera O local funcionou como casa de hóspedes e ponto de encontro para os oficiais da SS de Hitler Béla e eu nos hospedamos nos arredores no hotel Zum Türken que já serviu como gabinete de Hitler e de diplomatas visitantes Foi ali que o primeiroministro inglês Neville Chamberlain ficou em 1938 quando se reuniu com Hitler e voltou para casa com notícias vitoriosas e tragicamente equivocadas de que tinha garantido paz para a nossa era e onde é provável que o próprio Adolf Eichmann tenha instruído Hitler sobre a Solução Final A uma pequena caminhada estava o Berghof ou Ninho da Águia antiga residência de Hitler Meu público era formado por profissionais que trabalhavam com cura Os capelães do exército atuam como provedores de saúde comportamental e também como conselheiros espirituais Dave me disse que pela primeira vez os capelães eram obrigados a receber um ano de educação clínica pastoral para complementar os estudos no seminário Eles precisavam de treinamento em Psicologia bem como em doutrina religiosa e Dave estava coordenando retiros de uma semana sobre Psicologia Clínica para os capelães baseados na Europa Eu faria a palestra inaugural Dave me contou mais sobre os capelães e os soldados que eles atendiam Não eram os soldados da minha juventude ou os soldados que eu estava acostumada a tratar no William Beaumont Eram soldados em tempo de paz soldados da Guerra Fria da guerra de bastidores Eles não viviam a violência diária No entanto estavam em alerta máximo mantendo a paz mas prontos para a guerra A maior parte dos soldados da Guerra Fria tinha como base os locais onde havia mísseis posicionados Esses mísseis ficavam montados em lançadores móveis escondidos em locais estratégicos Eles conviviam com a permanente ameaça de guerra e com as sirenes no meio da noite que podem sinalizar um alarme falso ou um ataque de verdade Como os chuveiros em Auschwitz Água ou gás Nunca sabíamos Os capelães para os quais eu ia falar tinham a responsabilidade de dar apoio às necessidades espirituais e psicológicas dos soldados que se esforçavam ao máximo para deter uma guerra total e se esforçavam ao máximo para estar preparados para o que quer que acontecesse O que eles precisam ouvir perguntei Sobre o que eu posso falar para ajudálos Esperança disse Dave Perdão Se os capelães não puderem falar sobre esse tipo de coisa se não entendermos isso não poderemos fazer nosso trabalho Por que eu Uma coisa é ouvir sobre esperança e perdão do púlpito ou de um especialista em religião explicou Dave Mas você é uma das poucas pessoas que podem falar sobre manter a esperança mesmo tendo perdido tudo quando estava passando fome e tendo sida deixada para morrer Não conheço ninguém mais com esse tipo de credibilidade Um mês depois ao seguir com Béla de trem de Berlim para Berchtesgaden eu me sinto a pessoa menos qualificada da Terra para falar sobre esperança e perdão Fecho os olhos e escuto o som dos meus pesadelos o giro constante da roda na estrada Vejo meus pais meu pai que se recusa a se barbear o olhar de minha mãe Béla segura minha mão e toca com o dedo a pulseira de ouro que ele me deu quando Marianne nasceu aquela que eu coloquei na fralda de Marianne quando fugimos de Prešov a pulseira que uso todos os dias Ela é um símbolo de triunfo Nós conseguimos Nós sobrevivemos Nós defendemos a vida Mas nem o consolo de Béla nem o contato do metal polido sobre a minha pele pode reduzir o terror crescente em minhas entranhas Dividimos a cabine do trem com um casal alemão mais ou menos da nossa idade Eles são gentis nos oferecem os doces que trouxeram a mulher elogia a minha roupa O que eles diriam se soubessem que aos 17 anos viajei sentada no teto de um trem alemão sob uma chuva de bombas como escudo humano em um vestido listrado fino forçada a proteger munições nazistas com minha vida Onde será que eles estavam enquanto eu tremia no teto do trem Onde eles estavam durante a guerra Eram as crianças que cuspiam em mim e em Magda quando passávamos pelas cidades alemãs Pertenciam à Juventude Hitlerista Será que eles pensam no passado ou estão em negação como eu fiquei tantos anos O terror em mim vira outra coisa um sentimento de fúria intensa e instável Lembro da raiva de Magda Depois da guerra eu vou matar uma mãe alemã Ela não podia apagar nossa perda mas em sua cabeça podia retaliar Às vezes eu compartilhava seu desejo de confronto mas não seu desejo de vingança Minha desolação se manifestou como um impulso suicida não homicida Mas agora a raiva cresce dentro de mim uma fúria de vendaval que ganha força e velocidade Estou sentada a centímetros de pessoas que podem ter sido antigos opressores Tenho medo do que posso fazer Béla sussurro acho que cheguei perto o suficiente Quero voltar para casa Você já teve medo antes diz ele Dê as boasvindas a ele Dê as boas vindas Béla está me lembrando de algo em que eu também acredito que este é um trabalho de cura Você nega o que o machuca o que teme Você evita essas coisas de todas as formas Então você encontra uma maneira de acolher e abraçar o que mais teme e pode finalmente relaxar Chegamos a Berchtesgaden e pegamos um transporte para o hotel Zum Türken que agora também é um museu Tento ignorar a história sinistra do lugar e elevo o pensamento para a grandiosidade da construção e para os picos das montanhas que nos cercam A cadeia rochosa coberta de neve me lembra as montanhas Tatra onde Béla e eu nos encontramos pela primeira vez quando ele mesmo relutante me acompanhou até o hospital de tuberculose Dentro do hotel Béla e eu demos boas risadas quando a recepcionista nos trata como Dr e Sra Eger É Dra Eger e senhor Eger explica Béla O hotel é anacrônico parece que viajamos em uma máquina do tempo Os quartos são decorados como se estivéssemos nos anos 1930 e 1940 com tapetes persas pesados e sem telefone Béla e eu estamos no quarto onde dormiu Joseph Goebbels o ministro da Propaganda de Hitler com as mesmas cama e mesinha de cabeceira e com os mesmos espelho e armário que um dia foram dele Parada na porta do quarto sinto que a minha paz interior está por um fio O que significa estar aqui agora Béla passa a mão pelo armário pela cabeceira da cama depois vai até a janela Será que a história está apertando o crânio dele como aperta o meu Agarro a cabeceira da cama para não cair de joelhos Béla se vira para mim dá uma piscada e começa a cantar É Primavera para Hitler e para a Alemanha canta ele A canção é do musical Os produtores de Mel Brooks A Alemanha é feliz e alegre Ele faz a coreografia de sapateado em frente à janela segurando uma bengala imaginária Vimos Os produtores juntos na estreia em 1968 um ano antes de nosso divórcio Fiquei sentada num teatro com centenas de pessoas rindo sendo que Béla ria mais alto que todos Eu não conseguia sequer dar um sorriso Intelectualmente entendo o propósito da sátira Sei que o riso pode ser estimulante que pode nos ajudar a atravessar tempos difíceis Eu sei que o riso pode curar mas ouvir essa música agora neste lugar é demais Estou furiosa com Béla menos por sua falta de tato e mais por sua capacidade de sair de uma situação angustiante com tanta rapidez e sucesso Preciso sair dali Saio para uma caminhada sozinha Logo na saída da recepção do hotel começa uma trilha que leva ao Ninho da Águia Não vou escolher esse caminho Não vou dar a Hitler a satisfação de conhecer sua casa sua existência Não estou presa ao passado Sigo um caminho diferente para outro pico em direção ao céu aberto Então paro Estou dando a um morto o poder de interferir em minhas próprias descobertas por toda a eternidade Não foi para isso que eu vim à Alemanha Para me aproximar do desconforto Para ver o que o passado ainda tem a me ensinar Caminho pela trilha de cascalho em direção às modestas ruínas da grande propriedade que um dia foi de Hitler encarapitada na beira de um precipício Agora tudo o que restou da casa é um velho muro de arrimo coberto de musgo pedaços de escombros e canos retorcidos no chão Olho para o vale como Hitler deve ter feito A casa de Hitler foi destruída Soldados americanos a queimaram nos últimos dias da guerra mas não antes de saquear a adega de vinhos e conhaques Eles se sentaram no terraço e levantaram suas taças com a casa atrás deles encoberta pelo fogo e pela fumaça A casa desapareceu mas e Hitler Será que ainda posso sentir a presença dele aqui Testo meu instinto em busca de alguma náusea e a espinha em busca de calafrios Escuto a voz dele a gravação ecoando seu ódio e seu implacável chamado para o mal Mas hoje está tranquilo por aqui Olho para as montanhas vejo as flores silvestres brotando graças aos primeiros filetes gelados da neve derretida dos picos ao redor Estou trilhando os mesmos caminhos por onde Hitler um dia passou mas ele não está aqui agora eu estou É primavera mas não para Hitler Para mim é A espessa crosta de neve silenciosa derreteu a tranquilidade do inverno cedeu à explosão de folhas novas e à torrente acidentada da água correndo rápido Por baixo das camadas da terrível tristeza que sempre carrego em mim outro sentimento brota É o primeiro filete derretido de uma neve há muito congelada Escorrendo montanha abaixo a água fala as câmaras do meu coração falam Estou viva o riacho gorgolejante fala Eu consegui Uma música triunfal me invade abrindo caminho para fora do meu coração para fora da minha boca e para o céu acima e para o vale abaixo Eu te liberto grito para aquela velha tristeza Eu te liberto Tempora mutantur et nos mutamur in illis digo para os capelães quando faço minha palestra na manhã seguinte É uma frase em latim que aprendi quando menina Os tempos estão mudando e nós estamos mudando junto Estamos sempre no processo de tornarse Peço que façam uma viagem comigo para quarenta anos antes para a mesma vila nas montanhas onde estamos agora talvez na mesma sala quando quinze pessoas muito educadas analisaram quantos seres humanos podiam incinerar em um forno de uma só vez Na história humana há a guerra digo Há a crueldade a violência o ódio mas nunca na história da humanidade houve uma aniquilação mais científica e sistemática de pessoas Sobrevivi aos terríveis campos de extermínio de Hitler Na noite passada dormi na cama de Joseph Goebbels As pessoas me perguntam como aprendi a superar o passado Superar Superar Não superei nada Cada surra cada bombardeio cada fila de seleção cada morte cada coluna de fumaça se elevando para o céu cada momento de terror em que achei que era o fim essas coisas vivem em mim em minhas memórias e em meus pesadelos O passado não desapareceu Não transcendeu nem foi extirpado Ele vive em mim O mesmo acontece com a perspectiva que ele me deu de que eu vivi para ver a libertação e para manter a esperança viva em meu coração Que eu vivi para ver a liberdade porque aprendi a perdoar Perdoar não é fácil eu digo a eles É mais fácil guardar rancor buscar a vingança Falo de meus companheiros sobreviventes dos homens e mulheres corajosos que conheci em Israel que pareciam magoados quando eu mencionava o perdão que insistiam que perdoar é desculpar ou esquecer Por que perdoar Isso não tira a responsabilidade de Hitler pelo que ele fez Conto sobre meu querido amigo Laci Gladstein Larry Gladstone e da única vez em todas essas décadas após a guerra em que ele falou explicitamente sobre o passado Foi durante meu divórcio quando ele sabia que o dinheiro era um problema para mim Ele me telefonou para dizer que conhecia um advogado que representava sobreviventes em casos de indenização Laci me estimulou a me apresentar como sobrevivente e reivindicar uma indenização Essa foi a escolha certa para muitos mas não para mim Parecia que o dinheiro estava manchado de sangue Como se fosse possível colocar um preço na vida de meus pais Senti que era uma forma de ficar acorrentada àqueles que tentaram nos destruir É muito fácil transformar nossa dor nosso passado numa prisão Na melhor das hipóteses a vingança é inútil Ela não muda o que foi feito conosco não apaga os erros que foram cometidos não traz os mortos de volta Na pior das hipóteses a vingança perpetua o ciclo de ódio Mantém o ódio circulando indefinidamente Quando buscamos vingança mesmo a vingança sem violência estamos revolvendo não evoluindo Quando cheguei ontem passou pela minha cabeça que minha presença aqui é um tipo saudável de vingança uma punição merecida um acerto de contas Então olhando para o precipício em Berghof percebi que a vingança não liberta Por isso fui ao local onde era a antiga casa de Hitler e o perdoei Isso não tem nada a ver com Hitler Foi algo que fiz para mim Um desapego uma libertação daquela parte de mim que passou a maior parte da vida investindo a energia mental e espiritual que mantinha Hitler preso Enquanto eu cultivei esse ódio fiquei presa junto com ele trancada em um passado destrutivo presa na minha dor Perdoar é sofrer pelo que aconteceu e pelo que não aconteceu e abrir mão da necessidade de um passado diferente Aceitar a vida como ela era e como ela é Naturalmente não estou dizendo que foi aceitável Hitler assassinar seis milhões de pessoas Simplesmente é preciso dizer que isso aconteceu e que não quero que esse fato destrua a vida que eu agarrei e lutei tanto para manter contra todas as probabilidades Os capelães se levantaram Eles me inundam com seus aplausos Fico em pé sob a luz do palco pensando que nunca me sentirei tão exultante tão livre Ainda não sei que ter perdoado Hitler não é a coisa mais difícil que farei na vida A pessoa mais difícil de perdoar é alguém que ainda preciso enfrentar eu mesma Não consigo dormir na última noite em Berchtesgaden Fico deitada acordada na cama Uma réstia de luz se infiltra por baixo da porta e posso ver o desenho de videiras no papel de parede antigo a maneira como elas se entrelaçam A maneira como sobem Tempora mutantur et nos mutamur in illis Se estou mudando o que sou nesse processo de transformação Descanso na incerteza da vigília Tento me abrir deixar a minha intuição falar Por alguma razão me lembro de uma história que ouvi sobre um garoto judeu muito talentoso um artista Recomendaram que fosse estudar arte em Viena Sem dinheiro para a viagem ele caminhou da Tchecoslováquia até a Áustria mas teve a inscrição nos testes negada por ser judeu Ele implorou Tinha vindo de tão longe a pé será que não podia ao menos fazer o teste Era pedir muito Deixaram que fizesse o exame e ele passou Era tão talentoso que lhe ofereceram uma vaga na escola apesar de sua ascendência Sentado ao seu lado para fazer as provas estava um garoto chamado Adolf Hitler que não foi aceito na escola Mas o garoto judeu foi E durante toda a sua vida esse homem que tinha deixado a Europa e morava em Los Angeles se sentiu culpado porque se Hitler não tivesse sido rejeitado se ele não tivesse perdido para um judeu ele talvez não tivesse sentido a necessidade de transformar os judeus em bodes expiatórios O Holocausto poderia não ter acontecido Como as crianças que sofrem abusos ou cujos pais se divorciam achamos um jeito de nos culparmos Culparse também magoa os outros não apenas nós mesmos Lembrome de um expaciente um homem e sua família dos quais tratei por um breve período pouco mais de um ano antes Eles se sentaram na minha frente como peças abandonadas de diferentes quebracabeças o coronel intimidador em seu uniforme cheio de condecorações a esposa loura silenciosa os ossos da saboneteira se projetando na blusa branca a filha adolescente com o cabelo pintado de preto bagunçado parecendo um ninho selvagem os olhos delineados também em preto um filho quieto de 8 anos com um livro de histórias em quadrinhos no colo O coronel apontou para a filha Olhe para ela É uma promíscua viciada em drogas não respeita as nossas regras responde com grosserias e não vem para casa na hora combinada Está ficando impossível viver com ela Nós ouvimos a sua versão disse eu Vamos ouvir a de Leah Como se estivesse provocando o pai ao ler um roteiro que confirmava cada uma das afirmações que ele fazia Leah começou uma história sobre o seu fim de semana Tinha feito sexo com o namorado em uma festa em que menores de idade beberam álcool e na qual ela também tomara um ácido Ela ficou fora a noite toda Parecia sentir prazer em descrever todos os detalhes A mãe piscou e mordiscou as unhas pintadas O rosto do pai ficou vermelho Ele se levantou de seu lugar e se debruçou sobre ela brandindo o punho Vê o que tenho que aguentar rugiu ele A filha percebia a raiva dele mas eu vi um homem prestes a ter um ataque cardíaco Vê o que tenho que aguentar disse Leah revirando os olhos Ele nem sequer tenta me entender Ele nunca me escuta só me diz o que fazer O irmão redobrou a atenção no gibi como se sua força de vontade pudesse tirálo da zona de guerra que sua família tinha se tornado e o colocasse no mundo de fantasia de seu livro onde a fronteira entre o bem e o mal eram claramente traçadas onde os mocinhos ganhavam no fim Ele falou o mínimo sobre as pessoas da família e ainda assim eu tinha um palpite de que era o único com as coisas mais importantes a dizer Eu avisei aos pais que passaria a próxima parte da sessão com eles sem os filhos na sala então levei Leah e o irmão para meu escritório ao lado onde distribuí canetas e papel para que desenhassem Dei aos dois uma missão algo que achei que poderia ajudálos a relaxar depois dos minutos tensos com os pais Pedi que fizessem um retrato da família mas sem usar pessoas Voltei para os pais O coronel estava gritando com a esposa Ela parecia estar definhando desaparecendo Fiquei preocupada com a possibilidade de aquela mulher estar nos primeiros estágios de um transtorno alimentar Se eu lhe fizesse uma pergunta direta ela a repassaria para o marido Cada membro da família estava na própria barricada Dava para comprovar a dor interior deles pela forma como se acusavam e se escondiam Mas ao tentar aproximálos das fontes de seu sofrimento eu os convidava apenas a abrir fogo ou recuar ainda mais Nós conversamos sobre o que você vê acontecer com seus filhos disse eu interrompendo o coronel E o que está acontecendo com você A mãe de Leah piscou para mim O pai dela me olhou com frieza O que vocês querem alcançar enquanto pais Ensinálos a serem fortes no mundo disse o coronel E como você está se saindo Minha filha é uma vadia e meu filho é um maricas O que você acha É nítido que o comportamento de sua filha assusta você Mas o que tem o seu filho Por que ele o decepciona Ele é um fraco Está sempre desistindo Você pode me dar um exemplo Quando jogamos basquete ele é um mau perdedor Nem sequer tentar ganhar Simplesmente desiste Ele é uma criança e bem menor do que você O que acontece se você deixálo vencer O que eu estaria ensinando a ele Que o mundo se curva para quem é molenga Existem maneiras de ensinar as crianças a irem mais longe a expandir suas capacidades com um empurrão suave não com um pontapé na bunda disse eu O coronel resmungou e eu continuei Como você quer que seus filhos o vejam Como alguém no comando Um herói Um líder Ele assentiu Como você acha que os seus filhos realmente o veem Eles acham que sou um fracote maldito Mais tarde na sessão reuni novamente a família e pedi que os filhos mostrassem os retratos que fizeram da família Leah tinha desenhado apenas um objeto uma enorme bomba explodindo no meio da página Seu irmão desenhou um leão feroz e três ratos encolhidos O rosto do coronel ficou vermelho novamente Sua esposa olhou para o próprio colo Ele gaguejou e olhou para o teto Conteme o que você está sentindo neste momento Eu ferrei com essa família não foi Eu meio que esperava nunca mais ver o coronel ou sua família novamente mas ele ligou na semana seguinte para marcar uma sessão particular Pedi que ele falasse mais sobre como se sentiu quando os filhos mostraram seus desenhos Se meus filhos têm medo de mim como vão enfrentar o mundo O que leva você a achar que eles não são capazes de se proteger Leah não consegue dizer não para meninos ou drogas Robbie não consegue dizer não para valentões E você É capaz de se proteger Ele estufou o peito de modo que as medalhas brilharam à luz do sol Você está olhando para a prova Não estou me referindo ao campo de batalha mas à sua casa Acho que você não entende a que pressão estou constantemente submetido O que é preciso para você se sentir seguro Segurança não é o problema Se não estou no controle as pessoas morrem É isso que segurança significa para você Se libertar do medo de que as pessoas venham a se ferir enquanto estão sob sua responsabilidade Não é apenas um medo Leveme para onde você está No que está pensando Acho que você não vai querer ouvir Não se preocupe comigo Você não entende Você está certo ninguém pode entender outra pessoa completamente Mas posso dizer que já fui prisioneira de guerra e seja o que for que você quiser me contar provavelmente já ouvi e vi coisa pior No mundo militar é matar ou morrer Então quando recebi a ordem não a questionei Onde você estava quando recebeu essa ordem Vietnã Você está dentro de algum lugar ou fora Em meu escritório na base aérea Observei sua linguagem corporal quando ele me levou para o passado Observei sua energia seu nível de agitação de modo a direcionar qualquer angústia que sinalizasse que estávamos indo rápido demais Ele tinha fechado os olhos Parecia estar entrando em transe Você está em pé ou sentado Estou sentado quando recebo a ligação Mas me levanto imediatamente Quem está ligando Meu comandante O que ele diz Que ele está colocando meus homens em uma missão de resgate na mata Por que você se levanta para ouvir a ordem Sinto calor Meu peito está apertado No que está pensando Que não é seguro Que vamos ser atacados Que precisamos de mais apoio aéreo caso estajamos indo para aquela parte da mata e eles não vão dar Você ficou zangado com isso Seus olhos se abriram É claro que estou zangado Eles nos mandam para lá falam um monte de bobagem sobre os Estados Unidos serem o exército mais forte do mundo e que os vietnamitas não têm a menor chance A guerra não era o que você esperava Eles mentiram para nós Você se sentiu traído Sim com certeza eu me senti traído O que aconteceu no dia em que você recebeu a ordem para enviar suas tropas em uma missão de resgate Era noite O que aconteceu naquela noite Foi uma emboscada Seus homens se feriram Preciso soletrar Eles morreram Morreu todo mundo naquela noite E fui eu quem os mandou para lá Eles confiaram em mim e eu os mandei para lá para morrer Guerra significa pessoas morrendo Sabe o que eu acho Morrer é fácil Eu tenho que viver cada dia pensando em todos aqueles pais enterrando seus filhos Você estava cumprindo uma ordem Mas eu sabia que era a decisão errada Eu sabia que aqueles rapazes precisavam de mais apoio aéreo e não tive coragem de pedir Do que você abriu mão para se tornar coronel O que você quer dizer Você escolheu ser soldado e um líder militar Do que você teve que abrir mão para chegar lá Tive que ficar muito tempo longe da minha família O que mais Quando você tem seis mil homens confiando suas vidas a você você não pode se dar ao luxo de ter medo Você teve que abrir mão de seus sentimentos Abrir mão de deixar os outros vêlos Ele fez que sim com a cabeça Você disse antes que morrer é fácil Você já desejou estar morto O tempo todo O que o impede Meus filhos Seu rosto se contorceu de angústia Mas eles me acham um monstro Estão melhor sem mim Você quer saber como eu vejo isso Acho que seus filhos ficariam muito melhor com você Com você o homem que estou começando a conhecer e a admirar O homem que pode se arriscar falando sobre seu medo O homem que tem coragem de se perdoar e se aceitar Ele ficou em silêncio Talvez aquele tenha sido o primeiro momento em que encontrou a possibilidade de se libertar da culpa que sentia por causa do passado Não posso ajudálo a voltar a tempo de salvar sua tropa Não posso garantir a segurança de seus filhos Mas posso ajudar a proteger uma pessoa você mesmo Ele olhou para mim Mas para se salvar você terá que abrir mão da imagem do que você acha que deveria ser Espero que isso funcione disse ele Pouco depois o coronel foi transferido e sua família deixou El Paso Não sei o que aconteceu com eles Espero que algo bom pois eu gostava muito deles Mas por que estou me lembrando deles agora O que tem a história deles a ver comigo Alguma coisa sobre como a culpa aprisionava o coronel chama a minha atenção Será que minha memória está me alertando sobre algo que já fiz ou para um trabalho que ainda tenho que fazer Cheguei tão longe desde que o soldado americano me resgatou da prisão em 1945 Retirei a minha máscara Aprendi a sentir a me expressar e a não reprimir os medos e o sofrimento Eu me esforcei para liberar e expressar a minha raiva Voltei aqui à antiga casa de meu opressor e até perdoei Hitler e o liberei para o universo mesmo que só por hoje Mas há um nó uma sombra que percorre as minhas entranhas e o meu coração uma rigidez na coluna um sentimento implacável de culpa Fui vítima não fui a agressora Quem eu acho que prejudiquei Outra paciente surge em meus pensamentos Aos 71 anos ela era uma crônica fonte de problemas para a família Tinha todos os sintomas de depressão clínica Dormia e comia demais e se isolava dos filhos e netos E quando realmente interagia com a família estava com tanta raiva que os netos tinham medo dela Seu filho um dia me abordou depois de uma palestra em sua cidade e perguntou se eu teria uma hora para encontrar a mãe Eu não sabia de que forma podia ser útil a ela em uma única visita rápida até que o homem revelou que como eu a mãe dele tinha perdido a própria mãe aos 16 anos Senti uma onda de compaixão por essa estranha Entendi que ela era a pessoa que eu podia ter me tornado que eu quase me tornei quando mergulhei tão fundo no sofrimento que me escondia das pessoas que mais me amavam A mulher Margaret veio ao meu quarto de hotel àquela tarde Ela estava vestida com esmero mas havia uma hostilidade que emanava dela como plumas Desabafou uma ladainha de reclamações sobre sua saúde sobre os membros da família a governanta o carteiro os vizinhos e até sobre a diretora da escola da sua rua Ela parecia encontrar injustiça e inconveniência em qualquer parte de sua vida A hora estava acabando e ela continuava tão presa nos pequenos desastres que não tínhamos tocado no que eu sabia ser sua dor maior Onde sua mãe está enterrada perguntei de repente Margaret recuou como se um dragão tivesse soltado uma labareda em seu rosto No cemitério respondeu ela por fim recomposta Onde é o cemitério Perto daqui Nesta cidade disse ela Sua mãe precisa de você agora Não dei chance a Margaret para recuar Chamamos um táxi Sentamos e observamos pela janela as ruas molhadas e engarrafadas Ela continuou criticando os outros motoristas a velocidade dos sinais de trânsito a qualidade das lojas e comércio por onde passávamos até mesmo a cor do guardachuva de uma pessoa Entramos pelos portões de ferro do cemitério As árvores eram frondosas e altas Uma rua estreita de paralelepípedos ligava o portão até as sepulturas A chuva caía Lá disse Margaret apontando para um grupo de lápides no alto de uma colina lamacenta Agora me diga em nome de Deus o que estamos fazendo aqui Você sabe disse eu mães não podem descansar em paz a não ser que saibam que as pessoas que deixaram para trás estão vivendo a vida em sua plenitude Tire os sapatos Tire as meias Fique descalça no túmulo de sua mãe Faça contato direto para que ela possa finalmente descansar em paz Margaret desceu do táxi Ficou parada na grama molhada pela chuva Dei um pouco de privacidade a ela Olhei para trás somente uma vez quando a vi agachada no chão segurando a lápide da mãe Não sei o que ela disse à mãe se é que disse alguma coisa Sei apenas que ela ficou com os pés descalços sobre o túmulo da mãe e que se conectou com sua pele nua a este local de perda e luto Quando voltou para o táxi ainda estava descalça Ela chorou um pouco e então ficou em silêncio Depois recebi uma linda carta do filho de Margaret Não sei o que você disse à minha mãe escreveu ele mas ela é agora uma pessoa diferente mais tranquila e alegre Foi um impulso uma experiência feliz Meu objetivo era ajudála a reformular sua experiência a reformular seu problema como uma oportunidade colocála na posição de ajudar a mãe e ao fazer isso se libertar e ajudar a si mesma Agora que estou de volta à Alemanha me passou pela cabeça que o mesmo princípio talvez funcione para mim Uma conexão da minha pele nua com o local da minha perda Contato e libertação Exorcismo húngaro Deitada na cama de Goebbels percebo que preciso fazer o que Margaret fez realizar o ritual de luto de que me esquivei a vida inteira Decido voltar a Auschwitz C A P Í T U L O 1 9 Deixe uma pedra Não consigo imaginar voltar ao inferno sem Magda Venha para Cracóvia hoje peço a Magda na manhã seguinte pelo telefone da recepção do hotel Por favor volte a Auschwitz comigo Eu não teria sobrevivido sem ela Não posso sobreviver a um retorno à nossa prisão a não ser com ela ao meu lado segurando a minha mão Sei que não é possível reviver o passado ser quem eu era abraçar minha mãe novamente mesmo por uma única vez Não existe nada capaz de mudar o passado de me fazer uma pessoa diferente de quem sou de mudar o que foi feito aos meus pais e a mim Não tem retorno Sei disso Mas não posso ignorar a sensação de que existe algo à minha espera na antiga prisão algo a ser recuperado Ou descoberto Uma parte de mim há muito perdida Que tipo de masoquista maluca você acha que eu sou pergunta Magda Por que eu voltaria lá Por que você voltaria É uma pergunta justa Estou apenas me punindo Reabrindo uma ferida Talvez eu me arrependa mas acho que vou me arrepender ainda mais se não voltar Não importa o que eu faça para tentar convencêla Magda se recusa Ela escolheu nunca voltar eu respeito sua decisão Mas minha escolha é diferente Béla e eu já tínhamos recebido um convite para visitar a família que hospedou Marianne em Copenhague quando viéssemos à Europa Por isso de Berchtesgaden seguimos para lá como planejado Viajamos para Salzburgo onde visitamos uma catedral construída sobre as ruínas de uma igreja romana Ela foi reconstruída três vezes somos informados a última depois que uma bomba destruiu a cúpula central durante a guerra Não há sinal da destruição Como nós diz Béla segurando minha mão De Salzburgo vamos a Viena pela mesma estrada que eu e Magda percorremos antes de ser libertadas Vejo as valas que acompanham as laterais da estrada e as imagino como um dia as vi transbordando de cadáveres Mas também consigo vêlas como são agora florescendo com a grama do verão Posso ver que o passado não mancha o presente e que o presente não diminui o passado O tempo é o meio O tempo é a faixa na qual viajamos O trem passa por Linz por Wels Sou a garota com a coluna travada que reaprende a escrever um G maiúsculo que reaprende a dançar Passamos a noite em Viena não muito longe do Hospital Rothschild onde moramos enquanto esperávamos por nossos vistos para os Estados Unidos e onde eu soube depois meu mentor Viktor Frankl foi chefe da Neurologia antes da guerra Na manhã seguinte embarcamos em outro trem rumo ao norte Acho que Béla imagina que o meu desejo de retornar a Auschwitz pode arrefecer mas em nossa segunda manhã em Copenhague eu pergunto a nossos amigos como chegar à embaixada polonesa Eles me advertem como já fez Marianne sobre os amigos sobreviventes que visitaram o campo e depois morreram Não passe pelo trauma novamente pedem eles Béla também parece preocupado Hitler não venceu relembro a ele Achei que a maior dificuldade seria estar em Auschwitz mas na embaixada polonesa somos informados de que diversas greves estão acontecendo em toda a Polônia que os soviéticos podem querer reprimir as manifestações e que por isso a embaixada foi aconselhada a parar de emitir vistos para ocidentais Béla está pronto para me consolar mas eu o evito Sinto a força de vontade que me levou até o carcereiro em Prešov com um anel de diamante na mão até o consultório de médico em Viena com o cunhado se passando por marido Cheguei tão longe na vida e na cura não posso ceder diante de um obstáculo agora Sou uma sobrevivente digo ao funcionário da embaixada Fui prisioneira em Auschwitz Meu pais e avós morreram lá Lutei muito para sobreviver Por favor não me faça esperar para voltar Não estou ciente de que em menos de um ano a relação entre os Estados Unidos e a Polônia vai se deteriorar e ficará congelada pelo restante da década que essa é na verdade a última chance que eu e Béla temos de ir juntos a Auschwitz Sei apenas que não posso permitir ter o visto recusado O funcionário me olha inexpressivo se afasta do balcão e depois volta Passaportes pede ele e carimba vistos de viagem válidos por uma semana em nossos passaportes americanos azuis Aproveite a Polônia Esse é o momento em que começo a ter medo No trem para Cracóvia tenho a sensação de que enfrento uma prova de fogo que estou atingindo o ponto em que vou derreter ou me queimar quando o medo sozinho pode me transformar em cinzas Isso é passageiro Tento negociar com a parte de mim que sente a perda de uma camada de pele a cada quilômetro Serei novamente um esqueleto quando chegar à Polônia Quero ser mais do que ossos Vamos descer na próxima parada digo a Béla Não é importante ir até Auschwitz Vamos embora para casa Edie diz ele você vai ficar bem É só um lugar Não pode machucar você Fico no trem nas paradas seguinte Mais uma parada depois outra passo por Berlim e por Poznań Penso no Dr Hans Selye um colega húngaro que disse que o estresse é a resposta do corpo a qualquer demanda por mudança Nossas respostas automáticas são lutar ou fugir mas em Auschwitz onde suportamos mais do que estresse onde vivemos em perigo desafiando a vida e a morte nunca sabendo o que aconteceria as opções de lutar ou fugir não existiam Eu teria sido baleada se tivesse reagido e eletrocutada se tentasse fugir Então aprendi a fluir aprendi a me manter alerta a desenvolver a única coisa que me restava o olhar interior para aquela parte de mim que nenhum nazista poderia matar Encontrar e me segurar em meu verdadeiro eu Talvez eu não esteja perdendo a pele Talvez eu esteja apenas me esticando para incorporar cada aspecto de quem sou de quem fui e de quem posso me tornar Quando nos curamos aceitamos nossas personalidades reais e possíveis Tive uma paciente obesa que era cruel com ela mesma toda vez que via o próprio reflexo ou que subia em uma balança Ela se chamava de vaca de nojenta Ela acreditava que tinha decepcionado o marido que envergonhava os filhos e que as pessoas que a amavam mereciam coisa melhor Para ser a pessoa que gostaria ela primeiramente tinha que gostar dela mesma do jeito que era Nós sentamos em meu consultório e eu pedi que ela escolhesse uma parte do corpo o dedo a barriga o pescoço ou o queixo e falasse sobre ela de uma forma carinhosa Ela se parece com isso a sensação é tal ela é bonita porque O começo foi constrangedor até mesmo doloroso pois ela tinha mais facilidade em se criticar do que olhar com carinho para o próprio corpo Fomos devagar e com cuidado Comecei a notar pequenas mudanças Ela veio me ver um dia usando um lindo cachecol novo Em outro tinha ido à manicure Depois contou que telefonara para a irmã de quem tinha se distanciado Em outra ocasião ela descobriu que adorava caminhar na trilha que circundava o parque onde a filha jogava futebol Como ela experimentou amar todas as partes dela mesma descobriu mais alegria e bemestar em sua vida Ela também começou a perder peso A libertação começa com a aceitação Para nos curarmos abraçamos a escuridão Caminhamos pela sombra do vale no caminho para a luz Trabalhei com um veterano de guerra do Vietnã que voltou para casa desesperado para assumir a vida que tinha antes da guerra Mas ele voltou com feridas físicas e psicológicas estava impotente e não conseguia arranjar um emprego A esposa o deixou Quando procurou minha ajuda estava perdido no caos do divórcio e no que para ele parecia a morte de sua sexualidade e de sua identidade Deilhe toda a minha compaixão mas ele estava zangado e preso na areia movediça de sua perda Eu me senti sem forças para ajudálo a sair dessa situação Quanto mais eu tentava amálo e tirálo do desespero mais fundo ele se enterrava Como último recurso decidi tentar a hipnoterapia Fiz uma regressão a fim de que ele voltasse à época da guerra quando era piloto de bombardeiro e estava no controle antes de voltar para casa e perder tudo Sob hipnose ele me disse No Vietnã eu podia beber o quanto quisesse podia trepar o quanto quisesse Ele ficou com o rosto vermelho e gritou E podia matar o quanto quisesse Na guerra ele não matava pessoas matava amarelos subhumanos Assim como os nazistas não matavam pessoas nos campos da morte eles erradicavam um câncer A guerra provocou sua lesão e mudou sua vida mas ainda assim ele sentia falta da guerra Ele sentia falta da sensação de poder que tinha ao enfrentar o inimigo de fazer parte de uma classe invulnerável acima de qualquer nacionalidade acima de qualquer raça Meu amor incondicional não fez qualquer efeito até eu lhe dar autorização para que expressasse a parte dele que estava sofrendo a parte que era ao mesmo tempo forte e sombria a parte que ele já não podia exprimir Não estou dizendo que ele precisava matar novamente para ficar inteiro Para descobrir como escapar da vitimização ele precisava aceitar sua impotência e seu poder as formas como foi ferido e as formas como feriu seu orgulho e sua vergonha O único antídoto para a devastação é o eu inteiro Talvez a cura não signifique apagar a cicatriz ou mesmo fazer a cicatriz Curar é cuidar da ferida Chegamos a Cracóvia no meio da tarde Vamos dormir aqui esta noite pelo menos tentar dormir Amanhã pegaremos um táxi para Auschwitz Béla queria visitar a Cidade Velha e tento prestar atenção à arquitetura medieval mas me sinto tolhida pela ansiedade uma estranha mistura de esperança e horror Paramos do lado de fora da Igreja de Santa Maria para ouvir o trompetista tocar a melodia que marca a hora completa Um grupo de adolescentes passa por nós brincando falando alto em polonês mas não percebo a alegria deles estou ansiosa Esses jovens um pouco mais velhos do que meus netos me lembram a rapidez com que a próxima geração crescerá Será que minha geração ensinou bem aos jovens como evitar outro holocausto Ou nossa liberdade arduamente conquistada sucumbirá a uma nova onda de ódio Tive muitas oportunidades de influenciar os jovens meus próprios filhos e netos meus exalunos o público para o qual me dirijo em todo o mundo e pacientes individuais Na véspera de meu retorno a Auschwitz a sensação de responsabilidade para com eles ficou especialmente forte Não é só por mim que estou voltando É por tudo que transmito Será que tenho o que é preciso para fazer a diferença Será que consigo transmitir minha força em vez de minha perda Meu amor em vez de meu ódio Fui testada antes Um garoto de 14 anos que havia participado de um roubo de carro foi enviado a mim por um juiz O garoto usava botas marrons camiseta marrom Ele apoiou o cotovelo na mesa e disse Está na hora de a América ser branca novamente Vou matar todos os judeus negros mexicanos e todos os chineses Achei que fosse passar mal Fiz um esforço para não sair correndo da sala Qual o significado disso Eu queria gritar sacudir o garoto e dizer Com quem você acha que está falando Eu vi minha mãe ir para a câmara de gás Eu teria sido perdoada Talvez meu trabalho fosse colocálo no caminho certo talvez por isso Deus o colocou no meu caminho Para cortar seu ódio pela raiz Estava repleta de senso de justiça Era bom estar com raiva Melhor irritada do que com medo Mas então ouvi uma voz interior Descubra a intolerância em você dizia a voz Descubra a intolerância em você Tentei calar essa voz Fiz uma lista das muitas objeções à simples ideia de que eu poderia ser intolerante Eu vim para os Estados Unidos sem um tostão Nas fábricas usei o banheiro para negras em solidariedade às colegas afro americanas Marchei com o Dr Martin Luther King Jr para acabar com a segregação Mas a voz insistia Descubra a intolerância em você Encontre essa parte em você que julga rotula desmerece a humanidade da outra pessoa e torna os outros menos do que eles são O garoto continuou a bradar pela pureza da América Todo o meu ser tremia de inquietação e lutei contra a vontade de colocar o dedo em riste cerrar meu punho fazêlo pagar por seu ódio sem assumir a responsabilidade por meu próprio ódio Esse garoto não matou meus pais Negar o meu amor não venceria seu preconceito Rezei para ser capaz de encontrálo com amor Conjurei toda imagem que eu tinha de amor incondicional Pensei em Corrie ten Boom uma das Gentias Honradas Ela e sua família participaram da resistência a Hitler escondendo centenas de judeus em casa e ela acabou em um campo de concentração A irmã morreu nos braços de Corrie ela mesmo libertada devido a um erro administrativo um dia antes de todos os prisioneiros de Ravensbrück serem executados Alguns anos depois da guerra Corrie se encontrou com um dos guardas mais violentos do campo de concentração um dos homens responsáveis pela morte de sua irmã Ela podia ter cuspido nele desejado sua morte e o amaldiçoado No entanto rezou para ter força e perdoálo segurou as mãos dele com as próprias mãos Corrie conta que naquele momento em que a ex prisioneira apertou as mãos do exguarda ela sentiu um amor puro e profundo Tentei encontrar aquele abraço e aquela compaixão em meu coração para encher os meus olhos com esse tipo de bondade Imaginei se era possível que aquele rapaz racista tivesse entrado em minha vida para que eu pudesse aprender o que é o amor incondicional Que oportunidade eu tive nesse momento Que escolha poderia fazer na hora em que me poria na direção do amor Tive a oportunidade de amar esse jovem somente ele seu eu singular e a humanidade que compartilhamos A oportunidade de recebêlo para dizer algo sentir qualquer coisa sem medo de ser julgada Lembrei da família alemã que morou um tempo em Fort Bliss da menina que subia em meu colo e me chamava de Oma vovó em alemão Essa pequena bênção vinda de uma criança parecia uma resposta para o desejo que eu tive quando passei pelas cidades alemãs com Magda e os outros prisioneiros e as crianças alemãs nos cuspiram sonhei com o dia em que as crianças alemãs saberiam que não era necessário me odiar E vivi para ver esse dia Pensei nas estatísticas que li de que a maior parte dos membros dos grupos supremacistas dos Estados Unidos perdeu um dos pais antes de completar 10 anos São crianças perdidas em busca de uma identidade em busca de uma maneira de se sentirem fortes de sentirem que são importantes Portanto eu me recompus e olhei para o jovem da maneira mais amorosa que consegui E disse duas palavras Conte mais Não falei muito além disso na primeira sessão Escutei Criei uma relação de empatia Ele era muito parecido comigo depois da guerra Ambos tínhamos perdido os pais ele por negligência e abandono eu por morte Ambos víamos a nós mesmos como mercadoria danificada Ao abrir mão de julgar ao deixar de lado minha vontade de que ele fosse ou acreditasse em algo diferente ao perceber sua vulnerabilidade e sua ansiedade por pertencimento e amor ao conseguir superar o meu medo e minha raiva de modo a aceitálo e amálo fui capaz de dar a ele algo que suas botas marrons e sua camisa marrom não conseguiram uma imagem real de seu próprio valor Quando saiu de meu consultório naquele dia ele não sabia nada da minha história mas tinha visto uma alternativa ao ódio e ao preconceito já não falava mais em matar e tinha me mostrado um sorriso suave Assumi a responsabilidade de não perpetuar a hostilidade e a culpa de não ceder ao ódio e dizer Você está acima das minhas possibilidades Agora na véspera de meu regresso à prisão relembro a mim mesma que cada pessoa tem um Adolf Hitler e uma Corrie ten Boom dentro de si Temos a capacidade de odiar e a capacidade de amar Depende de nós a quem a nosso Hitler interior ou a nossa Corrie ten Boom interior escolhemos recorrer Pela manhã chamamos um táxi para nos levar a Auschwitz Béla engata uma conversa com o motorista sobre a família dele e os filhos Eu aprecio a paisagem que não vejo desde que tinha 16 anos e cheguei a Auschwitz dentro de um vagão escuro de transporte de animais Fazendas vilas natureza A vida continua como continuou em todos os lugares enquanto estivemos presos ali O motorista nos deixa na entrada de minha antiga prisão Eu e Béla ficamos novamente sozinhos A inscrição de ferro batido assombra ARBEIT MACHT FREI o trabalho liberta Minhas pernas tremem com a visão com a memória de como essas palavras deram esperança a meu pai Vamos trabalhar até o fim da guerra ele pensou Vai demorar um pouco e então estaremos livres Arbeit macht frei Essas palavras nos deixaram calmos até as portas das câmaras de gás serem trancadas com nossos entes queridos dentro até que o pânico se tornasse inútil Então essas palavras se tornaram uma ironia diária a cada hora porque ali nada libertava A morte era a única saída Portanto até mesmo a ideia de liberdade se tornou outra forma de desesperança A grama está exuberante As árvores ocuparam o espaço mas as nuvens têm cor de osso e embaixo delas as estruturas construídas pelo homem mesmo as que estão em ruínas dominam a paisagem Quilômetros e quilômetros de cercas Uma vasta extensão de alojamentos de tijolo se desintegrando e espaços retangulares vazios onde antes havia construções As linhas horizontais desoladoras dos alojamentos das cercas e das torres são regulares e ordenadas mas não há vida nessa geometria Essa é a geometria da tortura e da morte sistemática A aniquilação calculada Então percebo novamente uma coisa que me perseguiu naqueles meses infernais em que isso foi a minha casa não dá para ver ou ouvir um único pássaro Nenhum pássaro vive aqui Nem mesmo agora O céu está vazio de suas asas e o silêncio é mais profundo por causa da ausência de seu canto Os turistas se juntam A excursão começa Somos um grupo pequeno de oito ou dez pessoas A imensidão massacra Eu a sinto no silêncio do grupo na maneira como quase paramos de respirar Não é possível entender o significado da enormidade do horror cometido neste lugar Eu estive aqui enquanto as chamas ardiam eu acordava e trabalhava e dormia com o fedor dos corpos queimando e mesmo eu não consigo compreender O cérebro tenta reter os números tenta assimilar o confuso acúmulo de coisas que foram colocadas em exposição para os visitantes as malas arrancadas dos que iam ser mortos as tigelas pratos e canecas os milhares de pares de óculos reunidos num emaranhado que parece um arbusto surrealista As roupas de crochê feitas por mãos amorosas para bebês que nunca se tornaram crianças homens ou mulheres O vidro de 20 metros de comprimento cheio de cabelo humano Nós contamos 4700 corpos cremados em cada fornalha 75 mil poloneses mortos 21 mil ciganos 15 mil soviéticos Os números se acumulam e se acumulam Podemos montar a equação e fazer a conta que descreve os mais de 1 milhão de mortos em Auschwitz Podemos acrescentar na lista milhares de mortos de outros campos de extermínio na Europa da minha juventude e os corpos jogados nas valas ou nos rios antes de chegarem a um campo de extermínio Mas não há nenhuma equação que resuma adequadamente o efeito de uma perda tão completa Não há idioma que explique a desumanidade sistemática desta fábrica da morte criada por humanos Mais de 1 milhão de pessoas foram mortas bem aqui onde eu estou É o maior cemitério do mundo E em todas as dezenas centenas milhares e milhões de mortos em todos os objetos acumulados e depois abandonados em todos os quilômetros de cercas e tijolos outro número assombra O número zero Aqui no maior cemitério do mundo não há um único túmulo Apenas espaços vazios onde antes ficavam os crematórios e as câmaras de gás apressadamente destruídos pelos nazistas antes da rendição Os espaços vazios onde meus pais morreram Completamos o tour pelo campo dos homens Ainda preciso ir ao lado feminino a Birkenau É para isso que estou aqui Béla pergunta se quero que ele venha comigo mas balanço a cabeça negativamente Esse último trecho da jornada eu preciso fazer sozinha Deixo Béla no portão de entrada e volto ao passado A música toca nos alto falantes sons alegres que não combinam com o ambiente sombrio Veja diz meu pai não pode ser um lugar tão terrível Nós vamos apenas trabalhar um pouco até a guerra acabar É temporário Podemos sobreviver a isso Ele se junta à fila e acena para mim Eu acenei de volta A memória me diz que acenei para meu pai antes de ele morrer Minha mãe fica de braços dados comigo Caminhamos lado a lado Abotoe seu casaco diz ela Mantenha a cabeça erguida Volto para a imagem que ocupou minha memória durante a maior parte da vida três mulheres famintas com casacos de lã de braços dados em um quintal árido Minha mãe Minha irmã Eu Estou vestindo o casaco que coloquei naquele alvorecer de abril Sou magra e sem seios o cabelo preso embaixo de um lenço amarrado Minha mãe ralha novamente comigo para que eu mantenha a cabeça erguida Você é uma mulher não uma criança diz ela Há um propósito na reprimenda dela Ela quer que eu pareça ter 16 anos ou mais Minha sobrevivência depende disso No entanto nem que a minha vida dependa disso vou largar a mão de minha mãe Os guardas apontam e empurram A fila avança Vejo os olhos pesados de Mengele à frente o espaço entre os dentes quando ele sorri Ele está no comando Ele é um anfitrião ansioso Alguém está doente pergunta ele solícito Mais de 40 anos Abaixo de 14 anos Vá para a esquerda para a esquerda Essa é a nossa última chance De trocar palavras de dividir o silêncio De nos abraçarmos Dessa vez eu sei que é o fim Ainda assim eu me decepciono Quero apenas que minha mãe olhe para mim Para me tranquilizar Olhe para mim e nunca desvie o olhar O que é essa necessidade que eu entrego a ela de novo e de novo essa coisa impossível que eu quero É a nossa vez agora O Dr Mengele levanta o dedo Ela é sua mãe ou sua irmã pergunta ele Eu agarro a mão de minha mãe Magda a abraça do outro lado Apesar de nenhuma de nós saber o significado de ser enviada para a esquerda minha mãe pressentiu a necessidade de eu aparentar a minha idade ou ser mais velha Preciso parecer ter idade suficiente para passar pela primeira fila de seleção viva O cabelo dela é grisalho mas seu rosto é tão liso quanto o meu Ela podia se passar por minha irmã Mas eu não penso sobre qual palavra a protegerá mãe ou irmã Não penso em nada Apenas sinto cada célula em mim que a ama que precisa dela Ela é minha mãe minha mamãe minha única mamãe Assim eu digo a palavra que passei o resto da vida tentando banir da minha consciência a palavra que eu não me permito relembrar até hoje Mãe digo Assim que a palavra sai de minha boca eu quero enfiála de volta pela garganta Percebi tarde demais o significado da pergunta Ela é sua mãe ou sua irmã Irmã irmã irmã eu quero gritar Mengele manda minha mãe para a esquerda Ela segue atrás de crianças pequenas e de idosos de grávidas e mães com bebês nos braços Vou seguila Não vou perdêla de vista Começo a correr na direção de minha mãe mas Mengele segura o meu ombro Você verá sua mãe em breve diz ele e me puxa para a direita na direção de Magda para o outro lado para a vida Mamãe grito Somos separadas novamente na memória como fomos na vida mas não vou deixar a memória ser outro beco sem saída Mamãe grito Não ficarei satisfeita com a visão de sua nuca Preciso ver o sol batendo em cheio em seu rosto Ela se vira para me olhar Ela é um ponto de inércia na marcha daquele rio de outros condenados Sinto sua energia a beleza que era mais do que beleza que ela sempre escondia sob tristeza e desaprovação Ela me vê olhando para ela Ela sorri É um sorriso pequeno Um sorriso triste Eu devia ter dito irmã Por que eu não disse irmã grito para ela através dos anos para lhe pedir perdão Acho que voltei a Auschwitz por isso Para ouvila dizer que eu fiz o melhor com o que eu podia Que eu tinha feito a escolha certa Mas ela não pode dizer isso ou mesmo que dissesse eu não acreditaria Posso perdoar os nazistas mas como posso me perdoar Eu viveria tudo de novo cada linha de seleção cada banho cada noite congelante e cada chamada mortal cada refeição assombrada cada momento respirando o ar enfumaçado cada vez que quase morri ou que quis morrer se ao menos eu pudesse reviver esse momento esse momento e aquele logo antes desse quando eu podia ter feito uma escolha diferente Quando eu podia ter dado uma resposta diferente à pergunta de Mengele Quando eu podia salvar mesmo que por um dia a vida de minha mãe Minha mãe se vira Vejo seu casaco cinza seus ombros suaves seu cabelo preso brilhante se afastando de mim Vejo que caminha com outras mulheres e crianças na direção dos vestiários onde tirarão as roupas e o casaco que ainda guarda o pedaço do saco amniótico de Klara Lá lhes dirão para memorizarem o número do gancho onde deixaram as roupas como se fossem voltar para aquele vestido para aquele casaco para aquele par de sapatos Minha mãe ficará nua com outras mães avós jovens mães com seus bebês nos braços e com os filhos de mães que foram mandadas para a fila a que eu e Magda nos juntamos Ela descerá as escadas em fila até uma sala com chuveiros nas paredes para a qual mais e mais pessoas serão empurradas até que o ambiente esteja úmido de suor e lágrimas e ecoando os gritos das mulheres e crianças aterrorizadas até que esteja lotado e sem ar para respirar Será que ela percebeu a pequena janela quadrada no teto através da qual os guardas lançarão o veneno Em quanto tempo ela saberá que está morrendo Tempo suficiente para pensar em mim em Magda e Klara Em meu pai Tempo suficiente para fazer uma oração para sua mãe Tempo suficiente para ficar zangada comigo por eu ter dito a palavra que em um segundo a enviou para a morte Se eu soubesse que minha mãe ia morrer naquele dia teria dito uma palavra diferente Ou não teria falado nada e teria ido com ela para os chuveiros e morrido ao seu lado Eu podia ter feito algo diferente Podia ter feito mais Acredito nisso Como é fácil uma vida se tornar uma ladainha de culpa e arrependimento uma música que continua ecoando o mesmo refrão a mesma inabilidade de nos perdoarmos Com que facilidade a vida que não vivemos se torna a única vida que valorizamos Quão facilmente somos seduzidos pela fantasia de que temos controle de que algum dia tivemos controle que as coisas que podíamos ou devíamos ter feito ou dito têm poder se ao menos as tivéssemos feito ou dito para curar a dor acabar com o sofrimento desaparecer com a dor Com que facilidade podemos nos apegar venerar as escolhas que achamos que podíamos ou devíamos ter feito Eu poderia salvar minha mãe Talvez Viverei o resto da minha vida com essa possibilidade Posso me castigar por ter feito a escolha errada essa é uma prerrogativa minha ou posso aceitar que a escolha mais importante não foi a que fiz quando sentia fome e medo quando tinha 16 anos e estava cercada por cães armas e incertezas mas a que faço agora A escolha de me aceitar como eu sou humana e imperfeita E a escolha de ser responsável pela minha felicidade De perdoar as minhas falhas e resgatar a minha inocência De parar de perguntar por que mereci sobreviver Agir da melhor forma que puder me comprometer comigo mesma a ajudar os outros fazer tudo o que estiver ao meu alcance para honrar os meus pais e garantir que eles não morreram em vão Para fazer o meu melhor de acordo com minha capacidade limitada de modo que as futuras gerações não vivam o que eu vivi Para ser útil para sobreviver e prosperar de modo que eu possa usar cada momento para tornar o mundo um lugar melhor E para finalmente parar de fugir do passado fazer todo o possível para me redimir e então relaxar Todos nós podemos fazer escolhas Não posso mudar o passado mas há uma vida que posso salvar a minha A vida que estou vivendo agora neste momento valioso Estou pronta Pego uma pedra no chão uma pedra pequena irregular cinza comum Aperto a pedra Pela tradição judaica colocamos pequenas pedras nos túmulos como sinal de respeito aos mortos para oferecer mitzvah uma bênção A pedra significa que os mortos permanecem em nossos corações e em nossas memórias A pedra que está na minha mão é um símbolo de meu eterno amor por meus pais além de um sinal da culpa e da dor que eu vim aqui para enfrentar algo imenso e aterrorizante que apesar de tudo posso segurar na minha mão É a morte de meus pais A morte da vida que existia É o que não aconteceu O nascimento da vida como ela é Da paciência e da compaixão que aprendi aqui da capacidade de parar de me julgar da capacidade de responder em vez de reagir É a verdade e a paz que eu vim descobrir e tudo o que posso finalmente deixar para trás Deixo a pedra sobre o pedaço de terra onde ficava o meu galpão onde dormi numa prateleira de madeira com cinco outras garotas onde fechei os olhos enquanto tocava Danúbio Azul e dancei pela minha vida Sinto saudades digo a meus pais Amo vocês Sempre amarei vocês E é para o vasto campo de extermínio que matou meus pais e tantas outras pessoas para a sala de aula do horror que ainda tinha algo sagrado para me ensinar sobre como viver onde fui vitimizada mas não sou uma vítima onde fui ferida mas não destruída onde a alma nunca morre onde significado e propósito podem vir do fundo do coração daquele que mais nos magoa que eu pronuncio as palavras finais Adeus e obrigada Agradeço a vocês pela vida e pela capacidade de enfim aceitar a vida como ela é Vou até o portão de ferro de minha antiga prisão em direção a Béla que está me esperando na grama Pelo canto do olho vejo um homem de uniforme caminhando de um lado para outro embaixo do letreiro É um guarda do museu não um soldado Mas é impossível ao vêlo marchando com seu uniforme não paralisar prender a respiração à espera do estampido da arma da rajada de balas Por um segundo sou novamente a garota aterrorizada a garota em perigo Sou meu eu aprisionado Mas eu respeito espero o momento passar Sinto o passaporte azul americano no bolso do meu casaco O guarda chega ao letreiro de ferro batido e vira andando de volta para dentro da prisão Ele deve ficar aqui É seu trabalho ficar Mas eu posso ir embora Eu sou livre Vou embora de Auschwitz Eu fujo Passo por baixo das palavras ARBEIT MACHT FREI Como essas palavras eram cruéis e sarcásticas quando percebemos que nada que pudéssemos fazer nos libertaria Mas conforme me afasto dos galpões das ruínas dos crematórios das torres de vigia dos visitantes e do guarda do museu e passo por baixo das palavras de ferro escuro em direção a meu marido vejo as palavras brilharem com a verdade O trabalho me libertou Sobrevivi para poder realizar o meu trabalho Não o trabalho que os nazistas queriam o trabalho duro de sacrifício e fome de exaustão e escravidão Foi o trabalho interior de aprender a sobreviver e a prosperar de aprender a me perdoar e de ajudar os outros a fazerem o mesmo Quando faço esse trabalho deixo de ser refém ou prisioneira de nada Sou livre PARTE IV CURA C A P Í T U L O 2 0 A dança da liberdade Uma das últimas vezes em que vi Viktor Frankl foi no III Congresso Mundial de Logoterapia em Regensburg em 1983 Ele estava com quase 80 anos e eu com 56 De muitas formas eu era a mesma pessoa que tivera um ataque de pânico em um auditório em El Paso quando coloquei o livrinho dele na bolsa Ainda falo inglês com um sotaque forte Ainda tenho flashbacks Ainda carrego imagens dolorosas e lamento as perdas do passado Mas não me sinto mais como se fosse vítima Senti e sempre sentirei gratidão e um amor imenso por meus dois libertadores o soldado que me tirou de uma pilha de corpos em Gunskirchen e Viktor Frankl que me autorizou a não mais me esconder e me ajudou a encontrar palavras para descrever a minha experiência e a lidar com minha dor Por meio de sua orientação e amizade descobri um propósito no meu sofrimento um sentido que me ajudou não só a aceitar o passado mas também a emergir de minhas provações com algo precioso e digno de ser compartilhado o caminho para a liberdade Nós dançamos na última noite da conferência Lá estavam dois velhos dançarinos Duas pessoas apreciando o presente sagrado Dois sobreviventes que aprenderam a prosperar e a ser livres Minha amizade de décadas com Viktor Frankl e os relacionamentos de cura com todos os meus pacientes incluindo aqueles que descrevi aqui me ensinaram a mesma lição importante que comecei a receber em Auschwitz nossas experiências dolorosas não são uma desvantagem são um presente Elas nos dão perspectivas e sentido uma oportunidade de encontrar nosso propósito especial e nossa força Não há um modelo para a cura que sirva para todos mas existem passos que podem ser aprendidos e praticados passos que cada indivíduo pode juntar à sua maneira passos da dança da liberdade Meu primeiro passo na dança foi assumir a responsabilidade por meus sentimentos Parar de reprimilos e evitálos e parar de colocar a culpa em Béla ou em outras pessoas aceitandoos como meus Esse também foi um passo fundamental na cura do capitão Jason Fuller Como eu ele tinha o hábito de eliminar os sentimentos de fugir deles até que se tornassem grandes demais e passassem a controlálo não o contrário Mostrei a ele que não era possível evitar a dor evitando seus sentimentos Ele tinha de assumir a responsabilidade de vivenciálos e no devido tempo expressálos com segurança para que depois pudessem se dissipar Naquelas primeiras semanas de tratamento ensinei a ele um mantra para gerenciar as emoções observar aceitar verificar permanecer Quando um sentimento começava a dominálo a primeira ação de gerenciamento era observar reconhecer que estava sentindo algo Ele podia dizer a si mesmo Ahá Aqui vou eu novamente Isso é raiva Isso é ciúme Isso é tristeza Meu terapeuta junguiano ensinou algo que considero bastante reconfortante apesar de parecer que a paleta de sentimentos humanos é infinita na realidade cada nuance emocional como cada cor deriva de algumas poucas emoções primárias tristeza raiva alegria medo Para quem como eu estava aprendendo o vocabulário emocional é menos opressivo aprender a identificar apenas quatro sentimentos Quando conseguiu dar nome a seus sentimentos Jason precisou aceitar que eram seus Esses sentimentos podiam ser provocados por ações ou palavras de outras pessoas mas eram seus Descarregálos em cima de alguém não faria com que desaparecessem Então quando o sentimento surgia Jason tinha que verificar sua resposta corporal Estou com calor ou com frio Meu coração disparou Como está minha respiração Estou ok Ajustarse ao sentimento em si e a como ele se movimentava em seu corpo ajudava Jason a permanecer com o sentimento até que ele passasse ou mudasse Não era preciso encobrir medicar ou fugir de seus sentimentos Ele podia escolher sentilos Eram apenas sentimentos Ele podia aceitálos suportálos e permanecer com eles porque eram temporários Como Jason preferia ajustar seus sentimentos praticamos como responder a eles em vez de reagir Jason aprendeu a viver como se estivesse em uma panela de pressão Ele se manteve sob um controle rígido até que explodiu Eu o ajudei a aprender a ser mais como um bule de chá que libera o vapor Às vezes ele chegava para a sessão eu perguntava como estava se sentindo e ele dizia Sinto vontade de gritar Eu respondia Tudo bem Vamos gritar Deixe sair tudo para que isso não o deixe doente Conforme Jason aprendeu a aceitar e enfrentar seus sentimentos ele também começou a ver que em muitos aspectos estava recriando em sua família o medo a repressão e a violência de sua infância A necessidade de controlar seus sentimentos aprendida sob a dominação de um pai abusivo tinha se transferido para a necessidade de controlar a esposa e os filhos Às vezes a cura nos ajuda a recuperar as relações com os nossos parceiros mas muitas vezes a cura libera a outra pessoa para o seu próprio crescimento Depois de alguns meses participando de sessões de aconselhamento para casais a esposa de Jason comunicou que estava pronta para se separar Jason ficou surpreso e furioso Preocupeime que sua dor em relação ao casamento fracassado ditasse a maneira como ele tratava as crianças Inicialmente Jason agiu de maneira vingativa e queria lutar pela guarda total mas ele conseguiu mudar sua mentalidade do tudo ou nada e fez um acordo de guarda compartilhada com a esposa Ele conseguiu reparar e nutrir seu relacionamento com as pessoas que o incentivaram a deixar a arma de lado seus filhos Ele encerrou o legado de violência Quando reconhecemos e assumimos a responsabilidade por nossos sentimentos aprendemos a reconhecer e a assumir a responsabilidade pelo papel que desempenhamos na dinâmica que molda nossos relacionamentos Como aprendi em meu casamento e na relação com meus filhos um dos campos de provas para a liberdade é como nos relacionamos com nossos entes queridos Isso acontece com frequência em meu trabalho Jun vestia calça com vinco e camisa de botão na manhã em que o conheci Ling entrou pela porta com um terninho de corte perfeito a maquiagem aplicada com maestria e o cabelo penteado de maneira impecável Jun se sentou em uma ponta do sofá os olhos passando pelas fotografias e pelos diplomas pendurados na parede de meu consultório olhando para tudo menos para Ling Ela sentou com elegância na outra ponta do sofá e olhou diretamente para mim O problema é o seguinte disse ela sem rodeios Meu marido bebe demais O rosto de Jun ficou vermelho Ele parecia prestes a falar mas se manteve quieto Isso tem de acabar disse Ling Perguntei o que era isso Quais eram os comportamentos que ela achava tão questionáveis Segundo Ling ao longo dos últimos dois anos Jun havia tornado o hábito de beber até então restrito a uma noite ou outra e aos fins de semana um ritual diário Ele começava antes de chegar em casa com um uísque em um bar perto do campus da universidade onde era professor A esse drinque se seguia outro em casa e mais outro No momento em que eles se sentavam para jantar com os dois filhos os olhos de Jun já estavam meio vidrados a voz um pouco alta demais e as piadas sem graça Ling se sentia sobrecarregada pela responsabilidade de fazer as crianças cumprirem as rotinas de higiene antes de dormir Depois que os filhos se recolhiam Ling conseguia se deitar mas estava frustrada Quando perguntei sobre a vida íntima deles Ling ficou ruborizada Contou então que houve uma época em que Jun tomava a iniciativa mas às vezes ela estava muito chateada para corresponder Agora ele geralmente adormecia no sofá Isso não é tudo disse ela Ela estava listando todas as provas Ele quebra pratos porque está bêbado Chega tarde em casa Esquece as coisas que eu falo Está dirigindo bêbado e vai acabar se envolvendo em um acidente Como posso confiar nele para levar as crianças À medida que Ling falava Jun parecia desaparecer Seus olhos se fixaram no colo Ele parecia magoado fechado envergonhado e zangado mas a hostilidade dele estava direcionada para dentro Perguntei a Jun qual era a perspectiva dele para a vida cotidiana do casal Sou sempre responsável com as crianças disse ele Ela não tem o direito de me acusar de colocálas em perigo E o seu relacionamento com Ling Como você vê o funcionamento de seu casamento Ele deu de ombros Estou aqui disse ele Percebo um grande espaço entre vocês no sofá Essa é uma indicação precisa de um grande abismo entre vocês Ling segurou a bolsa Exatamente respondeu Jun É porque ele bebe interrompeu Ling É isso que está criando essa distância Parece que há muita raiva separando vocês Ling olhou rapidamente para o marido antes de concordar Vejo muitos casais presos na mesma dança Ela resmunga ele bebe Ele bebe ela reclama Esta é a coreografia que eles escolheram Mas e se um deles mudar o passo Me pergunto eu começo se o casamento de vocês sobreviveria se Jun parasse de beber A mandíbula de Jun travou Ling afrouxou o aperto na bolsa Exatamente disse ela Isso é o que precisa acontecer O que realmente aconteceria se Jun parasse de beber perguntei Contei a eles sobre outro casal que conheço O marido também bebia Um dia ele chegou ao seu limite Não queria mais beber Queria ajuda Ele decidiu que a reabilitação era a melhor opção e se esforçou muito para ficar sóbrio Era por isso que a esposa dele rezava que acontecesse Ambos esperavam que a sobriedade fosse a solução para todos os problemas deles Porém à medida que a recuperação progredia o casamento piorava Quando a esposa o visitava na clínica de reabilitação sentimentos de raiva e amargura surgiam Ela não conseguia se controlar e parar de repetir coisas passadas Lembra de quando há cinco anos você chegou em casa e vomitou no meu tapete predileto E aquela outra vez em que você arruinou nossa festa de aniversário de casamento Ela não conseguia parar a ladainha de todos os erros que ele tinha cometido e de todas as formas que ele a havia magoado e desapontado Quanto mais o marido melhorava pior ela ficava Ele se sentia mais forte menos intoxicado menos envergonhado mais em contato com ele mesmo mais ajustado com a vida e com os relacionamentos Ela ficava cada vez mais irritada Ele parou de beber mas ela não parou de criticar e culpar Eu chamo essa situação de gangorra Uma pessoa está no alto a outra embaixo Muitos casamentos e relacionamentos são construídos dessa forma Duas pessoas concordam com um contrato não escrito uma delas será boa e a outra será má Todo o sistema se baseia na inadequação de uma pessoa O parceiro malvado recebe um passe livre para testar todos os limites o parceiro bom tem o direito de dizer Veja como sou altruísta Veja como sou paciente Veja tudo o que tenho que aturar Mas o que acontece se o malvado no relacionamento se cansa desse papel E se ele quiser concorrer a outro papel Então o lugar do bom no relacionamento não está mais seguro O bom precisa relembrar ao mau do quanto ele é malvado para poder manter sua posição Ou pode se tornar hostil e impaciente de modo que eles ainda mantenham a gangorra equilibrada se mudarem de posição De qualquer forma a culpa é o pivô que mantém os dois juntos Em muitos casos as ações de alguém realmente contribuem para nosso desconforto e para nossa infelicidade Não estou sugerindo que devemos concordar com o comportamento prejudicial e destrutivo Mas permanecemos vítimas quando responsabilizamos a outra pessoa por nosso próprio bemestar Se Ling diz Só posso ser feliz e estar em paz se Jun parar de beber ela fica vulnerável a uma vida de tristeza e desassossego A felicidade dela estará sempre a uma garrafa ou a um trago do desastre Da mesma forma se Jun diz A única razão de eu beber é porque Ling é muito irritante e crítica ele abre mão de toda a liberdade de escolha Ele não é o próprio agente é um fantoche de Ling Ele pode obter um alívio temporário com o efeito do álcool que o protege contra a grosseria dela mas não ficará livre Isso acontece frequentemente quando estamos infelizes porque estamos assumindo muitas responsabilidades ou menos do que deveríamos Em vez de sermos assertivos e fazermos escolhas claras para nós mesmos podemos ficar agressivos escolhendo para os outros passivos deixar que os outros escolham por nós ou passivoagressivos escolhendo para os outros ao impedir que eles conquistem por eles mesmos o que escolheram Não me dá nenhum prazer admitir que eu costumava agir de maneira passivoagressiva com Béla Ele era muito pontual É importante para Béla chegar na hora então quando eu estava chateada com ele arrumava uma desculpa no momento de sair de casa Intencionalmente eu encontrava uma maneira de nos atrasar de fazer com que perdêssemos a hora só para irritálo Ele escolhera a pontualidade mas eu não o deixava fazer o que queria Eu disse a Ling e a Jun que colocar a culpa da infelicidade deles um no outro era uma forma de evitar assumir a responsabilidade por sua própria alegria Apesar de aparentemente os dois serem bastante assertivos ambos eram especialistas em evitar dizer com honestidade Eu quero ou Eu sou Ling usava as palavras Eu quero Eu quero que meu marido pare de beber mas ao querer algo para o outro ela evitava saber o queria para ela E Jun podia racionalizar o hábito de beber dizendo que era culpa de Ling uma forma de se afirmar contra as críticas e expectativas opressivas dela Mas se você abre mão das próprias escolhas então está concordando em ser uma vítima e um prisioneiro Na Hagadá o texto judaico que conta a história da libertação da escravidão no Egito e ensina as orações e os rituais para o seder do Pessach existem quatro perguntas que o membro mais novo da família tradicionalmente deve fazer as perguntas que tive o privilégio de fazer na minha infância e que fiz na última noite que passei com meus pais em nossa casa Na minha prática terapêutica desenvolvi a minha própria versão das quatro perguntas auxiliada por vários colegas com quem ao longo dos anos compartilhei estratégias para iniciar uma sessão com um novo paciente Fiz essas perguntas a Ling e a Jun Pedi que respondessem por escrito para conseguirem se livrar da vitimização 1 O que você quer Esta é uma pergunta aparentemente simples Dar a nós mesmos a permissão para nos conhecermos e nos ouvirmos para também nos alinharmos com os nossos desejos o que pode ser muito mais difícil do que imaginamos Com que frequência quando respondemos a esta pergunta dizemos na verdade o que queremos para a outra pessoa Lembrei a Ling e a Jun que eles precisavam responder a essa pergunta sozinhos Responder Eu quero que Jun pare de beber ou Eu quero que Ling pare de implicar significava evitar a pergunta 2 Quem quer isso Essa é nossa responsabilidade e nossa luta compreender nossas próprias expectativas versus tentar atender as expectativas dos outros Meu pai se tornou um alfaiate porque o pai dele não permitiu que ele se tornasse médico Meu pai era bom na sua profissão era recomendado e premiado pelo seu trabalho mas nunca quis aquilo e sempre lamentou seu sonho não realizado É nossa responsabilidade agir em nome de nosso verdadeiro eu Às vezes isso significa abrir mão da necessidade de agradar e obter a aprovação dos outros 3 O que você vai fazer sobre isso Eu acredito no poder do pensamento positivo mas a mudança e a liberdade também exigem uma ação positiva Qualquer coisa que a gente pratique nos torna melhor Se praticarmos a raiva ficaremos com mais raiva Se praticarmos o medo ficaremos com mais medo Em muitos casos nós realmente trabalhamos muito duro para garantir que não vamos a lugar nenhum Mudança tem a ver com perceber o que não está mais funcionando e sair dos padrões conhecidos e limitantes 4 Quando Em E o vento levou o livro favorito de minha mãe quando Scarlett OHara é confrontada com uma dificuldade ela diz Pensarei nisso amanhã Afinal de contas amanhã é outro dia Se quisermos evoluir em vez de andar em círculos a hora de agir é agora Ling e Jun terminaram de escrever suas respostas às perguntas dobraram os papéis e os repassaram a mim Nós os leríamos juntos na semana seguinte Quando eles se levantaram para sair Jun apertou minha mão e ao passar pela porta eu vi a confirmação que precisava de que eles estavam dispostos a tentar encurtar a distância que tinha abalado seu casamento e sair da gangorra da culpa Ling se virou para Jun e deu um sorriso tímido Não consegui ver se ele retribuiu ele estava de costas para mim mas eu o vi dar um tapinha amistoso no ombro dela Quando nos reunimos na semana seguinte Ling e Jun descobriram algo que não haviam previsto Em resposta à pergunta O que você quer cada um tinha escrito a mesma coisa um casamento feliz Só o fato de revelarem esse desejo mostrou que eles já estavam a caminho de obtêlo Tudo o que eles precisavam era de algumas ferramentas novas Pedi que Ling se empenhasse em mudar seu comportamento depois que Jun chegasse em casa todos os dias Esse era o momento em que ela geralmente ficava mais zangada vulnerável e assustada Estaria ele bêbado Quão bêbado Quão bêbado ele ficaria Havia alguma possibilidade de aproximação entre eles ou seria outra noite de distância e hostilidade Ela aprendera a administrar seu medo ao tentar exercer o controle Ela sentiria o bafo de Jun faria acusações se afastaria Ensinei Ling a saudar o marido estando ele bêbado ou sóbrio da mesma forma com olhos gentis e uma simples afirmação Estou feliz em vêlo Estou satisfeita por você estar em casa Se ele estivesse bêbado e ela se sentisse magoada e decepcionada ela poderia falar sobre esses sentimentos Posso ver que você andou bebendo e isso me deixa triste porque é difícil se sentir próxima de você assim ou Isso me deixa preocupada com sua segurança Ela estava autorizada a fazer escolhas por si mesma em resposta à decisão do marido de beber Ela poderia dizer Eu estava querendo conversar com você hoje mas vejo que andou bebendo Vou fazer outra coisa em vez disso Conversei com Jun sobre os componentes fisiológicos da dependência e lhe disse que eu poderia ajudálo a curar qualquer dor que ele estivesse tentando tratar com o álcool e que se decidisse ficar sóbrio precisaria de apoio adicional no tratamento do seu vício Pedi que comparecesse a três reuniões dos Alcoólicos Anônimos Lá ele deveria verificar se por acaso se reconhecia em algumas das histórias Jun foi às reuniões marcadas mas pelo que sei nunca mais voltou No período em que fizeram terapia comigo ele não parou de beber Quando Ling e Jun terminaram a terapia algumas coisas melhoraram outras não Eles se tornaram mais capazes de ouvir um ao outro sem a necessidade de ter a última palavra passavam mais tempo sem raiva e com isso podiam reconhecer sua tristeza e medo Também havia mais receptividade entre eles porém o isolamento permaneceu assim como o medo de que o hábito de beber de Jun ficasse fora de controle A história deles é um bom lembrete de que algo não acaba até acabar Enquanto você viver há a chance de sofrer mais Também há a oportunidade de encontrar um jeito de sofrer menos e de escolher a felicidade o que exige tomar a responsabilidade para si Tentar ser a pessoa que cuida e atende todas as necessidades do outro é tão problemático quanto evitar sua responsabilidade consigo mesmo Isso tem sido um problema para mim como é para muitos psicoterapeutas Eu tive uma revelação sobre isso quando atendi uma mãe solteira de cinco filhos que estava deprimida desempregada e com problemas físicos Como ela sentia dificuldade em sair de casa me ofereci feliz para buscar os cheques do segurodesemprego em seu lugar e levar seus filhos para compromissos e atividades Como sua terapeuta achei que era minha responsabilidade ajudála de todas as formas possíveis Um dia quando eu estava na fila para receber o auxílio me sentindo benevolente generosa e digna uma voz dentro de mim disse Edie de quem são as necessidades que estão sendo atendidas Percebi que a resposta não era da minha querida paciente A resposta era minhas Ao fazer as coisas para ela eu me sentia bem comigo mesma Mas a que preço Eu estava alimentando sua dependência e privação A paciente já estava se privando há um bom tempo de algo que só ela poderia encontrar internamente Enquanto eu acreditava que contribuía para sua saúde e bemestar na realidade estava levando minha paciente a manter sua perda Tudo bem ajudar as pessoas e tudo bem precisar de ajuda mas quando sua ajuda faz com que o outro não se ajude então você está minando a pessoa que deseja ajudar Eu costumava perguntar a meus pacientes Como posso ajudar mas esse tipo de pergunta os deixa sentados no sofá aguardando que alguém os ajude a levantar Mudei minha pergunta inicial para Como posso ser útil Como posso ajudar você a assumir a responsabilidade por você mesmo Nunca conheci uma pessoa que conscientemente escolhesse viver presa Mas testemunhei diversas vezes como delegamos voluntariamente nossa liberdade espiritual e mental escolhendo transferir para outra pessoa ou entidade a responsabilidade de direcionar nossa vida de escolher por nós Um jovem casal me ajudou a compreender as consequências de abdicar dessa responsabilidade e repassála a outra pessoa Eles me comoveram especialmente por causa de sua juventude por estarem naquela fase da vida em que a maioria de nós busca autonomia e que é ironicamente um momento de ansiedade É uma época em que nos questionamos se estamos prontos para a autonomia e se somos suficientemente fortes para aguentar o peso da independência Quando Elise procurou minha ajuda havia chegado ao desespero suicida Aos 21 anos com o cabelo louro encaracolado preso em um rabo de cavalo tinha os olhos vermelhos de tanto chorar e vestia uma camiseta esportiva masculina grande que quase cobria seus joelhos Senteime com Elise sob o luminoso sol de outubro enquanto ela tentava explicar a origem de sua angústia Todd Jogador de basquete carismático ambicioso e lindo Todd era quase uma celebridade no campus Ela o conhecera dois anos antes ao entrar na faculdade época em que ele estava no segundo ano Todo mundo conhecia Todd A novidade para Elise foi que ele quis conhecêla Ele se sentia fisicamente atraído por Elise e gostou do fato de ela não se esforçar demais para tentar agradálo Ela não era superficial Suas personalidades pareciam se complementar Ela era tímida e quieta ele falador e extrovertido Ela era observadora ele artista Não namoravam há muito tempo quando Todd a convidou para morar com ele Os olhos de Elise brilharam ao contar sobre os primeiros meses do relacionamento Sobre o fato de que ser o centro das atenções de Todd a fez se sentir pela primeira vez não apenas bem mas extraordinária Não é que ela se sentisse negligenciada ou privada de amor quando criança ou em seus primeiros relacionamentos Mas a atenção de Todd a fez se sentir viva de uma maneira diferente Ela adorava a sensação Infelizmente essa sensação veio e se foi Às vezes ela se sentia insegura no relacionamento Principalmente nos dias de jogos de basquete e festas quando outras mulheres flertavam com Todd ela se sentia inadequada e com ciúmes Quando Todd passava a impressão de corresponder aos flertes ela reclamava com ele Às vezes ele a tranquilizava em outras se irritava com suas inseguranças Ela tentou não ser a namorada irritante e buscou encontrar maneiras de se tornar indispensável para ele Elise virou o principal apoio acadêmico de Todd que se esforçava para conseguir as notas mínimas exigida para manter a bolsa de estudos esportiva No início Elise o ajudou a estudar para as provas Depois começou a ajudálo nos deveres de casa Logo ela estava escrevendo artigos para ele e ficando acordada até tarde para fazer os trabalhos dele além dos seus Conscientemente ou não Elise encontrou um jeito de tornar Todd dependente dela O relacionamento teria de durar porque ele precisava dela para manter a bolsa de estudos e tudo o mais que ela incluía A sensação de ser indispensável era tão inebriante e tranquilizante que a vida de Elise se organizou em torno de uma equação quanto mais eu fizer por ele mais ele me amará Sem perceber ela começou a associar sua sensação de autoestima com a existência do amor dele Até que Todd confessou algo que Elise sempre temera ele tinha ido para a cama com outra mulher Ela ficou zangada e magoada Ele se desculpou todo choroso mas não conseguiu parar de se encontrar com a outra mulher Estava apaixonado Todd lamentava e esperava que ele e Elise pudessem continuar amigos Elise mal conseguiu reunir forças para sair do apartamento na primeira semana Não tinha fome Não conseguia se vestir Estava aterrorizada por estar sozinha e se sentia envergonhada Ela entendeu que tinha deixado o relacionamento comandar sua vida e o preço disso Então Todd ligou Ele queria saber se ela podia fazer um grande favor para ele se não estivesse muito ocupada Ele tinha um artigo para entregar na segundafeira Será que ela podia escrever para ele Ela escreveu o artigo E mais outro E mais outro Dei a ele tudo dizia ela chorando Querida esse foi o seu primeiro erro Você se sacrificou por ele O que ganhou com isso Queria que ele fosse bemsucedido e ele ficava feliz quando eu ajudava E o que está acontecendo agora Ela contou que soube por um amigo em comum que Todd e a nova mulher tinham ido morar juntos E ele precisava entregar um artigo que Elise concordara em escrever Sei que ele não vai voltar para mim Sei que tenho que parar de fazer o dever de casa para ele mas não consigo Por que não Eu o amo Sei que ainda posso fazêlo feliz se ajudálo nos trabalhos E quanto a você Você está fazendo o melhor que pode Está feliz Você me faz sentir como se eu estivesse fazendo a coisa errada Quando você para de fazer o que é melhor para você e faz o que acha que alguém precisa está fazendo uma escolha que tem consequências para você Ela também tem consequências para Todd O que sua decisão de se devotar a ajudá lo revela sobre a capacidade dele de superar os próprios desafios Posso ajudálo Estou à disposição dele Você realmente não confia nele Quero que ele me ame À custa de seu desenvolvimento À custa de sua vida Fiquei muito preocupada com Elise quando ela foi embora Seu desespero era profundo mas eu não acreditava que ela tiraria a própria vida Ela queria mudar o que era a razão para ter buscado ajuda Ainda assim dei a ela meu número de telefone de casa e o número de uma linha telefônica de prevenção ao suicídio e pedi que me telefonasse todos os dias até a próxima sessão Quando Elise voltou na semana seguinte fiquei surpresa de ver que tinha trazido um jovem com ela Era Todd Elise estava sorrindo A depressão tinha acabado disse ela Todd havia terminado com a outra e eles se reconciliaram Ela se sentia renovada Ela via agora que o afastara com sua carência e insegurança Ela se esforçaria mais para confiar no relacionamento para mostrar a ele o quanto estava comprometida Durante a sessão Todd parecia impaciente e entediado olhando para o relógio mexendose na cadeira como se estivesse desconfortável Não existe reconciliação sem um novo começo Qual é o novo relacionamento que vocês querem Do que estão dispostos a abrir mão para chegar lá perguntei Eles olharam para mim e eu prossegui Vamos começar com o que vocês têm em comum O que gostam de fazer juntos Todd olhou para o relógio Elise se encostou nele Esse é o dever de casa de vocês eu disse Quero que cada um descubra uma coisa nova que gosta de fazer sozinho e uma coisa nova que gosta de fazer a dois Não pode ser basquete dever de casa ou sexo Que seja algo divertido e fora da rotina Elise e Todd voltaram ao meu consultório de forma esporádica ao longo dos seis meses seguintes Às vezes Elise vinha sozinha Seu foco principal continuava a ser manter o relacionamento mas nada do que ela fazia era suficiente para apagar suas inseguranças e dúvidas Ela queria se sentir melhor mas ainda não estava disposta a mudar E Todd quando vinha às sessões também parecia preso Ele estava obtendo tudo o que achava que queria admiração sucesso amor sem mencionar as notas boas mas parecia triste Ele se curvava recuava Era como se sua autoestima e autoconfiança tivessem se atrofiado por causa de sua dependência de Elise Por fim as visitas de Elise e Todd escassearam e não ouvi mais falar deles por muitos meses Certo dia então recebi dois avisos de formaturas Uma era de Elise Ela tinha se formado e sido aceita para o programa de mestrado em Literatura Comparada Ela me agradecia pelo tempo que passamos juntas Contava que um dia havia acordado e percebido que tinha chegado ao limite Parou de fazer os trabalhos de Todd e o relacionamento deles acabou o que foi muito difícil mas que agora se sentia grata por não ter se contentado com seja lá o que estava escolhendo no lugar do amor O outro aviso de formatura era de Todd Ele estava dois anos atrasado mas estava se formando Ele também queria me agradecer Disse que quase abandonara a faculdade quando Elise parou de fazer os trabalhos por ele contou que ficou indignado e furioso mas então assumiu a responsabilidade pela própria vida contratou um professor particular e aceitou que precisaria se esforçar para o seu próprio bem Agi como um cretino ele escreveu salientando que não tinha percebido que o tempo todo em que dependeu de Elise para fazer os trabalhos por ele estava deprimido Não gostava de si mesmo Agora podia se olhar no espelho e sentir respeito em vez de desprezo Viktor Frankl escreve A busca do homem por sentido é a principal motivação em sua vida Este sentido é único e específico pois pode e deve ser cumprido por ele sozinho somente então ele alcança um significado que satisfará a própria vontade de sentido Quando abdicamos de assumir a responsabilidade por nós mesmos estamos abrindo mão de nossa capacidade de criar e descobrir o sentido Em outras palavras desistimos de viver C A P Í T U L O 2 1 A garota sem mãos O segundo passo na dança da liberdade é aprender a correr os riscos necessários para alcançar a verdadeira autorrealização O maior risco que assumi nessa jornada foi retornar a Auschwitz Havia pessoas com a perspectiva de fora como a famíliaanfitriã de Marianne e o funcionário da embaixada polonesa me dizendo para não ir E havia o meu guardião interior a parte de mim que preferia ser segura a ser livre Mas na noite insone que passei na cama de Goebbels intuí que não seria uma pessoa completa se não voltasse que para minha própria saúde eu precisava voltar àquele lugar Correr riscos não significa se jogar cegamente em situações perigosas mas admitir o seu medo para não ficar preso nele Carlos começou a trabalhar comigo quando estava no segundo ano do ensino médio e enfrentava problemas de ansiedade social e autoaceitação Ele tinha tanto medo de ser rejeitado pelos colegas que não se arriscaria a começar amizades e relacionamentos Um dia pedi que me falasse sobre as dez garotas mais populares da escola e lhe passei uma missão Ele tinha que chamar cada uma dessas garotas para sair Ele respondeu que era impossível que estaria cometendo suicídio social que elas nunca sairiam com ele que seria motivo de piada pelo resto de seus dias na escola por ser tão patético Eu disse a ele que nem sempre conseguimos o que queremos mas mesmo quando não conseguimos ainda assim estamos melhor do que antes porque saberemos qual é a situação teremos mais informações e veremos o que é realmente verdade em vez da realidade criada pelo nosso medo Enfim ele concordou com a missão E para sua surpresa quatro das garotas mais populares aceitaram Ele já havia decidido sobre o seu valor já havia sido rejeitado quinhentas vezes em sua mente e esse medo tinha se revelado em sua linguagem corporal principalmente nos olhos que ficavam baixos e eram evasivos em vez de brilhantes e conectados Ele ficou indisponível para a alegria mas quando admitiu seu medo e suas escolhas e assumiu os riscos descobriu possibilidades que nem sabia que existiam Alguns anos mais tarde no outono de 2007 Carlos me ligou de seu quarto no dormitório da faculdade A ansiedade deixava sua voz aguda Preciso de ajuda disse ele Carlos estava no segundo ano de uma das dez melhores universidades do MeioOeste Quando ouvi seu nome assim de repente achei que talvez suas ansiedades sociais estivessem novamente incontroláveis Digame o que está acontecendo Era a semana de juramento no campus disse ele Eu sabia que pertencer a uma fraternidade era seu sonho desde o ensino médio Quando ele entrou na faculdade o sonho ganhou mais importância As fraternidades eram uma parte significativa da estrutura social da universidade e todos os seus amigos estavam fazendo o juramento Portanto pertencer a uma fraternidade parecia ser uma necessidade para sua sobrevivência social Carlos ouvira rumores sobre rituais de trotes impróprios mas escolheu sua fraternidade com cuidado Ele gostava da diversidade racial dos membros e da ênfase no serviço social Parecia ser a escolha perfeita Enquanto muitos de seus amigos estavam preocupados com o trote Carlos não se sentia assim Ele acreditava que o trote tinha um propósito e que ajudava os jovens a criarem laços mais rapidamente desde que não fosse exagerado Mas a semana de juramento não estava sendo como Carlos havia imaginado O que está diferente perguntei Meu mestre recrutador deixou que o poder lhe subisse à cabeça contou ele salientando que o recrutador era muito agressivo e procurava cada ponto fraco do candidato e investia forte nele Ele chamou o gosto musical de um cara de gay e durante uma reunião olhou para mim e disse Você é o tipo de pessoa que devia estar cortando minha grama Como você se sentiu quando ele disse isso Fiquei furioso Queria dar um soco na cara dele O que você fez Nada Ele estava apenas tentando me tirar do sério Não reagi O que aconteceu depois Carlos contou que naquela manhã o mestre recrutador tinha mandado ele e os outros candidatos limparem a casa da fraternidade distribuindo diferentes tarefas Ele deu a Carlos uma escova de limpar vaso sanitário e um produto de limpeza Depois entregoulhe um imenso sombrero Você vai usar esse chapéu enquanto limpa os banheiros e também quando sair e for para a sala de aula E só está autorizado a falar duas palavras o dia inteiro Sí señor Era uma humilhação pública um inacreditável ato de racismo mas se Carlos queria entrar para a fraternidade teria que aguentar Eu não podia me negar a fazer disse Carlos com a voz trêmula Foi horrível mas fiz Não queria perder o meu lugar só porque o recrutador é um cretino Não queria deixar que ele levasse a melhor Dá para perceber que você está zangado Estou furioso envergonhado e confuso Sinto que eu devia ter sido capaz de fazer as coisas sem me afetar Conteme mais Sei que não é a mesma coisa mas enquanto eu esfregava banheiros com o sombrero pensei na história que você me contou do campo de extermínio quando foi obrigada a dançar Lembro que você disse que estava com medo e que estava na prisão mas que se sentiu livre Que os guardas estavam mais presos do que você Sei que o mestre recrutador é um idiota Por que não posso apenas fazer o que ele quer que eu faça e ainda assim me sentir livre por dentro Você sempre me disse que não é o que está acontecendo externamente que importa mas o que está acontecendo internamente Tenho orgulho de minha identidade mexicana Por que essa besteira me incomoda Por que não consigo ser superior Essa foi uma linda pergunta De onde vem o nosso poder É suficiente para encontrar a nossa força interior nossa verdade interior ou a autonomia também exige medidas externas Acredito que o que acontece dentro de cada um é mais importante Acredito na necessidade de se viver de acordo com os nossos valores e ideais com nosso caráter moral Acredito ainda na importância de defender o que é certo e de desafiar o que é injusto e desumano E acredito em escolhas A liberdade está em examinar as opções disponíveis e as consequências dessas escolhas Quanto mais opções você tem disse eu menos vai se sentir como uma vítima Vamos falar sobre as suas opções Fizemos uma lista Uma opção era Carlos usar o sombrero pelo campus o resto do dia dizendo apenas Sí señor Ele podia concordar em se submeter a quaisquer humilhações inventadas pelo mestre recrutador Outra opção era se recusar Ele podia dizer ao mestre recrutador que se recusava a fazer aquilo Ou ele podia retirar sua candidatura à fraternidade Podia tirar o sombrero e largar a escova de limpeza e ir embora Carlos não gostou das consequências de nenhuma das opções Não gostou da vergonha e impotência que sentiu em ceder à intimidação principalmente pelas humilhações terem origem no racismo Ele sentiu que não poderia continuar a desempenhar o papel da caricatura racista sem minar sua autoestima Se continuasse cedendo ao intimidador Carlos o fortaleceria enquanto ele próprio se enfraqueceria Mas o desafio aberto ao mestre recrutador podia ser fisicamente perigoso e levar ao isolamento social Carlos estava com medo de ser agredido e de responder à altura Ele não queria ser dominado por impulsos violentos não queria cair na armadilha do mestre recrutador de tentar irritálo não queria participar de um confronto público Também estava com medo de ser banido pela fraternidade pelos candidatos e pela própria comunidade cuja aceitação ele estava cortejando A terceira opção ir embora não era melhor Ele teria de desistir de seu sonho desistir do desejo de pertencer e ele não estava disposto a fazer isso Ao avaliar as opções disponíveis Carlos encontrou uma quarta opção Em vez de confrontar o mestre recrutador diretamente e correr o risco de se envolver em uma briga violenta ele podia registrar uma queixa com alguém mais graduado Carlos decidiu que a melhor pessoa seria o presidente da fraternidade Ele sabia que poderia levar a questão ao topo da hierarquia ao reitor da universidade caso fosse necessário mas de início preferia manter a conversa na própria fraternidade Ensaiamos o que ele falaria e como falaria Ele teve dificuldade em manter a calma enquanto ensaiava mas depois dos anos em que trabalhamos juntos ele sabia que quando a pessoa perde a cabeça pode até se sentir forte no momento mas na realidade ela está entregando seu poder Ser forte não é reagir mas responder permitir os sentimentos refletir sobre eles e planejar uma ação eficiente para aproximálo de seu objetivo Carlos e eu conversamos sobre as possíveis consequências da conversa Era possível que o presidente da fraternidade dissesse que o comportamento do mestre recrutador era aceitável e que Carlos devia acatar ou desistir Se o presidente vai encarar a situação dessa forma acho que prefiro saber do que ignorar disse Carlos Carlos me ligou depois da reunião com o presidente da fraternidade Fiz a reclamação falou num tom triunfante Contei o que estava acontecendo e ele disse que era desagradável e que não aceitaria a situação Ele fará o mestre recrutador parar com os trotes racistas Obviamente fiquei feliz por Carlos ter sido apoiado e sua reclamação levada em consideração além de satisfeita por ele não ter que desistir de seu sonho Mas acho que teria sido um encontro vitorioso independentemente da resposta do presidente da fraternidade Carlos compreendeu sua força para desafiar e falar a sua verdade mesmo correndo o risco de ser excluído ou criticado Ele optou por não se colocar como vítima e assumiu uma postura moral Ele agiu alinhado com seu objetivo maior a luta contra o racismo e a proteção da dignidade humana Ao defender a própria humanidade ele protegeu a dignidade de todos Ele pavimentou o caminho para que todos nós possamos viver em sintonia com a nossa verdade e com os nossos ideais Fazer o que é certo raramente é o mesmo que fazer o que é seguro Acho que uma certa quantidade de risco é sempre inseparável da cura Isso vale para Beatrice uma mulher triste quando a conheci os olhos castanhos distantes apagados o rosto pálido Suas roupas eram largas e sem forma sua postura curvada de ombros caídos Logo percebi que Beatrice não tinha a menor ideia do quanto era bonita Ela olhava direto para a frente tentando não olhar para mim Mas não conseguia controlar umas olhadelas rápidas que pareciam me sondar em busca de segredos Ela havia assistido pouco tempo antes a uma palestra minha sobre o perdão Por mais de vinte anos ela acreditou que não havia maneira de conseguir perdoar sua infância roubada Mas a minha história sobre a jornada de perdão levantou algumas questões para ela Devo perdoar Posso perdoar Agora ela me avaliava cuidadosamente como se estivesse tentando descobrir se eu era real ou apenas uma imagem Quando você escuta alguém em cima de um palco contar uma história sobre cura ela pode parecer boa demais para ser verdade De certa forma é No trabalho duro de curar não existe catarse quando se esgotam os 45 minutos Não existe varinha de condão A mudança acontece devagar às vezes devagar demais Será que sua história de liberdade é verdadeira seu olhar desafiador parecia perguntar Ainda há esperança para mim Como ela havia sido indicada a mim por outra psicóloga uma amiga querida a mesma pessoa que a encorajara a ir à minha palestra eu já conhecia um pouco da história de Beatrice Quando sua infância acabou Muitas vezes pergunto a meus pacientes A infância de Beatrice terminou quase no momento em que começou Seus pais foram extremamente negligentes com ela e os irmãos mandandoos para a escola sem tomar banho e sem comer As freiras da escola de Beatrice a repreendiam com aspereza e a culpavam por sua aparência desleixada recriminandoa por não se limpar e não tomar café da manhã antes de chegar à escola Beatrice internalizou a mensagem de que a negligência de seus pais era culpa sua Depois aos 8 anos os amigos de seus pais começaram a molestála Os abusos continuaram embora ela tentasse resistir Ela também tentou contar aos pais o que estava acontecendo mas eles a acusaram de inventar tudo Em seu aniversário de 10 anos os pais deixaram que um amigo que havia dois anos já a tocava de maneira inapropriada a levasse ao cinema Depois do filme ele a levou para casa e a estuprou no chuveiro Quando começou a se tratar comigo Beatrice estava com 35 anos mas o cheiro de pipoca ainda desencadeava flashbacks Aos 18 anos Beatrice se casou com um viciado em recuperação que a assediava física e psicologicamente Ela fugiu de seu drama familiar apenas para revivêlo reforçando sua crença de que ser amada significava ser ferida Beatrice conseguiu finalmente se divorciar e estava tentando encontrar uma maneira de seguir em frente com sua vida com uma nova carreira e um novo relacionamento quando foi estuprada em uma viagem ao México Voltou para casa destruída Por insistência da namorada Beatrice começou a fazer terapia com uma colega minha Perseguida por ansiedades e fobias mal conseguia sair da cama Ela se sentia permanentemente apavorada oprimida vivia em alerta máximo com medo de sair de casa e ser novamente atacada além de temer cheiros e associações que desencadeassem exaustivos flashbacks Na primeira sessão com minha colega Beatrice concordou em se levantar todas as manhãs tomar um banho fazer a cama e depois se exercitar durante 15 minutos na bicicleta ergométrica que tinha na sala de TV Beatrice não estava em negação sobre o seu drama como eu estivera Ela conseguia falar sobre o passado e processálo intelectualmente mas não tinha vivido ainda o luto pela interrupção de sua vida Com o tempo na bicicleta ergométrica ela aprendeu a conviver com o vazio a aceitar que tristeza não é doença embora possa parecer que é e a entender que quando anestesiamos nossos sentimentos com comida álcool ou outros comportamentos compulsivos apenas prolongamos o sofrimento No início durante os 15 minutos diários de exercícios Beatrice não pedalava Ficava sentada Um minuto ou dois no assento e começava a chorar Ela chorava até o alarme tocar Com o passar das semanas ela conseguiu até ficar um pouco mais na bicicleta primeiro 20 minutos depois 25 Quando completou 30 minutos ela começou a mover os pedais e foi reencontrando aos poucos todos os dias o caminho para os esconderijos de sofrimento em seu corpo Quando conheci Beatrice ela já havia feito um enorme esforço na tentativa de se curar O trabalho para amenizar seu sofrimento diminuiu a depressão e a ansiedade Ela estava se sentindo bem melhor mas depois de ouvir o meu discurso no evento do centro comunitário imaginou se não podia fazer algo mais para se libertar da dor do trauma A possibilidade de perdão se instalou Perdoar não significa perdoar seu agressor pelo que ele fez com você expliquei a ela É perdoar a parte de você mesma que foi vítima e deixar a culpa para trás Se estiver disposta posso orientála para a liberdade Será como transpor uma ponte Dá medo olhar para baixo mas estarei lá ao seu lado O que você acha Quer continuar Uma luz fraca acendeu em seus olhos castanhos Ela fez que sim com a cabeça Vários meses depois de começar a fazer terapia comigo Beatrice estava pronta para me levar mentalmente ao escritório de seu pai onde os abusos aconteceram Essa é uma etapa extremamente vulnerável no processo terapêutico Existe um debate em curso nas comunidades da psicologia e da neurociência sobre quão útil ou prejudicial é para um paciente reviver mentalmente uma situação traumática ou retornar fisicamente ao local do trauma Quando fiz meu treinamento aprendi a usar a hipnose para ajudar o sobrevivente a reviver o evento traumático e deixar de ser refém dele Estudos recentes demonstraram que colocar alguém de volta mentalmente em uma experiência traumática pode ser perigoso Reviver psicologicamente um evento doloroso pode na realidade traumatizar de novo o sobrevivente Por exemplo depois do ataque de 11 de Setembro ao World Trade Center descobriuse que quanto mais vezes as pessoas assistiam às imagens das torres caindo pela televisão mais trauma elas sentiam anos depois Encontros repetidos com um evento passado podem reforçar em vez de liberar os sentimentos dolorosos e assustadores Na minha experiência pessoal e em meu consultório tenho constatado a eficácia de reviver mentalmente um episódio traumático mas ela precisa ser feita com total segurança e com um profissional bem treinado que garanta ao paciente o controle sobre quanto tempo e quão profundamente ele ou ela permanece no passado Mesmo assim esta não é a melhor prática para todos os pacientes nem para todos os terapeutas Para Beatrice foi essencial para a sua cura Para se libertar de seu trauma ela precisava de permissão para vivenciar o que não tinha autorização para sentir quando o abuso estava ocorrendo ou nas três décadas desde então Até ela conseguir experimentar esses sentimentos eles gritavam pedindo sua atenção e quanto mais ela tentava reprimilos mais violentamente eles imploravam para ser reconhecidos e mais terríveis seriam para ser enfrentados Ao longo de muitas semanas eu guiei Beatrice suavemente lentamente na aproximação desses sentimentos Não para ser engolida por eles Para perceber que eram apenas sentimentos Como Beatrice aprendeu no trabalho sobre o luto sentir sua imensa tristeza lhe proporcionou um pouco de alívio na depressão no estresse e no medo que a mantinha presa à cama Mas ela ainda não tinha se permitido sentir raiva pelo passado Não existe perdão sem raiva Como Beatrice descreveu o quarto pequeno a forma como a porta rangia quando o amigo do pai a fechava as cortinas escuras de tecido xadrez que ele a obrigava a fechar eu observei sua linguagem corporal preparada para trazêla de volta em segurança se ela estivesse em perigo Beatrice se retesou quando fechou mentalmente as cortinas no escritório do pai Quando ela se trancou com o agressor eu disse Pare aí querida Ela suspirou e manteve os olhos fechados Há uma cadeira no escritório perguntei Ela fez que sim com a cabeça Como ela é É uma poltrona Cor de ferrugem Quero que você coloque seu pai nessa poltrona Ela fez uma careta Você pode vêlo sentado lá Sim Como ele é Ele usa óculos Está lendo um jornal Como ele está vestido Suéter azul e calça cinza Vou lhe dar um pedaço grande de fita adesiva e quero que você cubra a boca dele com isso O quê Passe a fita adesiva sobre a boca dele Você fez isso Ela assentiu com a cabeça e esboçou um sorriso Aqui está uma corda Amarre seu pai na cadeira para que ele não possa se levantar Ok Você o amarrou Sim Agora grite com ele Gritar como Diga que você está zangada Não sei o que dizer Diga Papai estou muito zangada com você por não me proteger Mas não fale isso grite Aproveitei para demonstrar Pai estou muito zangada com você disse ela Mais alto Pai estou com muita raiva de você Agora quero que você bata nele Onde No rosto Ela levantou o punho e bateu no ar Bata nele de novo Ela fez Agora dê um chute nele O pé dela voou Aqui está um travesseiro Pode bater nele Bata de verdade disse já passando o travesseiro Ela abriu os olhos e olhou para o travesseiro Seus golpes eram tímidos no início mas quanto mais eu a encorajava mais fortes eles se tornaram Eu a convidei a ficar em pé e a chutar o travesseiro se quisesse Ou jogálo pela sala A gritar o mais alto que quisesse Logo ela estava no chão socando o travesseiro Quando o corpo dela começou a ficar cansado ela parou de socar e caiu no chão respirando rapidamente Como você se sente perguntei Como se pudesse fazer isso a vida inteira Na semana seguinte eu trouxe um saco de pancadas vermelho preso numa base preta pesada Estabelecemos um novo ritual Começaríamos nossas sessões com um pouco de liberação de raiva Ela amarraria alguém mentalmente à cadeira em geral o pai ou a mãe e gritaria enquanto dava uma surra bestial Como você pôde deixar isso acontecer comigo Eu era apenas uma criança Acabou eu perguntava Não E ela continuava socando até cansar Certo dia de Ação de Graças depois de voltar para casa de um jantar com amigos Beatrice estava sentada no sofá fazendo festinha no cachorro quando seu corpo todo começou a formigar Sua garganta secou e ela começou a sentir uma palpitação no peito Ela tentou respirar fundo para relaxar o corpo mas os sintomas pioraram Ela achou que estivesse morrendo então pediu à namorada que a levasse para o hospital O médico que a examinou na sala de emergência disse que não havia nada de errado em termos médicos Ela tinha tido um ataque de pânico Quando Beatrice me encontrou após esse episódio estava frustrada e com medo desanimada por estar se sentindo pior em vez de melhor e preocupada em ter outro ataque de pânico Fiz tudo o que pude para elogiar o progresso dela para validar seu crescimento Disse a ela que de acordo com a minha experiência quando você libera a raiva muitas vezes se sente pior antes de começar a melhorar Ela fez que não com a cabeça Acho que cheguei ao meu limite Querida acredite em você Você teve uma noite terrível e sobreviveu a ela sem se prejudicar Sem fugir Não acho que eu teria lidado tão bem com a situação como você lidou Por que você fica tentando me convencer de que eu sou uma pessoa forte Talvez eu não seja Talvez eu esteja doente e sempre serei doente Talvez seja a hora de parar de me dizer que eu sou alguém que nunca serei Você está assumindo a responsabilidade por algo que não é sua culpa E se for minha culpa Talvez se eu tivesse feito algo diferente ele poderia ter me deixado em paz E se a culpa que você sente for apenas uma maneira de manter a fantasia de que o mundo está sob seu controle Beatrice se balançava no sofá o rosto molhado de lágrimas Você não tinha escolha na época Agora tem Pode escolher não voltar aqui Essa é sempre uma escolha sua mas eu espero que você aprenda a ver a incrível sobrevivente que você é Mal consigo me manter viva Não me parece algo muito notável Houve algum lugar em que você se sentia segura quando era criança Eu só me sentia segura quando estava sozinha em meu quarto Você se sentava na sua cama ou perto da janela Na janela Você tinha algum brinquedo ou bicho de pelúcia Eu tinha uma boneca Você conversava com ela Ela assentiu com a cabeça Você consegue fechar os olhos e se sentar naquela cama segura agora Segure sua boneca Converse com ela agora como conversava na época O que você diria Como posso ser amada nesta família Eu preciso ser boa mas sou má Você sabia que durante todo aquele tempo na infância que passou sozinha se sentindo triste e isolada estava construindo uma reserva enorme de força e resistência Você pode aplaudir aquela menina agora Pode abraçála Diga a ela Você foi ferida e eu a amo Você foi magoada mas está segura agora Você precisou fingir e se esconder Eu vejo você agora Eu amo você agora Beatrice se abraçou com firmeza e seu corpo balançou de tanto soluçar Quero ser capaz de protegêla agora Na época eu não podia mas não acho que me sentirei segura um dia a não ser que seja capaz de me proteger agora Foi assim que Beatrice decidiu assumir o próximo risco Beatrice reconheceu que queria se sentir segura ser capaz de proteger a si mesma Ela soube de uma aula de autodefesa para mulheres que ia começar no centro comunitário mais próximo mas demorou a se inscrever Temia não estar à altura do desafio de repelir um ataque e que um confronto físico mesmo no ambiente seguro e fortalecedor de uma aula de defesa pessoal pudesse desencadear um ataque de pânico Ela arrumava todo tipo de desculpa para não ir atrás do que queria numa tentativa de administrar seu medo a aula podia ser muito cara já podia estar cheia ou podia não ter participantes suficientes e ser cancelada Começamos a trabalhar nos receios subjacentes à sua resistência para conseguir o que queria Fiz duas perguntas a ela O que de pior pode acontecer e Você pode sobreviver a isso O pior cenário que ela pôde imaginar era ter um ataque de pânico durante a aula rodeada por pessoas estranhas Confirmamos que o formulário de atestado médico que ela teria que preencher ao se inscrever para a aula daria à equipe as informações que eles precisavam no caso de um ataque E avisamos sobre ela ter sofrido um ataque de pânico antes Se acontecesse novamente ela podia não conseguir interrompêlo ou controlálo mas pelo menos saberia o que estava acontecendo Além disso ela já sabia por experiência própria que embora assustador e desagradável o ataque de pânico não matava Ela sobreviveria a ele Portanto Beatrice se inscreveu para a aula Mas ao se ver na sala de roupa de ginástica e tênis rodeada por outras mulheres ela se apavorou Ficou com vergonha Estava com medo de cometer erros e de chamar a atenção para si mesma mas não conseguiu ir embora depois de estar tão perto de seu objetivo Ela se encostou à parede e ficou observando a turma Ela voltou a todas as aulas depois daquela sempre pronta para participar mas ainda com muito medo Um dia o instrutor percebeu que ela estava observando no canto e se ofereceu para treinála individualmente depois da aula Um dia quando ela veio me ver seu rosto estava triunfante Consegui jogálo contra a parede hoje disse ela Eu o imobilizei segurei e o joguei contra a parede Sua face estava ruborizada os olhos brilhando de orgulho Ao ter confiança de que podia se proteger começou a assumir outros riscos e passou a fazer um curso de balé para adultos e dança do ventre Seu corpo começou a mudar Ele já não era um recipiente para o seu medo mas um instrumento de prazer Beatrice virou escritora professora de balé e instrutora de ioga Ela decidiu coreografar uma dança baseada em um conto dos irmãos Grimm que ela se lembrava de ler quando criança A garota sem mãos Na história os pais da garota são induzidos a dar a filha ao demônio Como a menina é inocente e pura o demônio não consegue possuíla mas por vingança e frustração corta suas mãos A garota vaga pelo mundo com tocos no lugar de mãos Um dia ela entra no jardim do rei que se apaixona pela jovem quando a vê em pé entre as flores Eles se casam e o rei manda fazer para a mulher um par de mãos de prata Eles têm um filho Um dia ela salva o filho de se afogar Suas mãos de prata desaparecem e são substituídas por mãos de verdade Beatrice estendeu as mãos ao me contar essa história de sua infância Minhas mãos são novamente verdadeiras disse ela Não foi outra pessoa que eu salvei Eu salvei a mim mesma C A P Í T U L O 2 2 De alguma forma as águas se abrem O tempo não cura É o que você faz com o tempo que cura A cura é possível quando decidimos assumir a responsabilidade quando decidimos correr riscos e por fim quando decidimos nos libertar das preocupações tirar da mente o passado ou o sofrimento Dois dias antes de seu aniversário de 16 anos Jeremy filho de Renée entrou na sala onde ela e o marido estavam assistindo ao noticiário das 22 horas À luz cintilante da TV seu rosto parecia perturbado Renée estava indo na direção do filho para abraçálo daquele jeito aconchegante que ele ainda permitia quando o telefone tocou Era a irmã de Renée que morava em Chicago e estava passando por um divórcio difícil Muitas vezes ela ligava tarde da noite para conversar Tenho que atender essa ligação disse Renée dando um apertão rápido na bochecha do filho mas logo voltando sua atenção para a irmã angustiada Jeremy murmurou um boanoite e se dirigiu para a escada Durma bem querido disse ela para ele já de costas Na manhã seguinte Jeremy ainda não tinha acordado quando ela colocou o café da manhã na mesa Ela foi até o pé da escada e o chamou mas ele não respondeu Ela passou manteiga na última torrada e subiu para bater na porta do quarto dele Ele continuou sem responder Exasperada ela abriu a porta O quarto estava escuro as cortinas ainda fechadas Ela o chamou novamente confusa por encontrar a cama já arrumada Um sexto sentido a levou a abrir a porta do closet Ela a abriu e um arrepio de horror subir pelas suas costas O corpo de Jeremy estava pendurado na haste de madeira com um cinto em volta do pescoço Na mesa dele ela encontrou um bilhete Não são vocês sou eu Desculpe por decepcionálos Jeremy Quando Renée e o marido Greg vieram me ver pela primeira vez Jeremy tinha morrido havia poucas semanas A perda era tão recente que eles ainda não estavam de luto Estavam em estado de choque A pessoa que eles haviam enterrado não tinha ido embora para eles Era como se eles o tivessem enterrado vivo Nas primeiras consultas Renée se sentava e soluçava Eu quero voltar no tempo gritava ela Quero voltar no tempo voltar Greg também chorava mas silenciosamente Com frequência ele olhava para a janela enquanto Renée chorava Eu disse a eles que homens e mulheres sofrem de maneira bem diferente e que a morte de um filho podia ser uma fratura ou uma oportunidade para o seu casamento Aconselheios a cuidar bem um do outro a se permitir ter raiva e chorar a chutar e a chorar e a gritar e colocar os sentimentos para fora de modo a não deixarem que Jasmine a irmã de Jeremy sofresse as consequências da dor deles Pedi que trouxessem fotos de Jeremy para que pudéssemos celebrar seus 16 anos de vida os 16 anos em que o espírito do menino esteve com eles Indiquei grupos de apoio para os sobreviventes de suicídio e trabalhei com eles à medida que as perguntas do tipo e se surgiam como ondas E se eu tivesse prestado mais atenção E se eu não tivesse atendido ao telefone naquela noite e o tivesse abraçado E se eu trabalhasse menos e ficasse mais em casa E se eu não acreditasse no mito de que as crianças brancas são as únicas que cometem suicídio E se eu estivesse à procura de sinais E se eu não o pressionasse tanto para ter um bom desempenho na escola E se eu tivesse passado no quarto dele antes de ir dormir Todos esses E se reverberavam como um eco sem resposta Por quê Queremos muito saber a verdade Queremos nos responsabilizar por nossos erros e ser honestos com nossa vida Queremos razões explicações Queremos que nossa vida faça sentido Mas buscar a razão é permanecer no passado na companhia da culpa e do arrependimento Não podemos controlar as outras pessoas muito menos o passado Em algum momento no primeiro ano de perda Renée e Greg passaram a vir cada vez mais esporadicamente às sessões e depois de um tempo pararam completamente Não soube deles por muitos meses Na primavera em que Jeremy teria se formado no ensino médio fiquei feliz e surpresa ao receber uma ligação de Greg Ele me disse que estava preocupado com Renée e perguntou se eu podia ir a casa deles Fiquei impressionada com a mudança na aparência dos dois Ambos tinham envelhecido de maneiras diferentes Greg havia engordado Seu cabelo preto estava salpicado de fios brancos Renée não parecia desgastada como a preocupação de Greg por ela me fez imaginar O rosto dela estava liso a blusa bem passada e o cabelo arrumado Ela foi gentil disse que se sentia bem mas seus olhos castanhos estavam opacos Greg que ficava quieto na maior parte das sessões falou com urgência Tenho algo a dizer e contou que na semana anterior ele e Renée tinham participado da festa de formatura do filho de um amigo do casal Foi um evento tenso para eles cheio de gatilhos de lembretes devastadores do que outros casais tinham e eles não tinham mais da ausência de Jeremy da aparente eternidade do luto dos incontáveis momentos do cotidiano que eles nunca iriam compartilhar com o filho Mas eles se forçaram a colocar roupas bonitas e ir à festa Greg me disse que num certo momento da noite ele percebeu que estava se divertindo A música que o DJ tocou o fez pensar em Jeremy e nos antigos álbuns de RB que o filho ouvia no aparelho de som de seu quarto enquanto fazia o dever de casa ou se divertia com os amigos Greg se virou para Renée que usava um elegante vestido azul e ficou impressionado ao notar como o formato do seu rosto e da sua boca o lembravam de Jeremy Ele se sentiu inundado de amor por Renée por seu filho pelo simples prazer de comer bem sob uma tenda branca numa noite quente e chamou Renée para dançar Ela se recusou levantou e o deixou sozinho na mesa Greg chorou ao contar isso Estou perdendo você também disse ele à esposa O rosto de Renée ficou sério seus olhos pareciam ter se apagado Esperamos que ela falasse Como você se atreve disse ela finalmente Jeremy não pode dançar Por que você poderia Não posso dar as costas a ele tão facilmente O tom dela era hostil Agressivo Achei que Greg fosse recuar Em vez disso ele deu de ombros Percebi que não era a primeira vez que Renée via sua própria felicidade como uma profanação da memória do filho Lembreime de minha mãe De todas as vezes que vi meu pai tentar acariciála beijála e como ela rejeitava seu afeto Ela estava tão presa à perda precoce da própria mãe que decidiu se esconder num manto de melancolia Seus olhos às vezes se iluminavam quando ela ouvia Klara tocar o violino Mas ela nunca se permitiu rir à larga flertar brincar se alegrar Renée querida disse eu Quem morreu Jeremy ou você Ela não me respondeu Não faz nenhum bem a Jeremy se você morrer também eu disse a Renée Também não faz bem a você Renée não estava se escondendo de sua dor como eu tinha feito Ela se casara com a dor com a perda e assim se escondera da vida Pedi que ela me dissesse quanto tempo dedicava ao luto em seu cotidiano Greg vai trabalhar eu vou para o cemitério respondeu ela Com que frequência Ela pareceu ficar ofendida com a minha pergunta Ela vai todos os dias disse Greg E isso é ruim retrucou Renée Ser dedicada ao meu filho O luto é importante poderei Mas quando ele se perpetua pode ser uma forma de evitar o sofrimento As solenidades e os rituais podem ser componentes extremamente importantes do luto Acho que é por isso que as práticas religiosas e culturais incluem rituais de luto claros com um espaço protegido e uma estrutura interna na qual se inicia a experiência de sentir a perda Mas o período de luto também tem um fim claro Desse ponto em diante a perda não é uma dimensão separada da vida mas integrada a ela Se ficamos em permanente estado de luto estamos escolhendo a mentalidade da vítima acreditando que nunca vamos superar a perda Se ficamos presos no luto é como se nossas vidas tivessem acabado também O luto de Renée apesar de sofrido também se tornara uma espécie de escudo que a isolava da vida atual Nos rituais de perda ela podia evitar ter que aceitála Você gasta mais tempo e energia emocional com seu filho que está morto ou com sua filha que está viva perguntei Renée pareceu perturbada Sou uma boa mãe disse ela mas não vou fingir que não estou sofrendo Você não precisa fingir nada mas você é a única pessoa que pode impedir seu marido e sua filha de perderem você também Lembrome de minha mãe falando com a foto da mãe dela em cima do piano chorando Meu Deus meu Deus dême força A lamentação dela me assustava Sua fixação na perda era como um alçapão que ela levantava e desaparecia uma fuga Eu era como a filha de uma alcoólatra vigiando o desaparecimento dela incapaz de resgatála do vácuo mas sentindo que essa era de alguma forma a minha função Eu achava que se deixasse a dor entrar eu afundaria contei a Renée Mas é como Moisés e o Mar Vermelho De alguma forma as águas se abrem e você caminha entre elas Pedi que Renée tentasse algo novo para transformar seu luto em tristeza Coloque uma foto de Jeremy na sala de estar Não vá ao cemitério para lamentar sua perda Encontre um jeito de se conectar com ele aqui na sua casa Separe quinze ou vinte minutos todos os dias para se sentar com ele Você pode tocar o rosto dele conversar com ele contar o que está fazendo e depois dar um beijo nele e seguir com o seu dia Tenho muito medo de abandonálo novamente Ele não se matou por sua causa Você não tem como saber Existem muitas coisas que você poderia ter feito diferente em sua vida Essas escolhas estão feitas o passado já foi nada pode mudar isso Por razões que nós nunca saberemos Jeremy decidiu terminar sua vida Você não pode escolher por ele Não sei como viver com isso A aceitação não vai acontecer de um dia para o outro Você nunca vai ficar feliz por ele estar morto mas pode escolher seguir em frente Pode até descobrir que viver de maneira plena é a melhor maneira de homenageálo No ano passado eu recebi um cartão de Natal de Renée e Greg No cartão havia uma foto com os dois na frente de uma árvore de Natal acompanhados da filha uma garota linda vestida de vermelho Greg está no meio abraçando as duas Sobre o ombro de Renée uma foto de Jeremy no alto da lareira É a última foto dele na escola com uma blusa azul e um sorriso exuberante Ele não é o vácuo na família Ele está presente está sempre com eles O retrato da mãe de minha mãe agora está na casa de Magda em Baltimore em cima do piano no qual ela ainda dá aulas e orienta os alunos com lógica e emoção Ao fazer uma cirurgia pouco tempo atrás Magda pediu que sua filha Ilona levasse a foto de nossa mãe ao hospital para que ela pudesse fazer o que mamãe nos ensinou pedir força aos mortos deixar os mortos viverem em nossos corações deixar que nosso sofrimento e nosso medo nos levem de volta ao amor Você ainda tem pesadelos perguntei a Magda no outro dia Sim sempre E você Sim tenho Voltei a Auschwitz e resolvi o passado me perdoei Voltei para casa e pensei Acabou mas a conclusão é temporária Não acaba até que acabe Apesar de nosso passado e não por causa dele Magda e eu encontramos sentido e propósito de formas diferentes nos mais de setenta anos desde a libertação Descobri as artes da cura Magda permaneceu uma pianista dedicada e professora de piano e descobriu duas novas paixões o bridge e a música gospel porque ela parece um choro e tem a força das emoções fluindo E o bridge porque há uma estratégia e um controle um jeito de ganhar Ela é campeã de bridge e emoldura seus prêmios e os pendura na parede em frente ao retrato de nossa avó Minhas irmãs me protegeram me inspiraram e me ensinaram a sobreviver Klara se tornou violinista da Orquestra Sinfônica de Sydney Até o dia depois de sua morte no início dos anos 1980 em decorrência de Alzheimer ela me chamava de pequenina Mais do que Magda ou eu Klara permaneceu imersa na cultura imigrante do judaísmo húngaro Béla e eu adorávamos visitar Klara e Csicsi para desfrutar a comida a língua a cultura de nossa juventude Nós sobreviventes não conseguíamos nos reunir com muita frequência mas nos esforçávamos ao máximo para nos reunir nos principais eventos celebrações em que nossos pais não estariam presentes para testemunhar No início dos anos 1980 fomos a Sydney para o casamento da filha de Klara As três irmãs tinham aguardado este reencontro com expectativa e quando finalmente nos reunimos de novo entramos em um frenesi de abraços emotivos como aqueles que trocamos em Košice ao descobrirmos que estávamos todas vivas depois da guerra Não importa que agora sejamos mulheres de meiaidade não importa que tenhamos nos distanciado em nossas vidas sempre que nos encontrávamos era curioso como rapidamente voltávamos aos velhos padrões da juventude Klara ficava em destaque dando ordens a nós duas e nos sufocando de tanta atenção Magda era competitiva e rebelde Eu era a pacificadora indo e vindo entre minhas irmãs amenizando conflitos escondendo minhas próprias ideias Com que facilidade transformamos até mesmo o entusiasmo e a segurança da família em uma espécie de prisão Recorremos aos velhos mecanismos de enfrentamento e nos tornamos quem acreditamos que devemos ser para agradar os outros É preciso ter força de vontade e escolher não recair nos papéis limitantes que erroneamente acreditamos que vão nos manter seguras e protegidas Na noite anterior ao casamento Magda e eu encontramos Klara sozinha no quarto da filha Estava brincando com as antigas bonecas da filha O que presenciamos era mais do que a nostalgia materna em relação à filha crescida Klara foi flagrada em seu jogo de faz de conta Ela estava brincando como uma criança Percebi que minha irmã nunca teve infância Ela sempre foi o prodígio do violino Nunca chegou a ser uma menininha Quando não estava se apresentando ela tocava para mim e para Magda assumindo o papel de cuidadora de nossa mãezinha Agora na meiaidade tentava dar a si mesma a infância que nunca lhe foi permitida Constrangida por ter sido flagrada com as bonecas Klara contraatacou É uma pena eu não ter estado em Auschwitz disse ela Se eu estivesse lá mamãe estaria viva Foi horrível ouvila dizer isso Senti toda a minha velha culpa de sobrevivente voltando o horror da minha resposta naquele primeiro dia em Auschwitz o horror de relembrála de confrontar aquela antiga crença embora errada de que tinha enviado nossa mãe para a morte Mas eu não era mais prisioneira Eu podia ver a prisão da minha irmã em ação escutar sua culpa e sua dor embutidas na acusação feita a mim e a Magda Eu consegui escolher a minha própria liberdade dar nome aos meus sentimentos de raiva de inutilidade de tristeza e de arrependimento e deixálos girar crescer diminuir e depois passar Consegui ainda tirar da cabeça a necessidade de me punir por ter vivido Pude resolver minha culpa e resgatar o meu eu puro e pleno Há a ferida E há o que sai dela Voltei a Auschwitz em busca da sensação de morte para poder finalmente exorcizála O que encontrei foi a minha verdade interior o eu que eu queria resgatar minha força e minha inocência C A P Í T U L O 2 3 O dia da libertação No verão de 2010 fui convidada para fazer uma palestra em Fort Carson no Colorado na unidade do Exército que estava voltando de combate no Afeganistão uma unidade com uma alta taxa de suicídios Eu estava lá para falar sobre o meu próprio trauma como sobrevivi a ele como sobrevivi ao retorno ao cotidiano como escolhi ser livre de modo que os soldados também pudessem se adaptar com mais facilidade à vida no pósguerra Ao subir no tablado senti alguns rápidos conflitos internos de desconforto o velho hábito de me cobrar demais e de imaginar o que uma estudante de balé húngara teria a oferecer a homens e mulheres de guerra Relembrei a mim mesma que eu estava lá para compartilhar a verdade mais importante que conheço que a maior prisão está em sua própria mente e que a chave já está em seu bolso a vontade de assumir a responsabilidade absoluta por sua vida a vontade de arriscar a vontade de se libertar de julgamentos e de recuperar sua inocência de aceitar e amar a si mesmo pelo que realmente é humano imperfeito e inteiro Pedi força a meus pais e aos meus filhos netos e bisnetos a tudo que eles me ensinaram e que me obrigaram a descobrir Minha mãe me disse algo que eu nunca vou esquecer eu disse Ela disse Não sabemos para onde estamos indo não sabemos o que vai acontecer mas ninguém pode tirar de você o que você põe em sua própria mente Repeti essa frase diversas vezes a fuzileiros navais a especialistas em crises a prisioneiros de guerra e seus defensores no departamento de assuntos de veteranos a oncologistas e a pessoas com câncer a pais e filhos a cristãos e muçulmanos e budistas e judeus a estudantes de direito e jovens em situação de risco a pessoas de luto pela perda de um ente querido a pessoas se preparando para morrer e às vezes a mim mesma Dessa vez quase caí do palco ao falar essa frase Fui dominada por sensações e memórias que tinha armazenado internamente o cheiro da grama enlameada o sabor forte e doce dos MM Demorei um pouco a entender o que estava desencadeando o flashback mas então vi que havia bandeiras e insígnias nas laterais do auditório Em todos os lugares havia um emblema a respeito do qual eu não tinha pensado conscientemente durante muitos anos mas que é tão significativo para mim quanto as letras que formam o meu próprio nome o emblema que o soldado que me libertou no dia 4 de maio de 1945 usava na manga de sua camisa um círculo vermelho com o número 71 azul no centro Fui levada a Fort Carson para falar com a 71a Infantaria a unidade que 65 anos antes havia me libertado Eu estava contando minha história de liberdade para os sobreviventes da guerra que anteriormente trouxeram a liberdade para mim Eu costumava perguntar Por que eu Por que eu sobrevivi Aprendi a fazer uma pergunta diferente Por que não eu Em pé em um palco e rodeada pela geração seguinte de combatentes da liberdade eu podia ver na minha consciência algo que muitas vezes é desconcertante invisível para fugir do passado ou para lutar contra a dor atual nós nos aprisionamos A liberdade está em aceitar o que se é em se perdoar e em abrir o coração para descobrir as maravilhas que existem agora Eu ri e chorei no palco Estava tão cheia da adrenalina da alegria que mal conseguia completar as palavras Obrigada eu disse aos soldados O seu sacrifício o seu sofrimento faz sentido e quando você conseguir descobrir essa verdade interior estará livre Terminei meu discurso como sempre faço como sempre farei enquanto meu corpo permitir com um grand battement Aqui estou eu o lançamento de minha perna diz Eu consegui Aqui estão vocês Aqui estão vocês No presente sagrado Não posso curá los ninguém pode mas posso comemorar sua escolha para desmantelar a prisão em sua mente tijolo por tijolo Vocês não podem mudar o que aconteceu não podem mudar o que fizeram ou o que foi feito a vocês mas podem escolher como vão viver agora Meus queridos vocês podem escolher ser livres Agradecimentos Acredito que as pessoas não me procuram elas são enviadas a mim Ofereço minha eterna gratidão às muitas pessoas extraordinárias que me foram enviadas sem as quais minha vida não seria o que é e sem as quais este livro não existiria Em primeiro lugar à minha querida irmã Magda Gilbert que está com 95 anos e continua florescendo que me manteve viva em Auschwitz e à sua dedicada filha Ilona Shillman que defende sua família como ninguém A Klara Korda que foi grandiosa que realmente foi minha segunda mãe que tornou cada ida a Sydney uma lua de mel que recriou os jantares de Shabat como nossa mãe fazia com tudo artisticamente produzido à mão e a Jeanie e Charlotte as mulheres que a sucederam em sua linhagem Lembra da música húngara Não não não vamos embora a não ser que você nos expulse A meus pacientes seres humanos especiais e únicos que me ensinaram que a cura não tem a ver com recuperação mas com a descoberta Descobrir esperança na desesperança descobrir uma resposta onde não parece haver uma descobrir que não é o que acontece que importa mas o que você faz com isso A meus professores e mentores maravilhosos Professor Whitworth John Haddox que me apresentou aos existencialistas e fenomenologistas Ed Leonard Carl Rogers Richard Farson e especialmente Viktor Frankl cujo livro me deu a capacidade verbal de compartilhar o meu segredo cujas cartas me mostraram que eu não precisava mais fugir e cuja orientação me ajudou a descobrir não apenas que sobrevivi mas que agora podia ajudar os outros a sobreviver A meus colegas e amigos incríveis nas artes da cura Dr Harold Kolmer Dr Sid Zisook Dr Saul Levine Steven Smith Michael Curd David Woehr Bob Kaufman meu filho adotivo Charlie Hogue Patty Heffernan e especialmente Phil Zimbardo meu irmão mais novo que não descansou até conseguir encontrar uma editora para este livro Às muitas pessoas que me convidaram para levar minha história a plateias do mundo inteiro incluindo Howard e Henriette Peckett do YPO Dr Jim Henry Dr Sean Daneshmand e sua esposa Marjan do The Miracle Circle Mike Hoge do Wingmen Ministries e a Conferência Internacional de Logoterapia A meus amigos e terapeutas Gloria Lavis Sylvia Wechter e Edy Schroder meus valiosos companheiros mosqueteiros Lisa Kelty Wendy Walker Flora Sullivan Katrine Gilcrest mãe de nove filhos que me chama de mãe e com quem posso contar dia e noite Dory Bitry Shirley Godwin e Jeremy e Inette Forbs com quem posso conversar abertamente sobre idade as fases da vida e sobre como tirar o melhor proveito do que temos à medida que envelhecemos A meus médicos Sabina Wallach e Scott McCaul a meu acupunturista Bambi Merryweather e a Marcella Grell amiga e companheira que tomou conta excepcionalmente bem de mim e de minha casa nos últimos 16 anos e sempre me diz o que pensa sem subterfúgios Béla Companheiro de vida Companheiro de alma Pai de meus filhos Parceiro amoroso dedicado que arriscou tudo para construir uma vida nova comigo na América Você costumava dizer quando eu estava dando consultoria para os militares e nós viajávamos juntos para a Europa Edie trabalha e eu como Béla nossa rica vida a dois foi a verdadeira festa Amo você Todo o meu amor e gratidão aos meus filhos meu filho John Eger que me ensinou como não ser uma vítima e que nunca desistiu de lutar pelas pessoas com deficiência minhas filhas Marianne Engle e Audrey Thompson que me deram constante apoio moral e estímulo amoroso durante os vários meses de escrita e que entenderam talvez antes de mim que seria mais difícil reviver o passado do que sobreviver a Auschwitz Em Auschwitz eu só pensava nas minhas necessidades de sobrevivência Escrever este livro exigiu que eu experimentasse todos os sentimentos Eu não podia assumir o risco sem sua força e seu amor Obrigada aos lindos cônjuges e parceiros de vida de meus filhos e netos que continuam acrescentando galhos à nossa árvore genealógica Rob Engle Dale Thompson Lourdes Justin Richland John Williamson e Illynger Engle A meu sobrinho Richard Eger e sua esposa Byrne obrigada por serem parentes de verdade por cuidarem de mim e de minha saúde e por passarem férias junto conosco Quando nosso primeiro neto nasceu Béla disse Três gerações essa é a melhor vingança contra Hitler Agora é a quarta Obrigada pela próxima geração Silas Graham e Hale Sempre que ouço vocês me chamarem de bisa Dicu meu coração palpita A Eugene Cook meu parceiro de dança e alma gêmea um cavalheiro e um homem gentil Obrigada por me lembrar que amor não é o que sentimos é o que fazemos Você sempre me apoiou a cada momento e a cada palavra Vamos continuar dançando o boogiewoogie enquanto pudermos Finalmente às pessoas que me ajudaram palavra por palavra e página por página a transformar este livro em realidade Desde o início eu senti que este livro estava destinado a ser uma colaboração Às talentosas Nan Graham e Roz Lippel e sua equipe na Scribner Como tenho sorte de ter encontrado as editoras mais bem qualificadas com corações tão brilhantes quanto suas mentes Seu conhecimento editorial sua persistência e compaixão humana ajudaram este livro a se tornar o que eu sempre quis que ele fosse um instrumento de cura A Esmé Schwall Weigand minha coautora você não apenas encontrou as palavras certas Você se tornou eu Obrigada por ser minha oftalmologista e por sua capacidade de ver minha jornada de cura de tantas perspectivas diferentes A Doug Abrams agente capaz e ser humano verdadeiramente internacional obrigada por ser uma pessoa com caráter e alma para se dedicar a tornar o mundo um lugar melhor Sua presença no planeta é um presente A todos em 90 anos de vida eu nunca me senti tão abençoada e grata ou tão jovem Obrigada a todos Sobre a autora EDITH EGER foi bailarina e ginasta até os 16 anos quando foi enviada a Auschwitz com sua família Após sobreviver ao Holocausto sofreu diversos sintomas de estresse póstraumático até os 50 anos quando iniciou um longo processo de cura Hoje é doutora em psicologia e já trabalhou com veteranos de guerra e vítimas de trauma físico e emocional Aos 90 anos escreveu este livro e continua atendendo pacientes na sua clínica na Califórnia Para saber mais sobre os títulos e autores da Editora Sextante visite o nosso site Além de informações sobre os próximos lançamentos você terá acesso a conteúdos exclusivos e poderá participar de promoções e sorteios sextantecombr Table of Contents Créditos Prefácio de Philip Zimbardo PhD Parte I PRISÃO Introdução Eu tinha um segredo que me aprisionava Capítulo 1 As quatro perguntas Capítulo 2 O que você coloca em sua mente Capítulo 3 Dançando no inferno Capítulo 4 Fazendo estrelas Capítulo 5 Os degraus da morte Capítulo 6 Escolhendo uma folha de grama Parte II FUGA Capítulo 7 Meu libertador meu agressor Capítulo 8 Pela janela Capítulo 9 Ano que vem em Jerusalém Capítulo 10 Fuga Parte III LIBERDADE Capítulo 11 O dia da imigração Capítulo 12 Greener Capítulo 13 Você esteve lá Capítulo 14 De um sobrevivente para outro Capítulo 15 O que a vida esperava Capítulo 16 A escolha Capítulo 17 Então Hitler ganhou Capítulo 18 A cama de Goebbels Capítulo 19 Deixe uma pedra Parte IV CURA Capítulo 20 A dança da liberdade Capítulo 21 A garota sem mãos Capítulo 22 De alguma forma as águas se abrem Capítulo 23 O dia da libertação Agradecimentos Sobre a autora Informações sobre a Sextante
Send your question to AI and receive an answer instantly
Preview text
Um lindo livro de memórias que evoca as grandes obras de Anne Frank e Viktor Frankl Muito mais que um livro uma obra de arte Adam Grant autor de Originais EDITH EVA EGER A BAILARINA DE AUSCHWITZ SEXTANTE A BAILARINA DE AUSCHWITZ EDITH EVA EGER A BAILARINA DE AUSCHWITZ SEXTANTE Título original The Choice Copyright 2017 por Dr Edith Eger Copyright da tradução 2019 por GMT Editores Ltda Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores tradução Débora Chaves preparo de originais Olga de Mello revisão Ana Grillo e Rebeca Bolite projeto gráfico e diagramação Valéria Teixeira capa Barbara van Ruyven bij Barbara adaptação de capa Ana Paula Daudt Brandão imagens de capa flor Shutterstock arame farpado Plainpicture foto da autora Jordan Engle adaptação para ebook Marcelo Morais CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ E28b Eger Edith Eva A bailarina de Auschwitz recurso eletrônico Edith Eva Eger tradução de Débora Chaves Rio de Janeiro Sextante 2019 recurso digital Tradução de The choice Formato ePub Requisitos do sistema Adobe Digital Editions Modo de acesso World Wide Web ISBN 9788543107257 recurso eletrônico 1 Eger Edith Eva 2 Holocausto judeu 19391945 Narrativas pessoais 3 Holocausto Sobreviventes História 4 Auschwitz Campo de concentração 5 Livros eletrônicos I Chaves Débora II Título 1954870 CDD 9405318 CDU 9410019391945 Todos os direitos reservados no Brasil por GMT Editores Ltda Rua Voluntários da Pátria 45 Gr 1404 Botafogo 22270000 Rio de Janeiro RJ Tel 21 25384100 Fax 21 22869244 Email atendimentosextantecombr wwwsextantecombr PARA AS CINCO GERAÇÕES DA MINHA FAMÍLIA PARA MEU PAI LAJOS QUE ME ENSINOU A SORRIR PARA MINHA MÃE ILONA QUE ME AJUDOU A ENCONTRAR O QUE EU PRECISAVA INTERNAMENTE PARA MINHAS LINDAS E EXTRAORDINÁRIAS IRMÃS MAGDA E KLARA PARA MEUS FILHOS MARIANNE AUDREY E JOHN PARA MEUS NETOS LINDSEY JORDAN RACHEL DAVID E ASHLEY E MEUS BISNETOS SILAS GRAHAM E HALE Sumário Prefácio de Philip Zimbardo PhD Parte I PRISÃO Introdução Eu tinha um segredo que me aprisionava Capítulo 1 As quatro perguntas Capítulo 2 O que você coloca em sua mente Capítulo 3 Dançando no inferno Capítulo 4 Fazendo estrelas Capítulo 5 Os degraus da morte Capítulo 6 Escolhendo uma folha de grama Parte II FUGA Capítulo 7 Meu libertador meu agressor Capítulo 8 Pela janela Capítulo 9 Ano que vem em Jerusalém Capítulo 10 Fuga Parte III LIBERDADE Capítulo 11 O dia da imigração Capítulo 12 Greener Capítulo 13 Você esteve lá Capítulo 14 De um sobrevivente para outro Capítulo 15 O que a vida esperava Capítulo 16 A escolha Capítulo 17 Então Hitler ganhou Capítulo 18 A cama de Goebbels Capítulo 19 Deixe uma pedra Parte IV CURA Capítulo 20 A dança da liberdade Capítulo 21 A garota sem mãos Capítulo 22 De alguma forma as águas se abrem Capítulo 23 O dia da libertação Agradecimentos Sobre a autora Informações sobre a Sextante Prefácio Por Philip Zimbardo PhD Numa primavera a convite do psiquiatrachefe da Marinha dos Estados Unidos a Dra Edith Eva Eger embarcou num avião de combate sem janelas para um dos maiores navios de guerra do mundo o portaaviões USS Nimitz fundeado ao largo da costa da Califórnia O avião desceu em direção a uma pista curta de 150 metros e aterrissou com o solavanco do gancho de retenção da cauda se encaixando no cabo de travamento que o impediu de cair no oceano Única mulher a bordo a Dra Eger foi acomodada na cabine do capitão Qual era sua missão Ela estava lá para ensinar cinco mil jovens marinheiros a lidar com a adversidade o trauma e o caos da guerra Em incontáveis ocasiões a Dra Eger foi a especialista clínica designada para tratar dos soldados incluindo os das Forças de Operações Especiais que sofriam de transtorno de estresse póstraumático e lesões cerebrais Antes de conhecer a Dra Eger pessoalmente telefonei para convidála a fazer uma palestra no curso de Psicologia do Controle da Mente ministrado por mim em Stanford Sua idade e seu tom de voz me levaram a imaginar uma vovozinha do Velho Mundo com um lenço amarrado na cabeça por um laçarote embaixo do queixo Quando ela se dirigiu a meus alunos percebi seu poder de cura Com um sorriso radiante brincos brilhantes cabelos dourados vestindo Chanel da cabeça aos pés conforme minha esposa me contou depois ela descreveu tenebrosas e angustiantes histórias de sobrevivência nos campos de extermínio nazistas de maneira bemhumorada exalando uma presença que só consigo descrever como pura luz A vida da Dra Eger foi pontuada por tragédias Ela foi presa em Auschwitz quando era apenas uma adolescente Apesar da tortura da fome e da constante ameaça de morte conservou a liberdade mental e espiritual Não se deixou abater pelos horrores que sofreu e saiu fortalecida pela experiência Na realidade sua sabedoria é resultado dos episódios mais traumáticos que viveu Ela é capaz de ajudar outras pessoas a se recuperar porque conseguiu passar sozinha do trauma à vitória Ela descobriu como usar sua experiência com a crueldade humana para levar aos outros a chance de encontrar a própria luz Seus ensinamentos já ajudaram militares como aqueles a bordo do USS Nimitz casais tentando reencontrar a intimidade pessoas que foram negligenciadas agredidas que são viciadas ou doentes que perderam entes queridos ou simplesmente a esperança E podem ajudar a todos nós que enfrentamos diariamente as decepções e os desafios da vida Sua mensagem nos inspira a fazer nossas próprias escolhas e a nos libertar do sofrimento No fim da palestra todos os meus trezentos alunos se levantaram espontaneamente para aplaudir Depois pelo menos cem jovens lotaram o pequeno palco esperando sua vez para agradecer e abraçar essa mulher extraordinária Em todas as minhas décadas como professor nunca vi um grupo de estudantes tão entusiasmado Ao longo dos vinte anos em que eu e Edie trabalhamos e viajamos juntos essa é a reação que me acostumei a testemunhar de cada público ao qual ela se dirige Desde um encontro motivacional em uma cidade de Michigan nos Estados Unidos quando conversamos com um grupo de jovens que enfrenta pobreza desemprego e um conflito racial crescente até Budapeste na Hungria local em que muitos de seus parentes morreram e onde ela falou para centenas de pessoas que tentavam se recuperar de um passado doloroso eu vi isso acontecer repetidas vezes as pessoas se transformam na presença de Edie Neste livro a Dra Eger mistura histórias de transformação dos pacientes com sua marcante experiência em Auschwitz Mas não foi apenas sua história dramática e arrebatadora que me fez querer compartilhar este livro com o mundo Foi sim o fato de Edie usar suas experiências para ajudar as pessoas a descobrir a própria liberdade Nesse sentido seu livro vai muito além de uma memória do Holocausto por mais importantes que esses relatos sejam para relembrarmos o passado Seu objetivo é ajudar cada um de nós a escapar da prisão da própria mente De certa forma todos somos prisioneiros e a missão de Edie é nos ajudar a entender que assim como agimos como nossos próprios carcereiros também podemos nos tornar nossos próprios libertadores Quando é apresentada ao público jovem muitas vezes Edie é chamada de a Anne Frank que não morreu porque ambas tinham origem e idade parecidas quando foram deportadas para os campos de concentração As duas jovens encarnam a inocência e a solidariedade que nos fazem acreditar na bondade intrínseca do ser humano a despeito da crueldade e da perseguição a que foram submetidas Obviamente no momento em que Anne Frank escreveu seu diário ela ainda não tinha passado pela dureza dos campos o que torna as observações de Edie como sobrevivente e psicóloga clínica e ótima avó especialmente emocionantes e convincentes Assim como outros livros importantes sobre o Holocausto este mostra tanto o poder da maldade quanto a força indomável do espírito humano diante dela Mas ele vai além Talvez o melhor livro para comparar com o de Edie seja outra memória do Holocausto o brilhante clássico de Viktor Frankl Em busca de sentido A Dra Eger compartilha o profundo conhecimento da humanidade de Frankl mas acrescenta o entusiasmo e a intimidade de uma vida como psicóloga clínica Frankl apresentou a psicologia dos prisioneiros que estavam com ele em Auschwitz A Dr Eger nos oferece a psicologia da liberdade Em meu trabalho estudei por muito tempo os fundamentos psicológicos das formas negativas de influência do meio social sobre o indivíduo Procurei entender os mecanismos através dos quais nos conformamos obedecemos e resistimos em situações em que a paz e a justiça só podem ser atingidas se escolhermos o caminho da ação heroica Edie me ajudou a descobrir que o heroísmo não é privilégio apenas daqueles que realizam façanhas extraordinárias ou que assumem riscos para proteger a si mesmos e aos outros embora ela tenha feito as duas coisas Mais que isso o heroísmo é uma mentalidade ou o acúmulo de nossos hábitos pessoais e sociais É um jeito de ser Um jeito especial de ver a si mesmo Ser herói pressupõe agir decisivamente nos momentos críticos da vida tentar resolver as injustiças ou criar uma mudança positiva no mundo Ser herói também exige grande coragem moral Cada um de nós tem um herói interior esperando para ser revelado Somos todos heróis em desenvolvimento Nosso treinamento para o heroísmo é a vida as circunstâncias cotidianas que nos convidam a cultivar os seguintes hábitos realizar ações de bondade diariamente demonstrar compaixão começando com a autocompaixão revelar o melhor dos outros e de nós mesmos conservar o amor inclusive nos relacionamentos mais desafiadores e celebrar e exercitar o poder de nossa liberdade mental Edie é duplamente heroína porque ensina as pessoas a amadurecer e a criar mudanças significativas e duradouras em si mesmas em seus relacionamentos e no mundo Há dois anos Edie e eu viajamos para Budapeste cidade onde a irmã dela morava quando os nazistas começaram a prender os judeus húngaros Visitamos uma sinagoga que havia no pátio de um memorial do Holocausto com paredes cobertas por uma lona com fotografias de antes durante e depois da guerra Fomos ver o memorial Sapatos às margens do Danúbio a exposição permanente de esculturas de sapatos instaladas numa das margens do rio Danúbio em homenagem aos judeus inclusive alguns familiares de Edie assassinados por militantes do Partido da Cruz Flechada um grupo húngaro de inspiração nazista durante a Segunda Guerra Mundial Obrigadas a ficar em pé na beira do rio e a tirar os sapatos seus bens mais valiosos elas eram baleadas e seus corpos jogados na água para serem levados pela correnteza O passado parecia palpável Ao longo do dia Edie foi ficando cada vez mais quieta Eu me perguntei se ela teria dificuldade em falar para um público de seiscentas pessoas naquela noite depois de uma jornada emocional que certamente havia revolvido memórias dolorosas Mas quando ela subiu ao palco não falou sobre o medo o trauma ou o horror que nossa visita provavelmente reavivou Optou por contar uma história de bondade uma ação de heroísmo diário que como ela nos relembrou acontece mesmo no inferno Não é incrível que o pior revele o que temos de melhor refletiu ela No fim do discurso que ela concluiu com seu tradicional passo de balé o grand battement Edie convidou Ok agora todo mundo dançando A plateia inteira se levantou Centenas de pessoas se dirigiram ao palco Não havia música mas todos nós dançamos Dançamos e cantamos e rimos e nos abraçamos numa inesquecível celebração da vida A Dra Eger é hoje uma das poucas pessoas vivas que sentiram na pele os horrores dos campos de concentração Seu livro relata o inferno e o trauma que ela e outros sobreviventes enfrentaram durante e após a guerra O livro é também uma mensagem universal de esperança e de possibilidade para todos os que estão tentando se libertar da dor e do sofrimento Sejam os que estão presos em casamentos ruins em famílias destrutivas em trabalhos que odeiam ou em suas próprias mentes os leitores descobrirão que é possível abraçar a alegria e a liberdade independentemente das circunstâncias A bailarina de Auschwitz é uma crônica extraordinária sobre heroísmo e cura resistência e compaixão sobrevivência com dignidade resistência mental e coragem moral Todos nós podemos aprender a curar nossa vida por meio do relato inspirador da Dra Eger e sua impressionante história pessoal SÃO FRANCISCO CALIFÓRNIA JANEIRO DE 2017 Psicólogo e professor emérito da Universidade de Stanford Philip Zimbardo é o criador do famoso experimento de aprisionamento de Stanford 1971 e autor de muitos livros relevantes incluindo O efeito Lúcifer Como pessoas boas se tornam más 2007 bestseller da lista do The New York Times e vencedor do prêmio literário William James como melhor livro de psicologia Ele é fundador e presidente do projeto Imaginação Heroica PARTE I PRISÃO I N T R O D U Ç Ã O Eu tinha um segredo que me aprisionava Eu não sabia da arma carregada escondida sob a camisa mas no momento em que o capitão Jason Fuller entrou em meu consultório em El Paso num dia de verão de 1980 senti um aperto no estômago e uma fisgada na nuca A guerra tinha me ensinado a perceber o perigo antes mesmo que eu fosse capaz de explicar por que estava com medo Jason era alto tinha o físico magro de um atleta mas seu corpo era tão rígido que ele mais parecia um pedaço de madeira do que um ser humano Seus olhos azuis eram distantes o queixo era duro e ele não falava ou não conseguia falar Eu o encaminhei para o sofá branco onde ele se sentou reto com as mãos nos joelhos Eu não conhecia Jason e não tinha ideia do que havia desencadeado seu estado catatônico Seu corpo estava próximo o suficiente para ser tocado e sua angústia era quase palpável mas ele estava longe perdido Nem parecia notar Tess minha cachorrinha poodle cinza que continuava parada atenta perto da mesa como uma segunda estátua viva na sala Respirei fundo e procurei uma maneira de começar Às vezes começo a primeira sessão com o paciente me apresentando e contando um pouco da minha história e da abordagem que utilizo Às vezes pulo direto para a parte de identificar e investigar os sentimentos que trouxeram o paciente ao meu consultório Com Jason parecia essencial não pressionar com informações demais ou pedir que ficasse vulnerável Ele estava completamente travado Eu precisava encontrar uma maneira de lhe oferecer a segurança de que ele precisava para arriscarse a me mostrar o que mantinha tão fortemente guardado Eu precisava prestar atenção ao sistema de alerta do meu corpo sem deixar meu senso de perigo encobrir a obrigação de perguntar Como posso ser útil Ele não respondeu Nem sequer piscou Ele me lembrava um personagem que havia sido transformado em pedra Que feitiço poderia libertálo Por que agora perguntei Essa era a minha arma secreta A pergunta que sempre faço a meus pacientes na primeira visita Preciso saber por que eles estão motivados a mudar Por que hoje entre todos os dias eles querem começar a trabalhar comigo Por que hoje é diferente de ontem da semana passada ou do ano passado Por que é diferente de amanhã Às vezes a dor nos empurra e às vezes a esperança nos puxa Perguntar Por que agora não é apenas fazer uma pergunta é perguntar tudo Um dos olhos dele se fechou momentaneamente mas ele não disse nada Conteme por que está aqui tentei novamente Ele continuou mudo Senti meu corpo ficar tenso e ser tomado por uma onda de incerteza e pela consciência das tênues e decisivas encruzilhadas onde nos encontrávamos dois seres humanos cara a cara ambos vulneráveis ambos correndo riscos enquanto nos esforçávamos para dar nome à angústia e descobrir sua cura Jason não havia chegado com uma indicação oficial Aparentemente viera ao meu consultório por conta própria Mas eu sabia por experiência pessoal e clínica que mesmo quando a pessoa decide se curar pode permanecer travada durante anos Considerando a gravidade dos sintomas que ele exibia se eu não fosse capaz de fazêlo falar minha única alternativa seria recomendálo a meu colega o psiquiatra chefe do Centro Médico do Exército William Beaumont onde fiz meu doutorado O Dr Harold Kolmer diagnosticaria a catatonia de Jason o internaria e provavelmente receitaria um medicamento antipsicótico como o Haldol Imaginei Jason numa camisola de hospital os olhos ainda vidrados e o corpo naquele momento tão tenso retorcendose em convulsões devido aos espasmos musculares muitas vezes provocados pelos remédios prescritos para controlar a psicose Confio totalmente no conhecimento de meus colegas psiquiatras e sou grata aos medicamentos que salvam vidas mas não gosto de pular direto para a internação se houver qualquer chance de sucesso com uma intervenção terapêutica Eu temia que se recomendasse internação e medicação para Jason sem primeiro explorar outras opções ele trocaria um tipo de entorpecimento por outro Os membros paralisados ganhariam movimentos involuntários da discinesia uma espécie de dança descoordenada de tiques e movimentos repetitivos que acontece quando o sistema nervoso envia o sinal para o corpo se mover sem a permissão da mente O sofrimento dele não importava a causa poderia ser silenciado mas não resolvido pelas drogas Talvez ele viesse a se sentir melhor ou sentir menos o que muitas vezes confundimos com a sensação de melhorar mas não ficaria curado E agora Eu pensava enquanto os minutos se arrastavam pesados e Jason continuava sentado estático em meu sofá Ele estava ali porque queria mas ainda assim permanecia aprisionado Eu tinha apenas uma hora Uma oportunidade Conseguiria fazêlo se abrir Conseguiria ajudálo a anular o potencial violento que eu sentia tão vividamente como o vento do arcondicionado na minha pele Conseguiria mostrar para ele que quaisquer que fossem seu problema e sua dor ele já possuía a chave para a própria liberdade Na época eu não tinha como saber que se fracassasse em fazer Jason falar naquele dia um destino bem pior do que um quarto de hospital o aguardava uma vida em uma prisão de verdade provavelmente no corredor da morte Na época eu só sabia que precisava tentar Enquanto analisava Jason entendi que para alcançálo não poderia apelar para os sentimentos Devia usar uma linguagem mais confortável e familiar para alguém das Forças Armadas Eu devia dar ordens Minha única esperança de destraválo era fazer com que o sangue circulasse pelo seu corpo Vamos dar uma caminhada falei Não perguntei Dei a ordem Capitão vamos levar Tess ao parque Agora Jason pareceu entrar em pânico por um momento Lá estava uma mulher uma estranha falando com um pesado sotaque húngaro e dizendo a ele o que fazer Vi que ele olhou ao redor como se estivesse pensando Como faço para sair daqui Mas ele era um bom soldado Ficou de pé Sim senhora respondeu Sim senhora Logo eu descobriria a origem do trauma de Jason e ele descobriria que apesar de nossas óbvias diferenças tínhamos muita coisa em comum Ambos conhecíamos a violência E ambos sabíamos como era ficar paralisado Eu também carregava uma ferida dentro de mim uma tristeza tão profunda que por muitos anos não fora capaz de falar a respeito com ninguém O passado ainda me assombrava uma sensação de atordoamento e ansiedade sempre surgia quando eu ouvia sirenes passos pesados ou homens gritando Isso eu aprendera é o trauma A sensação quase permanente no estômago de que alguma coisa está errada ou de que algo terrível está para acontecer faz as respostas automáticas do medo em meu corpo me dizerem para fugir me proteger me esconder do perigo que está em toda parte Meu trauma pode ainda aparecer em situações prosaicas Uma visão súbita ou um cheiro específico têm o poder de me transportar de volta para o passado No dia em que conheci o capitão Fuller fazia mais de trinta anos que eu tinha sido libertada dos campos de concentração do Holocausto Hoje mais de setenta anos se passaram O que aconteceu não pode ser esquecido muito menos mudado Porém ao longo do tempo aprendi que posso escolher como reagir ao passado Posso me sentir triste ou esperançosa posso ficar deprimida ou feliz Sempre temos essa escolha essa oportunidade de controle Estou aqui isso é agora aprendi a repetir para mim mesma sem parar até o pânico começar a diminuir O senso comum diz que se uma coisa incomoda ou provoca ansiedade você simplesmente não deve olhar para ela Não deve encarála Portanto temos o hábito de fugir dos traumas do passado das dificuldades dos conflitos e dos desconfortos Durante grande parte da minha vida adulta eu achei que minha sobrevivência no presente dependia de manter afastados o passado e o sofrimento que ele provocava Em meus primeiros anos como imigrante em Baltimore nos Estados Unidos nos anos 1950 eu nem sequer sabia como pronunciar Auschwitz em inglês Não que eu quisesse contar que estive lá Eu não queria que ninguém sentisse pena de mim Não queria que ninguém soubesse Eu queria falar inglês sem sotaque e me esconder do passado Na ânsia de me integrar e com medo de ser engolida pelos meus traumas me esforcei bastante para manter minha dor em segredo Eu ainda não tinha percebido que meu silêncio e meu desejo de aceitação ambos baseados no medo eram maneiras de fugir de mim mesma Nem que ao escolher não enfrentar diretamente a mim ou ao passado eu ainda escolhia não ser livre mesmo décadas depois de meu encarceramento Eu tinha um segredo que me aprisionava O capitão do Exército catatônico sentado imóvel no meu sofá me lembrou de algo que eu descobrira com o tempo que quando obrigamos nossas verdades e histórias a se esconderem os segredos podem se tornar o próprio trauma a própria prisão Longe de diminuir a dor o que nos recusamos a aceitar se torna tão intransponível quanto as paredes de tijolos e barras de aço Quando não nos permitimos sofrer por nossas perdas feridas e decepções estamos condenados a revivêlas A liberdade está em aprender a aceitar o que aconteceu Liberdade significa reunir coragem para desmantelar a prisão tijolo por tijolo Coisas ruins acontecem com todo mundo Não podemos mudar isso Se olharmos para a nossa certidão de nascimento por acaso lá está escrito que a vida será fácil Não mas muitas pessoas permanecem presas em um trauma ou dor incapazes de viver de maneira plena Isso no entanto é possível mudar Recentemente no Aeroporto de Nova York enquanto esperava meu voo de volta para casa em San Diego fiquei sentada analisando os rostos de cada estranho que passava O que vi me emocionou profundamente Vi tédio fúria tensão preocupação confusão desânimo decepção tristeza e o mais preocupante vazio Fiquei muito triste ao notar tão pouca alegria naqueles rostos Mesmo os momentos mais maçantes da vida são oportunidades para sentir esperança leveza felicidade A rotina faz parte da vida assim como o sofrimento e o estresse Por que algumas vezes nos esforçamos para nos sentirmos vivos e outras nos distanciamos da sensação de viver plenamente Por que é tão desafiador trazer vida para a vida Se você me perguntasse qual é o diagnóstico mais comum entre as pessoas que atendo eu não diria depressão ou transtorno de estresse póstraumático embora essas doenças sejam bastante recorrentes entre aqueles que conheço amo e oriento para a liberdade Eu diria que é a fome Temos fome Fome de aprovação de atenção de afeição Temos fome de liberdade para aceitar a vida e para realmente nos conhecermos e sermos nós mesmos Minha própria busca pela liberdade e meus anos de experiência como psicóloga clínica me ensinaram que o sofrimento é universal mas que o complexo de vítima é opcional Existe uma diferença entre ser vítima e assumir o papel de vítima Somos todos suscetíveis a nos tornar vítimas de alguma maneira Todos sofreremos algum tipo de aflição desgraça ou abuso causado por pessoas ou circunstâncias sobre as quais não temos controle Isso é ser vítima É algo que vem de fora É o valentão da escola o chefe furioso a esposa que agride o amante que trai a lei que discrimina o acidente que o leva para o hospital Em contrapartida o complexo de vítima vem de dentro Ninguém pode fazer você se sentir inferior a não ser você mesmo Nós nos tornamos vítimas não pelo que acontece conosco mas quando escolhemos nos agarrar ao sofrimento Desenvolvemos uma forma de pensar e de agir que é rígida culpada pessimista presa ao passado rancorosa punitiva e sem limites saudáveis Nós nos tornamos nossos próprios carcereiros quando escolhemos ficar confinados ao papel de vítima Quero deixar uma coisa bem clara Quando falo de vítimas e sobreviventes não estou culpando as vítimas muitas jamais tiveram chance de se defender Nunca poderia culpar aqueles que foram enviados para as câmaras de gás que morreram de fome ou mesmo os que correram na direção da cerca elétrica de arame farpado Sofro por todas as pessoas que são condenadas à violência e à destruição todos os dias E vivo para orientar os outros a se fortalecerem diante das adversidades da vida Também quero dizer que não existe uma hierarquia do sofrimento Não há nada que torne a minha dor maior ou menor que a sua nenhum gráfico no qual possamos registrar a importância relativa de uma dor sobre a outra As pessoas me dizem As coisas na minha vida estão muito difíceis agora mas não tenho o direito de reclamar não é Auschwitz Esse tipo de comparação pode nos levar a minimizar ou depreciar nosso sofrimento Ser um sobrevivente exige aceitação total do que aconteceu Menosprezar sua dor ou se punir porque se sente perdido isolado ou assustado com os desafios da vida por mais insignificantes que esses desafios pareçam para os outros também é escolher bancar a vítima Ao fazer isso não estamos vendo nossas opções Estamos nos julgando Não quero que você leia minha história e diga Meu sofrimento é menos importante Quero que você afirme Se você pode fazer isso eu também posso Certa manhã eu atendi a duas pacientes uma logo depois da outra As duas eram mães na faixa dos 40 anos A primeira tinha uma filha hemofílica que estava morrendo Ela passou a maior parte da consulta chorando e perguntando como Deus poderia tirar a vida da sua menina Sinto muito por aquela mulher que se dedicou totalmente a cuidar da filha e estava arrasada com a perda iminente Ela sentia raiva sofria e não sabia se conseguiria sobreviver àquela dor A paciente seguinte tinha acabado de chegar do clube não do hospital Ela também passou a maior parte da consulta chorando Estava chateada porque acabara de receber seu Cadillac novo e o carro tinha vindo no tom errado de amarelo Aparentemente seu problema era banal principalmente se comparado ao da outra paciente angustiada com a filha à beira da morte Mas eu a conhecia suficientemente bem para entender que suas lágrimas de decepção pela cor do carro eram na realidade lágrimas de decepção em relação a coisas mais importantes que não estavam acontecendo do jeito que ela esperava a solidão no casamento o filho que tinha sido expulso de mais uma escola as aspirações profissionais que ela abandonara para estar mais disponível para o marido e o filho Muitas vezes os pequenos aborrecimentos da vida simbolizam perdas maiores e as aflições aparentemente insignificantes representam sofrimentos mais intensos Percebi naquele dia quanto as duas pacientes que pareciam tão diferentes tinham em comum uma com a outra e com todas as pessoas em toda parte As duas estavam reagindo a situações que não podiam controlar e que haviam destruído suas expectativas Ambas lutavam e sofriam por algo que não era o que queriam ou esperavam que fosse estavam tentando conciliar o que era com o que deveria ser A dor de cada uma era real Cada mulher estava presa em seu drama que conhecemos quando nos encontramos em situações imprevistas as quais não nos sentimos preparados para enfrentar As duas mulheres mereciam minha compaixão As duas tinham tudo para se curar As duas como todos nós podiam escolher as atitudes e ações capazes de transformálas de vítimas em sobreviventes mesmo que as circunstâncias que enfrentavam não mudassem Sobreviventes não têm tempo para perguntar Por que eu Para os sobreviventes a única pergunta relevante é E agora Esteja você no início no meio do caminho ou no outono de sua vida quer tenha experimentado o sofrimento profundo ou esteja apenas começando a enfrentar dificuldades esteja se apaixonando pela primeira vez ou perdendo seu parceiro de vida para a velhice esteja se curando de uma situação transformadora ou em busca de pequenos ajustes que poderiam trazer mais alegria para sua vida eu adoraria ajudálo a descobrir como escapar do campo de concentração de sua mente e a se tornar a pessoa que deveria ser Eu adoraria ajudar você a se libertar do passado dos fracassos e dos medos da raiva e dos erros do arrependimento e do sofrimento sem solução e ter a liberdade de aproveitar a festa da vida em sua plenitude Não há como escolher viver livre de dor mas podemos escolher ser livres nos libertar do passado e aceitar o possível Convido você a escolher ser livre Como a chalá um pão típico judaico que minha mãe costumava fazer para nossa refeição de sextafeira à noite este livro é uma trança formada pela minha história de sobrevivência pela minha trajetória de cura e pelos casos de pessoas queridas que tive o privilégio de orientar Transmiti minha experiência da melhor forma que consegui lembrar As histórias dos pacientes refletem com precisão a essência das experiências deles embora eu tenha mudado os nomes e os detalhes que pudessem identificálos Em algumas situações criei composições a partir de pacientes que passavam por desafios semelhantes O que se segue é a história das escolhas grandes e pequenas que podem nos levar do trauma ao triunfo da escuridão à luz da prisão à liberdade C A P Í T U L O 1 As quatro perguntas Se eu pudesse resumir toda a minha vida em um momento em uma imagem estática seria o seguinte três mulheres vestindo casacos de lã escura esperam de braços dados em um pátio árido Estão exaustas Os sapatos estão sujos Elas esperam numa fila longa As três mulheres são minha mãe minha irmã Magda e eu Este é nosso último momento juntas Não sabemos disso Nós nos recusamos a pensar nisso Ou estamos cansadas demais para especular sobre o que nos espera É um momento de ruptura da mãe com as filhas e da vida como era antes com aquela que virá depois No entanto só em retrospecto podemos entender tudo isso Vejo nós três por trás como se eu fosse a próxima da fila Por que a memória me mostra a parte de trás da cabeça da minha mãe mas não o rosto dela Seu cabelo longo está trançado e preso no alto da cabeça Os cachos castanhoclaros de Magda tocam seu ombro Meu cabelo escuro está sob um lenço Minha mãe está no meio e Magda e eu nos inclinamos em sua direção É impossível saber se nós é que mantemos nossa mãe de pé ou se é o contrário se a força da nossa mãe é o pilar que sustenta Magda e eu Este momento é o limiar da maior perda da minha vida Depois de sete décadas eu ainda volto a essa imagem de nós três Eu a analiso como se o exame minucioso pudesse recuperar algo precioso Como se eu pudesse reconquistar a vida que antecede esse momento a vida que antecede a perda Como se isso fosse possível Eu voltei para poder ficar mais um pouquinho nesse momento em que estamos de braços dados e pertencemos umas às outras Olho para nossos ombros inclinados para a poeira na barra de nossos casacos Minha mãe Minha irmã Eu Nossas memórias da infância são muitas vezes fragmentos momentos rápidos ou flashes que juntos formam um álbum de recortes de nossa vida Esses fragmentos são tudo o que nos resta para entender a história que passamos a contar para nós mesmos sobre quem somos Mesmo antes do momento da nossa separação a lembrança que tenho de minha mãe é cheia de tristeza e perda Ainda assim eu a preservo Estamos sozinhas na cozinha onde ela embrulha o resto do strudel que fez com a massa que eu a vi cortar e dobrar como uma toalha pesada sobre a mesa da sala de jantar Leia para mim diz ela e eu pego a cópia desgastada de E o vento levou na mesa de cabeceira dela Já lemos esse livro todo uma vez antes Recomeçamos a leitura Faço uma pausa na misteriosa dedicatória escrita em inglês na página de rosto do volume traduzido A letra é de um homem mas não do meu pai Tudo o que minha mãe diz é que o livro foi um presente de um homem que ela conheceu quando trabalhou no Ministério das Relações Exteriores antes de conhecer meu pai Estamos sentadas em cadeiras de espaldar reto perto do fogão a lenha Leio o romance adulto fluentemente apesar de ter apenas 9 anos Estou feliz por você ser inteligente porque você não é bonita ela me disse mais de uma vez misturando elogio e crítica Ela pode ser dura comigo mas saboreio o momento Quando lemos juntas não preciso dividila com mais ninguém Mergulho nas palavras na história e na sensação de estar sozinha em um mundo com ela Scarlett volta para Tara no fim da guerra para encontrar a mãe morta e o pai em luto profundo Com Deus por testemunha diz Scarlett jamais sentirei fome novamente Minha mãe fecha os olhos e inclina a cabeça contra o encosto da cadeira Quero subir no colo dela Descansar minha cabeça em seu peito Quero que ela encoste seus lábios no meu cabelo Tara diz ela A América agora seria um lugar para se conhecer Adoraria que ela dissesse o meu nome com a mesma suavidade que reserva para um país onde nunca esteve Para mim todos os aromas da cozinha da minha mãe se misturam com o drama da abundância e da fome Tenho sempre essa lembrança mesmo na fartura Não sei se sinto saudade de minha mãe se é de mim ou de algo que partilhamos Sentamos com o fogão entre nós Quando eu tinha sua idade começa ela Agora que ela está falando tenho medo de me mexer e ela parar Quando tinha a sua idade os bebês dormiam juntos e minha mãe e eu dividíamos uma cama Numa manhã acordei com meu pai me chamando Ilonka acorde sua mãe ela ainda não fez o café da manhã nem separou as minhas roupas Virei para minha mãe que estava ao meu lado sob as cobertas mas ela não se mexeu Estava morta Ela nunca tinha me contado isso Quero saber cada detalhe sobre aquele momento em que a filha acordou ao lado da mãe que já tinha perdido Também quero desviar o olhar É assustador demais pensar nisso Quando ela foi sepultada à tarde achei que tinha sido enterrada viva Naquela noite papai disse para eu preparar a ceia da família Então fui lá e fiz Aguardo o resto da história Aguardo a lição no fim Ou algum consolo Hora de dormir É tudo o que minha mãe diz antes de se curvar para varrer as cinzas debaixo do fogão Passos avançam pelo corredor Posso sentir o cheiro de tabaco de meu pai antes mesmo do barulho metálico de suas chaves Senhoras chama ele Ainda estão acordadas Ele entra na cozinha com seus sapatos lustrados e o terno elegante um sorriso enorme estampado no rosto e um pequeno saco na mão que ele me entrega com um beijo estalado na testa Ganhei de novo gabase ele Sempre que meu pai joga cartas ou bilhar com os amigos divide o que ganha comigo Hoje trouxe um biscoito coberto com uma camada de açúcar rosa Se eu fosse Magda minha mãe sempre preocupada com o peso de minha irmã teria pegado o doce de minhas mãos Mas ela acenou com a cabeça e me deu permissão para comêlo Ela está em pé agora no meio do caminho entre o fogão e a pia Meu pai a intercepta e levanta a mão e a faz dar um giro pela cozinha o que ela faz rigidamente sem sorrir Ele a puxa para um abraço deixa uma das mãos nas costas dela e com a outra ele toca de leve em seu peito Minha mãe encolhe os ombros e o afasta Sou uma decepção para sua mãe meu pai meio que sussurra para mim quando saímos da cozinha Será que ele quer que ela ouça ou é um segredo só entre nós De qualquer forma é algo que eu guardo para refletir depois No entanto a amargura na voz dele me assusta Ela quer ir à ópera toda noite e ter uma vida cosmopolita extravagante Sou apenas um alfaiate Um alfaiate jogador de sinuca O tom de derrota na voz de meu pai me confunde Ele é conhecido e muito querido em nossa cidade Brincalhão parece estar sempre à vontade e animado É divertido conviver com ele Tem muitos amigos Ele adora comer principalmente o presunto que às vezes traz escondido para nossa casa kosher e que devora sobre o jornal no qual foi embrulhado empurrando pedaços do porco proibido na minha boca aguentando as acusações de mamãe de que é uma figura paterna fraca Sua alfaiataria lhe rendeu duas medalhas de ouro Ele não é bom apenas em fazer costuras alinhadas e bainhas retas Ele é um mestre da alta costura Foi assim que ele conheceu mamãe Ela procurou a alfaiataria porque precisava de um vestido e o trabalho dele tinha sido bem recomendado Mas ele queria ser médico não um alfaiate um sonho que o pai desestimulou e que de vez em quando ressurgia em demonstrações de decepção consigo mesmo Você não é só um alfaiate Papa garantia eu Você é o melhor alfaiate E você será a senhorita mais bemvestida de Košice respondia ele me afagando a cabeça Você tem o corpo perfeito para a altacostura Ele parece se recuperar e manda o desânimo de volta para as sombras Chegamos na porta do quarto que divido com Magda e com nossa irmã do meio Klara Já imagino Magda fingindo fazer o dever de casa e Klara tirando poeira de seu violino Papai e eu ficamos na porta um pouco mais nenhum dos dois pronto para se separar Queria que você fosse um menino sabia confidencia meu pai Dei um murro na porta quando você nasceu de tão zangado que fiquei ao ter outra menina mas agora você é a única com quem posso conversar completa Ele me dá um beijo na testa Amo receber tanta atenção de meu pai Como a atenção de mamãe ela é preciosa e instável Como se merecer o amor deles tivesse menos a ver comigo e mais com a solidão deles Como se minha identidade não tivesse nada a ver com o que sou e fosse apenas uma medida do que está faltando nos meus pais Boa noite Dicuka fala meu pai por fim Ele usa o apelido que minha mãe inventou para mim Ditzuka Essas sílabas sem sentido são carinhos para mim Diga a suas irmãs que está na hora de apagar as luzes Ao entrar no quarto Magda e Klara me recebem com a canção que inventaram para mim Elas a inventaram quando eu tinha 3 anos e um dos meus olhos ficou vesgo por causa de um procedimento médico malfeito Você é tão feia você é tão pequena elas cantam Você nunca vai arranjar um marido Desde o acidente eu abaixo a cabeça ao caminhar para não ter que ver as pessoas olhando para meu rosto torto Ainda não aprendi que o problema não é minhas irmãs me provocarem com uma canção maldosa o problema é eu acreditar nelas Estou tão convencida de minha inferioridade que nunca me apresento pelo nome Nunca digo às pessoas Eu sou Edie Klara é uma violinista prodigiosa Ela aprendeu o concerto para violino de Mendelssohn quando tinha 5 anos Digo Sou irmã da Klara Mas esta noite tenho algo especial A mãe da mamãe morreu quando ela tinha exatamente a minha idade conto a elas Estou tão segura da natureza privilegiada dessa informação que não me ocorreu que para minhas irmãs ela fosse notícia antiga que eu era a última e não a primeira a saber Você está brincando diz Magda com a voz cheia de sarcasmo tão óbvio que nem eu consigo reconhecer Ela tem 15 anos já tem seios lábios sensuais e cabelos ondulados Ela é a piadista da família Quando éramos mais jovens Magda me ensinou a jogar uvas da janela do nosso quarto nas xícaras de café dos fregueses sentados no pátio embaixo Inspirada nela logo inventarei minhas próprias brincadeiras mas até lá as apostas serão outras Minha amiga e eu vamos nos exibir para os garotos na escola ou nas ruas Me encontre às quatro no relógio da praça vamos falar cantarolando e dando uma piscadela Eles virão eles sempre vão às vezes eufóricos às vezes tímidos às vezes se vangloriando antecipadamente Da segurança de meu quarto minha amiga e eu vamos ficar na janela e assistir aos garotos chegando Não provoque demais reclama agora Klara com Magda Klara é mais jovem que Magda mas sai em minha defesa Sabe aquela fotografia em cima do piano pergunta ela Aquela de que Mama sempre comenta Aquela é a mãe dela Sei qual é a imagem a que ela se refere Olho para ela todos os dias da minha vida Ajudeme Ajudeme nossa mãe geme para o retrato enquanto tira o pó do piano e varre o chão Fico constrangida por nunca ter perguntado à nossa mãe ou a alguém quem era a pessoa da fotografia Além disso estou decepcionada que minha informação não tenha me proporcionado nenhum status especial com minhas irmãs Estou acostumada a ser a irmã calada a invisível Não me ocorreu que Magda estivesse cansada de ser a palhaça e Klara ressentida de ser a menina prodígio Ela não pode nem por um segundo deixar de ser extraordinária sob pena de perder tudo a adoração a que está acostumada e seu próprio senso de identidade Magda e eu precisamos nos esforçar para conseguir algo que temos certeza que nunca será suficiente Klara sabe que a qualquer momento pode cometer um erro fatal e perder tudo Klara toca violino desde que eu tinha 3 anos Não demorou muito para eu perceber o preço de seu incrível talento ela abriu mão de ser criança Nunca a vi brincar com bonecas Em vez disso ela ficava praticando violino em frente a uma janela aberta incapaz de desfrutar de seu gênio criativo a não ser que pudesse convidar a plateia de passantes para assistirlhe Mama ama Papa perguntei às minhas irmãs A distância entre nossos pais as coisas tristes que eles confessaram para mim me fizeram lembrar que eu nunca os vi arrumados e prontos para sair juntos Que pergunta comenta Klara Embora negue minha preocupação acho que vi um reconhecimento nos olhos dela Nunca voltamos a discutir isso embora eu tenha tentado Demorei anos para saber o que minhas irmãs já sabiam que o que chamamos de amor é muitas vezes algo mais condicional a recompensa para um desempenho com que você tem que se contentar Quando vestimos nossas camisolas e nos deitamos esqueço a preocupação com meus pais e penso em vez disso no meu professor de balé e em sua esposa da sensação que tenho ao subir as escadas para o estúdio pulando dois ou três degraus por vez e arrancar o uniforme da escola e colocar a malha e a meia Estudo balé desde os 5 anos quando minha mãe percebeu que eu não era o tipo musical mas que tinha outros talentos Hoje treinamos o espacate O professor de balé nos lembrou que força e flexibilidade são inseparáveis Para um músculo se flexionar outro deve se estender Para obter amplitude e flexibilidade é preciso manter o núcleo forte Guardo as instruções dele na cabeça como uma oração Lá vou eu com a coluna reta os músculos abdominais firmes as pernas totalmente estendidas Sei como respirar sobretudo quando me sinto presa Vejo meu corpo se estendendo como as cordas do violino de minha irmã encontrando o ponto exato de tensão que faz o instrumento todo vibrar Estou no chão Estou aqui Fazendo espacates completos Bravo meu professor de balé aplaude Fique exatamente como está Ele me levanta do chão acima de sua cabeça É difícil manter as pernas estendidas sem ter o chão como apoio mas por um momento eu me sinto como uma oferenda como pura luz Editke meu professor diz todo o seu êxtase na vida virá de dentro de você Precisei de anos para entender realmente o que ele quis dizer Por enquanto tudo o que sei é que posso respirar e girar e chutar e me curvar À medida que meus músculos se alongam e se fortalecem cada movimento cada pose parece gritar Eu sou eu sou eu sou Eu sou eu Sou alguém A memória é um solo sagrado Porém ela é também malassombrada É o lugar onde a raiva a culpa e o sofrimento circulam como pássaros famintos revirando os mesmos ossos velhos É o lugar onde busco a resposta para uma pergunta irrespondível Por que eu sobrevivi Tenho 7 anos e meus pais estão recebendo convidados para jantar Eles pedem que eu vá encher a jarra de água Da cozinha os ouço comentar em tom de brincadeira Podíamos ter evitado essa Acho que eles querem dizer que já eram uma família completa antes de meu nascimento Eles tinham uma filha que tocava piano e outra que tocava violino Eu sou desnecessária não sou suficientemente boa não há espaço para mim eu penso Essa é a maneira como interpretamos mal os fatos da nossa vida como temos certezas sem verificar nada como inventamos uma história para nós mesmos reforçando aquilo que está em nós e em que já acreditamos Aos 8 anos decido fugir de casa Quero testar a teoria de que sou dispensável invisível Vou ver se meus pais notam que desapareci Em vez de ir à escola pego o bonde para a casa de meus avós Confio que meus avós o pai de minha mãe e a madrasta dela vão me dar cobertura Eles estão envolvidos em uma guerra permanente com minha mãe por causa de Magda escondem biscoitos na gaveta da cômoda de minha irmã Eles me dão segurança embora concordem com as proibições Meus avós costumam ficar de mãos dadas algo que meus pais nunca fazem Seu amor não é forçado não há fingimento para sua aprovação Eles significam conforto o cheiro de carne e feijão cozido de pão doce de cholent um guisado delicioso que minha avó leva para a padaria cozinhar no Shabat quando a prática ortodoxa não permite que ela use o próprio forno Meus avós ficam felizes em me ver Está uma manhã maravilhosa Eu me sento na cozinha para comer rocambole de amêndoa mas a campainha toca e meu avô vai atender Um segundo depois ele volta correndo para a cozinha e como tem dificuldade para escutar dá seu aviso bem alto Se esconde Dicuka grita ele Sua mãe está aqui Ao tentar me proteger ele me revela O que me incomoda mais é o olhar no rosto da minha mãe quando ela me vê na cozinha dos meus avós Ela não está apenas surpresa ao me encontrar aqui é como se o simples fato de eu existir a surpreendesse Como se eu não fosse quem ela quer ou espera que eu seja Nunca serei bonita isso minha mãe deixou claro mas ela garantiu que quando eu completar 10 anos não terei mais que esconder o rosto Dr Klein de Budapeste vai consertar meu estrabismo No trem para Budapeste eu como chocolate e desfruto da atenção exclusiva da minha mãe Dr Klein é uma celebridade explica minha mãe o primeiro a realizar cirurgias oftalmológicas sem anestesia Estou muito absorvida pela aventura da viagem e pelo privilégio de ter a minha mãe só para mim para entender que ela está me alertando Nunca me passou pela cabeça que a cirurgia doeria Não até a dor me consumir Minha mãe e os parentes dela que indicaram o famoso Dr Klein seguram meu corpo agitado contra a maca Pior do que a dor que é imensa e infindável é a sensação das pessoas que me amam me imobilizando para que eu não me mexa Somente mais tarde bem depois que a cirurgia se provou bemsucedida consigo ver a cena do ponto de vista de minha mãe e entender como ela deve ter sofrido com o meu sofrimento Sintome muito mais feliz quando estou sozinha e posso me recolher em meu mundo interior Certa manhã quando estou com 13 anos e caminho para a escola ensaio os passos da coreografia do Danúbio azul que minha turma de balé vai apresentar em um festival à beira do rio A criatividade me domina e eu me deixo levar em uma nova dança de minha própria autoria Uma dança em que imagino meus pais se encontrando Interpreto os dois papéis Meu pai faz uma batida de perna dupla quando vê minha mãe entrar na sala Minha mãe faz um giro rápido e salta bem alto Meu corpo inteiro se arqueia numa gargalhada gostosa Nunca vi minha mãe se divertir nunca ouvi uma gargalhada sua daquela que faz balançar a barriga mas sinto em meu corpo a inexplorada fonte de sua felicidade Quando chego à escola o dinheiro que meu pai me deu para pagar o trimestre inteiro sumiu No alvoroço da dança perdi o dinheiro Verifico cada bolso e dobra de minha roupa mas não há nada Passo o dia inteiro com o medo de contar ao meu pai queimando as minhas entranhas Em casa ele não consegue me olhar quando levanta os punhos É a primeira vez que ele bate em mim na verdade em qualquer uma de nós Ele não diz uma palavra para mim quando acaba Na cama naquela noite quero morrer para que meu pai sofra pelo que fez comigo E então quero que meu pai morra Essas lembranças dão uma noção de minha força Ou da minha mágoa Talvez cada infância seja o terreno em que tentamos identificar nossa importância um mapa onde estudamos as dimensões e as fronteiras do nosso valor Talvez cada vida seja um estudo sobre as coisas que não temos mas que gostaríamos de ter e das coisas que temos mas que gostaríamos de não ter Levei muitas décadas para descobrir que eu podia me fazer uma pergunta diferente Não Por que eu vivo Mas O que eu posso fazer com a vida que recebi Os dramas humanos comuns de minha família ficavam piores por causa de fronteiras e guerras Antes da Primeira Guerra Mundial a região da Eslováquia onde nasci e fui criada era parte do Império AustroHúngaro mas em 1918 uma década antes do meu nascimento o Tratado de Versalhes redesenhou o mapa da Europa e criou um novo Estado A Tchecoslováquia foi formada pela junção da Eslováquia agrária a região da minha família que tinha origem húngara e eslovaca com as áreas mais industriais da Morávia e da Boêmia que eram originalmente tchecas e com a Rutênia subcarpática que atualmente faz parte da Ucrânia Com a criação da Tchecoslováquia Kassa a cidade onde nasci na Hungria virou Košice na Tchecoslováquia E minha família virou minoria duplamente Nossa origem era húngara mas vivíamos em um país majoritariamente tcheco e éramos judeus Embora existissem judeus na Eslováquia desde o século XI só em 1840 eles foram autorizados a se instalar em Kassa Mesmo assim funcionários municipais apoiados por guildas comerciais cristãs dificultavam a vida das famílias judias que queriam morar lá Na virada do século Kassa havia se tornado uma das maiores comunidades judaicas da Europa Ao contrário do que aconteceu em outros países do Leste Europeu como a Polônia os judeus húngaros não se instalaram em guetos razão pela qual minha família falava húngaro não ídiche Não éramos segregados e desfrutávamos de muitas oportunidades educacionais profissionais e culturais Ainda assim enfrentávamos preconceito O antissemitismo não foi uma invenção nazista À medida que crescia internalizei uma sensação de inferioridade e a crença de que era mais seguro não revelar que era judia para me integrar me misturar nunca me destacar Era difícil encontrar um sentido de identidade e pertencimento Então em novembro de 1938 a Hungria anexou Košice novamente e voltamos a nos sentir em casa Mamãe está em nossa varanda no antigo Palácio Andrássy que foi transformado em edifício com diversos apartamentos Ela pendurou um tapete oriental na nossa grade Não está limpando o tapete mas comemorando Sua Alteza Sereníssima o Almirante Miklós Horthy regente do Reino da Hungria chega hoje para acolher formalmente nossa cidade na Hungria Entendo a empolgação e o orgulho de meus pais Nós pertencemos Hoje eu também vou dançar para dar as boasvindas a Horthy Uso uma roupa típica húngara saia e colete de lã brilhante com bordados florais blusa branca de mangas bufantes laços rendas e botas vermelhas Quando dou o chute bem alto na beira do rio Horthy aplaude abraça os dançarinos me abraça Dicuka eu queria que fôssemos louras como Klara sussurrou Magda na hora de dormir Ainda estamos a anos de distância do toque de recolher e das leis discriminatórias mas o desfile de Horthy é o ponto de partida de tudo o que virá A cidadania húngara por um lado trouxe pertencimento mas exclusão por outro Estamos tão felizes de falar nossa língua nativa de sermos aceitos como húngaros mas essa aceitação depende de nossa assimilação Os vizinhos argumentam que apenas húngaros não judeus deviam ser autorizados a usar as vestes tradicionais Melhor não revelar que você é judia avisa minha irmã Magda Isso só vai fazer com que as outras pessoas queiram pegar as coisas bonitas que você tem Magda é a primogênita ela descreve o mundo para mim Ela apresenta os detalhes quase sempre de coisas complicadas para analisarmos e ponderarmos Em 1939 o ano em que a Alemanha nazista invadiu a Polônia os nazistas húngaros os nyilas ocupam o apartamento embaixo do nosso no Palácio Andrássy Eles cospem em Magda Eles nos expulsam Acabamos nos mudando para outro apartamento no Kossuth Lajos Utca número 6 numa rua secundária em vez de na rua principal o que é menos conveniente para o negócio do meu pai O apartamento ficou disponível porque os antigos ocupantes outra família judia partiu para a América do Sul Conhecemos algumas famílias judias que estão deixando a Hungria A irmã de meu pai Matilda já partiu há anos Ela mora em Nova York num lugar chamado Bronx numa área de imigrantes judeus A vida dela nos Estados Unidos parece mais difícil do que a nossa Não falamos sobre ir embora Mesmo em 1940 quando estou com 13 anos e os nyilas começam a prender os judeus de Kassa e mandálos para um campo de trabalhos forçados a guerra parece distante de nós Meu pai não é levado Não no começo Usamos a negação como proteção Se não prestarmos atenção então podemos continuar vivendo sem ser notados Podemos criar um mundo seguro em nossas mentes Podemos nos tornar invisíveis às ofensas Porém um dia em junho de 1941 Magda está na rua de bicicleta quando as sirenes soam Ela corre três quarteirões em busca de segurança na casa de nossos avós e encontra quase tudo destruído Eles sobreviveram graças a Deus Mas a senhoria deles não Foi um ataque único um só bairro arrasado por um bombardeio Disseram que os russos eram responsáveis pelos escombros e pelas mortes Ninguém acredita embora não seja possível refutar Temos sorte e somos ao mesmo tempo vulneráveis A única verdade sólida é a pilha de tijolos esmagados no lugar onde era a casa Destruição e ausência esses são os fatos A Hungria se alia à Alemanha na Operação Barbarossa Invadimos a Rússia Nessa época somos obrigados a usar a estrela amarela O truque é escondê la sob o casaco Porém mesmo com a estrela escondida eu sinto como se tivesse feito algo ruim algo passível de punição Que pecado imperdoável cometi Minha mãe está sempre perto do rádio Quando fazemos piquenique na beira do rio meu pai conta histórias sobre como era ser prisioneiro na Rússia durante a Primeira Guerra Mundial Sei que a experiência dele como prisioneiro de guerra seu trauma embora eu ainda não saiba que esse é o nome que se dá a isso tem algo a ver com comer porco e com seu distanciamento da religião Sei que a guerra está na origem de sua angústia Mas a guerra essa guerra ainda é em algum outro lugar Posso ignorála e ignoro Depois da escola passo cinco horas no estúdio de balé e começo também a fazer ginástica olímpica Embora no início encare como um exercício complementar ao balé a ginástica logo vira uma paixão uma arte com a mesma intensidade Entro no clube do livro formado por um grupo de meninas de meu colégio e por meninos de uma escola particular próxima Lemos Maria Antonieta retrato de uma mulher comum de Stefan Zweig Conversamos sobre a maneira de Zweig escrever como se estivesse dentro da mente de uma pessoa No clube do livro há um garoto chamado Eric que um dia repara em mim Sinto o olhar atento dele cada vez que falo Ele é alto tem sardas e é ruivo Imagino Versalhes Imagino o quarto de Maria Antonieta Imagino encontrar Eric lá Não sei nada sobre sexo mas sou romântica Vejo que ele presta atenção em mim e imagino Como seriam nossos filhos Eles também teriam sardas Eric se aproxima de mim depois da discussão Ele cheira bem como ar fresco ou como a grama na beira do rio Hornád onde em breve iremos passear Nossa relação tem peso e substância desde o início Conversamos sobre literatura e sobre a Palestina ele é um sionista dedicado Não são tempos para namoros despreocupados nossa ligação não é uma paixonite um namorico de criança Tratase de um amor em tempo de guerra O toque de recolher foi imposto aos judeus mas nós nos esgueiramos certa noite sem usar nossas estrelas amarelas Ficamos na fila do cinema Encontramos nossos lugares no escuro É um filme americano estrelado por Bette Davis Estranha passageira aprendi mais tarde é seu título americano mas em húngaro se chama Utazás a múltból Jornada para o passado Bette Davis interpreta uma filha solteira tiranizada pela mãe controladora Ela tenta encontrar a si mesma e se libertar mas é constantemente arrasada pelas críticas da mãe Eric vê o filme como uma metáfora política sobre autodeterminação e autoestima Eu vejo sinais de minha mãe e de Magda De minha mãe que adora Eric mas repreende Magda por seu namoro descompromissado que me pede para comer mais mas se recusa a encher o prato de Magda que está sempre silenciosa e introspectiva mas briga com Magda e cuja raiva nunca é direcionada a mim mas que me aterroriza da mesma forma As brigas em minha família a frente de batalha com a Rússia se aproximando nunca sabemos o que virá a seguir Na escuridão e no caos da incerteza Eric e eu criamos nossa própria luz Todo dia à medida que a liberdade e as escolhas se tornam cada vez mais restritas nós planejamos o futuro Nosso relacionamento é como uma ponte que nos permite sair das preocupações atuais e alcançar as alegrias futuras Planos paixão promessas Talvez a turbulência que nos rodeia dê a oportunidade para mais compromisso menos questionamento Ninguém sabe o que vai acontecer mas nós sabemos Temos um ao outro e o futuro uma vida a dois que podemos ver tão claramente quanto vemos nossas mãos quando as juntamos Vamos até a beira do rio em um dia de agosto de 1943 Eric traz uma câmera e me fotografa de maiô fazendo espacates na grama Imagino mostrar essa foto para nossos filhos um dia E contar a eles como mantivemos nosso amor e nosso compromisso Quando chego em casa naquele dia meu pai tinha sido levado para um campo de trabalhos forçados Ele é um alfaiate apolítico Como pode ser uma ameaça para alguém Por que foi escolhido Ele tem algum inimigo Existem muitas coisas que minha mãe não vai me dizer Será que ela não sabe Ou está me protegendo Ou se protegendo Ela não fala abertamente sobre os problemas mas nos longos meses em que meu pai fica longe posso sentir o quanto está triste e assustada Vejo que ela tenta preparar várias refeições com uma única galinha Ela tem enxaquecas Aceitamos um pensionista para compensar a perda de renda Ele é dono de uma loja do outro lado da rua Eu fico sentada na loja dele por longas horas só para estar perto de sua presença reconfortante Magda que é basicamente adulta agora e já saiu da escola descobre onde está nosso pai e o visita Ela o vê cambaleando sob o peso de uma mesa que ele tem que carregar de um lugar para outro Este é o único detalhe que ela me conta da visita Não sei o que significa esta imagem Não sei que tipo de trabalho meu pai é forçado a fazer em seu cativeiro nem quanto tempo ficará preso Tenho duas imagens de meu pai a que conheci a vida toda com o cigarro na boca a fita métrica em volta do pescoço o giz na mão para riscar o molde no tecido caro os olhos brilhando pronto para começar a cantar ou contar uma piada E esta nova imagem levantando uma mesa muito pesada em um lugar sem nome em uma terra de ninguém No meu aniversário de 16 anos fico em casa por causa de um resfriado e Eric vai lá me entregar 16 rosas e um primeiro beijo apaixonado Estou feliz mas também estou triste A que posso me agarrar O que dura Dou a foto que Eric tirou de mim na beira do rio a uma amiga Não me lembro a razão Por segurança Não tive nenhuma premonição de que logo iria embora bem antes do meu próximo aniversário De alguma forma eu devia saber que precisaria de alguém para preservar evidências da minha vida que precisaria plantar ao meu redor provas de minha existência como se espalhasse sementes Em algum momento no início da primavera depois de sete ou oito meses no campo de trabalhos forçados meu pai retorna É uma bênção ele foi liberado a tempo para o Pessach que será em uma ou duas semanas Isso é o que pensávamos Ele retoma sua fita métrica e o giz Não fala sobre onde esteve Sento no piso azul na academia de ginástica certo dia algumas semanas depois do retorno dele para fazer o aquecimento com uma rotina de solo estico as pontas dos pés flexiono os pés alongo as pernas os braços o pescoço e a coluna Eu me sinto novamente como eu mesma Não sou mais a baixinha vesga com medo de falar o próprio nome Não sou mais a filha com medo por sua família Sou uma artista e uma atleta com um corpo forte e flexível Não tenho a aparência de Magda ou a fama de Klara mas tenho um corpo ágil e expressivo cujo desenvolvimento é a única coisa verdadeira de que preciso Meu treinamento minha habilidade minha vida transbordam de possibilidades Os melhores de minha turma de ginástica formaram uma equipe de treinamento olímpico A Olimpíada de 1944 foi cancelada por causa da guerra mas isso só nos dá mais tempo de preparação para a competição Fecho os olhos e estendo os braços e o tronco para a frente entre as pernas Minha amiga me cutuca com o dedão eu levanto a cabeça e vejo nossa técnica vindo na minha direção Estamos meio apaixonadas por ela Não é uma paixão sexual É a adoração da heroína Às vezes voltamos para casa pelo caminho mais longo a fim de passar pela casa dela e andamos o mais lentamente possível na esperança de vêla de relance pela janela Temos ciúmes do que não sabemos da vida dela Com a promessa das Olimpíadas quando finalmente a guerra terminar grande parte do meu propósito se baseia no apoio e na fé que minha treinadora tem em mim Se eu conseguir absorver tudo o que ela tem a ensinar e se conseguir retribuir sua confiança então grandes coisas me aguardam Editke chama ela ao se aproximar usando o diminutivo de meu nome Edith Uma palavra por favor Seus dedos deslizam pelas minhas costas enquanto ela me leva até o corredor Apreensiva olho para ela Talvez ela tenha percebido o quanto melhorei no salto Talvez queira que eu lidere a equipe em mais exercícios de alongamento no fim do treino de hoje Talvez queira me convidar para jantar Estou pronta para dizer sim antes de ela sequer perguntar Não sei como lhe dizer isso começa ela então observa o meu rosto e olha na direção da janela iluminada pelo pôr do sol É a minha irmã pergunto antes mesmo de perceber a terrível cena se formando na minha cabeça Klara agora estuda no Conservatório de Budapeste Nossa mãe foi a Budapeste assistir ao concerto de Klara e buscála para passar o Pessach em casa Como minha técnica se apoia desajeitadamente ao meu lado no corredor incapaz de me encarar imagino que o trem tenha descarrilado Ainda é cedo demais para elas estarem viajando de volta para casa mas essa é a única tragédia em que consigo pensar Mesmo em tempo de guerra o primeiro desastre que passa pela minha cabeça é mecânico uma tragédia do erro humano não de criação humana embora eu saiba que alguns professores de Klara incluindo não judeus já fugiram da Europa por temerem o que está por vir Sua família está bem O tom dela não me convence Edith A decisão não foi minha mas sou eu que devo lhe dizer que sua vaga na equipe de treinamento olímpico vai para outra pessoa Acho que vou vomitar Sintome estrangeira em minha própria pele O que eu fiz Repasso os meses de treinamentos rigorosos em busca do que fiz de errado Não entendi Meu bem diz ela e agora olha direto para mim o que é pior porque posso ver que está chorando e naquele momento em que meus sonhos estão sendo destruídos não quero sentir pena dela A verdade simples é que por causa de sua origem você não está mais qualificada Penso nas crianças que cuspiram em mim e me chamaram de judia suja dos amigos judeus que pararam de ir à escola para evitar aborrecimentos e agora acompanham as lições pelo rádio Se alguém cospe em você cuspa de volta meu pai me instruiu É isso que você deve fazer Considero cuspir na minha técnica Mas revidar seria aceitar a notícia devastadora E eu não a aceito Não sou judia digo Lamento Editke Lamento muito Ainda quero você no estúdio Gostaria de pedir que treine a garota que a substituirá na equipe Mais uma vez os dedos dela tocam minhas costas Daqui a um ano minha coluna estará fraturada exatamente no ponto que ela agora acaricia Dentro de semanas minha própria vida estará em risco Mas aqui no corredor de minha adorada academia a sensação é de que minha vida já acabou Nos dias seguintes à minha expulsão da equipe de treinamento olímpico preparo minha vingança Não será uma vingança de ódio será uma vingança da perfeição Mostrarei à técnica que sou a melhor A atleta mais talentosa A melhor treinadora Vou treinar minha substituta tão meticulosamente que provarei a todos o erro que cometeram ao me cortar da equipe No dia em que minha mãe e Klara devem chegar de Budapeste faço estrelas no tapete vermelho do corredor de nosso apartamento imaginando minha substituta como minha aprendiz e eu como a principal atração Mamãe e Magda estão na cozinha Magda está picando maçãs para o charoset uma pasta de frutas frescas e secas vinho e especiarias Mamãe está preparando a matzá Concentradas no trabalho mal percebem a minha chegada Essa é a maneira como elas se relacionam agora Brigam o tempo todo e quando não estão brigando se tratam como se já estivessem num confronto direto As brigas costumavam ser sobre comida Mamãe sempre preocupada com o peso de Magda mas agora o conflito cresceu e virou uma hostilidade crônica e generalizada Onde está Klarie pergunto engolindo apressada algumas nozes picadas de uma tigela Em Budapeste responde Magda Mamãe joga a tigela no balcão Quero perguntar por que minha irmã não está conosco para o feriado Ela preferiu a música a nós Ou não teve permissão para faltar aula por causa de um feriado que nenhum de seus colegas celebra Mas não pergunto Tenho medo de que minha pergunta faça a raiva nitidamente latente de minha mãe explodir Volto para o quarto que dividimos meus pais Magda e eu Em qualquer outra noite principalmente num feriado teríamos nos reunido em torno do piano o instrumento que Magda toca e estuda desde que era novinha para que ela e papai se revezassem nos acompanhamentos das músicas Magda e eu não éramos prodígios como Klara mas ainda assim tínhamos paixões criativas que nossos pais reconheciam e estimulavam Depois que Magda tocava era a minha vez de me apresentar Dança Dicuka mamãe dizia E embora fosse mais uma exigência do que um convite eu desfrutava da atenção e dos elogios de meus pais Depois Klara a principal atração tocaria o violino e minha mãe se transformaria Mas não há música em nossa casa nessa noite Antes da refeição Magda tenta me animar relembrando do último Pessach quando enfiei umas meias no sutiã para impressionar Klara querendo mostrar que eu tinha me tornado mulher enquanto ela estava fora Agora você tem a própria feminilidade para ostentar por aí diz Magda À mesa ela continua a fazer palhaçadas enfiando os dedos na taça de vinho que colocamos para o profeta Elias como é o costume Elias que salva os judeus do perigo Em qualquer outra noite nosso pai poderia rir Em qualquer outra noite nossa mãe daria fim às besteiras com uma severa repreensão Mas hoje nosso pai está distraído demais para perceber e nossa mãe perturbada demais pela ausência de Klara para castigar Magda Quando abrimos a porta do apartamento para deixar o profeta entrar sinto um arrepio que não tem nada a ver com a noite fria Em alguma parte profunda de mim mesma eu sei o quanto precisamos de proteção agora Você tentou o consulado pergunta meu pai Ele não está nem fingindo dar seguimento ao seder Ninguém a não ser Magda consegue comer Ilona Tentei o consulado diz minha mãe É como estivesse em outro quarto Conte novamente o que Klara disse Novamente protesta mamãe Novamente Ela fala sem expressão os dedos mexendo no guardanapo Klara tinha ligado para seu hotel às quatro da madrugada O professor de Klara acabara de lhe contar que um exprofessor do Conservatório Béla Bartók hoje um compositor famoso havia ligado da América para dar um aviso os alemães na Tchecoslováquia e na Hungria iam começar a fechar o cerco os judeus seriam levados na manhã seguinte O professor de Klara a proibiu de voltar para casa Ele queria que ela pedisse a mamãe para também ficar em Budapeste e que mandasse buscar o restante da família Ilona por que você voltou para casa resmunga meu pai Mamãe o fuzila com o olhar E tudo o que nós nos esforçamos para conquistar aqui Deveríamos largar tudo E se vocês três não conseguissem chegar a Budapeste Você queria que eu vivesse com isso Não percebo que eles estão aterrorizados Escuto apenas as acusações e os desapontamentos que meus pais trocam rotineiramente entre si como o vaivém maquinal de um tear Veja o que você fez Veja o que você não fez Veja o que você fez Veja o que você não fez Depois entendo que aquela não foi uma discussão habitual que existe uma história e um peso para a briga que estão tendo agora Existem as passagens para a América que meu pai recusou Existe o oficial húngaro que se aproximou de mamãe com documentos falsos para a família inteira insistindo que fugíssemos Depois soubemos que ambos tiveram a oportunidade de escolher Agora eles se lastimam e escondem seu arrependimento com acusações Podemos fazer as quatro perguntas pergunto para interromper a melancolia de meus pais Essa é a minha função na família Ser a pacificadora entre meus pais e entre Magda e mamãe Não tenho controle sobre quaisquer planos que estejam sendo feitos do lado de fora de nossa porta Mas dentro de casa tenho um papel a desempenhar É minha função como filha mais nova fazer as quatro perguntas tradicionais da noite de Pessach Não preciso nem abrir o hagadah Sei o texto de cor Já sei quais são as perguntas No fim da refeição meu pai dá a volta na mesa beijando cada uma de nós na cabeça Ele está chorando Por que esta noite é diferente de todas as outras Antes do amanhecer nós saberemos C A P Í T U L O 2 O que você coloca em sua mente Eles chegam no escuro Batem na porta gritam Papai deixa que entrem ou eles forçam a entrada em nosso apartamento São soldados alemães ou nyilas Não consigo entender os barulhos que me acordam Minha boca ainda tem gosto de vinho do seder Os soldados invadem o quarto anunciando que estamos sendo removidos de nossa casa e reassentados em algum outro lugar Temos permissão para fazer uma mala para nós quatro Aparentemente não consigo comandar as pernas e fazêlas sair da cama de armar que fica aos pés da cama de meus pais mas mamãe se coloca em movimento imediatamente Antes que eu me dê conta ela já está vestida e pegando na parte alta do armário a caixinha em que eu sei que guarda um pedaço do saco amniótico que cobria a cabeça e o rosto de Klara como um capacete em seu nascimento As parteiras costumavam guardar essas membranas e vendêlas a marinheiros como proteção contra afogamento Mamãe não bota a caixa na mala mas no fundo do bolso de seu casaco como um amuleto Não sei se minha mãe pega aquilo para proteger Klara ou a todos nós Rápido Dicu Levante Vistase Não que as roupas tenham algum dia ajudado sua aparência sussurra Magda Sua provocação não dá folga Como saberei quando for a hora de realmente ter medo Mamãe está na cozinha agora embrulhando sobras de comida potes e panelas Na realidade ela vai nos manter vivas por duas semanas com os suprimentos que leva conosco agora um pouco de farinha e de gordura de galinha Papai anda de um lado para outro no quarto e na sala pegando livros candelabros roupas pondo as coisas no chão Pegue cobertores grita mamãe para ele Acho que se papai tivesse um biscoito essa seria a coisa que ele levaria somente pela alegria de me entregálo depois e ver um rápido momento de prazer em meu rosto Graças a Deus Mamãe é mais prática Quando ainda era criança ela assumiu o papel de mãe das irmãs mais novas e evitou que passassem fome ao longo de muitas temporadas de sofrimento Com Deus por testemunha imagino que ela esteja pensando agora enquanto faz a mala jamais sentirei fome novamente Ainda assim quero que ela deixe para lá os pratos e as ferramentas de sobrevivência volte para o quarto e me ajude a me vestir Ou pelo menos que se importe comigo Que me diga o que vestir Que diga para eu não me preocupar Que está tudo bem Os soldados pisam duro derrubam as cadeiras com suas armas Rápido Rápido Sinto uma raiva súbita de minha mãe Ela salvaria Klara antes de me salvar Preferiria pegar as coisas na despensa do que segurar minha mão no escuro Vou ter de encontrar meu próprio carinho minha própria sorte Apesar do frio da manhã escura de abril ponho o vestido de seda azul que usei no dia em que Eric me beijou Estico as pregas com os dedos Coloco o cinto de camurça azul Vou usar esse vestido para que seus braços possam me envolver mais uma vez Esse vestido vai me manter desejável protegida pronta para recuperar o amor Se eu tremer de frio será um símbolo de esperança um sinal de minha confiança em algo mais profundo melhor Imagino Eric e sua família também se vestindo atarantados no escuro Posso sentilo pensando em mim Uma corrente de energia se irradia dos meus ouvidos para os meus pés Fecho os olhos e me abraço permitindo que o resquício daquela lembrança de amor e esperança me mantenham aquecida A realidade se intromete em meu mundo particular Onde é o banheiro grita um dos soldados para Magda Minha irmã mandona sarcástica e coquete se encolhe diante daquele olhar Nunca a vi com medo Ela nunca perdeu uma oportunidade de provocar alguém de fazer as pessoas rirem Figuras de autoridade nunca tiveram qualquer influência sobre ela Na escola ela não se levantava quando uma professora entrava na sala como era o costume Elefánt o professor de matemática dela um homem muito baixo a repreendeu certo dia chamandoa pelo sobrenome Minha irmã se levantou na ponta dos pés e olhou para ele Ah o senhor está aí falou Não o tinha visto Mas hoje os homens empunhavam armas Ela não solta nenhuma observação rude nenhuma réplica revoltada Aponta humildemente para o corredor na direção da porta do banheiro O soldado a empurra para fora do caminho Ele segura uma arma Que outra prova de autoridade ele precisa Foi aí que comecei a perceber que as coisas sempre podem piorar Que todo momento guarda um potencial para a violência Nunca sabemos quando ou como vamos reagir Fazer o que mandam pode não salvar você Fora Agora Hora de fazer uma pequena viagem fala o soldado Mamãe fecha a mala e meu pai a carrega Ela abotoa o casaco cinza e é a primeira a seguir o oficial em comando até a rua Sou a próxima depois Magda Antes de chegarmos à carroça que está à nossa espera no meiofio eu me viro para ver papai sair de casa Ele está de frente para a porta a mala na mão parecendo confuso como um viajante que procura chaves nos bolsos na escuridão da noite Um soldado grita um insulto e escancara nossa porta dando um chute com o salto da bota Vá em frente Dê uma última olhada Aproveite essa festa para seus olhos Meu pai olha para o espaço escuro Por um momento parece atordoado como se não conseguisse decidir se o soldado estava sendo gentil ou indelicado Então o soldado chuta seu joelho e meu pai vem mancando em nossa direção para a carroça onde as outras famílias aguardam Fico dividida entre o desejo de proteger meus pais e a tristeza por eles não poderem me proteger Eric eu rezo para onde quer que estivermos indo ajude me a encontrálo Não se esqueça de nosso futuro Não se esqueça do nosso amor Magda não diz uma palavra quando nos sentamos lado a lado nos assentos de madeira Em minha lista de arrependimentos este se destaca não segurei a mão da minha irmã Assim que o dia amanhece a carroça para ao lado da fábrica de tijolos Jakab na periferia da cidade e somos conduzidos para dentro Tivemos sorte Como somos os primeiros a chegar nos abrigamos nos galpões de secagem A maior parte dos quase doze mil judeus que serão presos aqui dormirá sem um teto sobre suas cabeças Todos vão dormir no chão Cobriremos nossos corpos com os casacos e tiritaremos com o frio da primavera Taparemos os ouvidos quando por pequenas faltas as pessoas forem espancadas com cassetetes de borracha no centro do campo Não há água encanada Chegam baldes nunca suficientes em carroças puxadas a cavalo No início as rações combinadas com as panquecas que minha mãe faz com os restos que trouxe de casa são suficientes para nos alimentar mas depois de alguns dias a dor da fome se torna um incômodo constante Magda vê sua exprofessora de ginástica na barraca ao lado se esforçando para cuidar de um bebê recémnascido nessas condições de inanição O que vou fazer quando meu leite acabar sussurra ela para nós Meu bebê chora sem parar O campo tem dois lados divididos por uma rua Nosso lado é ocupado pelos judeus de nossa área da cidade Descobrimos que todos os judeus de Kassa estão sendo mantidos aqui na fábrica de tijolos Encontramos vizinhos comerciantes professores e amigos mas meus avós cuja casa ficava a trinta minutos de caminhada de nosso apartamento não estão no nosso lado do campo Portões e guardas nos separam do outro lado Não devemos cruzar Imploro ao guarda e ele me autoriza a procurar meus avós Passo pelas barracas sem paredes repetindo baixinho seus nomes Enquanto ando para cima e para baixo pelas filas de famílias amontoadas também repito o nome de Eric Digo a mim mesma que é apenas questão de tempo e perseverança Vou encontrálo ou ele vai me encontrar Não encontro meus avós Não encontro Eric Então certa tarde quando as carroças de água chegam e as multidões correm para recolher um pequeno balde ele me vê sentada sozinha guardando os casacos da família Ele beija minha testa meu rosto meus lábios Toco o cinto de camurça de meu vestido de seda agradecendo a boa sorte Combinamos de nos encontrar todo dia dali em diante Às vezes especulamos sobre o que nos acontecerá Os boatos dizem que seremos enviados para um lugar chamado Kenyérmező um campo de concentração onde trabalharemos e viveremos longe da guerra com nossas famílias Não sabemos que os boatos foram espalhados pela polícia húngara e pelos nyilas para nos dar falsas esperanças Depois da guerra pilhas de cartas de parentes preocupados permanecerão nos postos de correios fechadas com o endereço de Kenyérmező Não existe lugar algum com esse nome Os lugares que de fato existem e que esperam a chegada de nossos trens estão além da imaginação Depois da guerra Essa é a época em que eu e Eric nos permitimos pensar a respeito Iremos para a universidade Vamos nos mudar para a Palestina Continuaremos a frequentar os salões e clubes do livro que iniciamos na escola Terminaremos a leitura de A interpretação dos sonhos de Freud De dentro da fábrica de tijolos podemos ouvir o barulho dos bondes passando Eles estão ao nosso alcance Como seria fácil entrar em um deles Mas qualquer um que se aproxime da cerca externa é morto sem aviso prévio Uma garota um pouco mais velha do que eu tenta correr Eles penduram seu corpo no meio do campo como exemplo Meus pais não dizem uma palavra para mim ou Magda sobre a morte dela Tente pegar um pequeno torrão de açúcar recomenda papai Pegue um bloco de açúcar e guardeo Sempre mantenha alguma coisa doce em seu bolso Um dia soubemos que meus avós foram enviados num dos primeiros transportes que deixaram a fábrica Imagino que os encontraremos em Kenyérmező Dou um beijo de boanoite em Eric e imagino que os lábios dele são a coisa mais doce que encontrarei aqui Certa manhã bem cedo depois de cerca de um mês na fábrica nosso lado do campo foi esvaziado Tento encontrar alguém que passe uma mensagem para Eric Deixe para lá Dicu diz mamãe Ela e papai escreveram uma carta de adeus para Klara mas não têm como enviála Vejo mamãe jogar a carta na calçada como se estivesse batendo a cinza de um cigarro e vejo a carta desaparecer debaixo de seis mil pés A seda de meu vestido roça nas minhas pernas à medida que nos movimentamos e paramos nos movimentamos e paramos três mil pessoas andando na direção dos portões da fábrica empurradas para a longa fila de caminhões à nossa espera Mais uma vez nos amontoamos no escuro Um pouco antes de partirmos ouço meu nome É Eric Ele está me chamando através das ripas de madeira do caminhão Abro caminho na direção de sua voz Estou aqui digo enquanto o motor é acionado O espaço entre as ripas é muito estreito para que eu possa vêlo ou tocálo Nunca esquecerei seus olhos diz ele Nunca esquecerei suas mãos Repito essas frases sem parar quando embarcamos em um vagão lotado na estação de trem Não ouço os gritos dos oficiais nem o choro das crianças eu me consolo com a lembrança da voz de Eric Se eu sobreviver ao dia de hoje então poderei lhe mostrar os meus olhos as minhas mãos Respiro no ritmo de sua voz Se eu sobreviver hoje Se eu sobreviver hoje amanhã serei livre O vagão do trem é diferente de tudo que já vi Não é um trem de passageiros é para transportar gado ou carga Somos uma carga humana Centenas de pessoas em um vagão Cada hora parece uma semana A incerteza faz os momentos se alongarem A incerteza e o barulho incessante das rodas nos trilhos Um pedaço de pão é para ser dividido por oito pessoas Um balde de água Um balde para os dejetos corporais Cheiro de suor e de excrementos Pessoas morrem no caminho Todos dormimos em pé apoiados nos parentes encostados nos mortos Vejo um pai dar algo à filha um pacote de comprimidos Se eles tentarem fazer alguma coisa com você diz ele De vez em quando o trem para e algumas pessoas de cada vagão têm ordem de sair para pegar água Magda leva o balde uma vez Estamos na Polônia ela nos conta quando retorna Depois explica como descobriu Quando foi buscar água um homem no campo gritou uma saudação para ela em polonês e em alemão dizendo o nome da cidade e gesticulando freneticamente passou o dedo ao longo do pescoço Só queria nos assustar afirmou Magda O trem segue Meus pais se encostam um em cada lado de mim Eles não se falam Nunca os vejo se tocarem A barba de papai está crescendo grisalha Ele parece mais velho que o pai dele e isso me assusta Peço que faça a barba Não havia como saber que a juventude podia realmente salvar uma vida quando chegarmos ao fim dessa jornada É apenas intuição apenas uma garota sentindo falta do pai que ela conhece querendo que ele seja novamente o bon vivant o paquerador jovial o mulherengo Não quero que fique como o pai com os comprimidos que sussurra para a família Isso é pior do que a morte Quando beijo meu pai no rosto e peço Papa por favor faça a barba ele responde com raiva Para quê Para quê Para quê Fico envergonhada por falar a coisa errada e deixálo aborrecido comigo Por que falei a coisa errada Por que achei que era minha obrigação dizer a meu pai o que fazer Lembro da raiva dele quando perdi o dinheiro da escola Eu me encosto em mamãe buscando consolo Queria que meus pais se ajudassem em vez de se comportarem como estranhos Mamãe não fala muito Mas também não reclama muito Ela não quer morrer Ela simplesmente se voltou para dentro de si mesma Dicuka chama ela numa noite escura escute Não sabemos para onde estamos indo Não sabemos o que vai acontecer Só não se esqueça de que ninguém pode tirar de você o que você colocar na sua mente Embarco em outro sonho com Eric Acordo novamente Eles abrem as portas do vagão de gado e a luz brilhante do sol de maio invade o espaço Estamos desesperados para sair Corremos na direção do ar e da luz Praticamente caímos do vagão atropelando uns aos outros na ânsia de descer Depois de vários dias dentro de um trem em movimento incessante é difícil ficar em pé em terra firme Tentamos de todo jeito nos orientar descobrir nossa localização controlar nossos nervos e nossos corpos Vejo um conjunto compacto de casacos escuros de inverno numa estreita faixa de terra Vejo um ponto branco no lenço de alguém ou numa trouxa de tecido com os pertences de alguém o amarelo das estrelas obrigatórias Vejo a frase ARBEIT MACHT FREI O trabalho liberta Tem música tocando Papai fica alegre imediatamente Está vendo diz ele Não pode ser um lugar tão terrível Parecia que ele sairia dançando se a plataforma não estivesse tão lotada Vamos apenas trabalhar um pouco até a guerra acabar continua Os boatos que ouvimos na fábrica de tijolos devem ser verdadeiros Devemos estar aqui para trabalhar Procuro por plantações nos campos ao redor e imagino o corpo esguio de Eric na minha frente curvado para fazer a colheita Em vez disso vejo linhas horizontais contínuas as tábuas nos vagões de gado a interminável cerca de arame farpado os prédios baixos Ao longe algumas árvores e chaminés quebram a linha do horizonte desse lugar árido Homens uniformizados nos empurram Ninguém explica nada Eles simplesmente dão ordens Venha cá Vá para lá Os nazistas apontam e empurram Os homens são colocados numa fila separada Vejo papai acenar para nós Talvez os homens sejam enviados na frente para arranjar um lugar para suas famílias Imagino onde dormiremos essa noite Imagino onde comeremos Mamãe Magda e eu estamos de pé juntas numa fila longa de mulheres e crianças Avançamos lentamente até nos aproximarmos do homem que com um movimento do dedo indicador decidirá nossos destinos Ainda não sei que esse homem é o Dr Josef Mengele o infame Anjo da Morte Conforme avançamos na direção dele não consigo desviar meu olhar de seus olhos dominadores e frios À medida que nos aproximamos vejo de relance os dentes separados quando ele sorri o que lhe dá um ar juvenil Sua voz é quase gentil ao perguntar se alguém está doente e indicar aos que dizem sim que sigam para o lado esquerdo Se você tem mais de 14 anos e menos de 40 anos fique nesta fila diz outro oficial Acima de 40 vá para a esquerda Uma longa fila de idosos crianças e mães segurando bebês faz uma bifurcação à esquerda Minha mãe tem cabelo grisalho todo grisalho um grisalho precoce mas seu rosto é tão liso e sem rugas quanto o meu Magda e eu esprememos nossa mãe entre nós É a nossa vez Dr Mengele comanda Ele aponta a esquerda para minha mãe Começo a seguila Ele me segura pelo ombro Você verá sua mãe em breve diz ele Ele vai apenas tomar um banho E empurra a mim e Magda para a direita Não sabemos o significado de esquerda e direita Para onde estamos indo agora nós nos perguntamos O que vai nos acontecer Andamos em direção a uma parte diferente daquele campo árido Estamos cercadas de mulheres a maioria jovens Algumas parecem animadas quase em júbilo gratas por estarem respirando um ar puro e desfrutando do sol na pele depois do fedor implacável e do escuro claustrofóbico do trem Outras mordem os lábios O medo circula entre nós mas também a curiosidade Paramos na frente de outros prédios baixos Mulheres com vestidos listrados nos rodeiam Logo entendemos que elas são as prisioneiras encarregadas de mandar nas outras mas ainda não sabemos que somos prisioneiras aqui Desabotoei o casaco no sol e uma das garotas de vestido listrado vê minha seda azul Ela vem em minha direção com uma postura atrevida Olhe só para você diz ela em polonês e chuta terra em meus sapatos de saltos baixos Antes que eu me dê conta do que está acontecendo ela agarra os minúsculos brincos de coral e ouro que de acordo com a tradição húngara estão em minhas orelhas desde que nasci Ela dá um puxão e eu sinto uma dor aguda Ela coloca os brincos no bolso Apesar da dor eu queria desesperadamente que ela gostasse de mim Como sempre quero ser aceita Seu olhar de desdém machuca mais do que meus lóbulos rasgados Por que você fez isso pergunto Eu teria lhe dado os brincos Eu estava apodrecendo aqui enquanto você estava livre indo à escola e ao cinema diz ela Perguntome há quanto tempo ela está aqui Ela é magra mas musculosa É alta Podia ser uma bailarina Talvez eu a deixe tão zangada porque a faço se lembrar da vida normal Quando verei minha mãe pergunto a ela Me disseram que a veria logo Ela me olha com frieza e agressividade Não há empatia em seus olhos Não há nada a não ser raiva Ela aponta para a fumaça subindo de uma das chaminés a distância Sua mãe está queimando lá dentro É melhor você começar a falar dela no passado C A P Í T U L O 3 Dançando no inferno Todo o seu êxtase na vida virá de dentro de você disse meu professor de balé uma vez Eu não havia entendido o que ele queria dizer Até Auschwitz Magda olha para a chaminé no alto do prédio em que nossa mãe entrou A alma nunca morre diz ela Minha irmã encontra palavras de consolo Mas eu estou em choque Estou zonza não consigo pensar nas coisas incompreensíveis que estão acontecendo e que já aconteceram Não consigo imaginar minha mãe consumida pelas chamas Não consigo entender completamente que ela está morta E não posso perguntar a razão Não posso sequer sofrer Não agora Vou precisar de toda a minha atenção para sobreviver ao minuto seguinte Vou sobreviver se minha irmã estiver lá Vou sobreviver me grudando a ela como se fosse sua sombra Somos conduzidas até os silenciosos porém reverberantes chuveiros Roubam nosso cabelo Ficamos em pé do lado de fora tosquiadas e nuas esperando por nossos uniformes Insultos dos kapos e dos oficiais da SS atingem como flechas nossa pele nua e molhada Piores do que suas palavras são seus olhares Tenho certeza de que o desgosto com que eles nos encaram poderia rasgar minha pele quebrar minhas costelas O ódio deles é ao mesmo tempo possessivo e indiferente e isso me deixa doente Houve um tempo em que achei que Eric seria o primeiro homem a me ver nua Agora ele nunca vai ver o meu corpo sem as marcas do ódio Será que eles já me transformaram em algo sub humano Algum dia voltarei a ser a garota que eu era Nunca esquecerei seus olhos nunca esquecerei suas mãos Tenho que me controlar senão por mim mesma então por Eric Olho para minha irmã que está silenciosa em choque mas conseguiu não sair do meu lado em cada movimento desordenado de lugar para lugar em cada fila lotada Ela estremece quando o sol se põe segurando seus cachos cortados mechas grossas de seu cabelo destruído Ficamos nuas durante horas e ela segura seu cabelo como se ao fazer isso pudesse se controlar manter sua humanidade Ela está tão próxima de mim que estamos quase nos tocando e ainda assim tenho saudades dela Magda A garota confiante e sexy cheia de piadas Onde ela está Ela parece se fazer a mesma pergunta Ela procura por si mesma em seus tufos de cabelo As contradições desse lugar me irritam O assassinato acabamos de aprender é eficiente aqui Sistemático Mas parece não existir uma organização para a distribuição dos uniformes pelos quais esperamos quase o dia todo Os guardas são cruéis e rígidos ainda que pareça não haver ninguém responsável O exame minucioso que eles fazem de nossos corpos não sinaliza nosso valor significa apenas o quanto fomos esquecidas pelo mundo Nada faz sentido Mas a espera interminável a completa falta de reação tudo isso deve fazer parte do plano Como posso me manter firme num lugar em que a única estabilidade está nas cercas na morte na humilhação na permanente coluna de fumaça Magda finalmente fala Como estou pergunta ela Diga a verdade A verdade Ela parece um cão sarnento Uma estranha nua Não posso dizer isso é óbvio mas qualquer mentira machucaria tremendamente então preciso encontrar uma resposta impossível uma verdade que não doa Olho no azul feroz de seus olhos e penso que mesmo para ela fazer a pergunta Como estou é a coisa mais corajosa que já ouvi na vida Não existem espelhos aqui Ela está me pedindo para ajudála a encontrar e a encarar o próprio rosto Portanto falo a única coisa verdadeira que posso Seus olhos são muito lindos Nunca prestei atenção neles quando estavam cobertos por todo aquele cabelo É a primeira vez que percebo que temos uma escolha prestar atenção ao que perdemos ou prestar atenção ao que ainda temos Obrigada sussurra ela As outras coisas que quero lhe perguntar ou contar a ela parecem melhores quando não ditas As palavras não podem expressar essa nova realidade Do casaco cinza nos ombros de minha mãe onde me recosto ao trem que segue em frente O rosto entristecido de meu pai O que eu não daria para ter esses momentos tristes e angustiados de volta A transformação de meus pais em fumaça Dos dois meu pai e minha mãe Preciso admitir que papai também está morto Estou quase perguntando a Magda se podemos nos atrever a ter esperança de que não ficamos totalmente órfãs no espaço de um dia mas vejo que ela largou o cabelo no chão sujo Eles trazem os uniformes vestidos cinzentos mal cortados feitos de lã e algodão áspero O céu está escurecendo Eles nos levam para barracões soturnos e toscos onde dormiremos em beliches seis pessoas dividindo cada estrado É um alívio entrar no espaço horrendo deixar de ver a chaminé com sua fumaça interminável A kapo a jovem que roubou meus brincos nos distribui pelos beliches e explica as regras Ninguém pode sair à noite Há o balde nosso banheiro noturno Com nossas colegas de beliche Magda e eu tentamos deitar no estrado do alto Descobrimos que há mais espaço se alternamos cabeças e pés Ainda assim ninguém pode virar ou ajustar sua posição sem deslocar a outra pessoa Criamos um sistema para nos virarmos juntas coordenando nossos movimentos A kapo entrega uma tigela para cada nova prisioneira Não perca ela avisa Se você não tiver uma tigela não come No barracão escuro esperamos pela próxima ordem Receberemos uma refeição Seremos mandadas para dormir Ouvimos música Talvez eu esteja imaginando o som de instrumentos de sopro e cordas mas outra prisioneira explica que há uma orquestra aqui no campo comandada por uma violinista de nível internacional Klara eu penso No entanto a violinista que ela menciona é vienense Ouvimos conversas entrecortadas em alemão que vêm de fora do barracão A kapo se ajeita quando a porta abre com um estrondo Lá na entrada reconheço o oficial uniformizado da fila de seleção Sei que é ele a maneira como sorri com os lábios abertos o espaço entre os dentes da frente Dr Mengele aprendemos É um assassino refinado e amante das artes Ele passeia entre os barracões à noite procurando prisioneiras talentosas para divertilo Nesta noite com seu grupo de assistentes ele entra e olha as recémchegadas em seus vestidos largos os cabelos mal cortados Ficamos em pé imóveis encostadas nos beliches de madeira no canto da sala Ele nos examina Magda discretamente toca minha mão Dr Mengele faz uma pergunta e antes que eu perceba o que está acontecendo as garotas que estão bem junto de mim que sabem que fui bailarina e ginasta em Kassa me empurram para mais perto do Anjo da Morte Ele me analisa Não sei para onde olhar Olho para a frente diretamente para a porta aberta A orquestra está de prontidão bem do lado de fora Está em silêncio aguardando ordens Eu me sinto como Eurídice no Inferno esperando Orfeu tocar uma corda na sua lira capaz de derreter o coração de Hades e me libertar Ou como Salomé obrigada a dançar para o padrasto Herodes levantando véu após véu para expor seu corpo A dança lhe dá poder ou a dança tira seu poder Pequena dançarina diz Dr Mengele dance para mim Ele manda os músicos começarem a tocar A conhecida abertura da valsa Danúbio azul se insinua no espaço fechado e escuro Os olhos de Mengele estão fixos em mim Tenho sorte Conheço a coreografia do Danúbio azul a ponto de poder dançála até dormindo Mas meus braços e minhas pernas estão pesados como acontece nos pesadelos quando você está em perigo e não consegue fugir Dance ordena ele novamente Sinto que meu corpo começa a se mexer Primeiramente a batida de perna alta Depois a pirueta o giro os espacates Para o alto Conforme faço os passos e me curvo e giro posso ouvir Mengele falando com o assistente Ele não tira os olhos de mim mas cumpre com seus deveres enquanto assiste Posso ouvir sua voz acima da música Ele define com o outro oficial quais garotas entre as centenas serão mortas a seguir Se eu perder um passo se fizer algo que o desagrade posso estar entre elas Eu danço danço Estou dançando no inferno Não consigo olhar para o carrasco enquanto ele decide nossos destinos Fecho os olhos Foco na minha série nos meus anos de treinamento Cada linha e cada curva de meu corpo como as sílabas de um verso contam uma história uma garota chega para dançar e rodopia de entusiasmo e expectativa mas depois ela faz uma pausa para refletir e observar O que acontecerá nas próximas horas Quem ela vai encontrar Ela se vira em direção à fonte os braços estendidos para cima e fazendo movimentos circulares como se abraçasse a cena à sua volta Ela se curva para colher flores e as joga uma a uma para os admiradores e colegas brincalhões Lança as flores para as pessoas distribuindo símbolos de amor Posso ouvir os violinos Meu coração acelera Em minha escuridão pessoal interna ouço as palavras de minha mãe como se ela estivesse lá na sala sombria sussurrando Não se esqueça ninguém pode tirar de você o que você colocou em sua própria mente Dr Mengele minhas companheiras prisioneiras mortas de fome a desafiante que sobreviverá e a que logo estará morta todas até mesmo minha querida irmã desaparecem e a única palavra que existe é a que está dentro da minha cabeça O Danúbio azul termina e agora posso escutar Romeu e Julieta de Tchaikovsky O piso do barracão se transforma no palco da Ópera de Budapeste Danço para os meus fãs na plateia Danço no halo brilhante das luzes quentes Danço para meu amante Romeu quando ele me ergue bem acima do palco Danço por amor Danço pela vida Conforme eu danço descubro uma pérola de sabedoria que nunca esqueci Nunca saberei qual milagre me concedeu esse insight Ele salvará minha vida muitas vezes mesmo depois que o horror acabar Posso ver que o Dr Mengele o experiente assassino que nesta manhã matou minha mãe é mais patético do que eu Sou livre em minha mente algo que ele nunca será Ele terá que viver para sempre com o que fez Ele é mais prisioneiro do que eu Quando termino a série com um espacate gracioso rezo não por mim mas por ele Rezo para o bem dele para que ele não tenha que me matar Ele deve ter ficado impressionado com o meu desempenho porque jogou um pedaço de pão para mim um gesto que mais tarde salvará minha vida Conforme a tarde vira noite eu compartilho o pão com Magda e com nossas companheiras de beliche Sou grata por ter um pão Sou grata por estar viva Nas primeiras semanas em Auschwitz eu aprendo as regras de sobrevivência Se você conseguir roubar um pedaço de pão dos guardas vira heroína mas se roubar de uma prisioneira cairá em desgraça e estará morta A competição e a dominação não levam a lugar nenhum cooperação é o nome do jogo Sobreviver é transcender as próprias necessidades e se comprometer com alguém ou algo fora de si mesma Para mim esse alguém é Magda esse algo é a esperança de que verei Eric novamente amanhã quando estiver livre Para sobreviver nós invocamos um mundo interior um refúgio mesmo quando nossos olhos estão abertos Relembro uma colega prisioneira que conseguiu guardar uma foto dela mesma de antes de ser presa uma foto em que estava com cabelos compridos Isso permitia que ela se lembrasse de quem era que recordasse que aquela pessoa ainda existia Essa consciência tornouse o refúgio que conservou sua vontade de viver Lembro que alguns meses depois no inverno recebemos casacos velhos Eles simplesmente jogaram os casacos para nós aleatoriamente sem atenção ao tamanho Ficou a nosso encargo encontrar aquele que melhor coubesse e lutar por ele Magda teve sorte Jogaram para ela um casaco grosso longo e pesado com botões até o pescoço Ele era muito quente muito cobiçado Mas ela o trocou imediatamente O casaco que escolheu era uma coisinha fininha que mal cobria os joelhos deixando muito do peito exposto Para Magda vestir algo sexy era uma ferramenta de sobrevivência melhor do que ficar aquecida Sentirse atraente lhe dava algo lá dentro uma sensação de dignidade que era mais valiosa para ela do que o conforto físico Lembro que festejávamos mesmo quando estávamos morrendo de fome Cozinhávamos o tempo todo em Auschwitz Em nossa imaginação a toda hora celebrávamos e brigávamos sobre a quantidade de páprica que devia ser colocada no frango húngaro ou sobre como fazer o melhor bolo de chocolate com sete camadas Acordávamos às quatro horas da madrugada para a Appell a contagem e recontagem em que conferiam a presença de todas nós Ficávamos de pé na escuridão gelada sentindo o cheiro rico e aromático da carne cozinhando Marchávamos para o trabalho diário que podia ser em um galpão chamado Canadá onde recebíamos ordens para separar os pertences dos prisioneiros recémchegados ou em alojamentos que devíamos limpar e limpar e limpar ou nos crematórios onde as mais desafortunadas eram obrigadas e recolher dentes de ouro cabelos e peles dos cadáveres antes da cremação seguinte Conversávamos como se estivéssemos indo ao mercado planejando o cardápio semanal e discutíamos como verificar se as frutas e os vegetais estavam maduros Trocávamos receitas Veja como fazer uma palacsinta ou o crepe húngaro Quão fina devia ser a panqueca A quantidade de açúcar e de nozes Você coloca cominho em seu székely gulyás Você usa duas cebolas Não três Não somente uma e meia Salivávamos com nossos pratos imaginários e quando comíamos a única refeição verdadeira do dia sopa aguada com um pedaço de pão velho eu falava sobre o ganso que minha mãe havia trancado no sótão e alimentado diariamente com milho para o fígado crescer até chegar a hora de matar a ave e fazer patê Quando deitávamos nos beliches à noite e finalmente dormíamos também sonhávamos com comida O relógio da vila toca às 10h e meu pai entra em nosso apartamento com um pacote do açougueiro do outro lado da rua Hoje ele traz um pedaço de carne de porco escondido num jornal Dicuka venha provar ele me chama Que exemplo você é reclama mamãe dar porco a uma garota judia Mas ela fala isso quase sorrindo Ela está preparando strudel esticando a massa na mesa da sala de jantar amassandoa com as mãos e soprando embaixo até que fique fina como uma folha de papel O sabor das pimentas e das cerejas no strudel da minha mãe os ovos recheados que ela fazia a massa que cortava à mão tão rapidamente que eu tinha medo que perdesse um dedo a chalá o pão do Shabat para mamãe cozinhar envolvia uma criação artística tão importante quanto o prazer de apreciar a refeição pronta As fantasias culinárias nos reconfortaram em Auschwitz Assim como atletas e músicos podem melhorar sua técnica através da prática mental éramos artistas dos barracões sempre em plena criação O que fizemos em nossas mentes nos proporcionou uma espécie de apoio Certa noite encenamos um concurso de beleza no barracão Em frente aos beliches desfilamos com nossos vestidos cinza disformes nossa roupa íntima encardida Existe um provérbio húngaro que diz que a beleza se revela nos ombros Ninguém consegue fazer pose tão bem quanto Magda Ela ganha o concurso Mas ninguém está com sono Sugiro um concurso melhor diz Magda Quem tem os melhores peitos Ficamos nuas no escuro e desfilamos com nossos peitos à mostra Há poucos meses eu me exercitava mais de cinco horas por dia no estúdio Costumava pedir a papai que batesse na minha barriga de modo a sentir o quanto eu estava forte Eu podia até levantar e carregar papai Sinto aquele orgulho em meu corpo agora com o tronco nu e morrendo de frio no barracão Antes eu invejava os seios arredondados e atraentes de mamãe e sentia vergonha dos meus peitinhos minúsculos Mas são esses que nós valorizamos na Europa Caminho no escuro como uma modelo e ganho o concurso Minha irmã famosa diz Magda quando adormecemos É possível escolher o que o horror nos ensina Podemos ficar amargas com o sofrimento e o medo Hostis Paralisadas Ou podemos nos agarrar ao nosso lado infantil à parte animada e curiosa à parte que é inocente Outra noite eu aprendo que a jovem no beliche ao lado do meu era casada antes da guerra Insisto com ela por informações Como é estar casada pergunto Pertencer a um homem Não estou interessada em sexo não inteiramente Claro que a paixão me interessa Acima de tudo a ideia do pertencimento diário Em seu suspiro escuto o eco de algo lindo intocado pela perda Por alguns minutos quando ela fala eu vejo o casamento não como meus pais o vivenciaram mas como algo luminoso É mais promissor até mesmo do que o bemestar tranquilizador do afeto de meus avós Soa como amor um amor completo Quando minha mãe me disse Estou feliz por você ser inteligente porque você não é bonita essas palavras mexeram com meu medo de ser inadequada indigna Mas em Auschwitz a voz de minha mãe soa em meus ouvidos com um significado diferente Eu sou inteligente Eu sou esperta Vou resolver as coisas As palavras que ouço na minha cabeça fazem uma tremenda diferença em minha capacidade de manter a esperança Isso era verdade também para outras presas Descobrimos uma força interior na qual pudemos nos apoiar uma maneira de conversar com nós mesmas que ajudou a criar uma sensação de liberdade interna responsável por nosso equilíbrio moral que nos deu base e segurança mesmo quando as forças externas buscavam nos controlar e destruir Sou boa aprendemos a dizer Sou inocente De alguma forma algo bom resultará disto Conheci uma garota em Auschwitz que estava muito doente definhando Toda manhã eu achava que ia encontrála morta no beliche e todo dia temia que ela fosse enviada para a morte nas filas de seleção Mas ela me surpreendia Conseguia reunir forças toda manhã para trabalhar por mais um dia e mostrar um brilho de vida nos olhos sempre que enfrentava o dedo indicador de Mengele De noite ela praticamente desmaiava em seu beliche respirando com dificuldade Perguntei como ela conseguia seguir em frente Ouvi que vamos ser liberadas no Natal respondeu Ela guardava um calendário detalhado na cabeça fazendo a contagem regressiva dos dias e das horas até a nossa liberação e estava determinada a viver para ficar livre Então veio o Natal porém nossos libertadores não chegaram Ela morreu no dia seguinte Acredito que aquela voz interna de esperança a mantinha viva quando ela perdeu a esperança não conseguiu continuar Embora quase todos ao meu redor oficiais da SS kapos companheiras de prisão me dissessem a cada momento desde a Appell até o fim do dia de trabalho desde as filas de seleção até as filas de comida que eu nunca sairia viva do campo de concentração eu me esforcei para desenvolver uma voz interna que oferecia uma história alternativa Isso é temporário eu dizia a mim mesma Se eu sobreviver hoje amanhã serei livre Em Auschwitz todos os dias nos mandavam para os chuveiros e todo banho era carregado de incerteza Nunca sabíamos se ia sair gás ou água do cano Certo dia quando senti a água caindo sobre nós respirei aliviada Espalhei o sabão gorduroso em meu corpo Ainda não estava apenas pele e osso Aqui no silêncio depois do medo eu consigo me reconhecer Meus braços e pernas e a barriga ainda são firmes com minha musculatura de bailarina Eu me entrego à fantasia de Eric Somos estudantes universitários agora morando em Budapeste Vamos até um café com nossos livros para estudar Os olhos dele saem da página e passeiam pelo meu rosto Sinto que ele faz uma pausa nos meus olhos e lábios Bem quando imagino levantar o rosto para receber seu beijo percebo que a sala de banho ficou silenciosa Sinto um frio na barriga O homem que mais temo entre todos os outros está parado na porta O Anjo da Morte olha diretamente para mim Olho para o chão esperando que as outras comecem a respirar novamente para que eu saiba que ele foi embora Mas ele não sai Você chama ele Minha pequena bailarina Tento ouvir a voz de Eric mais alta do que a de Mengele Nunca esquecerei seus olhos Nunca esquecerei suas mãos Venha ordena ele Eu obedeço O que mais posso fazer Caminho na direção dos botões do casaco dele evitando os olhos de minhas companheiras prisioneiras porque não suporto a ideia de enxergar o meu medo refletido neles Respire respire digo a mim mesma Ele me leva nua e molhada pelo corredor até um escritório com uma mesa uma cadeira A água escorre de meu corpo no chão frio Ele se inclina sobre a mesa e olha para mim sem pressa Estou aterrorizada demais para pensar porém pequenas correntes de impulso percorrem o meu corpo como reflexos Dê um chute nele Um grand battement na cara Joguese no chão encolhase como uma bola e aguente firme Espero que seja lá o que ele pretenda fazer comigo acabe rapidamente Chegue mais perto diz ele Eu o encaro quando me aproximo mas não o vejo Foco apenas na parte viva de mim Sim eu consigo sim eu consigo Sinto o corpo dele ao me aproximar Um cheiro de mentol Sinto um gosto metálico na língua Enquanto estiver tremendo sei que estou viva Os dedos dele se ocupam com os botões Sim eu consigo sim eu consigo Penso em mamãe e em seu cabelo comprido Na maneira como ela o enrolava no alto da cabeça e o soltava como uma cortina à noite Estou nua com seu assassino mas ele não pode tirála de mim Quando estou perto o suficiente para que ele me toque com dedos que estou determinada a não sentir um telefone toca na outra sala Ele recua Fecha o casaco Não se mexa ordena enquanto abre a porta Escuto Mengele atender o telefone na outra sala com uma voz neutra e áspera Não penso Corro Minha lembrança seguinte é a de estar sentada ao lado de minha irmã enquanto devoramos a concha de sopa diária os pequenos pedaços de casca de batata que boiam no caldo como escamas O medo de que ele me encontrará e me punirá de que terminará o que começou de que me escolherá para morrer nunca me abandona O medo nunca desaparece Não sei o que acontecerá a seguir Mas enquanto isso posso me manter viva internamente Eu sobrevivi hoje repito na minha cabeça Eu sobrevivi hoje Amanhã serei livre C A P Í T U L O 4 Fazendo estrelas Em meados de 1944 Magda e eu percebemos que não chegam mais judeus húngaros ao campo Depois saberemos que em julho o primeiroministro Horthy cansado de se curvar à autoridade alemã interrompeu as deportações Ele demorou demais Centenas de milhares de húngaros já haviam sido mandados para os campos de concentração 400 mil foram assassinados em dois curtos meses Em outubro o governo de Horthy foi derrubado pelos nazistas Os duzentos mil judeus que ainda permaneciam na Hungria a maioria em Budapeste não foram levados para Auschwitz Fizeram uma marcha forçada de 320 quilômetros até a Áustria Mas não sabíamos de nada disso na época não sabíamos nada da vida ou da guerra fora do campo Numa manhã de inverno no fim do ano ficamos em pé em outra fila O frio dói Estamos prestes a ser tatuadas Espero a minha vez Enrolo a manga Apresento o braço Meus movimentos são automáticos faço o que se exige de mim e sinto tanto frio e tanta fome que estou quase paralisada Alguém sabe que estou aqui Eu costumava pensar nisso o tempo todo e agora a pergunta surge com dificuldade como se surgisse de trás de uma névoa densa e consistente Não consigo lembrar como eu pensava antes Preciso me recordar da imagem de Eric mas se penso nele de maneira muito consciente não consigo recriar seu rosto Preciso enganar a mim mesma na recordação me pegar desprevenida Onde está Magda Essa é minha primeira pergunta ao acordar quando seguimos para o trabalho e a última antes de cair no sono Olho ao redor para confirmar que ela ainda está ao meu lado Mesmo que nossos olhos não se encontrem sei que ela também está cuidando de mim Passei a guardar meu pão da refeição noturna para podermos dividilo pela manhã O funcionário com a agulha e a tinta está bem na minha frente agora Ele segura meu punho e começa a furar mas então me empurra para o lado Não vou desperdiçar tinta com você diz ele e me joga para uma fila diferente Essa fila é a morte diz a garota ao meu lado É o fim Ela está completamente grisalha como se estivesse coberta de poeira Alguém mais à frente na fila está rezando Num lugar onde a ameaça da morte é constante este momento ainda me comove De repente penso na diferença entre mortífero e mortal Auschwitz é as duas coisas As chaminés soltam fumaça incessantemente Todo instante pode ser o último Portanto por que se importar Por que investir Ainda assim se este momento este especificamente for o meu último na Terra devo desperdiçálo com resignação e derrota Devo passálo como se já estivesse morta Nunca sabemos o que a fila significa digo à garota ao meu lado E se o desconhecido nos deixasse curiosas em vez de amedrontadas Então vejo Magda Ela foi selecionada para uma fila diferente Se eu estiver sendo enviada para morrer se estiver sendo enviada para trabalhar se eles me removerem para um campo diferente como já começaram a fazer com outras pessoas Nada importa a não ser ficar com minha irmã e ela comigo Somos as poucas prisioneiras de sorte que ainda não ficaram completamente isoladas de seus familiares Não é exagero dizer que eu vivo para minha irmã Não é exagero dizer que minha irmã vive para mim Há uma confusão no pátio Não sei o que a fila significa A única coisa que sei é que preciso passar com Magda por seja lá o que vier a acontecer Mesmo que seja a morte Observo o fosso coberto por uma crosta de neve que nos separa Os guardas nos cercam Não tenho um plano O tempo é lento e o tempo é rápido Magda e eu nos encaramos Vejo seus olhos azuis Então estou em movimento fazendo estrelas Com as mãos no chão os pés no ar eu giro giro Um guarda me olha Ele está de cabeça para cima Ele está de cabeça para baixo Espero uma bala a qualquer instante Não quero morrer mas não consigo deixar de girar mais uma vez Ele não levanta a arma Está surpreso demais para atirar em mim Estou tonta demais para ver Ele pisca o olho para mim Ok ele parece dizer desta vez você venceu Nos poucos segundos em que atraí a atenção do guarda Magda cruzou correndo o pátio para se juntar a mim Nós nos misturamos à multidão de garotas esperando por seja lá o que acontecerá a seguir Somos levadas pelo pátio congelado na direção da plataforma de trem na qual desembarcamos seis meses antes onde fomos separadas de nosso pai onde andamos com nossa mãe entre nós até os últimos momentos de sua vida Havia música então Agora há silêncio se considerarmos que o vento não tem som A fúria constante do frio opressivo a boca escancarada e arfante da morte e do inverno já não parecem barulhentas para mim Minha cabeça está repleta de dúvidas e medo mas esses pensamentos são tão constantes que não parecem mais ser pensamentos Quase sempre é o fim Estamos apenas indo para um lugar trabalhar até o fim da guerra nos disseram Se pudéssemos escutar pelo menos dois minutos de notícias saberíamos que a guerra pode ser a próxima vítima Enquanto aguardamos para subir a rampa do vagão de gado os russos entram na Polônia de um lado e os americanos de outro Os nazistas estão esvaziando Auschwitz aos poucos Os prisioneiros que deixam para trás aqueles que conseguirem sobreviver mais um mês em Auschwitz logo serão libertados Nós nos sentamos no escuro à espera da partida do trem Um soldado da Wehrmacht o exército alemão não da SS enfia a cabeça na porta do vagão e fala conosco em húngaro Vocês têm que comer diz ele Não importa o que eles falem lembremse de comer porque vocês podem ser libertadas logo É esperança que ele está nos oferecendo Ou uma falsa promessa Uma mentira Este soldado é como os nyilas da fábrica de tijolos espalhando boatos uma voz de autoridade para silenciar nossa sabedoria interior Quem relembra a uma pessoa em estado de inanição que ela precisa comer Mas mesmo no escuro do vagão de gado o rosto dele iluminou quilômetros de cercas quilômetros de neve Era possível ver que os olhos dele eram gentis Que estranho que a gentileza agora pareça um truque de luz Perco a noção do tempo que ficamos em movimento Durmo no ombro de Magda ela no meu A voz de minha irmã me acorda Ela está conversando com alguém que não consigo enxergar no escuro Minha professora explica ela Aquela da fábrica de tijolos aquela cujo bebê chorava sem parar Em Auschwitz todas as mulheres com crianças pequenas foram mortas na câmara de gás desde o início O fato de ela ainda estar viva significa apenas uma coisa seu bebê morreu O que é pior ser uma criança que perdeu a mãe ou uma mãe que perdeu o filho Quando a porta se abre estamos na Alemanha Não há mais que duzentas de nós Ficamos alojadas no que deve ser uma colônia de férias para crianças com beliches e uma cozinha onde usamos as escassas provisões e preparamos nossas próprias refeições De manhã somos levadas para trabalhar em uma tecelagem Usamos luvas de couro Seguramos as rodas das máquinas de fiar para evitar que os fios embaracem Mesmo com as luvas as rodas cortam nossas mãos A exprofessora de Magda fica na máquina ao lado da de minha irmã Ela está chorando alto Imagino que seja porque suas mãos estão sangrando e doloridas Mas ela está chorando por causa de Magda Você precisa de suas mãos ela lamenta Você toca piano O que vai fazer sem as mãos A capataz alemã que coordena nosso trabalha a silencia Você tem sorte de estar trabalhando agora diz ela Logo será morta Na cozinha naquela noite preparamos nossa refeição noturna supervisionadas pelas guardas Escapamos das câmaras de gás diz Magda mas vamos morrer fabricando linhas É curioso que estejamos vivas Podemos não sobreviver à guerra mas sobrevivemos a Auschwitz Descasco batatas para nossa ceia Acostumada com as rações de fome sou incapaz de desperdiçar qualquer farelo de comida Escondo as cascas de batata na calcinha No momento em que as guardas estão em outra sala asso tudo no forno Quando as levamos ansiosamente à boca com as mãos doloridas as cascas ainda estão quentes demais para comer Escapamos da câmara de gás mas morreremos comendo cascas de batata alguém fala e a risada vem de um lugar profundo dentro de nós que não sabíamos que ainda existia Rimos como fiz todas as semanas em Auschwitz quando éramos forçadas a doar sangue para os soldados alemães feridos Eu me sentava com a agulha no braço e me divertia Boa sorte na hora de vencer a guerra com meu sangue de bailarina pacifista Eu não podia puxar meu braço ou teriam atirado em mim Não dava para desafiar meus opressores com uma arma ou um soco Mas eu podia encontrar um caminho para a minha própria força E há força em nossa gargalhada agora Nossa camaradagem e nossa alegria me lembram da noite em Auschwitz em que ganhei o concurso dos seios mais bonitos Nossa conversa nos alimenta Qual é o melhor país pergunta uma garota chamada Hava Debatemos enaltecendo os méritos de nossas terras Nenhum lugar é mais bonito que a Iugoslávia insiste Hava Essa é uma competição sem ganhadores Nosso lar já não é mais um lugar nem um país A pátria é um sentimento tão universal quanto específico Se conversamos muito sobre isso corremos o risco de que desapareça Depois de algumas semanas na tecelagem certa manhã os guardas da SS chegam com os vestidos listrados para substituir os cinza que usamos Embarcamos em outro trem só que dessa vez somos obrigadas a ficar no teto dos vagões com nossos uniformes listrados chamarizes humanos para desencorajar os ingleses de bombardearem o trem que carrega munição Da tecelagem para as balas alguém fala Senhoras fomos promovidas avisa Magda O vento no teto do vagão castiga e é arrasador Pelo menos não sinto fome quando estou com muito frio Será que prefiro morrer de frio ou por arma de fogo Gás ou arma de fogo O ataque acontece de repente Mesmo com prisioneiras no teto dos trens os ingleses nos bombardeiam Fumaça Gritos O trem para e eu pulo Sou a primeira a descer Corro direto para a encosta nevada que cobre os trilhos perto de uma fileira de árvores finas onde paro para tentar distinguir a figura de minha irmã na neve Recupero o fôlego Magda não está entre as árvores Não a vejo correndo do trem Bombas explodem e destroem os trilhos Vejo um monte de corpos ao lado do trem Magda Preciso escolher Posso correr Fugir para a floresta Lutar por uma vida A liberdade está tão perto questão de alguns passos Mas se Magda estiver viva e eu abandonála quem lhe dará pão E se ela estiver morta Isso dura um segundo o tempo do botão do obturador da máquina Clique floresta Clique trilhos Desço correndo a colina Magda está sentada na vala com uma garota morta no colo É Hava O sangue escorre do rosto de Magda Num vagão próximo homens estão comendo Eles também são prisioneiros mas não como nós Não vestem uniformes mas roupas civis E eles têm comida Prisioneiros políticos alemães imaginamos De qualquer maneira eles têm privilégios Estão comendo Hava morreu minha irmã está viva e eu só penso na comida A linda Magda está sangrando Agora que temos uma chance de pedir um pouco de comida você fica assim brigo com ela Você está muito ferida para flertar Enquanto puder ficar com raiva dela eu me poupo de sentir medo ou me poupo da dor às avessas invertida pelo que quase aconteceu Em vez de me alegrar de agradecer por estar viva de ter sobrevivido a mais um momento fatal estou furiosa com minha irmã Estou furiosa com Deus com o destino mas direciono minha confusão e sofrimento para o rosto sangrando de minha irmã Magda não responde ao meu insulto Ela não limpa o sangue Os guardas nos rodeiam gritando conosco cutucando corpos com suas armas para se certificar de que aquelas que não estão se mexendo estão realmente mortas Deixamos Hava na neve suja e nos juntamos às outras sobreviventes Você podia ter fugido diz Magda Ela fala isso como se eu fosse uma idiota Em menos de uma hora a munição é transferida para outros vagões do trem e nós voltamos para o teto com nossos uniformes listrados o sangue seco no rosto de Magda Somos prisioneiras e refugiadas Há muito perdemos a noção de tempo de calendário Magda é minha estrela guia Desde que ela esteja por perto tenho tudo de que preciso Somos arrancadas dos trens de munição numa manhã e caminhamos por dias seguidos A neve está começando a derreter dando lugar à grama morta Talvez estejamos andando há semanas As bombas caem às vezes perto Vemos cidades queimando Paramos em pequenas cidades por toda a Alemanha às vezes no sul às vezes no leste forçadas a trabalhar em fábricas ao longo do caminho Contar prisioneiros é uma preocupação da SS Não conto quantas de nós restam Talvez não conte porque sei que a cada dia o número diminui Não é um campo de concentração Mas existem dezenas de maneiras de se morrer As valas na lateral das estradas estão vermelhas com o sangue dos que foram baleados nas costas ou no peito dos que tentaram fugir e dos que não conseguiram acompanhar o ritmo As pernas de algumas garotas congelam e elas caem como as árvores derrubadas Exaustão Exposição Febre Fome Se os guardas não puxam o gatilho o corpo se encarrega disso Ficamos dias sem comer Chegamos ao alto de uma colina e vemos uma fazenda suas dependências um curral para gado Um minuto diz Magda correndo em direção à fazenda contornando as árvores e torcendo para não ser vista pelo guarda da SS que parou para fumar Observo Magda ziguezagueando em direção à cerca da horta Ainda é cedo para os vegetais da primavera mas eu comeria a ração do gado o talo seco dos vegetais Se um rato entrar no quarto em que dormimos vamos pegálo Tento não chamar a atenção para Magda com meu olhar Olho para o outro lado e quando volto a cabeça não consigo vêla Uma arma dispara Outra vez Alguém viu minha irmã Os guardas gritam conosco fazem a contagem com as armas em punho Outros tiros são disparados Nenhum sinal de Magda Me ajude me ajude Percebo que estou rezando para minha mãe Estou conversando com mamãe como ela costumava fazer com o retrato de minha avó que ficava em cima do piano Mesmo em trabalho de parto ela fez isso Magda me contou Na noite em que nasci Magda ouviu mamãe gritando Mãe me ajuda e logo depois o choro do bebê eu e nossa mãe dizendo Você me ajudou Falar com os mortos é um direito meu Mamãe nos ajude eu rezo Vejo uma sombra cinza entre as árvores Ela está viva Escapou das balas E de alguma forma agora ela escapa de ser vista Não respiro até Magda se juntar a mim novamente Havia batatas diz ela Se esses desgraçados não tivessem começado a atirar estaríamos comendo batatas Eu me imagino mordendo uma batata como se fosse uma maçã Eu nem perderia tempo limpandoa Comeria com terra e tudo Vamos trabalhar numa fábrica de munição perto da fronteira tcheca Descobrimos que é março Certa manhã não consigo sair do beliche no barracão onde dormimos Estou queimando em febre tremendo e fraca Levanta Dicuka ordena Magda Você não pode ficar doente Em Auschwitz quem não conseguia trabalhar supostamente era levado para um hospital mas então desaparecia Por que seria diferente agora Não há nenhuma infraestrutura para matar aqui nenhuma tubulação ou tijolos para este propósito Mas uma única bala mata da mesma forma Ainda assim não consigo me levantar Escuto a minha própria voz divagando sobre meus avós Eles vão nos deixar faltar à escola e nos levar para a confeitaria Nossa mãe não pode tirar os doces de nós De alguma forma sei que estou delirando mas não consigo recuperar a razão Magda diz para eu calar a boca e me cobre com um casaco para me manter aquecida caso a febre aumente mas acima de tudo para me manter escondida Não mexa um dedo sequer diz ela A fábrica fica perto do outro lado de uma pequena ponte sobre um rio que corre rápido Deitada embaixo do casaco finjo que não existo antecipando o momento em que minha ausência será notada e um guarda virá ao barracão me matar Magda será capaz de ouvir o tiro acima do barulho das máquinas Não sirvo para nada agora Eu me debato num sono delirante Sonho com fogo É um sonho bem familiar há quase um ano sonho em estar aquecida Acordo mas desta vez o cheiro da fumaça me sufoca O barracão está pegando fogo Tenho medo de correr para a porta de não conseguir chegar lá por causa das pernas fracas de isso me revelar Então ouço as bombas O zumbido e a explosão Como dormi no início do ataque Me arrasto para fora do beliche Onde é mais seguro Mesmo que eu pudesse correr para onde iria Escuto gritos A fábrica está pegando fogo A fábrica está pegando fogo Estou novamente consciente do espaço entre minha irmã e eu torneime especialista em medir o espaço Quantas mãos entre nós Quantas pernas Estrelas Agora há uma ponte Água e madeira E fogo Observo tudo da porta do barracão que finalmente alcancei e me encosto no batente A ponte para a fábrica está em chamas a fábrica envolta na fumaça Para quem sobreviveu a um bombardeio o caos é uma trégua Uma oportunidade de fuga Vejo Magda abrir uma janela e correr para as árvores Ela olha para cima por entre os galhos na direção do céu Pronta para correr o máximo possível até a liberdade Se ela fizer isso então estou fora de perigo Posso cair no chão e nunca mais levantar Que alívio seria Existir é uma tremenda obrigação Deixo minhas pernas se dobrarem Relaxo na queda E lá está Magda num halo de fogo Morta Me derrotando Vou alcançála Sinto o calor do fogo Agora vou me juntar a ela Agora Estou indo digo Espere por mim Não acompanho o momento em que ela deixa de ser um fantasma e se torna novamente de carne e osso De alguma forma ela me faz entender Magda cruzou a ponte em chamas para me encontrar Sua idiota digo você podia ter fugido Estamos em abril A grama nasce verde nas colinas O dia fica claro por mais tempo As crianças cospem em nós quando passamos pelos arredores de uma cidade Que triste eu penso essas crianças terem sofrido lavagem cerebral para me odiar Você sabe como vou me vingar diz Magda Vou matar uma mãe alemã Um alemão matou minha mãe vou matar uma mãe alemã Meu desejo é diferente Desejo que o garoto que cospe em nós perceba um dia que ele não precisa me odiar Na minha fantasia de vingança o garoto que agora grita Judeu sujo Verme segura um buquê de rosas e diz Agora eu sei não há razão para odiar você Nenhuma razão Nós nos abraçamos e perdoamos um ao outro Não conto minha fantasia para Magda Certo dia ao pôr do sol os soldados da SS nos empurram para o salão comunitário onde passaremos a noite Novamente não há comida Quem deixar as instalações será morto imediatamente avisa o guarda Dicuka sussurra Magda quando deitamos nas tábuas de madeira que serão nossas camas meu fim está próximo Cale a boca digo Ela está me assustando Seu desânimo é mais aterrorizante para mim do que uma arma apontada Ela não é disso Ela não desiste Talvez eu seja um peso para minha irmã Talvez ajudar a me manter forte durante minha doença tenha deixado Magda esgotada Você não vai morrer digo a ela Vamos comer esta noite Ah Dicuka diz ela e rola para a parede Vou mostrar a ela Vou mostrar que há esperança Vou conseguir um pouco de comida Vou reanimála Os homens da SS se reuniram perto da porta perto da última luz da tarde para comer suas rações Às vezes eles nos jogam um pedaço de comida apenas pelo prazer de verem que rastejamos Vou até eles de joelhos Por favor por favor peço Eles riem Um soldado segura um pedaço de carne enlatada na minha direção e eu dou um impulso para pegála mas ele a coloca na boca e todos riem mais alto Eles se divertem comigo dessa forma até eu ficar exausta Magda está adormecida Não desisto não quero decepcionála Os guardas encerram o piquenique para ir ao banheiro ou fumar e eu escapo por uma porta lateral Sinto o cheiro de esterco macieiras em flor e tabaco alemão A grama está úmida e fria Do outro lado de um muro de estuque há uma pequena horta pequenas cabeças de alface vagens de feijão a exuberante folhagem das cenouras Posso sentir o sabor das cenouras como se já as tivesse provado crocantes e terrosas Não é difícil pular o muro Ralo os joelhos um pouco ao me arrastar no alto e os pontos brilhantes de sangue são como um ar fresco em minha pele como algo que está no fundo e vem à tona Estou tonta Agarro as folhas da cenouras e puxo o som das raízes se soltando da terra parece o de uma costura rasgando As cenouras estão pesadas em minhas mãos Tufos de terra pendurados nas raízes Até a terra suja cheira a abundância como as sementes como tudo o que pode haver lá Subo novamente o muro a sujeira cobrindo meus joelhos Imagino o rosto de Magda mordendo o primeiro vegetal fresco que comemos em um ano Fiz uma coisa arriscada e ela rendeu frutos É isso que quero que Magda veja mais do que uma refeição mais do que os nutrientes se dissolvendo em seu sangue simplesmente esperança Pulo mais uma vez na terra Mas não estou sozinha Um homem olha para mim Ele segura uma arma É um soldado da Wehrmacht Pior do que a arma são os olhos dele olhos punitivos Como você ousa dizem os olhos dele Vou ensinála a obedecer Ele me coloca de joelhos Engatilha a arma e aponta para o meu peito Por favor por favor por favor Rezo como rezei com Mengele Por favor ajudeo a não me matar Estou tremendo As cenouras batem em minha perna Ele abaixa a arma por um segundo então a levanta novamente Clique Clique Pior do que o medo da morte é a sensação de estar presa e indefesa de não saber o que vai acontecer na próxima vez que respirar Ele me coloca de pé e me leva de volta para o prédio onde Magda dorme Ele usa a coronha da arma para me empurrar para dentro Mijando diz ele para o guarda de dentro e eles riem grosseiramente Seguro as cenouras enroladas no vestido Magda não acorda logo Tenho que colocar a cenoura na palma de sua mão para que ela abra os olhos Ela come tão rápido que morde a parte de dentro da bochecha Quando ela me agradece começa a chorar A SS nos acorda aos gritos pela manhã Hora de andar novamente Estou faminta e vazia e acho que devo ter sonhado com cenouras mas Magda me mostra um punhado da folhagem que ela guardou no bolso para depois Está murcha São restos que em uma vida anterior teríamos jogado fora ou dado para o ganso no sótão Mas essas folhas agora parecem encantadas como o caldeirão de um conto de fadas que se enche de ouro As cabeças marrons murchas das cenouras são a prova de um poder secreto Eu não devia ter me arriscado a ir pegálas mas me arrisquei Tinha grande chance de não sobreviver mas sobrevivi Os ses não são importantes Não são a única forma de controle Existe um princípio diferente uma autoridade diferente em funcionamento Estamos esqueléticas Estamos tão doentes e subnutridas que mal podemos andar muito menos seguir muito menos trabalhar Ainda assim as cenouras me deram força Se eu sobreviver hoje amanhã serei livre Repito o mantra em minha cabeça Fazemos fila para a contagem Ainda estou cantando para mim mesma Quando estamos prestes a sair na manhã fria para outro dia de horror acontece uma agitação na porta O guarda da SS grita em alemão e outro homem grita de volta forçando sua entrada na sala Prendo a respiração e seguro no cotovelo de Magda para não cair É o homem da horta Ele está olhando com severidade para todos na sala Onde está a garota que ousou quebrar as regras pergunta ele Meu corpo treme Não consigo me acalmar Ele voltou para se vingar Quer tornar a punição pública Ou sente que deve Alguém soube de sua bondade inexplicável para comigo e agora ele precisa pagar por ter se arriscado Ele precisa pagar pelo perigo que correu me fazendo pagar pelo meu risco Estremeço quase sem conseguir respirar de tanto medo Estou encurralada Sei o quanto estou próxima da morte Onde está a pequena criminosa pergunta ele novamente Ele vai me identificar a qualquer momento Ou vai perceber os restos da cenoura escapando do casaco de Magda Não consigo aguentar o suspense de esperar que ele me reconheça Me curvo e me arrasto na direção do homem Magda sussurra algo para mim mas é tarde demais Eu me agacho aos pés dele Vejo a lama em suas botas o nó da madeira do chão Você diz ele parecendo decepcionado Fecho os olhos Espero ele me chutar Espero ele me dar um tiro Algo pesado cai perto de meus pés Uma pedra Será que ele vai me apedrejar até a morte lentamente Não É um pão Um pequeno pão escuro de centeio Você deve estar com muita fome para fazer o que fez diz ele Gostaria de encontrar esse homem agora Ele é a prova de que doze anos do Reich de Hitler não são suficientes para tirar a bondade das pessoas Os olhos dele são os olhos de meu pai Verdes E cheios de alívio C A P Í T U L O 5 Os degraus da morte Andamos por dias ou semanas novamente Desde Auschwitz ficamos na Alemanha mas um dia chegamos à fronteira austríaca onde esperamos para atravessar Os guardas fofocam enquanto aguardamos em filas intermináveis que para mim se tornaram uma ilusão de ordenamento a ilusão que uma coisa naturalmente segue a outra É um alívio ficar parada Escuto a conversa dos guardas Falam que o presidente Roosevelt morreu Truman agora deve ir até o fim da guerra Como é estranho ouvir que lá fora no mundo além de nosso purgatório as coisas mudam Um novo rumo é traçado Esses eventos acontecem tão longe de nossa existência cotidiana que é um choque perceber que até mesmo nesse momento alguém está fazendo escolhas por mim Não sobre a minha pessoa especificamente Não tenho nome Mas alguém com autoridade está tomando uma decisão que determinará o que acontece comigo Norte sul leste ou oeste Alemanha ou Áustria O que deve ser feito com os judeus sobreviventes antes de a guerra acabar Quando a guerra acabar diz um guarda Ele não conclui o pensamento Esse é o tipo de conversa sobre o futuro que Eric e eu tínhamos antigamente Depois da guerra Se eu me concentrar do jeito certo será que consigo descobrir se ele ainda está vivo Finjo que espero do lado de fora da estação onde compro um bilhete mas tenho uma única chance de descobrir em qual cidade estou para encontrálo Praga Viena Dusseldorf Presov Paris Coloco a mão no bolso tateando por meu passaporte Eric meu amor estou a caminho Uma guarda da fronteira grita em alemão comigo e com Magda e nos encaminha a uma fila diferente Eu começo a me mexer mas Magda fica parada A guarda grita novamente Magda não se mexe não responde Ela está delirando Por que não me segue A guarda grita no rosto de Magda e Magda balança a cabeça Não entendo diz Magda para a guarda em húngaro É claro que ela entende Somos fluentes em alemão Sim você entende grita a guarda Não entendo repete Magda Sua voz está totalmente neutra Seus ombros estão retos e elevados O que não estou percebendo Por que ela está fingindo não entender Não há nada a ganhar com o desafio Ela enlouqueceu As duas continuam a discutir Só que Magda não está discutindo Ela apenas repete objetivamente calmamente que não compreende A guarda se descontrola Ela bate no rosto de Magda com a coronha da arma Bate novamente nos ombros de Magda Bate bate até que Magda cai e a guarda chama a mim e a outra garota para arrastála conosco Magda está machucada e tossindo mas seus olhos brilham Eu disse Não grita ela Eu disse Não Para ela é uma surra maravilhosa A prova de seu poder Ela se manteve firme enquanto a guarda se descontrolou A desobediência civil de Magda a faz se sentir como a autora da escolha não como vítima do destino Mas o poder que Magda experimenta dura pouco Logo estaremos caminhando novamente rumo a um lugar pior do que qualquer outro que vimos até então Chegamos a Mauthausen É um campo de concentração masculino em uma pedreira onde os prisioneiros são obrigados a cortar e carregar o granito que será usado para construir a cidade de fantasia de Hitler a nova capital da Alemanha uma nova Berlim Não vejo nada a não ser degraus e corpos Os degraus são de pedra branca e se estendem acima e à nossa frente como se nos levassem ao céu Os corpos estão por toda parte em pilhas Corpos retorcidos e inclinados como pedaços de uma cerca Corpos tão esqueléticos desfigurados e emaranhados que mal têm forma humana Ficamos em fila nos degraus brancos Os degraus da morte como são chamados Esperamos por outra seleção que imaginamos nos mandará para a morte ou para mais trabalho Boatos percorrem a fila Os prisioneiros em Mauthausen aprendemos têm que subir 186 degraus carregando um bloco de pedra de 50 quilos desde a pedreira lá embaixo seguindo uma fila Imagino os meus antepassados os escravos do faraó no Egito vergados sob o peso das pedras Aqui nos degraus da morte nos contam que quando você está subindo carregando uma pedra e alguém na sua frente tropeça ou cai você é o próximo a cair e assim sucessivamente até a fila inteira entrar em colapso e virar uma pilha Dizem que se você sobreviver é pior pois tem que ficar em pé encostada numa parede à beira de um precipício Fallschirmspringerwand é o nome em alemão a parede do paraquedista Sob a mira de uma arma você deve escolher entre receber um tiro ou empurrar o preso ao seu lado Simplesmente me empurre diz Magda Se chegarmos a esse ponto Faça o mesmo comigo digo Prefiro mil vezes cair a ver minha irmã levar um tiro Estamos fracas e famintas demais para dizer isso por educação Dizemos isso por amor mas também por autopreservação Não me dê outra coisa pesada para carregar Deixeme cair entre as pedras Eu peso menos bem menos que as pedras que os prisioneiros carregam nos degraus da morte Sou tão leve que poderia planar como uma folha ou uma pena descendo descendo Eu poderia cair agora Poderia simplesmente cair para trás em vez de dar o próximo passo Acho que estou vazia Não tenho peso para me segurar na terra Estou quase me entregando a essa fantasia de leveza de me liberar do peso de estar viva quando alguém à minha frente quebra o encanto Lá está o crematório diz ela Olho para cima Ficamos longe dos campos de extermínio por tantos meses que esqueci como as chaminés são altas De certa forma elas são tranquilizadoras Sentir a proximidade e a iminência da morte numa coluna de tijolos ver a chaminé como uma ponte que fará sua passagem do estado sólido para o gasoso considerarse já morta faz um certo sentido Ainda assim enquanto aquela chaminé produzir fumaça tenho algo por que lutar Tenho um propósito Morreremos pela manhã os boatos anunciam Posso sentir a resignação me oprimindo como a gravidade uma força constante e inevitável A noite cai e dormimos nos degraus Por que eles demoraram tanto para começar a seleção Minha coragem oscila Morreremos pela manhã Pela manhã morreremos Será que minha mãe sabia o que ia acontecer quando se juntou à fila de crianças e idosos Quando ela viu Magda e eu selecionadas para um caminho diferente Será que ela lutou contra a morte Ela a aceitou Permaneceu alheia até o fim Será que importa quando se morre se você tinha consciência de estar morrendo Morreremos pela manhã Pela manhã morreremos Escuto o boato a certeza repetida como se estivesse ecoando nas pedras Será que caminhamos tantas centenas de quilômetros para simplesmente desaparecer Quero organizar minha mente Não quero que meus últimos pensamentos sejam meros chavões tampouco frases desanimadas De que adianta O que tudo significa Não quero que meus últimos pensamentos sejam uma repetição dos horrores que vimos Quero me sentir viva Quero desfrutar da vida Penso na voz de Eric e em seus lábios Tento pensar em coisas que ainda podem me fazer vibrar Nunca esquecerei os olhos dele Nunca esquecerei as mãos dele É isso que quero lembrar calor no peito e um arrepio percorrendo a pele embora lembrar não seja a palavra certa Quero aproveitar meu corpo enquanto ainda tenho um Há uma eternidade em Kassa mamãe me proibiu de ler Naná de Émile Zola mas escondi o livro no banheiro e o li em segredo Se eu morrer amanhã morrerei virgem Por que tenho um corpo se nunca o conheci completamente Grande parte da minha vida foi um mistério Eu me lembro do dia em que fiquei menstruada pela primeira vez Voltei de bicicleta para casa do colégio e quando cheguei vi manchas de sangue na minha saia branca Fiquei assustada Corri para minha mãe chorando pedindo que ela me ajudasse a localizar o machucado Ela me deu um tabefe Eu não sabia que era uma tradição húngara estapear a garota quando ela menstrua pela primeira vez Eu não sabia nada sobre menstruação Ninguém nem minha mãe nem minhas irmãs nem professoras instrutoras ou amigas me explicaram qualquer coisa sobre minha anatomia Eu sabia que havia alguma coisa que os homens tinham e que as mulheres não tinham Nunca vi meu pai nu mas sentia aquela parte de Eric fazendo pressão em mim quando ele me abraçava Ele nunca pediu que eu o tocasse nunca me apresentou seu corpo Eu gostava da sensação de que tanto o corpo dele quanto o meu eram mistérios aguardando descobertas algo que provocava uma descarga de energia entre nós quando nos tocávamos Agora esse era um mistério que eu nunca resolveria Eu havia experimentado estrelinhas do desejo mas nunca conheceria a satisfação a promessa completa da galáxia luminosa Choro por causa disso agora nos degraus da morte É terrível perder ter perdido tudo o que conheci mãe pai irmã namorado país casa Por que também tenho que perder as coisas que não conheci Por que tenho que perder o futuro Meu potencial Os filhos que nunca terei O vestido de casamento que meu pai nunca fará Vou morrer virgem Não quero que esse seja o meu último pensamento Devo pensar em Deus Tento imaginar uma força irremovível Magda perdeu a fé Ela e muitas outras Não posso acreditar em um Deus que deixaria isso acontecer dizem Entendo o que elas querem dizer Mesmo assim nunca tive dificuldade em compreender que não é Deus que está nos matando em câmaras de gás em valas em precipícios em escadas com 186 degraus brancos Deus não comanda os campos da morte As pessoas comandam Mas eis aqui o horror novamente e eu não quero me entregar a ele Imagino Deus como uma criança dançando Alegre inocente e curiosa Também devo ser assim para estar próxima de Deus agora Quero manter viva até o fim a parte de mim que se maravilha que sonha Perguntome se alguém sabe que estou aqui se alguém sabe o que está acontecendo que existem lugares como Auschwitz e Mauthausen Será que meus pais podem me ver agora Gostaria de saber se Eric pode Tenho curiosidade em saber como é um homem nu Há muitos homens ao meu redor Homens que já não vivem Eu não vou ofendêlos se der uma olhada O pior delito seria renunciar à minha curiosidade eu me convenço Deixo Magda dormindo na escada e rastejo até a encosta barrenta onde os corpos são empilhados Não tiro a roupa de ninguém que esteja vestido Não vou mexer com os mortos Mas se um homem estiver despido vou olhar Vejo um homem com as pernas abertas Elas não parecem pertencer ao mesmo corpo mas posso imaginar o lugar onde as pernas se unem Vejo pelos como os meus escuros grossos e um pequeno apêndice É como um pequeno cogumelo uma coisa macia que sai da terra Que estranho as partes femininas serem todas escondidas e as dos homens tão expostas tão vulneráveis Fico satisfeita Não vou morrer ignorando a biologia que me fez Ao raiar do dia a fila começa a andar Não conversamos muito Alguns gritam Quase todos permanecem contidos em seu medo em sua tristeza em sua resignação ou em seu alívio Não conto a Magda o que vi na noite anterior Essa fila está andando rapidamente Não vai haver muito tempo Tento me lembrar das constelações que eu costumava identificar no céu estrelado Tento me lembrar do gosto do pão da minha mãe Dicuka diz Magda mas demoro algumas respirações para reconhecer meu nome Chegamos ao topo da escadaria O oficial encarregado da seleção está logo à frente Todo mundo é enviado na mesma direção Isso não é uma fila de seleção É um encaminhamento É realmente o fim Eles esperaram até o amanhecer para nos mandar para a morte Devemos fazer promessas umas para as outras Pedir perdão O que há para ser dito Cinco garotas na nossa frente agora O que devo dizer à minha irmã Duas garotas Então a fila para Somos levadas para um grupo de guardas da SS num portão Se vocês tentarem correr serão mortas gritam eles para nós Se ficarem para trás serão mortas Fomos salvas novamente Inexplicavelmente Andamos Esta é a Marcha da Morte de Mauthausen para Gunskirchen É a distância mais curta que fomos forçadas a percorrer mas estamos tão enfraquecidas a essa altura que somente cem das duas mil prisioneiras sobreviverão Magda e eu nos agarramos uma à outra determinadas a permanecer juntas a ficar de pé A cada hora centenas de garotas caem nas valas dos dois lados da estrada Fracas demais ou doentes demais para continuar andando elas são mortas no local Somos como a cabeça de um dentedeleão espalhando suas sementes levadas pelo vento sendo que uns poucos tufos brancos permanecem Fome é o meu único nome Tudo em mim dói tudo em mim está dormente Não consigo dar nem mais um passo Dói tanto que não consigo me obrigar a andar Sou basicamente um circuito de dor uma sensação que se retroalimenta Não percebo que tropecei até sentir os braços de Magda e das outras garotas me levantando Elas entrelaçaram os dedos para formar uma cadeira humana Você dividiu o seu pão diz uma delas As palavras não significam nada para mim Quando eu saboreei um pão Mas então a memória volta Nossa primeira noite em Auschwitz Mengele ordenando o início da música e me mandando dançar Este corpo dançou Esta mente sonhou com a Ópera de Budapeste Este corpo comeu aquele pão Eu sou aquela que tinha uma ideia fixa naquela noite e que volta a pensar nisso agora Mengele matou a minha mãe Mengele me deixou viver Uma garota que compartilhou uma casca comigo há quase um ano me reconheceu Ela gasta suas últimas forças para juntar seus dedos aos de Magda e das outras meninas e me levanta no ar De certa forma Mengele permitiu que este momento acontecesse Ele não matou nenhuma de nós naquela noite ou em qualquer outra noite Ele nos deu pão C A P Í T U L O 6 Escolhendo uma folha de grama Há sempre um inferno pior Esta é a nossa recompensa por viver Quando paramos de caminhar chegamos a Gunskirchen Lager É um subcampo de Mauthausen algumas poucas construções de madeira em uma floresta pantanosa perto de uma aldeia um campo construído para abrigar centenas de trabalhadores escravos onde agora se amontoam 18 mil pessoas Não é um campo de extermínio Não há câmaras de gás aqui nem crematório Mas não há dúvida de que estamos aqui para morrer Já é difícil dizer quem está vivo e quem está morto A doença passa por dentro e entre os nossos corpos Tifo Disenteria Piolho Feridas abertas Carne sobre carne Apodrecendo em vida Uma carcaça de cavalo meio consumida Coma a carne crua Quem precisa de faca para cortar a carne Simplesmente arranquea do osso Você dorme profundamente com três pessoas nas estruturas de madeira lotadas ou no chão Se alguém embaixo de você morre continue dormindo Ninguém tem força para tirar o morto dali Uma garota está toda encolhida de tanta fome Há um pé negro apodrecido Fomos levados para uma floresta fechada e úmida para sermos mortos em uma explosão gigantesca todos nós pegando fogo O lugar está todo preparado com bananas de dinamite Esperamos a explosão que nos consumirá em chamas Até esse momento chegar existem outros perigos inanição febre doenças Há apenas vinte latrinas no campo todo Se você não puder esperar a sua vez de defecar eles atiram em você lá mesmo onde suas fezes foram depositadas O lixo entra em combustão A terra é um lamaçal e se você tiver forças para andar seus pés chafurdam em uma polpa que é parte lama parte merda Faz cinco ou seis meses que saímos de Auschwitz Magda paquera É como consegue reagir diante da proximidade da morte Ela encontra um francês um cara de Paris que morou antes da guerra na Rue de alguma coisa um endereço que digo a mim mesma que nunca mais vou esquecer Mesmo nas profundezas desse horror existe química pessoa a pessoa com direito a nó na garganta e encantamento Vejo os dois conversando como se estivessem sentados num café no verão com pratinhos de comida entre eles É isso que os vivos fazem Usamos nossa vibração sagrada como anteparo para o medo Não estrague sua imaginação Acendaa como uma tocha Diga ao francês seu nome e devore o endereço dele saboreie mastigueo lentamente como se fosse um pedaço de pão Depois de poucos dias em Gunskirchen viro alguém que não consegue andar Embora eu não saiba estou com a coluna quebrada ainda hoje não sei quando a lesão ocorreu nem como Percebo apenas que cheguei ao fim de minhas reservas Eu me deito no meio daquela atmosfera pesada meu corpo entrelaçado com os de gente estranha todos juntos numa pilha alguns já mortos há muito tempo e outros como eu quase mortos Vejo coisas que sei que não são reais Eu as vejo misturadas com o que é real mas que não deveria ser Minha mãe lê para mim Scarlett chora Amei algo que não existe realmente Meu pai joga um biscoito para mim Klara começa um concerto para violino de Mendelssohn Ela toca ao lado da janela para que um transeunte a veja levante o olhar em sua direção e ela possa ter a atenção que deseja sem pedir diretamente É isso que os vivos fazem Nós ajustamos as cordas para que elas vibrem de acordo com as nossas necessidades Aqui no inferno eu vejo um homem comer carne humana Será que eu faria isso para salvar minha vida Será que consigo colocar na minha boca a pele pendurada nos ossos de uma pessoa e mastigar Tenho visto a dignidade da carne ser tirada com imperdoável crueldade Vi um garoto ser amarrado a uma árvore enquanto os oficiais da SS atiravam em seus pés suas mãos seus braços uma orelha uma criança inocente usada como alvo Ou a grávida que de alguma forma chegou a Auschwitz sem ser morta imediatamente Quando ela entrou em trabalho de parto os guardas amarraram suas pernas Nunca vi uma agonia como a dela Mas olhar alguém passando fome comer a carne de uma pessoa morta faz minha bile subir escurece a minha visão Não seria capaz Ainda assim preciso comer Preciso comer ou morrerei Na lama pisoteada cresce grama Olho para a folhagem observo os diferentes tamanhos e cores Vou comer grama Escolher essa folha de grama e não aquela outra Vou ocupar a mente com a escolha Isso é o que significa escolher Comer a grama ou comer carne Comer esta grama ou aquela Durmo a maior parte do tempo Não há nada para beber Perco a noção do tempo Estou quase sempre adormecida Mesmo acordada luto para me manter consciente Quando vejo Magda rastejando até mim com uma lata na mão uma lata que brilha no sol Uma lata de sardinhas A Cruz Vermelha por sua neutralidade foi autorizada a enviar ajuda aos prisioneiros Magda se enfiou numa fila e recebeu uma lata de sardinhas Mas não há como abrir É só uma nova forma de crueldade Mesmo uma boa intenção uma boa ação se torna uma bobagem Minha irmã está morrendo lentamente de fome minha irmã segura a comida na mão Ela agarra a lata da maneira que antes segurou seu cabelo tentando se manter firme Uma lata de peixe impossível de ser aberta é a parte mais humana dela agora Somos os mortos e os quase mortos Não sei dizer qual deles eu sou Tenho noção nos cantos da minha consciência que estou trocando o dia pela noite Quando abro os olhos não sei se dormi ou desmaiei nem por quanto tempo Não tenho condições de perguntar Quanto tempo Às vezes consigo perceber que estou respirando Às vezes tento mexer a cabeça para procurar Magda Às vezes não consigo me lembrar do nome dela Gritos me arrancam de um sono que parece a morte Os gritos devem ser o arauto da morte Espero pela explosão e pelo calor prometido Mantenho os olhos fechados e espero queimar Mas não há explosão Não há fogo Abro os olhos e vejo jipes passando devagar pela floresta de pinheiros que esconde o campo da estrada e do céu Os americanos chegaram Os americanos estão aqui é o que os moribundos estão gritando Os jipes parecem borrões flutuantes como se eu estivesse olhando através de água ou do calor intenso Poderia ser uma alucinação coletiva Alguém está cantando When the Saints Go Marching In Por mais de setenta anos essas impressões sensoriais ficaram guardadas comigo indeléveis Mas quando aconteceram eu não tive a menor ideia de seu significado Vejo homens exaustos Vejo bandeiras com estrelas e listras bandeiras americanas Vejo bandeiras com o número 71 Vejo um americano dando cigarros a prisioneiros tão famintos que comeram os cigarros com papel e tudo Observo um emaranhado de corpos Não sei dizer quais são as minhas pernas Tem alguém vivo aqui gritam os americanos em alemão Levante a mão se você está vivo Tento mover os dedos para sinalizar que estou viva Um soldado passa tão perto de mim que posso ver os respingos de lama em suas calças Posso sentir o cheiro de seu suor Estou aqui quero chamar Estou aqui Não tenho voz Ele faz uma busca entre os corpos Os olhos dele passam por mim mas ele não me vê Ele segura um pedaço de pano sujo no rosto Levante a mão se você pode me ouvir diz ele Ele mal tira o pano da boca quando fala Eu me esforço para encontrar meus dedos Vocês nunca sairão vivos daqui disseram a kapo que arrancou meus brincos o oficial da SS com a máquina de tatuar que não quis desperdiçar a tinta a capataz da tecelagem e o soldado da SS que atirou em nós na longa longa marcha É assim que eles sentem que estão certos O soldado grita alguma coisa em inglês Alguém fora do meu campo de visão grita de volta Eles estão indo embora E então um raio de luz explode no chão Eis o fogo Finalmente Estou surpresa que não faça barulho Os soldados voltam Meu corpo dormente de repente fica quente por causa das chamas eu penso ou da febre Nada disso Não há fogo O raio de luz não é fogo É o sol batendo na lata de sardinhas de Magda De propósito ou por acidente ela atraiu a atenção dos soldados com uma lata de peixe Eles estão voltando Temos mais uma chance Se posso dançar na minha imaginação posso fazer meu corpo ser visto Fecho os olhos e me concentro levantando as mãos acima da minha cabeça em um floreio Escuto os soldados gritarem novamente uns com os outros Um está muito próximo Mantenho os olhos fechados e continuo minha dança Imagino que estou dançando com ele Que ele me levanta sobre a cabeça como Romeu fez no alojamento com Mengele Que existe amor e ele nasce da guerra Que existe morte e sempre sempre o seu oposto Agora sinto a minha mão Sei que é a minha mão porque o soldado está tocando nela Abro os olhos Vejo que sua mão grande e escura envolve os meus dedos Ele pressiona algo na minha mão Bolinhas Bolinhas coloridas Vermelhas marrons verdes amarelas Comida diz o soldado Ele olha nos meus olhos Sua pele é a mais escura que eu já vi os lábios são grossos os olhos marromescuros Ele me ajuda a levar a mão até a boca E a soltar as bolinhas na língua seca A saliva se forma e eu sinto um gosto doce Eu sinto chocolate Eu me lembro do nome deste sabor Tenha sempre alguma coisa doce no bolso dizia meu pai Aqui está a doçura Mas e Magda Ela também foi encontrada Ainda não consigo falar não tenho voz Não consigo balbuciar um agradecimento Nem formar as sílabas do nome da minha irmã Mal consigo engolir os pequenos chocolates que o soldado me deu Mal consigo pensar em outra coisa que não seja o desejo por mais comida Ou por um copo de água A atenção dele está voltada para me retirar da pilha de corpos Ele tem de afastar os mortos de mim Eles estão flácidos no rosto nos membros Por mais esqueléticos que estejam são pesados e o soldado faz caretas e se contorce para levantálos O suor cobre seu rosto Ele tosse por causa do fedor e ajeita o pano sobre a boca Quem sabe há quanto tempo os mortos estão mortos Talvez apenas um suspiro ou dois me separe deles Não sei como dizer o quanto estou agradecida Mas sinto um formigamento de gratidão percorrer toda a minha pele Agora ele me carrega e me coloca no chão de costas a uma pequena distância dos cadáveres Posso ver pedaços do céu por entre as copas das árvores Sinto o ar úmido no rosto a umidade da grama lamacenta embaixo de mim Deixo a mente curtir a sensação Imagino o cabelo comprido e encaracolado de minha mãe a cartola e o bigode de meu pai Tudo o que sinto e que já senti um dia veio deles da união que me gerou Eles me embalaram em seus braços Fizeram de mim uma criança da Terra Lembrome da história que Magda conta sobre o meu nascimento Você me ajudou gritou minha mãe para a imagem da mãe dela Você me ajudou E agora Magda está ao meu lado na grama Ela segura sua lata de sardinhas Sobrevivemos à seleção final Estamos vivas Estamos juntas Estamos livres PARTE II FUGA C A P Í T U L O 7 Meu libertador meu agressor Quando eu me permitia imaginar esse momento o fim de meu encarceramento o fim da guerra pensava na alegria florescendo em meu peito Imaginei que gritaria o mais alto que pudesse ESTOU LIVRE ESTOU LIVRE Mas agora estou sem voz Somos um rio silencioso uma corrente de libertos que flui do cemitério Gunskirchen em direção à cidade mais próxima Sigo num carrinho improvisado As rodas rangem Mal consigo me manter consciente Não há alegria ou alívio nessa liberdade É uma caminhada lenta para fora da floresta É um rosto atordoado É mal se sentir vivo e voltar a dormir É o perigo de sofrer uma congestão depois de comer demais O perigo de ingerir o tipo errado de comida A liberdade é ferida piolho tifo barriga seca e olhos apáticos Tenho consciência da presença de Magda caminhando ao meu lado Da dor em todo o meu corpo quando o carrinho balança Por mais de um ano não pude me dar ao luxo de pensar no que doía e no que não doía Apenas pensei em acompanhar os outros em como me manter um passo à frente em conseguir um pouco de comida em caminhar rápido o suficiente em nunca parar em permanecer viva e não ser deixada para trás Agora que o perigo passou a dor interior e o sofrimento ao meu redor transformam consciência em alucinação Um filme mudo Uma marcha de esqueletos A maioria está fisicamente arrasada demais para caminhar Ficamos deitados em carrinhos apoiados em varas Nossos uniformes estão imundos e gastos tão esfarrapados e rasgados que mal cobrem a pele A pele mal cobre nossos ossos Somos uma aula de anatomia Cotovelos joelhos tornozelos maçãs do rosto articulações e costelas se projetam como perguntas O que somos agora Nossos ossos parecem obscenos nossos olhos são cavernas inexpressivas vazias escuras Rostos irreais Unhas pretas azuladas Somos lesões em movimento Um desfile de zumbis em câmara lenta Cambaleamos ao andar os carrinhos se arrastam pelos paralelepípedos Fila após fila enchemos a praça da cidade de Wels na Áustria A população nos olha das janelas Somos assustadores Ninguém fala Nós sufocamos a praça com nosso silêncio Os moradores correm para suas casas As crianças tapam os olhos Passamos pelo inferno e agora nos tornamos o pesadelo de outras pessoas O importante é comer e beber Não muito nem muito rápido É possível ter uma overdose de comida Alguns de nós não conseguem se controlar A moderação se dissolveu junto com nossa massa muscular com nossa carne Passamos fome por muito tempo Mais tarde vou saber que uma garota da minha cidade irmã de uma amiga de Klara foi libertada de Auschwitz e morreu por comer demais Manter o estado de inanição é tão mortal quanto sair dele É uma bênção então que eu só recupere a força necessária para mastigar de maneira intermitente Outra bênção é que os soldados americanos tenham pouca comida a oferecer na maior parte chocolate aquelas gotinhas coloridas de MM como aprendemos depois Ninguém quer nos abrigar Hitler morreu há menos de uma semana a Alemanha ainda está a dias de se render oficialmente A violência diminui em toda a Europa mas ainda é tempo de guerra Alimento e esperança são escassos para todos E nós as sobreviventes exprisioneiras ainda somos o inimigo para alguns Parasitas Vermes A guerra não acaba com o antissemitismo Os soldados americanos levam a mim e Magda para a casa de uma família alemã composta de mãe pai avó e três crianças É ali que vamos morar até ficarmos fortes para viajar Tenham cuidado os americanos nos avisam num alemão capenga Ainda não há paz Qualquer coisa pode acontecer Os adultos guardam todos os pertences da família num quarto e o pai faz questão de mostrar que está trancando a porta As crianças se revezam para nos observar e depois correm para se esconder atrás da mãe Somos alvo de fascínio e medo Estou acostumada com o olhar vazio e a crueldade automática da SS que lhes provoca um júbilo inadequado seu prazer pelo poder Estou acostumada à maneira como eles se vangloriam para se sentir importantes e aumentar a sensação de propósito e de controle A maneira como as crianças olham para nós é pior Somos uma ofensa à sua inocência É assim que as crianças nos olham como se fôssemos transgressoras O choque delas é mais amargo do que o próprio ódio Os soldados nos levam para o cômodo onde vamos dormir É o quarto das crianças Somos órfãs da guerra Eles me colocam num berço de madeira Estou pequena assim peso 32 quilos Não consigo andar sozinha Sou um bebê Mal consigo formar frases Penso em termos de dor de necessidade Eu choraria para ser abraçada mas não há ninguém para me abraçar Magda se encolhe como uma bola na pequena cama Um barulho do lado de fora de nossa porta me desperta Mesmo o descanso é frágil Sinto medo o tempo todo Temo o que já aconteceu e o que pode acontecer Barulhos no escuro trazem de volta a imagem de minha mãe guardando a membrana do nascimento de Klara no casaco e de meu pai olhando para nosso apartamento na madrugada em que fomos despejados Quando revivo o passado perco minha casa e meus pais mais uma vez Olho para as grades de madeira do berço e tento me acalmar e voltar a dormir ou pelo menos me acalmar Mas os barulhos continuam Estrondos e passos fortes Então a porta se abre Dois soldados americanos entram no quarto Eles tropeçam um no outro batem numa pequena prateleira A luz de um abajur ilumina o quarto escuro Um dos homens aponta para mim ri e segura a virilha Magda não está lá Não sei onde ela está se perto o suficiente para me ouvir se eu gritar ou escondida em algum lugar tão amedrontada quanto eu Ouço a voz de minha mãe Não ouse perder a virgindade antes de se casar ela nos recomendava antes até mesmo de eu saber o que era virgindade Não perdi Entendi a ameaça Não se arruíne Não seja uma decepção Agora uma brutalidade pode fazer mais do que me desonrar poderia me matar Estou frágil assim Não tenho medo apenas de morrer ou de sentir mais dor Tenho medo de perder o respeito de minha mãe O soldado empurra o amigo de volta para a porta para que ele monte guarda Ele se aproxima de mim e fala de maneira irritantemente amorosa com uma voz rascante perturbada Seu suor e o álcool de seu hálito têm um cheiro penetrante como mofo Preciso mantêlo longe de mim Não há nada para atirar nele Não consigo nem me sentar Tento gritar mas minha voz não passa de um murmúrio O soldado parado na porta está rindo De repente ele para de rir e fala com rispidez Não sei inglês mas sei que ele diz algo sobre um bebê O outro soldado se inclina contra a grade do berço Sua mão tateia a cintura Ele vai me usar Me esmagar Ele tira a arma e gesticula loucamente como se ela fosse uma tocha Aguardo suas mãos me apertarem Mas em vez disso ele se afasta Vai até a porta na direção do amigo A porta se fecha Estou sozinha no escuro Não consigo dormir Tenho certeza de que o soldado voltará Onde está Magda Será que algum outro soldado a pegou Ela definhou mas seu corpo está em melhor forma do que o meu e ainda guarda algum indício de sua feminilidade Para me acalmar tento organizar o que conheço dos homens e da paleta humana Eric gentil e otimista meu pai decepcionado com ele mesmo e com as circunstâncias às vezes derrotado às vezes se esforçando ao máximo encontrando as pequenas alegrias Dr Mengele lascivo e controlado o soldado da Wehrmacht que me flagrou com as cenouras frescas do chão punitivo porém misericordioso depois gentil o soldado americano que me tirou da pilha de corpos na Gunskirchen determinado e corajoso e agora este tipo novo A linha tênue que o torna um libertador e ao mesmo tempo um agressor uma presença pesada e vazia Um enorme vazio como se a humanidade tivesse deixado seu corpo Nunca vou saber onde Magda estava naquela noite Mesmo hoje ela não se lembra Mas vou levar algo vital daquela noite terrível algo que espero nunca esquecer O homem que quase me estuprou que poderia ter voltado para terminar o que começou também viu o horror Como eu ele provavelmente passou o resto da vida tentando afugentálo empurrálo para as bordas Naquela noite acredito que ele estava tão perdido na escuridão que quase foi consumido por ela Mas acabou não sendo Ele fez a escolha de não ser tragado pela escuridão Ele volta pela manhã Sei que é ele porque ainda cheira a álcool porque o medo me fez memorizar seu rosto embora o tenha visto na penumbra Abraço meus joelhos e gemo Pareço um animal Não consigo me controlar É um barulho monótono pungente pareço um inseto Ele se ajoelha ao lado do berço Está chorando Repete duas palavras Não sei o que elas significam mas lembro o som Me desculpe Me desculpe Ele me entrega uma sacola de pano É pesada demais para eu conseguir segurar então ele a esvazia para mim espalhando o conteúdo no colchão latinhas de ração do exército Ele me mostra as imagens nas latas Aponta e fala um maître louco explicando o menu e me convidando a escolher a próxima refeição Não consigo entender nada do que ele diz Analiso as imagens Ele abre uma lata e me alimenta com uma colher É presunto com qualquer coisa doce passas talvez Se meu pai não tivesse compartilhado os pedaços de porco que trazia escondido eu não saberia o gosto daquilo húngaros jamais misturariam presunto com qualquer coisa doce Continuo abrindo a boca recebendo outra colherada Claro que o perdoo Estou faminta e ele me traz comida Ele volta todos os dias Magda está bem o suficiente para flertar novamente e acho que em algum momento o soldado fez questão de voltar a esta casa porque gosta da atenção dela Mas dia após dia ele mal toma conhecimento da presença de minha irmã Ele vem por mim Sou eu o problema que ele precisa resolver Talvez ele esteja se penitenciando por sua quase agressão Ou talvez precise provar a si mesmo que a esperança e a inocência podem ser recuperadas a dele a minha a do mundo e que uma garota depauperada pode andar novamente Estou fraca e abalada demais para aprender a dizer ou soletrar o nome do soldado que durante seis semanas cuidou de mim que me tirava do berço segurava as minhas mãos e me incentivava a dar um passo por vez no quarto Quando tento me movimentar sinto as costas doerem como se queimadas por carvão em brasa Eu me concentro em transferir o peso de um pé para o outro tentando sentir o momento exato em que ocorre a transferência de peso Minhas mãos ficam suspensas apoiadas nos dedos dele Finjo que ele é meu pai o pai que gostaria que eu tivesse nascido menino e que depois me amou de qualquer maneira Você vai ser a garota mais bemvestida da cidade ele me disse infinitas vezes Quando penso em meu pai o calor sai das minhas costas e esquenta meu peito Há dor e amor Um bebê conhece esses dois lados do mundo que eu também estou reaprendendo Como Magda se sente fisicamente melhor do que eu ela tenta colocar nossas vidas em ordem Um dia em que a família alemã está fora de casa Magda abre os armários e encontra vestidos para usarmos Na tentativa de descobrir quem está vivo e onde poderemos refazer a vida quando chegar a hora de partirmos de Wels ela envia cartas para Klara para o irmão de nossa mãe em Budapeste e para a irmã da nossa mãe em Miskolc cartas que jamais serão lidas Não consigo escrever o meu próprio nome Muito menos um endereço Uma frase Tem alguém aí Um dia o soldado traz papel e lápis Começamos com o alfabeto Ele escreve um A maiúsculo Um a minúsculo Um B maiúsculo Um b minúsculo Ele me dá o lápis e acena com a cabeça Será que consigo fazer alguma letra Ele quer que eu tente Quer ver o quanto eu regredi o quanto me recordo Consigo escrever C e c D e d Eu me lembro Ele me encoraja me estimula a continuar E e e F e f Mas então hesito Sei que o G vem a seguir porém não consigo imaginálo nem pensar em como desenhálo na página Um dia ele traz um rádio que toca a música mais alegre que já ouvi Ela é animada Estimulante Ouço instrumentos de sopro Eles insistem que a gente se movimente sem intenção de nos convencer Mais que isso é um convite impossível de ser recusado O soldado e seus amigos mostram a Magda e a mim as danças que acompanham aquele som o jitterbug e o boogiewoogie Os homens formam pares como se fossem dançarinos de salão Até a maneira como eles seguram os braços é nova para mim Tratase de um estilo de dança de salão mais solto e versátil Informal mas não deselegante Como eles conseguem ser tão ágeis e animados e ao mesmo tempo tão flexíveis Tão dispostos Seus corpos acompanham seja qual for a música tocando Quero dançar dessa forma Quero que os meus músculos se lembrem de como dançar Certa manhã Magda vai tomar banho e volta tremendo para o quarto Seu cabelo está molhado a roupa meio aberta Ela se enrosca na cama com os olhos fechados Como estou grande demais para o berço agora cochilei na cama enquanto ela tomava banho e não sei dizer se ela sabe ou não que estou acordada Já faz mais de um mês desde a libertação Magda e eu passamos quase todas as horas dos últimos quarenta dias juntas neste quarto Recuperamos a força de nossos corpos reconquistamos a capacidade de conversar de escrever e até tentamos dançar Conseguimos falar sobre Klara e sobre nossa esperança de que ela esteja viva em algum lugar tentando nos encontrar Mas não conseguimos falar sobre o que passamos Talvez em nosso silêncio estejamos tentando criar uma área onde nossos traumas não entrem Wels é uma vida no limbo mas presumivelmente uma vida nova se insinua Talvez estejamos tentando dar uma à outra e aos outros um espaço vazio para lá construir o futuro Não queremos macular o ambiente com imagens de violência e perda Queremos poder ver algo além da morte Portanto concordamos tacitamente em não conversar sobre qualquer coisa que destrua nossa bolha de sobrevivência Agora minha irmã está tremendo e sofrendo Se eu disser a ela que estou acordada se perguntar o que houve de errado se virar testemunha de seu colapso ela não precisará encarar sozinha seja lá o que a faz tremer Mas se eu fingir que estou dormindo posso evitar ser um espelho que reflita essa nova dor e ser um espelho seletivo que reflita somente o que ela quer cultivar deixando o restante invisível No fim não preciso decidir o que fazer Ela começa a falar Antes de sair desta casa vou ter a minha vingança promete Raramente encontramos a família cuja casa ocupamos mas a raiva silenciosa e amarga dela me leva a pensar no pior Imagino o pai entrando no banheiro enquanto ela se despia O que ele murmuro Não Sua respiração está irregular Tentei usar o sabonete O banheiro começou a girar Você está doente Não Sim Não sei Você está com febre Não É o sabonete Não consegui tocálo Entrei em pânico Ninguém machucou você Não Foi o sabonete Você sabe o que dizem Que ele é feito de pessoas Daqueles que eles mataram Não sei se é verdade mas assim tão perto de Gunskirchen Talvez Ainda quero matar uma mãe alemã diz Magda Eu me lembro de todos os quilômetros que caminhamos no inverno quando essa era sua fantasia seu refrão Eu poderia fazer isso você sabe Existem maneiras diferentes de se obrigar a continuar Vou ter que encontrar a minha própria maneira de viver com o que aconteceu Ainda não sei qual é Estamos livres dos campos de extermínio mas ainda precisamos ficar livres para criar para construir uma vida e para escolher Até encontrarmos a liberdade estaremos apenas andando em círculos na mesma interminável escuridão Mais tarde médicos nos ajudarão a recuperar a saúde física mas ninguém explicará a dimensão psicológica da recuperação Muitos anos vão se passar antes de eu começar a entender isso Um dia o soldado americano e seus amigos vêm nos dizer que vamos deixar Wels e que os russos estão ajudando a transportar os sobreviventes para casa Eles vieram se despedir Trouxeram o rádio In the Mood de Glenn Miller começa a tocar e nos deixamos levar Com a coluna lesionada mal posso fazer os passos mas na minha imaginação e em meu espírito somos as melhores dançarinas Devagar devagar rápido rápido devagar Devagar devagar rápido rápido devagar Posso fazer isso também deixar braços e pernas soltos mas não frouxos Glenn Miller Duke Ellington Repito os grandes nomes das grandes orquestras várias vezes O soldado me conduz com cuidado num giro me inclina suavemente e me solta Ainda estou muito fraca mas posso sentir o potencial em meu corpo tudo o que serei capaz de fazer com ele quando estiver curada Muitos anos depois vou trabalhar com um amputado e ele explicará a desorientação de sentir um membro fantasma Quando danço Glenn Miller seis semanas após a libertação com minha irmã que está viva e com o soldado que quase me estuprou tenho membros fantasmas reversos A sensação não é de algo que perdi mas de uma parte de mim que está retornando e se revelando Sinto todo o potencial de meus membros e da vida que posso ter novamente Durante as longas horas no trem entre Wels e Viena passando pela Áustria ocupada pela Rússia eu coço as erupções cutâneas causadas pelos piolhos ou pela rubéola que ainda cobrem meu corpo Para casa Estamos indo para casa Mais dois dias e estaremos em casa No entanto é impossível sentir a alegria do regresso desvinculada da devastação da perda Sei que minha mãe e meus avós estão mortos e certamente meu pai também Estão mortos há mais de um ano Ir para casa sem eles é perdêlos novamente Talvez Klara eu me permito ter esperança Talvez Eric Na poltrona ao lado estão sentados dois irmãos Eles também são sobreviventes Órfãos De Kassa como nós Lester e Imre são seus nomes Depois saberemos que o pai deles foi baleado nas costas quando andava entre eles na Marcha da Morte Logo saberemos que estamos entre os setenta que sobreviveram dos mais de 15 mil deportados de nossa cidade Nós temos um ao outro dizem eles agora Temos sorte muita sorte Lester e Imre Magda e eu Somos anomalias Os nazistas não assassinaram apenas milhões de pessoas Eles assassinaram famílias Agora apesar da incompreensível lista de desaparecidos e mortos nossas vidas seguem em frente Depois descobriremos que pessoas foram deslocadas por toda a Europa Encontros Casamentos Nascimentos Ouviremos falar dos tíquetes especiais de racionamento emitidos para casais adquirirem roupas de casamento Também estudaremos os jornais da Administração das Nações Unidas para Auxílio e Reabilitação e vamos prender a respiração na esperança de encontrar nomes conhecidos na lista de sobreviventes espalhados por todo o continente Por enquanto não fazemos nada a não ser olhar pela janela do trem os campos vazios as pontes destruídas e em alguns lugares as incipientes e frágeis plantações A ocupação dos Aliados na Áustria durará mais dez anos O ambiente nas cidades em que passamos não é de alívio ou celebração mas de incerteza e fome A guerra acabou mas ainda não acabou Eu tenho lábios feios pergunta Magda ao nos aproximarmos dos arredores de Viena Ela está analisando seu reflexo no vidro da janela sobreposto à paisagem Por quê Você está planejando usálos brinco com ela na tentativa de persuadila a retomar seu incansável lado provocador Tento bloquear as minhas próprias fantasias impossíveis de que Eric esteja vivo em algum lugar que logo serei uma noiva do pósguerra com um véu improvisado Que estarei junto com meu amado para sempre nunca sozinha Falando sério diz ela Diga a verdade Sua ansiedade me faz lembrar de nosso primeiro dia em Auschwitz quando ela ficou de pé nua com a cabeça raspada segurando os fios de seu cabelo Talvez ela resuma o imenso pavor sobre o que acontecerá a seguir em temores mais específicos e pessoais o medo de não ser atraente o suficiente para encontrar um homem o medo de ter lábios feios Ou talvez suas perguntas tenham relação com uma incerteza mais profunda sobre seu valor essencial O que seus lábios têm de errado pergunto Mamãe os odiava Uma pessoa na rua elogiou meus olhos certa vez e ela disse Sim ela tem olhos lindos mas veja os lábios dela como são grossos A sobrevivência é preto no branco nenhum mas pode atrapalhar quando se luta pela vida Agora os mas se apresentam Temos pão para comer Sim mas não temos um tostão Você está engordando Sim mas o coração está pesado Você está viva Sim mas minha mãe está morta Lester e Imre decidem ficar em Viena por alguns dias mas prometem nos procurar em casa Magda e eu embarcamos em outro trem para uma viagem de oito horas na direção noroeste de Praga Um homem bloqueia a entrada para o vagão de trem Nasa lude desdenha ele Nosso povo Ele é eslovaco Os judeus devem andar em cima do vagão Os nazistas perderam murmura Magda mas é a mesma coisa de antes Não há outra maneira de chegar em casa Nós subimos para o teto do vagão formando fileiras com as outras pessoas desterradas Seguimos de mãos dadas Magda se senta ao lado de um jovem chamado Laci Gladstein Ele acaricia os dedos de Magda Os dedos do rapaz ainda são pele e osso Ninguém pergunta aos outros onde estiveram Nossos corpos e nossos olhos assustados dizem tudo o que é preciso saber Magda se recosta no peito magro de Laci em busca de aconchego Tenho ciúmes do consolo que eles parecem encontrar um no outro a atração o pertencimento Estou muito comprometida com meu amor por Eric com a esperança de que o encontrarei novamente para buscar os braços de um homem em que me apoiar agora Mesmo que não carregasse comigo a voz de Eric acho que teria muito medo de buscar conforto e intimidade Sou pele e osso estou coberta de bactérias e feridas Quem iria me querer Melhor não arriscar uma aproximação e ser rejeitada melhor não ter a confirmação de minha degradação Além disso quem forneceria o melhor abrigo agora Alguém que sabe o que passei um colega sobrevivente Ou alguém que não passou por isso e pode me ajudar a esquecer Alguém que me conhecia antes de minha ida ao inferno e que pode me ajudar a recuperar o meu antigo eu Ou alguém que consiga me olhar agora sem ver o que foi destruído Nunca esquecerei seus olhos Eric me disse Nunca esquecerei suas mãos Por mais de um ano eu me agarrei a essas palavras como a um mapa que poderia me levar à liberdade Mas e se Eric não conseguir aceitar o que eu me tornei E se nós nos encontrarmos e construirmos uma vida e acabarmos descobrindo que nossos filhos são filhos de fantasmas Eu me aconchego em Magda Ela e Laci falam sobre o futuro Vou ser médico diz ele É uma decisão generosa para um jovem que como eu estava praticamente morto um dois meses atrás Ele sobreviveu vai se curar e vai curar outras pessoas A ambição dele me tranquiliza E surpreende Ele saiu dos campos de extermínio com sonhos Parece um risco desnecessário Mesmo agora que conheço a fome e a atrocidade eu me lembro da dor dos pequenos sofrimentos do sonho arruinado pelo preconceito da maneira como minha técnica falou comigo quando me cortou da equipe de treinamento olímpico Eu me lembro de meu avô de como ele se aposentou da fábrica de máquinas de costura e esperava por sua pensão Lembro de quanto ele esperou esperou e como só conseguia falar disso Por fim ele recebeu o primeiro cheque Uma semana depois fomos levados para a fábrica de tijolos Algumas semanas mais tarde ele estava morto Não quero sonhar com a coisa errada Tenho um tio na América continua Laci No Texas Vou para lá vou trabalhar economizar para a faculdade Talvez eu também vá para a América diz Magda Ela deve estar pensando em tia Matilda no Bronx Todo mundo ao nosso redor no teto do vagão está falando sobre a América sobre a Palestina Por que continuar vivendo sobre as cinzas de nossas perdas Por que continuar se esforçando para sobreviver onde não nos querem Em breve seremos informados das restrições à imigração para os Estados Unidos e para a Palestina Não existe paraíso sem limites sem preconceitos Para onde quer que formos a vida poderá ser sempre assim Tento ignorar o medo de que a qualquer momento seremos bombardeados baleados jogados numa vala Ou na melhor das hipóteses forçados a viajar no teto do vagão Damos as mãos para nos proteger do vento Em Praga temos que trocar de trem novamente Ao nos despedirmos de Laci Magda dá a ele nosso velho endereço Kossuth Lajos Utca número 6 Ele promete manter contato Temos um tempo antes da próxima partida o suficiente para esticar as pernas sentar ao sol e comer nosso pão com tranquilidade Quero procurar um parque ver a exuberância da natureza das flores Fecho os olhos a cada passo e sinto os cheiros da cidade das ruas das calçadas e da agitação das pessoas Padarias cano de descarga dos carros perfumes É difícil acreditar que tudo isso existia enquanto estávamos no inferno Olho as vitrines das lojas Não importa que eu não tenha um tostão Vai importar é claro Em Košice a comida não será distribuída gratuitamente Mas neste momento eu me sinto completamente satisfeita só por ver que existem vestidos e meias à venda joias cachimbos e artigos de papelaria A vida e o comércio continuam Uma mulher avalia o tecido de um vestido de verão Um homem admira um colar As coisas não são importantes mas a beleza é Aqui está uma cidade cheia de pessoas que não perderam a capacidade de imaginar de produzir e de admirar as coisas bonitas Serei novamente uma moradora uma moradora de algum lugar Vou executar as tarefas cotidianas e comprar presentes Vou ficar na fila do correio Vou comer o pão que eu mesma assei Vou vestir roupas de altacostura em homenagem ao meu pai Vou à ópera em homenagem à minha mãe e como ela me sentarei na pontinha da cadeira para escutar Wagner e chorarei como ela chorava Vou à sinfônica e por Klara assistirei a todas as apresentações do concerto de violino de Mendelssohn Saudade e melancolia A urgência sugerida pelo crescendo da melodia depois a cadência ondulante seguida pelo estrépito dos acordes ressonantes Depois o tema mais sinistro nas cordas ameaçando o crescendo do solo de violino Em pé na calçada eu fecho os olhos para ouvir o eco do violino de minha irmã Magda me assusta Acorda Dicu Quando abro os olhos vejo um pôster anunciando um concerto com um solo de violino bem aqui no centro da cidade perto da entrada do parque A imagem do pôster é de minha irmã Naquele papel está Klarie segurando seu violino C A P Í T U L O 8 Pela janela Descemos do trem em Košice Nossa cidade natal não pertence mais à Hungria Agora ela faz parte novamente da Tchecoslováquia O brilho do sol de junho nos faz cerrar os olhos Não temos dinheiro para o táxi não temos dinheiro para nada não sabemos se o antigo apartamento da família está ocupado nem como vamos viver Mas estamos em casa Estamos prontas para procurar Klara que se apresentou em um concerto em Praga há algumas semanas Klara que está viva em algum lugar Cruzamos o parque Mestský em direção ao centro da cidade Pessoas estão em mesas ao ar livre em bancos Crianças se juntam em torno das fontes Lá está o relógio onde víamos os rapazes indo se encontrar com Magda Eis a sacada da loja de nosso pai as medalhas douradas brilhando na grade Ele está aqui Tenho tanta certeza disso que sinto o cheiro do tabaco dele sinto o bigode dele no meu rosto Mas as janelas da loja estão escuras Vamos em direção ao nosso apartamento na Kossuth Lajos Utca número 6 e na calçada perto do lugar onde a carroça estacionou para nos levar para a fábrica de tijolos ocorre um milagre Klara se materializa saindo pela porta da frente O cabelo dela está trançado e preso num coque igual ao de nossa mãe Ela carrega seu violino Quando nos vê deixa cair a caixa do violino na calçada e corre para mim murmurando Dicuka Dicuka Ela chora e me segura como se eu fosse um bebê e seus braços um berço Não nos abrace avisa Magda Estamos cheias de bactérias e feridas Acho que o que ela quer dizer é Querida irmã estamos desfiguradas Ela quer dizer Não deixe que o que passamos a magoe Não torne isso ainda mais difícil Não nos pergunte o que aconteceu Não desapareça sem deixar rastros Klara não para de me abraçar Esta é a minha irmãzinha diz para o estranho que passa Naquele momento ela virou minha mãe Ela já viu em nossos rostos que a posição está vazia e deve ser preenchida Faz pelo menos um ano e meio desde que nos vimos pela última vez Ela tem que ir à estação de rádio para tocar em um concerto Não temos condições de perdêla de vista não podemos ficar longe dela Fique fique pedimos Mas ela já está atrasada Se eu não tocar não comemos diz ela Rápido entrem Talvez seja uma bênção o fato de não haver tempo para conversar Não saberíamos por onde começar Embora seja um choque para Klara nos ver tão destruídas fisicamente talvez também seja uma bênção Há algo concreto que Klara pode fazer para demonstrar seu amor e alívio nos indicar o caminho da cura Isso vai precisar de mais do que descanso Talvez nunca nos recuperemos Mas há algo que ela pode fazer agora Ela nos leva para dentro e tira nossas roupas sujas Ela nos ajuda a deitar nos lençóis brancos da cama onde nossos pais dormiam e passa uma loção de calamina nas erupções que cobrem nossos corpos A erupção que nos faz coçar sem parar passa instantaneamente de nossos corpos para o dela de modo que ela mal consegue tocar por causa da queimação que sente em toda a pele Nosso reencontro é físico Magda e eu ficamos pelo menos uma semana deitadas na cama nuas os corpos lambuzados de calamina Klara não faz perguntas Não pergunta onde estão nossos pais Ela fala que não precisamos falar para não precisar ouvir Tudo o que ela nos conta é formulado como um milagre E é milagroso Estamos juntas Tivemos sorte Há poucos reencontros como o nosso Nosso tio e nossa tia irmãos de mamãe foram jogados de uma ponte e se afogaram no Danúbio Klara nos conta sem rodeios e de forma objetiva que escapou de ser identificada quando os últimos judeus remanescentes da Hungria foram presos Ficou morando na casa de seu professor disfarçada como não judia Um dia meu professor disse Você tem que aprender a Bíblia amanhã pois vai começar a ensinála Vai morar num convento Parecia a melhor maneira de me manter escondida O convento ficava a quase 320 quilômetros de Budapeste Usei um hábito de freira Mas um dia uma garota da academia de música me reconheceu e fugi em um trem para Budapeste Em algum momento no verão ela recebeu uma carta de nossos pais Era a carta que eles tinham escrito na fábrica de tijolos contando a Klara onde estávamos presos juntos e seguros e que achávamos que seríamos transferidas para um campo de trabalho chamado Kenyérmező Eu me lembro de ver minha mãe deixar a carta cair na rua durante nossa retirada da fábrica de tijolos já que não havia como enviála Na época achei que ela poderia ter jogado a carta fora por estar resignada Mas ao ouvir Klara contar sua história de sobrevivência vejo as coisas de forma diferente Ao soltar a carta mamãe não estava abrindo mão da esperança muito pelo contrário De qualquer forma se deixou cair a carta por se sentir derrotada ou por ter esperança assumiu um risco A carta apontava o dedo para minha irmã uma judia loura morando em Budapeste Dava inclusive seu endereço Enquanto nos arrastávamos no escuro rumo a Auschwitz alguém um estranho pegou a carta Ele poderia têla aberto e entregado Klara aos nyilas poderia ter jogado a carta no lixo ou a deixado na rua mesmo Mas esse estranho colocou um selo na carta e a enviou para Klara em Budapeste Isso é tão inacreditável para mim quanto o reaparecimento de minha irmã um truque de mágica a prova do laço que nos une uma prova também de que a gentileza ainda existia no mundo mesmo naquela época Em meio à terra pisada pelos pés de três mil pessoas muitas delas indo direto para uma chaminé na Polônia a carta de nossa mãe voou A garota loura colocou o violino de lado para abrir a carta Klara conta outra história com um final feliz Sabendo que tínhamos sido levados para a fábrica de tijolos que esperávamos ser mandados a qualquer hora para Kenyérmező ou para sabese lá onde ela foi ao consulado alemão em Budapeste pedir para ser enviada para onde estávamos No consulado o porteiro lhe disse Garotinha vá embora Não entre aí Não iam negar o pedido dela Ela tentou entrar escondida no prédio O porteiro a viu e lhe deu uma surra socou seus ombros braços barriga e rosto Mandoua ir embora dali Ele me deu uma surra e salvou minha vida nos conta ela Perto do fim da guerra quando os russos cercaram Budapeste os nazistas ficaram ainda mais determinados a livrar a cidade dos judeus Tínhamos que usar cartões de identificação com nome religião e foto Eles checavam os cartões o tempo todo e se vissem que você era judeu podiam matálo Eu não queria carregar o meu cartão mas tinha medo de precisar de algo que provasse quem eu era depois da guerra Então decidi pedir que uma amiga o guardasse Como ela morava do outro lado do porto era preciso cruzar a ponte para chegar lá Quando pisei na ponte os soldados estavam verificando documentos Eles disseram Por favor mostre sua identificação Eu disse que estava sem o cartão e não sei como me deixaram atravessar O cabelo louro e os olhos azuis os devem ter convencido Nunca voltei à casa de minha amiga para pegar o cartão Quando você não pode entrar pela porta entre pela janela nossa mãe costumava dizer Não existe porta para a sobrevivência ou para a recuperação Só janelas Trincos que você não consegue alcançar com facilidade vidraças pequenas demais espaços onde um corpo não deveria caber Mas você não consegue ficar onde está Precisa encontrar um jeito Depois da rendição alemã enquanto Magda e eu nos recuperávamos em Wels Klara foi novamente ao consulado desta vez ao consulado russo porque Budapeste foi libertada do controle nazista pelo Exército Vermelho Lá ela tentou descobrir o que tinha acontecido conosco Eles não tinham informações sobre nossa família mas em troca de um concerto gratuito eles se ofereceram para ajudála a voltar para casa em Košice Toquei para duzentos russos e depois fui trazida para casa no teto de um trem Eles cuidaram de mim quando paramos para dormir Ao abrir a porta de nosso antigo apartamento Klara encontrou tudo desarrumado nossos móveis e pertences saqueados Os quartos tinham sido usados como estábulo e o chão estava coberto de estrume de cavalo Enquanto reaprendíamos a comer a andar e a escrever nossos nomes em Wels Klara fazia concertos para ganhar dinheiro entre um concerto e outro limpava o chão E então nós chegamos Quando nossas erupções cutâneas sararam nos revezávamos para sair do apartamento Existe apenas um par de sapatos em bom estado para nós três Na minha vez de colocar os sapatos caminho devagar pela calçada na ida e na volta ainda muito fraca para ir longe Um vizinho me reconhece Estou surpreso de ver que você conseguiu sobreviver diz ele Você foi sempre uma criança tão magra Eu poderia me sentir vitoriosa Contra todas as expectativas um final feliz Mas eu me sinto culpada Por que eu Por que eu sobrevivi Não há explicação É um golpe de sorte Ou um erro As pessoas podem ser classificadas de duas maneiras as que sobreviveram e as que não conseguiram sobreviver As do segundo grupo não estão aqui para contar sua história O retrato de nossa avó materna agora está pendurado na parede Seu cabelo escuro está partido no meio e preso atrás num coque apertado Alguns fios encaracolados enfeitam a testa lisa Ela não sorri na foto mas os olhos dela são mais sinceros do que severos Ela nos observa sábia e sensata Magda conversa com o retrato como mamãe costumava fazer Às vezes pede ajuda Às vezes resmunga e esbraveja Esses nazistas cretinos malditos nyilas O piano em que ficava a foto foi levado O piano de tão presente em nosso cotidiano era quase invisível como a respiração Agora sua ausência domina o ambiente Magda se enfurece no espaço vazio Sem o piano falta algo nela também Um pedaço de sua identidade Um meio para se expressar Ela se irrita com a falta do piano Vibrante determinada obstinada Eu a admiro por isso Minha raiva se internaliza e congestiona meus pulmões Magda fica mais forte a cada dia que passa mas eu ainda estou fraca Minhas costas ainda doem o que dificulta meu caminhar e meu peito está pesado de tão congestionado Raramente saio de casa Mesmo que não estivesse doente não há lugar aonde eu queira ir Quando a morte é a resposta para cada pergunta por que caminhar Por que falar quando qualquer interação com os vivos serve para provar que você anda pelo mundo na companhia de uma congregação crescente de fantasmas Por que sentir falta de alguém em particular quando todo mundo tem tanta gente para lamentar Dependo de minhas irmãs Klara minha enfermeira devotada e Magda minha fonte de notícias minha conexão com o mundo lá fora Um dia ela chega em casa sem fôlego O piano diz ela Eu o encontrei Está numa cafeteria Nosso piano Temos que pegálo de volta O dono da cafeteria não acredita que ele seja nosso Klara e Magda se revezam implorando Elas descrevem os concertos de música de câmara em nossa sala de estar de como János Starker nosso amigo violoncelista outra criança prodígio do conservatório tocou com Klara em nossa casa no ano de sua estreia profissional Nada do que as duas dizem o convence Por fim Magda procura o afinador do piano e vai com ele ao café para conversar com o proprietário Depois de levantar a tampa do piano olhar seu interior e ler o número de série ele faz que sim com a cabeça este é o piano Elefánt Ele chama um grupo de homens para leválo de volta para o nosso apartamento Será que existe algo dentro de mim que possa verificar a minha identidade que possa me restaurar para mim mesma Se tal coisa existisse quem levantaria a tampa para ler o código Um dia chega um pacote de tia Matilda Avenida Valentine no Bronx diz o endereço do remetente Ela envia chá e margarina Nunca vimos gordura vegetal antes e portanto não temos noção de que é um substituto da manteiga para cozinhar e assar Simplesmente passamos no pão e comemos Reutilizamos os sacos de chá indefinidamente Quantas xícaras podemos preparar com as mesmas folhas De vez em quando nossa campainha toca e eu pulo na cama Esses são os melhores momentos Alguém está esperando do lado de fora e nos segundos antes de abrir a porta pode ser qualquer um Às vezes imagino que é papai Ele sobreviveu à primeira seleção afinal de contas Descobriu uma maneira de trabalhar de parecer jovem pelo resto da guerra e está aqui segurando um pedaço de giz uma fita métrica enrolada no pescoço como um cachecol Algumas vezes imagino Eric na varanda carregando um buquê de rosas Meu pai nunca chega É assim que temos certeza de que ele está morto Um dia Lester Korda um dos dois irmãos que viajaram com a gente no trem de Wels para Viena toca a campainha Ele veio ver como estávamos Pode me chamar de Csicsi diz ele Ele é como o ar fresco entrando em nosso velho apartamento Estamos num limbo permanente eu e minhas irmãs divididas entre olhar para trás e seguir em frente Grande parte de nossa energia é usada simplesmente para recuperar nossa saúde nossos pertences e o que havia em nossa vida antes da perda e do encarceramento O interesse e a solidariedade de Csicsi com relação ao nosso bemestar me fizeram lembrar que existe mais na vida do que apenas a recuperação Klara está na outra sala tocando violino Os olhos de Csicsi brilham quando ele ouve a música Posso conhecer a violinista pergunta ele Klara faz uma gentileza e toca uma czarda húngara Csicsi dança Talvez seja tempo de tocar nossa vida não de voltar ao que era mas seguir na direção de algo novo Ao longo do verão de 1945 Csicsi se torna um visitante regular Quando Klara tem de viajar para Praga para outro concerto Csicsi se oferece para ir com ela Devo preparar o bolo de casamento agora pergunta Magda Pare com isso diz Klara Ele tem uma namorada Está sendo apenas educado Você tem certeza de que não está se apaixonando pergunto Ele me faz lembrar de nossos pais diz ela e eu o faço lembrar dos dele Algumas semanas depois de voltar para casa embora fraca faço o trajeto a pé até o antigo apartamento de Eric Ninguém de sua família retornou O apartamento está vazio Prometo a mim mesma vir sempre que puder A dor de ficar longe é maior do que minha decepção a cada vigília Estar de luto por ele é lamentar a perda de mais do que uma pessoa Nos campos eu ansiava por sua presença física e me agarrava à promessa de nosso futuro Se eu sobreviver hoje amanhã serei livre A ironia da liberdade é a dificuldade cada vez maior de encontrar esperança e propósito Agora preciso aceitar o fato de que a pessoa que se casar comigo não conhecerá meus pais Se um dia eu tiver filhos eles não conhecerão os avós Não é apenas a minha perda que dói É a maneira como ela repercute no futuro e se perpetua Mamãe costumava me dizer para procurar um homem com uma testa grande porque isso significa que ele é inteligente Observe como ele usa o lenço dizia ela Certifiquese se sempre carrega consigo um limpo Certifiquese de que os sapatos dele são engraxados Ela não estará no meu casamento Ela nunca saberá quem eu me tornei quem eu escolhi Klara é minha mãe agora Ela faz isso por amor e com uma competência natural Também faz isso por culpa Ela não estava lá em Auschwitz para nos proteger Ela nos protegerá agora Ela cuida da cozinha Ela me dá comida na boca com uma colher como se eu fosse um bebê Eu a amo amo sua atenção amo ser abraçada e me sentir segura Mas também é sufocante Sua bondade não deixa espaço para mim Parece que ela precisa de algo em troca Não gratidão ou reconhecimento Algo mais profundo Posso sentir que ela depende de mim para ter o próprio senso de propósito Para ter sua razão de existir Ao cuidar de mim ela encontra a razão por ter sido poupada Meu papel é ser saudável o suficiente para ficar viva mas indefesa o suficiente para precisar dela Essa é a minha razão para ter sobrevivido No fim de junho minha coluna ainda não está boa A dor aguda é constante entre as omoplatas Meu peito ainda dói quando respiro De repente tenho febre Klara me leva para o hospital e insiste em que me deem um quarto particular e que eu receba o melhor atendimento Eu me preocupo com as despesas mas ela diz que terá apenas que tocar em mais concertos e que encontrará um jeito de pagar Reconheço o médico que me examina É o irmão mais velho da minha antiga colega de escola O nome dele é Gaby Lembro que sua irmã o chamava de Anjo Gabriel Ela morreu fico sabendo Morreu em Auschwitz Ele me pergunta se a vi lá alguma vez Gostaria de ter essa última imagem para ele se lembrar dela e cogito mentir contar alguma história que eu teria testemunhado da menina fazendo algo corajoso ou falando dele com carinho Mas não minto Prefiro enfrentar o vácuo desconhecido de meu pai e dos últimos minutos de Eric do que ouvir algo que apesar de reconfortante não é verdade O Anjo Gabriel me presta o primeiro atendimento médico desde a libertação Ele diagnostica que tenho tifo pneumonia pleurisia e fratura na coluna Faz um gesso removível que cobre todo o meu torso Colocoo na cama à noite e me encaixo nele minha concha de gesso As visitas de Gaby não são apenas terapêuticas para o corpo Ele não me cobra pelo atendimento médico Nós conversamos e relembramos Não posso viver o luto com minhas irmãs pelo menos não explicitamente É brutal demais presente demais Viver o luto com elas parece ser uma profanação do milagre da nossa reunião Nunca nos abraçamos e choramos mas com Gaby eu posso me permitir sofrer Um dia pergunto a ele sobre Eric Ele se lembra de Eric mas não sabe o que aconteceu Gaby tem colegas que trabalham no centro de repatriação nas montanhas Tatra Ele pedirá que tentem descobrir algo sobre Eric Certa tarde Gaby examina minha coluna Ele espera que eu me deite de bruços para me dizer o que descobriu Eric foi mandado para Auschwitz conta Morreu em janeiro um dia antes da libertação Eu solto um gemido Acho que meu peito vai estourar A explosão de tristeza é tão forte que as lágrimas não vêm somente um choro preso na garganta Não consigo pensar com clareza ou fazer perguntas sobre os últimos dias do meu amor sobre o sofrimento dele sobre seu estado de espírito quando seu corpo desistiu Estou consumida pela dor e pela injustiça de perdêlo Se ele tivesse sido capaz de aguentar por mais algumas horas talvez até apenas alguns segundos a mais podíamos estar juntos agora Fico deitada gemendo até ficar rouca À medida que o choque se dissipa entendo que de uma forma estranha a dor de saber é misericordiosa Não tenho tanta certeza da morte do meu pai Ter certeza de que Eric morreu é como receber um diagnóstico depois de muito tempo com dor Posso identificar a razão do sofrimento Posso definir o que tem de ser curado Mas um diagnóstico não é uma cura Não sei o que fazer com a voz de Eric agora com as lembranças com a esperança No fim de julho minha febre passa mas Gaby ainda não está satisfeito com minha recuperação Meus pulmões comprimidos durante muito tempo por causa da coluna fraturada estão cheios de fluidos Ele teme que eu tenha contraído tuberculose e recomenda que eu vá para um hospital especializado no tratamento nas montanhas Tatra perto do centro de repatriação onde ele soube da morte de Eric Klara me acompanhará até a vila mais próxima das montanhas Magda ficará no apartamento Depois do esforço para retomálo não podemos arriscar deixálo vazio nem por um dia por mais rara que seja a chance de aparecer um ocupante inesperado Klara toma conta de mim durante a viagem como se eu fosse uma criança Vejam a minha pequenina ela fala para os passageiros Sorrio para eles como uma criança que cresceu demais De fato pareço uma Meu cabelo que tinha caído por causa do tifo está começando a crescer macio como o de um bebê Klara me ajuda a cobrir a cabeça com um lenço Conforme ganhamos altitude o ar seco dos Alpes parece limpar meu peito mas ainda é difícil respirar Há uma secreção constante em meus pulmões É como se todas as lágrimas que não posso derramar para fora estivessem escoando para uma piscina interna Não consigo ignorar o sofrimento mas aparentemente também não consigo exteriorizálo Klara é esperada em Košice para outra apresentação na rádio seus concertos são nossa única fonte de renda e não pode me acompanhar até o hospital onde vou ficar até me recuperar mas ela não quer que eu vá sozinha Perguntamos no centro de repatriação se eles conhecem alguém que esteja indo para o hospital e recomendam um homem jovem hospedado em um hotel próximo que também vai fazer um tratamento lá Ao me aproximar dele no saguão do hotel ele está beijando uma garota Me encontre no trem murmura ele Quando o abordo na plataforma do trem ele ainda está beijando a garota Ele é grisalho tem pelo menos dez anos mais do que eu Completo 18 anos em setembro mas meus braços finos o peito reto e a cabeça careca me fazem parecer ter 12 Fico em pé ao lado do casal constrangida enquanto eles se abraçam insegura sobre como conseguir a atenção dele Estou chateada É esse o homem a quem estão me confiando O senhor poderia me ajudar finalmente pergunto O senhor deveria me acompanhar até o hospital Estou ocupado diz ele mal interrompendo o beijo para me responder Ele é como um irmão mais velho afastando a irmã chata Encontreme no trem Depois da atenção e adulação constante de Klara o desprezo dele magoa Não sei por que ele me incomoda tanto Será que é porque a namorada dele está viva e o meu namorado está morto Ou será que estou tão enfraquecida que sem a atenção ou aprovação de outra pessoa eu me sinto em risco de desaparecer completamente No trem ele compra um sanduíche para mim e um jornal para ele Não conversamos só trocamos nomes e formalidades Béla é o nome dele Para mim ele é apenas uma pessoa rude em um trem uma pessoa a quem devo pedir ajuda com relutância uma pessoa que reluta em ajudar Na estação somos informados de que precisamos andar até o hospital Agora não há o jornal para distraílo O que você fazia antes da guerra pergunta ele Percebo o que não tinha escutado antes ele é gago Quando digo que era ginasta e bailarina ele diz Isso me lembra uma piada Olho para ele com expectativa pronta para uma dose de humor húngaro pronta para o alívio que senti em Auschwitz quando Magda e eu promovemos o concurso de peitos com nossas colegas de beliche o estímulo do riso em tempos terríveis Havia um pássaro começa ele e o pássaro estava prestes a morrer de frio Uma vaca apareceu e o aqueceu um pouco fazendo cocô em cima dele Aí o pássaro começou a se recuperar Então veio um caminhão e atropelou o pássaro Um cavalo velho e sábio passou e viu o pássaro morto na estrada O cavalo disse Não falei que nem sempre estar na merda é ruim Béla ri da própria piada Mas eu me sinto insultada Sua intenção é fazer graça mas acho que ele tenta me dizer Você tem merda na cabeça Acho que ele quer dizer Você está um trapo não devia dizer que é uma bailarina com essa aparência Por um momento antes do insulto experimentei uma sensação de alívio ao receber a atenção dele ao ouvilo me perguntar sobre o que fazia antes da guerra e reconhecer a pessoa que um dia existiu em mim o eu que florescia antes da guerra A piada reforça o quanto a guerra me mudou e me feriu de maneira irreparável Dói que um estranho me diminua Dói porque ele está certo Estou um trapo Ainda assim não vou permitir que um homem insensível ou seu sarcasmo húngaro tenha a última palavra Vou mostrar a ele que uma bailarina alegre ainda vive em mim não importa quão curto esteja o meu cabelo quão magro esteja o meu rosto quão pesado esteja o sofrimento em meu peito Dou um salto à frente dele e faço espacates no meio da estrada Acaba que eu não tenho tuberculose Mesmo assim eles me mantêm durante três semanas no hospital para tratar o fluido que se forma em meus pulmões Tenho tanto medo de contrair tuberculose que uso os pés em vez das mãos para abrir as portas embora saiba que a doença não é transmitida pelo toque e por germes em maçanetas É ótimo não ter tuberculose mas ainda não estou bem Não sei como explicar a sensação de transbordamento no peito a pulsação misteriosa na testa É como se algo obscurecesse minha visão Depois essa sensação terá um nome Depois saberei que seu nome é depressão Agora tudo o que sei é que sair da cama exige esforço Há o esforço para respirar E o pior o esforço existencial Por que acordar O que há para se fazer Eu não pensava em suicídio em Auschwitz quando as coisas eram desesperadoras Eu estava cercada por pessoas que diziam A única maneira de você sair daqui é como um cadáver Mas as profecias terríveis me deram algo para lutar Agora que estou me recuperando agora que estou enfrentando o fato irrevogável de que meus pais não vão voltar que Eric nunca vai voltar os únicos demônios são os internos Penso em tirar a própria vida Quero uma saída para a dor Por que não optar por não sofrer Béla foi colocado no quarto exatamente acima do meu Um dia ele passa no meu quarto para me ver Vou fazer você rir e isso vai fazêla se sentir melhor Você vai ver Ele sacode a língua puxa as orelhas faz sons de animais como se estivesse entretendo um bebê É absurdo quase insultante embora eu não consiga me controlar A gargalhada transborda de mim como uma onda Não ria os médicos me avisaram como se a risada fosse uma tentação constante como se eu corresse o risco de rir até morrer Se você rir sofrerá mais Eles têm razão Realmente dói mas também é uma sensação boa Fico deitada sem dormir naquela noite pensando nele na cama bem acima da minha pensando em coisas para impressionálo coisas que estudei na escola No dia seguinte quando ele me visita digo tudo o que consegui lembrar ao longo da noite sobre mitos gregos invocando os deuses e deusas mais obscuros Falo sobre A interpretação dos sonhos de Freud o último livro que Eric e eu lemos junto Eu me exibo para ele do jeito que me apresentava para os convidados dos jantares organizados por meus pais minha vez na ribalta antes de Klara a protagonista assumir o palco Ele me observa como um professor olha para um aluno promissor Béla fala pouco sobre si mesmo mas sei que estudou violino e que gostava de ouvir gravações de música de câmara e de dar uma de maestro regendo no ar Béla tem 27 anos Eu sou apenas uma criança Ele tem outras mulheres em sua vida A mulher que estava beijando na plataforma de trem quando eu o interrompi E outra paciente aqui no hospital conta ele a melhor amiga de sua prima Marianna que ele namorou no colégio antes da guerra Ela está muito doente Não vai se recuperar Ele se diz seu noivo um gesto de esperança para ela em seu leito de morte um gesto de esperança para a mãe dela Meses mais tarde fico sabendo que Béla também tem uma esposa uma quase estranha com quem ele nunca teve intimidade uma não judia com quem fez um arranjo no papel nos primeiros dias da guerra na tentativa de proteger a família e a fortuna Não é amor É que estou ávida e eu o divirto Ele olha para mim do jeito que Eric olhou naquele dia no clube do livro há muito tempo como se eu fosse inteligente como se eu tivesse coisas interessantes para dizer Por enquanto isso é suficiente Na minha última noite no hospital para tuberculosos estou deitada em meu quarto confortável quando escuto uma voz do interior das montanhas do próprio centro da terra Subindo pelo piso e pelo colchão fino a voz me envolve me cobra Se você viver diz a voz tem que lutar por alguma coisa Vou escrever para você diz Béla pela manhã quando nos despedimos Não é amor Não espero isso dele Magda me encontra na estação de trem de Košice Klara tem se mostrado tão possessiva comigo desde o nosso reencontro que esqueci como é estar sozinha com Magda O cabelo dela cresceu Ondas emolduram seu rosto Seus olhos brilham novamente Ela parece bem E mal consegue esperar para contar as fofocas das três semanas em que estive fora Csicsi terminou com a namorada e agora está cortejando Klara descaradamente Os sobreviventes de Košice criaram um clube de entretenimento e ela já prometeu que eu me apresentaria E Laci o rapaz do teto do vagão escreveu para nos contar que seus parentes no Texas já assinaram uma declaração de apoio financeiro exigida a quem imigra para os Estados Unidos Logo ele vai se juntar aos parentes em um lugar chamado El Paso ela me conta onde trabalhará na loja de móveis da família e guardará dinheiro para a faculdade de medicina É melhor Klara não me humilhar se casando primeiro diz Magda É assim que será nossa cura Ontem canibalismo e assassinato Ontem escolhendo folhas de grama para comer Hoje costumes antiquados e propriedades regras e documentação que nos fazem sentir normais Minimizamos as perdas e o horror a terrível interrupção da vida vivendo como se nada disso tivesse acontecido Não seremos uma geração perdida Aqui tenho uma coisa para você diz minha irmã me passando um envelope com meu nome escrito à mão conforme aprendemos na escola Seu velho amigo passou para deixar Por um momento acho que ela quer dizer Eric Ele está vivo Meu futuro está dentro do envelope Ele esperou por mim Ou ele já seguiu em frente O envelope não é de Eric Ele não contém o meu futuro Na verdade guarda o meu passado Nele está uma foto minha talvez a última foto tirada antes de Auschwitz a foto em que estou fazendo espacates na beira do rio a foto que Eric tirou a foto que pedi que minha amiga Rebeka guardasse para mim Entre os dedos seguro a foto da pessoa que ainda vai perder os pais e que não sabe em quanto tempo ela vai perder o seu amor Magda me leva ao clube de entretenimento naquela noite Klara e Csicsi estão lá assim como Rebeka e o irmão de Csicsi Imre Gaby meu médico também está lá e talvez seja por isso que mesmo fraca como estou concordei em dançar Quero mostrar a Gaby que estou melhorando Quero mostrar que o tempo que ele dedicou a cuidar de mim fez a diferença que ele não desperdiçou seus esforços Peço a Klara e aos outros músicos que toquem Danúbio azul e começo meu roteiro o mesmo que encenei há pouco mais de um ano na primeira noite em Auschwitz a dança com que Josef Mengele me premiou com um pedaço de pão Os passos não mudaram mas meu corpo sim Não tenho mais músculos alongados e flexíveis nem força nas pernas ou no centro de meu corpo Sou uma magrela ofegante sem cabelo e com a coluna fraturada Fecho os olhos como fiz na prisão Naquela noite há muito tempo fechei os olhos para não ter que ver o olhar aterrorizador e assassino de Mengele e para evitar tropeçar e cair no chão diante da força de seu olhar Agora fecho os olhos para poder sentir o meu corpo não para fugir da sala mas para sentir o calor do entusiasmo do público À medida que encontro o caminho para os movimentos e os passos tão conhecidos para o grand battement para os espacates fico mais confiante e confortável E volto no tempo para os dias em que não imaginávamos nenhuma intromissão pior em nossa liberdade do que os toques de recolher e as estrelas amarelas Danço em direção à minha inocência Em direção à garota que subia correndo as escadas do estúdio de balé Em direção à mãe amorosa e sábia que levou a garota lá pela primeira vez Ajudeme eu peço Ajudeme Ajudeme a viver novamente Alguns dias depois chega um envelope grosso endereçado a mim É de Béla A primeira das muitas cartas que ele escreverá de início enviada do hospital para tuberculosos depois da casa onde nasceu e foi criado em Prešov a terceira maior cidade da Eslováquia distante apenas 32 quilômetros de Košice À medida que aprendo mais sobre Béla começo a juntar os fatos que ele me revela nessas cartas e monto uma vida O homem grisalho com uma gagueira e senso de humor sarcástico se torna uma pessoa que tem contornos A memória mais antiga de Béla segundo ele mesmo é de sair para passear com o avô um dos homens mais ricos do país e ter um biscoito negado na confeitaria Quando ele sair do hospital vai assumir os negócios do avô de venda no atacado da produção dos fazendeiros da região e de beneficiamento de café e trigo para toda a Eslováquia Béla é uma despensa cheia um país da abundância ele é uma festa Como minha mãe Béla perdeu um dos pais quando era bem jovem O pai que foi prefeito de Prešov e antes disso um famoso advogado dedicado aos pobres viajou para uma conferência em Praga no inverno quando Béla tinha 4 anos Ao descer do trem ele foi pego por uma avalanche de neve Ou foi isso que a polícia disse à mãe de Béla Béla suspeita que o pai uma figura controversa por ter se rebelado contra a elite de Prešov ao defender os pobres e marginalizados tenha sido assassinado mas a versão oficial era que ele tinha sufocado sob a neve Com a morte do pai Béla ficou gago A mãe de Béla nunca se recuperou da morte do marido até porque seu pai a manteve trancada em casa para impedir que ela conhecesse outros homens Durante a guerra a tia e o tio de Béla a convidaram para ficar com eles na Hungria onde estavam escondidos usando documentos de identificação falsos Um dia no mercado a mãe de Béla viu um grupo de soldados da SS e entrou em pânico Correu até eles e confessou Sou judia disse ela Eles a enviaram para Auschwitz e ela morreu na câmara de gás O restante da família exposta pela confissão da mãe de Béla teve que fugir para as montanhas O irmão de Béla George se mudou para os Estados Unidos antes da guerra Decidiu imigrar depois do dia em que andando numa rua em Bratislava a capital da Eslováquia foi atacado por gentios e teve os óculos quebrados Ele deixou o crescente antissemitismo da Europa para viver com o tioavô em Chicago Sua prima Marianna fugiu para a Inglaterra Béla mesmo tendo estudado na Inglaterra quando menino e falando inglês fluentemente se recusou a deixar a Eslováquia Queria proteger toda a família Isso não foi possível O avô morreu de câncer de estômago A tia e o tio convencidos a sair das montanhas pela promessa feita pelos alemães de tratar com civilidade todos os judeus que retornassem foram colocados no paredão e fuzilados Béla escapou dos nazistas se escondendo nas montanhas Ele mal conseguia segurar uma chave de fenda tinha medo de armas não queria lutar era desajeitado mas virou um partisan Pegou uma arma e juntouse aos russos que lutavam contra os nazistas Quando estava com os partisans contraiu tuberculose Ele não precisou sobreviver aos campos de concentração Em vez disso precisou sobreviver às florestas nas montanhas Por isso sou grata Nunca verei as chaminés gravadas em seus olhos Prešov fica a apenas uma hora de carro de Košice Num fim de semana Béla me visita e tira da sacola queijo suíço e salame Comida É isso que faz eu me apaixonar imediatamente Se eu conseguir manter seu interesse por mim ele vai alimentar a mim e a minhas irmãs é nisso que penso Não suspiro por ele do jeito que suspirava por Eric Não fantasio sobre beijálo nem anseio por têlo por perto Tampouco flerto com ele não de um jeito romântico Somos como dois náufragos olhando para o mar em busca de sinais de vida E vemos um lampejo um no outro Descubro que estou voltando a viver Sinto que vou pertencer a alguém Sei que Béla não é o amor de minha vida não da forma que Eric era Não estou tentando substituir Eric Porém Béla conta piadas e escreve cartas de vinte páginas e eu tenho uma escolha a fazer Quando conto a Klara que vou me casar com Béla ela não me felicita Ela se vira para Magda Ah dois complicados se juntando diz ela Como isso vai funcionar Depois à mesa ela fala comigo diretamente Você é uma criança Dicuka Não pode tomar decisões como esta Você ainda não voltou ao normal Nem ele Ele tem tuberculose É gago Você não pode se casar com ele Agora eu tenho uma nova motivação para esse casamento dar certo Tenho que provar que minha irmã está errada A objeção de Klara não é o único impedimento Há o fato de Béla ainda ser legalmente casado com a não judia que protegeu a fortuna da família dos nazistas e ela se recusa a se divorciar dele Eles nunca viveram juntos nunca tiveram um relacionamento de qualquer outro tipo que não o da conveniência para ela o dinheiro dele para ele a situação de gentia dela mas ela não concederá o divórcio pelo menos não até que ele concorde em lhe pagar uma grande soma de dinheiro E também tem a noiva nas montanhas Tatra morrendo de tuberculose Ele pede à prima Marianna que fugiu para a Inglaterra mas voltou depois da guerra que dê a notícia de que ele não se casará com a noiva Marianna fica furiosa com razão Você é horrível grita ela Você não pode fazer isso com ela Nem em um milhão de anos direi a ela que está quebrando sua promessa Béla pede que eu vá com ele ao hospital para que ele mesmo conte à moça Ela é graciosa e gentil comigo e está muito muito doente É desconcertante ver alguém fisicamente tão destruída É parecido demais com o passado recente Tenho medo de ficar tão perto da porta da morte Ela me diz que está feliz por Béla se casar com alguém como eu alguém com tanta energia e vida Fico satisfeita por ter a sua bênção Ainda assim penso que poderia ser eu naquela cama recostada em travesseiros amassados tossindo entre as palavras e enchendo o lenço de sangue Naquela noite Béla e eu nos hospedamos juntos no hotel onde nos conhecemos Em todas as suas visitas à Košice dormimos em quartos separados Nunca dividimos uma cama Nunca vimos um ao outro sem roupa Mas hoje é diferente Tento me lembrar das palavras proibidas no livro Naná de Zola O que mais pode me preparar para lhe dar prazer para buscar o meu próprio prazer Ninguém me instruiu a respeito da coreografia de intimidade Até agora a nudez foi degradante humilhante aterrorizante Preciso reaprender a habitar minha pele Você está tremendo diz Béla Está com frio Ele pega em sua mala um pacote embrulhado com uma fita brilhante Dentro da caixa enrolado em papel de seda está uma linda camisola Um presente extravagante Mas não é isso que me emociona De alguma forma ele sabia que eu precisaria de uma segunda pele Não que eu quisesse me proteger dele de meu futuro marido Não é proteção que busco mas uma maneira de me elevar de me estender uma maneira de iniciar o capítulo que ainda não foi escrito Estremeço quando ele desliza a camisola pela minha cabeça quando o tecido encosta nas minhas pernas O figurino certo pode melhorar a dança Eu rodopio para ele Izléses diz ele Elegante Estou tão feliz porque alguém está olhando para mim O olhar dele é mais do que um elogio Assim como as palavras da minha mãe uma vez me ensinaram a valorizar minha inteligência através dos olhos de Béla descubro um novo apreço por meu corpo e pela minha vida C A P Í T U L O 9 Ano que vem em Jerusalém Eu me casei com Béla Eger no dia 12 de novembro de 1946 na prefeitura de Košice Podíamos ter comemorado de maneira luxuosa na mansão dos Eger podíamos ter escolhido uma cerimônia judaica Mas sou uma menina tenho apenas 19 anos não tive a oportunidade de terminar o ensino médio Meus pais estão mortos Um velho amigo do meu pai que não é judeu tem visitado a mim e às minhas irmãs Ele é juiz e conhece o irmão de Béla George da faculdade de Direito o que o torna um elo entre a minha família e o meu futuro marido além de ser um elo com meu pai e por isso o escolhi para celebrar nosso casamento Nos quinze meses desde que Béla e eu nos conhecemos meu cabelo passou de uma penugem rala para ondas cheias Eu o deixo solto sob um casquete branco inclinado na cabeça Uso um vestido emprestado de viscose preta na altura do joelho de mangas compridas justas com ombreiras e gola branca Levo um pequeno buquê de lírios e rosas amarrado com uma fita larga de cetim Sorrio para fotografias na varanda da loja do meu pai Estão presentes apenas oito pessoas eu Béla Magda Klara Csicsi Imre e dois velhos amigos do meu pai um deles presidente de um banco e o outro o juiz que nos casa Béla gagueja quando fala seus votos e Klara me olha com reprovação A recepção é em nosso apartamento Klara preparou toda a comida Frango assado Cuscuz húngaro Batatas com manteiga e salsa E a torta Dobos com sete camadas de bolo de chocolate Tentamos criar um ambiente feliz mas as ausências nos pesam Órfão casa com órfã Depois vou escutar que casamos com nossos pais Mas eu direi que casamos com nossas questões não resolvidas Para Béla e eu a questão não resolvida é o luto Passamos a lua de mel em Bratislava no Danúbio Danço com meu marido as valsas que conhecíamos de antes da guerra Visitamos a Fonte de Maximiliano e a Colina da Coroação Béla finge ser o novo monarca apontando sua espada para o norte o sul o leste e o oeste prometendo defenderme Vemos a antiga cidade murada duplamente fortificada para enfrentar os turcos Achamos que a tempestade já passou Naquela noite no hotel acordamos com alguém batendo a nossa porta Policiais forçam a entrada em nosso quarto A polícia está constantemente checando os civis nossas vidas se tornam um labirinto de requisitos burocráticos com permissões oficiais necessárias até para as ninharias mais cotidianas Podem prendêlo sob qualquer pretexto Como meu marido é rico uma pessoa importante não deveria me surpreender termos sido seguidos Mas estou surpresa E com medo estou sempre com medo E também constrangida E zangada Essa é a minha lua de mel Por que estão nos incomodando Acabamos de nos casar diz Béla em eslovaco Cresci sabendo falar apenas húngaro mas Béla é fluente em tcheco em eslovaco e em outras línguas necessárias para seus negócios comerciais Ele mostra nossos passaportes a certidão de casamento tudo para confirmar nossas identidades e a razão de estarmos em um hotel Por favor não nos incomodem A polícia não dá explicação alguma para invadir nossa privacidade para suspeitar de nós Há algum motivo para seguirem Béla Será que o confundiram com outra pessoa Tento não considerar a intrusão como um presságio Foco na suavidade da voz do meu marido por baixo de sua gagueira Não temos nada a esconder Mas alerta é meu estado permanente E não consigo deixar de sentir que sou culpada de alguma coisa Que serei descoberta Minha transgressão é a vida E o início de uma alegria cautelosa No trem de volta para casa temos uma cabine particular Prefiro sua elegância simples ao hotel Posso me imaginar em uma história Somos exploradores colonos O movimento do trem dissipa a apreensão e o tumulto de meu cérebro e me ajuda a focar no corpo de Béla Ou talvez seja apenas o tamanho reduzido da cama Meu corpo me surpreende O prazer é um elixir Um bálsamo Procuramos um ao outro repetidas vezes enquanto o trem acelera noite adentro Tenho que correr para o banheiro quando vamos a Košice visitar minhas irmãs Vomito sem parar Serão boas notícias mas ainda não sei Nesse momento só sei que depois de um ano de uma recuperação lenta estou doente novamente O que você fez com meu bebê grita Klara Béla molha o lenço na água fria e passa no meu rosto Enquanto minhas irmãs continuam morando em Košice passo a ter uma inesperada vida de luxo Eu me mudo para a mansão Eger em Prešov um antigo monastério de meio século de existência amplo e comprido uma casa do tamanho de um quarteirão com cavalos e carruagens alinhadas ao longo da entrada O negócio de Béla fica no térreo e nós no andar de cima Inquilinos ocupam outras partes da casa enorme Uma mulher cuida de nossa roupa fervendo os lençóis passando tudo branco Comemos em uma louça com o sobrenome da família meu novo nome gravado em dourado Na sala de jantar há um botão que posso apertar para chamar Mariska a governanta na cozinha Não consigo parar de comer o pão de centeio que ela faz Aperto o botão e peço mais pão Vocês estão comendo feito porcos murmura ela para mim Ela não disfarça a infelicidade com minha entrada na família Sou uma ameaça a seu estilo de vida ao modo como ela administra a casa Fico condoída ao ver Béla dar a ela dinheiro para as compras Sou sua esposa e me sinto inútil Por favor me ensine a cozinhar peço a Mariska um dia Não quero você nesta cozinha responde ela Para me lançar em minha vida nova Béla me apresenta à elite de Prešov advogados médicos e empresários e suas esposas mas eu me sinto deslocada jovem e inexperiente ao lado deles Conheço duas mulheres da minha idade Ava Hartmann é uma mulher moderna casada com um milionário mais velho Ela usa o cabelo negro repartido na lateral Marta Vadasz é casada com o melhor amigo de Béla Bandi Ela é ruiva e tem um rosto gentil e paciente Observo Ava e Marta com atenção tentando entender como devo me comportar e o que dizer Ava Marta e as outras mulheres bebem conhaque Eu bebo conhaque Ava Marta e as outras mulheres fumam Numa noite depois de um jantar na casa de Ava ela preparou o melhor fígado picado que eu provei na vida com pimenta verde e cebolas comento com Béla que sou a única que não fuma No dia seguinte ele me traz uma cigarreira de prata e uma piteira prateada Não sei como usar a piteira nem mesmo como prender o cigarro na ponta inalar e soltar a fumaça Tento imitar as outras mulheres Eu me sinto como um papagaio elegante nada além de um eco envolta em roupas bonitas que meu pai não fez para mim Será que eles sabem onde estive Nos salões e sentada a mesas de jantar decoradas olho para nossos amigos e conhecidos e imagino será que eles perderam as mesmas coisas que Béla e eu perdemos Não falamos sobre isso A negação é o nosso escudo Ainda não sabemos o dano que perpetuamos ao nos afastar do passado ao manter nossa conspiração de silêncio Estamos convencidos de que quanto mais isolarmos o passado mais seguros e felizes seremos Tento relaxar na minha nova vida rica e privilegiada Não haverá mais batidas fortes na porta interrompendo o sono digo a mim mesma Apenas o conforto dos edredons e lençóis limpos Acabouse a fome Como sem parar o pão de centeio de Mariska e os bolinhos de peixe que têm uma mistura de chucrute com bryndza um queijo eslovaco de leite de ovelha Estou engordando As memórias e as perdas ocupam apenas uma fatiazinha de mim Vou lutar contra elas para que saibam o seu lugar Vejo minha mão levar a piteira prateada até o rosto e se afastar Finjo que é uma nova dança Posso aprender cada gesto O peso que estou ganhando não tem a ver apenas com o excesso de comida No início da primavera descubro que estou grávida Em Auschwitz não ficávamos menstruadas A tensão constante e a inanição ou talvez a magreza extrema interrompiam os ciclos menstruais Mas agora meu corpo antes faminto emaciado e largado para morrer abriga uma nova vida Conto as semanas desde que sangrei pela última vez e calculo que Béla e eu devemos têlo concebido em nossa lua de mel talvez no trem Ava e Marta contam que também estão grávidas Espero que meu médico o médico da família Eger o mesmo homem que fez o parto de Béla me dê os parabéns Mas em vez disso ele me dá uma bronca Você não está forte o suficiente diz ele insistindo que eu marque um aborto e logo Eu me recuso Corro para casa chorando Ele me segue Mariska o leva até o salão Sra Eger a senhora morrerá se tiver esta criança diz ele A senhora é muito magra muito fraca Olho diretamente em seus olhos Doutor vou gerar uma vida digo Boa noite Béla o acompanha até a porta Escuto meu marido se desculpando por meu desrespeito Ela é filha de um alfaiate não se pode esperar algo diferente explica ele As palavras que ele usa para me proteger fazem outro pequeno buraco em meu ego ainda frágil Mas à medida que meu útero se expande o mesmo acontece com minha autoconfiança e determinação Não me escondo nos cantos Engordo 22 quilos e quando caminho nas ruas empurro a barriga e observo o reflexo dessa minha nova versão desfilar pelas vitrines das lojas Não reconheço de imediato esse sentimento Depois eu me lembro É a sensação de estar feliz Klara e Csicsi se casam na primavera de 1947 e Béla e eu vamos à Košice para a cerimônia em nosso Opel Adam verde Outra ocasião importante na qual sinto falta de nossos pais outro dia feliz afetado pela ausência deles Mas estou grávida minha vida está completa não vou deixar a tristeza me puxar para baixo Magda toca no piano da família Ela canta a música que nosso pai costumava cantar Béla luta com ideias contraditórias me tirar para dançar ou me obrigar a sentar e descansar os pés Minhas irmãs colocam as mãos na minha barriga Essa vida nova dentro de mim pertence a todas É o nosso recomeço Um pedaço de nossos pais e avós que continuará no futuro Esse é o tema da conversa quando fazemos uma pausa da música e os homens acendem seus charutos O futuro O irmão de Csicsi Imre logo viajará para Sydney Nosso grupo familiar já é tão pequeno Não gosto da ideia de nos dispersarmos Prešov já parece muito distante de minhas irmãs Antes de a noite acabar antes de Béla e eu irmos para casa Klara puxa Magda e eu para o quarto Tenho que dizer uma coisa a você pequenina diz ela Pela testa franzida de Magda percebo que ela já sabe o que Klara vai falar Se Imre for para Sydney diz Klara nós também iremos Austrália Por causa do golpe comunista em andamento na Tchecoslováquia nossos amigos em Prešov também falam em emigrar talvez para Israel talvez para os Estados Unidos mas as políticas de imigração são menos rígidas na Austrália Ava e o marido também mencionaram Sydney mas é muito longe E a sua carreira pergunto a Klara Há orquestras em Sydney Você não fala inglês Tento qualquer desculpa como se ela ainda não tivesse refletido sobre essas mesmas objeções Csicsi fez uma promessa diz ela Um pouco antes de morrer seu pai pediu que ele tomasse conta do irmão Se Imre for nós vamos Então vocês duas estão me abandonando diz Magda Depois de todo aquele esforço para sobreviver achei que ficaríamos juntas Lembro da noite em abril apenas dois anos antes em que achei que Magda podia morrer quando me arrisquei a levar uma surra ou coisa pior por escalar um muro e colher cenouras frescas para ela Nós sobrevivemos a uma provação horrenda porque tínhamos a responsabilidade de proteger uma à outra e porque cada uma de nós se agarrou à outra como algo para se dedicar Tenho que agradecer à minha irmã por minha vida Vai se casar logo garanto a ela você vai ver Não existe ninguém mais sexy que você Ainda não entendo que a dor da minha irmã tem menos a ver com solidão e mais com a crença de que ela não merece ser amada Onde ela vê sofrimento inferno deficiência e perda eu vejo outra coisa Vejo sua coragem seu triunfo e sua força É como nosso primeiro dia em Auschwitz quando a ausência de seu cabelo revelou para mim com uma nitidez nova a beleza de seus olhos Você está interessada em alguém pergunto Quero fofocar como fazíamos quando éramos garotas Magda sempre oferece informações preciosas ou imitações engraçadas Ela consegue dar leveza às coisas mais pesadas Quero que ela sonhe Magda balança a cabeça Não estou pensando em uma pessoa explica Estou pensando em um lugar E aponta para um cartãopostal que escondeu na moldura do espelho de seu guardaroupa A imagem mostra um deserto árido uma ponte El Paso informam as letras na parte de cima da imagem É de Laci Ele partiu diz Magda Eu também posso Para mim El Paso parece o fim do mundo Laci a chamou para ficar com ele Dicuka minha vida não é um conto de fadas Não espero que um homem apareça para me salvar Ela bate com os dedos no colo como se estivesse tocando piano Há mais coisas que ela quer dizer Você se lembra do que Mama tinha no bolso no dia em que morreu Uma membrana do nascimento de Klarie E uma nota de dólar que tia Matilda havia enviado numa época qualquer dos Estados Unidos Por que não sei disso Havia tantas coisas que nossa mãe tinha feito para sinalizar a esperança Não apenas a nota de dólar da qual não me lembro e aquela membrana de que me lembro mas o schmaltz a gordura de galinha que ela embrulhou para cozinhar na fábrica de tijolos e a carta para Klara Magda parece refletir sobre a praticidade de nossa mãe e também sobre sua esperança Laci não vai casar comigo diz ela Mas de alguma forma eu vou para os Estados Unidos Ela escreveu para tia Matilda pedindo que ela enviasse uma declaração de apoio financeiro para patrocinar sua imigração Austrália Estados Unidos Enquanto a próxima geração se agita dentro de mim minhas irmãs ameaçam flutuar para longe Fui a primeira a escolher uma nova vida depois da guerra Agora são elas que estão escolhendo Fico feliz por minhas irmãs Ainda assim penso no dia durante a guerra em que eu estava doente demais para trabalhar e Magda foi para a fábrica de munições sem mim Quando a fábrica foi bombardeada Magda podia ter fugido para a liberdade No entanto optou por voltar ao alojamento para me resgatar Tive uma vida boa e tive sorte Não há necessidade alguma que ela acompanhe a minha sobrevivência agora Mas se há alguma coisa de que sinto falta naquele inferno é o entendimento de que a sobrevivência é uma questão de interdependência que não se consegue sobreviver sozinha Ao escolhermos destinos diferentes minhas irmãs e eu será que corremos perigo de destruir nossa ligação Béla está fora da cidade quando sinto as primeiras contrações numa manhã de setembro Elas são fortes o suficiente para me imobilizar Ligo para Klara Quando ela chega duas horas depois o médico ainda não está lá Entro em trabalho de parto no mesmo quarto em que Béla nasceu na mesma cama Enquanto me reviro de dor sinto uma conexão com a mãe dele uma mulher que não tive a oportunidade de conhecer Esse bebê que estou me esforçando para trazer ao mundo não terá avós O médico ainda não chegou Klara fica ao meu lado oferecendo água secando meu rosto Saia daqui grito com ela Não aguento seu cheiro Não posso ser um bebê e dar à luz um bebê Tenho que ter controle sobre meu corpo e ela está me distraindo No meio da clara falta de noção sobre o que estava acontecendo durante o trabalho de parto me vem à memória a agonia da mulher grávida em Auschwitz que teve as pernas amarradas Não consigo afastar seu rosto e sua voz do meu quarto Ela me assombra e me inspira Cada impulso de seu corpo e de seu coração apontavam para a vida embora ela e seu bebê estivessem condenados a uma morte indescritivelmente cruel A tristeza toma conta de mim Sou uma avalanche Vou me abrir no limiar exato de seu tormento Vou aceitar essa dor porque ela não tinha escolha Vou aceitar a minha dor para apagar a dela cada memória dela pois se essa dor não me destruir a memória pode acabar comigo O médico finalmente chega A bolsa das águas estoura e sinto o bebê sair de dentro de mim É uma menina grita Klara Por um momento eu me sinto completa Estou aqui Minha bebê está aqui Tudo está bem e certo Quero batizála de AnnaMarie um nome romântico meio afrancesado mas os comunistas têm uma lista dos nomes permitidos e AnnaMarie não está entre eles Então escolhemos o inverso Marianne uma homenagem à prima de Béla aquela que ainda me chama de idiota por ter destruído o noivado entre Béla e sua amiga que agora está morta Béla distribui charutos Ele não vai se curvar à tradição de distribuir charutos apenas no nascimento de filhos homens A chegada de sua filha será comemorada com todos os rituais todas as demonstrações de orgulho Ele me traz uma caixa de joias Dentro está uma pulseira dourada de quadrados interligados do tamanho de selos postais feita de dois tipos de ouro Ela parece ser pesada mas é leve Ao futuro diz Béla e a coloca no meu pulso Ele diz isso e eu sei o sentido da minha vida É isso que vou defender essa criança Meu compromisso com ela será tão completo e coeso quanto o círculo dourado no meu pulso Vejo o meu propósito Viverei para garantir que ela jamais passe pelo que eu passei Terei minha continuidade nela crescendo através de nossas raízes comuns criando um novo ramo um galho que se espalha na direção da esperança e da alegria Ainda assim tomamos precauções Nós a batizamos por segurança A mesma razão pela qual nossos amigos Marta e Bandi usam o sobrenome húngaro Vadasz que significa caçador em vez do sobrenome judeu Mas que tipo de controle nós realmente temos O bebê de Marta nasce morto Marianne nasceu com 45 quilos Ela ocupa todo o carrinho Devo amamentar pergunto à pediatra alemã Para o que você acha que servem os seus peitos responde ela Meu leite é abundante Tenho mais do que suficiente para alimentar Marianne e a bebê de minha amiga Ava Posso alimentar cada fome Eu represento a abundância Eu me inclino quando amamento a fim de que Marianne não precise se contorcer para alcançar o meu corpo sua fonte Dou a ela cada gota de leite Quando ela me esvazia eu me sinto mais plena Marianne é tão protegida abraçada cuidada e agasalhada que custo a acreditar quando ela adoece aos 14 meses em novembro de 1948 Sei identificar quando ela faz manha Ela está com fome eu penso Está cansada Mas quando dou uma checada à noite a febre está alta Ela está quente e os olhos vidrados Seu corpo reclama ela grita mas está doente demais para registrar minha presença ou não faço a menor diferença Ela não quer mamar Meus braços não a reconfortam A todo momento seu peito é sacudido por acessos de tosse forte Acordo a governanta Béla chama o médico o médico que fez o seu parto o parto de Marianne e anda de um lado para outro no quarto O médico é duro comigo Ela está com pneumonia Isso é vida ou morte diz ele Ele parece zangado como se a doença fosse culpa minha como se não quisesse me deixar esquecer que desde o início a vida de Marianne foi estruturada no risco na minha tola audácia Agora veja o que aconteceu Mas talvez o que soa como raiva seja só cansaço Ele vive para curar Com que frequência seus esforços são infrutíferos O que podemos fazer pergunta Béla Diganos o que fazer Já ouviu falar de penicilina Sim claro Consiga penicilina para seu bebê E rápido Béla olha para o médico confuso quando ele começa a abotoar seu casaco Você é o médico Onde está a penicilina pergunta ele Sr Eger não existe penicilina neste país Nada disso pode ser comprado legalmente Boa noite Boa sorte Eu pagarei o que for Sim diz o médico O senhor deve dar seu jeito Os comunistas sugiro quando o médico sai Eles libertaram a Eslováquia da ocupação nazista Os comunistas têm se aproximado de Béla cortejando sua riqueza e influência Eles lhe ofereceram o cargo de ministro da Agricultura com a condição de que se filie ao partido Béla faz que não com a cabeça É mais fácil conseguir no mercado negro diz ele Marianne recaiu num sono interrompido Preciso mantêla hidratada mas ela não aceita água ou leite Me dê dinheiro ordeno e me diga aonde ir Os operadores do mercado negro fazem seus negócios ao lado do comércio legal no centro da cidade Béla será reconhecido mas eu posso preservar meu anonimato Devo ir ao açougueiro e passar uma mensagem cifrada depois dizer outro código ao padeiro e então alguém me procurará O negociador do mercado negro me intercepta perto da florista Penicilina digo O suficiente para uma criança doente Ele ri com a impossibilidade de meu pedido Não existe penicilina aqui diz ele Terei que ir a Londres Posso viajar hoje e voltar amanhã Isso tem um preço A quantia que ele pede é duas vezes a quantidade de dinheiro que Béla embrulhou num jornal e colocou em minha bolsa Não hesito Informo o quanto pagarei a ele Digo o valor exato que carrego Isso precisa ser feito Se você não for procurarei outra pessoa Penso no guarda no dia em que deixamos Auschwitz nas estrelas que dei na piscada dele Tenho que me conectar com a parte desse homem que vai cooperar Vê esta pulseira Levanto a manga de meu vestido e mostro a pulseira de ouro que uso desde o dia em que Marianne nasceu Ele inclina a cabeça Talvez imaginando como ficará no pulso de sua esposa ou de sua namorada Talvez esteja calculando mentalmente o preço que vai conseguir pela pulseira Meu marido me deu isso quando nossa filha nasceu Agora estou dando a você a oportunidade de salvar a vida da nossa filha Vejo os olhos dele brilharem com algo maior do que a cobiça Me dê o dinheiro diz ele Fique com a pulseira O médico vem de novo na noite seguinte para ajudar a administrar a primeira dose de penicilina Ele aguarda até a febre de Marianne baixar e ela aceitar meu peito Eu sabia que você encontraria um jeito diz o médico Pela manhã Marianne já consegue sorrir Ela dorme enquanto mama Béla beija a testa dela beija o meu rosto Marianne está melhor mas outras ameaças surgem Béla recusa o cargo de ministro da Agricultura Os nazistas de ontem são os comunistas de hoje diz ele e seu Opel Adam conversível é jogado para fora da estrada certo dia Béla não se machuca mas o motorista sofre ferimentos leves Béla vai à casa do motorista levar alguns mantimentos e desejar uma pronta recuperação O motorista abre só uma fresta da porta A mulher o chama no outro cômodo Não o deixe entrar diz ela Béla escancara a porta e vê sobre a mesa deles uma das melhores toalhas de sua mãe Quando chega em casa Béla verifica o armário onde as melhores toalhas de mesa estão guardadas Muitos itens estão faltando Imagino que ele ficará zangado despedirá o motorista talvez outros empregados Ele dá de ombros Sempre use o que você tem de mais bonito me diz ele Nunca se sabe quando as coisas vão sumir Penso no apartamento de minha família coberto de estrume em nosso piano na cafeteria ali pertinho na maneira que os grandes momentos políticos como a mudança de comando do poder e a revisão de fronteiras também são sempre muito pessoais Košice vira Kassa e depois volta a ser Košice Não aguento mais digo a Béla Não consigo viver com um alvo nas costas Minha filha não vai perder os pais Não concorda ele Penso em tia Matilda Magda recebeu sua declaração de apoio financeiro e está esperando o visto Estou a ponto de sugerir a Béla que tentemos acompanhar Magda em sua viagem para os Estados Unidos Mas então lembro que minha irmã foi avisada que ela talvez leve anos para conseguir o visto pois mesmo com patrocínio a imigração é sujeita a restrição de cotas Não podemos confiar em um processo de muitos anos para nos proteger dos comunistas Precisamos de uma saída mais rápida No dia 31 de dezembro de 1948 Marta e Bandi vêm comemorar a passagem de ano em nossa casa Eles são sionistas fervorosos e brindam à saúde do novo Estado de Israel taça após taça Podíamos ir para lá diz Béla Podíamos começar um negócio Não é a primeira vez que me imagino na Palestina No ensino médio eu era sionista e Eric e eu nos imaginávamos vivendo juntos na Palestina depois da guerra No meio do preconceito e da incerteza não conseguimos impedir que nossos colegas cuspissem em nós nem que os nazistas se apossassem de nossas ruas mas podemos defender um lar futuro podemos construir um lugar seguro Não sei se devo acolher a sugestão de Béla de realizarmos um antigo sonho adiado ou se devo me preocupar por apostar numa ilusão numa expectativa que levará à decepção Israel é um Estado tão recente que ainda nem teve as primeiras eleições e já está em guerra com os vizinhos árabes Além do mais ainda não existe a Lei do Retorno legislação que vários anos depois concederá a qualquer judeu de qualquer país a possibilidade de emigrar e se estabelecer em Israel Teríamos de chegar lá ilegalmente confiando na Berihá a organização clandestina que ajudou os judeus a fugirem da Europa durante a guerra para arranjar nossa passagem em um navio Ainda clandestina a Berihá auxilia os refugiados os desabrigados os sem casa e os apátridas a encontrarem uma vida nova Mesmo que possamos garantir nossos lugares num barco nosso plano não é uma aposta certa Apenas um ano antes o navio Exodus levando 45 imigrantes judeus que buscavam asilo e reassentamento em Israel foi enviado de volta para a Europa Chega a véspera do anonovo Estamos esperançosos nos sentimos corajosos Nas últimas horas de 1948 nosso plano para o futuro toma forma Vamos usar a fortuna dos Eger e comprar o necessário para começar um negócio em Israel Nas semanas seguintes depois de muita pesquisa Béla decidirá que uma fábrica de macarrão é o investimento mais recomendado e lotaremos um contêiner com nossos pertences com o suficiente para nos sustentar ao longo dos primeiros anos em nosso novo lar Nós húngaros não encerramos uma noite de bebedeira sem tomar uma sopa de chucrute Mariska traz tigelas fumegantes de sopa Ano que vem em Jerusalém dizemos Nos meses seguintes Béla compra o contêiner que levará a fortuna dos Eger para a Itália e depois para Haifa de navio Ele compra os equipamentos básicos para uma fábrica de macarrão Cuido do acondicionamento da prataria da louça com as iniciais douradas Compro roupas para Marianne o suficiente para os próximos cinco anos e costuro joias nos bolsos e bainhas Mandamos os pertences na frente e pretendemos ir logo em seguida assim que a Berihá nos ajudar a achar um jeito No fim de um dia de inverno com Béla ausente em viagem a negócios uma carta registrada chega para ele de Praga Assino o recibo da carta que leio sem esperar que meu marido retorne Antes da guerra cidadãos tchecos que haviam emigrado para a América diz a carta podiam indicar qualquer parente que vivesse na Europa para se beneficiar da lei que concedia vistos de entrada no país a quem sofresse perseguição sem precisar se sujeitar às cotas que restringiam o número de refugiados nos Estados Unidos O tioavô de Béla Albert que se estabeleceu em Chicago no início dos anos 1900 indicou a família Eger Somos agora uma das duas famílias tchecas convidadas a se refugiar na América de acordo com o registro feito antes da guerra Béla deve se apresentar imediatamente no consulado americano em Praga com nossos documentos Nosso contêiner está a caminho de Israel Uma vida nova surge no horizonte Já organizamos tudo Já escolhemos Mas o meu coração acelera com essa notícia com essa inesperada oportunidade Podemos ir para a América como Magda mas sem precisar esperar Béla volta de viagem e eu imploro a ele para ir a Praga com nossos documentos Só para garantir insisto Só como precaução Mesmo relutante ele vai Coloco os papéis na primeira gaveta de meu guardaroupa junto com minhas roupas íntimas Só para garantir C A P Í T U L O 1 0 Fuga Em 19 de maio de 1949 chego em casa do parque com Marianne e Mariska está chorando Prenderam o Sr Eger choraminga ela Ele foi levado Durante meses sabíamos que nossos dias de liberdade estavam contados Além de tirarem o carro de Béla da estrada no ano anterior os comunistas haviam se apossado do negócio dele confiscado nosso carro grampeado nosso telefone Com nossa fortuna segura a caminho de Israel ficamos à espera dos arranjos de viagem da Berihá Ficamos porque não podíamos nos imaginar partindo Agora corro o risco de criar minha filha sem o pai Não vou aceitar isso Não vou Primeiro preciso afastar a preocupação e o medo que estão crescendo em mim Preciso excluir a possibilidade de Béla estar sendo torturado ou que já tenha sido morto Preciso agir como minha mãe na manhã em que fomos despejados de nosso apartamento e mandados para a fábrica de tijolos Preciso me tornar uma agente da criatividade e da esperança Preciso agir como uma pessoa que tem um plano Dou um banho em Marianne e almoço com ela Deixoa tirar uma soneca Estou ganhando tempo para pensar e garantindo que ela seja bem alimentada e tenha todo o conforto possível Quem sabe se vamos dormir hoje à noite ou onde Vivo um minuto de cada vez Não sei o que farei a seguir só que preciso encontrar uma maneira de tirar Béla da prisão e de manter nossa filha em segurança Reúno tudo o que pode ser útil sem levantar suspeita Enquanto Marianne dorme abro meu armário e pego o anel de diamantes que Béla encomendou para mim quando casamos É um anel lindo um diamante perfeito redondo numa base de ouro mas ele sempre me fez sentir constrangida então nunca o uso Hoje eu o coloco Guardo os documentos que Béla obteve no consulado americano em Praga por dentro do meu vestido na parte das costas presos ao meu corpo pelo cinto Não posso parecer uma pessoa que está fugindo Não posso usar nosso telefone grampeado para chamar alguém para me ajudar Mas não suporto deixar a casa sem avisar minhas irmãs Não espero que elas possam nos ajudar mas quero que saibam que estamos em perigo que há uma chance de que não nos vejamos novamente Ligo para Klara Ela atende e eu improviso Tento não chorar Tento não deixar minha voz tremer ou falhar Estou muito feliz que você esteja vindo nos visitar digo Não há nenhuma visita planejada Estou falando em código Espero que ela entenda Marianne tem perguntado pela tia Klarie Me confirme a hora de seu trem Ela começa a me corrigir ou a me questionar Depois de uma breve pausa Klara percebe que estou tentando lhe dizer alguma coisa Trem visita O que ela fará com essas pistas escassas Chegaremos esta noite diz ela Estarei na estação De alguma forma hoje à noite ela nos encontrará em um trem Isto é o que nós acabamos de combinar Ou nossa conversa foi codificada demais até mesmo para nós entendermos Coloco nossos passaportes em minha bolsa e espero Marianne acordar Ela tem sido treinada para ir ao banheiro desde os nove meses mas quando a visto após a soneca ela permite que eu lhe coloque uma fralda onde eu escondo minha pulseira Não levo nada além disso Não posso parecer uma pessoa que está fugindo Tudo o que eu falar no resto do dia não importa o tempo que levar para ficarmos em segurança será dito nessa linguagem que acho ameaçadora aquela maneira de ser que não é autoritária ou dominadora nem covarde ou fraca Ser passiva é deixar que os outros decidam por você Ser agressiva é decidir pelos outros Ser assertiva é decidir por si mesma E confiar que há o suficiente que você é o suficiente Ah mas estou tremendo Saio de casa com Marianne em meus braços Se eu agir corretamente não voltarei à mansão dos Eger não hoje talvez nunca Esta noite estaremos a caminho de nossa nova casa Mantenho minha voz baixa Converso sem parar com Marianne Nos doze meses desde o nascimento dela além da amamentação esse foi o meu sucesso como mãe falo a respeito de tudo com minha filha Narro o que estamos fazendo ao longo do dia Falo os nomes das ruas e das árvores Palavras são tesouros que ofereço a ela seguidamente Ela é capaz de falar em três idiomas húngaro alemão e eslovaco Kvetina diz ela apontando para uma flor falando a palavra em eslovaco Com Marianne reaprendo como é me sentir em segurança e ter curiosidade E em troca é isso que posso oferecer a ela Não posso evitar o perigo mas posso ajudála a saber onde está vivendo e entender sua própria importância Mantenho o monólogo para que não haja espaço para a voz do medo Sim a flor olha o carvalho todo desfolhado e lá está o caminhão de leite Agora nós vamos ver o homem na delegacia um prédio grande muito grande como a nossa casa mas com longos corredores Falo como se esse fosse um passeio normal como se eu pudesse ser para ela a mãe que preciso ser para mim mesma A delegacia é intimidadora Quando guardas armados me conduzem para dentro do prédio quase dou meiavolta e corro Homens em uniformes Homens com armas Não suporto essa demonstração de autoridade Isso me deixa desnorteada e deslocada Sintome perdida diante da ameaça deles Porém cada minuto que espero aumenta o perigo para Béla Ele já demonstrou que não se conforma em obedecer às regras E os comunistas já mostraram que não toleram dissidentes O que serão capazes de fazer para lhe dar uma lição para extrair aquela informação imaginada para dobrálo à vontade deles E quanto a mim Como serei punida quando revelar meu propósito aqui Invoco a confiança que demonstrei no dia em que comprei a penicilina do negociante do mercado negro Naquela ocasião o maior risco era o negociante dizer não Eu arriscaria mais ao não pedir o que era necessário para salvar a vida de Marianne Hoje manter uma postura assertiva pode levar à retaliação à prisão e à tortura Ainda assim não tentar também é arriscado O guarda está sentado em um banco atrás de um balcão alto É um homem grande Temo que Marianne diga que ele é gordo em alto e bom som e destrua nossas chances Olho nos olhos dele Sorrio Vou tratálo não pelo que ele é mas pelo que eu confio que seja Vou conversar com ele como se já tivesse o que desejo Obrigada senhor falo em eslovaco muito obrigada por devolver o pai de minha filha A testa dele se franze demonstrando confusão Mantenho os olhos nele Tiro meu anel de diamante Ofereçoo a ele Um reencontro entre um pai e uma filha é uma coisa linda continuo falando e girando a pedra de modo que ela brilhe como uma estrela na luz mortiça Ele olha o diamante e depois me encara por um momento interminável Ele vai ligar para seu superior Vai tirar Marianne dos meus braços e me prender também Ou aproveitará algo bom para ele mesmo e me ajudará Sinto um aperto no peito e meus braços doem enquanto ele avalia as possibilidades Por fim ele toca a campainha e coloca o anel no bolso Nome pergunta ele Eger Venha Ele me leva por uma porta e descemos algumas escadas Estamos indo buscar o papai digo a Marianne como se estivéssemos indo encontrálo no trem O lugar é sombrio e triste E existe uma inversão aqui Quantos dos que estão aprisionados são inocentes vítimas de um abuso de poder Não convivo com prisioneiros desde que eu estava entre eles Sintome quase envergonhada por estar desse lado das grades Estou aterrorizada pela possibilidade de que em um momento de horror arbitrário sejamos obrigados a trocar de lugar Béla está numa cela sozinho Ele veste as próprias roupas nada de uniforme e pula da cama quando nos vê esticando o braço entre as grades para segurar as mãos de Marianne Marchuka diz ele Está vendo minha caminha engraçada Ele acha que estamos aqui para uma visita Um de seus olhos está roxo Há sangue em seus lábios Percebo que ele apresenta duas facetas a inocente e feliz para Marianne e a inquisitiva para mim Por que eu trouxe uma criança a uma prisão Por que oferecer a Marianne uma imagem dele que ela nunca esquecerá mesmo que não entenda o que é Tento não ficar na defensiva Tento fazer com que meus olhos mostrem que ele pode confiar em mim Tento inundálo de amor a única coisa mais forte do que o medo Nunca o amei mais do que nesse momento quando ele sabe instintivamente inventar uma brincadeira para Marianne e assim transformar esse lugar assustador e desolador em algo inofensivo O guarda abre a cela Cinco minutos ele grita alto e então apalpa o bolso onde guardou o anel de diamante E recua para o fundo do corredor dando as costas para nós Puxo Béla para fora da cela e não respiro até estarmos novamente na rua Béla Marianne e eu Ajudo Béla a limpar o sangue dos lábios com seu lenço sujo Vamos na direção da estação de trem Não precisamos discutir sobre o que fazer É como se tivéssemos planejado tudo sua prisão a fuga repentina Combinamos tudo à medida que caminhamos em meio à sensação vertiginosa de andar rapidamente pela neve fofa pisando em pegadas deixadas por outras pessoas surpresos que elas estejam prontas para acomodar nossos pés e nossa velocidade É como se já tivéssemos feito essa jornada em outra vida e agora a repetimos de memória Fico feliz por Béla carregar Marianne Meus braços estão quase dormentes O importante é sair do país Escapar dos comunistas Chegar o mais próximo de onde os Aliados têm postos Na estação de trem deixo Béla e Marianne num banco mais isolado e vou sozinha comprar três bilhetes para Viena e alguns sanduíches Quem sabe quando comeremos novamente Ainda faltam 45 minutos para o próximo trem Quarenta e cinco minutos a mais para a cela vazia de Béla ser descoberta É claro que eles vão enviar guardas para a estação de trem É para a estação de trem que você vai quando quer localizar um fugitivo que é o que Béla é agora E eu sou sua cúmplice Para evitar a tremedeira me concentro em contar quantas vezes puxo o ar a fim de respirar Quando volto Béla está contando a Marianne uma história divertida sobre um pombo que pensa que é uma borboleta Tento não olhar para o relógio Sento no banco Marianne está no colo de Béla eu me encosto neles na tentativa de manter o rosto de Béla escondido Os minutos passam lentamente Desembrulho um sanduíche para Marianne Tento comer um pedaço Então um aviso faz os meus dentes baterem tão forte que não consigo comer Béla Eger por favor se apresente no balcão de informações o locutor fala monotonamente A voz se sobrepõe aos sons das transações nas bilheterias às reprimendas do pais aos filhos às separações e despedidas Não olhe sussurro Faça qualquer coisa mas não levante os olhos Béla faz cócegas em Marianne para que ela ria Estou preocupada que eles estejam fazendo muito barulho Béla Eger dirijase imediatamente ao balcão de informações chama o locutor Podemos sentir a urgência aumentando Enfim o trem rumo a oeste chega à estação Entre no trem digo Escondase no banheiro caso eles façam uma busca Tento não olhar para os policiais ao redor quando nos apressamos para embarcar Béla corre com Marianne nos ombros Ela grita encantada Não temos bagagem o que fazia sentido ao andar pelas ruas até aqui No entanto agora estou preocupada que a ausência de bagagem levante suspeitas Serão quase sete horas até Viena Se conseguirmos sair de Prešov ainda há o risco de a polícia embarcar em qualquer parada para fazer uma busca no trem Não há tempo para obter identidades falsas Somos quem somos Encontramos uma cabine vazia então trato de manter Marianne ocupada na janela contando os sapatos na plataforma Depois de tirar Béla da cadeia quase não posso tolerar a ideia de que ele saia do meu lado Não suporto o perigo contínuo e crescente Béla me beija beija Marianne e vai se esconder no banheiro Espero o trem começar a se movimentar Se conseguirmos ao menos sair da estação estaremos um pouco mais perto da liberdade um segundo mais perto do retorno de Béla O trem não se mexe Mama Mama eu rezo Ajudenos Mama Ajudenos Papa A porta da cabine se abre e um policial nos olha rapidamente antes de fechar a porta Escuto o som das botas dele conforme ele avança pelo corredor ouço os ruídos de outras portas abrindo e fechando o policial gritando o nome de Béla Converso com Marianne canto e a mantenho olhando pela janela Depois fico com medo de ver Béla ser retirado do trem algemado Finalmente o condutor levanta o banquinho da plataforma e embarca no trem As portas do vagão se fecham O trem começa a se mover Onde está Béla Ainda está no trem Conseguiu escapar à busca ou está a caminho da cadeia para uma surra certa ou coisa pior E se cada volta das rodas nos afasta e nos distancia da vida que podemos ter juntos Quando chegamos a Košice Marianne está dormindo no meu colo Ainda não há sinal de Béla Procuro Klara na plataforma Será que ela veio nos encontrar Csicsi virá Será que ela entendeu o perigo que estamos correndo Que preparações ela fez desde que nos falamos Um pouco antes de o trem deixar a estação de Košice a porta da cabine se abre e Béla entra eufórico por causa da adrenalina Tenho uma surpresa ele fala antes de eu conseguir acalmálo Marianne abre os olhos desorientada irritada Eu a nino e me aproximo de meu marido Béla está confiante Você não quer ver minha surpresa ele pergunta e abre a porta novamente Lá estão minha irmã Klara e Csicsi uma mala e o violino dela Algum lugar livre aqui pergunta Csicsi Pequenina diz Klara ao me puxar para junto de seu peito Béla quer contar como escapou da busca policial em Prešov e Csicsi quer contar como eles se encontraram aqui em Košice mas sou supersticiosa Parece que estamos contando com o ovo dentro da galinha Nas lendas nada de bom vem quando se conta vantagem Você deve deixar os deuses manterem a imagem de seu poder Ainda nem falei com Béla sobre o anel sobre como o tirei da prisão Ele não perguntou O trem está novamente em movimento Marianne adormece outra vez com a cabeça no colo do pai Csicsi e Klara falam aos sussurros sobre seus planos Viena é o lugar perfeito para aguardar os vistos australianos o momento é perfeito para deixar a Europa e encontrar com Imre em Sydney Ainda não consigo me imaginar em Viena Prendo a respiração a cada estação Spišska Nová Ves PopradTatry Liptovský Mikuláš Žilina Mais três paradas antes de Viena Trenčín não resulta em nenhuma catástrofe Nenhuma crise em Trnava Estamos quase lá Em Bratislava a fronteira o lugar de nossa lua de mel o trem se demora na estação Marianne acorda sentindo a quietude Dorme bebê dorme diz Béla Silêncio digo Silêncio Na plataforma no escuro vemos uma dúzia de soldados eslovacos se dirigindo para o trem Eles se espalham abordando os vagões em pares Logo estarão batendo em nossa porta Vão pedir nossa identificação Mesmo que não reconheçam o rosto de Béla verão seu nome no passaporte É tarde demais para se esconder Já volto diz Csicsi Ele sai para o corredor escutamos a voz dele a voz do condutor e o vemos descendo na plataforma bem quando os soldados chegam à nossa porta Nunca saberei o que Csicsi disse a eles Nunca saberei se dinheiro ou joias trocaram de mãos Tudo que sei é que depois de momentos excruciantes os soldados inclinaram os quepes para Csicsi deram meiavolta e retornaram à estação Como eu aguentava enfrentar a fila de seleção às vezes todo dia às vezes mais de uma vez ao dia Pelo menos numa fila de seleção o veredito vem rápido Csicsi volta para a cabine Meu coração parou de bater enlouquecidamente mas não consigo perguntar como ele convenceu os soldados a darem meiavolta Nossa segurança parece frágil demais para confiar Se falarmos abertamente sobre o alívio nos arriscamos a destruílo Permanecemos calados enquanto o trem segue para Viena Em Viena somos pequenas gotas em um fluxo de 250 mil pessoas que buscam refúgio e passagem para a Palestina ou para a América do Norte desde o fim da guerra Vamos nos abrigar no Hospital Rothschild localizado na parte da cidade ocupada pelos americanos O hospital é usado como centro para os refugiados do Leste Europeu Nós cinco ficamos no mesmo quarto com outras três famílias Embora já seja tarde Béla sai do quarto antes mesmo que eu acomode Marianne na cama Ele quer entrar em contato com Bandi e Marta os amigos com quem estávamos planejando ir para Israel para contar a eles onde estamos Afago as costas de Marianne enquanto ela dorme escutando a conversa sussurrada de Klara com uma mulher com quem dividimos o quarto Somos milhares aqui no Hospital Rothschild todos aguardando ajuda da Berihá Quando nos sentamos à mesa para comer a sopa de chucrute com Bandi e Marta na véspera do anonovo concebendo o plano para recomeçar a vida em Israel estávamos construindo algo não fugindo Mas agora num quarto apinhado de outros refugiados entendo o significado da Berihá Berihá é fuga em hebraico Estamos fugindo Nosso plano é viável A mulher em nosso quarto no Rothschild nos conta sobre os amigos que já emigraram para Israel Não é um lugar fácil de viver eles dizem Depois de um ano a guerra árabeisraelense está finalmente acabando mas o país ainda é uma zona de guerra As pessoas vivem em barracas e fazem o que é preciso numa época de profunda agitação política e hostilidades permanentes entre árabes e judeus Essa não é a vida para a qual nos preparamos quando empacotamos nossas coisas num contêiner De que servirá a prataria e a louça numa barraca cercada por conflitos violentos E as joias que costurei nas roupas de Marianne Elas só valem o que os outros pagam por elas Quem quer comer em pratos dourados que trazem nosso sobrenome Não é a ideia de trabalho duro ou de pobreza que faz aflorar essa resistência no meu estômago É a realidade de mais um tempo de guerra Por que recomeçar se nada se produz além do mesmo sofrimento No escuro esperando Béla voltar abro os documentos do consulado americano os papéis que insisti tanto para Béla recuperar em Praga e que cruzaram a fronteira conosco presos às minhas costas Duas famílias tchecas se qualificaram para emigrar para os Estados Unidos Só duas A outra família Béla soube quando foi à Praga já deixou a Europa e escolheu emigrar para Israel É a nossa vez se decidirmos ir Viro os papéis na mão olho as palavras borradas na penumbra e espero que elas se misturem em minhas mãos para se reorganizar América Dicuka posso ouvir minha mãe dizer É muito difícil entrar nos Estados Unidos As cotas são restritas Mas se a carta não for uma fraude uma farsa temos uma maneira de entrar Porém nossa fortuna está em Israel A carta deve ser um convite falso eu me convenço Ninguém o quer se você está sem um tostão Béla volta empolgado acordando nossos companheiros de quarto Ele conseguiu contatar Bandi no meio da noite Nossos amigos vêm amanhã à noite para Viena Vamos encontrálos na estação de trem na manhã seguinte e juntos viajaremos até a Itália onde Bandi com a ajuda da Berihá garantiu nossa passagem para Haifa de navio Vamos para Israel com Bandi e Marta como havíamos planejado desde a véspera do anonovo Vamos montar nossa fábrica de macarrão Temos sorte por deixar Viena logo que chegamos Não ficaremos anos aguardando como Klara e Csicsi talvez fiquem antes de irem para a Austrália No entanto eu não me sinto alegre com a perspectiva de deixar Viena em 36 horas de fugir do caos do pósguerra em Prešov apenas para levar minha filha de volta a uma zona de conflito Sento na beira da cama com os documentos do consulado americano no colo Percorro as letras com meus dedos Béla me observa Está um pouco tarde diz ele É seu único comentário Você não acha que devemos discutir isto O que há para discutir Nossa fortuna nosso futuro está em Israel Ele está certo Meio certo Nossa fortuna está em Israel provavelmente assando num contêiner no deserto Nosso futuro não Ele ainda não existe Nosso futuro é a soma de uma equação que é parte intenção e parte circunstância E nossas intenções podem mudar ou se dividir Quando finalmente me deito Klara sussurra para mim por cima do corpo adormecido de Marianne Pequenina escute o que vou dizer Você precisa amar o que está fazendo De outra forma não deve fazer Não vale a pena O que ela está me dizendo para fazer Discutir com Béla sobre algo que já decidimos Deixálo Ela é justamente a pessoa que eu esperava que defendesse as escolhas que fiz Sei que ela não quer ir para a Austrália mas vai para ficar ao lado do marido Ela melhor do que ninguém deve entender por que estou indo para Israel embora não queira Pela primeira vez em nossas vidas Klara está me dizendo para não fazer o que ela faz para não seguir o exemplo dela Pela manhã Béla sai rapidamente a fim de arranjar as coisas de que precisamos para a viagem para Israel Malas casacos roupas e outros itens necessários fornecidos aos refugiados pelo comitê judeu de distribuição conjunta a empresa de caridade americana que dá apoio ao Hospital Rothschild Vou à cidade com Marianne os documentos de Praga guardados na minha bolsa do jeito que Magda costumava esconder os doces parte tentação parte ajuda O que significa ser aquela família tcheca autorizada a emigrar Quem irá se recusarmos Ninguém O plano de Israel é um bom plano É o melhor que podemos fazer com o que temos Mas agora há uma oportunidade que não existia quando firmamos esse compromisso esse plano Agora temos uma nova possibilidade que não envolve morar em barracas em uma zona de guerra Não consigo me controlar Sem a permissão de Béla sem seu conhecimento peço indicações para chegar ao consulado dos Estados Unidos e entro lá com Marianne nos braços Vou pelo menos verificar se os papéis são um erro ou uma farsa Parabéns diz o funcionário quando mostro a ele os documentos Você pode ir assim que seus vistos forem processados Ele me entrega os formulários para nossos pedidos de visto Quanto vai custar Nada a senhora é uma refugiada A viagem é uma cortesia de seu novo país Fico tonta Uma tontura boa aquela que senti na noite anterior quando o trem deixou Bratislava com a minha família ainda completa Pego os formulários e levo para nosso quarto no Hospital Rothschild Mostro a Klara e Csicsi analiso as perguntas procurando pela armadilha Não demora e encontro a primeira Você já teve tuberculose TB Béla sim Ele não tem sintomas desde 1945 mas não importa quão saudável ele é agora É preciso apresentar radiografias junto ao formulário Existem cicatrizes nos pulmões dele O dano é visível E tuberculose não tem cura Como os traumas ela pode reaparecer a qualquer momento Israel então Amanhã Klara me vê colocando os formulários embaixo do colchão Lembra que aos 10 anos fui aceita na Juilliard e Mama não me deixou ir Vá para a América Dicu Mama gostaria que você fosse Mas e a tuberculose pergunto Estou tentando ser leal não à lei mas aos desejos de Béla às escolhas de meu marido Quando você não pode entrar pela porta entra pela janela Klara me relembra A noite chega Nossa segunda noite em Viena nossa última noite em Viena Espero até Marianne adormecer até Klara e Csicsi e as outras famílias irem para a cama Sento com Béla em cadeiras perto da porta Nossos joelhos se encostam Tento memorizar seu rosto para que eu possa descrevêlos para Marianne A testa grande os arcos perfeitos de suas sobrancelhas a suavidade de sua boca Querido Béla começo o que estou prestes a dizer não vai ser fácil de ouvir Não há maneira de evitar a dureza que será e não há maneira de me dissuadir do que falarei Sua linda testa fica vincada O que está acontecendo Se você for encontrar Bandi e Marta para ir para Israel amanhã como planejamos não vou culpálo Não vou tentar convencêlo do contrário mas eu fiz a minha escolha Não vou com você Estou levando Marchuka para a América PARTE III LIBERDADE C A P Í T U L O 1 1 O dia da imigração O dia da imigração 28 de outubro de 1949 foi o dia mais otimista e promissor da minha vida Depois de morar em um quarto lotado do Hospital Rothschild durante um mês e passar outros cinco em um pequeno apartamento em Viena aguardando os vistos estamos no limiar de nosso novo lar Um céu azul ensolarado iluminou o Atlântico enquanto estávamos no convés do navio de transporte de tropas norteamericano General R L Howze A Estátua da Liberdade apareceu minúscula à distância como uma bonequinha em uma caixa de música Então a cidade de Nova York ficou visível a silhueta dos prédios surgindo nítida onde durante semanas havia apenas horizonte Segurei Marianne contra a grade do convés Estamos na América eu disse a ela A terra das pessoas livres Acreditei que estivéssemos finalmente livres Assumimos o risco Agora segurança e oportunidades eram nossas recompensas Parecia uma equação justa e simples Milhares de milhas oceânicas nos separaram do arame farpado das buscas policiais dos campos para os condenados dos campos para os refugiados Ainda não sei que os pesadelos desconhecem a geografia que a culpa e a ansiedade vagueiam sem fronteiras Por vinte minutos no convés superior de um navio de passageiros em pé sob o sol de outubro com minha filha nos braços Nova York à vista acreditei que o passado não podia me alcançar aqui Magda já tinha vindo Em julho ela finalmente recebera o visto e havia viajado de navio para Nova York onde agora vivia com tia Matilda e seu marido no Bronx Ela trabalhava em uma fábrica de brinquedos encaixando cabeças em pequenas girafas É preciso uma Elefánt para fazer uma girafa ela brincou numa carta Em mais uma hora ou duas eu abraçaria minha irmã minha corajosa irmã suas piadas prontas para fazer transcender o sofrimento Enquanto Marianne e eu contávamos os quepes brancos entre o navio e a terra firme e eu agradecia as bênçãos recebidas Béla saiu da cabine onde estava fechando a mala Meu coração se encheu novamente de ternura por meu marido Nas semanas de viagem na cama minúscula do quarto que tremeu e sacudiu na água negra no ar negro eu me senti mais apaixonada por ele do que em nossos três anos juntos mais do que no trem em nossa lua de mel quando concebemos Marianne Em Viena em maio ele não foi capaz de decidir de escolher até o último minuto De mala na mão Béla ficou atrás de uma pilastra na estação de trem onde encontraria Bandi e Marta Ele viu nossos amigos chegarem e nos procurarem na plataforma E continuou escondido Ele viu o trem chegar escutou o aviso para os passageiros embarcarem Viu as pessoas entrando no trem Viu Bandi e Marta na porta do vagão esperando por ele Então escutou o funcionário no altofalante chamando seu nome Ele queria se juntar aos amigos queria embarcar no trem e depois no navio para resgatar sua fortuna Mas ficou ali paralisado atrás da pilastra Os passageiros embarcaram Bandi e Marta também Quando as portas dos vagões fecharam Béla finalmente se forçou a andar Contra sua vontade contra todas as apostas que tinha feito para o que imaginou que seria um futuro seguro ele assumiu o maior risco de sua vida Foi embora Agora a poucos minutos de nossa nova vida nos Estados Unidos nada parecia mais forte ou mais profundo do que termos feito a mesma escolha de trocar a segurança por uma oportunidade para nossa filha e de recomeçarmos juntos do zero Seu compromisso com nossa filha e com essa nova aventura comigo me tocou profundamente Ainda assim Eu estava preparada para abandonar nosso casamento e levar Marianne para os Estados Unidos Embora fosse doloroso estava disposta a sacrificar nossa família nossa parceria as coisas que Béla não conseguia aceitar perder E assim começamos a vida nova em um patamar desigual Embora a devoção de Béla por nós duas o tivesse levado a abrir mão de tudo ele ainda estava atordoado com o que havia perdido O que para mim era alívio e alegria para ele era sofrimento Por mais feliz que eu estivesse com a vida nova dava para sentir que a perda de Béla colocava uma pressão perigosa em todas as incógnitas à frente Portanto havia sacrifício na essência de nossa escolha E havia também uma mentira o relatório médico as radiografias que ele colocou dentro da pasta com nossos pedidos de visto Não podíamos permitir que o fantasma da antiga doença de Béla a tuberculose impedisse nosso futuro então Csicsi se passou por Béla e foi comigo ao exame médico Carregamos as imagens dos pulmões de Csicsi translúcidos como água mineral Quando os funcionários da naturalização liberaram Béla para a imigração foi o corpo de Csicsi e seu histórico médico que eles legitimaram como saudável Eu queria respirar livremente Valorizar nossa segurança e nossa sorte como milagres não ter de defendêlas com rigor e cautela Queria ensinar minha filha a se sentir confiante onde ela pisasse Lá estava ela o cabelo emoldurando seu rosto as bochechas vermelhas por causa do vento Liberdade ela gritou satisfeita com a nova palavra Num repente peguei a chupeta que estava pendurada num cordão em volta do pescoço dela e joguei no mar Se eu tivesse me virado teria visto Béla pedindo prudência Mas não me virei Somos americanos agora Crianças americanas não usam chupetas eu disse de maneira impetuosa ao jogar no mar o símbolo de segurança de minha filha como se fosse confete Eu queria que Marianne fosse o que eu queria ser alguém que faz parte que não é perseguida pela ideia de ser diferente de ser defeituosa de brincar eternamente de piqueesconde numa corrida incessante para fugir das garras do passado Ela não reclamou Estava empolgada pela novidade de nossa aventura distraída por meu ato estranho e aceitando a minha lógica Nos Estados Unidos faremos como os americanos como se eu soubesse o que os americanos faziam Eu queria confiar na minha escolha em nossa nova vida então reneguei qualquer traço de tristeza ou de medo Quando desci pela rampa de madeira para nosso novo lar já estava usando uma máscara Eu havia fugido Mas ainda não estava livre C A P Í T U L O 1 2 Greener Novembro de 1949 Pego um ônibus em Baltimore Amanhecer cinzento Ruas molhadas Estou indo para o trabalho para a confecção onde passo o dia inteiro cortando fios soltos das bainhas de shorts de meninos ganhando 7 centavos de dólar por dúzia A confecção me faz lembrar da fábrica de linhas na Alemanha em que eu e Magda trabalhamos depois de sermos levadas de Auschwitz Ar poeirento e seco concreto frio máquinas tão barulhentas que a capataz precisa gritar para ser ouvida Reduzam as idas ao banheiro grita ela Mas eu escuto a capataz do passado aquela que nos disse que trabalharíamos até estarmos completamente exauridas e então seríamos mortas Trabalho sem parar Para maximizar minha produtividade e meu pequeno salário Mas também porque trabalhar sem pausas é uma antiga necessidade um hábito impossível de substituir Quando consigo me cercar de barulho e urgência o tempo todo não fico sozinha com meus pensamentos nem por um momento Trabalho tanto que minhas mãos tremem sem parar no escuro quando chego em casa Como tia Matilda e o marido não tinham espaço nem recursos para acolher minha família afinal Magda já era uma boca extra para alimentar começamos nossa nova vida não no Bronx como eu havia imaginado mas em Baltimore Fomos morar com o irmão de Béla George sua esposa e as duas filhinhas num apartamento abarrotado em um prédio sem elevador George era um advogado famoso na Tchecoslováquia mas em Chicago onde morou inicialmente ao imigrar para os Estados Unidos nos anos 1930 ele ganhava a vida como vendedor de vassouras e produtos de limpeza de porta em porta Agora em Baltimore ele vende seguros Tudo na vida de George é difícil baseado no medo desencorajador Ele me segue pelos cantos do apartamento observando cada movimento que faço e instando para que eu feche a lata de café com mais força Ele está zangado com o passado com o fato de ter sido atacado em Bratislava e roubado em Chicago nos primeiros dias de imigrante Ele está zangado com o presente Não nos perdoa por termos chegado sem um tostão por termos desistido da fortuna dos Eger Eu me sinto tão constrangida na presença dele que não consigo descer as escadas sem tropeçar Um dia quando entro no ônibus para ir trabalhar minha cabeça está tão entupida do meu próprio descontentamento já se preparando para o ritmo barulhento da fábrica e ao mesmo tempo refletindo sobre o comportamento desagradável de George além de obcecada com as preocupações sobre dinheiro que demoro a perceber que o ônibus não deu a partida O ônibus permanece parado e os outros passageiros me olham de maneira desaprovadora balançando as cabeças Começo a suar frio É a sensação que tive quando acordei com os nyilas armados batendo em nossa porta ao amanhecer O medo que senti quando o soldado alemão apontou uma arma para o meu peito depois que peguei as cenouras A sensação de que errei de que serei punida e que minha vida está em perigo Estou tão dominada pela sensação de perigo e de ameaça que não consigo entender o que aconteceu subi no ônibus do jeito europeu eu me sentei e esperei o trocador me abordar para vender um bilhete Esqueci de colocar meu cartão na caixa que recolhe as passagens Agora o motorista do ônibus está gritando comigo Pague ou desça Pague ou desça Mesmo que eu falasse inglês não seria capaz de entendêlo Estou aterrorizada por imagens de arame farpado e armas apontadas pela fumaça espessa que sai das chaminés e escurece minha realidade atual e pelas paredes de prisões do passado se fechando sobre mim É o contrário do que aconteceu quando dancei para Josef Mengele na primeira noite em Auschwitz Na época eu me transportei do barracão diretamente para o palco da Ópera de Budapeste Na época minha visão interior me salvou Agora minha vida interior me leva a interpretar um simples erro um malentendido como uma catástrofe Nada no presente está realmente errado não há nada que não possa ser corrigido facilmente O homem está zangado e frustrado porque ele me entendeu mal porque não consigo compreendêlo Há gritos e conflitos Porém minha vida não está em perigo Ainda assim é dessa forma que entendo a situação atual Perigo perigo morte Pague ou desça Pague ou desça grita o motorista Ele se levanta de seu lugar E vem na minha direção Caio no chão cubro o meu rosto Ele está em cima de mim agora segurando meu braço tentando me levantar Eu me encolho no chão do ônibus chorando tremendo Uma passageira se apieda de mim É imigrante como eu A passageira pergunta primeiro em ídiche depois em alemão se eu tenho dinheiro conta as moedas em minha mão suada me ajuda a voltar para o meu lugar e se senta ao meu lado até que eu respire normalmente O ônibus parte Greener idiota alguém fala dissimuladamente quando ela se levanta e volta para o lugar dela Greener é como são chamados os imigrantes que receberam o green card que garante direito a residência e trabalho nos Estados Unidos Quando conto a Magda sobre o incidente em uma carta transformoo em uma piada em um esquete de comédia sobre um imigrante Mas algo mudou em mim naquele dia Serão necessários mais vinte anos para eu dominar a linguagem e o treinamento psicológico e entender que estava tendo um flashback As sensações físicas inquietantes coração disparado palmas das mãos suadas visão reduzida experimentadas naquele dia e que continuarei a ter muitas vezes na vida mesmo agora aos 80 e tantos anos são respostas automáticas ao trauma É por isso que eu me oponho à definição patológica do estresse póstraumático chamandoo de uma doença Não é uma reação doentia em relação a um trauma mas uma reação comum e natural No entanto naquela manhã de novembro em Baltimore eu não sabia o que estava acontecendo comigo Achei que meu colapso nervoso significava que eu estava profundamente perturbada Gostaria de saber à época que eu não era uma pessoa debilitada que estava sofrendo as consequências de uma vida interrompida Sobrevivi a Auschwitz a Mauthausen e à Marcha da Morte porque me aproximei de meu mundo interior Encontrei esperança e fé na minha vida interior mesmo rodeada de inanição tortura e morte Após o primeiro flashback passei a acreditar que demônios viviam no meu mundo interior Que havia algo maligno dentro de mim Meu mundo interior já não me confortava Na verdade ele se tornou uma fonte de sofrimento memórias ininterruptas perdas e medo Às vezes na fila da peixaria quando o vendedor chamava o meu nome eu enxergava o rosto de Mengele sobre o dele Algumas manhãs quando entrava na fábrica eu via minha mãe ao meu lado tão nitidamente quanto o dia e depois ela virava de costas e se afastava Tentei banir as memórias do passado Achei que era uma questão de sobrevivência Somente depois de muitos anos entendi que fugir não cura o sofrimento Fugir faz tudo piorar Nos Estados Unidos eu estava mais distante geograficamente do que jamais estive de minha antiga prisão Mas aqui fiquei mais presa psicologicamente do que estava antes Ao fugir do passado e do medo não encontrei a liberdade Criei uma cela com meu pavor e selei a fechadura com silêncio Marianne enquanto isso desabrochava Eu desejava que ela fosse normal normal normal E ela era Apesar do meu medo de que ela descobrisse que estávamos pobres que sua mãe tinha medo o tempo todo que a vida nos Estados Unidos não era o que eu imaginava Marianne era uma criança feliz Aprendeu inglês rapidamente na creche que frequentava sem pagar graças à simpatia que a diretora Sra Bower tinha por imigrantes Tornouse a miniassistente da Sra Bower e ajudava quando as outras crianças choravam ou faziam birra Ninguém pediu que assumisse esse papel mas ela tinha uma sensibilidade inata à dor dos outros e confiava em sua própria força Béla e eu a chamávamos de pequena embaixadora A Sra Bower enviava livros para me ajudar a aprender inglês e também incentivar o aprendizado de Marianne Tentei ler O galinho Chicken Little Não consegui entender os personagens Quem é o patinho sortudo Quem é o gansinho Goosey Loosey Marianne ri de mim Ela me ensina novamente Ela finge irritação Finjo que estou brincando que estou apenas fingindo não entender Mais do que a pobreza eu temia constranger minha filha Eu temia que ela tivesse vergonha de mim Nos fins de semana ela me acompanhava à lavanderia e me ajudava a programar as máquinas depois me levava ao mercado para comprar manteiga de amendoim e uma dezena de outros alimentos sobre os quais eu nunca tinha ouvido falar e cujos nomes eu não conseguia soletrar ou pronunciar Em 1950 o ano em que Marianne fez 3 anos ela insistiu que comêssemos peru no Dia de Ação de Graças como suas colegas Como dizer a ela que não podemos comprar um Paro no supermercado na véspera do Dia de Ação de Graças e tenho sorte Havia uma promoção de frango a 29 centavos de dólar por cada 450 gramas Escolho o menor Veja querida eu a chamo quando chego em casa Temos um peru um bebê peru Quero muito me encaixar por ela por nós três A alienação é a minha condição crônica mesmo entre nossos amigos imigrantes judeus No inverno em que Marianne completa 5 anos somos convidados para uma festa de Hanuká em que todas as crianças se revezam cantando canções típicas O anfitrião convida Marianne para cantar Estou muito orgulhosa de ver minha filha inteligente e precoce que já fala inglês como se fosse sua primeira língua feliz e com os olhos brilhando ao aceitar com segurança o convite para assumir seu lugar no centro da sala Depois das aulas do jardim de infância ela faz atividades em um programa coordenado por um judeu que se converteu ao Jews for Jesus uma organização judaica que prega a conversão ao cristianismo Marianne sorri para os convidados depois fecha os olhos e começa a cantar Jesus me ama isso eu sei pois a Bíblia assim me diz Os convidados olham para ela e para mim Minha filha desenvolveu a habilidade que mais quero que ela tenha a habilidade de se sentir à vontade em qualquer lugar Agora é exatamente sua falta de compreensão dos códigos que separam as pessoas que me faz querer me enfiar debaixo do assoalho e desaparecer Esse constrangimento essa sensação de exílio mesmo em minha própria comunidade não vem de fora Vem de dentro Foi a parte de mim que criou a própria prisão que achava que eu não merecia ter sobrevivido que eu nunca seria digna o suficiente para pertencer Marianne floresceu nos Estados Unidos mas Béla e eu nos esforçávamos muito Eu ainda sofria com meu próprio medo com as memórias aterrorizantes e o pânico que fervilhava logo abaixo da superfície Eu temia o ressentimento de Béla Ele não precisava se esforçar para aprender inglês como eu Quando garoto havia estudado em um colégio interno em Londres e falava um inglês tão fluente quanto tcheco eslovaco alemão e diversas outras línguas Porém sua gagueira ficou mais pronunciada nos Estados Unidos um sinal para mim de que ele estava atormentado pela escolha que eu havia lhe imposto Seu primeiro trabalho foi como carregador em um depósito Sabíamos que o esforço de carregar caixas pesadas era perigoso para alguém com tuberculose mas George e sua esposa Duci que era assistente social e nos ajudou a encontrar os empregos nos convenceram que tínhamos sorte por ter trabalho O salário era péssimo o trabalho exigente e humilhante mas era a realidade dos imigrantes Os imigrantes não trabalhavam como médicos advogados ou prefeitos independentemente de sua formação e experiência exceto minha notável irmã Klara que garantiu uma posição como violinista na Orquestra Sinfônica de Sydney logo que ela e Csicsi emigraram Os imigrantes dirigiam táxis trabalhavam por empreitada nas fábricas e abasteciam prateleira de mercados Eu internalizei o sentimento de desmerecimento Béla lutava contra essa sensação Ele se tornou malhumorado e explosivo Em nosso primeiro inverno em Baltimore Duci chegou em casa com um casaco de neve que comprou para Marianne O casaco tinha um zíper comprido Marianne quis experimentálo imediatamente Demorei séculos para colocar o casaco em cima das roupas de Marianne mas finalmente ficamos prontas para ir ao parque Descemos os cinco lances de escadas até a rua Quando chegamos na calçada Marianne disse que precisava fazer xixi Por que você não falou antes explode Béla Ele nunca havia gritado com Marianne Vamos sair desta casa sussurro naquela noite Como quiser princesa rosna ele Não o reconheço A raiva dele me assusta Não a raiva que eu mais temo é a minha própria Conseguimos guardar dinheiro suficiente e nos mudamos para um quartinho de serviço nos fundos de uma casa em Park Heights o maior bairro judeu de Baltimore Nossa senhoria é uma imigrante da Polônia mas está nos Estados Unidos há décadas desde bem antes da Guerra Ela nos chama de greeners e ri de nosso sotaque Ela mostra o banheiro na expectativa de que fiquemos encantados com a água encanada Penso em Mariska e no sininho que eu tocava quando queria mais pão É mais fácil fingir surpresa para atender as expectativas da nossa senhoria sobre quem somos do que explicar até para mim mesma o abismo entre o antes e o agora Béla Marianne e eu dividimos o quarto Apagamos a luz quando Marianne vai dormir e nos sentamos no escuro O silêncio entre nós dois não é do tipo íntimo ele é tenso e carregado uma corda começando a ceder com o peso de sua carga Nós nos esforçamos para ser uma família normal Em 1950 esbanjamos e vamos ao cinema ao lado da lavanderia na Avenida Park Heights Enquanto nossas roupas giram na máquina levamos Marianne para ver Os sapatinhos vermelhos um filme escrito estamos orgulhosos de saber por Emeric Pressburger um imigrante judeu húngaro Lembro muito do filme porque ele me emocionou de duas formas Sentada no escuro comendo pipoca com minha família senti um contentamento que havia se tornado raro para mim uma confiança de que tudo estava bem que podíamos ter uma vida feliz no pósguerra Mas o próprio filme os personagens a história me derrubaram pela força do reconhecimento Algo rompeu a minha máscara cautelosa e encarei diretamente o meu desejo O filme é sobre uma dançarina Vicky Page que atrai a atenção de Boris Lermontov o diretor artístico de uma famosa companhia de balé Ela faz bem o grand battement ela dança com paixão O lago dos cisnes e sente falta da atenção e consideração de Lermontov Não consigo tirar os olhos da tela Parece que estou assistindo à minha própria vida à vida que eu teria tido se não fosse Hitler se não tivesse havido uma guerra Por um momento acho que Eric está no assento ao lado esqueço que tenho uma filha Tenho apenas 23 anos mas a sensação é a de que a melhor parte da minha vida acabou Em determinado ponto no filme Lermontov pergunta a Vicky Por que você quer dançar Ela responde Por que você quer viver e Lermontov responde Não sei exatamente por quê mas eu preciso Vicky então diz Essa também é a minha resposta Antes de Auschwitz mesmo em Auschwitz eu teria dito o mesmo Havia uma luz interior permanente uma parte de mim que sempre festejou e dançou que nunca desistiu da vida Agora meu propósito básico é agir de tal forma que minha filha nunca conheça a minha dor É um filme triste O sonho de Vicky não se realiza como ela imaginou Quando ela dança o papel principal em um novo balé de Lermontov é perseguida por demônios Essa parte do filme é tão aterrorizante que eu mal posso assistir As sapatilhas de balé vermelhas de Vicky parecem assumir o controle elas a fazem dançar quase até a morte ela está dançando através de seus próprios pesadelos zumbis e cenários áridos um parceiro de dança feito de papel de jornal se desintegrando mas não consegue parar de dançar não consegue acordar Vicky tenta desistir de dançar Vicky esconde as sapatilhas vermelhas em uma gaveta Ela se apaixona por um compositor e se casa com ele No fim do filme é convidada para dançar mais uma vez no balé de Lermontov Seu marido lhe implora que não vá Lermontov a avisa Ninguém pode ter duas vidas Ela precisa escolher O que leva uma pessoa a fazer uma coisa e não outra eu me questiono Vicky calça as sapatilhas de balé vermelhas novamente Dessa vez elas a fazem dançar na beira de um edifício até morrer As outras dançarinas continuam o balé sem ela que vira um ponto de luz no espaço vazio onde estaria dançando Não é um filme sobre o trauma Na realidade ainda não entendo que estou experimentando um trauma Mas Os sapatinhos vermelhos me fornece um vocabulário de imagens me ensina algo sobre mim mesma e sobre a tensão entre minhas experiências internas e externas Há alguma coisa na maneira como Vicky coloca as sapatilhas vermelhas pela última vez e levanta voo que não parece uma escolha Parece uma atitude compulsiva Automática Do que ela tinha tanto medo O que a fez correr Seria algo com o qual ela não poderia viver ou algo sem o qual ela não poderia existir Você teria me trocado pela dança pergunta Béla no ônibus de volta para casa Imagino que ele está pensando da noite em Viena em que eu disse a ele que estava levando Marianne para os Estados Unidos com ou sem ele Ele já sabe que eu sou capaz de escolher alguém ou outra coisa Desarmo sua pergunta com uma evasiva Se você tivesse me visto dançar na época não pediria que eu escolhesse respondo Você nunca viu um grand battement como o meu Eu finjo eu finjo Em algum lugar no fundo do meu peito eu seguro um grito Não tive escolha O silêncio me deixa furiosa Hitler e Mengele escolheram por mim Não tive escolha Béla é o primeiro a entrar em colapso sob a pressão Acontece no trabalho Ele está levantando uma caixa e cai no chão sem conseguir respirar No hospital uma radiografia revela que a tuberculose voltou Ele parece mais desestruturado e pálido do que no dia em que o tirei da prisão o dia em que fugimos para Viena Os médicos o transferem para um hospital especializado em tuberculose Levo Marianne para visitálo todos os dias depois do trabalho mas tenho medo de que ela o veja cuspindo sangue que perceba a possibilidade de morte apesar de nossos esforços para esconder dela a gravidade da doença Ela tem 4 anos já sabe ler e traz livros ilustrados da Sra Bower para entreter o pai Ela também avisa às enfermeiras quando ele termina de comer ou precisa de mais água Sabe o que iria animar papai pergunta ela Uma irmãzinha Não nos permitimos tentar outro filho porque somos muito pobres É um alívio não ter a pressão da fome de outra pessoa pesando sobre a recuperação de Béla e sobre meu salário miserável Mas corta o meu coração ver a solidão de minha filha sua ânsia por uma companhia Isso me deixa com saudade de minhas próprias irmãs Magda conseguiu um emprego melhor em Nova York onde usa as habilidades de costura que aprendeu com nosso pai para fazer casacos para uma grife Ela não quer recomeçar em outra cidade mas eu imploro que venha para Baltimore Em Viena em 1949 por um breve período foi assim que imaginei minha vida criar Marianne com minha irmã em vez de com meu marido Era uma questão de escolha um sacrifício para evitar que minha filha vivesse em uma zona de guerra Agora se Béla morrer ou se ficar inválido será uma necessidade Moramos em um apartamento um pouco maior mas mesmo com os dois trabalhando lutamos para ter o que comer Não consigo imaginar como pagarei por tudo sozinha Magda concorda em pensar sobre o assunto Não se preocupe diz Béla tossindo no lenço Não vou deixar nossa menina crescer sem o pai Não vou Ele tosse e gagueja tanto que as palavras mal conseguem sair Béla de fato se recupera mas ainda está fraco Não tem condições de reassumir seu trabalho no depósito mas vai viver A equipe médica do hospital seduzida pelo bom humor e pelo charme de Béla promete ajudálo e encontrar um caminho profissional que nos tire da pobreza e lhe proporcione muitos anos de saúde Béla faz um teste vocacional que considera bobo até os resultados voltarem Ele tem aptidão para uma carreira como maestro ou contador o teste revela Nós podemos fazer uma vida nova no balé brinca ele Você como bailarina e eu como maestro da orquestra Você algum dia quis estudar música quando era jovem É perigoso brincar de e se com o passado Estudei música quando era jovem Como fui esquecer Ele estudou violino como minha irmã Ele escreveu sobre isso naquelas cartas quando me cortejava Ouvilo falar sobre isso agora é como ouvir que ele costumava usar um nome diferente Eu era muito bom Meus professores chegaram a dizer que eu poderia ir para o Conservatório e eu teria ido se não tivesse que tocar os negócios da família Meu rosto esquenta De repente estou zangada Não sei por quê Quero dizer algo para machucálo mas não sei se é a mim mesma que quero castigar Pense só digo se você tivesse continuado teria conhecido Klara primeiro em vez de mim Béla tenta compreender minha expressão Dá para vêlo decidindo se vai me provocar ou me tranquilizar Você realmente quer me convencer que eu não sou feliz por estar casado com você Foi um violino Não importa agora É então que entendo o que tem me chateado É a aparente facilidade com que meu marido deixou de lado um sonho antigo Se algum dia Béla se sentiu angustiado por ter desistido da música ele escondeu de mim O que havia de errado comigo para que eu ainda tivesse tanto desejo pelo que não foi Béla mostra ao antigo patrão no depósito os resultados do teste vocacional O chefe o apresenta a seu contador um homem generoso que concorda em colocá lo como assistente enquanto Béla frequenta um curso de contabilidade e se esforça para se diplomar Sintome inquieta Estive tão envolvida com preocupações financeiras e com a doença de Béla tão envolvida na rotina dura na fábrica e contando moedas para comprar mantimentos que as boas notícias me deixam sem rumo O alívio das preocupações abre um vazio inesperado que não sei como preencher Béla tem novas perspectivas um novo caminho mas eu não Troco de emprego várias vezes na tentativa de ganhar mais de me sentir melhor comigo mesma O dinheiro extra ajuda e os avanços levantam a moral por um tempo Mas a sensação não é duradoura Em uma empresa de seguros sou promovida de operadora de mimeógrafo e vou para o departamento de contabilidade Meu supervisor percebeu que eu trabalho duro e decidiu me ensinar Estou feliz na companhia das outras secretárias feliz de ser uma delas até que minha nova amiga me aconselha Nunca sente ao lado dos judeus no almoço eles fedem No fim das contas não faço parte Preciso esconder quem eu sou Na fábrica de malas onde vou trabalhar depois tenho um chefe judeu e acho que finalmente vou me encaixar Sintome confiante aceita Apesar de ser assistente administrativa certo dia que o telefone toca sem parar me ofereço para atender já que as secretárias estavam sobrecarregadas Meu chefe sai de seu escritório gritando Quem lhe deu autorização Você está querendo arruinar minha reputação Nenhum greener representará esta empresa Estou sendo claro O problema não é a bronca O problema é que acredito em sua avaliação sobre a minha falta de valor No verão de 1952 logo após a recuperação de Béla e alguns meses antes de Marianne fazer 5 anos Magda se muda para Baltimore Ela fica conosco por algumas semanas até encontrar um trabalho Preparamos uma cama para ela no espaço onde comemos perto da porta da frente O apartamento é abafado no verão mesmo à noite então Magda deixa a porta entreaberta quando vai dormir Cuidado avisa Béla Não sei em que tipo de palácio você morava no Bronx mas este bairro não é seguro Se você deixar a porta aberta alguém pode entrar Bem que eu queria ronrona Magda dando uma piscadela Minha irmã Seu sofrimento é visível apenas no humor que ela usa para transcendêlo Organizamos uma festinha de boasvindas para ela George e Duci vieram George reprova o pequeno gasto e alguns vizinhos do prédio incluindo nosso senhorio que traz seu amigo Nat Shillman um engenheiro naval aposentado Magda conta uma história engraçada sobre sua primeira semana nos Estados Unidos quando tia Matilda lhe comprou um cachorroquente na rua Na Europa quando você compra um cachorroquente de um vendedor de rua sempre recebe duas salsichas e elas vêm cobertas de chucrute e cebolas Matilda vai pagar pelo meu cachorroquente e volta com um pãozinho insignificante com uma salsichinha Achei que ela era pãoduro demais para pagar o preço cheio para duas salsichas ou que estava fazendo uma insinuação por conta do meu peso Fiquei magoada durante meses até o dia em que comprei meu próprio cachorroquente e vi que é assim que ele é feito aqui Todos os olhos estão em Magda em seu rosto expressivo esperando pela próxima coisa engraçada que ela vai dizer E ela tem mais sempre tem Nat está visivelmente fascinado por ela Quando os convidados vão embora e Marianne cai no sono sento com Magda em sua cama para fofocar como fazíamos quando éramos garotas Ela pergunta o que eu sei sobre Nat Shillman Sei que ele tem a idade de papai diz ela mas estou com uma sensação boa sobre ele Conversamos até eu quase pegar no sono na cama dela Não quero parar Há uma coisa que preciso perguntar a Magda algo que tem a ver com a minha angústia Mas se eu perguntar a ela sobre o medo o vazio então terei que admitir esses sentimentos e estou muito acostumada a fingir que eles não estão lá Você é feliz finalmente reúno coragem para perguntar Quero que ela diga que é para que eu possa ser também Quero que ela diga que nunca será feliz não de verdade de modo que eu saiba que a angústia não existe apenas em mim Dicuka aqui vai um conselho de sua irmã mais velha Ou você é sensível ou não é Quando você é sensível sofre mais Será que vamos ficar bem pergunto Algum dia Sim diz ela Não sei Mas uma coisa é certa Hitler com certeza nos ferrou Béla e eu agora ganhamos 60 dólares por semana o suficiente para tentarmos um segundo filho Fico grávida Minha filha nasce no dia 10 de fevereiro de 1954 Quando acordo da anestesia que os médicos americanos rotineiramente aplicavam em todas as mulheres em trabalho de parto na época ela está no berçário Peço para segurar minha bebê quero amamentála Quando a enfermeira a traz dormindo vejo que é perfeita Não tão grande quanto a irmã quando nasceu mas seu nariz é bem pequenininho e as bochechas macias Béla traz Marianne agora com 6 anos para ver a bebê Eu tenho uma irmã Eu tenho uma irmã comemora Marianne como se eu tivesse colocado dinheiro em um envelope e encomendado uma irmã para ela em um catálogo como se eu tivesse a capacidade de sempre atender os seus desejos Ela logo terá também uma prima pois Magda se casou com Nat Shillman em 1953 e está grávida de uma menina que nascerá em outubro Ela se chamará Ilona em homenagem à nossa mãe Batizamos nossa segunda filha de Audrey como Audrey Hepburn Ainda estou atordoada por causa da anestesia Nem a intensidade do trabalho de parto nem conhecer e amamentar minha bebê pela primeira vez ganharam do entorpecimento da minha vida escondida É uma reação automática esperar que algo ruim aconteça depois de algo bom Nos primeiros meses de vida de Audrey Béla estuda para seu exame de certificação de contador como se estivesse se preparando para o teste final para a prova crucial que determinará para sempre se ele encontrará ou não o seu lugar e a paz consigo mesmo e com nossas escolhas Ele não passa no teste Além disso dizem que com sua gagueira e seu sotaque nunca conseguirá um emprego independentemente de ser capaz de obter o certificado Sempre haverá uma pedra no caminho diz ele não importa o que eu faça Eu contesto o que ele diz e o tranquilizo Afirmo que encontraremos uma maneira mas não consigo calar a voz de minha irmã Klara em minha cabeça Dois complicados Como isso vai funcionar Choro no banheiro Faço isso em silêncio e saio fingindo estar animada Ainda não sei que o medo quando mantido escondido apenas se torna mais forte Não sei que meus hábitos de suprimir tudo de aplacar e de fingir estão apenas nos fazendo piorar C A P Í T U L O 1 3 Você esteve lá No verão de 1955 quando Marianne tinha 7 anos e Audrey 1 enchemos nosso velho Ford cinza de malas e saímos de Baltimore em direção a El Paso Texas Desmotivado pela falta de perspectivas de emprego cansado dos ressentimentos e julgamentos do irmão e preocupado com a própria saúde Béla entrou em contato com o primo Bob Eger em busca de aconselhamento Bob era filho adotivo do tioavô de Béla Albert que imigrou para Chicago com dois irmãos no início dos anos 1900 deixando o quarto irmão o avô de Béla em Prešov para administrar o negócio que Béla herdou após a guerra Foram os Egers de Chicago que financiaram a imigração de George para a América nos anos 1930 Eles também garantiram a oportunidade de obtermos nossos vistos ao registrarem a família Eger antes da guerra Eu era grata pela generosidade e visão dos Egers de Chicago sem os quais nunca poderíamos ter um lar nos Estados Unidos Mas fiquei preocupada quando Bob que vivia com a esposa e os dois filhos em El Paso disse a Béla Venha para o Oeste Não queria entrar em outro beco sem saída disfarçado de oportunidade Bob nos tranquilizou Segundo ele a fronteira era o lugar perfeito para começar do zero para se reinventar A economia estava crescendo em El Paso e numa cidade de fronteira os imigrantes eram menos segregados e marginalizados Ele ajudou Béla a encontrar um emprego como assistente de um contador profissional com um salário duas vezes maior do que tinha em Baltimore O ar do deserto será bom para os meus pulmões disse Béla Podemos alugar uma casa em vez de outro apartamento minúsculo Então eu concordei Tentamos transformar a mudança em uma aventura divertida em férias Dirigimos por estradas com paisagens deslumbrantes paramos em motéis com piscinas Para sobrar tempo para um mergulho refrescante antes do jantar pegávamos a estrada bem cedo Apesar da angústia com a mudança do custo da gasolina dos motéis e das refeições em restaurantes além dos quilômetros separando Magda de mim novamente me vi sorrindo com mais frequência Não a máscara de um sorriso desgastado para tranquilizar a família O sorriso verdadeiro marcado nas bochechas e nos olhos Senti uma camaradagem nova com Béla que ensinou piadas bobas a Marianne e brincou de jogar Audrey na água quando estávamos na piscina A primeira coisa que notei em El Paso foi o céu Aberto limpo vasto As montanhas ao norte da cidade também atraíram meu olhar Eu estava sempre olhando para cima Em determinadas horas do dia o ângulo do sol transformava a montanha num recorte de papelão desbotado num cenário de cinema os picos de um marrom monótono Então a luz mudava e as montanhas ficavam rosadas alaranjadas roxas vermelhas douradas azulescuras a cordilheira surgindo como o fole de um acordeão esticado expondo todas as suas dobras A cultura também me impressionou Eu esperava encontrar uma cidade de fronteira empoeirada e isolada de um filme de faroeste um lugar com homens estoicos e solitários e mulheres mais solitárias ainda Mas El Paso parecia mais europeia e cosmopolita do que Baltimore Era uma cidade bilíngue multicultural e sem uma segregação rígida E havia a fronteira em si a união dos mundos El Paso e Juárez em Chihuahua no México não eram cidades tão separadas assim pareciam as duas metades do mesmo todo O Rio Grande dividia a cidade entre os dois países mas a fronteira era tão arbitrária quanto marcante Lembreime de minha cidade natal Košice que virou Kassa e depois voltou a ser Košice em que a fronteira mudou tudo e ao mesmo tempo não mudou nada Meu inglês ainda era básico e eu não falava nada de espanhol Mas me senti menos marginalizada e condenada ao ostracismo do que em Baltimore onde morávamos em um bairro de judeus imigrantes na expectativa de encontrar acolhimento mas que em vez disso eu me sentia exposta Em El Paso nós fazíamos parte da mistura Certa tarde logo após nossa mudança estou no parque do bairro com Audrey quando ouço uma mãe chamar os filhos em húngaro Observo essa outra mãe húngara por alguns minutos esperando reconhecêla mas então rio de mim mesma Que ingenuidade imaginar que só porque a língua dela é familiar um espelho da minha própria voz podíamos ter algo em comum Ainda assim não consigo parar de acompanhar a brincadeira entre ela e os filhos não consigo ignorar a sensação de que a conheço De repente me lembro de uma coisa em que não penso desde a noite do casamento de Klara o cartãopostal preso no espelho de Magda em Košice A letra manuscrita sobre a imagem da ponte de El Paso Como pude esquecer que dez anos antes Laci Gladstein se mudou para essa cidade Laci o jovem que foi liberado conosco de Gunskirchen que estava no teto do trem que levou Magda e eu de Viena até Praga que segurou nossas mãos para nos confortar que eu achava que poderia se casar com Magda um dia que tinha vindo para El Paso trabalhar na loja de móveis dos tios para guardar dinheiro para a faculdade de medicina El Paso o lugar que no cartãopostal parecia o fim do mundo o lugar onde eu vivia agora Audrey me tira do devaneio pedindo para brincar no balanço Quando eu a pego no colo a húngara se aproxima com o filho Falo com ela em húngaro sem perceber Você é húngara digo Talvez conheça um velho amigo que veio para El Paso depois da guerra Ela me olha daquele jeito distraído que os adultos olham para as crianças como se minha pergunta fosse absurdamente ingênua Quem é seu amigo pergunta ela querendo me ajudar Laci Gladstein Lágrimas correm de seus olhos Sou irmã dele grita ela Ela entendeu meu código Velho amigo Depois da guerra Ele é médico diz ela Agora é conhecido como Larry Gladstone Como posso explicar o que senti naquele momento Dez anos haviam se passado desde que tinha viajado com Laci e outros sobreviventes expatriados em cima de um trem Naquela década ele havia realizado seu sonho de se tornar médico Saber disso faz com que nenhuma esperança ou ambição pareça fora de alcance Ele tinha se reinventado nos Estados Unidos Então eu também podia Mas isso é apenas metade da história Em pé num parque sob o sol quente do deserto eu estava de fato no fim do mundo mais longe no tempo e no espaço do que jamais estive daquela garota deixada para morrer em uma pilha de corpos em uma floresta úmida na Áustria Ao mesmo tempo nunca estive mais perto dela porque estava quase reconhecendo a existência dela para uma estranha encontrando um fantasma do passado em plena luz do dia enquanto minha filha pedia que eu empurrasse o balanço mais alto Talvez seguir em frente também signifique voltar Encontro o telefone de Larry Gladstone na lista telefônica e espero uma semana ou mais para ligar Sua esposa uma americana atende o telefone Ela anota a mensagem e pergunta diversas vezes como se escreve o meu nome Digo a mim mesma que ele não vai se lembrar de mim Naquela noite Bob e sua família vêm jantar em nossa casa Marianne pediu para eu fazer hambúrgueres e eu preparo a carne moída do jeito que minha mãe faria misturada com ovo alho e farinha de rosca depois enrolada como almôndegas e servida com couve de Bruxelas e batatas cozidas com sementes de cominho Quando levo a refeição à mesa Marianne revira os olhos Mãe diz ela eu queria hambúrgueres à moda americana Ela quer a carne achatada e servida entre dois pedaços de pão sem gosto com batatas fritas oleosas e um bocado de catchup insosso Ela está constrangida perante Dickie e Barbara seus primos americanos Sua desaprovação dói Fiz o que tinha prometido a mim mesma que não faria me sentir envergonhada O telefone toca e fujo da sala para atender Edith diz o homem Sra Eger Aqui é o Dr Larry Gladstone Ele fala em inglês mas sua voz é a mesma de antes Ela traz o passado para a minha cozinha o vento cortante no teto do trem Fico tonta Estou faminta como estava na época meio morta de fome Minha coluna lesionada dói Laci respondo com uma voz distante como se viesse pelo rádio de um outro cômodo Nosso passado em comum dominante embora não mencionado Nos encontramos novamente diz ele Conversamos em húngaro Ele conta sobre a esposa e seu trabalho filantrópico sobre as três filhas eu falo sobre minhas filhas e sobre as aspirações de Béla de se qualificar como contador Ele me convida a visitar seu consultório convida minha família para jantar na casa dele Portanto começa novamente uma amizade que vai durar o resto de nossas vidas Quando desligo o telefone o céu está ficando rosa e dourado Escuto as vozes de minha família na sala de jantar Dickie o filho de Bob pergunta à mãe sobre mim se eu sou realmente americana e por que meu inglês é tão ruim Meu corpo fica tenso do jeito que costuma ficar quando o passado se aproxima muito É como a mão que se projeta na frente das minhas filhas quando o carro freia muito abruptamente Um reflexo de proteção Desde a gravidez de Marianne quando desafiei o conselho do médico e decidi que minha vida sempre defenderia outra vida resolvi não deixar que os campos de extermínio projetassem uma sombra sobre as minhas filhas Essa convicção virou um propósito minhas filhas nunca poderão saber Elas nunca vão me imaginar esquelética e faminta sonhando com o strudel de minha mãe sob o céu enfumaçado Não serei uma imagem que elas não conseguem tirar da cabeça Vou protegêlas poupálas Mas as perguntas de Dickie me lembram que embora eu tenha optado do silêncio e também conte com a solidariedade ou a camuflagem pelo silêncio dos outros não posso decidir o que as outras pessoas dizem ou fazem quando não estou presente O que minhas filhas devem ouvir O que os outros dizem a elas apesar de meus esforços para manter a verdade escondida Para meu alívio a mãe de Dickie muda o rumo da conversa Ela sugere que Dickie e Barbara conversem com Marianne sobre os melhores professores da escola que ela iniciará no outono Será que Béla a instruiu para manter a conspiração do silêncio Ou ela intuiu É algo que ela faz para o meu bem para o bem das crianças para o bem dela Mais tarde quando eles se reúnem na porta na hora de ir embora escuto a mãe de Dickie sussurrar para ele em inglês Nunca pergunte a tia Dicu sobre o passado Não é uma coisa que conversamos Minha vida é um tabu na família Meu segredo está salvo Existem sempre dois mundos O que eu escolho e o que renego mas que insiste em se infiltrar mesmo sem a minha permissão Em 1956 Béla passa no exame de capacitação para contador e obtém o certificado Alguns meses antes de nosso terceiro filho Johnny nascer compramos uma casa modesta de três quartos em Fiesta Drive Não há nada atrás da casa a não ser deserto o chocalho das cobras e flores rosa cinza e vermelhas Escolhemos móveis de cores claras para mobiliar a sala de estar e de TV Lemos as manchetes dos jornais enquanto comemos o mamão papaia fresco que Béla compra no mercado dos produtores de Juárez depois de cruzar a fronteira nas manhãs de domingo Na Hungria há um levante com tanques soviéticos reprimindo a rebelião anticomunista Béla é lacônico com as meninas sua gagueira volta a piorar Está quente Estou com a barriga enorme Ligamos o climatizador e nos reunimos diante da TV na área de lazer para assistir à transmissão dos Jogos Olímpicos de verão em Melbourne Ligamos a TV bem na hora em que Ágnes Keleti uma judia de Budapeste da equipe feminina de ginástica se aquece para fazer sua rotina de solo Ela tem 35 anos é seis anos mais velha do que eu Se ela tivesse sido criada em Kassa ou eu em Budapeste teríamos treinado juntas Prestem atenção diz Béla para as meninas Ela é húngara como nós Assistir a Ágnes Keleti é como assistir à minha outra metade meu outro eu Aquela que não foi enviada para Auschwitz Keleti depois eu fico sabendo comprou documentos de uma menina cristã em Budapeste e fugiu para uma vila remota onde esperou a guerra acabar trabalhando como empregada doméstica Aquela cuja mãe sobreviveu Aquela que retomou a antiga vida antes da guerra que não deixou as dificuldades ou a idade destruírem seu sonho Ela levanta os braços alonga o corpo longilíneo está pronta para começar Béla torce enlouquecidamente Audrey o imita Marianne me observa a maneira como eu me inclino em direção à TV Ela não sabe que um dia fui ginasta muito menos que a mesma guerra que interrompeu a vida de Ágnes Keleti também interrompeu e ainda atrapalha a minha vida Mas percebo que minha filha está atenta à minha respiração suspensa à maneira como sigo o corpo de Keleti com o meu próprio corpo não apenas com os olhos Béla Marianne e Audrey aplaudem cada salto Acompanho sem fôlego o quanto Keleti está lenta e controlada quando ela se inclina sobre as pernas até tocar o chão e em seguida gira a partir de uma inclinação sentada frontal para um arco para trás e para cima em uma parada de mão tudo com movimentos graciosos e fluidos Sua série termina A concorrente soviética sobe no tablado Por causa do levante na Hungria as tensões entre os atletas húngaros e soviéticos estão especialmente preocupantes Béla vaia aos gritos A pequena Audrey de 2 anos faz o mesmo Digo aos dois para se calarem Observo Larisa Latynina da maneira que os juízes observam da maneira que Keleti deve estar observando Vejo que o grand battement dela talvez seja um pouco mais alto do que o de Keleti vejo a leveza de seus saltos a maneira como ela aterrissa num espacate completo Marianne dá um suspiro de aprovação Béla vaia novamente Ela é muito boa papai diz Marianne Ela é de um país de opressores e agressores diz Béla Ela não escolheu onde nasceu digo Béla dá de ombros Experimente girar assim quando seu país está sob ataque diz ele Nesta casa nós torcemos pelas húngaras No fim Keleti e Latynina dividem o ouro O ombro de Latynina encosta no de Keleti quando as duas se perfilam lado a lado na cerimônia de premiação Keleti faz caretas no pódio Mamãe por que você está chorando me pergunta Marianne Não estou respondo Negar Negar Negar Quem estou protegendo Minha filha Ou eu mesma Marianne fica cada vez mais curiosa e é uma leitora voraz Depois de ler todos os livros na seção infantil da biblioteca pública de El Paso ela começa a vasculhar as estantes de nossa casa lê meus livros de filosofia e literatura e também os livros de história de Béla Em 1957 quando completa 10 anos ela senta Béla e eu no sofá bege na sala de TV fica em pé na nossa frente como uma pequena professora e abre um livro que diz ter encontrado escondido atrás de outros em uma das prateleiras Ela aponta para a foto de uma pilha de cadáveres esqueléticos nus O que é isso pergunta Estou suando a sala gira Eu devia ter previsto que esse momento chegaria mas é tão surpreendente espantoso e aterrorizante para mim quanto entrar em casa e descobrir que o fosso do jacaré da praça San Jacinto foi instalado em nossa sala de jantar Encarar a verdade e encarar minha filha encarando a verdade é como enfrentar um monstro Saio correndo da sala para vomitar na pia do banheiro Escuto Béla contando à nossa filha sobre Hitler sobre Auschwitz Escuto Béla dizendo as palavras terríveis Sua mãe esteve lá Eu podia quebrar o espelho Não Não Não Quero gritar Eu não estive lá O que eu quero dizer é Isso não é um peso para você carregar Sua mãe é muito forte escuto Béla dizendo a Marianne Mas você precisa entender que é filha de uma sobrevivente você precisa sempre sempre protegêla Poderia ter sido uma oportunidade Para acalmar Marianne Para aliviála da necessidade de se preocupar ou ter pena de mim De dizer a ela o quanto seus avós a amariam De dizer a ela Tudo bem estamos seguras agora Mas não consigo sair do banheiro Não confio em mim mesma Se eu disser uma palavra sobre o passado vou ativar a raiva e a perda vou me afundar na escuridão e levála para lá junto comigo Foco nas crianças nas coisas que posso fazer para nos sentirmos seguros aceitos e felizes em nossa nova casa Há os rituais diários os destaques da semana e das estações do ano as coisas que fazemos por prazer as coisas com que contamos a prática incomum de Béla raspar sua cabeça calva pela manhã antes de levar Audrey para a escola de carro Béla indo fazer compras no mercado no imenso deserto atrás da nossa casa Inevitavelmente esqueço de acrescentar algo à lista e ligo para a loja à procura dele Os funcionários da mercearia conhecem a minha voz e o chamam pelo altofalante Sr Eger sua esposa está no telefone Eu cuido de nosso jardim corto a grama trabalho meio expediente no escritório de Béla que virou o contador querido e confiável de todos os imigrantes bemsucedidos em El Paso sírios mexicanos italianos judeus europeus Aos sábados as crianças o acompanham nas visitas aos clientes Se eu ainda não soubesse quanto Béla era adorado veria o amor de seus clientes por ele na afeição com que tratam nossos filhos Aos domingos Béla vai a Juárez comprar frutas na mercearia do Chuy e fazemos um grande brunch para a família em nossa casa escutamos discos dos musicais da Broadway cantamos juntos as músicas dos shows Béla consegue cantar sem gaguejar e depois vamos nadar na Associação Cristã de Moços com as crianças Vamos à praça San Jacinto no centro de El Paso no dia de Natal Não celebramos o Natal com presentes mas as crianças ainda assim escrevem cartas ao Papai Noel Trocamos presentes práticos como meias e roupas nos dias de Hanuká e comemoramos o anonovo com muita comida e com o desfile Sun Carnival que apresenta a rainha do verão as bandas escolares e os homens do Rotary Club com suas motocicletas Na primavera fazemos piqueniques ao ar livre em White Sands e em Santa Fe No outono fazemos compras para a volta às aulas Só de passar as mãos pelas roupas nas araras eu sei quais são os melhores tecidos e tenho habilidade para encontrar as melhores roupas pelos preços mais baixos Béla e eu temos esses costumes táteis ele na escolha de alimentos eu na escolha de roupas Vamos às fazendas mexicanas para a colheita do outono e nos fartamos de tamales caseiros Comida é amor Quando nossos filhos trazem boas notas nas cadernetas nós os levamos para tomar banana split na sorveteria atrás de casa Quando Audrey completa 9 anos faz um teste para a equipe de natação e vira uma atleta de competição Quando chegar ao ensino médio estará treinando seis horas por dia como eu costumava fazer na ginástica e no balé Quando Marianne faz 13 anos acrescentamos uma suíte máster à casa para que Marianne Audrey e Johnny tenham os próprios quartos Compramos um piano Marianne e Audrey fazem aulas de piano organizamos concertos de música de câmara como os que meus pais promoviam quando eu era menina e montamos festivais de bridge Béla e eu entramos em um clube de livros fundado por Molly Shapiro muito conhecida em El Paso por suas recepções nas quais reúne artistas e intelectuais Eu me matriculo num curso de inglês para estrangeiros na Universidade do Texas Meu inglês finalmente melhora a ponto de eu me sentir segura para em 1959 me inscrever na faculdade Há muito tempo sonho em continuar meus estudos outro sonho adiado mas que agora parece possível Vou à minha primeira aula de psicologia sento com os jogadores de basquete peço ajuda a Béla para escrever os trabalhos Tenho 32 anos Estamos felizes por dentro e por fora Mas há o jeito com que Béla olha para nosso filho Ele queria um menino mas não esperava por este filho Johnny nasceu com paralisia cerebral atetoide provavelmente causada por uma encefalite intrauterina e isso afetou seu controle motor Ele tinha dificuldade para fazer coisas que Marianne e Audrey aprenderam sem grandes esforços como se vestir falar e usar o garfo ou a colher para comer sozinho Ele era diferente delas Seus olhos eram caídos e ele babava Béla criticava Johnny e perdia a paciência com suas dificuldades Lembro como fui ridicularizada por ser vesga e sofria por meu filho Béla gritava de frustração com os desafios de Johnny Ele gritava em tcheco de modo que as crianças que falavam um pouco de húngaro apesar do meu desejo de que falassem apenas um inglês americano impecável não entendessem as palavras embora obviamente entendessem o tom Eu me escondia em nossa suíte Em 1960 quando Johnny tinha 4 anos eu o levei a uma consulta com o Dr Clark um especialista no Johns Hopkins que me disse Seu filho pode ser o que você fizer dele John fará tudo o que todo mundo faz mas vai demorar mais tempo para conseguir Pressionálo em excesso é contraproducente mas também é um erro não pressionálo o suficiente Você precisa pressionar no nível do potencial dele Parei de estudar para levar Johnny a suas sessões de terapia da fala de terapia ocupacional e também a todo tipo de médico e especialista que poderiam ajudar Audrey agora diz que suas memórias mais nítidas da infância não são na piscina mas nas salas de espera Decidi não aceitar que nosso filho tinha um comprometimento permanente Eu estava certa de que ele podia avançar se acreditássemos que isso era possível Mas quando ele era mais novo e comia com a mão mastigando com a boca aberta porque era o que conseguia fazer Béla olhou para ele com tamanho desapontamento e tristeza que eu senti que precisava proteger meu filho do pai O medo instalou uma tensão em nossas vidas confortáveis Certa vez quando Audrey tinha 10 anos eu estava perto de seu quarto onde ela brincava com uma amiga exatamente quando uma ambulância passou na frente de nossa casa com a sirene ligada Cobri a cabeça um hábito residual da guerra um movimento que ainda faço Antes de registrar conscientemente a sirene escutei Audrey gritando para a amiga Rápido venha para debaixo da cama Ela se atirou no chão e rolou para debaixo da cama A amiga riu e a imitou provavelmente achando que era uma brinncadeira Mas eu sabia que Audrey não estava brincando Ela realmente achava que sirenes sinalizavam perigo e que era preciso se proteger Sem querer sem qualquer ato consciente eu tinha ensinado isso a ela O que mais estávamos inconscientemente ensinando aos nossos filhos sobre segurança valores e amor Na noite do baile de formatura do ensino médio de Marianne ela está em pé na varanda da frente em seu vestido de seda com uma linda orquídea no pulso Assim que ela sai da varanda com seu par na festa Béla fala Divirtase docinho Você sabe sua mãe estava em Auschwitz quando tinha sua idade e os pais dela estavam mortos Grito com Béla quando Marianne vai embora Digo que ele se tornou uma pessoa amarga e fria que não tem o direito de arruinar a alegria da menina em uma noite tão especial nem o prazer indireto que senti pela felicidade dela Se ele não consegue se controlar eu também não vou me censurar Se Béla não consegue abençoar nossa filha com pensamentos felizes então ele também deve estar morto O fato de que você esteve em Auschwitz e ela não é um pensamento feliz Béla se defende Quero que Marianne se sinta satisfeita com a vida que tem Então não a envenene grito Pior do que o comentário de Béla é o fato de eu nunca ter falado com Marianne sobre isso Finjo não perceber que ela também está vivendo duas vidas a que vive por ela mesma e a que vive por mim porque eu não pude vivê la No outono de 1966 quando Audrey está com 12 anos Marianne no segundo ano da faculdade e Johnny com 10 anos cumprindo a previsão do Dr Clark de que com o apoio correto poderia desenvolver uma estabilidade física e acadêmica tenho tempo novamente para me dedicar ao meu progresso Volto a estudar Meu inglês agora é bom o suficiente para escrever meus trabalhos sem a ajuda de Béla com o auxílio dele a melhor nota que tirei foi um C mas agora só recebo notas A Sinto que estou finalmente progredindo e transcendendo as limitações de meu passado Mas mais uma vez os dois mundos que tentei manter separados colidem Estou sentada numa sala de conferências esperando a aula de Introdução à Ciência Política começar quando um homem de cabelos louros se senta atrás de mim Você esteve lá não esteve diz ele Lá Sinto a pânico começar a crescer Auschwitz Você é uma sobrevivente não é Estou tão abalada com a pergunta que não consigo pensar em também lhe fazer uma pergunta O que o faz acreditar que eu sou uma sobrevivente Como ele sabe Como adivinhou Nunca disse uma única palavra sobre a minha experiência a ninguém em minha vida atual nem mesmo a meus filhos Não tenho um número tatuado no braço Você não é uma sobrevivente do Holocausto pergunta ele novamente Ele é jovem talvez tenha 20 anos mais ou menos a metade da minha idade Algo em sua juventude em sua natureza séria na intensidade gentil de sua voz me relembra Eric a maneira como nos sentamos juntos no cinema depois do toque de recolher como ele me fotografou na beira do rio fazendo espacates como ele beijou meus lábios pela primeira vez com as mãos apoiadas no cinto fino que marcava minha cintura Passaramse 21 anos depois da libertação e ainda fico arrasada com a perda de Eric com a perda de nosso amor jovem e com a perda do futuro da visão que compartilhamos do casamento da família e do ativismo No ano em que passei encarcerada no ano em que sabese lá como eu escapei de uma morte que parecia obrigatória e inevitável não esqueci do verso de Eric Nunca esquecerei seus olhos nunca esquecerei suas mãos A memória era minha salvação E agora Escondi o passado Lembrar é ceder ao horror de novo Mas no passado também está a voz de Eric No passado está o amor que senti e que ficou em minha mente todos aqueles meses em que passei fome Eu sou uma sobrevivente digo tremendo Você leu isso Ele me mostra uma pequena brochura Em busca de sentido de Viktor Frankl Pareceme um texto de filosofia O nome do autor não diz nada Faço que não com a cabeça Frankl estava em Auschwitz explica o estudante Ele escreveu este livro logo após a guerra Acho que você vai achar interessante diz ele oferecendoo a mim Eu seguro o livro É fino Ele me enche de terror Por que eu voluntariamente retornaria para o inferno mesmo através do filtro da experiência de outra pessoa Mas não tenho coragem de rejeitar o gesto do jovem Sussurro um obrigada e guardo o livrinho em minha bolsa onde ele fica a noite toda como uma bombarelógio Começo a preparar o jantar e me sinto distraída e fora do meu corpo Peço a Béla para comprar mais alho no mercado e depois peço novamente para comprar mais pimentões Mal provo a comida Depois do jantar tomo a lição de ortografia de Johnny Lavo a louça Dou boanoite às crianças Béla vai para o escritório ouvir Rachmaninoff e ler o jornal Minha bolsa está no corredor perto da porta da frente com o livro ainda lá dentro Apenas o fato de saber que está em minha casa me provoca desconforto Não vou lêlo Não preciso Eu estava lá Vou me poupar o sofrimento Pouco depois da meianoite minha curiosidade vence o medo Eu me esgueiro até a sala onde me sento por um longo tempo sob a luz de um abajur segurando o livro Começo a ler Este livro não pretende ser um relato de fatos e eventos mas das experiências que milhões de prisioneiros sofreram repetidas vezes É a história do que aconteceu dentro de um campo de concentração contada por um de seus sobreviventes Sinto um formigamento na nuca Ele está falando comigo Está falando por mim Como era a vida em um campo de concentração segundo um prisioneiro comum Ele escreve sobre as três fases da vida de um prisioneiro começando com a chegada a um campo de extermínio e a ilusória sensação de alívio Sim eu me lembro muito bem de meu pai ouvir a música tocando na plataforma do trem e dizer que aquele lugar não poderia ser tão ruim me lembro da maneira como Mengele usava o dedo indicador para apontar quem viveria e quem morreria e lembro que ele me disse de maneira casual Você verá sua mãe em breve Depois há a segunda fase na qual a pessoa aprende a se adaptar ao impossível e ao inconcebível Aprende a aguentar as surras dos kapos a levantar independentemente do frio da fome do cansaço ou da doença a tomar a sopa e a guardar o pão a ver sua própria carne desaparecer e a escutar o tempo todo que a única saída é a morte Mesmo a terceira fase de soltura e libertação não acabou com o encarceramento escreve Frankl Ele pode continuar na amargura na desilusão e na busca de sentido e felicidade Estou olhando diretamente para aquilo que busquei esconder Conforme leio não me sinto paralisada nem presa de volta naquele lugar Para minha surpresa não sinto medo Para cada página que leio quero escrever outras dez E se contar a minha história afrouxar o poder que o medo tem em vez de aumentá lo E se falar sobre o passado trouxer a cura em vez da destruição E se o silêncio e a negação não forem as únicas escolhas a fazer na esteira da perda catastrófica Leio como Frankl caminha até seu local de trabalho na escuridão gelada O frio é cruel os guardas são brutais os prisioneiros tropeçam Em meio à dor física e à injustiça desumanizadora Frankl lembra do rosto da esposa Ele vê os olhos dela e seu coração se enche de amor na profundidade do inverno Ele entende como alguém que não tem nada ainda pode conhecer a felicidade seja ela apenas por um breve momento na contemplação de sua amada Meu coração se abre Eu choro É a minha mãe falando comigo na escuridão opressiva do trem através daquela página Lembrese ninguém pode tirar de você o que você colocou em sua mente Não podemos escolher desaparecer no escuro mas podemos escolher acender a luz Naquelas primeiras horas da alvorada do outono de 1966 eu leio uma frase que está no cerne do ensinamento de Frankl Tudo pode ser tirado de uma pessoa exceto uma coisa a última das liberdades humanas escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida escolher o próprio caminho Cada momento é uma escolha Não importa quão frustrante chata limitadora dolorosa ou opressiva for nossa experiência podemos sempre escolher como reagir Finalmente comecei a entender que eu também tenho uma escolha Essa compreensão mudará minha vida C A P Í T U L O 1 4 De um sobrevivente para outro Ninguém se cura em linha reta Em uma noite de janeiro de 1969 quando Audrey chega em casa de um trabalho como babá Béla e eu pedimos que ela e John se sentem no sofá marrom da sala de estar Não consigo olhar para Béla nem para meus filhos Meu olhar se fixa nas linhas modernas e simples do sofá em suas pernas finas Béla começa a chorar Alguém morreu pergunta Audrey Contem Johnny bate com os pés de maneira nervosa no sofá Está tudo bem nós amamos muito vocês mas sua mãe e eu decidimos que precisamos viver em casas separadas por um tempo diz Béla Ele gagueja ao falar as frases demoram uma eternidade O que você está dizendo pergunta Audrey O que está acontecendo Precisamos descobrir como ter mais paz em nossa família digo Não é culpa de vocês Vocês não se amam mais Sim diz Béla Eu amo Esse é o golpe dele a faca que ele aponta para mim Vocês de repente não estão felizes Achei que eram felizes Ou têm mentido para nós a vida inteira Audrey ainda estava com o dinheiro do trabalho como babá na mão pronta para entregar ao pai Quando Audrey fez 12 anos Béla abriu uma conta bancária no nome dela e lhe disse que depositaria o dobro de qualquer quantia que ela ganhasse dali para a frente Minha filha acaba jogando o dinheiro no sofá como se tivéssemos contaminado tudo o que é bom ou valioso Foi a soma de experiências não um súbito reconhecimento que me levou a pedir o divórcio de Béla Minha decisão tinha algo a ver com a história de minha mãe o que ela escolheu e o que não foi autorizada a escolher Antes de se casar com meu pai ela trabalhava num consulado em Budapeste ganhava o próprio dinheiro fazia parte de um círculo social cosmopolita e profissional Ela era bastante livre para a época mas a irmã mais nova se casou e a pressão se voltou para ela que tinha de fazer o que a sociedade e a família esperavam ou seja casarse antes que se tornasse um constrangimento para os seus Havia um homem que minha mãe amava alguém que ela conheceu no trabalho no consulado o homem que lhe deu E o vento levou com dedicatória mas o pai dela a proibiu de se casar com ele porque ele não era judeu Meu pai um alfaiate famoso tirou suas medidas para um vestido certo dia gostou de sua aparência e então mamãe optou por deixar a vida que tinha escolhido para si mesma em nome da vida que esperavam que ela levasse Ao casar com Béla temi ter feito a mesma coisa abdicar de assumir a responsabilidade por meus próprios sonhos em troca da segurança que ele me proporcionava Agora as qualidades que haviam me atraído nele sua capacidade de prover e cuidar pareciam sufocantes Nosso casamento era como uma abdicação de mim mesma Eu não queria o tipo de casamento que meus pais tiveram solitário e sem intimidade e não queria os sonhos partidos deles o de meu pai de ser médico o da minha mãe de ter uma carreira e de se casar por amor Mas o que eu quero para mim Eu não sabia Portanto elegi Béla como uma força a ser enfrentada Em vez de descobrir meu verdadeiro propósito e direção encontrei sentido em lutar contra ele contra as limitações que eu achava que ele me impunha Realmente Béla apoiava os meus estudos pagava minha faculdade adorava conversar comigo sobre os livros de filosofia e literatura que eu estava lendo e considerava as minhas listas de leitura e análises complementos interessantes para seu tema favorito História Talvez porque Béla de vez em quando expressasse algum ressentimento pelo tempo que eu dedicava à faculdade ou porque preocupado com minha saúde ele às vezes me advertia para diminuir o ritmo se enraizou em mim a ideia de que se eu quisesse progredir na vida teria que fazer isso por conta própria Eu estava muito ansiosa e cansada de me diminuir Lembrome de viajar com Audrey para uma competição de natação em San Angelo em 1967 quando ela tinha 13 anos Os outros pais que estavam acompanhando as filhas se reuniram no hotel à noite para beber e se divertir Percebi que se Béla tivesse ido estaríamos no centro das atividades não por apreciarmos a convivência com gente que gostava de beber mas porque Béla era um sedutor nato Quando ele via um grupo de pessoas não conseguia se afastar Qualquer espaço que ele ocupava virava um círculo social com todos atraídos para a relação de convívio por causa do ambiente que ele criava Eu admirava isso nele mas ao mesmo tempo me ressentia a ponto de ficar em silêncio para que a voz dele pudesse ressoar Assim como na minha família durante minha infância só havia espaço para uma estrela Nos churrascos dançantes semanais que organizávamos com os amigos em El Paso eu tinha que dividir a ribalta quando todo mundo abria espaço para mim e Béla na pista de dança Juntos éramos sensacionais nossos amigos diziam que era difícil desviar o olhar Éramos admirados como casal mas não havia espaço para mim Aquela noite em San Angelo achei desagradável o ruído e a embriaguez dos outros pais Prestes a me retirar para o quarto pois estava sozinha e com um pouco de pena de mim mesma me lembrei do que o livro de Frankl falava sobre a liberdade de escolher a minha própria reação para qualquer situação Fiz uma coisa que nunca havia feito antes Bati na porta do quarto de Audrey Surpresa em me ver Audrey me convidou para entrar Estava jogando cartas e assistindo à TV com as amigas Quando eu tinha sua idade disse eu também era atleta Audrey arregalou os olhos Vocês garotas são sortudas e lindas Vocês sabem o que é ter um corpo forte Trabalhar duro Fazer parte de uma equipe Disse a elas o que meu professor de balé me disse muito tempo antes Todo o seu êxtase na vida virá de dentro de você Dei boanoite e comecei a me dirigir para a porta mas antes de sair do quarto fiz um grand battement Os olhos de Audrey brilhavam de orgulho Suas amigas bateram palmas e assoviaram Eu não era a mãe calada com um sotaque estranho Eu era a artista a atleta a mãe que a filha admirava Internamente equacionei esse sentimento de autoestima e júbilo com a ausência de Béla Se eu queria sentir esse brilho com mais frequência talvez precisasse estar menos com ele Essa avidez por individualidade me sustentou também durante a faculdade Eu era voraz sempre em busca de mais conhecimento e também do respeito e da aprovação que podiam ser um sinal de que eu tinha valor Ficava acordada a noite inteira trabalhando em ensaios que já estavam bons por medo de que não estivessem bons ou que estivessem apenas suficientemente bons Quando um professor de Psicologia anunciou à turma no início do semestre que ele só dava notas C fui a seu escritório dizer a ele que eu só tirava A e perguntar o que podia fazer para manter meu desempenho acadêmico excepcional Ele me convidou a trabalhar como sua assistente o que aumentou meu aprendizado em sala de aula com uma experiência de campo oferecida apenas a alunos de pósgraduação Certa tarde alguns colegas de turma me convidaram para tomar uma cerveja depois da aula Senteime com eles num bar escuro perto do campus meu copo gelado sobre a mesa eu encantada com a energia juvenil a paixão política Eu os admirava advogados de justiça social pacifistas Estava feliz por ser incluída E triste também Esse estágio da minha vida fora encurtado Individualização e independência da minha família Namoro e romance Participação em movimentos sociais que promoviam mudança real Perdi minha infância para a guerra minha adolescência para os campos de extermínio e a primeira parte da minha vida adulta para a compulsão de nunca olhar para trás Virei mãe antes de passar pelo luto da morte de minha própria mãe Tentei me recuperar rápido demais e cedo demais Não foi culpa de Béla eu ter escolhido a negação e ter mantido escondidas até mesmo de mim minhas memórias opiniões e experiências Mas naquele momento eu o considerava responsável por prolongar a minha paralisia No dia da cerveja com os colegas uma delas pergunta como Béla e eu nos conhecemos Adoro uma boa história de amor disse ela Foi amor à primeira vista Não lembro como respondi mas sei que a pergunta me fez pensar novamente sobre o tipo de amor que eu gostaria de ter tido Com Eric houve faíscas um calor que percorria todo o meu corpo quando ele estava perto Nem Auschwitz matou a garota romântica que existia em mim a garota que dizia a si mesma todos os dias que poderia encontrálo novamente Depois da guerra o sonho morreu Quando conheci Béla eu não estava apaixonada estava com fome e ele me trouxe queijo suíço e salame Lembro de me sentir feliz nos primeiros anos com Béla quando estava grávida de Marianne andando até o mercado todas as manhãs para comprar flores conversando com ela no meu ventre dizendo a minha filha como ela iria florescer E ela tinha florescido todos os meus filhos tinham Agora eu estava com 40 anos a idade com que minha mãe morreu e eu ainda não havia florescido nem tido o amor que achava merecer Eu me senti enganada com um rito humano essencial sendo negado a mim presa a um casamento que tinha virado uma refeição consumida sem a expectativa de nutrição sem a esperança de matar a fome Meu sustento veio de uma fonte inesperada Um dia em 1968 quando cheguei em casa encontrei uma carta na caixa de correio endereçada a mim com uma letra manuscrita que parecia europeia enviada pela Universidade Southern Methodist de Dallas Não tinha nome acima do endereço do remetente apenas iniciais V F Quando abri a carta quase caí para trás De um sobrevivente para outro dizia a saudação A carta era de Viktor Frankl Depois da minha imersão préalvorada no livro Em busca de sentido dois anos antes escrevi um ensaio chamado Viktor Frankl e eu Escrevi para mim mesma como um exercício pessoal não acadêmico como a primeira tentativa de falar sobre o passado Timidamente esperançosa em relação à possibilidade de crescimento pessoal mostrei o ensaio a alguns professores e amigos e no fim ele acabou sendo publicado pela própria universidade Alguém tinha enviado anonimamente uma cópia do meu artigo para Frankl em Dallas onde ele trabalhava como professor visitante desde 1966 Frankl 23 anos mais velho do que eu já era um médico psiquiatra bemsucedido quando foi encarcerado em Auschwitz Tinha 39 anos Agora era o celebrado criador da Logoterapia Ele atendia fazia palestras e dava aulas no mundo todo Frankl se emocionara com meu pequeno ensaio a ponto de entrar em contato comigo de me tratar como uma colega sobrevivente e como uma profissional Escrevi sobre me imaginar no palco da Ópera de Budapeste na noite em que fui obrigada a dançar para Mengele Frankl escreveu que tinha feito algo similar em Auschwitz Nos piores momentos ele se imaginou como um homem livre dando palestras em Viena sobre a psicologia do encarceramento Ele também encontrara em um mundo interior proteção para a fome e a dor atual e também inspiração para sua esperança e senso de propósito dando a ele os meios e a razão para sobreviver O livro de Frankl e sua carta me ajudaram a encontrar palavras para nossa experiência em comum Assim começou uma correspondência e uma amizade que durariam muitos anos período em que tentaríamos juntos responder às perguntas que permeiam nossas vidas Por que sobrevivi Qual é o propósito da minha vida Qual é o significado do meu sofrimento Como posso ajudar a mim e aos outros a suportar as partes mais difíceis da vida e a sentir mais paixão e alegria Depois de trocar cartas durante vários anos nós nos encontramos pela primeira vez numa conferência que Frankl deu em San Diego nos anos 1970 Ele me convidou para ir aos bastidores conhecer sua esposa e pediu que eu fizesse uma análise crítica de sua palestra um momento extremamente importante ser tratada por meu mentor como uma igual Mesmo a primeira carta dele fomentou em mim a semente de uma missão a busca para encontrar sentido em minha vida ao ajudar os outros a encontrarem sentido a me curar para poder curar os outros e curar os outros para poder curar a mim mesma Isso também reforçou o meu entendimento apesar de mal aplicado quando me divorciei de Béla de que eu tinha a energia e a oportunidade assim como a responsabilidade de escolher meu próprio sentido minha própria vida Dei o primeiro passo consciente para encontrar o meu próprio caminho no fim dos anos 1950 quando percebi os desafios de desenvolvimento de Johnny e precisei de ajuda para atendêlos Uma amiga recomendou uma psicanalista junguiana que tinha estudado na Suíça Eu não conhecia quase nada de psicologia clínica tampouco de psicanálise junguiana especificamente mas depois de pesquisar um pouco sobre o assunto diversos conceitos junguianos me atraíram Gostei da ênfase nos mitos e arquétipos que me lembraram a literatura que eu adorava quando menina Fiquei fascinada com a noção de reunir as partes conscientes e inconscientes da psique de uma pessoa em um todo equilibrado Lembreime das imagens dissonantes entre o interior de Vicky Page e a experiência exterior de Os sapatinhos vermelhos Naturalmente eu estava sofrendo a angústia dos meus próprios conflitos interiores Não entrei conscientemente na terapia para curar essa tensão em mim eu só queria saber o que fazer com meu filho e acabar com as discordâncias entre mim e Béla sobre o modo de agir Mas fiquei intrigada com a visão de Carl Jung sobre a análise terapêutica É uma questão de dizer sim a si mesmo de se considerar a tarefa mais importante de ter consciência de tudo o que faz e de manter uma constância diante de si em todos os aspectos dúbios uma tarefa que verdadeiramente nos cobra o máximo Dizer sim a mim mesma Eu queria fazer isso Eu queria me desenvolver e melhorar Meu terapeuta me passou um trabalho de casa pediu que eu registrasse meus sonhos e os analisasse Neles quase sempre eu estava voando Eu podia escolher se voava muito perto ou muito longe do chão se muito rápido ou muito devagar Eu podia escolher quais paisagens sobrevoar catedrais europeias montanhas cobertas de florestas praias oceânicas Eu queria dormir para poder ter esses sonhos em que estava feliz e forte voando livremente no controle Encontrei nesses sonhos a força para transcender as suposições limitadoras que os outros muitas vezes impunham a meu filho Descobri o meu desejo de transcender o que percebi serem limitações impostas a mim Eu ainda não sabia que as limitações que precisavam ser superadas não estavam fora mas dentro Portanto quando anos depois sob a influência de Viktor Frankl comecei a questionar o que queria da vida foi fácil pensar que dizer não a Béla seria uma forma de dizer sim a mim mesma Nos meses depois do divórcio eu me senti melhor Sofri de enxaqueca por muitos anos minha mãe também tinha dores de cabeça debilitantes então presumi que eram hereditárias mas assim que Béla e eu nos separamos as dores desapareceram como as estações do ano Achei que era porque eu estava livre do mau humor de Béla de seus gritos de seu cinismo de sua irritação e de seu desapontamento As dores de cabeça sumiram assim como a necessidade de me esconder de me manter à parte Convidei estudantes e professores à minha casa promovi festas animadas me senti no centro de uma comunidade aberta ao mundo Achei que estava vivendo da maneira que queria Mas logo uma névoa se instalou O ambiente ao meu redor parecia cinzento Eu precisava lembrar a mim mesma de me alimentar Numa manhã de sábado em maio de 1969 sento sozinha na sala de TV É o dia da minha formatura na faculdade Tenho 42 anos estou me formando com honras em Psicologia pela Universidade do TexasEl Paso Não consigo me obrigar a ir à cerimônia Estou envergonhada demais Devia ter feito isso há muitos anos digo a mim mesma O que de fato eu quero dizer o subtexto de muitas das minhas escolhas e crenças é Não mereço ter sobrevivido Sou tão obcecada em provar o meu valor em conquistar meu lugar no mundo que não preciso mais de Hitler Eu me tornei minha própria carcereira dizendo a mim mesma Não importa o que você fizer nunca será boa o suficiente O que mais sinto falta de Béla é seu jeito de dançar Especialmente a valsa vienense Por mais cínico e ranzinza que seja ele também se permite ser alegre e deixa seu corpo expressar isso Béla pode se render ao ritmo e ainda assim comandar a dança e se manter firme Sonho com ele algumas noites Com sua infância e com as histórias que ele me contou nas cartas que enviou quando me cortejou Vejo o pai dele morrer numa avalanche ficando sem ar em meio a todo aquele branco Vejo sua mãe entrar em pânico no mercado em Budapeste e confessar sua identidade para a SS Penso na triste tensão na família de Béla provocada pelo papel da mãe na morte deles Penso em sua gagueira na maneira como o trauma precoce o marcou Num dia de verão Béla vem buscar John Ele está com um carro novo Nos Estados Unidos sempre tivemos carros populares carros detonados segundo nossos filhos Hoje ele está dirigindo um Oldsmobile com assentos de couro Comprou usado diz ele na defensiva mas orgulhoso Meu olhar de descrença não é para o carro É para a mulher elegante sentada no banco do carona Ele conheceu alguém Agradeço a necessidade de trabalhar para sustentar a mim e as crianças O trabalho é uma fuga Ele me dá um propósito claro Passo a trabalhar como professora de Estudos Sociais do sétimo e oitavo anos em El Paso Barrio Recebo propostas de trabalho das escolas mais cobiçadas das partes mais ricas da cidade mas quero trabalhar com alunos que são bilíngues e que estejam enfrentando os obstáculos que eu e Béla conhecemos quando chegamos à América pobreza e preconceito Quero conectar meus alunos a suas escolhas mostrar a eles que quanto mais escolhas tiverem menos vão se sentir como vítimas O mais difícil em meu trabalho é combater o negativismo na vida de meus alunos Às vezes seus próprios pais dizem que eles nunca vão progredir e que a educação não é um caminho viável para eles Você é tão insignificante tão feia que nunca encontrará um marido Conto aos alunos sobre minha vesguice sobre a musiquinha tola de minhas irmãs e que o problema não era o fato de elas cantarem esse tipo de canção para mim o problema era que eu acreditava nelas Mas não deixo que meus alunos saibam quão profundamente eu me identifico com eles como o ódio obliterou a minha infância como eu sei que a escuridão devora quem é ensinado a acreditar que não é importante Lembrome da voz que se elevou por entre as montanhas Tatra Se você vai viver tem que defender alguma coisa Meus alunos me dão algo para eu defender Mas ainda me sinto entorpecida e ansiosa solitária muito sensível e triste Os flashbacks continuam eles acontecem muitas vezes quando estou dirigindo Vejo um policial fardado na estrada vejo túneis e minha visão se afunila parece que vou desmaiar Não tenho um nome para essas experiências ainda não entendo que elas são uma manifestação psicológica do luto que ainda não vivi Um sinal que meu corpo envia como um lembrete dos sentimentos que bloqueei da vida consciente Uma tormenta que me domina quando não me permito sentir Quais são os sentimentos que me recuso a reconhecer Eles são como estranhos morando na minha casa invisíveis exceto pela comida que surrupiam pelos móveis que tiram do lugar pela trilha de lama que deixam no corredor O divórcio não me libertou da presença angustiante deles O divórcio esvazia o espaço de outras distrações dos alvos habituais da minha culpa e do meu rancor e me obriga a me sentar sozinha com meus sentimentos Às vezes eu ligo para Magda Ela e Nat também se divorciaram e ela casou com Ted Gilbert que tem uma idade mais próxima da dela e é um bom padrasto e ouvinte Ela e Nat mantiveram uma amizade forte Ele vai jantar na casa dela duas ou três vezes por semana Tenha cuidado com o que você faz quando está irrequieta recomenda minha irmã Você pode pensar coisas erradas Coisas sem importância Ele é muito isso muito aquilo já sofri o suficiente Você acaba sentindo falta das mesmas coisas que a deixavam louca É como se ela lesse a minha mente a pequena vantagem da dúvida a concessão de que talvez o divórcio não esteja resolvendo o que achei que estava danificado Certa noite uma mulher telefona para minha casa Ela está à procura de Béla Eu saberia onde ele pode estar É a namorada dele eu percebo Ela está ligando para a minha casa como se eu vigiasse meu exmarido como se eu devesse informações a ela como se eu fosse a secretária dele Nunca mais me telefone grito Depois de desligar fico agitada não consigo dormir Tento sonhar que estou voando um sonho lúcido mas não consigo decolar continuo caindo em vigília É uma noite terrível E muito útil Audrey está dormindo na casa de uma amiga Johnny já está na cama Não há como escapar do meu desconforto só resta sentir Choro tenho pena de mim mesma fico furiosa Sinto cada onda de ciúme de amargura de solidão de indignação de autopiedade e assim por diante Pela manhã embora não tenha dormido me sinto melhor Mais calma Nada mudou Ainda me sinto abandonada apesar do ilógico da situação pelo marido de quem eu decidi abrir mão Mas meu alvoroço e agitação seguiram em frente Não são características permanentes São estados de espírito que passam mudam Eu me sinto mais tranquila Terei muitas outras noites e dias assim Momentos em que estou sozinha em que começo a experimentar não afastar os meus sentimentos independentemente do quanto sejam doloridos Esse é o presente do meu divórcio o reconhecimento de que preciso enfrentar o que está dentro de mim Se vou realmente melhorar a minha vida não é Béla ou nossa relação que tem de mudar Sou eu Enxergo a necessidade de mudança mas não sei que tipo de mudança vai me ajudar a ser mais livre e feliz Busco uma nova terapeuta para ter outra perspectiva sobre o meu casamento mas a abordagem dela não é muito útil Ela aponta o dedo para mim e diz que forçar Béla a fazer as compras era uma emasculação que eu nunca deveria ter cortado a grama e tirado as responsabilidades masculinas dele Ela implica com coisas que estavam funcionando em meu casamento e as reformula como problemas e falhas Arranjo um novo emprego dessa vez numa escola do ensino médio onde dou aula de Introdução à Psicologia e atuo como conselheira Porém o propósito que me norteava no início de minha profissão começa a ser corroído pela burocracia das escolas pelas salas de aula numerosas e pela sobrecarga de casos que me impedem de trabalhar de maneira eficaz com os alunos individualmente Sei que tenho mais a oferecer embora ainda não saiba o que deveria fazer Este tema prevalece que meu trabalho mais importante e profundo tanto em termos pessoais quanto profissionais ainda está por vir e ainda se mostra confuso e indefinido Um casal de amigos Lili e Arpad são as primeiras pessoas a dizer o que esse trabalho implicará embora eu ainda não esteja pronta para reconhecer isso muito menos para assumilo Num fim de semana eles me convidam a visitálos no México Durante anos Béla e eu tiramos férias com eles mas dessa vez vou sozinha No domingo em que vou voltar para casa tomamos um café da manhã demorado com café frutas e ovos preparados por mim à moda húngara com pimentão e cebola Estamos preocupados com você diz Lili com sua voz calma carinhosa Sei que ela e Arpad ficaram surpresos com o divórcio Sei que eles acham que cometi um erro É difícil não ver a preocupação dela como julgamento Conto a eles sobre a namorada de Béla uma escritora ou musicista nunca consigo me lembrar Para mim ela não é uma pessoa mas uma ideia Béla seguiu em frente e me deixou para trás Meus amigos escutam compreensivos mas então se entreolham e Arpad pigarreia Edie diz ele me perdoe se eu estiver me intrometendo muito e você pode me mandar tomar conta da minha própria vida mas já pensou que resolver o seu passado pode vir a beneficiar você Resolver o passado Eu vivi aquilo o que mais há para resolver tenho vontade de perguntar Acabei com a conspiração do silêncio mas falar sobre o assunto não fez o medo e os flashbacks desaparecerem Na realidade falar parece ter piorado meus sintomas Não rompi o silêncio com meus filhos ou amigos de maneira formal mas não vivo temerosa de que eles me perguntem sobre o passado e tento aceitar as oportunidades para compartilhar minha história Recentemente quando uma amiga do tempo da faculdade que fez um mestrado em História quis me entrevistar para um ensaio sobre o Holocausto aceitei Achei que seria um alívio contar toda a minha história contudo estava trêmula ao sair da casa dela Ao chegar em casa vomitei exatamente como aconteceu uma década antes quando Marianne nos mostrou um livro com fotos dos prisioneiros nos campos de concentração O passado é passado digo a Lili e Arpad Não estou pronta para levar em consideração ou mesmo entender o conselho de Arpad para resolver o passado Porém como a carta de Viktor Frankl aquilo plantou uma semente dentro de mim algo que crescerá e se enraizará com o tempo Um sábado estou sentada na mesa na cozinha corrigindo as provas de meus alunos de Psicologia quando Béla liga É o dia dele com Audrey e John Minha mente se agita de medo Qual é o problema pergunto Nenhum Eles estão vendo TV Ele fica quieto espera a voz engrenar Vamos jantar diz ele finalmente Com você Comigo Estou ocupada respondo Realmente estou Marquei um encontro com um professor de Sociologia Já liguei para Marianne em busca de conselhos O que devo usar O que devo dizer O que devo fazer se ele me convidar para a casa dele Não durma com ele ela me recomendou Especialmente no primeiro encontro Edith Eva Eger pede meu exmarido por favor deixe as crianças passarem a noite com os amigos e aceite jantar comigo Seja lá o que for podemos conversar pelo telefone ou quando você trouxer as crianças Não diz ele Não Esta não é uma conversa para se ter ao telefone ou à porta de casa Presumo que tem a ver com as crianças e concordo encontrálo em nosso restaurante favorito onde sempre íamos para namorar Passo aí para buscar você diz ele Béla chega pontualmente Está vestido para um encontro de terno escuro e gravata de seda Ele se inclina para me dar um beijo no rosto e não quero me afastar quero sentir bem de perto seu perfume e seu rosto perfeitamente barbeado No restaurante em nossa antiga mesa ele segura minhas mãos É possível pergunta ele que nós tenhamos mais a construir juntos Sua pergunta faz minha mente girar como se já estivéssemos na pista de dança Tentar novamente Voltar E ela pergunto Ela é adorável Divertida uma ótima companhia E então Me deixe terminar Lágrimas começam a jorrar dos olhos dele e a escorrer pelo rosto Ela não é a mãe dos meus filhos Ela não me tirou da prisão em Prešov Ela nunca ouviu falar das montanhas Tatra Ela não consegue pronunciar frango paprikash muito menos preparálo para o jantar Edie ela não é a mulher que eu amo Ela não é você Os elogios me deixam feliz a aceitação de nosso passado em comum mas o que me impressiona é a disposição de Béla para o risco Isso sempre foi típico dele pelo menos até onde sei Ele optou por combater os nazistas na floresta Se arriscou a morrer doente ou alvejado por balas para impedir o inadmissível Já eu fui recrutada para o risco à força Béla escolheu o risco de maneira consciente e o escolhe novamente nessa mesa ao se permitir ficar vulnerável diante da possibilidade de rejeição Já me acostumei de tal modo a enumerar todas as formas como ele me decepciona que parei de levar em consideração quem ele é o que ele oferece Tenho que sair desse casamento ou vou morrer eu pensava Talvez os meses e anos que passei longe dele tenham me ajudado a amadurecer e a descobrir que não existe um Nós até que exista um Eu Agora que eu encarei a mim mesma de maneira um pouco mais plena posso ver que o vazio que senti em nosso casamento não era um sinal de que havia algo errado no relacionamento Era um vazio que carrego comigo mesma até agora um vácuo que nenhum homem ou realização algum dia preencherá Nada jamais compensará a perda de meus pais e da minha infância E ninguém mais é responsável pela minha liberdade Eu sou Em 1971 dois anos após o divórcio quando estou com 44 anos Béla se ajoelha e me oferece um anel de noivado Fazemos uma cerimônia judaica em vez do casamento civil que firmamos há mais de vinte anos Nossos amigos Gloria e John Lavis são as testemunhas Este é o seu verdadeiro casamento diz o rabino Ele diz isso porque dessa vez é um casamento judeu mas eu acho que ele também quer dizer que dessa vez estamos realmente escolhendo um ao outro não estamos correndo não estamos fugindo Compramos uma casa nova em Coronado Heights decoramos tudo com cores vivas vermelho laranja colocamos painéis solares e uma piscina Viajamos para os Alpes na Suíça em lua de mel e ficamos em um hotel com fontes termais O ar é frio A água é quente Sento no colo de Béla Montanhas escarpadas se alongam em direção ao céu as cores mudando sobre elas e também sobre as águas Nosso amor parece tão estável quanto a cadeia de montanhas tão reconfortante e fluido quanto a água adaptandose e mudando para preencher o formato que lhe damos Não foi a essência do nosso casamento que mudou Nós mudamos C A P Í T U L O 1 5 O que a vida esperava Realmente não importava o que esperávamos da vida mas o que a vida esperava de nós escreve Viktor Frankl no livro Em busca de sentido Em 1972 um ano depois que Béla e eu nos casamos novamente fui eleita professora do ano em El Paso Embora me sentisse honrada com o prêmio e considerasse um privilégio ajudar meus alunos tinha certeza de que ainda não havia descoberto o que a vida esperava de mim Você conquistou o maior reconhecimento no início de sua carreira não no fim disse o diretor de minha escola Nós esperamos grandes feitos de você Qual é o próximo Era a mesma pergunta que eu ainda me fazia Comecei a trabalhar com meu terapeuta junguiano novamente e apesar de sua advertência de que títulos não substituem o crescimento e o trabalho interior pensei em fazer uma pós graduação Eu queria entender por que as pessoas escolhem fazer uma coisa e não outra como resolvem os desafios diários e sobrevivem a experiências devastadoras como convivem com o passado e com seus erros como as pessoas se curam E se minha mãe tivesse alguém com quem conversar Ela teria tido um casamento mais feliz com meu pai ou escolhido uma vida diferente E os meus alunos ou meu próprio filho aqueles que disseram não é possível em vez de é possível Como eu poderia ajudar as pessoas a transcender suas crenças autolimitantes e se tornarem quem elas deveriam realmente ser no mundo Eu digo a meu diretor que estou pensando em fazer um doutorado mas não consigo expressar meu sonho sem impor limitações Não sei falo quando eu terminar o curso estarei com 50 anos Ele sorriu para mim Você vai fazer 50 anos de qualquer maneira respondeu ele Nos seis anos seguintes descobri que meu diretor e meu terapeuta junguiano estavam certos Não havia razão para me limitar para deixar que minha idade restringisse minhas escolhas Escutei o que minha vida estava me pedindo Em 1974 completei o mestrado em Psicologia Educacional da Universidade do TexasEl Paso e em 1978 o PhD em Psicologia Clínica na Universidade Saybrook Minha jornada acadêmica me levou a conhecer o trabalho de Martin Seligman e de Albert Ellis além de professores e mentores inspiradores como Carl Rogers e Richard Farson que me ajudaram a entender partes de mim mesma e a minha própria experiência Martin Seligman que mais tarde criou uma nova vertente em nossa área chamada Psicologia Positiva realizou uma pesquisa no fim dos anos 1960 que respondeu a uma pergunta que me incomodava desde o dia da libertação em Gunskirchen em maio de 1945 por que tantos prisioneiros perambularam fora dos portões dos campos mas acabaram voltando para os alojamentos enlameados e fétidos Frankl notou o mesmo fenômeno em Auschwitz Psicologicamente o que levava um prisioneiro libertado a rejeitar a liberdade Os experimentos de Seligman com cães que infelizmente precederam as atuais proteções contra a crueldade animal comprovaram o conceito que ele chamou de desamparo aprendido Quando os cachorros que recebiam choques dolorosos conseguiam interromper os choques pressionando uma alavanca eles rapidamente aprenderam a parar a dor Em experimentos seguintes esses cachorros descobriram que para escapar dos dolorosos choques administrados em um canil precisavam pular uma pequena barreira Os cachorros que não tinham meios de interromper a dor no entanto entenderam que estavam indefesos contra aquilo Quando receberam choques num canil ignoraram a rota de fuga e simplesmente se deitaram e choramingaram A partir disso Seligman concluiu que quando percebemos que não temos controle sobre as circunstâncias e acreditamos que nada do que fazemos é capaz de aliviar nosso sofrimento e melhorar nossa vida paramos de agir em nosso próprio benefício pois acreditamos que é inútil Foi isso que aconteceu nos campos de extermínio quando exprisioneiros saíam pelos portões mas acabavam voltando para a prisão onde ficavam sentados parados sem decidir o que fazer com a liberdade que finalmente tinha chegado Sofrer é inevitável e universal mas a maneira como reagimos ao sofrimento varia Em meus estudos fui influenciada por psicólogos cujos trabalhos revelaram nosso poder de realizar mudanças em nós mesmos Albert Ellis criador da Terapia Racional Emotiva Comportamental e um precursor da Terapia CognitivoComportamental me esclareceu sobre o quanto interiorizamos sentimentos negativos sobre nós mesmos e os comportamentos negativos e autodestrutivos que acompanham esses sentimentos Ellis mostrou que na base dos comportamentos menos eficazes e mais prejudiciais está um núcleo filosófico ou ideológico irracional Contudo esse núcleo é tão vital para nossas opiniões sobre nós mesmos e sobre o mundo que muitas vezes não temos consciência de que são apenas crenças nem que repetimos essas crenças de maneira recorrente para nós mesmos na vida cotidiana A crença determina nossos sentimentos tristeza raiva ansiedade etc e em troca nossos sentimentos influenciam nossos comportamentos fingir se isolar se automedicar para aliviar o desconforto Segundo Ellis para mudar o comportamento devemos mudar o sentimento e para mudar o sentimento devemos mudar o pensamento Assisti a uma sessão de terapia aberta conduzida por Ellis num palco em que a paciente era uma mulher jovem confiante e articulada mas frustrada em suas experiências de namoro Ela se achava incapaz de atrair o tipo de homem com quem gostaria de ter um relacionamento longo e buscava orientação para como encontrar e se conectar com os homens adequados Ela disse que tinha a tendência de ficar tímida e tensa quando conhecia um homem que considerava um bom candidato e que se comportava de uma maneira cautelosa e defensiva a ponto de esconder sua verdadeira personalidade e seu real interesse em conhecê lo Em poucos minutos o Dr Ellis a orientou para a principal convicção que estava implícita em seus namoros a certeza irracional de que sem perceber ela continuava repetindo sem parar até se convencer de que era verdade Nunca serei feliz Depois de um encontro ruim ela não apenas repetia para si mesma Oops fiz a mesma coisa novamente agi de maneira dura e pouco receptiva como também recaía em sua principal certeza de que nunca conquistaria a felicidade e que por isso mesmo não fazia sentido tentar Foi o medo produzido por essa convicção central que a deixou tão relutante em arriscarse a mostrar sua verdadeira personalidade o que por sua vez tornou mais provável que sua convicção derrotista se tornasse realidade Foi emocionante ver a autoimagem dela mudar visivelmente bem ali no palco Ela parecia escapar da convicção negativa como se estivesse tirando uma roupa velha De repente seus olhos ficaram mais brilhantes ela parecia mais alta o peito e os ombros mais abertos e calorosos como se estivesse criando uma superfície maior para a felicidade pousar O Dr Ellis avisou que dificilmente ela teria um encontro amoroso incrível de imediato Ele também disse que aceitar o desconforto dos encontros decepcionantes fazia parte do esforço de se livrar da convicção negativa A verdade é que teremos experiências desagradáveis na vida cometeremos erros e nem sempre conseguiremos o que desejamos Isso faz parte de ser humano O problema e base de nosso sofrimento constante é a convicção de que o desconforto os erros e as decepções sinalizam algo sobre o nosso valor é acreditar que merecemos todas as coisas desagradáveis que acontecem em nossas vidas Embora a minha maneira de construir afinidade seja diferente da técnica do Dr Ellis sua forma de levar os pacientes a reestruturarem e reformularem seus pensamentos prejudiciais influenciou profundamente a minha prática Carl Rogers um dos pensadores que mais me influenciou era um mestre em ajudar os pacientes a se aceitarem plenamente Segundo a teoria de Rogers quando a necessidade de desenvolvermos o nosso potencial entra em conflito com a necessidade de uma atenção positiva ou viceversa podemos optar por reprimir esconder ou negligenciar nossas verdadeiras personalidades e vontades Quando passamos a acreditar que não há nenhuma maneira de sermos amados e verdadeiros corremos o risco de negar nossa verdadeira natureza A autoaceitação foi a parte mais difícil da cura para mim algo que ainda luto para realizar O perfeccionismo surgiu na minha infância para satisfazer minha necessidade de aprovação No entanto esse perfeccionismo se transformou em mecanismo de enfrentamento ainda mais integrado para lidar com a minha culpa por ter sobrevivido O perfeccionismo é a convicção de que algo está quebrado você Portanto você disfarça seus defeitos com diplomas realizações elogios e ensaios mas nada disso pode solucionar o que acha que está resolvendo Ao tentar combater minha baixa autoestima eu estava na realidade reforçando minha sensação de falta de valor Ao aprender a oferecer aceitação e amor absolutos aos meus pacientes tive a sorte de aprender a importância de me oferecer o mesmo Rogers era brilhante em sua capacidade de valorizar os sentimentos dos pacientes e ajudálos a reformular o conceito que têm de si mesmos sem negar a própria verdade Ele ofereceu um olhar positivo incondicional e na segurança dessa aceitação total seus pacientes conseguiram projetar suas máscaras e inibições e habitar as próprias vidas de maneira mais autêntica Aprendi com o Dr Rogers as duas frases mais importantes em qualquer sessão terapêutica Ouvi você dizer e Conte mais Também aprendi a ler a linguagem corporal dos pacientes e a usar meu próprio corpo para comunicar minha aceitação e meu amor incondicional Não cruzo os braços e as pernas eu me abro Faço contato visual inclino o corpo para a frente crio uma ponte entre a minha pessoa e o paciente para que ele saiba que estou 100 com ele Espelho o estado de espírito de meus pacientes se eles querem ficar em silêncio fico quieta mas se eles querem raiva e gritos grito com eles ou seja adapto minha linguagem à linguagem dos meus pacientes como sinal de aceitação total Exibo um jeito de ser respiração abertura movimento escuta que pode promover crescimento e cura Estudar Seligman e Ellis e trabalhar com Rogers entre outros me ajudou a ser uma boa ouvinte ter boa capacidade de síntese e a criar uma abordagem terapêutica baseada na cognição e com uma percepção eclética e intuitiva Se eu tivesse que dar um nome à minha terapia provavelmente a chamaria de Terapia de Escolha já que a liberdade é uma questão de escolha choice em inglês a escolha da Compaixão do Humor do Otimismo da Intuição da Curiosidade e da Expressão Ser livre é viver o presente Se estamos presos ao passado Se ao menos eu tivesse ido lá em vez de aqui ou Se ao menos eu tivesse me casado com outra pessoa é porque estamos vivendo em uma prisão criada por nós mesmos Acontece o mesmo se passamos o tempo no futuro dizendo Não serei feliz até eu me formar ou Não serei feliz até encontrar a pessoa certa O único lugar onde podemos exercer nossa liberdade de escolha é no presente Essas são as ferramentas que meus pacientes usam para se liberar das expectativas dos papéis que desempenham ser pais amáveis e amorosos para eles mesmos parar de transmitir crenças e comportamentos de encarceramento e descobrir que no fim o amor é a resposta Oriento meus pacientes a entenderem o que causa e o que mantém seus comportamentos autodestrutivos No início esse tipo de comportamento surge como algo útil que satisfaz uma necessidade geralmente ligada a um dos três As aprovação afeição atenção Quando eles entendem por que desenvolveram um determinado comportamento menosprezar os outros ligarse a pessoas agressivas comer muito pouco comer demais etc podem assumir a responsabilidade de manter ou não o comportamento Podem inclusive escolher do que vão abrir mão a necessidade de aprovação a necessidade de comprar a necessidade de ser perfeita etc porque até mesmo a liberdade tem um preço Eles podem aprender a cuidar melhor deles mesmos e a descobrir a autoaceitação Só eu posso fazer o que posso fazer do jeito que posso fazer Para mim aprender que só eu posso fazer o que posso fazer do jeito que posso fazer significava destruir a realizadora compulsiva que existia em mim sempre buscando mais e mais diplomas e certificados na esperança de afirmar o meu valor Isso significava recompor o meu trauma ver em meu passado doloroso provas de minha força de meus talentos e de oportunidades para amadurecer em vez de confirmar minha fraqueza ou minha deterioração Em 1975 fui a Israel entrevistar sobreviventes do Holocausto para minha tese de doutorado Béla me acompanhou pois achei que a facilidade dele com idiomas incluindo o ídiche que aprendeu com os clientes em El Paso o tornaria um tradutor inestimável Eu queria explorar a desastrosa teoria do crescimento de meu professor Richard Farson que diz Muitas vezes é a situação de crise que na realidade nos melhora como seres humanos Paradoxalmente apesar de muitas vezes esses incidentes destruírem as pessoas eles são em geral experiências de crescimento Como resultado de tais adversidades a pessoa muitas vezes faz uma grande reavaliação da sua situação e a modifica de modo a refletir um entendimento mais profundo de suas próprias capacidades valores e metas Planejei entrevistar sobreviventes dos campos de concentração para descobrir como uma pessoa sobrevive e até mesmo prospera na sequência do trauma Como as pessoas conseguem criar vidas alegres com propósito e paixão independentemente do tipo de mágoa que sofreram independentemente das tristezas que sentiram E de que forma o próprio trauma cria uma oportunidade de crescimento positivo e de mudança Eu ainda não estava fazendo o que meu amigo Arpad tinha recomendado enfrentar meu próprio passado mas estava um passo mais perto de entrevistar pessoas que tinham o mesmo passado traumático que eu criando uma base para a minha própria cura acontecer Como a experiência de eventos trágicos contribuiu para o funcionamento cotidiano de meus entrevistados Conheci sobreviventes que voltaram a estudar que abriram negócios como Béla e eu tínhamos planejado fazer que construíram amizades fortes e que enfrentaram a vida diária com um sentimento de descoberta Israel não era um lugar tranquilo para os sobreviventes e não é fácil viver em meio ao preconceito e não se tornar você mesmo um agressor Conheci pessoas que enfrentaram os conflitos políticos e culturais com coragem e tranquilidade e que se revezam em turnos de guarda à noite em uma escola de modo que as crianças não encontrem bombas ao chegarem pela manhã Eu as admirava pelo que as levava a não se permitirem desistir ou ceder Eu admirava sua força de viver em meio a outra guerra e por não permitirem que as experiências horrendas do passado destruíssem o que viria a seguir Aguentar a prisão a desumanização a tortura a inanição e a perda devastadora não havia ditado o tipo de vida que conseguiram ter Naturalmente nem todos que entrevistei haviam prosperado Vi muitos pais taciturnos e muitos filhos que se culpavam por não saber lidar com o silêncio e o torpor dos pais Conheci sobreviventes que permaneceram no passado Nunca jamais perdoarei muitos me disseram Para eles perdoar significava esquecer ou desculpar Outros nutriam fantasias de vingança Eu nunca tinha fantasiado sobre vingança mas nos primeiros anos desafiadores em Baltimore eu fantasiei sim sobre confrontar os meus opressores queria ir atrás de Mengele no Paraguai onde ele havia se escondido para escapar da condenação no Tribunal de Nuremberg Imaginei fingir que era uma jornalista americana para entrar na casa dele Então revelaria minha identidade Sou a garota que dançou para você eu diria Você matou meus pais Você matou os pais de muitas crianças Como pode ser tão cruel Você era um médico Você fez o juramento de Hipócrates de não causar nenhum mal Você é um assassino frio Você não tem consciência A ideia era despejar minha fúria sobre seu corpo debilitado e acuado obrigálo a enfrentar sua vergonha É importante culpar os perpetradores Não se ganha nada fechando os olhos para o mal dando livre passagem às pessoas e não as responsabilizando Porém como meus companheiros sobreviventes me ensinaram você pode viver para desagravar o passado ou para enriquecer o presente Você pode viver preso ao passado ou deixálo ser a tábua de salvação que o ajuda a ter a vida que você quer agora Todos os sobreviventes que conheci tinham uma característica comum comigo e uns com os outros não tínhamos controle sobre os fatos mais angustiantes de nossas vidas mas tínhamos o poder de determinar como viveríamos após o trauma Os sobreviventes podem continuar a ser vítimas muito tempo depois de a opressão acabar ou podem aprender a se desenvolver Na pesquisa que fiz para a dissertação encontrei e expus minha convicção pessoal e meu critério clínico podemos escolher ser nossos próprios carcereiros ou podemos escolher ser livres Antes de deixarmos Israel Béla e eu visitamos Bandi e Marta Vadasz os amigos que Béla havia deixado esperando na estação ferroviária de Viena Eles moram em Ramat Gan perto de Tel Aviv Foi um encontro emocionante uma reunião com nossa vida não vivida a vida que quase tivemos Bandi ainda é muito politizado ainda um sionista ansioso para discutir o acordo de paz antecipado entre Israel e Egito sobre a ocupação de Israel da Península do Sinai Ele pode recitar com detalhes os atentados árabes com bombas em Jerusalém e Tel Aviv Debatendo entusiasticamente a estratégia militar de Israel ele e Béla nos mantêm à mesa bem depois de terminarmos de comer Os homens falam sobre a guerra mas Marta se vira para mim e pega na minha mão O rosto dela está mais cheio do que na juventude o cabelo ruivo menos viçoso já ficando grisalho Editke os anos foram generosos com você diz ela com um suspiro É a boa genética da minha mãe respondo E então a fila de seleção aparece na minha mente a pele lisa do rosto de minha mãe Esse momento é um fantasma que me atormenta ao longo dos anos Marta deve ter percebido que a minha mente viajou para outro lugar que a escuridão tomou conta de mim Desculpe diz ela Não foi minha intenção dizer que você conquistou isso com facilidade Você fez um elogio eu a tranquilizo Você continua gentil como me lembro de você Quando seu bebê nasceu morto Marta não deixou que o meu bebê saudável azedasse a nossa amizade e nunca ficava enciumada ou amarga Eu levava Marianne toda tarde para visitála Fiz isso todas as tardes de seu ano de luto Ela parece ler minha mente Você sabe diz ela nada foi mais difícil em minha vida do que perder meu bebê depois da guerra Aquele sofrimento foi terrível Ela faz uma pausa Ficamos sentadas em silêncio em nossa dor compartilhada e ainda assim separada Não acho que lhe agradeci diz ela finalmente Quando enterramos nosso filho você me falou duas coisas que eu nunca esqueci Você disse A vida será boa novamente e Se você conseguir sobreviver a isso conseguirá sobreviver a qualquer coisa Repeti essas frases para mim mesma várias vezes Ela busca as fotos das filhas na bolsa duas meninas nascidas em Israel no início dos anos 1950 Fiquei com muito medo de tentar outra vez Mas a vida tem uma maneira de resolver problemas eu acho Sofri fiquei de luto Então peguei todo o amor que eu tinha por meu bebê e decidi que não ia colocálo em minha perda mas no meu casamento e depois nos filhos que nasceriam Seguro os dedos dela com a minha mão Penso na linda imagem da semente A semente da minha vida e do amor foi introduzida em um solo difícil mas se enraizou e deu frutos Olho para Béla do outro lado da mesa penso em nossos filhos e na notícia que Marianne me deu recentemente de que ela e o marido Rob iriam começar uma família A próxima geração É aí que o amor que sinto por meus pais sobreviverá Ano que vem em El Paso prometemos ao partir Em casa escrevi a dissertação e completei o estágio clínico final no Centro Médico Militar William Beaumont no Texas Tive a sorte de conseguir fazer os estágios tanto do mestrado quanto do doutorado no William Beaumont Foi uma posição concorrida e desejada um cargo de prestígio um local onde os melhores palestrantes e professores se sucediam Eu não sabia que o verdadeiro benefício da posição seria a exigência de que eu olhasse mais intensamente para dentro de mim Um dia chego ao trabalho e visto o jaleco branco que traz no bolso meu nome DRA EGER DEPARTAMENTO DE PSIQUIATRIA Durante meu tempo no William Beaumont desenvolvi a reputação de ser uma pessoa disposta a ir além dos requisitos técnicos da minha posição como ficar a noite toda vigiando um suicida e assumir os casos mais desanimadores dos quais os outros profissionais abriram mão Hoje recebi dois novos pacientes ambos veteranos do Vietnã ambos paraplégicos Eles têm o mesmo diagnóstico lesão medular o mesmo prognóstico fertilidade e função sexual comprometidas improbabilidade de voltar a andar bom controle das mãos e do tronco No caminho para encontrá los ainda não sei que um deles terá um efeito transformador em mim O primeiro que conheço é Tom Ele está deitado na cama em posição fetal xingando Deus e o país Ele parece preso em seu corpo ferido em sua angústia em sua raiva Quando vou para a outra sala de veteranos encontro Chuck fora da cama e sentado em uma cadeira de rodas É interessante diz ele Recebi uma segunda chance na vida Não é incrível Ele está transbordando com a sensação de descoberta e de possibilidade Sento nesta cadeira de rodas e vou até o gramado saio pelo terreno e as flores ficam bem mais próximas Posso ver os olhos das crianças O importante quando conto essa história para meus pacientes atuais ou me dirijo ao público em uma palestra é que cada pessoa tem um pouco de Tom e de Chuck Ficamos destruídos pela perda e achamos que nunca vamos recuperar o sentimento de individualidade e de propósito que não vamos nos curar Porém apesar na verdade por causa das lutas e tragédias de nossas vidas cada um de nós tem a capacidade de abraçar a perspectiva que nos transforma de vítima em alguém bemsucedido Podemos optar por assumir a responsabilidade por nossas dificuldades e por nossa cura Podemos escolher ser livres O que ainda é difícil de admitir no entanto é que quando encontrei Tom sua raiva me atraiu Fodase América Tom grita quando entro no quarto naquele dia Foda se Deus Penso comigo mesma ele está desabafando a raiva Testemunhar a fúria dele desperta a enorme fúria que trago em mim a necessidade de expressá la de liberála Fodase Hitler Fodase Mengele Seria um baita alívio Mas sou a médica aqui Tenho que assumir o meu papel me apresentar como se estivesse no controle da situação e tendo as soluções mesmo que por dentro eu queira socar a parede derrubar uma porta gritar chorar e me jogar no chão Olho para o bolso do meu jaleco Dra Eger Departamento de Psiquiatria e por um momento nele parece estar escrito Dra Eger Impostora Quem sou eu na verdade Será que eu sei quem sou Estou muito assustada com a sensação da máscara se desmanchando de perceber o quanto sou perturbada de sentir toda a raiva que me assombra Por que eu Como isso pôde acontecer Minha vida mudou irremediavelmente e estou furiosa Era eletrizante ver Tom porque ele era muito explícito em expressar o que eu escondia Eu tinha muito medo da desaprovação e da raiva dos outros tinha medo da minha raiva como uma força destrutiva Não me permitia vivenciar os sentimentos temerosa de que se começasse a deixálos sair talvez eu nunca parasse e me transformasse em um monstro De certa forma Tom era mais livre do que eu pois ele se permitia sentir a raiva dizer as palavras que eu mal conseguia pensar muito menos falar Eu queria deitar no chão e gritar com ele Na terapia timidamente digo que quero experimentar expressar minha raiva mas com um profissional presente para me acalmar se eu não conseguir me controlar Deito no chão Tento gritar mas não consigo Estou assustada demais então me encolho cada vez mais Preciso sentir um limite ao meu redor uma fronteira onde exista algo em que me encostar Digo para meu terapeuta sentar sobre mim Ele é pesado seu peso quase me sufoca Acho que vou desmaiar Estou a ponto de pedir que ele me deixe levantar e desistir dessa experiência boba Mas então um grito sai de mim tão longo e forte e angustiado que me assusta Que dor horrorosa me faria produzir um barulho como aquele Não consigo parar de gritar A sensação é boa Mais de trinta anos de fantasmas silenciados saem uivando de mim agora despejando minha tristeza garganta afora A sensação é boa Eu grito grito empurro o peso que me esmaga Meu terapeuta não facilita as coisas e o esforço me faz chorar e suar O que acontece O que acontece quando uma parte de mim há muito tempo reprimida é liberada Nada acontece Sinto a força da ira e apesar de tudo ela não me mata Estou bem Estou bem Estou viva Ainda não é fácil falar sobre o passado É profundamente doloroso enfrentar o medo e a perda toda vez que eu me lembro ou falo do passado Mas a partir daquele momento entendi que os sentimentos independentemente de sua intensidade não são fatais E eles são temporários Reprimir os sentimentos apenas os torna mais difíceis de serem resolvidos A expressão é o oposto da depressão Em 1978 John se formou pela Universidade do Texas entre os dez alunos mais bem colocados e eu conquistei um PhD em Psicologia Clínica Foi um ano de triunfos para nossa família Decidi fazer minha licenciatura na Califórnia lá estava eu colocando novamente os meus sapatinhos vermelhos que além das necessidades do ego de provar o meu valor como se um pedaço de papel pudesse fazer isso tinha a vantagem prática de me permitir trabalhar em qualquer lugar do país Lembrei da luta de Béla para conquistar a licença de contador profissional e me preparei para uma jornada difícil Eu precisava de três mil horas de atendimento clínico para me credenciar para a prova mas consegui o dobro do exigido Não me inscrevi para fazer a prova antes de ter seis mil horas quase todas no William Beaumont onde conquistei uma reputação tão boa que fui convidada a conduzir sessões por trás de um vidro espelhado de modo que meus colegas psicólogos pudessem observar minha maneira de construir afinidades de estabelecer uma relação de confiança e de orientar os pacientes em suas novas escolhas Então chegou a hora de enfrentar o teste escrito Eu era péssima em testes de múltipla escolha precisei estudar durante meses para passar até mesmo no exame de motorista De alguma forma por meio de uma persistência corajosa ou por pura sorte passei no exame escrito Mas não na primeira tentativa Por fim fiz a prova oral que eu achava que seria a parte mais fácil do processo Dois homens conduziram a entrevista um de jeans e rabo de cavalo e o outro de terno e cabelo cortado curto Eles me entrevistaram durante horas O homem de rabo de cavalo falava de maneira dura lacônica me fazendo perguntas sobre estatísticas ética e questões legais O homem de cabelo curto fazia todo tipo de pergunta filosófica o que obrigava minha mente a trabalhar de maneira mais criativa e deixava meu espírito mais empenhado De maneira geral no entanto foi uma experiência desagradável Eu me senti tensa entorpecida e vulnerável Os examinadores não facilitaram seus rostos inexpressivos as vozes frias e o distanciamento emocional me tiraram do sério Era difícil me concentrar na pergunta seguinte quando a anterior havia me levado a acionar minha autocrítica e o desejo de voltar e rever o que tinha falado ou dizer algo qualquer coisa que provocasse um aceno de reconhecimento ou de incentivo Quando o teste finalmente acabou eu estava tonta com as mãos tremendo faminta e ao mesmo tempo enjoada e com dor de cabeça Eu estava certa de que tinha ido mal Ao chegar à porta da frente escutei passos atrás de mim como se alguém estivesse correndo para me alcançar Será que deixei a bolsa tamanha a desorientação Será que eles já iam me dizer que eu tinha sido reprovada Dra Eger o homem de cabelo curto chamou Cruzei os braços como se estivesse esperando uma punição Ele me alcançou fez uma pausa para recuperar o fôlego Meu maxilar e meus ombros travaram Por fim o homem estendeu a mão Dra Eger foi uma honra Você tem um conhecimento muito rico Seus futuros pacientes terão realmente muita sorte Quando voltei ao hotel pulei na cama como uma criança C A P Í T U L O 1 6 A escolha Meu alegre otimismo meu sentimento de realização profissional a sensação de que eu estava atingindo a plenitude da autoexpressão desapareceram quando montei meu consultório particular e atendi o primeiro paciente Eu o visitara no hospital em que ele estava internado havia um mês à espera de um diagnóstico fazendo um tratamento para o que acabou se revelando ser um câncer de estômago Ele estava aterrorizado Sentiase traído por seu corpo ameaçado por sua mortalidade e esmagado pela incerteza e pela solidão da doença E eu não conseguia alcançálo no lugar onde ele estava Toda a minha técnica em estabelecer um ambiente de cordialidade e confiança em construir uma ponte entre mim e o paciente desapareceu Eu me senti como uma criança fantasiada de médica com meu jaleco branco Uma fraude Minhas expectativas a meu respeito eram tão altas o medo do fracasso tão avassalador que eu não conseguia ver além de minha própria autorreferência para alcançar o homem que estava pedindo minha ajuda e meu amor Será que um dia voltarei a ter saúde ele perguntou e minha mente acionou rapidamente uma espécie de agenda interna Passando por teorias e técnicas meus olhos miraram a parede tentando disfarçar o quanto eu estava nervosa e assustada Não consegui ajudálo Ele não me convidou a voltar Percebi como havia percebido quando conheci Tom o veterano de guerra paraplégico que o meu sucesso profissional tinha que vir de um lugar profundo em mim não da garotinha tentando agradar os outros e conquistar aprovação mas do meu verdadeiro eu que era vulnerável e curioso e que estava se aceitando e pronto para amadurecer Em outras palavras comecei a articular um novo relacionamento com o meu trauma Não se tratava de silenciar reprimir evitar negar Era um poço ao qual eu podia recorrer uma fonte profunda de compreensão e intuição sobre meus pacientes sobre a dor deles e o caminho para a cura Meus primeiros anos de consultório me ajudaram a repensar o meu sofrimento como algo necessário e útil e também para moldar e desenvolver meus princípios terapêuticos mais sólidos Muitas vezes os pacientes que atendi refletiam as minhas próprias descobertas sobre a jornada para a liberdade Da mesma forma muitas vezes eles me ensinaram que a minha busca pela liberdade estava incompleta e me levaram na direção da cura Embora minha paciente fosse Emma conheci primeiro seus pais Eles nunca tinham conversado com ninguém muito menos com uma estranha sobre o segredo de sua família Emma a filha mais velha estava morrendo literalmente de fome Eles eram pessoas fechadas reservadas conservadoras uma família de descendentes de alemães Seus rostos estavam crispados de preocupação os olhos cheios de medo Estamos procurando uma solução prática me disse o pai de Emma na primeira visita Temos que fazêla voltar a comer Soubemos que você é uma sobrevivente acrescentou a mãe de Emma Achamos que Emma poderia aprender com você que você poderia inspirála Era doloroso ver o pânico o choque que sentiam em relação à vida de Emma Nada na vida os havia preparado para uma filha com transtorno alimentar Eles nunca tinham pensado que algo assim poderia acontecer com sua filha e com sua família Nenhuma das ferramentas parentais existentes surtia efeito positivo sobre a saúde de Emma Eu queria tranquilizálos aliviar sua aflição mas também queria que eles começassem a enxergar uma verdade que podia ser até mais dolorosa para eles do que a doença de Emma eles tinham uma parcela de responsabilidade Quando uma criança ou jovem é diagnosticado com anorexia o paciente identificado para tratamento é a criança mas o verdadeiro paciente é a família Eles queriam me contar cada detalhe dos comportamentos de Emma que os preocupava a comida que ela recusava ou fingia comer A comida que eles encontravam escondida nos guardanapos ou nas gavetas após as refeições em família a maneira como ela se afastava e se recolhia atrás de portas fechadas e as assustadoras mudanças no corpo dela Mas em vez disso pedi que falassem deles mesmos o que fizeram com nítido desconforto O pai de Emma era baixo e troncudo Havia sido jogador de futebol Percebi com malestar que ele se parecia muito com Hitler devido ao bigodinho fino ao cabelo escuro penteado rente ao couro cabeludo e ao jeito de falar meio latindo como se por trás de cada comunicação houvesse a insistência em não ser ignorado Depois nas sessões individuais com os pais de Emma perguntei a ele como tinha decidido abraçar a carreira policial Ele contou que mancava quando era criança e que o pai dele o chamava de anãocambeta Ele decidiu ser policial porque a profissão exigia força física e a disposição para correr riscos Ele queria provar ao pai que não era anão nem aleijado Quando você tem algo a provar você não é livre Apesar de não saber nada sobre a infância do pai de Emma no primeiro encontro dava para ver que vivia em uma prisão criada por ele mesmo dentro da imagem restrita de quem deveria ser Ele se comportava mais como um sargento severo do que como um marido solidário ou pai preocupado Ele não fazia perguntas ele conduzia um interrogatório Ele não reconhecia seus medos e vulnerabilidades afirmava o próprio ego Sua esposa tinha um visual ao mesmo tempo clássico e prosaico usando um vestido de algodão sob medida abotoado na frente e com um cinto fino parecendo muito alinhada com o tom e o discurso dele Ele falou durante alguns minutos sobre as frustrações no trabalho quando foi preterido em uma promoção e pude vêla procurar com cuidado um ponto de equilíbrio entre confirmar a indignação dele e atiçar sua ira Era nítido que ela havia aprendido que o marido precisava estar certo e que ele não aceitava ser confrontado ou contrariado Em nossa sessão individual fiquei impressionada com a desenvoltura dela em diferentes tarefas domésticas cortava a grama fazia muitos consertos e costurava as próprias roupas e a aparente contradição entre suas habilidades e o poder que dava ao marido o preço que ela pagava para manter a paz Seu hábito de evitar a todo custo conflitos com o marido era tão prejudicial para a saúde da filha e para a dinâmica familiar quanto o comportamento dominador dele Eles eram parceiros em transformar o controle não a conexão empática nem o amor incondicional na linguagem da família Isso é perda de tempo disse o pai de Emma depois de responder às perguntas sobre trabalho rotina familiar e como eles celebravam feriados Simplesmente diga o que temos que fazer Sim diga como podemos fazer Emma sentar à mesa na hora das refeições pediu a mãe Diga como podemos fazêla comer Sei que vocês estão preocupados com Emma e desesperados por respostas e soluções prontas Mas se vocês querem que Emma fique boa a primeira missão é entender que na anorexia a questão não é apenas o que Emma come mas também o que a está comendo Não era possível simplesmente curála e mandála de volta saudável eu disse a eles Convideios a me ajudar a serem meus terapeutas assistentes e a observarem a filha mas não com o propósito de obrigála a fazer ou ser qualquer coisa diferente e sim de prestar atenção em seus estados emocionais e comportamentos Juntos poderíamos construir uma imagem mais clara da paisagem emocional de Emma e nos familiarizarmos com os aspectos psicológicos da doença Ao pedir a ajuda e a cooperação deles eu esperava induzilos a entender o próprio papel na doença da filha Era um estímulo para que assumissem a responsabilidade pela contribuição em relação ao que estava comendo Emma Na semana seguinte encontrei Emma pela primeira vez Ela tinha 14 anos Era como encontrar o meu próprio fantasma Ela se parecia comigo em Auschwitz esquelética pálida definhando O cabelo louro comprido e pegajoso fazia o rosto parecer ainda mais magro Ela ficou em pé na porta do meu consultório as mangas extralongas escondendo as mãos Parecia uma pessoa com um segredo É importante ser sensível aos limites psicológicos desde os primeiros momentos do primeiro encontro com qualquer paciente novo Preciso intuir imediatamente se a pessoa quer que eu a pegue pela mão ou mantenha uma distância física se ela precisa que eu dê uma ordem ou faça uma sugestão sutil Para uma paciente com anorexia uma doença que tem tudo a ver com controle com regras implacáveis para o que e quando você come ou não come e com o que você revela ou oculta os primeiros momentos são críticos Por um lado a anorexia tem uma inescapável dimensão psicológica A falta de nutrientes faz com que a maior parte das poucas calorias consumidas sejam utilizadas pelas funções autônomas do corpo respiração excreção deixando o cérebro privado de fluxo de sangue o que leva ao pensamento distorcido e nos casos mais graves à paranoia Como psicóloga no início de um relacionamento terapêutico com uma pessoa com anorexia não posso esquecer que estou me comunicando com alguém cuja função cognitiva provavelmente está alterada Um gesto habitual como colocar a mão no ombro para encaminhar a pessoa até a cadeira por exemplo pode ser mal interpretado como algo ameaçador ou invasivo Quando cumprimentei Emma pela primeira vez tentei demonstrar simultaneamente simpatia e neutralidade em minha linguagem corporal Como a pessoa anoréxica é uma especialista em controle é importante desarmar sua necessidade de controle oferecendo liberdade Ao mesmo tempo é imprescindível criar um ambiente estruturado onde exista segurança nos rituais e nas regras claras Por conhecer seus pais eu sabia que a linguagem da família era cheia de críticas e culpas então comecei a sessão com um elogio Obrigada por vir disse eu Estou muito feliz por finalmente conhecê la E obrigada por ser pontual Quando ela preferiu se sentar no sofá expliquei que tudo o que ela me contasse seria confidencial a menos que sua vida estivesse em perigo Então fiz um convite aberto gentil Você sabe seus pais estão muito preocupados com você Eu estou interessada em saber a verdadeira história Há algo que você queira me dizer Emma não respondeu Ficou olhando para o tapete e puxando ainda mais as mangas sobre as mãos Tudo bem ficar em silêncio disse eu Mais silêncio se instalou entre nós Esperei Esperei mais um pouco Sabe comentei depois de um tempo tudo bem você precisar de algum tempo mas eu tenho uma papelada que devo colocar em dia Vou trabalhar na outra sala Quando estiver pronta me avise Ela me olhou com desconfiança Numa casa onde a disciplina punitiva é a regra as crianças se acostumam a ouvir ameaças Essas ameaças podem se intensificar rapidamente ou no outro extremo se mostrar vazias Embora eu falasse de forma educada ela estava avaliando se minhas palavras e o meu tom de voz iam se tornar uma crítica raivosa ou uma repreensão se eu ia realmente sair da sala ou se era alguém fácil de manipular Acho que ela ficou surpresa quando levantei atravessei a sala e abri a porta Só então quando minha mão estava na maçaneta ela falou Estou pronta Obrigada respondi voltando à cadeira Estou feliz em ouvir isso Ainda temos 40 minutos de sessão Vamos usálos bem Tudo bem se eu fizer algumas perguntas Ela deu de ombros Conte como é um dia normal para você A que horas você acorda Ela revirou os olhos mas respondeu à minha pergunta Continuei nessa linha Ela tinha um rádiorelógio ou só um alarme ou o pai ou a mãe iam acordála Ela gostava de ficar debaixo das cobertas um pouco mais ou saía da cama rapidamente Perguntei sobre coisas banais para entender o cotidiano dela mas nenhuma pergunta tinha a ver com comida É muito difícil alguém com anorexia ver vida fora da comida Eu já sabia por seus pais que o foco dela na comida era controlar a família que toda a atenção deles estava voltada para a doença dela Eu intuí que ela esperava que eu também só me interessasse por sua doença Eu estava tentando atrair a atenção dela para outras partes da vida e desmontar ou pelo menos suavizar suas estruturas defensivas Quando acabei de explorar um dia em sua vida fiz uma pergunta que ela não sabia responder O que você gosta de fazer perguntei Não sei respondeu ela Quais são os seus hobbies O que você gosta de fazer em seu tempo livre Não sei Fui até o quadro branco que mantinha no consultório e escrevi Não sei À medida que eu perguntava sobre os interesses dela suas paixões suas vontades eu colocava uma marca para cada vez que ela dizia Não sei O que você sonha fazer na vida Não sei Se você não sabe então chute Não sei Vou pensar sobre isso Muitas garotas na sua idade escrevem poemas Você escreve poemas Emma deu de ombros Às vezes Onde você gostaria de estar daqui a cinco anos Que tipo de vida e de carreira a atrai Não sei Estou percebendo que você fala muito Não sei Mas quando a única coisa que você pensa é Não sei isso me entristece pois significa que não está consciente de suas opções E sem opções ou escolhas você não está realmente vivendo Você pode fazer uma coisa por mim Você topa pegar essa caneta e fazer um desenho Acho que sim Ela foi até o quadro e tirou a mão magra de dentro da manga comprida para pegar a caneta Faça um desenho de você neste momento Como você se vê Ela tirou a tampa da caneta e com os lábios crispados desenhou rapidamente e se virou para que eu pudesse ver o desenho uma garota baixa gorda com o rosto em branco vazio Era um contraste devastador Emma esquelética ao lado de um desenho que a representava gorda e sem rosto Você se lembra de um momento em que se sentiu diferente Quando você era feliz bonita e divertida Ela pensou pensou mas não disse Não sei Por fim acenou com a cabeça e disse Quando tinha 5 anos Você poderia fazer um desenho dessa garota feliz Quando ela se afastou do quadro vi o desenho de uma bailarina de tutu fazendo um giro Senti a garganta fechar em um espasmo de reconhecimento Você fazia balé Sim Eu adoraria ouvir mais sobre isso Como se sentia quando estava dançando Ela fechou os olhos Eu vi seus calcanhares se juntarem na primeira posição Foi um movimento inconsciente seu corpo se lembrando O que você sente agora ao lembrar Você dá um nome a esse sentimento Ela acenou com a cabeça os olhos ainda fechados Liberdade Você gostaria de se sentir assim novamente Livre Cheia de vida Ela assentiu com a cabeça Colocou a caneta na bandeja e puxou novamente as mangas sobre as mãos E como se matar de fome a deixa mais perto deste objetivo de liberdade perguntei da maneira mais gentil e cordial que pude Não foi uma recriminação mas um esforço para fazêla tomar consciência da inflexibilidade de sua autossabotagem e de que ela tinha ido longe demais Foi um esforço fazêla responder às perguntas mais importantes no início de qualquer jornada em direção à liberdade O que estou fazendo agora Está funcionando É isso que me deixa mais para perto de meus objetivos ou mais distante Emma não respondeu à minha pergunta com palavras Mas em seu silêncio cheio de lágrimas eu podia sentir o reconhecimento de que ela precisava e queria mudar Quando encontrei com Emma junto com os pais pela primeira vez cumprimentei a todos com entusiasmo Tenho boas notícias disse eu compartilhando com eles minha esperança e confiança na nossa capacidade de trabalharmos como uma equipe Minha participação no trabalho foi condicionada à concordância deles de que Emma também devia estar sob os cuidados da equipe médica em uma clínica de distúrbios alimentares porque a anorexia é uma doença grave e potencialmente fatal Se Emma chegasse a um determinado peso que seria definido em uma consulta com a equipe médica da clínica teria que ser hospitalizada Não posso arriscar deixar você morrer por algo que pode ser evitado disse eu a Emma Um mês ou dois depois de ter começado a trabalhar com Emma seus pais me convidaram para ir à casa deles para uma refeição em família Conheci todos os irmãos da Emma Percebi que a mãe de Emma me apresentou a cada um dos filhos com qualificadores esta é Gretchen a tímida e Peter o engraçado e Derek o responsável Emma já tinha se apresentado para mim a doente Você dá nomes aos filhos e eles entram no jogo É por isso que acho útil perguntar aos pacientes Como a família te descrevia quando criança Na minha infância Klara era a prodígio Magda era a rebelde e eu era a confidente Eu era mais valiosa para os meus pais como ouvinte um repositório para seus sentimentos quando era invisível Com certeza à mesa Gretchen era tímida Peter era engraçado e Derek era responsável Eu queria ver o que aconteceria se eu quebrasse o código se convidasse uma das crianças a desempenhar um papel diferente Você tem um rosto muito bonito eu disse a Gretchen A mãe me chutou por baixo da mesa Não diga isso ela me recriminou baixinho Ela vai acabar ficando convencida Depois do jantar enquanto a mãe de Emma arrumava a cozinha Peter que ainda era um bebê puxou sua saia pedindo atenção Como ela o afastou suas tentativas de fazêla parar o que estava fazendo para pegálo no colo ficaram cada vez mais frenéticas Por fim ele engatinhou para fora da cozinha e foi direto para a mesinha de centro onde estavam alguns bibelôs de porcelana A mãe correu atrás dele o agarrou e bateu nele dizendo Eu já não disse para não mexer nisso A abordagem disciplinadora que prega é de pequeno que se torce o pepino criou um ambiente onde as crianças pareciam obter apenas atenção negativa atenção ruim afinal de contas era melhor do que nenhuma atenção O ambiente rigoroso a natureza binária das regras e dos papéis impostos às crianças a nítida tensão entre os pais tudo traz um ambiente perfeito para uma faminta emocional em casa Também presenciei a atenção bastante inapropriada que o pai deu à Emma E aí gatinha ele cumprimentou quando ela se juntou a nós na sala de estar após o jantar Eu a vi se encolher no sofá tentando se cobrir Controle disciplina punitiva incesto emocional não admira que Emma estivesse morrendo em meio à abundância Como todas as famílias aquela precisava de regras mas regras bem diferentes das que eles seguiam Então ajudei Emma e seus pais a criarem uma constituição familiar na qual ajudariam uns aos outros a cumprir uma lista de regras para melhorar o ambiente em casa Primeiro eles conversaram sobre os comportamentos que não estavam funcionando Emma disse aos pais que ficava assustada com o tanto que eles gritavam e culpavam um ao outro e de como se ressentia quando eles mudavam as regras ou as expectativas na última hora a hora de voltar para casa e as tarefas que ela tinha que terminar antes de poder assistir à TV por exemplo O pai disse que se sentia isolado na família e que parecia ser o único a disciplinar as crianças Curiosamente a mãe de Emma disse algo parecido que ela se sentia educando as crianças sozinha Da lista de hábitos e comportamentos ruins que eles queriam abandonar montamos uma relação de coisas que eles concordaram em começar a fazer 1 Em vez de culpar os outros assumir a responsabilidade por suas próprias ações e palavras Antes de dizer ou fazer alguma coisa perguntar Isso é legal Isso é importante Isso ajuda 2 Usar o trabalho em equipe para atingir objetivos em comum Se a casa precisa ser limpa cada membro da família tem uma tarefa apropriada para a idade Se a família está saindo para ir ao cinema escolher juntos qual filme ver ou se alternar na hora de escolher Pensar na família como um carro em que todos os pneus são integrados e trabalham juntos para ir onde é necessário nenhuma roda assume o controle nenhuma roda aguenta todo o peso 3 Ser consistente Se o horário de chegada já foi estabelecido a regra não pode mudar na última hora Em geral a regra na família de Emma era desistir de controlar o outro Tratei de Emma durante dois anos Nesse período ela completou o programa ambulatorial da clínica de transtorno alimentar Ela parou de jogar futebol uma coisa que seu pai a forçou a fazer quando ela entrou no ensino fundamental e voltou para a aula de balé e então começou outras aulas de dança salsa e dança do ventre A expressão criativa o prazer que ela tinha ao acompanhar a música e o ritmo levou a uma apreciação do seu corpo o que lhe deu uma autoimagem mais saudável Já no fim de nossa temporada juntas aos 16 anos ela conheceu um garoto na escola e se apaixonou Esse relacionamento lhe deu outra motivação para viver e ser saudável Quando ela parou a terapia comigo seu corpo havia voltado ao normal e seu cabelo estava forte e brilhante Ela tinha virado a versão atualizada do desenho da bailarina fazendo um rodopio No verão do primeiro ano de Emma no ensino médio sua família me convidou para um churrasco em sua casa Eles ofereceram um banquete maravilhoso costela feijão salada de batata à moda alemã pães caseiros Emma ficou ao lado do namorado encheu o prato de comida riu flertou Seus pais irmãos e amigos se espalharam satisfeitos pelo gramado e em cadeiras desmontáveis A comida já não era mais uma linguagem negativa na família Os pais de Emma embora não tivessem mudado completamente o tom de seu casamento ou da educação que davam aos filhos aprenderam a dar a Emma o que ela havia aprendido a dar a ela mesma o espaço e a confiança para encontrar o lado bom da vida Sem obrigação de viverem consumidos pelo medo do que podia acontecer com Emma eles se sentiam livres para viver a própria vida Agora uma vez por semana jogavam bridge à noite com um grupo de amigos e haviam deixado de lado boa parte da preocupação irritação e necessidade de controle que envenenara a vida da família por tanto tempo Fiquei aliviada e emocionada ao ver Emma voltar a ser Emma A jornada dela também me obrigou a refletir sobre mim mesma Edie Será que eu também estava fazendo uma jornada com minha própria bailarina interior Eu estava vivendo com sua curiosidade e com seu êxtase Na mesma época que Emma parou de fazer terapia minha primeira neta Lindsey filha de Marianne começou a ter aulas de balé Marianne me enviou uma foto de Lindsey de tutu rosa com os fofos pezinhos rechonchudos enfiados num par de minissapatilhas rosadas Chorei ao ver a foto Lágrimas de alegria claro Contudo havia também uma dor no meu peito que tinha a ver com perda Eu podia imaginar a vida de Lindsey florescendo a partir daquele momento Suas apresentações e recitais ela com certeza continuaria a estudar balé e dançaria O quebranozes todos os invernos de sua infância e adolescência e a felicidade que senti prevendo tudo que ela aguardaria com ansiedade não podia ser desvinculada da tristeza que eu sentia pela minha própria vida interrompida Quando nos entristecemos não é apenas pelo que aconteceu mas também pelo que não aconteceu Guardei um ano de horror dentro de mim Guardei em um lugar vazio e desocupado a imensa escuridão da vida que nunca aconteceria Suportei o trauma e a ausência pois não podia abrir mão de nenhuma parte de minha verdade ou mantêla com facilidade Encontrei outra pessoa parecida comigo a professora Agnes uma mulher que conheci em um spa em Utah onde fiz uma palestra para sobreviventes de câncer de mama sobre a importância do autocuidado na promoção da cura Ela era jovem estava com 40 e poucos anos mantinha o cabelo preto preso num coque baixo e usava um vestido tipo bata de cor neutra abotoado até o pescoço Se ela não fosse a primeira da fila de candidatas para uma sessão individual em meu quarto de hotel depois da palestra talvez eu não a tivesse notado Discreta mesmo quando estava na minha frente seu corpo mal era visível sob as roupas Desculpe tenho certeza de que existem outras pessoas que merecem mais o seu tempo disse ela quando abri a porta para convidála a entrar Eu a acompanhei até a cadeira perto da janela e ofereci um copo de água Ela parecia constrangida com as minhas pequenas gentilezas Sentouse bem na ponta da cadeira e segurou com uma postura rígida o copo de água como se tomar um gole fosse uma imposição na minha hospitalidade Eu realmente não preciso de uma hora inteira Tenho apenas uma pergunta rápida Sim querida Digame em que posso ser útil Ela tinha ficado interessada em algo que eu dissera na palestra Eu havia compartilhado um velho ditado húngaro que aprendi quando menina Não guarde a raiva em seu peito Dei um exemplo de convicções e sentimentos de autoencarceramento que mantive ao longo da vida a crença de que eu tinha que ser aprovada pelos outros e de que nada do que eu fizesse seria bom o suficiente para me tornar digna de ser amada E convidei as mulheres da plateia a se perguntarem Que sentimento ou crença está me prendendo Estou disposta a me livrar deste sentimento ou crença Agnes agora me pergunta Como sei se há alguma coisa me atrapalhando Essa é uma ótima pergunta Quando falamos sobre liberdade não há uma resposta que satisfaça todo mundo Você tem algum palpite Seu instinto lhe diz que há algo internamente tentando atrair sua atenção É um sonho Ela contou que desde o diagnóstico de câncer que recebera havia alguns anos e mesmo naquele momento que a doença estava em remissão tinha o mesmo sonho Nele ela está se preparando para realizar uma cirurgia Ela veste a bata azul coloca a máscara no rosto prende o cabelo comprido dentro de uma touca descartável e diante de uma pia lava as mãos repetidas vezes Quem é a paciente Não tenho certeza São pessoas diferentes Às vezes é meu filho às vezes é meu marido minha filha ou alguém do passado Por que você está realizando a cirurgia Qual é o diagnóstico do paciente Não sei Acho que muda Como você se sente quando está realizando a cirurgia Como se minhas mãos estivessem pegando fogo E como você se sente quando acorda Você se sente energizada ou cansada Depende Às vezes quero voltar a dormir para poder continuar trabalhando a cirurgia ainda não terminou Às vezes eu me sinto triste e cansada como se fosse um procedimento inútil O que você acha que esse sonho quer dizer Eu pensei em fazer Medicina mas tivemos que pagar o mestrado em Administração de meu marido então vieram os filhos e depois o câncer Nunca era a hora certa É por isso que eu queria falar com você Você acha que estou tendo esses sonhos porque devo fazer a faculdade de Medicina agora nessa fase tão tardia da vida Ou você acha que eu estou tendo esse sonho porque é hora de finalmente esquecer a fantasia de me tornar médica O que a atrai na medicina Ela pensou antes de responder Ajudar as pessoas mas também descobrir o que realmente está acontecendo descobrir a verdade o que está sob a superfície e resolver o problema A vida não é perfeita nem a medicina Como você sabe as doenças podem ser difíceis de tratar Dor cirurgia tratamentos mudanças físicas alterações de humor Não há garantia de recuperação O que a ajudou a viver com câncer Que verdades ou convicções você está usando para guiála ao longo da doença Não ser um peso Não quero que o meu sofrimento magoe ninguém mais Como você gostaria de ser lembrada Seus olhos acinzentados claros se encheram de lágrimas Como uma pessoa boa O que boa significa para você Generosa tranquila desprendida que faz o que é certo Uma pessoa boa pode reclamar Ou ficar zangada Esses não são os meus valores Ela me lembrou de mim mesma antes do veterano paraplégico provocar um encontro com a minha própria raiva A raiva não é um valor eu disse a Agnes É um sentimento Não significa que você é uma pessoa má Significa apenas que está viva Ela parecia cética Eu gostaria que você fizesse um exercício Você vai se virar do avesso Seja o que for que geralmente guarda para si vai botar para fora e tudo o que geralmente bota pra fora vai engolir Peguei um bloco oferecido pelo hotel e dei a ela com uma caneta Cada pessoa em sua família nuclear ganha uma frase Quero que escreva algo que jamais disse a essa pessoa Pode ser um desejo ou um segredo ou um arrependimento pode ser um detalhe como Eu gostaria que você colocasse suas meias sujas na máquina de lavar A única regra é que seja algo que você nunca disse em voz alta Ela deu um meio sorriso nervoso Você vai realmente me obrigar a dizer essas coisas O que você vai fazer com elas é decisão sua Você pode rasgar as folhas em pedacinhos e jogar tudo no vaso sanitário ou tocar fogo nelas Só quero que você coloque essas palavras para fora de seu corpo e as anote Ela ficou sentada em silêncio por alguns minutos e depois começou a escrever Várias vezes ela riscou alguma coisa Por fim levantou os olhos Como você se sente Um pouco tonta Confusa Sim Então está na hora de você se preencher novamente mas agora com as coisas que você geralmente dá às outras pessoas Recoloque internamente todo esse amor essa proteção e esse cuidado Pedi que Agnes se imaginasse diminuindo de tamanho ficando tão pequena a ponto de poder entrar pelo próprio ouvido Pedi que rastejasse pelo canal auditivo e descesse pela garganta e pelo esôfago até chegar ao estômago Enquanto ela viajava por dentro do próprio corpo pedi que encostasse suas pequenas mãos com muito amor em cada parte por onde passasse Nos pulmões no coração na coluna e ao longo de cada perna e braço Orientei que acariciasse cada órgão músculo osso e veia com mãos acolhedoras Leve amor a todos os lugares Seja sua própria provedora sua estimuladora especial disse eu Demorou um pouco para ela se acostumar e permitir que sua atenção se afastasse da experiência superficial Agnes ficou se mexendo na cadeira tirando uma mecha de cabelo da testa pigarreando mas de repente sua respiração tornouse mais profunda e lenta e o corpo ficou imóvel Bastante relaxada enquanto se aventurava internamente seu rosto parecia tranquilo Antes de eu orientála a sair pelo canal auditivo perguntei se havia alguma coisa que ela queria dizer sobre o que tinha sentido ou descoberto lá dentro Achei que seria muito escuro aqui dentro explicou ela Mas há muita luz Alguns meses depois Agnes me telefonou e contou novidades trágicas o câncer de mama já não estava em remissão Ele retornara e estava se espalhando rapidamente Ela disse Não sei quanto tempo eu tenho Agnes contou que planejava fazer o exercício de virar do avesso para extravasar a raiva e o medo inevitável que estava sentindo e para se preencher de amor e luz Ela disse que paradoxalmente quanto mais honesta era com a família sobre seus sentimentos mais negativos mais grata se sentia Ao marido disse como se sentia ressentida pelo fato de a carreira dele ter sido prioritária Falar com ele abertamente facilitou Agnes a reconhecer que ter mantido esse sentimento não ajudou ninguém e também descobrir que podia ver com mais nitidez todas as maneiras com que o marido a havia apoiado ao longo do casamento Ela entendeu que podia perdoálo Com o filho adolescente ela não escondeu seus medos sobre a morte tampouco garantiu que a proximidade da morte não deixava espaço para dúvidas Conversou de maneira franca sobre suas incertezas e disse a ele que às vezes simplesmente não sabemos Para a filha que era mais nova e ainda estava no ensino fundamental ela demonstrou o quanto estava zangada com os momentos que perderia como conhecer os primeiros namorados da jovem vêla abrindo as cartas de aceitação nas faculdades e ajudála a escolher o vestido de noiva Ela não reprimiu a raiva como uma emoção inaceitável Ao contrário descobriu o que havia por baixo dela assim como a profundidade e a urgência de seu amor Quando o marido de Agnes me telefonou para contar que ela tinha morrido ele disse que nunca superaria a dor mas que sua morte fora pacífica A qualidade do amor nas suas relações familiares se fortalecera nos últimos meses de vida de Agnes Ela tinha ensinado uma forma mais verdadeira de eles se relacionarem Depois que desliguei o telefone chorei Por culpa de ninguém uma pessoa linda tinha ido embora cedo demais Isso não era justo Era cruel E isso me fez pensar sobre minha própria mortalidade Se eu morresse amanhã morreria em paz Eu tinha realmente aprendido o que Agnes descobrira Encontrara luz dentro de minha própria escuridão Emma me ajudou a questionar como eu estava me relacionando com meu passado Agnes me ajudou a confrontar como eu estava me relacionando com meu presente E Jason Fuller o capitão do exército catatônico que veio ao meu consultório pela primeira vez numa tarde quente de 1980 que permaneceu imóvel e silencioso por longos minutos no sofá branco que obedeceu a ordem que eu finalmente lhe dei de me acompanhar ao parque aonde eu levaria meu cachorro para passear me ensinou como enfrentar uma decisão que determinaria o meu futuro O que aprendi com ele naquele dia afetaria a qualidade da minha vida em todos os anos que eu ainda teria e a qualidade do legado que escolhi passar para meus filhos netos e bisnetos À medida que caminhamos pelo parque o modo de andar de Jason desacelerou Da mesma forma seu rosto relaxou e cada passo trazia mais cor e suavidade Ele parecia mais jovem de repente menos vazio Ainda assim não falava Não planejei o que aconteceria quando voltássemos para o consultório Simplesmente nos mantive em movimento andando e respirando Cada minuto que Jason passava comigo indicava que ele sentindose suficientemente seguro poderia ser alcançado Depois de uma caminhada lenta pelo parque voltamos para o meu consultório Tomei água e ofereci um copo a ele O que viesse a acontecer eu sabia que não poderia ser apressado Eu tinha de fornecer um lugar de confiança absoluta onde Jason pudesse me contar qualquer coisa qualquer sentimento onde ele soubesse que estava seguro e que não seria julgado Ele se sentou novamente no sofá de frente para mim e eu me inclinei em sua direção Como mantêlo aqui comigo Não apenas fisicamente mas pronto para se abrir para se descobrir Juntos tínhamos que encontrar uma maneira de caminhar na direção da compreensão e da cura deixar as emoções e situações que o levaram à catatonia fluírem Para guiálo até o bemestar eu não podia forçálo a falar Precisava acompanhar seu atual estado de espírito suas escolhas e condições atuais permanecer aberta às oportunidades de revelação e mudança Gostaria de saber se você pode me ajudar disse eu finalmente Este é o tipo de abordagem que às vezes uso com um paciente relutante difícil Tiro a atenção do problema do paciente e me torno a pessoa com o problema Apelo para a compaixão do paciente Eu queria que Jason se visse como quem tinha força e possibilidade de oferecer soluções enquanto eu me mostrava como uma pessoa curiosa e meio desesperada pedindo ajuda Realmente quero saber por que você deseja passar o seu tempo aqui comigo Você é jovem é um soldado Eu sou simplesmente uma avó Você poderia me ajudar Ele começou a falar mas então sua garganta se fechou por causa da emoção e ele balançou a cabeça Como eu poderia ajudálo a conviver com seu tumulto interior ou exterior existente sem fugir ou se fechar Me pergunto se você poderia me ajudar a entender um pouco melhor como eu posso lhe ser útil Eu gostaria de ser a sua caixa de ressonância Você me ajudaria um pouco por favor Os olhos dele se fecharam como se ele estivesse reagindo a uma luz brilhante Ou reprimindo lágrimas Minha esposa disse ele finalmente com a garganta se fechando novamente depois de falar Não perguntei de que forma sua esposa o preocupava Não perguntei sobre os acontecimentos Segui na direção do sentimento em suas palavras Eu queria que ele me levasse diretamente profundamente à verdade em seu coração Eu queria que ele fosse a pessoa que eu achava que ele era capaz de ser a pessoa que poderia sair do entorpecimento e sentir Você não pode curar o que não pode sentir Aprendi isso da maneira mais difícil depois de décadas optando por ficar travada e entorpecida Como Jason eu tinha engavetado os meus sentimentos colocado uma máscara O que havia sob a máscara de Jason de sua mudez Perda Medo Parece que você está triste por causa de alguma coisa falei Eu estava tentando adivinhar Ou estava certa ou ele me corrigiria Não estou triste murmurou ele Estou zangado Muito zangado Eu poderia matála Sua esposa Aquela vaca está me traindo Enfim A verdade apareceu Era um começo Conte mais pedi A esposa estava tendo um caso ele me contou Seu melhor amigo o avisara Ele não conseguia acreditar que não havia percebido os sinais Ai meu Deus exclamou ele Ai meu Deus ai meu Deus Ele se levantou Começou a andar de um lado para outro Chutou o sofá Ele tinha se libertado da catatonia e agora estava se mostrando ensandecido agressivo Socou a parede até parar de tanta dor Era como se um interruptor tivesse sido acionado e toda a sua emoção emergisse como um facho de luz vindo de um holofote Ele não estava mais isolado e contido Estava agressivo Vulcânico Quando ele se mostrou desprotegido diante de tudo o que dói meu papel mudou Eu o guiei de volta aos seus sentimentos Devia ajudálo a sentir sem se afogar nos sentimentos sem se perder em sua intensidade Antes de eu poder dizer uma palavra ele ficou no meio da sala e gritou Não posso aceitar isso Vou matála Vou matar os dois Você está tão louco que poderia matála Sim Vou matar aquela vaca Vou fazer isso agora Olha só o que eu tenho Ele não estava exagerando Na verdade estava sendo bastante literal Tirou uma arma de baixo do cinto Vou matála agora Eu devia ter chamado a polícia Minha intuição quando Jason entrou pela porta não tinha sido um alarme falso Agora talvez fosse tarde demais Eu não sabia se Jason e a esposa tinham filhos mas o que imaginei quando Jason exibiu a arma foi o choro de crianças no funeral da mãe Jason atrás das grades as crianças perdendo ambos os pais no calor do impulso de um momento de vingança Não chamei a polícia Não chamei sequer minha assistente para avisála de que eu poderia precisar de ajuda Não havia tempo Não devia interrompêlo Eu ia acompanhar o movimento de sua intenção até a consequência E se você matar agora perguntei Vou fazer isso O que acontecerá Ela merece Ela sabe o que a espera Ela vai lamentar cada mentira que me contou na vida O que acontecerá com você se matar sua esposa Não me importa Ele estava apontando a arma para mim bem para o meu peito segurandoa com as duas mãos seu dedo no gatilho Eu era um alvo Ele podia descarregar sua raiva em mim Puxar o gatilho por engano atirar Não havia tempo para ter medo Seus filhos se importam Eu estava agindo por instinto Não fale nos meus filhos sibilou Jason Ele baixou a arma por um segundo Se puxasse o gatilho agora ele atingiria meu braço a cadeira não o meu coração Você ama seus filhos perguntei A raiva apesar de intensa nunca é a emoção mais importante Ela é apenas o limite externo a fina camada da superfície exposta de um sentimento bem mais forte O verdadeiro sentimento que geralmente está disfarçado sob a máscara de raiva é o medo Não é possível sentir amor e medo ao mesmo tempo Se eu pudesse apelar para o coração de Jason se eu conseguisse fazêlo sentir amor por pelo menos um segundo teria tempo suficiente para interromper o sinal de medo que estava prestes a se tornar violento Sua fúria já estava pausada Você ama seus filhos repeti Jason não respondeu Era como se ele estivesse preso na encruzilhada dos próprios sentimentos contraditórios Eu tenho três filhos falei Duas meninas e um menino E você Dois disse ele Uma menina e um menino Ele fez que sim com a cabeça Conteme sobre seu filho pedi Alguma coisa aconteceu com Jason Um sentimento novo que vi passar pelo rosto dele Ele se parece comigo disse Jason Tal pai tal filho Os olhos dele já não estavam mais focados em mim ou na arma seu olhar estava em outro lugar Ainda não era possível saber o que era esse sentimento novo mas dava para sentir que algo tinha mudado Segui o fio da meada Você quer que seu filho seja como você perguntei Não respondeu ele Por Deus não Por que não Ele fez que não com a cabeça Não estava querendo ir aonde eu o estava levando O que você quer perguntei baixinho Essa é uma pergunta que pode ser assustadora de responder uma pergunta que pode mudar sua vida Não consigo aceitar isso Não quero me sentir assim Você quer parar de sofrer Quero que aquela vaca pague Não vou deixar que ela me faça de bobo ele levantou a arma Você vai retomar o controle sobre sua vida Pode ter certeza que sim Agora eu estava suando Só eu poderia ajudálo a baixar a arma Não havia um roteiro a seguir Ela falhou com você Mais isso acaba agora Você vai se proteger Isso mesmo Você vai mostrar a seu filho como lidar com as coisas Como ser um homem Vou mostrar e ele como não deixar que outras pessoas o magoem Matando a mãe dele Jason ficou paralisado Se você matar a mãe dele será que não estará magoando seu filho Jason olhou para a arma em sua mão Nas consultas futuras ele acabou contando o que passou pela cabeça dele naquele momento Ele me contou sobre o pai um homem violento que o maltratava às vezes com palavras às vezes com os punhos e que é isso que um homem faz um homem é invulnerável um homem não chora um homem está no controle um homem dá as ordens Jason me contou que sempre quis ser um pai melhor do que o que teve mas não sabia como Ele não sabia como ensinar e orientar os filhos sem intimidálos Quando lhe pedi que refletisse sobre como sua escolha em buscar vingança afetaria o filho ele se viu subitamente obrigado a procurar uma possibilidade que até aquele momento não tinha conseguido considerar Um modo de vida que não perpetuasse a violência e a insegurança e que o levasse junto com o filho não ao encarceramento sedutor da vingança mas ao céu amplo e livre de seu potencial Se entendi alguma coisa sobre aquela tarde sobre minha vida inteira é que às vezes os piores momentos de nossas vidas aqueles que nos arrebatam em uma teia de desejos horrendos que ameaçam nos desgastar com a absoluta impossibilidade oferecida pelo sofrimento que devemos suportar são de fato os momentos que nos levam a entender o nosso valor É como se tomássemos consciência de nós mesmos como uma ponte entre tudo o que foi e será Ficamos cientes de tudo o que recebemos e do que podemos escolher perpetuar ou não É como uma vertigem que estimula e aterroriza é como o passado e o futuro que nos rodeiam como um cânion imenso porém transponível Pequenos que somos diante do grande esquema do universo e do tempo cada um de nós é um mecanismo que mantém a roda girando E o que vamos movimentar com a roda de nossa própria vida Vamos continuar apertando o mesmo botão da perda e do arrependimento Vamos mais uma vez nos comprometer e reviver todas as dores do passado Vamos abandonar as pessoas que amamos como resultado de nosso próprio abandono Vamos fazer nossas crianças carregarem o bastão de nossas perdas Ou vamos tirar o melhor do que conhecemos e deixar uma nova colheita florescer no campo de nossa vida Ao desejar vingança empunhar uma arma e ver a si mesmo no rosto do filho Jason foi subitamente capaz de perceber as escolhas disponíveis para ele Ele podia ter escolhido matar ou amar Eliminar ou perdoar Enfrentar a dor ou mais uma vez transmitir a dor Ele abaixou a arma Agora chorava soluçando como se ondas de tristeza quebrassem sobre o seu corpo Ele não conseguia suportar a imensidão do sentimento Ele caiu de joelhos abaixou a cabeça Quase dava para ver os diferentes sentimentos chegando a ele em ondas a dor a vergonha o orgulho ferido a confiança destruída a solidão e a imagem do homem que ele não podia ser e que nunca seria Ele não podia ser o homem que nunca perdeu nada Ele seria sempre o homem que foi espancado e humilhado pelo pai quando era jovem e que foi traído pela esposa Assim como eu sempre serei a mulher cujos pais foram assassinados com gás e tiveram os corpos queimados e transformados em fumaça Jason e eu sempre seremos o que todo mundo é gente que suportará o sofrimento Não podemos apagar o sofrimento mas somos livres para aceitar quem somos e o que fizeram conosco e então seguir em frente Jason se ajoelhou e chorou Eu me juntei a ele no chão As pessoas que amamos e em quem confiamos desapareceram ou nos decepcionaram Ele precisava ser confortado Eu o abracei Puxeio para perto do meu peito e ele desabou em meu colo Eu o confortei e nós choramos até que nossas lágrimas ensoparam a minha blusa de seda Antes de Jason sair de meu consultório exigi que ele deixasse a arma comigo Fiquei com a arma durante anos a ponto de esquecer que ela estava comigo Ao preparar a minha mudança para San Diego descobri a arma ainda carregada na gaveta de minha escrivaninha um lembrete da volatilidade e da dor que nós muitas vezes escolhemos esconder o potencial para o dano que persiste até que a enfrentamos conscientemente e o desmontamos Você está bem para ir embora agora perguntei Você está bem para ir para casa Não tenho certeza Vai ser desconfortável para você ficar sem a arma Você tem algum outro lugar para ir caso a raiva volte Se tiver vontade de machucar ou matar alguém Ele disse que podia ir para a casa do amigo que tinha lhe contado sobre a traição e que o aconselhou a vir me ver Precisamos combinar o que você dirá à sua esposa Elaboramos um roteiro Ele o anotou Ele diria a ela Estou muito triste e chateado Espero que encontremos tempo para conversar sobre isso hoje à noite Ele não teve permissão para falar mais nada até que estivessem sozinhos e somente se conseguisse se comunicar com palavras em vez de com violência Era para ele me ligar imediatamente caso se sentisse incapaz de ir para casa Se os sentimentos homicidas voltassem era para ele encontrar um lugar seguro para sentar ou fazer uma caminhada Feche a porta ou saia Seja você mesmo Respire respire e respire Os sentimentos passarão Prometa que me ligará se começar a perder o controle Retirese da situação fique seguro e me ligue Ele recomeçou a chorar Ninguém nunca se preocupou comigo como você está se preocupando Vamos formar uma boa equipe Sei que você não vai me decepcionar Jason voltou ao meu consultório dois dias depois e demos início a uma relação terapêutica que duraria cinco anos Mas antes de saber como a história dele acabaria eu tinha o meu próprio momento de decisão para enfrentar Assim que Jason saiu guardei a arma e me sentei na poltrona respirando fundo para lentamente recuperar a tranquilidade Aproveitei para olhar a correspondência que minha assistente entregara pouco antes da inesperada chegada de Jason Nela encontrei outra carta que mudou o curso da minha vida Era do capelão do exército americano David Woehr excolega em William Beaumont que estava dirigindo o Centro de Pesquisas Religiosas em Munique na Alemanha Lá ele era responsável pelo treinamento clínico de todos os capelães do exército dos Estados Unidos que atuavam na Europa A carta era um convite para fazer uma palestra para seiscentos capelães em um workshop no mês seguinte Em qualquer outra circunstância eu teria aceitado e ficado honrada e agradecida por ser útil Por causa de minha experiência clínica em William Beaumont e de meu sucesso no tratamento de pessoal da ativa e de combatentes veteranos fui convidada várias vezes para dar palestras para grandes audiências de militares e sempre senti que não era apenas uma honra mas também uma obrigação moral como exprisioneira de guerra e como pessoa libertada por soldados norteamericanos Mas o workshop de Dave seria na Alemanha e não em qualquer lugar da Alemanha Em Berchtesgaden o antigo retiro de Hitler nas montanhas da Baviera C A P Í T U L O 1 7 Então Hitler ganhou Não é o ar gelado que sopra do arcondicionado de meu consultório que me faz tremer Logo estarei fazendo 53 anos Não sou mais uma jovem mãe órfã fugindo da Europa arrasada Não sou mais a imigrante se escondendo de seu passado Agora sou a Dra Edith Eva Eger Eu sobrevivi Eu me esforcei para me curar Uso o que aprendi com meu passado traumático para ajudar os outros a se curarem Muitas vezes sou chamada por organizações de serviço social e de grupos militares para tratar pacientes com transtorno de estresse póstraumático Fui longe desde que fugi para os Estados Unidos Mas não voltei à Alemanha desde a guerra Naquela noite para me distrair da preocupação sobre como Jason estava lidando ao confrontarse com a esposa e para aliviar a minha própria indecisão ligo para Marianne em San Diego e pergunto o que ela acha que eu deveria fazer sobre Berchtesgaden Agora ela é mãe e psicóloga Nós trocamos informações com frequência sobre os pacientes mais desafiadores Assim como foi para Jason nos longos momentos em que ele apontou a arma para mim a decisão agora tem muito a ver com os meus filhos e com o tipo de ferida que carregarão com eles depois que eu morrer uma ferida curada ou uma ferida aberta Não sei mamãe diz Marianne Quero dizer para você ir Você sobreviveu e agora pode voltar e contar a sua história Isso é uma vitória e tanto Mas você se lembra daquela família dinamarquesa que é amiga da família que me hospedou nos tempos da faculdade Eles voltaram a Auschwitz achando que isso lhes traria paz mas apenas reacendeu o trauma Foi muito estressante Os dois sofreram ataques cardíacos quando voltaram para casa Eles morreram mamãe Relembro a ela que Berchtesgaden não é Auschwitz Estarei mais na geografia do passado de Hitler do que na minha embora até trivialidades cotidianas em El Paso possam despertar flashbacks Escuto sirenes e fico gelada vejo arame farpado em torno de um canteiro de obras e abandono o presente e começo a enxergar corpos azuis pendurados na cerca e fico paralisada de medo e lutando pela minha vida Se o dia a dia pode trazer de volta meu trauma como seria estar cercada de pessoas falando alemão Ou imaginar que estou entre antigos membros da Juventude Hitlerista ou ainda entrar na mesma sala onde Hitler e seus conselheiros estiveram Se você acha que há algum ganho vá Estarei do seu lado mas tem que valer a pena Afinal você não tem que provar nada para ninguém afirma Marianne Quando ela fala isso o alívio é imediato Obrigada Marchuka Agora me sinto segura Estou feliz Fiz o meu trabalho Amadureci Posso relaxar agora Posso terminar Posso dizer que estou honrada com o convite mas que é muito doloroso aceitar Dave entenderá Mas quando conto a Béla que decidi recusar o convite ele segura o meu ombro Se você não for à Alemanha então Hitler terá ganhado a guerra diz Não é o que eu quero ouvir Sintome como se tivesse sido atingida por um soco Sou obrigada a admitir que Béla tem razão num ponto é mais fácil colocar a culpa em alguém ou em alguma outra coisa por sua dor do que assumir a responsabilidade para acabar com a própria vitimização Nosso casamento me ensinou que todas as vezes que deixei minha raiva ou frustração desviar minha atenção do trabalho ou de meu crescimento foi mais fácil culpar Béla pela minha infelicidade do que assumir a minha responsabilidade A maioria de nós quer um ditador ainda que seja um benevolente para poder botar a culpa e dizer Você me obrigou a fazer isso Não tenho culpa Mas não podemos passar a vida debaixo do guardachuva de outra pessoa e depois reclamar que estamos nos molhando Uma boa definição de vítima é quando a pessoa mantém o foco longe dela ou quando busca alguém para culpar pelas circunstâncias atuais ou para determinar seu propósito seu destino ou seu valor E é por isso que Béla diz que se eu não for a Berchtesgaden então Hitler terá ganhado O que ele quer dizer é que permaneço na gangorra com o meu passado Enquanto eu puder colocar Hitler ou Mengele ou a ferida exposta da minha perda do outro lado da gangorra então de alguma forma estou absolvida tenho sempre uma desculpa É por isso que estou ansiosa E triste É por isso que não posso me arriscar a ir à Alemanha Não é errado me sentir ansiosa triste e amedrontada Não é que não exista um trauma real no âmago de minha vida muito menos que Hitler e Mengele e todos os outros perpetradores de violências ou crueldades não mereçam ser responsabilizados pelos danos que causaram Mas o fato é que se eu continuar nessa gangorra estarei culpando o passado pelo que escolhi fazer agora Há muito tempo o dedo de Mengele decidiu meu destino Ele decidiu que minha mãe morreria e que eu e Magda viveríamos Em cada fila de seleção o que estava em jogo era a vida e a morte a escolha nunca era minha Mesmo assim na prisão no inferno eu podia escolher como reagir quais seriam as minhas ações meu discurso e o que guardar em minha mente Eu podia escolher se me encostava na cerca eletrificada se me recusava a sair da cama ou se lutava e vivia se pensava na voz de Eric e no strudel de minha mãe se pensava em Magda do meu lado se reconhecia tudo o que ainda tinha para viver mesmo entre o horror e a perda Já se passaram 35 anos desde que saí do inferno Os ataques de pânico vêm a qualquer hora do dia ou da noite eles podem me acometer tanto no antigo bunker de Hitler quanto na minha sala de estar porque meu pânico não é resultado de gatilhos puramente externos Ele é expressão das memórias e dos medos internalizados Se eu me mantiver exilada de uma parte específica do globo terrestre estou de fato dizendo que quero exilar a parte de mim que está com medo Talvez exista algo que eu possa aprender ao me aproximar dessa parte E sobre o meu legado Há poucas horas Jason enfrentou um momento de decisão em sua vida o momento em que segurou a arma mas não puxou o gatilho quando pensou no legado que queria deixar para seus filhos quando ele escolheu algo que não fosse a violência Que legado eu quero transmitir O que deixarei no mundo quando morrer Já escolhi abandonar os segredos a negação e a vergonha Mas fiz de fato as pazes com meu passado Há mais coisas para resolver de modo que eu não perpetue mais sofrimento Penso na minha avó que morreu dormindo Na minha mãe cuja tristeza por causa dessa perda súbita na infância a deixou marcada com fome e medo desde muito cedo e que passou para as próprias filhas uma vaga sensação de perda E o que eu passarei além de sua pele macia seu cabelo grosso seus olhos intensos além da dor e do sofrimento e da raiva de têla perdido tão cedo E se eu tiver que voltar ao local de meu trauma para interromper o ciclo para criar um tipo diferente de legado Aceito o convite para ir a Berchtesgaden C A P Í T U L O 1 8 A cama de Goebbels Por telefone o pastor e médico David Woehr me resumiu a programação de minha visita Vou falar para seiscentos capelães militares reunidos num retiro pastoral clínico no Centro de Recreação das Forças Armadas no hotel General Walker no alto das montanhas da Baviera O local funcionou como casa de hóspedes e ponto de encontro para os oficiais da SS de Hitler Béla e eu nos hospedamos nos arredores no hotel Zum Türken que já serviu como gabinete de Hitler e de diplomatas visitantes Foi ali que o primeiroministro inglês Neville Chamberlain ficou em 1938 quando se reuniu com Hitler e voltou para casa com notícias vitoriosas e tragicamente equivocadas de que tinha garantido paz para a nossa era e onde é provável que o próprio Adolf Eichmann tenha instruído Hitler sobre a Solução Final A uma pequena caminhada estava o Berghof ou Ninho da Águia antiga residência de Hitler Meu público era formado por profissionais que trabalhavam com cura Os capelães do exército atuam como provedores de saúde comportamental e também como conselheiros espirituais Dave me disse que pela primeira vez os capelães eram obrigados a receber um ano de educação clínica pastoral para complementar os estudos no seminário Eles precisavam de treinamento em Psicologia bem como em doutrina religiosa e Dave estava coordenando retiros de uma semana sobre Psicologia Clínica para os capelães baseados na Europa Eu faria a palestra inaugural Dave me contou mais sobre os capelães e os soldados que eles atendiam Não eram os soldados da minha juventude ou os soldados que eu estava acostumada a tratar no William Beaumont Eram soldados em tempo de paz soldados da Guerra Fria da guerra de bastidores Eles não viviam a violência diária No entanto estavam em alerta máximo mantendo a paz mas prontos para a guerra A maior parte dos soldados da Guerra Fria tinha como base os locais onde havia mísseis posicionados Esses mísseis ficavam montados em lançadores móveis escondidos em locais estratégicos Eles conviviam com a permanente ameaça de guerra e com as sirenes no meio da noite que podem sinalizar um alarme falso ou um ataque de verdade Como os chuveiros em Auschwitz Água ou gás Nunca sabíamos Os capelães para os quais eu ia falar tinham a responsabilidade de dar apoio às necessidades espirituais e psicológicas dos soldados que se esforçavam ao máximo para deter uma guerra total e se esforçavam ao máximo para estar preparados para o que quer que acontecesse O que eles precisam ouvir perguntei Sobre o que eu posso falar para ajudálos Esperança disse Dave Perdão Se os capelães não puderem falar sobre esse tipo de coisa se não entendermos isso não poderemos fazer nosso trabalho Por que eu Uma coisa é ouvir sobre esperança e perdão do púlpito ou de um especialista em religião explicou Dave Mas você é uma das poucas pessoas que podem falar sobre manter a esperança mesmo tendo perdido tudo quando estava passando fome e tendo sida deixada para morrer Não conheço ninguém mais com esse tipo de credibilidade Um mês depois ao seguir com Béla de trem de Berlim para Berchtesgaden eu me sinto a pessoa menos qualificada da Terra para falar sobre esperança e perdão Fecho os olhos e escuto o som dos meus pesadelos o giro constante da roda na estrada Vejo meus pais meu pai que se recusa a se barbear o olhar de minha mãe Béla segura minha mão e toca com o dedo a pulseira de ouro que ele me deu quando Marianne nasceu aquela que eu coloquei na fralda de Marianne quando fugimos de Prešov a pulseira que uso todos os dias Ela é um símbolo de triunfo Nós conseguimos Nós sobrevivemos Nós defendemos a vida Mas nem o consolo de Béla nem o contato do metal polido sobre a minha pele pode reduzir o terror crescente em minhas entranhas Dividimos a cabine do trem com um casal alemão mais ou menos da nossa idade Eles são gentis nos oferecem os doces que trouxeram a mulher elogia a minha roupa O que eles diriam se soubessem que aos 17 anos viajei sentada no teto de um trem alemão sob uma chuva de bombas como escudo humano em um vestido listrado fino forçada a proteger munições nazistas com minha vida Onde será que eles estavam enquanto eu tremia no teto do trem Onde eles estavam durante a guerra Eram as crianças que cuspiam em mim e em Magda quando passávamos pelas cidades alemãs Pertenciam à Juventude Hitlerista Será que eles pensam no passado ou estão em negação como eu fiquei tantos anos O terror em mim vira outra coisa um sentimento de fúria intensa e instável Lembro da raiva de Magda Depois da guerra eu vou matar uma mãe alemã Ela não podia apagar nossa perda mas em sua cabeça podia retaliar Às vezes eu compartilhava seu desejo de confronto mas não seu desejo de vingança Minha desolação se manifestou como um impulso suicida não homicida Mas agora a raiva cresce dentro de mim uma fúria de vendaval que ganha força e velocidade Estou sentada a centímetros de pessoas que podem ter sido antigos opressores Tenho medo do que posso fazer Béla sussurro acho que cheguei perto o suficiente Quero voltar para casa Você já teve medo antes diz ele Dê as boasvindas a ele Dê as boas vindas Béla está me lembrando de algo em que eu também acredito que este é um trabalho de cura Você nega o que o machuca o que teme Você evita essas coisas de todas as formas Então você encontra uma maneira de acolher e abraçar o que mais teme e pode finalmente relaxar Chegamos a Berchtesgaden e pegamos um transporte para o hotel Zum Türken que agora também é um museu Tento ignorar a história sinistra do lugar e elevo o pensamento para a grandiosidade da construção e para os picos das montanhas que nos cercam A cadeia rochosa coberta de neve me lembra as montanhas Tatra onde Béla e eu nos encontramos pela primeira vez quando ele mesmo relutante me acompanhou até o hospital de tuberculose Dentro do hotel Béla e eu demos boas risadas quando a recepcionista nos trata como Dr e Sra Eger É Dra Eger e senhor Eger explica Béla O hotel é anacrônico parece que viajamos em uma máquina do tempo Os quartos são decorados como se estivéssemos nos anos 1930 e 1940 com tapetes persas pesados e sem telefone Béla e eu estamos no quarto onde dormiu Joseph Goebbels o ministro da Propaganda de Hitler com as mesmas cama e mesinha de cabeceira e com os mesmos espelho e armário que um dia foram dele Parada na porta do quarto sinto que a minha paz interior está por um fio O que significa estar aqui agora Béla passa a mão pelo armário pela cabeceira da cama depois vai até a janela Será que a história está apertando o crânio dele como aperta o meu Agarro a cabeceira da cama para não cair de joelhos Béla se vira para mim dá uma piscada e começa a cantar É Primavera para Hitler e para a Alemanha canta ele A canção é do musical Os produtores de Mel Brooks A Alemanha é feliz e alegre Ele faz a coreografia de sapateado em frente à janela segurando uma bengala imaginária Vimos Os produtores juntos na estreia em 1968 um ano antes de nosso divórcio Fiquei sentada num teatro com centenas de pessoas rindo sendo que Béla ria mais alto que todos Eu não conseguia sequer dar um sorriso Intelectualmente entendo o propósito da sátira Sei que o riso pode ser estimulante que pode nos ajudar a atravessar tempos difíceis Eu sei que o riso pode curar mas ouvir essa música agora neste lugar é demais Estou furiosa com Béla menos por sua falta de tato e mais por sua capacidade de sair de uma situação angustiante com tanta rapidez e sucesso Preciso sair dali Saio para uma caminhada sozinha Logo na saída da recepção do hotel começa uma trilha que leva ao Ninho da Águia Não vou escolher esse caminho Não vou dar a Hitler a satisfação de conhecer sua casa sua existência Não estou presa ao passado Sigo um caminho diferente para outro pico em direção ao céu aberto Então paro Estou dando a um morto o poder de interferir em minhas próprias descobertas por toda a eternidade Não foi para isso que eu vim à Alemanha Para me aproximar do desconforto Para ver o que o passado ainda tem a me ensinar Caminho pela trilha de cascalho em direção às modestas ruínas da grande propriedade que um dia foi de Hitler encarapitada na beira de um precipício Agora tudo o que restou da casa é um velho muro de arrimo coberto de musgo pedaços de escombros e canos retorcidos no chão Olho para o vale como Hitler deve ter feito A casa de Hitler foi destruída Soldados americanos a queimaram nos últimos dias da guerra mas não antes de saquear a adega de vinhos e conhaques Eles se sentaram no terraço e levantaram suas taças com a casa atrás deles encoberta pelo fogo e pela fumaça A casa desapareceu mas e Hitler Será que ainda posso sentir a presença dele aqui Testo meu instinto em busca de alguma náusea e a espinha em busca de calafrios Escuto a voz dele a gravação ecoando seu ódio e seu implacável chamado para o mal Mas hoje está tranquilo por aqui Olho para as montanhas vejo as flores silvestres brotando graças aos primeiros filetes gelados da neve derretida dos picos ao redor Estou trilhando os mesmos caminhos por onde Hitler um dia passou mas ele não está aqui agora eu estou É primavera mas não para Hitler Para mim é A espessa crosta de neve silenciosa derreteu a tranquilidade do inverno cedeu à explosão de folhas novas e à torrente acidentada da água correndo rápido Por baixo das camadas da terrível tristeza que sempre carrego em mim outro sentimento brota É o primeiro filete derretido de uma neve há muito congelada Escorrendo montanha abaixo a água fala as câmaras do meu coração falam Estou viva o riacho gorgolejante fala Eu consegui Uma música triunfal me invade abrindo caminho para fora do meu coração para fora da minha boca e para o céu acima e para o vale abaixo Eu te liberto grito para aquela velha tristeza Eu te liberto Tempora mutantur et nos mutamur in illis digo para os capelães quando faço minha palestra na manhã seguinte É uma frase em latim que aprendi quando menina Os tempos estão mudando e nós estamos mudando junto Estamos sempre no processo de tornarse Peço que façam uma viagem comigo para quarenta anos antes para a mesma vila nas montanhas onde estamos agora talvez na mesma sala quando quinze pessoas muito educadas analisaram quantos seres humanos podiam incinerar em um forno de uma só vez Na história humana há a guerra digo Há a crueldade a violência o ódio mas nunca na história da humanidade houve uma aniquilação mais científica e sistemática de pessoas Sobrevivi aos terríveis campos de extermínio de Hitler Na noite passada dormi na cama de Joseph Goebbels As pessoas me perguntam como aprendi a superar o passado Superar Superar Não superei nada Cada surra cada bombardeio cada fila de seleção cada morte cada coluna de fumaça se elevando para o céu cada momento de terror em que achei que era o fim essas coisas vivem em mim em minhas memórias e em meus pesadelos O passado não desapareceu Não transcendeu nem foi extirpado Ele vive em mim O mesmo acontece com a perspectiva que ele me deu de que eu vivi para ver a libertação e para manter a esperança viva em meu coração Que eu vivi para ver a liberdade porque aprendi a perdoar Perdoar não é fácil eu digo a eles É mais fácil guardar rancor buscar a vingança Falo de meus companheiros sobreviventes dos homens e mulheres corajosos que conheci em Israel que pareciam magoados quando eu mencionava o perdão que insistiam que perdoar é desculpar ou esquecer Por que perdoar Isso não tira a responsabilidade de Hitler pelo que ele fez Conto sobre meu querido amigo Laci Gladstein Larry Gladstone e da única vez em todas essas décadas após a guerra em que ele falou explicitamente sobre o passado Foi durante meu divórcio quando ele sabia que o dinheiro era um problema para mim Ele me telefonou para dizer que conhecia um advogado que representava sobreviventes em casos de indenização Laci me estimulou a me apresentar como sobrevivente e reivindicar uma indenização Essa foi a escolha certa para muitos mas não para mim Parecia que o dinheiro estava manchado de sangue Como se fosse possível colocar um preço na vida de meus pais Senti que era uma forma de ficar acorrentada àqueles que tentaram nos destruir É muito fácil transformar nossa dor nosso passado numa prisão Na melhor das hipóteses a vingança é inútil Ela não muda o que foi feito conosco não apaga os erros que foram cometidos não traz os mortos de volta Na pior das hipóteses a vingança perpetua o ciclo de ódio Mantém o ódio circulando indefinidamente Quando buscamos vingança mesmo a vingança sem violência estamos revolvendo não evoluindo Quando cheguei ontem passou pela minha cabeça que minha presença aqui é um tipo saudável de vingança uma punição merecida um acerto de contas Então olhando para o precipício em Berghof percebi que a vingança não liberta Por isso fui ao local onde era a antiga casa de Hitler e o perdoei Isso não tem nada a ver com Hitler Foi algo que fiz para mim Um desapego uma libertação daquela parte de mim que passou a maior parte da vida investindo a energia mental e espiritual que mantinha Hitler preso Enquanto eu cultivei esse ódio fiquei presa junto com ele trancada em um passado destrutivo presa na minha dor Perdoar é sofrer pelo que aconteceu e pelo que não aconteceu e abrir mão da necessidade de um passado diferente Aceitar a vida como ela era e como ela é Naturalmente não estou dizendo que foi aceitável Hitler assassinar seis milhões de pessoas Simplesmente é preciso dizer que isso aconteceu e que não quero que esse fato destrua a vida que eu agarrei e lutei tanto para manter contra todas as probabilidades Os capelães se levantaram Eles me inundam com seus aplausos Fico em pé sob a luz do palco pensando que nunca me sentirei tão exultante tão livre Ainda não sei que ter perdoado Hitler não é a coisa mais difícil que farei na vida A pessoa mais difícil de perdoar é alguém que ainda preciso enfrentar eu mesma Não consigo dormir na última noite em Berchtesgaden Fico deitada acordada na cama Uma réstia de luz se infiltra por baixo da porta e posso ver o desenho de videiras no papel de parede antigo a maneira como elas se entrelaçam A maneira como sobem Tempora mutantur et nos mutamur in illis Se estou mudando o que sou nesse processo de transformação Descanso na incerteza da vigília Tento me abrir deixar a minha intuição falar Por alguma razão me lembro de uma história que ouvi sobre um garoto judeu muito talentoso um artista Recomendaram que fosse estudar arte em Viena Sem dinheiro para a viagem ele caminhou da Tchecoslováquia até a Áustria mas teve a inscrição nos testes negada por ser judeu Ele implorou Tinha vindo de tão longe a pé será que não podia ao menos fazer o teste Era pedir muito Deixaram que fizesse o exame e ele passou Era tão talentoso que lhe ofereceram uma vaga na escola apesar de sua ascendência Sentado ao seu lado para fazer as provas estava um garoto chamado Adolf Hitler que não foi aceito na escola Mas o garoto judeu foi E durante toda a sua vida esse homem que tinha deixado a Europa e morava em Los Angeles se sentiu culpado porque se Hitler não tivesse sido rejeitado se ele não tivesse perdido para um judeu ele talvez não tivesse sentido a necessidade de transformar os judeus em bodes expiatórios O Holocausto poderia não ter acontecido Como as crianças que sofrem abusos ou cujos pais se divorciam achamos um jeito de nos culparmos Culparse também magoa os outros não apenas nós mesmos Lembrome de um expaciente um homem e sua família dos quais tratei por um breve período pouco mais de um ano antes Eles se sentaram na minha frente como peças abandonadas de diferentes quebracabeças o coronel intimidador em seu uniforme cheio de condecorações a esposa loura silenciosa os ossos da saboneteira se projetando na blusa branca a filha adolescente com o cabelo pintado de preto bagunçado parecendo um ninho selvagem os olhos delineados também em preto um filho quieto de 8 anos com um livro de histórias em quadrinhos no colo O coronel apontou para a filha Olhe para ela É uma promíscua viciada em drogas não respeita as nossas regras responde com grosserias e não vem para casa na hora combinada Está ficando impossível viver com ela Nós ouvimos a sua versão disse eu Vamos ouvir a de Leah Como se estivesse provocando o pai ao ler um roteiro que confirmava cada uma das afirmações que ele fazia Leah começou uma história sobre o seu fim de semana Tinha feito sexo com o namorado em uma festa em que menores de idade beberam álcool e na qual ela também tomara um ácido Ela ficou fora a noite toda Parecia sentir prazer em descrever todos os detalhes A mãe piscou e mordiscou as unhas pintadas O rosto do pai ficou vermelho Ele se levantou de seu lugar e se debruçou sobre ela brandindo o punho Vê o que tenho que aguentar rugiu ele A filha percebia a raiva dele mas eu vi um homem prestes a ter um ataque cardíaco Vê o que tenho que aguentar disse Leah revirando os olhos Ele nem sequer tenta me entender Ele nunca me escuta só me diz o que fazer O irmão redobrou a atenção no gibi como se sua força de vontade pudesse tirálo da zona de guerra que sua família tinha se tornado e o colocasse no mundo de fantasia de seu livro onde a fronteira entre o bem e o mal eram claramente traçadas onde os mocinhos ganhavam no fim Ele falou o mínimo sobre as pessoas da família e ainda assim eu tinha um palpite de que era o único com as coisas mais importantes a dizer Eu avisei aos pais que passaria a próxima parte da sessão com eles sem os filhos na sala então levei Leah e o irmão para meu escritório ao lado onde distribuí canetas e papel para que desenhassem Dei aos dois uma missão algo que achei que poderia ajudálos a relaxar depois dos minutos tensos com os pais Pedi que fizessem um retrato da família mas sem usar pessoas Voltei para os pais O coronel estava gritando com a esposa Ela parecia estar definhando desaparecendo Fiquei preocupada com a possibilidade de aquela mulher estar nos primeiros estágios de um transtorno alimentar Se eu lhe fizesse uma pergunta direta ela a repassaria para o marido Cada membro da família estava na própria barricada Dava para comprovar a dor interior deles pela forma como se acusavam e se escondiam Mas ao tentar aproximálos das fontes de seu sofrimento eu os convidava apenas a abrir fogo ou recuar ainda mais Nós conversamos sobre o que você vê acontecer com seus filhos disse eu interrompendo o coronel E o que está acontecendo com você A mãe de Leah piscou para mim O pai dela me olhou com frieza O que vocês querem alcançar enquanto pais Ensinálos a serem fortes no mundo disse o coronel E como você está se saindo Minha filha é uma vadia e meu filho é um maricas O que você acha É nítido que o comportamento de sua filha assusta você Mas o que tem o seu filho Por que ele o decepciona Ele é um fraco Está sempre desistindo Você pode me dar um exemplo Quando jogamos basquete ele é um mau perdedor Nem sequer tentar ganhar Simplesmente desiste Ele é uma criança e bem menor do que você O que acontece se você deixálo vencer O que eu estaria ensinando a ele Que o mundo se curva para quem é molenga Existem maneiras de ensinar as crianças a irem mais longe a expandir suas capacidades com um empurrão suave não com um pontapé na bunda disse eu O coronel resmungou e eu continuei Como você quer que seus filhos o vejam Como alguém no comando Um herói Um líder Ele assentiu Como você acha que os seus filhos realmente o veem Eles acham que sou um fracote maldito Mais tarde na sessão reuni novamente a família e pedi que os filhos mostrassem os retratos que fizeram da família Leah tinha desenhado apenas um objeto uma enorme bomba explodindo no meio da página Seu irmão desenhou um leão feroz e três ratos encolhidos O rosto do coronel ficou vermelho novamente Sua esposa olhou para o próprio colo Ele gaguejou e olhou para o teto Conteme o que você está sentindo neste momento Eu ferrei com essa família não foi Eu meio que esperava nunca mais ver o coronel ou sua família novamente mas ele ligou na semana seguinte para marcar uma sessão particular Pedi que ele falasse mais sobre como se sentiu quando os filhos mostraram seus desenhos Se meus filhos têm medo de mim como vão enfrentar o mundo O que leva você a achar que eles não são capazes de se proteger Leah não consegue dizer não para meninos ou drogas Robbie não consegue dizer não para valentões E você É capaz de se proteger Ele estufou o peito de modo que as medalhas brilharam à luz do sol Você está olhando para a prova Não estou me referindo ao campo de batalha mas à sua casa Acho que você não entende a que pressão estou constantemente submetido O que é preciso para você se sentir seguro Segurança não é o problema Se não estou no controle as pessoas morrem É isso que segurança significa para você Se libertar do medo de que as pessoas venham a se ferir enquanto estão sob sua responsabilidade Não é apenas um medo Leveme para onde você está No que está pensando Acho que você não vai querer ouvir Não se preocupe comigo Você não entende Você está certo ninguém pode entender outra pessoa completamente Mas posso dizer que já fui prisioneira de guerra e seja o que for que você quiser me contar provavelmente já ouvi e vi coisa pior No mundo militar é matar ou morrer Então quando recebi a ordem não a questionei Onde você estava quando recebeu essa ordem Vietnã Você está dentro de algum lugar ou fora Em meu escritório na base aérea Observei sua linguagem corporal quando ele me levou para o passado Observei sua energia seu nível de agitação de modo a direcionar qualquer angústia que sinalizasse que estávamos indo rápido demais Ele tinha fechado os olhos Parecia estar entrando em transe Você está em pé ou sentado Estou sentado quando recebo a ligação Mas me levanto imediatamente Quem está ligando Meu comandante O que ele diz Que ele está colocando meus homens em uma missão de resgate na mata Por que você se levanta para ouvir a ordem Sinto calor Meu peito está apertado No que está pensando Que não é seguro Que vamos ser atacados Que precisamos de mais apoio aéreo caso estajamos indo para aquela parte da mata e eles não vão dar Você ficou zangado com isso Seus olhos se abriram É claro que estou zangado Eles nos mandam para lá falam um monte de bobagem sobre os Estados Unidos serem o exército mais forte do mundo e que os vietnamitas não têm a menor chance A guerra não era o que você esperava Eles mentiram para nós Você se sentiu traído Sim com certeza eu me senti traído O que aconteceu no dia em que você recebeu a ordem para enviar suas tropas em uma missão de resgate Era noite O que aconteceu naquela noite Foi uma emboscada Seus homens se feriram Preciso soletrar Eles morreram Morreu todo mundo naquela noite E fui eu quem os mandou para lá Eles confiaram em mim e eu os mandei para lá para morrer Guerra significa pessoas morrendo Sabe o que eu acho Morrer é fácil Eu tenho que viver cada dia pensando em todos aqueles pais enterrando seus filhos Você estava cumprindo uma ordem Mas eu sabia que era a decisão errada Eu sabia que aqueles rapazes precisavam de mais apoio aéreo e não tive coragem de pedir Do que você abriu mão para se tornar coronel O que você quer dizer Você escolheu ser soldado e um líder militar Do que você teve que abrir mão para chegar lá Tive que ficar muito tempo longe da minha família O que mais Quando você tem seis mil homens confiando suas vidas a você você não pode se dar ao luxo de ter medo Você teve que abrir mão de seus sentimentos Abrir mão de deixar os outros vêlos Ele fez que sim com a cabeça Você disse antes que morrer é fácil Você já desejou estar morto O tempo todo O que o impede Meus filhos Seu rosto se contorceu de angústia Mas eles me acham um monstro Estão melhor sem mim Você quer saber como eu vejo isso Acho que seus filhos ficariam muito melhor com você Com você o homem que estou começando a conhecer e a admirar O homem que pode se arriscar falando sobre seu medo O homem que tem coragem de se perdoar e se aceitar Ele ficou em silêncio Talvez aquele tenha sido o primeiro momento em que encontrou a possibilidade de se libertar da culpa que sentia por causa do passado Não posso ajudálo a voltar a tempo de salvar sua tropa Não posso garantir a segurança de seus filhos Mas posso ajudar a proteger uma pessoa você mesmo Ele olhou para mim Mas para se salvar você terá que abrir mão da imagem do que você acha que deveria ser Espero que isso funcione disse ele Pouco depois o coronel foi transferido e sua família deixou El Paso Não sei o que aconteceu com eles Espero que algo bom pois eu gostava muito deles Mas por que estou me lembrando deles agora O que tem a história deles a ver comigo Alguma coisa sobre como a culpa aprisionava o coronel chama a minha atenção Será que minha memória está me alertando sobre algo que já fiz ou para um trabalho que ainda tenho que fazer Cheguei tão longe desde que o soldado americano me resgatou da prisão em 1945 Retirei a minha máscara Aprendi a sentir a me expressar e a não reprimir os medos e o sofrimento Eu me esforcei para liberar e expressar a minha raiva Voltei aqui à antiga casa de meu opressor e até perdoei Hitler e o liberei para o universo mesmo que só por hoje Mas há um nó uma sombra que percorre as minhas entranhas e o meu coração uma rigidez na coluna um sentimento implacável de culpa Fui vítima não fui a agressora Quem eu acho que prejudiquei Outra paciente surge em meus pensamentos Aos 71 anos ela era uma crônica fonte de problemas para a família Tinha todos os sintomas de depressão clínica Dormia e comia demais e se isolava dos filhos e netos E quando realmente interagia com a família estava com tanta raiva que os netos tinham medo dela Seu filho um dia me abordou depois de uma palestra em sua cidade e perguntou se eu teria uma hora para encontrar a mãe Eu não sabia de que forma podia ser útil a ela em uma única visita rápida até que o homem revelou que como eu a mãe dele tinha perdido a própria mãe aos 16 anos Senti uma onda de compaixão por essa estranha Entendi que ela era a pessoa que eu podia ter me tornado que eu quase me tornei quando mergulhei tão fundo no sofrimento que me escondia das pessoas que mais me amavam A mulher Margaret veio ao meu quarto de hotel àquela tarde Ela estava vestida com esmero mas havia uma hostilidade que emanava dela como plumas Desabafou uma ladainha de reclamações sobre sua saúde sobre os membros da família a governanta o carteiro os vizinhos e até sobre a diretora da escola da sua rua Ela parecia encontrar injustiça e inconveniência em qualquer parte de sua vida A hora estava acabando e ela continuava tão presa nos pequenos desastres que não tínhamos tocado no que eu sabia ser sua dor maior Onde sua mãe está enterrada perguntei de repente Margaret recuou como se um dragão tivesse soltado uma labareda em seu rosto No cemitério respondeu ela por fim recomposta Onde é o cemitério Perto daqui Nesta cidade disse ela Sua mãe precisa de você agora Não dei chance a Margaret para recuar Chamamos um táxi Sentamos e observamos pela janela as ruas molhadas e engarrafadas Ela continuou criticando os outros motoristas a velocidade dos sinais de trânsito a qualidade das lojas e comércio por onde passávamos até mesmo a cor do guardachuva de uma pessoa Entramos pelos portões de ferro do cemitério As árvores eram frondosas e altas Uma rua estreita de paralelepípedos ligava o portão até as sepulturas A chuva caía Lá disse Margaret apontando para um grupo de lápides no alto de uma colina lamacenta Agora me diga em nome de Deus o que estamos fazendo aqui Você sabe disse eu mães não podem descansar em paz a não ser que saibam que as pessoas que deixaram para trás estão vivendo a vida em sua plenitude Tire os sapatos Tire as meias Fique descalça no túmulo de sua mãe Faça contato direto para que ela possa finalmente descansar em paz Margaret desceu do táxi Ficou parada na grama molhada pela chuva Dei um pouco de privacidade a ela Olhei para trás somente uma vez quando a vi agachada no chão segurando a lápide da mãe Não sei o que ela disse à mãe se é que disse alguma coisa Sei apenas que ela ficou com os pés descalços sobre o túmulo da mãe e que se conectou com sua pele nua a este local de perda e luto Quando voltou para o táxi ainda estava descalça Ela chorou um pouco e então ficou em silêncio Depois recebi uma linda carta do filho de Margaret Não sei o que você disse à minha mãe escreveu ele mas ela é agora uma pessoa diferente mais tranquila e alegre Foi um impulso uma experiência feliz Meu objetivo era ajudála a reformular sua experiência a reformular seu problema como uma oportunidade colocála na posição de ajudar a mãe e ao fazer isso se libertar e ajudar a si mesma Agora que estou de volta à Alemanha me passou pela cabeça que o mesmo princípio talvez funcione para mim Uma conexão da minha pele nua com o local da minha perda Contato e libertação Exorcismo húngaro Deitada na cama de Goebbels percebo que preciso fazer o que Margaret fez realizar o ritual de luto de que me esquivei a vida inteira Decido voltar a Auschwitz C A P Í T U L O 1 9 Deixe uma pedra Não consigo imaginar voltar ao inferno sem Magda Venha para Cracóvia hoje peço a Magda na manhã seguinte pelo telefone da recepção do hotel Por favor volte a Auschwitz comigo Eu não teria sobrevivido sem ela Não posso sobreviver a um retorno à nossa prisão a não ser com ela ao meu lado segurando a minha mão Sei que não é possível reviver o passado ser quem eu era abraçar minha mãe novamente mesmo por uma única vez Não existe nada capaz de mudar o passado de me fazer uma pessoa diferente de quem sou de mudar o que foi feito aos meus pais e a mim Não tem retorno Sei disso Mas não posso ignorar a sensação de que existe algo à minha espera na antiga prisão algo a ser recuperado Ou descoberto Uma parte de mim há muito perdida Que tipo de masoquista maluca você acha que eu sou pergunta Magda Por que eu voltaria lá Por que você voltaria É uma pergunta justa Estou apenas me punindo Reabrindo uma ferida Talvez eu me arrependa mas acho que vou me arrepender ainda mais se não voltar Não importa o que eu faça para tentar convencêla Magda se recusa Ela escolheu nunca voltar eu respeito sua decisão Mas minha escolha é diferente Béla e eu já tínhamos recebido um convite para visitar a família que hospedou Marianne em Copenhague quando viéssemos à Europa Por isso de Berchtesgaden seguimos para lá como planejado Viajamos para Salzburgo onde visitamos uma catedral construída sobre as ruínas de uma igreja romana Ela foi reconstruída três vezes somos informados a última depois que uma bomba destruiu a cúpula central durante a guerra Não há sinal da destruição Como nós diz Béla segurando minha mão De Salzburgo vamos a Viena pela mesma estrada que eu e Magda percorremos antes de ser libertadas Vejo as valas que acompanham as laterais da estrada e as imagino como um dia as vi transbordando de cadáveres Mas também consigo vêlas como são agora florescendo com a grama do verão Posso ver que o passado não mancha o presente e que o presente não diminui o passado O tempo é o meio O tempo é a faixa na qual viajamos O trem passa por Linz por Wels Sou a garota com a coluna travada que reaprende a escrever um G maiúsculo que reaprende a dançar Passamos a noite em Viena não muito longe do Hospital Rothschild onde moramos enquanto esperávamos por nossos vistos para os Estados Unidos e onde eu soube depois meu mentor Viktor Frankl foi chefe da Neurologia antes da guerra Na manhã seguinte embarcamos em outro trem rumo ao norte Acho que Béla imagina que o meu desejo de retornar a Auschwitz pode arrefecer mas em nossa segunda manhã em Copenhague eu pergunto a nossos amigos como chegar à embaixada polonesa Eles me advertem como já fez Marianne sobre os amigos sobreviventes que visitaram o campo e depois morreram Não passe pelo trauma novamente pedem eles Béla também parece preocupado Hitler não venceu relembro a ele Achei que a maior dificuldade seria estar em Auschwitz mas na embaixada polonesa somos informados de que diversas greves estão acontecendo em toda a Polônia que os soviéticos podem querer reprimir as manifestações e que por isso a embaixada foi aconselhada a parar de emitir vistos para ocidentais Béla está pronto para me consolar mas eu o evito Sinto a força de vontade que me levou até o carcereiro em Prešov com um anel de diamante na mão até o consultório de médico em Viena com o cunhado se passando por marido Cheguei tão longe na vida e na cura não posso ceder diante de um obstáculo agora Sou uma sobrevivente digo ao funcionário da embaixada Fui prisioneira em Auschwitz Meu pais e avós morreram lá Lutei muito para sobreviver Por favor não me faça esperar para voltar Não estou ciente de que em menos de um ano a relação entre os Estados Unidos e a Polônia vai se deteriorar e ficará congelada pelo restante da década que essa é na verdade a última chance que eu e Béla temos de ir juntos a Auschwitz Sei apenas que não posso permitir ter o visto recusado O funcionário me olha inexpressivo se afasta do balcão e depois volta Passaportes pede ele e carimba vistos de viagem válidos por uma semana em nossos passaportes americanos azuis Aproveite a Polônia Esse é o momento em que começo a ter medo No trem para Cracóvia tenho a sensação de que enfrento uma prova de fogo que estou atingindo o ponto em que vou derreter ou me queimar quando o medo sozinho pode me transformar em cinzas Isso é passageiro Tento negociar com a parte de mim que sente a perda de uma camada de pele a cada quilômetro Serei novamente um esqueleto quando chegar à Polônia Quero ser mais do que ossos Vamos descer na próxima parada digo a Béla Não é importante ir até Auschwitz Vamos embora para casa Edie diz ele você vai ficar bem É só um lugar Não pode machucar você Fico no trem nas paradas seguinte Mais uma parada depois outra passo por Berlim e por Poznań Penso no Dr Hans Selye um colega húngaro que disse que o estresse é a resposta do corpo a qualquer demanda por mudança Nossas respostas automáticas são lutar ou fugir mas em Auschwitz onde suportamos mais do que estresse onde vivemos em perigo desafiando a vida e a morte nunca sabendo o que aconteceria as opções de lutar ou fugir não existiam Eu teria sido baleada se tivesse reagido e eletrocutada se tentasse fugir Então aprendi a fluir aprendi a me manter alerta a desenvolver a única coisa que me restava o olhar interior para aquela parte de mim que nenhum nazista poderia matar Encontrar e me segurar em meu verdadeiro eu Talvez eu não esteja perdendo a pele Talvez eu esteja apenas me esticando para incorporar cada aspecto de quem sou de quem fui e de quem posso me tornar Quando nos curamos aceitamos nossas personalidades reais e possíveis Tive uma paciente obesa que era cruel com ela mesma toda vez que via o próprio reflexo ou que subia em uma balança Ela se chamava de vaca de nojenta Ela acreditava que tinha decepcionado o marido que envergonhava os filhos e que as pessoas que a amavam mereciam coisa melhor Para ser a pessoa que gostaria ela primeiramente tinha que gostar dela mesma do jeito que era Nós sentamos em meu consultório e eu pedi que ela escolhesse uma parte do corpo o dedo a barriga o pescoço ou o queixo e falasse sobre ela de uma forma carinhosa Ela se parece com isso a sensação é tal ela é bonita porque O começo foi constrangedor até mesmo doloroso pois ela tinha mais facilidade em se criticar do que olhar com carinho para o próprio corpo Fomos devagar e com cuidado Comecei a notar pequenas mudanças Ela veio me ver um dia usando um lindo cachecol novo Em outro tinha ido à manicure Depois contou que telefonara para a irmã de quem tinha se distanciado Em outra ocasião ela descobriu que adorava caminhar na trilha que circundava o parque onde a filha jogava futebol Como ela experimentou amar todas as partes dela mesma descobriu mais alegria e bemestar em sua vida Ela também começou a perder peso A libertação começa com a aceitação Para nos curarmos abraçamos a escuridão Caminhamos pela sombra do vale no caminho para a luz Trabalhei com um veterano de guerra do Vietnã que voltou para casa desesperado para assumir a vida que tinha antes da guerra Mas ele voltou com feridas físicas e psicológicas estava impotente e não conseguia arranjar um emprego A esposa o deixou Quando procurou minha ajuda estava perdido no caos do divórcio e no que para ele parecia a morte de sua sexualidade e de sua identidade Deilhe toda a minha compaixão mas ele estava zangado e preso na areia movediça de sua perda Eu me senti sem forças para ajudálo a sair dessa situação Quanto mais eu tentava amálo e tirálo do desespero mais fundo ele se enterrava Como último recurso decidi tentar a hipnoterapia Fiz uma regressão a fim de que ele voltasse à época da guerra quando era piloto de bombardeiro e estava no controle antes de voltar para casa e perder tudo Sob hipnose ele me disse No Vietnã eu podia beber o quanto quisesse podia trepar o quanto quisesse Ele ficou com o rosto vermelho e gritou E podia matar o quanto quisesse Na guerra ele não matava pessoas matava amarelos subhumanos Assim como os nazistas não matavam pessoas nos campos da morte eles erradicavam um câncer A guerra provocou sua lesão e mudou sua vida mas ainda assim ele sentia falta da guerra Ele sentia falta da sensação de poder que tinha ao enfrentar o inimigo de fazer parte de uma classe invulnerável acima de qualquer nacionalidade acima de qualquer raça Meu amor incondicional não fez qualquer efeito até eu lhe dar autorização para que expressasse a parte dele que estava sofrendo a parte que era ao mesmo tempo forte e sombria a parte que ele já não podia exprimir Não estou dizendo que ele precisava matar novamente para ficar inteiro Para descobrir como escapar da vitimização ele precisava aceitar sua impotência e seu poder as formas como foi ferido e as formas como feriu seu orgulho e sua vergonha O único antídoto para a devastação é o eu inteiro Talvez a cura não signifique apagar a cicatriz ou mesmo fazer a cicatriz Curar é cuidar da ferida Chegamos a Cracóvia no meio da tarde Vamos dormir aqui esta noite pelo menos tentar dormir Amanhã pegaremos um táxi para Auschwitz Béla queria visitar a Cidade Velha e tento prestar atenção à arquitetura medieval mas me sinto tolhida pela ansiedade uma estranha mistura de esperança e horror Paramos do lado de fora da Igreja de Santa Maria para ouvir o trompetista tocar a melodia que marca a hora completa Um grupo de adolescentes passa por nós brincando falando alto em polonês mas não percebo a alegria deles estou ansiosa Esses jovens um pouco mais velhos do que meus netos me lembram a rapidez com que a próxima geração crescerá Será que minha geração ensinou bem aos jovens como evitar outro holocausto Ou nossa liberdade arduamente conquistada sucumbirá a uma nova onda de ódio Tive muitas oportunidades de influenciar os jovens meus próprios filhos e netos meus exalunos o público para o qual me dirijo em todo o mundo e pacientes individuais Na véspera de meu retorno a Auschwitz a sensação de responsabilidade para com eles ficou especialmente forte Não é só por mim que estou voltando É por tudo que transmito Será que tenho o que é preciso para fazer a diferença Será que consigo transmitir minha força em vez de minha perda Meu amor em vez de meu ódio Fui testada antes Um garoto de 14 anos que havia participado de um roubo de carro foi enviado a mim por um juiz O garoto usava botas marrons camiseta marrom Ele apoiou o cotovelo na mesa e disse Está na hora de a América ser branca novamente Vou matar todos os judeus negros mexicanos e todos os chineses Achei que fosse passar mal Fiz um esforço para não sair correndo da sala Qual o significado disso Eu queria gritar sacudir o garoto e dizer Com quem você acha que está falando Eu vi minha mãe ir para a câmara de gás Eu teria sido perdoada Talvez meu trabalho fosse colocálo no caminho certo talvez por isso Deus o colocou no meu caminho Para cortar seu ódio pela raiz Estava repleta de senso de justiça Era bom estar com raiva Melhor irritada do que com medo Mas então ouvi uma voz interior Descubra a intolerância em você dizia a voz Descubra a intolerância em você Tentei calar essa voz Fiz uma lista das muitas objeções à simples ideia de que eu poderia ser intolerante Eu vim para os Estados Unidos sem um tostão Nas fábricas usei o banheiro para negras em solidariedade às colegas afro americanas Marchei com o Dr Martin Luther King Jr para acabar com a segregação Mas a voz insistia Descubra a intolerância em você Encontre essa parte em você que julga rotula desmerece a humanidade da outra pessoa e torna os outros menos do que eles são O garoto continuou a bradar pela pureza da América Todo o meu ser tremia de inquietação e lutei contra a vontade de colocar o dedo em riste cerrar meu punho fazêlo pagar por seu ódio sem assumir a responsabilidade por meu próprio ódio Esse garoto não matou meus pais Negar o meu amor não venceria seu preconceito Rezei para ser capaz de encontrálo com amor Conjurei toda imagem que eu tinha de amor incondicional Pensei em Corrie ten Boom uma das Gentias Honradas Ela e sua família participaram da resistência a Hitler escondendo centenas de judeus em casa e ela acabou em um campo de concentração A irmã morreu nos braços de Corrie ela mesmo libertada devido a um erro administrativo um dia antes de todos os prisioneiros de Ravensbrück serem executados Alguns anos depois da guerra Corrie se encontrou com um dos guardas mais violentos do campo de concentração um dos homens responsáveis pela morte de sua irmã Ela podia ter cuspido nele desejado sua morte e o amaldiçoado No entanto rezou para ter força e perdoálo segurou as mãos dele com as próprias mãos Corrie conta que naquele momento em que a ex prisioneira apertou as mãos do exguarda ela sentiu um amor puro e profundo Tentei encontrar aquele abraço e aquela compaixão em meu coração para encher os meus olhos com esse tipo de bondade Imaginei se era possível que aquele rapaz racista tivesse entrado em minha vida para que eu pudesse aprender o que é o amor incondicional Que oportunidade eu tive nesse momento Que escolha poderia fazer na hora em que me poria na direção do amor Tive a oportunidade de amar esse jovem somente ele seu eu singular e a humanidade que compartilhamos A oportunidade de recebêlo para dizer algo sentir qualquer coisa sem medo de ser julgada Lembrei da família alemã que morou um tempo em Fort Bliss da menina que subia em meu colo e me chamava de Oma vovó em alemão Essa pequena bênção vinda de uma criança parecia uma resposta para o desejo que eu tive quando passei pelas cidades alemãs com Magda e os outros prisioneiros e as crianças alemãs nos cuspiram sonhei com o dia em que as crianças alemãs saberiam que não era necessário me odiar E vivi para ver esse dia Pensei nas estatísticas que li de que a maior parte dos membros dos grupos supremacistas dos Estados Unidos perdeu um dos pais antes de completar 10 anos São crianças perdidas em busca de uma identidade em busca de uma maneira de se sentirem fortes de sentirem que são importantes Portanto eu me recompus e olhei para o jovem da maneira mais amorosa que consegui E disse duas palavras Conte mais Não falei muito além disso na primeira sessão Escutei Criei uma relação de empatia Ele era muito parecido comigo depois da guerra Ambos tínhamos perdido os pais ele por negligência e abandono eu por morte Ambos víamos a nós mesmos como mercadoria danificada Ao abrir mão de julgar ao deixar de lado minha vontade de que ele fosse ou acreditasse em algo diferente ao perceber sua vulnerabilidade e sua ansiedade por pertencimento e amor ao conseguir superar o meu medo e minha raiva de modo a aceitálo e amálo fui capaz de dar a ele algo que suas botas marrons e sua camisa marrom não conseguiram uma imagem real de seu próprio valor Quando saiu de meu consultório naquele dia ele não sabia nada da minha história mas tinha visto uma alternativa ao ódio e ao preconceito já não falava mais em matar e tinha me mostrado um sorriso suave Assumi a responsabilidade de não perpetuar a hostilidade e a culpa de não ceder ao ódio e dizer Você está acima das minhas possibilidades Agora na véspera de meu regresso à prisão relembro a mim mesma que cada pessoa tem um Adolf Hitler e uma Corrie ten Boom dentro de si Temos a capacidade de odiar e a capacidade de amar Depende de nós a quem a nosso Hitler interior ou a nossa Corrie ten Boom interior escolhemos recorrer Pela manhã chamamos um táxi para nos levar a Auschwitz Béla engata uma conversa com o motorista sobre a família dele e os filhos Eu aprecio a paisagem que não vejo desde que tinha 16 anos e cheguei a Auschwitz dentro de um vagão escuro de transporte de animais Fazendas vilas natureza A vida continua como continuou em todos os lugares enquanto estivemos presos ali O motorista nos deixa na entrada de minha antiga prisão Eu e Béla ficamos novamente sozinhos A inscrição de ferro batido assombra ARBEIT MACHT FREI o trabalho liberta Minhas pernas tremem com a visão com a memória de como essas palavras deram esperança a meu pai Vamos trabalhar até o fim da guerra ele pensou Vai demorar um pouco e então estaremos livres Arbeit macht frei Essas palavras nos deixaram calmos até as portas das câmaras de gás serem trancadas com nossos entes queridos dentro até que o pânico se tornasse inútil Então essas palavras se tornaram uma ironia diária a cada hora porque ali nada libertava A morte era a única saída Portanto até mesmo a ideia de liberdade se tornou outra forma de desesperança A grama está exuberante As árvores ocuparam o espaço mas as nuvens têm cor de osso e embaixo delas as estruturas construídas pelo homem mesmo as que estão em ruínas dominam a paisagem Quilômetros e quilômetros de cercas Uma vasta extensão de alojamentos de tijolo se desintegrando e espaços retangulares vazios onde antes havia construções As linhas horizontais desoladoras dos alojamentos das cercas e das torres são regulares e ordenadas mas não há vida nessa geometria Essa é a geometria da tortura e da morte sistemática A aniquilação calculada Então percebo novamente uma coisa que me perseguiu naqueles meses infernais em que isso foi a minha casa não dá para ver ou ouvir um único pássaro Nenhum pássaro vive aqui Nem mesmo agora O céu está vazio de suas asas e o silêncio é mais profundo por causa da ausência de seu canto Os turistas se juntam A excursão começa Somos um grupo pequeno de oito ou dez pessoas A imensidão massacra Eu a sinto no silêncio do grupo na maneira como quase paramos de respirar Não é possível entender o significado da enormidade do horror cometido neste lugar Eu estive aqui enquanto as chamas ardiam eu acordava e trabalhava e dormia com o fedor dos corpos queimando e mesmo eu não consigo compreender O cérebro tenta reter os números tenta assimilar o confuso acúmulo de coisas que foram colocadas em exposição para os visitantes as malas arrancadas dos que iam ser mortos as tigelas pratos e canecas os milhares de pares de óculos reunidos num emaranhado que parece um arbusto surrealista As roupas de crochê feitas por mãos amorosas para bebês que nunca se tornaram crianças homens ou mulheres O vidro de 20 metros de comprimento cheio de cabelo humano Nós contamos 4700 corpos cremados em cada fornalha 75 mil poloneses mortos 21 mil ciganos 15 mil soviéticos Os números se acumulam e se acumulam Podemos montar a equação e fazer a conta que descreve os mais de 1 milhão de mortos em Auschwitz Podemos acrescentar na lista milhares de mortos de outros campos de extermínio na Europa da minha juventude e os corpos jogados nas valas ou nos rios antes de chegarem a um campo de extermínio Mas não há nenhuma equação que resuma adequadamente o efeito de uma perda tão completa Não há idioma que explique a desumanidade sistemática desta fábrica da morte criada por humanos Mais de 1 milhão de pessoas foram mortas bem aqui onde eu estou É o maior cemitério do mundo E em todas as dezenas centenas milhares e milhões de mortos em todos os objetos acumulados e depois abandonados em todos os quilômetros de cercas e tijolos outro número assombra O número zero Aqui no maior cemitério do mundo não há um único túmulo Apenas espaços vazios onde antes ficavam os crematórios e as câmaras de gás apressadamente destruídos pelos nazistas antes da rendição Os espaços vazios onde meus pais morreram Completamos o tour pelo campo dos homens Ainda preciso ir ao lado feminino a Birkenau É para isso que estou aqui Béla pergunta se quero que ele venha comigo mas balanço a cabeça negativamente Esse último trecho da jornada eu preciso fazer sozinha Deixo Béla no portão de entrada e volto ao passado A música toca nos alto falantes sons alegres que não combinam com o ambiente sombrio Veja diz meu pai não pode ser um lugar tão terrível Nós vamos apenas trabalhar um pouco até a guerra acabar É temporário Podemos sobreviver a isso Ele se junta à fila e acena para mim Eu acenei de volta A memória me diz que acenei para meu pai antes de ele morrer Minha mãe fica de braços dados comigo Caminhamos lado a lado Abotoe seu casaco diz ela Mantenha a cabeça erguida Volto para a imagem que ocupou minha memória durante a maior parte da vida três mulheres famintas com casacos de lã de braços dados em um quintal árido Minha mãe Minha irmã Eu Estou vestindo o casaco que coloquei naquele alvorecer de abril Sou magra e sem seios o cabelo preso embaixo de um lenço amarrado Minha mãe ralha novamente comigo para que eu mantenha a cabeça erguida Você é uma mulher não uma criança diz ela Há um propósito na reprimenda dela Ela quer que eu pareça ter 16 anos ou mais Minha sobrevivência depende disso No entanto nem que a minha vida dependa disso vou largar a mão de minha mãe Os guardas apontam e empurram A fila avança Vejo os olhos pesados de Mengele à frente o espaço entre os dentes quando ele sorri Ele está no comando Ele é um anfitrião ansioso Alguém está doente pergunta ele solícito Mais de 40 anos Abaixo de 14 anos Vá para a esquerda para a esquerda Essa é a nossa última chance De trocar palavras de dividir o silêncio De nos abraçarmos Dessa vez eu sei que é o fim Ainda assim eu me decepciono Quero apenas que minha mãe olhe para mim Para me tranquilizar Olhe para mim e nunca desvie o olhar O que é essa necessidade que eu entrego a ela de novo e de novo essa coisa impossível que eu quero É a nossa vez agora O Dr Mengele levanta o dedo Ela é sua mãe ou sua irmã pergunta ele Eu agarro a mão de minha mãe Magda a abraça do outro lado Apesar de nenhuma de nós saber o significado de ser enviada para a esquerda minha mãe pressentiu a necessidade de eu aparentar a minha idade ou ser mais velha Preciso parecer ter idade suficiente para passar pela primeira fila de seleção viva O cabelo dela é grisalho mas seu rosto é tão liso quanto o meu Ela podia se passar por minha irmã Mas eu não penso sobre qual palavra a protegerá mãe ou irmã Não penso em nada Apenas sinto cada célula em mim que a ama que precisa dela Ela é minha mãe minha mamãe minha única mamãe Assim eu digo a palavra que passei o resto da vida tentando banir da minha consciência a palavra que eu não me permito relembrar até hoje Mãe digo Assim que a palavra sai de minha boca eu quero enfiála de volta pela garganta Percebi tarde demais o significado da pergunta Ela é sua mãe ou sua irmã Irmã irmã irmã eu quero gritar Mengele manda minha mãe para a esquerda Ela segue atrás de crianças pequenas e de idosos de grávidas e mães com bebês nos braços Vou seguila Não vou perdêla de vista Começo a correr na direção de minha mãe mas Mengele segura o meu ombro Você verá sua mãe em breve diz ele e me puxa para a direita na direção de Magda para o outro lado para a vida Mamãe grito Somos separadas novamente na memória como fomos na vida mas não vou deixar a memória ser outro beco sem saída Mamãe grito Não ficarei satisfeita com a visão de sua nuca Preciso ver o sol batendo em cheio em seu rosto Ela se vira para me olhar Ela é um ponto de inércia na marcha daquele rio de outros condenados Sinto sua energia a beleza que era mais do que beleza que ela sempre escondia sob tristeza e desaprovação Ela me vê olhando para ela Ela sorri É um sorriso pequeno Um sorriso triste Eu devia ter dito irmã Por que eu não disse irmã grito para ela através dos anos para lhe pedir perdão Acho que voltei a Auschwitz por isso Para ouvila dizer que eu fiz o melhor com o que eu podia Que eu tinha feito a escolha certa Mas ela não pode dizer isso ou mesmo que dissesse eu não acreditaria Posso perdoar os nazistas mas como posso me perdoar Eu viveria tudo de novo cada linha de seleção cada banho cada noite congelante e cada chamada mortal cada refeição assombrada cada momento respirando o ar enfumaçado cada vez que quase morri ou que quis morrer se ao menos eu pudesse reviver esse momento esse momento e aquele logo antes desse quando eu podia ter feito uma escolha diferente Quando eu podia ter dado uma resposta diferente à pergunta de Mengele Quando eu podia salvar mesmo que por um dia a vida de minha mãe Minha mãe se vira Vejo seu casaco cinza seus ombros suaves seu cabelo preso brilhante se afastando de mim Vejo que caminha com outras mulheres e crianças na direção dos vestiários onde tirarão as roupas e o casaco que ainda guarda o pedaço do saco amniótico de Klara Lá lhes dirão para memorizarem o número do gancho onde deixaram as roupas como se fossem voltar para aquele vestido para aquele casaco para aquele par de sapatos Minha mãe ficará nua com outras mães avós jovens mães com seus bebês nos braços e com os filhos de mães que foram mandadas para a fila a que eu e Magda nos juntamos Ela descerá as escadas em fila até uma sala com chuveiros nas paredes para a qual mais e mais pessoas serão empurradas até que o ambiente esteja úmido de suor e lágrimas e ecoando os gritos das mulheres e crianças aterrorizadas até que esteja lotado e sem ar para respirar Será que ela percebeu a pequena janela quadrada no teto através da qual os guardas lançarão o veneno Em quanto tempo ela saberá que está morrendo Tempo suficiente para pensar em mim em Magda e Klara Em meu pai Tempo suficiente para fazer uma oração para sua mãe Tempo suficiente para ficar zangada comigo por eu ter dito a palavra que em um segundo a enviou para a morte Se eu soubesse que minha mãe ia morrer naquele dia teria dito uma palavra diferente Ou não teria falado nada e teria ido com ela para os chuveiros e morrido ao seu lado Eu podia ter feito algo diferente Podia ter feito mais Acredito nisso Como é fácil uma vida se tornar uma ladainha de culpa e arrependimento uma música que continua ecoando o mesmo refrão a mesma inabilidade de nos perdoarmos Com que facilidade a vida que não vivemos se torna a única vida que valorizamos Quão facilmente somos seduzidos pela fantasia de que temos controle de que algum dia tivemos controle que as coisas que podíamos ou devíamos ter feito ou dito têm poder se ao menos as tivéssemos feito ou dito para curar a dor acabar com o sofrimento desaparecer com a dor Com que facilidade podemos nos apegar venerar as escolhas que achamos que podíamos ou devíamos ter feito Eu poderia salvar minha mãe Talvez Viverei o resto da minha vida com essa possibilidade Posso me castigar por ter feito a escolha errada essa é uma prerrogativa minha ou posso aceitar que a escolha mais importante não foi a que fiz quando sentia fome e medo quando tinha 16 anos e estava cercada por cães armas e incertezas mas a que faço agora A escolha de me aceitar como eu sou humana e imperfeita E a escolha de ser responsável pela minha felicidade De perdoar as minhas falhas e resgatar a minha inocência De parar de perguntar por que mereci sobreviver Agir da melhor forma que puder me comprometer comigo mesma a ajudar os outros fazer tudo o que estiver ao meu alcance para honrar os meus pais e garantir que eles não morreram em vão Para fazer o meu melhor de acordo com minha capacidade limitada de modo que as futuras gerações não vivam o que eu vivi Para ser útil para sobreviver e prosperar de modo que eu possa usar cada momento para tornar o mundo um lugar melhor E para finalmente parar de fugir do passado fazer todo o possível para me redimir e então relaxar Todos nós podemos fazer escolhas Não posso mudar o passado mas há uma vida que posso salvar a minha A vida que estou vivendo agora neste momento valioso Estou pronta Pego uma pedra no chão uma pedra pequena irregular cinza comum Aperto a pedra Pela tradição judaica colocamos pequenas pedras nos túmulos como sinal de respeito aos mortos para oferecer mitzvah uma bênção A pedra significa que os mortos permanecem em nossos corações e em nossas memórias A pedra que está na minha mão é um símbolo de meu eterno amor por meus pais além de um sinal da culpa e da dor que eu vim aqui para enfrentar algo imenso e aterrorizante que apesar de tudo posso segurar na minha mão É a morte de meus pais A morte da vida que existia É o que não aconteceu O nascimento da vida como ela é Da paciência e da compaixão que aprendi aqui da capacidade de parar de me julgar da capacidade de responder em vez de reagir É a verdade e a paz que eu vim descobrir e tudo o que posso finalmente deixar para trás Deixo a pedra sobre o pedaço de terra onde ficava o meu galpão onde dormi numa prateleira de madeira com cinco outras garotas onde fechei os olhos enquanto tocava Danúbio Azul e dancei pela minha vida Sinto saudades digo a meus pais Amo vocês Sempre amarei vocês E é para o vasto campo de extermínio que matou meus pais e tantas outras pessoas para a sala de aula do horror que ainda tinha algo sagrado para me ensinar sobre como viver onde fui vitimizada mas não sou uma vítima onde fui ferida mas não destruída onde a alma nunca morre onde significado e propósito podem vir do fundo do coração daquele que mais nos magoa que eu pronuncio as palavras finais Adeus e obrigada Agradeço a vocês pela vida e pela capacidade de enfim aceitar a vida como ela é Vou até o portão de ferro de minha antiga prisão em direção a Béla que está me esperando na grama Pelo canto do olho vejo um homem de uniforme caminhando de um lado para outro embaixo do letreiro É um guarda do museu não um soldado Mas é impossível ao vêlo marchando com seu uniforme não paralisar prender a respiração à espera do estampido da arma da rajada de balas Por um segundo sou novamente a garota aterrorizada a garota em perigo Sou meu eu aprisionado Mas eu respeito espero o momento passar Sinto o passaporte azul americano no bolso do meu casaco O guarda chega ao letreiro de ferro batido e vira andando de volta para dentro da prisão Ele deve ficar aqui É seu trabalho ficar Mas eu posso ir embora Eu sou livre Vou embora de Auschwitz Eu fujo Passo por baixo das palavras ARBEIT MACHT FREI Como essas palavras eram cruéis e sarcásticas quando percebemos que nada que pudéssemos fazer nos libertaria Mas conforme me afasto dos galpões das ruínas dos crematórios das torres de vigia dos visitantes e do guarda do museu e passo por baixo das palavras de ferro escuro em direção a meu marido vejo as palavras brilharem com a verdade O trabalho me libertou Sobrevivi para poder realizar o meu trabalho Não o trabalho que os nazistas queriam o trabalho duro de sacrifício e fome de exaustão e escravidão Foi o trabalho interior de aprender a sobreviver e a prosperar de aprender a me perdoar e de ajudar os outros a fazerem o mesmo Quando faço esse trabalho deixo de ser refém ou prisioneira de nada Sou livre PARTE IV CURA C A P Í T U L O 2 0 A dança da liberdade Uma das últimas vezes em que vi Viktor Frankl foi no III Congresso Mundial de Logoterapia em Regensburg em 1983 Ele estava com quase 80 anos e eu com 56 De muitas formas eu era a mesma pessoa que tivera um ataque de pânico em um auditório em El Paso quando coloquei o livrinho dele na bolsa Ainda falo inglês com um sotaque forte Ainda tenho flashbacks Ainda carrego imagens dolorosas e lamento as perdas do passado Mas não me sinto mais como se fosse vítima Senti e sempre sentirei gratidão e um amor imenso por meus dois libertadores o soldado que me tirou de uma pilha de corpos em Gunskirchen e Viktor Frankl que me autorizou a não mais me esconder e me ajudou a encontrar palavras para descrever a minha experiência e a lidar com minha dor Por meio de sua orientação e amizade descobri um propósito no meu sofrimento um sentido que me ajudou não só a aceitar o passado mas também a emergir de minhas provações com algo precioso e digno de ser compartilhado o caminho para a liberdade Nós dançamos na última noite da conferência Lá estavam dois velhos dançarinos Duas pessoas apreciando o presente sagrado Dois sobreviventes que aprenderam a prosperar e a ser livres Minha amizade de décadas com Viktor Frankl e os relacionamentos de cura com todos os meus pacientes incluindo aqueles que descrevi aqui me ensinaram a mesma lição importante que comecei a receber em Auschwitz nossas experiências dolorosas não são uma desvantagem são um presente Elas nos dão perspectivas e sentido uma oportunidade de encontrar nosso propósito especial e nossa força Não há um modelo para a cura que sirva para todos mas existem passos que podem ser aprendidos e praticados passos que cada indivíduo pode juntar à sua maneira passos da dança da liberdade Meu primeiro passo na dança foi assumir a responsabilidade por meus sentimentos Parar de reprimilos e evitálos e parar de colocar a culpa em Béla ou em outras pessoas aceitandoos como meus Esse também foi um passo fundamental na cura do capitão Jason Fuller Como eu ele tinha o hábito de eliminar os sentimentos de fugir deles até que se tornassem grandes demais e passassem a controlálo não o contrário Mostrei a ele que não era possível evitar a dor evitando seus sentimentos Ele tinha de assumir a responsabilidade de vivenciálos e no devido tempo expressálos com segurança para que depois pudessem se dissipar Naquelas primeiras semanas de tratamento ensinei a ele um mantra para gerenciar as emoções observar aceitar verificar permanecer Quando um sentimento começava a dominálo a primeira ação de gerenciamento era observar reconhecer que estava sentindo algo Ele podia dizer a si mesmo Ahá Aqui vou eu novamente Isso é raiva Isso é ciúme Isso é tristeza Meu terapeuta junguiano ensinou algo que considero bastante reconfortante apesar de parecer que a paleta de sentimentos humanos é infinita na realidade cada nuance emocional como cada cor deriva de algumas poucas emoções primárias tristeza raiva alegria medo Para quem como eu estava aprendendo o vocabulário emocional é menos opressivo aprender a identificar apenas quatro sentimentos Quando conseguiu dar nome a seus sentimentos Jason precisou aceitar que eram seus Esses sentimentos podiam ser provocados por ações ou palavras de outras pessoas mas eram seus Descarregálos em cima de alguém não faria com que desaparecessem Então quando o sentimento surgia Jason tinha que verificar sua resposta corporal Estou com calor ou com frio Meu coração disparou Como está minha respiração Estou ok Ajustarse ao sentimento em si e a como ele se movimentava em seu corpo ajudava Jason a permanecer com o sentimento até que ele passasse ou mudasse Não era preciso encobrir medicar ou fugir de seus sentimentos Ele podia escolher sentilos Eram apenas sentimentos Ele podia aceitálos suportálos e permanecer com eles porque eram temporários Como Jason preferia ajustar seus sentimentos praticamos como responder a eles em vez de reagir Jason aprendeu a viver como se estivesse em uma panela de pressão Ele se manteve sob um controle rígido até que explodiu Eu o ajudei a aprender a ser mais como um bule de chá que libera o vapor Às vezes ele chegava para a sessão eu perguntava como estava se sentindo e ele dizia Sinto vontade de gritar Eu respondia Tudo bem Vamos gritar Deixe sair tudo para que isso não o deixe doente Conforme Jason aprendeu a aceitar e enfrentar seus sentimentos ele também começou a ver que em muitos aspectos estava recriando em sua família o medo a repressão e a violência de sua infância A necessidade de controlar seus sentimentos aprendida sob a dominação de um pai abusivo tinha se transferido para a necessidade de controlar a esposa e os filhos Às vezes a cura nos ajuda a recuperar as relações com os nossos parceiros mas muitas vezes a cura libera a outra pessoa para o seu próprio crescimento Depois de alguns meses participando de sessões de aconselhamento para casais a esposa de Jason comunicou que estava pronta para se separar Jason ficou surpreso e furioso Preocupeime que sua dor em relação ao casamento fracassado ditasse a maneira como ele tratava as crianças Inicialmente Jason agiu de maneira vingativa e queria lutar pela guarda total mas ele conseguiu mudar sua mentalidade do tudo ou nada e fez um acordo de guarda compartilhada com a esposa Ele conseguiu reparar e nutrir seu relacionamento com as pessoas que o incentivaram a deixar a arma de lado seus filhos Ele encerrou o legado de violência Quando reconhecemos e assumimos a responsabilidade por nossos sentimentos aprendemos a reconhecer e a assumir a responsabilidade pelo papel que desempenhamos na dinâmica que molda nossos relacionamentos Como aprendi em meu casamento e na relação com meus filhos um dos campos de provas para a liberdade é como nos relacionamos com nossos entes queridos Isso acontece com frequência em meu trabalho Jun vestia calça com vinco e camisa de botão na manhã em que o conheci Ling entrou pela porta com um terninho de corte perfeito a maquiagem aplicada com maestria e o cabelo penteado de maneira impecável Jun se sentou em uma ponta do sofá os olhos passando pelas fotografias e pelos diplomas pendurados na parede de meu consultório olhando para tudo menos para Ling Ela sentou com elegância na outra ponta do sofá e olhou diretamente para mim O problema é o seguinte disse ela sem rodeios Meu marido bebe demais O rosto de Jun ficou vermelho Ele parecia prestes a falar mas se manteve quieto Isso tem de acabar disse Ling Perguntei o que era isso Quais eram os comportamentos que ela achava tão questionáveis Segundo Ling ao longo dos últimos dois anos Jun havia tornado o hábito de beber até então restrito a uma noite ou outra e aos fins de semana um ritual diário Ele começava antes de chegar em casa com um uísque em um bar perto do campus da universidade onde era professor A esse drinque se seguia outro em casa e mais outro No momento em que eles se sentavam para jantar com os dois filhos os olhos de Jun já estavam meio vidrados a voz um pouco alta demais e as piadas sem graça Ling se sentia sobrecarregada pela responsabilidade de fazer as crianças cumprirem as rotinas de higiene antes de dormir Depois que os filhos se recolhiam Ling conseguia se deitar mas estava frustrada Quando perguntei sobre a vida íntima deles Ling ficou ruborizada Contou então que houve uma época em que Jun tomava a iniciativa mas às vezes ela estava muito chateada para corresponder Agora ele geralmente adormecia no sofá Isso não é tudo disse ela Ela estava listando todas as provas Ele quebra pratos porque está bêbado Chega tarde em casa Esquece as coisas que eu falo Está dirigindo bêbado e vai acabar se envolvendo em um acidente Como posso confiar nele para levar as crianças À medida que Ling falava Jun parecia desaparecer Seus olhos se fixaram no colo Ele parecia magoado fechado envergonhado e zangado mas a hostilidade dele estava direcionada para dentro Perguntei a Jun qual era a perspectiva dele para a vida cotidiana do casal Sou sempre responsável com as crianças disse ele Ela não tem o direito de me acusar de colocálas em perigo E o seu relacionamento com Ling Como você vê o funcionamento de seu casamento Ele deu de ombros Estou aqui disse ele Percebo um grande espaço entre vocês no sofá Essa é uma indicação precisa de um grande abismo entre vocês Ling segurou a bolsa Exatamente respondeu Jun É porque ele bebe interrompeu Ling É isso que está criando essa distância Parece que há muita raiva separando vocês Ling olhou rapidamente para o marido antes de concordar Vejo muitos casais presos na mesma dança Ela resmunga ele bebe Ele bebe ela reclama Esta é a coreografia que eles escolheram Mas e se um deles mudar o passo Me pergunto eu começo se o casamento de vocês sobreviveria se Jun parasse de beber A mandíbula de Jun travou Ling afrouxou o aperto na bolsa Exatamente disse ela Isso é o que precisa acontecer O que realmente aconteceria se Jun parasse de beber perguntei Contei a eles sobre outro casal que conheço O marido também bebia Um dia ele chegou ao seu limite Não queria mais beber Queria ajuda Ele decidiu que a reabilitação era a melhor opção e se esforçou muito para ficar sóbrio Era por isso que a esposa dele rezava que acontecesse Ambos esperavam que a sobriedade fosse a solução para todos os problemas deles Porém à medida que a recuperação progredia o casamento piorava Quando a esposa o visitava na clínica de reabilitação sentimentos de raiva e amargura surgiam Ela não conseguia se controlar e parar de repetir coisas passadas Lembra de quando há cinco anos você chegou em casa e vomitou no meu tapete predileto E aquela outra vez em que você arruinou nossa festa de aniversário de casamento Ela não conseguia parar a ladainha de todos os erros que ele tinha cometido e de todas as formas que ele a havia magoado e desapontado Quanto mais o marido melhorava pior ela ficava Ele se sentia mais forte menos intoxicado menos envergonhado mais em contato com ele mesmo mais ajustado com a vida e com os relacionamentos Ela ficava cada vez mais irritada Ele parou de beber mas ela não parou de criticar e culpar Eu chamo essa situação de gangorra Uma pessoa está no alto a outra embaixo Muitos casamentos e relacionamentos são construídos dessa forma Duas pessoas concordam com um contrato não escrito uma delas será boa e a outra será má Todo o sistema se baseia na inadequação de uma pessoa O parceiro malvado recebe um passe livre para testar todos os limites o parceiro bom tem o direito de dizer Veja como sou altruísta Veja como sou paciente Veja tudo o que tenho que aturar Mas o que acontece se o malvado no relacionamento se cansa desse papel E se ele quiser concorrer a outro papel Então o lugar do bom no relacionamento não está mais seguro O bom precisa relembrar ao mau do quanto ele é malvado para poder manter sua posição Ou pode se tornar hostil e impaciente de modo que eles ainda mantenham a gangorra equilibrada se mudarem de posição De qualquer forma a culpa é o pivô que mantém os dois juntos Em muitos casos as ações de alguém realmente contribuem para nosso desconforto e para nossa infelicidade Não estou sugerindo que devemos concordar com o comportamento prejudicial e destrutivo Mas permanecemos vítimas quando responsabilizamos a outra pessoa por nosso próprio bemestar Se Ling diz Só posso ser feliz e estar em paz se Jun parar de beber ela fica vulnerável a uma vida de tristeza e desassossego A felicidade dela estará sempre a uma garrafa ou a um trago do desastre Da mesma forma se Jun diz A única razão de eu beber é porque Ling é muito irritante e crítica ele abre mão de toda a liberdade de escolha Ele não é o próprio agente é um fantoche de Ling Ele pode obter um alívio temporário com o efeito do álcool que o protege contra a grosseria dela mas não ficará livre Isso acontece frequentemente quando estamos infelizes porque estamos assumindo muitas responsabilidades ou menos do que deveríamos Em vez de sermos assertivos e fazermos escolhas claras para nós mesmos podemos ficar agressivos escolhendo para os outros passivos deixar que os outros escolham por nós ou passivoagressivos escolhendo para os outros ao impedir que eles conquistem por eles mesmos o que escolheram Não me dá nenhum prazer admitir que eu costumava agir de maneira passivoagressiva com Béla Ele era muito pontual É importante para Béla chegar na hora então quando eu estava chateada com ele arrumava uma desculpa no momento de sair de casa Intencionalmente eu encontrava uma maneira de nos atrasar de fazer com que perdêssemos a hora só para irritálo Ele escolhera a pontualidade mas eu não o deixava fazer o que queria Eu disse a Ling e a Jun que colocar a culpa da infelicidade deles um no outro era uma forma de evitar assumir a responsabilidade por sua própria alegria Apesar de aparentemente os dois serem bastante assertivos ambos eram especialistas em evitar dizer com honestidade Eu quero ou Eu sou Ling usava as palavras Eu quero Eu quero que meu marido pare de beber mas ao querer algo para o outro ela evitava saber o queria para ela E Jun podia racionalizar o hábito de beber dizendo que era culpa de Ling uma forma de se afirmar contra as críticas e expectativas opressivas dela Mas se você abre mão das próprias escolhas então está concordando em ser uma vítima e um prisioneiro Na Hagadá o texto judaico que conta a história da libertação da escravidão no Egito e ensina as orações e os rituais para o seder do Pessach existem quatro perguntas que o membro mais novo da família tradicionalmente deve fazer as perguntas que tive o privilégio de fazer na minha infância e que fiz na última noite que passei com meus pais em nossa casa Na minha prática terapêutica desenvolvi a minha própria versão das quatro perguntas auxiliada por vários colegas com quem ao longo dos anos compartilhei estratégias para iniciar uma sessão com um novo paciente Fiz essas perguntas a Ling e a Jun Pedi que respondessem por escrito para conseguirem se livrar da vitimização 1 O que você quer Esta é uma pergunta aparentemente simples Dar a nós mesmos a permissão para nos conhecermos e nos ouvirmos para também nos alinharmos com os nossos desejos o que pode ser muito mais difícil do que imaginamos Com que frequência quando respondemos a esta pergunta dizemos na verdade o que queremos para a outra pessoa Lembrei a Ling e a Jun que eles precisavam responder a essa pergunta sozinhos Responder Eu quero que Jun pare de beber ou Eu quero que Ling pare de implicar significava evitar a pergunta 2 Quem quer isso Essa é nossa responsabilidade e nossa luta compreender nossas próprias expectativas versus tentar atender as expectativas dos outros Meu pai se tornou um alfaiate porque o pai dele não permitiu que ele se tornasse médico Meu pai era bom na sua profissão era recomendado e premiado pelo seu trabalho mas nunca quis aquilo e sempre lamentou seu sonho não realizado É nossa responsabilidade agir em nome de nosso verdadeiro eu Às vezes isso significa abrir mão da necessidade de agradar e obter a aprovação dos outros 3 O que você vai fazer sobre isso Eu acredito no poder do pensamento positivo mas a mudança e a liberdade também exigem uma ação positiva Qualquer coisa que a gente pratique nos torna melhor Se praticarmos a raiva ficaremos com mais raiva Se praticarmos o medo ficaremos com mais medo Em muitos casos nós realmente trabalhamos muito duro para garantir que não vamos a lugar nenhum Mudança tem a ver com perceber o que não está mais funcionando e sair dos padrões conhecidos e limitantes 4 Quando Em E o vento levou o livro favorito de minha mãe quando Scarlett OHara é confrontada com uma dificuldade ela diz Pensarei nisso amanhã Afinal de contas amanhã é outro dia Se quisermos evoluir em vez de andar em círculos a hora de agir é agora Ling e Jun terminaram de escrever suas respostas às perguntas dobraram os papéis e os repassaram a mim Nós os leríamos juntos na semana seguinte Quando eles se levantaram para sair Jun apertou minha mão e ao passar pela porta eu vi a confirmação que precisava de que eles estavam dispostos a tentar encurtar a distância que tinha abalado seu casamento e sair da gangorra da culpa Ling se virou para Jun e deu um sorriso tímido Não consegui ver se ele retribuiu ele estava de costas para mim mas eu o vi dar um tapinha amistoso no ombro dela Quando nos reunimos na semana seguinte Ling e Jun descobriram algo que não haviam previsto Em resposta à pergunta O que você quer cada um tinha escrito a mesma coisa um casamento feliz Só o fato de revelarem esse desejo mostrou que eles já estavam a caminho de obtêlo Tudo o que eles precisavam era de algumas ferramentas novas Pedi que Ling se empenhasse em mudar seu comportamento depois que Jun chegasse em casa todos os dias Esse era o momento em que ela geralmente ficava mais zangada vulnerável e assustada Estaria ele bêbado Quão bêbado Quão bêbado ele ficaria Havia alguma possibilidade de aproximação entre eles ou seria outra noite de distância e hostilidade Ela aprendera a administrar seu medo ao tentar exercer o controle Ela sentiria o bafo de Jun faria acusações se afastaria Ensinei Ling a saudar o marido estando ele bêbado ou sóbrio da mesma forma com olhos gentis e uma simples afirmação Estou feliz em vêlo Estou satisfeita por você estar em casa Se ele estivesse bêbado e ela se sentisse magoada e decepcionada ela poderia falar sobre esses sentimentos Posso ver que você andou bebendo e isso me deixa triste porque é difícil se sentir próxima de você assim ou Isso me deixa preocupada com sua segurança Ela estava autorizada a fazer escolhas por si mesma em resposta à decisão do marido de beber Ela poderia dizer Eu estava querendo conversar com você hoje mas vejo que andou bebendo Vou fazer outra coisa em vez disso Conversei com Jun sobre os componentes fisiológicos da dependência e lhe disse que eu poderia ajudálo a curar qualquer dor que ele estivesse tentando tratar com o álcool e que se decidisse ficar sóbrio precisaria de apoio adicional no tratamento do seu vício Pedi que comparecesse a três reuniões dos Alcoólicos Anônimos Lá ele deveria verificar se por acaso se reconhecia em algumas das histórias Jun foi às reuniões marcadas mas pelo que sei nunca mais voltou No período em que fizeram terapia comigo ele não parou de beber Quando Ling e Jun terminaram a terapia algumas coisas melhoraram outras não Eles se tornaram mais capazes de ouvir um ao outro sem a necessidade de ter a última palavra passavam mais tempo sem raiva e com isso podiam reconhecer sua tristeza e medo Também havia mais receptividade entre eles porém o isolamento permaneceu assim como o medo de que o hábito de beber de Jun ficasse fora de controle A história deles é um bom lembrete de que algo não acaba até acabar Enquanto você viver há a chance de sofrer mais Também há a oportunidade de encontrar um jeito de sofrer menos e de escolher a felicidade o que exige tomar a responsabilidade para si Tentar ser a pessoa que cuida e atende todas as necessidades do outro é tão problemático quanto evitar sua responsabilidade consigo mesmo Isso tem sido um problema para mim como é para muitos psicoterapeutas Eu tive uma revelação sobre isso quando atendi uma mãe solteira de cinco filhos que estava deprimida desempregada e com problemas físicos Como ela sentia dificuldade em sair de casa me ofereci feliz para buscar os cheques do segurodesemprego em seu lugar e levar seus filhos para compromissos e atividades Como sua terapeuta achei que era minha responsabilidade ajudála de todas as formas possíveis Um dia quando eu estava na fila para receber o auxílio me sentindo benevolente generosa e digna uma voz dentro de mim disse Edie de quem são as necessidades que estão sendo atendidas Percebi que a resposta não era da minha querida paciente A resposta era minhas Ao fazer as coisas para ela eu me sentia bem comigo mesma Mas a que preço Eu estava alimentando sua dependência e privação A paciente já estava se privando há um bom tempo de algo que só ela poderia encontrar internamente Enquanto eu acreditava que contribuía para sua saúde e bemestar na realidade estava levando minha paciente a manter sua perda Tudo bem ajudar as pessoas e tudo bem precisar de ajuda mas quando sua ajuda faz com que o outro não se ajude então você está minando a pessoa que deseja ajudar Eu costumava perguntar a meus pacientes Como posso ajudar mas esse tipo de pergunta os deixa sentados no sofá aguardando que alguém os ajude a levantar Mudei minha pergunta inicial para Como posso ser útil Como posso ajudar você a assumir a responsabilidade por você mesmo Nunca conheci uma pessoa que conscientemente escolhesse viver presa Mas testemunhei diversas vezes como delegamos voluntariamente nossa liberdade espiritual e mental escolhendo transferir para outra pessoa ou entidade a responsabilidade de direcionar nossa vida de escolher por nós Um jovem casal me ajudou a compreender as consequências de abdicar dessa responsabilidade e repassála a outra pessoa Eles me comoveram especialmente por causa de sua juventude por estarem naquela fase da vida em que a maioria de nós busca autonomia e que é ironicamente um momento de ansiedade É uma época em que nos questionamos se estamos prontos para a autonomia e se somos suficientemente fortes para aguentar o peso da independência Quando Elise procurou minha ajuda havia chegado ao desespero suicida Aos 21 anos com o cabelo louro encaracolado preso em um rabo de cavalo tinha os olhos vermelhos de tanto chorar e vestia uma camiseta esportiva masculina grande que quase cobria seus joelhos Senteime com Elise sob o luminoso sol de outubro enquanto ela tentava explicar a origem de sua angústia Todd Jogador de basquete carismático ambicioso e lindo Todd era quase uma celebridade no campus Ela o conhecera dois anos antes ao entrar na faculdade época em que ele estava no segundo ano Todo mundo conhecia Todd A novidade para Elise foi que ele quis conhecêla Ele se sentia fisicamente atraído por Elise e gostou do fato de ela não se esforçar demais para tentar agradálo Ela não era superficial Suas personalidades pareciam se complementar Ela era tímida e quieta ele falador e extrovertido Ela era observadora ele artista Não namoravam há muito tempo quando Todd a convidou para morar com ele Os olhos de Elise brilharam ao contar sobre os primeiros meses do relacionamento Sobre o fato de que ser o centro das atenções de Todd a fez se sentir pela primeira vez não apenas bem mas extraordinária Não é que ela se sentisse negligenciada ou privada de amor quando criança ou em seus primeiros relacionamentos Mas a atenção de Todd a fez se sentir viva de uma maneira diferente Ela adorava a sensação Infelizmente essa sensação veio e se foi Às vezes ela se sentia insegura no relacionamento Principalmente nos dias de jogos de basquete e festas quando outras mulheres flertavam com Todd ela se sentia inadequada e com ciúmes Quando Todd passava a impressão de corresponder aos flertes ela reclamava com ele Às vezes ele a tranquilizava em outras se irritava com suas inseguranças Ela tentou não ser a namorada irritante e buscou encontrar maneiras de se tornar indispensável para ele Elise virou o principal apoio acadêmico de Todd que se esforçava para conseguir as notas mínimas exigida para manter a bolsa de estudos esportiva No início Elise o ajudou a estudar para as provas Depois começou a ajudálo nos deveres de casa Logo ela estava escrevendo artigos para ele e ficando acordada até tarde para fazer os trabalhos dele além dos seus Conscientemente ou não Elise encontrou um jeito de tornar Todd dependente dela O relacionamento teria de durar porque ele precisava dela para manter a bolsa de estudos e tudo o mais que ela incluía A sensação de ser indispensável era tão inebriante e tranquilizante que a vida de Elise se organizou em torno de uma equação quanto mais eu fizer por ele mais ele me amará Sem perceber ela começou a associar sua sensação de autoestima com a existência do amor dele Até que Todd confessou algo que Elise sempre temera ele tinha ido para a cama com outra mulher Ela ficou zangada e magoada Ele se desculpou todo choroso mas não conseguiu parar de se encontrar com a outra mulher Estava apaixonado Todd lamentava e esperava que ele e Elise pudessem continuar amigos Elise mal conseguiu reunir forças para sair do apartamento na primeira semana Não tinha fome Não conseguia se vestir Estava aterrorizada por estar sozinha e se sentia envergonhada Ela entendeu que tinha deixado o relacionamento comandar sua vida e o preço disso Então Todd ligou Ele queria saber se ela podia fazer um grande favor para ele se não estivesse muito ocupada Ele tinha um artigo para entregar na segundafeira Será que ela podia escrever para ele Ela escreveu o artigo E mais outro E mais outro Dei a ele tudo dizia ela chorando Querida esse foi o seu primeiro erro Você se sacrificou por ele O que ganhou com isso Queria que ele fosse bemsucedido e ele ficava feliz quando eu ajudava E o que está acontecendo agora Ela contou que soube por um amigo em comum que Todd e a nova mulher tinham ido morar juntos E ele precisava entregar um artigo que Elise concordara em escrever Sei que ele não vai voltar para mim Sei que tenho que parar de fazer o dever de casa para ele mas não consigo Por que não Eu o amo Sei que ainda posso fazêlo feliz se ajudálo nos trabalhos E quanto a você Você está fazendo o melhor que pode Está feliz Você me faz sentir como se eu estivesse fazendo a coisa errada Quando você para de fazer o que é melhor para você e faz o que acha que alguém precisa está fazendo uma escolha que tem consequências para você Ela também tem consequências para Todd O que sua decisão de se devotar a ajudá lo revela sobre a capacidade dele de superar os próprios desafios Posso ajudálo Estou à disposição dele Você realmente não confia nele Quero que ele me ame À custa de seu desenvolvimento À custa de sua vida Fiquei muito preocupada com Elise quando ela foi embora Seu desespero era profundo mas eu não acreditava que ela tiraria a própria vida Ela queria mudar o que era a razão para ter buscado ajuda Ainda assim dei a ela meu número de telefone de casa e o número de uma linha telefônica de prevenção ao suicídio e pedi que me telefonasse todos os dias até a próxima sessão Quando Elise voltou na semana seguinte fiquei surpresa de ver que tinha trazido um jovem com ela Era Todd Elise estava sorrindo A depressão tinha acabado disse ela Todd havia terminado com a outra e eles se reconciliaram Ela se sentia renovada Ela via agora que o afastara com sua carência e insegurança Ela se esforçaria mais para confiar no relacionamento para mostrar a ele o quanto estava comprometida Durante a sessão Todd parecia impaciente e entediado olhando para o relógio mexendose na cadeira como se estivesse desconfortável Não existe reconciliação sem um novo começo Qual é o novo relacionamento que vocês querem Do que estão dispostos a abrir mão para chegar lá perguntei Eles olharam para mim e eu prossegui Vamos começar com o que vocês têm em comum O que gostam de fazer juntos Todd olhou para o relógio Elise se encostou nele Esse é o dever de casa de vocês eu disse Quero que cada um descubra uma coisa nova que gosta de fazer sozinho e uma coisa nova que gosta de fazer a dois Não pode ser basquete dever de casa ou sexo Que seja algo divertido e fora da rotina Elise e Todd voltaram ao meu consultório de forma esporádica ao longo dos seis meses seguintes Às vezes Elise vinha sozinha Seu foco principal continuava a ser manter o relacionamento mas nada do que ela fazia era suficiente para apagar suas inseguranças e dúvidas Ela queria se sentir melhor mas ainda não estava disposta a mudar E Todd quando vinha às sessões também parecia preso Ele estava obtendo tudo o que achava que queria admiração sucesso amor sem mencionar as notas boas mas parecia triste Ele se curvava recuava Era como se sua autoestima e autoconfiança tivessem se atrofiado por causa de sua dependência de Elise Por fim as visitas de Elise e Todd escassearam e não ouvi mais falar deles por muitos meses Certo dia então recebi dois avisos de formaturas Uma era de Elise Ela tinha se formado e sido aceita para o programa de mestrado em Literatura Comparada Ela me agradecia pelo tempo que passamos juntas Contava que um dia havia acordado e percebido que tinha chegado ao limite Parou de fazer os trabalhos de Todd e o relacionamento deles acabou o que foi muito difícil mas que agora se sentia grata por não ter se contentado com seja lá o que estava escolhendo no lugar do amor O outro aviso de formatura era de Todd Ele estava dois anos atrasado mas estava se formando Ele também queria me agradecer Disse que quase abandonara a faculdade quando Elise parou de fazer os trabalhos por ele contou que ficou indignado e furioso mas então assumiu a responsabilidade pela própria vida contratou um professor particular e aceitou que precisaria se esforçar para o seu próprio bem Agi como um cretino ele escreveu salientando que não tinha percebido que o tempo todo em que dependeu de Elise para fazer os trabalhos por ele estava deprimido Não gostava de si mesmo Agora podia se olhar no espelho e sentir respeito em vez de desprezo Viktor Frankl escreve A busca do homem por sentido é a principal motivação em sua vida Este sentido é único e específico pois pode e deve ser cumprido por ele sozinho somente então ele alcança um significado que satisfará a própria vontade de sentido Quando abdicamos de assumir a responsabilidade por nós mesmos estamos abrindo mão de nossa capacidade de criar e descobrir o sentido Em outras palavras desistimos de viver C A P Í T U L O 2 1 A garota sem mãos O segundo passo na dança da liberdade é aprender a correr os riscos necessários para alcançar a verdadeira autorrealização O maior risco que assumi nessa jornada foi retornar a Auschwitz Havia pessoas com a perspectiva de fora como a famíliaanfitriã de Marianne e o funcionário da embaixada polonesa me dizendo para não ir E havia o meu guardião interior a parte de mim que preferia ser segura a ser livre Mas na noite insone que passei na cama de Goebbels intuí que não seria uma pessoa completa se não voltasse que para minha própria saúde eu precisava voltar àquele lugar Correr riscos não significa se jogar cegamente em situações perigosas mas admitir o seu medo para não ficar preso nele Carlos começou a trabalhar comigo quando estava no segundo ano do ensino médio e enfrentava problemas de ansiedade social e autoaceitação Ele tinha tanto medo de ser rejeitado pelos colegas que não se arriscaria a começar amizades e relacionamentos Um dia pedi que me falasse sobre as dez garotas mais populares da escola e lhe passei uma missão Ele tinha que chamar cada uma dessas garotas para sair Ele respondeu que era impossível que estaria cometendo suicídio social que elas nunca sairiam com ele que seria motivo de piada pelo resto de seus dias na escola por ser tão patético Eu disse a ele que nem sempre conseguimos o que queremos mas mesmo quando não conseguimos ainda assim estamos melhor do que antes porque saberemos qual é a situação teremos mais informações e veremos o que é realmente verdade em vez da realidade criada pelo nosso medo Enfim ele concordou com a missão E para sua surpresa quatro das garotas mais populares aceitaram Ele já havia decidido sobre o seu valor já havia sido rejeitado quinhentas vezes em sua mente e esse medo tinha se revelado em sua linguagem corporal principalmente nos olhos que ficavam baixos e eram evasivos em vez de brilhantes e conectados Ele ficou indisponível para a alegria mas quando admitiu seu medo e suas escolhas e assumiu os riscos descobriu possibilidades que nem sabia que existiam Alguns anos mais tarde no outono de 2007 Carlos me ligou de seu quarto no dormitório da faculdade A ansiedade deixava sua voz aguda Preciso de ajuda disse ele Carlos estava no segundo ano de uma das dez melhores universidades do MeioOeste Quando ouvi seu nome assim de repente achei que talvez suas ansiedades sociais estivessem novamente incontroláveis Digame o que está acontecendo Era a semana de juramento no campus disse ele Eu sabia que pertencer a uma fraternidade era seu sonho desde o ensino médio Quando ele entrou na faculdade o sonho ganhou mais importância As fraternidades eram uma parte significativa da estrutura social da universidade e todos os seus amigos estavam fazendo o juramento Portanto pertencer a uma fraternidade parecia ser uma necessidade para sua sobrevivência social Carlos ouvira rumores sobre rituais de trotes impróprios mas escolheu sua fraternidade com cuidado Ele gostava da diversidade racial dos membros e da ênfase no serviço social Parecia ser a escolha perfeita Enquanto muitos de seus amigos estavam preocupados com o trote Carlos não se sentia assim Ele acreditava que o trote tinha um propósito e que ajudava os jovens a criarem laços mais rapidamente desde que não fosse exagerado Mas a semana de juramento não estava sendo como Carlos havia imaginado O que está diferente perguntei Meu mestre recrutador deixou que o poder lhe subisse à cabeça contou ele salientando que o recrutador era muito agressivo e procurava cada ponto fraco do candidato e investia forte nele Ele chamou o gosto musical de um cara de gay e durante uma reunião olhou para mim e disse Você é o tipo de pessoa que devia estar cortando minha grama Como você se sentiu quando ele disse isso Fiquei furioso Queria dar um soco na cara dele O que você fez Nada Ele estava apenas tentando me tirar do sério Não reagi O que aconteceu depois Carlos contou que naquela manhã o mestre recrutador tinha mandado ele e os outros candidatos limparem a casa da fraternidade distribuindo diferentes tarefas Ele deu a Carlos uma escova de limpar vaso sanitário e um produto de limpeza Depois entregoulhe um imenso sombrero Você vai usar esse chapéu enquanto limpa os banheiros e também quando sair e for para a sala de aula E só está autorizado a falar duas palavras o dia inteiro Sí señor Era uma humilhação pública um inacreditável ato de racismo mas se Carlos queria entrar para a fraternidade teria que aguentar Eu não podia me negar a fazer disse Carlos com a voz trêmula Foi horrível mas fiz Não queria perder o meu lugar só porque o recrutador é um cretino Não queria deixar que ele levasse a melhor Dá para perceber que você está zangado Estou furioso envergonhado e confuso Sinto que eu devia ter sido capaz de fazer as coisas sem me afetar Conteme mais Sei que não é a mesma coisa mas enquanto eu esfregava banheiros com o sombrero pensei na história que você me contou do campo de extermínio quando foi obrigada a dançar Lembro que você disse que estava com medo e que estava na prisão mas que se sentiu livre Que os guardas estavam mais presos do que você Sei que o mestre recrutador é um idiota Por que não posso apenas fazer o que ele quer que eu faça e ainda assim me sentir livre por dentro Você sempre me disse que não é o que está acontecendo externamente que importa mas o que está acontecendo internamente Tenho orgulho de minha identidade mexicana Por que essa besteira me incomoda Por que não consigo ser superior Essa foi uma linda pergunta De onde vem o nosso poder É suficiente para encontrar a nossa força interior nossa verdade interior ou a autonomia também exige medidas externas Acredito que o que acontece dentro de cada um é mais importante Acredito na necessidade de se viver de acordo com os nossos valores e ideais com nosso caráter moral Acredito ainda na importância de defender o que é certo e de desafiar o que é injusto e desumano E acredito em escolhas A liberdade está em examinar as opções disponíveis e as consequências dessas escolhas Quanto mais opções você tem disse eu menos vai se sentir como uma vítima Vamos falar sobre as suas opções Fizemos uma lista Uma opção era Carlos usar o sombrero pelo campus o resto do dia dizendo apenas Sí señor Ele podia concordar em se submeter a quaisquer humilhações inventadas pelo mestre recrutador Outra opção era se recusar Ele podia dizer ao mestre recrutador que se recusava a fazer aquilo Ou ele podia retirar sua candidatura à fraternidade Podia tirar o sombrero e largar a escova de limpeza e ir embora Carlos não gostou das consequências de nenhuma das opções Não gostou da vergonha e impotência que sentiu em ceder à intimidação principalmente pelas humilhações terem origem no racismo Ele sentiu que não poderia continuar a desempenhar o papel da caricatura racista sem minar sua autoestima Se continuasse cedendo ao intimidador Carlos o fortaleceria enquanto ele próprio se enfraqueceria Mas o desafio aberto ao mestre recrutador podia ser fisicamente perigoso e levar ao isolamento social Carlos estava com medo de ser agredido e de responder à altura Ele não queria ser dominado por impulsos violentos não queria cair na armadilha do mestre recrutador de tentar irritálo não queria participar de um confronto público Também estava com medo de ser banido pela fraternidade pelos candidatos e pela própria comunidade cuja aceitação ele estava cortejando A terceira opção ir embora não era melhor Ele teria de desistir de seu sonho desistir do desejo de pertencer e ele não estava disposto a fazer isso Ao avaliar as opções disponíveis Carlos encontrou uma quarta opção Em vez de confrontar o mestre recrutador diretamente e correr o risco de se envolver em uma briga violenta ele podia registrar uma queixa com alguém mais graduado Carlos decidiu que a melhor pessoa seria o presidente da fraternidade Ele sabia que poderia levar a questão ao topo da hierarquia ao reitor da universidade caso fosse necessário mas de início preferia manter a conversa na própria fraternidade Ensaiamos o que ele falaria e como falaria Ele teve dificuldade em manter a calma enquanto ensaiava mas depois dos anos em que trabalhamos juntos ele sabia que quando a pessoa perde a cabeça pode até se sentir forte no momento mas na realidade ela está entregando seu poder Ser forte não é reagir mas responder permitir os sentimentos refletir sobre eles e planejar uma ação eficiente para aproximálo de seu objetivo Carlos e eu conversamos sobre as possíveis consequências da conversa Era possível que o presidente da fraternidade dissesse que o comportamento do mestre recrutador era aceitável e que Carlos devia acatar ou desistir Se o presidente vai encarar a situação dessa forma acho que prefiro saber do que ignorar disse Carlos Carlos me ligou depois da reunião com o presidente da fraternidade Fiz a reclamação falou num tom triunfante Contei o que estava acontecendo e ele disse que era desagradável e que não aceitaria a situação Ele fará o mestre recrutador parar com os trotes racistas Obviamente fiquei feliz por Carlos ter sido apoiado e sua reclamação levada em consideração além de satisfeita por ele não ter que desistir de seu sonho Mas acho que teria sido um encontro vitorioso independentemente da resposta do presidente da fraternidade Carlos compreendeu sua força para desafiar e falar a sua verdade mesmo correndo o risco de ser excluído ou criticado Ele optou por não se colocar como vítima e assumiu uma postura moral Ele agiu alinhado com seu objetivo maior a luta contra o racismo e a proteção da dignidade humana Ao defender a própria humanidade ele protegeu a dignidade de todos Ele pavimentou o caminho para que todos nós possamos viver em sintonia com a nossa verdade e com os nossos ideais Fazer o que é certo raramente é o mesmo que fazer o que é seguro Acho que uma certa quantidade de risco é sempre inseparável da cura Isso vale para Beatrice uma mulher triste quando a conheci os olhos castanhos distantes apagados o rosto pálido Suas roupas eram largas e sem forma sua postura curvada de ombros caídos Logo percebi que Beatrice não tinha a menor ideia do quanto era bonita Ela olhava direto para a frente tentando não olhar para mim Mas não conseguia controlar umas olhadelas rápidas que pareciam me sondar em busca de segredos Ela havia assistido pouco tempo antes a uma palestra minha sobre o perdão Por mais de vinte anos ela acreditou que não havia maneira de conseguir perdoar sua infância roubada Mas a minha história sobre a jornada de perdão levantou algumas questões para ela Devo perdoar Posso perdoar Agora ela me avaliava cuidadosamente como se estivesse tentando descobrir se eu era real ou apenas uma imagem Quando você escuta alguém em cima de um palco contar uma história sobre cura ela pode parecer boa demais para ser verdade De certa forma é No trabalho duro de curar não existe catarse quando se esgotam os 45 minutos Não existe varinha de condão A mudança acontece devagar às vezes devagar demais Será que sua história de liberdade é verdadeira seu olhar desafiador parecia perguntar Ainda há esperança para mim Como ela havia sido indicada a mim por outra psicóloga uma amiga querida a mesma pessoa que a encorajara a ir à minha palestra eu já conhecia um pouco da história de Beatrice Quando sua infância acabou Muitas vezes pergunto a meus pacientes A infância de Beatrice terminou quase no momento em que começou Seus pais foram extremamente negligentes com ela e os irmãos mandandoos para a escola sem tomar banho e sem comer As freiras da escola de Beatrice a repreendiam com aspereza e a culpavam por sua aparência desleixada recriminandoa por não se limpar e não tomar café da manhã antes de chegar à escola Beatrice internalizou a mensagem de que a negligência de seus pais era culpa sua Depois aos 8 anos os amigos de seus pais começaram a molestála Os abusos continuaram embora ela tentasse resistir Ela também tentou contar aos pais o que estava acontecendo mas eles a acusaram de inventar tudo Em seu aniversário de 10 anos os pais deixaram que um amigo que havia dois anos já a tocava de maneira inapropriada a levasse ao cinema Depois do filme ele a levou para casa e a estuprou no chuveiro Quando começou a se tratar comigo Beatrice estava com 35 anos mas o cheiro de pipoca ainda desencadeava flashbacks Aos 18 anos Beatrice se casou com um viciado em recuperação que a assediava física e psicologicamente Ela fugiu de seu drama familiar apenas para revivêlo reforçando sua crença de que ser amada significava ser ferida Beatrice conseguiu finalmente se divorciar e estava tentando encontrar uma maneira de seguir em frente com sua vida com uma nova carreira e um novo relacionamento quando foi estuprada em uma viagem ao México Voltou para casa destruída Por insistência da namorada Beatrice começou a fazer terapia com uma colega minha Perseguida por ansiedades e fobias mal conseguia sair da cama Ela se sentia permanentemente apavorada oprimida vivia em alerta máximo com medo de sair de casa e ser novamente atacada além de temer cheiros e associações que desencadeassem exaustivos flashbacks Na primeira sessão com minha colega Beatrice concordou em se levantar todas as manhãs tomar um banho fazer a cama e depois se exercitar durante 15 minutos na bicicleta ergométrica que tinha na sala de TV Beatrice não estava em negação sobre o seu drama como eu estivera Ela conseguia falar sobre o passado e processálo intelectualmente mas não tinha vivido ainda o luto pela interrupção de sua vida Com o tempo na bicicleta ergométrica ela aprendeu a conviver com o vazio a aceitar que tristeza não é doença embora possa parecer que é e a entender que quando anestesiamos nossos sentimentos com comida álcool ou outros comportamentos compulsivos apenas prolongamos o sofrimento No início durante os 15 minutos diários de exercícios Beatrice não pedalava Ficava sentada Um minuto ou dois no assento e começava a chorar Ela chorava até o alarme tocar Com o passar das semanas ela conseguiu até ficar um pouco mais na bicicleta primeiro 20 minutos depois 25 Quando completou 30 minutos ela começou a mover os pedais e foi reencontrando aos poucos todos os dias o caminho para os esconderijos de sofrimento em seu corpo Quando conheci Beatrice ela já havia feito um enorme esforço na tentativa de se curar O trabalho para amenizar seu sofrimento diminuiu a depressão e a ansiedade Ela estava se sentindo bem melhor mas depois de ouvir o meu discurso no evento do centro comunitário imaginou se não podia fazer algo mais para se libertar da dor do trauma A possibilidade de perdão se instalou Perdoar não significa perdoar seu agressor pelo que ele fez com você expliquei a ela É perdoar a parte de você mesma que foi vítima e deixar a culpa para trás Se estiver disposta posso orientála para a liberdade Será como transpor uma ponte Dá medo olhar para baixo mas estarei lá ao seu lado O que você acha Quer continuar Uma luz fraca acendeu em seus olhos castanhos Ela fez que sim com a cabeça Vários meses depois de começar a fazer terapia comigo Beatrice estava pronta para me levar mentalmente ao escritório de seu pai onde os abusos aconteceram Essa é uma etapa extremamente vulnerável no processo terapêutico Existe um debate em curso nas comunidades da psicologia e da neurociência sobre quão útil ou prejudicial é para um paciente reviver mentalmente uma situação traumática ou retornar fisicamente ao local do trauma Quando fiz meu treinamento aprendi a usar a hipnose para ajudar o sobrevivente a reviver o evento traumático e deixar de ser refém dele Estudos recentes demonstraram que colocar alguém de volta mentalmente em uma experiência traumática pode ser perigoso Reviver psicologicamente um evento doloroso pode na realidade traumatizar de novo o sobrevivente Por exemplo depois do ataque de 11 de Setembro ao World Trade Center descobriuse que quanto mais vezes as pessoas assistiam às imagens das torres caindo pela televisão mais trauma elas sentiam anos depois Encontros repetidos com um evento passado podem reforçar em vez de liberar os sentimentos dolorosos e assustadores Na minha experiência pessoal e em meu consultório tenho constatado a eficácia de reviver mentalmente um episódio traumático mas ela precisa ser feita com total segurança e com um profissional bem treinado que garanta ao paciente o controle sobre quanto tempo e quão profundamente ele ou ela permanece no passado Mesmo assim esta não é a melhor prática para todos os pacientes nem para todos os terapeutas Para Beatrice foi essencial para a sua cura Para se libertar de seu trauma ela precisava de permissão para vivenciar o que não tinha autorização para sentir quando o abuso estava ocorrendo ou nas três décadas desde então Até ela conseguir experimentar esses sentimentos eles gritavam pedindo sua atenção e quanto mais ela tentava reprimilos mais violentamente eles imploravam para ser reconhecidos e mais terríveis seriam para ser enfrentados Ao longo de muitas semanas eu guiei Beatrice suavemente lentamente na aproximação desses sentimentos Não para ser engolida por eles Para perceber que eram apenas sentimentos Como Beatrice aprendeu no trabalho sobre o luto sentir sua imensa tristeza lhe proporcionou um pouco de alívio na depressão no estresse e no medo que a mantinha presa à cama Mas ela ainda não tinha se permitido sentir raiva pelo passado Não existe perdão sem raiva Como Beatrice descreveu o quarto pequeno a forma como a porta rangia quando o amigo do pai a fechava as cortinas escuras de tecido xadrez que ele a obrigava a fechar eu observei sua linguagem corporal preparada para trazêla de volta em segurança se ela estivesse em perigo Beatrice se retesou quando fechou mentalmente as cortinas no escritório do pai Quando ela se trancou com o agressor eu disse Pare aí querida Ela suspirou e manteve os olhos fechados Há uma cadeira no escritório perguntei Ela fez que sim com a cabeça Como ela é É uma poltrona Cor de ferrugem Quero que você coloque seu pai nessa poltrona Ela fez uma careta Você pode vêlo sentado lá Sim Como ele é Ele usa óculos Está lendo um jornal Como ele está vestido Suéter azul e calça cinza Vou lhe dar um pedaço grande de fita adesiva e quero que você cubra a boca dele com isso O quê Passe a fita adesiva sobre a boca dele Você fez isso Ela assentiu com a cabeça e esboçou um sorriso Aqui está uma corda Amarre seu pai na cadeira para que ele não possa se levantar Ok Você o amarrou Sim Agora grite com ele Gritar como Diga que você está zangada Não sei o que dizer Diga Papai estou muito zangada com você por não me proteger Mas não fale isso grite Aproveitei para demonstrar Pai estou muito zangada com você disse ela Mais alto Pai estou com muita raiva de você Agora quero que você bata nele Onde No rosto Ela levantou o punho e bateu no ar Bata nele de novo Ela fez Agora dê um chute nele O pé dela voou Aqui está um travesseiro Pode bater nele Bata de verdade disse já passando o travesseiro Ela abriu os olhos e olhou para o travesseiro Seus golpes eram tímidos no início mas quanto mais eu a encorajava mais fortes eles se tornaram Eu a convidei a ficar em pé e a chutar o travesseiro se quisesse Ou jogálo pela sala A gritar o mais alto que quisesse Logo ela estava no chão socando o travesseiro Quando o corpo dela começou a ficar cansado ela parou de socar e caiu no chão respirando rapidamente Como você se sente perguntei Como se pudesse fazer isso a vida inteira Na semana seguinte eu trouxe um saco de pancadas vermelho preso numa base preta pesada Estabelecemos um novo ritual Começaríamos nossas sessões com um pouco de liberação de raiva Ela amarraria alguém mentalmente à cadeira em geral o pai ou a mãe e gritaria enquanto dava uma surra bestial Como você pôde deixar isso acontecer comigo Eu era apenas uma criança Acabou eu perguntava Não E ela continuava socando até cansar Certo dia de Ação de Graças depois de voltar para casa de um jantar com amigos Beatrice estava sentada no sofá fazendo festinha no cachorro quando seu corpo todo começou a formigar Sua garganta secou e ela começou a sentir uma palpitação no peito Ela tentou respirar fundo para relaxar o corpo mas os sintomas pioraram Ela achou que estivesse morrendo então pediu à namorada que a levasse para o hospital O médico que a examinou na sala de emergência disse que não havia nada de errado em termos médicos Ela tinha tido um ataque de pânico Quando Beatrice me encontrou após esse episódio estava frustrada e com medo desanimada por estar se sentindo pior em vez de melhor e preocupada em ter outro ataque de pânico Fiz tudo o que pude para elogiar o progresso dela para validar seu crescimento Disse a ela que de acordo com a minha experiência quando você libera a raiva muitas vezes se sente pior antes de começar a melhorar Ela fez que não com a cabeça Acho que cheguei ao meu limite Querida acredite em você Você teve uma noite terrível e sobreviveu a ela sem se prejudicar Sem fugir Não acho que eu teria lidado tão bem com a situação como você lidou Por que você fica tentando me convencer de que eu sou uma pessoa forte Talvez eu não seja Talvez eu esteja doente e sempre serei doente Talvez seja a hora de parar de me dizer que eu sou alguém que nunca serei Você está assumindo a responsabilidade por algo que não é sua culpa E se for minha culpa Talvez se eu tivesse feito algo diferente ele poderia ter me deixado em paz E se a culpa que você sente for apenas uma maneira de manter a fantasia de que o mundo está sob seu controle Beatrice se balançava no sofá o rosto molhado de lágrimas Você não tinha escolha na época Agora tem Pode escolher não voltar aqui Essa é sempre uma escolha sua mas eu espero que você aprenda a ver a incrível sobrevivente que você é Mal consigo me manter viva Não me parece algo muito notável Houve algum lugar em que você se sentia segura quando era criança Eu só me sentia segura quando estava sozinha em meu quarto Você se sentava na sua cama ou perto da janela Na janela Você tinha algum brinquedo ou bicho de pelúcia Eu tinha uma boneca Você conversava com ela Ela assentiu com a cabeça Você consegue fechar os olhos e se sentar naquela cama segura agora Segure sua boneca Converse com ela agora como conversava na época O que você diria Como posso ser amada nesta família Eu preciso ser boa mas sou má Você sabia que durante todo aquele tempo na infância que passou sozinha se sentindo triste e isolada estava construindo uma reserva enorme de força e resistência Você pode aplaudir aquela menina agora Pode abraçála Diga a ela Você foi ferida e eu a amo Você foi magoada mas está segura agora Você precisou fingir e se esconder Eu vejo você agora Eu amo você agora Beatrice se abraçou com firmeza e seu corpo balançou de tanto soluçar Quero ser capaz de protegêla agora Na época eu não podia mas não acho que me sentirei segura um dia a não ser que seja capaz de me proteger agora Foi assim que Beatrice decidiu assumir o próximo risco Beatrice reconheceu que queria se sentir segura ser capaz de proteger a si mesma Ela soube de uma aula de autodefesa para mulheres que ia começar no centro comunitário mais próximo mas demorou a se inscrever Temia não estar à altura do desafio de repelir um ataque e que um confronto físico mesmo no ambiente seguro e fortalecedor de uma aula de defesa pessoal pudesse desencadear um ataque de pânico Ela arrumava todo tipo de desculpa para não ir atrás do que queria numa tentativa de administrar seu medo a aula podia ser muito cara já podia estar cheia ou podia não ter participantes suficientes e ser cancelada Começamos a trabalhar nos receios subjacentes à sua resistência para conseguir o que queria Fiz duas perguntas a ela O que de pior pode acontecer e Você pode sobreviver a isso O pior cenário que ela pôde imaginar era ter um ataque de pânico durante a aula rodeada por pessoas estranhas Confirmamos que o formulário de atestado médico que ela teria que preencher ao se inscrever para a aula daria à equipe as informações que eles precisavam no caso de um ataque E avisamos sobre ela ter sofrido um ataque de pânico antes Se acontecesse novamente ela podia não conseguir interrompêlo ou controlálo mas pelo menos saberia o que estava acontecendo Além disso ela já sabia por experiência própria que embora assustador e desagradável o ataque de pânico não matava Ela sobreviveria a ele Portanto Beatrice se inscreveu para a aula Mas ao se ver na sala de roupa de ginástica e tênis rodeada por outras mulheres ela se apavorou Ficou com vergonha Estava com medo de cometer erros e de chamar a atenção para si mesma mas não conseguiu ir embora depois de estar tão perto de seu objetivo Ela se encostou à parede e ficou observando a turma Ela voltou a todas as aulas depois daquela sempre pronta para participar mas ainda com muito medo Um dia o instrutor percebeu que ela estava observando no canto e se ofereceu para treinála individualmente depois da aula Um dia quando ela veio me ver seu rosto estava triunfante Consegui jogálo contra a parede hoje disse ela Eu o imobilizei segurei e o joguei contra a parede Sua face estava ruborizada os olhos brilhando de orgulho Ao ter confiança de que podia se proteger começou a assumir outros riscos e passou a fazer um curso de balé para adultos e dança do ventre Seu corpo começou a mudar Ele já não era um recipiente para o seu medo mas um instrumento de prazer Beatrice virou escritora professora de balé e instrutora de ioga Ela decidiu coreografar uma dança baseada em um conto dos irmãos Grimm que ela se lembrava de ler quando criança A garota sem mãos Na história os pais da garota são induzidos a dar a filha ao demônio Como a menina é inocente e pura o demônio não consegue possuíla mas por vingança e frustração corta suas mãos A garota vaga pelo mundo com tocos no lugar de mãos Um dia ela entra no jardim do rei que se apaixona pela jovem quando a vê em pé entre as flores Eles se casam e o rei manda fazer para a mulher um par de mãos de prata Eles têm um filho Um dia ela salva o filho de se afogar Suas mãos de prata desaparecem e são substituídas por mãos de verdade Beatrice estendeu as mãos ao me contar essa história de sua infância Minhas mãos são novamente verdadeiras disse ela Não foi outra pessoa que eu salvei Eu salvei a mim mesma C A P Í T U L O 2 2 De alguma forma as águas se abrem O tempo não cura É o que você faz com o tempo que cura A cura é possível quando decidimos assumir a responsabilidade quando decidimos correr riscos e por fim quando decidimos nos libertar das preocupações tirar da mente o passado ou o sofrimento Dois dias antes de seu aniversário de 16 anos Jeremy filho de Renée entrou na sala onde ela e o marido estavam assistindo ao noticiário das 22 horas À luz cintilante da TV seu rosto parecia perturbado Renée estava indo na direção do filho para abraçálo daquele jeito aconchegante que ele ainda permitia quando o telefone tocou Era a irmã de Renée que morava em Chicago e estava passando por um divórcio difícil Muitas vezes ela ligava tarde da noite para conversar Tenho que atender essa ligação disse Renée dando um apertão rápido na bochecha do filho mas logo voltando sua atenção para a irmã angustiada Jeremy murmurou um boanoite e se dirigiu para a escada Durma bem querido disse ela para ele já de costas Na manhã seguinte Jeremy ainda não tinha acordado quando ela colocou o café da manhã na mesa Ela foi até o pé da escada e o chamou mas ele não respondeu Ela passou manteiga na última torrada e subiu para bater na porta do quarto dele Ele continuou sem responder Exasperada ela abriu a porta O quarto estava escuro as cortinas ainda fechadas Ela o chamou novamente confusa por encontrar a cama já arrumada Um sexto sentido a levou a abrir a porta do closet Ela a abriu e um arrepio de horror subir pelas suas costas O corpo de Jeremy estava pendurado na haste de madeira com um cinto em volta do pescoço Na mesa dele ela encontrou um bilhete Não são vocês sou eu Desculpe por decepcionálos Jeremy Quando Renée e o marido Greg vieram me ver pela primeira vez Jeremy tinha morrido havia poucas semanas A perda era tão recente que eles ainda não estavam de luto Estavam em estado de choque A pessoa que eles haviam enterrado não tinha ido embora para eles Era como se eles o tivessem enterrado vivo Nas primeiras consultas Renée se sentava e soluçava Eu quero voltar no tempo gritava ela Quero voltar no tempo voltar Greg também chorava mas silenciosamente Com frequência ele olhava para a janela enquanto Renée chorava Eu disse a eles que homens e mulheres sofrem de maneira bem diferente e que a morte de um filho podia ser uma fratura ou uma oportunidade para o seu casamento Aconselheios a cuidar bem um do outro a se permitir ter raiva e chorar a chutar e a chorar e a gritar e colocar os sentimentos para fora de modo a não deixarem que Jasmine a irmã de Jeremy sofresse as consequências da dor deles Pedi que trouxessem fotos de Jeremy para que pudéssemos celebrar seus 16 anos de vida os 16 anos em que o espírito do menino esteve com eles Indiquei grupos de apoio para os sobreviventes de suicídio e trabalhei com eles à medida que as perguntas do tipo e se surgiam como ondas E se eu tivesse prestado mais atenção E se eu não tivesse atendido ao telefone naquela noite e o tivesse abraçado E se eu trabalhasse menos e ficasse mais em casa E se eu não acreditasse no mito de que as crianças brancas são as únicas que cometem suicídio E se eu estivesse à procura de sinais E se eu não o pressionasse tanto para ter um bom desempenho na escola E se eu tivesse passado no quarto dele antes de ir dormir Todos esses E se reverberavam como um eco sem resposta Por quê Queremos muito saber a verdade Queremos nos responsabilizar por nossos erros e ser honestos com nossa vida Queremos razões explicações Queremos que nossa vida faça sentido Mas buscar a razão é permanecer no passado na companhia da culpa e do arrependimento Não podemos controlar as outras pessoas muito menos o passado Em algum momento no primeiro ano de perda Renée e Greg passaram a vir cada vez mais esporadicamente às sessões e depois de um tempo pararam completamente Não soube deles por muitos meses Na primavera em que Jeremy teria se formado no ensino médio fiquei feliz e surpresa ao receber uma ligação de Greg Ele me disse que estava preocupado com Renée e perguntou se eu podia ir a casa deles Fiquei impressionada com a mudança na aparência dos dois Ambos tinham envelhecido de maneiras diferentes Greg havia engordado Seu cabelo preto estava salpicado de fios brancos Renée não parecia desgastada como a preocupação de Greg por ela me fez imaginar O rosto dela estava liso a blusa bem passada e o cabelo arrumado Ela foi gentil disse que se sentia bem mas seus olhos castanhos estavam opacos Greg que ficava quieto na maior parte das sessões falou com urgência Tenho algo a dizer e contou que na semana anterior ele e Renée tinham participado da festa de formatura do filho de um amigo do casal Foi um evento tenso para eles cheio de gatilhos de lembretes devastadores do que outros casais tinham e eles não tinham mais da ausência de Jeremy da aparente eternidade do luto dos incontáveis momentos do cotidiano que eles nunca iriam compartilhar com o filho Mas eles se forçaram a colocar roupas bonitas e ir à festa Greg me disse que num certo momento da noite ele percebeu que estava se divertindo A música que o DJ tocou o fez pensar em Jeremy e nos antigos álbuns de RB que o filho ouvia no aparelho de som de seu quarto enquanto fazia o dever de casa ou se divertia com os amigos Greg se virou para Renée que usava um elegante vestido azul e ficou impressionado ao notar como o formato do seu rosto e da sua boca o lembravam de Jeremy Ele se sentiu inundado de amor por Renée por seu filho pelo simples prazer de comer bem sob uma tenda branca numa noite quente e chamou Renée para dançar Ela se recusou levantou e o deixou sozinho na mesa Greg chorou ao contar isso Estou perdendo você também disse ele à esposa O rosto de Renée ficou sério seus olhos pareciam ter se apagado Esperamos que ela falasse Como você se atreve disse ela finalmente Jeremy não pode dançar Por que você poderia Não posso dar as costas a ele tão facilmente O tom dela era hostil Agressivo Achei que Greg fosse recuar Em vez disso ele deu de ombros Percebi que não era a primeira vez que Renée via sua própria felicidade como uma profanação da memória do filho Lembreime de minha mãe De todas as vezes que vi meu pai tentar acariciála beijála e como ela rejeitava seu afeto Ela estava tão presa à perda precoce da própria mãe que decidiu se esconder num manto de melancolia Seus olhos às vezes se iluminavam quando ela ouvia Klara tocar o violino Mas ela nunca se permitiu rir à larga flertar brincar se alegrar Renée querida disse eu Quem morreu Jeremy ou você Ela não me respondeu Não faz nenhum bem a Jeremy se você morrer também eu disse a Renée Também não faz bem a você Renée não estava se escondendo de sua dor como eu tinha feito Ela se casara com a dor com a perda e assim se escondera da vida Pedi que ela me dissesse quanto tempo dedicava ao luto em seu cotidiano Greg vai trabalhar eu vou para o cemitério respondeu ela Com que frequência Ela pareceu ficar ofendida com a minha pergunta Ela vai todos os dias disse Greg E isso é ruim retrucou Renée Ser dedicada ao meu filho O luto é importante poderei Mas quando ele se perpetua pode ser uma forma de evitar o sofrimento As solenidades e os rituais podem ser componentes extremamente importantes do luto Acho que é por isso que as práticas religiosas e culturais incluem rituais de luto claros com um espaço protegido e uma estrutura interna na qual se inicia a experiência de sentir a perda Mas o período de luto também tem um fim claro Desse ponto em diante a perda não é uma dimensão separada da vida mas integrada a ela Se ficamos em permanente estado de luto estamos escolhendo a mentalidade da vítima acreditando que nunca vamos superar a perda Se ficamos presos no luto é como se nossas vidas tivessem acabado também O luto de Renée apesar de sofrido também se tornara uma espécie de escudo que a isolava da vida atual Nos rituais de perda ela podia evitar ter que aceitála Você gasta mais tempo e energia emocional com seu filho que está morto ou com sua filha que está viva perguntei Renée pareceu perturbada Sou uma boa mãe disse ela mas não vou fingir que não estou sofrendo Você não precisa fingir nada mas você é a única pessoa que pode impedir seu marido e sua filha de perderem você também Lembrome de minha mãe falando com a foto da mãe dela em cima do piano chorando Meu Deus meu Deus dême força A lamentação dela me assustava Sua fixação na perda era como um alçapão que ela levantava e desaparecia uma fuga Eu era como a filha de uma alcoólatra vigiando o desaparecimento dela incapaz de resgatála do vácuo mas sentindo que essa era de alguma forma a minha função Eu achava que se deixasse a dor entrar eu afundaria contei a Renée Mas é como Moisés e o Mar Vermelho De alguma forma as águas se abrem e você caminha entre elas Pedi que Renée tentasse algo novo para transformar seu luto em tristeza Coloque uma foto de Jeremy na sala de estar Não vá ao cemitério para lamentar sua perda Encontre um jeito de se conectar com ele aqui na sua casa Separe quinze ou vinte minutos todos os dias para se sentar com ele Você pode tocar o rosto dele conversar com ele contar o que está fazendo e depois dar um beijo nele e seguir com o seu dia Tenho muito medo de abandonálo novamente Ele não se matou por sua causa Você não tem como saber Existem muitas coisas que você poderia ter feito diferente em sua vida Essas escolhas estão feitas o passado já foi nada pode mudar isso Por razões que nós nunca saberemos Jeremy decidiu terminar sua vida Você não pode escolher por ele Não sei como viver com isso A aceitação não vai acontecer de um dia para o outro Você nunca vai ficar feliz por ele estar morto mas pode escolher seguir em frente Pode até descobrir que viver de maneira plena é a melhor maneira de homenageálo No ano passado eu recebi um cartão de Natal de Renée e Greg No cartão havia uma foto com os dois na frente de uma árvore de Natal acompanhados da filha uma garota linda vestida de vermelho Greg está no meio abraçando as duas Sobre o ombro de Renée uma foto de Jeremy no alto da lareira É a última foto dele na escola com uma blusa azul e um sorriso exuberante Ele não é o vácuo na família Ele está presente está sempre com eles O retrato da mãe de minha mãe agora está na casa de Magda em Baltimore em cima do piano no qual ela ainda dá aulas e orienta os alunos com lógica e emoção Ao fazer uma cirurgia pouco tempo atrás Magda pediu que sua filha Ilona levasse a foto de nossa mãe ao hospital para que ela pudesse fazer o que mamãe nos ensinou pedir força aos mortos deixar os mortos viverem em nossos corações deixar que nosso sofrimento e nosso medo nos levem de volta ao amor Você ainda tem pesadelos perguntei a Magda no outro dia Sim sempre E você Sim tenho Voltei a Auschwitz e resolvi o passado me perdoei Voltei para casa e pensei Acabou mas a conclusão é temporária Não acaba até que acabe Apesar de nosso passado e não por causa dele Magda e eu encontramos sentido e propósito de formas diferentes nos mais de setenta anos desde a libertação Descobri as artes da cura Magda permaneceu uma pianista dedicada e professora de piano e descobriu duas novas paixões o bridge e a música gospel porque ela parece um choro e tem a força das emoções fluindo E o bridge porque há uma estratégia e um controle um jeito de ganhar Ela é campeã de bridge e emoldura seus prêmios e os pendura na parede em frente ao retrato de nossa avó Minhas irmãs me protegeram me inspiraram e me ensinaram a sobreviver Klara se tornou violinista da Orquestra Sinfônica de Sydney Até o dia depois de sua morte no início dos anos 1980 em decorrência de Alzheimer ela me chamava de pequenina Mais do que Magda ou eu Klara permaneceu imersa na cultura imigrante do judaísmo húngaro Béla e eu adorávamos visitar Klara e Csicsi para desfrutar a comida a língua a cultura de nossa juventude Nós sobreviventes não conseguíamos nos reunir com muita frequência mas nos esforçávamos ao máximo para nos reunir nos principais eventos celebrações em que nossos pais não estariam presentes para testemunhar No início dos anos 1980 fomos a Sydney para o casamento da filha de Klara As três irmãs tinham aguardado este reencontro com expectativa e quando finalmente nos reunimos de novo entramos em um frenesi de abraços emotivos como aqueles que trocamos em Košice ao descobrirmos que estávamos todas vivas depois da guerra Não importa que agora sejamos mulheres de meiaidade não importa que tenhamos nos distanciado em nossas vidas sempre que nos encontrávamos era curioso como rapidamente voltávamos aos velhos padrões da juventude Klara ficava em destaque dando ordens a nós duas e nos sufocando de tanta atenção Magda era competitiva e rebelde Eu era a pacificadora indo e vindo entre minhas irmãs amenizando conflitos escondendo minhas próprias ideias Com que facilidade transformamos até mesmo o entusiasmo e a segurança da família em uma espécie de prisão Recorremos aos velhos mecanismos de enfrentamento e nos tornamos quem acreditamos que devemos ser para agradar os outros É preciso ter força de vontade e escolher não recair nos papéis limitantes que erroneamente acreditamos que vão nos manter seguras e protegidas Na noite anterior ao casamento Magda e eu encontramos Klara sozinha no quarto da filha Estava brincando com as antigas bonecas da filha O que presenciamos era mais do que a nostalgia materna em relação à filha crescida Klara foi flagrada em seu jogo de faz de conta Ela estava brincando como uma criança Percebi que minha irmã nunca teve infância Ela sempre foi o prodígio do violino Nunca chegou a ser uma menininha Quando não estava se apresentando ela tocava para mim e para Magda assumindo o papel de cuidadora de nossa mãezinha Agora na meiaidade tentava dar a si mesma a infância que nunca lhe foi permitida Constrangida por ter sido flagrada com as bonecas Klara contraatacou É uma pena eu não ter estado em Auschwitz disse ela Se eu estivesse lá mamãe estaria viva Foi horrível ouvila dizer isso Senti toda a minha velha culpa de sobrevivente voltando o horror da minha resposta naquele primeiro dia em Auschwitz o horror de relembrála de confrontar aquela antiga crença embora errada de que tinha enviado nossa mãe para a morte Mas eu não era mais prisioneira Eu podia ver a prisão da minha irmã em ação escutar sua culpa e sua dor embutidas na acusação feita a mim e a Magda Eu consegui escolher a minha própria liberdade dar nome aos meus sentimentos de raiva de inutilidade de tristeza e de arrependimento e deixálos girar crescer diminuir e depois passar Consegui ainda tirar da cabeça a necessidade de me punir por ter vivido Pude resolver minha culpa e resgatar o meu eu puro e pleno Há a ferida E há o que sai dela Voltei a Auschwitz em busca da sensação de morte para poder finalmente exorcizála O que encontrei foi a minha verdade interior o eu que eu queria resgatar minha força e minha inocência C A P Í T U L O 2 3 O dia da libertação No verão de 2010 fui convidada para fazer uma palestra em Fort Carson no Colorado na unidade do Exército que estava voltando de combate no Afeganistão uma unidade com uma alta taxa de suicídios Eu estava lá para falar sobre o meu próprio trauma como sobrevivi a ele como sobrevivi ao retorno ao cotidiano como escolhi ser livre de modo que os soldados também pudessem se adaptar com mais facilidade à vida no pósguerra Ao subir no tablado senti alguns rápidos conflitos internos de desconforto o velho hábito de me cobrar demais e de imaginar o que uma estudante de balé húngara teria a oferecer a homens e mulheres de guerra Relembrei a mim mesma que eu estava lá para compartilhar a verdade mais importante que conheço que a maior prisão está em sua própria mente e que a chave já está em seu bolso a vontade de assumir a responsabilidade absoluta por sua vida a vontade de arriscar a vontade de se libertar de julgamentos e de recuperar sua inocência de aceitar e amar a si mesmo pelo que realmente é humano imperfeito e inteiro Pedi força a meus pais e aos meus filhos netos e bisnetos a tudo que eles me ensinaram e que me obrigaram a descobrir Minha mãe me disse algo que eu nunca vou esquecer eu disse Ela disse Não sabemos para onde estamos indo não sabemos o que vai acontecer mas ninguém pode tirar de você o que você põe em sua própria mente Repeti essa frase diversas vezes a fuzileiros navais a especialistas em crises a prisioneiros de guerra e seus defensores no departamento de assuntos de veteranos a oncologistas e a pessoas com câncer a pais e filhos a cristãos e muçulmanos e budistas e judeus a estudantes de direito e jovens em situação de risco a pessoas de luto pela perda de um ente querido a pessoas se preparando para morrer e às vezes a mim mesma Dessa vez quase caí do palco ao falar essa frase Fui dominada por sensações e memórias que tinha armazenado internamente o cheiro da grama enlameada o sabor forte e doce dos MM Demorei um pouco a entender o que estava desencadeando o flashback mas então vi que havia bandeiras e insígnias nas laterais do auditório Em todos os lugares havia um emblema a respeito do qual eu não tinha pensado conscientemente durante muitos anos mas que é tão significativo para mim quanto as letras que formam o meu próprio nome o emblema que o soldado que me libertou no dia 4 de maio de 1945 usava na manga de sua camisa um círculo vermelho com o número 71 azul no centro Fui levada a Fort Carson para falar com a 71a Infantaria a unidade que 65 anos antes havia me libertado Eu estava contando minha história de liberdade para os sobreviventes da guerra que anteriormente trouxeram a liberdade para mim Eu costumava perguntar Por que eu Por que eu sobrevivi Aprendi a fazer uma pergunta diferente Por que não eu Em pé em um palco e rodeada pela geração seguinte de combatentes da liberdade eu podia ver na minha consciência algo que muitas vezes é desconcertante invisível para fugir do passado ou para lutar contra a dor atual nós nos aprisionamos A liberdade está em aceitar o que se é em se perdoar e em abrir o coração para descobrir as maravilhas que existem agora Eu ri e chorei no palco Estava tão cheia da adrenalina da alegria que mal conseguia completar as palavras Obrigada eu disse aos soldados O seu sacrifício o seu sofrimento faz sentido e quando você conseguir descobrir essa verdade interior estará livre Terminei meu discurso como sempre faço como sempre farei enquanto meu corpo permitir com um grand battement Aqui estou eu o lançamento de minha perna diz Eu consegui Aqui estão vocês Aqui estão vocês No presente sagrado Não posso curá los ninguém pode mas posso comemorar sua escolha para desmantelar a prisão em sua mente tijolo por tijolo Vocês não podem mudar o que aconteceu não podem mudar o que fizeram ou o que foi feito a vocês mas podem escolher como vão viver agora Meus queridos vocês podem escolher ser livres Agradecimentos Acredito que as pessoas não me procuram elas são enviadas a mim Ofereço minha eterna gratidão às muitas pessoas extraordinárias que me foram enviadas sem as quais minha vida não seria o que é e sem as quais este livro não existiria Em primeiro lugar à minha querida irmã Magda Gilbert que está com 95 anos e continua florescendo que me manteve viva em Auschwitz e à sua dedicada filha Ilona Shillman que defende sua família como ninguém A Klara Korda que foi grandiosa que realmente foi minha segunda mãe que tornou cada ida a Sydney uma lua de mel que recriou os jantares de Shabat como nossa mãe fazia com tudo artisticamente produzido à mão e a Jeanie e Charlotte as mulheres que a sucederam em sua linhagem Lembra da música húngara Não não não vamos embora a não ser que você nos expulse A meus pacientes seres humanos especiais e únicos que me ensinaram que a cura não tem a ver com recuperação mas com a descoberta Descobrir esperança na desesperança descobrir uma resposta onde não parece haver uma descobrir que não é o que acontece que importa mas o que você faz com isso A meus professores e mentores maravilhosos Professor Whitworth John Haddox que me apresentou aos existencialistas e fenomenologistas Ed Leonard Carl Rogers Richard Farson e especialmente Viktor Frankl cujo livro me deu a capacidade verbal de compartilhar o meu segredo cujas cartas me mostraram que eu não precisava mais fugir e cuja orientação me ajudou a descobrir não apenas que sobrevivi mas que agora podia ajudar os outros a sobreviver A meus colegas e amigos incríveis nas artes da cura Dr Harold Kolmer Dr Sid Zisook Dr Saul Levine Steven Smith Michael Curd David Woehr Bob Kaufman meu filho adotivo Charlie Hogue Patty Heffernan e especialmente Phil Zimbardo meu irmão mais novo que não descansou até conseguir encontrar uma editora para este livro Às muitas pessoas que me convidaram para levar minha história a plateias do mundo inteiro incluindo Howard e Henriette Peckett do YPO Dr Jim Henry Dr Sean Daneshmand e sua esposa Marjan do The Miracle Circle Mike Hoge do Wingmen Ministries e a Conferência Internacional de Logoterapia A meus amigos e terapeutas Gloria Lavis Sylvia Wechter e Edy Schroder meus valiosos companheiros mosqueteiros Lisa Kelty Wendy Walker Flora Sullivan Katrine Gilcrest mãe de nove filhos que me chama de mãe e com quem posso contar dia e noite Dory Bitry Shirley Godwin e Jeremy e Inette Forbs com quem posso conversar abertamente sobre idade as fases da vida e sobre como tirar o melhor proveito do que temos à medida que envelhecemos A meus médicos Sabina Wallach e Scott McCaul a meu acupunturista Bambi Merryweather e a Marcella Grell amiga e companheira que tomou conta excepcionalmente bem de mim e de minha casa nos últimos 16 anos e sempre me diz o que pensa sem subterfúgios Béla Companheiro de vida Companheiro de alma Pai de meus filhos Parceiro amoroso dedicado que arriscou tudo para construir uma vida nova comigo na América Você costumava dizer quando eu estava dando consultoria para os militares e nós viajávamos juntos para a Europa Edie trabalha e eu como Béla nossa rica vida a dois foi a verdadeira festa Amo você Todo o meu amor e gratidão aos meus filhos meu filho John Eger que me ensinou como não ser uma vítima e que nunca desistiu de lutar pelas pessoas com deficiência minhas filhas Marianne Engle e Audrey Thompson que me deram constante apoio moral e estímulo amoroso durante os vários meses de escrita e que entenderam talvez antes de mim que seria mais difícil reviver o passado do que sobreviver a Auschwitz Em Auschwitz eu só pensava nas minhas necessidades de sobrevivência Escrever este livro exigiu que eu experimentasse todos os sentimentos Eu não podia assumir o risco sem sua força e seu amor Obrigada aos lindos cônjuges e parceiros de vida de meus filhos e netos que continuam acrescentando galhos à nossa árvore genealógica Rob Engle Dale Thompson Lourdes Justin Richland John Williamson e Illynger Engle A meu sobrinho Richard Eger e sua esposa Byrne obrigada por serem parentes de verdade por cuidarem de mim e de minha saúde e por passarem férias junto conosco Quando nosso primeiro neto nasceu Béla disse Três gerações essa é a melhor vingança contra Hitler Agora é a quarta Obrigada pela próxima geração Silas Graham e Hale Sempre que ouço vocês me chamarem de bisa Dicu meu coração palpita A Eugene Cook meu parceiro de dança e alma gêmea um cavalheiro e um homem gentil Obrigada por me lembrar que amor não é o que sentimos é o que fazemos Você sempre me apoiou a cada momento e a cada palavra Vamos continuar dançando o boogiewoogie enquanto pudermos Finalmente às pessoas que me ajudaram palavra por palavra e página por página a transformar este livro em realidade Desde o início eu senti que este livro estava destinado a ser uma colaboração Às talentosas Nan Graham e Roz Lippel e sua equipe na Scribner Como tenho sorte de ter encontrado as editoras mais bem qualificadas com corações tão brilhantes quanto suas mentes Seu conhecimento editorial sua persistência e compaixão humana ajudaram este livro a se tornar o que eu sempre quis que ele fosse um instrumento de cura A Esmé Schwall Weigand minha coautora você não apenas encontrou as palavras certas Você se tornou eu Obrigada por ser minha oftalmologista e por sua capacidade de ver minha jornada de cura de tantas perspectivas diferentes A Doug Abrams agente capaz e ser humano verdadeiramente internacional obrigada por ser uma pessoa com caráter e alma para se dedicar a tornar o mundo um lugar melhor Sua presença no planeta é um presente A todos em 90 anos de vida eu nunca me senti tão abençoada e grata ou tão jovem Obrigada a todos Sobre a autora EDITH EGER foi bailarina e ginasta até os 16 anos quando foi enviada a Auschwitz com sua família Após sobreviver ao Holocausto sofreu diversos sintomas de estresse póstraumático até os 50 anos quando iniciou um longo processo de cura Hoje é doutora em psicologia e já trabalhou com veteranos de guerra e vítimas de trauma físico e emocional Aos 90 anos escreveu este livro e continua atendendo pacientes na sua clínica na Califórnia Para saber mais sobre os títulos e autores da Editora Sextante visite o nosso site Além de informações sobre os próximos lançamentos você terá acesso a conteúdos exclusivos e poderá participar de promoções e sorteios sextantecombr Table of Contents Créditos Prefácio de Philip Zimbardo PhD Parte I PRISÃO Introdução Eu tinha um segredo que me aprisionava Capítulo 1 As quatro perguntas Capítulo 2 O que você coloca em sua mente Capítulo 3 Dançando no inferno Capítulo 4 Fazendo estrelas Capítulo 5 Os degraus da morte Capítulo 6 Escolhendo uma folha de grama Parte II FUGA Capítulo 7 Meu libertador meu agressor Capítulo 8 Pela janela Capítulo 9 Ano que vem em Jerusalém Capítulo 10 Fuga Parte III LIBERDADE Capítulo 11 O dia da imigração Capítulo 12 Greener Capítulo 13 Você esteve lá Capítulo 14 De um sobrevivente para outro Capítulo 15 O que a vida esperava Capítulo 16 A escolha Capítulo 17 Então Hitler ganhou Capítulo 18 A cama de Goebbels Capítulo 19 Deixe uma pedra Parte IV CURA Capítulo 20 A dança da liberdade Capítulo 21 A garota sem mãos Capítulo 22 De alguma forma as águas se abrem Capítulo 23 O dia da libertação Agradecimentos Sobre a autora Informações sobre a Sextante