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José Fernando Simão simaojfsuolcombr Professor associado do departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo USP Livredocente doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo USP Professor do Curso de Especialização da Escola Paulista de Direito Professor do Complexo Damásio de Jesus Advogado A TEORIA DUALISTA DO VÍNCULO OBRIGACIONAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO CIVIL BRASILEIRO THE DUALISTIC THEORY OF OBLIGATIONAL VINCULUM AND ITS APPLICATION IN BRAZILIAN LAW OF OBLIGATIONS A TEORIA DUALISTA DO VÍNCULO OBRIGACIONAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO CIVIL BRASILEIRO 167 RESUMO A teoria dualista desenvolvida por Alois Brinz no fim do século 19 se decom põe em dois elementos dívida schuld em alemão e responsabilidade haftung em alemão Partindo de uma contextualização da teoria no direito romano e atingindo institutos do Código Civil brasileiro de 2002 o presente artigo procu rará demonstrar como a teoria dualista consegue explicar de maneira eficiente a noção de vínculo jurídico de acordo com as regras do direito brasileiro PALAVRASCHAVE Direito das obrigações teoria dualista vínculo jurídico ABSTRACT The dualist theory was developed by Alois Brinz at the end of nineteenth century It breaks down the obligational vinculum into two components debt schuld in german and responsibility haftung in german Analyzing roman law excerpts and brazilian Civil Code institutions this article will seek to demonstrate how the dualistic theory can effectively explain the notion of legal bond in accordance with the rules of brazilian law KEywORDS Law of obligations Dualista theory Legal tie SUMÁRIO 1 O vínculo jurídico Die schuld e die haftung uma introdução 2 Notas sobre a responsabilidade no Direito Romano 3 A teoria dualista e o Código Civil de 2002 4 Notas conclusivas Referências 1 O VÍNCULO JURÍDICO Die schulD E Die haftuNg UMA INTRODUÇÃO Quando se analisam os elementos da obrigação1 costumase afirmar que es ses são três ainda que não haja unanimidade quanto aos termos que os designam O elemento subjetivo é composto pelas partes o objetivo pela prestação e o imaterial ou espiritual é o vínculo jurídico O elemento subjetivo se caracteriza pela existência de dois sujeitos O sujei to ativo é o credor e o passivo é o devedor Enquanto o primeiro exige uma conduta do segundo este tem o dever de realizar a conduta Nos contratos unilaterais uma das partes exerce o papel de credor e a outra de devedor Isso se verifica no mútuo 1 Na etimologia vem obligare ou ligare ob ou seja ligar por causa de ligar para Teoria Geral das Obriga ções e Responsabilidade Civil 11ª Ed São Paulo Atlas 2008 p 110 JOSÉ FERNANDO SIMÃO 168 REVISTA JURÍDICA ESMPSP V3 2013 165181 em que o mutuante na qualidade de credor pode exigir do mutuário como deve dor a restituição em igual qualidade e quantidade do bem emprestado Nos contra tos bilaterais em que há prestação e contraprestação a relação de crédito e débito é recíproca É o que se percebe na compra e venda em que o vendedor é devedor do bem e credor do dinheiro e o comprador é devedor do dinheiro e credor do bem O elemento objetivo é a prestação A prestação é objeto da obrigação e sempre se constitui em uma conduta humana dar fazer ou não fazer É o chamado objeto imediato ou próximo da obrigação Já o objeto da prestação é um bem da vida que pode ser material ou imaterial ex carro ou marca e é chamado de objeto mediato ou distante Assim se João deve dar o carro a José dar é o objeto imediato ou próximo é a prestação e o carro o objeto remoto ou mediato é o objeto da prestação Em con clusão a prestação ou objeto imediato pode ser apenas de dar fazer ou não fazer Já o objeto mediato pode ser os mais variados e infinitos bens da vida Por fim temos o elemento imaterial ou espiritual qual seja o vínculo jurídi co Nas palavras de Álvaro Villaça Azevedo é o liame que liga os sujeitos possibili tando do credor exigir uma conduta do devedor2 Efetivamente é antiga a noção pela qual o vínculo é elemento da obrigação Das Institutas de Justiniano consta que obligatio est iuris vinculum quo necessitate adstringimur alicuius solvendae rei secundum nostrae civitatis iura3 O vínculo constituído pelo enlace dos poderes conferidos ao credor com os correlativos deveres impostos ao titular passivo da relação forma o núcleo central da obrigação o elemento substancial da economia da relação4 Foi Alois Brinz que no fim do século 19 fazendo uma releitura das fontes romanas desenvolveu a chamada teoria dualista do vínculo pela qual este se de compõe em dois elementos dívida debitum em latim e schuld em alemão e res ponsabilidade obligatio em latim e haftung em alemão5 Explica Judith MartinsCosta que a teoria dualista proposta por autores alemães dos finais dos Oitocentos notadamente Bekker e Brinz e aperfeiçoada no início do século 20 por Von Gierke decompunha a obrigação em dois momentos schuld como um dever legal em sentido amplo mas em sentido estrito é a dívida autônoma em si mesma que tem por conteúdo um dever legal e haftung que consiste na submissão ao poder de intervenção daquele a quem não se presta o que deve ser prestado6 2 Teoria Geral das Obrigações e Responsabilidade Civil 11ª Ed São Paulo Atlas 2008 p 109 3 Em tradução de José Carlos Moreira Alves a obrigação é um vínculo jurídico pelo qual estamos ob rigados a pagar alguma coisa segundo o direito de nossa cidade MOREIRA ALVES José Carlos Direito romano v 2 p 3 4 Antunes Varela João de Matos Das obrigações em geral 10ª Ed v 1 Coimbra Almedina 2003 p 109 5 No português falado costumase ouvir o schuld e o Haftung Tratase de equívoco porque em alemão ambas as palavras são femininas 6 Comentários ao novo Código Civil v V t I Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira Rio de Janeiro Ed Forense 2003 p16 1 2 A TEORIA DUALISTA DO VÍNCULO OBRIGACIONAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO CIVIL BRASILEIRO 169 Em suma o primeiro elemento consiste no dever de prestar na necessidade de observar certo comportamento e o segundo na sujeição dos bens do devedor ou do terceiro aos fins próprios da execução ou seja na relação de sujeição que pode ter por objeto tanto a pessoa do devedor antigo direito romano como uma coisa ou complexo de coisas do devedor ou terceiro7 Enquanto a dívida consiste no dever de prestar a responsabilidade é prer rogativa conferida ao credor de tomar bens do devedor para a satisfação da dívida Cabe ao mutuário entregar bem equivalente em quantidade e qualidade ao emprestado dívida ou schuld Seus bens se sujeitam ao adimplemento da obrigação responsabilidade ou haftung Se entregar a prestação primária se extingue some parte do vínculo jurídico e com ele parte do dever e a responsabilidade8 Se não pode o credor colocar em ação a prerrogativa de tomar bens do devedor haftung Conforme leciona José Carlos Moreira Alves duas são as importantes distinções entre dívida e responsabilidade A primeira é que surgem em momentos diversos a dívi da desde a formação da obrigação e a responsabilidade posteriormente quando o deve dor não cumpre a prestação devida A segunda é que o debitum é elemento não coativo o devedor é livre para realizar ou não a prestação já a obligatio é um elemento coativo9 Nas palavras de Pacchioni que na Itália se constitui o mais ardoroso paladi no da concepção dualista ou binária o debitum vem a ser o elemento social a obli gatio o elemento tipicamente jurídico o primeiro espontâneo o segundo coativo aquele psíquico e ideal este material e positivo10 Normalmente os elementos do vínculo caminham juntos porque aquele que deve também responde Wer schuldet haftet auch Contudo enquanto a teoria dualista admite que os elementos existam separadamente a teoria unitária ou monista assim não admite Sobre o tema explica Serpa Lopes que o debate se coloca nos seguintes termos onde pois assenta o núcleo essencial da obrigação Estará na obrigação do devedor de cumprir a prestação ou no poder do credor de contra ele agir coativa mente e definitivamente no poder de agressão em sobre o seu patrimônio no caso de inadimplemento O autor esclarece que para os clássicos a essência da obriga ção está na dominação do credor sobre certo ato do devedor e a segunda pretende situála nos próprios bens a que o devedor é obrigado a prestar11 7 Antunes Varela João de Matos Das obrigações em geral 10ª Ed v 1 Coimbra Almedina 2003 p 143144 8 Não se ignora que há deveres decorrentes da boafé objetiva chamados de anexos ou laterais que per sistem mesmo após o cumprimento da prestação pelo devedor Neste sentido considerandose que os deveres anexos fazem igualmente parte do vínculo estes também compõem a noção de schuld e assim há dívida mesmo na fase póscontratual Por isto se os deveres forem descumpridos surgirá também re sponsabilidade Haftung após o cumprimento da prestação primária Em suma a noção de schuld inclui os deveres anexos da boafé que existem nas fases pré contratual e póscontratual 9 MOREIRA ALVES José Carlos Direito romano v 1 p 5 10 apud Washington de Barros Monteiro Curso de Direito Civil 4º v 30ª ed São Paulo Saraiva 1999 p 25 11 SERPA LOPES Miguel Maria deCurso de Direito Civil 2º v 6ª Ed Rio de Janeiro Freitas Bastos 1995 p 11 JOSÉ FERNANDO SIMÃO 170 REVISTA JURÍDICA ESMPSP V3 2013 165181 Enquanto a concepção monista nenhuma diferença há entre o cumprimento voluntário da prestação pelo devedor e sua execução forçada no caso de inadimple mento para os dualistas as fases são distintas12 É a aplicação da teoria dualista ao ordenamento brasileiro que faremos após uma breve análise da responsabilidade no direito romano 2 NOTAS SOBRE A RESPONSABILIDADE NO DIREITO ROMANO O Código Civil de 2002 em dois dispositivos distintos indica que os bens do devedor respondem por suas dívidas Assim o art 391 prevê que pelo inadimple mento das obrigações respondem todos os bens do devedor Já o art 942 prevê que os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado A responsabilidade assume portanto caráter evidentemente patrimonial restando apenas resquícios no texto constitucional da prisão civil por dívidas que não passam incólumes a severas críticas13 No direito romano arcaico14 encontravase a figura do nexum15 pela qual o corpo do devedor respondia por suas dívidas O nexum é instituto controverso entre os romanistas Conforme leciona José Carlos Moreira Alves como os informes sobre 12 SERPA LOPES Miguel Maria deCurso de Direito Civil 2º v 6ª Ed Rio de Janeiro Freitas Bastos 1995 p 11 13 Neste sentido o art 5º LXVII prevê a possibilidade de prisão do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel Quanto ao depositário infiel devese frisar que a prisão restou inviabilizada pela Súmula Vinculante nº 25 do Supremo Tribunal Fed eral bem como pela Súmula 419 do STJ As súmulas decorem do entendimento do Supremo Tribunal Federal pelo qual diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante Nesse sentido é possível concluir que diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel art 5º inciso LXVII não foi revogada pela ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos art 11 e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos Pacto de San José da Costa Rica art 7º 7 mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria incluídos o art 1287 do Código Civil de 1916 e o Decreto Lei n 911 de 1º de outubro de 1969 RExt 4663431 14 A cronologia da história do direito romano se divide em três partes Fase do direito antigo ou pré clássico compreendida aproximadamente entre 149 e 126 aC que vai das origens de Roma até a Lei Aebutia É esta lei de meado do século II aC que substitui o sistema das ações da lei pelo formulário mas cujo alcance é controverso pois apenas as Leis Júlias Judiciárias da época de Augusto 17 dC tornaram obrigatório tal processo Para os romanistas a Lex Aebutia deu escolha aos litigantes que poderiam optar entre o sistema das ações da lei e o processo formulário Fase do direito clássico que vai da Lei Aebutia até o término do reinado de Dioclesiano em 305 dC e Fase do direito pósclássico ou romanohelênico que vai desde 305 dC até 565 dC com o fim do reinado de Justiniano MOREIRA ALVES José Carlos Direito romano v 1 p 12 15 Deriva de nectere isto é ligar CORREIA Alexandre SCIASCIA Gaetano Manual de direito romano 2 ed São Paulo Saraiva 1953 v 1 p 276 A TEORIA DUALISTA DO VÍNCULO OBRIGACIONAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO CIVIL BRASILEIRO 171 este vieram de autores literários são estes imprecisos e o próprio varrão em texto do século 1º aC De Lingua Latina VII já não tinha noção exata sobre o nexum16 No mesmo sentido Alexandre Correia e Gaetano Sciacia explicam que os autores da época clássica lembramnos excepcionalmente como antiguidades fora de uso17 Conforme opinião antiga e dominante o nexum era o contrato formal mais velho da sociedade romana e correspondia em sua forma à mancipatio ou seja ao modo típico romano usado para a transferência das res mancipi18 Assim nexum e mancipatio se realizavam per aes et libram19 José Carlos Moreira Alves resume a controvérsia sobre o que seria o nexum e sua natureza jurídica em duas correntes Pela primeira ou tradicional o instituto é um contrato de mútuo20 celebrado per aes et libram com força executiva e por tanto independia de julgamento iudicatum Segundo essa corrente na presença das partes e de cinco testemunhas além do libripens portabalança pesavamse os lingotes de bronze que iam ser entregues ao mutuário pelo mutuante e com a prolação da damnatio criavase a obrigação de restituílos Para que a obrigação se extinguisse era necessária a realização de cerimônia inversa pela qual o devedor pronunciaria uma forma que o desligasse da damnatio Pela segunda corrente o nexum significava um ato pelo qual o devedor ou sua família se vendiam ao credor automancipação ou se davam em penhor autoempenhamento para garantirem o cumprimento de uma obrigação Assim o nexum não era um contrato de mútuo porque não criava obrigações Essas preexistiam ao nexum21 Conforme anota Charles Demangeat os devedores ou nexi demandados em juízo diante do magistrado ou condenados por suas dívidas pelo juiz segundo 16 Direito romano v 1 p 138 17 CORREIA Alexandre SCIASCIA Gaetano Manual de direito romano 2 ed São Paulo Saraiva 1953 v 1 p 276 18 Bonfante Pedro Instituciones de Derecho Romano 2 ed Madrid Reus 1951 p 465 Segundo José Carlos Moreira Alves a mancipatio é o modo derivado de adquirir a propriedade ex iure Quiritum das res mancipi É um negócio jurídico solene e por isso somente podia ser utilizado por um cidadão ro mano ou por latinos ou peregrinos que tivessem ius commercii As coisas res mancipi na república e no início do principado são em número limitado os praedia italica as casas os escravos e os animais de carga e de tração Já as nec mancipi existem em número ilimitado pois compreendem todas as demais coisas que não se capitulam entre as res mancipi assim especialmente os imóveis nas províncias os carneiros as cabras e as moedas MOREIRA ALVES José Carlos Direito romano v 1 p 179 384 e 386 19 Negotia per aes et libram são todos os negócios jurídicos realizados mediante o cobre aes e a bal ança de pratos libra O cobre constitui o metal não cunhado aes rude que nos tempos antigos valia como intermediário das trocas Já a balança serve para determinar o peso do metal como medida de valores Mancipatio Renato Avelino de Oliveira Neto I Revista Jus Navigandi httpjuscombrrevista texto7174mancipatio acesso em 14 de setembro de 2011 20 É adepto da primeira corrente Charles Demangeat para quem em se emprestando uma soma em dinheiro ou mesmo desde que o empréstimo é contratado estáse obrigado per aes et libram na forma do nexum DEMANGEAT Charles Cours élémentaire de droit romain 3 ed Paris A Maresq Ainé 1876 v 1 p 150 Em igual sentido FOIGNET René DUPONT Emile Le droit romain des obligations 5 Ed Paris Rousseau e Cie 1945 p 37 21 MOREIRA ALVES José Carlos Direito romano v 1 p 138139 JOSÉ FERNANDO SIMÃO 172 REVISTA JURÍDICA ESMPSP V3 2013 165181 as regras das XII Tábuas tinham 30 dias para quitar suas dívidas Se não o fizessem o credor poderia se valer da manus iniectio pronunciando a fórmula descrita por Gaio22 Efetivamente a sanção do nexum era a manus iniectio isto é na falta de pagamento o tradens tinha o direito de lançar mão do accipiens23 A situação dos nexi era bastante complexa pois enquanto o devedor não pa gava ou outro não se oferecia para pagar por ele para liberálo mediante a solenida de chamada solutio per aes et libram ao credor cabia o direito de golpeálo e fazê lo trabalhar por sua própria conta24 O devedor era mantido em cárcere privado25 Ademais passando o devedor ao poder do credor poderia ser ele acor rentado e se nos 60 dias seguintes não ocorresse o pagamento da dívida este seria conduzido diante do magistrado por três dias de mercado consecutivos trini nundinis continuis e então o credor poderia matálo ou vendêlo fora de Roma trans Tiberim26 Podese concluir então ter existido no direito romano a distinção entre debi tum schuld e obligatio haftung porque o nexum não significava a dívida mas sim uma relação diversa para garantila27 Em outras palavras em virtude do nexum é que o corpo respondia por algo que já existia ou seja a dívida Exatamente por isso afirmado o nexum não só o pai respondia com seu corpo como também os demais membros da família Exatamente por isso mais adequada é a corrente que entende o nexum como forma de automancipação ou autoempenhamento para garantir o cumprimento de uma obrigação A questão da responsabilidade que recaindo sobre o corpo do devedor sofre fortes modificações com o decorrer dos anos Frisese que o estado romano não podia tolerar que um cidadão romano fosse escravo de outro e por isso o devedor era considerado servorum loco ou seja tinham uma condição especial pela qual não poderiam ser ultrajados impu nemente pelo senhor e poderiam adquirir sua liberdade mesmo contra a vontade do senhor Conforme conclui Bonfante a condição imposta aos devedores foi mo tivo de longa luta entre os patrícios credores e os plebeus devedores bem como de cenas históricas tumultuadas28 22 DEMANGEAT Charles Cours élémentaire de droit romain 3 ed Paris A Maresq Ainé 1876 v 1 p 151 23 CORREIA Alexandre SCIASCIA Gaetano Manual de direito romano 2 ed São Paulo Saraiva 1953 v 1 p 277 24 Bonfante conclui que provavelmente em sua origem esta eficácia significava que o devedor era reduzido à condição semelhante a de escravo Instituciones de Derecho Romano 2 ed Madrid Reus 1951 p 465 Em igual sentido José Carlos Moreira Alves Para este dúvida existe se o poder do credor sobre o devedor ou sua família se iniciava com a celebração da nexum ou somente a partir do momento em que a obrigação não é cumprida Direito romano v 1 p 139 25 FOIGNET René DUPONT Emile Le droit romain des obligations 5 Ed Paris Rousseau e Cie 1945 p 37 26 DEMANGEAT Charles Cours élémentaire de droit romain 3 ed Paris A Maresq Ainé 1876 v 1 p 151 27 SERPA LOPES Miguel Maria deCurso de Direito Civil 2º v 6ª Ed Rio de Janeiro Freitas Bastos 1995 p 12 28 Bonfante Pedro Instituciones de Derecho Romano 2 ed Madrid Reus 1951 p 175 e 466 A TEORIA DUALISTA DO VÍNCULO OBRIGACIONAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO CIVIL BRASILEIRO 173 Foi em 326 aC29 com a edição da Lex Poetelia Papiria que o nexum perdeu sua força executória ou seja ocorreu a supressão da manus iniectio e o credor não mais podia obrigar o devedor a trabalhar ou mesmo castigálo Em razão da falta de sanção pessoal o próprio instituto do nexum caiu em desuso e é por isso o direito romano o desconhecia em seu período clássico A frase de Tito Lívio resume os efeitos da lei pecunia creditae bona debitoris non corpus obnoxium esse O direito do credor passa a ser exercido sobre os bens do devedor ou seja as palavras de Tito Lívio que provavelmente são as mesmas da lei fa zem concluir que a obrigação é uma relação de mero caráter patrimonial O ano de 326 aC é considerado aquele em que a plebe iniciou de fato seu período de liberdade30 Os motivos efetivos que levaram à edição da Lex Poetelia Papiria podem ser objeto de especulação Entende Charles Maynz que esta foi resultado de um proces so de lutas armadas entre patrícios e plebeus em que os últimos foram obrigados a fazer concessões em favor dos primeiros31 Efetivamente se considerarmos o século III aC como aquele em que a Lex Poetelia Papiria surgiu a Roma republicana passava por uma grave crise É de se frisar que na época a cidade ainda era pequena e seu futuro cheio de incertezas Roma ocupava pequena área às margens do Tibre porque a batalha com os vizinhos sabinos só ocorreu por volta de 350 aC e com os Etruscos que habitavam a região central da península itálica em por volta do ano 300 Os 40 anos que se passaram após a morte Titus Quinctius Capitolinus Barba tus cônsul romano e grande líder nos períodos de guerra e paz são marcados pela fome e pelas pragas O caos que se seguiu foi tão grande que Marcus Furius Camilus foi indicado como ditador por cinco vezes seguidas apesar de Roma ser formalmente 29 Esta é a data indicada pela maioria dos romanistas consultados Contudo alguns afirmam que a data desta seria 428 aC FOIGNET René DUPONT Emile Le droit romain des obligations 5 Ed Paris Rousseau e Cie 1945 p 38 Outros indicam as duas datas LEPOINTE Gabriel Les obligations en droit romain Paris Edition Domat Montchrestien sd p 23 30 Bonfante p 467 Teria a Lex Poetelia Papiria efetivamente acabado com a possibilidade de prisão do de vedor A questão é polêmica Charles Demangeat afirma que a lei suaviza a condição do devedor porque o credor fica proibido de acorrentálo mas isto não impede que seja aprisionado Cours élémentaire de droit romain 3 ed Paris A Maresq Ainé 1876 v 1 p 153 Bonfante afirma que a possibilidade de manterse preso o devedor ou quem se oferecesse em seu lugar foi então proibida salvo exceções desaparecendo o caráter penal do vínculo obrigatório segundo o qual o objeto do direito de crédito era em primeiro lugar o corpo do devedor p 467 René Foignet e Emile Dupont por outro lado afirmam que a lei apenas impediu o exercício da manus iniectio sem um prévio julgamento do devedor e este foi o motivo de conduzir o nexum ao desuso Le droit romain des obligations 5 Ed Paris Rousseau e Cie 1945 p 38 Já Alexandre Correia e Gaetano Sciacia entendem que ocorreu a supressão da própria manus iniectio Manual de direito romano 2 ed São Paulo Saraiva 1953 v 1 p 277 Por fim para Charles Maynz a lei aboliu o próprio nexum MAYNZ Charles Cours de droit romain v1 p 85 31 Op cit p 8485 Os patrícios constituíam a nobreza e segundo a tradição descendiam das primeiras famílias que habitaram Roma Eram os aristocratas e grandes proprietários rurais que com a queda da Monarquia dominaram as instituições políticas republicanas Os plebeus formavam a maioria da população e era geralmente agricultores comerciantes pastores e artesãos História Antiga e Medieval Leonel Itassu A Mello e Luís César Amad Costa São Paulo Abril educação p 142 JOSÉ FERNANDO SIMÃO 174 REVISTA JURÍDICA ESMPSP V3 2013 165181 uma democracia Importante guerra foi a travada com os Gauleses No ano 386 aC Roma e seus aliados se encontram com o inimigo na cidade de Allia 18 km de Roma Os aliados a abandonam quando se deparam com um inimigo desconhecido O resul tado é que a cidade cai nas mãos dos gauleses só retomando sua liberdade completa quando em 367 aC derrota o inimigo graças à liderança de Camilus32 A situação dos plebeus era muito complexa neste período da história de Roma Isso porque embora lutassem no exército romano não podiam utilizar as terras públi cas e não participavam da distribuição das terras conquistadas O descontentamento dos plebeus principalmente das camadas mais baixas decorria também da escravi dão por dívidas Os camponeses tinham que abandonar o trabalho em suas pequenas propriedades em tempos de guerra delegando a produção a mulheres e idosos o que fazia cair a produção e a família era obrigada a tomar empréstimos com elevados juros Com a impossibilidade de pagar a dívida especialmente em épocas de colheita ruim o camponês poderia ser escravizado juntamente com sua família33 A prisão civil por dívida não interessava a ninguém nos séculos 3º e 4º aC Aos plebeus significava a perda da cidadania romana e a redução ao estado de objeto da relação jurídica Aos patrícios significava menos braços para compor o exército em uma época de instabilidade bélica em que não poderiam desperdiçar homens saudáveis Era útil a um povo pragmático que a prisão civil fosse afastada Melhor para os patrícios terem as terras dos plebeus falidos do que um escravo a mais já que havia muitas lutas a travar e muito território a conquistar34 A conclusão que se chega é que seja a obrigação analisada sob a ótica da responsabilidade corporal do devedor ou após a Lex Poetelia Papiria sob a ótica patrimonial a teoria dualista é a que efetivamente explica melhor a obrigação para o direito romano 3 A TEORIA DUALISTA E O CóDIGO CIVIL DE 2002 Impossível falar da teoria dualista sem mencionar a obra clássica e completa de Fábio konder Comparato Foram os autores alemães como von Amira e von Gierke com base no trabalho de Brinz que perceberam o dualismo na jurispru dência das tribos alemãs da Idade Média Tal dualismo se revela na terminologia concernente ao direito das obrigações Em uma série de palavras ligandose pela forma ou pela raiz a sollen35 ou a schuld encontrarseia sempre uma ideia de dever 32 Chronicle of the Roman Republic Thames Hudson Londres 2003 Philip Matysak 6669 33 Estudos de História Antiga e Medieval Atual Editora Raymundo Campos São Paulo sd p 107 34 A expansão territorial romana durou séculos sendo que terminou com Trajano com a conquista da Dácia no Século II dC 35 Em tradução livre sollen é o verbo para dever no sentido inglês de shall ou seja de um aconselhamento mas não de uma imposição Fábio konder Comparato diferencia sollen de müssen porque o último revela uma necessidade absoluta ou relativa o verbo müssen corresponde ao verbo inglês must Tam bém não se confunde com Pflicht que é o dever puramente moral op cit p 9 A TEORIA DUALISTA DO VÍNCULO OBRIGACIONAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO CIVIL BRASILEIRO 175 de predestinação a uma atividade futura Em outro grupo de palavras tendo por base o verbo haften tratarseia de uma ideia de ligação submissão a um poder dado36 Dessa distinção os autores alemães notadamente von Gierke afirmam que no antigo direito germânico o direito dos débitos sollen e schuld é desprovido de coerção Já em se tratando de haftung estamos diante de uma relação de respon sabilidade em que uma pessoa ou coisa se encontra sujeita à dominação de outra pessoa como garantia da realização de um acontecimento qualquer37 Na origem as duas relações quais sejam a de débito e a de responsabilida de eram completamente independentes uma da outra Dois atos distintos eram ne cessários para a sua criação Assim de início existiam débitos não garantidos mas também responsabilidades sem débito como na hipótese em que o acontecimento garantido correspondia a um simples fato da natureza38 Se é verdade que Gierke e Amira foram os grandes defensores da teoria du alista na Alemanha o pensamento destes apresentava uma diferença importante Enquanto o primeiro acreditava que o dualismo tem por fonte o direito de herança indogermânica e portanto só se aplicaria aos direitos modernos que dele derivam o segundo entendia que a teoria dualista era uma necessidade do espírito pois cor responderia a própria essência do objeto estudado aplicandose então a todos os sistemas jurídicos39 A conclusão de Fábio konder Comparato serve de inspiração para o prosse guimento destas reflexões o grande aporte da teoria dualista da obrigação à doutri na contemporânea foi o de demonstrar que a obrigação não é uma relação simples e unitária mas que se compõe de dois elementos a relação de crédito e de débito schuld que nós chamaremos de dever e a relação de coerção e de responsabilidade haftung que nós chamaremos de vínculo40 A crítica à teoria dualista vem da pena de um dos maiores estudiosos do direito das obrigações em Portugal no século 20 João de Matos Antunes Varela O autor lança a seguinte pergunta sobre a teoria dualista qual seu mérito no plano da ciência jurídica da construção formal ou da elaboração de conceitos A partir dessa indagação Antunes Varela inicia um processo de negação da utilidade da teo ria dualista a partir dos exemplos clássicos que demonstram seu acerto e utilidade41 Em sentido semelhante Serpa Lopes seguindo a noção de Ferrara afirma que parece mais conforme à realidade que dívida e responsabilidade se tratem de dois aspectos do mesmo fenômeno e não relações independentes42 36 Essai danalyse dualiste de lobligation em droit privé Paris Dalloz 1964 p8 37 Comparato op cit p 9 38 Comparato op cit p 9 39 Comparato op cit p 12 40 Comparato op cit p 13 41 Das obrigações em geral 10ª Ed v 1 Coimbra Almedina 2003 p 147 42 SERPA LOPES Miguel Maria deCurso de Direito Civil 2º v 6ª Ed Rio de Janeiro Freitas Bastos 1995 p 1516 JOSÉ FERNANDO SIMÃO 176 REVISTA JURÍDICA ESMPSP V3 2013 165181 Para verificação da utilidade ou não da teoria dualista devemos analisar alguns exemplos das chamadas obrigações imperfeitas em que o vínculo não é com posto por seus dois elementos schuld e haftung mas apenas por um deles de acordo com os dispositivos do Código Civil brasileiro O primeiro grupo de obrigações imperfeitas é aquele composto pelas obriga ções naturais ou seja aquelas situações em que existe a dívida mas não responsa bilidade Três são os exemplos de obrigação natural no direito pátrio as obrigações cuja pretensão prescreveu comumente chamadas de dívidas prescritas as dívidas de jogo e aposta e as obrigações do mutuário menor Essas são hipóteses de dívidas que existem mas não podem ser cobradas pelo credor em outras palavras são dívi das pelas quais não responde o patrimônio do devedor Em todos os casos há expressa previsão legal nesse sentido Quanto à obrigação cuja pretensão prescreveu temse a regra do art 189 quanto ao mútuo contraído por menor temse a regra do art 588 e quanto ao jogo ou aposta a regra do artigo 814 O artigo 814 afirma que as dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pa gamento Da mesma forma o art 588 determina que o mútuo feito a pessoa menor sem prévia autorização daquele sob cuja guarda estiver não pode ser reavido nem do mutuário nem de seus fiadores Percebese claramente que o Código Civil opta por não permitir a responsabilização do patrimônio do devedor nessas hipóteses Não se afirma em momento algum que a dívida não existe A prova de que a dívida existe está no próprio texto de lei Assim o artigo 814 do Código Civil expressamente afirma que apesar de a dívida de jogo e aposta não obrigarem o devedor este não pode recobrar a quantia que voluntariamente se pagou Da mesma forma o art 882 do Código Civil que dispõe não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita ou cumprir obrigação judicialmente inexigível O Código Civil adota a noção dualista da obrigação Há dívida schuld mas não há responsabilidade haftung A crítica de Antunes Varela de que as obrigações naturais não são verdadeiras obrigações nem sequer deveres jurídicos mas sim deveres morais ou sociais juridicamente relevantes não se sustenta43 Os deveres morais não são e nunca foram deveres jurídicos e seu descumpri mento ou cumprimento não gera efeitos senão no campo social O dever de urbanidade que existe de o professor ao adentrar a sala de aula falar bom dia ou boa noite a seus alunos é puramente moral Assim se não o fizer será moralmente punido quer seja recebendo a pecha de maleducado quer seja não recebendo de seus alunos o respecti vo cumprimento A obrigação natural gera efeitos jurídicos o pagamento feito volunta riamente não pode ser repetido pedir de volta Em outras palavras tratase de simples questão de lógica Se moral fosse a obrigação natural repetição do pagamento indevido seria possível Sendo jurídica devido é o pagamento e impossível a repetição44 43 Das obrigações em geral 10ª Ed v 1 Coimbra Almedina 2003 p 147 44 Serpa Lopes ao tratar das obrigações naturais fala em débito puro ao qual falta força coativa que é es sencial a toda relação de direito mas não chega a afirmar que se trata de simples obrigação moral SERPA LOPES Miguel Maria deCurso de Direito Civil 2º v 6ª Ed Rio de Janeiro Freitas Bastos 1995 p 16 A TEORIA DUALISTA DO VÍNCULO OBRIGACIONAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO CIVIL BRASILEIRO 177 Por outro lado há um segundo grupo de obrigações imperfeitas em que se identifica responsabilidade haftung por dívida alheia schuld ou mesmo inexistência de coincidência entre a extensão da dívida schuld e da responsabilidade haftung A responsabilidade por dívida alheia pode nascer da vontade das partes garantia contratual ou mesmo de imposição legal garantia legal Exemplo clás sico de garantia contratual é o do fiador em relação ao devedor Ainda que na linguagem popular se diga que o fiador é devedor que o fiador assume a posição de principal devedor tecnicamente o fiador é responsável por dívida alheia Há haftung mas não schuld Isso se confirma pela dicção do artigo 818 segundo o qual pelo contrato de fiança uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo deve dor caso este não a cumpra Não se trata de dívida própria mas de responder por obrigação de terceiro Para o devedor há obrigação civil completa em que há dívida e responsabilidade Para o fiador há apenas responsabilidade já que o fiador que pagar integralmente a dívida fica subrogado nos direitos do credor art 831 do CC E mais o devedor responde também perante o fiador por todas as perdas e danos que este pagar e pelos que sofrer em razão da fiança art 832 do CC e o fiador tem direito aos juros do desembolso pela taxa estipulada na obrigação principal e não havendo taxa convencionada aos juros legais da mora art 833 do CC Antunes Varela discorda desta orientação Para ele a fiança é obrigação acessória e o fiador não é apenas responsável mas devedor acessoriamente Cita Vaz Serra para concluir que o fiador promete ao credor o resultado de que será cumprida a obrigação principal promessa que se reflete no regime aplicável ao caso de a obrigação principal ser anulada por incapacidade ou por vício da vontade do devedor45 A tese da obrigação acessória não se justifica Efetivamente a fiança é contrato acessório como de resto qualquer garantia pois esta não tem sentido se não houver uma dívida que é a obrigação principal Por óbvio que como contrato acessório se extinguirá se o principal for cumpri do bem como será inválido se o principal o for46 Esta não é a questão A simples possi bilidade de regresso indica que o fiador responde por quantia que não deve Ademais não podemos esquecer ser possível a fiança em obrigação de fazer Nesta hipótese clara está a questão O fiador não será obrigado a prestar realizar o fazer porque não tem dívida mas apenas responderá pecuniariamente pela prestação inadimplida Como bem informa Pontes de Miranda o fiador não promete pagar se o devedor principal não paga nem promete pagar em lugar do devedor principal Promete o adimplemento pelo devedor principal47 Há verdadeira promessa por fato de terceiro que se descumprida resolvese em perdas e danos 45 Das obrigações em geral 10ª Ed v 1 Coimbra Almedina 2003 p 148 46 A regra não é absoluta Art 824 As obrigações nulas não são suscetíveis de fiança exceto se a nulidade resultar apenas de incapacidade pessoal do devedor Parágrafo único A exceção estabelecida neste artigo não abrange o caso de mútuo feito a menor 47 Tomo XLIV p 91 JOSÉ FERNANDO SIMÃO 178 REVISTA JURÍDICA ESMPSP V3 2013 165181 Notese que o mesmo se verifica quando um terceiro fornece garantia real por dívida alheia Quando certa pessoa deve ao banco e seu pai dá em hipoteca casa de sua propriedade teremos a dívida do filho schuld e a responsabilidade do pai haftung esta limitada ao valor do bem dado em garantia Antunes Varela afirma que na hipótese de garantia prestada por terceiro o devedor responde também pelo cumprimento da obrigação com todos os seus bens suscetíveis de penhora art 601 do CC português48 Ora nunca se disse o oposto O que dissemos é que enquanto o devedor reúne no vínculo dívida e responsabilidade o terceiro é mero garantidor e apenas responsável Aliás ainda que haja um bem dado em hipoteca ou penhor pelo terceiro não have rá obrigatoriedade de o credor promover execução visando à constrição destes bens Nada impede que o credor demande apenas o devedor e execute os bens deste nos termos dos artigos 391 e 942 do Código Civil Isso porque wer schuldet haftet auch Fábio konder Comparato indica a seguinte situação Não se poderia vislum brar débito na situação de uma pessoa obrigada a cumprir certos atos a fim de evitar a perda de um direito É a hipótese de o terceiro adquirente do imóvel hipotecado que não é devedor mas sim responsável perante o credor hipotecário49 Os exemplos se avolumam também em se tratando de garantia legal O art 932 do Código Civil traz as hipóteses de responsabilidade por dívidas de terceiro Enuncia o artigo que são também responsáveis pela reparação civil I os pais pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia II o tutor e o curador pelos pupilos e curatelados que se acharem nas mesmas condições III o empregador ou comitente por seus empregados serviçais e prepostos no exercício do trabalho que lhes competir ou em razão dele IV os donos de hotéis hospeda rias casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro mesmo para fins de educação pelos seus hóspedes moradores e educandos e V os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime até a concorrente quantia São responsáveis e não devedores segundo a própria dicção legal A res ponsabilidade haftung sem dívida schuld se comprova pelo artigo 934 do Código Civil que assim dispõe aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou salvo se o causador do dano for descendente seu absoluta ou relativamente incapaz Nos quatro primeiros incisos a responsabilidade será mensurada de acordo com extensão do dano50 e no último inciso de acordo com o proveito que o terceiro auferir O último inciso é emblemático ao demonstrar que a dívida e a responsabi lidade não se confundem em extensão Um exemplo ajuda a compreender a ques tão Imaginemos que um sequestrador receba a título de resgate a quantia de R 20000000 e com parte do dinheiro R 15000000 adquira uma casa em nome 48 Das obrigações em geral 10ª Ed v 1 Coimbra Almedina 2003 p 148 49 Op cit p 27 50 Sobre a indenização a ser paga pelo incapaz ou seu representante mormente a fixação de acordo com o art 928 do Código Civil recomendamos nossa obra Responsabilidade civil do incapaz São Paulo editora Atlas 2008 A TEORIA DUALISTA DO VÍNCULO OBRIGACIONAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO CIVIL BRASILEIRO 179 de seu pai Este responderá civilmente apenas pela vantagem ou seja pelo imóvel adquirido e não pela totalidade da dívida Assim o sequestrador é devedor e res ponderá por R 20000000 mas o pai aquinhoado com a casa só responde por R 15000000 A dívida é do filho e a responsabilidade por parte dela é do pai51 No mesmo sentido temos a responsabilidade de um dos cônjuges pelo ato ilí cito pelo outro praticado quando casados pelo regime da comunhão parcial de bens O artigo 1659 do Código Civil é claro ao dispor que excluemse da comunhão as obrigações provenientes de atos ilícitos salvo reversão em proveito do casal A dívida é do cônjuge que praticou o ato ilícito mas a responsabilidade pode atingir bens do outro cônjuge se o credor provar o proveito deste Claro está que a responsabilidade do cônjuge que não praticou o ilícito em princípio não existe Caberá ao credor vítima do ato ilícito provar o proveito para que surja o dever de indenizar Há situações em que se tem mais de um devedor no vínculo obrigacional obrigação complexa quanto ao sujeito e a extensão da dívida não coincide com a da responsabilidade Sãos as situações em que a obrigação é indivisível art 258 do CC ou solidária arts 264 a 285 do CC Em ambas as hipóteses temos a responsa bilidade pelo todo mas a dívida por apenas uma parte Se dois são os devedores de um cavalo objeto indivisível por natureza a obrigação será indivisível e o credor poderá cobrar de qualquer um deles o animal Exatamente por isso que o art 259 determina que se havendo dois ou mais deve dores a prestação não for divisível cada um será obrigado pela dívida toda A regra se revela óbvia Não se pode cobrar em partes algo que não se pode fracionar seja em razão da natureza da lei ou das vontades Contudo também o parágrafo único do artigo confirma que cada devedor não deve o todo porque o devedor que paga a dívida subrogase no direito do credor em relação aos outros coobrigados Em suma no exemplo supra cada devedor deve apenas a metade do valor do animal schuld mas responde pelo todo haftung Da mesma forma em se tratando de obrigação solidária Na solidariedade ativa temos mais de um credor que poderá exigir a prestação por inteiro do devedor art 267 do CC cada um dos credores solidários tem direito a exigir do devedor o cumpri mento da prestação por inteiro mas só é credor de parte dela Assim aquele credor que recebe o todo passa a dever aos cocredores suas respectivas quotas no crédito Em se tratando de solidariedade passiva cada devedor responde pelo todo haftung mas só deve parte da dívida schuld Assim determina o artigo 275 do Código Civil que o credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos de vedores parcial ou totalmente a dívida comum se o pagamento tiver sido parcial todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto Agora o que acontece se um dos devedores pagar a dívida toda 51 A responsabilidade civil independe da criminal Assim não interessa ao direito civil se o pai é cúm plice ou partícipe do crime de favorecimento real ou de receptação A responsabilidade pela vantagem auferida independe de o pai conhecer ou não que o dinheiro adveio de crime JOSÉ FERNANDO SIMÃO 180 REVISTA JURÍDICA ESMPSP V3 2013 165181 Como ele responde pelo todo haftung mas só deve uma fração da dívida schuld terá direito de cobrar dos codevedores as suas quotas na dívida Essa é a disposição do artigo 283 do Código Civil o devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos codevedores a sua quota dividindose igual mente por todos a do insolvente se o houver presumindose iguais no débito as partes de todos os codevedores Notese que a responsabilidade é sempre maior do que a dívida nas hipóte ses de solidariedade e de indivisibilidade 4 NOTAS CONCLUSIVAS Em que pesem os argumentos trazidos para combater a teoria dualista do vínculo como alegação de sua inutilidade esta é a que melhor explica a noção de vínculo jurídico de acordo com as regras do Código Civil brasileiro Tanto na hipótese de obrigação imperfeita em razão da ausência de respon sabilidade obrigação natural ou de dívida responsabilidade por dívida de terceiro o Código Civil decompõe o vínculo em seus diversos artigos deixando claro que a teoria dualista tem a lei por espelho A adoção não é nova porque mesmo os romanistas admitem que o vetusto nexum há muito desaparecido do próprio direito romano já que desconhecido nos períodos clássico e pósclássico se refletia na separação entre debitum dívida e responsabilidade obligatio Ademais em termos de compreensão didática do instituto da obrigação a teoria dualista se revela extremamente útil A compreensão da obrigação natural da garantia voluntariamente prestada por terceiros ou legalmente fixada por lei se revela simples se adotada a teoria dualista A conclusão que se chega é que efetivamente a teoria dualista foi adotada pelo direito brasileiro Código Civil de 1916 e 2002 e é de grande utilidade prática e teórica REFERÊNCIAS BONFANTE Pedro Cours élémentaire de droit romain 3 ed Paris A Maresq Ainé 1876 v 1 BONFANTE Pedro Instituciones de Derecho Romano 2 ed Madrid Reus 1951 CAMPOS Raymundo Estudos de História Antiga e Medieval Atual Editora São Paulo COMPARATO Fábio konder Essai danalyse dualiste de lobligation em droit privé Paris Dalloz 1964 Correia Alexandre Sciascia Gaetano Manual de direito romano 2 ed São Paulo Sa raiva 1953 Demangeat Charles Cours élémentaire de droit romain 3 ed Paris A Maresq Ainé 1876 v 1 A TEORIA DUALISTA DO VÍNCULO OBRIGACIONAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO CIVIL BRASILEIRO 181 FOIGNET René DUPONT Emile Le droit romain des obligations 5 Ed Paris Rousseau e Cie 1945 HUDSON Thames Chronicle of the Roman Republic Londres 2003 Philip Matysak 6669 ITASSU A MELLO Leonel AMAD COSTA Luís César História Antiga e Medieval São Paulo Abril educação LEPOINTE Gabriel Les obligations en droit romain Paris Edition Domat Montchrestien Maynz Charles Cours de droit romain v1 MONTEIROWashington de Barros Curso de Direito Civil 4º v 30ª ed São Paulo Sa raiva 1999 MOREIRA Alves José Carlos Direito romano Forense 7ª Ed v 1 MOREIRA Alves José Carlos Direito romano Forense 7ª Ed v 2 OLIVEIRA NETO Renato Avelino Mancipatio Renato Avelino de Oliveira Neto I Revis ta Jus Navigandi httpjuscombrrevistatexto7174mancipatio acesso em 14 de setembro de 2011 PONTES DE MIRANDA Francisco Cavalcanti Tratado de Direito Privado Tomo XLIV SERPA LOPES Miguel Maria de Curso de Direito Civil 2º v 6ª Ed Rio de Janeiro Frei tas Bastos 1995 TEIXEIRA Sálvio de Figueiredo Coord Comentários ao novo Código Civil v V t I Rio de Janeiro Ed Forense 2003 VARELA Antunes MATOS João de Das obrigações em geral 10ª Ed v 1 Coimbra Almedina 2003 VILAÇA Álvaro Teoria Geral das Obrigações e Responsabilidade Civil 11ª Ed São Paulo Atlas 2008 Submetido 2192012 Aceito 21102012