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Psicologia ·
Psicanálise
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SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 9 OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 9 OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SUMÁRIO ESTA EDIÇÃO OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS 1909 I HISTÓRIA CLÍNICA II CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI 1910 CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE 1910 AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPIA PSICANALÍTICA 1910 SOBRE O SENTIDO ANTITÉTICO DAS PALAVRAS PRIMITIVAS 1910 CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DO TRANSTORNO PSICOGÊNICO DA VISÃO 1910 SOBRE PSICANÁLISE SELVAGEM 1910 UM TIPO ESPECIAL DE ESCOLHA DE OBJETO FEITA PELO HOMEM CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR I 1910 SOBRE A MAIS COMUM DEPRECIAÇÃO NA VIDA AMOROSA CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR II 1912 O TABU DA VIRGINDADE CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR III 1917 TEXTOS BREVES 1910 INTRODUÇÃO E CONCLUSÃO DE UM DEBATE SOBRE O SUICÍDIO CARTA A FRIEDRICH S KRAUSS SOBRE A REVISTA ANTHROPOPHYTEIA EXEMPLOS DE COMO OS NEURÓTICOS REVELAM SUAS FANTASIAS PATOGÊNICAS RESENHA DE CARTAS A MULHERES NEURÓTICAS DE WILHELM NEUTRA 4316 ESTA EDIÇÃO Esta edição das obras completas de Sigmund Freud pretende ser a primeira em língua portuguesa traduzida do original alemão e organizada na sequência cro nológica em que apareceram originalmente os textos A afirmação de que são obras completas pede um esclarecimento Não se in cluem os textos de neurologia isto é não psicanalíticos anteriores à criação da psicanálise Isso porque o próprio autor decidiu deixálos de fora quando se fez a primeira edição completa de suas obras nas décadas de 1920 e 30 No entanto vários textos prépsicanalíticos já psicológicos serão incluídos nos dois primeir os volumes A coleção inteira será composta de vinte volumes sendo dezenove de textos e um de índices e bibliografia A edição alemã que serviu de base para esta foi Gesammelte Werke Obras completas publicada em Londres entre 1940 e 1952 Agora pertence ao catálogo da editora Fischer de Frankfurt que também recolheu num grosso volume intit ulado Nachtragsband Volume suplementar inúmeros textos menores ou inéditos que haviam sido omitidos na edição londrina Apenas alguns deles foram traduz idos para a presente edição pois muitos são de caráter apenas circunstancial A ordem cronológica adotada pode sofrer pequenas alterações no interior de um volume Os textos considerados mais importantes do período coberto pelo volume cujos títulos aparecem na página de rosto vêm em primeiro lugar Em uma ou outra ocasião são reunidos aqueles que tratam de um só tema mas não foram publicados sucessivamente é o caso dos artigos sobre a técnica psicanalít ica por exemplo Por fim os textos mais curtos são agrupados no final do volume Embora constituam a mais ampla reunião de textos de Freud os dezessete volumes dos Gesammelte Werke foram sofrivelmente editados talvez devido à penúria dos anos de guerra e de pósguerra na Europa Embora ordenados cro nologicamente não indicam sequer o ano da publicação de cada trabalho O texto em si é geralmente confiável mas sempre que possível foi cotejado com a Studienausgabe Edição de estudos publicada pela Fischer em 196975 da qual consultamos uma edição revista lançada posteriormente Tratase de onze volumes organizados por temas como a primeira coleção de obras de Freud que não incluem vários textos secundários ou de conteúdo repetido mas incor poram traduzidas para o alemão as apresentações e notas que o inglês James Strachey redigiu para a Standard edition Londres Hogarth Press 195566 O objetivo da presente edição é oferecer os textos com o máximo de fidelid ade ao original sem interpretações de comentaristas e teóricos posteriores da psicanálise que devem ser buscadas na imensa bibliografia sobre o tema Inform ações sobre a gênese de cada obra também podem ser encontradas na literatura secundária Para questionamentos de pontos específicos e do próprio conjunto da teoria freudiana o leitor deve recorrer à literatura crítica de M Macmillan A Esterson F Cioffi J Van Rillaer E Gellner e outros A ordem de publicação destas Obras completas não é a mesma daquela das primeiras edições alemãs pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para muito depois Decidiuse começar por um período intermediário e de pleno desenvolvimento das concepções de Freud em torno de 1915 e daí proceder para trás e para adiante 6316 Após o título de cada texto há apenas a referência bibliográfica da primeira publicação não a das edições subsequentes ou em outras línguas que interessam tão somente a alguns especialistas Entre parênteses se acha o ano da publicação original havendo transcorrido mais de um ano entre a redação e a publicação a data da redação aparece entre colchetes As indicações bibliográficas do autor fo ram normalmente conservadas tais como ele as redigiu isto é não foram sub stituídas por edições mais recentes das obras citadas Mas sempre é fornecido o ano da publicação que no caso de remissões do autor a seus próprios textos permite que o leitor os localize sem maior dificuldade tanto nesta como em out ras edições das obras de Freud As notas do tradutor geralmente informam sobre os termos e passagens de versão problemática para que o leitor tenha uma ideia mais precisa de seu signi ficado e para justificar em alguma medida as soluções aqui adotadas Nessas notas são reproduzidos os equivalentes achados em algumas versões estrangeiras dos textos em línguas aparentadas ao português e ao alemão Não utilizamos as duas versões das obras completas já aparecidas em português das editoras Delta e Imago pois não foram traduzidas do alemão e sim do francês e do espanhol a primeira e do inglês a segunda No tocante aos termos considerados técnicos não existe a pretensão de impor as escolhas aqui feitas como se fossem absolutas Elas apenas pareceram as menos insatisfatórias para o tradutor e os leitores e psicanalistas que empregam termos diferentes conforme suas diferentes abordagens e percepções da psicanál ise devem sentirse à vontade para conservar suas opções Ao ler essas traduções apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente instinto por pulsão instintual por pulsional repressão por recalque ou Eu por ego exemplificando No entanto essas palavras são poucas em número bem menor do que geralmente se acredita 7316 PCS OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS 1909 TÍTULO ORIGINAL BEMERKUNGEN ÜBER EINEN FALL VON ZWANGSNEUROSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM JAHRBUCH FÜR PSYCHOANALYTISCHE UND PSYCHOPATHOLOGISCHE FORSCHUNGEN ANUÁRIO DEPESQUISAS PSICANALÍTICAS E PSICOPATOLÓGICAS 1 N 2 PP 357421 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VII PP 381463 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VII PP 31103 As páginas seguintes conterão duas coisas primeiro uma comunicação frag mentária da história de um caso de neurose obsessivaa que por sua duração e consequências e numa apreciação subjetiva pode ser incluído entre aqueles de certa gravidade e cujo tratamento durando cerca de um ano obteve a princípio a recuperação plena da personalidade e o fim de suas inibições Em segundo lugar relacionadas a este e apoiadas em outros casos anteriormente analisados afirmações de natureza aforística sobre a gênese e o delicado mecanismo dos pro cessos psíquicos obsessivos que devem dar prosseguimento à minha primeira ex posição sobre o tema publicada em 18961 Tal sumário do conteúdo me parece requerer uma justificação a fim de que não pensem que considero impecável e exemplar essa forma de comunicação quando na realidade apenas levo em conta inibições de natureza externa e in terna e bem gostaria de oferecer mais se assim me fosse dado e permitido A história completa do tratamento não posso informar pois ela exigiria penetrar detalhadamente na vida do paciente A incômoda atenção de uma grande cidade dirigida muito especialmente à minha atividade médica proíbeme uma ex posição inteiramente fiel e acho cada vez mais inadequadas e reprováveis as dis torções a que se costuma recorrer nessas circunstâncias Sendo pequeninas não alcançam o fim de proteger o paciente da curiosidade indiscreta indo mais além envolvem sacrifícios demasiado grandes pois anulam a compreensão do con junto de fatores ligado justamente aos pequenos dados da vida real Desse último fato vem a situação paradoxal de que podemos antes tornar públicos os mais ínti mos segredos de um paciente pelos quais ninguém o conhece do que as mais in ofensivas e banais características de sua pessoa que são conhecidas de todos e o tornariam facilmente reconhecível Se assim justifico a severa abreviação da história da doença e do tratamento minha limitação a alguns resultados da investigação psicanalítica da neurose 10316 obsessiva terá explicação ainda mais pertinente Admito que ainda não consegui penetrar inteiramente a complicada trama de um caso difícil de neurose obses siva e que na reprodução da análise não teria como tornar visível a outros at ravés das sobreposições do tratamento essa estrutura analiticamente reconhecida ou suspeitada São as resistências dos doentes e as formas em que elas se mani festam que dificultam sobremaneira essa última tarefa Mas é preciso dizer que uma neurose obsessiva não é em si coisa fácil de compreender é bem mais difí cil do que um caso de histeria Na verdade seria de esperar o contrário Os meios de que se serve a neurose obsessiva para exprimir seus pensamentos ocultos a linguagem da neurose obsessiva são como que um dialeto da linguagem histérica mas um dialeto que nos deveria ser mais inteligível porque é mais apar entado ao nosso pensar consciente do que o histérico Ele não envolve sobre tudo o salto do psíquico para a inervação somática a conversão histérica que jamais podemos acompanhar com o nosso intelecto Talvez o fato de a realidade não confirmar a expectativa devase apenas à nossa pouca familiaridade com a neurose obsessiva Os neuróticos obsessivos de alto calibre buscam o tratamento analítico mais raramente do que os histéricos Eles também dissimulam na vida o seu estado tanto quanto possível e frequente mente vão ao médico apenas nos estágios avançados da doença tal como se so fressem de tuberculose recusariam o internamento num sanatório Faço esta comparação porque tanto nos casos leves de neurose obsessiva como naqueles graves mas combatidos a tempo podemos mostrar uma série de brilhantes su cessos terapêuticos de modo semelhante àquela doença infecciosa crônica Em tais circunstâncias não há alternativa senão relatar as coisas da maneira incompleta e imperfeita como as sabemos e podemos comunicar Os nacos de conhecimento aqui oferecidos laboriosamente obtidos podem não ser muito sat isfatórios em si mas talvez venha a juntarse a eles o trabalho de outros 11316 pesquisadores e os esforços conjuntos alcancem o que pode ser demasiado para um só indivíduo I HISTÓRIA CLÍNICA Um homem jovem de formação acadêmica apresentase afirmando que sofre de ideias obsessivas desde a infância mas há quatro anos com intensidade particular O conteúdo principal de sua doença diz ele são temores de que aconteça algo a duas pessoas que muito ama o pai e uma dama da qual é admirador Além do que sente impulsos obsessivos como cortar a garganta com uma navalha de bar bear e cria proibições relativas também a coisas insignificantes Na luta contra es sas ideias perdeu anos de sua vida e por causa disso ficou para trás Dos trata mentos que experimentou o único que o ajudou em algo foi uma hidroterapia numa instituição perto de mas isso talvez por lá haver conhecido uma mulher com quem teve relação sexual regular Aqui ele não tem oportunidade para isso suas relações são raras e a intervalos irregulares Tem aversão a prostitutas Até hoje sua vida sexual foi pobre a masturbação teve nela um papel pequeno aos dezesseis e dezessete anos de idade A potência é normal o primeiro coito su cedeu aos vinte e seis anos Ele dá a impressão de uma mente clara e aguda Quando lhe pergunto o que o faz pôr em primeiro plano as informações sobre sua vida sexual responde que é o que sabe sobre as minhas teorias Não leu realmente nenhuma de minhas obras 12316 mas recentemente deparou com a explicação de umas curiosas associações de pa lavras num livro meu2 que lhe lembraram tanto seus próprios trabalhos men tais com suas ideias que resolveu confiarse a mim a o início do tratamento Após fazêlo comprometerse no dia seguinte a observar a única condição do tratamento dizer tudo o que lhe vier à mente ainda que lhe seja desagradável ainda que lhe pareça insignificante impertinente e sem sentido e deixando ao seu alvitre o tema com que iniciará suas comunicações ele começa da seguinte forma3 Há um amigo que ele tem em altíssima conta Costuma procurálo quando se vê atormentado por um impulsob à delinquência perguntandolhe se o despreza como delinquente O amigo lhe dá ânimo asseguralhe que é um homem inatacável que desde a infância provavelmente habituouse a avaliar sua vida por esse ponto de vista Influência igual exerceu sobre ele anos atrás outro amigo um estudante que tinha dezenove anos enquanto ele tinha catorze ou quinze e que dele gostou e elevou extraordinariamente sua autoestima de forma que ele acreditouse um gênio Depois esse estudante veio a darlhe aulas partic ulares e mudou subitamente a conduta tratandoo como um imbecil Ele notou enfim que o outro se interessava por uma de suas irmãs e estabelecera relação com ele apenas para ter acesso à sua casa Esta foi a primeira comoção de sua vida Ele então prossegue abruptamente b a sexualidade infantil Minha vida sexual começou bastante cedo Lembrome de uma cena de quando tinha quatro ou cinco anos de idade a partir dos seis minha 13316 lembrança é completa que anos depois me veio claramente à memória Tín hamos uma governanta jovem e muito bela a srta Peter4 Uma noite ela lia deitada no sofá com roupas leves eu estava a seu lado e pedi que me deixasse entrar sob sua saia Ela o permitiu desde que eu não falasse a ninguém sobre isso Ela estava com pouca roupa e eu toquei nos seus genitais e no ventre que me pareceram esquisitos Desde então sinto uma curiosidade ardente dolorosa de ver o corpo feminino Ainda lembro com que tensão eu aguar dava que ao nos banharmos o que ainda podia fazer com a senhorita e min has irmãs ela se despisse e entrasse na água A partir dos seis anos lembro me de mais coisas Tínhamos então uma outra governanta também jovem e bonita que tinha abscessos nas nádegas e costumava espremêlos à noite Eu esperava por esse momento para saciar minha curiosidade A mesma coisa no banho embora a srta Lina fosse mais reservada do que a primeira Respondendo a uma pergunta Eu não dormia normalmente no seu quarto e sim no de meus pais Recordo uma cena em que eu devia ter sete anos de id ade5 Estávamos juntos uma noite eu meu irmão que é um ano e meio mais jovem a senhorita a cozinheira e uma outra garota De repente ouvi na con versa das garotas a srta Lina dizer Com o menor dá para fazer mas Paul eu é muito sem jeito não acerta Não compreendi bem o que queriam dizer mas senti o menosprezo e me pus a chorar Lina me consolou e disse que uma garota que fizera algo assim com um menino do qual cuidava havia passado vários meses na prisão Não creio que ela tenha feito algo errado comigo mas eu tomei liberdades com ela Quando ia para sua cama eu a descobria e a bolinava o que ela consentia sem nada dizer Ela não era muito inteligente e claramente tinha fortes desejos sexuais Com 23 anos já tivera um filho cujo pai veio a desposála de modo que hoje ela é uma sra Hofratc Eu ainda a vejo frequentemente na rua 14316 Já com seis anos eu sofria de ereções e lembro que certa vez fui à minha mãe e queixeime disso Tive que superar alguma hesitação para falar sobre o as sunto pois suspeitava que aquilo tinha relação com minhas ideias e minha curiosidade e durante algum tempo naquela época abriguei a ideia doentia de que meus pais sabiam de meus pensamentos e a explicação que dava a mim mesmo é que os havia falado sem ouvilos Vejo aí o começo de minha doença Havia pessoas garotas que me agradavam muito e que eu desejava ardente mente ver nuas Mas com esses desejos eu tinha uma sensação inquietante de que algo aconteceria se eu pensasse tais coisas e eu devia fazer tudo para evitálo Perguntado sobre esses temores ele diz Por exemplo que meu pai morrer ia Pensamentos sobre a morte de meu pai me ocuparam bastante cedo e por muito tempo causandome grande tristeza Nessa oportunidade fico sabendo com enorme surpresa que seu pai alvo de seus temores obsessivos atuais morreu há alguns anos O que o nosso paciente relata dos seus seis ou sete anos de idade na primeira ses são do tratamento não é apenas como ele acredita o início da doença mas a doença mesma Uma neurose obsessiva completa a que não falta nenhum ele mento essencial ao mesmo tempo núcleo e protótipo da enfermidade posterior como que o organismo elementar cujo estudo apenas ele pode nos dar a medida da complexa organização da doença atual Nós vemos a criança sob o domínio de um componente instintual sexual o prazer em olhar que resulta no desejo recorrente e cada vez mais forte de enxergar nuas pessoas do sexo femin ino que lhe agradam Esse desejo corresponde à ideia obsessiva posterior se ainda não tem caráter obsessivo isto se deve ao fato de o Eu ainda não se colocar em plena oposição a ele não percebêlo como algo alheio No entanto de alguma parte já se move uma oposição a esse desejo pois um afeto doloroso acompanha regularmente o surgimento dele6 Evidentemente há um conflito na vida psíquica 15316 do pequeno voluptuoso junto ao desejo obsessivo e intimamente ligado a ele encontrase um temor obsessivo toda vez que tem esse pensamento ele não pode deixar de temer que algo terrível deve acontecer Essa coisa terrível já se reveste de uma indeterminação característica que doravante não faltará nas manifest ações da neurose Numa criança não é difícil no entanto descobrir o que se acha oculto por essa indeterminação Podendose obter um exemplo específico para alguma das vagas generalidades da neurose obsessiva tenhase a certeza de que tal exemplo é a coisa original e autêntica mesma que devia permanecer escondida pela generalização Restaurado conforme o seu sentido o temor obsessivo é este portanto Se tenho o desejo de ver uma mulher nua meu pai vai morrer O afeto penoso adquire claramente o matiz do inquietante do supersticioso já dando origem a impulsosd de fazer algo para prevenir a desgraça impulsos que se afirmarão depois nas medidas protetorase Portanto um instinto erótico e uma revolta contra ele um desejo ainda não obsessivo e um temor já obsessivo que a ele se opõe um afeto penoso e um impulso a atos de defesa o inventário da neurose está completo E há outra coisa mais uma espécie de delírio ou ilusão de conteúdo especial os pais saberiam dos seus pensamentos porque ele os enuncia sem que os escute Dificilmente nos en ganaremos ao perceber nessa tentativa de explicação infantil um pressentimento daqueles notáveis processos psíquicos a que chamamos de inconscientes e de que não podemos prescindir para esclarecer cientificamente essa obscura questão Expresso meus pensamentos sem ouvilos isto soa como uma projeção para o exterior de nossa suposição de que ele tem pensamentos sem saber algo deles como uma percepção endopsíquica do reprimido Claramente notamos que essa elementar neurose infantil já envolve um prob lema e um aparente absurdo como toda neurose complicada de adulto Qual o sentido da afirmação de que o pai vai morrer se o filho tiver aquele desejo 16316 voluptuoso Isso é puro disparate ou há formas de compreender essa afirmação de vêla como resultado de processos e pressupostos anteriores Se aplicamos a este caso de neurose infantil conhecimentos obtidos em outro âmbito temos de supor que também aqui ou seja antes do sexto ano de vida aconteceram vivências conflitos e repressões que sucumbiram eles próprios à amnésia mas deixaram para trás como resíduo esse conteúdo de temor obsess ivo Depois saberemos até que ponto nos é possível redescobrir ou construir com alguma certeza essas vivências esquecidas Enquanto isso devemos enfatizar como provavelmente mais do que simples coincidência que a amnésia infantil do nosso paciente chega ao fim no sexto ano de idade precisamente De muitos outros casos conheço uma neurose obsessiva crônica que tem iní cio na primeira infância com tais desejos lascivos a que se acham ligadas expect ativas inquietantes e tendência a atos defensivos É absolutamente típico embora provavelmente não seja o único tipo possível Direi ainda algo sobre as vivências sexuais precoces do analisando antes de passarmos ao conteúdo da segunda ses são Dificilmente não se poderá caracterizálas como particularmente substanciais e ricas de consequências Mas assim é também nos outros casos de neurose obses siva que pude analisar Ao contrário da histeria nela sempre se acha a caracter ística da atividade sexual prematura A neurose obsessiva leva a perceber muito mais claramente que a histeria que os fatores constitutivos da psiconeurose de vem ser buscados na vida sexual infantil não na atual A vida sexual dos neuróti cos obsessivos pode parecer inteiramente normal ao pesquisador superficial ela oferece com frequência muito menos fatores patogênicos e anormalidades que a do nosso paciente c o grande medo obsessivo 17316 Acho que começarei hoje pela vivência que foi para mim o motivo direto para procurálo Aconteceu em agosto durante os exercícios militares em Eu vinha sofrendo antes atormentavame com pensamentos obsessivos de toda espécie mas que pararam após o começo dos exercícios Tinha interesse em mostrar aos oficiais regulares que nós não só aprendíamos alguma coisa mas podíamos aguentar alguma coisa Um dia fizemos uma pequena marcha partindo de No descanso perdi meu pincenê Embora pudesse têlo encon trado sem dificuldade não quis adiar o prosseguimento da marcha e renunciei a ele telegrafando a meu óptico em Viena para que me enviasse um novo No mesmo descanso tomei lugar entre dois oficiais um dos quais um capitão de sobrenome tcheco viria a ter importância para mim Eu tinha um certo medo desse homem pois evidentemente ele gostava de crueldades Não digo que fosse ruim mas durante a refeição dos oficiais havia defendido a introdução do castigo corporal e eu o havia contestado energicamente Naquele inter valo então pusemonos a conversar e o capitão falou de um castigo particu larmente horrível que se usa no Oriente sobre o qual havia lido Aqui ele se interrompe levantase e me pede para dispensálo da descrição dos detalhes Eu lhe asseguro que não tenho inclinação alguma para a crueldade que certamente não desejo atormentálo mas que naturalmente não posso concederlhe algo que não está em meu poder Seria digamos como se ele me pedisse que lhe presenteasse um cometa A superação de resistências disselhe é um imperativo do tratamento a que não podemos nos furtar O conceito de res istência eu lhe havia explicado no início da sessão quando ele afirmou que tinha muita coisa a superar dentro de si para relatar aquela vivência Mas eu tudo faria continuei para adivinhar o sentido completo de algo que ele apenas insinu asse Ele estava se referindo à empalação Não não é isso o condenado é am arrado ele expressouse de modo tão pouco claro que não pude entender 18316 logo em qual posição sobre o seu traseiro colocam um recipiente virado contendo ratos que ele novamente se ergueu e mostrava todos os sinais de horror e resistência perfuravam O ânus completei Nos momentos mais importantes da narrativa percebese nele uma expressão facial muito peculiar que posso entender apenas como de horror ante um prazer seu que ele próprio desconhecia Ele prossegue com bastante dificuldade Naquele momento estremeci com a ideia de que aquilo sucedia a uma pessoa cara para mim7 Perguntado diretamente ele diz não ser ele próprio que executa o castigo e que este é executado impessoalmente Após refletir por um instante sei que a ideia diz respeito à mulher por ele adorada Ele interrompe a narrativa para me assegurar que tais pensamentos lhe são es tranhos e desagradáveis e que tudo a eles vinculado passa dentro dele com ex traordinária rapidez Simultaneamente à ideia há também a sanção isto é a medida defensiva que é obrigado a tomar para que a fantasia não se realize Quando o capitão falou daquele castigo terrível e lhe vieram tais ideias ele conseguiu defenderse de ambos com suas fórmulas habituais com um mas as sociado a um gesto de repulsa da mão e com a frase Que coisa me vem à cabeça O plural me surpreendeu assim como terá ficado incompreensível para o leit or Pois até agora soubemos de apenas uma ideia a de que o castigo dos ratos seria executado na mulher Nesse momento ele confessa que ao mesmo tempo lhe ocorreu outra a de que a punição atinge também seu pai Como este já morreu há muitos anos esse temor obsessivo é ainda mais absurdo que o primeiro e tentou escapar à confissão ainda por algum tempo Na noite seguinte o mesmo capitão entregoulhe um pacote que chegara pelo correio e disse O primeirotenente A8 pagou o reembolso você deve darlhe o dinheiro No embrulho estava o pincenê encomendado por telégrafo Mas 19316 naquele instante formouse nele uma sanção Não dar o dinheiro senão aconte ceria isto é a fantasia dos ratos se concretizaria no pai e na mulher E segundo um modelo que já conhecia imediatamente surgiu para combater esta sanção uma ordem que era como um juramento Você tem que pagar as 380 coroas ao primeirotenente A que ele quase falou a meiavoz para si mesmo Dois dias depois tiveram fim os exercícios militares Ele gastou esse tempo com esforços para devolver a pequena soma ao primeirotenente A mas di ficuldades de natureza aparentemente objetiva ergueramse contra isso Inicial mente ele tentou fazer o pagamento através de outro oficial que ia à agência do correio mas alegrouse quando este lhe trouxe de volta o dinheiro com a ex plicação de que não havia encontrado o primeirotenente A no correio pois tal forma de cumprir o juramento não o satisfazia não correspondendo ao sentido literal de Você tem que pagar o dinheiro ao primeirotenente A Por fim en controu o oficial que buscava mas este recusou o dinheiro com a afirmação de que não pagara nada a ele de que nem era encarregado do correio mas sim o primeirotenente B Ele ficou atônito por não poder cumprir seu juramento fundado numa premissa falsa e arquitetou um singular expediente Ele iria com os senhores A e B ao correio onde A daria 380 coroas à funcionária esta os daria a B e ele conforme o juramento pagaria as 380 coroas a A Não me surpreenderei se a compreensão dos leitores falhar neste ponto pois também a exposição detalhada que o paciente me fez dos eventos exteriores e de suas reações a eles tinha contradições internas e soava irremediavelmente con fusa Apenas na terceira narração pude leválo a compreender essas obscuridades revelando os equívocos de memória e os deslocamentos em que ele havia incor rido Não reproduzirei esses detalhes dos quais logo teremos o essencial e direi apenas que no final desta segunda sessão ele se comportava como se estivesse at ordoado e confuso Chamavame de capitão provavelmente porque no início 20316 eu afirmara não ser cruel como o capitão M e não abrigar a intenção de atormentálo gratuitamente Nessa sessão a única informação que ainda obtive dele foi que desde o início em todos os seus temores de que algo acontecesse às pessoas que amava havia situado esses castigos não apenas na vida atual mas também na eternidade no além Até os catorze ou quinze anos ele fora conscienciosamente religioso depois evoluindo gradualmente para o seu livrepensar de agora Resolvia a contradição entre o que pensava e suas obsessões dizendo a si mesmo Que sabe você da vida no além Que sabem os outros Não se pode saber nada realmente você não está arriscando nada então faça isto Esse homem de intelecto normal mente agudo acha este raciocínio impecável e assim utiliza a incerteza da razão nesse ponto em favor da superada concepção religiosa do mundo Na terceira sessão ele termina a narração bastante característica de seus esforços para cumprir o juramento obsessivo À noite houve o último encontro dos ofici ais antes do encerramento das manobras Coubelhe agradecer após o brinde aos senhores reservistas Ele falou bem mas como um sonâmbulo pois no fundo o atormentava sempre aquele juramento Passou uma noite horrível argu mentos e contraargumentos lutavam entre si o principal era naturalmente que a premissa do seu juramento de que o primeirotenente A fizera o pagamento para ele não correspondia aos fatos Mas ele consolouse com a ideia de que aquilo não havia passado de que A os acompanharia até certo ponto na marcha à estação ferroviária de P na manhã seguinte e ele teria tempo de falarlhe acerca do obséquio Não o fez deixou que A seguisse e encarregou seu ajudante de anunciarlhe sua visita à tarde Ele próprio chegou à estação às nove e meia da manhã deixou depositada a sua bagagem e providenciou várias coisas na pequena cidade com a intenção de depois visitar A A aldeia em que estava 21316 acantonado A ficava aproximadamente a uma hora de coche da cidade de P A viagem de trem até o local da agência de correio levaria três horas então ele achou que daria justamente para chegar a Viena com o trem vespertino de P ex ecutando o seu complicado plano As ideias que se entrechocavam eram por um lado tratavase de uma covardia dele que evidentemente queria apenas poupar se o incômodo de pedir a A este sacrifício e parecerlhe um tolo e por isso ig norava o próprio juramento por outro lado era o oposto de uma covardia cumprir o juramento pois com isso ele apenas queria ser deixado em paz por suas obsessões Quando numa reflexão os argumentos se contrabalançavam de tal modo diz ele habitualmente deixavase levar por eventos casuais como se estes fossem decisões divinas Por isso quando um carregador lhe perguntou na es tação Vai pegar o trem das dez horas sr tenente respondeu que sim e partiu às dez criando um fait accompli fato consumado que muito o aliviou Com o funcionário do vagãorestaurante reservou um lugar à mesa Na primeira estação ocorreulhe subitamente que podia descer esperar pelo primeiro trem na direção oposta e ir a P e onde estava o primeirotenente A fazer com este o trajeto de três horas até a agência do correio etc Apenas a consideração de que havia feito reserva com o garçom o impediu de executar esse propósito mas não o abandon ou apenas adiou a descida Desse modo arrastouse de uma estação a outra até chegar a uma em que lhe pareceu impossível descer porque ali tinha parentes e resolveu ir até Viena e lá procurar seu amigo exporlhe a questão e conforme a decisão dele retornar ainda a P com o trem noturno Respondendo à minha dúvida de que isso fosse factível ele garantiu ter uma meia hora livre entre a chegada de um trem e a partida do outro Uma vez em Viena não encontrou o amigo no restaurante onde pensava encontrálo chegou somente às onze horas ao seu apartamento e expôslhe o problema ainda naquela noite O amigo ficou pasmo de que ele ainda duvidasse que era uma obsessão tranquilizouo por 22316 aquela noite de forma que ele dormiu muito bem e na manhã seguinte o acom panhou ao correio para remeter as 380 coroas à agência de correio onde havia chegado o pacote do pincenê Essa última informação deume o ponto de partida para desemaranhar as dis torções de sua narrativa Quando chamado à razão pelo amigo não enviou a pequena soma ao primeirotenente A nem ao primeirotenente B mas direta mente à agência de correio ele devia saber já quando partiu que não estava de vendo a taxa de remessa a outra pessoa que não o funcionário do correio Verificou se de fato que ele já o sabia antes da advertência do capitão e de seu juramento pois agora se lembrava de que algumas horas antes de encontrar o capitão cruel tivera oportunidade de apresentarse a outro capitão que o informara da ver dadeira situação Este oficial lhe contara ao ouvir seu nome que havia estado na agência do correio e a funcionária lhe perguntara se conhecia um tenente H o nome de nosso paciente Ele respondeu que não mas a senhorita afirmou que confiava no tenente desconhecido e desembolsaria ela mesma o valor da taxa Assim chegou ao paciente o pincenê encomendado O capitão cruel cometeu um erro ao lhe entregar o pacote dizendo que ele reembolsasse a A as 380 coroas Nosso paciente devia saber que se tratava de um erro Mas fez com base nesse erro o juramento que se transformaria num tormento Ele omitiu para si próprio e depois para mim ao fazer o relato o episódio do outro capitão e a existência da confiante funcionária do correio Admito que após essa retificação sua conduta parece ainda mais insensata e incompreensível do que antes Depois que deixou seu amigo e voltou para sua família as dúvidas o acomet eram de novo Os argumentos do amigo afinal haviam sido os mesmos argu mentos seus e ele via muito bem que a temporária tranquilização era devida à in fluência pessoal do amigo A decisão de procurar um médico foi habilmente in tegrada ao delírio da seguinte forma Ele solicitaria a um médico o atestado de 23316 que para sua recuperação necessitava fazer atos como o que planejava fazer com o primeirotenente A e o atestado certamente levaria este a aceitar dele as 380 coroas A casualidade de que um livro meu lhe caíra nas mãos fez sua escolha in cidir sobre mim Mas comigo não falou daquele atestado pediu apenas muito ra zoavelmente que o livrasse de suas ideias obsessivas Meses depois no auge da resistência surgiu de novo a tentação de ir a P procurar o primeirotenente A e representar com ele a comédia da restituição do dinheiro d introdução à compreensão do tratamento Não espere o leitor que eu lhe apresente logo minha explicação para essas ideias obsessivas particularmente absurdas com os ratos a técnica psicanalítica correta solicita que o médico refreie sua curiosidade e deixe o paciente livre para escolher a ordem dos temas durante o trabalho Portanto dei início à quarta sessão com esta pergunta Como vai prosseguir hoje Decidi lhe comunicar o que me parece muito significativo e me atormenta desde o princípio Ele agora conta detalhadamente a história clínica de seu pai que morreu de enfisema há nove anos Uma noite achando que se tratava de uma crise perguntou ao médico quando poderia não haver mais perigo A resposta foi Amanhã à noite Não lhe ocorreu que o pai poderia não sobreviver a esse prazo Deitouse às onze e meia para dormir durante uma hora e quando acor dou à uma da madrugada um amigo médico lhe disse que seu pai havia morrido Recriminouse por não estar presente na morte mais ainda quando a enfermeira lhe disse que nos últimos dias o pai pronunciara seu nome e perguntara quando ela se aproximou dele É Paul Ele acreditou notar que a mãe e as irmãs recriminavamse de forma semelhante mas não falavam disso De início porém a recriminação não era dolorosa durante algum tempo não se deu conta da morte do pai aconteceulhe algumas vezes pensar ao ouvir uma boa piada Essa tenho 24316 de contar a meu pai Também sua imaginação lidava com o pai de modo que frequentemente quando alguém batia na porta ele pensava É meu pai quando entrava num aposento esperava encontrar ali o pai e embora nunca es quecesse o fato de sua morte a expectativa do aparecimento daquele fantasma não era acompanhada de medo mas sim de desejo Apenas um ano e meio depois lhe veio a lembrança de sua negligência e começou a torturálo horrivelmente de modo que ele viu a si mesmo como um criminoso A ocasião para isso foi a morte de uma tia mulher de um tio e seu comparecimento ao velório A partir de então ele incluiu em suas construções mentais o prosseguimento no além A con sequência imediata desse ataque foi uma séria incapacitação para o trabalho9 Como ele relata que apenas as palavras de consolo do amigo o haviam sustentado que este sempre rejeitava essas recriminações como extremamente exageradas aproveito a ocasião para darlhe uma primeira visão dos pressupostos da terapia psicanalítica Quando há uma disparidade entre conteúdo ideativo e afeto ou seja entre o grau da recriminação e o ensejo para ela um leigo diria que o afeto é demasiado grande para o ensejo isto é exagerado e a inferência tirada da recriminação a de ser um criminoso é falsa portanto Já o médico diz Não o afeto é justificado a consciência de culpa não deve ser criticada mas ligase a outro conteúdo que não é conhecido inconsciente e que deve antes ser procurado O conteúdo ideativo conhecido chegou a esse lugar devido a um nexo errado Mas não estamos habituados a ver em nós afetos poderosos sem conteúdo ideativo e por isso na falta de conteúdo tomamos algum outro aceitável como substituto mais ou menos como nossa polícia não conseguindo achar o ver dadeiro assassino prende outro em seu lugar O fato da conexão errada também explica a impotência do lavor da lógica para combater a ideia penosa Concluo então admitindo que essa nova concepção resulta inicialmente em grandes 25316 problemas pois como justificaria ele sua recriminação de ser um criminoso se sabia que na realidade não cometera nenhum crime contra o pai Ele mostra na sessão seguinte grande interesse pelo que digo mas não deixa de explicitar algumas dúvidas Como poderia ter efeito curativo a informação de que a recriminação a consciência de culpa é justificada Não é esta inform ação que tem esse efeito mas a descoberta do teor desconhecido a que se liga a repreensão Sim sua pergunta diz respeito a isso justamente Para ilustrar minhas breves observações sobre as diferenças psicológicas entre o consciente e o in consciente sobre o desgaste a que se acha submetido tudo o que é consciente en quanto o inconsciente é relativamente imutável indico as antiguidades expostas em minha sala São objetos que foram desenterrados o sepultamento significou para eles a conservação Pompeia sucumbe apenas agora depois que foi descoberta Ele pergunta então se há alguma garantia de como a pessoa se comportará em relação ao achado Uma pessoa ele acredita vai agir de modo a superar a recriminação mas outra não Não é da própria natureza da situ ação que toda vez o afeto seja superado geralmente já durante o trabalho analítico Há o esforço para conservar Pompeia e o desejo de livrarse abso lutamente de tais ideias penosas Ele acha que uma recriminação pode resultar apenas da violação das leis morais íntimas não das externas Eu confirmo que alguém que infringe apenas estas vêse frequentemente como um herói Tal evento ele continua é possível apenas numa desagregação da personalidade presente já no início Ele conseguirá reaver a unidade de sua personalidade Nesse caso acredita ser capaz de realizar muitas coisas talvez mais do que out ros Respondo que estou de acordo com essa teoria da cisão da personalid ade que ele apenas deve fundir essa nova oposição entre a pessoa moral e o mal com a oposição anterior entre consciente e inconsciente A pessoa moral seria o consciente o mal o inconsciente10 Ele bem se recorda que embora se 26316 achando uma pessoa moral certamente fez coisas em sua infância que emanaram da outra pessoa Acho que ele teria descoberto aí incidentalmente uma característicamor do inconsciente a relação com o infantil O inconsciente seria o infantil mais exatamente aquela parte da pessoa que então se separou dela não acompanhou o desenvolvimento posterior e por isso foi reprimida Os derivados desse inconsciente reprimido seriam os elementos responsáveis pelo pensar invol untário em que consiste o seu sofrimento Ele poderia digo eu descobrir mais uma característica do inconsciente prefiro que ele mesmo o faça De imediato não tem o que dizer expressa a dúvida de que seja possível desfazer mudanças há tanto existentes O que se faria em especial contra a sua ideia do Além que não pode ser logicamente refutada Eu não contesto a gravidade do seu caso e a importância de suas construções mas digo que sua idade o favorece bastante assim como a natureza intacta de sua personalidade e nisso expresso um bom juízo a seu respeito o que visivelmente o alegra Ele começa a sessão seguinte dizendo que tem de contar algo acontecido na in fância Aos sete anos tinha como já disse medo de que os pais lhe adivinhassem os pensamentos e isto continuou depois em sua vida Aos doze anos amava uma garota irmã de um amigo respondendo a uma pergunta minha não sensual mente não queria vêla nua era muito pequena que porém não tinha com ele a ternura que esperava Então lhe veio a ideia de que ela seria amorosa se lhe acontecesse um infortúnio e tal seria inevitavelmente pensou a morte do pai De imediato rechaçou energicamente essa ideia também agora rejeita a possibil idade de que um desejo estaria se expressando ali Foi apenas uma ligação de pensamentos11 Eu faço uma objeção se não era um desejo por que rejeitar isso Apenas devido ao conteúdo da ideia de que o pai poderia morrer Eu digo que ele trata essas palavras como se fossem uma expressão de lesa 27316 majestade em que notoriamente é punido tanto quem diz O Imperador é um asno quanto quem assim disfarça esses termos proibidos Se alguém disser que terá de se haver comigo Eu poderia sem dificuldade inserir o conteúdo ideativo que ele rejeita num contexto que excluiria tal rejeição por exemplo Se meu pai morrer eu me mato sobre seu túmulo Ele fica abalado mas sem de sistir de contradizerme de modo que interrompo a disputa com a observação de que a ideia da morte do pai não surgiu nesse caso pela primeira vez evidente mente procedia de antes e teríamos que rastrear sua origem Ele conta que um pensamento igual também lhe atravessara a mente seis meses antes da morte do pai Já estava apaixonado por aquela senhora12 mas não podia pensar numa relação devido a obstáculos materiais A ideia foi então Com a morte do pai ele talvez se tornasse rico de forma a poder esposála Defendendose dela foi ao ponto de desejar que o pai não deixasse herança nenhuma para que nenhuma vantagem compensasse uma perda tão horrível para ele A mesma ideia surgiu uma terceira vez bastante atenuada no dia anterior à morte do pai Ele pensou Agora posso perder meu ente mais querido e logo veio a reação Não há outra pessoa cuja perda me seria ainda mais dolorosa13 Ele se admira muito com esses pensamen tos pois tem certeza de que a morte do pai nunca poderia ter sido objeto de seu desejo apenas de temor Após essas palavras exprimidas intensamente por ele acho oportuno apresentarlhe mais um pouco da teoria Segundo ela digo lhe esse medo corresponde a um desejo antigo agora reprimido de modo que devemos supor justamente o contrário do que ele assevera Isso também se har moniza com a reivindicação de que o inconsciente seria o exato oposto do con sciente Ele fica agitado não acredita e se admira de que tal desejo tenha sido possível com ele para quem o pai foi o mais querido dos seres Não tem dúvida de que teria renunciado a toda felicidade pessoal se com isso pudesse salvar a vida do pai Eu respondo que justamente esse amor intenso é condição para o 28316 ódio reprimido No caso de pessoas que lhe são indiferentes ele não terá di ficuldade em manter lado a lado os motivos para uma afeição moderada e uma aversão idem se ele for um funcionário digamos e pensar que seu chefe é um superior simpático mas um jurista estreito e um juiz desumano Algo semel hante o Brutus de Shakespeare fala de César Como César me amava eu o pranteio como era afortunado alegrome como era valente rendolhe hom enagem mas como era ambicioso eu o matei Júlio César iii 2 Esta fala já nos parece estranha porque imaginávamos mais forte a afeição de Brutus por César No caso de uma pessoa mais próxima sua esposa digamos ele se empenhará em ter um sentimento homogêneo e por isso como fazem universal mente os seres humanos relevará os defeitos que poderiam provocar sua aversão deixará de enxergálos como que enceguecido Logo justamente o grande amor não admite que o ódio assim designado caricaturalmente que deve ter alguma fonte permaneça consciente De onde vem esse ódio é um problema sem dúvida suas próprias declarações indicariam a época em que ele temeu que os pais adivinhassem seus pensamentos Por outro lado é possível também pergun tar por que o grande amor não foi capaz de eliminar o ódio como habitualmente sucede quando há duas emoções opostas Podese apenas supor que o ódio esteja ligado a uma fonte um motivo que o torne indestrutível Logo tal nexo impede por um lado o desaparecimento do ódio ao pai e por outro não deixa que se torne consciente o grande amor a ele de modo que só lhe resta a existência no in consciente do qual pode emergir subitamente em alguns instantes Ele concede que tudo isto soa bem plausível mas naturalmente não dá mostra de estar convencido14 Como se explicaria deseja saber que uma tal ideia faça in tervalos vindo por um instante aos doze anos depois novamente aos vinte e uma vez mais dois anos depois persistindo desde então Ele não pode acreditar que naquelas pausas a hostilidade se extinguisse e no entanto nelas não houve 29316 recriminações Ao que respondo Quando alguém faz uma pergunta assim já tem pronta a resposta Basta deixar que prossiga falando Ele então continua apar entemente sem nexo com o que falava Havia sido o melhor amigo do pai como este havia sido o dele tirando umas poucas áreas em que os dois costumavam di vergir a que estará se referindo a intimidade entre eles foi maior do que a que tem hoje com seu melhor amigo Tinha certamente amado aquela senhora pela qual relegara o pai a segundo plano em sua mente mas desejos propriamente sen suais como os que povoaram sua infância não surgiram em relação a ela seus impulsos sensuais haviam sido bem mais fortes na infância do que na puberdade Digo então que ele deu a resposta que esperávamos e ao mesmo tempo de parou com a terceira grande característica do inconsciente A fonte da qual a hos tilidade ao pai tira sua indestrutibilidade é evidentemente da natureza de apetites sensuais e nisso ele percebeu o pai como um estorvo de algum modo Tal conflito entre sensualidade e amor infantil é absolutamente típico acrescento Nele houve intervalos porque devido à precoce explosão de sua sensualidade de imediato verificouse nela um considerável amortecimento Apenas quando nele nova mente surgiram desejos amorosos intensos é que essa hostilidade reapareceu a partir de situação análoga Atendendo a uma solicitação minha ele confirma que não o guiei para o tema da infância nem para o da sexualidade que chegou aos dois por conta própria Ele então pergunta por que quando estava apaixon ado pela dama ele simplesmente não resolveu que o fato de o pai estorvar essa paixão não podia pesar contra seu amor a ele Eu respondo que é muito difícil matar alguém in absentia Tal decisão seria possível apenas se o desejo reprovado lhe ocorresse então pela primeira vez mas era um desejo há muito reprimido ante o qual ele não podia comportarse de modo diferente de antes e que por isso ficou imune à destruição O desejo de eliminar o pai como sendo um estorvo devia ter se originado num tempo em que a situação era muito diferente em que 30316 talvez não amasse o pai mais do que a pessoa desejada sensualmente ou em que não fosse capaz de uma clara decisão isto é cedo na infância antes dos seis anos de idade antes que sua memória se tornasse contínua e isto permaneceu assim para sempre Com essa construção termina provisoriamente a discussão No encontro seguinte o sétimo ele aborda de novo esse tema Diz não poder acreditar que jamais tenha tido esse desejo em relação ao pai Lembrase de uma novela de Sudermannf que o impressionou bastante na qual uma mulher junto ao leito de morte da irmã sente esse desejo de morte em relação a ela a fim de poder casar com o seu marido E então se mata porque não merece viver após tal baixeza Ele entende isso e acharia justo se morresse devido a seus pensamentos pois não mereceria outra coisa15 Faço a observação de que sabemos que a doença traz alguma satisfação aos doentes de modo que todos eles se recusam parcial mente a restabelecerse Ele deve ter presente que um tratamento como o nosso se realiza sob contínua resistência sempre voltarei a lembrarlhe disso Ele agora quer falar de um ato delinquente em que não se reconhece mas do qual decididamente se recorda Cita uma frase de Nietzsche Eu fiz isso diz minha memória eu não posso ter feito isso diz meu orgulho e permanece in flexível Por fim a memória cede16 Nisso minha memória não cedeu Justamente porque você para castigar a si mesmo tira prazer de suas recriminações Com meu irmão menor sou realmente bom com ele agora está me pre ocupando muito quer fazer um casamento que considero absurdo já me ocorreu ir até lá e assassinar a mulher para que ele não case com ela com meu irmão briguei muito quando criança Ao mesmo tempo nos gostávamos muito éramos inseparáveis mas obviamente eu tinha ciúmes pois ele era o mais forte o mais bonito e portanto o mais querido 31316 Você já relatou uma destas cenas de ciúme com a srta Lina Sim e após uma ocasião dessas certamente antes dos oito anos de idade pois eu ainda não frequentava a escola onde entrei aos oito anos eu fiz o seguinte Nós tínhamos espingardas de brinquedo do tipo conhecido Eu car reguei a minha com a vareta e disse a ele para olhar dentro do cano que veria algo e quando olhou apertei o gatilho Ele foi atingido na testa e não teve nada mas havia sido minha intenção machucálo Depois fiquei inteiramente fora de mim lanceime ao chão e perguntei a mim mesmo como podia ter feito aquilo Mas o fiz Aproveito a oportunidade para defender minha causa Se ele conservou na memória um ato assim estranho a ele próprio não pode contestar a possibilidade de numa época anterior ter feito algo semelhante contra o pai algo de que não mais se lembra Ele está cônscio de outros impulsos vingativos contra a mulh er que tanto venera de cujo caráter faz uma descrição entusiasmada Ela talvez não ame facilmente ela se poupa inteiramente para aquele a quem pertencerá ela não o ama Quando ficou certo disso formou a fantasia consciente de que se tor nará muito rico esposará outra e fará com ela uma visita à mulher em questão a fim de aborrecêla Mas a fantasia fracassou pois ele teve de admitir para si mesmo que a outra a esposa eralhe indiferente seus pensamentos tornaramse confusos e afinal viu que essa outra deveria morrer Também nessa fantasia ele encontra como no ataque ao irmão a característica da covardia para ele exec rável17 No prosseguimento da conversa enfatizo que logicamente ele não deve considerarse responsável por todos esses traços característicos pois todos esses impulsos reprováveis procedem da infância correspondem aos derivados do caráter infantil que subsistem no inconsciente e ele bem sabe que a responsab ilidade ética não tem validez para a criança Apenas no curso do desenvolvi mento a partir da soma das predisposições da criança surge o indivíduo 32316 responsável eticamente18 Mas ele duvida que todos os seus impulsos maus ten ham essa origem Eu prometo demonstrar isso no curso do tratamento Ele ainda acrescenta que sua enfermidade piorou muito desde a morte do pai e doulhe razão na medida em que reconheço no luto pelo pai a principal fonte da intensidade da doença O luto como que achou na doença uma expressão patológica Enquanto um luto normal toma de um a dois anos um patológico como o seu tem duração indefinida Isso é quanto posso relatar desse caso clínico em detalhes e de forma consecutiva Corresponde aproximadamente à exposição do tratamento que durou pouco mais de onze meses e algumas ideias obsessivas e sua tradução Sabese que as ideias obsessivas parecem desprovidas de motivo ou de sentido exatamente como o teor de nossos sonhos noturnos e o problema imediato que nos colocam é darlhes sentido e lugar na vida psíquica do indivíduo de modo que venham a se tornar compreensíveis e até mesmo óbvias Nesse problema que é traduzilas não devemos jamais nos iludir com sua aparente insolubilidade as ideias obsessivas mais loucas e extravagantes podem ser esclarecidas se investi gadas adequadamente Chegamos a este esclarecimento porém situandoas em relação temporal com as vivências do paciente ou seja ao pesquisar quando sur giu primeiramente uma ideia obsessiva particular e em que circunstâncias extern as costuma se repetir Tratandose de ideias obsessivas que como frequente mente sucede não alcançaram existência duradoura o trabalho de investigação simplificase de modo correspondente Podemos facilmente convencernos de que após desvendar o nexo entre a ideia obsessiva e as vivências do paciente não nos será difícil ganhar compreensão de tudo o mais que houver de enigmático e 33316 digno de conhecimento na formação patológica sua significação o mecanismo de sua gênese sua derivação das forças instintuais psíquicas decisivas Começo com um exemplo bem claro do impulso de suicídio frequente em nosso paciente que na exposição quase se analisa por si próprio Ele perdeu algu mas semanas de estudo por causa da ausência de sua dama que viajara a fim de cuidar da avó doente Enquanto estava imerso no estudo ocorreulhe Podese admitir a ordem de fazer os exames do semestre na primeira oportunidade Mas se viesse a ordem de cortar a garganta com a navalha De imediato percebeu que esta ordem já fora dada correu para o armário a fim de pegar a navalha e então lhe ocorreu Não não é tão simples Você deve19 ir lá e matar a velha Então caiu no chão horrorizado A relação dessa ideia obsessiva com a vida do paciente já se acha no princí pio do relato Sua dama estava ausente enquanto ele estudava duramente para um exame a fim de apressar a união com ela Então o acometeu durante o estudo a saudade da amada ausente e pensou no motivo de sua ausência E veio lhe algo que numa pessoa normal teria sido apenas um aborrecimento em re lação à avó A velha tinha de ficar doente logo agora quando sinto tanta falta dela Algo semelhante mas muito mais forte devemos supor em nosso pa ciente um inconsciente ataque de fúria que com a saudade poderia exprimirse na exclamação Ah como eu gostaria de ir lá e matar essa velha que me afasta de meu amor Ao que se segue a ordem Mate a si mesmo como punição por tais desejos raivosos e homicidas e todo o processo vai à consciência do obsessivo acompanhado pelo mais veemente afeto em ordem inversa a ordem de punição antes e no fim a menção do desejo condenável Não creio que essa tentativa de explicação pareça forçada ou incorpore muitos elementos hipotéticos Um outro impulso mais duradouro de suicídio indireto digamos não foi de explicação tão fácil porque pôde esconder seu nexo com a experiência atrás de 34316 uma das associações externas que parecem repugnantes à nossa consciência Um dia numa estação de veraneio achou que estava muito gordo dick em alemão que precisava emagrecer Ele começou a levantarse da mesa antes do pudim cor rendo pela rua sem chapéu no sol de agosto e subindo a montanha em passo rápido até que tinha de parar coberto de suor A intenção de suicídio por trás dessa mania de emagrecer apareceu abertamente uma vez quando à beira de uma escarpa surgiu o imperativo de que pulasse o que certamente acarretaria a morte A explicação para este absurdo ato obsessivo lhe ocorreu apenas quando lembrou de repente que naquela época a sua amada também se encontrava na estação de férias mas acompanhada de um primo inglês que se desdobrava em zelos por ela e do qual ele sentia muito ciúme O nome do primo era Richard e como é costume na Inglaterra chamavamno Dick Ele queria matar esse Dick tinha muito mais raiva e ciúme dele do que podia confessar a si mesmo e por causa disso impôsse como autopunição a dor daquele tratamento de emagrecer Embora este impulso obsessivo pareça diferente da ordem de suicídio anterior um traço significativo é comum aos dois o surgimento como reação a uma raiva enorme inapreensível à consciência a alguém que aparece para atrapalhar seu amor20 Outras ideias obsessivas de novo relacionadas à amada deixam perceber out ros mecanismos e outra origem instintual Na época em que sua dama estava presente na estação de veraneio ele produziu além da mania de emagrecer toda uma série de atividades obsessivas que diziam respeito a ela ao menos em parte Certa vez quando estava com ela num barco e um vento forte soprou teve de obrigála a pôr seu boné porque em sua mente formouse o imperativo de que nada podia acontecer à amada21 Era uma espécie de obsessão protetora que tam bém deu outros frutos Em outro momento encontrandose junto a ela numa tempestade teve a obsessão de contar até quarenta ou cinquenta entre o 35316 relâmpago e o trovão não compreendia por quê No dia em que ela partiu topou com uma pedra no meio da estrada e teve de afastála para o lado pois em algu mas horas o veículo em que ela estava passaria ali e talvez a pedra o danificasse mas minutos depois achou que isso era absurdo e teve de voltar e colocar a pedra no mesmo lugar Depois que ela partiu foi tomado de uma obsessão de com preender que o tornou insuportável para todos Obrigavase a compreender exata mente cada sílaba que alguém lhe falava como se lhe escapasse um tesouro se não o fizesse Então perguntava sempre O que você falou agora e quando a pessoa o repetia para ele achava que da primeira vez fora diferente e ficava insatisfeito Todos esses produtos da doença ligavamse a um episódio que então domin ava sua relação com a amada Quando antes das férias de verão despediuse dela em Viena interpretou uma de suas frases como se ela quisesse repudiálo ante as pessoas presentes e ficou bastante infeliz Na estação de veraneio houve opor tunidade para discutir isso e ela pôde então provar que com aquelas palavras malentendidas por ele quisera antes protegêlo do ridículo Ele ficou novamente bastante feliz A mais clara alusão a este incidente estava na obsessão de com preender que se acha formada como se ele dissesse a si próprio Depois disso você não pode novamente entender mal alguém se quiser evitar um sofrimento inútil Mas essa intenção não foi apenas generalizada a partir daquela ocasião foi também talvez devido à ausência da amada deslocada de sua pessoa alta mente estimada para todas as outras de menor valor A obsessão também não pode ter se originado apenas da satisfação com o esclarecimento recebido deve exprimir outra coisa mais pois inclui a insatisfação e dúvida quanto à repetição do que foi escutado As outras ordens obsessivas nos colocam na pista desse outro elemento A ob sessão protetora não pode significar outra coisa senão a reação 36316 arrependimento e penitência a um impulso contrário ou seja hostil dirigido à amada antes do esclarecimento A obsessão de contar durante o temporal pode ser interpretada com ajuda do material que ele apresentou como uma medida de defesa em relação a temores que implicavam perigo de vida A análise das primeiras ideias obsessivas mencionadas já nos deixa preparados para ver os im pulsos hostis do paciente como particularmente violentos da natureza da raiva sem sentido e descobrimos que essa raiva pela dama mesmo depois da reconcili ação contribui para as formações obsessivas Na mania de duvidar que tenha ouvido corretamente se expressa a dúvida contínua de que dessa vez tenha enten dido corretamente a amada e possa justamente enxergar em suas palavras uma prova da sua afeição A dúvida da obsessão de compreender é dúvida quanto ao seu amor Em nosso apaixonado há uma luta entre o amor e o ódio que dizem re speito à mesma pessoa e essa luta é representada plasticamente no ato obsessivo também simbolicamente significativo de tirar a pedra do caminho que ela irá percorrer e depois desfazer esse ato de amor colocando a pedra novamente onde estava para que o seu veículo nela esbarre e ela se machuque Não compreen demos corretamente esta segunda parte do ato obsessivo se a vemos tão só como rejeição crítica da ação doentia tal como ela deseja apresentarse O fato de que também ocorre numa sensação de compulsão mostra que ela mesma é parte da ação doentia determinada pelo oposto do motivo da primeira parte Tais ações obsessivas em dois tempos em que o primeiro é anulado pelo se gundo ocorrem tipicamente na neurose obsessiva Elas são naturalmente malen tendidas pelo pensamento consciente do enfermo e dotadas de uma motivação secundária racionalizadas22 Seu verdadeiro significado porém está na repres entação do conflito entre dois impulsos contrários de magnitude aproximada mente igual pelo que até agora pude constatar sempre a oposição entre amor e ódio Elas reclamam um interesse teórico especial pois deixam perceber um novo 37316 tipo de formação de sintomas Em vez de como sucede normalmente na histeria achar um compromisso que contemple os dois opostos numa só representação que mate dois pássaros com um só tiro23 os opostos são aí satisfeitos isolada mente primeiro um e depois o outro naturalmente não sem que antes se fizesse a tentativa de criar uma espécie de conexão lógica muitas vezes ao arrepio de toda lógica entre os dois contrários hostis24 O conflito entre amor e ódio revelouse também por outros indícios em nosso paciente Na época de seu redespertar religioso ele fazia orações que aos poucos chegaram a tomar uma hora e meia pois nas formulações devotas sempre se mis turava para ele um Balaãog invertido algo que as convertia no oposto Por exemplo se ele dizia Deus o proteja logo o espírito maligno interpolava um não à frase25 Uma vez ocorreulhe amaldiçoar então certamente o contrário se insinuaria nessa ideia irrompeu a intenção original reprimida pela oração Em tais apuros ele achou o expediente de abolir a oração e trocála por uma fórmula curta preparada com as letras ou sílabas iniciais de orações diferentes Ele a fa lava tão rapidamente que nada podia nela intrometerse Um dia ele contou um sonho que representava o mesmo conflito transferido para o médico Minha mãe morreu Ele quer expressar condolências mas teme produzir a risada impertinente que já soltou algumas vezes em casos de faleci mento Então prefere escrever um cartão com p c pour condoler mas essas letras se transformam ao redigilas em p f pour féliciter26 O conflito de seus sentimentos em relação à dama era nítido demais para es capar de todo à sua percepção consciente embora possamos inferir das manifest ações obsessivas do conflito que ele não avaliava corretamente a profundidade de seus impulsos negativos Ela havia respondido com um não à primeira corte que ele lhe fizera dez anos antes Desde então períodos em que ele acreditava amála bastante alternavam também de forma consciente com outros em que se 38316 sentia indiferente para com ela Quando no curso do tratamento devia dar um passo que o aproximaria do objetivo da corte sua resistência manifestavase primeiro habitualmente na convicção de que não a amava tanto na realidade convicção que logo desapareciah Numa ocasião em que ela estava gravemente adoecida o que requereu muita assistência de sua parte veiolhe observandoa o desejo de que ela permanecesse deitada para sempre Tal ideia ele explicou para si mesmo com a interpretação capciosa de que desejandoa sempre doente estar ia livre da angústia ante os repetidos acessos da doença que não podia suportar27 Às vezes ocupava a imaginação em devaneios que ele próprio reconhecia como fantasias de vingança e de que se envergonhava Por achar que ela daria muito valor à posição social de um pretendente fantasiava que ela havia desposado um homem assim um alto funcionário Ele então ingressa na mesma carreira e se destaca bem mais do que ele que se torna seu subordinado Um dia prossegue ele esse homem comete algo ilícito A dama se joga a seus pés implorandolhe que salve o marido Ele promete fazêlo e lhe diz que apenas por amor a ela ab raçou aquela carreira porque previu tal momento Com a salvação do marido sua missão está completa ele renuncia ao posto Em outras fantasias nas quais por exemplo ele lhe presta um grande favor sem que ela saiba quem o fez ele reconheceu apenas a ternura sem apreciar o bastante em sua origem e tendência a magnanimidade voltada para a repressão da sede de vingança segundo o modelo do conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas Ele admitiu de resto que ocasionalmente sentia impulsos muito claros de fazer algum mal à dama que venerava Esses impulsos geralmente silenciavam na presença dela e irrompiam na sua ausência f a causa imediata da doença 39316 Um dia nosso paciente mencionou brevemente um episódio no qual logo divisei a causa precipitadora da doença ou pelo menos o motivo imediato do surto que principiou há seis anos e ainda continua Ele mesmo não fazia ideia de que ap resentava algo importante não se lembrava de ter atribuído algum valor ao epi sódio do qual aliás nunca se esquecera Essa atitude pede uma consideração teórica A regra na histeria é que os motivos recentes para a enfermidade sucumbam à amnésia tal como as vivências infantis que os ajudam a transformar sua energia afetiva em sintomas Quando não é possível um completo esquecimento ainda assim a amnésia corrói o ensejo traumático recente roubandolhe ao menos seus componentes mais significativos Em tal amnésia enxergamos a prova da repressão ocorrida Na neurose obsessiva sucede normalmente de outra forma Os pressupostos infantis da neurose podem ter cedido a uma amnésia fre quentemente incompleta mas as ocasiões recentes para o adoecimento se acham preservadas na memória Aí a repressão utilizouse de um outro mecanismo mais simples na verdade em vez de esquecer o trauma subtraiulhe o investimento afetivo de modo que na consciência resta apenas um conteúdo ideativo indifer ente tido por insignificante A diferença entre histeria e neurose obsessiva está nos processos psíquicos que podemos construir por trás dos fenômenos o res ultado é quase o mesmo pois o conteúdo mnêmico indiferente é reproduzido muito raramente não tendo papel na atividade mental consciente da pessoa Para diferençar os dois tipos de repressão podemos recorrer primeiramente tão só à garantia do paciente de que tem a sensação de que num caso sempre soube aquilo e no outro o esqueceu há muito tempo28 Não é raro suceder portanto que neuróticos obsessivos que sofrem de autor recriminações e ligaram seus afetos a motivos errados informem ao médico tam bém os corretos sem suspeitar que suas recriminações estão apenas 40316 desconectadas desses últimos Às vezes exclamam admirados ou mesmo jactan ciosos que aquilo não lhes importa o mínimo Assim ocorreu no primeiro caso de neurose obsessiva que há muitos anos permitiume a compreensão desta doença O paciente um funcionário público que sofria de inúmeras dificuldades é o mesmo do qual relatei a ação obsessiva com o ramo de árvore no parque de Schönbrunn Chamoume a atenção o fato de ele sempre me dar como paga mento das sessões cédulas de florins perfeitamente lisas e limpas Naquele tempo não havia moedas de prata na Áustria Quando um dia fiz a observação de que se podia reconhecer um funcionário do governo pelos florins novos que recebia da Caixa Estatal ele me disse que as cédulas não eram novas haviam sido passadas a ferro alisadas em sua casa Para ele era questão de consciência não entregar cédulas sujas a alguém pois nelas se achavam perigosas bactérias que poderiam ser nocivas à pessoa Naquele tempo eu começava a perceber vaga mente a relação entre as neuroses e a vida sexual e ousei perguntar ao paciente num outro dia como estava a dele Oh tudo em ordem afirmou simples mente não posso me queixar Faço o papel de um tio velho e querido em muitas casas de boas famílias valendome disso para de vez em quando chamar uma ga rota para um passeio no campo Então arranjo as coisas de modo que perdemos o trem e somos obrigados a passar a noite num albergue Sempre peço dois quartos sou bastante cavalheiro mas quando a garota está na cama vou até lá e a mas turbo com os dedos Mas você não teme fazerlhe mal tocando nos genitais dela com a mão suja Ele então se irritou Mal Como isso pode lhe fazer mal Nenhuma delas foi prejudicada todas elas concordaram Algumas já estão casadas e isso não as prejudicou O paciente levou a mal minha objeção e nunca mais voltou O contraste entre seus escrúpulos ao lidar com as cédulas de dinheiro e sua desconsideração ao abusar das garotas que lhe eram confiadas eu podia explicar apenas mediante um deslocamento do afeto recriminador A 41316 tendência desse deslocamento era clara o bastante se ele deixasse que a recrimin ação fosse para onde cabia teria que abandonar uma satisfação sexual a que provavelmente era impelido por fortes determinantes infantis Obteve então com o deslocamento uma considerável vantagem da doença Agora devo abordar mais a fundo a causa imediata da doença A mãe do pa ciente fora educada como parente distante por uma rica família detentora de uma enorme empresa industrial Ao desposála seu pai entrou para os quadros dessa indústria chegando a uma boa situação graças ao casamento portanto O filho soubera por gracejos entre os pais que viviam um ótimo casamento que o pai fizera a corte a uma bela garota de família modesta antes de conhecer a mãe Essa é a história preliminar Após o falecimento do pai a mãe comunicou ao filho um dia que havia falado de seu futuro com os parentes abastados e um dos primos se declarara disposto a oferecerlhe uma das filhas quando ele terminasse os estudos A ligação com a firma lhe abriria excelentes perspectivas na profissão Esse plano da família despertou nele o conflito entre permanecer fiel à garota pobre que amava ou seguir as pegadas do pai e tomar como esposa a garota bela rica e nobre que lhe destinavam E esse conflito que era de fato entre o seu amor e a persistente vontade do pai ele resolveu adoecendo ou melhor dizendo ele subtraiuse mediante a enfermidade à tarefa de resolvêlo na realidade29 A prova para essa concepção reside no fato de a principal consequência da en fermidade ter sido uma teimosa incapacidade para o trabalho que o fez adiar por anos a conclusão dos estudos Mas o resultado da doença já estava na intenção dela o que parece ser consequência é na realidade a causa o motivo do adoecimento Compreensivelmente de início o doente não admitiu a minha explicação Disse não poder imaginar semelhante efeito do plano de casamento este não lhe fizera a menor impressão na época Mas durante o tratamento ele teve de 42316 convencerse por um caminho peculiar da justeza de minha conjectura Com o auxílio de uma fantasia de transferência vivenciou como novo e atual algo do passado que havia esquecido ou que apenas inconscientemente nele transcorrera De um período obscuro e difícil do tratamento resultou enfim que ele pro movera a minha filha uma jovem que havia encontrado certa vez na escada de meu edifício Ela lhe agradou e ele imaginou que eu era tão amável e paciente com ele porque o desejava para genro e nisso elevou a opulência e nobreza de minha casa a um nível que correspondia a seu modelo Mas essa tentação foi com batida pelo inabalável amor à sua dama Depois de superarmos toda uma série de graves resistências e amargos insultos ele não pôde escapar ao efeito convincente da perfeita analogia entre a transferência fantasiada e a realidade de outrora Re produzo agora um dos sonhos desse período como exemplo de sua forma de rep resentação Ele vê minha filha à sua frente mas ela tem duas bolas de excremento no lugar dos olhos Para qualquer um que compreenda a linguagem dos sonhos a tradução é fácil Ele não se casa com minha filha por seus belos olhos mas por seu dinheiro g o complexo relativo ao pai e a solução da ideia dos ratos Partindo da causa imediata da doença na época adulta um fio conduzia à infân cia do paciente Ele se encontrava na situação pela qual conforme sabia ou ima ginava o pai havia passado antes de seu próprio casamento e pôde identificarse com o pai Ainda de outra maneira o falecido pai teve um papel na doença re cente O conflito da doença era no essencial uma luta entre a persistente vontade do pai e sua própria inclinação amorosa Se levamos em conta o que o paciente havia comunicado nas primeiras sessões do tratamento não podemos afastar a suspeita de que essa luta era bem antiga já tendo ocorrido em sua infância 43316 Seu pai era de acordo com todas as informações um homem excelente Antes do casamento fora suboficial e conservara dessa época de sua vida francas maneiras de soldado e gosto por expressões rudes Além das virtudes que as lajes dos sepulcros costumam atribuir a todos distinguiase por um animado senso de humor e uma bondosa indulgência com os semelhantes Não contradiz essa cara cterística antes a complementa o fato de que podia ser brusco e veemente algo que quando as crianças ainda eram novas e traquinas ocasionalmente as fazia to marem duras reprimendas Quando os filhos cresceram diferenciouse de outros pais por não querer se arvorar em autoridade indiscutível mas por revelar aos fil hos com benévola franqueza os pequenos fracassos e infortúnios de sua vida Certamente o filho não exagerava ao dizer que se relacionavam como dois ótimos amigos exceto num único ponto cf p 43 Deve ter sido por causa dessa única questão que o pensamento da morte do pai ocupou o menino com intensidade in vulgar e indevida cf p22 que pensamentos tais surgiram em suas ideias obses sivas infantis que ele pôde desejar que o pai morresse para que uma determinada moça influenciada pela compaixão se mostrasse mais afetuosa para com ele p 39 Não há dúvida de que no âmbito da sexualidade surgia uma diferença entre pai e filho e que o pai ficara em decidida oposição ao erotismo precocemente despertado no filho Vários anos depois da morte do pai quando experimentou pela primeira vez a sensação prazerosa de um coito veiolhe à mente a seguinte ideia Mas isso é formidável por isso bem se poderia matar o próprio pai Eis simultaneamente um eco e uma explicitação de suas ideias obsessivas infantis Pouco antes de morrer o pai se manifestara diretamente contra a inclinação que depois viria a dominar o paciente Notou que este procurava a companhia daquela mulher e advertiuo contra ela afirmando que isso não era prudente e que ele se exporia ao ridículo 44316 A esses dados se junta outro quando nos voltamos para a história da ativid ade sexual masturbatória do paciente Existe nesse terreno uma oposição entre as opiniões dos médicos e as dos doentes que ainda não foi considerada Esses úl timos se acham de acordo em ver na masturbação por eles entendida como mas turbação na puberdade a origem e fonte primeira de todos os seus males Os médicos em geral não sabem o que dizer a respeito do tema mas influenciados pelo conhecimento de que a maioria dos que depois seriam normais também se masturbou na puberdade tendem a ver como exageradas as afirmações dos pa cientes Acho que também nisso os doentes estão mais próximos da razão do que os médicos eles têm um vislumbre do que sucede enquanto os médicos correm o risco de ignorar algo essencial Certamente não é como creem os doentes que a masturbação quase típica da puberdade seria responsável por todas as perturb ações neuróticas Esta sua tese requer interpretação A masturbação na puberdade não é senão revivescência daquela até agora negligenciada da infância que geralmente alcança uma espécie de clímax na idade de três a quatro ou cinco anos e é a mais nítida expressão da constituição sexual da criança na qual também nós buscamos a etiologia das neuroses posteriores Portanto os doentes culpam dis farçadamente sua própria sexualidade infantil e nisso estão inteiramente certos Por outro lado o problema da masturbação fica insolúvel se a vemos como uma unidade clínica e esquecemos que representa a descarga de componentes sexuais vários e das fantasias por eles alimentadas Apenas num grau mínimo a nocivid ade da masturbação é autônoma ou seja determinada por sua própria natureza Coincide no principal com a significação patogênica da vida sexual O fato de muitos indivíduos tolerarem sem danos a masturbação certa medida dela mostra que neles a constituição sexual e o curso de desenvolvimento da sua vida sexual permitiramlhes exercer esta função nas condições culturais vigentes30 en quanto outros devido a uma constituição sexual desfavorável ou a um distúrbio 45316 no desenvolvimento adoecem por causa de sua sexualidade isto é não con seguem atingir a supressão e sublimação dos componentes sexuais sem que haja inibições e formações substitutivas Nosso paciente teve um comportamento peculiar no que toca a masturbação Não se masturbou durante a puberdade o que de acordo com certas expect ativas poderia deixálo livre de neuroses Mas o impulso à atividade masturb atória surgiu nele aos 21 anos pouco tempo depois da morte do pai Ficava muito envergonhado após satisfazerse assim e logo abandonou essa atividade Desde então se masturbou apenas em ocasiões raras e extraordinárias Ocasiões trazidas por momentos particularmente belos que viveu ou passagens peculiarmente be las que leu Por exemplo quando ouviu no centro da cidade numa bela tarde de verão um postilhão soar maravilhosamente sua corneta até que um guarda o proibiu de fazêlo pois não era permitido tocar dentro da cidade Ou numa outra vez quando leu em Poesia e verdade como o jovem Goethe em apaixonada exaltação libertouse da praga que uma ciumenta lançara sobre a mulher que lhe beijasse os lábios depois dela Por longo tempo ele se deixara conter por essa praga um tanto supersticiosamente mas naquele instante rompeu as cadeias e ap licou vários beijos em seu amor Ele se admirava muito de que fosse impelido a masturbarse precisamente nessas ocasiões belas e enaltecedoras Mas não pude deixar de sublinhar que nesses dois exemplos o que havia em comum era a proibição e o desafio a uma ordem No mesmo contexto se achava sua peculiar conduta no tempo em que estu dava para uma prova e brincava com uma fantasia a que se afeiçoou a de que o pai ainda vivia e podia retornar a qualquer momento Ele arranjou as coisas de modo a estudar na noite avançada Entre meianoite e uma hora fazia uma inter rupção abria a porta que dava para o corredor do edifício como se o pai 46316 estivesse ali esperando e depois de voltar tirava o pênis e o contemplava no es pelho do vestíbulo Esse louco agir tornase compreensível pressupondo que ele se portava como se aguardasse a visita do pai na hora dos fantasmas Quando este vivia ele fora um estudante relapso o que frequentemente aborrecia o pai Agora este devia alegrarse com ele ao retornar como espírito e encontrálo estudando Mas dificilmente o pai se alegraria com a outra parte do seu procedimento assim ele o desafiava e num só ato obsessivo exprimia os dois lados de sua relação com o pai tal como faria depois com a mulher que amava no ato obsessivo da pedra na estrada Com base nesses e em outros indícios semelhantes arrisquei a construção de que quando era criança aos seis anos de idade ele incorrera em alguma má con duta sexual relacionada à masturbação e fora então sensivelmente castigado pelo pai Esse corretivo pusera fim à masturbação mas também deixara um indelével rancor ao pai fixando para sempre o papel deste como estragador do prazer sexu al Cf a conjectura semelhante que fiz numa das primeiras sessões p 43 Para minha surpresa o paciente relatou então que um evento assim ocorrido em sua primeira infância foralhe contado várias vezes pela mãe e evidentemente não caíra no esquecimento porque estava ligado a coisas notáveis Sua própria memória nada guardava a respeito disso Mas a história é a seguinte Quando era bem pequeno a época exata ainda podia ser determinada por coincidir com a da doença fatal de uma irmã mais velha ele deve ter feito algo ruim devido ao qual foi surrado pelo pai Então o meninote se enraiveceu terrivelmente e soltou imprecações até debaixo dos golpes do pai Mas como ainda não sabia xingar aplicara a este os nomes de objetos que lhe ocorriam dizendo Seu lâmpada Seu lenço Seu prato etc O pai assustado com tal explosão elementar parou de golpeálo e afirmou Esse menino será ou um grande homem ou um grande criminoso31 Ele acha que esta cena deixou uma impressão duradoura tanto nele 47316 como no pai Este nunca mais o surrou Mas ele mesmo atribui parte da sua mudança de caráter a essa vivência O medo ante a magnitude de sua raiva o tornou covarde a partir de então Por toda a vida ele teve um medo horrível de golpes e quando um de seus irmãos era surrado ele se escondia cheio de terror e indignação Ao inquirir novamente sua mãe ela lhe disse além de confirmar a história que na época ele tinha três a quatro anos de idade e que merecera o castigo porque havia mordido alguém Mas tampouco a mãe se recordava de mais detal hes Apenas achou um tanto vagamente que a pessoa machucada pelo filho teria sido a babá Não houve menção de um caráter sexual do delito em seu relato32 Remeto a discussão desta cena infantil à nota de rodapé apenas observando aqui que o seu aparecimento abalou pela primeira vez a recusa do paciente em crer que na préhistória de sua vida fora tomado de raiva pelo pai amado que de pois se tornou latente Mas eu havia esperado um efeito mais intenso pois esse episódio lhe fora relatado tantas vezes inclusive pelo pai que sua realidade não estava sujeita a dúvida Com uma capacidade de torcer a lógica que nos doentes obsessivos bem inteligentes nunca deixa de causar espanto prosseguia afirm ando contra o valor de evidência do relato que ele próprio não se lembrava da quilo Então foi somente pela dolorosa via da transferência que ele chegou a convencerse de que sua relação com o pai exigia aquele complemento incon sciente Logo veio a suceder em sonhos devaneios e pensamentos espontâneos que ele xingasse a mim e meus parentes do modo mais grosseiro e vil enquanto me testemunhava sempre um enorme respeito Quando informava sobre tais in sultos seu comportamento era o de um desesperado Como pode o senhor pro fessor admitir que um sujeito sórdido e vadio como eu o insulte O senhor tem que me mandar embora é o mínimo que mereço Ao falar isso ele se erguia do divã e andava pela sala algo que inicialmente justificou pela delicadeza não 48316 conseguia afirmou dizer coisas tão horríveis deitado confortavelmente No ent anto logo ele mesmo encontrou a explicação mais pertinente de que se afastava de minha proximidade por medo de que eu o surrasse Quando ficava sentado portavase como alguém que desesperadamente amedrontado busca protegerse de uma enorme punição levava as mãos à cabeça cobria o rosto com os braços arredavase repentinamente com as feições distorcidas pela dor etc Ele se lem brou de que o pai era de gênio irascível e em seu arrebatamento às vezes não sabia até onde podia chegar Em tal escola do sofrimento adquiriu aos poucos a convicção que lhe faltava que teria sido evidente para qualquer outro não en volvido pessoalmente Mas com isso estava livre o caminho para a solução da ideia que envolvia os ratos Uma pletora de dados até então retidos tornouse ali disponível no auge do tratamento e permitiu o estabelecimento de todo o contexto Ao expôlo vou resumir e abreviar ao máximo como já disse O primeiro en igma era naturalmente por que as duas falas do capitão tcheco a história dos ratos e a exortação para que reembolsasse o primeirotenente A haviamno deix ado tão inquieto e provocado reações patológicas tão veementes Era de supor que aí houvesse sensibilidade de complexoi que pontos hiperestésicos de seu inconsciente fossem asperamente tocados por aqueles dizeres E assim foi Ele se achava como sempre lhe ocorria no exército numa inconsciente identificação com o pai que servira durante muitos anos e contava histórias de seu tempo de soldado Permitiu então o acaso que na formação de sintomas pode ajudar tanto quanto a linguagem na piada que uma das pequenas aventuras do pai tivesse um importante elemento em comum com a solicitação do capitão Certa vez o pai havia perdido algum dinheiro num jogo de cartas era um Spielrattej e estaria em apuros se um camarada não lhe adiantasse a quantia Depois que deixou o ex ército e alcançou prosperidade buscou o colega que o ajudara a fim de lhe 49316 devolver o dinheiro mas não o encontrou O paciente não estava seguro de que a devolução tivesse ocorrido A lembrança desse pecado juvenil do pai lhe era pen osa pois seu inconsciente abrigava hostis objeções ao caráter do pai As palavras do capitão Você tem que restituir 380 coroas ao primeirotenente A pareciamlhe uma alusão à dívida não saldada do pai Mas a informação de que a própria funcionária do correio em Z fizera o ree mbolso com palavras lisonjeiras sobre ele33 fortaleceu a identificação com o pai num outro terreno Ele então acrescentou que no lugarejo onde ficava a agência postal havia uma bela moça filha do estalajadeiro que se mostrara bastante amável com o jovem e garboso oficial de modo que ele podia lá retornar após o fim das manobras e tentar sua sorte com a moça Mas agora ela tinha uma rival na funcionária do correio Tal como seu pai na novela do casamento ele podia hes itar acerca de qual das duas teria sua atenção Notamos agora que sua peculiar in decisão entre partir para Viena ou voltar ao local da agência do correio suas con tínuas tentações de interromper a viagem e retornar cf p 31 não eram tão sem sentido como inicialmente pareceram Em seu pensamento consciente a atração do povoado Z onde se achava a agência do correio era justificada pela necessid ade de cumprir a palavra com ajuda do primeirotenente A Na realidade o ob jeto de sua ânsia era a empregada do correio o primeirotenente era apenas um bom substituto para ela tendo vivido naquele lugar e se ocupado ele mesmo do serviço postal do exército Quando soube que não o primeirotenente A mas outro oficial estivera aquele dia no correio incluiu também este na combinação e pôde repetir nos delírios com os dois oficiais a hesitação entre as duas moças tão gentis para com ele34 Esclarecendo os efeitos que resultaram da história dos ratos contada pelo cap itão precisamos seguir mais de perto o curso da análise Houve inicialmente uma quantidade enorme de material associativo sem que ficasse mais transparente a 50316 situação em que se formara a obsessão A ideia do castigo com ratos havia estim ulado certo número de instintos e despertado uma série de recordações de modo que os ratos no breve intervalo entre a história do capitão e a advertência deste para que ele restituísse o dinheiro adquiriram vários significados simbólicos aos quais se juntaram ainda outros no período subsequente O relato que posso fazer de tudo isso é necessariamente incompleto O castigo dos ratos mexeu sobretudo com o erotismo anal que tivera um grande papel na sua infância favorecido durante anos pela presença de vermes intestinais Assim os ratos vieram a signi ficar dinheiro35 nexo que ele mostrou na associação de Raten prestações com Ratten ratos Em seus delírios obsessivos ele havia criado uma verdadeira moeda de rato Por exemplo quando me perguntou e eu lhe informei o custo de uma sessão de tratamento isto significou para ele como me disse seis meses depois tantos florins tantos ratos Gradualmente ele transpôs para essa lin guagem todo o complexo dos interesses financeiros ligados à herança do pai isto é todas as ideias a isso relacionadas foram inscritas no âmbito obsessivok através da ponte verbal RatenRatten e submetidas ao inconsciente Além disso esta sig nificação monetária dos ratos apoiavase na advertência do capitão para que ele restituísse o dinheiro da encomenda com a ajuda da ponte verbal Spielratte que remetia ao fracasso do pai no jogo Mas ele também conhecia os ratos como transmissores de infecções perigosas e podia vêlos como símbolos do medo da infecção sifilítica tão justificado no ex ército medo que envolvia toda espécie de dúvidas sobre o modo de vida de seu pai durante o serviço militar Em outro sentido o pênis mesmo era transmis sor da sífilis de forma que o rato se tornava um membro sexual e por outro título podia também ser visto como tal O pênis em especial o do bebê pode ser comparado a um verme e na história do capitão os ratos se revolviam no ânus de alguém tal como as lombrigas quando ele era pequeno Assim o significado de 51316 pênis assumido pelos ratos baseavase igualmente no erotismo oral O rato é além disso um animal sujo que se alimenta de excrementos e vive em esgotos36 Não é preciso dizer como o delírio dos ratos pôde se ampliar em virtude dessa nova significação Tantos ratos tantos florins por exemplo podia ser a ca racterização exata de uma profissão feminina que ele odiava Por outro lado não é irrelevante que a substituição do pênis pelo rato na história do capitão resul tasse numa situação de coito per anum que devia ser especialmente revoltante para o paciente quando relacionada ao pai e à mulher que amava Tornando a aparecer na ameaça obsessiva que nele se formou após a advertência do capitão p 29 esta situação lembrava inequivocamente certas imprecações usadas pelos eslavos do Sul que podem ser lidas na revista editada por F S Krauss Anthropo phyteia n 2 1905 pp 421ss Todo esse material e ainda mais inseriase na trama da discussão sobre os ratos por trás da associação encobridora A história do suplício com ratos incitou no paciente todos os impulsos de crueldade egoísta e sexual prematuramente suprimidos como foi mostrado por seu próprio relato e por seus gestos e expressões ao fazêlo Apesar de todo esse rico material no entanto o significado de sua ideia obsessiva permaneceu ob scuro até que surgiu numa sessão a Senhora dos Ratos de O pequeno Eyolf de Ib sen e tornou inevitável a conclusão de que em muitas formas de seu delírio ob sessivo os ratos também significavam crianças37 Investigando a origem desse novo significado logo deparamos com raízes bem antigas e relevantes Certa vez numa visita ao túmulo do pai ele vira um animal que acreditou ser um rato pas sando rapidamente38 Imaginou que ele estivesse saindo do túmulo do pai tendo acabado de fazer uma refeição em seu cadáver É inseparável da ideia que temos do rato o fato de que ele rói e morde com seus dentes afiados39 Mas o rato não é mordaz voraz e sujo impunemente como o paciente constatara horrorizado ele é cruelmente perseguido e implacavelmente liquidado Com frequência tivera 52316 compaixão desses pobres ratos E ele próprio fora um ser assim asqueroso sujo pequeno que enraivecido podia morder e fora terrivelmente castigado por isso cf p 68 Ele realmente podia ver no rato sua imagem viva40 É como se o destino lhe lançasse na história do capitão uma palavraestímulo de complexo cf nota à tradução p 72 e ele não deixou de reagir a ela com a ideia obsessiva Ratos eram crianças portanto conforme suas experiências mais antigas e mo mentosas Nesse ponto ele trouxe uma informação que por algum tempo deixara de lado mas que agora esclarecia o interesse que nutria por crianças A mulher que ele adorava havia anos e que não pudera se decidir a esposar estava con denada a não ter filhos devido a uma operação ginecológica a remoção dos ovários Para ele que gostava muito de crianças esse era mesmo o principal motivo da hesitação Só então foi possível entender o inexplicável processo ocorrido na formação de sua ideia obsessiva com a ajuda das teorias sexuais infantis e do simbolismo que se conhece a partir da interpretação de sonhos tudo pôde ser traduzido signi ficativamente Quando o capitão falou do suplício com os ratos na tarde em que desapareceu o pincenê o paciente ficou impressionado apenas com a natureza cruel e lasciva da situação narrada Mas logo se estabeleceu o vínculo com a cena infantil em que ele mesmo havia dado mordidas O capitão que era capaz de de fender castigos assim tomou para ele o lugar do pai e atraiu para si uma parte da animosidade que irrompera contra o pai e que então retornava A ideia que rapi damente lhe passou na cabeça de que algo assim poderia suceder a alguém de que gostava seria traduzida num desejo como Deviam fazer assim com você dirigido ao narrador do suplício mas através dele ao pai Quando um dia e meio depois41 o capitão lhe entrega o pacote enviado por reembolso dizendolhe que restitua as 380 coroas ao primeirotenente A ele já sabe que o cruel superi or se engana e que apenas à funcionária do correio deve alguma coisa Poderia 53316 facilmente dar uma resposta zombeteira como Será que eu pago mesmo ou Ora bolas ou Aqui que eu pagarei respostas que ele não se sentiria obri gado a dar Mas a partir do complexo paterno entrementes excitado e da lem brança daquela cena infantil formouse nele esta resposta Sim pagarei o din heiro a A quando meu pai e minha amada tiverem filhos ou É tão certo que lhe pagarei o dinheiro quanto meu pai e ela poderem ter filhos Ou seja uma afirmação derrisória ligada a uma condição absurda irrealizável42 Mas o delito fora cometido as duas pessoas que lhe eram mais caras o pai e a amada foram insultadas Isso requeria punição a qual consistiu na autoimposição de um jura mento impossível de ser cumprido que implicava a obediência literal à admoes tação do superior Agora você tem realmente que pagar o dinheiro a A Em sua convulsiva obediência ele reprimiu o conhecimento de que o capitão baseava sua advertência num pressuposto errado Sim você tem que restituir o dinheiro a A como exige o representante do pai O pai não erra Também Sua Majestade não erra e quando se dirige a um súdito com um título inadequado ele passa a usar esse título Apenas uma vaga notícia desses eventos chega à consciência dele mas a re volta contra a ordem do capitão e a mudança para o oposto se acham representa das na consciência Primeiro não restituir o dinheiro senão acontece o o cas tigo com os ratos e depois a transformação no juramento oposto como castigo pela revolta Tenhamos presente a constelação dentro da qual se formou a grande ideia ob sessiva A longa abstinência juntamente com a amável acolhida que um jovem oficial sempre pode esperar das mulheres tornouo mais libidinoso e além disso ele se achava algo distanciado de sua dama quando partiu para as mano bras Esta intensificação da libido o predispôs a retomar a antiga luta contra a autoridade do pai e ele sentiuse confiante para pensar em satisfação sexual com 54316 outras mulheres Haviam aumentado as dúvidas quanto ao falecido pai e as incer tezas quanto ao valor da amada Nesse estado de ânimo deixouse levar ao denegrecimento dos dois e então puniu a si mesmo por isso Dessa maneira repe tiu um velho modelo Quando ao fim das manobras hesitou bastante em ir para Viena ou ficar e cumprir o juramento representou de uma só vez os dois confli tos que desde sempre o agitavam se devia obedecer ao pai ou permanecer leal à amada43 Ainda uma palavra sobre a interpretação do conteúdo da sanção de outro modo o suplício dos ratos será realizado nas duas pessoas Ela se baseia na in fluência de duas teorias sexuais infantis que abordei em outro lugar44 A primeira diz que os bebês saem do ânus a segunda acrescenta logicamente a possibilidade de que também os homens sejam capazes de ter filhos Pelas regras técnicas da in terpretação de sonhos sair do reto pode ser representado pelo seu oposto penetrar no reto como no suplício dos ratos e viceversa Não é lícito esperar que ideias obsessivas tão graves sejam solucionadas de modo mais simples ou por outros meios Com a solução que obtivemos acabou o delírio dos ratos II CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS 55316 a algumas características gerais das formações obsessivas45 A definição que em 1896 ofereci das ideias obsessivas que seriam recriminações transformadas que retornam da repressão sempre ligadas a uma ação de natureza sexual realizada com prazer na infância46 pareceme hoje discutível quanto à forma apesar de composta de elementos precisos Ela tendia demasiadamente à unificação e tomava por modelo o procedimento dos próprios doentes obsess ivos que com seu característico pendor à incerteza reúnem sob o nome de idei as obsessivas as formações psíquicas mais diversas47 Na realidade é mais cor reto falar de pensamento obsessivo e enfatizar que as construções obsessivas podem equivaler aos mais diferentes atos psíquicos Podem ser definidas como desejos tentações impulsos reflexões dúvidas ordens e proibições Em geral os doentes procuram atenuar essas distinções e apresentar como ideia obsessiva o conteúdo despojado de seu registro de afeto Um exemplo desse modo de tratar um desejo que seria rebaixado a mera ligação de pensamentos foi dado pelo paciente numa das primeiras sessões p 39 É preciso também admitir que até agora nem sequer a fenomenologia do pensamento obsessivo foi devidamente apreciada Na luta defensiva secundária que o enfermo desenvolve contra as ideias obsessivas que lhe penetram a consciência produzemse formações que são dignas de uma denominação espe cial Tais por exemplo foram as séries de pensamentos que ocuparam o nosso paciente durante seu retorno das manobras Não foram considerações puramente razoáveis que ele opôs aos pensamentos obsessivos mas como que híbridos dos dois tipos de pensamento aceitam determinadas premissas da obsessão que com batem e situamse com os meios da razão no terreno do pensar doentio Acho que tais formações merecem o nome de delírios Um exemplo que pode ser in cluído no local apropriado da história clínica tornará clara a diferença Quando o 56316 paciente no tempo em que se preparava para um exame entregouse à doida conduta acima descrita de estudar até altas horas depois abrir a porta para o es pírito do pai e depois olhar os próprios genitais no espelho p 67 buscou voltar a si perguntandose o que diria o pai sobre aquilo caso ainda fosse vivo Mas esse argumento não teve sucesso enquanto foi colocado dessa forma razoável O es pectro desapareceu apenas quando ele expressou a mesma ideia na forma de uma ameaça delirante se repetisse aquele absurdo o pai sofreria um infortúnio no Além A distinção entre luta defensiva primária e secundária certamente se justifica mas seu valor é inesperadamente limitado pelo conhecimento de que os doentes ignoram o teor de suas próprias ideias obsessivas Soa paradoxal mas tem sentido Pois no decorrer de uma psicanálise cresce não apenas a coragem do enfermo mas também digamos a de sua enfermidade ela ousa manifestarse mais clara mente Abandonando essa imagem é como se o doente que até então evitou hor rorizado a percepção de suas produções patológicas começasse a lhes dar atenção e delas se inteirasse mais clara e detalhadamente48 Além disso chegase a um conhecimento mais apurado das formações obses sivas por dois caminhos especiais Primeiro notase que os sonhos podem ofere cer o texto genuíno de um comando obsessivo etc que na vigília tornouse con hecido apenas de forma mutilada e deslocada como num telegrama truncado Esses textos surgem no sonho como falas contrariando a regra de que as falas no sonho vêm de falas diurnas49 Segundo no acompanhamento analítico de um caso clínico adquirese a convicção de que frequentemente ideias obsessivas con secutivas são no fundo a mesma embora o seu teor não seja idêntico A ideia ob sessiva foi rejeitada com sucesso na primeira vez mas volta deformada não é re conhecida e talvez justamente por sua deformação pode afirmarse melhor na luta defensiva Mas a forma original é a correta que não raro deixa perceber 57316 abertamente o seu sentido Tendo elucidado trabalhosamente uma ideia obsessiva ininteligível às vezes escutamos do paciente que uma ideia súbita um desejo ou uma tentação como a que construímos realmente surgiu antes da ideia obsessiva mas não permaneceu Exigiria muitos detalhes infelizmente dar exemplos disso na história do paciente Portanto o que oficialmente chamamos ideia obsessiva carrega em sua de formação relativamente ao teor original os traços da luta defensiva primária Sua deformação a torna viável pois o pensamento consciente é obrigado a entendêla mal como ao conteúdo onírico que é ele mesmo um produto de compromisso e deformação e é também malentendido pelo pensamento desperto A má compreensão por parte do pensamento consciente pode ser constatada não só no tocante às ideias obsessivas mesmas mas também no que se refere aos produtos da luta defensiva secundária como as fórmulas protetoras Posso dar dois bons exemplos disso O paciente utilizava como fórmula defensiva um aber mas em alemão falado rapidamente acompanhado de um gesto de repulsa com a mão p 28 Um dia ele contou que nos últimos tempos essa fórmula se modificara ele não dizia mais áber a pronúncia normal em alemão mas abér Perguntado pelo motivo dessa transformação disse que o e mudo da segunda sílaba não lhe dava segurança em face da intromissão que temia de algo difer ente e contrário e por isso resolvera acentuar o e Tal explicação bem no estilo da neurose obsessiva mostrouse claramente inadequada quando muito podia reivindicar o valor de racionalização Na realidade o abér era uma aproximação de Abwehr defesa termo que ele conhecia das conversas teóricas sobre a psic análise Portanto a terapia foi utilizada de modo abusivo e delirante para reforçar uma fórmula de defesa Em outra ocasião ele falou de sua principal palavra má gica para todas as tentações que formou com as iniciais das orações mais eficazes dotandoas de um Amen no final Não posso transcrever aqui a palavra por 58316 motivos que já se evidenciam Quando a ouvi não pude deixar de perceber que se tratava de um anagrama da mulher que ele adorava nesse nome havia um s que ele colocara no fim logo antes do Amen acrescentado Ele havia então podemos dizer juntado seu sêmen Samen em alemão com a amada isto é se masturbado com ela na imaginação Mas ele próprio não notara essa evidente re lação a defesa se deixara enganar pelo reprimido Aliás um bom exemplo da tese de que com o tempo aquilo de que a pessoa se defende penetra naquilo mediante o qual ela se defende Se afirmo que os pensamentos obsessivos experimentaram deformação semel hante à dos pensamentos oníricos antes de se tornarem conteúdo onírico pode nos interessar a técnica dessa deformação e nada nos impediria de apresentar seus diferentes meios numa série de ideias obsessivas traduzidas e compreendid as Mas também aqui as condições para a publicação deste caso me impedem de fornecer mais que algumas amostras Nem todas as ideias obsessivas do paciente eram de textura tão complexa e deslindamento tão difícil como a dos ratos Em algumas outras foi usada uma técnica bem simples a da deformação por omissão elipse que acha excelente aplicação nas piadas mas que neste caso também agiu como meio de proteção contra o entendimento Por exemplo uma de suas ideias obsessivas prediletas e mais antigas equival ente a um aviso ou admoestação dizia Se eu me caso com essa mulher acontece uma desgraça a meu pai no além Inserindo os elos intermediários omitidos que conhecemos pela análise o curso de pensamento é Se meu pai estivesse vivo ficaria tão aborrecido com meu projeto de esposar essa mulher quanto ficou então naquele episódio de minha infância de modo que eu teria novamente raiva dele e lhe desejaria tudo de mau o que fatalmente sucederia a ele em virtude da onipotência50 de meus desejos 59316 Eis outro caso de solução por elipse de igual modo uma advertência ou uma proibição ascética Ele tinha uma encantadora sobrinha pequena de quem muito gostava Um dia veiolhe o pensamento Se você se permitir um coito acontecerá a Ella uma desgraça a morte Incluindo o que foi deixado de fora Em todo co ito também com uma desconhecida você não pode esquecer que a relação sexual no seu casamento jamais resultará num filho a esterilidade de sua amada Isso lhe fará tão mau que você terá inveja de sua irmã pela pequena Ella e tais senti mentos de inveja ocasionarão a morte da garota51 A técnica de deformação elíptica parece ser típica da neurose obsessiva já a encontrei também nos pensamentos obsessivos de outros pacientes Particular mente claro e interessante devido a alguma semelhança com a estrutura da ideia do suplício com ratos foi o caso de dúvida numa senhora que sofria principal mente de atos obsessivos Ela saiu para passear com o marido em Nuremberg e entraram numa loja onde comprou vários objetos para a filha entre eles um pente O marido para quem as compras demoravam muito disse ter enxergado na vitrine de um antiquário umas moedas que desejava adquirir e que a buscaria naquela loja em seguida Mas ele se ausentou por tempo demais segundo a estim ativa dela Ao voltar respondeu perguntado onde estivera No antiquário ora ao que ela no mesmo instante foi tomada pela dúvida atroz de que há muito tempo já tivesse o pente que comprara para a filha Naturalmente não soube descobrir a conexão simples envolvida Não podemos senão explicar a dúvida como tendo sido deslocada e construir o pensamento inconsciente incom pleto da seguinte maneira Se é verdade que você estava no antiquário se devo acreditar nisso então posso também acreditar que há anos tenho esse pente que acabo de comprar Ou seja uma equiparação irônica e derrisória similar ao pensamento de nosso paciente Sim tão certo como os dois seu pai e sua amada terão filhos restituirei o dinheiro a A No caso da senhora a dúvida 60316 relacionavase ao inconsciente ciúme que a fazia supor que o marido aproveitara o intervalo para uma visita galante Não procurarei aqui fazer uma apreciação psicológica do pensamento ob sessivo Ela traria resultados bastante valiosos e contribuiria mais para esclarecer nossas percepções sobre a natureza do consciente e do inconsciente que o estudo da histeria e dos fenômenos da hipnose Seria desejável que os filósofos e psicólo gos que produzem teorias engenhosas sobre o inconsciente a partir do que ouvem dizer ou de suas próprias definições convencionais adquirissem antes as impressões decisivas que podemos obter dos fenômenos do pensamento obsess ivo quase que exigiríamos tal coisa deles se não fosse tão mais laboriosa do que os métodos de trabalho com que estão familiarizados Aqui apenas direi que na neurose obsessiva ocasionalmente os processos psíquicos inconscientes ir rompem na consciência da forma mais pura e menos desfigurada que tal irrupção pode ocorrer desde qualquer estágio do processo inconsciente de pensamento e que as ideias obsessivas no instante da irrupção geralmente podem ser recon hecidas como formações há muito existentes Daí o notável fenômeno de que quando se busca com o neurótico obsessivo a primeira aparição de uma ideia ob sessiva ele tem de recuála sempre mais no decorrer da análise sempre achando novos primeiros ensejos para ela b algumas peculiaridades psíquicas dos neuróticos obsessivos sua relação com a realidade a superstição e a morte Tratarei aqui de algumas características psíquicas dos neuróticos obsessivos que não parecem importantes em si mas achamse no caminho para a compreensão do que é mais importante Elas eram bem prenunciadas em meu paciente mas sei 61316 que não devem ser atribuídas à sua individualidade e sim ao seu distúrbio e que são encontradas tipicamente em outros neuróticos obsessivos O paciente era supersticioso em alto grau embora fosse um homem esclarecido de elevada instrução e viva perspicácia que de vez em quando me assegurava não crer naquelas bobagens Portanto ele era e ao mesmo tempo não era supersticioso distinguindose claramente dos supersticiosos incultos que se acham em harmonia com suas crenças Ele parecia compreender que a superstici osidade dependia de seu pensamento obsessivo embora às vezes se entregasse in teiramente a ela Uma conduta assim contraditória e oscilante pode ser entendida mais facilmente à luz de uma determinada hipótese explicativa Não hesitei em supor que ante essas coisas ele possuía duas convicções diferentes e opostas e não uma opinião ainda a ser formada Entre as duas convicções ele oscilava em óbvia dependência de sua atitude momentânea para com a neurose obsessiva Tão logo superava uma obsessão ria de sua credulidade com superior entendimento e nada acontecia que o pudesse abalar e tão logo se encontrava novamente sob o domínio de uma obsessão não resolvida ou o que a isso equivale de uma resistência sucediamlhe os mais estranhos acasos vindo em auxílio de sua crédula convicção Sua superstição era a de um homem culto prescindia de vulgaridades como o temor da sextafeira do número 13 etc Mas ele acreditava em premonições e sonhos proféticos sempre topava com pessoas nas quais inexplicavelmente tinha pensado pouco antes e recebia cartas de correspondentes que após longos intervalos subitamente lhe haviam retornado à lembrança Ao mesmo tempo era bastante probo ou bastante fiel à sua convicção oficial para não esquecer casos em que os mais fortes pressentimentosl haviam resultado em nada por exemplo certa vez em que indo para uma estação de veraneio teve o claro pressentimento 62316 de que não retornaria vivo a Viena Também admitiu que a grande maioria dos presságios dizia respeito a coisas sem importância maior para ele e que ao de parar com alguém de que há muito não se lembrava até alguns momentos antes nada mais ocorria entre ele e a pessoa que milagrosamente reaparecera E natur almente não podia questionar que tudo importante em sua vida ocorrera sem nenhum aviso fora surpreendido totalmente pela morte do pai por exemplo Mas esses argumentos não afetavam a discrepância que havia em suas convicções apenas atestavam o caráter obsessivo de sua supersticiosidade que já podíamos inferir das oscilações desta que acompanhavam a resistência Claro que eu não estava em condição de explicar racionalmente todas as histórias miraculosas de seu passado mas pude lhe provar quanto às coisas desse tipo que sucederam durante o tratamento que ele mesmo participava da fab ricação dos milagres e quais meios utilizava para isso Recorria à visão e leitura indiretam ao esquecimento e sobretudo a equívocos de memória No final ajudoume a descobrir até os pequenos truques mediante os quais eram feitos aqueles prodígios Uma interessante raiz infantil de sua crença na realização de presságios e profecias mostrouse na lembrança de que frequentemente quando se marcava um compromisso sua mãe dizia Não posso nesse dia terei que ficar de cama E realmente ela ficava de cama naquele dia Sem dúvida para ele era necessário encontrar nas vivências esses pontos de apoio para sua supersticiosidade e por isso tanto observava os conhecidos e inex plicáveis acasos da vida cotidiana ajudandoos com atividade inconsciente quando não bastavam Deparei com tal necessidade em muitos outros neuróticos obsessivos e suponho que se ache em muitos mais Pareceme perfeitamente ex plicável a partir do caráter psicológico da neurose obsessiva Como expus acima p 58 nesse distúrbio a repressão não se dá mediante a amnésia mas pela rup tura dos nexos causais decorrente da subtração do afeto Uma certa energia 63316 evocadora que em outro lugar comparei a uma percepção endopsíquica52 parece subsistir nesses nexos reprimidos de modo que são introduzidos no mundo externo pela via da projeção lá dando testemunho do que foi omitido na psique Outra necessidade psíquica comum aos neuróticos obsessivos que tem certo parentesco com a recémmencionada e cuja investigação nos leva mais fundo na pesquisa dos instintos é a necessidade de incerteza na vida de dúvida A produção da incerteza é um dos métodos que a neurose utiliza para afastar o doente da real idade e tirálo do mundo o que por certo é tendência de qualquer distúrbio psiconeurótico Mais uma vez é bastante claro quanto os doentes se esforçam para fugir a uma certeza e permanecer numa dúvida Em alguns essa tendência chega a exprimirse vivamente na aversão a relógios que dão certeza quanto à hora do dia e nos artifícios inconscientes que empregam para tornar inofensivos os in strumentos que eliminam a dúvida O paciente desenvolvera uma habilidade es pecial em evitar informações que lhe fossem úteis para tomar decisão em seu con flito Assim no tocante à sua amada ignorava coisas decisivas para o matrimônio dizia não saber quem realizara a cirurgia e se fora retirado um ou ambos os ovários Foi levado a recordar o esquecido e verificar o negligenciado A predileção que têm os neuróticos obsessivos pela incerteza e a dúvida tornase um motivo para que voltem seus pensamentos sobretudo para os temas em que a incerteza é humanamente universal em que nosso saber ou nosso juízo está necessariamente exposto à dúvida Esses temas são antes de tudo a pa ternidade a duração da vida a vida alémtúmulo e a memória na qual costum amos crer sem a menor garantia de que seja confiável53 A neurose obsessiva utilizase prodigamente da incerteza da memória para a formação de sintomas e logo veremos que papel têm a duração da vida e o além 64316 túmulo no pensamento dos doentes Mas antes me parece oportuno discutir um traço de supersticiosidade do paciente que já mencionei p 89 algumas páginas acima que certamente terá surpreendido alguns leitores Refirome à onipotência que ele atribuiu a seus pensamentos e sentimentos a seus bons e maus desejos É tentador explicar essa ideia como um delírio que ul trapassa o âmbito da neurose obsessiva mas encontrei a mesma convicção num outro obsessivo que há muito se acha recuperado e leva uma vida normal e de fato todos os neuróticos obsessivos agem como se partilhassem tal convicção É tarefa nossa esclarecer essa superestimação De imediato supomos que nesta crença há uma sincera admissão da velha mania infantil de grandeza e pergun tamos ao paciente em que apoia ele sua convicção Como resposta ele traz duas vivências Na segunda vez em que foi para o estabelecimento hidroterápico no qual tivera o primeiro e único alívio para seu mal solicitou o mesmo quarto que por sua localização facilitara o relacionamento com uma das enfermeiras Responderamlhe que o quarto não estava disponível um velho professor o havia tomado e a essa notícia que diminuía bastante suas perspectivas de cura ele reagiu com palavras hostis Que ele tenha um ataque por isso Duas sem anas depois acordou com a perturbadora imagem de um cadáver e de manhã soube que o professor realmente tivera um ataque e que fora levado para o quarto aproximadamente no instante em que ele próprio acordava A outra vivência diz ia respeito a uma moça mais velha ainda solteira e bastante carente de amor que se mostrava muito receptiva a ele e perguntoulhe diretamente certa vez se não poderia amála Ele deu uma resposta esquiva alguns dias depois soube que ela havia se lançado de uma janela Então se recriminou dizendo que estivera em seu poder mantêla viva se lhe tivesse dado seu amor Desse modo chegou a convencerse da onipotência de seu amor e de seu ódio Sem querer negar a oni potência do amor sublinhemos que os dois casos tratam da morte e adotemos a 65316 explicação para nós natural de que o paciente como outros neuróticos obsess ivos é obrigado a superestimar o efeito dos seus sentimentos hostis sobre o mundo exterior pois escapa ao seu conhecimento consciente boa parte do efeito interior psíquico desses sentimentos Seu amor ou antes seu ódio é mesmo muito poderoso cria justamente os pensamentos obsessivos cuja origem ele não entende e contra os quais ele se defende em vão54 O paciente nutria uma relação muito especial com o tema da morte Demon strava condolência em todos os casos de morte e participava piedosamente dos funerais de forma que seus irmãos zombavam dele chamandoo de pássaro agourento Também na imaginação ele matava pessoas continuamente para exprimir seus pêsames aos sobreviventes A morte de uma irmã mais velha quando ele tinha três ou quatro anos desempenhava grande papel em suas fantas ias e foi posta em íntima relação com seus maus procedimentos daquela época Sabemos além disso como o pensamento da morte do pai ocupara bem cedo a sua mente e podemos ver seu próprio adoecimento como reação a esse evento desejado obsessivamente quinze anos antes A singular extensão dos temores ob sessivos ao além não é mais que uma compensação pelos desejos de morte em relação ao pai Ela ocorreu quando o luto pelo falecido pai teve uma recrudescên cia um ano e meio depois e deveria a contrapelo da realidade e em atenção a um desejo que antes se insinuara em todo tipo de fantasias anular a morte do pain Em vários lugares pp 85 88 aprendemos a traduzir a expressão no além por se o pai ainda vivesse Mas outros neuróticos obsessivos aos quais o destino não apresentou o fenô meno da morte em idade tão tenra não se conduzem de maneira muito diferente Preocupamse bastante com a duração da vida e a possibilidade da morte de 66316 outros suas tendências supersticiosas não tinham inicialmente outro conteúdo e talvez não tenham outra origem Mas requerem a possibilidade da morte sobre tudo para resolver os conflitos que deixaram sem solução Sua característica es sencial é serem incapazes de decisão especialmente em questões de amor pro curam adiar toda decisão e na dúvida de por qual pessoa ou por qual medida contra uma pessoa devem decidir têm seu modelo nos velhos tribunais alemães cujos processos geralmente terminavam com a morte das partes em litígio antes da sentença do juiz Assim em todo conflito de sua vida eles espreitam a morte de uma pessoa importante para eles normalmente uma pessoa amada seja um dos pais seja um competidor ou um dos objetos de amor entre os quais hesita sua inclinação Mas com esta apreciação do complexo de morte na neurose obsessiva já tocamos na vida instintual dos neuróticos obsessivos para a qual nos voltare mos agora c a vida instintual e as origens da compulsão e da dúvida Se quisermos conhecer as forças psíquicas cuja interação fabricou essa neurose teremos de remontar ao que ouvimos do paciente sobre as causas imediatas de sua doença na idade adulta e na infância Ele adoeceu aos vinte e poucos anos quando se viu frente à tentação de casar com outra moça que não aquela que havia muito amava e furtouse à resolução desse conflito adiando todas as ações preliminares requeridas algo para o qual a neurose lhe forneceu os meios A os cilação entre a amada e a outra pode ser reduzida ao conflito entre a influência do pai e o amor àquela mulher ou seja a uma escolha conflituosa entre pai e objeto sexual tal como já existia nos primeiros anos da infância de acordo com as lem branças e ideias obsessivas Além do mais é claro que em toda a sua vida tanto relativamente ao pai como à mulher que amava existia nele um conflito entre 67316 amor e ódio Fantasias de vingança e manifestações obsessivas como a obsessão de compreender ou a reposição da pedra no caminho mostram essa divisão den tro dele algo compreensível até certo ponto pois aquela mulher com a recusa inicial e depois com a frieza havia lhe dado motivo para sentimentos hostis Mas a mesma desunião de sentimentos dominava sua relação com o pai como vimos ao traduzir seus pensamentos obsessivos e o pai também deve ter lhe dado motivo para hostilidade na infância como pudemos verificar com certeza quase total Sua atitude com a mulher que amava composta de ternura e hostilidade es tava em boa parte dentro de sua percepção consciente Ele se enganava no máx imo quanto à medida e à expressão do sentimento negativo já a hostilidade com o pai que um dia fora vivamente consciente há muito se retraíra e apenas super ando as mais fortes resistências pôde ser trazida de volta à consciência Na repressão do ódio infantil ao pai enxergamos o evento que impeliu tudo o que su cedeu depois para o âmbito da neurose Os conflitos de sentimento que apresentamos separadamente não independem uns dos outros são unidos em pares O ódio tinha que ligarse à afeição ao pai e viceversa Mas as duas correntes de conflito que resultam dessa simplificação a oposição entre o pai e a amada e a contradição de amor e ódio em cada relação nada têm a ver entre si seja no conteúdo ou na gênese O primeiro dos dois con flitos corresponde à hesitação normal entre homem e mulher como objeto da escolha amorosa que inicialmente é sugerida à criança com a famosa pergunta Você gosta mais de quem do papai ou da mamãe e que vem a acompanhála por toda a vida não obstante as diferenças na formação das intensidades afetivas e na fixação das metas sexuais definitivas Mas normalmente essa oposição logo perde o caráter de contradição aguda de um inexorável ou isso ou aquilo cria se espaço para as reivindicações desiguais de ambas as partes apesar de também 68316 no indivíduo normal a valorização de um sexo implicar sempre a desvalorização do outro Mais estranho nos parece o outro conflito aquele entre amor e ódio Sabemos que a paixão incipiente é não raro percebida como ódio e que o amor ao qual é negada satisfação tornase facilmente ódio em parte e os poetas nos dizem que em estágios tempestuosos da paixão os dois sentimentos contrários podem existir lado a lado por algum tempo como que competindo Mas a coexistência crônica de amor e ódio à mesma pessoa os dois sentimentos com a máxima intensidade é algo que nos espanta Esperaríamos que o grande amor tivesse há muito superado o ódio ou sido por ele consumido De fato tal persistência dos contrários é pos sível apenas em condições psicológicas especiais e pela colaboração do estado in consciente O amor não pôde extinguir o ódio apenas empurrálo para o incon sciente e ali este pode conservarse e até crescer protegido da ação eliminadora da consciência Em tais circunstâncias o amor consciente costuma atingir de maneira reativa um grau de intensidade bastante elevado para poder realizar a constante tarefa que lhe cabe a de manter reprimido o seu oponente Uma sep aração desses opostos ocorrida bem cedo nos anos préhistóricos da infância com repressão de uma das partes geralmente o ódio parece ser a condição para esta surpreendente constelação da vida amorosa55 Se consideramos um bom número de análises de neuróticos obsessivos não podemos nos furtar à impressão de que essa atitude de amor e ódio do paciente está entre as características mais frequentes mais marcantes e portanto provavelmente mais significativas da neurose obsessiva No entanto embora seja tentador ligar o problema da escolha da neurose à vida instintual há motivos suficientes para fugir a essa tentação e é preciso dizer que em todas as neuroses descobrimos na base dos sintomas os mesmos instintos suprimidos O ódio retido pelo amor com a supressão no inconsciente também tem um grande papel 69316 na patogênese da histeria e da paranoia Conhecemos muito pouco a natureza do amor para poder chegar aqui a uma conclusão definida sobretudo a relação de seu fator negativo56 com o componente sádico da libido permanece obscura Port anto tem apenas o valor de uma explicação provisória se afirmamos que nos casos discutidos de ódio inconsciente o componente sádico do amor desenvolveuse constitucionalmente de forma bastante acentuada daí experi mentando uma supressão prematura e demasiado radical e os fenômenos neuróticos observados derivam por um lado da ternura consciente elevada ao máximo pela reação e por outro lado do sadismo que prossegue atuando como ódio no inconsciente Mas como quer que se entenda essa notável relação de amor e ódio a obser vação feita em nosso paciente não deixa dúvidas quanto à sua ocorrência e é gratificante ver como os enigmáticos processos da neurose obsessiva tornamse compreensíveis quando referidos a esse fator Se a um amor intenso contrapõese indissoluvelmente um ódio quase tão forte o resultado imediato é uma parcial paralisia da vontade uma incapacidade de decisão em todos os atos nos quais o amor é o motivo impulsor Mas a indecisão não fica limitada por muito tempo a um só grupo de ações Pois em primeiro lugar que atos de uma pessoa que ama não estariam em relação com seu motivo principal Em segundo lugar a conduta no âmbito sexual tem a força de um modelo agindo conformadoramente sobre as demais reações de uma pessoa e em terceiro é característica psicológica da neurose obsessiva fazer amplo uso do mecanismo do deslocamento Assim a paralisia da decisão se estende gradualmente por toda a atividade da pessoa57 Com isso há o domínio da obsessão e da dúvida tal como encontramos na vida psíquica dos neuróticos obsessivos A dúvida corresponde à percepção interna da irresolução que devido à inibição do amor pelo ódio assenhoreiase do doente em cada ação pretendida É na realidade uma dúvida quanto ao amor que 70316 subjetivamente deveria ser a coisa mais certa dúvida que se alastra por todo o resto e que se desloca preferentemente para o que é menor e mais insignificante Quem duvida de seu próprio amor não pode não deve duvidar de tudo o mais de tudo pequeno58 A mesma dúvida que nas medidas protetoras leva à incerteza e à contínua re petição para banir tal incerteza acaba por fazer com que essas ações protetoras tornemse inexequíveis como a inibida decisão original quanto ao amor No iní cio de minhas investigações tive de supor uma procedência mais geral para a in certeza dos neuróticos obsessivos que parecia avizinharse mais da norma Se fui distraído por perguntas de outra pessoa ao redigir uma carta por exemplo sinto depois uma justificada incerteza quanto ao que escrevi e vejome obrigado a rel er a carta depois de pronta para certificarme dela Assim também pude achar que a incerteza dos neuróticos obsessivos nas suas orações por exemplo vem de que fantasias inconscientes não cessam de interferir e perturbar o ato da oração Esta suposição era correta mas não é difícil conciliála com nossa afirmação an terior É certo que a insegurança quanto a haver tomado uma medida protetora vem do efeito perturbador das fantasias inconscientes mas o teor dessas fantasias é justamente o impulso contrário que deveria ser afastado pela oração Uma vez isso ficou bastante claro em nosso paciente já que a perturbação não permaneceu inconsciente mas fezse ouvir em voz alta Durante a reza quando ele quis dizer Deus a proteja interpôsse bruscamente um não hostil vindo do incon sciente e ele se deu conta de que estava para pronunciar uma maldição p 55 Não aparecendo o não ele se via em estado de incerteza e prolongava a oração falandoo ele finalmente parava de rezar Antes de fazer isso experimentava como outros neuróticos obsessivos todo tipo de método para impedir a intromis são do contrário como o abreviamento da oração ou a aceleração do ritmo em que a falava outros se empenham em isolar das demais cada uma dessas ações 71316 protetoras Mas a longo prazo nenhuma dessas técnicas dá frutos se o impulso amoroso pode realizar algo em seu deslocamento para uma ação mínima logo o impulso hostil o segue também ali e novamente anula a sua obra Quando o neurótico obsessivo descobre o ponto fraco de nossa psique no tocante à certeza isto é a não confiabilidade da memória pode então com sua ajuda estender a dúvida a todo o resto também a ações já cumpridas e ainda sem laços com o complexo amoródio e a todo o passado Recordo o exemplo da mulher que tinha comprado um pente para sua filha numa loja e desconfiando do marido começou a imaginar se já não o possuía havia bastante tempo Não está ela dizendo Se posso duvidar de seu amor e isso é apenas uma projeção da dúvida de seu próprio amor a ele posso duvidar também disso posso duvidar de tudo assim nos revelando o sentido encoberto da dúvida neurótica A obsessão porém é uma tentativa de compensar a dúvida e corrigir o intol erável estado de inibição de que a dúvida é testemunho Se com o auxílio do des locamento o doente consegue levar à resolução algum dos propósitos inibidos este tem de ser realizado Certamente não é mais o original mas a energia ali represada já não renuncia à oportunidade de desafogo que é a ação substituta Então ela se exprime em comandos e proibições conforme o impulso afetuoso ou o impulso hostil se apodere desse caminho para a descarga Se o comando obsess ivo não é seguido a tensão é insuportável vindo a ser percebida como angústia extrema Mas o próprio caminho que leva à ação substitutiva deslocada para algo ínfimo é tão fortemente questionado que geralmente ela pode ser realizada apen as como medida protetora em íntima ligação com um impulso a ser afastado Mediante uma espécie de regressão além disso atos preparatórios tomam o lugar da resolução final o pensamento substitui o agir e algum pensamento pre liminar ao ato se impõe com obsessiva veemência no lugar da ação substitutiva Conforme essa regressão do agir ao pensar for mais ou menos pronunciada o 72316 caso de neurose obsessiva toma características de pensamento obsessivo ideias obsessivas ou de ações obsessivas no sentido estrito Tais ações obsessivas con tudo são possibilitadas apenas porque nelas os dois impulsos antagonistas prat icamente se conciliam em formações de compromisso Pois elas aproximamse cada vez mais e quanto mais dura a enfermidade de modo mais nítido dos atos sexuais infantis da espécie da masturbação De forma que nesse tipo de neur ose chegam a se realizar atos de amor mas apenas com o recurso a uma nova re gressão não mais atos ligados a outra pessoa objeto de amor e ódio mas ações autoeróticas como as da infância A primeira regressão do agir ao pensamento é favorecida por um outro fator que participa da gênese da neurose Nas histórias dos neuróticos obsessivos um acontecimento quase regular é o precoce surgimento e prematura repressão do impulso sexual de olhar e sabero que também em nosso paciente governava uma parte da atividade sexual infantil59 Já vimos a significação dos componentes sádicos na origem da neurose obses siva Quando o impulso de saber predomina na constituição do neurótico obsess ivo o cismar tornase o principal sintoma da neurose O processo mesmo de pensar é sexualizado na medida em que o prazer sexual que normalmente se liga ao teor do pensamento é voltado para o ato mesmo de pensar e a satisfação ao atingir um resultado intelectual é sentida como satisfação sexual Nas várias formas da neurose obsessiva em que o impulso de saber participa sua relação com os processos intelectuais o faz particularmente adequado a atrair a energia que em vão se empenha para chegar à ação e levála ao âmbito do pensamento onde se oferece a possibilidade de outra espécie de satisfação do prazer Assim a ação substitutiva pode com a ajuda do impulso de saber ser também substituída por atos de pensamento preparatórios Mas o adiamento da ação logo é sub stituído pelo demorarse no pensamento e todo o processo é enfim transposto 73316 para um novo âmbito mantendose todas as suas peculiaridades tal como os americanos conseguem to move mover uma casa de um local para outro Apoiado nas considerações acima agora me aventuro a determinar a caracter ística psicológica há tanto tempo buscada que dá aos produtos da neurose obses siva sua qualidade de obsessão Tornamse obsessivos aqueles processos de pensamento que devido à inibição resultante do conflito de opostos no extremo motor dos sistemas mentais se realizam com um dispêndio de energia tanto qualitativa como quantitativamente que normalmente é destinado apenas às ações ou seja àqueles pensamentos que têm de representar atos regressivamente Creio que não se poderá contestar a suposição de que em geral o pensar é efetu ado por razões econômicas com deslocamentos de energia menores provavel mente em nível mais elevado do que o agir destinado a trazer descarga e a mudar o mundo exterior Aquilo que como pensamento obsessivo penetrou de maneira muito forte na consciência precisa então ser garantido contra os esforços do pensamento con sciente para dissolvêlo Já sabemos que tal proteção é alcançada através da de formação que o pensamento obsessivo sofreu antes de tornarse consciente Mas este não é o único meio Além disso raramente se deixa de afastar a ideia obses siva da situação em que ela se originou na qual apesar da deformação seria fa cilmente compreensível Com esse propósito por um lado é introduzido um inter valo entre a situação patogênica e a ideia obsessiva dela decorrente o qual con funde a investigação consciente das causas por outro lado o conteúdo da ideia obsessiva é separado de seus vínculos especiais mediante a generalização O paciente dá um exemplo disso na obsessão de compreender p 52 um exemplo melhor seria talvez o de outra enferma que se proibiu de usar qualquer adorno embora a causa imediata da proibição remontasse a um único adorno que ela invejara da mãe e que esperava um dia herdar Por fim também serve 74316 para proteger a ideia obsessiva do trabalho de dissolução por parte da consciência o uso de palavras imprecisas ou ambíguas se quisermos distinguir entre esse e a deformação inteirap Essas palavras malentendidas podem então introduzirse nos delírios e os desenvolvimentos ou sucedâneos da obsessão se ligam ao mal entendido não ao texto correto Mas a observação mostra que esses delírios se empenham em obter sempre novos vínculos com o texto e teor da obsessão não acolhido no pensamento consciente Quero retornar ainda uma vez à vida instintual da neurose obsessiva para fazer uma única observação O paciente revelouse também um cheirador al guém que na infância segundo ele próprio reconhecia cada pessoa pelo cheiro como um cão e a quem ainda hoje as percepções olfativas dizem mais do que a outras pessoas60 Encontrei algo semelhante em outros neuróticos obsessivos e histéricos e aprendi a levar em conta o papel que tem na gênese da neurose o prazer em cheirar desaparecido desde a infância De maneira bem ampla gostaria de lançar a questão de que a inevitável atrofia do olfato que veio com a adoção da postura ereta pelo ser humano e consequente repressão orgânica do prazer em cheirar poderiam contribuir bastante para a sua capacidade de adoecimento neurótico Isso explicaria por que no avanço da civilização justamente a vida sexual seja vítima da repressão Pois há muito sabemos do íntimo nexo estabele cido na organização animal entre a função do olfato e o instinto sexual Finalizando quero expressar a esperança de que esta minha comunicação incom pleta em todo sentido possa ao menos estimular outros a trazerem mais coisas à luz aprofundando o estudo da neurose obsessiva A meu ver o que caracteriza essa neurose o que a diferencia da histeria deve ser buscado na situação psicoló gica não na vida instintual Não posso deixar este meu paciente sem registrar a impressão de que se achava como que dissociado em três personalidades eu diria que em uma inconsciente e duas préconscientes entre as quais sua consciência 75316 podia oscilar Seu inconsciente abrangia os impulsos suprimidos bastante cedo que podemos designar como apaixonados e maus em seu estado normal ele era bom alegre superior prudente e esclarecido mas numa terceira organização psíquica rendia tributo à superstição e à ascese de modo que podia ter duas con vicções e sustentar duas diferentes concepções do mundo Esta pessoa précon sciente encerrava sobretudo as formações reativas a seus desejos reprimidos e não era difícil prever que teria consumido a pessoa normal caso a doença perdur asse No momento tenho a oportunidade de estudar uma mulher que sofre sev eramente de atos obsessivos e que de modo semelhante dividiuse em uma per sonalidade tolerante jovial e em outra bastante sombria e ascética ela destaca a primeira como seu Eu oficial enquanto é dominada pela segunda As duas organ izações psíquicas têm acesso à sua consciência e por trás da pessoa ascética há que se buscar o inconsciente do seu ser totalmente desconhecido para ela e con sistindo em desejos antiquíssimos há muito reprimidos61 1 Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa parte II Natureza e mecanismo da neurose obsessiva 1986 2 Psicopatologia da vida cotidiana 1901 3 Redigido segundo as anotações feitas na noite de cada dia do tratamento buscando servirme das palavras que recordava do paciente Sintome obrigado a advertir que não se utilize a hora 76316 mesma do tratamento para registrar o que se ouve O desvio da atenção do médico traz mais danos ao paciente do que o que poderia ser relevado pelo ganho na fidelidade da reprodução do caso 4 Quando ainda era psicanalista o dr Alfred Adler mencionou numa conferência privada a im portância especial que têm as primeiríssimas comunicações dos pacientes Eis aqui uma prova disso As palavras iniciais do paciente enfatizam a influência que os homens exercem sobre ele o papel da escolha homossexual de objeto em sua vida e em seguida abordam um segundo tema que depois sobressairá bastante o conflito e a oposição de interesses entre homem e mulher Também deve ser registrado o fato de se lembrar da primeira e bela governanta pelo nome de família que casualmente é igual a um prenome masculino Nos círculos burgueses de Viena costumase chamar as governantas pelo prenome guardandose sobretudo este na memória Na primeira edição de 1909 essa nota começava da seguinte forma Meu colega o dr Alfred Adler foi modificada em 1913 após a ruptura com Adler 5 Depois ele admite que provavelmente a cena ocorreu um ou dois anos mais tarde 6 Recordemos que já se fez a tentativa de explicar as ideias obsessivas sem considerar a afetividade 7 Ele diz ideia Vorstellung desejo Wunsch ou antes temor Befürchtung a designação mais forte e mais importante foi evidentemente encoberta pela censura A característica indefin ição de todas as suas falas não pode ser aqui reproduzida infelizmente 8 Os nomes quase não importam aqui 9 Uma descrição mais precisa do episódio depois fornecida pelo paciente levou a uma com preensão desse efeito O tio viúvo exclamara lamentando Outros homens se permitem tudo e eu vivi somente para essa mulher Nosso paciente imaginou que o tio aludisse a seu pai e sus peitou da fidelidade conjugal deste e embora o tio contestasse resolutamente essa interpretação de suas palavras o seu efeito não pôde ser anulado 10 Isso é correto apenas de modo bem aproximado mas basta para um primeiro passo 11 Não apenas o neurótico obsessivo se satisfaz com esses eufemismos 12 Dez anos antes 13 Aqui é claramente mostrada uma oposição entre as duas pessoas amadas o pai e a senhora 14 O propósito de tais discussões não é jamais o convencimento Elas devem apenas introduzir os complexos reprimidos na consciência avivar a luta em torno deles no terreno da atividade psíquica consciente e facilitar a emergência de novos materiais do inconsciente A convicção vem somente após a elaboração do material readquirido pelo doente e enquanto ela for hesitante não se pode julgar esgotado o material 77316 15 Essa consciência de culpa contraria abertamente sua negativa inicial de que nunca tivera tal desejo ruim em relação ao pai É um tipo frequente de reação ao reprimido tornado consciente ao primeiro Não de rejeição logo se segue a confirmação primeiramente indireta 16 Além do bem e do mal 68 17 Algo que mais adiante achará explicação 18 Exponho esses argumentos apenas para mais uma vez comprovar como são impotentes Não entendo quando outros psicólogos dizem que combatem eficazmente as neuroses com tais armas 19 Aqui eu acrescento antes 20 Na neurose obsessiva está longe de ser tão frequente e desconsiderado como na histeria o uso de nomes e palavras para estabelecer nexos entre os pensamentos inconscientes impulsos fantasi as e os sintomas Mas justamente para o nome Richard lembrome de um outro exemplo num paciente analisado muito tempo atrás Após um desentendimento com o irmão ele se pôs a cogit ar como poderia se desfazer de sua riqueza dizia não querer nada mais com dinheiro etc O irmão se chamava Richard richard em francês significa ricaço 21 Acrescentemos de que ele pudesse ter culpa 22 Cf Ernest Jones Rationalisation in everyday life Journal of Abnormal Psychology 1908 23 Cf Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade1908 24 Outro paciente obsessivo contoume que estando certa vez no parque de Schönbrunn havia topado com um ramo de árvore solto no caminho que ele então arrastou com o pé em direção à sebe lateral Já voltando para casa veiolhe subitamente a preocupação de que o ramo que ficara um tanto saliente poderia ser motivo de acidente para quem passasse pelo mesmo local Teve que descer do bonde correr de volta ao parque procurar o lugar e colocar o ramo na posição anteri or embora qualquer outra pessoa notasse que a velha posição era mais perigosa para um passante do que a nova junto à sebe A segunda ação hostil que se impôs como compulsão havia se adornado ante o pensamento consciente com a motivação da primeira esta sim benfeitora 25 Vejase o mecanismo análogo das ideias sacrílegas que como é sabido ocorrem às pessoas santas 26 Este sonho esclarece o riso compulsivo em ocasiões de luto tão frequente e tido como enigmático 27 Não é de excluir que outro motivo contribuísse para esta súbita ideia obsessiva a vontade de sabêla indefesa ante as suas intenções 28 É preciso então admitir que na neurose obsessiva há dois tipos de conhecimento e com igual direito podese afirmar que o neurótico obsessivo tanto conhece os seus sonhos como não os 78316 conhece Pois os conhece na medida em que não os esqueceu e não os conhece por não recon hecer sua significação Na vida normal também não sucede de outro modo Os garçons que cos tumavam servir o filósofo Schopenhauer no restaurante que frequentava o conheciam em de terminado sentido numa época em que era desconhecido em Frankfurt e outros lugares mas não no sentido que hoje ligamos ao conhecimento de Schopenhauer 29 Cabe ressaltar que a fuga para a doença lhe foi possibilitada pela identificação com o pai Esta permitiu a regressão dos seus afetos aos vestígios da infância 30 Cf Três ensaios de uma teoria da sexualidade 1905 sobretudo o resumo final 31 As alternativas eram incompletas O pai não pensou no resultado mais frequente de paixões as sim prematuras a neurose 32 Nas psicanálises deparamos frequentemente com tais eventos da primeira infância nos quais a atividade sexual infantil parece atingir o apogeu e devido a um acidente ou uma punição termina frequentemente de modo catastrófico Eles anunciamse debilmente nos sonhos e às vezes tornamse tão nítidos que acreditamos apreendêlos firmemente mas escapam a uma elucidação definitiva e se não procedemos com particular prudência e habilidade não temos como decidir se tal cena verdadeiramente ocorreu Somos levados ao caminho correto de interpretação pelo conhecimento de que várias versões de tais cenas às vezes muito diferentes podem ser detectadas na imaginação inconsciente do analisando Se não quisermos nos equivocar no julgamento da realidade devemos nos lembrar sobretudo que as lembranças infantis das pessoas vêm a se es tabelecer apenas numa idade posterior em geral na época da puberdade sendo então submetidas a um complicado processo de reelaboração inteiramente análogo à formação de lendas de um povo acerca de sua história primitiva Podese claramente perceber que o indivíduo em cresci mento procura nessas fantasias relativas à sua primeira infância apagar a lembrança de sua ativid ade autoerótica na medida em que eleva seus traços mnemônicos ao nível do amor objetal como um historiador que busca enxergar o passado à luz do presente Daí a profusão de ataques e se duções nessas fantasias quando a realidade se limitou à atividade autoerótica e aos carinhos e cas tigos que a estimularam Além disso notamos que fantasiando sobre sua infância o indivíduo sexualiza suas recordações isto é relaciona vivências banais à sua atividade sexual estende sobre elas o seu interesse sexual nisso provavelmente seguindo a trilha do nexo efetivamente presente Estas observações não pretendem diminuir posteriormente a significação da sexualidade infantil reduzindoa ao interesse sexual da puberdade como bem sabe o leitor que guarda na memória a minha Análise da fobia de um garoto de cinco anos 1909 Minha intenção é apenas dar in struções técnicas que solucionem as fantasias destinadas a falsear o quadro da atividade sexual infantil 79316 Raramente nos achamos na feliz situação de poder confirmar através do inabalável testemunho de um adulto os fatos sobre os quais se baseiam essas histórias relativas ao passado remoto como sucede no caso deste paciente De toda forma a declaração da mãe deixa em aberto várias possib ilidades O fato de ela não mencionar a natureza sexual da ofensa pela qual o menino foi castigado pode se dever à sua própria censura já que em todos os pais é precisamente isso que a censura se esforça por eliminar do passado dos filhos Também é possível que a babá ou a própria mãe tenha punido o garoto por uma coisa banal de natureza não sexual e depois o pai o tenha castigado por sua reação violenta Nessas fantasias a babá ou outra serviçal é normalmente substituída pela figura mais nobre da mãe Ao aprofundarmos a interpretação dos sonhos do paciente relativos a esse episódio achamos claros indícios de uma história que se pode chamar de épica na qual dese jos sexuais referentes à mãe e à irmã e a morte prematura dessa irmã eram relacionados ao cas tigo do pequeno herói nas mãos do pai Não foi possível desfazer fio por fio esse emaranhado de fantasias precisamente o sucesso terapêutico foi o obstáculo para isso O paciente restabeleceuse e teve de enfrentar várias tarefas que a vida lhe impunha já há muito tempo adiadas que não eram compatíveis com o prosseguimento da terapia Que não me seja criticada portanto essa la cuna na análise A investigação científica mediante a psicanálise é hoje apenas um produto secun dário do esforço terapêutico e por isso a colheita é maior com frequência justamente nos casos em que o tratamento fracassou O teor da vida sexual infantil consiste na atividade autoerótica dos componentes sexuais domin antes em traços de amor objetal e na formação do complexo que poderíamos chamar de complexo nuclear das neuroses que compreende os primeiros impulsos carinhosos ou hostis ante os pais e irmãos depois que a curiosidade do pequeno é despertada geralmente pela chegada de um novo irmãozinho A uniformidade desse conteúdo e a constância das influências modificadoras futuras explicam facilmente por que de modo geral sempre se formam as mesmas fantasias sobre a infân cia não importando se foi pequena ou grande a contribuição das vivências reais Corresponde ao complexo nuclear infantil que o pai tenha o papel de rival sexual e perturbador da atividade sexual autoerótica e nisso a realidade tem boa participação geralmente 33 Não esqueçamos que ele soube disso antes que o capitão lhe fizesse a solicitação injustificada de que reembolsasse o primeirotenente A Eis o ponto indispensável para a compreensão da história e o fato de suprimilo envolveu o paciente numa confusão atroz e impediume por al gum tempo de apreender o sentido do conjunto 34 Nota acrescentada em 1923 Depois que o paciente tudo fez para embaralhar o episódio do reembolso do valor do pincenê talvez eu também não tenha conseguido expôlo de modo inteira mente claro Por isso reproduzo aqui um pequeno mapa com o qual Mr e Mrs Strachey 80316 buscaram ilustrar a situação no momento do fim das manobras Meus tradutores observaram com justeza que o comportamento do paciente será ainda incompreensível se não enfatizarmos que o primeirotenente A tinha vivido na localidade da agência postal Z e lá se ocupado do correio militar mas nos últimos dias das manobras passou esta função para o primeirotenente B e foi transferido para A O capitão cruel ainda não sabia desta mudança daí o seu erro de acreditar que o reembolso devia ser feito ao primeirotenente A 35 Cf Caráter e erotismo anal 1908 36 Se o leitor sacudir a cabeça questionando esses saltos da fantasia neurótica tenha em mente caprichos semelhantes a que a fantasia dos artistas eventualmente se entrega por exemplo as Di ableries érotiques de Le Poitevin 37 A Senhora dos Ratos personagem de Ibsen certamente derivou do lendário Flautista de Hamelin que primeiramente atrai os ratos para a água e depois arrebata as crianças da cidade para que nunca mais retornem Também o pequeno Eyolf se joga na água sob o sortilégio da Sen hora dos Ratos Em geral o rato não aparece nas lendas como um animal asqueroso e sim in quietante um animal ctônio podese dizer sendo usado para representar as almas dos mortos 38 Provavelmente uma das numerosas doninhas que se acham no Cemitério Central de Viena 39 Diz Mefistófeles Doch dieser Schwelle Zauber zu zerspalten Bedarf ich eines Rattenzahns Noch einen Biß so ists geschehen Mas para romper o sortilégio desse umbral Necessito dos dentes de um rato Mais uma mordida e está feito Goethe Fausto 1 cena 3 40 Na taberna de Auerbach Er sieht in der geschwollnen Ratte Sein ganz natürlich Ebenbild Ele vê no rato inchado A imagem viva de si mesmo Fausto 1 cena 5 41 Não naquela noite como ele disse primeiramente Não é possível que o pincenê encomendado chegasse no mesmo dia Ele abrevia na memória esse intervalo porque nele se produziram as conexões de pensamento decisivas e porque reprime o encontro sucedido neste intervalo com o oficial que lhe relatou a atitude simpática da funcionária do correio 42 Logo o absurdo significa também derrisão na linguagem do pensamento obsessivo tal como nos sonhos Ver Interpretação dos sonhos 8a ed p 297 cap vi seção g 43 Pode ser interessante sublinhar que a obediência ao pai coincide mais uma vez com o afasta mento da dama Se ele ficasse e restituísse o dinheiro a A cumpriria a penitência em relação ao 81316 pai e ao mesmo tempo abandonaria a dama atraído por outro ímã Nesse conflito a vitória foi dela embora com o apoio do bom senso dele 44 Cf Sobre Teorias Sexuais Infantis 1908 45 Vários pontos tratados nesta e nas próximas seções já foram abordados na literatura sobre as neuroses obsessivas como se pode ver pela obra fundamental sobre essa enfermidade Die psych ischen Zwangserscheinungen As manifestações psíquicas obsessivas o meticuloso estudo public ado por L Löwenfeld em 1904 46 Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa 1896 seção ii 47 Essa falha na definição é corrigida no artigo mesmo onde se lê As lembranças reanimadas e as recriminações formadas a partir delas nunca entram inalteradas na consciência o que se torna consciente como ideia obsessiva e afeto obsessivo e substitui a vida consciente pela lembrança patogênica são formações de compromisso entre as ideias reprimidas e as repressoras Portanto na definição devese dar ênfase especial à palavra transformadas 48 Vários pacientes retraem sua atenção de tal forma que são incapazes de fornecer o conteúdo de uma ideia obsessiva de descrever um ato obsessivo que realizaram inúmeras vezes 49 Cf Interpretação dos sonhos 8a ed p 285 cap vi seção f 50 Sobre essa onipotência ver adiante 51 Um exemplo que deve lembrar a utilização da técnica da omissão nas piadas se encontra num outro trabalho meu O chiste e sua relação com o inconsciente 1905 cap ii seção ii Em Viena há um escritor espirituoso e combativo que pela mordacidade de suas invectivas mais de uma vez foi fisicamente agredido por parte dos que atacou Quando em certa ocasião falouse de um novo malfeito de um dos seus adversários habituais alguém afirmou Se Fulano souber disso levará uma bofetada O contrassenso do comentário desaparece se incluímos estas palavras entre as duas orações Escreverá um artigo tão veemente contra o responsável que etc Essa pi ada elíptica também mostra semelhança de conteúdo com o primeiro exemplo acima 52 Psicopatologia da vida cotidiana 1901cap xii seção cb 53 Como diz Lichtenberg Um astrônomo sabe se a Lua é habitada ou não com a certeza com que sabe quem é seu pai mas não com a certeza de quem é sua mãe Foi um grande progresso da civilização que os homens se decidissem a pôr a inferência ao lado do testemunho dos sentidos passando do direito materno ao paterno Peças préhistóricas em que uma figura menor está sentada na cabeça de uma maior representam a descendência paterna Palas Atena que não teve mãe saiu da cabeça de Zeus Em nossa língua chamase Zeuge testemunha a pessoa que atesta algo ante um tribunal conforme a participação masculina no ato da procriação o verbo zeugen 82316 significa tanto testemunhar como procriar e já nos hieróglifos a testemunha era repres entada com a imagem dos órgãos genitais masculinos 54 Nota acrescentada em 1923 A onipotência dos pensamentos ou mais precisamente dos dese jos foi desde então percebida como dado essencial da psique primitiva Ver Totem e tabu 1912 13 55 Cf a discussão sobre esse ponto numa das primeiras sessões Acrescentado em 1923 Para esta constelação afetiva foi depois criado por Bleuler o apropriado nome de ambivalência Cf também o prosseguimento desta abordagem no ensaio A predisposição à neurose obsessiva 1913 56 Sim frequentemente desejo não mais vêlo entre os vivos Se isso ocorresse porém sei que seria ainda mais infeliz tão indefeso me sinto diante dele diz Alcibíades a respeito de Sócrates no Banquete tradução de R Kassner traduziuse aqui a versão alemã citada por Freud 57 Cf a representação por algo mínimo como técnica de piada O chiste e sua relação com o in consciente 1905 cap ii seção ii 58 Lembremos estes versos de amor que Hamlet dirige a Ofélia Doubt thou the stars are fire Doubt thou the sun doth move Doubt truth to be a liar But never doubt I love Duvide que as estrelas sejam fogos Duvide que o sol se movimente Duvide que a verdade não seja mentira Mas nunca duvide do meu amor Hamlet ii 2 58 A isso também se relaciona provavelmente a grande capacidade intelectual que os neuróticos obsessivos têm em média 60 Acrescento que fortes tendências coprofílicas vigoraram durante a sua infância Ver a respeito disso o já mencionado erotismo anal p 75 61 Nota acrescentada em 1923 O paciente que teve a saúde mental restituída pela análise que aqui comunicamos perdeu a vida na Primeira Grande Guerra como tantos outros jovens dota dos de valor e de esperança Informações sobre esse paciente agora identificado como Ernst Lanzer 18181914 e observações críticas sobre o seu caso clínico se acham em Les patients de Freud de M BorchJacobsen 2011 Le dossier Freud de M BorchJacobsen e S Shamdasani 2006 e Freud and the Rat Man de Patrick Mahony 1986 a Zwangsneurose no original O termo Zwang presente nessa e em outras expressões que surgirão no texto pode significar compulsão e coação além de obsessão a escolha geralmente 83316 adotada O leitor deverá ter isso em mente todas as vezes que deparar com o substantivo ob sessão e o adjetivo obsessivo As notas chamadas por asteriscos e as interpolações às notas do autor entre colchetes são de autoria do tradutor As notas do autor são sempre numeradas b Impuls no original Normalmente a palavra impulso é tradução de Regung nesta edição de obras de Freud por isso assinalamos as poucas ocasiões em que o autor utiliza outro termo c Hofrat literalmente conselheiro da corte era um título que na monarquia austrohúngara outorgavase a profissionais liberais e funcionários públicos que se destacavam d Impulsos Impulsen no original e Não há espaço de uma linha vazia entre esse parágrafo e o anterior na edição alemã utilizada Gesammelte Werke Mas considerando que faz sentido um espaço nesse ponto e que ele se acha numa edição alemã mais recente Studienausgabe resolvemos incorporálo aqui e em alguns outros lugares f Hermann Sudermann ficcionista alemão 18571928 o título da novela mencionada é Geschwister Irmãos g Balaão personagem do Antigo Testamento cf Números 2224 h Convicção que logo desaparecia die freilich bald überwunden wurde na edição Standard inglesa se lê though this resistance it is true used soon to break down embora essa resistência é verdade costumasse logo ceder tratase de um erro pois no original o pronome die femininose refere a Überzeugung convicção que é um substantivo feminino e não a Wider stand resistência que é masculino e pediria o pronome der i Sensibilidade de complexo Komplexempfindlichkeit nas versões estrangeiras consultadas duas em espanhol das editoras Biblioteca Nueva e Amorrortu a italiana da Boringhieri e a Standard inglesa encontramos sensibilidad de complejo idem sensibilità complessuale complex ive sensitiveness Segundo Strachey tratase de uma expressão tomada das experiências com asso ciação de palavras de Jung e seus discípulos Talvez sensibilidade ao complexo seja uma versão mais adequada j Spielratte literalmente rato de jogo k Inscritas no âmbito obsessivo no original ins Zwanghafte eingetragen nas versões con sultadas incorporadas a la obsesión asentadas en lo obsesivo convogliate nella sfera dellos sessivo carried over into his obsessional life l Os mais fortes pressentimentos na Standard inglesa se lê the strangest forebodings os mais estranhos pressentimentos isso provavelmente foi um erro de impressão a letra o do adjetivo strongest deve ter sido trocada por um a citamos a edição de 1956 pois o original diz die intens ivsten Ahnungen 84316 m Segundo nota de Strachey significa que ele usava as porções periféricas da retina em vez da mácula n Segundo lembra James Strachey Freud discute os mecanismos defensivos de anular ou des fazer e isolar utilizados pelos neuróticos obsessivos no capítulo vi de Inibição sintoma e an gústia 1926 o Do impulso sexual de olhar e saber des sexuellen Schau und Wisstriebes nesse caso adot amos impulso para verter Trieb p Eis essa frase no original Endlich dient noch zum Schutze der Zwangsidee gegen die bewußte Lösungsarbeit der unbestimmt oder zweideutig gewählte Wortlaut wenn man diesen von der einheit lichen Entstellung absondern will E na versão inglesa Finally if we care to distinguish verbal distor tion from distortion of content there is yet another means by which the obsession is protected against conscious attempts at solution And that is the choice of an indefinite or ambiguous wordingNela há uma paráfrase em que o uso de palavras ou expressões o termo inglês wording é mais próx imo do alemão Wortlautimprecisas ou ambíguas é identificado com deformação verbal e o que traduzimos por deformação inteira einheitlich literalmente unitária homogênea é ver tido por deformação de conteúdo 85316 UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI 1910 TÍTULO ORIGINAL EINE KINDHEITSERINNERUNG DES LEONARDO DA VINCI PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO LEIPZIG E VIENA DEUTICKE 1910 71 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 128211 E DE STUDIENAUSGABE X PP 87159 I Quando a investigação psicológica que em geral se contenta com material hu mano frágil aborda um dos grandes da espécie humana não o faz pelos motivos que os leigos frequentemente lhe atribuem Não pretende macular o radiante e arrastar na lama o sublimea não vê satisfação em reduzir a distância entre tal perfeição e a deficiência de seus habituais objetos de estudo Mas tem de consid erar digno de compreensão tudo o que podemos discernir em tais modelos e acha que ninguém é tão grande que possa envergonharse de estar sujeito às leis que governam com o mesmo rigor a atividade normal e a patológica Leonardo da Vinci 14521519 já era admirado por seus contemporâneos como um dos maiores nomes do Renascimento mas também já lhes parecia ser um enigma tal como ainda hoje nos parece Um gênio universal cujos con tornos podem ser apenas imaginados jamais estabelecidos1 foi como pintor que exerceu a mais forte influência em sua época ficou reservado para nós recon hecer a grandeza do cientista natural e do engenheiro que nele se combinava com o artista Embora tenha deixado obrasprimas da pintura enquanto suas descobertas científicas permaneceram inéditas e não aproveitadas em seu desen volvimento o pesquisador nunca deixou inteiramente livre o artista muitas vezes o prejudicou seriamente e talvez o tenha suprimido no fim Vasari afirma que ele se recriminou em sua última hora de vida por haver ofendido Deus e os homens ao não cumprir a obrigação em sua arte2 E ainda que essa história de Vasari não tenha muita verossimilhança exterior ou interior fazendo parte da lenda que já se 87316 formava em torno do misterioso mestre enquanto ele vivia ela possui valor indis cutível como testemunha do julgamento daqueles homens e daqueles tempos O que dificultava a compreensão da personalidade de Leonardo por seus con temporâneos Certamente não era a variedade de seus talentos e conhecimentos que lhe permitiu apresentarse na corte de Ludovico Sforza duque de Milão cognominado Il Moro o Mouro tocando uma espécie de alaúde de sua própria invenção ou escrever ao mesmo nobre a surpreendente carta em que se gabava de suas realizações como arquiteto e engenheiro militar Afinal a época da Renascença devia estar acostumada a essa combinação de múltiplas habilidades numa só pessoa embora o próprio Leonardo fosse um dos mais brilhantes exem plos disso Tampouco era ele um desses homens geniais que exteriormente pou co favorecidos pela natureza não atribuem nenhum valor às formas exteriores da vida e com doloroso ensombrecimento de ânimo fogem do trato social Ele era alto e bem proporcionado de consumada beleza de rosto e incomum força física dotado de maneiras encantadoras e de mestria com as palavras alegre e amável para com todos amava a beleza também nas coisas que o rodeavam vestia roupas magníficas e apreciava cada refinamento do viver Numa passagem do Tratado sobre a pintura que é bem reveladora de sua viva capacidade de fruição ele com para a pintura com as artes afins e aponta as agruras do trabalho do escultor com o rosto lambuzado e pleno de pó de mármore de modo que parece um padeiro e coberto de pequeninas lascas como se houvesse nevado sobre ele e tendo a habitação enxovalhada e cheia de lascas e pó de pedra O con trário sucede ao pintor pois o pintor fica sentado confortavelmente di ante de sua obra bemvestido e movimenta o levíssimo pincel com graciosas cores e achase ornado de roupas que lhe agradam e sua habitação é plena de graciosas pinturas e bastante limpa e muitas vezes ele tem a companhia de 88316 músicos ou leitores de obras variadas e belas as quais são ouvidas com grande prazer sem o barulho do martelo ou algum outro ruído3 É bem possível que a ideia de um Leonardo radiante e amigo do prazer seja válida apenas para o primeiro período de sua vida que foi também o mais longo Depois quando o fim do governo de Ludovico Mouro o obrigou a deixar Milão seu círculo de influência e sua posição segura e levar uma vida incerta e não muito rica em eventos até o derradeiro asilo na França o brilho de seu ânimo de ve ter empalidecido e alguns traços estranhos de sua natureza devem ter sobres saído Também a mudança de seus interesses da arte para a ciência cada vez maior com o passar dos anos certamente contribuiu para ampliar o abismo entre ele e seus contemporâneos Todos os experimentos com que ele na opinião destes desperdiçava seu tempo em vez de pintar quadros por encomenda e enriquecer como seu excondiscípulo Perugino por exemplo eram vistos como extravagantes passatempos e até mesmo o tornavam suspeito de cultivar a arte negra Nisso nós o compreendemos melhor pois sabemos por suas anotações que artes ele praticava Num tempo em que se começava a substituir a autoridade da Igreja pela da Antiguidade e ainda não se conhecia a investigação isenta de pressupostos ele precursor e digno rival de Bacon e Copérnico achavase inev itavelmente isolado Quando dissecava cadáveres de cavalos e de pessoas con struía aparelhos voadores estudava a alimentação das plantas e sua reação a ven enos ele certamente se afastava dos comentadores de Aristóteles e se punha na vizinhança dos menosprezados alquimistas em cujos laboratórios a pesquisa ex perimental encontrava ao menos um refúgio naqueles tempos adversos Para sua pintura a consequência disso foi que ele relutava em tomar do pincel pintava cada vez menos com frequência deixava inacabado o que iniciara e pouco se preocupava com o destino de suas obras Isso era também o que lhe 89316 reprovavam seus contemporâneos para os quais sua relação com a arte permane cia um enigma Vários dos admiradores posteriores de Leonardo buscaram absolvêlo da pecha de instabilidade de caráter Alegaram que o que nele se criticava é uma ca racterística dos grandes artistas em geral que também o vigoroso Michelangelo sempre tão absorvido no trabalho deixou incompletas muitas de suas obras e nisso não teve mais culpa do que Leonardo na mesma situação Além disso houve quadros que não ficaram tão incompletos como ele declarou O que para o leigo já é uma obraprima para o criador da obra seria ainda uma corporificação insatisfatória de suas intenções ele teria em mente uma perfeição que jamais con segue reproduzir E sobretudo não seria justo responsabilizar o artista pelo des tino final de suas obras Ainda que várias dessas desculpas possam ser pertinentes elas não cobrem to das as circunstâncias que deparamos em Leonardo A penosa luta com a obra o fato de finalmente fugir dela e a indiferença para com seu destino subsequente podem reaparecer em muitos outros artistas mas certamente Leonardo tinha essa conduta em grau extremo Edmondo Solmi cita a afirmação de um aluno4 Par eva che ad ogni ora tremasse quando si poneva a dipingere e però non diede mai fine ad alcuna cosa cominciata considerando la grandezza dell arte tal che egli scorgeva errori in quelle cose che ad altri parevano miracoliParecia tremer a todo instante quando se punha a pintar e contudo jamais terminou alguma coisa começada tendo em tão alta conta a grandeza da arte que enxergava erros naquelas coisas que pareciam milagres para outros Seus últimos quadros Leda a Madona de santo Onofre o Baco e o São João Batista jovem permaneceram inacabados comme quasi intervenne di tutte le cose sue como sucedeu com quase todas as suas coisas Lomazzo que realizou uma cópia da Última ceia referiuse num soneto à notória incapacidade de Leonardo para concluir uma pintura 90316 Protogen che il penel di sue pitture Non levava agguagliò il Vinci Divo Di cui opra non è finita pure Protógenes que não tirava o pincel de suas pinturas igualouse ao Divino Vinci de cuja obra nada foi concluído5 Era proverbial a lentidão com que Leonardo trabalhava Durante três anos pintou a Última ceia do convento de Santa Maria delle Grazie em Milão após minuciosos estudos preliminares Um contemporâneo o autor de novelas Matteo Bandelli que então era um noviço do convento relata que frequentemente Leonardo subia no andaime já de manhã cedo e não largava o pincel até a hora do crepúsculo sem pensar em comer e beber Depois passavamse dias sem que ele tocasse na obra sendo que às vezes permanecia horas diante dela contentandose em examinála em seu espírito Em outras ocasiões ia do pátio do castelo de Milão onde estava trabalhando no modelo da estátua equestre de Francesco Sforza diretamente para o convento a fim de dar algumas pinceladas numa figura e depois partia imediatamente6 De acordo com Vasari durante quatro anos ele pintou o retrato de Monna Lisa esposa do florentino Francesco del Giocondo sem chegar a completálo realmente o que condiz com o fato de que a pintura não foi entregue a quem a solicitara mas permaneceu com Leonardo que a levou consigo para a França7 Adquirida pelo rei Francisco i hoje constitui um dos maiores tesouros do Louvre Se justapomos esses relatos sobre a forma de trabalho de Leonardo à evidên cia dos numerosíssimos esboços e anotações que dele foram conservados em que cada tema de seus quadros aparece em infinitas variações temos de afastar in teiramente a concepção de que traços de ligeireza e volubilidade teriam influído em sua relação com a arte Observamos isto sim um aprofundamento ex traordinário uma abundância de possibilidades entre as quais a escolha é feita 91316 apenas com hesitação exigências que dificilmente podem ser satisfeitas e uma inibição na realização que nem mesmo a inevitável incapacidade de atingir seu ideal poderia explicar A morosidade que sempre caracterizou os trabalhos de Leonardo se revela como um sintoma dessa inibição como um prenúncio do abandono da pintura que depois ocorreria8 Isso determinou também o destino da Última ceia pelo qual Leonardo não deixou de ser responsável Ele não conseguiu adaptarse à pintura al fresco mural que exige trabalho rápido en quanto a superfície ainda está úmida por isso escolheu tintas a óleo cujo tempo de secamento lhe permitiu protelar a conclusão do quadro conforme o ânimo e o ensejo Mas essas tintas se destacaram da superfície a que foram aplicadas que as isolava da parede as falhas dessa parede e as posteriores vicissitudes do edifício também foram decisivas para a degradação inelutável ao que parece da pintura9 O fracasso de uma experiência técnica semelhante parece ter ocasionado a destruição da Batalha de Anghiari o quadro que em competição com Michelan gelob algum tempo depois ele começou a pintar numa parede da Sala del Consiglio em Florença e também deixou em estado incompleto É como se outro interesse o do experimentador inicialmente reforçasse aí o interesse artístico mas depois prejudicasse a obra de arte O caráter do homem Leonardo exibia alguns outros traços inusitados e con tradições aparentes Uma certa apatia e indiferença pareciam evidentes nele Num tempo em que cada indivíduo buscava o mais amplo espaço para sua própria atividade o que não sucede sem o emprego de energia e agressividade contra outros indivíduos ele chamava a atenção pela natureza pacífica pela disposição em evitar brigas e rivalidades Ele era bom e gentil com todos dizse que evitava comer carne por não achar justo roubar a vida aos animais e tinha prazer espe cial em adquirir pássaros no mercado e pôlos em liberdade10 Condenava a 92316 guerra e o derramamento de sangue e não considerava o ser humano o rei dos an imais e sim a pior das feras selvagens11 Mas essa feminina delicadeza de senti mentos não o impedia de acompanhar criminosos condenados à morte em seu caminho para a execução a fim de estudar suas expressões deformadas pelo medo e desenhálas num pequeno bloco de anotações nem de projetar as mais cruéis armas ofensivas e trabalhar para César Bórgia como seu principal engenheiro militar Muitas vezes ele parecia indiferente ao bem e ao mal ou exigia que o me dissem com um metro especial Participou numa posição decisiva da expedição militar que levou à conquista de Emilia Romagna por Bórgia o mais implacável e desleal dos tiranos Nos cadernos de anotações de Leonardo não há uma linha que denote crítica ou preocupação com os eventos daqueles dias Não é despro positada aqui a comparação com Goethe na campanha da Françac Se um estudo biográfico pretende mesmo chegar à compreensão da vida psíquica de seu herói não pode silenciar como acontece por discrição ou falso pudor na maioria das biografias acerca da atividade sexual das características sexuais do indivíduo estudado O que sabemos sobre Leonardo nesse âmbito é pouco mas esse pouco é significativo Num tempo em que havia um combate entre a sensualidade sem freios e o triste ascetismo Leonardo era um exemplo de fria rejeição da sexualidade algo que não se esperaria num artista que retratava a beleza feminina Solmi cita esta frase dele que exprime sua frigidez12 O ato do coito e os membros nele empregados são tão feios que se não fossem a beleza dos semblantes os ornamentos dos envolvidos e a desenfreada disposição a natureza perderia a espécie humana Seus escritos póstumos que não apenas tratam dos maiores problemas científicos mas contêm trivialidades que não parecem dignas de um tão grande espírito uma história natural em forma de alegoria fábulas de animais gracejos profecias13 são castos quase diríamos abstinentes de um modo tal que causaria surpresa numa obra literária também nos dias de hoje 93316 Evitam decididamente tudo de natureza sexual como se apenas Eros aquele que preserva tudo o que vive não fosse material digno para a ânsia de saber do pesquisador14 Sabese que frequentemente os grandes artistas se deleitam em dar vazão a sua fantasia em imagens eróticas e até mesmo obscenas mas de Leonardo possuímos apenas alguns desenhos anatômicos dos genitais internos da mulher da posição do embrião no útero etc15 É duvidoso que Leonardo tenha alguma vez enlaçado amorosamente uma mulher tampouco se tem notícia de alguma íntima relação espiritual com uma amiga como a de Michelangelo e Vittoria Colonna Quando ainda era aprendiz vivendo na casa de seu mestre Verrocchio foi alvo de uma acusação de prática homossexual ilícita juntamente com outros jovens denúncia que terminou com sua absolvição Parece que atraiu essa suspeita por haver empregado um garoto de má reputação como modelo16 Tornandose mestre rodeouse de belos garo tos e adolescentes que tomou como discípulos O último desses Francesco Melzi acompanhouo à França permaneceu com ele até sua morte e foi nomeado seu herdeiro Sem partilhar a certeza de seus biógrafos modernos que rejeitam a possibilidade de um comércio sexual entre ele e os discípulos como sendo uma in fundada calúnia lançada ao grande homem podemos considerar muito mais provável que as afetuosas relações entre Leonardo e aqueles jovens que parti cipavam de sua vida como era costume dos discípulos naquele tempo não res ultavam em atos sexuais Além disso não podemos lhe atribuir um grau intenso de atividade sexual A singularidade dessa vida sentimental e sexual pode ser compreendida em relação com a dupla natureza de artista e cientista de Leonardo apenas de uma maneira Dos biógrafos que frequentemente são alheios à abordagem psicoló gica sei de apenas um Edmondo Solmi que se avizinhou da solução do prob lema mas um escritor que usou Leonardo como herói num grande romance 94316 histórico Dmitri Sergueievitch Merejkóvski baseou seu retrato numa similar compreensão desse homem excepcional e exprimiu claramente sua concepção não em linguagem direta é verdade mas da maneira vívida como fazem os po etas17 Solmi afirma sobre Leonardo Mas a inextinguível ânsia de conhecer o mundo circunstante e encontrar mediante o frio exame o segredo da perfeição havia condenado a obra de Leonardo a permanecer imperfeita18 Num ensaio das Conferenze fiorentine é citada uma frase de Leonardo que fornece a sua profis são de fé e a chave para sua natureza Nessuna cosa si può amare nè odiare se prima non si ha cognition di quella19 Ou seja não se tem o direito de amar ou odiar algo se não adquirimos antes um conhecimento aprofundado de sua natureza E o mesmo repete Leonardo numa passagem do Tratado da pintura em que parece defenderse da objeção de irreligiosidade Mas calemse tais repreendedores pois esse é o modo de conhecer o op erador de tantas coisas admiráveis e esse é o modo de amar tamanho inventor porque o grande amor nasce do grande conhecimento da coisa que se ama e se tu não a conheceres não poderás amála ou apenas muito pouco20 O valor dessas afirmações de Leonardo não consiste em que nos informam sobre um importante fato psicológico pois o que dizem é evidentemente errado e ele devia sabêlo tão bem quanto nós Não é verdadeiro que as pessoas adiem seu amor ou seu ódio até haverem estudado o objeto desses afetos e distinguido sua natureza elas amam impulsivamente segundo motivos sentimentais que não têm relação com o conhecimento e cujo efeito é no máximo atenuado pela pon deração e reflexão Portanto Leonardo provavelmente quis dizer que o amor praticado pelos seres humanos não é o amor certo isento de objeções que dever íamos amar de modo a reter o afeto submetêlo ao labor do pensamento e deixá lo tomar seu curso apenas depois de ser aprovado no exame do pensar E nisso 95316 compreendemos que ele pretende nos dizer que com ele é assim que seria dese jável que todos os demais tivessem para com o ódio e o amor a mesma atitude que ele E com ele parece que realmente foi assim Seus afetos eram domados sujeita dos ao instinto pesquisador Ele não amava nem odiava perguntavase isto sim acerca da origem e significado daquilo que devia amar ou odiar e por isso era in evitável que inicialmente parecesse indiferente ante o bem e o mal o belo e o feio Nesse trabalho de pesquisador amor e ódio deixavam de ser algo positivo ou negativo e se transformavam em interesse intelectual Na realidade Leonardo não era isento de paixão não lhe faltava a centelha divina que direta ou indireta mente é a força motriz il primo motore de toda atividade humana Ele simplesmente converteu a paixão em ímpeto de saber dedicouse então à pesquisa com a tenacidade constância e profundidade que vêm da paixão e no apogeu do trabalho intelectual tendo adquirido o conhecimento deixou o afeto longamente contido irromper fluir livremente como faz depois de impulsionar o moinho o braço dágua que foi desviado do rio No auge de uma descoberta quando pôde avistar grande parte do conjunto foi dominado pelo pathos e louvou em termos exaltados a grandiosidade daquela porção da Criação que estudara ou em roupagem religiosa a grandeza de seu Criador Solmi viu corretamente esse processo de transformação em Leonardo Após citar uma pas sagem dessas em que Leonardo celebra a sublime coação que há na natureza O mirabile necessità Ó admirável necessidade afirma ele Tale trasfig urazione della scienza della natura in emozione quase direi religiosa è uno dei tratti caratteristici de manuscrittti vinciani e si trova cento volte espressa Tal trans figuração da ciência da natureza em emoção eu quase diria religiosa é um dos traços característicos dos manuscritos de Leonardo e se acha expressa uma cen tena de vezes21 96316 Devido a seu insaciável e incansável ímpeto de pesquisa Leonardo foi cha mado de Fausto italiano Mas sem considerar as dúvidas quanto à possível recon versão do instinto de pesquisa em prazer de viver que temos de ver como o pres suposto da tragédia de Fausto podese arriscar a observação de que o desenvol vimento de Leonardo se aproxima do modo de pensar spinoziano As conversões da força instintual psíquica em diferentes formas de atividade talvez sejam tão impossíveis de se realizarem sem perda quanto as das forças físicas O exemplo de Leonardo ensina que muitas outras coisas devem ser obser vadas em tais processos Postergar o amor até que se adquira o conhecimento resulta na substituição daquele por este Tendo chegado a conhecer o indivíduo já não ama ou odeia de fato encontrase além do amor e do ódio Talvez por isso a vida de Leonardo tenha sido mais pobre de amor do que a de outros grandes homens e artistas As tempestuosas paixões que exaltam e consomem a que out ros deveram o melhor de sua vida parecem não têlo atingido E há outras con sequências O indivíduo pesquisou em vez de agir e criar Quem começa a ter ideia da grandeza e complexidade do mundo facilmente perde de vista seu pequenino Eu Imerso em admiração tomado de humildade facilmente esquece que é ele mesmo um fragmento das forças atuantes e que pode tentar na medida de sua força pessoal modificar uma mínima porção do inevitável curso do mundo desse mundo em que afinal o pequenino não é menos maravilhoso e significativo do que o grande Talvez as pesquisas de Leonardo tenham começado a serviço de sua arte como acha Solmi22 ele se ocupou das leis e características da luz das cores som bras e perspectiva a fim de assegurar a mestria na imitação da natureza e apontar para outros esse caminho Já então provavelmente ele superestimava a im portância desses conhecimentos para o artista Depois foi impelido sempre acompanhando as necessidades da pintura a investigar os objetos dessa arte os 97316 animais e plantas as proporções do corpo humano e do exterior desses objetos passou para o conhecimento da construção interna e das funções vitais que tam bém se exprimem na sua aparência e que pedem representação na arte Enfim foi levado pelo instinto de pesquisa que se tornara poderoso até romperse o vín culo com as exigências de sua arte de modo que descobriu as leis gerais da mecânica imaginou a história das estratificações e fossilizações no vale do Arno e pôde anotar em seu livro com letras maiúsculas Il sole non si move O Sol não se move Suas pesquisas se estenderam a praticamente todos os ramos das ciên cias naturais em cada um deles Leonardo foi um descobridor ou pelo menos arauto e pioneiro23 Mas seu ímpeto de saber permaneceu voltado para o mundo externo algo o manteve afastado da pesquisa da vida psíquica humana na Aca demia Vinciana para a qual desenhou intrincados emblemas artísticos havia pouco lugar para a psicologia Então quando buscou retornar da pesquisa científica para o exercício da arte do qual partira experimentou em si o incômodo gerado pelo novo foco de seus interesses e a modificada natureza de seu trabalho psíquico O que lhe interessava num quadro era sobretudo um problema e por trás deste via inúmeros outros problemas surgirem tal como se habituara a ver na interminável e inesgotável pesquisa da natureza Ele não mais conseguia limitar suas exigências isolar a obra de arte arrancála do enorme contexto ao qual sabia que ela pertencia Após os mais cansativos esforços de nela expressar tudo o que a ela se ligava em seus pensamentos tinha de abandonála ou declarála incompleta O artista havia tomado a seu serviço o pesquisador como ajudante mas o servidor se tornou então mais forte e suprimiu seu senhor Quando vemos um único instinto excessivamente desenvolvido no caráter de uma pessoa como a ânsia de saber no caso de Leonardo buscamos explicar isso por uma disposição especial de provável condicionamento orgânico acerca do 98316 qual pouco ainda se sabe Mas os estudos psicanalíticos de neuróticos nos levam a manter duas outras expectativas que bem gostaríamos de ver comprovadas em cada caso individual Achamos provável que esse instinto excessivamente forte já atuava na mais remota infância do indivíduo e que sua hegemonia foi firmada por impressões da vida da criança e supomos também que ele adquiriu o reforço de energias instintuais originalmente sexuais de modo a mais tarde poder represent ar uma parte da vida sexual Uma pessoa assim se dedicaria à pesquisa por exem plo com a mesma devoção apaixonada que outra dispensa ao amor e poderia pesquisar em vez de amar Não apenas no caso do instinto de pesquisa mas na maioria daqueles em que um instinto tem especial intensidade arriscaríamos a conclusão de que houve o reforço sexual dele A observação da vida cotidiana das pessoas nos mostra que a maioria delas tem êxito em dirigir consideráveis porções de suas forças instintuais sexuais para sua atividade profissional O instinto sexual se presta muito bem para fazer tais contribuições por ser dotado da capacidade de sublimação ou seja pode trocar seu objetivo imediato por outros possivelmente mais valorizados e não sexuais Consideramos isso provado quando a história da infância isto é do desenvol vimento psíquico de uma pessoa revela que o instinto muito poderoso se achava a serviço de interesses sexuais quando ela era criança Vemos outra con firmação disso quando há um notável definhamento da vida sexual nos anos da maturidade como se uma porção da atividade sexual fosse substituída pela ativid ade do instinto muito poderoso Parece haver dificuldades especiais em aplicar essas expectativas ao caso do instinto de pesquisa muito poderoso pois justamente às crianças hesitamos em at ribuir tanto esse instinto sério como interesses sexuais dignos de nota Mas essas dificuldades podem ser facilmente superadas A ânsia de saber das crianças pequenas é atestada por seu incansável gosto em perguntar que para um adulto é 99316 algo incompreensível enquanto não percebe que todas as perguntas são apenas rodeios que não podem ter fim porque substituem uma só pergunta que a criança não faz Quando a criança fica maior e mais judiciosa é frequente a cessação re pentina dessa manifestação da ânsia de saber Uma explicação plena é fornecida pela investigação psicanalítica que nos ensina que muitas talvez a maioria das crianças as mais dotadas em todo caso atravessam a partir dos dois anos de idade um período que podemos designar como o da pesquisa sexual infantil A ânsia de saber das crianças dessa idade não surge espontaneamente pelo que sabemos é despertada pela impressão de uma vivência importante pelo nasci mento real ou apenas receado com base em evidências externas de um irmãozinho que a criança vê como uma ameaça a seus interesses egoístas A pesquisa se concentra na questão de onde vêm os bebês como se a criança bus casse meios e formas de impedir um acontecimento tão indesejado Assim ficamos surpresos ao saber que a criança se recusa a dar crédito às informações que lhe são dadas por exemplo rejeitando energicamente a fábula da cegonha tão rica de sentido mitológico que vê nesse ato de descrença o começo de sua autonomia intelectual muitas vezes se opõe seriamente aos adultos e nunca mais lhes perdoa na verdade que a tenham enganado nesse ponto Ela pesquisa por seus próprios meios imagina que o bebê permaneceu no ventre da mãe e guiada pelos impulsos de sua própria sexualidade forma opiniões sobre a origem do be bê a partir da comida sobre seu nascimento pelo intestino sobre o obscuro papel que teria o pai e já então imagina a existência do ato sexual que lhe parece algo hostil e violento Mas como sua própria constituição sexual ainda não está capa citada para a procriação sua pesquisa sobre a origem das crianças fica sem res ultados e é abandonada A impressão deixada por esse malogro no primeiro teste de independência intelectual parece ser duradoura e bastante deprimente24 100316 Quando o período da investigação sexual infantil é encerrado por uma onda de enérgica repressão sexual há três diferentes possibilidades para o destino sub sequente do instinto de pesquisa que derivam de sua primeva ligação com in teresses sexuais Na primeira delas a pesquisa tem o mesmo destino da sexualid ade a ânsia de saber permanece inibida e a livre atividade da inteligência talvez fique limitada por toda a vida especialmente quando pouco depois a poderosa inibição intelectual da religião é trazida pela educação Esse é o tipo caracterizado pela inibição neurótica Compreendemos muito bem que a debilidade intelectual assim adquirida promove eficazmente a irrupção de uma doença neurótica No segundo tipo o desenvolvimento intelectual é forte o bastante para resistir à repressão sexual que o abala Algum tempo após o fim da pesquisa sexual infantil a inteligência fortalecida oferece sua ajuda para contornar a repressão sexual recordandose da velha associação e a pesquisa sexual suprimida retorna do in consciente como ruminação compulsiva certamente em forma distorcida e con strita mas forte o suficiente para sexualizar o pensamento mesmo e tingir as op erações intelectuais com o prazer e a angústia dos processos sexuais propriamente ditos A pesquisa tornase a atividade sexual frequentemente a única a sensação de solucionar em pensamentos de clarificar toma o lugar da satisfação sexual mas o caráter interminável da pesquisa infantil se repete igualmente no fato de que esse ruminar não tem fim de que a desejada sensação intelectual de encontrar uma solução sempre recua no horizonte O terceiro tipo o mais raro e mais perfeito escapa graças a uma disposição especial tanto à inibição do pensamento como à compulsão neurótica ao pensamento É certo que a repressão sexual também surge aí mas não consegue relegar ao inconsciente um instinto parcial do prazer sexual em vez disso a li bido se furta ao destino da repressão ao sublimarse em ânsia de saber desde o início e juntarse ao vigoroso instinto de pesquisa reforçandoo Também aí a 101316 pesquisa se torna em certa medida compulsão e sucedâneo da atividade sexual mas devido à completa diferença entre os processos psíquicos subjacentes sub limação em vez de irrupção desde o inconsciente o caráter de neurose está aus ente não há mais vínculo com os originais complexos da pesquisa sexual infantil e o instinto pode operar livremente a serviço do interesse intelectual Ao evitar ocuparse de temas sexuais ele ainda leva em conta a repressão sexual que tanto o fortaleceu mediante o acréscimo de libido sublimada Se considerarmos a coexistência em Leonardo de um poderoso instinto de pesquisa e uma atrofia da vida sexual que se restringe à assim chamada homos sexualidade ideal estaremos inclinados a requerêlo como exemplo de nosso ter ceiro tipo O fato de ele ter conseguido sublimar em impulso à pesquisa a maior parte de sua libido após a ânsia de saber ter atuado a serviço dos interesses sexuais na infância seria o âmago e o segredo do seu ser Mas naturalmente não é fácil aduzir a prova para essa concepção Necessitaríamos conhecer o desenvol vimento psíquico dos primeiros anos de sua infância e parece tolo esperar por esse material quando os dados de sua vida são tão poucos e incertos e além disso tratandose de informações sobre coisas que se furtam à atenção do obser vador até mesmo em pessoas de nossa própria geração Sabemos muito pouco sobre a infância e juventude de Leonardo Ele nasceu em na pequena cidade de Vinci entre Florença e Empoli Era um filho ilegí timo o que naquele tempo não era uma grande mácula social Seu pai era ser Piero da Vinci um notário descendente de uma família de notários e agricultores que adotou o nome da localidade de Vinci Sua mãe chamavase Caterina era provavelmente uma jovem camponesa que depois se casou com outro habitante de Vinci Essa mãe não aparece mais na vida de Leonardo apenas o romancista Merejkóvski acredita ter achado traços delad O único dado seguro sobre a infân cia de Leonardo está num documento oficial de um cadastro fiscal florentino 102316 em que Leonardo é mencionado entre os componentes da família Vinci como o filho ilegítimo de cinco anos de idade de ser Piero25No matrimônio com uma certa donna Albiera ser Piero não teve filhos por isso o pequeno Leonardo foi criado na casa do pai Ele a abandonou apenas quando ingressou na oficina de Andrea del Verrocchio como aprendiz não se sabe com que idade Em 1472 o nome de Leonardo já se encontra no catálogo dos membros da Compagnia dei Pittori Isso é tudo II Até onde sei apenas uma vez Leonardo menciona algo de sua infância em seus apontamentos científicos Numa passagem que trata do voo dos abutres ele se in terrompe subitamente e traz uma lembrança que lhe ocorre dos seus primeiros anos de vida Parece que estava em meu destino me ocupar assim do abutre pois me vem uma recordação muito antiga de quando eu ainda estava no berço em que um abutre desceu até mim abriume a boca com sua cauda e bateu muitas vezes a cauda contra meus lábios26 Uma recordação de infância pois e muito peculiar certamente Peculiar por seu conteúdo e pela idade em que é situada Talvez não seja impossível que um indivíduo conserve uma lembrança de quando era um lactente mas de maneira nenhuma é algo seguro No entanto o que essa recordação diz que um abutre 103316 abriu a boca do menino com a cauda parece tão improvável tão fabuloso que ju lgamos preferível outra concepção que resolve de uma vez as duas dificuldades A cena com o abutre não seria uma recordação de Leonardo mas uma fantasia que ele formou posteriormente e transpôs para a infância27 Frequentemente as recordações de infância não têm outra origem elas não são fixadas no instante da vivência e depois repetidas como as lembranças conscientes da época adulta mas sim evocadas numa época posterior quando a infância já ficou para trás e nisso são modificadas falseadas postas a serviço de tendências posteriores de modo que não se distinguem rigorosamente das fantasias em geral Talvez compreen damos da melhor maneira a sua natureza se pensarmos em como se originou a historiografia entre os povos antigos Enquanto o povo era pequeno e fraco não pensava em escrever sua história cultivava o solo de sua terra lutava contra os vizinhos por sua existência buscava tomarlhes terras e alcançar riqueza Era um tempo heroico e ahistórico Depois veio uma nova era em que esse povo ad quiriu consciência de si sentiuse poderoso e rico e surgiu a necessidade de saber de onde procedia e como se desenvolvera A historiografia que havia principiado como um registro contínuo das vivências do presente lançou o olhar também para o passado reuniu tradições e lendas interpretou os resíduos dos velhos tem pos em usos e costumes criando assim uma história do período primordial Era inevitável que essa préhistória fosse antes uma expressão dos desejos e opiniões do presente que um reflexo do passado pois muitas coisas haviam desaparecido da memória do povo outras haviam sido deformadas e alguns traços do passado eram erroneamente interpretados no sentido do presente Além disso não se es crevia a história pelos motivos de uma objetiva ânsia de saber mas para influir sobre os contemporâneos para incitálos exaltálos ou lhes oferecer exemplos A memória consciente que uma pessoa tem de suas vivências adultas é comparável àquela primeira historiografia o registro do presente e as lembranças que tem 104316 da infância correspondem pela origem e confiabilidade à história dos primeiros tempos de um povo compilada tardiamente e de forma tendenciosa Se a história do abutre que visitou Leonardo no berço for apenas uma fantasia nascida posteriormente deveremos julgar que talvez não valha a pena nos de termos nela por mais tempo Para explicála poderíamos nos satisfazer com a in clinação por ele mesmo declarada de atribuir a seu interesse pelo problema do voo dos pássaros o caráter de uma predestinação Mas com tal menosprezo cometeríamos uma injustiça que equivaleria àquela de levianamente rejeitar o material das lendas tradições e interpretações da préhistória de um povo Apesar das deformações e incompreensões a realidade do passado se acha nelas representada elas são aquilo que o povo formulou a partir das vivências de seu tempo primevo sob o império de motivos outrora poderosos e ainda hoje atu antes e se pudéssemos pelo conhecimento de todas as forças operantes fazer es sas deformações retrocederem seríamos capazes de desvelar a verdade histórica por trás desse material fabuloso O mesmo vale para as recordações de infância ou as fantasias do indivíduo Não é insignificante aquilo que uma pessoa acredita se lembrar da infância em geral por trás dos resíduos de lembranças que ela mesma não entende se escondem valiosos testemunhos dos traços mais import antes de seu desenvolvimento psíquico28 Dado que agora possuímos com as téc nicas psicanalíticas excelentes meios de trazer à luz esse material escondido poderemos tentar preencher a lacuna na história da vida de Leonardo através da análise de sua fantasia infantil Se nisso não alcançarmos um grau satisfatório de certeza teremos de nos consolar com o fato de que muitas outras investigações sobre esse grande e enigmático homem não tiveram melhor sorte Se examinamos a fantasia do abutre com o olhar do psicanalista ela não nos parecerá estranha por muito tempo lembramonos de frequentemente nos sonhos por exemplo haver encontrado algo semelhante de modo que 105316 podemos nos arriscar a traduzir essa fantasia de sua linguagem peculiar para um idioma compreensível por todos A tradução aponta para o plano erótico Cauda coda é um dos mais notórios símbolos e denominações substitutivas do mem bro masculino tanto em italiano como em outras línguas A situação da fantasia em que um abutre abre a boca do menino e lá dentro movimenta sua cauda cor responde à ideia de uma felação de um ato sexual em que o membro é introduz ido na boca da pessoa em questão É singular que essa fantasia tenha um caráter tão claramente passivo ela se assemelha a determinados sonhos e fantasias de mulheres ou homossexuais passivos que na relação sexual têm o papel feminino Oxalá o leitor agora se contenha e não se recuse pleno de indignação a acompanhar a psicanálise porque ela conduz tão logo é empregada a uma imper doável difamação da memória de um homem grande e puro É óbvio que essa in dignação jamais nos poderá dizer o significado da fantasia infantil de Leonardo por outro lado ele revelou essa fantasia do modo mais inequívoco e não po demos abandonar a expectativa ou o préconceito se quiserem de que tal fantasia assim como toda criação psíquica como um sonho uma visão um delírio tem de possuir algum significado Portanto continuemos dando ao tra balho analítico que ainda não falou sua última palavra a atenção a que ele tem direito A inclinação a tomar na boca o membro do homem e chupálo que na so ciedade respeitávele é incluída entre as perversões sexuais abomináveis ocorre frequentemente nas mulheres de hoje e como demonstram antigas obras de arte também de épocas passadas e parece perder inteiramente o caráter repug nante para a pessoa apaixonada O médico encontra fantasias baseadas nessa in clinação também em mulheres que não tomaram conhecimento dessa possibilid ade de satisfação sexual mediante a leitura da Psychopathia sexualis de Krafft 106316 Ebing ou por alguma outra fonte Ao que parece as mulheres não têm di ficuldade em criar espontaneamente essas fantasias que envolvem um desejo29 A investigação posterior também nos ensina que essa situação tão malvista pela moral possui uma origem bastante inocente Ela é apenas a reelaboração de outra situação em que todos nós outrora nos sentíamos muito bem quando sendo be bês essendo io in culla estando eu no berço tomávamos na boca o mamilo da mãe ou da ama de leite e o chupávamos A impressão orgânica dessa primeira ex periência de prazer em nossa vida provavelmente permaneceu em nós indes trutível quando mais tarde a criança vem a conhecer a teta da vaca que em sua função equivale a um mamilo e em sua forma e localização no baixo ventre cor responde a um pênis chega ao estágio preliminar para a formação posterior daquela fantasia sexual repugnante Agora compreendemos por que Leonardo situa em sua época de lactente a re cordação da suposta experiência com o abutre Por trás dessa fantasia não há outra coisa senão a reminiscência do ato de mamarf ou ser amamentado no seio materno uma cena de humana beleza que ele como muitos outros artistas representou ao pintar a mãe de Deus com o filho Mas vamos também ter presente algo que ainda não compreendemos o fato de essa reminiscência signi ficativa para os dois sexos igualmente haver sido reelaboradag pelo homem Leonardo em fantasia homossexual passiva Por enquanto deixaremos de lado a questão do nexo que haveria entre a homossexualidade e o ato de mamar no seio materno e apenas lembraremos que a tradição efetivamente designa Leonardo como um homem de sentimentos homossexuais Para nós é irrelevante se aquela acusação contra o jovem Leonardo era justificada ou não não é a atividade real mas a atitude emocional que determina se devemos conferir a alguém o atributo da inversão 107316 Há outra característica não compreendida na fantasia de infância de Leonardo que solicita primeiramente nossa atenção Interpretamos a fantasia por referência ao ato de ser amamentado pela mãe e vemos a mãe substituída por um abutre De onde vem esse abutre e como entra nesse ponto Uma ideia se oferece vinda de tão longe que poderíamos hesitar em recorrer a ela Nos hieróglifos dos antigos egípcios a mãe é representada com a imagem de um abutre30 Os egípcios adoravam uma divindade materna que era mostrada com cabeça de abutre ou com várias cabeças das quais pelo menos uma era de abutre31 O nome dessa deusa era pronunciado mut seria apenas casual a semel hança fonética com a nossa palavra Mutter mãe Assim o abutre se relaciona de fato com mãe mas em que isso pode nos ajudar É lícito esperarmos de Leonardo esse conhecimento quando a decifração dos hieróglifos foi conseguida somente por François Champollion 1790183232 Valeria a pena saber como os antigos egípcios chegaram a escolher o abutre como símbolo da maternidade Ora a religião e a civilização dos egípcios já eram objeto da curiosidade científica dos gregos e romanos e muito antes que nós fôssemos capazes de ler os monumentos do Egito dispúnhamos de informações sobre eles em obras da Antiguidade clássica que foram conservadas textos de autores conhecidos como Estrabão Plutarco Amiano Marcelino e também de autoria ignorada e de procedência e período incertos como os Hieroglyphica de Horapollo Nilus e o livro de sabedoria sacerdotal do Oriente que nos chegou com o nome do deus Hermes Trismegisto Essas fontes nos dizem que o abutre era símbolo da maternidade porque se acreditava que havia apenas abutres fêmeas que inexistiam machos nessa espécie de ave33 história natural dos antigos se achava uma contrapartida dessa limitação entre os escaravelhos os besouros que os egípcios adoravam como deuses pensavase que havia apenas machos34 108316 Como deveria então ocorrer a fecundação dos abutres se todos eles eram fêmeas Uma passagem de Horapollo nos informa acerca disso35 Em determin ada época esses pássaros se detêm no voo abrem a vagina e são impregnados pelo vento De forma inesperada agora chegamos a ver como provável algo que há pou co rejeitávamos como absurdo É bem possível que Leonardo conhecesse a fábula científica em virtude da qual os egípcios designavam o conceito de mãe com a imagem do abutre Ele era um grande leitor interessado em todos os âmbitos da literatura e do saber No Códice Atlântico temos uma lista de todos os livros que ele possuía em determinado momento36 e também muitas anotações sobre livros que ele tomara emprestado de amigos e pelos excertos que Fr Richter reuniu dessas anotações dificilmente se pode exagerar a extensão de suas leituras Entre esses livros não faltam obras de ciências naturais antigas e também contem porâneas Todos eles se achavam impressos naquele tempo e Milão era justa mente a cidade italiana onde mais se desenvolvia a jovem arte da impressão Ao prosseguir deparamos com uma notícia que pode transmutar em certeza a probabilidade de que Leonardo conhecia a fábula do abutre O erudito editor e comentador de Horapollo observa sobre a passagem mencionada Caeterum hanc fabulam de vulturibus cupide amplexi sunt Patres Eclesiastici ut ita argumento ex rerum natura petito refutarent eos qui Virginis partum negabant itaque apud omnes fere hujus rei mentio occurrit Mas sua fábula sobre o abutre foi avidamente abraçada pelos Pais da Igreja para refutar com esse argumento extraído das coisas da natureza aqueles que negavam o parto da Virgem por isso quase todos eles o mencionam Portanto a fábula da unissexualidade e da forma de concepção dos abutres não permaneceu uma anedota inofensiva como aquela dos escaravelhos Os Pais da Igreja dela se apoderaram a fim de ter um argumento da natureza contra os 109316 que duvidavam da história sagrada Se de acordo com as melhores narrativas da Antiguidade os abutres se deixavam fecundar pelo vento por que não teria acontecido o mesmo com uma fêmea humana Devido a essa possibilidade de utilização quase todos os Pais da Igreja contavam a fábula do abutre e pratica mente não podemos duvidar que com tão forte patrocínio ela não fosse con hecida também de Leonardo Podese conceber a gênese da fantasia com o abutre da seguinte maneira Ao ler num Pai da Igreja ou numa obra científica que os abutres eram todos fêmeas e podiam se reproduzir sem a ajuda de um macho veiolhe uma recordação que se transformou naquela fantasia mas que significava que também ele havia sido como um filho de abutre que tivera uma mãe mas não um pai e a isso se juntou da única maneira que impressões tão antigas podem se manifestar um eco do prazer que havia experimentado no seio materno A alusão daqueles autores à representação da santa Virgem com o Menino sempre cara aos artistas certa mente contribuiu para que essa fantasia lhe parecesse valiosa e significativa Afi nal assim ele se identificava com o Menino Jesus o salvador e consolador não apenas de uma mulher Ao decompor uma fantasia infantil procuramos separar seu real teor de memória dos motivos posteriores que o modificam e deformam No caso de Leonardo acreditamos agora conhecer o real teor da fantasia a substituição da mãe pelo abutre indica que o menino dá pela falta do pai e se acha sozinho com a mãe O nascimento ilegítimo de Leonardo combina com a fantasia do abutre apenas em virtude daquilo ele pôde se comparar a um filhote de abutre Mas o outro fato seguro de sua infância de que temos conhecimento é que aos cinco anos de idade ele vivia na casa do pai A partir de quando isso ocorreu se teria sido alguns meses após o nascimento ou algumas semanas antes daquele cadastro cf final do cap i é algo que ignoramos completamente Surge aqui a 110316 interpretação da fantasia com o abutre e ela nos diz que Leonardo não passou os decisivos anos iniciais de sua vida com seu pai e sua madrasta mas com a pobre e abandonada mãe verdadeira de modo a ter tempo de sentir a ausência do pai Isso parece uma conclusão muito magra ainda que ousada de nosso empenho psicanalítico mas ela ganhará importância à medida que for aprofundada Sua certeza é aumentada pela consideração das circunstâncias efetivas da infância de Leonardo Segundo os relatos seu pai ser Piero da Vinci casouse com donna Albiera uma moça nobre no mesmo ano em que ele nasceu Foi pelo fato de esse casamento não ter gerado filhos que o garoto vivia na casa paterna ou melhor do avô quando tinha cinco anos de idade como atesta o documento Ora não é costumeiro entregar um rebento ilegítimo a uma jovem esposa que ainda espera ter filhos Devem ter se passado anos de desapontamento até que se decidisse to mar como compensação pelos filhos legítimos desejados em vão o menino bas tardo que provavelmente crescia de modo encantador Condiz perfeitamente com a interpretação da fantasia do abutre que tivessem decorrido ao menos três talvez cinco anos da vida de Leonardo até que ele trocasse o lar de sua solitária mãe pelo do casal Mas então já era tarde Nos primeiros três ou quatro anos são fixa das impressões e estabelecidas formas de reação ao mundo externo cuja im portância não poderá mais ser diminuída por nenhuma vivência posterior Se for correto que as lembranças infantis incompreensíveis e as fantasias que sobre elas se constroem sempre ressaltam o que é mais importante na vida psíquica da pessoa então o fato corroborado pela fantasia do abutre de que Leonardo passou os primeiros anos sozinho com a mãe deve ter tido influência decisiva na configuração de sua vida interior Um efeito certamente inevitável dessa constelação afetiva foi que o menino que em sua tenra idade se defrontou com um problema a mais que as outras crianças começou a ruminar sobre esse enigma com paixão especial tornandose bem cedo um pesquisador atormentado 111316 pelas grandes questões de onde vêm as crianças e o que tem a ver o pai com sua origem A intuição desse nexo entre sua pesquisa e a história de sua infância o le vou a exclamar quando adulto que era seu destino dedicarse ao problema do voo dos pássaros pois já no berço fora visitado por um abutre Não será tarefa difícil mostrar mais adiante que a ânsia de saber que se voltava para o voo dos pássaros derivava da pesquisa sexual infantil III Na fantasia infantil de Leonardo o elemento abutre representou para nós o teor verdadeiro da recordação e o contexto em que o próprio Leonardo situou sua fantasia lançou uma clara luz sobre a importância desse conteúdo para sua vida posterior Ao avançar no trabalho de interpretação deparamos com o desconcer tante problema de por que esse teor da recordação foi reelaborado em situação homossexual A mãe que amamenta o bebê ou melhor da qual o bebê mama transformouse num abutre que enfia sua cauda na boca da criança Afirmamos que a coda do abutre não pode significar outra coisa senão um gen ital masculino um pênis conforme a habitual substituição que faz a linguagem Mas não compreendemos como a atividade da fantasia pode haver dotado do em blema da virilidade justamente esse pássaromãe e em vista desse absurdo começamos a duvidar da possibilidade de extrair dessa construção fantasiosa um sentido racional 112316 Mas não devemos desanimar Quantos sonhos aparentemente absurdos já não nos revelaram seu significado Por que haveria mais dificuldade com uma fantas ia infantil do que com um sonho Lembrando não ser bom que uma peculiaridade permaneça isolada vamos acrescentarlhe outra que é ainda mais surpreendente A deusa egípcia Mut representada com cabeça de abutre era de caráter total mente impessoal segundo afirma Drexler no Lexikon de Roscher Era frequente mente fundida com outras divindades maternas de individualidade mais viva como Ísis e Hathor mas também mantinha existência própria e culto específico Uma singularidade do panteão egípcio era que os deuses individualizados não de sapareciam com o sincretismo Além da divindade composta a figura simples de um deus continuava a existir de forma independente Na maioria das repres entações essa deusa materna com cabeça de abutre era mostrada com um falo37 Seu corpo que os seios caracterizavam como feminino também possuía um membro masculino em estado de ereção Achamos em Mut portanto a mesma união de características maternas e mas culinas que na fantasia do abutre de Leonardo Deveríamos explicar essa coin cidência pela suposição de que também através dos livros ele soube da natureza andrógina do abutremãe Tal possibilidade é mais que discutível parece que as fontes de que ele dispunha nada continham sobre essa peculiar conformação Ser ia mais plausível fazer essa concordância remontar a um motivo comum atuante nos dois casos e ainda não conhecido A mitologia nos informa que a constituição andrógina a união de caracteres sexuais masculinos e femininos não era própria apenas de Mut mas também de divindades como Ísis e Hathor dessas contudo talvez apenas na medida em que também possuíam natureza materna e se fundiam com Mut38 Ela nos ensina ade mais que outras divindades egípcias como Neith de Sais de que mais tarde se 113316 originou a grega Atena foram concebidas originalmente como andróginas ou seja hermafroditas e que o mesmo ocorreu com muitos deuses gregos em espe cial aqueles em torno de Dionísio mas também com Afrodite depois reduzida a deusa feminina do amor E a mitologia pode igualmente oferecer a explicação de que o falo acrescentado ao corpo feminino denotaria a primordial força criadora da natureza e que todas essas divindades hermafroditas exprimem a ideia de que apenas a união do masculino com o feminino pode fornecer uma digna repres entação da perfeição divina Mas nenhuma dessas observações nos esclarece o en igma psicológico que constitui o fato de a imaginação humana não se ofender em dotar do signo da potência viril o oposto de tudo que é materno uma figura que deve encarnar a essência da maternidade O esclarecimento nos vem das teorias sexuais infantis Houve um tempo na vida da pessoa em que o genital masculino foi tido como compatível com a rep resentação da mãe Quando a ânsia de saber do menino se volta para o enigma da vida sexual ele é tomado de interesse por seu próprio genital Considera essa parte de seu corpo tão valiosa e importante que não pode acreditar que ela falte em outras pessoas com as quais sente muita afinidade Como não é capaz de ima ginar que há outro tipo de genital igualmente valioso tem de recorrer à suposição de que todas as pessoas inclusive as mulheres possuem um membro tal como o dele Esse préconceito se arraiga tão firmemente no jovem pesquis ador que não é destruído sequer pelas primeiras observações dos genitais de ga rotas pequenas A percepção lhe diz que ali há algo diferente mas ele não con segue admitir para si mesmo que o teor dessa percepção é que não pode encontrar o membro na menina Imaginar que o membro possa faltar é algo inquietante in suportável por isso ele ensaia uma decisão intermediária o membro se acha presente também na menina mas é ainda muito pequeno crescerá depois39 Se essa expectativa parece não se confirmar em observações posteriores outra saída 114316 se oferece Também havia o membro na garotinha mas ele foi cortado e em seu lugar ficou uma ferida Esse avanço na teoria já utiliza experiências próprias de caráter penoso nesse meiotempo o menino escutou a ameaça de que lhe seria tirado o precioso órgão se demonstrasse interesse excessivo por ele Sob a in fluência dessa ameaça de castração ele modifica sua concepção do genital femin ino passa a temer por sua virilidade e também a desprezar as infelizes criaturas que segundo lhe parece já sofreram a terrível punição40 Antes que o menino caia sob o domínio do complexo da castração num tempo em que a mulher ainda conserva pleno valor a seus olhos começa a nele se manifestar como atividade instintual erótica um intenso prazer em olhar Ele quer ver os genitais de outras pessoas originalmente é provável a fim de comparálos com o seu A atração erótica que parte da pessoa da mãe culmina logo num anseio pelo genital dela tido como um pênis Com a posterior descoberta de que a mãe não possui um pênis tal anseio frequentemente se con verte no oposto dá lugar a uma repulsa que nos anos da puberdade pode se torn ar causa de impotência psíquica misoginia e permanente homossexualidade Mas a fixação no objeto que foi ansiosamente desejado o pênis da mulher deixa traços indeléveis na vida psíquica do garoto que passou por esse trecho da pesquisa sexual infantil com particular intensidade A adoração fetichista do pé e do sapato da mulher parece tomar o pé como símbolo substitutivo do membro feminino que foi adorado e cuja falta é sentida desde então os cortadores de trançash desempenham sem o saber o papel de indivíduos que realizam o ato da castração no genital feminino Não se chegará a uma concepção correta das manifestações da sexualidade in fantil e provavelmente se recorrerá ao expediente de declarar indignas de crédito estas comunicações enquanto não se abandonar inteiramente o menosprezo de nossa cultura pelos genitais e as funções sexuais A compreensão da psique 115316 infantil requer analogias préhistóricas Para nós desde muitas gerações os ór gãos genitais são os pudenda objetos de vergonha e na repressão sexual adi antada até mesmo de nojo Lançando um olhar abrangente sobre a vida sexual de nossa época especialmente a das camadas sociais portadoras da civilização hu mana somos tentados a dizer quei a maioria dos que hoje vivem submetese ao mandamento da procriação apenas a contragosto sentindo sua dignidade humana ofendida e degradada O que entre nós se acha de outra visão da vida sexual confinouse aos estratos baixos da população que permaneceram rudes e é ocultado entre aqueles superiores e refinados como sendo culturalmente inferior ousando manifestarse apenas sob as amargas admoestações de uma má consciên cia Era diferente nos tempos préhistóricos da espécie humana O material labor iosamente recolhido pelos pesquisadores leva à convicção de que originalmente os genitais eram o orgulho e a esperança dos vivos gozavam de adoração reli giosa e transmitiam o caráter divino de suas funções a todas as novas atividades que os homens aprendiam Numerosas figuras de deuses se originaram por sub limação de sua natureza e num tempo em que o nexo entre as religiões oficiais e a atividade sexual já se escondia à consciência geral cultos secretos se empen havam em mantêlo vivo para certo número de iniciados Por fim ocorreu ao longo da evolução cultural que tal montante do divino e sagrado foi extraído da sexualidade que o exaurido restante se tornou alvo do desprezo Porém consid erando o que há de indelével em todos os traços psíquicos não devemos nos ad mirar de que até as mais primitivas formas de adoração dos genitais tenham sido encontradas em tempos recentes e de que a linguagem corrente os costumes e as superstições da humanidade de hoje contenham vestígios de todas as fases desse curso evolutivo41 Analogias biológicas de peso nos fazem crer que a evolução psíquica do indi víduo repete de forma abreviada o curso de evolução da humanidade e por isso 116316 não achamos inverossímil o que a investigação psicanalítica da alma infantil nos traz acerca do valor que a criança atribui aos genitais A hipótese infantil de que a mãe tem um pênis é a fonte comum de que procedem a configuração andrógina de divindades maternas como a Mut egípcia e a coda do abutre da fantasia de Leonardo quando criança É erroneamente que chamamos essas representações de deuses de hermafroditas no sentido médico da palavra Nenhuma delas reúne de fato os genitais de ambos os sexos tal como se acham combinados em algumas anomalias que assombram quem as vê Elas apenas juntam o membro masculino aos seios que indicam a maternidade como se acha na primeira representação que a criança faz do corpo da mãe A mitologia preservou para os crentes essa vener ável forma do corpo materno criada em tempos primevos Agora podemos traduzir da seguinte maneira a ênfase na cauda do abutre que há na fantasia de Leonardo Naquele tempo em que minha tenra curiosidade se voltava para minha mãe e eu ainda lhe atribuía um genital como o meu Outra evidência das primeiras pesquisas sexuais de Leonardo que a nosso ver tornaramse decisivas para toda a sua vida Uma breve reflexão nos lembra neste ponto que ainda não podemos nos sat isfazer com essa explicação para a cauda do abutre na fantasia de Leonardo Ela parece conter algo mais que ainda não compreendemos Seu traço mais saliente afinal é que transforma o ato de mamar no seio da mãe em ser amamentado ou seja em algo passivo numa situação de caráter indubitavelmente homossexual portanto Tendo em conta a probabilidade histórica de que Leonardo agia como um homem de sentimentos homossexuais perguntamonos se essa fantasia não apontaria para uma conexão causal entre a relação do menino Leonardo com sua mãe e sua posterior homossexualidade manifesta ainda que apenas ideal Não ousaríamos inferir esse nexo da reminiscência deformada de Leonardo se não 117316 soubéssemos pelas investigações da psicanálise que ele existe e que é íntimo e necessário Os homens homossexuais que em nossos dias atuam energicamente contra as restrições legais à sua atividade sexual gostam de se colocar através de seus portavozes intelectuais como uma variedade sexual distinta desde o início como um estágio intermediário um terceiro sexo Seriam homens obrigados por condições orgânicas inatas a ter com um homem o prazer que não podem sentir com uma mulher Assim como por razões de humanidade de bom grado subscrevemos suas reivindicações também somos reticentes para com suas teori as que foram postuladas sem consideração da gênese psíquica da homossexualid ade A psicanálise oferece os meios de preencher essa lacuna e de pôr à prova as afirmações dos homossexuais Ela pôde realizar essa tarefa apenas em poucos in divíduos mas todas as investigações até agora empreendidas tiveram o mesmo resultado surpreendente42 Todos os nossos homens homossexuais tiveram nos primeiros anos da infância depois esquecidos uma intensa ligação erótica numa pessoa do sexo feminino geralmente a mãe ligação essa provocada ou favorecida pela ternura excessiva da própria mãe e além disso sustentada pelo distan ciamento do pai na vida da criança Sadger enfatiza que as mães de seus pacientes homossexuais eram com frequência mulheres masculinas de traços enérgicos que podiam retirar o pai da posição que lhe cabia Ocasionalmente observei isso também mas recebi impressão mais forte nos casos em que o pai estava ausente desde o início ou logo desapareceu de modo que o menino ficou entregue à in fluência feminina É como se a presença de um pai forte garantisse no filho a de cisão certa na eleição do objeto a escolha pelo sexo oposto43 Após esse estágio preliminar ocorre uma transformação cujo mecanismo con hecemos mas cujas forças impulsoras ainda ignoramos O amor à mãe não pode prosseguir acompanhando o desenvolvimento consciente sucumbe à repressão 118316 O garoto reprime o amor à mãe pondo a si mesmo no lugar desta identificando se com ela e tomando sua própria pessoa como modelo à semelhança do qual escolhe seus novos objetos amorosos Assim tornase homossexual mais precis amente retorna ao autoerotismo pois os garotos que o adolescente agora ama são apenas sucedâneos e reiterações de sua própria pessoa infantil que ele ama tal como sua mãe o amou quando criança Dizemos que ele encontra seu objeto amoroso pela via do narcisismo pois o mito grego chama de Narciso um jovem que amava acima de tudo sua própria imagem refletida e que foi transformado na bela flor que tem esse nome Considerações psicológicas mais aprofundadas justificam a afirmação de que o indivíduo que assim se tornou homossexual permanece fixado inconsciente mente na imagemlembrança da mãe Pela repressão do amor à mãe ele a con serva em seu inconsciente e lhe permanece fiel Quando parece correr atrás de garotos na qualidade de amante na realidade corre das outras mulheres que poderiam tornálo infiel A observação direta de casos individuais nos permitiu demonstrar que o homem aparentemente receptivo apenas ao encanto masculino sente a atração que emana das mulheres como um homem normal na verdade mas ele se apressa em transpor para um objeto masculino a excitação que lhe vem da mulher e dessa maneira sempre repete o mecanismo pelo qual adquiriu sua homossexualidade Está longe de nós pretender exagerar a importância desses esclarecimentos sobre a gênese psíquica da homossexualidade É obvio que contrariam forte mente as teorias oficiais dos portavozes dos homossexuais mas estamos cientes de que não são abrangentes o bastante para possibilitar uma explicação definitiva do problema O que por motivos práticos é denominado homossexualidade pode se originar de uma variedade de processos psicossexuais de inibição e aquele que distinguimos talvez seja apenas um entre muitos dizendo respeito a 119316 um só tipo de homossexualidade Temos de admitir igualmente que em nosso tipo homossexual o número de casos em que se podem evidenciar as condições que requeremos ultrapassa em muito o daqueles em que realmente aparece o efeito deduzido de modo que também nós não podemos descartar o envolvi mento de fatores constitucionais desconhecidos aos quais habitualmente se at ribui toda a homossexualidade Não teríamos nenhum motivo para abordar a gênese psíquica da forma de homossexualidade por nós estudada se não houvesse a forte conjectura de que Leonardo cuja fantasia com o abutre foi nosso ponto de partida pertence a esse tipo de homossexual Embora pouco se saiba sobre a conduta sexual desse grande artista e pesquis ador podemos confiar em que os dizeres dos seus contemporâneos provavel mente não se equivocavam muito Conforme essa tradição ele parece ter sido um homem cujas necessidades e atividades sexuais eram extraordinariamente reduzi das como se uma alta aspiração o tivesse erguido acima das comuns exigências animais do ser humano Deve ficar sem resposta a questão de se ele teria buscado satisfação sexual direta e de que modo o teria feito ou se poderia têla dispensado completamente é uma questão que deve ficar sem resposta Mas também no caso dele temos o direito de buscar aquelas correntes afetivas que impelem os outros ao ato sexual pois não podemos imaginar uma vida psíquica humana em cuja constituição não participe o desejo sexual no sentido mais amplo a libido ainda que se tenha distanciado bastante da meta original ou se furtado à realização Em Leonardo só poderemos achar traços de inclinação sexual não transform ada Mas esses apontam numa só direção e permitem situálo entre os homos sexuais Sempre se comentou que ele tomava apenas meninos e adolescentes de notável beleza como discípulos Era bondoso e indulgente para com eles dava lhes assistência e cuidava pessoalmente deles quando ficavam doentes como uma mãe cuida dos filhos e como sua própria mãe deve ter olhado por ele Tendo os 120316 escolhido por serem belos não pelo talento nenhum deles Cesare da Sesto G Boltraffio Andrea Salaino Francesco Melzi e outros veio a se tornar um pintor de renome Em sua maioria não conseguiram alcançar independência em relação ao mestre desapareceram após a morte deste sem deixar uma marca definida na história da arte Alguns outros cuja obra os autorizava a se denomin arem seus discípulos como Luini e Bazzi chamado de Sodoma ele provavel mente não conheceu em pessoa Sabemos que nos será feita a objeção de que o comportamento de Leonardo diante dos discípulos não tem relação com motivos sexuais e não permite con clusões sobre sua particularidade sexual Em resposta a isso alegaremos com toda a cautela que nossa abordagem explica alguns traços peculiares na conduta do mestre que de outro modo permaneceriam um mistério Leonardo mantinha um diário em sua escrita pequena que ia da direita para a esquerdaj ele fazia an otações destinadas apenas a si mesmo Nesse diário curiosamente ele se dirige a si mesmo na segunda pessoa Aprende com mestre Luca a multiplicação de raízes Faz com que mestre dAbacco te mostre como quadrar um círculo44 Ou por ocasião de uma viagem Ir à Prefeitura por causa de meu jardim Manda fazer duas sacolas Vê o torno de Boltraffio e faz polir nele uma pedra Deixa o livro para o mestre Andrea Il Todesco45 Ou num propósito de outra importância Hás de concluir em teu tratado que a Terra é uma estrela quase similar à Lua e assim provarás a nobreza de nosso mundo46 Nesse diário que como aqueles de outros mortais muitas vezes toca nos mais importantes eventos do dia com umas poucas palavras ou silencia total mente acerca deles achamse alguns trechos que devido à singularidade são citados por todos os biógrafos de Leonardo Tratase de anotações sobre pequen as despesas do mestre feitas com meticulosa exatidão como se procedessem de um pai de família rigoroso e avaro enquanto não há registro de gastos elevados e 121316 nada demonstra que o artista fosse versado em economia Uma dessas anotações diz respeito a um novo casaco que ele comprou para o discípulo Andrea Salaino47 l liras sSoldi Vinténs braças de pano de prata L15 S4 Veludo verde para guarnição L9 S Fitas L S9 Botões L S12 Outra anotação bastante minuciosa traz todas as despesas que outro discípulo48 lhe ocasionou por seus defeitos e sua tendência ao roubo No dia 23 de abril de comecei este livro e recomecei o cavalo49 Jacomo veio para ficar comigo no dia da Madalena 22 de julho de 1490 com dez anos de idade Observação na margem ladrão mentiroso teimoso comilão No segundo dia mandei que lhe fizessem duas camisas um par de calças e um gibão e quando pus de lado o dinheiro para pagar essas coisas ele me roubou da algibeira o dito dinheiro e não foi possível fazêlo confessar embora eu tivesse certeza disso Observação na margem 4 liras E o relato dos malfeitos do pequeno continua terminando com uma lista das despesas No primeiro ano um casaco 2 liras 6 camisas 4 liras 3 gibões 6 liras 4 pares de meias 7 liras etc50 Os biógrafos de Leonardo que estão muito longe de procurar resolver os en igmas da vida psíquica de seu herói a partir de suas pequenas fraquezas e singu laridades costumam ressaltar a propósito dessas contas peculiares a bondade e 122316 indulgência do mestre para com seus alunos Esquecemse de que o que nisso pede explicação não é a conduta de Leonardo mas o fato de ele nos haver deix ado esses testemunhos dela Como não podemos lhe atribuir a intenção de fazer com que provas de sua benevolência nos chegassem às mãos devemos conjectur ar que outro motivo de natureza afetiva levouo a deixar esses registros Não é fácil imaginar qual seria e não saberíamos indicar nenhum se outra conta achada entre os papéis de Leonardo não lançasse uma viva luz sobre essas anotações curiosamente minuciosas relativas a roupas dos discípulos etc Despesas para o enterro de Caterina libras de cera S 27 Para o caixão S 8 Pálio sobre o caixão S 12 Transporte e colocação da cruz S 4 Para o transporte do corpo S 8 Para 4 padres e 4 clérigos S 20 Sino livros toalha S 2 Para os coveiros S 16 Para o ancião S 8 Para a licença e os funcionários S 31 S 106 Para o médico S 4 Para açúcar e luzes S 12 S 120 123316 Despesas para o enterro de Caterina S 27 libras de cera S 18 Para o caixão S 12 Pálio sobre o caixão S 4 Transporte e colocação da cruz S 8 Para o transporte do corpo S 20 Para padres e clérigos S 2 Sino livros toalha S 16 Para os coveiros S 16 Para o ancião S 8 Para a licença e os funcionários S 1 soma 106 Para o médico S 4 Para açúcar e luzes S 12 soma total 12051 O romancista Merejkóvski é o único que sabe nos dizer quem era essa Caterina Com base em duas breves anotações ele conclui que a mãe de Leonardo a pobre camponesa de Vinci foi a Milão em 1493 para visitar o filho que tinha então 41 anos de idade que ela adoeceu lá foi levada ao hospital por Leonardo e quando morreu foi por ele sepultada com dispendiosas honras52 Essa interpretação do romancista versado em psicologia não pode ser provada mas possui tal verossimilhança interior e combina de tal maneira com tudo o que sabemos da atividade sentimental de Leonardo que não posso deixar 124316 de admitila como correta Leonardo tinha êxito em sujeitar os sentimentos ao jugo da pesquisa inibindo a sua livre expressão mas também para ele houve ocasiões em que o que fora suprimido conseguiu se exteriorizar e a morte da mãe outrora tão amada foi uma delas Nesse cálculo dos custos do sepultamento en contramos a exteriorização deformada a ponto de ficar irreconhecível do luto pelo passamento da mãe Perguntamonos de que modo essa deformação pôde se realizar e não podemos compreendêla do ponto de vista dos processos psíquicos normais Mas algo semelhante nos é familiar nas condições anormais da neurose sobretudo da que é chamada neurose obsessiva Nela vemos que a exteriorização de sentimentos fortes mas tornados inconscientes mediante a repressão é deslo cada para ações triviais e até mesmo tolas As forças que a eles se opõem con seguem reduzir de tal forma a expressão desses sentimentos reprimidos que inev itavelmente consideramos ínfima a sua intensidade mas na imperiosa compulsão com que é levado a efeito esse ato insignificante se mostra a força real enraizada no inconsciente dos impulsos que a consciência gostaria de negar Apenas tal ressonância do que sucede na neurose obsessiva pode explicar a conta dos fu nerais da mãe redigida por Leonardo No inconsciente ele ainda estava ligado a ela como na infância por uma inclinação de matiz erótico a oposição a esse amor infantil por parte da repressão depois sobrevinda não permitiu que lhe fosse feito um memento mais digno no diário mas o compromisso resultante desse conflito neurótico tinha de ser explicitado e assim a conta foi registrada e chegou ao conhecimento da posteridade como algo ininteligível Não nos parece ousadia demais transferir a percepção obtida na conta dos fu nerais para as contas das despesas dos alunos Assim também estas seriam um ex emplo em que os escassos resíduos de impulsos libidinais de Leonardo produziram obsessivamente uma expressão deformada A mãe e os discípulos imagens fiéis de sua própria beleza quando menino teriam sido seus objetos 125316 sexuais na medida em que a repressão sexual nele dominante admite essa des ignação e a obsessão em anotar meticulosamente o que havia gasto com eles seria a surpreendente revelação desses conflitos rudimentares Teríamos port anto que a vida amorosa de Leonardo realmente se inclui no tipo de homossexu alidade cujo desenvolvimento psíquico pudemos mostrar e o aparecimento da situação homossexual na fantasia com o abutre se tornaria compreensível para nós pois não significaria outra coisa senão o que já afirmamos sobre aquele tipo Esta seria sua tradução Foi através dessa relação erótica com minha mãe que me tornei um homossexual53 IV A fantasia de Leonardo com o abutre ainda requer nossa atenção Em palavras que semelham claramente a descrição de um ato sexual e bateu muitas vezes a cauda contra meus lábios ele enfatiza a intensidade dos laços eróticos entre mãe e filho Não será difícil a partir dessa ligação entre a atividade da mãe do abutre e o realce dado à zona da boca imaginar que a fantasia envolve uma se gunda recordação Podemos traduzila da seguinte forma Minha mãe me deu muitos beijos apaixonados na boca A fantasia é composta da lembrança de ser amamentado e de ser beijado pela mãe Bondosamente a natureza deu ao artista a habilidade de exprimir seus im pulsos anímicos mais secretos dele mesmo ocultos em criações que afetam 126316 poderosamente outros indivíduos que não o conhecem sem que eles próprios saibam dizer de onde vem tal emoção Não haveria no conjunto da obra de Leonardo nada que desse testemunho daquilo que sua memória conservou como a mais forte impressão da infância Seria de esperar que sim Ao considerar no entanto as profundas transformações que uma impressão da vida do artista tem de sofrer antes de poder contribuir para a obra de arte teremos de reduzir a um nível bastante modesto a pretensão de certeza na demonstração especialmente no caso de Leonardo Ao pensar nas pinturas de Leonardo todos nos lembramos do sorriso inusit ado fascinante e misterioso que ele põe nos lábios de suas figuras femininas Tratase de um sorriso fixo em lábios alongados e arqueados que se tornou ca racterístico dele e é muitas vezes chamado leonardesco54 Foi no rosto estran hamente belo da florentina Monna Lisa del Giocondo que ele comoveu mais fortemente e desconcertou os espectadores Esse sorriso pedia para ser inter pretado e encontrou as mais variadas interpretações nenhuma delas satisfatória Voilà quatre siècles bientôt que Monna Lisa fait perdre la tête à tous ceux qui parlent delle après lavoir longtemps regardéeEis que em breve serão quatro séculos que a Monna Lisa faz perder a cabeça a todos os que dela falam após têla observado por longo tempo55 Muther56 O que cativa especialmente o observador é o demoníaco encanto deste sorriso Centenas de escritores e poetas escreveram sobre essa mulher que ora parece nos sorrir sedutoramente ora parece olhar no vazio de maneira fria e sem alma e ninguém decifrou seu sorriso ninguém leu seus pensamentos Tudo até mesmo a paisagem é misteriosamente onírico como que vibrante de uma sensualidade cerrada Vários críticos suspeitaram que dois elementos diversos se juntam no sorriso da Monna Lisa Por isso enxergaram na expressão da bela florentina a consumada 127316 representação dos opostos que governam a vida amorosa das mulheres a reserva e a sedução a devotada ternura e a sensualidade implacavelmente exigente que devora o homem como algo estranho Eis o que diz Müntz On sait quelle énigme indéchiffrable et passionannte Monna Lisa Gioconda ne cesse depuis bientôt quatre siècles de proposer aux admirateurs pressés devant elle Jamais artiste jemprunte la plume du délicat écrivain qui se cache sous le pseudonyme de Pierre de Corlay atil traduit ainsi lessence même de la fémin ité tendresse et coquetterie pudeur et sourde volupté tout le mystère dum cœur qui se reserve dun cerveau qui réfléchit dune personnalité qui se garde et ne livre dellemême que son rayonnement Sabese que enigma indecifrável e apaixonante a Monna Lisa Gioconda não para de oferecer há quase quatro séculos aos admiradores que se comprimem diante dela Jamais um artista tomo as palavras do delicado es critor que se oculta sob o pseudônimo de Pierre de Corlay traduziu de tal maneira a própria essência da feminilidade ternura e coqueteria pudor e secreta volúpia todo o mistério de um coração que se reserva de um cérebro que reflete de uma personalidade que se guarda e apenas concede de si pró pria sua radiância O italiano Angelo Conti57 vê o quadro do Louvre animado por um raio de sol La donna sorrideva in una calma regale i suoi istinti di conquista di ferocia tutta leredità della specie la volontà della seduzione e dellagguato la grazia dellinganno la bontà che cela um proposito crudele tutto ciò appariva altern ativamente e scompariva dietro il velo ridente e si fondeva nel poema del suo sor riso Buona e malvaggia crudele e compassionevole graziosa e felina ella rideva A mulher sorria com uma tranquilidade régia seus instintos de conquista de ferocidade toda a herança da espécie a vontade de sedução e ardil a graça do 128316 engano a bondade que esconde um propósito cruel tudo isso aparecia altern adamente desaparecia atrás do véu ridente e afundava no poema do seu sor riso Boa e má cruel e compassiva graciosa e felina ela ria Leonardo trabalhou quatro anos nessa pintura talvez entre 1503 e 1507 dur ante sua segunda temporada em Florença quando passava dos cinquenta anos de idade Segundo Vasari empregou refinados artifícios para distrair a dama dur ante as sessões e manter aquele sorriso em seu rosto No estado atual a pintura conserva poucas das muitas sutilezas que o pincel de Leonardo reproduziu na tela foi considerada quando estava sendo feita a coisa mais sublime que a arte era capaz de produzir Mas é certo que não satisfez o próprio autor que ele não a deu por concluída e não entregou ao cliente que a solicitara levandoa depois consigo para a França onde seu protetor o rei Francisco i adquiriua para o Louvre Deixemos sem solução o enigma fisionômico da Monna Lisa apenas regis trando o fato inegável de que seu sorriso não exerceu fascínio menor sobre seu pintor do que sobre os incontáveis espectadores dos últimos quatrocentos anos Desde então esse cativante sorriso tornou a aparecer em todos os seus quadros e naqueles de seus alunos Como a Monna Lisa é um retrato não podemos supor que Leonardo tenha dado àquele rosto por conta própria um traço tão express ivo que ele não possuía Ao que parece não temos escolha senão acreditar que ele encontrou o sorriso em seu modelo e de tal forma sucumbiu ao seu encanto que passou a adotálo nas criações de sua fantasia Essa concepção plausível acha expressão em A Konstantinowa por exemplo Durante o longo período em que o mestre se ocupou do retrato da Monna Lisa del Giocondo ele penetrou nas sutilezas daquele semblante feminino com tal empatia de sentimentos que transferiu esses traços especialmente o misterioso sorriso e o singular olhar para todos os rostos que veio a pintar 129316 ou desenhar a peculiaridade mímica da Gioconda pode ser notada inclusive no quadro de São João Batista que está no Louvre mas são claramente recon hecíveis sobretudo na expressão de Maria em SantAna com a Virgem e o Menino Mas isso pode ter se dado de outra forma Vários dos biógrafos de Leonardo sentiram a necessidade de buscar razões mais profundas para a atração que o sor riso da Gioconda exerceu sobre o artista a ponto de não mais abandonálo Wal ter Pater que vê no quadro da Monna Lisa a personificação de toda a experiên cia da humanidade civilizadak e fala pertinentemente do insondável sorriso que em Leonardo sempre parece ligado a um quê de sinistro levanos a uma outra pista quando afirma58 Além disso a pintura é um retrato Podemos ver como essa imagem se mis tura na trama dos seus sonhos desde a infância e não fosse pelo testemunho histórico poderíamos crer que ela era a sua dama ideal enfim personificada e contemplada Algo semelhante deve ter em mente Marie Herzfeld quando escreve que na Monna Lisa Leonardo deparou consigo mesmo e por isso lhe foi possível colocar tanto do próprio ser naquele quadro cujos traços sempre estiveram em misteri osa afinidade na alma de Leonardo59 Vamos procurar desenvolver essas indicações dandolhes maior clareza Pode haver sucedido então que Leonardo fosse cativado pelo sorriso da Monna Lisa porque este despertou nele algo que havia muito tempo dormia em sua alma provavelmente uma antiga lembrança Tal lembrança era significativa o bastante para não mais deixálo após ter sido acordada ele sempre tinha de lhe dar uma nova expressão A afirmação de Pater segundo a qual podemos ver que um rosto como o da Monna Lisa se mistura na trama dos sonhos de Leonardo desde a in fância parece verossímil e deve ser compreendida literalmente 130316 Vasari menciona teste di femmine che ridonocabeças de mulheres que riem como os primeiros ensaios artísticos de Leonardo A passagem completamente insuspeita pois nada pretende provar diz o seguinte na tradução alemã fazendo com terra na sua infância cabeças de mulheres que riem que eram reproduzidas em gesso e cabeças de crianças que pareciam formadas por mãos de mestre60 Tomamos conhecimento portanto de que sua prática artística teve início com a representação de dois diferentes objetos que nos lembram os dois objetos sexuais que inferimos da análise de sua fantasia com o abutre Se as belas cabeças de crianças eram reproduções de sua própria pequena pessoa então as mulheres que riem são repetições de Caterina sua mãe e começamos a imaginar a possibil idade de que ela tivesse o misterioso sorriso que ele havia perdido e que tanto o cativou quando o reencontrou na dama florentina61 A pintura de Leonardo cronologicamente mais próxima da Monna Lisa é SantAna com a Virgem e o Menino Nela o sorriso leonardesco aparece nas duas mulheres do modo mais belo e marcante Não se sabe quanto tempo antes ou de pois da Monna Lisa ele começou a pintar esse quadro Como os dois trabalhos se estenderam por anos é lícito supor que o tenham ocupado simultaneamente Seria mais condizente com a nossa expectativa que o seu envolvimento nos traços da Monna Lisa o tivesse incitado a criar a composição de SantAna Pois se o sorriso da Gioconda evocou em Leonardo a recordação da mãe é natural en tender que o impeliu primeiramente a fazer uma exaltação da maternidade e restituir à mãe o sorriso que havia encontrado na senhora nobre Podemos en tão deixar que o nosso interesse passe da Monna Lisa para esse outro quadro não menos belo e que também se acha no Louvre SantAna com a filha e o neto foi um tema raramente tratado na pintura itali ana de todo modo a representação de Leonardo diverge bastante das demais que conhecemos Eis o que diz Muther62 131316 Alguns mestres como Hans Fries Holbein o Velho e Girolamo dai Libri tinham Ana sentada ao lado de Maria e o menino entre as duas Outros como Jakob Cornelisz em seu quadro de Berlim mostravam literalmente santAna e outros dois ou seja representavamna tendo no braço a pequena figura de Maria que segurava aquela ainda menor do menino Jesus Na obra de Leonardo Maria está sentada no colo de sua mãe e se inclina es tendendo os braços para o garoto que brinca com um cordeirinho talvez de modo um pouco rude A avó apoia no quadril o braço que se acha visível e olha para os dois com um sorriso venturoso Sem dúvida o posicionamento é um tanto forçado Mas o sorriso que paira nos lábios das duas mulheres embora seja inequivocamente o mesmo do quadro da Monna Lisa perdeu seu caráter in quietante e enigmático exprime ternura e tranquila ventura63 Depois de aprofundarse por algum tempo nesse quadro vem uma súbita compreensão ao espectador somente Leonardo poderia pintálo assim como apenas ele poderia ter a fantasia com o abutre Esse quadro sintetiza a história da infância do autor suas particularidades se explicam por referência às mais pess oais impressões da vida de Leonardo Em casa de seu pai ele encontrou não só a boa madrasta donna Albiera mas também a avó paterna Monna Lucia que po demos imaginar não lhe foi menos afeiçoada do que costumam ser as avós Tal circunstância pode lhe haver inspirado a representação de uma infância protegida por mãe e avó Outra característica notável da pintura adquire significação ainda maior SantAna a mãe de Maria e avó do menino que deveria ser uma matrona é ali mostrada como um tanto mais madura e mais séria do que a Virgem Maria mas ainda como uma mulher jovem de beleza ainda não fenecida Na realidade Leonardo deu duas mães ao menino uma que dirige os braços para ele e outra bem atrás ambas com o venturoso sorriso da felicidade maternal Tal singularid ade não deixou de provocar assombro nos comentadores Muther por exemplo 132316 acha que Leonardo não pôde se decidir a pintar a idade as pregas e rugas e por isso fez também de Ana uma mulher de resplandecente beleza Será que podemos nos satisfazer com essa explicação Outros recorreram ao expediente de ques tionar a equivalência de idades entre mãe e filha64 Mas a tentativa de ex plicação de Muther já bastaria para evidenciar que a impressão de rejuvenesci mento de SantAna deriva do quadro mesmo não é produto de uma ilusão tendenciosa A infância de Leonardo foi singular tal como esse quadro Ele teve duas mães a primeira delas sua mãe de fato Caterina da qual foi separado entre os três e os cinco anos de idade e uma jovem e afetuosa madrasta a esposa de seu pai donna Albiera Juntando esse dado de sua infância e a mencionada presença de mãe e avó e condensandoas numa unidade mista ele viu tomar forma a composição do trio de SantAna A figura materna mais distante do menino a avó corres ponde pela aparência e afastamento físico em relação a ele à primeira e genuína mãe Caterina Com o bemaventurado sorriso de SantAna o artista parece ter negado e escondido a inveja que sentiu a infeliz quando teve de ceder à rival mais nobre o filho como antes cedera o marido65 Desse modo partindo de outra obra de Leonardo chegaríamos à confirmação da suspeita de que o sorriso da Monna Lisa del Giocondo teria despertado no homem adulto a recordação da mãe de sua primeira infância Desde então mado nas e senhoras nobres retratadas por pintores italianos passaram a mostrar a hu milde inclinação do rosto e o peculiar sorriso bemaventurado da pobre cam ponesa Caterina que trouxe ao mundo o filho magnífico destinado a pintar pesquisar e sofrer Se Leonardo teve êxito em reproduzir no rosto da Monna Lisa o duplo signi ficado que tinha esse sorriso tanto a promessa de ilimitada ternura como a ameaça sinistra nas palavras de Pater também nisso então ele permaneceu fiel 133316 ao conteúdo de sua mais distante memória Pois a ternura da mãe tornouse para ele uma fatalidade configurou seu destino e as privações que o aguardavam Era apenas natural a veemência das carícias que a fantasia do abutre deixava trans parecer a pobre mãe abandonada teve de verter no amor materno suas re cordações das carícias experimentadas e também o anseio por novas era impelida a compensar não apenas a si mesma por não ter um marido mas também ao filho por não ter um pai que o acarinhasse Assim como toda mãe insatisfeita pôs o filho no lugar do marido e pelo precoce amadurecimento de seu erotismo rouboulhe parte de sua masculinidade O amor da mãe ao bebê de que cuida e amamenta é algo bem mais profundo que sua posterior afeição pela criança que cresce É da natureza de uma relação amorosa plenamente satisfatória que realiza não apenas todos os desejos psíquicos mas também todas as exigências físicas e se representa uma das formas da felicidade alcançável pelo ser humano isto se deve em não pequena medida à possibilidade de satisfazer sem recriminações desejos há muito reprimidos e que devem ser denominados perversos 66 Ainda nos mais felizes matrimônios jovens o pai sente que o bebê sobretudo o filho homem tornouse seu rival e esse é o ponto de partida de um antagonismo pro fundamente enraizado no inconsciente No apogeu de sua vida ao reencontrar o sorriso de ventura e enlevo que out rora se achava na boca de sua mãe quando o acariciava havia muito Leonardo era dominado por uma inibição que o impedia de ansiar por tais carinhos dos lá bios de uma mulher Mas ele havia se tornado pintor então se empenhou em re criar aquele sorriso com o pincel estampouo em todos os seus quadros seja os que ele próprio pintou seja os que os discípulos executaram sob sua direção em Leda em João Batista em Baco Os dois últimos são variações do mesmo tipo Diz Muther Do comedor de gafanhotos da Bíblia Leonardo fez um Baco um jovem Apolo que com um misterioso sorriso nos lábios e as lisas pernas 134316 cruzadas fitanos com olhar sedutor Esses quadros exalam uma mística em cujo segredo não ousamos penetrar quando muito podemos tentar estabelecer sua ligação com as obras anteriores de Leonardo As figuras são novamente andrógi nas não mais no sentido da fantasia com o abutre porém São belos jovens de feminina delicadeza e formas efeminadas eles não abaixam o olhar e sim olham de um modo misteriosamente triunfante como se soubessem de uma grande feli cidade que não pode ser revelada o familiar sorriso encantador faz supor que se trata de um segredo de amor É possível que nessas figuras Leonardo tenha neg ado e superado artisticamente a infelicidade de sua vida amorosa representando nessa venturosa união de natureza masculina e feminina a realização dos desejos do menino fascinado pela mãe V Entre os registros feitos por Leonardo em seu diário há um que atrai a atenção do leitor por seu importante conteúdo e por um pequenino erro formal Em julho de 1504 ele escreveu Adì 9 di luglio 1504 in mercoledì a ore 7 morì ser Piero da Vinci notaio al palagio del podestà a ore 7 mio padre era detà danni 80 lasciò 10 figlioli maschi e 2 femmine No dia 9 de julho de 1504 às 7 horas morreu ser Piero 135316 da Vinci notário no palácio da prefeitura às 7 horas meu pai tinha oitenta anos de idade deixou dez filhos homens e duas filhas67 A anotação diz respeito portanto à morte do pai de Leonardo O pequeno erro consiste na repetição da hora como se ele tivesse esquecido chegando ao fi nal da frase o que já havia escrito no começo É uma coisa de nada que apenas um psicanalista levaria em conta Outra pessoa talvez não a notasse e se lhe chamassem a atenção para ela diria Isso pode acontecer a qualquer um num momento de distração ou de emoção e não tem maior importância O psicanalista pensa de modo diferente nada é pequeno demais para ele sendo manifestação de processos psíquicos ocultos Há muito ele aprendeu que tais esquecimentos ou repetições têm significado e que graças à distração po dem se revelar impulsos que de outro modo permanecem ocultos Diríamos que também esse registro é como a lista dos gastos funerários de Caterina e a das despesas com os discípulos um caso em que Leonardo falhou em suprimir seus afetos e algo havia muito escondido alcançou uma expressão distorcida Também a forma é semelhante a mesma minúcia pedante a mesma prevalência de números68 Costumamos chamar de perseveração uma repetição desse tipo É um ex celente meio de indicar a ênfase afetiva Consideremos por exemplo a invectiva de são Pedro contra seu indigno representante na Terra no Paradiso de Dante Quelli chusurpa in terra il luogo mio Il luogo mio il luogo mio che vaca Nella presenza del Figliuol di Dio Fatto ha del cimiterio mio cloaca69 136316 Não fosse a inibição afetiva de Leonardo a entrada no diário poderia ser algo assim Hoje às horas morreu meu pai ser Piero da Vinci meu pobre pai Mas o deslocamento da perseveração para um dado insignificante da notícia da morte a hora retira todo o pathos da anotação e nos leva a perceber que aí houve algo a esconder e suprimir Ser Piero da Vinci notário e descendente de notários foi um homem de grande energia que alcançou prestígio e prosperidade Casouse quatro vezes sendo que as duas primeiras mulheres morreram sem lhe deixar filhos apenas com a terceira logrou ter o primeiro filho legítimo quando Leonardo já estava com 24 anos de idade e havia muito deixara a casa paterna mudandose para o ateliê do mestre Verrocchio A quarta e última mulher que ele esposou já com cinquenta anos deulhe ainda nove filhos e duas filhas70 Sem dúvida também esse pai foi importante no desenvolvimento psicossexu al de Leonardo não só negativamente por sua ausência dos primeiros anos de vida do garoto mas também de forma direta por sua presença na fase posterior de sua infância Quem quando criança deseja sua mãe não pode deixar de quer er se pôr no lugar do pai de identificarse com ele na imaginação e depois fazer da superação dele a tarefa de sua vida Quando Leonardo ainda por fazer cinco anos foi acolhido na casa do avô certamente a jovem madrasta Albiera tomou o lugar da mãe em seus sentimentos e ele entrou no que podemos chamar de re lação normal de rivalidade com o pai A decisão pela homossexualidade como sabemos ocorre apenas na vizinhança da puberdade Quando ela se verificou no caso de Leonardo a identificação com o pai perdeu qualquer significado para sua vida sexual mas prosseguiu em outros âmbitos de atividade não erótica Sabese que ele gostava de fausto e de belas roupas que tinha criados e cavalos embora segundo Vasari quase nada possuísse e pouco trabalhasse Não atribuiremos essas predileções apenas ao seu sentido do belo nelas reconhecemos igualmente a 137316 compulsão de imitar e ultrapassar o pai Esse havia sido em relação à pobre cam ponesa o senhor nobre por isso permaneceu no filho o aguilhão de se fazer de senhor nobre o impulso to outherod Herod literalmente de ser mais her ódico que Herodes de mostrar ao pai o que era realmente nobreza Certamente o artista criador se sente como pai em relação a suas obras Para as criações do Leonardo pintor a identificação com o pai teve uma consequência fatídica Ele as fez e não mais se ocupou delas tal como seu pai não mais se ocu para dele O cuidado que o pai demonstraria depois nada pôde alterar nessa com pulsão pois ela derivava das impressões da primeira infância e o material rep rimido que permanece inconsciente não pode ser corrigido por experiências posteriores Na época da Renascença e ainda muito depois todo artista necessitava de um benfeitor de posição elevada de um patrono que lhe encomendasse obras do qual dependia seu destino Leonardo achou seu patrono em Ludovico Sforza cognominado o Mouro um homem ambicioso amante do esplendor astuto na diplomacia mas instável e não muito confiável Na sua corte em Milão Leonardo teve o período mais brilhante de sua vida a serviço dele sua força criadora desenvolveuse do modo mais livre como atestam a Última ceia e a es tátua equestre de Francesco Sforza Ele deixou Milão antes que a catástrofe se abatesse sobre Ludovico que morreu prisioneiro dos franceses Quando chegou a Leonardo a notícia do destino de seu benfeitor ele escreveu no diário O Duque perdeu o Estado os bens e a liberdade e nenhuma de suas obras foi com pletada71 É curioso e certamente significativo que ele fizesse aqui ao seu pat rono a mesma objeção que a posteridade viria a lhe fazer como se ele quisesse re sponsabilizar uma de suas figuras paternasl pelo fato de ele próprio deixar suas obras incompletas Embora na realidade ele não estivesse errado em relação ao duque 138316 No entanto se a imitação do pai o prejudicou como artista a revolta contra o pai foi a precondição infantil de suas realizações como pesquisador da ciência talvez tão admiráveis quanto as artísticas Na bela imagem de Merejkóvski ele era como um homem que acordara no meio da escuridão enquanto os outros ainda dormiam72 Ele ousou fazer uma afirmação que contém a justificativa para toda pesquisa independente Quem disputa evocando a autoridade não emprega a inteligência e sim a memória73 Assim tornouse ele o primeiro pesquisador moderno da natureza e muitas descobertas e intuições recompensaramlhe a cor agem de ser o primeiro depois dos gregos a abordar os segredos da natureza apoiado somente na observação e no próprio julgamento Mas ensinando a menosprezar a autoridade e rejeitar a imitação dos antigos e sempre indicando o estudo da natureza como a fonte de toda verdade ele apenas repetia na mais alta sublimação alcançável pelos homens a atitude que já era a do menino que ol hava maravilhado para o mundo Traduzidos de volta da abstração científica para a experiência concreta individual os antigos e a autoridade correspondiam tão somente ao pai e a natureza tornavase novamente a mãe bondosa e meiga que o nutrira Enquanto na maioria das criaturas humanas tanto hoje como em tempos primevos a necessidade de ancorarse em alguma autoridade é tão im periosa que o mundo começa a lhes tremer quando essa autoridade é ameaçada Leonardo pôde prescindir desse sustentáculo Não o teria conseguido se não tivesse aprendido a renunciar ao pai nos primeiros anos de vida A audácia e a in dependência de sua posterior pesquisa científica pressupõem a pesquisa sexual in fantil não inibida pelo pai e lhe dão prosseguimento excluindo a sexualidade Se alguém como Leonardo escapou à intimidação pelo pai na primeiram in fância e desvencilhouse das cadeias da autoridade em sua pesquisa iria total mente de encontro à nossa expectativa se descobríssemos que esse mesmo homem permaneceu um crente e não conseguiu libertarse da religião dogmática 139316 A psicanálise nos deu a conhecer o íntimo laço entre o complexo paterno e a crença em Deus mostrounos que o Deus pessoal não é senão um pai elevado e diariamente nos faz ver como pessoas jovens perdem a fé religiosa quando a autoridade do pai desmorona dentro delas Percebemos no complexo parental portanto a raiz da necessidade religiosa o Deus justo e todopoderoso e a Natureza bondosa nos aparecem como sublimações majestosas do pai e da mãe ou antes como revivescências e restaurações da ideia que a criança pequena fazia deles Biologicamente a religiosidade está relacionada ao longo desamparo e ne cessidade de ajuda do ser humano pequeno que quando mais tarde percebe seu real abandono e fraqueza diante das grandes forças da vida sente a sua situação de modo semelhante ao da infância e busca negar o desconsolo próprio dela me diante a revivescência regressiva dos poderes protetores infantis A proteção con tra o adoecimento neurótico que a religião proporciona aos crentes explicase facilmente pelo fato de ela lhes subtrair o complexo parental ao qual se liga a consciência de culpa do indivíduo assim como da humanidade inteira e liquidá lo para eles enquanto o descrente precisa dar conta dessa tarefa sozinhon Parece que o exemplo de Leonardo não desmente essa concepção da fé reli giosa Acusações de incredulidade ou o que naquele tempo era o mesmo de abandono da fé cristã surgiram já enquanto ele era vivo e foram claramente enunciadas na primeira exposição que Vasari fez de sua vida74 Na segunda edição das Vidas em 1568 Vasari omitiu essas observações Para nós é inteira mente compreensível que em vista da extraordinária suscetibilidade de sua época em relação às coisas religiosas Leonardo se abstivesse de afirmações sobre sua atitude ante o cristianismo também nos seus cadernos Como pesquisador não se deixou minimamente influenciar pela história da Criação das sagradas escrituras contestou a possibilidade de um dilúvio universal por exemplo e em geologia 140316 não hesitou assim como os homens modernos em calcular os períodos em ter mos de centenas de milhares de anos Entre as suas profecias há algumas que deviam ofender a sensibilidade de um cristão por exemplo75 Sobre as pinturas dos santos adorados Pessoas falam com pessoas que nada escutam que têm os olhos abertos e não veem falam com estas e não obtêm resposta imploram a graça daquelas que têm ouvidos e não ouvem acendem velas para quem é cego Ou Sobre o pranto na Sextafeira santa Em todas as partes da Europa multidões vão chorar a morte de um só homem que morreu no Oriente Já se disse da arte de Leonardo que ele tirou das figuras sagradas o resíduo de laços com a Igreja e as levou para a esfera humana a fim de nelas representar grandes e belos sentimentos humanos Muther o louva por haver superado a at mosfera decadente e restituído aos homens o direito à sensualidade e à fruição da vida Nas anotações que mostram Leonardo absorvido na sondagem dos grandes enigmas da natureza não faltam expressões de admiração pelo Criador a causa última de todos esses mistérios magníficos mas nada indica que ele quisesse manter uma relação pessoal com esta potência divina Nas frases em que verteu a profunda sabedoria de seus últimos anos de vida transparece a resignação do in divíduo que se submeteu à Aνάγxη fatalidade destino às leis da natureza e não espera nenhuma mitigação por obra da bondade ou da graça de Deus 141316 Dificilmente pode haver dúvida de que Leonardo deixou para trás a religião dog mática e também a pessoal e mediante suas pesquisas distanciouse bastante da visão de mundo do crente cristão Nossas percepções sobre o desenvolvimento da psique infantil já mencion adas acima levamnos a supor que também as primeiras pesquisas infantis de Leonardo se ocupavam de problemas da sexualidade Ele próprio nos permite en trever isso ao relacionar seu impulso de pesquisa à fantasia do abutre e destacar o voo dos pássaros como um problema que por especial conjunção do destino lhe tocaria estudar Um trecho obscuro de suas anotações que trata do voo dos pás saros e soa como uma profecia mostra muito bem quanto interesse afetivo ele punha no desejo de reproduzir ele mesmo a arte de voar O grande pássaro le vantará seu primeiro voo do dorso de seu grande Cisne enchendo o universo de assombro enchendo de sua fama todas as escrituras e glória eterna ao ninho onde nasceu76 Provavelmente ele esperava conseguir voar um dia e sabemos pelos sonhos realizadores de desejos que ventura as pessoas esperam do cumprimento dessa esperança Mas por que tantos indivíduos sonham que podem voar A resposta da psic análise é que o voo ou o pássaro constitui apenas o mascaramento de outro desejo e que mais de uma ponte de palavras ou coisas pode levar a conhecêlo Quando se diz às crianças curiosas que os bebês são trazidos por um grande pás saro a cegonha o fato de os antigos terem pintado o falo com asas de a mais comum designação da atividade sexual do homem ser vögelno em alemão de o membro masculino ser chamado de ucello pássaro entre os italianos tudo isso são apenas fragmentos de um grande conjunto que nos ensina que o desejo de voar no sonho não significa outra coisa senão o forte anseio de ser capaz de real izar atos sexuais77 Esse é um desejo da primeira infância Quando o adulto se lembra da infância ela lhe aparece como um tempo feliz em que fruía o instante 142316 e se encaminhava para o futuro sem desejos e por isso inveja as crianças Mas elas mesmas se pudessem nos informar antes provavelmente diriam outra coisa Pois parece que a infância não é o venturoso idílio em que a transformamos pos teriormente que as crianças isto sim atravessam a infância fustigadas pelo desejo de tornarse grandes e fazer o que fazem os adultos Tal desejo impulsiona todos os seus jogos Se as crianças no decorrer de suas pesquisas sexuais intuem que nessa área tão misteriosa e importante os adultos podem realizar algo grande que lhes é vedado saber e fazer então surge nelas o impetuoso desejo de ser capaz de fazer o mesmo e elas sonham com isto sob a forma de voar ou preparam esse travestimento do desejo para ser usado em futuros sonhos de voos Assim tam bém a aviação que em nossos dias finalmente alcança o objetivo tem raízes erót icas na infância Ao revelar que desde criança teve uma relação especial com o problema do voo Leonardo nos confirma que sua investigação infantil se voltava para a sexu alidade tal como supusemos de acordo com nossas pesquisas em crianças de hoje Ao menos esse problema escapou à repressão que depois o distanciaria da sexualidade desde a infância até a época da plena maturidade intelectual continu ou a interessálo com ligeira mudança de sentido e é provável que ele não tenha tido mais sucesso em obter a desejada habilidade na acepção sexual primária do que naquela mecânica que ambas tenham permanecido desejos frustrados para ele O grande Leonardo permaneceu infantil em vários aspectos durante toda a vida Dizse que todos os grandes homens têm de conservar algo infantil Mesmo quando adulto ele continuou a brincar e também por causa disso pôde parecer incompreensível e inquietante para seus contemporâneos Ao saber que ele con struía engenhosos brinquedos mecânicos para festividades da corte e recepções cerimoniosas apenas nós ficamos descontentes não vendo com bons olhos que o 143316 mestre despendesse a energia nessas futilidades Mas parece que ele próprio se dedicava a isso de bom grado pois Vasari nos relata que fazia coisas semelhantes mesmo quando não solicitado Lá em Roma formando uma pasta de cera enquanto caminhava com ela fazia delicados animais cheios de vento os quais soprando fazia voar pelo ar mas cessando o vento caíam por terra Num lagarto que era bastante bizarro encontrado pelo vinhateiro de Belvedere ele pregou asas feitas com pedaços de pele de outros lagartos preenchidas de mercúrio que tremiam quando ele andava e tendo lhe feito olhos chifres e barba domesticado e guardado numa caixa fazia fugir de medo todos os amigos a quem o mostrava78 Com frequência tais brincadeiras lhe serviam para exprimir pensamentos sérios Muitas vezes costumava fazer esvaziar e limpar cuidadosamente os intestinos de um cordeiro de modo que se tornavam tão finos que podiam caber na palma da mão e num outro aposento havia posto uns foles de ferreiro aos quais prendia uma ponta dos ditos intestinos e inchandoos preenchia o aposento o qual era bastante grande e quem ali estava tinha de se pôr num canto assim mostrava que aqueles tendo pouco volume no início transparentes e cheios de ar vinham a ocupar muito espaço e ele os comparava ao gênio79 Do mesmo lúdico prazer com inocentes dissimulações e engenhosos adornos são testemunhas suas fábulas e enigmas esses apresentados em forma de profe cias quase todas ricas de ideias e notavelmente carentes de espirituosidade Em alguns casos os jogos e travessuras que Leonardo consentiu à sua ima ginação fizeram incorrer em graves erros os biógrafos que não se deram conta dessa característica Nos manuscritos de Milão se acham por exemplo esboços de cartas a Diodário de Soria Síria grãovizir do sagrado sultão da Babilônia em que Leonardo se apresenta como um engenheiro enviado a essas paragens do Oriente para executar certos trabalhos defendese da recriminação de indolência 144316 fornece descrições geográficas de cidades e montes e por fim relata um grande evento natural que lá ocorreu em sua presença80 Em 1881 J P Richter buscou demonstrar a partir desses escritos que Leonardo realmente fez essas observações de viagem para o sultão do Egito e até mesmo adotou a religião muçulmana no Oriente Essa estada teria ocorrido na época anterior a 1483 ou seja antes da transferência para a corte do duque de Milão Mas outros autores não tiveram dificuldade em reconhecer os documentos sobre a suposta viagem de Leonardo ao Oriente por aquilo que são na realidade produções fantásticas do jovem artista criadas para sua própria diversão nas quais ele talvez desse vazão aos desejos de ver o mundo e passar por aventuras Também é fantasia provavelmente a Academia Vinciana que se supôs ex istir graças a cinco ou seis emblemas altamente elaborados que têm o nome da academia Vasari menciona tais desenhos mas não a instituição81 Müntz que pôs um desses ornamentos na capa de sua grande obra sobre Leonardo é um dos poucos a crer na real existência de uma Academia Vinciana É provável que esse impulso brincalhãop tenha desaparecido nos anos da maturidade de Leonardo que também tenha vindo a dar na atividade investi gadora que constituiu o derradeiro e supremo desenvolvimento de sua personal idade Mas o fato de haver durado tanto pode nos mostrar como se desvencilha lentamente da infância quem nesse período da existência experimentou a mais alta bemaventurança erótica jamais alcançada novamente depois 145316 VI Seria vão tentar ignorar que os leitores de hoje consideram de mau gosto qualquer patografia O repúdio se encobre sob a objeção de que o exame pato gráfico de um grande homem jamais nos leva a compreender sua importância e sua obra de modo que seria inútil pretensão estudar nele coisas que podem ser achadas em fulano ou beltrano Essa crítica é tão claramente injusta porém que apenas como pretexto e disfarce podemos compreendêla A patografia não tem por objetivo tornar compreensível a obra de um grande homem não se pode fazer a alguém a objeção de não haver realizado o que jamais prometeu São out ros os motivos reais dessa aversão Nós os descobrimos quando ponderamos que os biógrafos se acham peculiarmente fixados em seus heróis Com frequência eles os tomaram como objeto de seu estudo porque já de antemão lhes dispens avam uma afeição especial por razões atinentes à sua vida afetiva pessoal Então se entregam a um exercício de idealização que busca inscrever o grande homem na série de seus próprios modelos infantis renovar nele digamos a ideia infantil do pai Em prol desse desejo apagam as linhas individuais de sua fisiognomia re tocam os traços de lutas com resistências internas e externas em sua vida não lhe toleram nenhum vestígio de fraqueza ou imperfeição humana e nos fornecem en tão uma figura ideal fria e estranha em vez de uma pessoa com quem poder íamos sentir alguma remota afinidade É lamentável que o façam pois desse modo sacrificam a verdade a uma ilusão e descartam no interesse de suas 146316 fantasias infantis a oportunidade de penetrar os mais fascinantes segredos da natureza humana82 O próprio Leonardo em seu amor à verdade e ânsia de saber não teria re chaçado a tentativa de discernir as condições para seu desenvolvimento psíquico e intelectual a partir das pequenas bizarrias e enigmas de seu ser Nós o hom enageamos ao aprender com ele Não afeta sua grandeza estudarmos os sacrifí cios requeridos por seu desenvolvimento de criança a adulto e juntarmos os fatores que gravaram em sua pessoa o trágico signo do fracasso Devemos enfatizar que em nenhum momento incluímos Leonardo entre os neuróticos ou conforme a expressão deselegante doentes de nervos Nervenkranken Quem se queixar de que nos atrevemos a aplicarlhe con cepções obtidas da patologia continua apegado a preconceitos que hoje em dia abandonamos justificadamente Já não acreditamos que saúde e doença normais e nervosos devam ser diferenciados nitidamente e que traços neuróticos tenham de ser vistos como provas de uma inferioridade geral Hoje sabemos que os sinto mas neuróticos são formações substitutivas para certas repressões que tivemos de realizar no curso de nosso desenvolvimento de criança a adulto civilizado que todos nós produzimos tais formações substitutivas e que apenas o número a in tensidade e a distribuição delas justificam o conceito prático de doença e a con clusão de haver uma inferioridade constitucional Segundo pequenos indícios na personalidade de Leonardo podemos situálo na vizinhança do tipo neurótico que denominamos obsessivo e comparar sua atividade pesquisadora à rumin ação obsessiva dos neuróticos e suas inibições às assim chamadas abulias dos mesmos O objetivo de nosso trabalho tem sido explicar as inibições na vida sexual de Leonardo e em sua atividade artística Sejanos permitido para esse fim sintetiz ar o que pudemos discernir sobre o curso de seu desenvolvimento psíquico 147316 Nada sabemos de suas condições hereditárias mas percebemos que as circun stâncias ocasionais de sua infância tiveram efeito profundo e perturbador Seu nascimento ilegítimo o privou da influência do pai até os cinco anos talvez e o entregou à terna sedução de uma mãe para a qual era o único consoloq Tendo a sexualidade precocemente incitada pelos beijos da mãe deve ter entrado numa fase de atividade sexual infantil da qual uma única manifestação está segura mente documentada a intensidade de sua pesquisa sexual infantil Os impulsos de olhar e de saberr foram maximamente estimulados pelas impressões da primeira infância a zona erógena da boca recebeu um destaque que nunca mais abandon ou A partir da conduta posterior contrária a enorme compaixão pelos animais podemos concluir que fortes traços de sadismo não estiveram ausentes nesse período da infância Uma vigorosa onda de repressão deu fim a este excesso infantil e estabeleceu as predisposições que apareceriam nos anos da puberdade O mais evidente res ultado da transformação foi o afastamento de qualquer atividade grosseiramente sensual Leonardo pôde viver de modo abstinente e dar a impressão de um indi víduo assexual Quando as marés de excitação da puberdade tomaram o menino não o tornaram doente ao obrigálo a formações substitutivas custosas e prejudi ciais a maior parte das necessidades do instinto sexual pôde ser sublimada em ím peto geral de saber devido ao precoce favorecimento da curiosidade sexual es capando assim à repressão Outra parte da libido bem menor permaneceu voltada para metas sexuais e representou a atrofiada vida sexual do homem adulto Devido à repressão do amor pela mãe essa parte foi levada a uma atitude homossexual e manifestouse como amor idealizado a garotos Continuou preser vada no inconsciente a fixação na mãe e nas venturosas recordações do trato com ela momentaneamente porém em estado inativo Dessa maneira repressão 148316 fixação e sublimação determinaram as contribuições do instinto sexual para a vida psíquica de Leonardo Após uma obscura infância Leonardo nos aparece como artista pintor e es cultor graças a um talento específico que pode ter sido reforçado pelo precoce despertar do impulso de olhar nos primeiros anos de vida Bem gostaríamos de mostrar como o talento artístico deriva dos instintos psíquicos primordiais se justamente nesse ponto não falhassem nossos meios Contentamonos em acentu ar o fato já praticamente indubitável de que a criação do artista também dá vazão a seus desejos sexuais e lembrar a respeito de Leonardo a informação transmitida por Vasari de que entre seus primeiros esforços artísticos sobres saíam cabeças de mulheres sorridentes e garotos bonitos ou seja representações de seus objetos sexuais Em plena juventude Leonardo parecia trabalhar sem inibição Tomando o pai como modelo na conduta exterior da vida teve uma época de viril força criadora e produtividade artística em Milão onde uma sina favorável o fez encontrar um sucedâneo do pai no duque Ludovico o Mouro Mas logo se confirmou nele nossa experiência de que a quase completa supressão da vida sexual real não proporciona as condições mais favoráveis para o exercício das tendências sexuais sublimadas O caráter modelar da vida sexual se impôs a atividade e a capacidade de decisão rápida começaram a fraquejar a inclinação a ponderar e hesitar já se fez evidente e estorvou o trabalho na Última ceia também determinando a sina dessa obra formidável ao influenciar em sua técnica Lenta mente foi se realizando nele um processo que podemos equiparar às regressões dos neuróticos O desenvolvimento que o tornou um artista na puberdade foi sobrepujado por aquele determinado no início da infância que fez dele um pesquisador a segunda sublimação de seus instintos eróticos retrocedeu ante aquela primordial preparada na primeira repressão Ele se tornou um pesquisad or primeiro a serviço de sua arte depois independentemente e afastado dela 149316 Com a perda do patrono que substituía o pai e o crescente ensombrecimento de sua vida tal substituição regressiva ganhou espaço cada vez maior Ele se tornou impacientissimo al pennello muito impaciente ao pintar como informou um correspondente da marquesa Isabella dEste que muito desejava possuir um quadro pintado por ele83 Seu passado infantil obteve domínio sobre ele O es forço de pesquisa que então substituiu a criação artística parece reunir alguns dos traços que caracterizam a atividade de instintos inconscientes a insaciabilid ade a implacável rigidez a ausência da capacidade de adaptarse às condições reais No auge da vida logo após os cinquenta anos num momento em que na mulher as características sexuais já regrediram e não é raro que no homem a li bido ainda faça uma enérgica arremetida uma nova transformação sobreveio a Leonardo Camadas ainda mais profundas de seu conteúdo psíquico tornaram se novamente ativas mas essa nova regressão beneficiou sua arte que estava se atrofiando Ele encontrou a mulher que lhe despertou a recordação do sorriso fel iz e sensualmente arrebatado de sua mãe e influenciado por isso reconquistou o ímpeto que o guiara no começo de seus esforços artísticos quando representou mulheres sorridentes Então pintou a Monna Lisa SantAna com a Virgem e o Menino e a série de quadros caracterizados pelo sorriso misterioso Com a ajuda de seus mais antigos impulsos eróticos teve o triunfo de mais uma vez superar a inibição em sua arte Esse último desenvolvimento é obscurecido para nós na penumbra da velhice iminente Antes disso seu intelecto ainda fora capaz das mais altas realizações de uma concepção de mundo que estava bastante à frente de seu tempo Nas seções anteriores expus o que pode justificar essa apresentação do desen volvimento de Leonardo essa forma de subdividir sua vida e explicar sua hesit ação entre arte e ciência Se essas minhas explanações despertarem mesmo entre 150316 amigos e conhecedores da psicanálise a objeção de que eu escrevi apenas um ro mance psicanalítico responderei que não superestimo o grau de certeza desses resultados Assim como outros autores sucumbi à atração que vem desse homem grande e misterioso em cuja natureza acreditamos perceber poderosas paixões instintuais que se manifestam apenas de modo curiosamente amortecido no entanto Qualquer que seja a verdade sobre a vida de Leonardo porém não podemos encerrar nossa tentativa de examinála psicanaliticamente sem antes lidar com outra tarefa Precisamos de maneira bem geral fixar os limites do que a psicanál ise pode realizar no campo da biografia para que toda explicação que não obte mos não nos seja apresentada como um fracasso O material à disposição da pesquisa psicanalítica são os dados da história do indivíduo de um lado os acasos dos eventos e as influências do meio de outro as reações dele que nos fo ram transmitidas Então com base em seu conhecimento dos mecanismos psíqui cos ela procura sondar dinamicamente a natureza do indivíduo a partir de suas reações busca desvelar tanto as forças motrizes originais de sua psique como os posteriores desenvolvimentos e transformações delas Havendo êxito nisso o comportamento de uma personalidade ao longo da vida é explicado pela ação conjunta de constituição e destino forças internas e poderes externos Se tal empreendimento não gera resultados seguros como talvez ocorra no caso de Leonardo a culpa não está no método inadequado ou defeituoso da psicanálise mas no caráter incerto e fragmentário do material que a tradição nos fornece a re speito da pessoa Portanto o fracasso deve ser imputado somente ao autor que obrigou a psicanálise a dar um parecer baseandose em material insuficiente Mas mesmo dispondo de um rico material histórico e lidando seguramente com os mecanismos psíquicos em dois pontos significativos uma investigação psicanalítica não seria capaz de esclarecer por que o indivíduo desenvolveuse 151316 necessariamente de uma forma e não de outra No caso de Leonardo tivemos de sustentar o ponto de vista de que o acaso de seu nascimento ilegítimo e a exces siva ternura de sua mãe tiveram decisiva influência na formação de seu caráter e em seu destino posterior já que a repressão sexual sobrevinda após essa fase in fantil o levou a sublimar a libido em ânsia de saber e estabeleceu sua inatividade sexual por toda a vida posterior Mas tal repressão após as primeiras satisfações sexuais da infância não era inevitável talvez não tivesse aparecido em outro indi víduo ou tivesse proporção muito menor Temos de reconhecer quanto a isso um grau de liberdade que já não pode ser decifrado psicanaliticamente Tampou co podemos afirmar que o desenlace desse empuxo repressivo era o único pos sível Outra pessoa provavelmente não teria conseguido salvar da repressão a maior parte de sua libido sublimandoa em desejo de saber Submetida às mes mas influências de Leonardo teria sofrido um permanente dano na atividade in telectual ou adquirido uma insuperável predisposição para a neurose obsessiva Portanto estas duas peculiaridades de Leonardo permanecem inexplicáveis me diante o exame psicanalítico sua tendência muito especial para repressões instin tuais e sua extraordinária capacidade para a sublimação dos instintos primitivos Os instintos e suas transformações são o limite do que a psicanálise é capaz de discernir Daí em diante ela dá lugar à investigação biológica Tanto a tendência à repressão como a capacidade de repressão nós somos obrigados a fazer re montar aos fundamentos orgânicos do caráter sobre os quais se ergue o edifício psíquico Como talento artístico e capacidade de realização se acham intimamente ligados à sublimação precisamos admitir que também a natureza da realização artística nos é inacessível mediante a psicanálise A pesquisa biológica moderna tende a explicar os traços principais da constituição orgânica de um indivíduo pela mistura de predisposições masculinas e femininas com base em substâncias químicas a beleza física de Leonardo e o seu canhotismo poderiam dar algum 152316 apoio a essa abordagems Mas não vamos abandonar o terreno da pesquisa pura mente psicológica Nosso objetivo continua a ser a demonstração do nexo pela vida da atividade instintual entre as vivências exteriores e as reações da pessoa Ainda que a psicanálise não explique a natureza artística de Leonardo ela nos torna compreensíveis suas manifestações e limitações Parece de fato que apenas um homem com as vivências infantis de Leonardo teria podido pintar a Monna Lisa e SantAna com a Virgem e o Menino proporcionar aquele triste destino a suas obras e sobressair de tal maneira como investigador da natureza como se a chave para todas as suas realizações e para seu infortúnio estivesse oculta na fantasia infantil com o abutre Mas não se deveria desaprovar os resultados de uma investigação que atribui às casualidades da constelação parental uma influência tão decisiva no destino de uma pessoa que relaciona o destino de Leonardo por exemplo a seu nascimento ilegítimo e à esterilidade de sua primeira madrasta donna Albiera Acho que não que não seria justo fazer isso Considerar o acaso indigno de determinar nosso destino é simplesmente uma recaída na visão de mundo religiosa cuja superação o próprio Leonardo antecipou ao escrever que o Sol não se move Ficamos ofen didos naturalmente de que um Deus justo e uma Providência bondosa não nos protejam melhor de tais influências no período mais indefeso de nossa vida Nisso esquecemos que praticamente tudo na vida humana é acaso desde o mo mento em que nos originamos através do encontro do espermatozoide com o óvulo acaso porém que participa das leis e da necessidade da natureza e não tem nenhum nexo com nossos desejos e ilusões Ainda pode ser incerta em por menores a divisão dos fatores determinantes de nossa vida entre as necessidades de nossa constituição e as casualidades de nossa infância no conjunto porém não cabem mais dúvidas sobre a importância justamente dos primeiros anos da infância Todos nós ainda mostramos pouquíssimo respeito 153316 para com a natureza que na sibilina afirmação de Leonardo que nos recorda a frase de Hamlet é plena de infinitas razões que jamais entraram na exper iência La natura è piena dinfinite ragioni che no furono mai in isperienza M Herzfeld op cit p iit Cada um de nós seres humanos corresponde a um dos inúmeros experimentos em que essas ragioni da natureza buscam penetrar na experiência 1 Nas palavras de Jacob Burckhardt citadas por Alexandra Konstantinowa Die Entwicklung des Madonnentypus bei Leonardo da Vinci A evolução do tipo da Madona em Leonardo da Vinci Estrasburgo 1907 Zur Kunstgeschichte des Auslandes n 54 2 Egli per reverenza rizzatosi a sedere sul letto contando il male suo e gli accidenti di quello mostrava tuttavia quanto avevva offeso Dio e gli uomini del mondo non avendo operato nellarte como si conve nia O rei ia muitas vezes amavelmente visitálo e ele por reverência sentavase no leito cont ando o seu mal e as circunstâncias dele mostrava todavia como tinha ofendido Deus e os ho mens do mundo não tendo trabalhado na arte como se devia Vasari Vite lxxxiii 155084 3 Traktat von der Malerei Freud cita a tradução alemã de H Ludwig 1909 o trecho foi aqui traduzido do original italiano citado em duas versões italianas do presente texto Un ricordo din fanzia di Leonardo da Vinci em Opere 19091912 Turim Boringhieri 1974 e com o mesmo título no volume Psicoanalisi della cultura Milão Oscar Mondadori 1989 4 Solmi La resurrezione dell opera di Leonardo no volume coletivo Leonardo da Vinci Con ferenze fiorentine Milão 1910 p12 154316 5 Citado por Scognamiglio Ricerca e documenti sulla giovinezza di Leonardo da Vinci Nápoles 1900 6 W V Seidlitz Leonardo da Vinci der Wendepunkt der Renaissance 1909 v 1 p 203 7 Seidlitz op cit v 2 p 48 8 W Pater Die Renaissance tradução do inglês 2a ed 1906 Mas é certo que em determinado período de sua vida ele quase deixou de ser artista 9 Cf em Seidlitz op cit v 1 a história das tentativas de restauração e conservação 10 E Müntz Léonard de Vinci Paris 1899 p 18 Uma carta de um contemporâneo escrita da Índia para um membro da família Médici faz referência a essa peculiaridade de Leonardo cf Richter The literary works of Leonardo da Vinci 11 F Botrazzi Leonardo biologo e anatomico em Conferenze fiorentine p 186 12 E Solmi Leonardo da Vinci tradução alemã de Emmi Hirschberg Berlim 1908 A citação é aqui traduzida do original italiano que diverge do texto alemão utilizado por Freud em dois as pectos na maior crueza de expressão em alemão se acha O ato da procriação e tudo a ele rela cionado e na troca de os ornamentos dos envolvidos li ornamenti delli adopranti por um costume muito antigo eine althergebrachte Sitte que também foi deslocado para antes de a beleza dos semblantes 13 Marie Herzfeld Leonardo da Vinci Der Denker Forscher und Poet O pensador pesquisador e poeta 2a ed Jena 1906 14 Talvez os gracejos as belle facezie ou seja ditos licenciosos por ele reunidos que não foram traduzidos constituam uma exceção nesse ponto não muito significativa porém Cf Herzfeld op cit p cli Strachey observa que a referência a Eros antecipa a utilização do nome que Freud faria dez anos depois nas especulações de Além do princípio do prazer 1920 para desig nar os instintos sexuais que se opõem aos instintos de morte e destruição 15 Nota acrescentada em 1919 Um desenho de Leonardo representando o ato sexual em corte anatômico sagital que certamente não pode ser qualificado de obsceno permite reconhecer al guns erros notáveis que o dr R Reitler descobriu e examinou cf Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse iv 191617 levando em conta as características de Leonardo que aqui apontei Eis o que ele diz 16 ere uma passagem obscura e até mesmo lida de formas diversas do Códice Atlântico Quando io feci Domeneddio putto voi mi metteste in prigione ora sio lo fo grande voi mi farete peggio Quando eu fiz o senhor Deus pequeno vocês me meteram na prisão se agora o faço grande vo cês me farão coisa pior Códice Atlântico é o nome dado à mais volumosa compilação de 155316 manuscritos de Leonardo que contém anotações e desenhos de natureza científica artística liter ária pessoal etc 17 Merejkóvski Leonardo da Vinci Um romance biográfico trad alemã de C v Gülschow Leipzig Tratase do volume central de uma grande trilogia intitulada Cristo e AntiCristo Os dois outros volumes são Juliano o Apóstata e Pedro o Grande Os volumes Leonardo e Juliano fo ram publicados no Brasil pela editora Globo de Porto Alegre na década de 1940 18 Solmi op cit p essa e outras citações da obra de Solmi foram aqui traduzidas do original italiano citado nas duas versões italianas consultadas já referidas em outra nota do tradutor 19 Filippo Botazzi Leonardo biologo e anatomico p 193 20 Traktat von der Malerei Jena as citações do Trattato della pittura são também traduzidas do original italiano 21 Solmi La ressurrezione p 11 22 La ressurrezione p 8 Leonardo aveva posto como regola al pittore lo studio della natura poi la passione dello studio era divenuta dominante egli aveva voluto acquistare non più la scienza per larte ma la scienza per la scienzaLeonardo havia estabelecido como regra para o pintor o estudo da ciência depois a paixão pelo estudo se tornou dominante ele já não queria ad quirir a ciência para a arte mas a ciência pela ciência 23 Ver a listagem de suas realizações científicas na bela introdução biográfica de Marie Herzfeld Jena op cit nos vários ensaios das Conferenze fiorentine e em outros lugares 24 Para fundamentação dessas afirmativas aparentemente inverossímeis vejase a Análise da fobia de um garoto de cinco anos de e observações similares Num ensaio sobre as Teorias sexuais in fantis 1908 eu escrevi Essas dúvidas e ruminações se tornarão o modelo para todo futuro labor intelectual voltado para a solução de problemas e o primeiro fracasso tem um efeito paral isador que prosseguirá por todo o tempo 25 Scognamiglio op cit p 15 26 Questo scriver si distintamente del nibbio par che sia mio destino perché nella prima ricordazione della mia infanzia e mi parea che essendo io in culla che um nibbio venissi a me e mi aprissi la bocca colla sua coda e molte volte mi percotessi com tal coda dentro alle labbra A citação que Freud faz em alemão tem duas discrepâncias em relação ao original reproduzido nesta nota que foram manti das na tradução do texto a omissão da palavra dentro ao mencionar as batidas da cauda na boca e principalmente a versão equivocada da palavra nibbioque corresponde em por tuguês a milhafre uma ave de rapina semelhante ao falcão muito diferente de abutre Geier como se acha no texto em alemão James Strachey assinalou esse equívoco em seu prefácio ao texto na edição Standard inglesa mas considerou que não afetava o argumento de Freud Outros 156316 estudiosos foram menos benevolentes com esse e alguns outros erros e lacunas A mais incisiva dessas críticas é a de David E Stannard The lessons of Leonardo em Shrinking history On Freud and the failure of psychohistory Oxford University Press pp as objeções de Stannard se acham resumidas num capítulo de Decadência e queda do império freudiano de Hans Eysenck Rio de Janeiro Civilização Brasileira título original Decline and fall of the Freudian empire 27 Nota acrescentada em Numa simpática resenha do presente texto publicada no Journal of Mental Science em Havelock Ellis objetou a essa concepção que a lembrança de Leonardo poder ia muito bem ter fundamento real pois com frequência as recordações infantis retrocedem bastante além do que geralmente acreditamos Isto eu concedo de bom grado e para atenuar essa dificuldade ofereço a suposição de que a mãe notou a presença do pássaro junto ao filho que ela facilmente pôde tomar como um significativo presságio e depois relatoua várias vezes ao menino de modo que ele pôde conservar a lembrança desse relato e depois como frequentemente ocorre confundila com a lembrança de uma vivência própria Contudo essa alteração em nada prejudica a validade de minha caracterização As fantasias que as pessoas criam posteriormente sobre sua infância costumam apoiarse em pequenas realidades desse período primordial de resto esquecido Era necessário um motivo secreto portanto para dar destaque a um evento real insig nificante e desenvolvêlo da forma como Leonardo faz com o pássaro que denomina abutre e sua notável conduta 28 Nota acrescentada em ligeiramente alterada em Desde então procurei fazer uso semel hante de uma recordação de infância também não compreendida de outro grande homem Nas primeiras páginas da autobiografia de Goethe Dichtung und Wahrheit Poesia e verdade escrita por volta dos sessenta anos somos informados de que por instigação dos vizinhos ele arremes sou pela janela peças de louça de barro pequenas e grandes que se espatifaram na rua e essa é a única cena que ele relata da infância A ausência de ligação com outra coisa o fato de coincidir com as lembranças infantis de outras pessoas que não se tornaram especialmente grandes e tam bém a circunstância de que nessa passagem Goethe não se refere ao irmãozinho que nasceu quando ele tinha três anos e nove meses e depois morreu quando ele tinha quase dez fizeramme empreender uma análise dessa recordação da infância É verdade que ele menciona esse irmão depois quando se detém nas muitas doenças da época da infância Eu esperava poder substituir essa lembrança por algo que melhor se ajustasse ao contexto do relato de Goethe e cujo teor o fizesse digno de conservação e do lugar que lhe foi atribuído na história de sua vida Essa pequena análise Uma recordação de infância em Poesia e verdade permitiu ver o ato de jogar a louça pela janela como uma ação mágica dirigida contra um intruso que perturbava e no trecho em que o incidente é narrado ele significaria o triunfo de que um segundo filho não pôde afinal 157316 perturbar a íntima relação entre Goethe e sua mãe O que haveria de surpreendente no fato de a mais antiga recordação de infância conservada em disfarces assim tanto no caso de Goethe como no de Leonardo referirse à mãe 29 Cf a propósito o Fragmento da análise de um caso de histeria Caso Dora1905 30 Horapollo Hieroglyphica Μητέρα δέ γράnpντες γlπα ςωγραnlσιν Para representar uma mãe desenhavam um abutre 31 Roscher Ausführliches Lexikon der griechischen und römischen Mythologie verbete Mut v ii 189497 Lanzone Dizionario di mitologia egizia Turim 1882 32 H Harzleben Champollion Sein Leben und sein Werk Champollion Sua vida e sua obra 1906 33 γlπα δέ hρρενα pr nασf γfνέσvαf πpτε kλλd vηλείας mπάσας Dizse que jamais existiu abutre macho que todos são fêmeas Eliano De natura animalium ii 46 apud Von Römer Über die androgynische Idee des Lebens Sobre a ideia andrógina da vida Jahrbuch für sexuelle Zwischenstufen Anuário de estágios sexuais intermediários v 1903 p 732 34 Plutarco Veluti scarabaeos mares tantum esse putarunt Aegyptii sic inter vultures mares non in veniri statuerunt Assim como acreditavam que apenas escaravelhos machos existiam os egípcios concluíram que entre os abutres não se encontravam machos Segundo vários tradutores Freud atribui erroneamente a Plutarco uma frase que é de C Leemans de um comentário deste em sua edição da obra de Horapollo ver a nota seguinte 35 Horapollonis Niloi Hieroglyphica edidit Conradus Leemans Amsterdam 1835 As palavras ref erentes ao sexo dos abutres são p 14 μητέρα μέν tπεfδz hρρεν tν τpύτω τx γένεf τxν sώων peπάρcεf Usam a imagem de um abutre para indicar a mãe porque nesse gênero de animais não há macho A frase não corresponde à referência do texto foi descuido do autor ou erro de edição A frase correta de Horapollo seria outra que é apresentada na nota da edição italiana da Boringhieri quando o abutre deseja conceber abre sua vagina ao vento boreal e é por esse penetrado durante cinco dias em que não toma alimento nem bebida 36 E Müntz Léonard de Vinci Paris 1899 p 282Essa lista se acha também na biografia de Carlo Vecce op cit pp 1612 outra lista posterior e mais extensa encontrase nas pp 23842 37 Cf as ilustrações em Lanzone op cit lâminas cxxxviviii 38 Römer op cit 39 Cf as observações no Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen ou seja o caso do pequeno Hans ali publicado em 1909 segue um acréscimo na nota feito em 1919 na Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse e na Imago 158316 40 Nota acrescentada em 1919 Acho inevitável supor que aí também se encontra uma das raízes do ódio aos judeus que aparece de forma tão elementar e atua tão irracionalmente em povos do Ocidente A circuncisão é inconscientemente equiparada à castração Se ousamos transpor nossas conjecturas para a préhistória da espécie humana podemos suspeitar que originalmente a circun cisão devia ser um sucedâneo atenuado um resgate da castração 41 Cf Richard Payne Knight Le Culte du Priape Traduzido do inglês Bruxelas 1883 42 São principalmente as investigações de I Sadger que minha própria experiência confirma no essencial Sei além disso que às mesmas conclusões chegaram W Stekel de Viena e S Ferenczi de Budapeste 43 Nota acrescentada em 1919 A pesquisa psicanalítica trouxe para a compreensão da homos sexualidade dois fatos indiscutíveis sem acreditar com isso ter exaurido as causas desse desvio sexual O primeiro é a mencionada fixação das necessidades amorosas na mãe o outro está na afirmação de que toda pessoa inclusive a mais normal é capaz da escolha de objeto homossexual realizoua alguma vez na vida e em seu inconsciente ainda a mantém ou contra ela se garante por meio de enérgicas atitudes contrárias Essas duas constatações põem fim tanto à pretensão dos ho mossexuais de serem reconhecidos como um terceiro sexo como à diferenciação considerada importante entre homossexualidade congênita e adquirida A presença de características somátic as do outro sexo o montante de hermafroditismo físico é bastante propícia à exteriorização da escolha de objeto homossexual mas não é decisiva Infelizmente é preciso dizer que os represent antes dos homossexuais no campo da ciência não souberam extrair nenhum ensinamento das se guras averiguações da psicanálise 44 E Solmi op cit p152 45 Solmi op cit p 203citações traduzidas do original italiano Leonardo faz como alguém que estava habituado a confessarse diariamente a outra pessoa e que agora substitui essa pessoa pelo diário Para uma suposição de quem pode ter sido ela ver Merejkóvski op cit p 367 46 M Herzfeld Leonardo da Vinci 1906 p cxli 47 Apud Merejkkóvski op cit p 282 48 Ou modelo Na realidade é o mesmo discípulo ou modelo da anotação anterior que Leonardo apelidou de Salaí pequeno diabo e cujo nome verdadeiro era Giangiacomo Caprotti Ele permaneceu com o mestre até o final da vida deste quase trinta anos depois Há in dícios de que a relação entre os dois não era tão idealizada como imagina Freud cf Vecce op cit pp 292 2967 O rosto de Salaí aparece em algumas obras de Leonardo entre elas um 159316 desenho preliminar para o anjo da Anunciação sorridente com longos cabelos encaracolados e o pênis ereto numa área escurecida da imagem e o quadro de S João Batista que está no Louvre 49 Da estátua equestre de Francesco Sforza 50 O texto completo está em M Herzfeld op cit p xlv 51 Merejkóvski op cit p 372 Essa lista é aqui citada conforme as duas traduções italianas do presente ensaio e a biografia de Carlo Vecce Excetuando a troca de florins por soldi as difer enças não são consideráveis como afirma Freud na nota que se segue o total da versão com flor ins é 124 Como triste atestado da incerteza das notícias de resto escassas acerca da vida íntima de Leonardo devo mencionar que a mesma conta é reproduzida por Solmi trad alemã p 104 com diferenças consideráveis A mais séria é que os florins são substituídos por soldi É lícito supor quenessa conta os florins não representam os velhos florins de ouro mas a unidade que depois seria comum equivalente a 1 23 lira ou 33 13 soldi Solmi faz de Caterina uma ser vente que cuidou da casa de Leonardo durante certo período Não tive acesso à fonte para as duas diferentes versões dessa conta 52 Caterina veio no dia 16 de julho de 1943 Giovannina rosto fantástico pergunta por Caterina no hospital A segunda frase teria sido mal traduzida por Merejkóvski a fonte de Freud para ela significaria na verdade Giovannina rosto fantástico achase no hospital de Santa Caterina 53 As formas de expressão em que a libido reprimida de Leonardo pôde se manifestar minuci osidade e preocupação com dinheiro achamse entre os traços de caráter que vêm do erotismo anal Cf Caráter e erotismo anal 1908 54 Nota acrescentada em 1919 O conhecedor de arte pensará aqui no peculiar sorriso imóvel que exibem as esculturas gregas arcaicas as de Egina por exemplo talvez também descubra algo semelhante nas figuras do mestre de Leonardo Verrocchio e por isso tenderá a ler com al guma reserva as considerações que se seguem 55 Gruyer apud Seidlitz op cit v ii p 280 A rigor Monna deveria ser escrito com minús cula e em itálico pois é uma abreviatura de Madonna que se usava antes do prenome da mulher de certa condição social mais ou menos como hoje se usa dona em português Mas a tradição a conservou em maiúscula como se fosse parte do nome da personagem e muitas vezes a encon tramos com um n só Seu correspondente masculino era ser que vemos empregado quando se fala do pai de Leonardo ser Piero da Vinci 56 Geschichte der Malerei História da pintura v i p 314 57 A Conti Leonardo pittore em Conferenze fiorentine op cit p 93 160316 58 W Pater Die Renaissance 2a ed 1906 p 157 edição alemã 59 M Herzfeld op cit p lxxxviii 60 Apud Scognamiglio op cit p 32 61 O mesmo supõe Merejkóvski que no entanto conjectura para Leonardo uma infância que di verge em pontos essenciais de nossas conclusões extraídas da fantasia do abutre Se o próprio Leonardo possuísse aquele sorriso como crê Merejkóvski dificilmente a tradição teria deixado de nos informar sobre tal coincidência 62 Op cit p 309 63 A Konstantinowa op cit Maria olha plena de ternura para seu filho querido com um sor riso que lembra a enigmática expressão da Gioconda e em outra passagem a respeito de Maria Em seus traços há o sorriso da Gioconda 64 Cf Von Seidlitz op cit v ii p 274 notas 65 Acrescentado em 1919 Se tentamos delimitar nesse quadro as figuras de Ana e de Maria per cebemos que isso não é fácil Diríamos que as duas se acham tão ligadas quanto figuras oníricas mal condensadas de forma que em vários pontos é difícil dizer onde termina Ana e onde começa Maria O que aos olhos dos críticos aparece como falha como defeito na composição justificase para o analista por referência ao significado secreto desta As duas mães da infância do artista puderam convergir numa só figura Acrescentado em 1923 É particularmente interessante comparar ao trio de SantAna do Louvre o famoso cartão de Londres que apresenta outra composição do mesmo tema Nele as duas figur as maternas estão ainda mais intimamente reunidas seus limites são ainda mais incertos de modo que houve observadores alheios a qualquer empenho de interpretação que afirmaram ser como se duas cabeças saíssem de um só corpo A maioria dos autores concorda em que esse cartão de Londres é o trabalho mais antigo situando sua origem no primeiro período milanês de Leonardo antes de 1500 Adolf Rosenberg Leonardo da Vinci 1898 porém vê na composição do cartão um tratamento posterior e mais feliz do mesmo tema e acompanhando Anton Springer acredita que ele surgiu até mesmo depois da Monna Lisa Combina muito bem com nossa argumentação se o desenho for uma obra bastante anterior Também não é difícil imaginar como o quadro do Louvre teria se originado do cartão enquanto o oposto não faria sentido Se partimos da composição do cartão parece que Leonardo sentiu a necessidade de cancelar a onírica fusão das duas mulheres que correspondia à sua re cordação de infância e afastar fisicamente as duas cabeças Isso ele fez separando a cabeça e o tronco de Maria da figura de sua mãe e inclinandoos para a frente Para motivar esse 161316 deslocamento teve de passar o menino Jesus para o chão não havendo mais lugar para João Batista menino substituído então pelo cordeiro Acrescentado em 1919 Oskar Pfister fez uma notável descoberta no quadro do Louvre à qual não se pode absolutamente negar o interesse ainda quando não se esteja inclinado a aceitála sem reservas Na vestimenta de Maria de arranjo peculiar e um tanto confuso ele enxerga os con tornos de um abutre e interpretaos como uma imagem críptica inconsciente No quadro que representa a mãe do artista achase nitidamente o abutre o símbolo da maternidade No tecido azul que se torna visível na altura do quadril da primeira mulher e se estende na direção do colo e do joelho direito veemse a cabeça tão característica do abutre o pescoço o arco superior do tronco Das pessoas a quem mostrei meu pequeno achado quase nenhuma pôde se furtar à evidência dessa imagem críptica Kryptolalie Kryptographie und unbewußtes Vex ierbild bei Normalen Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathische Forschungen v 1913 Neste ponto o leitor não deixará de observar a ilustração anexa a fim de nela buscar o desenho de abutre que Pfister enxergou O tecido azul cujas bordas formam o contorno da imagem é aqui destacado em listras escuras Pfister prossegue op cit p 147 A questão importante agora é Até onde vai a imagem críptica Acompanhando o tecido que tão claramente se destaca no conjunto a partir do meio da asa notamos que ele cai até o pé da mulher por um lado e sobe até seu ombro e o menino por outro lado A primeira dessas partes seria aproximadamente a asa e a cauda natural do abutre e essa última um ventre angulado e sobretudo se atentamos para as linhas em forma de raios sim ilares a contornos de penas uma cauda desdobrada de abutre cuja ponta direita exatamente como no fatídico sonho de infância de Leonardo conduz à boca do menino ou seja Leonardo Em seguida o autor desenvolve a interpretação em detalhes e aborda as dificuldades que daí resultam 66 Cf Três ensaios de uma teoria da sexualidade 5a ed 1922 1905 terceiro ensaio seção 5 67 Apud E Müntz op cit nota citado aqui conforme as duas edições italianas em que há ligeir as diferenças em relação ao texto dos Gesammelte Werke a principal sendo que a hora aparece antes de meu pai na segunda vez 68 Deixo de lado um erro maior que Leonardo comete nessa anotação quando atribui ao pai a id ade de 80 anos ao morrer em vez de 77 na realidade 78 69 Canto xxvii v 225 Aquele que na terra usurpa meu lugar Meu lugar meu lugar que está vago Na presença do Filho de Deus Fez de meu cemitério uma cloaca 162316 70 Parece que nesse ponto do diário Leonardo se enganou quanto ao número de seus irmãos o que se acha em notável contraste com a aparente exatidão da passagem Reproduzimos o comentário a esta nota que se acha na edição italiana da Boringhieri Na verdade é Freud que aqui se confunde ao atribuir doze irmãos e irmãs a Leonardo quando foram onze de modo que o pai deixou doze filhos incluindo Leonardo Aqui se fala apenas dos meiosirmãos paternos já que sua mãe também lhe deu vários 71 Il Duca perse lo Stato e la roba e libertà e nessuna sua opera si finì per lui ou seja nenhuma obra começada por ele ou para ele foi terminada apud Seidlitz op cit ii p 270 72 Op cit p 348 73 Chi disputa allegando autorità non adopra lingegno mas piuttosto la memoria apud Solmi Con ferenze fiorentine p 13 74 Müntz op cit La religion de Léonard op cit p 292 ss 75 Apud Herzfeld p 292 76 Apud Herzfeld op cit p 32 O grande Cisne deve indicar o monte Cecero próximo a Florença Agora se chama monte Ceceri em italiano cecero significa cisne 77 Nota acrescentada em 1919 Segundo as investigações de Paul Federn e também as de Mourly Vold 1912 Über den Traum 2 v Leipzig pesquisador norueguês sem ligação com a psicanálise 78 Vasari na tradução de Schorn 1843 aqui traduzido do original italiano com pequenas diver gências da citação alemã de Freud 79 Ibidem p 39 O termo aqui traduzido por gênio nisso acompanhando a tradução alemã usada por Freud onde se acha Genie é virtù no original italiano que admite vários significa dos antigos e modernos 80 Sobre essas cartas e as conjecturas a elas relacionadas ver Müntz op cit pp 82 ss o texto delas e de outras anotações correlatas está em M Herzfeld op cit pp 223 ss 81 Além disso gastou tempo a desenhar grupos de nós feitos numa corda que pode ser acompan hada de uma ponta à outra formando um conjunto circular de modo que se vê um desenho di ficílimo e muito belo tendo no meio estas palavras Leonardi Vinci Academia Vasari op cit p 8 Sabese hoje com certeza que essa academia foi mais uma ficção de Leonardo 82 Essa crítica pretende ser geral não visa especificamente os biógrafos de Leonardo 83 Seidlitz p 271 a No original das Strahlende zu schwärzen Und das Erhabene in den Staub zu ziehen do poema Das Mädchen von Orleans A donzela de Orleans 1801 de Friedrich Schiller 163316 b Michelangelo pintava ao mesmo tempo a Batalha de Cascina numa parede da Sala del Maggior Consiglio c Em setembro e outubro de 1792 Goethe acompanhou seu patrão o duque de Weimar na caót ica e sangrenta campanha para restaurar a monarquia na França liderada pelos austríacos e prus sianos e depois manifestouse criticamente acerca de tudo d Naquela que é possivelmente a mais bem documentada biografia do pintor da Mona Lisa o pro fessor italiano Carlo Vecce considera mais provável que a mãe de Leonardo não fosse uma cam ponesa de Vinci pois segundo um cronista do século ele era pela mãe nascido de bom sangue Esse biógrafo também acredita que ela voltou a viver com o filho na velhice tendose encontrado uma lista com as despesas de seu enterro entre os papéis de Leonardo cf C Vecce Leonardo da Vinci Lisboa Verbo trad Conceição Maia e José Maia a edição italiana é de 1998 e Respeitável no original bürgerlich termo que admite significados diversos segundo o con texto Nas versões estrangeiras deste ensaio que foram consultadas duas em espanhol as de LópezBallesteros e Etcheverry duas em italiano já mencionadas uma francesa de Marie Bonaparte e três em inglês de A A Brill J Strachey e D McLintock encontramse burguesa civilizada borghese idem bourgeoise commonly considered respectable middleclass f É interessante registrar que o verbo alemão saugen significa tanto chupar como mamar g Reelaborada umgearbeitet no infinitivo umarbeiten composto de arbeiten trabalhar laborar e do prefixo um que indica movimento ou mudança o substantivo Umarbeitung foi utilizado no parágrafo anterior As versões consultadas empregam transformada refundida ri elaborata idem sest muée elaborated transformed idem Esse verbo reaparece poucas páginas adiante e três dessas outras versões empregam um termo diferente do de agora a francesa trans posé a Standard inglesa recast e a nova inglesa da Penguin adapted Isso não deve causar es pécie já que diferentemente de Durcharbeiten não se pretende que seja um termo técnico cf nota à tradução do artigo Recordar repetir e elaborar de 1914 no v 10 destas Obras completas p 208 h Reproduzimos a nota que A A Brill um dos primeiros discípulos americanos de Freud acres centou nesse ponto à tradução que fez do presente texto publicada em 1916 Essa perversão sádica que era frequente antes que a maioria de nossas mulheres se desfizesse de seus cabelos lon gos é encontrada raramente hoje em dia i O trecho da frase até esse ponto foi um acréscimo feito em 1919 j Ou seja ao inverso como num espelho k No original Verkörperung aller Liebeserfahrung der Kulturmenschheit Freud cita a tradução alemã do livro de Pater sobre o Renascimento o original inglês citado na Standard edition é um 164316 tanto diferente a presence expressive of what in the ways of a thousand years men had come to desire uma presença reveladora do que ao longo de mil anos os homens vieram a desejar Nas duas outras citações desse autor as diferenças não são significativas l Uma de suas figuras paternas no original eine Person aus der Vaterreihe que literalmente se traduziria como uma pessoa da série paterna m Palavra acrescentada na edição dos Gesammelte Schriften em 1925 n A última frase foi acrescentada na segunda edição do texto em 1919 o Verbo derivado de Vogel pássaro corresponde ao sentido vulgar de trepar no Brasil p Impulso brincalhão Spieltrieb composto de Trieb e de Spiel jogo brincadeira as traduções consultadas empregam inclinación a los juegos pulsión de juego pulsione di giuoco pulsione al gioco instinct de jeu impulse to play playinstinct play drive q Na realidade sabese hoje que a mãe de Leonardo teve vários filhos com o camponês que a des posou no ano seguinte ao nascimento dele a primeira meiairmã de Leonardo nasceu quando ele tinha dois anos de idade r Impulsos de olhar e de saber Schau und Wißtrieb uma ocasião em que instinto não é usado para traduzir Trieb e que portanto assinalamos em nota conforme a orientação geral desta edição Da mesma forma recorremos a impulso brincalhão para verter Spieltrieb um pouco antes s Alusão a certas concepções de Wilhelm Fliess que enxergava relação entre bilateralidade e bis sexualidade cf a carta de Freud a Fliess de 9 de outubro de 1898 entre outras que diz Leonardo não se sabe de nenhum caso amoroso dele é talvez o mais famoso indivíduo canhoto Pode lhe servir t A frase de Shakespeare a que Freud faz alusão é provavelmente a famosa passagem de Hamlet ato i cena 5 There are more things in heaven and earth Horatio Than are dreamt of in your philosophy 165316 CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE 1910 PROFERIDAS NAS FESTIVIDADES DO 20O ANIVERSÁRIO DE FUNDAÇÃO DA CLARK UNIVERSITY EM WORCESTER MASSACHUSETTS SETEMBRO DE 1909 AO SR G STANLEY HALL PHD LLD REITOR DA CLARK UNIVERSITY PROFESSOR DE PSICOLOGIA E PEDAGOGIA ESTA OBRA É PENHORADAMENTE DEDICADA TÍTULO ORIGINAL ÜBER PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO LEIPZIG E VIENA DEUTICKE 1910 62 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 360 I Senhoras e senhores Para mim é uma sensação nova e desconcertante apresentarme como conferencista ante uma plateia de interessados do Novo Mundo Suponho que esta honra se deva apenas ao fato de meu nome estar ligado ao tema da psicanálise portanto é dela que pretendo lhes falar Tentarei lhes dar de maneira bastante concisa uma visão de conjunto da origem e do desenvolvi mento desse novo método de pesquisa e cura Se constitui um mérito haver criado a psicanálise ele não pertence a mim1 Não participei dos primórdios da psicanálise Era estudante e me preparava para as últimas provas quando outro médico de Viena o dr Josef Breuer2 pela primeira vez usou esse procedimento com uma jovem histérica entre 1880 e 1882 Vamos abordar inicialmente esse caso clínico e sua terapia Ele se acha ex posto minuciosamente nos Estudos sobre a histeria que Breuer e eu publicamos depois3 uma observação preliminar Eu soube não sem alguma satisfação que a maioria de meus ouvintes não pertence à classe médica Não creiam que seja pre ciso haver estudado medicina para acompanhar o que tenho a dizer É certo que avançaremos um trecho ao lado dos médicos mas logo devemos nos separar e seguir o dr Breuer num caminho bastante peculiar A paciente do dr Breuer uma moça de 21 anos e com elevados dotes intelec tuais desenvolveu ao longo de sua doença que já durava mais de dois anos uma série de distúrbios físicos e psíquicos que requeriam atenção Ela tinha uma paralisia espástica acompanhada de insensibilidade nas pontas dos dois membros 167316 direitos do corpo às vezes o mesmo problema no lado esquerdo distúrbios nos movimentos dos olhos e variadas deficiências da visão dificuldade em manter a cabeça erguida severa tosse nervosa nojo de alimentos certa vez foi incapaz de tomar líquidos durante semanas apesar da sede martirizante mostrava uma di minuição da faculdade de expressão que chegou à perda da capacidade de falar e compreender a língua materna e por fim sofria de estados de ausênciaa e con fusão delírios alteração de toda a personalidade os quais examinaremos adiante Ao tomar conhecimento de um quadro clínico desses os senhores tenderão a supor mesmo não sendo médicos que ele diz respeito a uma séria enfermidade provavelmente do cérebro que oferece pouca perspectiva de restabelecimento e que talvez não demore em levar ao fim da paciente Mas os médicos poderão lhes informar que numa série de casos com sintomas assim graves é justificado ter outra opinião bem mais otimista Quando surge tal quadro patológico numa mulher jovem que tem os órgãos vitais internos coração rins normais segundo o exame objetivo mas que experimentou fortes comoções afetivas e quando os sintomas divergem em pequenos traços daquilo que se poderia esperar então os médicos não veem o caso como realmente sério Afirmam que não se trata de uma doença orgânica do cérebro mas daquela condição misteriosa que já nos tempos da medicina grega era chamada histeria que é capaz de simular muitos quadros de adoecimento grave Não consideram a vida ameaçada e acham provável até mesmo uma recuperação completa Nem sempre é fácil diferenciar uma histeria de uma enfermidade orgânica séria Mas aqui não precisamos saber como se faz um diagnóstico diferencial desse tipo basta que nos seja garantido que a paciente de Breuer é um desses casos em que um médico experiente não erra ao diagnosticar a histeria E neste ponto cabe também acrescentar conforme a história clínica que a doença apareceu quando ela cuidava do pai que muito 168316 amava durante a grave doença que o levou à morte e que devido à sua própria enfermidade ela teve de abandonar a assistência ao pai Até agora foi proveitoso acompanharmos os médicos mas logo nos sep araremos deles Pois os senhores não devem esperar que as perspectivas de auxílio médico para o doente melhorem significativamente pelo fato de lhe ser diagnosticada uma histeria em vez de uma grave afecção orgânica do cérebro Na maioria dos casos a arte médica é impotente ante as sérias enfermidades do cérebro mas também diante da afecção histérica o médico nada pode fazer Tem de deixar que a benévola natureza decida quando e como realizará o esperançoso prognóstico dele4 Ao se reconhecer a doença como histeria pouco muda para o doente mas muito para o médico Podemos observar que sua atitude para com o doente histérico é bastante diferente daquela diante do que sofre de uma doença orgân ica Ele não dispensa em relação ao primeiro o mesmo interesse que tem por esse último pois a doença daquele é muito menos séria e no entanto parece reivindicar a mesma seriedade E outro fator se junta a isso O médico que em seus estudos aprendeu tanta coisa que permanece ignorada pelos leigos pôde formar a respeito das causas da doença e das alterações que acarreta por exem plo no cérebro de quem tem uma apoplexia ou um tumor ideias que até certo ponto têm de ser exatas pois lhe permitem compreender os detalhes do quadro mórbido Mas todo o seu saber todo o seu treino anatomofisiológico e patológico de nada lhe servem ante as singularidades dos fenômenos histéricos Não con segue entender a histeria diante dela se acha na mesma situação que um leigo E isso não agrada a quem costuma ter em alta conta o próprio saber Os histéricos são privados da simpatia do médico portanto Ele os vê como pessoas que in fringem as leis de sua ciência tal como os fiéis veem os heréticos julgaos 169316 capazes de todo mal acusaos de exagero e de fingimento e os pune subtraindo lhes seu interesse Certamente o dr Breuer não mereceu tal objeção no caso de sua paciente Tratoua com simpatia e interesse embora não soubesse como ajudála inicial mente É provável que ela mesma contribuísse para essa atitude mediante as ex celentes qualidades de intelecto e de caráter por ele documentadas na história clínica que redigiu Mas logo o seu afetuoso acompanhamento achou o caminho que possibilitou o primeiro auxílio terapêutico Haviase observado que a enferma em seus estados de ausência de alteração e confusão da psique murmurava algumas palavras que pareciam originarse de outra situação que lhe ocupava o pensamento O médico tendose informado dessas palavras punha a moça numa espécie de hipnose e as repetia para fazer com que relacionasse algo a elas A enferma procedeu dessa forma e reproduziu para o médico as criações psíquicas que a dominavam durante as ausências e se haviam denunciado naquelas palavras isoladas Eram fantasias profundamente tristes muitas vezes de poética beleza nós as chamaríamos devaneios que em geral tinham como ponto de partida a situação de uma garota junto ao leito do pai doente Depois de relatar certo número dessas fantasias ela se achava como que liberada retornando à vida psíquica normal Esse bemestar permane cia durante várias horas mas no dia seguinte dava lugar a uma nova ausência que do mesmo modo cessava com a exteriorização de novas fantasias Não se po dia escapar à impressão de que a alteração psíquica manifestada nas ausências era consequência do estímulo que emanava dessas fantasias tão carregadas de afetos A própria paciente que curiosamente falava e compreendia apenas o inglês nesse período da doença deu a esse novo tipo de tratamento o nome de talking cure cura pela fala e também referiuse a ele de maneira jocosa como chim ney sweeping limpeza de chaminé 170316 Logo se verificou como que por acaso que mediante essa limpeza psíquica podia se alcançar mais do que a eliminação temporária das frequentes perturb ações Também se conseguia fazer desaparecer sintomas patológicos quando a paciente era lembrada durante a hipnose com exteriorização de afetos em qual ocasião e em relação com o quê os sintomas haviam aparecido pela primeira vez Tinha havido um momento de calor intenso no verão e a paciente sofrera de uma sede atroz pois sem que pudesse indicar algum motivo viuse de repente impossibilitada de beber Tomava em sua mão o ansiado copo dágua mas assim que ele lhe tocava os lábios o repelia como se fosse uma hidrófoba Nesses pou cos segundos encontravase evidentemente num estado de ausência Para abrandar sua sede torturante vivia apenas de frutas melões etc Isso perdurava havia cerca de seis semanas quando um dia na hipnose ela discorreu sobre sua dama de companhia inglesa a quem não amava e relatou com todos os sinais de repulsa como fora a seu quarto e ali vira seu cãozinho o repugnante animal bebendo de um copo Não dissera nada pois quisera ser gentil Depois de ener gicamente dar expressão à fúria que lhe ficara retida pediu para beber bebeu sem dificuldade um grande volume de água e despertou da hipnose com o copo nos lábios Com isso o transtorno desapareceu para sempre5 Permitamme que me detenha por um instante nessa experiência Até então ninguém havia eliminado um sintoma histérico por esse meio e penetrado tão fundo na compreensão de suas causas Devia ser uma descoberta momentosa caso se confirmasse a expectativa de que outros sintomas da paciente talvez a maioria deles haviam surgido de tal forma e podiam ser suprimidos de tal forma Breuer não poupou esforços para convencerse disso e pôsse a investigar sis tematicamente a patogênese de outros sintomas mais graves Era realmente as sim quase todos os sintomas haviam se originado como resíduos como pre cipitados se quiserem de vivências carregadas de afetos que por causa disso 171316 depois denominamos traumas psíquicos e sua peculiaridade se explicava pela relação com a cena traumática que os havia ocasionado Eles eram para usar um termo técnico determinados determiniert pelas cenas das quais constituíam resí duos de lembranças já não precisavam ser vistos como produtos arbitrários ou enigmáticos da neurose Houve apenas uma divergência em relação à expect ativa Não era sempre uma só vivência que deixava o sintoma em geral eram nu merosos traumas recorrentes muitas vezes bastante semelhantes que haviam concorrido para aquele efeito Toda essa cadeia de lembranças patogênicas tinha então de ser reproduzida em sequência cronológica em sentido inverso primeiramente a última e a primeira por último e era totalmente impossível avançar para o primeiro trauma muitas vezes o mais influente pulando os que haviam ocorrido depois Os senhores certamente desejarão saber de outros exemplos de causação de sintomas histéricos além desse da hidrofobia provocada por nojo ao cão que be beu do copo Mas devo limitarme a umas poucas amostras a fim de manterme dentro da programação Assim Breuer conta que os transtornos de visão da pa ciente remontavam a ocasiões como aquela em que a paciente com lágrimas nos olhos estava sentada junto ao leito do pai enfermo quando de repente ele lhe perguntou que horas eram Ela não enxergava com nitidez esforçouse trouxe o relógio para perto dos olhos e o mostrador pareceulhe então muito grande mac ropsia e estrabismo convergente ou esforçouse para conter as lágrimas a fim de que o doente não as visse6 Todas as impressões patogênicas aliás vinham da época em que ela tinha dado assistência ao pai enfermo Certa vez não dormiu durante a noite em grande angústia pelo doente alta mente febril e na tensão da espera pois aguardavase um cirurgião de Viena para operálo Sua mãe se afastara por um algum tempo e Anna estava sentada junto ao leito do doente o braço direito pousado sobre o espaldar da cadeira Caiu num 172316 estado de sonho acordado e viu como vindo pela parede uma serpente negra se aproximava do doente para mordêlo É muito provável que no gramado atrás da casa realmente houvesse algumas serpentes com as quais a menina já se tivesse sobressaltado antes e que agora forneciam o material da alucinação Quis rechaçar o animal mas estava como que paralisada o braço direito pendente sobre o espaldar da cadeira ficara adormecido insensível e parético e quando o observou seus dedos transformaramse em pequenas serpentes com cabeça de caveira as unhas Provavelmente tentara afugentar a serpente com o braço direito paralisado e com isso sua anestesia e paralisia se associaram com a alu cinação da serpente Quando esta desapareceu quis rezar em sua angústia mas todas as línguas lhe faltaram não pôde falar em nenhuma delas até que final mente encontrou um poema infantil inglês e então pôde continuar a pensar e rez ar nessa língua7 Com a recordação desta cena sob hipnose foi eliminada também a paralisia do braço direito existente desde o início da enfermidade e foi concluído o tratamento Quando comecei a usar o método de investigação e tratamento de Breuer em meus próprios pacientes anos depois fiz constatações que se harmonizavam in teiramente com as dele Uma senhora de cerca de quarenta anos apresentava um tique fazia um peculiar ruído estalante sempre que se agitava e mesmo sem motivo aparente Isso havia se originado em duas vivências que tinham em comum sua intenção de não fazer ruído algum naquele momento e o fato de por uma espécie de vontade contrária o silêncio ser quebrado justamente por esse barulho uma vez quando finalmente conseguira fazer adormecer a filha doente e disse a si mesma que precisava ficar bastante quieta a fim de não acordála e outra vez quando durante um passeio de carroça com os dois filhos os cavalos se assustaram com a tempestade e ela desejou evitar cuidadosamente fazer algum 173316 ruído para não amedrontar mais ainda os animais 8 Dou esses exemplos entre muitos outros que são oferecidos nos Estudos sobre a histeria9 Senhoras e senhores se me permitem uma generalização inevitável aliás numa exposição assim resumida podemos formular da seguinte maneira o que até agora sabemos Nossos histéricos sofrem de reminiscências Seus sintomas são resíduos e símbolos mnêmicos de certas vivênciastraumáticas Uma com paração com símbolos mnêmicos de outras áreas talvez nos leve a compreender melhor esse simbolismo Também os monumentos e estátuas com que ador namos nossas cidades são símbolos desse tipo Se fizerem um passeio por Lon dres encontrarão na frente de uma das maiores estações de trem da cidade uma coluna gótica ricamente ornada a Charing Cross No século xiii um dos antigos reis plantagenetas transferiu para Westminster o corpo de sua amada rainha Eleanor e ergueu cruzes góticas em cada uma das paradas onde o sarcófago fora depositado no chão Charing Cross é o último dos monumentos que conservam a lembrança desse préstito10 Em outro ponto da cidade não muito distante da London Bridge vêse uma coluna mais moderna elevada chamada simples mente de The Monument Ela se destina a lembrar o grande incêndio que em 1666 irrompeu ali perto e que destruiu boa parte da cidade Portanto esses monumentos são símbolos mnêmicos tal como os sintomas histéricos até aqui parece se justificar a comparação Mas o que diriam os senhores de um morador de Londres que ainda hoje se detivesse pesaroso ante o monumento do cortejo fúnebre da rainha Eleanor em vez de cuidar dos seus afazeres com a pressa re querida pelo trabalho moderno ou de pensar alegremente na jovem rainha de seu próprio coração Ou de outro que diante do Monument pranteasse o aniquila mento de sua cidade natal embora há muito ela se tenha reerguido com tanto mais brilho No entanto é como esses dois pouco pragmáticos londrinos que se comportam os histéricos e neuróticos não apenas recordam vivências dolorosas 174316 há muito passadas mas ainda se prendem emocionalmente a elas não se desven cilham do passado e por causa dele negligenciam a realidade e o presente Tal fix ação da vida psíquica nos traumas patogênicos é uma das características mais im portantes e de maior consequência prática da neurose De bom grado aceito a objeção que provavelmente os senhores fazem nesse momento ao refletir sobre a história clínica da paciente de Breuer Todos os seus traumas vinham da época em que cuidava do pai enfermo e os sintomas podem ser entendidos como meros sinais de recordação da doença e da morte dele Logo correspondem a um luto e uma fixação na memória do falecido tão pouco tempo após sua morte certamente não é nada patogênico constituindo antes um processo afetivo normal Eu lhes concedo que a fixação nos traumas não é uma coisa notável na paciente de Breuer Mas em outros casos como no tique por mim mesmo tratado cujas causas precipitadoras remontavam a mais de quinze e a dez anos antes a característica do apego anormal ao passado é bastante nítida e provavelmente a paciente de Breuer a teria desenvolvido também se não tivesse recebido tratamento catártico logo depois que vivenciou os traumas e que sur giram os sintomas Até agora discutimos apenas a relação dos sintomas histéricos com a vida dos doentes mas dois outros elementos da observação de Breuer podem também nos indicar como devemos conceber os processos de adoecimento e de recuperação Em primeiro lugar cabe enfatizar que a paciente de Breuer em quase todas as situações patogênicas tinha de suprimir uma forte excitação em vez de possibil itar o desafogo da excitação mediante os correspondentes sinais de afeto palavras e atos No pequeno episódio com o cachorro de sua dama de companhia ela suprimiu em consideração a esta qualquer manifestação de seu intenso nojo en quanto velava na cabeceira do pai tinha o permanente cuidado de não deixar que o doente percebesse algo de seu medo e doloroso estado de ânimo Depois 175316 quando reproduziu tais cenas diante de seu médico o afeto antes inibido apareceu com particular veemência como se tivesse se poupado durante aquele tempo De fato o sintoma que restara dessas cenas adquiriu sua maior intensidade quando o tratamento se avizinhava da causa precipitadora e desapareceu após esta ser in teiramente esclarecida Por outro lado pôdese constatar que a recordação da cena na presença do médico não tinha efeito quando por algum motivo ocorria sem desenvolvimento de afetos Assim o que sucedia a esses afetos que podiam ser concebidos como grandezas deslocáveis era também o decisivo tanto no ad oecimento como na recuperação Impôsse a conjectura de que a doença se produzia porque os afetos desenvolvidos nas situações patogênicas tinham a saída normal bloqueada e que a essência da doença consistia em que esses afetos estrangulados sujeitavamse então a um emprego anormal Em parte per maneciam como duradouro fardo para a vida psíquica e fonte de contínua excit ação para ela e em parte experimentavam uma transformação em inusitadas in ervações e inibições somáticas que se apresentavam como os sintomas físicos do caso Para designar esse último processo recorremos ao nome de conversão histérica Certa parte de nossa excitação psíquica é normalmente guiada pelas vias da inervação somática e resulta no que se conhece como expressão de emoções A conversão histérica exagera essa parte do desafogo de um processo psíquico in vestido de afeto ela corresponde a uma expressão de afetos bem mais intensa guiada por novas trilhas Se um rio flui por dois canais num deles ocorre uma in undação quando a corrente do outro depara com um obstáculo Como veem estamos a ponto de chegar a uma teoria puramente psicológica da histeria em que atribuímos o primeiro lugar aos processosb afetivos Uma se gunda observação de Breuer nos obriga a conceder elevada importância aos esta dos de consciência na caracterização do evento patológico Sua paciente exibia variadas disposições psíquicas estados de ausência confusão e alteração do 176316 caráter além do estado normal No estado normal ela nada sabia das cenas pato gênicas e da relação entre estas e seus sintomas esquecera estas cenas ou de todo modo rompera a conexão patológica Quando era hipnotizada conseguiase após considerável esforço chamarlhe de volta à lembrança estas cenas e medi ante esse trabalho de recordação foram eliminados os sintomas Haveria enorme dificuldade em interpretar esse fato se os conhecimentos e experimentos do hipnotismo não tivessem indicado o caminho para isso Pelo estudo dos fenô menos hipnóticos habituamonos à concepção de início surpreendente de que no mesmo indivíduo são possíveis vários grupamentos psíquicos que podem per manecer mais ou menos independentes um do outro nada saber um do outro e que se alternam em chamar para si a consciência Casos desse tipo que são de nominados double conscience ocasionalmente se oferecem também de modo es pontâneo à observação Quando em tal cisão da personalidade a consciência permanece ligada constantemente a um dos dois estados esse é designado como estado psíquico consciente e aquele dele separado como inconsciente Nos notóri os fenômenos da assim chamada sugestão póshipnótica em que uma ordem dada sob hipnose é depois cumprida no estado normal temos um ótimo exemplo das influências que o estado consciente pode experimentar daquele que lhe é incon sciente e conforme esse modelo conseguiuse dar uma explicação para o que su cede na histeria Breuer adotou a hipótese de que os sintomas histéricos surgiram nesses estados psíquicos especiais que ele chamou de hipnoides Excitações que sobrevêm nesses estados hipnoides tornamse facilmente patogênicas pois eles não oferecem as condições para um desafogo normal dos processos de excitação Então nasce do processo de excitação um produto insólito o sintoma e este ir rompe como um corpo estranho no estado normal que não tem conhecimento da situação patogênica hipnoide Onde há um sintoma encontrase também uma 177316 amnésia uma lacuna na lembrança e o preenchimento dessa lacuna implica a eliminação das condições que geraram o sintoma Receio que essa parte de minha exposição não lhes tenha parecido muito clara Mas tenham em conta que se trata de concepções novas e difíceis que talvez não possam ser apresentadas mais nitidamente uma prova de que ainda não avançamos muito em nosso conhecimento De resto a tese dos estados hipnoides de Breuer revelouse limitadora e supérflua tendo sido abandonada pela psicanálise de hoje Mais adiante os senhores saberão ao menos em linhas gerais que influências e processos havia a descobrir por trás da barreira dos esta dos hipnoides postulada por Breuer Os senhores também terão tido a impressão justificadamente de que a pesquisa de Breuer pôde lhes oferecer apenas uma teoria incompleta e um esclarecimento insatisfatório dos fenômenos observados mas teorias acabadas não caem do céu e os senhores também desconfiarão de maneira ainda mais justificada se alguém lhes propuser uma teoria arrematada e sem lacunas já no começo das observações Uma teoria assim só poderia ser fruto da especulação de seu autor e não produto da investigação despreconcebida dos fatos II Senhoras e senhores Na mesma época aproximadamente em que Breuer fazia a talking cure com sua paciente o grande Charcot começava em Paris as 178316 investigações sobre os doentes histéricos da Salpêtrière que resultariam numa nova compreensão da enfermidade Esses resultados não podiam ser conhecidos em Viena naquele tempo Mas quando cerca de dez anos depois Breuer e eu publicamos a comunicação preliminar sobre o mecanismo psíquico dos fenô menos histéricos baseada no tratamento catártico da primeira paciente de Breuer estávamos inteiramente fascinados pelas pesquisas de Charcot Tomando as vivências patogênicas de nossos enfermos como traumas psíquicos nós as equiparamos aos traumas físicos que influenciavam as paralisias histéricas na constatação de Charcot e a tese dos estados hipnoides de Breuer não é outra coisa senão um reflexo do fato de Charcot haver reproduzido artificialmente aquelas paralisias traumáticas Esse grande observador francês de quem fui aluno em 188586 não era dado a concepções psicológicas ele mesmo Apenas seu discípulo P Janet buscou aprofundarse nos processos psíquicos peculiares da histeria e nós seguimos seu exemplo ao colocar a cisão psíquica e a desintegração da personalidade no centro de nossa concepção Os senhores encontram em Janet uma teoria da histeria que leva em conta as doutrinas vigentes na França sobre o papel da hereditariedade e da degeneração A histeria é segundo ele uma forma de alteração degenerativa do sistema nervoso que se manifesta por uma fraqueza congênita na capacidade de síntese psíquica Os histéricos seriam desde o princípio incapazes de juntar numa unidade os múltiplos processos psíquicos daí sua tendência à dissociação psíquica Se me permitem uma imagem banal porém clara o paciente histérico de Janet lembra uma mulher fraca que saiu para fazer compras e depois retorna com uma pilha de pacotes e caixas Não consegue segurar tudo com os dois braços e dez dedos e então lhe escapa um dos volumes Quando ela se abaixa para pegálo outro lhe cai das mãos e assim por diante Mas não se harmoniza bem com essa suposta fraqueza psíquica dos histéricos o fato de neles podermos 179316 observar além de manifestações de rendimento diminuído exemplos de aumento parcial da capacidade de realização como que para compensar as primeiras No tempo em que a paciente de Breuer havia esquecido sua língua materna e qualquer outra exceto o inglês seu domínio desta alcançou tal nível que ela era capaz quando lhe apresentavam um livro em alemão de fornecer em voz alta uma tradução inglesa correta e fluente de alguma passagem dele Depois quando prossegui por conta própria as pesquisas iniciadas por Breuer logo cheguei a outro ponto de vista sobre a gênese da dissociação histérica cisão da consciência Era inevitável que aparecesse uma divergência assim decisiva para tudo o que viria pois eu não partia de experiências de labor atório como Janet e sim de empenhos terapêuticos Impeliame sobretudo a necessidade prática O tratamento catártico tal como Breuer o havia empregado pressupunha que se pusesse o doente em hipnose pro funda pois somente em estado hipnótico achava ele o conhecimento dos nexos patogênicos que lhe escapava no estado normal Mas logo vim a desgostar da hipnose por ser um recurso caprichoso e digamos assim místico e quando notei que apesar de todos os esforços conseguia pôr em estado hipnótico apenas uma fração de meus pacientes resolvi abandonar a hipnose e tornar independente dela o tratamento catártico Como não podia alterar à vontade o estado psíquico da maioria de meus doentes propusme trabalhar com seu estado normal É certo que no primeiro instante isso parecia um empreendimento sem sentido e sem per spectiva Consistia na tarefa de saber do próprio doente algo que se ignorava e que também ele não sabia mas como se podia obter esse conhecimento Então me veio à lembrança um experimento muito curioso e instrutivo que eu havia presenciado quando estava com Bernheim em Nancy Bernheim nos mostrou que as pessoas que ele punha em sonambulismo hipnótico e fazia viver experiên cias diversas nesse estado apenas aparentemente haviam perdido a memória das 180316 coisas vividas durante o sonambulismo e que era possível lhes despertar aquelas lembranças também no estado normal Quando ele lhes perguntava sobre aquelas vivências inicialmente afirmavam nada saber mas quando não desistia in sistindo e assegurando que sabiam então as lembranças esquecidas retornavam sempre Assim também fiz com meus pacientes Quando chegava com eles a um ponto em que diziam nada saber mais eu lhes assegurava que sabiam sim que deviam apenas dizêlo e ousava afirmar que teriam a lembrança correta no momento em que eu pusesse a mão sobre sua testa Dessa maneira consegui sem recorrer à hipnose saber dos doentes tudo o que era preciso para estabelecer o nexo entre as cenas patogênicas esquecidas e os sintomas por elas deixados Mas era um pro cedimento laborioso e mesmo extenuante a longo prazo que não se prestava para uma técnica definitiva Mas não o abandonei sem que tirasse conclusões decisivas do que ali perce bera Eu vira confirmado o fato de que as lembranças esquecidas não se achavam perdidas Estavam em poder do doente e prontas para emergir em associação com o que ainda sabia mas alguma força as impedia de se tornarem conscientes obrigavaas a permanecer inconscientes A existência dessa força podia ser ad mitida com segurança pois notavase a tensão a ela correspondente quando nos empenhávamos em introduzir na consciência do doente as lembranças incon scientes em oposição a ela Vimos como resistência do paciente a força que mantinha o estado patológico Foi sobre essa ideia de resistência que baseei minha concepção dos processos psíquicos da histeria Para a recuperação do doente mostravase necessário afastar essas resistências e a partir do mecanismo da cura podíamos então form ar ideias bem definidas sobre o desenvolvimento da doença As mesmas forças que naquele momento se opunham na qualidade de resistência a que o material 181316 esquecido se tornasse consciente deviam ter provocado esse esquecimento e em purrado as vivências patogênicas em questão para fora da consciência Chamei repressão a este processo que supunha e o considerei demonstrado pela inegável existência da resistência Mas cabia também perguntar quais eram essas forças e quais as condições para a repressão em que então discerníamos o mecanismo patogênico da histeria Um exame comparativo das situações patogênicas que havíamos conhecido mediante o tratamento catártico permitiu responder a essa questão Em todas aquelas vivências havia aflorado um desejoc que se achava em agudo contraste com os demais desejos do indivíduo que se mostrava inconciliável com as exigências ét icas e estéticas da personalidade Ocorrera um breve conflito e no final dessa luta interior a ideia que aparecia ante a consciência como portadora daquele desejo incompatível sucumbiu à repressão sendo impelida para fora da consciência e es quecida junto com as lembranças a ela relacionadas O motivo da repressão portanto era a incompatibilidade entre a ideia em questão e o Eu do paciente as forças repressivas eram as reivindicações éticas etc do indivíduo A aceitação do desejo inconciliável ou o prosseguimento do conflito teriam gerado intenso de sprazer esse desprazer foi evitado pela repressão que dessa maneira revelouse como um dos dispositivos de proteção da personalidade psíquica Em vez de muitos exemplos quero lhes apresentar um só de meus casos no qual as condições para a repressão e sua utilidade são bastante claras É certo que para meus propósitos terei que abreviar também essa história clínica deixando de lado importantes premissas dela Uma moça que pouco antes havia perdido seu amado pai e que lhe havia dado assistência uma situação análoga à da pa ciente de Breuer demonstrou após o casamento da irmã mais velha simpatia especial pelo novo cunhado sentimento esse que podia ser tomado por afeição familiar Pouco tempo depois a irmã adoeceu e morreu quando a paciente e sua 182316 mãe estavam ausentes Elas foram rapidamente chamadas sem ter uma inform ação precisa do triste acontecimento Quando a moça estava se aproximando do leito da irmã falecida ocorreulhe num breve instante uma ideia que podia ser expressa nas palavras seguintes Agora ele está livre e pode se casar comigo Po demos dar como certo que tal ideia que traía seu amor intenso pelo cunhado de que ela mesma não tinha consciência foi entregue à repressão no instante seguinte graças ao tumulto de seus sentimentos A garota adoeceu com graves sintomas histéricos e quando a tomei em tratamento verificouse que havia es quecido completamente a cena junto ao leito da irmã e o feio impulso egoísta que nela se manifestara Lembrouse dele no tratamento reproduziu o instante pato gênico dando mostras de violenta emoção e ficou sã com o tratamento Talvez eu possa ilustrarlhes o processo da repressão e seu necessário vínculo com a resistência mediante uma tosca analogia retirada justamente da nossa situ ação presente Suponham que nesta sala e no meio desta plateia cujo silêncio e atenção exemplares eu não posso louvar o bastante houvesse um indivíduo que se comportasse de modo perturbador que com impertinentes risadas falas e bati das dos pés me desviasse a atenção de minha tarefa Eu declararia não poder con tinuar a palestra dessa forma e então alguns cavalheiros robustos se levantariam entre os senhores e após uma breve peleja poriam o maleducado na rua Ele es taria então reprimidod e eu poderia dar prosseguimento à palestra Mas para que o distúrbio não se repetisse caso o indivíduo tentasse entrar novamente os cavalheiros que haviam feito cumprir minha vontade moveriam suas cadeiras para junto da porta e se estabeleceriam como resistência após a repressão con sumada Se agora os senhores traduzirem esses dois locais em termos psíquicos como consciente e inconsciente terão uma imagem aceitável do processo da repressão 183316 Agora os senhores veem onde a nossa concepção se diferencia da de Janet Nós não derivamos a cisão da psique de uma inata deficiência do aparelho psíquico para realizar a síntese e sim a explicamos dinamicamente pelo conflito entre forças psíquicas contrastantes nela enxergando o resultado de uma ativa oposição entre os dois grupamentos psíquicos Desta nossa concepção nascem novas questões em grande número Sabese que é muito frequente a situação de conflito psíquico o esforço do Eu em defenderse de recordações dolorosas é ob servado com inteira regularidade sem que leve a uma cisão psíquica Não po demos afastar o pensamento de que outras condições são requeridas para que o conflito resulte na dissociação Também admito de bom grado que com a hipótese da repressão estamos apenas no começo não no final de uma teoria psicológica mas só podemos avançar aos poucos o conhecimento completo de penderá de um trabalho maior e mais profundo Por outro lado os senhores não devem tentar refletir sobre o caso da paciente de Breuer a partir da repressão Essa história clínica não se presta a isso pois foi obtida mediante a influência hipnótica Somente quando os senhores excluírem a hipnose poderão notar as resistências e repressões e formar uma ideia adequada do verdadeiro processo patogênico A hipnose esconde a resistência e torna acessível determinado âmbito da psique mas em troca acumula a resistência nos limites desse âmbito formando uma muralha que torna inacessível tudo o que es tá além O que extraímos de mais valioso da observação de Breuer foram os esclareci mentos sobre o vínculo entre os sintomas e as vivências patogênicas ou traumas psíquicos e agora não podemos deixar de avaliar essas percepções a partir da teoria da repressão Não percebemos à primeira vista como se chega à formação de sintomas partindo da repressão Em vez de fornecer uma complicada argu mentação teórica quero retornar neste ponto à imagem que utilizamos 184316 anteriormente para a repressão Considerem que o incidente não terminou neces sariamente com a exclusão do indivíduo incômodo e o posicionamento dos vigias ante a porta Pode muito bem ter ocorrido que o sujeito irritado e ainda mais desconsiderado prosseguisse nos dando trabalho É certo que já não estava entre nós que nos livramos de sua presença de seu riso galhofeiro de suas obser vações a meiavoz mas em determinado sentido a repressão malogrou pois ele passou a apresentar lá fora seu intolerável espetáculo e seus gritos e golpes na porta inibiam minha palestra mais ainda que o comportamento grosseiro de antes Em tal situação ficaríamos contentes se digamos nosso estimado presid ente o dr Stanley Hall se dispusesse a assumir o papel de mediador e pacific ador Ele sairia para falar com o intratável sujeito e retornaria com a proposta de que o deixássemos entrar novamente garantindo que o homem se comportaria melhor Fiados na autoridade do dr Hall concordaríamos em suspender a repressão e haveria novamente paz e sossego Esta não seria uma descrição inad equada da tarefa que toca ao médico na terapia psicanalítica das neuroses Para dizêlo mais diretamente estudando os doentes histéricos e outros neuróticos chegamos à conclusão de que neles fracassou a repressão da ideia a que se liga o desejo insuportável É certo que a impeliram para fora da consciên cia e da lembrança e aparentemente se pouparam uma enorme soma de desprazer mas no inconsciente o desejo reprimido continua a existir espreita por uma opor tunidade de ser ativado e então consegue enviar à consciência uma formação sub stitutiva para o que foi reprimido deformada e tornada irreconhecível à qual logo se ligam os mesmos sentimentos de desprazer dos quais o indivíduo se acreditava poupado mediante a repressão Tal formação substitutiva da ideia rep rimida o sintoma é imune a ataques subsequentes por parte do Eu defens ivo e no lugar do breve conflito surge um sofrimento interminável No sintoma se constata junto aos indícios da deformação um resíduo de semelhança indireta 185316 com a ideia reprimida originalmente as vias pelas quais a formação substitutiva se realizou podem ser descobertas durante o tratamento psicanalítico do doente e para a cura é necessário que o sintoma seja reconduzido pelas mesmas vias até a ideia reprimida Se o que foi reprimido é novamente levado à atividade psíquica consciente o que pressupõe a superação de consideráveis resistências o conflito psíquico resultante que o paciente pretendia evitar pode ter melhor desenlace sob a direção do médico do que o oferecido pela repressão Existem várias soluções assim apropriadas que levam o conflito e a neurose a bom termo e que em certos casos podem ser alcançadas em combinação Ou a personalid ade do doente é convencida de que rechaçou injustamente o desejo patogênico e induzida a aceitálo total ou parcialmente ou esse desejo é dirigido para uma meta mais elevada e portanto irrepreensível o que é chamado de sublimação ou se admite sua rejeição como sendo justa mas se substitui o mecanismo automático e portanto insuficiente da repressão por um juízo de condenação com o auxílio das mais elevadas funções intelectuais do ser humano alcançase o domínio consciente do desejo Queiram perdoarme se não tive êxito em expor de modo mais claramente apreensível esses pontos fundamentais do método de tratamento agora denom inado psicanálise As dificuldades não estão apenas na novidade do tema Algu mas observações posteriores esclarecerão sobre a natureza dos desejos intolerá veis que apesar da repressão conseguem se fazer perceptíveis desde o incon sciente e sobre as condições subjetivas ou constitucionais que têm de estar presentes numa pessoa para que ocorra esse malogro da repressão e haja uma formação substitutiva ou de sintoma 186316 III Senhoras e senhores Nem sempre é fácil dizer a verdade especialmente quando é preciso ser breve por isso devo corrigir uma inexatidão que expressei na última conferência Eu lhes disse que tendo renunciado à hipnose insistia para que os pacientes me informassem tudo o que lhes ocorria acerca do problema que abor dávamos pois sabiam de fato o que se achava supostamente esquecido e o que lhes ocorresse certamente conteria o que se buscava e efetivamente descobria que a primeira coisa que lhes vinha à mente trazia o esperado e demonstrava ser a esquecida continuação da lembrança Bem isso não é inteiramente correto eu o expus desse modo simplificado para manter a concisão Na realidade somente nas primeiras vezes acontecia de o que fora mesmo esquecido se apresentar por mera insistência minha Continuando com o procedimento sempre vinham coisas que não podiam ser as corretas pois não se adequavam ao contexto e os próprios pacientes as rejeitavam como incorretas A insistência não ajudava e parecia um erro haver abandonado a hipnose Nessa fase de perplexidade agarreime a um preconceitoe que teria sua legit imidade científica demonstrada por C G Jung e seus discípulos de Zurique anos depois Devo dizer que pode ser útil às vezes ter preconceitos Eu tinha em alta conta o rigor do determinismo dos processos psíquicos e não podia crer que um pensamento que o paciente produzia num estado de extrema atenção fosse com pletamente arbitrário e sem relação com a ideia esquecida que procurávamos o fato de que não era idêntico a essa podia ser explicado satisfatoriamente a partir 187316 da situação psicológica postulada No doente em tratamento atuavam duas forças contrárias de um lado seu esforço consciente em atrair o material esquecido presente no inconsciente para a consciência de outro a resistência nossa con hecida que se opunha a que o reprimido ou seus derivados se tornassem con scientes Se tal resistência era igual a zero ou muito pouca o esquecido se tornava consciente sem deformação logo era plausível supor que a deformação do que era buscado resultaria tanto maior quanto maior fosse a resistência a que ele se tornasse consciente O pensamento aparecido no lugar do que era buscado havia ele mesmo se originado como um sintoma portanto era uma nova formação substitutiva artificial e efêmera para o que fora reprimido e tanto mais diferente desse quanto maior a deformação que ele sofrera por influxo da resistência Mas ele tinha de mostrar certa semelhança com o que era buscado devido à sua natureza de sintoma e se a resistência não era muito forte devia ser possível a partir do pensamento surgido chegar ao que era buscado O pensamento tinha de ser em relação ao elemento reprimido como que uma alusão uma representação dele em discurso indireto Conhecemos no âmbito da vida psíquica normal casos em que situações aná logas àquela que supusemos produzem resultados também semelhantes Um caso assim é o do chiste Os problemas da técnica psicanalítica fizeram com que eu também me ocupasse da técnica de formação dos chistes Vou lhes dar apenas um exemplo desse tipo aliás uma anedota em língua inglesa A piada diz o seguinte Dois negociantes pouco escrupulosos haviam con seguido mediante uma série de empreendimentos ousados acumular uma grande fortuna e então se esforçavam por serem acolhidos na boa sociedade Entre out ras coisas pareceulhes conveniente se fazerem retratar pelo mais caro e emin ente pintor da cidade cujos quadros eram considerados verdadeiros aconteci mentos Numa grande soirée foram apresentadas as caríssimas pinturas e os dois 188316 anfitriões conduziram pessoalmente o mais prestigioso crítico e conhecedor de arte até o local do salão onde se achavam pendurados os dois retratos a fim de escutar sua opinião maravilhada Ele contemplou longamente os quadros bal ançou a cabeça como se notasse a ausência de algo e perguntou apontando para o espaço vazio entre os dois quadros And where is the Saviour E onde está o Salvador Vejo que todos riem dessa boa piada vamos buscar compreendêla juntos Entendemos o que o conhecedor de arte quer dizer Vocês são dois vel hacos exatamente como aqueles entre os quais o Salvador foi crucificado Mas ele não diz assim em vez disso expressa algo que à primeira vista parece inad equado e fora de contexto mas que no momento seguinte percebemos como alusão ao insulto que tinha em mente e como substituto perfeito para este Não podemos esperar que na anedota se achem todas as condições que supomos haver na origem do pensamento que ocorre a nosso paciente mas enfatizamos a iden tidade da motivação para a anedota e o pensamento Por que o crítico não fala diretamente aos dois velhacos o que gostaria de lhes dizer Porque bons motivos contrários estão presentes nele além de sua vontade de lhes dizer isso na cara Não deixa de ser arriscado ofender pessoas que nos recebem e que dispõem dos vigorosos punhos de uma extensa criadagem Podese ter o mesmo destino que na conferência anterior apresentei numa analogia para a repressão Por essa razão o crítico não expressa diretamente o insulto imaginado e sim de forma dis torcida como uma alusão com omissão e à mesma constelação se deve a nosso ver que o paciente produza em vez da ideia esquecida que buscamos um pensamento substitutivo mais ou menos distorcido Senhoras e senhores é pertinente acompanhando a escola de Zurique Bleuler Jung e outros denominar complexo um grupo de elementos ideat ivos relacionados e investidos de afeto Vemos assim que se partimos do que um paciente ainda se recorda para chegarmos a um complexo reprimido temos toda 189316 probabilidade de descobrilo se o paciente nos oferecer um número suficiente de seus pensamentos espontâneos Assim deixamos o doente falar o que quiser atendonos ao pressuposto de que só poderá lhe ocorrer o que indiretamente se relacionar ao complexo buscado Se este caminho para chegar ao reprimido lhes parecer muito trabalhoso posso lhes garantir contudo que é o único praticável No emprego dessa técnica somos estorvados pelo fato de que muitas vezes o doente para põese a hesitar afirma que não tem o que dizer que nada lhe ocorre absolutamente Se assim fosse e ele tivesse razão nosso procedimento se revelaria deficiente No entanto uma observação mais atenta mostra que os pensamentos espontâneos nunca deixam de surgir Isso parece ocorrer porque o doente retém ou afasta de si a ideia percebida sob o influxo das resistências que se travestem de variados juízos críticos sobre o valor daquele pensamento O modo de se resguardar disso é predizer essa conduta e solicitar ao paciente que não se preocupe com essa crítica Ele deve renunciando completamente a uma seleção crítica falar tudo o que lhe vier à mente mesmo que o considere errado despropositado sem sentido e sobretudo quando lhe for desagradável ocuparse daquele pensamento Seguindo esse preceito garantimos o material que nos põe na trilha dos complexos reprimidos Esse material dos pensamentos espontâneos que o doente rejeita com des dém quando é influenciado pela resistência e não pelo médico representa para o psicanalista o minério do qual com o auxílio de algumas simples artes de inter pretação ele extrai o conteúdo de metal valioso Querendo obter um conheci mento rápido e provisório dos complexos reprimidos de um paciente sem exam inar ainda sua organização e interrelação os senhores podem recorrer à exper iência da associação tal como foi desenvolvida por C G Jung e seus discípulos11 Esse procedimento alcança para o psicanalista o mesmo que a análise qualitativa para o químico é dispensável na terapia de doentes neuróticos mas indispensável 190316 para a demonstração objetiva dos complexos e na investigação das psicoses que foi empreendida com muito êxito pela escola de Zurique Ocuparse dos pensamentos que ocorrem ao paciente quando ele se submete à principal regra psicanalítica não é o nosso único recurso técnico para a explor ação do inconsciente Há dois outros procedimentos que servem para a mesma fi nalidade a interpretação de seus sonhos e o aproveitamento de seus atos falhos e casuais Devo confessarlhes prezados ouvintes que muito refleti se não seria mel hor em vez desta sucinta visão de todo o campo da psicanálise oferecerlhes uma exposição detalhada da interpretação de sonhos12 Uma razão puramente subjetiva e aparentemente secundária me impediu de fazêlo Pareceume quase indecente apresentarme como intérprete de sonhos neste país tão voltado para fins práticos antes que os senhores soubessem da importância que pode reivindicar essa arte velha e ridicularizada A interpretação dos sonhos é na realidade a via régia para o conhecimento do inconsciente o mais seguro alicerce da psicanálise e o campo em que qualquer estudioso pode adquirir sua convicção e buscar seu treinamento Quando me perguntam como alguém pode se tornar psicanalista eu respondo Pelo estudo de seus próprios sonhos Com perfeito discernimento todos os oponentes da psicanálise evitaram até hoje apreciar a Interpretação dos sonhos ou buscaram superála com as mais rasas objeções Se ao contrário deles os senhores forem capazes de admitir as soluções para os problemas da vida onírica então as novidades que a psicanálise propõe ao seu pensamento já não oferecerão dificuldades Não devem esquecer que as nossas produções oníricas noturnas exibem por um lado enorme semelhança exterior e parentesco interior com as criações da doença psíquica e por outro lado são também compatíveis com a plena saúde da vida de vigília Não é paradoxal afirmar que quem vê as ilusões sensoriais ideias 191316 delirantes e mudanças de caráter normais com espanto em vez de com preensão não tem perspectiva de entender as formações anormais dos estados anímicos patológicos senão como um leigo Os senhores podem tranquilamente incluir entre esses leigos quase todos os psiquiatras de hoje Queiram agora acompanharme numa breve excursão pela área dos problemas do sonho Quando acordados costumamos tratar os sonhos com o mesmo desdém que o paciente mostra pelos pensamentos espontâneos que o psicanalista lhe solicita Também os rejeitamos ao esquecêlos de maneira rápida e completa Nosso menosprezo se funda no caráter estranho até mesmo dos sonhos que não são con fusos e disparatados e na evidente absurdidade e falta de sentido de outros son hos e nossa rejeição se baseia nas tendências imorais e despudoradas que muitas vezes se manifestam nos sonhos Sabemos que na Antiguidade os sonhos não eram menosprezados Tampouco as camadas baixas de nosso povo têm dúvidas quanto a seu valor tal como os antigos esperam obter dos sonhos revelações sobre o futuro Devo dizer que não sinto necessidade de suposições místicas para preencher as lacunas de nosso conhecimento atual e portanto jamais encontrei algo que confirmasse a natureza profética dos sonhos Há muitas outras coisas já sufi cientemente espantosas que podem ser ditas sobre os sonhos Primeiramente nem todos os sonhos são ininteligíveis confusos e estranhos para o sonhador Se os senhores examinarem os sonhos de crianças pequenas de um ano e meio em diante eles lhes parecerão absolutamente simples e de fácil ex plicação A criança pequena sempre sonha com a realização de desejos que no dia anterior lhe foram despertados mas não satisfeitos Os senhores não precisarão de nenhuma arte interpretativa para encontrar esta singela solução apenas de in formações sobre as vivências da criança no dia anterior dia do sonho A solução mais satisfatória do enigma do sonho seria sem dúvida que os sonhos dos 192316 adultos não fossem diferentes daqueles das crianças realizações de desejos que lhes vieram no dia do sonho E assim é na realidade os obstáculos que se acham no caminho desta solução podem ser gradualmente eliminados mediante uma an álise detida dos sonhos A primeira e mais séria objeção é de que os sonhos dos adultos têm geral mente um conteúdo incompreensível em que não se percebe nenhuma realização de desejo A resposta é que esses sonhos experimentaram uma deformação o processof psíquico que subjaz a eles deveria ter originalmente outra expressão verbal Os senhores devem distinguir entre o conteúdo manifesto do sonho de que se lembram vagamente de manhã e põem em palavras de maneira trabalhosa e aparentemente arbitrária e os pensamentos latentes do sonho cuja presença no in consciente precisamos supor Essa deformação onírica é o mesmo processo de que tomaram conhecimento ao investigar a formação dos sintomas histéricos ela indica que o mesmo jogo de forças psíquicas opostas participa da formação dos sonhos e da formação dos sintomas O conteúdo manifesto do sonho é o sucedâneo deformado dos pensamentos oníricos inconscientes e tal deformação é obra de forças defensivas do Eu de resistências que impedem os desejos reprim idos do inconsciente de terem acesso à consciência na vida diurna mas embora reduzidas durante o sono ainda são fortes o bastante para obrigálos a se dis farçar De modo que o sonhador não entende o sentido de seus sonhos como o histérico não percebe as relações e o significado de seus sintomas Os senhores poderão convencerse de que existem pensamentos oníricos e de que entre eles e o conteúdo manifesto do sonho há realmente o nexo que acabo de expor se fizerem a análise dos sonhos cuja técnica é idêntica à psicanalítica Não considerem a aparente relação entre os elementos do sonho manifesto e procurem reunir os pensamentos que por livre associação aparecem para cada elemento do sonho conforme a regra de trabalho psicanalítica A partir desse material os 193316 senhores chegarão aos pensamentos oníricos latentes exatamente como chegaram aos complexos ocultos do paciente a partir do que lhe ocorria em re lação com os seus sintomas e lembranças Nos pensamentos oníricos latentes as sim encontrados verão imediatamente como é justificado referir os sonhos dos adultos aos sonhos infantis O que então substituise ao conteúdo manifesto do sonho como verdadeiro sentido deste é sempre claro e compreensível ligase às impressões do dia anterior e mostra ser uma realização de desejos não satisfeitos Assim o sonho manifesto que os senhores conhecem da lembrança ao acordar pode ser caracterizado apenas como realização disfarçada de desejos reprimidos Agora os senhores também podem mediante uma espécie de trabalho de síntese conhecer o processo que levou à deformação e transformação dos pensamentos oníricos inconscientes em conteúdo manifesto do sonho Denomin amos esse processo trabalho do sonho Ele merece nosso pleno interesse teórico pois sobretudo nele podemos estudar os insuspeitados processos psíqui cos que são possíveis no inconsciente ou melhor entre dois sistemas psíquicos diferenciados como o consciente e o inconsciente Entre esses processos psíquicos descobertos sobressaem o da condensação e o do deslocamento O trabalho do sonho é um caso especial dos efeitos recíprocos de diferentes grupamentos psíquicos ou seja das consequências da cisão psíquica e parece ser idêntico no essencial ao trabalho de deformação que transforma os complexos reprimidos em sintomas na repressão malograda Além disso os senhores se admirarão ao descobrir na análise dos sonhos e da maneira mais convincente dos seus próprios o papel enorme insuspeitado que as impressões e vivências dos primeiros anos da infância têm no desenvolvi mento do indivíduo Na vida onírica a criança como que continua a existir na pessoa mantendo todos os desejos e características inclusive os que se tornaram imprestáveis na vida adulta De forma imperiosa se apresentarão aos senhores os 194316 desenvolvimentos repressões sublimações e formações reativas mediante os quais resulta de uma criança de tão diferentes propensões o assim chamado indi víduo normal que é portador e em parte vítima da civilização penosamente alcançada Também desejo lhes assinalar que pela análise dos sonhos pudemos notar que o inconsciente se utiliza especialmente para a representação de complexos sexuais de um simbolismo determinado que em parte varia individualmente mas também é fixado em formas típicas e que parece coincidir com o simbolismo que conjeturamos haver em nossos mitos e fábulas É possível que tais criações dos povos venham a ser esclarecidas através dos sonhos Por fim devo lhes admoestar que não se deixem levar pela objeção de que o aparecimento de sonhos angustiados contradiz nossa concepção do sonho como realização de desejos Sem considerar que também esses sonhos angustiados ne cessitam de interpretação antes de serem julgados devemos dizer em termos bastante gerais que a angústia não se liga tão simplesmente ao conteúdo do sonho como se pode imaginar sem maior conhecimento das condições que de terminam a angústia neurótica A angústia é uma das reações negativas do Eu em relação a desejos reprimidos que se tornaram fortes e por isso também é ex plicada facilmente no sonho quando a formação do sonho se pôs demasiada mente a serviço da realização desses desejos reprimidos Como veem a indagação sobre o sonho já se justificaria pelos esclarecimen tos que traz sobre coisas que de outro modo dificilmente saberíamos Mas chegamos a ela com o tratamento psicanalítico dos neuróticos Após o que foi dito os senhores compreendem como a interpretação dos sonhos se não é muito dificultada pelas resistências do paciente leva ao conhecimento de seus desejos ocultos e reprimidos e dos complexos por esses alimentados e posso agora 195316 abordar o terceiro grupo de fenômenos psíquicos cujo estudo também se tornou recurso técnico da psicanálise Tratase dos pequenos atos falhos de indivíduos tanto normais como neuróti cos aos quais não se costuma dar importância o esquecimento de coisas que po dem saber e às vezes sabem realmente por exemplo a momentânea dificuldade em recordar um nome os lapsos verbais em que todos incorremos os lapsos an álogos quando se lê ou se escreve as atrapalhações ao realizar tarefas simples o ato de perder ou quebrar objetos etc coisas para as quais normalmente não se busca uma determinação psicológica e que se deixa passar sem questionamento como eventos casuais consequências de distração desatenção e circunstâncias similares Há também os atos e gestos que as pessoas executam sem perceber e tampouco sem lhes atribuir valor psíquico como brincar ou mexer com objetos trautear melodias tocar em partes do corpo ou da própria roupa etc13 Essas pequenas coisas os atos falhos e ações sintomáticas e casuais não são desprovidas de significado como as pessoas em geral numa espécie de acordo tácito se dispõem a crer São perfeitamente significativas podem ser interpretadas com facilidade e segurança a partir da situação em que ocorrem e verificase que também expressam impulsosg e intenções que devem ser postos para trás escon didos da própria consciência ou que procedem dos mesmos complexos e desejos reprimidos que já conhecemos como criadores dos sintomas e formadores dos sonhos Merecem ser vistas como sintomas portanto e o seu exame assim como o dos sonhos pode conduzir ao desvelamento do que se acha oculto na psique Por meio delas o indivíduo geralmente revela seus mais íntimos segredos Quando acontecem de modo bastante fácil e frequente mesmo na pessoa sã que costuma ter êxito na repressão de seus impulsos inconscientes devem isso ao seu caráter trivial e discreto Mas podem reivindicar um alto valor teórico pois nos 196316 demonstram a existência da repressão e da formação substitutiva mesmo em con dições de saúde Os senhores já percebem que o psicanalista se distingue pela rigorosa crença no determinismo da vida psíquica Para ele não existe nada pequeno nada arbit rário ou casual nas manifestações da psique Ele sempre espera encontrar uma motivação suficiente ali onde habitualmente não há essa expectativa mais ainda dispõese a achar uma motivação múltipla para um só efeito psíquico enquanto nossa exigência de causalidade que se supõe inata declarase satisfeita com uma única causa psíquica Se agora os senhores reunirem todos os meios que possuímos para o desvela mento do que se acha oculto esquecido reprimido na psique o estudo dos pensamentos do paciente evocados na associação livre dos seus sonhos e dos seus atos falhos e sintomáticos se juntarem a isso a utilização de outros fenômenos que ocorrem durante o tratamento psicanalítico sobre os quais farei depois algu mas observações ao abordar a transferência chegarão comigo à conclusão de que nossa técnica já tem eficácia bastante para realizar sua tarefa para levar à consciência o material psíquico patogênico e assim eliminar o sofrimento oca sionado pela formação de sintomas substitutivos O fato de em nosso esforço terapêutico enriquecermos e aprofundarmos o conhecimento da vida psíquica das pessoas doentes e das normais deve apenas ser considerado um atrativo e uma vantagem particulares desse trabalho Não sei se tiveram a impressão de que a técnica cujo arsenal acabo de lhes mostrar é particularmente difícil Penso que é inteiramente adequada ao material com que tem de lidar Certamente não é óbvia tem de ser aprendida tal como a técnica histológica ou cirúrgica Talvez fiquem admirados ao saber que na Europa ouvimos muitos julgamentos sobre a psicanálise feitos por pessoas que nada sabem dessa técnica e não a aplicam e depois requerem como que 197316 zombando que lhes demonstremos a correção de nossos resultados Também há entre esses opositores sem dúvida pessoas para as quais o modo de pensamento científico não é desconhecido normalmente que não rejeitariam o resultado de um exame microscópico porque não se pode confirmálo no preparado anatômico a olho nu nem antes de formar elas próprias um juízo sobre a questão com o auxílio do microscópio No tocante à psicanálise porém as condições são realmente mais desfavoráveis ao reconhecimento A psicanálise busca levar o que se acha reprimido na psique ao reconhecimento consciente e todo aquele que a julga é ele próprio um ser humano que tem essas repressões mantidas talvez a duras penas Portanto ela deve provocar nele a mesma resistência que desperta nos doentes e para esta é fácil mascararse de rejeição intelectual e aduzir argu mentos semelhantes àqueles que rebatemos em nossos pacientes com a regra psic analítica fundamental Assim como em nossos pacientes também em nossos ad versários podemos constatar com frequência uma clara influência afetiva sobre a capacidade de julgamento no sentido de que é debilitada A presunção da con sciência que tanto menospreza o sonho por exemplo é um dos mais fortes dis positivos protetores de que todos somos dotados para impedir a irrupção dos complexos inconscientes e por isso é tão difícil convencer as pessoas da realidade do inconsciente e lhes dar a conhecer algo novo que contradiz seu saber consciente 198316 IV Senhoras e senhores Agora desejarão saber o que com o auxílio dos meios técni cos que descrevemos conseguimos apurar sobre os complexos patogênicos e desejos reprimidos dos neuróticos Tratase de uma coisa sobretudo com surpreendente regularidade a pesquisa psicanalítica descobre que os sintomas patológicos dos doentes são lig ados a impressões de sua vida amorosa mostra que os desejos patogênicos são da natureza de componentes instintuais eróticos e nos obriga a supor que devemos atribuir a máxima importância aos distúrbios eróticos entre as influências que conduzem à doença e que isso ocorre em ambos os sexos Bem sei que as pessoas não creem de bom grado nesta minha afirmação Até mesmo os pesquisadores que se dispõem a acompanhar meus trabalhos psicológi cos tendem a achar que superestimo a contribuição dos fatores sexuais e me per guntam por que outras excitações psíquicas também não dariam ensejo aos fenô menos de repressão e de formação substitutiva que caracterizei Posso apenas re sponder Não sei por que não poderiam fazêlo e tampouco tenho algo contra isso mas a experiência mostra que não têm essa importância que dão respaldo à ação dos fatores sexuais quando muito mas jamais os substituem Isso não foi postulado teoricamente por mim ainda nos Estudos sobre a histeria que publiquei juntamente com o dr Josef Breuer em 1895 eu não adotava esse ponto de vista tive de abraçálo quando minhas experiências se multiplicaram e penetrei mais profundamente na questão Caros senhores encontramse aqui alguns de meus 199316 amigos e seguidores mais próximos que me acompanharam nesta viagem a Worcester Perguntemlhes acerca disso e ouvirão que todos eles inicialmente descriam por completo da afirmação sobre a importância decisiva da etiologia sexual até que o seu próprio labor analítico os obrigou a subscrevêla Convencerse da justeza da tese em questão não é exatamente facilitado pelo comportamento dos pacientes Em vez de solicitamente nos darem informações a respeito de sua vida sexual eles buscam ocultálas de toda maneira As pessoas não são francas em matéria sexual Não mostram livremente sua sexualidade usam isto sim um espesso manto de mentiras para escondêla como se fizesse mau tempo no mundo da sexualidade E não deixam de estar certas o sol e o ar não são realmente propícios à atividade sexual em nosso mundo civilizado nen hum de nós pode livremente revelar aos outros o seu erotismo Mas quando seus pacientes notarem que podem sentirse à vontade sob o seu tratamento irão se desfazer desse envoltório de mentiras e só então os senhores estarão capacitados a formar um juízo sobre esse tema controverso Infelizmente tampouco os médi cos têm privilégio sobre os demais seres humanos em sua relação pessoal com as questões da vida sexual e muitos deles se acham dominados pela mescla de con cupiscência e hipocrisia que governa a conduta da maioria dos homens civiliza dos em matéria de sexualidade Vamos prosseguir com a exposição de nossos resultados Em outro conjunto de casos é certo que a investigação psicanalítica não refere os sintomas a vivên cias sexuais e sim a triviais vivências traumáticas Mas outra circunstância torna irrelevante essa distinção O trabalho de análise requerido para o completo es clarecimento e a cura definitiva de um caso não se detém jamais nas vivências da época em que o paciente adoeceu mas retrocede sempre até a puberdade e a primeira infância para somente ali deparar com as impressões e ocorrências de terminantes para o adoecimento posterior Apenas as vivências da infância 200316 explicam a suscetibilidade a traumas posteriores e apenas desvelando e tornando conscientes esses traços mnemônicos quase invariavelmente esquecidos é que ad quirimos o poder para eliminar os sintomas Chegamos aqui ao mesmo resultado que na investigação dos sonhos isto é que são os desejos imorredouros e reprim idos da infância que emprestam à formação dos sintomas a sua força sem a qual a reação aos traumas posteriores tomaria um curso normal Mas podemos de maneira bastante geral designar como sexuais esses poderosos desejos infantis Agora estou realmente seguro de que se espantaram Então existe uma sexu alidade infantil perguntarão A infância não é o período da vida caracterizado pela ausência do instinto sexual Não meus senhores certamente não ocorre que o instinto sexual penetre nas crianças no momento da puberdade tal como o demônio entra nos porcos numa passagem do Evangelho A criança tem seus in stintos e atividades sexuais desde o início vem com eles ao mundo e deles pro cede mediante um desenvolvimento significativo e pleno de etapas aquilo que se chama a sexualidade normal do adulto E essas manifestações de atividade sexual infantil não são nada difíceis de observar pelo contrário é preciso alguma arte para ignorálas ou interpretálas de outra maneira Por um obséquio do destino achome em condições de invocar o testemunho de um dos seus próprios colegas em favor de minha tese Eis aqui um trabalho do dr Sanford Bell publicado no American Journal of Psychology em 1902 O autor pertence ao quadro da Clark University em cuja sede nos encontramos agora Nesse trabalho intitulado A preliminary study of the emotion of love between the sexes Um estudo preliminar da emoção do amor entre os sexos e que sur giu três anos antes de meus Três ensaios de uma teoria da sexualidade 1905 ele afirma exatamente o que acabo de lhes dizer The emotion of sexlove does not make itsappearance for the first time at the period of adolescence as has been thought A emoção do amor sexual não aparece pela primeira vez no período da 201316 adolescência como se tem pensado Ele trabalhou ao modo americano como diríamos na Europa reuniu nada menos que 2500 observações no decorrer de quinze anos entre elas oitocentas que ele próprio realizou The unprejudiced mind in observing these manifestations in hundreds of couples of children cannot es cape referring them to sex origin The most exacting mind is satisfied when to these observations are added the confessions of those who have as children experienced the emotion to a marked degree of intensity and whose memories of childhood are relat ively distinct A mente despreconcebida ao observar essas manifestações em centenas de casais de crianças não pode deixar de referilas a uma origem sexual O mais exigente espírito fica satisfeito quando a essas observações se juntam as confissões daqueles que sendo crianças experimentaram a emoção num alto grau de intensidade e cujas memórias da infância são relativamente nítidas O que mais surpreenderá aqueles entre os senhores que desejariam não crer na sexualidade infantil porém será ouvir que entre essas crianças precocemente en amoradas se encontram várias com a tenra idade de três quatro e cinco anos Não me admiraria se os senhores acreditassem antes nessas observações de seu colega e patrício do que nas minhas Recentemente me foi dado obter a partir da análise de um garoto de cinco anos que sofria de angústia empreendida por seu próprio pai seguindo a técnica correta 14 um quadro razoavelmente com pleto das manifestações instintuais somáticas e das produções psíquicas num dos primeiros estágios da vida amorosa infantil E devo lembrarlhes que há poucas horas nesta mesma sala meu amigo C G Jung apresentou sua observação de uma garota ainda mais jovem que motivada pelo mesmo ensejo de meu paciente o nascimento de um irmãozinho evidenciou quase os mesmos impulsos sensuais desejos e complexos Não perco a esperança portanto de que os sen hores ainda se conciliarão com a ideia inicialmente estranha de uma sexualidade infantil e gostaria também de lhes mencionar o honroso exemplo do psiquiatra 202316 E Bleuler de Zurique que ainda há poucos anos declarou publicamente não en tender minhas teorias sexuais mas desde então confirmou a sexualidade infantil em sua plena extensão através de observações próprias15 É bastante fácil explicar por que a maioria das pessoas sejam observadores clínicos ou não prefere nada saber sobre a vida sexual das crianças Elas esque ceram sua própria atividade sexual infantil sob a pressão da educação para a vida em sociedade e não desejam ser lembradas do que foi reprimido Chegariam a outras convicções se iniciassem o exame com uma autoanálise uma revisão e in terpretação de suas lembranças infantis Deixem de lado as dúvidas e acompanhemme numa apreciação da sexualid ade infantil desde os primeiros anos16 O instinto sexual da criança se revela bastante complexo pode ser decomposto em muitos elementos que procedem de fontes diversas E sobretudo é ainda independente da função da procriação a cujo serviço se porá mais tarde Ele se presta para a obtenção de diferentes sensações de prazer que com base em analogias e conexões reunimos sob a de nominação de prazer sexual A principal fonte do prazer sexual infantil é a excit ação apropriada de certos locais do corpo especialmente suscetíveis de estímulo que são além dos genitais os orifícios da boca ânus e uretra mas também a pele e outras superfícies sensoriais Como nessa primeira fase da vida sexual infantil a satisfação é encontrada no próprio corpo prescindese de um objeto exterior nós a denominamos fase do autoerotismo recorrendo a um termo cunhado por Havelock Ellis Aqueles locais importantes para a obtenção de prazer sexual nós chamamos de zonas erógenas O ato de chupar o dedo ou de mamar dos be bês é um bom exemplo desta satisfação autoerótica a partir de uma zona erógena O primeiro estudioso desse fenômeno um pediatra de nome Lindner de Bud apeste já o interpretava corretamente como satisfação sexual e descreveu ex austivamente sua transição para outras formas mais elevadas de atividade 203316 sexual17 Outra satisfação sexual desse período da vida é a excitação masturb atória dos genitais que conserva enorme importância na vida posterior e que al guns indivíduos jamais abandonam completamente Além dessas e de outras atividades autoeróticas manifestamse bem cedo na criança aqueles componentes instintuais do prazer sexual ou como apreciamos dizer da libido que pres supõem outra pessoa como objeto Esses instintos aparecem em pares de opostos como ativos e passivos Devo mencionar como os mais significativos represent antes desse grupo o prazer em causar dor sadismo com sua contraparte passiva masoquismo e o prazer em olhar ou em ser olhado sendo que do primeiro de riva posteriormente a ânsia de saber e desse último o impulso para a exibição artística e teatral Outras atividades sexuais da criança já entram no âmbito da escolha de objeto em que o principal elemento é outra pessoa que deve sua im portância originalmente a considerações oriundas do instinto de autoconser vação Mas a diferença sexual ainda não tem papel decisivo nesse período da in fância assim podemos atribuir a toda criança sem lhe fazer injustiça um quê de inclinação homossexual Essa dispersa vida sexual da criança abundante mas dissociada em que um instinto busca o prazer independentemente dos outros é então concentrada e or ganizada em duas direções principais de modo que no fim da puberdade o caráter sexual definitivo da pessoa geralmente já se encontra formado De um lado os diversos instintos ficam subordinados ao predomínio da zona genital pelo que toda a vida sexual se põe a serviço da procriação e a satisfação deles mantém a importância apenas para preparar e favorecer o ato sexual propria mente dito De outro lado a escolha de objeto relega para trás o autoerotismo de maneira que na vida amorosa os componentes todos do instinto sexual passam a procurar satisfação na pessoa amada Mas nem todos os componentes instintuais originais são admitidos nesse estabelecimento definitivo da vida sexual Ainda 204316 antes da puberdade repressões extremamente enérgicas de determinados instin tos se realizam sob influência da educação e produzemse forças psíquicas como o pudor o nojo a moral que zelam como vigias por essas repressões Quando na época da puberdade sobrevém a inundação da necessidade sexual ela encon tra nas mencionadas formações psíquicas reativas ou de resistência diques que lhe impõem o fluxo pelas assim chamadas vias normais e lhe tornam impossível reavivar os instintos submetidos à repressão Em particular são os impulsos coprófilos da infância isto é aqueles relacionados aos excrementos os mais pro fundamente atingidos pela repressão e também a fixação nas pessoas da primitiva escolha de objeto Meus senhores uma tese da patologia geral nos diz que todo processo de desenvolvimento traz consigo os germens da predisposição patológica já que ele pode ser inibido adiado ou suceder de forma incompleta O mesmo vale para o complicado desenvolvimento da função sexual Ele não se dá sem problemas em todo indivíduo pode deixar anormalidades ou predisposições para um adoeci mento posterior pelo caminho da involução regressão Pode acontecer que nem todos os instintos parciais se submetam ao domínio da zona genital um instinto que tenha assim continuado independente produz o que denominamos perversão que pode substituir a meta sexual normal por uma própria Como já mencionei muitas vezes ocorre que o autoerotismo não é inteiramente superado algo que as mais diversas perturbações depois evidenciam Pode se manter a equivalência original dos dois sexos como objeto sexual e disso resultará uma inclinação para a atividade homossexual na vida adulta que em determinadas circunstâncias chega à homossexualidade exclusiva Esta série de distúrbios corresponde às inib ições diretas do desenvolvimento da função sexual compreende as perversões e o nada raro infantilismo geral da vida sexual 205316 A predisposição às neuroses relacionase de outra maneira ao desenvolvi mento sexual prejudicado As neuroses estão para as perversões como o negativo para o positivo nelas podem ser demonstrados os mesmos componentes instin tuais que nas perversões como portadores dos complexos e formadores de sinto mas mas atuando a partir do inconsciente Experimentaram uma repressão port anto mas puderam apesar dela firmarse no inconsciente A psicanálise nos permite ver que uma manifestação excessiva desses instintos em idade muito tenra leva a uma espécie de fixação parcial que representará um ponto fraco no conjunto da função sexual Se o exercício da função sexual normal encontra ob stáculos na vida adulta a repressão da época de desenvolvimento é rompida justamente nos locais em que houve as fixações infantis Agora os senhores talvez façam a objeção de que isso não é sexualidade Em prego a palavra num sentido bem mais amplo do que aquele a que estão acos tumados Isto lhes concedo de bom grado Mas cabe perguntar se os senhores não empregariam o termo em sentido muito restrito ao limitálo ao âmbito da procri ação Assim fazendo sacrificam o entendimento das perversões o nexo entre perversão neurose e vida normal e ficam incapacitados para perceber em sua verdadeira significação os primórdios facilmente observáveis da vida amorosa física e psíquica das crianças O que quer que decidam sobre o uso dessa palavra tenham presente que os psicanalistas tomam a sexualidade naquele sen tido pleno a que somos levados pela consideração da sexualidade infantil Retornemos mais uma vez ao desenvolvimento sexual da criança Nisso temos algumas coisas a acrescentar pois nossa atenção dirigiuse mais às mani festações somáticas da vida sexual do que às psíquicas A escolha de objeto prim itiva da criança que deriva de sua necessidade de amparo solicita agora o nosso interesse Ela se volta inicialmente para todas as pessoas que cuidam da criança mas logo essas dão lugar aos pais A observação direta da criança e a posterior 206316 investigação analítica do adulto concordam em que a relação da criança com os pais não se acha livre de elementos de excitação sexual Ela toma o pai e a mãe especialmente um deles como objeto de seus desejos eróticos Nisso responde habitualmente a um estímulo dos próprios pais cuja afeição tem nítidas caracter ísticas de uma atividade sexual ainda que inibida em suas metas O pai prefere normalmente a filha a mãe o filho A criança reage a isso desejando estar no lugar do pai se é um menino ou no lugar da mãe se é uma menina Os senti mentos despertados nessas relações entre pais e filhos e nas dos irmãos entre si que são apoiadas naquelas são de natureza não só positiva afetuosa mas também negativa hostil O complexo assim formado é logo reprimido mas continua a ter um efeito grande e persistente a partir do inconsciente É lícito formular a hipótese de que ele representa com suas ramificações o complexo nuclear de toda e qualquer neurose e não nos surpreenderá encontrálo igualmente atuante em outros âmbitos da vida psíquica O mito do rei Édipo que mata seu pai e toma por esposa a mãe constitui uma revelação ainda pouco modificada desse desejo infantil que depois é rechaçado pela barreira do incesto A peça Hamlet de Shakespeare tem raízes no mesmo terreno do complexo do incesto que ali é mais encoberto No tempo em que a criança é dominada pelo complexo nuclear ainda não rep rimido parte significativa de sua atividade intelectual é posta a serviço dos in teresses sexuais Ela começa a pesquisar de onde vêm os bebês e avaliando os in dícios que se lhe apresentam compreende mais das circunstâncias reais do que os adultos podem imaginar Geralmente seu interesse na pesquisa é despertado pela ameaça concreta de um novo irmão que chega no qual inicialmente vê tão só um concorrente Por influência dos instintos parciais nela própria atuantes chega a várias teorias sexuais infantis como a de que os dois sexos partilham o mesmo genital o masculino a de que os bebês são gerados através da 207316 alimentação e nascem pela extremidade intestinal e a que concebe a relação sexu al como um ato hostil uma espécie de subjugação Mas justamente o caráter in acabado de sua constituição sexual e a lacuna em seus conhecimentos devida à condição latente do canal sexual feminino obrigam o pequeno pesquisador a in terromper seu trabalho pela ausência de resultados O próprio fato dessa pesquisa infantil assim como as teorias sexuais que ela promove têm importância decisiva na formação do caráter da criança e no conteúdo de seu posterior adoeci mento neurótico É inevitável e inteiramente normal que a criança tome os pais como objetos de sua primeira escolha amorosa Mas sua libido não deve permanecer fixada nesses primeiros objetos deve apenas tomálos depois como modelos e passar deles para outras pessoas na época da escolha definitiva de objeto O desliga mento da criança em relação aos pais tornase então uma tarefa inelutável para que a aptidão social do jovem indivíduo não venha a ser comprometida No per íodo em que a repressão faz a seleção entre os instintos parciais da sexualidade e depois quando deve se afrouxar a influência dos pais que arca essencialmente com o dispêndio necessário para tais repressões o trabalho de educação depara com grandes tarefas que nos dias de hoje nem sempre são realizadas de modo compreensivo e inatacável Senhoras e senhores não devem pensar que com esta discussão sobre a vida sexual e o desenvolvimento psicossexual da criança nos afastamos muito da psic análise e da tarefa de eliminar os distúrbios nervosos Podem descrever o trata mento psicanalítico se quiserem como simplesmente uma continuada educação que visa superar os resíduos infantis 208316 V Senhoras e senhores Com a revelação da sexualidade infantil e a ligação dos sin tomas neuróticos aos componentes instintuais eróticos chegamos a algumas ines peradas formulações sobre a natureza e as tendências das enfermidades neurótic as Vemos que as pessoas adoecem quando devido a obstáculos externos ou falta de adaptação interna não acham satisfação para suas necessidades eróticas na realidade Vemos que então se refugiam na doença a fim de com o auxílio desta encontrar uma satisfação substitutiva para o que lhes é negado Percebemos que os sintomas patológicos constituem uma parte da atividade sexual do indivíduo ou até mesmo toda a sua vida sexual e enxergamos no distanciamento da realid ade a principal tendência mas também o principal dano causado pela doença Suspeitamos que a resistência de nossos doentes à recuperação não é simples mas composta de vários motivos Não apenas o Eu do paciente se recusa a abandonar as repressões mediante as quais se destacou de suas disposições originais como também os instintos sexuais não querem renunciar à sua satisfação substitutiva enquanto for incerto que a realidade lhes venha a oferecer algo melhor A fuga da realidade insatisfatória para aquilo que por sua nocividade bioló gica denominamos doença embora nunca se dê sem um imediato ganho de prazer para o doente efetuase pela via da involução regressão do retorno a fases anteriores da vida sexual em que a satisfação não esteve ausente Tal re gressão é dupla ao que parece uma temporal na medida em que a libido a ne cessidade erótica recorre a estágios de desenvolvimento anteriores e uma 209316 formal na medida em que são usados os meios originais e primitivos de expressão psíquica para manifestar essa necessidade Mas as duas espécies de regressão se orientam para a infância e coincidem na produção de um estado infantil da vida sexual Quanto mais os senhores penetrarem na patogênese da doença nervosa tanto mais se lhes revelará o nexo entre as neuroses e outros produtos da psique hu mana inclusive os mais valiosos entre eles Hão de notar que nós homens com as elevadas exigências de nossa cultura e sob o peso de nossas repressões internas vemos a realidade como totalmente insatisfatória e por isso entretemos uma vida de fantasias em que produzindo realizações de desejos adoramos compensar as deficiências da vida real Nessas fantasias há muito da natureza propriamente constitutiva da personalidade e também daqueles seus impulsos reprimidos em prol da realidade O indivíduo enérgico e bemsucedido é aquele que mediante o trabalho consegue transformar em realidade suas fantasias que encerram desejos Quando isso não é alcançado devido às resistências do mundo externo e à fraqueza da pessoa ocorre o afastamento da realidade o indivíduo se retira para um mundo de fantasias mais satisfatório cujo conteúdo transforma em sintomas no caso de enfermidade Em determinadas condições favoráveis ainda lhe resta a possibilidade de achar outro caminho para a realidade a partir dessas fantasias em vez de alhearse permanentemente dela pela regressão ao estado infantil Quando a pessoa desavinda com a realidade possui o dom artístico que para nós é ainda um enigma psicológico pode converter suas fantasias em obras de arte em vez de sintomas assim escapando ao destino da neurose e recon quistando por essa via indireta o vínculo com a realidade18 Se existir revolta contra o mundo real e esse valioso dom for ausente ou insuficiente será pratica mente inevitável que a libido obedecendo à origem das fantasias tome a via da repressão e chegue à revivescência dos desejos infantis e dessa maneira à 210316 neurose Em nosso tempo a neurose substitui o mosteiro para onde costumavam se retirar todos aqueles a quem a vida decepcionara ou que se sentiam demasiado fracos para ela Permitamme agora expor o principal resultado a que chegamos através da investigação psicanalítica das neuroses o de que elas não têm um conteúdo psíquico peculiar que não se ache igualmente no indivíduo são ou como formu lou C G Jung que os neuróticos adoecem dos mesmos complexos com que tam bém nós os sadios lutamos Se essa luta leva à saúde à neurose ou a realizações compensativas é algo que depende de considerações de quantidade das pro porções entre as forças em choque Senhoras e senhores até o momento lhes soneguei a observação mais import ante que confirma nossa hipótese das forças instintuais sexuais da neurose Sempre que tratamos psicanaliticamente um neurótico surge nele o estranho fenômeno chamado transferência isto é ele dirige para o médico uma certa medida de impulsos afetuosos muitas vezes mesclados de hostilidade que não se baseia numa relação real e que como evidenciam todos os detalhes de seu surgi mento só pode remontar a velhas fantasias e desejos que se tornaram incon scientes Assim aquela parte da vida emocional do paciente que ele não pode mais evocar na lembrança é vivenciada novamente na sua relação com o médico e apenas com esse reviver na transferência ele é persuadido da existência e do poder de tais impulsos sexuais inconscientes Os sintomas que para recorrer a uma imagem da química são precipitados de anteriores vivências amorosas no mais amplo sentido podem ser dissolvidos e transformados em outros produtos psíquicos apenas na elevada temperatura da transferência O médico desempenha nessa reação o papel de para usar a ótima expressão de S Ferenczi19 fer mento catalítico que temporariamente atrai para si os afetos liberados no pro cesso O estudo da transferência também pode lhes dar a chave para compreender 211316 a sugestão hipnótica que utilizamos inicialmente como técnica para a pesquisa do inconsciente em nossos pacientes Naquele tempo ela se revelou um auxílio terapêutico mas também um obstáculo ao conhecimento científico dos fatos na medida em que tirava as resistências psíquicas de determinado âmbito e as jun tava nos limites dele formando um muro intransponível Mas não pensem que o fenômeno da transferência do qual pouco lhes posso falar aqui infelizmente é produto da influência psicanalítica A transferência ocorre espontaneamente em todas as relações humanas assim como entre o paciente e o médico é sempre o veículo da influência terapêutica e seu efeito é tanto maior quanto menos se suspeita de sua existência Portanto a psicanálise não a produz apenas a desvela para a consciência dela se apoderando a fim de guiar os processos psíquicos para a meta desejada Não posso abandonar o tema da transferência sem destacar que esse fenômeno tem papel decisivo para se obter não apenas a convicção do pa ciente mas também a do médico Sei que apenas por experiência própria com a transferência os meus seguidores se persuadiram da correção de minhas afirm ativas sobre a patogênese das neuroses e posso muito bem compreender que tal segurança de julgamento não seja conquistada enquanto o indivíduo não realizar psicanálises ele mesmo isto é não observar por si próprio os efeitos da transferência Senhoras e senhores acho que devemos considerar dois obstáculos especial mente por parte do intelecto para o reconhecimento do modo de pensar psic analítico primeiro a inexistência do hábito de contar com o estrito e absoluto de terminismo da vida psíquica segundo o desconhecimento das peculiaridades mediante as quais os processos psíquicos inconscientes se diferenciam daqueles conscientes que nos são familiares Uma das mais difundidas resistências ao tra balho psicanalítico tanto em pessoas doentes como em sadias está ligada a esse último fator Temese fazer mal com a psicanálise há o receio de chamar à 212316 consciência do doente os instintos sexuais reprimidos como se isso acarretasse o perigo de eles sobrepujarem as mais elevadas tendências éticas da pessoa despojandoa de suas conquistas culturaish Notase que o doente tem locais feridos em sua psique mas evitase tocar neles para que o seu sofrimento não aumente acreditase Podemos adotar essa analogia Sem dúvida é mais delicado não tocar nas feridas quando assim provocamos apenas dor Mas como se sabe o cirurgião não se abstém de examinar e mexer no foco da doença quando pre tende realizar uma intervenção que há de trazer a cura permanente Ninguém mais cogita incriminálo pelas inevitáveis dores do exame ou pelas reações pós operatórias quando a cirurgia tem êxito e o doente alcança uma definitiva mel hora de seu estado mediante o temporário agravamento dele Sucede de maneira semelhante com a psicanálise Ela pode reivindicar o mesmo que a cirurgia o ac réscimo nas dores que ela exige dos pacientes durante o tratamento é muito menor empregandose a boa técnica do que o causado pelo cirurgião e perfeita mente desprezível em relação à gravidade do sofrimento básico Mas o temido resultado final de uma destruição do caráter civilizado pelos instintos livrados da repressão é algo impossível pois esse medo não leva em consideração aquilo que a experiência nos ensinou de modo seguro que a força psíquica e somática de um impulso envolvendo um desejo uma vez falhada a sua repressão resulta incom paravelmente maior quando é inconsciente do que quando é consciente de maneira que só poderá ser debilitada ao se tornar consciente O desejo incon sciente não pode ser influenciado é independente em relação a todas as tendên cias contrárias enquanto aquele consciente é inibido por tudo que seja igual mente consciente e a ele se oponha Portanto o trabalho psicanalítico se põe a serviço das mais altas e valiosas tendências da civilização como um substituto melhor para a repressão malsucedida 213316 Que destino têm os desejos inconscientes liberados pela psicanálise por quais meios conseguimos tornálos inócuos para a vida do indivíduo Esses meios são vários O que sucede mais frequentemente é que tais desejos são anulados já dur ante o trabalho pela atividade psíquica correta dos impulsos melhores que lhes são contrários A repressão é substituída por uma condenação realizada com os melhores recursos Isso é possível porque em grande parte temos de eliminar apenas consequências de estágios mais antigos do desenvolvimento do Eu Naquele tempo o indivíduo efetuou apenas uma repressão do instinto inutil izável pois ele próprio ainda estava fraco e insuficientemente organizado em sua atual força e maturidade talvez possa dominar impecavelmente aquilo que lhe é hostil Um segundo desfecho do trabalho psicanalítico é aquele em que os instintos inconscientes revelados podem ser conduzidos àquela adequada aplicação que já deveriam ter encontrado mais cedo se o seu desenvolvimento não tivesse sido perturbado Pois a extirpação dos desejos infantis não é de maneira nenhuma a meta ideal do desenvolvimento O neurótico perde com suas repressões muitas fontes de energia psíquica que afluindo para a formação de seu caráter e sua atividade teriam sido de grande valor Conhecemos um processo de desenvolvi mento muito mais adequado chamado sublimação em que a energia dos impulsos infantis não é bloqueada mas continua aproveitável dandose aos impulsos uma meta mais elevada eventualmente não mais sexual no lugar daquela inutilizável Pois precisamente os componentes do instinto sexual se distinguem por essa ca pacidade especial de sublimação de substituição da sua meta sexual por uma mais distante e socialmente mais valiosa É provável que as maiores conquistas da civilização se devam aos aportes de energia para nossas realizações psíquicas que foram obtidos dessa forma Uma repressão ocorrida precocemente exclui a 214316 sublimação do instinto reprimido suspensa a repressão está novamente livre o caminho da sublimação Não podemos deixar de considerar o terceiro desfecho possível do trabalho psicanalítico Certa parte dos impulsos libidinais reprimidos tem direito a uma satisfação direta e deve alcançála em vida As exigências de nossa cultura tornam a existência difícil para a maioria das criaturas humanas e assim favorecem o dis tanciamento da realidade e o surgimento das neuroses sem obter um acréscimo do ganho cultural com esse aumento da repressão sexual Não devemos nos en soberbecer a ponto de negligenciar o que há de originalmente animal em nossa natureza e também é preciso não esquecer que a realização da felicidade indi vidual não pode ser riscada do conjunto de metas da nossa cultura A plasticidade dos componentes sexuais que se manifesta em sua capacidade de sublimação pode realmente gerar a tentação de obter conquistas culturais cada vez maiores mediante a sublimação cada vez mais ampla de tais componentes Mas assim como em nossas máquinas esperamos transformar em trabalho mecânico útil apenas determinada fração do calor despendido tampouco devemos procurar desviar de seus fins próprios todo o montante de energia do instinto sexual Não é possível fazêlo e se a restrição da sexualidade for levada longe demais inev itavelmente trará consigo todos os males de uma exploração abusiva Pode ser que os senhores vejam como uma presunção esta minha advertência final Sejame concedido apenas expor de forma indireta a minha convicção narrandolhes uma velha anedota cuja moral poderão julgar A literatura alemã fala de uma cidadezinha chamada Schilda a cujos habitantes são atribuídas esper tezas de todo gênero Contase que os cidadãos de Schilda possuíam entre outras coisas um cavalo que lhes dava muita satisfação com seu vigoroso trabalho Uma só coisa lhe reprochavam ele consumia bastante aveia que estava longe de ser barata Decidiram fazêlo cuidadosamente abandonar esse péssimo hábito 215316 diminuindo em alguns grãos a sua ração diária até que ele se acostumasse à privação total Por algum tempo a coisa funcionou otimamente a alimentação do cavalo chegou a uns poucos grãos em determinado dia e no dia seguinte ele fi nalmente iria trabalhar sem aveia nenhuma Na manhã desse dia porém o traiçoeiro animal foi encontrado sem vida e os cidadãos de Schilda não sabiam explicar de que havia morrido Nós nos inclinamos a crer que o cavalo morreu de fome e que sem alguma ração de aveia não se pode esperar que animal nenhum trabalhe Quero lhes agradecer pelo convite e pela atenção com que me honraram 1 Nota acrescentada em 1923 Vejase porém o que escrevo a respeito disso em Contribuição à história do movimento psicanalítico 1914 onde me declaro inteiramente responsável pela psicanálise 2 Dr Josef Breuer nascido em 1842 e falecido em 1925 membro correspondente da Academia Imperial de Ciências conhecido por trabalhos sobre a respiração e a fisiologia do equilíbrio 3 Estudos sobre a histeria Viena 1895 4a impressão 1922 Trechos de minha participação neste volume foram traduzidos para o inglês pelo dr A A Brill de Nova York Selected papers on hys teria and other psychoneuroses no 4 da Nervous and Mental Disease Monograph Series Nova York 3a ed ampliada 1920 216316 4 Sei que agora essa afirmação já não procede mas na conferência eu me transponho a mim e aos ouvintes para a época anterior a Se desde 1880 então as coisas mudaram em boa parte isto se deve aos esforços que estou relatando sucintamente 5 Estudos sobre a histeria 4a ed p 26 Gesammelte Werke Nachtragsband pp 23233 6 Op cit 4a ed p 31GW N p 237 7 Op cit 4a ed p 30 GW N pp 23637 8 Cf op cit 4a ed pp 43 e 46 Caso da sra Emmy von N 9 Uma seleção de passagens desse livro acrescida de alguns ensaios posteriores sobre a histeria tem atualmente tradução para o inglês feita pelo dr A A Brill de Nova York 10 Ou melhor tratase de uma cópia mais recente daquele monumento O nome Charing se gundo me informou o dr Ernest Jones parece vir das palavras chère reine cara rainha 11 C G Jung Diagnostische Assoziationstudien v i 1906 12 A interpretação dos sonhos 1900 13 Psicopatologia da vida cotidiana 1905 14 Análise da fobia de um garoto de cinco anos Jahrbuch für psychoanalytische und psychopatholo gische Forschungen v 1 1a metade 1909 15 Bleuler Sexuelle Abnormitäten der Kinder Anormalidades sexuais das crianças Jahrbuch der Schweizerischen Gesellschaft für Schulgesundheispflege ix 1908 16 Três ensaios de uma teoria da sexualidade Viena 1905 17 ahrbuch für Kinderheilkunde Anuário de Pediatria 1879 Lindner Das Saugen an den Fingern Lippen etc bei den Kindern Ludeln 18 Cf Otto Rank Der Künstler O artista Viena 1907 19 S Ferenczi Introjektion und Übertragung Jahrbuch für psychoanalytische und psychopatholo gische Forschungen v 1 1909 a Ausência diferentemente do que dá a entender a Standard inglesa não é empregado o termo francês nesse ponto e sim o termo alemão Abwesenheit Cabe registrar que este trabalho de Freud é apresentado na edição Standard brasileira como o único traduzido diretamente do alemão Uma tradução publicada originalmente em 1931 pelos drs Durval Marcondes e J Barbosa Cor rêa foi reaproveitada pelo diretor da coleção Jayme Salomão e por ele revisada O título dessa tradução Cinco lições de psicanálise tornouse conhecido tem boa sonoridade e é adotado na presente versão Mas diferentemente do que afirma Salomão que nisso apenas acompanhou o que a Editora Nacional de São Paulo afirmava na capa e no frontispício da edição de 1931 Durval Marcondes nada diz sobre o texto utilizado no prefácio que assina um simples 217316 cotejamento dessa tradução com o original alemão revela que o texto que lhe serviu de base não foi o alemão Ela foi feita a partir do francês e do espanhol provavelmente b Processos afetivos Affektvorgänge no original Aqui como em outros lugares devese ter presente que o termo alemão Vorgang admite os sentidos de evento fato além de processo c Desejo Wunschregung literalmente desejoimpulso na mesma frase desejos é tradução de Wünsche o plural de Wunsch o que evidencia que os dois termos são equivalentes e podem ser traduzidos por um só como foi argumentado no apêndice B de As palavras de Freud o vocabulário freudiano e suas versões de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras nova ed revista 2010 pp 28589 Nas versões consultadas encontramos para Wunschregung desejo optación moción de deseo impulso di desiderio wishful impulse Na Standard brasileira que como dissemos acima aproveitou a primeira das versões aqui citadas feita em 1931 o diretor da edição que revisou essa versão substituiu desejo por impulso desejoso que lhe pareceu a tradução adequada para wishful impulse algo como impulso pleno de desejo d No original verdrängt particípio do verbo verdrängen que significa literalmente empurrar de salojar cf capítulo sobre as possíveis versões do substantivo Verdrängung em As palavras de Freud op cit e No sentido de préconceito Vorurteil em alemão ver nota sobre o termo e sua tradução em Nietzsche Além do bem e do mal trad Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 1992 nota n 9 f Ou evento Vorgang g Impulsen no original cf nota na página 18 também existe o adjetivo impulsiv em alemão para caracterizar um ato ou uma pessoa tal como em português h Strachey chama a atenção para o fato de que as últimas palavras dessa frase despojandoa não se acham na edição dos Gesammelte Werke que reproduzem o texto dos Gesammelte Schriften Escritos completos da década de 1920 Certamente ele teve acesso à primeira edição desse texto de 1910 e pôde constatar essa pequena omissão Nós as traduzimos da Standard inglesa já que não dispomos da primeira edição original Elas estão na tradução assinada por D Marcondes e J Barbosa Corrêa da qual pudemos consultar a primeira edição publicada em 1931 o que indica que a tradução francesa ou espanhola que provavelmente utilizaram foi feita da edição alemã an terior aos Gesammelte Schriften Eis como esse trecho é traduzido por Marcondes e Corrêa e o privassem das conquistas da civilização 218316 AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPIA PSICANALÍTICA 1910 CONFERÊNCIA DE ABERTURA DO II CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE REALIZADO EM NUREMBERG EM 30 E 31 DE MARÇO DE 1910 TÍTULO ORIGINAL DIE ZUKÜNFTIGEN CHANCEN DER PSYCHOANALYTISCHEN THERAPIE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ZENTRALBLATT FÜR PSYCHOANALYSE FOLHA CENTRAL DE PSICANÁLISE V 1 N 11 PP 19 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 10415 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNZUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 12132 Caros senhores Como são de natureza sobretudo prática os objetivos que motivaram nosso encontro também escolhi como tema de minha palestra de abertura uma questão prática dirigindome antes ao seu interesse médico do que à sua preocupação científica Posso imaginar como julgam os sucessos de nossa terapia e suponho que a maioria dos senhores já tenha ultrapassado as duas fases de todo iniciante o entusiasmo pelo inesperado aumento de nossa ação terapêutica e a depressão pela grandeza das dificuldades que se interpõem a nossos esforços Mas seja qual for o ponto desse desenvolvimento em que cada um dos senhores esteja hoje pretendo lhes mostrar que de maneira nenhuma chegamos ao fim de nossos recursos para combater as neuroses e que podemos contar com uma substancial melhora das nossas perspectivas terapêuticas no futuro próximo Acho que esse fortalecimento virá de três direções 1 do progresso interno 2 do acréscimo em autoridade 3 do efeito geral de nosso trabalho I Por progresso interno entendo o avanço em a nosso conhecimento analítico e b nossa técnica A O avanço em nosso conhecimento sem dúvida estamos longe de saber tudo o que necessitamos para compreender o inconsciente de nossos doentes É claro que todo avanço em nosso conhecimento significa maior poder para nossa terapia Enquanto nada compreendemos nada conseguimos quanto mais com preendermos mais realizaremos No início o tratamento psicanalítico era im placável e cansativo O paciente tinha de falar tudo ele mesmo e a atividade do médico consistia em pressionálo ininterruptamente Hoje a coisa é mais amigável O tratamento se compõe de duas partes do que o médico percebe e 220316 fala ao paciente e da elaboração por parte deste daquilo que escutou É fácil compreender o mecanismo de nosso auxílio nós fornecemos ao doente a ideia antecipatória conscientea cuja semelhança com a ideia reprimida inconsciente lhe permite encontrar esta dentro de si Este é o auxílio intelectual que lhe facilita a superação das resistências entre consciente e inconsciente Devo lhes fazer notar aliás que esse não é o único mecanismo utilizado no tratamento analítico já con hecem aquele bem mais poderoso que consiste no uso da transferência Tenho a intenção de abordar proximamente numa Metodologia geral da psicanáliseb to dos esses fatores relevantes para a compreensão do tratamento Além disso não vejo necessidade de refutar na presença dos senhores a objeção de que a atual prática do tratamento obscurece o valor testemunhal em favor da correção de nossas hipóteses os senhores não esquecerão de que tal evidência deve ser bus cada em outros lugares e uma intervenção terapêutica não pode ser conduzida como uma pesquisa teórica Permitamme agora mencionar algumas áreas em que temos coisas novas a aprender e em que realmente descobrimos coisas novas a cada dia Antes de tudo há o simbolismo nos sonhos e no inconsciente Um tema bastante controverso como sabem Não constitui mérito pequeno de nosso colega Wilhelm Stekel o fato de haver se dedicado ao estudo do simbolismo dos sonhos sem fazer caso das objeções de todos os oponentes Nisso ainda há muito a aprender realmente meu livro Interpretação dos sonhos escrito em 1899 aguarda importantes acrésci mos que virão do estudo do simbolismo Gostaria de lhes dizer algumas palavras sobre um dos símbolos recentemente percebidos Algum tempo atrás informaramme que um psicólogo de pontos de vista um tanto alheios aos nossos dirigiuse a um de nós com a observação de que certamente superestimamos o significado sexual oculto dos sonhos O seu sonho mais frequente afirmou era subir uma escada e certamente nada havia de 221316 sexual nisso Alertados por essa objeção começamos a atentar para o surgimento de escadas degraus etc nos sonhos e logo pudemos verificar que a escada ou o que lhe seja análogo representa um indiscutível símbolo do coito Não é difícil encontrar o fundamento da comparação chegamos ao topo em movimentos rít micos com fôlego cada vez menor e depois com alguns breves saltos estamos novamente no chão Assim o ritmo do coito se acha igualmente na subida da es cada E não esqueçamos a linguagem corrente Ela nos mostra que a subida das Steigen é outra designação para o ato sexualc Costumase dizer que um homem é um Steiger subidor e falar em nachsteigen correr atrás Em francês o degrau da escada se chama la marche e un vieux marcheur literalmente um velho andador corresponde exatamente ao nosso ein alter Steiger O ma terial onírico de onde vêm esses símbolos agora percebidos será apresentado aos senhores no devido tempo pelo grupo de pesquisas do simbolismo que vamos organizar Acerca de outro símbolo interessante o do salvamento e suas mudanças de significado encontrarão observações no segundo volume de nosso anuáriod Mas devo parar aqui ou não passarei aos outros pontos Cada um dos senhores notará por experiência própria como encara de forma inteiramente diversa um novo caso uma vez que tenha compreendido a estrutura de uns poucos casos típicos da doença Agora imaginem que tivéssemos fixado em breves formulações as regularidades na construção das diferentes formas de neurose tal como até o momento conseguimos fazer com a formação dos sinto mas histéricos como isso tornaria seguro o nosso prognóstico De fato assim como o obstetra verifica inspecionando a placenta se ela foi expelida completa mente ou se ainda ficaram restos nocivos poderíamos dizer independentemente do resultado e da condição momentânea do paciente se o trabalho foi definitivamente bemsucedido ou se devemos estar preparados para recidivas ou nova enfermidade 222316 B Apressome a considerar as inovações no âmbito da técnica em que a maioria das coisas ainda aguarda sua comprovação final e muitas começam a se tornar claras apenas agora A técnica psicanalítica propõese dois objetivos atual mente poupar trabalho ao médico e dar ao doente o mais irrestrito acesso ao seu inconsciente Como os senhores sabem houve uma mudança fundamental em nossa técnica Na época do tratamento catártico tínhamos por objetivo o esclare cimento dos sintomas depois nos afastamos dos sintomas e estabelecemos como meta a revelação dos complexos na expressão de C G Jung que se tornou indispensável mas agora dirigimos os esforços diretamente para a descoberta e superação das resistências confiando justificadamente em que os complexos se entregarão sem dificuldade tão logo as resistências sejam reconhecidas e elim inadas Em alguns dos senhores manifestouse a exigência de ter uma visão de conjunto dessas resistências e classificálas Peçolhes então que examinem seu material para ver se podem confirmar o resumo seguinte nos pacientes homens as mais significativas resistências no tratamento parecem vir do complexo pater no e decomporse em medo do pai desobediência ao pai e descrença em relação ao pai Outras inovações na técnica dizem respeito à própria pessoa do médico Tornamonos cientes da contratransferência que surge no médico quando o pa ciente influencia os seus sentimentos inconscientes e estamos quase inclinados a solicitar que o médico reconheça e domine essa contratransferência dentro de si Desde que um bom número de pessoas vem exercendo a psicanálise e trocando experiências notamos que cada psicanalista consegue ir apenas até onde per mitem seus próprios complexos e resistências internas e por isso exigimos que ele dê início à sua atividade com uma autoanálise e a aprofunde continuamente enquanto amplia sua experiência com os doentes Quem nada obtém numa 223316 autoanálise pode muito bem abandonar a ideia de que é capaz de tratar analitica mente pessoas doentese Agora também nos aproximamos do ponto de vista de que a técnica analítica deve experimentar certas modificações conforme a natureza da doença e os in stintos predominantes no paciente Começamos pelo tratamento da histeria de conversão na histeria de angústia nas fobias temos de alterar em alguma me dida o nosso procedimento Pois esses doentes não podem trazer o material decis ivo para a dissolução da fobia enquanto se sentem protegidos mantendo a con dição fóbica Naturalmente não conseguimos que já no começo do tratamento eles renunciem ao dispositivo de proteção e trabalhem nas condições da angústia É preciso então ajudálos por meio da tradução de seu inconsciente até que possam decidirse a renunciar à proteção da fobia e exporse a uma angústia agora bastante moderada Outras modificações da técnica que ainda não me parecem maduras para comunicação serão requeridas no tratamento das neur oses obsessivas Em relação com isso aparecem questões muito importantes e ainda não esclarecidas até onde se deve conceder no tratamento alguma satis fação aos instintos combatidos do paciente e que diferença faz se esses instintos forem de natureza ativa sádica ou passiva masoquista Os senhores terão obtido a impressão espero de que quando todos souber mos tudo isso que agora apenas suspeitamos e tivermos realizado todos os aper feiçoamentos da técnica a que nos deve conduzir a experiência aprofundada com nossos pacientes então nossa prática médica adquirirá uma precisão e uma cer teza de êxito que não se acham em todos os campos da medicina 2 Eu disse que teríamos muito a esperar do crescimento em autoridade que nos há de vir no decorrer do tempo Não preciso lhes falar sobre a importância da autoridade Muito poucos indivíduos civilizados são capazes de existir sem 224316 apoiarse nos demais ou até mesmo de chegar a um juízo autônomo Não po demos exagerar a ânsia de autoridade e inconsistência interior das pessoas A ex traordinária multiplicação das neuroses desde o enfraquecimento das religiões pode lhes fornecer uma medida disso O empobrecimento do Eu graças ao enorme dispêndio em repressão que a civilização requer de todo indivíduo deve ser uma das principais causas desta situação Essa autoridade com a imensa sugestão que dela provém era contrária a nós Todos os nossos êxitos terapêuticos foram obtidos apesar dessa sugestão é de surpreender que ainda houvesse êxito em tais circunstâncias Não chegarei ao ponto de lhes narrar as coisas agradáveis do tempo em que eu representava soz inho a psicanálise Digo apenas que os doentes aos quais eu assegurava que po deria aliviar duradouramente os sofrimentos olhavam para minhas modestas in stalações pensavam em meus escassos títulos e pouco renome e talvez me vissem como alguém que numa casa de jogos afirmava ter um infalível sistema para ganhar mas do qual se dizia que se realmente fosse capaz daquilo deveria ter outra aparência E realmente não era fácil realizar operações psíquicas enquanto um colega que teria o dever de nos dar assistência sentia gosto especial em cuspir na área da operação e os familiares ameaçavam o cirurgião tão logo havia sangue ou movimentos inquietos no paciente É inevitável que uma operação produza reações há muito estamos habituados a isso no campo da cirurgia As pessoas simplesmente não acreditavam em mim tal como hoje ainda acreditam pouco em todos nós Em condições tais algumas intervenções tinham de fracassar A fim de calcular o aumento em nossas perspectivas terapêuticas quando há confiança ger al em nós pensem na posição de um ginecologista na Turquia e no Ocidente Tudo o que um ginecologista pode fazer na Turquia é sentir o pulso de um braço que lhe é estendido através de um buraco na parede o êxito médico é pro porcional à acessibilidade do objeto Nossos opositores no Ocidente querem nos 225316 conceder uma disponibilidade semelhante sobre a vida psíquica de nossos doentes Mas desde que o poder de sugestão da sociedade leva a mulher doente ao ginecologista este se torna auxiliador e salvador da mulher Não digam que quando a autoridade da sociedade vier em nosso auxílio e aumentar grandemente nossos êxitos isso não provará em nada a correção de nossas premissas A sug estão pode supostamente tudo e nossos êxitos então serão êxitos da sugestão e não da psicanálise No momento o poder de sugestão da sociedade vai ao encon tro dos tratamentos hidroterápicos dietéticos e elétricos sem que tais recursos consigam sobrepujar as neuroses O tempo dirá se os tratamentos psicanalíticos são capazes de fazer mais Mas agora devo novamente amortecer suas expectativas A sociedade não se apressará em nos conceder autoridade Ela tem de nos oferecer resistência pois nos comportamos criticamente em relação a ela demonstramolhe que ela mesma tem grande participação no surgimento das neuroses Assim como transform amos o indivíduo em nosso inimigo desvelando o que nele se acha reprimido também a sociedade não pode responder com simpatia ao implacável desnuda mento de seus danos e deficiências pelo fato de destruirmos ilusões acusamnos de pôr em perigo os ideais Portanto parece que jamais se dará a condição da qual eu esperava grande favorecimento de nossas perspectivas terapêuticas A situação contudo não é tão desesperadora como poderíamos achar nesse in stante Embora sejam fortes os afetos e os interesses dos homens também o in telecto é uma força não a que se faz valer de imediato mas certamente no final As verdades mais incisivas são finalmente escutadas e reconhecidas depois que se esgotam os interesses por elas feridos e os afetos por elas despertados Até agora sempre foi assim e as verdades indesejáveis que nós psicanalistas temos para dizer ao mundo encontrarão o mesmo destino Apenas isso não ocorrerá em breve temos de ser capazes de esperar 226316 3 Devo explicarlhes enfim o que entendo por efeito geral de nosso trabalho e como chego a depositar esperança nele Temos aqui uma peculiaríssima con stelação terapêutica que talvez não se encontre em nenhuma outra parte e que também lhes parecerá estranha inicialmente até reconhecerem nela algo que há muito é familiar Como sabem as psiconeuroses são satisfações substitutivas de formadas de instintos cuja existência a pessoa tem de negar para si mesma e para os outros Sua existência se baseia nessa deformação e nesse não reconhecimento Com a solução do enigma que apresentam e a aceitação desta solução por parte dos doentes esses estados patológicos perdem a razão de ser Dificilmente se en contra algo semelhante na medicina nas fábulas é que ouvimos falar de maus es píritos que têm o poder anulado quando alguém é capaz de dizer seus nomes que eram mantidos em segredo Agora ponham no lugar do indivíduo enfermo a sociedade inteira sofrendo de neuroses e composta de pessoas doentes e sadias no lugar da aceitação indi vidual da solução o reconhecimento geral e uma breve reflexão lhes mostrará que essa substituição em nada altera o resultado O êxito que a terapia pode ter com a pessoa deve suceder igualmente com a massa Os doentes não poderão dar a conhecer suas diferentes neuroses sua angustiada ternura excessiva que pre tende esconder seu ódio sua agorafobia que revela sua decepcionada ambição seus atos obsessivos que constituem recriminações por maus propósitos e medi das preventivas contra eles se todos os parentes e desconhecidos dos quais querem ocultar seus processos psíquicos conhecerem o sentido geral dos sinto mas e se eles próprios souberem que nada produzem em seus fenômenos patoló gicos que os outros não sejam capazes de interpretar imediatamente Mas o efeito não se limitará ao ocultamento dos sintomas aliás frequentemente impossível pois essa necessidade de ocultamento torna inútil a doença A comunicação do 227316 segredo terá atacado no ponto mais sensível a equação etiológicaf de que se originam as neuroses terá tornado ilusório o ganho obtido com a doença e por isso a consequência última da situação modificada pela indiscrição do médico só poderá ser o fim da produção da doença Se tal esperança lhes parece utópica lembremse de que a eliminação de fenô menos neuróticos por essa via já ocorreu de fato embora em casos isolados Pensem em como era frequente outrora moças camponesas terem alucinações com a Virgem Maria Enquanto essas aparições ocasionavam grande afluência de crentes e às vezes até a construção de uma capela no local das graças o estado visionário das moças era inacessível a qualquer influência Hoje em dia até mesmo o clero mudou de atitude em relação a essas coisas permite que a polícia e os médicos examinem a visionária e desde então a Virgem aparece raramente Ou permitamme examinar esses mesmos processos que venho situando no futuro numa situação análoga mas em escala menor e por isso mais fácil de per ceber Imaginem que um grupo de cavalheiros e damas da boa sociedade tenha combinado passar o dia numa pousada campestre As damas acertaram entre si que quando uma delas quisesse satisfazer uma necessidade natural diria em voz alta Estou indo colher flores Mas um indivíduo malicioso descobriu o segredo e fez constar no programa impresso enviado aos participantes Quando uma dama precisar se afastar poderá dizer que está indo colher flores Naturalmente nenhuma das damas se utilizará desse eufemismo e também outras combinações similares serão dificultadas Qual será a consequência As damas admitirão fran camente suas necessidades naturais e nenhum dos cavalheiros se escandalizará com isso Retornemos ao nosso caso que é mais sério Muitas pessoas diante de conflitos cuja solução lhes parece muito difícil refugiamse na neurose assim ob tendo um inconfundível embora custoso a longo prazo ganho com a doença Que terão de fazer essas pessoas quando a fuga para a doença lhes for 228316 vedada pelos indiscretos esclarecimentos da psicanálise Terão de ser honestas admitir os instintos que nelas atuam permanecer firmes no conflito combater ou renunciar e a tolerância da sociedade consequência inevitável do esclarecimento psicanalítico virá em seu auxílio Recordemonos porém de que não se pode enfrentar a vida como um higi enista ou terapeuta fanático Admitamos que essa prevenção ideal das doenças neuróticas não será vantajosa para todos os indivíduos Boa parte daqueles que hoje se refugiam na doença não suportaria o conflito nas condições que viemos de supor mas sucumbiria rapidamente ou causaria dano maior do que sua própria enfermidade neurótica Pois as neuroses têm sua função biológica como disposit ivo protetor e sua justificação social o ganho com a doença não é sempre puramente subjetivo Quem entre os senhores já não perscrutou as causas de uma neurose e teve de reconhecêla como o mais suave desfecho entre todas as possibilidades daquela situação Deveríamos então abandonar nossos esforços para esclarecer o sentido secreto das neuroses por serem em última instância perigosos para o indivíduo e nocivos para o movimento da sociedade deixando de tirar a consequência prát ica de um conhecimento científico Não acho que nosso dever nos leva à direção contrária O ganho obtido com as neuroses é no conjunto e ao fim um prejuízo para os indivíduos e para a sociedade O infortúnio que pode resultar de nosso trabalho de esclarecimento atingirá poucos afinal Tais sacrifícios não represent arão um custo muito alto na mudança para um estado da sociedade mais digno e verdadeiro Sobretudo as energias todas que atualmente são gastas na produção de sintomas neuróticos a serviço de um mundo de fantasia isolado da realidade ajudarão a reforçar se já não puderem reverter em favor da vida o clamor pelas transformações em nossa cultura nas quais enxergamos a única salvação para os nossos descendentes 229316 Despeçome dos senhores então garantindolhes que cumprem seu dever em mais de um sentido quando tratam psicanaliticamente os seus doentes Trabal ham não apenas a serviço da ciência ao aproveitar a oportunidade única de pen etrar os segredos das neuroses não apenas proporcionam a seus doentes o trata mento mais eficaz para seus males que hoje temos à disposição mas também con tribuem para o esclarecimento das massas do qual esperamos a mais abrangente profilaxia das enfermidades neuróticas pela via indireta da autoridade social a A ideia antecipatória consciente die bewusste Erwartungsvorstellung as versões estrangeiras consultadas apresentam representación consciente provisional representaciónexpectativa conciente rappresentazione anticipatoria cosciente the conscious idea of what he may be expected do find com o original entre colchetes the conscious anticipatory Idea the idea of what he may expect to find Além daquelas normalmente utilizadas as duas em espanhol a italiana e a Standard inglesa recorremos à tradução inglesa de 1924 assinada por Joan Riviere que aqui aparece em penúltimo lugar b Uma obra que não chegou a ser escrita Mas Freud publicaria entre 1911 e 1915 uma série de ensaios sobre a técnica psicanalítica que se encontram no volume destas Obras completas c Como se sabe no português do Brasil é usado o verbo trepar num registro grosseiro ou apenas muito coloquial a depender do grupo social d Provável referência ao ensaio Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem pub licado originalmente no Anuário de Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas v 2 1910 230316 e Mas Freud logo abandonaria a concepção de que era suficiente uma autoanálise para a formação do analista passando a defender a necessidade de uma análise de treinamento didática con duzida por um analista mais experiente cf Recordações ao médico que pratica a psicanálise 1912 f Segundo Strachey é uma referência ao artigo Sobre a crítica à Neurose de angústia de 1895 em que Freud introduz esse conceito de equação etiológica a qual consistiria de diferentes ter mos que necessitam estar presentes para que se produza a neurose algo que tornasse impossível um desses termos teria efeito terapêutico então 231316 SOBRE O SENTIDO ANTITÉTICO DAS PALAVRAS PRIMITIVAS 1910 TÍTULO ORIGINAL ÜBER DEN GEGENSINN DER URWORTE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM JAHRBUCH FÜR PSYCHOANALYTISCHE UND PSYCHOPATHOLOGISCHE FORSCHUNGEN ANUÁRIO DA PESQUISA PSICANALÍTICA E PSICOPATOLÓGICA 2 N 1 PP 17984 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 21421 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IV PP 22734 Em minha Interpretação dos sonhos fiz uma afirmação sobre um resultado do tra balho analítico que então não compreendia e quero repetila aqui dando início a esta comunicação É surpreendente o modo como os sonhos tratam a categoria de oposição e contradição Esta é simplesmente ignorada O não parece não existir para os sonhos Com singular predileção os opostos são combinados numa unidade ou representados como uma só coisa Os sonhos também tomam a liberdade de representar um elemento qualquer pelo oposto desejado de modo que primeiramente não há como decidir se um elemento que admite o oposto se acha nos pensamentos oníricos de forma positiva ou negativa1 Os intérpretes de sonhos da Antiguidade parecem ter recorrido extensamente à premissa de que algo pode significar seu oposto no sonho Ocasionalmente essa possibilidade é também admitida por pesquisadores modernos do sonho quando concedem que ele tenha sentido e seja interpretável2 E creio não suscitar objeção ao supor que todos os que me acompanharam na via de uma interpretação científica dos sonhos puderam corroborar a afirmação acima Cheguei à compreensão da peculiar tendência do trabalho do sonho de ig norar a negação e exprimir opostos com um só meio de representação apenas mediante a leitura casual de um trabalho do linguista Karl Abel publicado em 1884 como brochura independente e incorporado aos Sprachwissenschaftliche Abhandlungen Ensaios de linguística do autor no ano seguinte O interesse do tema justificará que eu apresente aqui literalmente as passagens cruciais do texto de Abel embora omitindo a maioria dos exemplos Elas nos trazem a espantosa informação de que mencionada tendência do trabalho do sonho coincide com uma peculiaridade das línguas mais antigas que conhecemos 233316 Depois de enfatizar a antiguidade do idioma egípcio que deve ter se desen volvido muito tempo antes das primeiras inscrições hieroglíficas Abel prossegue p 4 Na língua egípcia esta singular relíquia de um mundo primitivo há um número considerável de palavras com dois sentidos em que um é o exato oposto do outro Imaginemos se tão evidente absurdo pode ser imaginado que a palavra forte em alemão signifique tanto forte como fraco que em Berlim o termo luz seja empregado tanto para designar luz como es curidão que um cidadão de Munique chame a cerveja de cerveja mas um outro use a mesma palavra quando se refere à água e teremos a espantosa prática que os antigos egípcios costumavam seguir em sua linguagem Como repreender quem balance a cabeça incrédulo diante disso Seguem se exemplos Em vista desse e de muitos casos semelhantes de significado antitético ver Apêndice está fora de dúvida que ao menos em uma língua houve grande número de palavras que designavam uma coisa e seu contrário ao mesmo tempo Por mais espantoso que seja isso estamos diante de um fato e temos de leválo em conta p 7 Em seguida o autor rejeita a explicação desse fato mediante a homofonia cas ual e protesta também de modo firme contra a tentativa de relacionálo a um baixo nível do desenvolvimento intelectual egípcio Mas o Egito estava longe de ser uma terra de absurdos Foi pelo contrário um dos primeiros lugares onde se desenvolveu a razão humana Con hecia uma moral pura e digna e já havia formulado uma grande parte dos Dez Mandamentos quando os povos que hoje lideram a civilização ainda sacri ficavam vítimas humanas a ídolos sedentos de sangue Um povo que mantinha acesa a tocha da justiça e da cultura em tempos tão obscuros não 234316 podia ser estúpido na fala e no pensamento cotidiano Quem conseguia fabricar vidro e erguer e transportar imensos blocos de pedra com máquinas devia ser racional o bastante para não tomar uma coisa por ela mesma e por seu oposto simultaneamente Como conciliar isso e o fato de os egípcios ad mitirem uma linguagem tão contraditória de darem o mesmo veículo fonético aos pensamentos mais díspares e juntarem numa espécie de união in dissolúvel coisas que se opunham da maneira mais cabal p 9 Antes de qualquer ensaio de explicação é preciso considerar ainda uma ex acerbação desse incompreensível procedimento do idioma egípcio De todas as excentricidades do léxico egípcio talvez a mais extraordinária tenha sido possuir além de palavras que juntavam significações opostas out ras palavras em que dois vocábulos de significado oposto eram reunidos numa composição que tinha o significado de um dos dois membros constitu intes Portanto nessa língua extraordinária existem não apenas palavras que designam tanto forte como fraco ou tanto mandar como obedecer há também compostos como velhojovem longeperto ligarseparar foraden tro que embora combinem extremos opostos significam a primeira apenas jovem a segunda apenas perto a terceira apenas ligar e a quarta apenas dentro Ou seja nessas palavras compostas juntaramse inten cionalmente contradições conceituais não a fim de criar um terceiro conceito como no chinês mas apenas para exprimir através da composição o signific ado de um de seus membros contraditórios que sozinho significaria o mesmo No entanto o enigma tem solução mais fácil do que parece Nossos conceitos surgem mediante a comparação Se fosse sempre claro não poderíamos distin guir entre claro e escuto e em consequência não teríamos nem o conceito de claridade nem a palavra para ele É evidente que tudo neste planeta é 235316 relativo e tem existência independente só enquanto é diferenciado em suas re lações com outras coisas Assim desde que todo conceito é irmão gêmeo de seu oposto como poderia ele ser primeiramente pensado como poderia ser comunicado a outras pessoas que buscavam pensálo se não medido pelo seu oposto p 15 Como não se podia conceber a noção de força senão em contraposição a fraqueza a palavra que denotava forte continha ao mesmo tempo a lembrança de fraco através da qual chegou a existir Essa palavra na verdade não significava nem forte nem fraco mas a relação entre os dois e a diferença entre os dois que criou ambos igualmente O ser humano não pôde adquirir seus mais velhos e mais simples conceitos senão em oposição a seus opostos e apenas gradualmente aprendeu a distinguir os dois lados da antítese e a pensar em um sem medilo conscientemente pelo outro Como a linguagem serve não apenas para expressar os próprios pensamentos mas essencialmente para comunicálos a outros podese perguntar de que maneira o egípcio primevo dava a entender ao semelhante a que lado do con ceito híbrido ele se referia em cada ocasião Na escrita isso acontecia com a ajuda dos chamados sinais determinativos que colocados após os alfabéticos indicam o sentido desses e não são pronunciados p 18 Quando a palavra egípcia ken deve significar forte depois de seu som escrito alfabeticamente achase a imagem de um homem armado e em pé quando a mesma palavra quer dizer fraco após as letras que representam o som há a imagem de um indivíduo acocorado indolente De modo similar a maioria das outras palavras de dois sentidos é acompanhada de imagens explicativas Na língua falada eram os ges tos conforme julga Abel que serviam para indicar o sentido desejado É nas mais antigas raízes segundo Abel que se observa o fenômeno do du plo sentido antitético Na evolução posterior das línguas desapareceu essa am biguidade mas pelo menos no egípcio antigo podemos seguir todos os estágios 236316 até chegar ao caráter unívoco do vocabulário moderno Uma palavra original mente de duplo sentido se decompõe na linguagem posterior em duas de um só significado na medida em que cada um dos dois sentidos opostos toma para si uma redução modificação fonética da mesma raiz Assim por exemplo já na escrita hieroglífica ken fortefraco dividese em ken forte e kan fraco Ou seja os conceitos a que só se podia chegar de forma antitética tornaramse ao longo do tempo suficientemente familiares ao espírito humano para possibilit ar uma existência autônoma a cada uma das suas duas partes e assim proporcion ar um representante fonético distinto para cada uma delas A existência de significados originais contraditórios facilmente comprovável na língua egípcia é também encontrada segundo Abel nas línguas semitas e indoeuropeias Ainda não se sabe até onde isso pode ocorrer em outras famílias linguísticas pois embora o sentido antitético inevitavelmente se apresentasse aos indivíduos pensantes de qualquer raça não foi necessariamente reconhecido e conservado nos significados dos vocábulos Abel também ressalta que o filósofo A Bain sem conhecimento dos fenô menos ao que parece defendeu esse duplo sentido das palavras por razões puramente teóricas como uma necessidade lógica A passagem em questão começa com as seguintes frases Logic I p 54 Londres 1870 The essential relativity of all knowledge thought or consciousness cannot but show itself in language If everything that we can know is viewed as a transition from something else every experience must have two sides and either every name must have a double meaning or else for every meaning there must be two names A relatividade essencial de todo conhecimento pensamento ou consciência não pode senão manifestarse na linguagem Se tudo o que podemos saber for visto como uma transição a partir de alguma outra coisa toda experiência 237316 deve ter dois lados e ou todo nome deve ter duplo sentido ou para todo sen tido deve haver dois nomes Destacarei do Apêndice com exemplos de sentido antitético egípcio indo germânico e árabe alguns casos que poderão impressionar também a nós leigos em filologia No latim altus significa alto e profundo sacer sagrado e maldito em que ainda se acha o pleno sentido antitético sem modificação do som da pa lavra A alteração fonética para a distinção dos contrários é atestada mediante ex emplos como clamare gritar clam quieto calado siccus seco succus suco Em alemão ainda hoje Boden se refere tanto ao local mais alto como ao mais baixo da casa sótão e chão Ao nosso bös ruim corresponde bass bom em altosaxão bat gut corresponde ao inglês bad ruim em inglês to lock trancar corresponde em alemão a Lücke Loch lacuna buraco Em alemão kleben grudar em inglês to cleave fender em alemão stumm Stimme mudo voz etc Desse modo talvez até a ridicularizada derivação lucus a non lucendo venha a fazer sentidoa No ensaio sobre a Origem da linguagem 1885 p 305 Abel chama a atenção para outros vestígios de antigos esforços do pensamento Ainda hoje um inglês diz para designar sem without ou seja comsem e um prussiano ori ental faz o mesmo With que agora corresponde ao nosso com significava ori ginalmente tanto com como sem algo que se nota em withdraw retirar e withhold reter A mesma transformação percebemos no alemão em wider con tra e wieder juntamente com Para a comparação com o trabalho do sonho outro peculiaríssimo traço do antigo idioma egípcio tem importância Em egípcio as palavras podem aparentemente diremos de início in verter tanto o som como o sentido Supondo que o termo alemão gut bom fosse egípcio poderia significar além de bom mau e poderia soar além de gut 238316 tug Muitos exemplos de tais inversões fonéticas que são numerosas demais para serem explicadas pelo acaso podem ser aduzidos também de línguas arianas e semitas Limitandonos primeiramente às línguas germânicas ob servemos Topf pot ambos panela boat tub barco tina wait täuwen esperar tardar hurry Ruhe pressa quietude care reck cuidado preocupação Balken Klobe club trave cepo porrete Considerando também as outras línguas indogermânicas o número de casos relevantes cresce proporcionalmente por exemplo capere latim pegar packen alemão idem ren latim rim Niere alemão idem leaf inglês folha folium latim idem duma russo pensamento θυμoς grego espírito sânscrito mêdh mûdha mente Mut alemão ânimo Rauchen alemão fumaça russo kurít fumar kreischen alemão grit ar guinchar to shriek inglês idem e assim por diante Abel procura explicar o fenômeno da troca fonética com base numa duplicação ou reduplicação da raiz Nisso teríamos alguma dificuldade em acompanhar o filólogo Sabemos como as crianças gostam de brincar invertendo o som das pa lavras e como o trabalho do sonho frequentemente se utiliza da inversão do seu material figurativo para propósitos diversos aí já não são letras mas imagens que têm a sequência invertida Portanto nós nos inclinaríamos antes a relacionar a troca fonética a um fator de alcance mais profundo3 Na concordância entre a peculiaridade do trabalho do sonho destacada no iní cio e a prática das mais antigas línguas revelada pela filologia podemos ver uma confirmação de nossa concepção do caráter regressivo arcaico da expressão de pensamentos no sonho E a nós psiquiatras impõese de modo imperioso a sus peita de que entenderíamos melhor e traduziríamos mais facilmente a linguagem dos sonhos se conhecêssemos mais a evolução da linguagem4 239316 1 A interpretação dos sonhos 1900 2a ed p 232 cap vi parte c 2 Ver por exemplo G H Von Schubert Die Symbolik des Traumes O simbolismo do sonho 4a ed 1862 cap 2 A linguagem do sonho 3 Sobre o fenômeno da troca fonética metátese que talvez tenha laços ainda mais íntimos com o trabalho do sonho do que o sentido antitético cf também W MeyerRinteln no Kölnische Zeitung de 7 de março de 1909 4 É também plausível supor que o original sentido antitético das palavras mostra o mecanismo préformado que é utilizado para fins diversos pelo lapso verbal em que se diz o oposto do pretendido a Em De lingua latina Varrão 11627 aC sugeriu que o termo lucus pequeno bosque derivava de lucere luzir pois no bosque não há luz um exemplo de etimologia arbitrária segundo os linguistas contemporâneos de Freud Quanto ao argumento e aos exemplos de Karl Abel que tanto seduziram o criador da psicanálise a linguística atual não lhes dá nenhum crédito cf por exemplo Émile Benveniste Remarques sur la fonction du langage dans la découverte freudi enne em Problèmes de linguistique générale 1971 ed bras Problemas de linguística geral Camp inas Pontes 2005 240316 CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DO TRANSTORNO PSICOGÊNICO DA VISÃO 1910 TÍTULO ORIGINAL DIE PSYCHOGENE SEHSTÖRUNG IN PSYCHOANALYTISCHER AUFFASSUNG PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ÄRZTLICHE FORTBILDUNG SUPLEMENTO DE ÄRZTLICHE STANDESZEITUNG JORNAL DA CLASSE MÉDICA V 9 N 9 PP 424 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 94102 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VI PP 20513 Caros colegas Quero lhes mostrar com base no transtorno psicogênico da visão as mudanças que nossa concepção da gênese de tais problemas experimentou por in fluência do método de pesquisa psicanalítico Como sabem a cegueira histérica é considerada o caso típico de um transtorno psicogênico da visão Após as pesquisas da escola francesa de homens como Charcot Janet Binet acreditase que sua gênese é conhecida Com efeito podese produzir experimentalmente essa cegueira quando se dispõe de alguém suscetível de sonambulismo Se colocamos essa pessoa em hipnose profunda e lhe sugerimos que não enxerga com determinado olho ela se comporta realmente como alguém cego daquele olho como uma histérica com um transtorno visual espontaneamente desen volvido É possível então construir konstruiereno mecanismo do transtorno histérico espontâneo da visão sobre o modelo do transtorno hipnótico sugerido Numa histérica a ideia de estar cega não surge inspirada pelo hipnotizador mas de forma espontânea por autossugestão como se diz e essa ideia é tão poderosa em ambos os casos que se converte em realidade exatamente como uma alucin ação uma paralisia etc sugeridas Isso parece perfeitamente verossímil e deve satisfazer qualquer um que não se incomode com os muitos enigmas que existem por trás dos conceitos de hipnose sugestão e autossugestão Em especial a autossugestão dá ensejo a outras pergun tas mais Quando e em que condições uma ideia se torna tão poderosa que chega a se comportar como uma sugestão e se transformar em realidade Uma invest igação mais detida nos ensinou que não podemos responder a essa questão sem recorrer à noção de inconsciente Muitos filósofos são contrários à suposição de tal inconsciente psíquico pois não se ocuparam dos fenômenos que nos obri gam a postulálo Tornouse inevitável para os psicopatologistas trabalhar com processos psíquicos inconscientes ideias inconscientes etc 242316 Experimentos engenhosos demonstraram que os cegos histéricos veem em determinado sentido ainda que não no sentido pleno Estímulos do olho cego podem produzir certas consequências psíquicas despertar afetos por exemplo apesar de não se tornarem conscientes Portanto os histericamente cegos são ce gos apenas para a consciência enxergam no inconsciente São observações desse tipo que nos fazem distinguir entre processos psíquicos conscientes e incon scientes Como é que tais pessoas desenvolvem a autossugestão inconsciente de que são cegas quando porém continuam enxergando no inconsciente A essa pergunta os pesquisadores franceses respondem com a explicação de que já de antemão existe nos doentes predispostos à histeria um pendor para a dissociação para a dissolução dos nexos no funcionamento psíquico e em consequência disso alguns processos inconscientes não prosseguem até a con sciência Sem considerar agora o valor dessa tentativa de explicação no que toca ao entendimento dos fenômenos em pauta vamos nos voltar para outro ponto de vista Como veem os senhores abandonamos a identidade inicialmente enfatiz ada entre a cegueira histérica e a cegueira produzida mediante a sugestão Os histéricos não estão cegos em consequência da ideia autossugestiva de que não veem mas sim por causa da dissociação entre processos inconscientes e con scientes no ato de ver sua ideia de que não vê é a justificada expressão do estado de coisas psíquico e não a causa deste Senhores Se objetarem que falta clareza à exposição precedente não me será fácil defendêla Procurei lhes dar uma síntese das opiniões de diferentes pesquisadores e nisso provavelmente esquematizei demais os nexos Quis juntar numa composição homogênea os conceitos lançados para a compreensão dos transtornos psicogênicos sua origem em ideias muito poderosas a distinção entre processos psíquicos conscientes e inconscientes e a hipótese da dissociação psíquica e tive tão pouco êxito nisso quanto os autores franceses com Pierre 243316 Janet à frente Queiram perdoarme além da pouca clareza também a infidelid ade de minha exposição e deixemme lhes contar como a psicanálise nos levou a uma concepção mais firme e provavelmente mais realista dos transtornos psicogênicos da visão A psicanálise aceita igualmente as hipóteses da dissociação e do inconsciente mas estabelece outra relação entre elas É uma concepção dinâmica que explica a vida psíquica como um jogo de forças que favorecem ou inibem umas às outras Quando por exemplo um grupo de ideias permanece no inconsciente ela não conclui pela existência de uma incapacidade constitucional para a síntese que se manifestaria nessa dissociação afirma isto sim que a oposição ativa de outros grupos de ideias causou o isolamento e a inconsciência desse grupo específico Chama repressão ao processo que ocasiona esse destino para esse grupo e nele reconhece algo similar ao que no âmbito da lógica é o juízo de condenação De monstra que tais repressões têm papel extraordinariamente relevante em nossa vida psíquica e que o fracasso da repressão é a precondição para que se forme o sintoma Portanto se como vimos o transtorno visual psicogênico se baseia no fato de que determinadas ideias ligadas à visão ficam separadas da consciência a abord agem psicanalítica tem de supor que tais ideias entraram em oposição a outras mais fortes para as quais utilizamos o conceito geral de Eu composto difer entemente segundo a ocasião e por isso incorreram na repressão Mas de onde deve se originar essa oposição que provoca a repressão entre o Eu e determina dos grupos de ideias Os senhores notam que essa pergunta não era possível antes da psicanálise pois nada se sabia a respeito do conflito psíquico e da repressão Nossas investigações nos puseram em condição de dar a resposta Pas samos a atentar para a importância dos instintos na vida imaginativa verificamos que cada instinto procura se impor mediante a vivificação das ideias condizentes 244316 com suas metas Nem sempre esses instintos são compatíveis entre si com fre quência têm conflitos de interesses as oposições das ideias são apenas expressão das lutas entre os instintos que servem à sexualidade à obtenção de prazer sexual e os outros que têm por meta a autoconservação do indivíduo os instintos do Eua Todos os instintos orgânicos que atuam em nossa alma podem ser classifica dos como fome ou como amor nas palavras do poetab Acompanhamos o instinto sexual desde as primeiras manifestações na criança até a forma final que se chama normal e vimos que é composto de numerosos instintos parci ais que se ligam a excitações de regiões do corpo percebemos que esses instin tos têm de perfazer um complicado desenvolvimento até poderem conformarse adequadamente aos objetivos da procriação A indagação psicológica de nossa evolução cultural nos ensinou que a civilização se origina essencialmente à custa dos instintos sexuais parciais que esses têm de ser reprimidos limitados trans formados desviados para metas mais elevadas a fim de que se produzam as con struções psíquicas civilizadas Como precioso resultado de nossas investigações pudemos perceber algo que nossos colegas ainda não querem aceitar que os males conhecidos como neuroses derivam das múltiplas formas de malogro desses processos de transformação dos instintos sexuais parciais O Eu se sente ameaçado pelas exigências dos instintos sexuais e defendese delas por meio de repressões que nem sempre têm o êxito desejado mas acarretam isto sim peri gosas formações substitutivas do reprimido e incômodas formações reativas do Eu Dessas duas classes de fenômenos se compõe aquilo que denominamos sinto mas das neuroses Aparentemente nos afastamos muito de nossa tarefa mas nisso tocamos nos laços entre os estados neuróticos e nossa vida psíquica como um todo Voltemos agora ao nosso problema específico Os instintos sexuais e os do Eu têm à dis posição em geral os mesmos órgãos e sistemas de órgãos O prazer sexual não se 245316 acha ligado apenas à função dos genitais a boca serve tanto para o beijo como para a alimentação e a comunicação os olhos percebem não apenas as alterações no mundo exterior que são importantes para a preservação da vida mas também as características dos objetos que os tornam elegíveis como objetos de amor seus encantosc Confirmase então que não é fácil servir dois senhores ao mesmo tempo Quanto mais íntima é a relação que um órgão de dupla função desse tipo estabelece com um dos dois grandes instintos tanto mais rejeita o outro Esse princípio tem inevitáveis consequências patológicas quando os dois instintos básicos se desavêm quando por parte do Eu se mantém uma repressão contra o instinto sexual parcial correspondente A aplicação disso ao olho e à visão é simples Quando o instinto sexual parcial que se utiliza da visão o prazer sexu al em olhar atrai a reação defensiva dos instintos do Eu por suas exigências ex cessivas de modo que as ideias em que se exprimem seus desejos sucumbem à repressão e são mantidas longe da consciência a relação do olho e da visão com o Eu e a consciência é perturbada O Eu perde seu domínio sobre o órgão que en tão se coloca inteiramente à disposição do instinto sexual reprimido É como se a relação por parte do Eu fosse longe demais como se ela jogasse fora a criança com a água do banho pois o Eu nada mais quer enxergar desde que os interesses sexuais em ver adquiriram tamanho relevo Mais pertinente é outra explicação que põe a atividade do lado do reprimido prazer em olhar Constitui a vingança a compensação para o instinto reprimido o fato de ele impedido de maior avanço psíquico conseguir então aumentar seu domínio sobre o órgão que o serve A perda do domínio consciente sobre o órgão é a nociva formação sub stitutiva para a repressão malograda que apenas a esse preço foi tornada possível Tal relação de um órgão duplamente solicitado relação com o Eu con sciente e com a sexualidade reprimida é ainda mais claramente visível nos ór gãos motores do que no olho quando por exemplo a mão que pretendia realizar 246316 uma agressão sexual fica histericamente paralisada e após aquela inibição nada mais consegue fazer como se teimosamente insistisse em realizar a inervação rep rimida ou quando os dedos de pessoas que deixaram a masturbação se recusam a aprender os sutis movimentos requeridos para tocar piano ou violino Quanto ao olho costumamos traduzir os obscuros processos psíquicos que se verificam na repressão do prazer sexual de olhar e no surgimento do transtorno psicogênico da visão como se uma voz punitiva se manifestasse no indivíduo dizendo Porque você pretendia utilizar seu órgão da visão para um mau prazer sensual é bem feito que não consiga mais enxergar e assim aprovando o desfecho do processo Nisso está a ideia do castigo de Talião e nossa explicação do transtorno psicogênico da visão coincide realmente com aquela oferecida pela lenda pelo mito Na bela história de lady Godiva todos os habitantes de uma pequena cid ade têm de se esconder atrás de suas janelas cerradas de modo a facilitar para a dama a tarefa de andar nua pelos caminhos montada num cavalo O único mor ador que espreita a beldade despida através do postigo da janela tem o castigo de se tornar cegod Esse não é único exemplo aliás que nos leva a suspeitar que a neurose também encerra a chave para a mitologia Senhores a psicanálise é alvo da injusta recriminação de levar a teorias pura mente psicológicas dos processos mórbidos A ênfase no papel patogênico da sexualidade que certamente não é um fator apenas psicológico já deveria protegêla dessa acusação A psicanálise jamais esquece que o psíquico se baseia no orgânico embora seu trabalho possa acompanhálo apenas até esse funda mento e não além Assim a psicanálise também se dispõe a admitir e mesmo a postular que nem todos os distúrbios funcionais da visão são psicogênicos como aqueles provocados pela repressão do prazer erótico de olhar Quando um órgão que serve aos dois tipos de instintos aumenta seu papel erógeno é de esperar em termos bem gerais que isso não ocorra sem alterações na excitabilidade e na 247316 inervação que se darão a conhecer como transtornos na função do órgão a ser viço do Eu De fato se virmos que um órgão que ordinariamente serve à per cepção sensorial se conduz francamente como um genital quando é aumentado seu papel erógeno não consideraremos improvável que também alterações tóx icas nele se verifiquem Por falta de um termo melhor teremos de conservar o velho inadequado nome de transtornos neuróticos para as duas espécies de distúrbios funcionais tanto os de origem fisiológica como os de origem tóxica que se devem a um aumento da importância erógena Os transtornos neuróticos da visão estão para aqueles psicogênicos de modo geral como as neuroses atuais para as psiconeuroses dificilmente transtornos psicogênicos da visão aparecerão sem distúrbios neuróticos mas esses poderão surgir sem aqueles Infelizmente tais sintomas neuróticos ainda são muito pouco examinados e entendidos pois não são diretamente acessíveis à psicanálise e os outros modos de investigação não consideraram o aspecto da sexualidade Há ainda outra linha de pensamento que procede da psicanálise e se estende à pesquisa orgânica Podese perguntar se a repressão de instintos sexuais parciais gerada pelas influências da vida é suficiente em si para causar os transtornos funcionais dos órgãos ou se não deveriam estar presentes condições constitu cionais especiais que antes levem os órgãos a exacerbar seu papel erógeno e assim provoquem a repressão dos instintose Teríamos de enxergar nessas condições a parte constitucional da predisposição para adoecer de transtornos psicogênicos e neuróticos Esse é o fator que em relação à histeria designei provisoriamente como complacência somática dos órgãosf 248316 a Segundo Strachey esta é a primeira vez em que Freud usa a expressão Ichtriebe instintos do Eu distinguindoos resolutamente dos Sexualtriebe instintos sexuais b Alusão aos versos finais do célebre poema Die Weltweisen Os sábios universais de Schiller c No original Reize que significa encantos atrações e também estímulos d Conforme a lenda inglesa a bela Godiva mulher do senhor de Coventry em meados do séc xi apiedouse dos vassalos oprimidos pelos impostos do marido e pediu a este que os sus pendesse Ele impôs como condição que ela percorresse as ruas de Coventry nua num cavalo coberta somente pelos longos cabelos e Embora tenhamos usado a mesma palavra repressão para traduzir os dois termos na primeira ocasião consta Unterdrückung no original e na segunda Verdrängung cf nota sobre a versão dos dois termos no v 10 destas Obras completas p 88 f Cf Fragmento da análise de um caso de histeria Caso Dora 1905 e também O debate sobre a masturbação 1912 Na primeira edição de 1910 o presente artigo terminava com a seguinte frase Os conhecidos trabalhos de Alfred Adler procuram definir esse fator em termos biológicos 249316 SOBRE PSICANÁLISE SELVAGEM 1910 TÍTULO ORIGINAL ÜBER WILDE PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ZENTRALBLATT FÜR PSYCHOANALYSE V 1 N 3 PP 915 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 11825 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNZUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 13341 Há alguns dias apresentouse em meu consultório acompanhada de uma amiga uma senhora que dizia sofrer de estados de angústia Tinha seus quarenta e tantos anos estava bem conservada e claramente ainda não renunciara à sua feminilid ade O ensejo precipitador da angústia foi a separação de seu último marido mas essa angústia conforme seu relato aumentara consideravelmente após ela con sultar um jovem médico da localidade em que vivia nos arredores de Viena pois esse lhe explicara que a causa da angústia era sua carência sexual Ela não podia se privar das relações com o marido segundo ele portanto havia apenas três caminhos para recuperar a saúde ou ela voltava para o marido ou arranjava um amante ou satisfazia a si mesma Desde então ela estava convencida de que era incurável pois para o marido não desejava voltar e os dois outros meios repug navam sua moral e sua religiosidade Procuroume porque o médico lhe havia dito que se tratava de um novo conhecimento que se devia a mim e que ela ne cessitava apenas me visitar para ter a confirmação daquilo A amiga uma senhora mais velha mirrada e de aparência não muito sadia imploroume então que asse gurasse à paciente que o médico se enganara Não podia ser verdade ela própria era viúva desde muito tempo e permanecera respeitável não sofrendo de angústia Não me deterei na difícil situação em que essa visita me colocou tentarei isto sim esclarecer a conduta do médico que a enviou Primeiramente quero lembrar uma precaução que talvez ou oxalá não seja supérflua Uma longa exper iência me ensinou como teria ensinado a qualquer outro a não tomar ime diatamente como verdadeiro o que os pacientes em especial os neuróticos re latam de seus médicos Em toda espécie de tratamento o especialista em doenças nervosas não apenas se torna facilmente o objeto de muitos dos impulsos hostis do paciente como às vezes tem de conformarse em assumir por uma espécie de projeção a responsabilidade pelos ocultos desejos reprimidos dos neuróticos É 251316 algo triste mas significativo que tais acusações achem crédito principalmente junto aos outros médicos Portanto tenho o direito de pensar que aquela senhora me fez um relato tend encioso das afirmações de seu médico e que faço uma injustiça com ele que pessoalmente não conheço ao tomar esse caso como ponto de partida para min has observações sobre psicanálise selvagema Assim fazendo no entanto eu talvez impeça outros de prejudicarem seus pacientes Vamos supor então que o médico tenha dito exatamente o que a paciente me relatou Qualquer pessoa lhe adiantará a crítica de que se um médico acha ne cessário discutir o tema da sexualidade com uma mulher tem de fazêlo com tato e discrição Ora tal exigência coincide com a observância de determinados pre ceitos técnicos da psicanálise e além do mais o médico teria ignorado ou enten dido mal uma série de teorias científicas da psicanálise mostrando que pouco avançou na compreensão de sua natureza e seus propósitos Comecemos com os últimos os erros científicos Os conselhos do médico mostram claramente em que sentido ele compreende a vida sexual naquele popular no qual se entende por necessidades sexuais apenas a necessidade do co ito ou de atos semelhantes que produzam o orgasmo e a liberação de determin adas substâncias Mas ele não pode ter ignorado que costumam fazer à psicanálise a objeção de que ela estende a noção de sexual muito além da sua amplitude ha bitual Isso é um fato se ele pode ser usado como uma objeção é algo que não discutiremos aqui O conceito de sexual abrange muito mais na psicanálise vai além do sentido popular tanto para cima como para baixo Tal ampliação se jus tifica geneticamente incluímos na vida sexual todas as manifestações de senti mentos afetuosos que provêm da fonte dos primitivos impulsos sexuais mesmo quando esses impulsos experimentaram uma inibição de sua original meta sexual ou trocaram essa por outra não mais sexual Por isso preferimos falar em 252316 psicossexualidade enfatizando que o elemento psíquico da vida sexual não deve ser esquecido nem subestimado Empregamos o termo sexualidade no mesmo sentido abrangente em que a língua alemã usa a palavra lieben amar Há muito sabemos que pode haver insatisfação psíquica com todas as suas consequências também quando não falta o intercurso sexual normal e como terapeutas sempre levamos em conta que frequentemente os impulsos sexuais insatisfeitos cujas satisfações substitutivas combatemos na forma de sintomas nervosos somente em pequena medida encontram desafogo mediante o coito e outros atos sexuais Quem não partilha essa concepção da psicossexualidade não tem o direito de invocar as teses da psicanálise que tratam da importância etiológica da sexualid ade Essa pessoa simplifica bastante o problema ao acentuar exclusivamente o fator somático na sexualidade mas a responsabilidade pelo procedimento deve ser apenas sua Outra incompreensão igualmente grave transparece nos conselhos do médico É certo que a psicanálise afirma que a insatisfação sexual é causa de tran stornos nervosos Mas ela não diz mais do que isso Pretendese deixar de lado por demasiado complexo seu ensinamento de que os sintomas nervosos nascem de um conflito entre dois poderes uma libido que geralmente se tornou exces siva e uma rejeição da sexualidade ou repressão rigorosa demais Quem não es quece esse último fator que realmente não é secundário não pode crer que a sat isfação sexual constitua em si um remédio de eficácia geral para as queixas dos neuróticos Afinal boa parte desses indivíduos é incapaz de satisfação absoluta mente ou nas circunstâncias dadas Se eles fossem capazes disso se não tivessem suas resistências internas a força do instinto lhes apontaria o caminho para a sat isfação mesmo quando o médico não aconselhasse Para que então um conselho como o que o médico teria dado à senhora 253316 Mesmo que ele se justifique cientificamente ela não tem como seguilo Caso não tivesse resistências internas à masturbação ou à relação amorosa há muito ela já teria recorrido a um desses meios Ou o médico acredita que uma mulher de mais de quarenta anos não sabe que é possível arranjar um amante ou superes tima ele de tal modo sua influência que acha que ela jamais daria um passo desses sem aprovação médica Tudo isso parece bastante claro mas devemos admitir que há um fator que muitas vezes dificulta o julgamento Vários estados nervosos tanto as assim cha madas neuroses atuais como a neurastenia típica e a pura neurose de angústia de pendem claramente do fator somático da vida sexual ao passo que não temos ainda ideia segura sobre o papel que neles desempenham o fator psíquico e a repressão Nesses casos é natural que o médico considere inicialmente uma ter apia atual uma alteração da atividade somática sexual e ele o faz com plena justi ficação se o seu diagnóstico foi correto A senhora que consultou o jovem médico queixavase principalmente de estados de angústia e provavelmente ele supôs que ela sofria de neurose de angústia sentindose justificado em lhe re comendar uma terapia somática Novamente um cômodo malentendido Quem sofre de angústia não tem necessariamente uma neurose de angústia esse dia gnóstico não deve ser tirado do nome É preciso saber que manifestações con stituem uma neurose de angústia e distinguila de outros estados patológicos em que aparece a angústia Pareceme que a senhora em questão sofria de uma his teria de angústia e todo o valor dessas distinções nosográficas aquilo que tam bém as justifica está no fato de que indicam outra etiologia e outra terapia Quem considerasse a possibilidade de uma histeria de angústia não incorreria nessa negligência dos fatores psíquicos que se mostra nas alternativas aconselha das pelo médico 254316 Curiosamente nessas alternativas terapêuticas do suposto psicanalista não so bra espaço para a psicanálise A senhora poderia se curar da angústia apenas se voltasse para o marido ou satisfazendose pela via da masturbação ou com um amante Onde ficaria o tratamento analítico em que vemos o principal recurso para os estados de angústia Com isso chegamos às falhas técnicas que percebemos na conduta do médico no caso presente Uma concepção há muito superada baseada na simples aparên cia diz que o doente sofre devido a uma espécie de ignorância e que quando re movemos essa ignorância através da informação sobre os nexos causais entre sua doença e sua vida sobre suas vivências infantis etc ele certamente se cura O fator patogênico não é a ignorância em si mas o fato de ela se fundamentar em resistências internas que inicialmente a provocaram e ainda a sustentam A tarefa da terapia é combater essas resistências Informar o que o paciente não sabe porque o reprimiu é apenas um dos preparativos necessários à terapia Se a in formação sobre o inconsciente fosse tão importante para o doente como acredit am os não iniciados na psicanálise bastaria para seu restabelecimento que ele frequentasse palestras e lesse livros Mas essas medidas têm tão pouca influência nos sintomas da doença nervosa quanto a distribuição de cardápios para os famintos numa época de fome E a comparação pode ir além pois informar ao doente acerca do inconsciente resulta via de regra em exacerbação do conflito e intensificação das dores Porém como a psicanálise não pode prescindir dessa comunicação determina que ela não suceda antes que se cumpram duas condições Primeiro antes que o paciente mesmo se avizinhe mediante preparação daquilo que foi por ele rep rimido segundo antes que tenha se apegado tanto ao médico transferência que a ligação emocional a esse torne impossível a fuga 255316 Apenas depois de cumpridas essas condições será possível conhecer e domin ar as resistências que levaram à repressão e à insciência Logo uma intervenção psicanalítica pressupõe um contato prolongado com o doente e tentativas de surpreendêlo na primeira sessão comunicandolhe abruptamente os segredos adivinhados são tecnicamente condenáveis e acarretam muitas vezes seu próprio castigo ao atrair a autêntica inimizade do paciente e impedir qualquer influência ulterior Sem considerar que às vezes o médico aconselha erradamente e jamais pode perceber tudo Na psicanálise essas prescrições técnicas definidas substituem a exigência do inapreensível tato médico que é visto como um dom especial Portanto para o médico não basta conhecer algumas conclusões da psicanál ise é preciso também familiarizarse com a técnica se quiser que sua prática médica seja guiada pelas concepções psicanalíticas Essa técnica ainda não pode ser aprendida em livros e certamente pode ser obtida apenas com grandes sacrifí cios de tempo esforço e resultados Como outras técnicas médicas o indivíduo a aprende com aqueles que já a dominam Por isso não deixa de ser relevante na avaliação do caso que tomei como ponto de partida para estas observações que eu não conheça o médico que teria dado esses conselhos nem jamais tenha ouvido seu nome Não é agradável para mim e meus amigos e colaboradores monopolizar dessa maneira a prerrogativa de exercer uma técnica médica Mas não tivemos outra escolha em face dos perigos que traz consigo para os doentes e a causa da psicanálise o previsível exercício de uma psicanálise selvagem Na primavera de fundamos uma sociedade psicanalítica internacionalb em que a lista dos mem bros se acha à disposição do público para poder rechaçar a responsabilidade pelos atos de todos aqueles que não são um dos nossos e chamam de psicanálise seu procedimento médico Pois na realidade tais psicanalistas selvagens 256316 prejudicam mais a causa do que os doentes Frequentemente observei que um desses procedimentos inábeis embora no início tenha provocado uma piora na condição do paciente acabou por leválo à recuperação Nem sempre mas com frequência Depois de xingar por algum tempo o médico e sentirse a alguma dis tância de sua influência o doente vê os sintomas cederem ou resolve dar um bom passo no caminho da cura A melhora final ocorre então por si mesma ou é at ribuída a algum tratamento anódino de um médico ao qual o paciente se dirigiu depois No caso da senhora que se queixou do médico inclinome a crer que tudo somado o psicanalista selvagem fez mais por sua cliente do que alguma prestigiosa autoridade que lhe dissesse que ela sofria de uma neurose vasomo tora Ele a fez voltar a atenção para os verdadeiros motivos de seu problema ou para as proximidades desse e apesar da revolta da paciente essa intervenção não terá ficado sem consequências positivas Mas ele prejudicou a si mesmo e con tribuiu para aumentar os preconceitos que devido a compreensíveis resistências afetivas os doentes nutrem em relação à atividade do analista E isso pode ser evitado a Selvagem tradução literal do adjetivo alemão wild que é grafado como seu equivalente inglês e como ele pode ter o sentido de desregrado irregular sentido que não é tão fre quente em português mas que se acha por exemplo na expressão capitalismo selvagem 257316 b Com minúsculas no original ein internationaler psychoanalytischer Verein Esse último termo é o mesmo empregado na designação das sociedades psicanalíticas locais Wiener de Viena Psycho analytischer Verein por exemplo Na Contribuição à história do movimento psicanalítico 1914 cap iii e na Autobiografia 1925 cap v Freud fala de Internationale Psychoanalytische Vereini gung traduzida por Associação Psicanalítica Internacional 258316 UM TIPO ESPECIAL DE OBJETO FEITA PELO HOMEM 1910 CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR I TÍTULO ORIGINAL ÜBER EINEN BESONDEREN TYPUS DER OBJEKTWAHL BEIM MANNE BEITRÄGE ZUR PSYCHOLOGIE DES LIEBESLEBENS I PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM JAHRBUCH FÜR PSYCHOANALYTISCHE UND PSYCHOPATHOLOGISCHE FORSCHUNGEN ANUÁRIO DE PESQUISAS PSICANALÍTICAS E PSICOPATOLÓGICAS V 2 N 2 PP 38997 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 6677 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 18595 Até agora deixamos que os poetas e romancistas descrevessem as condições amorosas segundo as quais as pessoas fazem sua escolha de objeto e a maneira como harmonizam as exigências da realidade com sua fantasia Eles dispõem de algumas qualidades que os habilitam a realizar essa tarefa sobretudo de sensibil idade para perceber movimentos psíquicos ocultos em outras pessoas e coragem para fazer seu próprio inconsciente falar Do ponto de vista do conhecimento porém há uma circunstância que diminui o valor do que têm a dizer Os es critores obedecem à condição de visar o prazer intelectual e estético assim como determinados efeitos emocionais por isso não podem apresentar sem mudanças o material da realidade mas têm de isolar parcelas dele excluir nexos que atrapal ham atenuar o conjunto e substituir o que falta São as prerrogativas da chamada licença poética Além disso não podem manifestar grande interesse pela ori gem e pelo desenvolvimento dos estados mentais que descrevem de forma acabada Então é inevitável que a ciência com uma mão mais pesada e menor ob tenção de prazer venha a se ocupar das mesmas matérias cuja elaboração poética deleita os seres humanos há milênios Essas observações talvez justifiquem uma abordagem estritamente científica da vida amorosa humana Pois a ciência é a mais completa renúncia do princípio do prazer que a nossa atividade psíquica é capaz de fazer No tratamento psicanalítico temos ampla oportunidade de reunir impressões da vida amorosa de pessoas neuróticas e podemos recordar já ter observado ou sa bido de comportamento semelhante também em indivíduos medianos sadios e até naqueles excepcionais Havendo acúmulo de impressões devido a um material favorável emergem mais nitidamente alguns tipos particulares É um desses tipos de escolha de objeto pelo homem que descreverei inicialmente porque se 260316 distingue por uma série de condições amorosas cuja combinação não se en tende e é mesmo de estranhar e porque admite um esclarecimento psicanalítico simples 1 A primeira dessas condições para o amor pode ser designada como real mente específica tão logo é encontrada devese aguardar a presença das outras características desse tipo É possível chamála de condição de um terceiro preju dicado consiste em que o interessado nunca toma por objeto amoroso uma mul her que esteja livre isto é solteira ou sozinha mas apenas uma mulher sobre a qual outro homem possa ter direitos como noivo marido ou namorado Tal condição mostrase tão inexorável em alguns casos que uma mulher pode ser inicialmente ignorada ou mesmo desprezada enquanto não pertence a ninguém e logo se tornar objeto de paixão ao estabelecer relação de um daqueles tipos com outro homem 2 A segunda condição é talvez menos frequente mas não menos singular Apenas quando ela se une à primeira o tipo se torna completo enquanto a primeira parece ocorrer por si só com muita frequência Esta segunda condição diz que a mulher casta e insuspeita nunca exerce o fascínio que a transforma em objeto amoroso mas apenas a mulher de alguma má fama sobre cuja fidelidade e constância paira certa dúvida Essa última característica pode variar numa gama significativa da ligeira sombra na reputação de uma esposa inclinada ao flerte até a conduta abertamente poligâmica de uma cocotte ou artista do amor mas a algo desse gênero não renunciam os que se enquadram nesse tipo Com alguma crueza podemos denominar esta condição de amor à prostituta Assim como a primeira condição dá oportunidade para satisfazer impulsos competitivos hostis em relação ao homem do qual se tira a mulher amada a se gunda a da facilidade feminina achase ligada à ativação do ciúme que parece constituir uma necessidade para os amantes desse tipo Apenas quando podem 261316 estar enciumados a paixão atinge seu ápice a mulher adquire seu inteiro valor e nunca deixam escapar a ocasião de experimentar esses fortes sentimentos Curi osamente não é para o dono legal da mulher amada que se volta este ciúme mas para novos conhecidos em relação aos quais se pode suspeitar da amada Em casos gritantes o amante não mostra nenhum desejo de ter somente para si a mulher parecendo sentirse bem no relacionamento triangular Um de meus pa cientes que sofrera terrivelmente com as escapadas de sua dama não fez ob jeções ao casamento desta mas o promoveu de todas as formas e nos anos seguintes não demonstrou nenhum ciúme do marido É verdade que outro caso típico tivera bastante ciúme do marido em seu primeiro caso amoroso e obrigara a dama a suspender as relações conjugais mas em seus numerosos relacionamen tos posteriores comportouse como os demais e não enxergou no marido legítimo um estorvo Os pontos que seguem não abordam mais as condições requeridas do objeto amoroso mas a atitude do amante para com o objeto de sua escolha 3 Na vida amorosa normal o valor da mulher é definido pela sua integridade sexual e reduzido por qualquer aproximação à característica da facilidade Parece então um notável afastamento da normalidade que as mulheres com essa carac terística sejam tratadas como objetos sexuais valiosíssimos pelos amantes deste nosso tipo As relações amorosas com tais mulheres são conduzidas mediante um elevado dispêndio psíquico até a consumição de quaisquer outros interesses elas são as únicas pessoas que podem ser amadas e a autoexigência de fidelidade é sempre renovada pelo amante por mais que possa não ser cumprida na realidade Nesses traços da relação amorosa que descrevemos se exprime bem claramente o caráter obsessivo que em certa medida é próprio de todo enamoramento Mas a fidelidade e a intensidade da ligação não devem levar à expectativa de que uma única relação desse gênero preencha a vida amorosa da pessoa ou aconteça 262316 apenas uma vez nela Ocorre isto sim que tais paixões se repetem com as mes mas peculiaridades cada uma a exata cópia da outra várias vezes na vida dos que pertencem a esse tipo e devido a condições externas como mudança de endereço e de ambiente os objetos de amor podem mesmo suceder um ao outro com tal frequência que se chega à formação de uma longa série 4 O que mais surpreende o observador nos amantes desse tipo é a tendência que manifestam de salvar a mulher amada O homem está convencido de que a amada necessita dele que sem ele perderia todo amparo moral e rapidamente desceria a um nível lamentável Então ele a salva ao não abandonála O propósito de salvamento pode justificarse em alguns casos invocando a volubil idade e a posição social ameaçada da mulher mas ele surge com igual clareza quando não existe esse apoio na realidade Um homem do tipo que descrevo que sabia conquistar suas damas com refinada sedução e sutil dialética não poupava então esforços na relação amorosa para conservar a amante do momento na via da virtude mediante tratados por ele mesmo redigidos Examinando os traços do quadro que descrevemos as condições de que a amada não seja livre e seja fácil o alto valor a ela dado a necessidade de ter ciúmes a fi delidade compatível com as substituições numa longa série e o propósito de salvamento achase pouco provável que eles derivem todos de uma única fonte No entanto o aprofundamento psicanalítico na vida das pessoas em questão rev ela que tal fonte existe Essa escolha de objeto peculiarmente determinada e a conduta amorosa singular têm a mesma origem psíquica da vida amorosa da pess oa normal vêm da fixação infantil de sentimentos ternos na mãe e representam um dos desenlaces de tal fixação Na vida amorosa normal restam poucos traços que revelam inconfundivelmente o modelo materno na escolha do objeto como por exemplo a predileção de homens jovens por mulheres maduras o 263316 desligamento da libido em relação à mãe ocorreu de modo relativamente rápido Já em nosso tipo a libido permaneceu tanto tempo na mãe mesmo após o ad vento da puberdade que nos objetos amorosos depois escolhidos ficam impressas as características maternas que todos eles se tornam substitutos maternos facil mente reconhecíveis Impõese aqui a analogia com a forma do crânio do recémnascido após um parto demorado o crânio da criança apresentará o molde da pelve da mãe Agora nos cabe tornar verossímil que os traços característicos de nosso tipo as condições para o amor e a conduta amorosa procedam realmente da con stelação materna Isto seria mais fácil no tocante à primeira condição a de que a mulher não seja livre ou de que haja um terceiro prejudicado Sem dificuldade percebemos que para a criança que se desenvolve no seio da família o fato de a mãe pertencer ao pai tornase algo indissociável da natureza materna e que a ter ceira pessoa prejudicada não é outra senão o pai Também se ajusta naturalmente ao contexto infantil o traço superestimador segundo o qual a amada é única e in substituível pois ninguém possui mais que uma mãe e a relação com ela baseia se no alicerce de um evento livre de qualquer dúvida e que não pode se repetir Se os objetos amorosos de nosso tipo devem ser substitutos da mãe acima de tudo tornase compreensível também a formação de série que parece contrariar tão diretamente a condição da fidelidade A psicanálise nos ensina também por outros exemplos que algo insubstituível que atua no inconsciente manifestase frequentemente pela decomposição numa série infinita infinita porque todo sub stituto deixa de proporcionar a satisfação desejada De modo que o insaciável gosto por perguntas presente nas crianças de certa idade se explica pelo fato de terem uma única pergunta a fazer que não chegam a expressar e assim também a garrulice de várias pessoas afetadas pela neurose vivendo sob a pressão de um 264316 segredo que pede para ser revelado e que elas não denunciam apesar de toda a tentação Já a segunda condição para o amor a da volubilidade do objeto escolhido parece contradizer energicamente uma derivação a partir do complexo materno O pensamento consciente do adulto gosta de ver a mãe como uma pessoa de inatacável pureza moral e pouca coisa é mais ofensiva quando vem de fora ou dolorosa quando surge de dentro do que a dúvida relativa a esse aspecto da mãe Mas justamente essa relação de agudo contraste entre a mãe e a mulher fácil nos estimula a investigar a história do desenvolvimento e a relação incon sciente desses dois complexos quando há muito sabemos que com frequência se acha reunido num só no inconsciente o que na consciência é dividido em opos tos A investigação nos conduz então ao período em que o garoto adquire um conhecimento maior das relações sexuais entre os adultos aproximadamente nos anos da prépuberdade Comunicações brutais francamente voltadas para o descrédito e a provocação familiarizamno com o segredo da vida sexual e destroem a autoridade dos adultos que se revela incompatível com o descobri mento de suas atividades sexuais O que nessas revelações mais afeta o iniciado é sua aplicação aos próprios pais Muitas vezes ela é diretamente rechaçada por quem a ouve em palavras como estas É possível que os teus pais e outras pess oas façam isso uma com a outra mas os meus pais não Como provável corolário ao esclarecimento sexual o menino aprende tam bém que determinadas mulheres praticam o ato sexual como ofício e por isso são alvo do desprezo de todos Ele mesmo deve estar longe de partilhar esse de sprezo olha para essas infelizes com uma mistura de anseio e horror tão logo fica sabendo que também ele pode ser iniciado por elas na vida sexual que até então lhe parecera reservada apenas aos grandes Depois não mais podendo se apegar à dúvida que tornava seus pais uma exceção às feias regras da atividade 265316 sexual diz a si mesmo com cínica coerência que a diferença entre a mãe e a prostituta não é tão grande afinal pois no fundo fazem a mesma coisa Aquelas esclarecedoras informações despertaram nele os traços mnêmicos das impressões e dos desejos de sua primeira infância e a partir deles reativaram certos impulsos psíquicos Ele começa a desejar a mãe no sentido então descoberto e a nova mente odiar o pai como o rival que põe obstáculos a esse desejo ele cai segundo costumamos dizer sob o domínio do complexo de Édipo Não perdoa isto à mãe e vê como uma infidelidade que ela tenha concedido ao pai e não a ele o favor do intercurso sexual Quando não passam rapidamente tais impulsos não têm outra saída senão esgotarse em fantasias cujo teor é a atividade sexual da mãe nas mais diversas circunstâncias e cuja tensão leva facilmente a buscar alívio na masturbação Devido à persistente atuação conjunta dos dois motivos que o impelem desejo e sede de vingança fantasias sobre a infidelidade da mãe são suas prediletas o amante com o qual ela comete a infidelidade tem quase sempre os traços do próprio Eu ou melhor de sua própria pessoa idealizada amadure cida até a idade do pai O que em outro lugar caracterizei de romance familiar1 abrange as múltiplas ramificações dessa atividade da fantasia e o seu entrelaça mento com variados interesses egoístas desse período de vida Uma vez conhecida essa parte do desenvolvimento psíquico não mais po demos achar contraditório e incompreensível que seja diretamente derivada do complexo materno a condição da volubilidade da mulher amada O tipo de amor masculino que descrevemos carrega os traços dessa evolução e pode ser enten dido como fixação nas fantasias da puberdade que depois ainda encontraram saída para a vida real Não há dificuldade em supor que a masturbação tão prat icada durante a puberdade tenha contribuído para a fixação dessas fantasias Entre essas fantasias que cresceram até dominar a vida amorosa real e a tendência a salvar a amada parece haver uma ligação apenas frouxa superficial 266316 que se esgotaria na fundamentação consciente A mulher amada corre perigo por inclinarse à inconstância e infidelidade então é compreensível que o amante se esforce em protegêla dos perigos zelando por sua virtude e contrariando seus pendores ruins No entanto o estudo das lembranças encobridoras fantasias e sonhos das pessoas mostra que temos aí uma bemsucedida racionalização de um motivo inconsciente equiparável a uma boa elaboração secundária do sonho Na realidade o tema da salvação tem história e significação próprias e é um de rivado autônomo do complexo materno ou mais precisamente do complexo par ental Quando o menino ouve que deve a vida aos pais que a mãe lhe deu a vida conjugamse nele impulsos ternos e que anseiam por grandeza e inde pendência para dar origem ao desejo de restituir aos pais esse presente de recompensálos com um de igual valor É como se a rebeldia do garoto quisesse dizer Eu não preciso de nada do meu pai quero devolver tudo o que lhe custei Ele forma então a fantasia de salvar o pai de um perigo mortal mediante a qual fica quite com ele e essa fantasia é frequentemente deslocada para o im perador o rei ou algum outro grãosenhor e após essa deformação tornase ad missível na consciência e até mesmo aproveitável para o poeta Na aplicação ao pai prevalece na fantasia de salvação o sentido desafiador enquanto à mãe se di rige geralmente o sentido carinhoso A mãe deu à criança a vida e não é fácil re tribuir com algo do mesmo valor a essa dádiva única Com ligeira mudança de significado facilitada no inconsciente e comparável ao interfluir dos conceitos na consciência a salvação da mãe adquire o significado de lhe dar ou fazer um filho naturalmente um filho como ele próprio O distanciamento do sentido ori ginal de salvar não é muito grande a mudança de significado não é arbitrária A mãe lhe deu uma vida a própria vida dele e recebe em troca uma outra vida a de uma criança que tem a maior semelhança com ele próprio O filho mostrase agradecido ao desejar ter da mãe um filho que seja igual a ele isto é na fantasia 267316 de salvação ele se identifica inteiramente com o pai Todos os impulsos Triebe os de ternura gratidão prazer desafio independência são satisfeitos mediante o desejo de ser seu próprio pai Também o fator do perigo não se perdeu na mudança de sentido pois o ato mesmo de nascer é o perigo do qual ele se salvou pelos esforços da mãe O nascimento é tanto o primeiro dos perigos da vida como o modelo de todos os outros que nos causam medo Angst e é provável que a ex periência do nascimento tenha deixado em nós a expressão de afeto a que chamamos medo Macduff o personagem da lenda escocesa que não foi parido pela mãe mas tirado de seu ventre não conhecia o medo graças a isso Artemidoro o antigo intérprete de sonhos tinha certamente razão ao afirmar que o sonho muda de sentido conforme o sonhador Segundo as leis que regem a expressão de pensamentos inconscientes salvação pode variar de significado conforme o autor da fantasia seja um homem ou uma mulher Tanto pode signifi car fazer um filho fazer com que nasça para o homem como parir um filho para a mulher Sobretudo em relação com a água podese reconhecer claramente esses varia dos sentidos da salvação nas fantasias e nos sonhos Se um homem num sonho salva uma mulher da água isto significa que faz dela uma mãe o que segundo as considerações anteriores equivale a fazer dela a sua mãe Se uma mulher salva da água outra pessoa uma criança confessa deste modo como a filha do faraó na lenda de Moisés2 ser sua genitora Ocasionalmente também a fantasia de salvação relativa ao pai tem um sen tido carinhoso Quer então expressar o desejo de ter o pai como filho isto é ter um filho que seja como o pai Devido a todos esses nexos entre o tema da sal vação e o complexo parental a tendência a salvar a amada constitui um traço es sencial do tipo de amor aqui descrito 268316 Não me parece necessário justificar meu método de trabalho que tal como na apresentação do erotismo anal visa primeiramente destacar no material de obser vação tipos extremos e claramente delimitados Nos dois casos há um número bem maior de indivíduos em que se pode constatar apenas alguns traços desse tipo ou traços pouco pronunciados sendo óbvio que uma apreciação correta dos tipos é possível apenas com a exposição de todo o contexto em que eles se acham integrados 1 O romance familiar do neurótico 1909 2 Em Otto Rank Der Mythus von der Geburt des Helden O mito do nascimento do herói 1909 2a ed 1922 269316 SOBRE A MAIS COMUM DEPRECIAÇÃO NA VIDA AMOROSA 1912 CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR II TÍTULO ORIGINAL ÜBER DIE ALLGEMEINSTE ERNIEDRIGUNG DES LIEBESLEBENS BEITRÄGE ZUR PSYCHOLOGIE DES LIEBESLEBENS II PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM JAHRBUCH FÜR PSYCHOANALYTISCHE UND PSYCHOPATHOLOGISCHE FORSCHUNGEN ANUÁRIO DE PESQUISAS PSICANALÍTICAS E PSICOPATOLÓGICAS V 4 N 1 PP 4050 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 7891 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 197209 I Quando o psicanalista se pergunta por qual motivo ele é mais procurado tem de responder não considerando as muitas formas de angústia que é por causa da impotência psíquica Esse peculiar transtorno atinge homens de natureza in tensamente libidinosa e se manifesta no fato de que os órgãos executivos da sexu alidade se recusam a perfazer o ato sexual embora antes e depois se revelem in tactos e capazes e embora exista uma forte inclinação psíquica à realização do ato O primeiro indício para compreender seu estado é fornecido pelo doente mesmo ao notar que esse fracasso ocorre apenas com determinadas pessoas não se apresentando jamais com outras Ele sabe então que a inibição de sua potên cia viril vem de uma característica do objeto sexual e às vezes conta que sente um obstáculo dentro de si percebe uma vontade contrária que tem êxito em perturb ar a intenção consciente Mas não pode descobrir que obstáculo interior é esse e qual característica do objeto sexual o torna operante Se experimentou repetida mente esse fracasso julgará talvez fazendo uma conexão sabidamente errada que a lembrança da primeira vez sendo uma perturbadora representação angus tiosa produziu as repetições essa primeira vez porém ele a atribui a uma im pressão casual Estudos psicanalíticos sobre a impotência psíquica já foram feitos e publica dos por diversos autores Cada analista pode confirmar pela própria experiência clínica as explicações que neles aparecem Tratase realmente do efeito inibidor de certos complexos psíquicos que se furtam ao conhecimento do indivíduo 271316 Como teor mais comum desse material patogênico destacase a fixação incestu osa nunca superada na mãe e na irmã Além disso há que considerar a influência de impressões penosas acidentais ligadas à atividade sexual infantil e os fatores que de forma geral diminuem a libido a ser dirigida ao objeto sexual feminino Submetendo casos gritantes de impotência psíquica a um estudo aprofundado mediante a psicanálise chegase à informação seguinte sobre os processos psicos sexuais que neles atuam O fundamento da doença é de novo como em todos os distúrbios neuróticos provavelmente uma inibição no desenvolvimento da libido antes de ela tomar a configuração definitiva que se chama de normal Não se juntaram duas correntes cuja união é imprescindível para uma atitude inteira mente normal no amor duas correntes que podemos caracterizar como a terna e a sensual A corrente terna é a mais antiga das duas Ela vem dos primeiros anos da infância formouse com base nos interesses do instinto de autoconservação e se dirige às pessoas da família e aos que cuidam da criança Desde o início recebeu contribuições dos instintos sexuais componentes de interesse erótico que já na infância aparecem com nitidez maior ou menor e que nos neuróticos se revelam em todos os casos mediante a psicanálise posterior Ela corresponde à escolha de objeto infantil primária Por ela vemos que os instintos sexuais acham seus primeiros objetos apoiandose nas avaliações dos instintos do Eu exatamente como as primeiras satisfações sexuais são experimentadas apoiandose nas fun ções corporais necessárias à conservação da vida O carinho dos pais e pessoas que cuidam da criança que raramente nega sua natureza erótica a criança é um brinquedo erótico ajuda bastante a elevar na criança as contribuições do erot ismo aos investimentos dos instintos do Eu levandoas a uma medida que terá de ser considerada no desenvolvimento posterior sobretudo quando algumas outras circunstâncias concorrem para isso 272316 Tais fixações ternas da criança continuam através da infância e sempre incor poram erotismo que assim é desviado de suas metas sexuais Na época da puber dade sobrevém a poderosa corrente sensual que já não ignora suas metas Ao que parece ela nunca deixa de seguir os caminhos anteriores e de investir os ob jetos da escolha infantil primária com montantes de libido bem mais intensos Mas como vai de encontro aos obstáculos erguidos nesse meiotempo pela bar reira do incesto envidará esforços para logo transitar desses objetos impróprios na realidade para outros desconhecidos com os quais seja possível uma vida sexual real Esses novos objetos ainda serão escolhidos segundo o modelo a imago daqueles infantis mas com o tempo atrairão para si a ternura que se ligava aos primeiros O homem deixará pai e mãe conforme o preceito bíblico e se apegará à mulher ternura e sensualidade ficarão unidas O grau máximo de paixão sensual acarretará o máximo de valoração psíquica A superestimação do objeto sexual normal no homem Dois fatores serão decisivos para o malogro desse avanço no desenvolvi mento da libido Primeiro a medida de real frustração que se opõe à nova escolha de objeto e a desvaloriza para o indivíduo Pois não tem sentido voltarse para a escolha de objeto quando não se pode escolher ou não há perspectiva de escolher algo satisfatório Em segundo lugar há a medida de atração que os objetos infant is a serem abandonados podem exercer proporcional ao investimento erótico que lhes foi concedido na infância Sendo esses dois fatores suficientemente fortes o mecanismo geral de formação das neuroses entra em operação A libido se afasta da realidade é tomada pela fantasia introversão reforça as imagens dos primeiros objetos sexuais fixase neles Mas o obstáculo ao incesto obriga a li bido voltada para esses objetos a permanecer no inconsciente A ocupação em atos onanistas por parte da corrente sensual que agora é parte do inconsciente contribui para reforçar tal fixação Nada muda nesse estado de coisas se então é 273316 realizado na fantasia o que malogrou na realidade se nas situações fantasiosas conducentes à satisfação onanista os objetos sexuais originais são substituídos por outros As fantasias se tornam com essa substituição capazes de chegar à con sciência e nenhum progresso se efetua na real alocação da libido Desse modo pode ocorrer que toda a sensualidade de um jovem seja ligada no inconsciente a objetos incestuosos ou como também podemos dizer seja fixada em fantasias inconscientes incestuosas O resultado é então uma absoluta impot ência que talvez seja ainda confirmada pela efetiva debilitação verificada simul taneamente dos órgãos que perfazem o ato sexual A instauração da impotência psíquica propriamente dita requer condições menos severas A corrente sensual não pode sofrer o destino de ter de ocultarse toda por trás da corrente terna é preciso que tenha permanecido forte ou desini bida o bastante para obter em parte o acesso à realidade Mas a atividade sexual dessas pessoas faz perceber por indícios bem claros que não tem o respaldo de toda a energia instintual da psiquea Ela é caprichosa facilmente perturbável fre quentemente incorreta na atuação e de escasso prazer Acima de tudo porém ela precisa evitar a corrente terna Produziuse portanto uma limitação na escolha do objeto A corrente sensual que permaneceu ativa busca apenas objetos que não lembrem as pessoas incestuosas proibidas quando uma pessoa faz uma impressão que pode conduzir a uma elevada apreciação psíquica isto não resulta em excit ação da sensualidade mas em ternura ineficaz eroticamente A vida amorosa de tais pessoas fica cindida em duas direções que a arte personifica em amor celesti al e amor terreno ou animal Quando amam não desejam e quando desejam não podem amar Buscam objetos que não necessitam amar a fim de manter sua sensualidade longe dos objetos amados e o estranho fracasso da impotência psíquica surge conforme as leis da sensibilidade do complexob e do retorno 274316 do reprimido quando o objeto escolhido para escapar ao incesto recorda num traço às vezes insignificante o objeto a ser evitado Para protegerse desse distúrbio o principal meio de que alguém se vale nesta cisão amorosa é a depreciação psíquica do objeto sexual enquanto é reservada para o objeto incestuoso e seus representantes a superestimação que normalmente cabe ao objeto sexual Tão logo é atendida a condição da depreciação a sensual idade pode manifestarse livremente com significativa atividade sexual e elevado prazer Para esse resultado também contribui outro elemento Pessoas nas quais a corrente carinhosa e a sensual não confluíram devidamente têm em geral uma vida amorosa pouco refinada nelas se conservaram metas sexuais pervertidas cujo não cumprimento é tido como sensível perda de prazer mas cujo cumprimento parece possível apenas com um objeto sexual depreciado menosprezado Agora vêm a ser compreensíveis nos seus motivos as fantasias de garotos mencionadas na primeira Contribuição que rebaixam a mãe ao nível de mulh er fácil Constituem esforços de ao menos na fantasia fechar o abismo entre as duas correntes da vida amorosa de ganhar a mãe como objeto de sensualidade pela depreciação II 275316 Até o momento nos ocupamos de uma investigação médicopsicológica da im potência psíquica algo que o título deste ensaio não justifica Mas logo se verá que necessitávamos dessa introdução para chegar ao nosso verdadeiro tema Reduzimos a impotência psíquica à não convergência das correntes terna e sensual na vida amorosa e explicamos tal inibição no desenvolvimento pelas in fluências das fortes fixações infantis e da posterior frustração na realidade com a interferência da barreira do incesto A essa teoria podese fazer uma objeção sobretudo ela é excessiva ela nos explica por que determinadas pessoas sofrem de impotência psíquica mas faz parecer enigmático que outras possam escapar a este sofrimento Como todos os fatores claros e considerados a intensa fixação infantil a barreira do incesto e a frustração nos anos de desenvolvimento após a puberdade podem ser encontrados em praticamente todo indivíduo civilizado seria justo esperar que a impotência psíquica seja um mal comum na civilização em vez da doença de algumas pessoas Seria tentador fugir a esta conclusão indicando o fator quantitativo nas causas da doença a maior ou menor contribuição dos vários elementos que determinam se surge ou não uma doença reconhecível Mas embora eu admita essa resposta como correta não tenho a intenção de por isso rejeitar a conclusão mesma Pelo contrário sustentarei que a impotência psíquica é bem mais difundida do que se crê e que certa medida dessa conduta caracteriza realmente a vida amorosa do homem civilizado Se ampliamos o conceito de impotência psíquica não mais o limitando ao fra casso no coito quando há a intenção de obter prazer e o aparelho genital se acha intacto ele pode abranger também todos os homens designados como psicanestésicos que nunca fracassam no ato mas o realizam sem prazer espe cial algo mais comum do que se pensa A investigação psicanalítica desses casos revela os mesmos fatores etiológicos que achamos na impotência psíquica 276316 em sentido restrito sem poder inicialmente explicar as diferenças sintomáticas Uma analogia facilmente justificável nos leva dos homens anestésicos às mul heres frígidas cuja conduta no amor não pode realmente ser descrita ou enten dida melhor do que através da comparação com a mais clamorosa impot ência psíquica do homem1 No entanto se não cuidarmos de uma ampliação do conceito de impotência psíquica mas das gradações de sua sintomatologia não poderemos fugir à per cepção de que o comportamento amoroso do homem no mundo civilizado de hoje traz geralmente a marca da impotência psíquica Em poucas das pessoas cul tivadas as correntes terna e sensual se acham apropriadamente fundidas quase sempre o homem se sente limitado pelo respeito ante a mulher em sua atividade sexual e somente desenvolve a plena potência quando tem diante de si um objeto sexual depreciado o que é causado entre outras coisas pela participação de com ponentes perversos em suas metas sexuais que ele não ousa satisfazer com a mul her respeitada Um pleno gozo sexual lhe é dado apenas quando pode entregarse à satisfação sem escrúpulos o que não se arrisca a fazer com sua morigerada es posa Daí vem então sua necessidade de um objeto sexual depreciado de uma mulher eticamente inferior a que ele não precise atribuir escrúpulos estéticos que não o conheça nem possa julgálo em suas outras relações sociais A uma mulher assim ele prefere dedicar sua energia sexual ainda que sua ternura per tença a outra de nível mais alto É possível que também a inclinação muito ob servada entre homens das classes altas de tomar por amante ou mesmo por es posa uma mulher de condição baixa não seja senão consequência da necessidade de um objeto sexual depreciado ao qual se liga psicologicamente a possibilidade da plena satisfação Não hesito em responsabilizar também os dois fatores atuantes na impotência psíquica propriamente dita a intensa fixação incestuosa da infância e a frustração 277316 real da época da adolescência por essa conduta tão frequente na vida amorosa dos homens civilizados Ainda que soe pouco agradável e mesmo paradoxal devese dizer que para ser realmente livre e feliz no amor é preciso haver super ado o respeito ante a mulher haver se familiarizado com a ideia do incesto com a mãe ou a irmã Quem diante de tal exigência submeterse a um sério autoexame certamente descobrirá que no fundo vê o ato sexual como algo degradante que macula e polui não apenas o corpo A gênese desta valoração que o indivíduo não confessa de bom grado ele encontrará apenas naquele período da juventude em que sua corrente sensual já estava bastante desenvolvida mas a satisfação dela com um objeto fora da família era quase tão proibida quanto com um objeto incestuoso Em nossa cultura as mulheres se acham sob um semelhante efeito de sua edu cação e além disso sob o reflexo da conduta dos homens Naturalmente para elas é tão desfavorável que o homem não as aborde em sua plena potência como que a superestimação inicial da paixão dê lugar ao menosprezo após a posse Quase não se nota na mulher a necessidade de depreciar o objeto sexual isto se relaciona sem dúvida com o fato de normalmente ela não apresentar algo semel hante à superestimação sexual encontrada no homem Mas o longo afastamento da sexualidade e o confinamento da sensualidade na fantasia têm para ela outra consequência importante Ela frequentemente não pode mais desfazer o laço entre atividade sensual e proibição e mostrase psicologicamente impotente isto é frígida quando essa atividade lhe é enfim permitida Vem daí o esforço de muitas mulheres em manter secretas por algum tempo mesmo as relações lícitas e a capacidade de outras terem sensações normais tão logo se restabelece a con dição da proibição num caso amoroso secreto infiéis ao marido podem guardar ao amante uma fidelidade de segunda ordem 278316 Penso que a condição de proibido na vida amorosa da mulher deve ser equiparada à necessidade de depreciação do objeto sexual por parte do homem Ambas são consequência do longo intervalo entre maturação sexual e atividade sexual requerido pela educação por razões culturais Ambas procuram eliminar a impotência psíquica resultante da não convergência de impulsos ternos e sen suais Se as mesmas causas têm efeitos tão diversos no homem e na mulher isto se deve talvez a outra diferença na conduta dos dois sexos A mulher civilizada costuma não transgredir a proibição no período da espera e desse modo adquire o íntimo nexo entre sexualidade e proibição Geralmente o homem infringe esta proibição sob condição de depreciar o objeto e por isso leva tal condição para sua vida amorosa posterior Em vista do empenho por uma reforma na vida sexual tão intenso na cultura de hoje não seria supérfluo lembrar que a investigação psicanalítica como toda pesquisa é alheia a qualquer tendência Ela pretende tão só descobrir nexos rela cionando o que é manifesto ao que se acha oculto Ela estará de acordo se as re formas utilizarem suas averiguações para trocar o que é prejudicial pelo que for vantajoso Mas não pode predizer se outras instituições não acarretarão outros sacrifícios talvez mais graves III 279316 O fato de a restrição cultural da vida amorosa acarretar uma depreciação geral dos objetos sexuais talvez nos convide a retirar nossa atenção dos objetos e voltá la para os instintos mesmos O dano causado pela frustração inicial do prazer sexual se exprime no fato de sua posterior liberação no casamento não trazer mais uma plena satisfação Mas também a irrestrita liberdade sexual desde o início não conduz a um resultado melhor É fácil constatar que o valor psíquico da necessid ade amorosa cai imediatamente tão logo a sua satisfação se torna cômoda É pre ciso um obstáculo para impulsionar a libido para o alto e quando as resistências naturais à satisfação não bastam em todas as épocas as pessoas introduziram res istências convencionais a fim de poder fruir o amor Isso vale para indivíduos e para povos Em períodos em que a satisfação amorosa não encontrou di ficuldades como durante o declínio da Antiguidade o amor ficou sem valor a vida tornouse vazia e foram necessárias poderosas formações reativas para restabelecer os indispensáveis valores afetivos Quanto a isso podese afirmar que a corrente ascética do cristianismo criou para o amor valorizações psíquicas que a cultura pagã dos antigos nunca pôde lhe dar Ela atingiu seu maior signific ado com os monges ascéticos cuja vida consistia quase exclusivamente em lutar contra a tentação libidinal Num primeiro momento nos inclinamos a relacionar as dificuldades que aqui aparecem a características gerais de nossos instintos orgânicos Sem dúvida é também correto em geral que a importância psíquica de um instinto cresce com a sua frustração Experimentese deixar que certo número de indivíduos os mais variados passe fome igualmente Com a exacerbação da imperiosa necessidade de alimento todas as diferenças individuais se apagam e em seu lugar surgem as manifestações uniformes do instinto não saciado Mas é também certo que com a satisfação de um instinto cai geralmente o seu valor psíquico Recordese por exemplo a relação que uma pessoa que bebe mantém com o vinho Não é fato 280316 que o vinho proporciona ao bebedor a mesma satisfação tóxica que frequente mente a poesia comparou à erótica comparação que também do ponto de vista científico pode ser feita Já se ouviu falar de um bebedor obrigado a mudar con stantemente de bebida porque logo já não lhe agrada a habitual Pelo contrário o hábito estreita cada vez mais a ligação entre um homem e o tipo de vinho que ele bebe Sabese de algum bebedor que sentiu necessidade de ir para um país em que o vinho seja mais caro ou seja proibido para reavivar interpondo essas di ficuldades a sua satisfação em declínio Absolutamente Se ouvimos as de clarações de nossos grandes alcoólatras Böcklin por exemplo2 sobre sua relação com o vinho elas parecem indicar uma perfeita harmonia um modelo de casamento feliz Por que é tão diferente a relação entre o amante e o seu objeto sexual Acho que devemos levar em conta por mais estranho que pareça a possibil idade de que algo na natureza do próprio instinto sexual não seja favorável à plena satisfação No longo e difícil desenvolvimento do instinto destacamse de imediato dois fatores que poderiam ser responsáveis por tal dificuldade Em primeiro lugar graças ao duplo encetamento da escolha de objeto com inter posição da barreira ao incesto o objeto definitivo do instinto sexual nunca mais é o original mas apenas um substituto dele Mas a psicanálise nos ensina que quando o objeto original de um desejo é perdido em consequência da repressão frequentemente ele é representado por uma série interminável de objetos substi tutos nenhum dos quais chega a satisfazer plenamente Isso talvez explique a in constância na escolha de objeto a fome de estímulos que caracteriza tão fre quentemente a vida amorosa dos adultos Em segundo lugar sabemos que o instinto sexual decompõese inicialmente numa grande série de elementos melhor nasce deles dos quais nem todos podem ser acolhidos em sua configuração posterior tendo que ser antes 281316 suprimidos ou empregados de outra maneira Sobretudo os elementos instintuais coprófilos demonstraram ser incompatíveis com a nossa cultura estética provavelmente depois que adotando a postura ereta afastamos da terra o nosso órgão olfativo assim também com boa parcela dos impulsos sádicos que fazem parte da vida amorosa Mas todos esses processos de desenvolvimento dizem re speito somente às camadas superiores da complicada estrutura Os processos fun damentais que produzem a excitação amorosa ficam inalterados O excremental se acha íntima e inseparavelmente unido ao sexual a posição dos genitais inter urinas et faeces permanece o fator determinante e imutável Podese dizer modificando uma conhecida frase do grande Napoleão que Anatomia é des tino Os genitais mesmos não acompanharam o desenvolvimento das formas do corpo humano em direção à beleza continuaram animalescos e também o amor permaneceu no fundo tão animal como sempre foi Os instintos amorosos são difíceis de educar a sua educação ora obtém muito pouco ora demasiado Aquilo que a cultura pretende fazer deles não parece atingível sem considerável perda de prazer a persistência dos impulsos não aproveitados se expressa na atividade sexual como insatisfação De modo que deveríamos talvez nos habituar à ideia de que uma conciliação das exigências do instinto sexual com os reclamos da cultura não é possível de que não podem ser evitados a renúncia e o sofrimento assim como num futuro remoto o perigo de extinção da espécie humana em consequência de sua evolução cultural Este sombrio prognóstico baseiase é verdade apenas na con jectura de que a insatisfação cultural é a consequência necessária de certas peculi aridades que o instinto sexual adquiriu sob a pressão da cultura Mas a própria in capacidade de o instinto sexual produzir plena satisfação tão logo se submete às primeiras exigências da cultura tornase fonte das mais grandiosas realizações culturais obtidas através da sublimação cada vez maior de seus componentes 282316 instintuais Pois que motivo teriam os homens para dar outras aplicações às ener gias instintuais sexuais se delas resultasse por qualquer distribuição plena satis fação do prazer Eles nunca abandonariam tal prazer e não realizariam mais nen hum progresso Parece então que a diferença inconciliável entre as reivin dicações dos dois instintos o sexual e o egoísta torna os homens capazes de realizações cada vez mais altas é certo que sob uma constante ameaça à qual atu almente sucumbem os mais fracos na forma da neurose A ciência não tem o propósito de atemorizar nem de consolar Mas eu próprio admito de bom grado que conclusões de tão largo alcance como essas deveriam repousar sobre bases mais amplas e que talvez outros desenvolvimentos da hu manidade possam corrigir o resultado desses que aqui abordamos isoladamente 1 Mas devese admitir que a frigidez da mulher é um tema complexo que pode ser abordado tam bém de outro ângulo Mas devese admitir que a frigidez da mulher é um tema complexo que pode ser abordado também de outro ângulo 2 G Floerke Zehn Jahre mit Böcklin Dez anos com Böcklin 2a ed 1902 p 16 Arnold Böck lin182791 pintor suíço a No original die volle psychische Triebkraft Esse último termo significa normalmente força mo triz assim é encontrado nos dicionários bilíngues alemãoportuguês As versões estrangeiras consultadas empregam la plena energía instintiva psíquica la íntegra fuerza pulsional psíquica la piena forza motrice psichica the whole psychical driving force of the instinct 283316 b Uma nota de James Strachey informa que a expressão foi tomada das experiências de Jung com associação de palavras 284316 O TABU DA VIRGINDADE 1917 CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR III TÍTULO ORIGINAL DAS TABU DER VIRGINITÄT COMUNICAÇÃO À SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE VIENA 12 DE DEZEMBRO DE 1917 PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM SAMMLUNG KLEINER SCHRIFTEN ZUR NEUROSENLEHRE PEQUENOS TEXTOS SOBRE TEORIA DAS NEUROSES VIENA 1918 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XII PP 159180 PP 128211 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 21128 Entre as peculiaridades da vida sexual dos povos primitivos poucas são tão sur preendentes para a nossa sensibilidade como a sua atitude ante a virgindade da mulher A valorização da virgindade por parte do homem que faz a corte parecenos algo tão firme e evidente que quase ficamos perplexos ao ter que fun damentar esse juízo A exigência de que a moça não traga para o casamento com um homem a lembrança do comércio sexual com outro homem não passa afinal da continuação lógica do exclusivo direito de posse sobre uma mulher que con stitui a essência da monogamia a ampliação desse monopólio ao passado Então não nos é difícil explicar a partir de nossas concepções sobre a vida amorosa da mulher o que antes parecia um preconceito Quem é o primeiro a satisfazer a ânsia de amor trabalhosamente contida por largo tempo de uma donzela superando as resistências que nela se formaram por influência do meio e da educação tornase aquele com o qual ela forma uma relação duradoura não mais possível para nenhum outro Com base nessa experiência produzse na mulher um estado de sujeição que garante o calmo prosseguimento da posse e que a torna capaz de resistir a novas impressões e desconhecidas tentações A expressão servidão sexual foi utilizada por KrafftEbing em 18921 para designação do fato de que uma pessoa pode adquirir um extraordinário grau de dependência em relação a outra com a qual tem relacionamento sexual Pode acontecer que esta servidão vá muito longe até a perda de toda vontade autônoma e a tolerância dos maiores sacrifícios do próprio interesse mas o autor não deixa de observar que um determinado grau dessa dependência é realmente necessário se a ligação for durar um certo tempo Alguma medida de servidão sexual é de fato imprescindível para a manutenção do casamento civilizado e para a detenção das tendências polígamas que o ameaçam e em nossa comunid ade esse fator é normalmente levado em conta 286316 Um grau incomum de enamoramento e fraqueza de caráter de um lado e ilimitado egoísmo do outro é dessa conjunção que KrafftEbbing deriva a gênese da servidão sexual Mas a experiência analítica não permite que nos con tentemos com esta singela tentativa de explicação Podese perceber isto sim que a magnitude da resistência sexual superada é o fator decisivo e também o fato de a superação acontecer de forma concentrada e somente uma vez Em con formidade a isso a sujeição é muito mais frequente e intensa na mulher do que no homem embora neste seja mais frequente agora do que na Antiguidade Quando pudemos estudar a servidão sexual nos homens ela demonstrou ser consequência da superação de uma impotência psíquica por obra e graça de uma mulher à qual o homem permaneceu então ligado Muitos matrimônios surpreendentes e mais de um destino trágico até mesmo de amplas consequências parecem ter explicação nessa origem Não se descreve corretamente a conduta dos povos primitivos quando se afirma que eles não atribuem valor à virgindade e se aduz como prova disso o fato de consumarem a defloração da menina fora do casamento e antes do primeiro intercurso matrimonial Parece ao contrário que também para eles a defloração é um ato significativo mas veio a ser objeto de um tabu de uma proibição que chamaríamos de religiosa Em vez de reservála para o noivo e fu turo esposo da menina o costume exige que ele evite esta ação2 Está fora de meu escopo reunir cabalmente as provas da existência dessa proibição tradicional acompanhar a sua difusão geográfica e enumerar todas as formas em que se manifesta Limitome à constatação de que é bastante difun dida entre os povos primitivos de hoje tal ruptura do hímen fora do matrimônio subsequente Eis o que diz Crawley This marriage ceremony consists in perfora tion of the hymen by some appointed person other than the husband it is most common in the lowest stages of culture especially in Australia Esta cerimônia de casamento 287316 consiste na perfuração do hímen por uma pessoa indicada que não seja o marido é bastante comum nos estágios mais baixos da cultura especialmente na Austrália Mas quando a defloração não ocorre no primeiro ato matrimonial tem de ser realizada antes de alguma maneira e por alguma pessoa Citarei outras passagens do livro de Crawley que informam sobre esse ponto e que também nos dão en sejo para algumas observações críticas P 191 Assim entre os dieris e tribos vizinhas é costume universal quando a garota chega à puberdade romper o hímen Nas tribos de Portland e Glenelg isso é feito por uma velha senhora e às vezes por esse motivo homens bran cos são solicitados a deflorar meninas3 P 307 Às vezes a ruptura artificial do hímen ocorre na infância em geral porém na puberdade Frequentemente é combinada como sucede na Austrália com um ato cerimonial de intercurso4 P 348 A respeito de tribos australianas em que se acham as conhecidas re strições matrimoniais exogâmicas segundo comunicam Spencer e Gillen O hímen é perfurado artificialmente e os homens presentes têm acesso cerimo nial seja notado à garota em determinada ordem O ato acontece em duas partes perfuração e intercurso5 P 349 Entre os masais na África Equatorial o empreendimento dessa op eração na menina é uma importante preliminar do casamento Entre os sakais Malaia battas Sumatra e entre os alfoers de Celebesaa defloração é realiz ada pelo pai da noiva Nas Filipinas havia certos homens cuja profissão era deflorar noivas no caso de o hímen não ter sido rompido na infância por uma velha senhora às vezes empregada para isso Em algumas tribos esquimós a defloração da noiva era atribuição do angekok o sacerdote6 288316 As observações que anunciei referemse a dois pontos Primeiro é lamentável que nesses relatos não se tenha maior cuidado em distinguir entre a mera destru ição do hímen sem coito e o coito com a finalidade dessa destruição Apenas em um trecho vimos expressamente que a operação consiste em dois atos na deflor ação manual ou instrumental e na cópula subsequente O material de Ploss e Bartels tão rico em outros aspectos tem pouca utilidade para o nosso objetivo pois em sua exposição avulta o resultado anatômico do ato da defloração em det rimento da importância psicológica Em segundo lugar gostaríamos de saber o que diferencia o coito cerimonial puramente formal solene oficial que acontece em tais ocasiões do ato sexual regular Os autores que consultei tinham demasiado pudor em escrever sobre isso ou subestimaram uma vez mais a im portância psicológica desses detalhes sexuais Esperamos que os relatos originais dos viajantes e missionários sejam mais completos e inequívocos mas com a presente inacessibilidade da maior parte da bibliografia que é em língua es trangeira nada posso dizer de seguro a respeito dissob Podemos contornar a dúvida relativa a esse segundo ponto aliás considerando que um pseudocoito cerimonial representaria o substituto e talvez tomasse inteiramente o lugar de um plenamente consumado em tempos remotos 7 Para explicar esse tabu da virgindade podese recorrer a vários fatores que apreciarei rapidamente Na de floração de uma menina em geral é derramado sangue a primeira tentativa de explicação pois baseiase no temor dos primitivos ao sangue para eles a sede da vida Esse tabu do sangue é demonstrado por muitos preceitos que nada têm a ver com a sexualidade e ligase claramente à proibição de matar constitui uma me dida protetora contra a avidez de sangue dos primórdios o prazer de matar dos primeiros homens Nesta concepção o tabu da virgindade é relacionado ao tabu da menstruação observado quase sem exceções O primitivo não pode manter afastado de ideias sádicas o enigmático fenômeno do fluxo de sangue mensal A 289316 menstruação sobretudo a primeira é por ele interpretada como a mordida de um bicho espectral talvez como indício de relacionamento sexual com esse espírito Ocasionalmente algum relato permite reconhecer nesse espírito aquele de um antepassado e então compreendemos apoiandonos em outras percepções8 que a menina menstruada enquanto propriedade desse espírito ancestral seja tabu Por outro lado somos advertidos a não superestimar a influência de um fator como o horror ao sangue Afinal este não pôde suprimir costumes como a cir cuncisão do menino e aquele ainda mais cruel praticado nas meninas excisão do clitóris e dos pequenos lábios que vigoram parcialmente nesses povos nem ab olir outras cerimônias em que é derramado sangue Logo não seria de estranhar que ele fosse superado em benefício do marido na primeira coabitação Uma segunda explicação também prescinde do elemento sexual mas é de al cance muito mais geral Ela diz que o primitivo está à mercê de uma permanente disposição à angústia tal como afirmamos na teoria psicanalítica daqueles que sofrem de neurose de angústia Essa disposição à angústia se apresentará mais fortemente nas ocasiões que de algum modo desviamse do habitual que trazem consigo algo novo inesperado incompreendido inquietante Daí também pro cede o cerimonial bastante presente nas religiões posteriores relacionado ao começo de toda nova empresa ao início de cada estação aos primeiros frutos da vida humana animal e vegetal Os perigos de que o homem angustiado se crê ameaçado nunca aparecem mais fortes na sua expectativa do que no início da situação perigosa e apenas então é adequado protegerse deles Não há dúvida de que o primeiro ato sexual no casamento requer por seu significado ser precedido por tais medidas acauteladoras As duas tentativas de explicação a do horror ao sangue e a da angústia dos primeiros frutos não contradizem mas sim reforçam uma à outra O primeiro ato sexual é certamente um ato considerável tanto mais se faz verter sangue 290316 Uma terceira explicação a preferida de Crawley pede atenção para o fato de que o tabu da virgindade é parte de um contexto imenso que abrange toda a vida sexual Não apenas a primeira relação com a mulher é tabu mas o próprio ato sexual quase poderíamos dizer que a mulher é toda tabu Ela não só é tabu nas situações especiais que decorrem de sua vida sexual na menstruação na gravidez no parto e puerpério também fora delas o trato com a mulher está sujeito a tão sérias e numerosas limitações que temos toda razão em duvidar da suposta liberdade sexual dos selvagens É verdade que em determinadas ocasiões a sexualidade dos primitivos extrapola toda inibição de ordinário no entanto ela parece mais vigorosamente coartada por proibições do que nos está gios de cultura mais elevados Se o homem empreende algo especial uma ex pedição uma caçada uma incursão guerreira tem de manterse longe da mulher sobretudo do ato sexual com a mulher de outro modo sua força ficaria paralis ada e ele atrairia o fracasso Também nos usos cotidianos há uma inconfundível tendência a manter os sexos à parte Mulheres vivem com mulheres homens com homens dificilmente haverá em muitas tribos primitivas uma vida familiar no sentido que conhecemos Às vezes a separação vai ao ponto de não se permitir a um sexo pronunciar os nomes próprios do outro de as mulheres desenvolverem uma linguagem com vocabulário particular A necessidade sexual pode sempre tornar a romper essas barreiras mas em algumas tribos até os encontros dos es posos têm de ocorrer fora da casa e em segredo Ali onde o primitivo ergueu um tabu é porque teme o perigo e não se pode negar que um temor básico ante a mulher se exprime em todos esses preceitos para evitála Talvez ele se fundamente no fato de a mulher ser algo diferente do homem eternamente incompreensível e misteriosa estranha e por isso apar entemente hostil O homem teme ser debilitado pela mulher ser contagiado por sua feminilidade e então mostrarse incapaz O efeito relaxante e dissolvedor de 291316 tensões que tem o coito talvez seja exemplar para esse temor e a percepção da influência que a mulher adquire sobre o homem através do ato sexual a consider ação que ela assim obtém talvez explique a difusão desse temor Em tudo isso não há nada que tenha envelhecido nada que não perdure entre nós Muitos observadores dos primitivos atuais julgam que seus impulsos eróticos são relativamente fracos e nunca atingem as intensidades que nos acostumamos a ver no homem civilizado Outros contradizem tal avaliação mas de todo modo os tabus enumerados demonstram a existência de um poder que os opõe ao amor ao rejeitar a mulher como estranha e hostil Em palavras que pouco se diferenciam da terminologia habitual da psicanál ise Crawley afirma que cada indivíduo separase dos outros mediante um taboo of personal isolation e que justamente as pequeninas diferenças dentro da semel hança geral motivam os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles Seria tentador perseguir essa ideia e derivar desse narcisismo das pequenas difer enças a hostilidade que em todas as relações humanas combate vitoriosamente os sentimentos de solidariedade e sobrepuja o mandamento de amor ao próximo Ao atentar para o complexo da castração e sua influência no juízo que se faz da mulher a psicanálise acredita haver apreendido boa parte do que fundamenta a rejeição da mulher pelo homem narcísica e bastante entremeada com menosprezo Notamos porém que essas últimas considerações nos levaram muito além do nosso tema O tabu geral da mulher não lança nenhuma luz sobre os preceitos particulares relativos ao primeiro ato sexual com uma virgem Nisso per manecemos limitados às duas primeiras explicações do temor ao sangue e do temor à primeira ocasião e mesmo delas é preciso dizer que não tocam o cerne do tabu em questão Na base deste achase evidentemente a intenção de negar ou poupar ao futuro esposo algo que não pode ser separado do primeiro ato sexual 292316 embora dessa mesma relação conforme a observação inicial que fizemos devesse resultar uma ligação especial da mulher com esse homem Não é nossa tarefa aqui abordar a origem e o derradeiro significado dos pre ceitos do tabu Fiz isso na minha obra Totem e tabu na qual considerei a ambival ência original na determinação do tabu e sustentei a gênese deste nos eventos pré históricos que levaram à fundação da família humana Já não se pode reconhecer nos tabus dos primitivos de hoje tal significado anterior Esquecemos facilmente com tal expectativa que também os povos mais primitivos vivem numa cultura bem distante daquela dos tempos primevos tão antiga como a nossa que igual mente corresponde a um estágio de desenvolvimento posterior embora diverso Hoje em dia vemos o tabu articulado num sistema engenhoso entre os primit ivos tal como os neuróticos desenvolvem nas suas fobias e encontramos velhos temas substituídos por outros mais novos harmoniosamente ajustados Deixando de lado os problemas genéticos retomemos então à ideia de que o primitivo es tabelece um tabu onde receia um perigo Esse perigo é de modo geral psíquico pois o homem primitivo não é impelido a fazer neste ponto duas distinções que nos parecem inevitáveis Ele não diferencia o perigo material do psíquico e o real do imaginário Em sua concepção do mundo coerentemente aplicada todo perigo vem da intenção hostil de um ser animado como ele tanto o perigo de uma força natural como o de outros homens ou animais Por outro lado ele está acostumado a projetar seus impulsos hostis internos no mundo exterior ou seja a atribuílos aos objetos que sente como desagradáveis ou apenas como descon hecidos Então a mulher é também percebida como fonte de tais perigos e o primeiro ato sexual com a mulher é visto como um perigo particularmente intenso Acredito que obteremos algum esclarecimento sobre qual é esse perigo in tensificado e por que precisamente ele ameaça o futuro esposo se investigarmos 293316 mais detidamente o comportamento das mulheres de nosso estágio cultural nas mesmas circunstâncias Já antecipo como resultado desse exame que existe real mente esse perigo de modo que o homem primitivo se defende com o tabu da virgindade de um perigo corretamente pressentido embora psíquico Avaliamos como sendo a reação normal que a mulher após o coito abrace firmemente o homem no auge da satisfação e vemos nisso uma expressão de seu agradecimento e um penhor de duradoura sujeição Mas sabemos que não con stitui absolutamente a regra que já a primeira relação traga esse comportamento muito frequentemente ela significa uma decepção para a mulher que permanece fria e insatisfeita e de ordinário se requer mais tempo e frequente repetição do ato sexual para que nele ocorra também a satisfação da mulher Há uma sequên cia contínua desde esses casos de frigidez apenas inicial e passageira até o de sagradável resultado de uma frigidez permanente que os ternos esforços do homem não conseguem vencer Acho que essa frigidez da mulher ainda não é su ficientemente compreendida e excetuando os casos que devem ser imputados à insuficiente potência do homem exige explicação se possível através de fenô menos que lhe são próximos Neste ponto não quero abordar as frequentes tentativas de fugir ao primeiro ato sexual porque admitem vários significados podendo ser vistas em primeira linha mas não totalmente como expressão da tendência defensiva geral da mulh er Creio por outro lado que certos casos patológicos lançam alguma luz sobre o enigma da frigidez feminina casos em que a mulher após o primeiro ou após cada novo ato exprime abertamente sua hostilidade ao homem insultandoo erguendo a mão contra ele ou golpeandoo de fato Num caso bem notável desse tipo que pude analisar a fundo isso ocorria embora a mulher amasse bastante o marido costumasse ela mesma solicitar o coito e claramente obtivesse grande sat isfação nele Quero dizer que essa estranha reação contrária é resultado dos 294316 mesmos impulsos que ordinariamente podem manifestarse apenas como fri gidez isto é que são capazes de deter a reação terna sem imporse eles próprios No caso patológico é dividido em seus dois componentes por assim dizer aquilo que na frigidez bem mais frequente unese para produzir um efeito inibidor ex atamente como tempos atrás percebemos nos chamados sintomas em duas fases da neurose obsessivac O perigo assim ativado pela defloração da mulher consistiria em atrair a sua hostilidade e justamente o futuro esposo teria toda razão para subtrairse a tal inimizade A análise leva a descobrir sem dificuldade que impulsos da mulher tomam parte no surgimento dessa conduta paradoxal na qual espero achar a explicação da frigidez O primeiro coito mobiliza uma série de impulsos que são inapro veitáveis para a atitude feminina desejada e deles alguns não necessitam repetir se nos atos posteriores Pensamos aqui em primeiro lugar na dor que a deflor ação causa na virgem e talvez nos inclinemos a ver como decisivo esse fator pre scindindo de buscar outros Mas não se pode realmente atribuir à dor tal importância devese pôr em seu lugar a injúria narcísica que advém da destru ição de um órgão e que acha mesmo uma representação racional no conheci mento do diminuído valor sexual da moça deflorada Mas os costumes matrimo niais dos primitivos contêm uma advertência acerca de tal superestimação Vimos que em alguns casos a cerimônia tem duas fases após a ruptura manual ou in strumental do hímen há um coito oficial ou pseudorrelação com os represent antes do marido o que demonstra que o sentido da prescrição do tabu não é satis feito com evitarse a defloração anatômica que ao marido será poupada outra coisa mais que a reação da mulher à lesão dolorosa Outro motivo para a decepção com o primeiro coito achamos é o fato de nele a expectativa e a realização não poderem coincidir ao menos para a mulher civilizada O intercurso sexual foi até então fortemente ligado à proibição e por 295316 isso o intercurso legal e permitido não é sentido como a mesma coisa Como pode ser íntima esta associação é algo evidenciado de maneira quase cômica pelo empenho de tantas noivas em ocultar a nova relação amorosa de outras pess oas até mesmo dos pais quando não há real necessidade disso nem se espera ob jeção alguma As moças dizem abertamente que o seu amor perde algum valor para elas quando outros sabem dele Ocasionalmente esse motivo pode tornarse preponderante e impedir o desenvolvimento da capacidade para o amor no mat rimônio A mulher só reencontra sua sensibilidade amorosa numa relação inter dita que deve ser mantida em segredo a única na qual ela está certa de que sua vontade é soberana No entanto tampouco esse motivo vai suficientemente a fundo ligado a con dições culturais além disso não se vincula muito bem à situação dos primitivos Logo tanto mais significativo é o fator seguinte baseado na evolução da libido Graças aos esforços da psicanálise aprendemos como são regulares e poderosas as primeiras alocações da libido Tratase de desejos sexuais infantis tenazmente conservados na mulher geralmente fixação da libido no pai ou no irmão que o substitui desejos que frequentemente não se dirigiam para o coito ou que o incluíam apenas como vago objetivo O marido é sempre digamos um homem substituto jamais o homem certo O primeiro lugar na capacidade amorosa da mulher pertence a outro em casos típicos o pai o marido tem no máximo o se gundo lugar Para que o substituto seja rejeitado como insatisfatório importa qual a intensidade da fixação e com que pertinácia é mantida Assim a frigidez se acha entre as condições genéticas da neurose Quanto mais poderoso o elemento psíquico na vida sexual da mulher tanto mais a sua distribuição libidinal se mostrará capaz de resistência à comoção do primeiro ato sexual tanto menos avassalador poderá ser o efeito da sua posse física A frigidez pode então firmar se como inibição neurótica ou aplanar o chão para o desenvolvimento de outras 296316 neuroses e mesmo ligeiras diminuições da potência masculina contribuirão para isso O tema do desejo sexual infantil parece ser levado em conta pelo costume em que os primitivos transferem a defloração para um homem idoso um sacerdote ou indivíduo sagrado isto é um substituto do pai ver acima Daí uma linha direta me parece conduzir ao jus primae noctis direito da primeira noite dos sen hores feudais da Idade Média A J Storfer sustentou a mesma concepção9 e tam bém viu na difundida instituição das bodas de Tobias o costume da continên cia nas três primeiras noites um reconhecimento dos privilégios do patriarca tal como fizera C G Jung10 Corresponde a nossa expectativa portanto se encon tramos imagens de deuses entre os substitutos do pai encarregados da defloração Em algumas regiões da Índia a recémcasada tinha de sacrificar seu hímen ao lingam de madeira e segundo o relato de Santo Agostinho havia esse costume na cerimônia de casamento romana de seu tempo na forma atenuada em que a jovem precisava apenas sentarse no enorme falo de pedra de Príapo11 Há outro motivo relacionado a camadas ainda mais profundas que demon stravelmente tem a principal culpa pela reação paradoxal ao homem e cuja influência manifestase também na frigidez da mulher segundo penso O primeiro ato sexual ativa na mulher outros velhos impulsos além daqueles descritos que contrariam inteiramente a função e o papel femininos Sabemos pela análise de muitas mulheres neuróticas que bem cedo elas pas sam por um estágio em que invejam o sinal de masculinidade do irmão e sentem se prejudicadas e rebaixadas por sua ausência por sua diminuição na verdade Incluímos essa inveja do pênis no complexo da castração Se entendemos por masculino também o querer ser masculino adequase a essa conduta a desig nação protesto masculino que Alfred Adler cunhou a fim de proclamar esse fator o responsável pela neurose em geral Nessa fase é frequente as meninas não 297316 esconderem a sua inveja e a hostilidade que dela resulta para com o irmão favore cido elas procuram também urinar em pé como o irmão para defender a sua suposta igualdade No caso mencionado de agressão da mulher ao marido que amava após o coito pude constatar que essa fase havia precedido a escolha de objeto Somente depois a libido da garota se voltou para o pai e então ela dese jou em vez do pênis um filho12 Não me surpreenderia se em outros casos a sequência de tais impulsos fosse invertida e essa parte do complexo da castração tivesse efeito apenas depois de realizada a escolha objetal Mas a fase masculina da mulher na qual ela inveja o pênis do menino ocorre mais cedo no desenvolvimento de todo modo e achase mais próxima do narcisismo original do que do amor objetal Há algum tempo tive ensejo de examinar o sonho de uma recémcasada no qual transparecia a reação à perda da virgindade Ele mostrava facilmente o desejo de castrar o seu jovem marido e guardar para si o pênis É certo que tam bém cabia a interpretação mais inofensiva de que ela desejava o prolongamento e a repetição do ato mas vários pormenores do sonho extrapolavam esse sentido e o caráter e o comportamento posterior da sonhadora deram testemunho em favor da concepção mais séria Por trás dessa inveja do pênis vem à luz o hostil am argor da mulher frente ao homem que nunca está ausente de todo nas relações entre os sexos e do qual vemos claros indícios nos esforços e nos escritos das emancipadas Numa especulação de natureza paleobiológica Ferenczi faz re montar essa hostilidade não sei se é o primeiro nisso à época da diferen ciação dos sexos No início pensa ele a copulação realizavase entre dois indiví duos de gênero igual dos quais um tornouse mais forte e obrigou o mais fraco a suportar a união sexual O amargor com tal submissão ainda persistiria na atual disposição da mulher Não vejo o que censurar no uso de tais especulações desde que se evite superestimálas 298316 Após essa enumeração dos motivos para a reação paradoxal da mulher à de floração da qual perduram traços na frigidez podemos dizer resumindo que a sexualidade inacabada da mulher se descarrega no homem que primeiro a faz con hecer o ato sexual Então o tabu da virgindade faz sentido e entendemos o pre ceito que manda poupar desses perigos justamente o homem que vai partilhar a vida com tal mulher Em estágios de cultura mais elevados diminui a importância dada a esse perigo ante a promessa de sujeição e sem dúvida ante outros motivos e atrações a virgindade é considerada uma possessão a que o homem não deve renunciar Mas a análise dos distúrbios matrimoniais ensina que tam pouco na vida psíquica da mulher civilizada se extinguiram completamente os motivos que buscam levar a mulher a vingarse de sua defloração Acho que não pode escapar a um observador o número extraordinário de casos em que a mulh er permanece frígida e sentese infeliz num primeiro casamento e após a dissol ução deste tornase uma esposa terna e dedicada para o segundo marido A reação arcaica esgotouse no primeiro objeto digamos Mas também em outros aspectos o tabu da virgindade não desapareceu de nossa vida civilizada É conhecido da alma popular e os escritores utilizam oca sionalmente esse tema Uma comédia de Anzengruberd mostra um camponês simplório que se abstém de casar com a moça a ele destinada porque ela é uma rapariga que vai custar a vida ao primeiro Então ele concorda em que ela se case com outro e a terá quando for viúva e não representar perigo O título da peça Das Jungferngift O veneno da virgem alude ao fato de os domadores de serpentes fazerem as cobras venenosas morderem antes um pedaço de pano a fim de manejálas sem perigo13 O tabu da virgindade e parte de sua motivação acharam sua mais forte ex pressão numa conhecida personagem teatral da tragédia Judite e Holofernes de Hebbel Judite é uma daquelas mulheres cuja virgindade se acha protegida por 299316 um tabu Seu primeiro marido foi paralisado na noite de núpcias por um medo misterioso e não mais ousou tocála Minha beleza é como a beladona diz ela Sua fruição traz loucura e morte Quando o general assírio sitia a cidade ela planeja seduzilo com sua beleza e destruílo usando um motivo patriótico para encobrir um sexual Após ser desvirginada por esse homem violento que se van gloria de sua força e impiedade a indignação de Judite lhe dá forças para decapitálo e assim ela liberta seu povo A ação de decapitar nos é bem con hecida como substituto simbólico de castrar Judite é a mulher que castra o homem que a deflorou tal como no desejo do sonho que relatei de uma mulher recémcasada Hebbel sexualizou deliberadamente a narrativa patriótica achada nos livros apócrifos do Antigo Testamento pois nela Judite pode gabarse após o seu retorno de não haver sido maculada e no texto bíblico também não se acha menção nenhuma à sua perturbadora noite de núpcias Mas é provável que com fina sensibilidade de escritor ele tenha percebido o tema antiquíssimo que se per dera na história tendenciosa não fazendo mais que restituir ao material seu con teúdo anterior Numa excelente análise Isidor Sadger mostrou como o complexo parental do próprio Hebbel determinou sua escolha do material e como ele veio a tomar sempre o partido da mulher na luta entre os sexos e a penetrar os mais recônditos impulsos da alma da mulher14 Ele também menciona os motivos que o próprio escritor oferece para a alteração que fez no material corretamente julgandoos artificiais e como que destinados a justificar externamente e no fundo ocultar algo de que o próprio autor não tem consciência Não contestarei a explicação dada por Sadger para a transformação de Judite que na história bíblica é uma viúva numa viúva virgem Ele invoca a intenção encontrada nas fantasias in fantis de negar as relações sexuais dos pais e fazer da mãe uma mulher inviolada Mas acrescento depois que o escritor estabeleceu a virgindade da sua heroína 300316 sua imaginação sensível detevese na reação hostil desencadeada pela profanação da virgindade Podemos então dizer concluindo que a defloração não tem só a consequên cia cultural de ligar duradouramente a mulher ao homem ela também desperta uma reação arcaica de hostilidade ao homem que pode assumir formas patoló gicas que se manifestam com frequência em inibições da vida amorosa conjugal e à qual podemos atribuir o fato de o segundo matrimônio frequentemente vingar mais que o primeiro O surpreendente tabu da virgindade o temor com que nos povos primitivos o marido foge do ato da defloração acham nessa reação hostil a sua plena justificação É interessante que na qualidade de psicanalista encontremos mulheres em que as reações opostas de sujeição e hostilidade acharam expressão e permane ceram intimamente ligadas Há mulheres que parecem desavirse totalmente com os maridos e fazem apenas esforços vãos para distanciarse deles Por mais que tentem dirigir seu amor para outro homem a imagem do primeiro a quem já não amam intervém de forma inibidora A análise mostra então que tais mulheres ainda se apegam a seus primeiros maridos por sujeição não mais por ternura Não se libertam deles porque não chegaram a vingarse deles e em casos pro nunciados nem tomaram consciência do impulso de vingança 301316 1 KrafftEbing Bemerkungen über geschlechtiche Hörigkeit und Masochismus Observações sobre servidão sexual e masoquismo Jahrbücher für Psychiatrie v x 1892 2 Crawley The Mystic Rose A Study of Primitive Marriage Londres 1902 Ploss e Bartels Das Weib in der Naturund Völkerkunde diversas passagens em Frazer Taboo and the Perils of the Soul 1911 e Havelock Ellis Studies in the Psychology of Sex 1913 3 Thus in the Dieri and neighbouring tribes it is the universal custom when a girl reaches pu berty to rupture the hymen Journ Anthrop Inst xxiv 169 In the Portland and Glenelg tribes this is done to the bride by an old woman and sometimes white men are asked for this reas on to deflower maidens Brough Smith op cit ii 319 4 The artificial rupture of the hymen sometimes takes place in infancy but generally at puberty It is often combined as in Australia with a ceremonial act of intercourse 5 The hymen is artificially perforated and then assisting men have access ceremonial be it ob served to the girl in a stated order The act is in two parts perforation and intercourse 6 As informações entre parênteses foram acrescentadas por Freud Cabe registrar também que excetuando a primeira reproduzida apenas em inglês e no corpo do texto as citações aparecem vertidas para o alemão no texto e com o original inglês no rodapé e suas especificações biblio gráficas e consequente distinção entre uma e outra foram omitidas por Freud no texto 7 Em inúmeros outros exemplos de cerimônia nupcial não há dúvida de que outras pessoas que não o noivo como seus assistentes e companheiros os nossos padrinhos podem dispor sexu almente da noiva 8 Ver Totem e tabu 1913 9 Zur Sonderstellung des Vatermordes A posição especial do parricídio 1911 Schriften zur an gewandten Seelenkunde Escritos de psicologia aplicada 10 Die Bedeutung des Vaters für das Schicksal des Einzelnen A significação do pai para o des tino do indivíduo Jahrbuch für Psychoanalyse Anuário de Psicanálise 1 1909 11 Ploss e Bartels Das Weib A mulher i xii e Dulaure Des Divinités génératrices Paris1885 reimpressão da edição de 1825 pp 142 ss 302316 12 Ver Sobre transformações dos instintos em particular no erotismo anal 1917 13 Um conto magistral de Arthur Schnitzler Das Schicksal des Freiherrn v Leisenbogh O destino do barão von Leisenbogh merece ser lembrado aqui não obstante a diferença da situ ação O amante de uma atriz experimentada no amor condenado por um acidente cria uma es pécie de nova virgindade para ela ao amaldiçoar mortalmente aquele que primeiro a possuir de pois dele Durante algum tempo a mulher sobre quem pesa esse tabu não ousa ter uma relação amorosa Mas depois que se apaixona por um cantor recorre ao expediente de conceder antes uma noite ao barão Von Leisenbogh que há anos a corteja sem sucesso E nele se cumpre a maldição morre de um ataque ao saber do motivo de sua inesperada fortuna amorosa 14 Sadger Von der Pathographie zur Psychografie Da patografia à psicografia Imago i 1912 a An important preliminary of marriage among the Masai is the performance of this operation on the girl J Thomson op cit 258 This defloration is performed by the father of the bride amongst the Sakais Battas and Alfoers of Celebes Ploss e Bartels op cit ii 474 In the Philip pines there were certain men whose profession it was to deflower brides in case the hymen had not been ruptured in childhood by an old woman who was sometimes employed for this Feather man op cit ii 474 The defloration of the bride was amongst some Eskimo tribes entrusted to the angekok or priest id iii 406 b A bibliografia estrangeira era inacessível naquele momento devido às circunstâncias da i Guerra c Cf Conferências introdutórias à psicanálise 191617 no final da conferência xix d Ludwig Anzengruber 183989 dramaturgo vienense no parágrafo seguinte fazse referência ao tragediógrafo alemão Friedrich Hebbel 181363 303316 TEXTOS BREVES 1910 INTRODUÇÃO E CONCLUSÃO DE UM DEBATE SOBRE O SUICÍDIOa 1 INTRODUÇÃO Senhores Todos escutaram com grande satisfação o apelo de um educador que não admite que se faça uma acusação injustificada contra a instituição que lhe é cara Mas sei que de toda forma os senhores não se inclinavam a crer facilmente na alegação de que a escola empurra seus alunos para o suicídio Não nos deix emos levar muito longe contudo em nossa simpatia pela parte agravada Nem todos os argumentos do expositor me parecem sólidos Se os casos de suicídio ju venil ocorrem não apenas entre alunos do secundário mas também com aprend izes etc tal circunstância não absolve a escola secundária ela talvez requeira a interpretação de que a escola secundária para os alunos toma o lugar dos trau mas que outros adolescentes experimentam em suas outras condições de vida Mas a escola secundária deve fazer mais do que deixar de impelir os jovens para o suicídio deve lhes dar vontade de viver e lhes proporcionar apoio e esteio numa fase da vida em que pelas próprias condições de seu desenvolvimento veemse obrigados a afrouxar os vínculos com a casa paterna e a família Pareceme indis cutível que as escolas não fazem isso e que em muitos pontos não cumprem a tarefa de fornecer substituição para a família e despertar o interesse pela vida no mundo lá fora Este não é o lugar para uma crítica da escola secundária em sua atual configuração Mas talvez me seja permitido ressaltar um só fator A escola não pode esquecer que lida com pessoas ainda imaturas a quem não é lícito negar 305316 o direito de se demorar em certos estágios até mesmo desagradáveis do desenvolvimento Ela não pode arrogar para si o caráter inexorável da vida não pode querer ser mais do que um jogo de vida 2 CONCLUSÃO Senhores Tenho a impressão de que apesar do valioso material aqui ap resentado não conseguimos chegar a uma decisão a respeito do problema que nos interessa Queríamos saber principalmente como é possível subjugar o po deroso instinto de vida se isso pode ocorrer apenas com a ajuda da libido decep cionada ou se o Eu renuncia à afirmação de si mesmo por motivos próprios do Eu Talvez não tenhamos obtido a resposta a essa questão psicológica porque não temos uma boa aproximação a ela Quero dizer que nisso podemos partir apenas do estado da melancolia conhecido clinicamente e da comparação entre ele o afeto do luto Mas os processos afetivos da melancolia as vicissitudes da libido nesse estado sãonos inteiramente desconhecidos e também o duradouro afeto do luto ainda não se tornou psicanaliticamente compreensível Vamos suspender nosso julgamento portanto até que a experiência tenha resolvido essa questão CARTA A FRIEDRICH S KRAUSS SOBRE A REVISTA ANTHROPOPHYTEIAb Caro dr Kauss 306316 O sr me pergunta que valor científico podem reivindicar na minha opinião as coletâneas de piadas eróticas gracejos anedotas etc Sei que o sr não tem a menor dificuldade em justificar essa atividade de compilação deseja apenas meu testemunho na condição de psicólogo sobre a utilidade e até mesmo o caráter in dispensável desse material Gostaria de acentuar principalmente duas coisas As anedotas e pilhérias erót icas que o senhor reuniu nos volumes da Anthropophyteia só foram produzidas e passadas adiante porque deram prazer tanto aos narradores como aos ouvintes Não é difícil imaginar quais componentes do instinto sexual tão complexo e composto nelas encontraram satisfação Essas historietas nos informam direta mente sobre quais instintos parciais da sexualidade são preservados em certo grupo de pessoas como particularmente adequados para se obter prazer e assim corroboram perfeitamente as conclusões a que chegou a investigação psicanalít ica de indivíduos neuróticos Permitame lembrar o mais importante exemplo desse tipo A psicanálise nos levou a constatar que a região do ânus normal mente e também nos não pervertidos é um local de sensibilidade erógena que em determinados aspectos se comporta exatamente como um genital Os médicos e psicólogos a quem falamos de um erotismo anal e do caráter anal dele decor rente ficaram bastante indignados Nisso a Anthropophyteia vem ao encontro da psicanálise mostrando como é universal as pessoas se deterem prazerosamente nessa região do corpo suas atividades e até mesmo produto de sua função Não fosse assim todas essas histórias despertariam nojo naqueles que as escutam ou o povo seria pervertido no sentido de uma psychopathia sexualis moralizante Não seria difícil dar outros exemplos de como é valioso para o conhecimento sexualpsicológico o material coletado pelos autores da Anthropophyteia Talvez o seu valor seja ainda acrescido pelo fato que em si não representa uma 307316 vantagem de os compiladores nada saberem sobre as conclusões teóricas da psicanálise e reunirem esse material sem concepções orientadoras Outro ganho psicológico de natureza mais geral resulta em especial das pia das propriamente eróticas como das piadas em si Em meu estudo sobre o chiste mostrei que a revelação do que é normalmente reprimido na psique humana pode seguindose determinadas regras tornarse uma fonte de prazer e assim uma técnica para a formação de chistes Na psicanálise chamamos de complexo uma trama de ideias com o afeto a elas relacionado e afirmamos que muitas das piadas mais apreciadas são piadas de complexos e que devem seu efeito anim ador e liberador ao hábil desnudamento de complexos normalmente reprimidos Demonstrar essa tese com exemplos tomaria espaço demasiado aqui mas podese enunciar como resultado dessa investigação que as piadas eróticas e outras que circulam no povo constituem excelentes meios para pesquisa da psique incon sciente dos seres humanos de modo muito semelhante aos sonhos e aos mitos e lendas que a psicanálise já procura estudar Portanto podemos abrigar a esperança de que o valor psicológico do folclore será cada vez mais reconhecido e os laços entre essa pesquisa e a psicanálise logo se tornarão mais íntimos Subscrevome caro dr Krauss muito cordialmente Freud 26 de junho de 1910 308316 EXEMPDE COMOLOS OS NEURÓTICOS REVELAM SUAS FANTASIAS PATOGÊNICASc Há pouco tempo examinei um paciente de cerca de vinte anos que apresentava um quadro inequívoco de dementia praecox hebefrenia identificado também por outros médicos Nos estágios iniciais da doença ele havia mostrado per iódicas mudanças de ânimo tivera considerável melhora e num desses estados favoráveis fora retirado da instituição pelos pais Durante uma semana regalaramno com toda espécie de entretenimento festejando sua suposta recu peração Após esta semana sobreveio de imediato uma recaída Levado de volta ao sanatório ele contou que o médico atendente lhe havia dado o conselho de flertar um pouco com sua mãe Não há dúvida de que nesse delirante equívoco da memória ele expressou a excitação que a companhia da mãe produzira nele e que fora a causa imediata para a sua recaída Há mais de dez anos numa época em que os resultados e pressupostos da psicanálise eram familiares a poucas pessoas foime relatado de uma fonte con fiável o seguinte caso Uma garota filha de um médico adoeceu de histeria com sintomas localizados O pai negou a histeria e fez com que se realizassem trata mentos somáticos diversos que pouco adiantaram Certa vez uma amiga per guntou à garota Você nunca pensou em consultar o dr F Ao que a doente respondeu Para quê Sei muito bem a pergunta que ele me faria Já lhe ocorreu a ideia de ter relações sexuais com seu pai Não preciso garantir que nem 309316 naquele tempo nem agora eu faço perguntas desse tipo Mas notese que muita coisa que os pacientes relatam como sendo palavras ou atos dos médicos pode ser entendida como revelação de suas próprias fantasias patogênicas RESENHA DE CARTAS A MULHERES NEURÓTICAS DE WILHELM NEUTRAd Deveria ser visto como um auspicioso sinal do interesse crescente pela psicoter apia o fato de em tão breve tempo se ter feito uma reimpressão desse livro Infel izmente não podemos saudar o próprio livro como algo auspicioso O autor médico assistente do instituto de hidroterapia Gainfahrn próximo a Viena ad otou a forma das Cartas psicoterapêuticas de Oppenheim e preencheu essa forma de um conteúdo psicanalítico Isso é em determinado sentido um desacerto pois a psicanálise não pode ser combinada satisfatoriamente com a técnica persuasiva de Oppenheim ou de Dubois se preferireme ela busca seu efeito terapêutico por vias muito diferentes Mais grave porém é que o autor não alcança os méri tos de seu modelo o tato e a seriedade moral e que na apresentação das teorias psicanalíticas incorre frequentemente numa retórica oca e faz algumas de clarações incorretas No entanto muita coisa é dita de modo hábil e apropriado a obra pode ser admitida como leitura popular Numa exposição séria científica o autor teria de indicar com maior escrupulosidade as fontes de seus pontos de vista e afirmações 310316 a Título originalZur SelbstmordDiskussion Publicado primeiramente em Diskussionen des Wiener psychoanalytischen Vereins 1 Wiesbaden Bergmann 1910 Traduzido de Gesammelte Werke viii 624 b Publicada primeiramente em Anthropophyteia 7 p 472 Traduzida de Gesammelte Werke viii pp 2245 c Título original Beispiele des Verrats pathogener Phantasien bei Neurotikern publicado primeiramente em Zentralblatt für Psychoanalyse 1 p 43 Traduzido de Gesammelte Werke viii p 228 d Título original Besprechung von Dr Wilhelm Neutra Briefe an nervöse Frauen Dresden 1909 Publicada originalmente em Zentralblatt für Psychoanalyse 1 1910 p 49 Traduzida de Gesammelte Werke Nachtragsband Volume suplementar p 500 e Hermann Oppenheim conhecido neurologista publicou Cartas psicoterapêuticas em 1906 Paul Dubois 18481918 foi professor de neuropatologia em Berna e adquiriu notoriedade por seu tratamento de neuróticos mediante a persuasão 311316 SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES COORDENAÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA 1 TEXTOS PRÉPSICANALÍTICOS 18861899 2 ESTUDOS SOBRE A HISTERIA 18931895 3 PRIMEIROS ESCRITOS PSICANALÍTICOS 18931899 4 A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS 1900 5 PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA E SOBRE OS SONHOS 1901 6 TRÊS ENSAIOS DE UMA TEORIA DA SEXUALIDADE FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA O CASO DORA E OUTROS TEXTOS 19011905 7 O CHISTE E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE 1905 8 O DELÍRIO E OS SONHOS NA GRADIVA ANÁLISE DA FOBIA DE UM GAROTO DE CINCO ANOS O PEQUENO HANS E OUTROS TEXTOS 19061909 9 OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 10 OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER ARTIGOS SOBRE TÉCNICA E OUTROS TEXTOS 19111913 11 TOTEM E TABU HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO E OUTROS TEXTOS 19131914 12 INTRODUÇÃO AO NARCISISMO ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS 19141916 13 CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 14 HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 15 PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 16 O EU E O ID AUTOBIOGRAFIA E OUTROS TEXTOS 19231925 17 INIBIÇÃO SINTOMA E ANGÚSTIA O FUTURO DE UMA ILUSÃO E OUTROS TEXTOS 19261929 18 O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 313316 19 MOISÉS E O MONOTEÍSMO COMPÊNDIO DE PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19371939 20 ÍNDICES E BIBLIOGRAFIA 314316 Copyright da tradução 2013 by Paulo César Lima de Souza Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Os textos deste volume foram traduzidos de Gesammelte Werke volumes vii viii e xii Londres Imago 1941 1943 e 1947 Os títulos originais estão na página inicial de cada texto A outra edição alemã referida é Studienausgabe Frankfurt Fischer 2000 Capa e projeto gráfico warrakloureiro Preparação Célia Euvaldo Revisão Renata Lopes Del Nero Valquíria Della Pozza ISBN 9788580866490 Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz sa Rua Bandeira Paulista 702 cj 32 04532002 São Paulo sp Telefone 11 37073500 Fax 11 37073501 wwwcompanhiadasletrascombr wwwblogdacompanhiacombr Created by PDF to ePub
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SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 9 OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 9 OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SUMÁRIO ESTA EDIÇÃO OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS 1909 I HISTÓRIA CLÍNICA II CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI 1910 CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE 1910 AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPIA PSICANALÍTICA 1910 SOBRE O SENTIDO ANTITÉTICO DAS PALAVRAS PRIMITIVAS 1910 CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DO TRANSTORNO PSICOGÊNICO DA VISÃO 1910 SOBRE PSICANÁLISE SELVAGEM 1910 UM TIPO ESPECIAL DE ESCOLHA DE OBJETO FEITA PELO HOMEM CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR I 1910 SOBRE A MAIS COMUM DEPRECIAÇÃO NA VIDA AMOROSA CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR II 1912 O TABU DA VIRGINDADE CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR III 1917 TEXTOS BREVES 1910 INTRODUÇÃO E CONCLUSÃO DE UM DEBATE SOBRE O SUICÍDIO CARTA A FRIEDRICH S KRAUSS SOBRE A REVISTA ANTHROPOPHYTEIA EXEMPLOS DE COMO OS NEURÓTICOS REVELAM SUAS FANTASIAS PATOGÊNICAS RESENHA DE CARTAS A MULHERES NEURÓTICAS DE WILHELM NEUTRA 4316 ESTA EDIÇÃO Esta edição das obras completas de Sigmund Freud pretende ser a primeira em língua portuguesa traduzida do original alemão e organizada na sequência cro nológica em que apareceram originalmente os textos A afirmação de que são obras completas pede um esclarecimento Não se in cluem os textos de neurologia isto é não psicanalíticos anteriores à criação da psicanálise Isso porque o próprio autor decidiu deixálos de fora quando se fez a primeira edição completa de suas obras nas décadas de 1920 e 30 No entanto vários textos prépsicanalíticos já psicológicos serão incluídos nos dois primeir os volumes A coleção inteira será composta de vinte volumes sendo dezenove de textos e um de índices e bibliografia A edição alemã que serviu de base para esta foi Gesammelte Werke Obras completas publicada em Londres entre 1940 e 1952 Agora pertence ao catálogo da editora Fischer de Frankfurt que também recolheu num grosso volume intit ulado Nachtragsband Volume suplementar inúmeros textos menores ou inéditos que haviam sido omitidos na edição londrina Apenas alguns deles foram traduz idos para a presente edição pois muitos são de caráter apenas circunstancial A ordem cronológica adotada pode sofrer pequenas alterações no interior de um volume Os textos considerados mais importantes do período coberto pelo volume cujos títulos aparecem na página de rosto vêm em primeiro lugar Em uma ou outra ocasião são reunidos aqueles que tratam de um só tema mas não foram publicados sucessivamente é o caso dos artigos sobre a técnica psicanalít ica por exemplo Por fim os textos mais curtos são agrupados no final do volume Embora constituam a mais ampla reunião de textos de Freud os dezessete volumes dos Gesammelte Werke foram sofrivelmente editados talvez devido à penúria dos anos de guerra e de pósguerra na Europa Embora ordenados cro nologicamente não indicam sequer o ano da publicação de cada trabalho O texto em si é geralmente confiável mas sempre que possível foi cotejado com a Studienausgabe Edição de estudos publicada pela Fischer em 196975 da qual consultamos uma edição revista lançada posteriormente Tratase de onze volumes organizados por temas como a primeira coleção de obras de Freud que não incluem vários textos secundários ou de conteúdo repetido mas incor poram traduzidas para o alemão as apresentações e notas que o inglês James Strachey redigiu para a Standard edition Londres Hogarth Press 195566 O objetivo da presente edição é oferecer os textos com o máximo de fidelid ade ao original sem interpretações de comentaristas e teóricos posteriores da psicanálise que devem ser buscadas na imensa bibliografia sobre o tema Inform ações sobre a gênese de cada obra também podem ser encontradas na literatura secundária Para questionamentos de pontos específicos e do próprio conjunto da teoria freudiana o leitor deve recorrer à literatura crítica de M Macmillan A Esterson F Cioffi J Van Rillaer E Gellner e outros A ordem de publicação destas Obras completas não é a mesma daquela das primeiras edições alemãs pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para muito depois Decidiuse começar por um período intermediário e de pleno desenvolvimento das concepções de Freud em torno de 1915 e daí proceder para trás e para adiante 6316 Após o título de cada texto há apenas a referência bibliográfica da primeira publicação não a das edições subsequentes ou em outras línguas que interessam tão somente a alguns especialistas Entre parênteses se acha o ano da publicação original havendo transcorrido mais de um ano entre a redação e a publicação a data da redação aparece entre colchetes As indicações bibliográficas do autor fo ram normalmente conservadas tais como ele as redigiu isto é não foram sub stituídas por edições mais recentes das obras citadas Mas sempre é fornecido o ano da publicação que no caso de remissões do autor a seus próprios textos permite que o leitor os localize sem maior dificuldade tanto nesta como em out ras edições das obras de Freud As notas do tradutor geralmente informam sobre os termos e passagens de versão problemática para que o leitor tenha uma ideia mais precisa de seu signi ficado e para justificar em alguma medida as soluções aqui adotadas Nessas notas são reproduzidos os equivalentes achados em algumas versões estrangeiras dos textos em línguas aparentadas ao português e ao alemão Não utilizamos as duas versões das obras completas já aparecidas em português das editoras Delta e Imago pois não foram traduzidas do alemão e sim do francês e do espanhol a primeira e do inglês a segunda No tocante aos termos considerados técnicos não existe a pretensão de impor as escolhas aqui feitas como se fossem absolutas Elas apenas pareceram as menos insatisfatórias para o tradutor e os leitores e psicanalistas que empregam termos diferentes conforme suas diferentes abordagens e percepções da psicanál ise devem sentirse à vontade para conservar suas opções Ao ler essas traduções apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente instinto por pulsão instintual por pulsional repressão por recalque ou Eu por ego exemplificando No entanto essas palavras são poucas em número bem menor do que geralmente se acredita 7316 PCS OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS 1909 TÍTULO ORIGINAL BEMERKUNGEN ÜBER EINEN FALL VON ZWANGSNEUROSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM JAHRBUCH FÜR PSYCHOANALYTISCHE UND PSYCHOPATHOLOGISCHE FORSCHUNGEN ANUÁRIO DEPESQUISAS PSICANALÍTICAS E PSICOPATOLÓGICAS 1 N 2 PP 357421 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VII PP 381463 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VII PP 31103 As páginas seguintes conterão duas coisas primeiro uma comunicação frag mentária da história de um caso de neurose obsessivaa que por sua duração e consequências e numa apreciação subjetiva pode ser incluído entre aqueles de certa gravidade e cujo tratamento durando cerca de um ano obteve a princípio a recuperação plena da personalidade e o fim de suas inibições Em segundo lugar relacionadas a este e apoiadas em outros casos anteriormente analisados afirmações de natureza aforística sobre a gênese e o delicado mecanismo dos pro cessos psíquicos obsessivos que devem dar prosseguimento à minha primeira ex posição sobre o tema publicada em 18961 Tal sumário do conteúdo me parece requerer uma justificação a fim de que não pensem que considero impecável e exemplar essa forma de comunicação quando na realidade apenas levo em conta inibições de natureza externa e in terna e bem gostaria de oferecer mais se assim me fosse dado e permitido A história completa do tratamento não posso informar pois ela exigiria penetrar detalhadamente na vida do paciente A incômoda atenção de uma grande cidade dirigida muito especialmente à minha atividade médica proíbeme uma ex posição inteiramente fiel e acho cada vez mais inadequadas e reprováveis as dis torções a que se costuma recorrer nessas circunstâncias Sendo pequeninas não alcançam o fim de proteger o paciente da curiosidade indiscreta indo mais além envolvem sacrifícios demasiado grandes pois anulam a compreensão do con junto de fatores ligado justamente aos pequenos dados da vida real Desse último fato vem a situação paradoxal de que podemos antes tornar públicos os mais ínti mos segredos de um paciente pelos quais ninguém o conhece do que as mais in ofensivas e banais características de sua pessoa que são conhecidas de todos e o tornariam facilmente reconhecível Se assim justifico a severa abreviação da história da doença e do tratamento minha limitação a alguns resultados da investigação psicanalítica da neurose 10316 obsessiva terá explicação ainda mais pertinente Admito que ainda não consegui penetrar inteiramente a complicada trama de um caso difícil de neurose obses siva e que na reprodução da análise não teria como tornar visível a outros at ravés das sobreposições do tratamento essa estrutura analiticamente reconhecida ou suspeitada São as resistências dos doentes e as formas em que elas se mani festam que dificultam sobremaneira essa última tarefa Mas é preciso dizer que uma neurose obsessiva não é em si coisa fácil de compreender é bem mais difí cil do que um caso de histeria Na verdade seria de esperar o contrário Os meios de que se serve a neurose obsessiva para exprimir seus pensamentos ocultos a linguagem da neurose obsessiva são como que um dialeto da linguagem histérica mas um dialeto que nos deveria ser mais inteligível porque é mais apar entado ao nosso pensar consciente do que o histérico Ele não envolve sobre tudo o salto do psíquico para a inervação somática a conversão histérica que jamais podemos acompanhar com o nosso intelecto Talvez o fato de a realidade não confirmar a expectativa devase apenas à nossa pouca familiaridade com a neurose obsessiva Os neuróticos obsessivos de alto calibre buscam o tratamento analítico mais raramente do que os histéricos Eles também dissimulam na vida o seu estado tanto quanto possível e frequente mente vão ao médico apenas nos estágios avançados da doença tal como se so fressem de tuberculose recusariam o internamento num sanatório Faço esta comparação porque tanto nos casos leves de neurose obsessiva como naqueles graves mas combatidos a tempo podemos mostrar uma série de brilhantes su cessos terapêuticos de modo semelhante àquela doença infecciosa crônica Em tais circunstâncias não há alternativa senão relatar as coisas da maneira incompleta e imperfeita como as sabemos e podemos comunicar Os nacos de conhecimento aqui oferecidos laboriosamente obtidos podem não ser muito sat isfatórios em si mas talvez venha a juntarse a eles o trabalho de outros 11316 pesquisadores e os esforços conjuntos alcancem o que pode ser demasiado para um só indivíduo I HISTÓRIA CLÍNICA Um homem jovem de formação acadêmica apresentase afirmando que sofre de ideias obsessivas desde a infância mas há quatro anos com intensidade particular O conteúdo principal de sua doença diz ele são temores de que aconteça algo a duas pessoas que muito ama o pai e uma dama da qual é admirador Além do que sente impulsos obsessivos como cortar a garganta com uma navalha de bar bear e cria proibições relativas também a coisas insignificantes Na luta contra es sas ideias perdeu anos de sua vida e por causa disso ficou para trás Dos trata mentos que experimentou o único que o ajudou em algo foi uma hidroterapia numa instituição perto de mas isso talvez por lá haver conhecido uma mulher com quem teve relação sexual regular Aqui ele não tem oportunidade para isso suas relações são raras e a intervalos irregulares Tem aversão a prostitutas Até hoje sua vida sexual foi pobre a masturbação teve nela um papel pequeno aos dezesseis e dezessete anos de idade A potência é normal o primeiro coito su cedeu aos vinte e seis anos Ele dá a impressão de uma mente clara e aguda Quando lhe pergunto o que o faz pôr em primeiro plano as informações sobre sua vida sexual responde que é o que sabe sobre as minhas teorias Não leu realmente nenhuma de minhas obras 12316 mas recentemente deparou com a explicação de umas curiosas associações de pa lavras num livro meu2 que lhe lembraram tanto seus próprios trabalhos men tais com suas ideias que resolveu confiarse a mim a o início do tratamento Após fazêlo comprometerse no dia seguinte a observar a única condição do tratamento dizer tudo o que lhe vier à mente ainda que lhe seja desagradável ainda que lhe pareça insignificante impertinente e sem sentido e deixando ao seu alvitre o tema com que iniciará suas comunicações ele começa da seguinte forma3 Há um amigo que ele tem em altíssima conta Costuma procurálo quando se vê atormentado por um impulsob à delinquência perguntandolhe se o despreza como delinquente O amigo lhe dá ânimo asseguralhe que é um homem inatacável que desde a infância provavelmente habituouse a avaliar sua vida por esse ponto de vista Influência igual exerceu sobre ele anos atrás outro amigo um estudante que tinha dezenove anos enquanto ele tinha catorze ou quinze e que dele gostou e elevou extraordinariamente sua autoestima de forma que ele acreditouse um gênio Depois esse estudante veio a darlhe aulas partic ulares e mudou subitamente a conduta tratandoo como um imbecil Ele notou enfim que o outro se interessava por uma de suas irmãs e estabelecera relação com ele apenas para ter acesso à sua casa Esta foi a primeira comoção de sua vida Ele então prossegue abruptamente b a sexualidade infantil Minha vida sexual começou bastante cedo Lembrome de uma cena de quando tinha quatro ou cinco anos de idade a partir dos seis minha 13316 lembrança é completa que anos depois me veio claramente à memória Tín hamos uma governanta jovem e muito bela a srta Peter4 Uma noite ela lia deitada no sofá com roupas leves eu estava a seu lado e pedi que me deixasse entrar sob sua saia Ela o permitiu desde que eu não falasse a ninguém sobre isso Ela estava com pouca roupa e eu toquei nos seus genitais e no ventre que me pareceram esquisitos Desde então sinto uma curiosidade ardente dolorosa de ver o corpo feminino Ainda lembro com que tensão eu aguar dava que ao nos banharmos o que ainda podia fazer com a senhorita e min has irmãs ela se despisse e entrasse na água A partir dos seis anos lembro me de mais coisas Tínhamos então uma outra governanta também jovem e bonita que tinha abscessos nas nádegas e costumava espremêlos à noite Eu esperava por esse momento para saciar minha curiosidade A mesma coisa no banho embora a srta Lina fosse mais reservada do que a primeira Respondendo a uma pergunta Eu não dormia normalmente no seu quarto e sim no de meus pais Recordo uma cena em que eu devia ter sete anos de id ade5 Estávamos juntos uma noite eu meu irmão que é um ano e meio mais jovem a senhorita a cozinheira e uma outra garota De repente ouvi na con versa das garotas a srta Lina dizer Com o menor dá para fazer mas Paul eu é muito sem jeito não acerta Não compreendi bem o que queriam dizer mas senti o menosprezo e me pus a chorar Lina me consolou e disse que uma garota que fizera algo assim com um menino do qual cuidava havia passado vários meses na prisão Não creio que ela tenha feito algo errado comigo mas eu tomei liberdades com ela Quando ia para sua cama eu a descobria e a bolinava o que ela consentia sem nada dizer Ela não era muito inteligente e claramente tinha fortes desejos sexuais Com 23 anos já tivera um filho cujo pai veio a desposála de modo que hoje ela é uma sra Hofratc Eu ainda a vejo frequentemente na rua 14316 Já com seis anos eu sofria de ereções e lembro que certa vez fui à minha mãe e queixeime disso Tive que superar alguma hesitação para falar sobre o as sunto pois suspeitava que aquilo tinha relação com minhas ideias e minha curiosidade e durante algum tempo naquela época abriguei a ideia doentia de que meus pais sabiam de meus pensamentos e a explicação que dava a mim mesmo é que os havia falado sem ouvilos Vejo aí o começo de minha doença Havia pessoas garotas que me agradavam muito e que eu desejava ardente mente ver nuas Mas com esses desejos eu tinha uma sensação inquietante de que algo aconteceria se eu pensasse tais coisas e eu devia fazer tudo para evitálo Perguntado sobre esses temores ele diz Por exemplo que meu pai morrer ia Pensamentos sobre a morte de meu pai me ocuparam bastante cedo e por muito tempo causandome grande tristeza Nessa oportunidade fico sabendo com enorme surpresa que seu pai alvo de seus temores obsessivos atuais morreu há alguns anos O que o nosso paciente relata dos seus seis ou sete anos de idade na primeira ses são do tratamento não é apenas como ele acredita o início da doença mas a doença mesma Uma neurose obsessiva completa a que não falta nenhum ele mento essencial ao mesmo tempo núcleo e protótipo da enfermidade posterior como que o organismo elementar cujo estudo apenas ele pode nos dar a medida da complexa organização da doença atual Nós vemos a criança sob o domínio de um componente instintual sexual o prazer em olhar que resulta no desejo recorrente e cada vez mais forte de enxergar nuas pessoas do sexo femin ino que lhe agradam Esse desejo corresponde à ideia obsessiva posterior se ainda não tem caráter obsessivo isto se deve ao fato de o Eu ainda não se colocar em plena oposição a ele não percebêlo como algo alheio No entanto de alguma parte já se move uma oposição a esse desejo pois um afeto doloroso acompanha regularmente o surgimento dele6 Evidentemente há um conflito na vida psíquica 15316 do pequeno voluptuoso junto ao desejo obsessivo e intimamente ligado a ele encontrase um temor obsessivo toda vez que tem esse pensamento ele não pode deixar de temer que algo terrível deve acontecer Essa coisa terrível já se reveste de uma indeterminação característica que doravante não faltará nas manifest ações da neurose Numa criança não é difícil no entanto descobrir o que se acha oculto por essa indeterminação Podendose obter um exemplo específico para alguma das vagas generalidades da neurose obsessiva tenhase a certeza de que tal exemplo é a coisa original e autêntica mesma que devia permanecer escondida pela generalização Restaurado conforme o seu sentido o temor obsessivo é este portanto Se tenho o desejo de ver uma mulher nua meu pai vai morrer O afeto penoso adquire claramente o matiz do inquietante do supersticioso já dando origem a impulsosd de fazer algo para prevenir a desgraça impulsos que se afirmarão depois nas medidas protetorase Portanto um instinto erótico e uma revolta contra ele um desejo ainda não obsessivo e um temor já obsessivo que a ele se opõe um afeto penoso e um impulso a atos de defesa o inventário da neurose está completo E há outra coisa mais uma espécie de delírio ou ilusão de conteúdo especial os pais saberiam dos seus pensamentos porque ele os enuncia sem que os escute Dificilmente nos en ganaremos ao perceber nessa tentativa de explicação infantil um pressentimento daqueles notáveis processos psíquicos a que chamamos de inconscientes e de que não podemos prescindir para esclarecer cientificamente essa obscura questão Expresso meus pensamentos sem ouvilos isto soa como uma projeção para o exterior de nossa suposição de que ele tem pensamentos sem saber algo deles como uma percepção endopsíquica do reprimido Claramente notamos que essa elementar neurose infantil já envolve um prob lema e um aparente absurdo como toda neurose complicada de adulto Qual o sentido da afirmação de que o pai vai morrer se o filho tiver aquele desejo 16316 voluptuoso Isso é puro disparate ou há formas de compreender essa afirmação de vêla como resultado de processos e pressupostos anteriores Se aplicamos a este caso de neurose infantil conhecimentos obtidos em outro âmbito temos de supor que também aqui ou seja antes do sexto ano de vida aconteceram vivências conflitos e repressões que sucumbiram eles próprios à amnésia mas deixaram para trás como resíduo esse conteúdo de temor obsess ivo Depois saberemos até que ponto nos é possível redescobrir ou construir com alguma certeza essas vivências esquecidas Enquanto isso devemos enfatizar como provavelmente mais do que simples coincidência que a amnésia infantil do nosso paciente chega ao fim no sexto ano de idade precisamente De muitos outros casos conheço uma neurose obsessiva crônica que tem iní cio na primeira infância com tais desejos lascivos a que se acham ligadas expect ativas inquietantes e tendência a atos defensivos É absolutamente típico embora provavelmente não seja o único tipo possível Direi ainda algo sobre as vivências sexuais precoces do analisando antes de passarmos ao conteúdo da segunda ses são Dificilmente não se poderá caracterizálas como particularmente substanciais e ricas de consequências Mas assim é também nos outros casos de neurose obses siva que pude analisar Ao contrário da histeria nela sempre se acha a caracter ística da atividade sexual prematura A neurose obsessiva leva a perceber muito mais claramente que a histeria que os fatores constitutivos da psiconeurose de vem ser buscados na vida sexual infantil não na atual A vida sexual dos neuróti cos obsessivos pode parecer inteiramente normal ao pesquisador superficial ela oferece com frequência muito menos fatores patogênicos e anormalidades que a do nosso paciente c o grande medo obsessivo 17316 Acho que começarei hoje pela vivência que foi para mim o motivo direto para procurálo Aconteceu em agosto durante os exercícios militares em Eu vinha sofrendo antes atormentavame com pensamentos obsessivos de toda espécie mas que pararam após o começo dos exercícios Tinha interesse em mostrar aos oficiais regulares que nós não só aprendíamos alguma coisa mas podíamos aguentar alguma coisa Um dia fizemos uma pequena marcha partindo de No descanso perdi meu pincenê Embora pudesse têlo encon trado sem dificuldade não quis adiar o prosseguimento da marcha e renunciei a ele telegrafando a meu óptico em Viena para que me enviasse um novo No mesmo descanso tomei lugar entre dois oficiais um dos quais um capitão de sobrenome tcheco viria a ter importância para mim Eu tinha um certo medo desse homem pois evidentemente ele gostava de crueldades Não digo que fosse ruim mas durante a refeição dos oficiais havia defendido a introdução do castigo corporal e eu o havia contestado energicamente Naquele inter valo então pusemonos a conversar e o capitão falou de um castigo particu larmente horrível que se usa no Oriente sobre o qual havia lido Aqui ele se interrompe levantase e me pede para dispensálo da descrição dos detalhes Eu lhe asseguro que não tenho inclinação alguma para a crueldade que certamente não desejo atormentálo mas que naturalmente não posso concederlhe algo que não está em meu poder Seria digamos como se ele me pedisse que lhe presenteasse um cometa A superação de resistências disselhe é um imperativo do tratamento a que não podemos nos furtar O conceito de res istência eu lhe havia explicado no início da sessão quando ele afirmou que tinha muita coisa a superar dentro de si para relatar aquela vivência Mas eu tudo faria continuei para adivinhar o sentido completo de algo que ele apenas insinu asse Ele estava se referindo à empalação Não não é isso o condenado é am arrado ele expressouse de modo tão pouco claro que não pude entender 18316 logo em qual posição sobre o seu traseiro colocam um recipiente virado contendo ratos que ele novamente se ergueu e mostrava todos os sinais de horror e resistência perfuravam O ânus completei Nos momentos mais importantes da narrativa percebese nele uma expressão facial muito peculiar que posso entender apenas como de horror ante um prazer seu que ele próprio desconhecia Ele prossegue com bastante dificuldade Naquele momento estremeci com a ideia de que aquilo sucedia a uma pessoa cara para mim7 Perguntado diretamente ele diz não ser ele próprio que executa o castigo e que este é executado impessoalmente Após refletir por um instante sei que a ideia diz respeito à mulher por ele adorada Ele interrompe a narrativa para me assegurar que tais pensamentos lhe são es tranhos e desagradáveis e que tudo a eles vinculado passa dentro dele com ex traordinária rapidez Simultaneamente à ideia há também a sanção isto é a medida defensiva que é obrigado a tomar para que a fantasia não se realize Quando o capitão falou daquele castigo terrível e lhe vieram tais ideias ele conseguiu defenderse de ambos com suas fórmulas habituais com um mas as sociado a um gesto de repulsa da mão e com a frase Que coisa me vem à cabeça O plural me surpreendeu assim como terá ficado incompreensível para o leit or Pois até agora soubemos de apenas uma ideia a de que o castigo dos ratos seria executado na mulher Nesse momento ele confessa que ao mesmo tempo lhe ocorreu outra a de que a punição atinge também seu pai Como este já morreu há muitos anos esse temor obsessivo é ainda mais absurdo que o primeiro e tentou escapar à confissão ainda por algum tempo Na noite seguinte o mesmo capitão entregoulhe um pacote que chegara pelo correio e disse O primeirotenente A8 pagou o reembolso você deve darlhe o dinheiro No embrulho estava o pincenê encomendado por telégrafo Mas 19316 naquele instante formouse nele uma sanção Não dar o dinheiro senão aconte ceria isto é a fantasia dos ratos se concretizaria no pai e na mulher E segundo um modelo que já conhecia imediatamente surgiu para combater esta sanção uma ordem que era como um juramento Você tem que pagar as 380 coroas ao primeirotenente A que ele quase falou a meiavoz para si mesmo Dois dias depois tiveram fim os exercícios militares Ele gastou esse tempo com esforços para devolver a pequena soma ao primeirotenente A mas di ficuldades de natureza aparentemente objetiva ergueramse contra isso Inicial mente ele tentou fazer o pagamento através de outro oficial que ia à agência do correio mas alegrouse quando este lhe trouxe de volta o dinheiro com a ex plicação de que não havia encontrado o primeirotenente A no correio pois tal forma de cumprir o juramento não o satisfazia não correspondendo ao sentido literal de Você tem que pagar o dinheiro ao primeirotenente A Por fim en controu o oficial que buscava mas este recusou o dinheiro com a afirmação de que não pagara nada a ele de que nem era encarregado do correio mas sim o primeirotenente B Ele ficou atônito por não poder cumprir seu juramento fundado numa premissa falsa e arquitetou um singular expediente Ele iria com os senhores A e B ao correio onde A daria 380 coroas à funcionária esta os daria a B e ele conforme o juramento pagaria as 380 coroas a A Não me surpreenderei se a compreensão dos leitores falhar neste ponto pois também a exposição detalhada que o paciente me fez dos eventos exteriores e de suas reações a eles tinha contradições internas e soava irremediavelmente con fusa Apenas na terceira narração pude leválo a compreender essas obscuridades revelando os equívocos de memória e os deslocamentos em que ele havia incor rido Não reproduzirei esses detalhes dos quais logo teremos o essencial e direi apenas que no final desta segunda sessão ele se comportava como se estivesse at ordoado e confuso Chamavame de capitão provavelmente porque no início 20316 eu afirmara não ser cruel como o capitão M e não abrigar a intenção de atormentálo gratuitamente Nessa sessão a única informação que ainda obtive dele foi que desde o início em todos os seus temores de que algo acontecesse às pessoas que amava havia situado esses castigos não apenas na vida atual mas também na eternidade no além Até os catorze ou quinze anos ele fora conscienciosamente religioso depois evoluindo gradualmente para o seu livrepensar de agora Resolvia a contradição entre o que pensava e suas obsessões dizendo a si mesmo Que sabe você da vida no além Que sabem os outros Não se pode saber nada realmente você não está arriscando nada então faça isto Esse homem de intelecto normal mente agudo acha este raciocínio impecável e assim utiliza a incerteza da razão nesse ponto em favor da superada concepção religiosa do mundo Na terceira sessão ele termina a narração bastante característica de seus esforços para cumprir o juramento obsessivo À noite houve o último encontro dos ofici ais antes do encerramento das manobras Coubelhe agradecer após o brinde aos senhores reservistas Ele falou bem mas como um sonâmbulo pois no fundo o atormentava sempre aquele juramento Passou uma noite horrível argu mentos e contraargumentos lutavam entre si o principal era naturalmente que a premissa do seu juramento de que o primeirotenente A fizera o pagamento para ele não correspondia aos fatos Mas ele consolouse com a ideia de que aquilo não havia passado de que A os acompanharia até certo ponto na marcha à estação ferroviária de P na manhã seguinte e ele teria tempo de falarlhe acerca do obséquio Não o fez deixou que A seguisse e encarregou seu ajudante de anunciarlhe sua visita à tarde Ele próprio chegou à estação às nove e meia da manhã deixou depositada a sua bagagem e providenciou várias coisas na pequena cidade com a intenção de depois visitar A A aldeia em que estava 21316 acantonado A ficava aproximadamente a uma hora de coche da cidade de P A viagem de trem até o local da agência de correio levaria três horas então ele achou que daria justamente para chegar a Viena com o trem vespertino de P ex ecutando o seu complicado plano As ideias que se entrechocavam eram por um lado tratavase de uma covardia dele que evidentemente queria apenas poupar se o incômodo de pedir a A este sacrifício e parecerlhe um tolo e por isso ig norava o próprio juramento por outro lado era o oposto de uma covardia cumprir o juramento pois com isso ele apenas queria ser deixado em paz por suas obsessões Quando numa reflexão os argumentos se contrabalançavam de tal modo diz ele habitualmente deixavase levar por eventos casuais como se estes fossem decisões divinas Por isso quando um carregador lhe perguntou na es tação Vai pegar o trem das dez horas sr tenente respondeu que sim e partiu às dez criando um fait accompli fato consumado que muito o aliviou Com o funcionário do vagãorestaurante reservou um lugar à mesa Na primeira estação ocorreulhe subitamente que podia descer esperar pelo primeiro trem na direção oposta e ir a P e onde estava o primeirotenente A fazer com este o trajeto de três horas até a agência do correio etc Apenas a consideração de que havia feito reserva com o garçom o impediu de executar esse propósito mas não o abandon ou apenas adiou a descida Desse modo arrastouse de uma estação a outra até chegar a uma em que lhe pareceu impossível descer porque ali tinha parentes e resolveu ir até Viena e lá procurar seu amigo exporlhe a questão e conforme a decisão dele retornar ainda a P com o trem noturno Respondendo à minha dúvida de que isso fosse factível ele garantiu ter uma meia hora livre entre a chegada de um trem e a partida do outro Uma vez em Viena não encontrou o amigo no restaurante onde pensava encontrálo chegou somente às onze horas ao seu apartamento e expôslhe o problema ainda naquela noite O amigo ficou pasmo de que ele ainda duvidasse que era uma obsessão tranquilizouo por 22316 aquela noite de forma que ele dormiu muito bem e na manhã seguinte o acom panhou ao correio para remeter as 380 coroas à agência de correio onde havia chegado o pacote do pincenê Essa última informação deume o ponto de partida para desemaranhar as dis torções de sua narrativa Quando chamado à razão pelo amigo não enviou a pequena soma ao primeirotenente A nem ao primeirotenente B mas direta mente à agência de correio ele devia saber já quando partiu que não estava de vendo a taxa de remessa a outra pessoa que não o funcionário do correio Verificou se de fato que ele já o sabia antes da advertência do capitão e de seu juramento pois agora se lembrava de que algumas horas antes de encontrar o capitão cruel tivera oportunidade de apresentarse a outro capitão que o informara da ver dadeira situação Este oficial lhe contara ao ouvir seu nome que havia estado na agência do correio e a funcionária lhe perguntara se conhecia um tenente H o nome de nosso paciente Ele respondeu que não mas a senhorita afirmou que confiava no tenente desconhecido e desembolsaria ela mesma o valor da taxa Assim chegou ao paciente o pincenê encomendado O capitão cruel cometeu um erro ao lhe entregar o pacote dizendo que ele reembolsasse a A as 380 coroas Nosso paciente devia saber que se tratava de um erro Mas fez com base nesse erro o juramento que se transformaria num tormento Ele omitiu para si próprio e depois para mim ao fazer o relato o episódio do outro capitão e a existência da confiante funcionária do correio Admito que após essa retificação sua conduta parece ainda mais insensata e incompreensível do que antes Depois que deixou seu amigo e voltou para sua família as dúvidas o acomet eram de novo Os argumentos do amigo afinal haviam sido os mesmos argu mentos seus e ele via muito bem que a temporária tranquilização era devida à in fluência pessoal do amigo A decisão de procurar um médico foi habilmente in tegrada ao delírio da seguinte forma Ele solicitaria a um médico o atestado de 23316 que para sua recuperação necessitava fazer atos como o que planejava fazer com o primeirotenente A e o atestado certamente levaria este a aceitar dele as 380 coroas A casualidade de que um livro meu lhe caíra nas mãos fez sua escolha in cidir sobre mim Mas comigo não falou daquele atestado pediu apenas muito ra zoavelmente que o livrasse de suas ideias obsessivas Meses depois no auge da resistência surgiu de novo a tentação de ir a P procurar o primeirotenente A e representar com ele a comédia da restituição do dinheiro d introdução à compreensão do tratamento Não espere o leitor que eu lhe apresente logo minha explicação para essas ideias obsessivas particularmente absurdas com os ratos a técnica psicanalítica correta solicita que o médico refreie sua curiosidade e deixe o paciente livre para escolher a ordem dos temas durante o trabalho Portanto dei início à quarta sessão com esta pergunta Como vai prosseguir hoje Decidi lhe comunicar o que me parece muito significativo e me atormenta desde o princípio Ele agora conta detalhadamente a história clínica de seu pai que morreu de enfisema há nove anos Uma noite achando que se tratava de uma crise perguntou ao médico quando poderia não haver mais perigo A resposta foi Amanhã à noite Não lhe ocorreu que o pai poderia não sobreviver a esse prazo Deitouse às onze e meia para dormir durante uma hora e quando acor dou à uma da madrugada um amigo médico lhe disse que seu pai havia morrido Recriminouse por não estar presente na morte mais ainda quando a enfermeira lhe disse que nos últimos dias o pai pronunciara seu nome e perguntara quando ela se aproximou dele É Paul Ele acreditou notar que a mãe e as irmãs recriminavamse de forma semelhante mas não falavam disso De início porém a recriminação não era dolorosa durante algum tempo não se deu conta da morte do pai aconteceulhe algumas vezes pensar ao ouvir uma boa piada Essa tenho 24316 de contar a meu pai Também sua imaginação lidava com o pai de modo que frequentemente quando alguém batia na porta ele pensava É meu pai quando entrava num aposento esperava encontrar ali o pai e embora nunca es quecesse o fato de sua morte a expectativa do aparecimento daquele fantasma não era acompanhada de medo mas sim de desejo Apenas um ano e meio depois lhe veio a lembrança de sua negligência e começou a torturálo horrivelmente de modo que ele viu a si mesmo como um criminoso A ocasião para isso foi a morte de uma tia mulher de um tio e seu comparecimento ao velório A partir de então ele incluiu em suas construções mentais o prosseguimento no além A con sequência imediata desse ataque foi uma séria incapacitação para o trabalho9 Como ele relata que apenas as palavras de consolo do amigo o haviam sustentado que este sempre rejeitava essas recriminações como extremamente exageradas aproveito a ocasião para darlhe uma primeira visão dos pressupostos da terapia psicanalítica Quando há uma disparidade entre conteúdo ideativo e afeto ou seja entre o grau da recriminação e o ensejo para ela um leigo diria que o afeto é demasiado grande para o ensejo isto é exagerado e a inferência tirada da recriminação a de ser um criminoso é falsa portanto Já o médico diz Não o afeto é justificado a consciência de culpa não deve ser criticada mas ligase a outro conteúdo que não é conhecido inconsciente e que deve antes ser procurado O conteúdo ideativo conhecido chegou a esse lugar devido a um nexo errado Mas não estamos habituados a ver em nós afetos poderosos sem conteúdo ideativo e por isso na falta de conteúdo tomamos algum outro aceitável como substituto mais ou menos como nossa polícia não conseguindo achar o ver dadeiro assassino prende outro em seu lugar O fato da conexão errada também explica a impotência do lavor da lógica para combater a ideia penosa Concluo então admitindo que essa nova concepção resulta inicialmente em grandes 25316 problemas pois como justificaria ele sua recriminação de ser um criminoso se sabia que na realidade não cometera nenhum crime contra o pai Ele mostra na sessão seguinte grande interesse pelo que digo mas não deixa de explicitar algumas dúvidas Como poderia ter efeito curativo a informação de que a recriminação a consciência de culpa é justificada Não é esta inform ação que tem esse efeito mas a descoberta do teor desconhecido a que se liga a repreensão Sim sua pergunta diz respeito a isso justamente Para ilustrar minhas breves observações sobre as diferenças psicológicas entre o consciente e o in consciente sobre o desgaste a que se acha submetido tudo o que é consciente en quanto o inconsciente é relativamente imutável indico as antiguidades expostas em minha sala São objetos que foram desenterrados o sepultamento significou para eles a conservação Pompeia sucumbe apenas agora depois que foi descoberta Ele pergunta então se há alguma garantia de como a pessoa se comportará em relação ao achado Uma pessoa ele acredita vai agir de modo a superar a recriminação mas outra não Não é da própria natureza da situ ação que toda vez o afeto seja superado geralmente já durante o trabalho analítico Há o esforço para conservar Pompeia e o desejo de livrarse abso lutamente de tais ideias penosas Ele acha que uma recriminação pode resultar apenas da violação das leis morais íntimas não das externas Eu confirmo que alguém que infringe apenas estas vêse frequentemente como um herói Tal evento ele continua é possível apenas numa desagregação da personalidade presente já no início Ele conseguirá reaver a unidade de sua personalidade Nesse caso acredita ser capaz de realizar muitas coisas talvez mais do que out ros Respondo que estou de acordo com essa teoria da cisão da personalid ade que ele apenas deve fundir essa nova oposição entre a pessoa moral e o mal com a oposição anterior entre consciente e inconsciente A pessoa moral seria o consciente o mal o inconsciente10 Ele bem se recorda que embora se 26316 achando uma pessoa moral certamente fez coisas em sua infância que emanaram da outra pessoa Acho que ele teria descoberto aí incidentalmente uma característicamor do inconsciente a relação com o infantil O inconsciente seria o infantil mais exatamente aquela parte da pessoa que então se separou dela não acompanhou o desenvolvimento posterior e por isso foi reprimida Os derivados desse inconsciente reprimido seriam os elementos responsáveis pelo pensar invol untário em que consiste o seu sofrimento Ele poderia digo eu descobrir mais uma característica do inconsciente prefiro que ele mesmo o faça De imediato não tem o que dizer expressa a dúvida de que seja possível desfazer mudanças há tanto existentes O que se faria em especial contra a sua ideia do Além que não pode ser logicamente refutada Eu não contesto a gravidade do seu caso e a importância de suas construções mas digo que sua idade o favorece bastante assim como a natureza intacta de sua personalidade e nisso expresso um bom juízo a seu respeito o que visivelmente o alegra Ele começa a sessão seguinte dizendo que tem de contar algo acontecido na in fância Aos sete anos tinha como já disse medo de que os pais lhe adivinhassem os pensamentos e isto continuou depois em sua vida Aos doze anos amava uma garota irmã de um amigo respondendo a uma pergunta minha não sensual mente não queria vêla nua era muito pequena que porém não tinha com ele a ternura que esperava Então lhe veio a ideia de que ela seria amorosa se lhe acontecesse um infortúnio e tal seria inevitavelmente pensou a morte do pai De imediato rechaçou energicamente essa ideia também agora rejeita a possibil idade de que um desejo estaria se expressando ali Foi apenas uma ligação de pensamentos11 Eu faço uma objeção se não era um desejo por que rejeitar isso Apenas devido ao conteúdo da ideia de que o pai poderia morrer Eu digo que ele trata essas palavras como se fossem uma expressão de lesa 27316 majestade em que notoriamente é punido tanto quem diz O Imperador é um asno quanto quem assim disfarça esses termos proibidos Se alguém disser que terá de se haver comigo Eu poderia sem dificuldade inserir o conteúdo ideativo que ele rejeita num contexto que excluiria tal rejeição por exemplo Se meu pai morrer eu me mato sobre seu túmulo Ele fica abalado mas sem de sistir de contradizerme de modo que interrompo a disputa com a observação de que a ideia da morte do pai não surgiu nesse caso pela primeira vez evidente mente procedia de antes e teríamos que rastrear sua origem Ele conta que um pensamento igual também lhe atravessara a mente seis meses antes da morte do pai Já estava apaixonado por aquela senhora12 mas não podia pensar numa relação devido a obstáculos materiais A ideia foi então Com a morte do pai ele talvez se tornasse rico de forma a poder esposála Defendendose dela foi ao ponto de desejar que o pai não deixasse herança nenhuma para que nenhuma vantagem compensasse uma perda tão horrível para ele A mesma ideia surgiu uma terceira vez bastante atenuada no dia anterior à morte do pai Ele pensou Agora posso perder meu ente mais querido e logo veio a reação Não há outra pessoa cuja perda me seria ainda mais dolorosa13 Ele se admira muito com esses pensamen tos pois tem certeza de que a morte do pai nunca poderia ter sido objeto de seu desejo apenas de temor Após essas palavras exprimidas intensamente por ele acho oportuno apresentarlhe mais um pouco da teoria Segundo ela digo lhe esse medo corresponde a um desejo antigo agora reprimido de modo que devemos supor justamente o contrário do que ele assevera Isso também se har moniza com a reivindicação de que o inconsciente seria o exato oposto do con sciente Ele fica agitado não acredita e se admira de que tal desejo tenha sido possível com ele para quem o pai foi o mais querido dos seres Não tem dúvida de que teria renunciado a toda felicidade pessoal se com isso pudesse salvar a vida do pai Eu respondo que justamente esse amor intenso é condição para o 28316 ódio reprimido No caso de pessoas que lhe são indiferentes ele não terá di ficuldade em manter lado a lado os motivos para uma afeição moderada e uma aversão idem se ele for um funcionário digamos e pensar que seu chefe é um superior simpático mas um jurista estreito e um juiz desumano Algo semel hante o Brutus de Shakespeare fala de César Como César me amava eu o pranteio como era afortunado alegrome como era valente rendolhe hom enagem mas como era ambicioso eu o matei Júlio César iii 2 Esta fala já nos parece estranha porque imaginávamos mais forte a afeição de Brutus por César No caso de uma pessoa mais próxima sua esposa digamos ele se empenhará em ter um sentimento homogêneo e por isso como fazem universal mente os seres humanos relevará os defeitos que poderiam provocar sua aversão deixará de enxergálos como que enceguecido Logo justamente o grande amor não admite que o ódio assim designado caricaturalmente que deve ter alguma fonte permaneça consciente De onde vem esse ódio é um problema sem dúvida suas próprias declarações indicariam a época em que ele temeu que os pais adivinhassem seus pensamentos Por outro lado é possível também pergun tar por que o grande amor não foi capaz de eliminar o ódio como habitualmente sucede quando há duas emoções opostas Podese apenas supor que o ódio esteja ligado a uma fonte um motivo que o torne indestrutível Logo tal nexo impede por um lado o desaparecimento do ódio ao pai e por outro não deixa que se torne consciente o grande amor a ele de modo que só lhe resta a existência no in consciente do qual pode emergir subitamente em alguns instantes Ele concede que tudo isto soa bem plausível mas naturalmente não dá mostra de estar convencido14 Como se explicaria deseja saber que uma tal ideia faça in tervalos vindo por um instante aos doze anos depois novamente aos vinte e uma vez mais dois anos depois persistindo desde então Ele não pode acreditar que naquelas pausas a hostilidade se extinguisse e no entanto nelas não houve 29316 recriminações Ao que respondo Quando alguém faz uma pergunta assim já tem pronta a resposta Basta deixar que prossiga falando Ele então continua apar entemente sem nexo com o que falava Havia sido o melhor amigo do pai como este havia sido o dele tirando umas poucas áreas em que os dois costumavam di vergir a que estará se referindo a intimidade entre eles foi maior do que a que tem hoje com seu melhor amigo Tinha certamente amado aquela senhora pela qual relegara o pai a segundo plano em sua mente mas desejos propriamente sen suais como os que povoaram sua infância não surgiram em relação a ela seus impulsos sensuais haviam sido bem mais fortes na infância do que na puberdade Digo então que ele deu a resposta que esperávamos e ao mesmo tempo de parou com a terceira grande característica do inconsciente A fonte da qual a hos tilidade ao pai tira sua indestrutibilidade é evidentemente da natureza de apetites sensuais e nisso ele percebeu o pai como um estorvo de algum modo Tal conflito entre sensualidade e amor infantil é absolutamente típico acrescento Nele houve intervalos porque devido à precoce explosão de sua sensualidade de imediato verificouse nela um considerável amortecimento Apenas quando nele nova mente surgiram desejos amorosos intensos é que essa hostilidade reapareceu a partir de situação análoga Atendendo a uma solicitação minha ele confirma que não o guiei para o tema da infância nem para o da sexualidade que chegou aos dois por conta própria Ele então pergunta por que quando estava apaixon ado pela dama ele simplesmente não resolveu que o fato de o pai estorvar essa paixão não podia pesar contra seu amor a ele Eu respondo que é muito difícil matar alguém in absentia Tal decisão seria possível apenas se o desejo reprovado lhe ocorresse então pela primeira vez mas era um desejo há muito reprimido ante o qual ele não podia comportarse de modo diferente de antes e que por isso ficou imune à destruição O desejo de eliminar o pai como sendo um estorvo devia ter se originado num tempo em que a situação era muito diferente em que 30316 talvez não amasse o pai mais do que a pessoa desejada sensualmente ou em que não fosse capaz de uma clara decisão isto é cedo na infância antes dos seis anos de idade antes que sua memória se tornasse contínua e isto permaneceu assim para sempre Com essa construção termina provisoriamente a discussão No encontro seguinte o sétimo ele aborda de novo esse tema Diz não poder acreditar que jamais tenha tido esse desejo em relação ao pai Lembrase de uma novela de Sudermannf que o impressionou bastante na qual uma mulher junto ao leito de morte da irmã sente esse desejo de morte em relação a ela a fim de poder casar com o seu marido E então se mata porque não merece viver após tal baixeza Ele entende isso e acharia justo se morresse devido a seus pensamentos pois não mereceria outra coisa15 Faço a observação de que sabemos que a doença traz alguma satisfação aos doentes de modo que todos eles se recusam parcial mente a restabelecerse Ele deve ter presente que um tratamento como o nosso se realiza sob contínua resistência sempre voltarei a lembrarlhe disso Ele agora quer falar de um ato delinquente em que não se reconhece mas do qual decididamente se recorda Cita uma frase de Nietzsche Eu fiz isso diz minha memória eu não posso ter feito isso diz meu orgulho e permanece in flexível Por fim a memória cede16 Nisso minha memória não cedeu Justamente porque você para castigar a si mesmo tira prazer de suas recriminações Com meu irmão menor sou realmente bom com ele agora está me pre ocupando muito quer fazer um casamento que considero absurdo já me ocorreu ir até lá e assassinar a mulher para que ele não case com ela com meu irmão briguei muito quando criança Ao mesmo tempo nos gostávamos muito éramos inseparáveis mas obviamente eu tinha ciúmes pois ele era o mais forte o mais bonito e portanto o mais querido 31316 Você já relatou uma destas cenas de ciúme com a srta Lina Sim e após uma ocasião dessas certamente antes dos oito anos de idade pois eu ainda não frequentava a escola onde entrei aos oito anos eu fiz o seguinte Nós tínhamos espingardas de brinquedo do tipo conhecido Eu car reguei a minha com a vareta e disse a ele para olhar dentro do cano que veria algo e quando olhou apertei o gatilho Ele foi atingido na testa e não teve nada mas havia sido minha intenção machucálo Depois fiquei inteiramente fora de mim lanceime ao chão e perguntei a mim mesmo como podia ter feito aquilo Mas o fiz Aproveito a oportunidade para defender minha causa Se ele conservou na memória um ato assim estranho a ele próprio não pode contestar a possibilidade de numa época anterior ter feito algo semelhante contra o pai algo de que não mais se lembra Ele está cônscio de outros impulsos vingativos contra a mulh er que tanto venera de cujo caráter faz uma descrição entusiasmada Ela talvez não ame facilmente ela se poupa inteiramente para aquele a quem pertencerá ela não o ama Quando ficou certo disso formou a fantasia consciente de que se tor nará muito rico esposará outra e fará com ela uma visita à mulher em questão a fim de aborrecêla Mas a fantasia fracassou pois ele teve de admitir para si mesmo que a outra a esposa eralhe indiferente seus pensamentos tornaramse confusos e afinal viu que essa outra deveria morrer Também nessa fantasia ele encontra como no ataque ao irmão a característica da covardia para ele exec rável17 No prosseguimento da conversa enfatizo que logicamente ele não deve considerarse responsável por todos esses traços característicos pois todos esses impulsos reprováveis procedem da infância correspondem aos derivados do caráter infantil que subsistem no inconsciente e ele bem sabe que a responsab ilidade ética não tem validez para a criança Apenas no curso do desenvolvi mento a partir da soma das predisposições da criança surge o indivíduo 32316 responsável eticamente18 Mas ele duvida que todos os seus impulsos maus ten ham essa origem Eu prometo demonstrar isso no curso do tratamento Ele ainda acrescenta que sua enfermidade piorou muito desde a morte do pai e doulhe razão na medida em que reconheço no luto pelo pai a principal fonte da intensidade da doença O luto como que achou na doença uma expressão patológica Enquanto um luto normal toma de um a dois anos um patológico como o seu tem duração indefinida Isso é quanto posso relatar desse caso clínico em detalhes e de forma consecutiva Corresponde aproximadamente à exposição do tratamento que durou pouco mais de onze meses e algumas ideias obsessivas e sua tradução Sabese que as ideias obsessivas parecem desprovidas de motivo ou de sentido exatamente como o teor de nossos sonhos noturnos e o problema imediato que nos colocam é darlhes sentido e lugar na vida psíquica do indivíduo de modo que venham a se tornar compreensíveis e até mesmo óbvias Nesse problema que é traduzilas não devemos jamais nos iludir com sua aparente insolubilidade as ideias obsessivas mais loucas e extravagantes podem ser esclarecidas se investi gadas adequadamente Chegamos a este esclarecimento porém situandoas em relação temporal com as vivências do paciente ou seja ao pesquisar quando sur giu primeiramente uma ideia obsessiva particular e em que circunstâncias extern as costuma se repetir Tratandose de ideias obsessivas que como frequente mente sucede não alcançaram existência duradoura o trabalho de investigação simplificase de modo correspondente Podemos facilmente convencernos de que após desvendar o nexo entre a ideia obsessiva e as vivências do paciente não nos será difícil ganhar compreensão de tudo o mais que houver de enigmático e 33316 digno de conhecimento na formação patológica sua significação o mecanismo de sua gênese sua derivação das forças instintuais psíquicas decisivas Começo com um exemplo bem claro do impulso de suicídio frequente em nosso paciente que na exposição quase se analisa por si próprio Ele perdeu algu mas semanas de estudo por causa da ausência de sua dama que viajara a fim de cuidar da avó doente Enquanto estava imerso no estudo ocorreulhe Podese admitir a ordem de fazer os exames do semestre na primeira oportunidade Mas se viesse a ordem de cortar a garganta com a navalha De imediato percebeu que esta ordem já fora dada correu para o armário a fim de pegar a navalha e então lhe ocorreu Não não é tão simples Você deve19 ir lá e matar a velha Então caiu no chão horrorizado A relação dessa ideia obsessiva com a vida do paciente já se acha no princí pio do relato Sua dama estava ausente enquanto ele estudava duramente para um exame a fim de apressar a união com ela Então o acometeu durante o estudo a saudade da amada ausente e pensou no motivo de sua ausência E veio lhe algo que numa pessoa normal teria sido apenas um aborrecimento em re lação à avó A velha tinha de ficar doente logo agora quando sinto tanta falta dela Algo semelhante mas muito mais forte devemos supor em nosso pa ciente um inconsciente ataque de fúria que com a saudade poderia exprimirse na exclamação Ah como eu gostaria de ir lá e matar essa velha que me afasta de meu amor Ao que se segue a ordem Mate a si mesmo como punição por tais desejos raivosos e homicidas e todo o processo vai à consciência do obsessivo acompanhado pelo mais veemente afeto em ordem inversa a ordem de punição antes e no fim a menção do desejo condenável Não creio que essa tentativa de explicação pareça forçada ou incorpore muitos elementos hipotéticos Um outro impulso mais duradouro de suicídio indireto digamos não foi de explicação tão fácil porque pôde esconder seu nexo com a experiência atrás de 34316 uma das associações externas que parecem repugnantes à nossa consciência Um dia numa estação de veraneio achou que estava muito gordo dick em alemão que precisava emagrecer Ele começou a levantarse da mesa antes do pudim cor rendo pela rua sem chapéu no sol de agosto e subindo a montanha em passo rápido até que tinha de parar coberto de suor A intenção de suicídio por trás dessa mania de emagrecer apareceu abertamente uma vez quando à beira de uma escarpa surgiu o imperativo de que pulasse o que certamente acarretaria a morte A explicação para este absurdo ato obsessivo lhe ocorreu apenas quando lembrou de repente que naquela época a sua amada também se encontrava na estação de férias mas acompanhada de um primo inglês que se desdobrava em zelos por ela e do qual ele sentia muito ciúme O nome do primo era Richard e como é costume na Inglaterra chamavamno Dick Ele queria matar esse Dick tinha muito mais raiva e ciúme dele do que podia confessar a si mesmo e por causa disso impôsse como autopunição a dor daquele tratamento de emagrecer Embora este impulso obsessivo pareça diferente da ordem de suicídio anterior um traço significativo é comum aos dois o surgimento como reação a uma raiva enorme inapreensível à consciência a alguém que aparece para atrapalhar seu amor20 Outras ideias obsessivas de novo relacionadas à amada deixam perceber out ros mecanismos e outra origem instintual Na época em que sua dama estava presente na estação de veraneio ele produziu além da mania de emagrecer toda uma série de atividades obsessivas que diziam respeito a ela ao menos em parte Certa vez quando estava com ela num barco e um vento forte soprou teve de obrigála a pôr seu boné porque em sua mente formouse o imperativo de que nada podia acontecer à amada21 Era uma espécie de obsessão protetora que tam bém deu outros frutos Em outro momento encontrandose junto a ela numa tempestade teve a obsessão de contar até quarenta ou cinquenta entre o 35316 relâmpago e o trovão não compreendia por quê No dia em que ela partiu topou com uma pedra no meio da estrada e teve de afastála para o lado pois em algu mas horas o veículo em que ela estava passaria ali e talvez a pedra o danificasse mas minutos depois achou que isso era absurdo e teve de voltar e colocar a pedra no mesmo lugar Depois que ela partiu foi tomado de uma obsessão de com preender que o tornou insuportável para todos Obrigavase a compreender exata mente cada sílaba que alguém lhe falava como se lhe escapasse um tesouro se não o fizesse Então perguntava sempre O que você falou agora e quando a pessoa o repetia para ele achava que da primeira vez fora diferente e ficava insatisfeito Todos esses produtos da doença ligavamse a um episódio que então domin ava sua relação com a amada Quando antes das férias de verão despediuse dela em Viena interpretou uma de suas frases como se ela quisesse repudiálo ante as pessoas presentes e ficou bastante infeliz Na estação de veraneio houve opor tunidade para discutir isso e ela pôde então provar que com aquelas palavras malentendidas por ele quisera antes protegêlo do ridículo Ele ficou novamente bastante feliz A mais clara alusão a este incidente estava na obsessão de com preender que se acha formada como se ele dissesse a si próprio Depois disso você não pode novamente entender mal alguém se quiser evitar um sofrimento inútil Mas essa intenção não foi apenas generalizada a partir daquela ocasião foi também talvez devido à ausência da amada deslocada de sua pessoa alta mente estimada para todas as outras de menor valor A obsessão também não pode ter se originado apenas da satisfação com o esclarecimento recebido deve exprimir outra coisa mais pois inclui a insatisfação e dúvida quanto à repetição do que foi escutado As outras ordens obsessivas nos colocam na pista desse outro elemento A ob sessão protetora não pode significar outra coisa senão a reação 36316 arrependimento e penitência a um impulso contrário ou seja hostil dirigido à amada antes do esclarecimento A obsessão de contar durante o temporal pode ser interpretada com ajuda do material que ele apresentou como uma medida de defesa em relação a temores que implicavam perigo de vida A análise das primeiras ideias obsessivas mencionadas já nos deixa preparados para ver os im pulsos hostis do paciente como particularmente violentos da natureza da raiva sem sentido e descobrimos que essa raiva pela dama mesmo depois da reconcili ação contribui para as formações obsessivas Na mania de duvidar que tenha ouvido corretamente se expressa a dúvida contínua de que dessa vez tenha enten dido corretamente a amada e possa justamente enxergar em suas palavras uma prova da sua afeição A dúvida da obsessão de compreender é dúvida quanto ao seu amor Em nosso apaixonado há uma luta entre o amor e o ódio que dizem re speito à mesma pessoa e essa luta é representada plasticamente no ato obsessivo também simbolicamente significativo de tirar a pedra do caminho que ela irá percorrer e depois desfazer esse ato de amor colocando a pedra novamente onde estava para que o seu veículo nela esbarre e ela se machuque Não compreen demos corretamente esta segunda parte do ato obsessivo se a vemos tão só como rejeição crítica da ação doentia tal como ela deseja apresentarse O fato de que também ocorre numa sensação de compulsão mostra que ela mesma é parte da ação doentia determinada pelo oposto do motivo da primeira parte Tais ações obsessivas em dois tempos em que o primeiro é anulado pelo se gundo ocorrem tipicamente na neurose obsessiva Elas são naturalmente malen tendidas pelo pensamento consciente do enfermo e dotadas de uma motivação secundária racionalizadas22 Seu verdadeiro significado porém está na repres entação do conflito entre dois impulsos contrários de magnitude aproximada mente igual pelo que até agora pude constatar sempre a oposição entre amor e ódio Elas reclamam um interesse teórico especial pois deixam perceber um novo 37316 tipo de formação de sintomas Em vez de como sucede normalmente na histeria achar um compromisso que contemple os dois opostos numa só representação que mate dois pássaros com um só tiro23 os opostos são aí satisfeitos isolada mente primeiro um e depois o outro naturalmente não sem que antes se fizesse a tentativa de criar uma espécie de conexão lógica muitas vezes ao arrepio de toda lógica entre os dois contrários hostis24 O conflito entre amor e ódio revelouse também por outros indícios em nosso paciente Na época de seu redespertar religioso ele fazia orações que aos poucos chegaram a tomar uma hora e meia pois nas formulações devotas sempre se mis turava para ele um Balaãog invertido algo que as convertia no oposto Por exemplo se ele dizia Deus o proteja logo o espírito maligno interpolava um não à frase25 Uma vez ocorreulhe amaldiçoar então certamente o contrário se insinuaria nessa ideia irrompeu a intenção original reprimida pela oração Em tais apuros ele achou o expediente de abolir a oração e trocála por uma fórmula curta preparada com as letras ou sílabas iniciais de orações diferentes Ele a fa lava tão rapidamente que nada podia nela intrometerse Um dia ele contou um sonho que representava o mesmo conflito transferido para o médico Minha mãe morreu Ele quer expressar condolências mas teme produzir a risada impertinente que já soltou algumas vezes em casos de faleci mento Então prefere escrever um cartão com p c pour condoler mas essas letras se transformam ao redigilas em p f pour féliciter26 O conflito de seus sentimentos em relação à dama era nítido demais para es capar de todo à sua percepção consciente embora possamos inferir das manifest ações obsessivas do conflito que ele não avaliava corretamente a profundidade de seus impulsos negativos Ela havia respondido com um não à primeira corte que ele lhe fizera dez anos antes Desde então períodos em que ele acreditava amála bastante alternavam também de forma consciente com outros em que se 38316 sentia indiferente para com ela Quando no curso do tratamento devia dar um passo que o aproximaria do objetivo da corte sua resistência manifestavase primeiro habitualmente na convicção de que não a amava tanto na realidade convicção que logo desapareciah Numa ocasião em que ela estava gravemente adoecida o que requereu muita assistência de sua parte veiolhe observandoa o desejo de que ela permanecesse deitada para sempre Tal ideia ele explicou para si mesmo com a interpretação capciosa de que desejandoa sempre doente estar ia livre da angústia ante os repetidos acessos da doença que não podia suportar27 Às vezes ocupava a imaginação em devaneios que ele próprio reconhecia como fantasias de vingança e de que se envergonhava Por achar que ela daria muito valor à posição social de um pretendente fantasiava que ela havia desposado um homem assim um alto funcionário Ele então ingressa na mesma carreira e se destaca bem mais do que ele que se torna seu subordinado Um dia prossegue ele esse homem comete algo ilícito A dama se joga a seus pés implorandolhe que salve o marido Ele promete fazêlo e lhe diz que apenas por amor a ela ab raçou aquela carreira porque previu tal momento Com a salvação do marido sua missão está completa ele renuncia ao posto Em outras fantasias nas quais por exemplo ele lhe presta um grande favor sem que ela saiba quem o fez ele reconheceu apenas a ternura sem apreciar o bastante em sua origem e tendência a magnanimidade voltada para a repressão da sede de vingança segundo o modelo do conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas Ele admitiu de resto que ocasionalmente sentia impulsos muito claros de fazer algum mal à dama que venerava Esses impulsos geralmente silenciavam na presença dela e irrompiam na sua ausência f a causa imediata da doença 39316 Um dia nosso paciente mencionou brevemente um episódio no qual logo divisei a causa precipitadora da doença ou pelo menos o motivo imediato do surto que principiou há seis anos e ainda continua Ele mesmo não fazia ideia de que ap resentava algo importante não se lembrava de ter atribuído algum valor ao epi sódio do qual aliás nunca se esquecera Essa atitude pede uma consideração teórica A regra na histeria é que os motivos recentes para a enfermidade sucumbam à amnésia tal como as vivências infantis que os ajudam a transformar sua energia afetiva em sintomas Quando não é possível um completo esquecimento ainda assim a amnésia corrói o ensejo traumático recente roubandolhe ao menos seus componentes mais significativos Em tal amnésia enxergamos a prova da repressão ocorrida Na neurose obsessiva sucede normalmente de outra forma Os pressupostos infantis da neurose podem ter cedido a uma amnésia fre quentemente incompleta mas as ocasiões recentes para o adoecimento se acham preservadas na memória Aí a repressão utilizouse de um outro mecanismo mais simples na verdade em vez de esquecer o trauma subtraiulhe o investimento afetivo de modo que na consciência resta apenas um conteúdo ideativo indifer ente tido por insignificante A diferença entre histeria e neurose obsessiva está nos processos psíquicos que podemos construir por trás dos fenômenos o res ultado é quase o mesmo pois o conteúdo mnêmico indiferente é reproduzido muito raramente não tendo papel na atividade mental consciente da pessoa Para diferençar os dois tipos de repressão podemos recorrer primeiramente tão só à garantia do paciente de que tem a sensação de que num caso sempre soube aquilo e no outro o esqueceu há muito tempo28 Não é raro suceder portanto que neuróticos obsessivos que sofrem de autor recriminações e ligaram seus afetos a motivos errados informem ao médico tam bém os corretos sem suspeitar que suas recriminações estão apenas 40316 desconectadas desses últimos Às vezes exclamam admirados ou mesmo jactan ciosos que aquilo não lhes importa o mínimo Assim ocorreu no primeiro caso de neurose obsessiva que há muitos anos permitiume a compreensão desta doença O paciente um funcionário público que sofria de inúmeras dificuldades é o mesmo do qual relatei a ação obsessiva com o ramo de árvore no parque de Schönbrunn Chamoume a atenção o fato de ele sempre me dar como paga mento das sessões cédulas de florins perfeitamente lisas e limpas Naquele tempo não havia moedas de prata na Áustria Quando um dia fiz a observação de que se podia reconhecer um funcionário do governo pelos florins novos que recebia da Caixa Estatal ele me disse que as cédulas não eram novas haviam sido passadas a ferro alisadas em sua casa Para ele era questão de consciência não entregar cédulas sujas a alguém pois nelas se achavam perigosas bactérias que poderiam ser nocivas à pessoa Naquele tempo eu começava a perceber vaga mente a relação entre as neuroses e a vida sexual e ousei perguntar ao paciente num outro dia como estava a dele Oh tudo em ordem afirmou simples mente não posso me queixar Faço o papel de um tio velho e querido em muitas casas de boas famílias valendome disso para de vez em quando chamar uma ga rota para um passeio no campo Então arranjo as coisas de modo que perdemos o trem e somos obrigados a passar a noite num albergue Sempre peço dois quartos sou bastante cavalheiro mas quando a garota está na cama vou até lá e a mas turbo com os dedos Mas você não teme fazerlhe mal tocando nos genitais dela com a mão suja Ele então se irritou Mal Como isso pode lhe fazer mal Nenhuma delas foi prejudicada todas elas concordaram Algumas já estão casadas e isso não as prejudicou O paciente levou a mal minha objeção e nunca mais voltou O contraste entre seus escrúpulos ao lidar com as cédulas de dinheiro e sua desconsideração ao abusar das garotas que lhe eram confiadas eu podia explicar apenas mediante um deslocamento do afeto recriminador A 41316 tendência desse deslocamento era clara o bastante se ele deixasse que a recrimin ação fosse para onde cabia teria que abandonar uma satisfação sexual a que provavelmente era impelido por fortes determinantes infantis Obteve então com o deslocamento uma considerável vantagem da doença Agora devo abordar mais a fundo a causa imediata da doença A mãe do pa ciente fora educada como parente distante por uma rica família detentora de uma enorme empresa industrial Ao desposála seu pai entrou para os quadros dessa indústria chegando a uma boa situação graças ao casamento portanto O filho soubera por gracejos entre os pais que viviam um ótimo casamento que o pai fizera a corte a uma bela garota de família modesta antes de conhecer a mãe Essa é a história preliminar Após o falecimento do pai a mãe comunicou ao filho um dia que havia falado de seu futuro com os parentes abastados e um dos primos se declarara disposto a oferecerlhe uma das filhas quando ele terminasse os estudos A ligação com a firma lhe abriria excelentes perspectivas na profissão Esse plano da família despertou nele o conflito entre permanecer fiel à garota pobre que amava ou seguir as pegadas do pai e tomar como esposa a garota bela rica e nobre que lhe destinavam E esse conflito que era de fato entre o seu amor e a persistente vontade do pai ele resolveu adoecendo ou melhor dizendo ele subtraiuse mediante a enfermidade à tarefa de resolvêlo na realidade29 A prova para essa concepção reside no fato de a principal consequência da en fermidade ter sido uma teimosa incapacidade para o trabalho que o fez adiar por anos a conclusão dos estudos Mas o resultado da doença já estava na intenção dela o que parece ser consequência é na realidade a causa o motivo do adoecimento Compreensivelmente de início o doente não admitiu a minha explicação Disse não poder imaginar semelhante efeito do plano de casamento este não lhe fizera a menor impressão na época Mas durante o tratamento ele teve de 42316 convencerse por um caminho peculiar da justeza de minha conjectura Com o auxílio de uma fantasia de transferência vivenciou como novo e atual algo do passado que havia esquecido ou que apenas inconscientemente nele transcorrera De um período obscuro e difícil do tratamento resultou enfim que ele pro movera a minha filha uma jovem que havia encontrado certa vez na escada de meu edifício Ela lhe agradou e ele imaginou que eu era tão amável e paciente com ele porque o desejava para genro e nisso elevou a opulência e nobreza de minha casa a um nível que correspondia a seu modelo Mas essa tentação foi com batida pelo inabalável amor à sua dama Depois de superarmos toda uma série de graves resistências e amargos insultos ele não pôde escapar ao efeito convincente da perfeita analogia entre a transferência fantasiada e a realidade de outrora Re produzo agora um dos sonhos desse período como exemplo de sua forma de rep resentação Ele vê minha filha à sua frente mas ela tem duas bolas de excremento no lugar dos olhos Para qualquer um que compreenda a linguagem dos sonhos a tradução é fácil Ele não se casa com minha filha por seus belos olhos mas por seu dinheiro g o complexo relativo ao pai e a solução da ideia dos ratos Partindo da causa imediata da doença na época adulta um fio conduzia à infân cia do paciente Ele se encontrava na situação pela qual conforme sabia ou ima ginava o pai havia passado antes de seu próprio casamento e pôde identificarse com o pai Ainda de outra maneira o falecido pai teve um papel na doença re cente O conflito da doença era no essencial uma luta entre a persistente vontade do pai e sua própria inclinação amorosa Se levamos em conta o que o paciente havia comunicado nas primeiras sessões do tratamento não podemos afastar a suspeita de que essa luta era bem antiga já tendo ocorrido em sua infância 43316 Seu pai era de acordo com todas as informações um homem excelente Antes do casamento fora suboficial e conservara dessa época de sua vida francas maneiras de soldado e gosto por expressões rudes Além das virtudes que as lajes dos sepulcros costumam atribuir a todos distinguiase por um animado senso de humor e uma bondosa indulgência com os semelhantes Não contradiz essa cara cterística antes a complementa o fato de que podia ser brusco e veemente algo que quando as crianças ainda eram novas e traquinas ocasionalmente as fazia to marem duras reprimendas Quando os filhos cresceram diferenciouse de outros pais por não querer se arvorar em autoridade indiscutível mas por revelar aos fil hos com benévola franqueza os pequenos fracassos e infortúnios de sua vida Certamente o filho não exagerava ao dizer que se relacionavam como dois ótimos amigos exceto num único ponto cf p 43 Deve ter sido por causa dessa única questão que o pensamento da morte do pai ocupou o menino com intensidade in vulgar e indevida cf p22 que pensamentos tais surgiram em suas ideias obses sivas infantis que ele pôde desejar que o pai morresse para que uma determinada moça influenciada pela compaixão se mostrasse mais afetuosa para com ele p 39 Não há dúvida de que no âmbito da sexualidade surgia uma diferença entre pai e filho e que o pai ficara em decidida oposição ao erotismo precocemente despertado no filho Vários anos depois da morte do pai quando experimentou pela primeira vez a sensação prazerosa de um coito veiolhe à mente a seguinte ideia Mas isso é formidável por isso bem se poderia matar o próprio pai Eis simultaneamente um eco e uma explicitação de suas ideias obsessivas infantis Pouco antes de morrer o pai se manifestara diretamente contra a inclinação que depois viria a dominar o paciente Notou que este procurava a companhia daquela mulher e advertiuo contra ela afirmando que isso não era prudente e que ele se exporia ao ridículo 44316 A esses dados se junta outro quando nos voltamos para a história da ativid ade sexual masturbatória do paciente Existe nesse terreno uma oposição entre as opiniões dos médicos e as dos doentes que ainda não foi considerada Esses úl timos se acham de acordo em ver na masturbação por eles entendida como mas turbação na puberdade a origem e fonte primeira de todos os seus males Os médicos em geral não sabem o que dizer a respeito do tema mas influenciados pelo conhecimento de que a maioria dos que depois seriam normais também se masturbou na puberdade tendem a ver como exageradas as afirmações dos pa cientes Acho que também nisso os doentes estão mais próximos da razão do que os médicos eles têm um vislumbre do que sucede enquanto os médicos correm o risco de ignorar algo essencial Certamente não é como creem os doentes que a masturbação quase típica da puberdade seria responsável por todas as perturb ações neuróticas Esta sua tese requer interpretação A masturbação na puberdade não é senão revivescência daquela até agora negligenciada da infância que geralmente alcança uma espécie de clímax na idade de três a quatro ou cinco anos e é a mais nítida expressão da constituição sexual da criança na qual também nós buscamos a etiologia das neuroses posteriores Portanto os doentes culpam dis farçadamente sua própria sexualidade infantil e nisso estão inteiramente certos Por outro lado o problema da masturbação fica insolúvel se a vemos como uma unidade clínica e esquecemos que representa a descarga de componentes sexuais vários e das fantasias por eles alimentadas Apenas num grau mínimo a nocivid ade da masturbação é autônoma ou seja determinada por sua própria natureza Coincide no principal com a significação patogênica da vida sexual O fato de muitos indivíduos tolerarem sem danos a masturbação certa medida dela mostra que neles a constituição sexual e o curso de desenvolvimento da sua vida sexual permitiramlhes exercer esta função nas condições culturais vigentes30 en quanto outros devido a uma constituição sexual desfavorável ou a um distúrbio 45316 no desenvolvimento adoecem por causa de sua sexualidade isto é não con seguem atingir a supressão e sublimação dos componentes sexuais sem que haja inibições e formações substitutivas Nosso paciente teve um comportamento peculiar no que toca a masturbação Não se masturbou durante a puberdade o que de acordo com certas expect ativas poderia deixálo livre de neuroses Mas o impulso à atividade masturb atória surgiu nele aos 21 anos pouco tempo depois da morte do pai Ficava muito envergonhado após satisfazerse assim e logo abandonou essa atividade Desde então se masturbou apenas em ocasiões raras e extraordinárias Ocasiões trazidas por momentos particularmente belos que viveu ou passagens peculiarmente be las que leu Por exemplo quando ouviu no centro da cidade numa bela tarde de verão um postilhão soar maravilhosamente sua corneta até que um guarda o proibiu de fazêlo pois não era permitido tocar dentro da cidade Ou numa outra vez quando leu em Poesia e verdade como o jovem Goethe em apaixonada exaltação libertouse da praga que uma ciumenta lançara sobre a mulher que lhe beijasse os lábios depois dela Por longo tempo ele se deixara conter por essa praga um tanto supersticiosamente mas naquele instante rompeu as cadeias e ap licou vários beijos em seu amor Ele se admirava muito de que fosse impelido a masturbarse precisamente nessas ocasiões belas e enaltecedoras Mas não pude deixar de sublinhar que nesses dois exemplos o que havia em comum era a proibição e o desafio a uma ordem No mesmo contexto se achava sua peculiar conduta no tempo em que estu dava para uma prova e brincava com uma fantasia a que se afeiçoou a de que o pai ainda vivia e podia retornar a qualquer momento Ele arranjou as coisas de modo a estudar na noite avançada Entre meianoite e uma hora fazia uma inter rupção abria a porta que dava para o corredor do edifício como se o pai 46316 estivesse ali esperando e depois de voltar tirava o pênis e o contemplava no es pelho do vestíbulo Esse louco agir tornase compreensível pressupondo que ele se portava como se aguardasse a visita do pai na hora dos fantasmas Quando este vivia ele fora um estudante relapso o que frequentemente aborrecia o pai Agora este devia alegrarse com ele ao retornar como espírito e encontrálo estudando Mas dificilmente o pai se alegraria com a outra parte do seu procedimento assim ele o desafiava e num só ato obsessivo exprimia os dois lados de sua relação com o pai tal como faria depois com a mulher que amava no ato obsessivo da pedra na estrada Com base nesses e em outros indícios semelhantes arrisquei a construção de que quando era criança aos seis anos de idade ele incorrera em alguma má con duta sexual relacionada à masturbação e fora então sensivelmente castigado pelo pai Esse corretivo pusera fim à masturbação mas também deixara um indelével rancor ao pai fixando para sempre o papel deste como estragador do prazer sexu al Cf a conjectura semelhante que fiz numa das primeiras sessões p 43 Para minha surpresa o paciente relatou então que um evento assim ocorrido em sua primeira infância foralhe contado várias vezes pela mãe e evidentemente não caíra no esquecimento porque estava ligado a coisas notáveis Sua própria memória nada guardava a respeito disso Mas a história é a seguinte Quando era bem pequeno a época exata ainda podia ser determinada por coincidir com a da doença fatal de uma irmã mais velha ele deve ter feito algo ruim devido ao qual foi surrado pelo pai Então o meninote se enraiveceu terrivelmente e soltou imprecações até debaixo dos golpes do pai Mas como ainda não sabia xingar aplicara a este os nomes de objetos que lhe ocorriam dizendo Seu lâmpada Seu lenço Seu prato etc O pai assustado com tal explosão elementar parou de golpeálo e afirmou Esse menino será ou um grande homem ou um grande criminoso31 Ele acha que esta cena deixou uma impressão duradoura tanto nele 47316 como no pai Este nunca mais o surrou Mas ele mesmo atribui parte da sua mudança de caráter a essa vivência O medo ante a magnitude de sua raiva o tornou covarde a partir de então Por toda a vida ele teve um medo horrível de golpes e quando um de seus irmãos era surrado ele se escondia cheio de terror e indignação Ao inquirir novamente sua mãe ela lhe disse além de confirmar a história que na época ele tinha três a quatro anos de idade e que merecera o castigo porque havia mordido alguém Mas tampouco a mãe se recordava de mais detal hes Apenas achou um tanto vagamente que a pessoa machucada pelo filho teria sido a babá Não houve menção de um caráter sexual do delito em seu relato32 Remeto a discussão desta cena infantil à nota de rodapé apenas observando aqui que o seu aparecimento abalou pela primeira vez a recusa do paciente em crer que na préhistória de sua vida fora tomado de raiva pelo pai amado que de pois se tornou latente Mas eu havia esperado um efeito mais intenso pois esse episódio lhe fora relatado tantas vezes inclusive pelo pai que sua realidade não estava sujeita a dúvida Com uma capacidade de torcer a lógica que nos doentes obsessivos bem inteligentes nunca deixa de causar espanto prosseguia afirm ando contra o valor de evidência do relato que ele próprio não se lembrava da quilo Então foi somente pela dolorosa via da transferência que ele chegou a convencerse de que sua relação com o pai exigia aquele complemento incon sciente Logo veio a suceder em sonhos devaneios e pensamentos espontâneos que ele xingasse a mim e meus parentes do modo mais grosseiro e vil enquanto me testemunhava sempre um enorme respeito Quando informava sobre tais in sultos seu comportamento era o de um desesperado Como pode o senhor pro fessor admitir que um sujeito sórdido e vadio como eu o insulte O senhor tem que me mandar embora é o mínimo que mereço Ao falar isso ele se erguia do divã e andava pela sala algo que inicialmente justificou pela delicadeza não 48316 conseguia afirmou dizer coisas tão horríveis deitado confortavelmente No ent anto logo ele mesmo encontrou a explicação mais pertinente de que se afastava de minha proximidade por medo de que eu o surrasse Quando ficava sentado portavase como alguém que desesperadamente amedrontado busca protegerse de uma enorme punição levava as mãos à cabeça cobria o rosto com os braços arredavase repentinamente com as feições distorcidas pela dor etc Ele se lem brou de que o pai era de gênio irascível e em seu arrebatamento às vezes não sabia até onde podia chegar Em tal escola do sofrimento adquiriu aos poucos a convicção que lhe faltava que teria sido evidente para qualquer outro não en volvido pessoalmente Mas com isso estava livre o caminho para a solução da ideia que envolvia os ratos Uma pletora de dados até então retidos tornouse ali disponível no auge do tratamento e permitiu o estabelecimento de todo o contexto Ao expôlo vou resumir e abreviar ao máximo como já disse O primeiro en igma era naturalmente por que as duas falas do capitão tcheco a história dos ratos e a exortação para que reembolsasse o primeirotenente A haviamno deix ado tão inquieto e provocado reações patológicas tão veementes Era de supor que aí houvesse sensibilidade de complexoi que pontos hiperestésicos de seu inconsciente fossem asperamente tocados por aqueles dizeres E assim foi Ele se achava como sempre lhe ocorria no exército numa inconsciente identificação com o pai que servira durante muitos anos e contava histórias de seu tempo de soldado Permitiu então o acaso que na formação de sintomas pode ajudar tanto quanto a linguagem na piada que uma das pequenas aventuras do pai tivesse um importante elemento em comum com a solicitação do capitão Certa vez o pai havia perdido algum dinheiro num jogo de cartas era um Spielrattej e estaria em apuros se um camarada não lhe adiantasse a quantia Depois que deixou o ex ército e alcançou prosperidade buscou o colega que o ajudara a fim de lhe 49316 devolver o dinheiro mas não o encontrou O paciente não estava seguro de que a devolução tivesse ocorrido A lembrança desse pecado juvenil do pai lhe era pen osa pois seu inconsciente abrigava hostis objeções ao caráter do pai As palavras do capitão Você tem que restituir 380 coroas ao primeirotenente A pareciamlhe uma alusão à dívida não saldada do pai Mas a informação de que a própria funcionária do correio em Z fizera o ree mbolso com palavras lisonjeiras sobre ele33 fortaleceu a identificação com o pai num outro terreno Ele então acrescentou que no lugarejo onde ficava a agência postal havia uma bela moça filha do estalajadeiro que se mostrara bastante amável com o jovem e garboso oficial de modo que ele podia lá retornar após o fim das manobras e tentar sua sorte com a moça Mas agora ela tinha uma rival na funcionária do correio Tal como seu pai na novela do casamento ele podia hes itar acerca de qual das duas teria sua atenção Notamos agora que sua peculiar in decisão entre partir para Viena ou voltar ao local da agência do correio suas con tínuas tentações de interromper a viagem e retornar cf p 31 não eram tão sem sentido como inicialmente pareceram Em seu pensamento consciente a atração do povoado Z onde se achava a agência do correio era justificada pela necessid ade de cumprir a palavra com ajuda do primeirotenente A Na realidade o ob jeto de sua ânsia era a empregada do correio o primeirotenente era apenas um bom substituto para ela tendo vivido naquele lugar e se ocupado ele mesmo do serviço postal do exército Quando soube que não o primeirotenente A mas outro oficial estivera aquele dia no correio incluiu também este na combinação e pôde repetir nos delírios com os dois oficiais a hesitação entre as duas moças tão gentis para com ele34 Esclarecendo os efeitos que resultaram da história dos ratos contada pelo cap itão precisamos seguir mais de perto o curso da análise Houve inicialmente uma quantidade enorme de material associativo sem que ficasse mais transparente a 50316 situação em que se formara a obsessão A ideia do castigo com ratos havia estim ulado certo número de instintos e despertado uma série de recordações de modo que os ratos no breve intervalo entre a história do capitão e a advertência deste para que ele restituísse o dinheiro adquiriram vários significados simbólicos aos quais se juntaram ainda outros no período subsequente O relato que posso fazer de tudo isso é necessariamente incompleto O castigo dos ratos mexeu sobretudo com o erotismo anal que tivera um grande papel na sua infância favorecido durante anos pela presença de vermes intestinais Assim os ratos vieram a signi ficar dinheiro35 nexo que ele mostrou na associação de Raten prestações com Ratten ratos Em seus delírios obsessivos ele havia criado uma verdadeira moeda de rato Por exemplo quando me perguntou e eu lhe informei o custo de uma sessão de tratamento isto significou para ele como me disse seis meses depois tantos florins tantos ratos Gradualmente ele transpôs para essa lin guagem todo o complexo dos interesses financeiros ligados à herança do pai isto é todas as ideias a isso relacionadas foram inscritas no âmbito obsessivok através da ponte verbal RatenRatten e submetidas ao inconsciente Além disso esta sig nificação monetária dos ratos apoiavase na advertência do capitão para que ele restituísse o dinheiro da encomenda com a ajuda da ponte verbal Spielratte que remetia ao fracasso do pai no jogo Mas ele também conhecia os ratos como transmissores de infecções perigosas e podia vêlos como símbolos do medo da infecção sifilítica tão justificado no ex ército medo que envolvia toda espécie de dúvidas sobre o modo de vida de seu pai durante o serviço militar Em outro sentido o pênis mesmo era transmis sor da sífilis de forma que o rato se tornava um membro sexual e por outro título podia também ser visto como tal O pênis em especial o do bebê pode ser comparado a um verme e na história do capitão os ratos se revolviam no ânus de alguém tal como as lombrigas quando ele era pequeno Assim o significado de 51316 pênis assumido pelos ratos baseavase igualmente no erotismo oral O rato é além disso um animal sujo que se alimenta de excrementos e vive em esgotos36 Não é preciso dizer como o delírio dos ratos pôde se ampliar em virtude dessa nova significação Tantos ratos tantos florins por exemplo podia ser a ca racterização exata de uma profissão feminina que ele odiava Por outro lado não é irrelevante que a substituição do pênis pelo rato na história do capitão resul tasse numa situação de coito per anum que devia ser especialmente revoltante para o paciente quando relacionada ao pai e à mulher que amava Tornando a aparecer na ameaça obsessiva que nele se formou após a advertência do capitão p 29 esta situação lembrava inequivocamente certas imprecações usadas pelos eslavos do Sul que podem ser lidas na revista editada por F S Krauss Anthropo phyteia n 2 1905 pp 421ss Todo esse material e ainda mais inseriase na trama da discussão sobre os ratos por trás da associação encobridora A história do suplício com ratos incitou no paciente todos os impulsos de crueldade egoísta e sexual prematuramente suprimidos como foi mostrado por seu próprio relato e por seus gestos e expressões ao fazêlo Apesar de todo esse rico material no entanto o significado de sua ideia obsessiva permaneceu ob scuro até que surgiu numa sessão a Senhora dos Ratos de O pequeno Eyolf de Ib sen e tornou inevitável a conclusão de que em muitas formas de seu delírio ob sessivo os ratos também significavam crianças37 Investigando a origem desse novo significado logo deparamos com raízes bem antigas e relevantes Certa vez numa visita ao túmulo do pai ele vira um animal que acreditou ser um rato pas sando rapidamente38 Imaginou que ele estivesse saindo do túmulo do pai tendo acabado de fazer uma refeição em seu cadáver É inseparável da ideia que temos do rato o fato de que ele rói e morde com seus dentes afiados39 Mas o rato não é mordaz voraz e sujo impunemente como o paciente constatara horrorizado ele é cruelmente perseguido e implacavelmente liquidado Com frequência tivera 52316 compaixão desses pobres ratos E ele próprio fora um ser assim asqueroso sujo pequeno que enraivecido podia morder e fora terrivelmente castigado por isso cf p 68 Ele realmente podia ver no rato sua imagem viva40 É como se o destino lhe lançasse na história do capitão uma palavraestímulo de complexo cf nota à tradução p 72 e ele não deixou de reagir a ela com a ideia obsessiva Ratos eram crianças portanto conforme suas experiências mais antigas e mo mentosas Nesse ponto ele trouxe uma informação que por algum tempo deixara de lado mas que agora esclarecia o interesse que nutria por crianças A mulher que ele adorava havia anos e que não pudera se decidir a esposar estava con denada a não ter filhos devido a uma operação ginecológica a remoção dos ovários Para ele que gostava muito de crianças esse era mesmo o principal motivo da hesitação Só então foi possível entender o inexplicável processo ocorrido na formação de sua ideia obsessiva com a ajuda das teorias sexuais infantis e do simbolismo que se conhece a partir da interpretação de sonhos tudo pôde ser traduzido signi ficativamente Quando o capitão falou do suplício com os ratos na tarde em que desapareceu o pincenê o paciente ficou impressionado apenas com a natureza cruel e lasciva da situação narrada Mas logo se estabeleceu o vínculo com a cena infantil em que ele mesmo havia dado mordidas O capitão que era capaz de de fender castigos assim tomou para ele o lugar do pai e atraiu para si uma parte da animosidade que irrompera contra o pai e que então retornava A ideia que rapi damente lhe passou na cabeça de que algo assim poderia suceder a alguém de que gostava seria traduzida num desejo como Deviam fazer assim com você dirigido ao narrador do suplício mas através dele ao pai Quando um dia e meio depois41 o capitão lhe entrega o pacote enviado por reembolso dizendolhe que restitua as 380 coroas ao primeirotenente A ele já sabe que o cruel superi or se engana e que apenas à funcionária do correio deve alguma coisa Poderia 53316 facilmente dar uma resposta zombeteira como Será que eu pago mesmo ou Ora bolas ou Aqui que eu pagarei respostas que ele não se sentiria obri gado a dar Mas a partir do complexo paterno entrementes excitado e da lem brança daquela cena infantil formouse nele esta resposta Sim pagarei o din heiro a A quando meu pai e minha amada tiverem filhos ou É tão certo que lhe pagarei o dinheiro quanto meu pai e ela poderem ter filhos Ou seja uma afirmação derrisória ligada a uma condição absurda irrealizável42 Mas o delito fora cometido as duas pessoas que lhe eram mais caras o pai e a amada foram insultadas Isso requeria punição a qual consistiu na autoimposição de um jura mento impossível de ser cumprido que implicava a obediência literal à admoes tação do superior Agora você tem realmente que pagar o dinheiro a A Em sua convulsiva obediência ele reprimiu o conhecimento de que o capitão baseava sua advertência num pressuposto errado Sim você tem que restituir o dinheiro a A como exige o representante do pai O pai não erra Também Sua Majestade não erra e quando se dirige a um súdito com um título inadequado ele passa a usar esse título Apenas uma vaga notícia desses eventos chega à consciência dele mas a re volta contra a ordem do capitão e a mudança para o oposto se acham representa das na consciência Primeiro não restituir o dinheiro senão acontece o o cas tigo com os ratos e depois a transformação no juramento oposto como castigo pela revolta Tenhamos presente a constelação dentro da qual se formou a grande ideia ob sessiva A longa abstinência juntamente com a amável acolhida que um jovem oficial sempre pode esperar das mulheres tornouo mais libidinoso e além disso ele se achava algo distanciado de sua dama quando partiu para as mano bras Esta intensificação da libido o predispôs a retomar a antiga luta contra a autoridade do pai e ele sentiuse confiante para pensar em satisfação sexual com 54316 outras mulheres Haviam aumentado as dúvidas quanto ao falecido pai e as incer tezas quanto ao valor da amada Nesse estado de ânimo deixouse levar ao denegrecimento dos dois e então puniu a si mesmo por isso Dessa maneira repe tiu um velho modelo Quando ao fim das manobras hesitou bastante em ir para Viena ou ficar e cumprir o juramento representou de uma só vez os dois confli tos que desde sempre o agitavam se devia obedecer ao pai ou permanecer leal à amada43 Ainda uma palavra sobre a interpretação do conteúdo da sanção de outro modo o suplício dos ratos será realizado nas duas pessoas Ela se baseia na in fluência de duas teorias sexuais infantis que abordei em outro lugar44 A primeira diz que os bebês saem do ânus a segunda acrescenta logicamente a possibilidade de que também os homens sejam capazes de ter filhos Pelas regras técnicas da in terpretação de sonhos sair do reto pode ser representado pelo seu oposto penetrar no reto como no suplício dos ratos e viceversa Não é lícito esperar que ideias obsessivas tão graves sejam solucionadas de modo mais simples ou por outros meios Com a solução que obtivemos acabou o delírio dos ratos II CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS 55316 a algumas características gerais das formações obsessivas45 A definição que em 1896 ofereci das ideias obsessivas que seriam recriminações transformadas que retornam da repressão sempre ligadas a uma ação de natureza sexual realizada com prazer na infância46 pareceme hoje discutível quanto à forma apesar de composta de elementos precisos Ela tendia demasiadamente à unificação e tomava por modelo o procedimento dos próprios doentes obsess ivos que com seu característico pendor à incerteza reúnem sob o nome de idei as obsessivas as formações psíquicas mais diversas47 Na realidade é mais cor reto falar de pensamento obsessivo e enfatizar que as construções obsessivas podem equivaler aos mais diferentes atos psíquicos Podem ser definidas como desejos tentações impulsos reflexões dúvidas ordens e proibições Em geral os doentes procuram atenuar essas distinções e apresentar como ideia obsessiva o conteúdo despojado de seu registro de afeto Um exemplo desse modo de tratar um desejo que seria rebaixado a mera ligação de pensamentos foi dado pelo paciente numa das primeiras sessões p 39 É preciso também admitir que até agora nem sequer a fenomenologia do pensamento obsessivo foi devidamente apreciada Na luta defensiva secundária que o enfermo desenvolve contra as ideias obsessivas que lhe penetram a consciência produzemse formações que são dignas de uma denominação espe cial Tais por exemplo foram as séries de pensamentos que ocuparam o nosso paciente durante seu retorno das manobras Não foram considerações puramente razoáveis que ele opôs aos pensamentos obsessivos mas como que híbridos dos dois tipos de pensamento aceitam determinadas premissas da obsessão que com batem e situamse com os meios da razão no terreno do pensar doentio Acho que tais formações merecem o nome de delírios Um exemplo que pode ser in cluído no local apropriado da história clínica tornará clara a diferença Quando o 56316 paciente no tempo em que se preparava para um exame entregouse à doida conduta acima descrita de estudar até altas horas depois abrir a porta para o es pírito do pai e depois olhar os próprios genitais no espelho p 67 buscou voltar a si perguntandose o que diria o pai sobre aquilo caso ainda fosse vivo Mas esse argumento não teve sucesso enquanto foi colocado dessa forma razoável O es pectro desapareceu apenas quando ele expressou a mesma ideia na forma de uma ameaça delirante se repetisse aquele absurdo o pai sofreria um infortúnio no Além A distinção entre luta defensiva primária e secundária certamente se justifica mas seu valor é inesperadamente limitado pelo conhecimento de que os doentes ignoram o teor de suas próprias ideias obsessivas Soa paradoxal mas tem sentido Pois no decorrer de uma psicanálise cresce não apenas a coragem do enfermo mas também digamos a de sua enfermidade ela ousa manifestarse mais clara mente Abandonando essa imagem é como se o doente que até então evitou hor rorizado a percepção de suas produções patológicas começasse a lhes dar atenção e delas se inteirasse mais clara e detalhadamente48 Além disso chegase a um conhecimento mais apurado das formações obses sivas por dois caminhos especiais Primeiro notase que os sonhos podem ofere cer o texto genuíno de um comando obsessivo etc que na vigília tornouse con hecido apenas de forma mutilada e deslocada como num telegrama truncado Esses textos surgem no sonho como falas contrariando a regra de que as falas no sonho vêm de falas diurnas49 Segundo no acompanhamento analítico de um caso clínico adquirese a convicção de que frequentemente ideias obsessivas con secutivas são no fundo a mesma embora o seu teor não seja idêntico A ideia ob sessiva foi rejeitada com sucesso na primeira vez mas volta deformada não é re conhecida e talvez justamente por sua deformação pode afirmarse melhor na luta defensiva Mas a forma original é a correta que não raro deixa perceber 57316 abertamente o seu sentido Tendo elucidado trabalhosamente uma ideia obsessiva ininteligível às vezes escutamos do paciente que uma ideia súbita um desejo ou uma tentação como a que construímos realmente surgiu antes da ideia obsessiva mas não permaneceu Exigiria muitos detalhes infelizmente dar exemplos disso na história do paciente Portanto o que oficialmente chamamos ideia obsessiva carrega em sua de formação relativamente ao teor original os traços da luta defensiva primária Sua deformação a torna viável pois o pensamento consciente é obrigado a entendêla mal como ao conteúdo onírico que é ele mesmo um produto de compromisso e deformação e é também malentendido pelo pensamento desperto A má compreensão por parte do pensamento consciente pode ser constatada não só no tocante às ideias obsessivas mesmas mas também no que se refere aos produtos da luta defensiva secundária como as fórmulas protetoras Posso dar dois bons exemplos disso O paciente utilizava como fórmula defensiva um aber mas em alemão falado rapidamente acompanhado de um gesto de repulsa com a mão p 28 Um dia ele contou que nos últimos tempos essa fórmula se modificara ele não dizia mais áber a pronúncia normal em alemão mas abér Perguntado pelo motivo dessa transformação disse que o e mudo da segunda sílaba não lhe dava segurança em face da intromissão que temia de algo difer ente e contrário e por isso resolvera acentuar o e Tal explicação bem no estilo da neurose obsessiva mostrouse claramente inadequada quando muito podia reivindicar o valor de racionalização Na realidade o abér era uma aproximação de Abwehr defesa termo que ele conhecia das conversas teóricas sobre a psic análise Portanto a terapia foi utilizada de modo abusivo e delirante para reforçar uma fórmula de defesa Em outra ocasião ele falou de sua principal palavra má gica para todas as tentações que formou com as iniciais das orações mais eficazes dotandoas de um Amen no final Não posso transcrever aqui a palavra por 58316 motivos que já se evidenciam Quando a ouvi não pude deixar de perceber que se tratava de um anagrama da mulher que ele adorava nesse nome havia um s que ele colocara no fim logo antes do Amen acrescentado Ele havia então podemos dizer juntado seu sêmen Samen em alemão com a amada isto é se masturbado com ela na imaginação Mas ele próprio não notara essa evidente re lação a defesa se deixara enganar pelo reprimido Aliás um bom exemplo da tese de que com o tempo aquilo de que a pessoa se defende penetra naquilo mediante o qual ela se defende Se afirmo que os pensamentos obsessivos experimentaram deformação semel hante à dos pensamentos oníricos antes de se tornarem conteúdo onírico pode nos interessar a técnica dessa deformação e nada nos impediria de apresentar seus diferentes meios numa série de ideias obsessivas traduzidas e compreendid as Mas também aqui as condições para a publicação deste caso me impedem de fornecer mais que algumas amostras Nem todas as ideias obsessivas do paciente eram de textura tão complexa e deslindamento tão difícil como a dos ratos Em algumas outras foi usada uma técnica bem simples a da deformação por omissão elipse que acha excelente aplicação nas piadas mas que neste caso também agiu como meio de proteção contra o entendimento Por exemplo uma de suas ideias obsessivas prediletas e mais antigas equival ente a um aviso ou admoestação dizia Se eu me caso com essa mulher acontece uma desgraça a meu pai no além Inserindo os elos intermediários omitidos que conhecemos pela análise o curso de pensamento é Se meu pai estivesse vivo ficaria tão aborrecido com meu projeto de esposar essa mulher quanto ficou então naquele episódio de minha infância de modo que eu teria novamente raiva dele e lhe desejaria tudo de mau o que fatalmente sucederia a ele em virtude da onipotência50 de meus desejos 59316 Eis outro caso de solução por elipse de igual modo uma advertência ou uma proibição ascética Ele tinha uma encantadora sobrinha pequena de quem muito gostava Um dia veiolhe o pensamento Se você se permitir um coito acontecerá a Ella uma desgraça a morte Incluindo o que foi deixado de fora Em todo co ito também com uma desconhecida você não pode esquecer que a relação sexual no seu casamento jamais resultará num filho a esterilidade de sua amada Isso lhe fará tão mau que você terá inveja de sua irmã pela pequena Ella e tais senti mentos de inveja ocasionarão a morte da garota51 A técnica de deformação elíptica parece ser típica da neurose obsessiva já a encontrei também nos pensamentos obsessivos de outros pacientes Particular mente claro e interessante devido a alguma semelhança com a estrutura da ideia do suplício com ratos foi o caso de dúvida numa senhora que sofria principal mente de atos obsessivos Ela saiu para passear com o marido em Nuremberg e entraram numa loja onde comprou vários objetos para a filha entre eles um pente O marido para quem as compras demoravam muito disse ter enxergado na vitrine de um antiquário umas moedas que desejava adquirir e que a buscaria naquela loja em seguida Mas ele se ausentou por tempo demais segundo a estim ativa dela Ao voltar respondeu perguntado onde estivera No antiquário ora ao que ela no mesmo instante foi tomada pela dúvida atroz de que há muito tempo já tivesse o pente que comprara para a filha Naturalmente não soube descobrir a conexão simples envolvida Não podemos senão explicar a dúvida como tendo sido deslocada e construir o pensamento inconsciente incom pleto da seguinte maneira Se é verdade que você estava no antiquário se devo acreditar nisso então posso também acreditar que há anos tenho esse pente que acabo de comprar Ou seja uma equiparação irônica e derrisória similar ao pensamento de nosso paciente Sim tão certo como os dois seu pai e sua amada terão filhos restituirei o dinheiro a A No caso da senhora a dúvida 60316 relacionavase ao inconsciente ciúme que a fazia supor que o marido aproveitara o intervalo para uma visita galante Não procurarei aqui fazer uma apreciação psicológica do pensamento ob sessivo Ela traria resultados bastante valiosos e contribuiria mais para esclarecer nossas percepções sobre a natureza do consciente e do inconsciente que o estudo da histeria e dos fenômenos da hipnose Seria desejável que os filósofos e psicólo gos que produzem teorias engenhosas sobre o inconsciente a partir do que ouvem dizer ou de suas próprias definições convencionais adquirissem antes as impressões decisivas que podemos obter dos fenômenos do pensamento obsess ivo quase que exigiríamos tal coisa deles se não fosse tão mais laboriosa do que os métodos de trabalho com que estão familiarizados Aqui apenas direi que na neurose obsessiva ocasionalmente os processos psíquicos inconscientes ir rompem na consciência da forma mais pura e menos desfigurada que tal irrupção pode ocorrer desde qualquer estágio do processo inconsciente de pensamento e que as ideias obsessivas no instante da irrupção geralmente podem ser recon hecidas como formações há muito existentes Daí o notável fenômeno de que quando se busca com o neurótico obsessivo a primeira aparição de uma ideia ob sessiva ele tem de recuála sempre mais no decorrer da análise sempre achando novos primeiros ensejos para ela b algumas peculiaridades psíquicas dos neuróticos obsessivos sua relação com a realidade a superstição e a morte Tratarei aqui de algumas características psíquicas dos neuróticos obsessivos que não parecem importantes em si mas achamse no caminho para a compreensão do que é mais importante Elas eram bem prenunciadas em meu paciente mas sei 61316 que não devem ser atribuídas à sua individualidade e sim ao seu distúrbio e que são encontradas tipicamente em outros neuróticos obsessivos O paciente era supersticioso em alto grau embora fosse um homem esclarecido de elevada instrução e viva perspicácia que de vez em quando me assegurava não crer naquelas bobagens Portanto ele era e ao mesmo tempo não era supersticioso distinguindose claramente dos supersticiosos incultos que se acham em harmonia com suas crenças Ele parecia compreender que a superstici osidade dependia de seu pensamento obsessivo embora às vezes se entregasse in teiramente a ela Uma conduta assim contraditória e oscilante pode ser entendida mais facilmente à luz de uma determinada hipótese explicativa Não hesitei em supor que ante essas coisas ele possuía duas convicções diferentes e opostas e não uma opinião ainda a ser formada Entre as duas convicções ele oscilava em óbvia dependência de sua atitude momentânea para com a neurose obsessiva Tão logo superava uma obsessão ria de sua credulidade com superior entendimento e nada acontecia que o pudesse abalar e tão logo se encontrava novamente sob o domínio de uma obsessão não resolvida ou o que a isso equivale de uma resistência sucediamlhe os mais estranhos acasos vindo em auxílio de sua crédula convicção Sua superstição era a de um homem culto prescindia de vulgaridades como o temor da sextafeira do número 13 etc Mas ele acreditava em premonições e sonhos proféticos sempre topava com pessoas nas quais inexplicavelmente tinha pensado pouco antes e recebia cartas de correspondentes que após longos intervalos subitamente lhe haviam retornado à lembrança Ao mesmo tempo era bastante probo ou bastante fiel à sua convicção oficial para não esquecer casos em que os mais fortes pressentimentosl haviam resultado em nada por exemplo certa vez em que indo para uma estação de veraneio teve o claro pressentimento 62316 de que não retornaria vivo a Viena Também admitiu que a grande maioria dos presságios dizia respeito a coisas sem importância maior para ele e que ao de parar com alguém de que há muito não se lembrava até alguns momentos antes nada mais ocorria entre ele e a pessoa que milagrosamente reaparecera E natur almente não podia questionar que tudo importante em sua vida ocorrera sem nenhum aviso fora surpreendido totalmente pela morte do pai por exemplo Mas esses argumentos não afetavam a discrepância que havia em suas convicções apenas atestavam o caráter obsessivo de sua supersticiosidade que já podíamos inferir das oscilações desta que acompanhavam a resistência Claro que eu não estava em condição de explicar racionalmente todas as histórias miraculosas de seu passado mas pude lhe provar quanto às coisas desse tipo que sucederam durante o tratamento que ele mesmo participava da fab ricação dos milagres e quais meios utilizava para isso Recorria à visão e leitura indiretam ao esquecimento e sobretudo a equívocos de memória No final ajudoume a descobrir até os pequenos truques mediante os quais eram feitos aqueles prodígios Uma interessante raiz infantil de sua crença na realização de presságios e profecias mostrouse na lembrança de que frequentemente quando se marcava um compromisso sua mãe dizia Não posso nesse dia terei que ficar de cama E realmente ela ficava de cama naquele dia Sem dúvida para ele era necessário encontrar nas vivências esses pontos de apoio para sua supersticiosidade e por isso tanto observava os conhecidos e inex plicáveis acasos da vida cotidiana ajudandoos com atividade inconsciente quando não bastavam Deparei com tal necessidade em muitos outros neuróticos obsessivos e suponho que se ache em muitos mais Pareceme perfeitamente ex plicável a partir do caráter psicológico da neurose obsessiva Como expus acima p 58 nesse distúrbio a repressão não se dá mediante a amnésia mas pela rup tura dos nexos causais decorrente da subtração do afeto Uma certa energia 63316 evocadora que em outro lugar comparei a uma percepção endopsíquica52 parece subsistir nesses nexos reprimidos de modo que são introduzidos no mundo externo pela via da projeção lá dando testemunho do que foi omitido na psique Outra necessidade psíquica comum aos neuróticos obsessivos que tem certo parentesco com a recémmencionada e cuja investigação nos leva mais fundo na pesquisa dos instintos é a necessidade de incerteza na vida de dúvida A produção da incerteza é um dos métodos que a neurose utiliza para afastar o doente da real idade e tirálo do mundo o que por certo é tendência de qualquer distúrbio psiconeurótico Mais uma vez é bastante claro quanto os doentes se esforçam para fugir a uma certeza e permanecer numa dúvida Em alguns essa tendência chega a exprimirse vivamente na aversão a relógios que dão certeza quanto à hora do dia e nos artifícios inconscientes que empregam para tornar inofensivos os in strumentos que eliminam a dúvida O paciente desenvolvera uma habilidade es pecial em evitar informações que lhe fossem úteis para tomar decisão em seu con flito Assim no tocante à sua amada ignorava coisas decisivas para o matrimônio dizia não saber quem realizara a cirurgia e se fora retirado um ou ambos os ovários Foi levado a recordar o esquecido e verificar o negligenciado A predileção que têm os neuróticos obsessivos pela incerteza e a dúvida tornase um motivo para que voltem seus pensamentos sobretudo para os temas em que a incerteza é humanamente universal em que nosso saber ou nosso juízo está necessariamente exposto à dúvida Esses temas são antes de tudo a pa ternidade a duração da vida a vida alémtúmulo e a memória na qual costum amos crer sem a menor garantia de que seja confiável53 A neurose obsessiva utilizase prodigamente da incerteza da memória para a formação de sintomas e logo veremos que papel têm a duração da vida e o além 64316 túmulo no pensamento dos doentes Mas antes me parece oportuno discutir um traço de supersticiosidade do paciente que já mencionei p 89 algumas páginas acima que certamente terá surpreendido alguns leitores Refirome à onipotência que ele atribuiu a seus pensamentos e sentimentos a seus bons e maus desejos É tentador explicar essa ideia como um delírio que ul trapassa o âmbito da neurose obsessiva mas encontrei a mesma convicção num outro obsessivo que há muito se acha recuperado e leva uma vida normal e de fato todos os neuróticos obsessivos agem como se partilhassem tal convicção É tarefa nossa esclarecer essa superestimação De imediato supomos que nesta crença há uma sincera admissão da velha mania infantil de grandeza e pergun tamos ao paciente em que apoia ele sua convicção Como resposta ele traz duas vivências Na segunda vez em que foi para o estabelecimento hidroterápico no qual tivera o primeiro e único alívio para seu mal solicitou o mesmo quarto que por sua localização facilitara o relacionamento com uma das enfermeiras Responderamlhe que o quarto não estava disponível um velho professor o havia tomado e a essa notícia que diminuía bastante suas perspectivas de cura ele reagiu com palavras hostis Que ele tenha um ataque por isso Duas sem anas depois acordou com a perturbadora imagem de um cadáver e de manhã soube que o professor realmente tivera um ataque e que fora levado para o quarto aproximadamente no instante em que ele próprio acordava A outra vivência diz ia respeito a uma moça mais velha ainda solteira e bastante carente de amor que se mostrava muito receptiva a ele e perguntoulhe diretamente certa vez se não poderia amála Ele deu uma resposta esquiva alguns dias depois soube que ela havia se lançado de uma janela Então se recriminou dizendo que estivera em seu poder mantêla viva se lhe tivesse dado seu amor Desse modo chegou a convencerse da onipotência de seu amor e de seu ódio Sem querer negar a oni potência do amor sublinhemos que os dois casos tratam da morte e adotemos a 65316 explicação para nós natural de que o paciente como outros neuróticos obsess ivos é obrigado a superestimar o efeito dos seus sentimentos hostis sobre o mundo exterior pois escapa ao seu conhecimento consciente boa parte do efeito interior psíquico desses sentimentos Seu amor ou antes seu ódio é mesmo muito poderoso cria justamente os pensamentos obsessivos cuja origem ele não entende e contra os quais ele se defende em vão54 O paciente nutria uma relação muito especial com o tema da morte Demon strava condolência em todos os casos de morte e participava piedosamente dos funerais de forma que seus irmãos zombavam dele chamandoo de pássaro agourento Também na imaginação ele matava pessoas continuamente para exprimir seus pêsames aos sobreviventes A morte de uma irmã mais velha quando ele tinha três ou quatro anos desempenhava grande papel em suas fantas ias e foi posta em íntima relação com seus maus procedimentos daquela época Sabemos além disso como o pensamento da morte do pai ocupara bem cedo a sua mente e podemos ver seu próprio adoecimento como reação a esse evento desejado obsessivamente quinze anos antes A singular extensão dos temores ob sessivos ao além não é mais que uma compensação pelos desejos de morte em relação ao pai Ela ocorreu quando o luto pelo falecido pai teve uma recrudescên cia um ano e meio depois e deveria a contrapelo da realidade e em atenção a um desejo que antes se insinuara em todo tipo de fantasias anular a morte do pain Em vários lugares pp 85 88 aprendemos a traduzir a expressão no além por se o pai ainda vivesse Mas outros neuróticos obsessivos aos quais o destino não apresentou o fenô meno da morte em idade tão tenra não se conduzem de maneira muito diferente Preocupamse bastante com a duração da vida e a possibilidade da morte de 66316 outros suas tendências supersticiosas não tinham inicialmente outro conteúdo e talvez não tenham outra origem Mas requerem a possibilidade da morte sobre tudo para resolver os conflitos que deixaram sem solução Sua característica es sencial é serem incapazes de decisão especialmente em questões de amor pro curam adiar toda decisão e na dúvida de por qual pessoa ou por qual medida contra uma pessoa devem decidir têm seu modelo nos velhos tribunais alemães cujos processos geralmente terminavam com a morte das partes em litígio antes da sentença do juiz Assim em todo conflito de sua vida eles espreitam a morte de uma pessoa importante para eles normalmente uma pessoa amada seja um dos pais seja um competidor ou um dos objetos de amor entre os quais hesita sua inclinação Mas com esta apreciação do complexo de morte na neurose obsessiva já tocamos na vida instintual dos neuróticos obsessivos para a qual nos voltare mos agora c a vida instintual e as origens da compulsão e da dúvida Se quisermos conhecer as forças psíquicas cuja interação fabricou essa neurose teremos de remontar ao que ouvimos do paciente sobre as causas imediatas de sua doença na idade adulta e na infância Ele adoeceu aos vinte e poucos anos quando se viu frente à tentação de casar com outra moça que não aquela que havia muito amava e furtouse à resolução desse conflito adiando todas as ações preliminares requeridas algo para o qual a neurose lhe forneceu os meios A os cilação entre a amada e a outra pode ser reduzida ao conflito entre a influência do pai e o amor àquela mulher ou seja a uma escolha conflituosa entre pai e objeto sexual tal como já existia nos primeiros anos da infância de acordo com as lem branças e ideias obsessivas Além do mais é claro que em toda a sua vida tanto relativamente ao pai como à mulher que amava existia nele um conflito entre 67316 amor e ódio Fantasias de vingança e manifestações obsessivas como a obsessão de compreender ou a reposição da pedra no caminho mostram essa divisão den tro dele algo compreensível até certo ponto pois aquela mulher com a recusa inicial e depois com a frieza havia lhe dado motivo para sentimentos hostis Mas a mesma desunião de sentimentos dominava sua relação com o pai como vimos ao traduzir seus pensamentos obsessivos e o pai também deve ter lhe dado motivo para hostilidade na infância como pudemos verificar com certeza quase total Sua atitude com a mulher que amava composta de ternura e hostilidade es tava em boa parte dentro de sua percepção consciente Ele se enganava no máx imo quanto à medida e à expressão do sentimento negativo já a hostilidade com o pai que um dia fora vivamente consciente há muito se retraíra e apenas super ando as mais fortes resistências pôde ser trazida de volta à consciência Na repressão do ódio infantil ao pai enxergamos o evento que impeliu tudo o que su cedeu depois para o âmbito da neurose Os conflitos de sentimento que apresentamos separadamente não independem uns dos outros são unidos em pares O ódio tinha que ligarse à afeição ao pai e viceversa Mas as duas correntes de conflito que resultam dessa simplificação a oposição entre o pai e a amada e a contradição de amor e ódio em cada relação nada têm a ver entre si seja no conteúdo ou na gênese O primeiro dos dois con flitos corresponde à hesitação normal entre homem e mulher como objeto da escolha amorosa que inicialmente é sugerida à criança com a famosa pergunta Você gosta mais de quem do papai ou da mamãe e que vem a acompanhála por toda a vida não obstante as diferenças na formação das intensidades afetivas e na fixação das metas sexuais definitivas Mas normalmente essa oposição logo perde o caráter de contradição aguda de um inexorável ou isso ou aquilo cria se espaço para as reivindicações desiguais de ambas as partes apesar de também 68316 no indivíduo normal a valorização de um sexo implicar sempre a desvalorização do outro Mais estranho nos parece o outro conflito aquele entre amor e ódio Sabemos que a paixão incipiente é não raro percebida como ódio e que o amor ao qual é negada satisfação tornase facilmente ódio em parte e os poetas nos dizem que em estágios tempestuosos da paixão os dois sentimentos contrários podem existir lado a lado por algum tempo como que competindo Mas a coexistência crônica de amor e ódio à mesma pessoa os dois sentimentos com a máxima intensidade é algo que nos espanta Esperaríamos que o grande amor tivesse há muito superado o ódio ou sido por ele consumido De fato tal persistência dos contrários é pos sível apenas em condições psicológicas especiais e pela colaboração do estado in consciente O amor não pôde extinguir o ódio apenas empurrálo para o incon sciente e ali este pode conservarse e até crescer protegido da ação eliminadora da consciência Em tais circunstâncias o amor consciente costuma atingir de maneira reativa um grau de intensidade bastante elevado para poder realizar a constante tarefa que lhe cabe a de manter reprimido o seu oponente Uma sep aração desses opostos ocorrida bem cedo nos anos préhistóricos da infância com repressão de uma das partes geralmente o ódio parece ser a condição para esta surpreendente constelação da vida amorosa55 Se consideramos um bom número de análises de neuróticos obsessivos não podemos nos furtar à impressão de que essa atitude de amor e ódio do paciente está entre as características mais frequentes mais marcantes e portanto provavelmente mais significativas da neurose obsessiva No entanto embora seja tentador ligar o problema da escolha da neurose à vida instintual há motivos suficientes para fugir a essa tentação e é preciso dizer que em todas as neuroses descobrimos na base dos sintomas os mesmos instintos suprimidos O ódio retido pelo amor com a supressão no inconsciente também tem um grande papel 69316 na patogênese da histeria e da paranoia Conhecemos muito pouco a natureza do amor para poder chegar aqui a uma conclusão definida sobretudo a relação de seu fator negativo56 com o componente sádico da libido permanece obscura Port anto tem apenas o valor de uma explicação provisória se afirmamos que nos casos discutidos de ódio inconsciente o componente sádico do amor desenvolveuse constitucionalmente de forma bastante acentuada daí experi mentando uma supressão prematura e demasiado radical e os fenômenos neuróticos observados derivam por um lado da ternura consciente elevada ao máximo pela reação e por outro lado do sadismo que prossegue atuando como ódio no inconsciente Mas como quer que se entenda essa notável relação de amor e ódio a obser vação feita em nosso paciente não deixa dúvidas quanto à sua ocorrência e é gratificante ver como os enigmáticos processos da neurose obsessiva tornamse compreensíveis quando referidos a esse fator Se a um amor intenso contrapõese indissoluvelmente um ódio quase tão forte o resultado imediato é uma parcial paralisia da vontade uma incapacidade de decisão em todos os atos nos quais o amor é o motivo impulsor Mas a indecisão não fica limitada por muito tempo a um só grupo de ações Pois em primeiro lugar que atos de uma pessoa que ama não estariam em relação com seu motivo principal Em segundo lugar a conduta no âmbito sexual tem a força de um modelo agindo conformadoramente sobre as demais reações de uma pessoa e em terceiro é característica psicológica da neurose obsessiva fazer amplo uso do mecanismo do deslocamento Assim a paralisia da decisão se estende gradualmente por toda a atividade da pessoa57 Com isso há o domínio da obsessão e da dúvida tal como encontramos na vida psíquica dos neuróticos obsessivos A dúvida corresponde à percepção interna da irresolução que devido à inibição do amor pelo ódio assenhoreiase do doente em cada ação pretendida É na realidade uma dúvida quanto ao amor que 70316 subjetivamente deveria ser a coisa mais certa dúvida que se alastra por todo o resto e que se desloca preferentemente para o que é menor e mais insignificante Quem duvida de seu próprio amor não pode não deve duvidar de tudo o mais de tudo pequeno58 A mesma dúvida que nas medidas protetoras leva à incerteza e à contínua re petição para banir tal incerteza acaba por fazer com que essas ações protetoras tornemse inexequíveis como a inibida decisão original quanto ao amor No iní cio de minhas investigações tive de supor uma procedência mais geral para a in certeza dos neuróticos obsessivos que parecia avizinharse mais da norma Se fui distraído por perguntas de outra pessoa ao redigir uma carta por exemplo sinto depois uma justificada incerteza quanto ao que escrevi e vejome obrigado a rel er a carta depois de pronta para certificarme dela Assim também pude achar que a incerteza dos neuróticos obsessivos nas suas orações por exemplo vem de que fantasias inconscientes não cessam de interferir e perturbar o ato da oração Esta suposição era correta mas não é difícil conciliála com nossa afirmação an terior É certo que a insegurança quanto a haver tomado uma medida protetora vem do efeito perturbador das fantasias inconscientes mas o teor dessas fantasias é justamente o impulso contrário que deveria ser afastado pela oração Uma vez isso ficou bastante claro em nosso paciente já que a perturbação não permaneceu inconsciente mas fezse ouvir em voz alta Durante a reza quando ele quis dizer Deus a proteja interpôsse bruscamente um não hostil vindo do incon sciente e ele se deu conta de que estava para pronunciar uma maldição p 55 Não aparecendo o não ele se via em estado de incerteza e prolongava a oração falandoo ele finalmente parava de rezar Antes de fazer isso experimentava como outros neuróticos obsessivos todo tipo de método para impedir a intromis são do contrário como o abreviamento da oração ou a aceleração do ritmo em que a falava outros se empenham em isolar das demais cada uma dessas ações 71316 protetoras Mas a longo prazo nenhuma dessas técnicas dá frutos se o impulso amoroso pode realizar algo em seu deslocamento para uma ação mínima logo o impulso hostil o segue também ali e novamente anula a sua obra Quando o neurótico obsessivo descobre o ponto fraco de nossa psique no tocante à certeza isto é a não confiabilidade da memória pode então com sua ajuda estender a dúvida a todo o resto também a ações já cumpridas e ainda sem laços com o complexo amoródio e a todo o passado Recordo o exemplo da mulher que tinha comprado um pente para sua filha numa loja e desconfiando do marido começou a imaginar se já não o possuía havia bastante tempo Não está ela dizendo Se posso duvidar de seu amor e isso é apenas uma projeção da dúvida de seu próprio amor a ele posso duvidar também disso posso duvidar de tudo assim nos revelando o sentido encoberto da dúvida neurótica A obsessão porém é uma tentativa de compensar a dúvida e corrigir o intol erável estado de inibição de que a dúvida é testemunho Se com o auxílio do des locamento o doente consegue levar à resolução algum dos propósitos inibidos este tem de ser realizado Certamente não é mais o original mas a energia ali represada já não renuncia à oportunidade de desafogo que é a ação substituta Então ela se exprime em comandos e proibições conforme o impulso afetuoso ou o impulso hostil se apodere desse caminho para a descarga Se o comando obsess ivo não é seguido a tensão é insuportável vindo a ser percebida como angústia extrema Mas o próprio caminho que leva à ação substitutiva deslocada para algo ínfimo é tão fortemente questionado que geralmente ela pode ser realizada apen as como medida protetora em íntima ligação com um impulso a ser afastado Mediante uma espécie de regressão além disso atos preparatórios tomam o lugar da resolução final o pensamento substitui o agir e algum pensamento pre liminar ao ato se impõe com obsessiva veemência no lugar da ação substitutiva Conforme essa regressão do agir ao pensar for mais ou menos pronunciada o 72316 caso de neurose obsessiva toma características de pensamento obsessivo ideias obsessivas ou de ações obsessivas no sentido estrito Tais ações obsessivas con tudo são possibilitadas apenas porque nelas os dois impulsos antagonistas prat icamente se conciliam em formações de compromisso Pois elas aproximamse cada vez mais e quanto mais dura a enfermidade de modo mais nítido dos atos sexuais infantis da espécie da masturbação De forma que nesse tipo de neur ose chegam a se realizar atos de amor mas apenas com o recurso a uma nova re gressão não mais atos ligados a outra pessoa objeto de amor e ódio mas ações autoeróticas como as da infância A primeira regressão do agir ao pensamento é favorecida por um outro fator que participa da gênese da neurose Nas histórias dos neuróticos obsessivos um acontecimento quase regular é o precoce surgimento e prematura repressão do impulso sexual de olhar e sabero que também em nosso paciente governava uma parte da atividade sexual infantil59 Já vimos a significação dos componentes sádicos na origem da neurose obses siva Quando o impulso de saber predomina na constituição do neurótico obsess ivo o cismar tornase o principal sintoma da neurose O processo mesmo de pensar é sexualizado na medida em que o prazer sexual que normalmente se liga ao teor do pensamento é voltado para o ato mesmo de pensar e a satisfação ao atingir um resultado intelectual é sentida como satisfação sexual Nas várias formas da neurose obsessiva em que o impulso de saber participa sua relação com os processos intelectuais o faz particularmente adequado a atrair a energia que em vão se empenha para chegar à ação e levála ao âmbito do pensamento onde se oferece a possibilidade de outra espécie de satisfação do prazer Assim a ação substitutiva pode com a ajuda do impulso de saber ser também substituída por atos de pensamento preparatórios Mas o adiamento da ação logo é sub stituído pelo demorarse no pensamento e todo o processo é enfim transposto 73316 para um novo âmbito mantendose todas as suas peculiaridades tal como os americanos conseguem to move mover uma casa de um local para outro Apoiado nas considerações acima agora me aventuro a determinar a caracter ística psicológica há tanto tempo buscada que dá aos produtos da neurose obses siva sua qualidade de obsessão Tornamse obsessivos aqueles processos de pensamento que devido à inibição resultante do conflito de opostos no extremo motor dos sistemas mentais se realizam com um dispêndio de energia tanto qualitativa como quantitativamente que normalmente é destinado apenas às ações ou seja àqueles pensamentos que têm de representar atos regressivamente Creio que não se poderá contestar a suposição de que em geral o pensar é efetu ado por razões econômicas com deslocamentos de energia menores provavel mente em nível mais elevado do que o agir destinado a trazer descarga e a mudar o mundo exterior Aquilo que como pensamento obsessivo penetrou de maneira muito forte na consciência precisa então ser garantido contra os esforços do pensamento con sciente para dissolvêlo Já sabemos que tal proteção é alcançada através da de formação que o pensamento obsessivo sofreu antes de tornarse consciente Mas este não é o único meio Além disso raramente se deixa de afastar a ideia obses siva da situação em que ela se originou na qual apesar da deformação seria fa cilmente compreensível Com esse propósito por um lado é introduzido um inter valo entre a situação patogênica e a ideia obsessiva dela decorrente o qual con funde a investigação consciente das causas por outro lado o conteúdo da ideia obsessiva é separado de seus vínculos especiais mediante a generalização O paciente dá um exemplo disso na obsessão de compreender p 52 um exemplo melhor seria talvez o de outra enferma que se proibiu de usar qualquer adorno embora a causa imediata da proibição remontasse a um único adorno que ela invejara da mãe e que esperava um dia herdar Por fim também serve 74316 para proteger a ideia obsessiva do trabalho de dissolução por parte da consciência o uso de palavras imprecisas ou ambíguas se quisermos distinguir entre esse e a deformação inteirap Essas palavras malentendidas podem então introduzirse nos delírios e os desenvolvimentos ou sucedâneos da obsessão se ligam ao mal entendido não ao texto correto Mas a observação mostra que esses delírios se empenham em obter sempre novos vínculos com o texto e teor da obsessão não acolhido no pensamento consciente Quero retornar ainda uma vez à vida instintual da neurose obsessiva para fazer uma única observação O paciente revelouse também um cheirador al guém que na infância segundo ele próprio reconhecia cada pessoa pelo cheiro como um cão e a quem ainda hoje as percepções olfativas dizem mais do que a outras pessoas60 Encontrei algo semelhante em outros neuróticos obsessivos e histéricos e aprendi a levar em conta o papel que tem na gênese da neurose o prazer em cheirar desaparecido desde a infância De maneira bem ampla gostaria de lançar a questão de que a inevitável atrofia do olfato que veio com a adoção da postura ereta pelo ser humano e consequente repressão orgânica do prazer em cheirar poderiam contribuir bastante para a sua capacidade de adoecimento neurótico Isso explicaria por que no avanço da civilização justamente a vida sexual seja vítima da repressão Pois há muito sabemos do íntimo nexo estabele cido na organização animal entre a função do olfato e o instinto sexual Finalizando quero expressar a esperança de que esta minha comunicação incom pleta em todo sentido possa ao menos estimular outros a trazerem mais coisas à luz aprofundando o estudo da neurose obsessiva A meu ver o que caracteriza essa neurose o que a diferencia da histeria deve ser buscado na situação psicoló gica não na vida instintual Não posso deixar este meu paciente sem registrar a impressão de que se achava como que dissociado em três personalidades eu diria que em uma inconsciente e duas préconscientes entre as quais sua consciência 75316 podia oscilar Seu inconsciente abrangia os impulsos suprimidos bastante cedo que podemos designar como apaixonados e maus em seu estado normal ele era bom alegre superior prudente e esclarecido mas numa terceira organização psíquica rendia tributo à superstição e à ascese de modo que podia ter duas con vicções e sustentar duas diferentes concepções do mundo Esta pessoa précon sciente encerrava sobretudo as formações reativas a seus desejos reprimidos e não era difícil prever que teria consumido a pessoa normal caso a doença perdur asse No momento tenho a oportunidade de estudar uma mulher que sofre sev eramente de atos obsessivos e que de modo semelhante dividiuse em uma per sonalidade tolerante jovial e em outra bastante sombria e ascética ela destaca a primeira como seu Eu oficial enquanto é dominada pela segunda As duas organ izações psíquicas têm acesso à sua consciência e por trás da pessoa ascética há que se buscar o inconsciente do seu ser totalmente desconhecido para ela e con sistindo em desejos antiquíssimos há muito reprimidos61 1 Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa parte II Natureza e mecanismo da neurose obsessiva 1986 2 Psicopatologia da vida cotidiana 1901 3 Redigido segundo as anotações feitas na noite de cada dia do tratamento buscando servirme das palavras que recordava do paciente Sintome obrigado a advertir que não se utilize a hora 76316 mesma do tratamento para registrar o que se ouve O desvio da atenção do médico traz mais danos ao paciente do que o que poderia ser relevado pelo ganho na fidelidade da reprodução do caso 4 Quando ainda era psicanalista o dr Alfred Adler mencionou numa conferência privada a im portância especial que têm as primeiríssimas comunicações dos pacientes Eis aqui uma prova disso As palavras iniciais do paciente enfatizam a influência que os homens exercem sobre ele o papel da escolha homossexual de objeto em sua vida e em seguida abordam um segundo tema que depois sobressairá bastante o conflito e a oposição de interesses entre homem e mulher Também deve ser registrado o fato de se lembrar da primeira e bela governanta pelo nome de família que casualmente é igual a um prenome masculino Nos círculos burgueses de Viena costumase chamar as governantas pelo prenome guardandose sobretudo este na memória Na primeira edição de 1909 essa nota começava da seguinte forma Meu colega o dr Alfred Adler foi modificada em 1913 após a ruptura com Adler 5 Depois ele admite que provavelmente a cena ocorreu um ou dois anos mais tarde 6 Recordemos que já se fez a tentativa de explicar as ideias obsessivas sem considerar a afetividade 7 Ele diz ideia Vorstellung desejo Wunsch ou antes temor Befürchtung a designação mais forte e mais importante foi evidentemente encoberta pela censura A característica indefin ição de todas as suas falas não pode ser aqui reproduzida infelizmente 8 Os nomes quase não importam aqui 9 Uma descrição mais precisa do episódio depois fornecida pelo paciente levou a uma com preensão desse efeito O tio viúvo exclamara lamentando Outros homens se permitem tudo e eu vivi somente para essa mulher Nosso paciente imaginou que o tio aludisse a seu pai e sus peitou da fidelidade conjugal deste e embora o tio contestasse resolutamente essa interpretação de suas palavras o seu efeito não pôde ser anulado 10 Isso é correto apenas de modo bem aproximado mas basta para um primeiro passo 11 Não apenas o neurótico obsessivo se satisfaz com esses eufemismos 12 Dez anos antes 13 Aqui é claramente mostrada uma oposição entre as duas pessoas amadas o pai e a senhora 14 O propósito de tais discussões não é jamais o convencimento Elas devem apenas introduzir os complexos reprimidos na consciência avivar a luta em torno deles no terreno da atividade psíquica consciente e facilitar a emergência de novos materiais do inconsciente A convicção vem somente após a elaboração do material readquirido pelo doente e enquanto ela for hesitante não se pode julgar esgotado o material 77316 15 Essa consciência de culpa contraria abertamente sua negativa inicial de que nunca tivera tal desejo ruim em relação ao pai É um tipo frequente de reação ao reprimido tornado consciente ao primeiro Não de rejeição logo se segue a confirmação primeiramente indireta 16 Além do bem e do mal 68 17 Algo que mais adiante achará explicação 18 Exponho esses argumentos apenas para mais uma vez comprovar como são impotentes Não entendo quando outros psicólogos dizem que combatem eficazmente as neuroses com tais armas 19 Aqui eu acrescento antes 20 Na neurose obsessiva está longe de ser tão frequente e desconsiderado como na histeria o uso de nomes e palavras para estabelecer nexos entre os pensamentos inconscientes impulsos fantasi as e os sintomas Mas justamente para o nome Richard lembrome de um outro exemplo num paciente analisado muito tempo atrás Após um desentendimento com o irmão ele se pôs a cogit ar como poderia se desfazer de sua riqueza dizia não querer nada mais com dinheiro etc O irmão se chamava Richard richard em francês significa ricaço 21 Acrescentemos de que ele pudesse ter culpa 22 Cf Ernest Jones Rationalisation in everyday life Journal of Abnormal Psychology 1908 23 Cf Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade1908 24 Outro paciente obsessivo contoume que estando certa vez no parque de Schönbrunn havia topado com um ramo de árvore solto no caminho que ele então arrastou com o pé em direção à sebe lateral Já voltando para casa veiolhe subitamente a preocupação de que o ramo que ficara um tanto saliente poderia ser motivo de acidente para quem passasse pelo mesmo local Teve que descer do bonde correr de volta ao parque procurar o lugar e colocar o ramo na posição anteri or embora qualquer outra pessoa notasse que a velha posição era mais perigosa para um passante do que a nova junto à sebe A segunda ação hostil que se impôs como compulsão havia se adornado ante o pensamento consciente com a motivação da primeira esta sim benfeitora 25 Vejase o mecanismo análogo das ideias sacrílegas que como é sabido ocorrem às pessoas santas 26 Este sonho esclarece o riso compulsivo em ocasiões de luto tão frequente e tido como enigmático 27 Não é de excluir que outro motivo contribuísse para esta súbita ideia obsessiva a vontade de sabêla indefesa ante as suas intenções 28 É preciso então admitir que na neurose obsessiva há dois tipos de conhecimento e com igual direito podese afirmar que o neurótico obsessivo tanto conhece os seus sonhos como não os 78316 conhece Pois os conhece na medida em que não os esqueceu e não os conhece por não recon hecer sua significação Na vida normal também não sucede de outro modo Os garçons que cos tumavam servir o filósofo Schopenhauer no restaurante que frequentava o conheciam em de terminado sentido numa época em que era desconhecido em Frankfurt e outros lugares mas não no sentido que hoje ligamos ao conhecimento de Schopenhauer 29 Cabe ressaltar que a fuga para a doença lhe foi possibilitada pela identificação com o pai Esta permitiu a regressão dos seus afetos aos vestígios da infância 30 Cf Três ensaios de uma teoria da sexualidade 1905 sobretudo o resumo final 31 As alternativas eram incompletas O pai não pensou no resultado mais frequente de paixões as sim prematuras a neurose 32 Nas psicanálises deparamos frequentemente com tais eventos da primeira infância nos quais a atividade sexual infantil parece atingir o apogeu e devido a um acidente ou uma punição termina frequentemente de modo catastrófico Eles anunciamse debilmente nos sonhos e às vezes tornamse tão nítidos que acreditamos apreendêlos firmemente mas escapam a uma elucidação definitiva e se não procedemos com particular prudência e habilidade não temos como decidir se tal cena verdadeiramente ocorreu Somos levados ao caminho correto de interpretação pelo conhecimento de que várias versões de tais cenas às vezes muito diferentes podem ser detectadas na imaginação inconsciente do analisando Se não quisermos nos equivocar no julgamento da realidade devemos nos lembrar sobretudo que as lembranças infantis das pessoas vêm a se es tabelecer apenas numa idade posterior em geral na época da puberdade sendo então submetidas a um complicado processo de reelaboração inteiramente análogo à formação de lendas de um povo acerca de sua história primitiva Podese claramente perceber que o indivíduo em cresci mento procura nessas fantasias relativas à sua primeira infância apagar a lembrança de sua ativid ade autoerótica na medida em que eleva seus traços mnemônicos ao nível do amor objetal como um historiador que busca enxergar o passado à luz do presente Daí a profusão de ataques e se duções nessas fantasias quando a realidade se limitou à atividade autoerótica e aos carinhos e cas tigos que a estimularam Além disso notamos que fantasiando sobre sua infância o indivíduo sexualiza suas recordações isto é relaciona vivências banais à sua atividade sexual estende sobre elas o seu interesse sexual nisso provavelmente seguindo a trilha do nexo efetivamente presente Estas observações não pretendem diminuir posteriormente a significação da sexualidade infantil reduzindoa ao interesse sexual da puberdade como bem sabe o leitor que guarda na memória a minha Análise da fobia de um garoto de cinco anos 1909 Minha intenção é apenas dar in struções técnicas que solucionem as fantasias destinadas a falsear o quadro da atividade sexual infantil 79316 Raramente nos achamos na feliz situação de poder confirmar através do inabalável testemunho de um adulto os fatos sobre os quais se baseiam essas histórias relativas ao passado remoto como sucede no caso deste paciente De toda forma a declaração da mãe deixa em aberto várias possib ilidades O fato de ela não mencionar a natureza sexual da ofensa pela qual o menino foi castigado pode se dever à sua própria censura já que em todos os pais é precisamente isso que a censura se esforça por eliminar do passado dos filhos Também é possível que a babá ou a própria mãe tenha punido o garoto por uma coisa banal de natureza não sexual e depois o pai o tenha castigado por sua reação violenta Nessas fantasias a babá ou outra serviçal é normalmente substituída pela figura mais nobre da mãe Ao aprofundarmos a interpretação dos sonhos do paciente relativos a esse episódio achamos claros indícios de uma história que se pode chamar de épica na qual dese jos sexuais referentes à mãe e à irmã e a morte prematura dessa irmã eram relacionados ao cas tigo do pequeno herói nas mãos do pai Não foi possível desfazer fio por fio esse emaranhado de fantasias precisamente o sucesso terapêutico foi o obstáculo para isso O paciente restabeleceuse e teve de enfrentar várias tarefas que a vida lhe impunha já há muito tempo adiadas que não eram compatíveis com o prosseguimento da terapia Que não me seja criticada portanto essa la cuna na análise A investigação científica mediante a psicanálise é hoje apenas um produto secun dário do esforço terapêutico e por isso a colheita é maior com frequência justamente nos casos em que o tratamento fracassou O teor da vida sexual infantil consiste na atividade autoerótica dos componentes sexuais domin antes em traços de amor objetal e na formação do complexo que poderíamos chamar de complexo nuclear das neuroses que compreende os primeiros impulsos carinhosos ou hostis ante os pais e irmãos depois que a curiosidade do pequeno é despertada geralmente pela chegada de um novo irmãozinho A uniformidade desse conteúdo e a constância das influências modificadoras futuras explicam facilmente por que de modo geral sempre se formam as mesmas fantasias sobre a infân cia não importando se foi pequena ou grande a contribuição das vivências reais Corresponde ao complexo nuclear infantil que o pai tenha o papel de rival sexual e perturbador da atividade sexual autoerótica e nisso a realidade tem boa participação geralmente 33 Não esqueçamos que ele soube disso antes que o capitão lhe fizesse a solicitação injustificada de que reembolsasse o primeirotenente A Eis o ponto indispensável para a compreensão da história e o fato de suprimilo envolveu o paciente numa confusão atroz e impediume por al gum tempo de apreender o sentido do conjunto 34 Nota acrescentada em 1923 Depois que o paciente tudo fez para embaralhar o episódio do reembolso do valor do pincenê talvez eu também não tenha conseguido expôlo de modo inteira mente claro Por isso reproduzo aqui um pequeno mapa com o qual Mr e Mrs Strachey 80316 buscaram ilustrar a situação no momento do fim das manobras Meus tradutores observaram com justeza que o comportamento do paciente será ainda incompreensível se não enfatizarmos que o primeirotenente A tinha vivido na localidade da agência postal Z e lá se ocupado do correio militar mas nos últimos dias das manobras passou esta função para o primeirotenente B e foi transferido para A O capitão cruel ainda não sabia desta mudança daí o seu erro de acreditar que o reembolso devia ser feito ao primeirotenente A 35 Cf Caráter e erotismo anal 1908 36 Se o leitor sacudir a cabeça questionando esses saltos da fantasia neurótica tenha em mente caprichos semelhantes a que a fantasia dos artistas eventualmente se entrega por exemplo as Di ableries érotiques de Le Poitevin 37 A Senhora dos Ratos personagem de Ibsen certamente derivou do lendário Flautista de Hamelin que primeiramente atrai os ratos para a água e depois arrebata as crianças da cidade para que nunca mais retornem Também o pequeno Eyolf se joga na água sob o sortilégio da Sen hora dos Ratos Em geral o rato não aparece nas lendas como um animal asqueroso e sim in quietante um animal ctônio podese dizer sendo usado para representar as almas dos mortos 38 Provavelmente uma das numerosas doninhas que se acham no Cemitério Central de Viena 39 Diz Mefistófeles Doch dieser Schwelle Zauber zu zerspalten Bedarf ich eines Rattenzahns Noch einen Biß so ists geschehen Mas para romper o sortilégio desse umbral Necessito dos dentes de um rato Mais uma mordida e está feito Goethe Fausto 1 cena 3 40 Na taberna de Auerbach Er sieht in der geschwollnen Ratte Sein ganz natürlich Ebenbild Ele vê no rato inchado A imagem viva de si mesmo Fausto 1 cena 5 41 Não naquela noite como ele disse primeiramente Não é possível que o pincenê encomendado chegasse no mesmo dia Ele abrevia na memória esse intervalo porque nele se produziram as conexões de pensamento decisivas e porque reprime o encontro sucedido neste intervalo com o oficial que lhe relatou a atitude simpática da funcionária do correio 42 Logo o absurdo significa também derrisão na linguagem do pensamento obsessivo tal como nos sonhos Ver Interpretação dos sonhos 8a ed p 297 cap vi seção g 43 Pode ser interessante sublinhar que a obediência ao pai coincide mais uma vez com o afasta mento da dama Se ele ficasse e restituísse o dinheiro a A cumpriria a penitência em relação ao 81316 pai e ao mesmo tempo abandonaria a dama atraído por outro ímã Nesse conflito a vitória foi dela embora com o apoio do bom senso dele 44 Cf Sobre Teorias Sexuais Infantis 1908 45 Vários pontos tratados nesta e nas próximas seções já foram abordados na literatura sobre as neuroses obsessivas como se pode ver pela obra fundamental sobre essa enfermidade Die psych ischen Zwangserscheinungen As manifestações psíquicas obsessivas o meticuloso estudo public ado por L Löwenfeld em 1904 46 Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa 1896 seção ii 47 Essa falha na definição é corrigida no artigo mesmo onde se lê As lembranças reanimadas e as recriminações formadas a partir delas nunca entram inalteradas na consciência o que se torna consciente como ideia obsessiva e afeto obsessivo e substitui a vida consciente pela lembrança patogênica são formações de compromisso entre as ideias reprimidas e as repressoras Portanto na definição devese dar ênfase especial à palavra transformadas 48 Vários pacientes retraem sua atenção de tal forma que são incapazes de fornecer o conteúdo de uma ideia obsessiva de descrever um ato obsessivo que realizaram inúmeras vezes 49 Cf Interpretação dos sonhos 8a ed p 285 cap vi seção f 50 Sobre essa onipotência ver adiante 51 Um exemplo que deve lembrar a utilização da técnica da omissão nas piadas se encontra num outro trabalho meu O chiste e sua relação com o inconsciente 1905 cap ii seção ii Em Viena há um escritor espirituoso e combativo que pela mordacidade de suas invectivas mais de uma vez foi fisicamente agredido por parte dos que atacou Quando em certa ocasião falouse de um novo malfeito de um dos seus adversários habituais alguém afirmou Se Fulano souber disso levará uma bofetada O contrassenso do comentário desaparece se incluímos estas palavras entre as duas orações Escreverá um artigo tão veemente contra o responsável que etc Essa pi ada elíptica também mostra semelhança de conteúdo com o primeiro exemplo acima 52 Psicopatologia da vida cotidiana 1901cap xii seção cb 53 Como diz Lichtenberg Um astrônomo sabe se a Lua é habitada ou não com a certeza com que sabe quem é seu pai mas não com a certeza de quem é sua mãe Foi um grande progresso da civilização que os homens se decidissem a pôr a inferência ao lado do testemunho dos sentidos passando do direito materno ao paterno Peças préhistóricas em que uma figura menor está sentada na cabeça de uma maior representam a descendência paterna Palas Atena que não teve mãe saiu da cabeça de Zeus Em nossa língua chamase Zeuge testemunha a pessoa que atesta algo ante um tribunal conforme a participação masculina no ato da procriação o verbo zeugen 82316 significa tanto testemunhar como procriar e já nos hieróglifos a testemunha era repres entada com a imagem dos órgãos genitais masculinos 54 Nota acrescentada em 1923 A onipotência dos pensamentos ou mais precisamente dos dese jos foi desde então percebida como dado essencial da psique primitiva Ver Totem e tabu 1912 13 55 Cf a discussão sobre esse ponto numa das primeiras sessões Acrescentado em 1923 Para esta constelação afetiva foi depois criado por Bleuler o apropriado nome de ambivalência Cf também o prosseguimento desta abordagem no ensaio A predisposição à neurose obsessiva 1913 56 Sim frequentemente desejo não mais vêlo entre os vivos Se isso ocorresse porém sei que seria ainda mais infeliz tão indefeso me sinto diante dele diz Alcibíades a respeito de Sócrates no Banquete tradução de R Kassner traduziuse aqui a versão alemã citada por Freud 57 Cf a representação por algo mínimo como técnica de piada O chiste e sua relação com o in consciente 1905 cap ii seção ii 58 Lembremos estes versos de amor que Hamlet dirige a Ofélia Doubt thou the stars are fire Doubt thou the sun doth move Doubt truth to be a liar But never doubt I love Duvide que as estrelas sejam fogos Duvide que o sol se movimente Duvide que a verdade não seja mentira Mas nunca duvide do meu amor Hamlet ii 2 58 A isso também se relaciona provavelmente a grande capacidade intelectual que os neuróticos obsessivos têm em média 60 Acrescento que fortes tendências coprofílicas vigoraram durante a sua infância Ver a respeito disso o já mencionado erotismo anal p 75 61 Nota acrescentada em 1923 O paciente que teve a saúde mental restituída pela análise que aqui comunicamos perdeu a vida na Primeira Grande Guerra como tantos outros jovens dota dos de valor e de esperança Informações sobre esse paciente agora identificado como Ernst Lanzer 18181914 e observações críticas sobre o seu caso clínico se acham em Les patients de Freud de M BorchJacobsen 2011 Le dossier Freud de M BorchJacobsen e S Shamdasani 2006 e Freud and the Rat Man de Patrick Mahony 1986 a Zwangsneurose no original O termo Zwang presente nessa e em outras expressões que surgirão no texto pode significar compulsão e coação além de obsessão a escolha geralmente 83316 adotada O leitor deverá ter isso em mente todas as vezes que deparar com o substantivo ob sessão e o adjetivo obsessivo As notas chamadas por asteriscos e as interpolações às notas do autor entre colchetes são de autoria do tradutor As notas do autor são sempre numeradas b Impuls no original Normalmente a palavra impulso é tradução de Regung nesta edição de obras de Freud por isso assinalamos as poucas ocasiões em que o autor utiliza outro termo c Hofrat literalmente conselheiro da corte era um título que na monarquia austrohúngara outorgavase a profissionais liberais e funcionários públicos que se destacavam d Impulsos Impulsen no original e Não há espaço de uma linha vazia entre esse parágrafo e o anterior na edição alemã utilizada Gesammelte Werke Mas considerando que faz sentido um espaço nesse ponto e que ele se acha numa edição alemã mais recente Studienausgabe resolvemos incorporálo aqui e em alguns outros lugares f Hermann Sudermann ficcionista alemão 18571928 o título da novela mencionada é Geschwister Irmãos g Balaão personagem do Antigo Testamento cf Números 2224 h Convicção que logo desaparecia die freilich bald überwunden wurde na edição Standard inglesa se lê though this resistance it is true used soon to break down embora essa resistência é verdade costumasse logo ceder tratase de um erro pois no original o pronome die femininose refere a Überzeugung convicção que é um substantivo feminino e não a Wider stand resistência que é masculino e pediria o pronome der i Sensibilidade de complexo Komplexempfindlichkeit nas versões estrangeiras consultadas duas em espanhol das editoras Biblioteca Nueva e Amorrortu a italiana da Boringhieri e a Standard inglesa encontramos sensibilidad de complejo idem sensibilità complessuale complex ive sensitiveness Segundo Strachey tratase de uma expressão tomada das experiências com asso ciação de palavras de Jung e seus discípulos Talvez sensibilidade ao complexo seja uma versão mais adequada j Spielratte literalmente rato de jogo k Inscritas no âmbito obsessivo no original ins Zwanghafte eingetragen nas versões con sultadas incorporadas a la obsesión asentadas en lo obsesivo convogliate nella sfera dellos sessivo carried over into his obsessional life l Os mais fortes pressentimentos na Standard inglesa se lê the strangest forebodings os mais estranhos pressentimentos isso provavelmente foi um erro de impressão a letra o do adjetivo strongest deve ter sido trocada por um a citamos a edição de 1956 pois o original diz die intens ivsten Ahnungen 84316 m Segundo nota de Strachey significa que ele usava as porções periféricas da retina em vez da mácula n Segundo lembra James Strachey Freud discute os mecanismos defensivos de anular ou des fazer e isolar utilizados pelos neuróticos obsessivos no capítulo vi de Inibição sintoma e an gústia 1926 o Do impulso sexual de olhar e saber des sexuellen Schau und Wisstriebes nesse caso adot amos impulso para verter Trieb p Eis essa frase no original Endlich dient noch zum Schutze der Zwangsidee gegen die bewußte Lösungsarbeit der unbestimmt oder zweideutig gewählte Wortlaut wenn man diesen von der einheit lichen Entstellung absondern will E na versão inglesa Finally if we care to distinguish verbal distor tion from distortion of content there is yet another means by which the obsession is protected against conscious attempts at solution And that is the choice of an indefinite or ambiguous wordingNela há uma paráfrase em que o uso de palavras ou expressões o termo inglês wording é mais próx imo do alemão Wortlautimprecisas ou ambíguas é identificado com deformação verbal e o que traduzimos por deformação inteira einheitlich literalmente unitária homogênea é ver tido por deformação de conteúdo 85316 UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI 1910 TÍTULO ORIGINAL EINE KINDHEITSERINNERUNG DES LEONARDO DA VINCI PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO LEIPZIG E VIENA DEUTICKE 1910 71 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 128211 E DE STUDIENAUSGABE X PP 87159 I Quando a investigação psicológica que em geral se contenta com material hu mano frágil aborda um dos grandes da espécie humana não o faz pelos motivos que os leigos frequentemente lhe atribuem Não pretende macular o radiante e arrastar na lama o sublimea não vê satisfação em reduzir a distância entre tal perfeição e a deficiência de seus habituais objetos de estudo Mas tem de consid erar digno de compreensão tudo o que podemos discernir em tais modelos e acha que ninguém é tão grande que possa envergonharse de estar sujeito às leis que governam com o mesmo rigor a atividade normal e a patológica Leonardo da Vinci 14521519 já era admirado por seus contemporâneos como um dos maiores nomes do Renascimento mas também já lhes parecia ser um enigma tal como ainda hoje nos parece Um gênio universal cujos con tornos podem ser apenas imaginados jamais estabelecidos1 foi como pintor que exerceu a mais forte influência em sua época ficou reservado para nós recon hecer a grandeza do cientista natural e do engenheiro que nele se combinava com o artista Embora tenha deixado obrasprimas da pintura enquanto suas descobertas científicas permaneceram inéditas e não aproveitadas em seu desen volvimento o pesquisador nunca deixou inteiramente livre o artista muitas vezes o prejudicou seriamente e talvez o tenha suprimido no fim Vasari afirma que ele se recriminou em sua última hora de vida por haver ofendido Deus e os homens ao não cumprir a obrigação em sua arte2 E ainda que essa história de Vasari não tenha muita verossimilhança exterior ou interior fazendo parte da lenda que já se 87316 formava em torno do misterioso mestre enquanto ele vivia ela possui valor indis cutível como testemunha do julgamento daqueles homens e daqueles tempos O que dificultava a compreensão da personalidade de Leonardo por seus con temporâneos Certamente não era a variedade de seus talentos e conhecimentos que lhe permitiu apresentarse na corte de Ludovico Sforza duque de Milão cognominado Il Moro o Mouro tocando uma espécie de alaúde de sua própria invenção ou escrever ao mesmo nobre a surpreendente carta em que se gabava de suas realizações como arquiteto e engenheiro militar Afinal a época da Renascença devia estar acostumada a essa combinação de múltiplas habilidades numa só pessoa embora o próprio Leonardo fosse um dos mais brilhantes exem plos disso Tampouco era ele um desses homens geniais que exteriormente pou co favorecidos pela natureza não atribuem nenhum valor às formas exteriores da vida e com doloroso ensombrecimento de ânimo fogem do trato social Ele era alto e bem proporcionado de consumada beleza de rosto e incomum força física dotado de maneiras encantadoras e de mestria com as palavras alegre e amável para com todos amava a beleza também nas coisas que o rodeavam vestia roupas magníficas e apreciava cada refinamento do viver Numa passagem do Tratado sobre a pintura que é bem reveladora de sua viva capacidade de fruição ele com para a pintura com as artes afins e aponta as agruras do trabalho do escultor com o rosto lambuzado e pleno de pó de mármore de modo que parece um padeiro e coberto de pequeninas lascas como se houvesse nevado sobre ele e tendo a habitação enxovalhada e cheia de lascas e pó de pedra O con trário sucede ao pintor pois o pintor fica sentado confortavelmente di ante de sua obra bemvestido e movimenta o levíssimo pincel com graciosas cores e achase ornado de roupas que lhe agradam e sua habitação é plena de graciosas pinturas e bastante limpa e muitas vezes ele tem a companhia de 88316 músicos ou leitores de obras variadas e belas as quais são ouvidas com grande prazer sem o barulho do martelo ou algum outro ruído3 É bem possível que a ideia de um Leonardo radiante e amigo do prazer seja válida apenas para o primeiro período de sua vida que foi também o mais longo Depois quando o fim do governo de Ludovico Mouro o obrigou a deixar Milão seu círculo de influência e sua posição segura e levar uma vida incerta e não muito rica em eventos até o derradeiro asilo na França o brilho de seu ânimo de ve ter empalidecido e alguns traços estranhos de sua natureza devem ter sobres saído Também a mudança de seus interesses da arte para a ciência cada vez maior com o passar dos anos certamente contribuiu para ampliar o abismo entre ele e seus contemporâneos Todos os experimentos com que ele na opinião destes desperdiçava seu tempo em vez de pintar quadros por encomenda e enriquecer como seu excondiscípulo Perugino por exemplo eram vistos como extravagantes passatempos e até mesmo o tornavam suspeito de cultivar a arte negra Nisso nós o compreendemos melhor pois sabemos por suas anotações que artes ele praticava Num tempo em que se começava a substituir a autoridade da Igreja pela da Antiguidade e ainda não se conhecia a investigação isenta de pressupostos ele precursor e digno rival de Bacon e Copérnico achavase inev itavelmente isolado Quando dissecava cadáveres de cavalos e de pessoas con struía aparelhos voadores estudava a alimentação das plantas e sua reação a ven enos ele certamente se afastava dos comentadores de Aristóteles e se punha na vizinhança dos menosprezados alquimistas em cujos laboratórios a pesquisa ex perimental encontrava ao menos um refúgio naqueles tempos adversos Para sua pintura a consequência disso foi que ele relutava em tomar do pincel pintava cada vez menos com frequência deixava inacabado o que iniciara e pouco se preocupava com o destino de suas obras Isso era também o que lhe 89316 reprovavam seus contemporâneos para os quais sua relação com a arte permane cia um enigma Vários dos admiradores posteriores de Leonardo buscaram absolvêlo da pecha de instabilidade de caráter Alegaram que o que nele se criticava é uma ca racterística dos grandes artistas em geral que também o vigoroso Michelangelo sempre tão absorvido no trabalho deixou incompletas muitas de suas obras e nisso não teve mais culpa do que Leonardo na mesma situação Além disso houve quadros que não ficaram tão incompletos como ele declarou O que para o leigo já é uma obraprima para o criador da obra seria ainda uma corporificação insatisfatória de suas intenções ele teria em mente uma perfeição que jamais con segue reproduzir E sobretudo não seria justo responsabilizar o artista pelo des tino final de suas obras Ainda que várias dessas desculpas possam ser pertinentes elas não cobrem to das as circunstâncias que deparamos em Leonardo A penosa luta com a obra o fato de finalmente fugir dela e a indiferença para com seu destino subsequente podem reaparecer em muitos outros artistas mas certamente Leonardo tinha essa conduta em grau extremo Edmondo Solmi cita a afirmação de um aluno4 Par eva che ad ogni ora tremasse quando si poneva a dipingere e però non diede mai fine ad alcuna cosa cominciata considerando la grandezza dell arte tal che egli scorgeva errori in quelle cose che ad altri parevano miracoliParecia tremer a todo instante quando se punha a pintar e contudo jamais terminou alguma coisa começada tendo em tão alta conta a grandeza da arte que enxergava erros naquelas coisas que pareciam milagres para outros Seus últimos quadros Leda a Madona de santo Onofre o Baco e o São João Batista jovem permaneceram inacabados comme quasi intervenne di tutte le cose sue como sucedeu com quase todas as suas coisas Lomazzo que realizou uma cópia da Última ceia referiuse num soneto à notória incapacidade de Leonardo para concluir uma pintura 90316 Protogen che il penel di sue pitture Non levava agguagliò il Vinci Divo Di cui opra non è finita pure Protógenes que não tirava o pincel de suas pinturas igualouse ao Divino Vinci de cuja obra nada foi concluído5 Era proverbial a lentidão com que Leonardo trabalhava Durante três anos pintou a Última ceia do convento de Santa Maria delle Grazie em Milão após minuciosos estudos preliminares Um contemporâneo o autor de novelas Matteo Bandelli que então era um noviço do convento relata que frequentemente Leonardo subia no andaime já de manhã cedo e não largava o pincel até a hora do crepúsculo sem pensar em comer e beber Depois passavamse dias sem que ele tocasse na obra sendo que às vezes permanecia horas diante dela contentandose em examinála em seu espírito Em outras ocasiões ia do pátio do castelo de Milão onde estava trabalhando no modelo da estátua equestre de Francesco Sforza diretamente para o convento a fim de dar algumas pinceladas numa figura e depois partia imediatamente6 De acordo com Vasari durante quatro anos ele pintou o retrato de Monna Lisa esposa do florentino Francesco del Giocondo sem chegar a completálo realmente o que condiz com o fato de que a pintura não foi entregue a quem a solicitara mas permaneceu com Leonardo que a levou consigo para a França7 Adquirida pelo rei Francisco i hoje constitui um dos maiores tesouros do Louvre Se justapomos esses relatos sobre a forma de trabalho de Leonardo à evidên cia dos numerosíssimos esboços e anotações que dele foram conservados em que cada tema de seus quadros aparece em infinitas variações temos de afastar in teiramente a concepção de que traços de ligeireza e volubilidade teriam influído em sua relação com a arte Observamos isto sim um aprofundamento ex traordinário uma abundância de possibilidades entre as quais a escolha é feita 91316 apenas com hesitação exigências que dificilmente podem ser satisfeitas e uma inibição na realização que nem mesmo a inevitável incapacidade de atingir seu ideal poderia explicar A morosidade que sempre caracterizou os trabalhos de Leonardo se revela como um sintoma dessa inibição como um prenúncio do abandono da pintura que depois ocorreria8 Isso determinou também o destino da Última ceia pelo qual Leonardo não deixou de ser responsável Ele não conseguiu adaptarse à pintura al fresco mural que exige trabalho rápido en quanto a superfície ainda está úmida por isso escolheu tintas a óleo cujo tempo de secamento lhe permitiu protelar a conclusão do quadro conforme o ânimo e o ensejo Mas essas tintas se destacaram da superfície a que foram aplicadas que as isolava da parede as falhas dessa parede e as posteriores vicissitudes do edifício também foram decisivas para a degradação inelutável ao que parece da pintura9 O fracasso de uma experiência técnica semelhante parece ter ocasionado a destruição da Batalha de Anghiari o quadro que em competição com Michelan gelob algum tempo depois ele começou a pintar numa parede da Sala del Consiglio em Florença e também deixou em estado incompleto É como se outro interesse o do experimentador inicialmente reforçasse aí o interesse artístico mas depois prejudicasse a obra de arte O caráter do homem Leonardo exibia alguns outros traços inusitados e con tradições aparentes Uma certa apatia e indiferença pareciam evidentes nele Num tempo em que cada indivíduo buscava o mais amplo espaço para sua própria atividade o que não sucede sem o emprego de energia e agressividade contra outros indivíduos ele chamava a atenção pela natureza pacífica pela disposição em evitar brigas e rivalidades Ele era bom e gentil com todos dizse que evitava comer carne por não achar justo roubar a vida aos animais e tinha prazer espe cial em adquirir pássaros no mercado e pôlos em liberdade10 Condenava a 92316 guerra e o derramamento de sangue e não considerava o ser humano o rei dos an imais e sim a pior das feras selvagens11 Mas essa feminina delicadeza de senti mentos não o impedia de acompanhar criminosos condenados à morte em seu caminho para a execução a fim de estudar suas expressões deformadas pelo medo e desenhálas num pequeno bloco de anotações nem de projetar as mais cruéis armas ofensivas e trabalhar para César Bórgia como seu principal engenheiro militar Muitas vezes ele parecia indiferente ao bem e ao mal ou exigia que o me dissem com um metro especial Participou numa posição decisiva da expedição militar que levou à conquista de Emilia Romagna por Bórgia o mais implacável e desleal dos tiranos Nos cadernos de anotações de Leonardo não há uma linha que denote crítica ou preocupação com os eventos daqueles dias Não é despro positada aqui a comparação com Goethe na campanha da Françac Se um estudo biográfico pretende mesmo chegar à compreensão da vida psíquica de seu herói não pode silenciar como acontece por discrição ou falso pudor na maioria das biografias acerca da atividade sexual das características sexuais do indivíduo estudado O que sabemos sobre Leonardo nesse âmbito é pouco mas esse pouco é significativo Num tempo em que havia um combate entre a sensualidade sem freios e o triste ascetismo Leonardo era um exemplo de fria rejeição da sexualidade algo que não se esperaria num artista que retratava a beleza feminina Solmi cita esta frase dele que exprime sua frigidez12 O ato do coito e os membros nele empregados são tão feios que se não fossem a beleza dos semblantes os ornamentos dos envolvidos e a desenfreada disposição a natureza perderia a espécie humana Seus escritos póstumos que não apenas tratam dos maiores problemas científicos mas contêm trivialidades que não parecem dignas de um tão grande espírito uma história natural em forma de alegoria fábulas de animais gracejos profecias13 são castos quase diríamos abstinentes de um modo tal que causaria surpresa numa obra literária também nos dias de hoje 93316 Evitam decididamente tudo de natureza sexual como se apenas Eros aquele que preserva tudo o que vive não fosse material digno para a ânsia de saber do pesquisador14 Sabese que frequentemente os grandes artistas se deleitam em dar vazão a sua fantasia em imagens eróticas e até mesmo obscenas mas de Leonardo possuímos apenas alguns desenhos anatômicos dos genitais internos da mulher da posição do embrião no útero etc15 É duvidoso que Leonardo tenha alguma vez enlaçado amorosamente uma mulher tampouco se tem notícia de alguma íntima relação espiritual com uma amiga como a de Michelangelo e Vittoria Colonna Quando ainda era aprendiz vivendo na casa de seu mestre Verrocchio foi alvo de uma acusação de prática homossexual ilícita juntamente com outros jovens denúncia que terminou com sua absolvição Parece que atraiu essa suspeita por haver empregado um garoto de má reputação como modelo16 Tornandose mestre rodeouse de belos garo tos e adolescentes que tomou como discípulos O último desses Francesco Melzi acompanhouo à França permaneceu com ele até sua morte e foi nomeado seu herdeiro Sem partilhar a certeza de seus biógrafos modernos que rejeitam a possibilidade de um comércio sexual entre ele e os discípulos como sendo uma in fundada calúnia lançada ao grande homem podemos considerar muito mais provável que as afetuosas relações entre Leonardo e aqueles jovens que parti cipavam de sua vida como era costume dos discípulos naquele tempo não res ultavam em atos sexuais Além disso não podemos lhe atribuir um grau intenso de atividade sexual A singularidade dessa vida sentimental e sexual pode ser compreendida em relação com a dupla natureza de artista e cientista de Leonardo apenas de uma maneira Dos biógrafos que frequentemente são alheios à abordagem psicoló gica sei de apenas um Edmondo Solmi que se avizinhou da solução do prob lema mas um escritor que usou Leonardo como herói num grande romance 94316 histórico Dmitri Sergueievitch Merejkóvski baseou seu retrato numa similar compreensão desse homem excepcional e exprimiu claramente sua concepção não em linguagem direta é verdade mas da maneira vívida como fazem os po etas17 Solmi afirma sobre Leonardo Mas a inextinguível ânsia de conhecer o mundo circunstante e encontrar mediante o frio exame o segredo da perfeição havia condenado a obra de Leonardo a permanecer imperfeita18 Num ensaio das Conferenze fiorentine é citada uma frase de Leonardo que fornece a sua profis são de fé e a chave para sua natureza Nessuna cosa si può amare nè odiare se prima non si ha cognition di quella19 Ou seja não se tem o direito de amar ou odiar algo se não adquirimos antes um conhecimento aprofundado de sua natureza E o mesmo repete Leonardo numa passagem do Tratado da pintura em que parece defenderse da objeção de irreligiosidade Mas calemse tais repreendedores pois esse é o modo de conhecer o op erador de tantas coisas admiráveis e esse é o modo de amar tamanho inventor porque o grande amor nasce do grande conhecimento da coisa que se ama e se tu não a conheceres não poderás amála ou apenas muito pouco20 O valor dessas afirmações de Leonardo não consiste em que nos informam sobre um importante fato psicológico pois o que dizem é evidentemente errado e ele devia sabêlo tão bem quanto nós Não é verdadeiro que as pessoas adiem seu amor ou seu ódio até haverem estudado o objeto desses afetos e distinguido sua natureza elas amam impulsivamente segundo motivos sentimentais que não têm relação com o conhecimento e cujo efeito é no máximo atenuado pela pon deração e reflexão Portanto Leonardo provavelmente quis dizer que o amor praticado pelos seres humanos não é o amor certo isento de objeções que dever íamos amar de modo a reter o afeto submetêlo ao labor do pensamento e deixá lo tomar seu curso apenas depois de ser aprovado no exame do pensar E nisso 95316 compreendemos que ele pretende nos dizer que com ele é assim que seria dese jável que todos os demais tivessem para com o ódio e o amor a mesma atitude que ele E com ele parece que realmente foi assim Seus afetos eram domados sujeita dos ao instinto pesquisador Ele não amava nem odiava perguntavase isto sim acerca da origem e significado daquilo que devia amar ou odiar e por isso era in evitável que inicialmente parecesse indiferente ante o bem e o mal o belo e o feio Nesse trabalho de pesquisador amor e ódio deixavam de ser algo positivo ou negativo e se transformavam em interesse intelectual Na realidade Leonardo não era isento de paixão não lhe faltava a centelha divina que direta ou indireta mente é a força motriz il primo motore de toda atividade humana Ele simplesmente converteu a paixão em ímpeto de saber dedicouse então à pesquisa com a tenacidade constância e profundidade que vêm da paixão e no apogeu do trabalho intelectual tendo adquirido o conhecimento deixou o afeto longamente contido irromper fluir livremente como faz depois de impulsionar o moinho o braço dágua que foi desviado do rio No auge de uma descoberta quando pôde avistar grande parte do conjunto foi dominado pelo pathos e louvou em termos exaltados a grandiosidade daquela porção da Criação que estudara ou em roupagem religiosa a grandeza de seu Criador Solmi viu corretamente esse processo de transformação em Leonardo Após citar uma pas sagem dessas em que Leonardo celebra a sublime coação que há na natureza O mirabile necessità Ó admirável necessidade afirma ele Tale trasfig urazione della scienza della natura in emozione quase direi religiosa è uno dei tratti caratteristici de manuscrittti vinciani e si trova cento volte espressa Tal trans figuração da ciência da natureza em emoção eu quase diria religiosa é um dos traços característicos dos manuscritos de Leonardo e se acha expressa uma cen tena de vezes21 96316 Devido a seu insaciável e incansável ímpeto de pesquisa Leonardo foi cha mado de Fausto italiano Mas sem considerar as dúvidas quanto à possível recon versão do instinto de pesquisa em prazer de viver que temos de ver como o pres suposto da tragédia de Fausto podese arriscar a observação de que o desenvol vimento de Leonardo se aproxima do modo de pensar spinoziano As conversões da força instintual psíquica em diferentes formas de atividade talvez sejam tão impossíveis de se realizarem sem perda quanto as das forças físicas O exemplo de Leonardo ensina que muitas outras coisas devem ser obser vadas em tais processos Postergar o amor até que se adquira o conhecimento resulta na substituição daquele por este Tendo chegado a conhecer o indivíduo já não ama ou odeia de fato encontrase além do amor e do ódio Talvez por isso a vida de Leonardo tenha sido mais pobre de amor do que a de outros grandes homens e artistas As tempestuosas paixões que exaltam e consomem a que out ros deveram o melhor de sua vida parecem não têlo atingido E há outras con sequências O indivíduo pesquisou em vez de agir e criar Quem começa a ter ideia da grandeza e complexidade do mundo facilmente perde de vista seu pequenino Eu Imerso em admiração tomado de humildade facilmente esquece que é ele mesmo um fragmento das forças atuantes e que pode tentar na medida de sua força pessoal modificar uma mínima porção do inevitável curso do mundo desse mundo em que afinal o pequenino não é menos maravilhoso e significativo do que o grande Talvez as pesquisas de Leonardo tenham começado a serviço de sua arte como acha Solmi22 ele se ocupou das leis e características da luz das cores som bras e perspectiva a fim de assegurar a mestria na imitação da natureza e apontar para outros esse caminho Já então provavelmente ele superestimava a im portância desses conhecimentos para o artista Depois foi impelido sempre acompanhando as necessidades da pintura a investigar os objetos dessa arte os 97316 animais e plantas as proporções do corpo humano e do exterior desses objetos passou para o conhecimento da construção interna e das funções vitais que tam bém se exprimem na sua aparência e que pedem representação na arte Enfim foi levado pelo instinto de pesquisa que se tornara poderoso até romperse o vín culo com as exigências de sua arte de modo que descobriu as leis gerais da mecânica imaginou a história das estratificações e fossilizações no vale do Arno e pôde anotar em seu livro com letras maiúsculas Il sole non si move O Sol não se move Suas pesquisas se estenderam a praticamente todos os ramos das ciên cias naturais em cada um deles Leonardo foi um descobridor ou pelo menos arauto e pioneiro23 Mas seu ímpeto de saber permaneceu voltado para o mundo externo algo o manteve afastado da pesquisa da vida psíquica humana na Aca demia Vinciana para a qual desenhou intrincados emblemas artísticos havia pouco lugar para a psicologia Então quando buscou retornar da pesquisa científica para o exercício da arte do qual partira experimentou em si o incômodo gerado pelo novo foco de seus interesses e a modificada natureza de seu trabalho psíquico O que lhe interessava num quadro era sobretudo um problema e por trás deste via inúmeros outros problemas surgirem tal como se habituara a ver na interminável e inesgotável pesquisa da natureza Ele não mais conseguia limitar suas exigências isolar a obra de arte arrancála do enorme contexto ao qual sabia que ela pertencia Após os mais cansativos esforços de nela expressar tudo o que a ela se ligava em seus pensamentos tinha de abandonála ou declarála incompleta O artista havia tomado a seu serviço o pesquisador como ajudante mas o servidor se tornou então mais forte e suprimiu seu senhor Quando vemos um único instinto excessivamente desenvolvido no caráter de uma pessoa como a ânsia de saber no caso de Leonardo buscamos explicar isso por uma disposição especial de provável condicionamento orgânico acerca do 98316 qual pouco ainda se sabe Mas os estudos psicanalíticos de neuróticos nos levam a manter duas outras expectativas que bem gostaríamos de ver comprovadas em cada caso individual Achamos provável que esse instinto excessivamente forte já atuava na mais remota infância do indivíduo e que sua hegemonia foi firmada por impressões da vida da criança e supomos também que ele adquiriu o reforço de energias instintuais originalmente sexuais de modo a mais tarde poder represent ar uma parte da vida sexual Uma pessoa assim se dedicaria à pesquisa por exem plo com a mesma devoção apaixonada que outra dispensa ao amor e poderia pesquisar em vez de amar Não apenas no caso do instinto de pesquisa mas na maioria daqueles em que um instinto tem especial intensidade arriscaríamos a conclusão de que houve o reforço sexual dele A observação da vida cotidiana das pessoas nos mostra que a maioria delas tem êxito em dirigir consideráveis porções de suas forças instintuais sexuais para sua atividade profissional O instinto sexual se presta muito bem para fazer tais contribuições por ser dotado da capacidade de sublimação ou seja pode trocar seu objetivo imediato por outros possivelmente mais valorizados e não sexuais Consideramos isso provado quando a história da infância isto é do desenvol vimento psíquico de uma pessoa revela que o instinto muito poderoso se achava a serviço de interesses sexuais quando ela era criança Vemos outra con firmação disso quando há um notável definhamento da vida sexual nos anos da maturidade como se uma porção da atividade sexual fosse substituída pela ativid ade do instinto muito poderoso Parece haver dificuldades especiais em aplicar essas expectativas ao caso do instinto de pesquisa muito poderoso pois justamente às crianças hesitamos em at ribuir tanto esse instinto sério como interesses sexuais dignos de nota Mas essas dificuldades podem ser facilmente superadas A ânsia de saber das crianças pequenas é atestada por seu incansável gosto em perguntar que para um adulto é 99316 algo incompreensível enquanto não percebe que todas as perguntas são apenas rodeios que não podem ter fim porque substituem uma só pergunta que a criança não faz Quando a criança fica maior e mais judiciosa é frequente a cessação re pentina dessa manifestação da ânsia de saber Uma explicação plena é fornecida pela investigação psicanalítica que nos ensina que muitas talvez a maioria das crianças as mais dotadas em todo caso atravessam a partir dos dois anos de idade um período que podemos designar como o da pesquisa sexual infantil A ânsia de saber das crianças dessa idade não surge espontaneamente pelo que sabemos é despertada pela impressão de uma vivência importante pelo nasci mento real ou apenas receado com base em evidências externas de um irmãozinho que a criança vê como uma ameaça a seus interesses egoístas A pesquisa se concentra na questão de onde vêm os bebês como se a criança bus casse meios e formas de impedir um acontecimento tão indesejado Assim ficamos surpresos ao saber que a criança se recusa a dar crédito às informações que lhe são dadas por exemplo rejeitando energicamente a fábula da cegonha tão rica de sentido mitológico que vê nesse ato de descrença o começo de sua autonomia intelectual muitas vezes se opõe seriamente aos adultos e nunca mais lhes perdoa na verdade que a tenham enganado nesse ponto Ela pesquisa por seus próprios meios imagina que o bebê permaneceu no ventre da mãe e guiada pelos impulsos de sua própria sexualidade forma opiniões sobre a origem do be bê a partir da comida sobre seu nascimento pelo intestino sobre o obscuro papel que teria o pai e já então imagina a existência do ato sexual que lhe parece algo hostil e violento Mas como sua própria constituição sexual ainda não está capa citada para a procriação sua pesquisa sobre a origem das crianças fica sem res ultados e é abandonada A impressão deixada por esse malogro no primeiro teste de independência intelectual parece ser duradoura e bastante deprimente24 100316 Quando o período da investigação sexual infantil é encerrado por uma onda de enérgica repressão sexual há três diferentes possibilidades para o destino sub sequente do instinto de pesquisa que derivam de sua primeva ligação com in teresses sexuais Na primeira delas a pesquisa tem o mesmo destino da sexualid ade a ânsia de saber permanece inibida e a livre atividade da inteligência talvez fique limitada por toda a vida especialmente quando pouco depois a poderosa inibição intelectual da religião é trazida pela educação Esse é o tipo caracterizado pela inibição neurótica Compreendemos muito bem que a debilidade intelectual assim adquirida promove eficazmente a irrupção de uma doença neurótica No segundo tipo o desenvolvimento intelectual é forte o bastante para resistir à repressão sexual que o abala Algum tempo após o fim da pesquisa sexual infantil a inteligência fortalecida oferece sua ajuda para contornar a repressão sexual recordandose da velha associação e a pesquisa sexual suprimida retorna do in consciente como ruminação compulsiva certamente em forma distorcida e con strita mas forte o suficiente para sexualizar o pensamento mesmo e tingir as op erações intelectuais com o prazer e a angústia dos processos sexuais propriamente ditos A pesquisa tornase a atividade sexual frequentemente a única a sensação de solucionar em pensamentos de clarificar toma o lugar da satisfação sexual mas o caráter interminável da pesquisa infantil se repete igualmente no fato de que esse ruminar não tem fim de que a desejada sensação intelectual de encontrar uma solução sempre recua no horizonte O terceiro tipo o mais raro e mais perfeito escapa graças a uma disposição especial tanto à inibição do pensamento como à compulsão neurótica ao pensamento É certo que a repressão sexual também surge aí mas não consegue relegar ao inconsciente um instinto parcial do prazer sexual em vez disso a li bido se furta ao destino da repressão ao sublimarse em ânsia de saber desde o início e juntarse ao vigoroso instinto de pesquisa reforçandoo Também aí a 101316 pesquisa se torna em certa medida compulsão e sucedâneo da atividade sexual mas devido à completa diferença entre os processos psíquicos subjacentes sub limação em vez de irrupção desde o inconsciente o caráter de neurose está aus ente não há mais vínculo com os originais complexos da pesquisa sexual infantil e o instinto pode operar livremente a serviço do interesse intelectual Ao evitar ocuparse de temas sexuais ele ainda leva em conta a repressão sexual que tanto o fortaleceu mediante o acréscimo de libido sublimada Se considerarmos a coexistência em Leonardo de um poderoso instinto de pesquisa e uma atrofia da vida sexual que se restringe à assim chamada homos sexualidade ideal estaremos inclinados a requerêlo como exemplo de nosso ter ceiro tipo O fato de ele ter conseguido sublimar em impulso à pesquisa a maior parte de sua libido após a ânsia de saber ter atuado a serviço dos interesses sexuais na infância seria o âmago e o segredo do seu ser Mas naturalmente não é fácil aduzir a prova para essa concepção Necessitaríamos conhecer o desenvol vimento psíquico dos primeiros anos de sua infância e parece tolo esperar por esse material quando os dados de sua vida são tão poucos e incertos e além disso tratandose de informações sobre coisas que se furtam à atenção do obser vador até mesmo em pessoas de nossa própria geração Sabemos muito pouco sobre a infância e juventude de Leonardo Ele nasceu em na pequena cidade de Vinci entre Florença e Empoli Era um filho ilegí timo o que naquele tempo não era uma grande mácula social Seu pai era ser Piero da Vinci um notário descendente de uma família de notários e agricultores que adotou o nome da localidade de Vinci Sua mãe chamavase Caterina era provavelmente uma jovem camponesa que depois se casou com outro habitante de Vinci Essa mãe não aparece mais na vida de Leonardo apenas o romancista Merejkóvski acredita ter achado traços delad O único dado seguro sobre a infân cia de Leonardo está num documento oficial de um cadastro fiscal florentino 102316 em que Leonardo é mencionado entre os componentes da família Vinci como o filho ilegítimo de cinco anos de idade de ser Piero25No matrimônio com uma certa donna Albiera ser Piero não teve filhos por isso o pequeno Leonardo foi criado na casa do pai Ele a abandonou apenas quando ingressou na oficina de Andrea del Verrocchio como aprendiz não se sabe com que idade Em 1472 o nome de Leonardo já se encontra no catálogo dos membros da Compagnia dei Pittori Isso é tudo II Até onde sei apenas uma vez Leonardo menciona algo de sua infância em seus apontamentos científicos Numa passagem que trata do voo dos abutres ele se in terrompe subitamente e traz uma lembrança que lhe ocorre dos seus primeiros anos de vida Parece que estava em meu destino me ocupar assim do abutre pois me vem uma recordação muito antiga de quando eu ainda estava no berço em que um abutre desceu até mim abriume a boca com sua cauda e bateu muitas vezes a cauda contra meus lábios26 Uma recordação de infância pois e muito peculiar certamente Peculiar por seu conteúdo e pela idade em que é situada Talvez não seja impossível que um indivíduo conserve uma lembrança de quando era um lactente mas de maneira nenhuma é algo seguro No entanto o que essa recordação diz que um abutre 103316 abriu a boca do menino com a cauda parece tão improvável tão fabuloso que ju lgamos preferível outra concepção que resolve de uma vez as duas dificuldades A cena com o abutre não seria uma recordação de Leonardo mas uma fantasia que ele formou posteriormente e transpôs para a infância27 Frequentemente as recordações de infância não têm outra origem elas não são fixadas no instante da vivência e depois repetidas como as lembranças conscientes da época adulta mas sim evocadas numa época posterior quando a infância já ficou para trás e nisso são modificadas falseadas postas a serviço de tendências posteriores de modo que não se distinguem rigorosamente das fantasias em geral Talvez compreen damos da melhor maneira a sua natureza se pensarmos em como se originou a historiografia entre os povos antigos Enquanto o povo era pequeno e fraco não pensava em escrever sua história cultivava o solo de sua terra lutava contra os vizinhos por sua existência buscava tomarlhes terras e alcançar riqueza Era um tempo heroico e ahistórico Depois veio uma nova era em que esse povo ad quiriu consciência de si sentiuse poderoso e rico e surgiu a necessidade de saber de onde procedia e como se desenvolvera A historiografia que havia principiado como um registro contínuo das vivências do presente lançou o olhar também para o passado reuniu tradições e lendas interpretou os resíduos dos velhos tem pos em usos e costumes criando assim uma história do período primordial Era inevitável que essa préhistória fosse antes uma expressão dos desejos e opiniões do presente que um reflexo do passado pois muitas coisas haviam desaparecido da memória do povo outras haviam sido deformadas e alguns traços do passado eram erroneamente interpretados no sentido do presente Além disso não se es crevia a história pelos motivos de uma objetiva ânsia de saber mas para influir sobre os contemporâneos para incitálos exaltálos ou lhes oferecer exemplos A memória consciente que uma pessoa tem de suas vivências adultas é comparável àquela primeira historiografia o registro do presente e as lembranças que tem 104316 da infância correspondem pela origem e confiabilidade à história dos primeiros tempos de um povo compilada tardiamente e de forma tendenciosa Se a história do abutre que visitou Leonardo no berço for apenas uma fantasia nascida posteriormente deveremos julgar que talvez não valha a pena nos de termos nela por mais tempo Para explicála poderíamos nos satisfazer com a in clinação por ele mesmo declarada de atribuir a seu interesse pelo problema do voo dos pássaros o caráter de uma predestinação Mas com tal menosprezo cometeríamos uma injustiça que equivaleria àquela de levianamente rejeitar o material das lendas tradições e interpretações da préhistória de um povo Apesar das deformações e incompreensões a realidade do passado se acha nelas representada elas são aquilo que o povo formulou a partir das vivências de seu tempo primevo sob o império de motivos outrora poderosos e ainda hoje atu antes e se pudéssemos pelo conhecimento de todas as forças operantes fazer es sas deformações retrocederem seríamos capazes de desvelar a verdade histórica por trás desse material fabuloso O mesmo vale para as recordações de infância ou as fantasias do indivíduo Não é insignificante aquilo que uma pessoa acredita se lembrar da infância em geral por trás dos resíduos de lembranças que ela mesma não entende se escondem valiosos testemunhos dos traços mais import antes de seu desenvolvimento psíquico28 Dado que agora possuímos com as téc nicas psicanalíticas excelentes meios de trazer à luz esse material escondido poderemos tentar preencher a lacuna na história da vida de Leonardo através da análise de sua fantasia infantil Se nisso não alcançarmos um grau satisfatório de certeza teremos de nos consolar com o fato de que muitas outras investigações sobre esse grande e enigmático homem não tiveram melhor sorte Se examinamos a fantasia do abutre com o olhar do psicanalista ela não nos parecerá estranha por muito tempo lembramonos de frequentemente nos sonhos por exemplo haver encontrado algo semelhante de modo que 105316 podemos nos arriscar a traduzir essa fantasia de sua linguagem peculiar para um idioma compreensível por todos A tradução aponta para o plano erótico Cauda coda é um dos mais notórios símbolos e denominações substitutivas do mem bro masculino tanto em italiano como em outras línguas A situação da fantasia em que um abutre abre a boca do menino e lá dentro movimenta sua cauda cor responde à ideia de uma felação de um ato sexual em que o membro é introduz ido na boca da pessoa em questão É singular que essa fantasia tenha um caráter tão claramente passivo ela se assemelha a determinados sonhos e fantasias de mulheres ou homossexuais passivos que na relação sexual têm o papel feminino Oxalá o leitor agora se contenha e não se recuse pleno de indignação a acompanhar a psicanálise porque ela conduz tão logo é empregada a uma imper doável difamação da memória de um homem grande e puro É óbvio que essa in dignação jamais nos poderá dizer o significado da fantasia infantil de Leonardo por outro lado ele revelou essa fantasia do modo mais inequívoco e não po demos abandonar a expectativa ou o préconceito se quiserem de que tal fantasia assim como toda criação psíquica como um sonho uma visão um delírio tem de possuir algum significado Portanto continuemos dando ao tra balho analítico que ainda não falou sua última palavra a atenção a que ele tem direito A inclinação a tomar na boca o membro do homem e chupálo que na so ciedade respeitávele é incluída entre as perversões sexuais abomináveis ocorre frequentemente nas mulheres de hoje e como demonstram antigas obras de arte também de épocas passadas e parece perder inteiramente o caráter repug nante para a pessoa apaixonada O médico encontra fantasias baseadas nessa in clinação também em mulheres que não tomaram conhecimento dessa possibilid ade de satisfação sexual mediante a leitura da Psychopathia sexualis de Krafft 106316 Ebing ou por alguma outra fonte Ao que parece as mulheres não têm di ficuldade em criar espontaneamente essas fantasias que envolvem um desejo29 A investigação posterior também nos ensina que essa situação tão malvista pela moral possui uma origem bastante inocente Ela é apenas a reelaboração de outra situação em que todos nós outrora nos sentíamos muito bem quando sendo be bês essendo io in culla estando eu no berço tomávamos na boca o mamilo da mãe ou da ama de leite e o chupávamos A impressão orgânica dessa primeira ex periência de prazer em nossa vida provavelmente permaneceu em nós indes trutível quando mais tarde a criança vem a conhecer a teta da vaca que em sua função equivale a um mamilo e em sua forma e localização no baixo ventre cor responde a um pênis chega ao estágio preliminar para a formação posterior daquela fantasia sexual repugnante Agora compreendemos por que Leonardo situa em sua época de lactente a re cordação da suposta experiência com o abutre Por trás dessa fantasia não há outra coisa senão a reminiscência do ato de mamarf ou ser amamentado no seio materno uma cena de humana beleza que ele como muitos outros artistas representou ao pintar a mãe de Deus com o filho Mas vamos também ter presente algo que ainda não compreendemos o fato de essa reminiscência signi ficativa para os dois sexos igualmente haver sido reelaboradag pelo homem Leonardo em fantasia homossexual passiva Por enquanto deixaremos de lado a questão do nexo que haveria entre a homossexualidade e o ato de mamar no seio materno e apenas lembraremos que a tradição efetivamente designa Leonardo como um homem de sentimentos homossexuais Para nós é irrelevante se aquela acusação contra o jovem Leonardo era justificada ou não não é a atividade real mas a atitude emocional que determina se devemos conferir a alguém o atributo da inversão 107316 Há outra característica não compreendida na fantasia de infância de Leonardo que solicita primeiramente nossa atenção Interpretamos a fantasia por referência ao ato de ser amamentado pela mãe e vemos a mãe substituída por um abutre De onde vem esse abutre e como entra nesse ponto Uma ideia se oferece vinda de tão longe que poderíamos hesitar em recorrer a ela Nos hieróglifos dos antigos egípcios a mãe é representada com a imagem de um abutre30 Os egípcios adoravam uma divindade materna que era mostrada com cabeça de abutre ou com várias cabeças das quais pelo menos uma era de abutre31 O nome dessa deusa era pronunciado mut seria apenas casual a semel hança fonética com a nossa palavra Mutter mãe Assim o abutre se relaciona de fato com mãe mas em que isso pode nos ajudar É lícito esperarmos de Leonardo esse conhecimento quando a decifração dos hieróglifos foi conseguida somente por François Champollion 1790183232 Valeria a pena saber como os antigos egípcios chegaram a escolher o abutre como símbolo da maternidade Ora a religião e a civilização dos egípcios já eram objeto da curiosidade científica dos gregos e romanos e muito antes que nós fôssemos capazes de ler os monumentos do Egito dispúnhamos de informações sobre eles em obras da Antiguidade clássica que foram conservadas textos de autores conhecidos como Estrabão Plutarco Amiano Marcelino e também de autoria ignorada e de procedência e período incertos como os Hieroglyphica de Horapollo Nilus e o livro de sabedoria sacerdotal do Oriente que nos chegou com o nome do deus Hermes Trismegisto Essas fontes nos dizem que o abutre era símbolo da maternidade porque se acreditava que havia apenas abutres fêmeas que inexistiam machos nessa espécie de ave33 história natural dos antigos se achava uma contrapartida dessa limitação entre os escaravelhos os besouros que os egípcios adoravam como deuses pensavase que havia apenas machos34 108316 Como deveria então ocorrer a fecundação dos abutres se todos eles eram fêmeas Uma passagem de Horapollo nos informa acerca disso35 Em determin ada época esses pássaros se detêm no voo abrem a vagina e são impregnados pelo vento De forma inesperada agora chegamos a ver como provável algo que há pou co rejeitávamos como absurdo É bem possível que Leonardo conhecesse a fábula científica em virtude da qual os egípcios designavam o conceito de mãe com a imagem do abutre Ele era um grande leitor interessado em todos os âmbitos da literatura e do saber No Códice Atlântico temos uma lista de todos os livros que ele possuía em determinado momento36 e também muitas anotações sobre livros que ele tomara emprestado de amigos e pelos excertos que Fr Richter reuniu dessas anotações dificilmente se pode exagerar a extensão de suas leituras Entre esses livros não faltam obras de ciências naturais antigas e também contem porâneas Todos eles se achavam impressos naquele tempo e Milão era justa mente a cidade italiana onde mais se desenvolvia a jovem arte da impressão Ao prosseguir deparamos com uma notícia que pode transmutar em certeza a probabilidade de que Leonardo conhecia a fábula do abutre O erudito editor e comentador de Horapollo observa sobre a passagem mencionada Caeterum hanc fabulam de vulturibus cupide amplexi sunt Patres Eclesiastici ut ita argumento ex rerum natura petito refutarent eos qui Virginis partum negabant itaque apud omnes fere hujus rei mentio occurrit Mas sua fábula sobre o abutre foi avidamente abraçada pelos Pais da Igreja para refutar com esse argumento extraído das coisas da natureza aqueles que negavam o parto da Virgem por isso quase todos eles o mencionam Portanto a fábula da unissexualidade e da forma de concepção dos abutres não permaneceu uma anedota inofensiva como aquela dos escaravelhos Os Pais da Igreja dela se apoderaram a fim de ter um argumento da natureza contra os 109316 que duvidavam da história sagrada Se de acordo com as melhores narrativas da Antiguidade os abutres se deixavam fecundar pelo vento por que não teria acontecido o mesmo com uma fêmea humana Devido a essa possibilidade de utilização quase todos os Pais da Igreja contavam a fábula do abutre e pratica mente não podemos duvidar que com tão forte patrocínio ela não fosse con hecida também de Leonardo Podese conceber a gênese da fantasia com o abutre da seguinte maneira Ao ler num Pai da Igreja ou numa obra científica que os abutres eram todos fêmeas e podiam se reproduzir sem a ajuda de um macho veiolhe uma recordação que se transformou naquela fantasia mas que significava que também ele havia sido como um filho de abutre que tivera uma mãe mas não um pai e a isso se juntou da única maneira que impressões tão antigas podem se manifestar um eco do prazer que havia experimentado no seio materno A alusão daqueles autores à representação da santa Virgem com o Menino sempre cara aos artistas certa mente contribuiu para que essa fantasia lhe parecesse valiosa e significativa Afi nal assim ele se identificava com o Menino Jesus o salvador e consolador não apenas de uma mulher Ao decompor uma fantasia infantil procuramos separar seu real teor de memória dos motivos posteriores que o modificam e deformam No caso de Leonardo acreditamos agora conhecer o real teor da fantasia a substituição da mãe pelo abutre indica que o menino dá pela falta do pai e se acha sozinho com a mãe O nascimento ilegítimo de Leonardo combina com a fantasia do abutre apenas em virtude daquilo ele pôde se comparar a um filhote de abutre Mas o outro fato seguro de sua infância de que temos conhecimento é que aos cinco anos de idade ele vivia na casa do pai A partir de quando isso ocorreu se teria sido alguns meses após o nascimento ou algumas semanas antes daquele cadastro cf final do cap i é algo que ignoramos completamente Surge aqui a 110316 interpretação da fantasia com o abutre e ela nos diz que Leonardo não passou os decisivos anos iniciais de sua vida com seu pai e sua madrasta mas com a pobre e abandonada mãe verdadeira de modo a ter tempo de sentir a ausência do pai Isso parece uma conclusão muito magra ainda que ousada de nosso empenho psicanalítico mas ela ganhará importância à medida que for aprofundada Sua certeza é aumentada pela consideração das circunstâncias efetivas da infância de Leonardo Segundo os relatos seu pai ser Piero da Vinci casouse com donna Albiera uma moça nobre no mesmo ano em que ele nasceu Foi pelo fato de esse casamento não ter gerado filhos que o garoto vivia na casa paterna ou melhor do avô quando tinha cinco anos de idade como atesta o documento Ora não é costumeiro entregar um rebento ilegítimo a uma jovem esposa que ainda espera ter filhos Devem ter se passado anos de desapontamento até que se decidisse to mar como compensação pelos filhos legítimos desejados em vão o menino bas tardo que provavelmente crescia de modo encantador Condiz perfeitamente com a interpretação da fantasia do abutre que tivessem decorrido ao menos três talvez cinco anos da vida de Leonardo até que ele trocasse o lar de sua solitária mãe pelo do casal Mas então já era tarde Nos primeiros três ou quatro anos são fixa das impressões e estabelecidas formas de reação ao mundo externo cuja im portância não poderá mais ser diminuída por nenhuma vivência posterior Se for correto que as lembranças infantis incompreensíveis e as fantasias que sobre elas se constroem sempre ressaltam o que é mais importante na vida psíquica da pessoa então o fato corroborado pela fantasia do abutre de que Leonardo passou os primeiros anos sozinho com a mãe deve ter tido influência decisiva na configuração de sua vida interior Um efeito certamente inevitável dessa constelação afetiva foi que o menino que em sua tenra idade se defrontou com um problema a mais que as outras crianças começou a ruminar sobre esse enigma com paixão especial tornandose bem cedo um pesquisador atormentado 111316 pelas grandes questões de onde vêm as crianças e o que tem a ver o pai com sua origem A intuição desse nexo entre sua pesquisa e a história de sua infância o le vou a exclamar quando adulto que era seu destino dedicarse ao problema do voo dos pássaros pois já no berço fora visitado por um abutre Não será tarefa difícil mostrar mais adiante que a ânsia de saber que se voltava para o voo dos pássaros derivava da pesquisa sexual infantil III Na fantasia infantil de Leonardo o elemento abutre representou para nós o teor verdadeiro da recordação e o contexto em que o próprio Leonardo situou sua fantasia lançou uma clara luz sobre a importância desse conteúdo para sua vida posterior Ao avançar no trabalho de interpretação deparamos com o desconcer tante problema de por que esse teor da recordação foi reelaborado em situação homossexual A mãe que amamenta o bebê ou melhor da qual o bebê mama transformouse num abutre que enfia sua cauda na boca da criança Afirmamos que a coda do abutre não pode significar outra coisa senão um gen ital masculino um pênis conforme a habitual substituição que faz a linguagem Mas não compreendemos como a atividade da fantasia pode haver dotado do em blema da virilidade justamente esse pássaromãe e em vista desse absurdo começamos a duvidar da possibilidade de extrair dessa construção fantasiosa um sentido racional 112316 Mas não devemos desanimar Quantos sonhos aparentemente absurdos já não nos revelaram seu significado Por que haveria mais dificuldade com uma fantas ia infantil do que com um sonho Lembrando não ser bom que uma peculiaridade permaneça isolada vamos acrescentarlhe outra que é ainda mais surpreendente A deusa egípcia Mut representada com cabeça de abutre era de caráter total mente impessoal segundo afirma Drexler no Lexikon de Roscher Era frequente mente fundida com outras divindades maternas de individualidade mais viva como Ísis e Hathor mas também mantinha existência própria e culto específico Uma singularidade do panteão egípcio era que os deuses individualizados não de sapareciam com o sincretismo Além da divindade composta a figura simples de um deus continuava a existir de forma independente Na maioria das repres entações essa deusa materna com cabeça de abutre era mostrada com um falo37 Seu corpo que os seios caracterizavam como feminino também possuía um membro masculino em estado de ereção Achamos em Mut portanto a mesma união de características maternas e mas culinas que na fantasia do abutre de Leonardo Deveríamos explicar essa coin cidência pela suposição de que também através dos livros ele soube da natureza andrógina do abutremãe Tal possibilidade é mais que discutível parece que as fontes de que ele dispunha nada continham sobre essa peculiar conformação Ser ia mais plausível fazer essa concordância remontar a um motivo comum atuante nos dois casos e ainda não conhecido A mitologia nos informa que a constituição andrógina a união de caracteres sexuais masculinos e femininos não era própria apenas de Mut mas também de divindades como Ísis e Hathor dessas contudo talvez apenas na medida em que também possuíam natureza materna e se fundiam com Mut38 Ela nos ensina ade mais que outras divindades egípcias como Neith de Sais de que mais tarde se 113316 originou a grega Atena foram concebidas originalmente como andróginas ou seja hermafroditas e que o mesmo ocorreu com muitos deuses gregos em espe cial aqueles em torno de Dionísio mas também com Afrodite depois reduzida a deusa feminina do amor E a mitologia pode igualmente oferecer a explicação de que o falo acrescentado ao corpo feminino denotaria a primordial força criadora da natureza e que todas essas divindades hermafroditas exprimem a ideia de que apenas a união do masculino com o feminino pode fornecer uma digna repres entação da perfeição divina Mas nenhuma dessas observações nos esclarece o en igma psicológico que constitui o fato de a imaginação humana não se ofender em dotar do signo da potência viril o oposto de tudo que é materno uma figura que deve encarnar a essência da maternidade O esclarecimento nos vem das teorias sexuais infantis Houve um tempo na vida da pessoa em que o genital masculino foi tido como compatível com a rep resentação da mãe Quando a ânsia de saber do menino se volta para o enigma da vida sexual ele é tomado de interesse por seu próprio genital Considera essa parte de seu corpo tão valiosa e importante que não pode acreditar que ela falte em outras pessoas com as quais sente muita afinidade Como não é capaz de ima ginar que há outro tipo de genital igualmente valioso tem de recorrer à suposição de que todas as pessoas inclusive as mulheres possuem um membro tal como o dele Esse préconceito se arraiga tão firmemente no jovem pesquis ador que não é destruído sequer pelas primeiras observações dos genitais de ga rotas pequenas A percepção lhe diz que ali há algo diferente mas ele não con segue admitir para si mesmo que o teor dessa percepção é que não pode encontrar o membro na menina Imaginar que o membro possa faltar é algo inquietante in suportável por isso ele ensaia uma decisão intermediária o membro se acha presente também na menina mas é ainda muito pequeno crescerá depois39 Se essa expectativa parece não se confirmar em observações posteriores outra saída 114316 se oferece Também havia o membro na garotinha mas ele foi cortado e em seu lugar ficou uma ferida Esse avanço na teoria já utiliza experiências próprias de caráter penoso nesse meiotempo o menino escutou a ameaça de que lhe seria tirado o precioso órgão se demonstrasse interesse excessivo por ele Sob a in fluência dessa ameaça de castração ele modifica sua concepção do genital femin ino passa a temer por sua virilidade e também a desprezar as infelizes criaturas que segundo lhe parece já sofreram a terrível punição40 Antes que o menino caia sob o domínio do complexo da castração num tempo em que a mulher ainda conserva pleno valor a seus olhos começa a nele se manifestar como atividade instintual erótica um intenso prazer em olhar Ele quer ver os genitais de outras pessoas originalmente é provável a fim de comparálos com o seu A atração erótica que parte da pessoa da mãe culmina logo num anseio pelo genital dela tido como um pênis Com a posterior descoberta de que a mãe não possui um pênis tal anseio frequentemente se con verte no oposto dá lugar a uma repulsa que nos anos da puberdade pode se torn ar causa de impotência psíquica misoginia e permanente homossexualidade Mas a fixação no objeto que foi ansiosamente desejado o pênis da mulher deixa traços indeléveis na vida psíquica do garoto que passou por esse trecho da pesquisa sexual infantil com particular intensidade A adoração fetichista do pé e do sapato da mulher parece tomar o pé como símbolo substitutivo do membro feminino que foi adorado e cuja falta é sentida desde então os cortadores de trançash desempenham sem o saber o papel de indivíduos que realizam o ato da castração no genital feminino Não se chegará a uma concepção correta das manifestações da sexualidade in fantil e provavelmente se recorrerá ao expediente de declarar indignas de crédito estas comunicações enquanto não se abandonar inteiramente o menosprezo de nossa cultura pelos genitais e as funções sexuais A compreensão da psique 115316 infantil requer analogias préhistóricas Para nós desde muitas gerações os ór gãos genitais são os pudenda objetos de vergonha e na repressão sexual adi antada até mesmo de nojo Lançando um olhar abrangente sobre a vida sexual de nossa época especialmente a das camadas sociais portadoras da civilização hu mana somos tentados a dizer quei a maioria dos que hoje vivem submetese ao mandamento da procriação apenas a contragosto sentindo sua dignidade humana ofendida e degradada O que entre nós se acha de outra visão da vida sexual confinouse aos estratos baixos da população que permaneceram rudes e é ocultado entre aqueles superiores e refinados como sendo culturalmente inferior ousando manifestarse apenas sob as amargas admoestações de uma má consciên cia Era diferente nos tempos préhistóricos da espécie humana O material labor iosamente recolhido pelos pesquisadores leva à convicção de que originalmente os genitais eram o orgulho e a esperança dos vivos gozavam de adoração reli giosa e transmitiam o caráter divino de suas funções a todas as novas atividades que os homens aprendiam Numerosas figuras de deuses se originaram por sub limação de sua natureza e num tempo em que o nexo entre as religiões oficiais e a atividade sexual já se escondia à consciência geral cultos secretos se empen havam em mantêlo vivo para certo número de iniciados Por fim ocorreu ao longo da evolução cultural que tal montante do divino e sagrado foi extraído da sexualidade que o exaurido restante se tornou alvo do desprezo Porém consid erando o que há de indelével em todos os traços psíquicos não devemos nos ad mirar de que até as mais primitivas formas de adoração dos genitais tenham sido encontradas em tempos recentes e de que a linguagem corrente os costumes e as superstições da humanidade de hoje contenham vestígios de todas as fases desse curso evolutivo41 Analogias biológicas de peso nos fazem crer que a evolução psíquica do indi víduo repete de forma abreviada o curso de evolução da humanidade e por isso 116316 não achamos inverossímil o que a investigação psicanalítica da alma infantil nos traz acerca do valor que a criança atribui aos genitais A hipótese infantil de que a mãe tem um pênis é a fonte comum de que procedem a configuração andrógina de divindades maternas como a Mut egípcia e a coda do abutre da fantasia de Leonardo quando criança É erroneamente que chamamos essas representações de deuses de hermafroditas no sentido médico da palavra Nenhuma delas reúne de fato os genitais de ambos os sexos tal como se acham combinados em algumas anomalias que assombram quem as vê Elas apenas juntam o membro masculino aos seios que indicam a maternidade como se acha na primeira representação que a criança faz do corpo da mãe A mitologia preservou para os crentes essa vener ável forma do corpo materno criada em tempos primevos Agora podemos traduzir da seguinte maneira a ênfase na cauda do abutre que há na fantasia de Leonardo Naquele tempo em que minha tenra curiosidade se voltava para minha mãe e eu ainda lhe atribuía um genital como o meu Outra evidência das primeiras pesquisas sexuais de Leonardo que a nosso ver tornaramse decisivas para toda a sua vida Uma breve reflexão nos lembra neste ponto que ainda não podemos nos sat isfazer com essa explicação para a cauda do abutre na fantasia de Leonardo Ela parece conter algo mais que ainda não compreendemos Seu traço mais saliente afinal é que transforma o ato de mamar no seio da mãe em ser amamentado ou seja em algo passivo numa situação de caráter indubitavelmente homossexual portanto Tendo em conta a probabilidade histórica de que Leonardo agia como um homem de sentimentos homossexuais perguntamonos se essa fantasia não apontaria para uma conexão causal entre a relação do menino Leonardo com sua mãe e sua posterior homossexualidade manifesta ainda que apenas ideal Não ousaríamos inferir esse nexo da reminiscência deformada de Leonardo se não 117316 soubéssemos pelas investigações da psicanálise que ele existe e que é íntimo e necessário Os homens homossexuais que em nossos dias atuam energicamente contra as restrições legais à sua atividade sexual gostam de se colocar através de seus portavozes intelectuais como uma variedade sexual distinta desde o início como um estágio intermediário um terceiro sexo Seriam homens obrigados por condições orgânicas inatas a ter com um homem o prazer que não podem sentir com uma mulher Assim como por razões de humanidade de bom grado subscrevemos suas reivindicações também somos reticentes para com suas teori as que foram postuladas sem consideração da gênese psíquica da homossexualid ade A psicanálise oferece os meios de preencher essa lacuna e de pôr à prova as afirmações dos homossexuais Ela pôde realizar essa tarefa apenas em poucos in divíduos mas todas as investigações até agora empreendidas tiveram o mesmo resultado surpreendente42 Todos os nossos homens homossexuais tiveram nos primeiros anos da infância depois esquecidos uma intensa ligação erótica numa pessoa do sexo feminino geralmente a mãe ligação essa provocada ou favorecida pela ternura excessiva da própria mãe e além disso sustentada pelo distan ciamento do pai na vida da criança Sadger enfatiza que as mães de seus pacientes homossexuais eram com frequência mulheres masculinas de traços enérgicos que podiam retirar o pai da posição que lhe cabia Ocasionalmente observei isso também mas recebi impressão mais forte nos casos em que o pai estava ausente desde o início ou logo desapareceu de modo que o menino ficou entregue à in fluência feminina É como se a presença de um pai forte garantisse no filho a de cisão certa na eleição do objeto a escolha pelo sexo oposto43 Após esse estágio preliminar ocorre uma transformação cujo mecanismo con hecemos mas cujas forças impulsoras ainda ignoramos O amor à mãe não pode prosseguir acompanhando o desenvolvimento consciente sucumbe à repressão 118316 O garoto reprime o amor à mãe pondo a si mesmo no lugar desta identificando se com ela e tomando sua própria pessoa como modelo à semelhança do qual escolhe seus novos objetos amorosos Assim tornase homossexual mais precis amente retorna ao autoerotismo pois os garotos que o adolescente agora ama são apenas sucedâneos e reiterações de sua própria pessoa infantil que ele ama tal como sua mãe o amou quando criança Dizemos que ele encontra seu objeto amoroso pela via do narcisismo pois o mito grego chama de Narciso um jovem que amava acima de tudo sua própria imagem refletida e que foi transformado na bela flor que tem esse nome Considerações psicológicas mais aprofundadas justificam a afirmação de que o indivíduo que assim se tornou homossexual permanece fixado inconsciente mente na imagemlembrança da mãe Pela repressão do amor à mãe ele a con serva em seu inconsciente e lhe permanece fiel Quando parece correr atrás de garotos na qualidade de amante na realidade corre das outras mulheres que poderiam tornálo infiel A observação direta de casos individuais nos permitiu demonstrar que o homem aparentemente receptivo apenas ao encanto masculino sente a atração que emana das mulheres como um homem normal na verdade mas ele se apressa em transpor para um objeto masculino a excitação que lhe vem da mulher e dessa maneira sempre repete o mecanismo pelo qual adquiriu sua homossexualidade Está longe de nós pretender exagerar a importância desses esclarecimentos sobre a gênese psíquica da homossexualidade É obvio que contrariam forte mente as teorias oficiais dos portavozes dos homossexuais mas estamos cientes de que não são abrangentes o bastante para possibilitar uma explicação definitiva do problema O que por motivos práticos é denominado homossexualidade pode se originar de uma variedade de processos psicossexuais de inibição e aquele que distinguimos talvez seja apenas um entre muitos dizendo respeito a 119316 um só tipo de homossexualidade Temos de admitir igualmente que em nosso tipo homossexual o número de casos em que se podem evidenciar as condições que requeremos ultrapassa em muito o daqueles em que realmente aparece o efeito deduzido de modo que também nós não podemos descartar o envolvi mento de fatores constitucionais desconhecidos aos quais habitualmente se at ribui toda a homossexualidade Não teríamos nenhum motivo para abordar a gênese psíquica da forma de homossexualidade por nós estudada se não houvesse a forte conjectura de que Leonardo cuja fantasia com o abutre foi nosso ponto de partida pertence a esse tipo de homossexual Embora pouco se saiba sobre a conduta sexual desse grande artista e pesquis ador podemos confiar em que os dizeres dos seus contemporâneos provavel mente não se equivocavam muito Conforme essa tradição ele parece ter sido um homem cujas necessidades e atividades sexuais eram extraordinariamente reduzi das como se uma alta aspiração o tivesse erguido acima das comuns exigências animais do ser humano Deve ficar sem resposta a questão de se ele teria buscado satisfação sexual direta e de que modo o teria feito ou se poderia têla dispensado completamente é uma questão que deve ficar sem resposta Mas também no caso dele temos o direito de buscar aquelas correntes afetivas que impelem os outros ao ato sexual pois não podemos imaginar uma vida psíquica humana em cuja constituição não participe o desejo sexual no sentido mais amplo a libido ainda que se tenha distanciado bastante da meta original ou se furtado à realização Em Leonardo só poderemos achar traços de inclinação sexual não transform ada Mas esses apontam numa só direção e permitem situálo entre os homos sexuais Sempre se comentou que ele tomava apenas meninos e adolescentes de notável beleza como discípulos Era bondoso e indulgente para com eles dava lhes assistência e cuidava pessoalmente deles quando ficavam doentes como uma mãe cuida dos filhos e como sua própria mãe deve ter olhado por ele Tendo os 120316 escolhido por serem belos não pelo talento nenhum deles Cesare da Sesto G Boltraffio Andrea Salaino Francesco Melzi e outros veio a se tornar um pintor de renome Em sua maioria não conseguiram alcançar independência em relação ao mestre desapareceram após a morte deste sem deixar uma marca definida na história da arte Alguns outros cuja obra os autorizava a se denomin arem seus discípulos como Luini e Bazzi chamado de Sodoma ele provavel mente não conheceu em pessoa Sabemos que nos será feita a objeção de que o comportamento de Leonardo diante dos discípulos não tem relação com motivos sexuais e não permite con clusões sobre sua particularidade sexual Em resposta a isso alegaremos com toda a cautela que nossa abordagem explica alguns traços peculiares na conduta do mestre que de outro modo permaneceriam um mistério Leonardo mantinha um diário em sua escrita pequena que ia da direita para a esquerdaj ele fazia an otações destinadas apenas a si mesmo Nesse diário curiosamente ele se dirige a si mesmo na segunda pessoa Aprende com mestre Luca a multiplicação de raízes Faz com que mestre dAbacco te mostre como quadrar um círculo44 Ou por ocasião de uma viagem Ir à Prefeitura por causa de meu jardim Manda fazer duas sacolas Vê o torno de Boltraffio e faz polir nele uma pedra Deixa o livro para o mestre Andrea Il Todesco45 Ou num propósito de outra importância Hás de concluir em teu tratado que a Terra é uma estrela quase similar à Lua e assim provarás a nobreza de nosso mundo46 Nesse diário que como aqueles de outros mortais muitas vezes toca nos mais importantes eventos do dia com umas poucas palavras ou silencia total mente acerca deles achamse alguns trechos que devido à singularidade são citados por todos os biógrafos de Leonardo Tratase de anotações sobre pequen as despesas do mestre feitas com meticulosa exatidão como se procedessem de um pai de família rigoroso e avaro enquanto não há registro de gastos elevados e 121316 nada demonstra que o artista fosse versado em economia Uma dessas anotações diz respeito a um novo casaco que ele comprou para o discípulo Andrea Salaino47 l liras sSoldi Vinténs braças de pano de prata L15 S4 Veludo verde para guarnição L9 S Fitas L S9 Botões L S12 Outra anotação bastante minuciosa traz todas as despesas que outro discípulo48 lhe ocasionou por seus defeitos e sua tendência ao roubo No dia 23 de abril de comecei este livro e recomecei o cavalo49 Jacomo veio para ficar comigo no dia da Madalena 22 de julho de 1490 com dez anos de idade Observação na margem ladrão mentiroso teimoso comilão No segundo dia mandei que lhe fizessem duas camisas um par de calças e um gibão e quando pus de lado o dinheiro para pagar essas coisas ele me roubou da algibeira o dito dinheiro e não foi possível fazêlo confessar embora eu tivesse certeza disso Observação na margem 4 liras E o relato dos malfeitos do pequeno continua terminando com uma lista das despesas No primeiro ano um casaco 2 liras 6 camisas 4 liras 3 gibões 6 liras 4 pares de meias 7 liras etc50 Os biógrafos de Leonardo que estão muito longe de procurar resolver os en igmas da vida psíquica de seu herói a partir de suas pequenas fraquezas e singu laridades costumam ressaltar a propósito dessas contas peculiares a bondade e 122316 indulgência do mestre para com seus alunos Esquecemse de que o que nisso pede explicação não é a conduta de Leonardo mas o fato de ele nos haver deix ado esses testemunhos dela Como não podemos lhe atribuir a intenção de fazer com que provas de sua benevolência nos chegassem às mãos devemos conjectur ar que outro motivo de natureza afetiva levouo a deixar esses registros Não é fácil imaginar qual seria e não saberíamos indicar nenhum se outra conta achada entre os papéis de Leonardo não lançasse uma viva luz sobre essas anotações curiosamente minuciosas relativas a roupas dos discípulos etc Despesas para o enterro de Caterina libras de cera S 27 Para o caixão S 8 Pálio sobre o caixão S 12 Transporte e colocação da cruz S 4 Para o transporte do corpo S 8 Para 4 padres e 4 clérigos S 20 Sino livros toalha S 2 Para os coveiros S 16 Para o ancião S 8 Para a licença e os funcionários S 31 S 106 Para o médico S 4 Para açúcar e luzes S 12 S 120 123316 Despesas para o enterro de Caterina S 27 libras de cera S 18 Para o caixão S 12 Pálio sobre o caixão S 4 Transporte e colocação da cruz S 8 Para o transporte do corpo S 20 Para padres e clérigos S 2 Sino livros toalha S 16 Para os coveiros S 16 Para o ancião S 8 Para a licença e os funcionários S 1 soma 106 Para o médico S 4 Para açúcar e luzes S 12 soma total 12051 O romancista Merejkóvski é o único que sabe nos dizer quem era essa Caterina Com base em duas breves anotações ele conclui que a mãe de Leonardo a pobre camponesa de Vinci foi a Milão em 1493 para visitar o filho que tinha então 41 anos de idade que ela adoeceu lá foi levada ao hospital por Leonardo e quando morreu foi por ele sepultada com dispendiosas honras52 Essa interpretação do romancista versado em psicologia não pode ser provada mas possui tal verossimilhança interior e combina de tal maneira com tudo o que sabemos da atividade sentimental de Leonardo que não posso deixar 124316 de admitila como correta Leonardo tinha êxito em sujeitar os sentimentos ao jugo da pesquisa inibindo a sua livre expressão mas também para ele houve ocasiões em que o que fora suprimido conseguiu se exteriorizar e a morte da mãe outrora tão amada foi uma delas Nesse cálculo dos custos do sepultamento en contramos a exteriorização deformada a ponto de ficar irreconhecível do luto pelo passamento da mãe Perguntamonos de que modo essa deformação pôde se realizar e não podemos compreendêla do ponto de vista dos processos psíquicos normais Mas algo semelhante nos é familiar nas condições anormais da neurose sobretudo da que é chamada neurose obsessiva Nela vemos que a exteriorização de sentimentos fortes mas tornados inconscientes mediante a repressão é deslo cada para ações triviais e até mesmo tolas As forças que a eles se opõem con seguem reduzir de tal forma a expressão desses sentimentos reprimidos que inev itavelmente consideramos ínfima a sua intensidade mas na imperiosa compulsão com que é levado a efeito esse ato insignificante se mostra a força real enraizada no inconsciente dos impulsos que a consciência gostaria de negar Apenas tal ressonância do que sucede na neurose obsessiva pode explicar a conta dos fu nerais da mãe redigida por Leonardo No inconsciente ele ainda estava ligado a ela como na infância por uma inclinação de matiz erótico a oposição a esse amor infantil por parte da repressão depois sobrevinda não permitiu que lhe fosse feito um memento mais digno no diário mas o compromisso resultante desse conflito neurótico tinha de ser explicitado e assim a conta foi registrada e chegou ao conhecimento da posteridade como algo ininteligível Não nos parece ousadia demais transferir a percepção obtida na conta dos fu nerais para as contas das despesas dos alunos Assim também estas seriam um ex emplo em que os escassos resíduos de impulsos libidinais de Leonardo produziram obsessivamente uma expressão deformada A mãe e os discípulos imagens fiéis de sua própria beleza quando menino teriam sido seus objetos 125316 sexuais na medida em que a repressão sexual nele dominante admite essa des ignação e a obsessão em anotar meticulosamente o que havia gasto com eles seria a surpreendente revelação desses conflitos rudimentares Teríamos port anto que a vida amorosa de Leonardo realmente se inclui no tipo de homossexu alidade cujo desenvolvimento psíquico pudemos mostrar e o aparecimento da situação homossexual na fantasia com o abutre se tornaria compreensível para nós pois não significaria outra coisa senão o que já afirmamos sobre aquele tipo Esta seria sua tradução Foi através dessa relação erótica com minha mãe que me tornei um homossexual53 IV A fantasia de Leonardo com o abutre ainda requer nossa atenção Em palavras que semelham claramente a descrição de um ato sexual e bateu muitas vezes a cauda contra meus lábios ele enfatiza a intensidade dos laços eróticos entre mãe e filho Não será difícil a partir dessa ligação entre a atividade da mãe do abutre e o realce dado à zona da boca imaginar que a fantasia envolve uma se gunda recordação Podemos traduzila da seguinte forma Minha mãe me deu muitos beijos apaixonados na boca A fantasia é composta da lembrança de ser amamentado e de ser beijado pela mãe Bondosamente a natureza deu ao artista a habilidade de exprimir seus im pulsos anímicos mais secretos dele mesmo ocultos em criações que afetam 126316 poderosamente outros indivíduos que não o conhecem sem que eles próprios saibam dizer de onde vem tal emoção Não haveria no conjunto da obra de Leonardo nada que desse testemunho daquilo que sua memória conservou como a mais forte impressão da infância Seria de esperar que sim Ao considerar no entanto as profundas transformações que uma impressão da vida do artista tem de sofrer antes de poder contribuir para a obra de arte teremos de reduzir a um nível bastante modesto a pretensão de certeza na demonstração especialmente no caso de Leonardo Ao pensar nas pinturas de Leonardo todos nos lembramos do sorriso inusit ado fascinante e misterioso que ele põe nos lábios de suas figuras femininas Tratase de um sorriso fixo em lábios alongados e arqueados que se tornou ca racterístico dele e é muitas vezes chamado leonardesco54 Foi no rosto estran hamente belo da florentina Monna Lisa del Giocondo que ele comoveu mais fortemente e desconcertou os espectadores Esse sorriso pedia para ser inter pretado e encontrou as mais variadas interpretações nenhuma delas satisfatória Voilà quatre siècles bientôt que Monna Lisa fait perdre la tête à tous ceux qui parlent delle après lavoir longtemps regardéeEis que em breve serão quatro séculos que a Monna Lisa faz perder a cabeça a todos os que dela falam após têla observado por longo tempo55 Muther56 O que cativa especialmente o observador é o demoníaco encanto deste sorriso Centenas de escritores e poetas escreveram sobre essa mulher que ora parece nos sorrir sedutoramente ora parece olhar no vazio de maneira fria e sem alma e ninguém decifrou seu sorriso ninguém leu seus pensamentos Tudo até mesmo a paisagem é misteriosamente onírico como que vibrante de uma sensualidade cerrada Vários críticos suspeitaram que dois elementos diversos se juntam no sorriso da Monna Lisa Por isso enxergaram na expressão da bela florentina a consumada 127316 representação dos opostos que governam a vida amorosa das mulheres a reserva e a sedução a devotada ternura e a sensualidade implacavelmente exigente que devora o homem como algo estranho Eis o que diz Müntz On sait quelle énigme indéchiffrable et passionannte Monna Lisa Gioconda ne cesse depuis bientôt quatre siècles de proposer aux admirateurs pressés devant elle Jamais artiste jemprunte la plume du délicat écrivain qui se cache sous le pseudonyme de Pierre de Corlay atil traduit ainsi lessence même de la fémin ité tendresse et coquetterie pudeur et sourde volupté tout le mystère dum cœur qui se reserve dun cerveau qui réfléchit dune personnalité qui se garde et ne livre dellemême que son rayonnement Sabese que enigma indecifrável e apaixonante a Monna Lisa Gioconda não para de oferecer há quase quatro séculos aos admiradores que se comprimem diante dela Jamais um artista tomo as palavras do delicado es critor que se oculta sob o pseudônimo de Pierre de Corlay traduziu de tal maneira a própria essência da feminilidade ternura e coqueteria pudor e secreta volúpia todo o mistério de um coração que se reserva de um cérebro que reflete de uma personalidade que se guarda e apenas concede de si pró pria sua radiância O italiano Angelo Conti57 vê o quadro do Louvre animado por um raio de sol La donna sorrideva in una calma regale i suoi istinti di conquista di ferocia tutta leredità della specie la volontà della seduzione e dellagguato la grazia dellinganno la bontà che cela um proposito crudele tutto ciò appariva altern ativamente e scompariva dietro il velo ridente e si fondeva nel poema del suo sor riso Buona e malvaggia crudele e compassionevole graziosa e felina ella rideva A mulher sorria com uma tranquilidade régia seus instintos de conquista de ferocidade toda a herança da espécie a vontade de sedução e ardil a graça do 128316 engano a bondade que esconde um propósito cruel tudo isso aparecia altern adamente desaparecia atrás do véu ridente e afundava no poema do seu sor riso Boa e má cruel e compassiva graciosa e felina ela ria Leonardo trabalhou quatro anos nessa pintura talvez entre 1503 e 1507 dur ante sua segunda temporada em Florença quando passava dos cinquenta anos de idade Segundo Vasari empregou refinados artifícios para distrair a dama dur ante as sessões e manter aquele sorriso em seu rosto No estado atual a pintura conserva poucas das muitas sutilezas que o pincel de Leonardo reproduziu na tela foi considerada quando estava sendo feita a coisa mais sublime que a arte era capaz de produzir Mas é certo que não satisfez o próprio autor que ele não a deu por concluída e não entregou ao cliente que a solicitara levandoa depois consigo para a França onde seu protetor o rei Francisco i adquiriua para o Louvre Deixemos sem solução o enigma fisionômico da Monna Lisa apenas regis trando o fato inegável de que seu sorriso não exerceu fascínio menor sobre seu pintor do que sobre os incontáveis espectadores dos últimos quatrocentos anos Desde então esse cativante sorriso tornou a aparecer em todos os seus quadros e naqueles de seus alunos Como a Monna Lisa é um retrato não podemos supor que Leonardo tenha dado àquele rosto por conta própria um traço tão express ivo que ele não possuía Ao que parece não temos escolha senão acreditar que ele encontrou o sorriso em seu modelo e de tal forma sucumbiu ao seu encanto que passou a adotálo nas criações de sua fantasia Essa concepção plausível acha expressão em A Konstantinowa por exemplo Durante o longo período em que o mestre se ocupou do retrato da Monna Lisa del Giocondo ele penetrou nas sutilezas daquele semblante feminino com tal empatia de sentimentos que transferiu esses traços especialmente o misterioso sorriso e o singular olhar para todos os rostos que veio a pintar 129316 ou desenhar a peculiaridade mímica da Gioconda pode ser notada inclusive no quadro de São João Batista que está no Louvre mas são claramente recon hecíveis sobretudo na expressão de Maria em SantAna com a Virgem e o Menino Mas isso pode ter se dado de outra forma Vários dos biógrafos de Leonardo sentiram a necessidade de buscar razões mais profundas para a atração que o sor riso da Gioconda exerceu sobre o artista a ponto de não mais abandonálo Wal ter Pater que vê no quadro da Monna Lisa a personificação de toda a experiên cia da humanidade civilizadak e fala pertinentemente do insondável sorriso que em Leonardo sempre parece ligado a um quê de sinistro levanos a uma outra pista quando afirma58 Além disso a pintura é um retrato Podemos ver como essa imagem se mis tura na trama dos seus sonhos desde a infância e não fosse pelo testemunho histórico poderíamos crer que ela era a sua dama ideal enfim personificada e contemplada Algo semelhante deve ter em mente Marie Herzfeld quando escreve que na Monna Lisa Leonardo deparou consigo mesmo e por isso lhe foi possível colocar tanto do próprio ser naquele quadro cujos traços sempre estiveram em misteri osa afinidade na alma de Leonardo59 Vamos procurar desenvolver essas indicações dandolhes maior clareza Pode haver sucedido então que Leonardo fosse cativado pelo sorriso da Monna Lisa porque este despertou nele algo que havia muito tempo dormia em sua alma provavelmente uma antiga lembrança Tal lembrança era significativa o bastante para não mais deixálo após ter sido acordada ele sempre tinha de lhe dar uma nova expressão A afirmação de Pater segundo a qual podemos ver que um rosto como o da Monna Lisa se mistura na trama dos sonhos de Leonardo desde a in fância parece verossímil e deve ser compreendida literalmente 130316 Vasari menciona teste di femmine che ridonocabeças de mulheres que riem como os primeiros ensaios artísticos de Leonardo A passagem completamente insuspeita pois nada pretende provar diz o seguinte na tradução alemã fazendo com terra na sua infância cabeças de mulheres que riem que eram reproduzidas em gesso e cabeças de crianças que pareciam formadas por mãos de mestre60 Tomamos conhecimento portanto de que sua prática artística teve início com a representação de dois diferentes objetos que nos lembram os dois objetos sexuais que inferimos da análise de sua fantasia com o abutre Se as belas cabeças de crianças eram reproduções de sua própria pequena pessoa então as mulheres que riem são repetições de Caterina sua mãe e começamos a imaginar a possibil idade de que ela tivesse o misterioso sorriso que ele havia perdido e que tanto o cativou quando o reencontrou na dama florentina61 A pintura de Leonardo cronologicamente mais próxima da Monna Lisa é SantAna com a Virgem e o Menino Nela o sorriso leonardesco aparece nas duas mulheres do modo mais belo e marcante Não se sabe quanto tempo antes ou de pois da Monna Lisa ele começou a pintar esse quadro Como os dois trabalhos se estenderam por anos é lícito supor que o tenham ocupado simultaneamente Seria mais condizente com a nossa expectativa que o seu envolvimento nos traços da Monna Lisa o tivesse incitado a criar a composição de SantAna Pois se o sorriso da Gioconda evocou em Leonardo a recordação da mãe é natural en tender que o impeliu primeiramente a fazer uma exaltação da maternidade e restituir à mãe o sorriso que havia encontrado na senhora nobre Podemos en tão deixar que o nosso interesse passe da Monna Lisa para esse outro quadro não menos belo e que também se acha no Louvre SantAna com a filha e o neto foi um tema raramente tratado na pintura itali ana de todo modo a representação de Leonardo diverge bastante das demais que conhecemos Eis o que diz Muther62 131316 Alguns mestres como Hans Fries Holbein o Velho e Girolamo dai Libri tinham Ana sentada ao lado de Maria e o menino entre as duas Outros como Jakob Cornelisz em seu quadro de Berlim mostravam literalmente santAna e outros dois ou seja representavamna tendo no braço a pequena figura de Maria que segurava aquela ainda menor do menino Jesus Na obra de Leonardo Maria está sentada no colo de sua mãe e se inclina es tendendo os braços para o garoto que brinca com um cordeirinho talvez de modo um pouco rude A avó apoia no quadril o braço que se acha visível e olha para os dois com um sorriso venturoso Sem dúvida o posicionamento é um tanto forçado Mas o sorriso que paira nos lábios das duas mulheres embora seja inequivocamente o mesmo do quadro da Monna Lisa perdeu seu caráter in quietante e enigmático exprime ternura e tranquila ventura63 Depois de aprofundarse por algum tempo nesse quadro vem uma súbita compreensão ao espectador somente Leonardo poderia pintálo assim como apenas ele poderia ter a fantasia com o abutre Esse quadro sintetiza a história da infância do autor suas particularidades se explicam por referência às mais pess oais impressões da vida de Leonardo Em casa de seu pai ele encontrou não só a boa madrasta donna Albiera mas também a avó paterna Monna Lucia que po demos imaginar não lhe foi menos afeiçoada do que costumam ser as avós Tal circunstância pode lhe haver inspirado a representação de uma infância protegida por mãe e avó Outra característica notável da pintura adquire significação ainda maior SantAna a mãe de Maria e avó do menino que deveria ser uma matrona é ali mostrada como um tanto mais madura e mais séria do que a Virgem Maria mas ainda como uma mulher jovem de beleza ainda não fenecida Na realidade Leonardo deu duas mães ao menino uma que dirige os braços para ele e outra bem atrás ambas com o venturoso sorriso da felicidade maternal Tal singularid ade não deixou de provocar assombro nos comentadores Muther por exemplo 132316 acha que Leonardo não pôde se decidir a pintar a idade as pregas e rugas e por isso fez também de Ana uma mulher de resplandecente beleza Será que podemos nos satisfazer com essa explicação Outros recorreram ao expediente de ques tionar a equivalência de idades entre mãe e filha64 Mas a tentativa de ex plicação de Muther já bastaria para evidenciar que a impressão de rejuvenesci mento de SantAna deriva do quadro mesmo não é produto de uma ilusão tendenciosa A infância de Leonardo foi singular tal como esse quadro Ele teve duas mães a primeira delas sua mãe de fato Caterina da qual foi separado entre os três e os cinco anos de idade e uma jovem e afetuosa madrasta a esposa de seu pai donna Albiera Juntando esse dado de sua infância e a mencionada presença de mãe e avó e condensandoas numa unidade mista ele viu tomar forma a composição do trio de SantAna A figura materna mais distante do menino a avó corres ponde pela aparência e afastamento físico em relação a ele à primeira e genuína mãe Caterina Com o bemaventurado sorriso de SantAna o artista parece ter negado e escondido a inveja que sentiu a infeliz quando teve de ceder à rival mais nobre o filho como antes cedera o marido65 Desse modo partindo de outra obra de Leonardo chegaríamos à confirmação da suspeita de que o sorriso da Monna Lisa del Giocondo teria despertado no homem adulto a recordação da mãe de sua primeira infância Desde então mado nas e senhoras nobres retratadas por pintores italianos passaram a mostrar a hu milde inclinação do rosto e o peculiar sorriso bemaventurado da pobre cam ponesa Caterina que trouxe ao mundo o filho magnífico destinado a pintar pesquisar e sofrer Se Leonardo teve êxito em reproduzir no rosto da Monna Lisa o duplo signi ficado que tinha esse sorriso tanto a promessa de ilimitada ternura como a ameaça sinistra nas palavras de Pater também nisso então ele permaneceu fiel 133316 ao conteúdo de sua mais distante memória Pois a ternura da mãe tornouse para ele uma fatalidade configurou seu destino e as privações que o aguardavam Era apenas natural a veemência das carícias que a fantasia do abutre deixava trans parecer a pobre mãe abandonada teve de verter no amor materno suas re cordações das carícias experimentadas e também o anseio por novas era impelida a compensar não apenas a si mesma por não ter um marido mas também ao filho por não ter um pai que o acarinhasse Assim como toda mãe insatisfeita pôs o filho no lugar do marido e pelo precoce amadurecimento de seu erotismo rouboulhe parte de sua masculinidade O amor da mãe ao bebê de que cuida e amamenta é algo bem mais profundo que sua posterior afeição pela criança que cresce É da natureza de uma relação amorosa plenamente satisfatória que realiza não apenas todos os desejos psíquicos mas também todas as exigências físicas e se representa uma das formas da felicidade alcançável pelo ser humano isto se deve em não pequena medida à possibilidade de satisfazer sem recriminações desejos há muito reprimidos e que devem ser denominados perversos 66 Ainda nos mais felizes matrimônios jovens o pai sente que o bebê sobretudo o filho homem tornouse seu rival e esse é o ponto de partida de um antagonismo pro fundamente enraizado no inconsciente No apogeu de sua vida ao reencontrar o sorriso de ventura e enlevo que out rora se achava na boca de sua mãe quando o acariciava havia muito Leonardo era dominado por uma inibição que o impedia de ansiar por tais carinhos dos lá bios de uma mulher Mas ele havia se tornado pintor então se empenhou em re criar aquele sorriso com o pincel estampouo em todos os seus quadros seja os que ele próprio pintou seja os que os discípulos executaram sob sua direção em Leda em João Batista em Baco Os dois últimos são variações do mesmo tipo Diz Muther Do comedor de gafanhotos da Bíblia Leonardo fez um Baco um jovem Apolo que com um misterioso sorriso nos lábios e as lisas pernas 134316 cruzadas fitanos com olhar sedutor Esses quadros exalam uma mística em cujo segredo não ousamos penetrar quando muito podemos tentar estabelecer sua ligação com as obras anteriores de Leonardo As figuras são novamente andrógi nas não mais no sentido da fantasia com o abutre porém São belos jovens de feminina delicadeza e formas efeminadas eles não abaixam o olhar e sim olham de um modo misteriosamente triunfante como se soubessem de uma grande feli cidade que não pode ser revelada o familiar sorriso encantador faz supor que se trata de um segredo de amor É possível que nessas figuras Leonardo tenha neg ado e superado artisticamente a infelicidade de sua vida amorosa representando nessa venturosa união de natureza masculina e feminina a realização dos desejos do menino fascinado pela mãe V Entre os registros feitos por Leonardo em seu diário há um que atrai a atenção do leitor por seu importante conteúdo e por um pequenino erro formal Em julho de 1504 ele escreveu Adì 9 di luglio 1504 in mercoledì a ore 7 morì ser Piero da Vinci notaio al palagio del podestà a ore 7 mio padre era detà danni 80 lasciò 10 figlioli maschi e 2 femmine No dia 9 de julho de 1504 às 7 horas morreu ser Piero 135316 da Vinci notário no palácio da prefeitura às 7 horas meu pai tinha oitenta anos de idade deixou dez filhos homens e duas filhas67 A anotação diz respeito portanto à morte do pai de Leonardo O pequeno erro consiste na repetição da hora como se ele tivesse esquecido chegando ao fi nal da frase o que já havia escrito no começo É uma coisa de nada que apenas um psicanalista levaria em conta Outra pessoa talvez não a notasse e se lhe chamassem a atenção para ela diria Isso pode acontecer a qualquer um num momento de distração ou de emoção e não tem maior importância O psicanalista pensa de modo diferente nada é pequeno demais para ele sendo manifestação de processos psíquicos ocultos Há muito ele aprendeu que tais esquecimentos ou repetições têm significado e que graças à distração po dem se revelar impulsos que de outro modo permanecem ocultos Diríamos que também esse registro é como a lista dos gastos funerários de Caterina e a das despesas com os discípulos um caso em que Leonardo falhou em suprimir seus afetos e algo havia muito escondido alcançou uma expressão distorcida Também a forma é semelhante a mesma minúcia pedante a mesma prevalência de números68 Costumamos chamar de perseveração uma repetição desse tipo É um ex celente meio de indicar a ênfase afetiva Consideremos por exemplo a invectiva de são Pedro contra seu indigno representante na Terra no Paradiso de Dante Quelli chusurpa in terra il luogo mio Il luogo mio il luogo mio che vaca Nella presenza del Figliuol di Dio Fatto ha del cimiterio mio cloaca69 136316 Não fosse a inibição afetiva de Leonardo a entrada no diário poderia ser algo assim Hoje às horas morreu meu pai ser Piero da Vinci meu pobre pai Mas o deslocamento da perseveração para um dado insignificante da notícia da morte a hora retira todo o pathos da anotação e nos leva a perceber que aí houve algo a esconder e suprimir Ser Piero da Vinci notário e descendente de notários foi um homem de grande energia que alcançou prestígio e prosperidade Casouse quatro vezes sendo que as duas primeiras mulheres morreram sem lhe deixar filhos apenas com a terceira logrou ter o primeiro filho legítimo quando Leonardo já estava com 24 anos de idade e havia muito deixara a casa paterna mudandose para o ateliê do mestre Verrocchio A quarta e última mulher que ele esposou já com cinquenta anos deulhe ainda nove filhos e duas filhas70 Sem dúvida também esse pai foi importante no desenvolvimento psicossexu al de Leonardo não só negativamente por sua ausência dos primeiros anos de vida do garoto mas também de forma direta por sua presença na fase posterior de sua infância Quem quando criança deseja sua mãe não pode deixar de quer er se pôr no lugar do pai de identificarse com ele na imaginação e depois fazer da superação dele a tarefa de sua vida Quando Leonardo ainda por fazer cinco anos foi acolhido na casa do avô certamente a jovem madrasta Albiera tomou o lugar da mãe em seus sentimentos e ele entrou no que podemos chamar de re lação normal de rivalidade com o pai A decisão pela homossexualidade como sabemos ocorre apenas na vizinhança da puberdade Quando ela se verificou no caso de Leonardo a identificação com o pai perdeu qualquer significado para sua vida sexual mas prosseguiu em outros âmbitos de atividade não erótica Sabese que ele gostava de fausto e de belas roupas que tinha criados e cavalos embora segundo Vasari quase nada possuísse e pouco trabalhasse Não atribuiremos essas predileções apenas ao seu sentido do belo nelas reconhecemos igualmente a 137316 compulsão de imitar e ultrapassar o pai Esse havia sido em relação à pobre cam ponesa o senhor nobre por isso permaneceu no filho o aguilhão de se fazer de senhor nobre o impulso to outherod Herod literalmente de ser mais her ódico que Herodes de mostrar ao pai o que era realmente nobreza Certamente o artista criador se sente como pai em relação a suas obras Para as criações do Leonardo pintor a identificação com o pai teve uma consequência fatídica Ele as fez e não mais se ocupou delas tal como seu pai não mais se ocu para dele O cuidado que o pai demonstraria depois nada pôde alterar nessa com pulsão pois ela derivava das impressões da primeira infância e o material rep rimido que permanece inconsciente não pode ser corrigido por experiências posteriores Na época da Renascença e ainda muito depois todo artista necessitava de um benfeitor de posição elevada de um patrono que lhe encomendasse obras do qual dependia seu destino Leonardo achou seu patrono em Ludovico Sforza cognominado o Mouro um homem ambicioso amante do esplendor astuto na diplomacia mas instável e não muito confiável Na sua corte em Milão Leonardo teve o período mais brilhante de sua vida a serviço dele sua força criadora desenvolveuse do modo mais livre como atestam a Última ceia e a es tátua equestre de Francesco Sforza Ele deixou Milão antes que a catástrofe se abatesse sobre Ludovico que morreu prisioneiro dos franceses Quando chegou a Leonardo a notícia do destino de seu benfeitor ele escreveu no diário O Duque perdeu o Estado os bens e a liberdade e nenhuma de suas obras foi com pletada71 É curioso e certamente significativo que ele fizesse aqui ao seu pat rono a mesma objeção que a posteridade viria a lhe fazer como se ele quisesse re sponsabilizar uma de suas figuras paternasl pelo fato de ele próprio deixar suas obras incompletas Embora na realidade ele não estivesse errado em relação ao duque 138316 No entanto se a imitação do pai o prejudicou como artista a revolta contra o pai foi a precondição infantil de suas realizações como pesquisador da ciência talvez tão admiráveis quanto as artísticas Na bela imagem de Merejkóvski ele era como um homem que acordara no meio da escuridão enquanto os outros ainda dormiam72 Ele ousou fazer uma afirmação que contém a justificativa para toda pesquisa independente Quem disputa evocando a autoridade não emprega a inteligência e sim a memória73 Assim tornouse ele o primeiro pesquisador moderno da natureza e muitas descobertas e intuições recompensaramlhe a cor agem de ser o primeiro depois dos gregos a abordar os segredos da natureza apoiado somente na observação e no próprio julgamento Mas ensinando a menosprezar a autoridade e rejeitar a imitação dos antigos e sempre indicando o estudo da natureza como a fonte de toda verdade ele apenas repetia na mais alta sublimação alcançável pelos homens a atitude que já era a do menino que ol hava maravilhado para o mundo Traduzidos de volta da abstração científica para a experiência concreta individual os antigos e a autoridade correspondiam tão somente ao pai e a natureza tornavase novamente a mãe bondosa e meiga que o nutrira Enquanto na maioria das criaturas humanas tanto hoje como em tempos primevos a necessidade de ancorarse em alguma autoridade é tão im periosa que o mundo começa a lhes tremer quando essa autoridade é ameaçada Leonardo pôde prescindir desse sustentáculo Não o teria conseguido se não tivesse aprendido a renunciar ao pai nos primeiros anos de vida A audácia e a in dependência de sua posterior pesquisa científica pressupõem a pesquisa sexual in fantil não inibida pelo pai e lhe dão prosseguimento excluindo a sexualidade Se alguém como Leonardo escapou à intimidação pelo pai na primeiram in fância e desvencilhouse das cadeias da autoridade em sua pesquisa iria total mente de encontro à nossa expectativa se descobríssemos que esse mesmo homem permaneceu um crente e não conseguiu libertarse da religião dogmática 139316 A psicanálise nos deu a conhecer o íntimo laço entre o complexo paterno e a crença em Deus mostrounos que o Deus pessoal não é senão um pai elevado e diariamente nos faz ver como pessoas jovens perdem a fé religiosa quando a autoridade do pai desmorona dentro delas Percebemos no complexo parental portanto a raiz da necessidade religiosa o Deus justo e todopoderoso e a Natureza bondosa nos aparecem como sublimações majestosas do pai e da mãe ou antes como revivescências e restaurações da ideia que a criança pequena fazia deles Biologicamente a religiosidade está relacionada ao longo desamparo e ne cessidade de ajuda do ser humano pequeno que quando mais tarde percebe seu real abandono e fraqueza diante das grandes forças da vida sente a sua situação de modo semelhante ao da infância e busca negar o desconsolo próprio dela me diante a revivescência regressiva dos poderes protetores infantis A proteção con tra o adoecimento neurótico que a religião proporciona aos crentes explicase facilmente pelo fato de ela lhes subtrair o complexo parental ao qual se liga a consciência de culpa do indivíduo assim como da humanidade inteira e liquidá lo para eles enquanto o descrente precisa dar conta dessa tarefa sozinhon Parece que o exemplo de Leonardo não desmente essa concepção da fé reli giosa Acusações de incredulidade ou o que naquele tempo era o mesmo de abandono da fé cristã surgiram já enquanto ele era vivo e foram claramente enunciadas na primeira exposição que Vasari fez de sua vida74 Na segunda edição das Vidas em 1568 Vasari omitiu essas observações Para nós é inteira mente compreensível que em vista da extraordinária suscetibilidade de sua época em relação às coisas religiosas Leonardo se abstivesse de afirmações sobre sua atitude ante o cristianismo também nos seus cadernos Como pesquisador não se deixou minimamente influenciar pela história da Criação das sagradas escrituras contestou a possibilidade de um dilúvio universal por exemplo e em geologia 140316 não hesitou assim como os homens modernos em calcular os períodos em ter mos de centenas de milhares de anos Entre as suas profecias há algumas que deviam ofender a sensibilidade de um cristão por exemplo75 Sobre as pinturas dos santos adorados Pessoas falam com pessoas que nada escutam que têm os olhos abertos e não veem falam com estas e não obtêm resposta imploram a graça daquelas que têm ouvidos e não ouvem acendem velas para quem é cego Ou Sobre o pranto na Sextafeira santa Em todas as partes da Europa multidões vão chorar a morte de um só homem que morreu no Oriente Já se disse da arte de Leonardo que ele tirou das figuras sagradas o resíduo de laços com a Igreja e as levou para a esfera humana a fim de nelas representar grandes e belos sentimentos humanos Muther o louva por haver superado a at mosfera decadente e restituído aos homens o direito à sensualidade e à fruição da vida Nas anotações que mostram Leonardo absorvido na sondagem dos grandes enigmas da natureza não faltam expressões de admiração pelo Criador a causa última de todos esses mistérios magníficos mas nada indica que ele quisesse manter uma relação pessoal com esta potência divina Nas frases em que verteu a profunda sabedoria de seus últimos anos de vida transparece a resignação do in divíduo que se submeteu à Aνάγxη fatalidade destino às leis da natureza e não espera nenhuma mitigação por obra da bondade ou da graça de Deus 141316 Dificilmente pode haver dúvida de que Leonardo deixou para trás a religião dog mática e também a pessoal e mediante suas pesquisas distanciouse bastante da visão de mundo do crente cristão Nossas percepções sobre o desenvolvimento da psique infantil já mencion adas acima levamnos a supor que também as primeiras pesquisas infantis de Leonardo se ocupavam de problemas da sexualidade Ele próprio nos permite en trever isso ao relacionar seu impulso de pesquisa à fantasia do abutre e destacar o voo dos pássaros como um problema que por especial conjunção do destino lhe tocaria estudar Um trecho obscuro de suas anotações que trata do voo dos pás saros e soa como uma profecia mostra muito bem quanto interesse afetivo ele punha no desejo de reproduzir ele mesmo a arte de voar O grande pássaro le vantará seu primeiro voo do dorso de seu grande Cisne enchendo o universo de assombro enchendo de sua fama todas as escrituras e glória eterna ao ninho onde nasceu76 Provavelmente ele esperava conseguir voar um dia e sabemos pelos sonhos realizadores de desejos que ventura as pessoas esperam do cumprimento dessa esperança Mas por que tantos indivíduos sonham que podem voar A resposta da psic análise é que o voo ou o pássaro constitui apenas o mascaramento de outro desejo e que mais de uma ponte de palavras ou coisas pode levar a conhecêlo Quando se diz às crianças curiosas que os bebês são trazidos por um grande pás saro a cegonha o fato de os antigos terem pintado o falo com asas de a mais comum designação da atividade sexual do homem ser vögelno em alemão de o membro masculino ser chamado de ucello pássaro entre os italianos tudo isso são apenas fragmentos de um grande conjunto que nos ensina que o desejo de voar no sonho não significa outra coisa senão o forte anseio de ser capaz de real izar atos sexuais77 Esse é um desejo da primeira infância Quando o adulto se lembra da infância ela lhe aparece como um tempo feliz em que fruía o instante 142316 e se encaminhava para o futuro sem desejos e por isso inveja as crianças Mas elas mesmas se pudessem nos informar antes provavelmente diriam outra coisa Pois parece que a infância não é o venturoso idílio em que a transformamos pos teriormente que as crianças isto sim atravessam a infância fustigadas pelo desejo de tornarse grandes e fazer o que fazem os adultos Tal desejo impulsiona todos os seus jogos Se as crianças no decorrer de suas pesquisas sexuais intuem que nessa área tão misteriosa e importante os adultos podem realizar algo grande que lhes é vedado saber e fazer então surge nelas o impetuoso desejo de ser capaz de fazer o mesmo e elas sonham com isto sob a forma de voar ou preparam esse travestimento do desejo para ser usado em futuros sonhos de voos Assim tam bém a aviação que em nossos dias finalmente alcança o objetivo tem raízes erót icas na infância Ao revelar que desde criança teve uma relação especial com o problema do voo Leonardo nos confirma que sua investigação infantil se voltava para a sexu alidade tal como supusemos de acordo com nossas pesquisas em crianças de hoje Ao menos esse problema escapou à repressão que depois o distanciaria da sexualidade desde a infância até a época da plena maturidade intelectual continu ou a interessálo com ligeira mudança de sentido e é provável que ele não tenha tido mais sucesso em obter a desejada habilidade na acepção sexual primária do que naquela mecânica que ambas tenham permanecido desejos frustrados para ele O grande Leonardo permaneceu infantil em vários aspectos durante toda a vida Dizse que todos os grandes homens têm de conservar algo infantil Mesmo quando adulto ele continuou a brincar e também por causa disso pôde parecer incompreensível e inquietante para seus contemporâneos Ao saber que ele con struía engenhosos brinquedos mecânicos para festividades da corte e recepções cerimoniosas apenas nós ficamos descontentes não vendo com bons olhos que o 143316 mestre despendesse a energia nessas futilidades Mas parece que ele próprio se dedicava a isso de bom grado pois Vasari nos relata que fazia coisas semelhantes mesmo quando não solicitado Lá em Roma formando uma pasta de cera enquanto caminhava com ela fazia delicados animais cheios de vento os quais soprando fazia voar pelo ar mas cessando o vento caíam por terra Num lagarto que era bastante bizarro encontrado pelo vinhateiro de Belvedere ele pregou asas feitas com pedaços de pele de outros lagartos preenchidas de mercúrio que tremiam quando ele andava e tendo lhe feito olhos chifres e barba domesticado e guardado numa caixa fazia fugir de medo todos os amigos a quem o mostrava78 Com frequência tais brincadeiras lhe serviam para exprimir pensamentos sérios Muitas vezes costumava fazer esvaziar e limpar cuidadosamente os intestinos de um cordeiro de modo que se tornavam tão finos que podiam caber na palma da mão e num outro aposento havia posto uns foles de ferreiro aos quais prendia uma ponta dos ditos intestinos e inchandoos preenchia o aposento o qual era bastante grande e quem ali estava tinha de se pôr num canto assim mostrava que aqueles tendo pouco volume no início transparentes e cheios de ar vinham a ocupar muito espaço e ele os comparava ao gênio79 Do mesmo lúdico prazer com inocentes dissimulações e engenhosos adornos são testemunhas suas fábulas e enigmas esses apresentados em forma de profe cias quase todas ricas de ideias e notavelmente carentes de espirituosidade Em alguns casos os jogos e travessuras que Leonardo consentiu à sua ima ginação fizeram incorrer em graves erros os biógrafos que não se deram conta dessa característica Nos manuscritos de Milão se acham por exemplo esboços de cartas a Diodário de Soria Síria grãovizir do sagrado sultão da Babilônia em que Leonardo se apresenta como um engenheiro enviado a essas paragens do Oriente para executar certos trabalhos defendese da recriminação de indolência 144316 fornece descrições geográficas de cidades e montes e por fim relata um grande evento natural que lá ocorreu em sua presença80 Em 1881 J P Richter buscou demonstrar a partir desses escritos que Leonardo realmente fez essas observações de viagem para o sultão do Egito e até mesmo adotou a religião muçulmana no Oriente Essa estada teria ocorrido na época anterior a 1483 ou seja antes da transferência para a corte do duque de Milão Mas outros autores não tiveram dificuldade em reconhecer os documentos sobre a suposta viagem de Leonardo ao Oriente por aquilo que são na realidade produções fantásticas do jovem artista criadas para sua própria diversão nas quais ele talvez desse vazão aos desejos de ver o mundo e passar por aventuras Também é fantasia provavelmente a Academia Vinciana que se supôs ex istir graças a cinco ou seis emblemas altamente elaborados que têm o nome da academia Vasari menciona tais desenhos mas não a instituição81 Müntz que pôs um desses ornamentos na capa de sua grande obra sobre Leonardo é um dos poucos a crer na real existência de uma Academia Vinciana É provável que esse impulso brincalhãop tenha desaparecido nos anos da maturidade de Leonardo que também tenha vindo a dar na atividade investi gadora que constituiu o derradeiro e supremo desenvolvimento de sua personal idade Mas o fato de haver durado tanto pode nos mostrar como se desvencilha lentamente da infância quem nesse período da existência experimentou a mais alta bemaventurança erótica jamais alcançada novamente depois 145316 VI Seria vão tentar ignorar que os leitores de hoje consideram de mau gosto qualquer patografia O repúdio se encobre sob a objeção de que o exame pato gráfico de um grande homem jamais nos leva a compreender sua importância e sua obra de modo que seria inútil pretensão estudar nele coisas que podem ser achadas em fulano ou beltrano Essa crítica é tão claramente injusta porém que apenas como pretexto e disfarce podemos compreendêla A patografia não tem por objetivo tornar compreensível a obra de um grande homem não se pode fazer a alguém a objeção de não haver realizado o que jamais prometeu São out ros os motivos reais dessa aversão Nós os descobrimos quando ponderamos que os biógrafos se acham peculiarmente fixados em seus heróis Com frequência eles os tomaram como objeto de seu estudo porque já de antemão lhes dispens avam uma afeição especial por razões atinentes à sua vida afetiva pessoal Então se entregam a um exercício de idealização que busca inscrever o grande homem na série de seus próprios modelos infantis renovar nele digamos a ideia infantil do pai Em prol desse desejo apagam as linhas individuais de sua fisiognomia re tocam os traços de lutas com resistências internas e externas em sua vida não lhe toleram nenhum vestígio de fraqueza ou imperfeição humana e nos fornecem en tão uma figura ideal fria e estranha em vez de uma pessoa com quem poder íamos sentir alguma remota afinidade É lamentável que o façam pois desse modo sacrificam a verdade a uma ilusão e descartam no interesse de suas 146316 fantasias infantis a oportunidade de penetrar os mais fascinantes segredos da natureza humana82 O próprio Leonardo em seu amor à verdade e ânsia de saber não teria re chaçado a tentativa de discernir as condições para seu desenvolvimento psíquico e intelectual a partir das pequenas bizarrias e enigmas de seu ser Nós o hom enageamos ao aprender com ele Não afeta sua grandeza estudarmos os sacrifí cios requeridos por seu desenvolvimento de criança a adulto e juntarmos os fatores que gravaram em sua pessoa o trágico signo do fracasso Devemos enfatizar que em nenhum momento incluímos Leonardo entre os neuróticos ou conforme a expressão deselegante doentes de nervos Nervenkranken Quem se queixar de que nos atrevemos a aplicarlhe con cepções obtidas da patologia continua apegado a preconceitos que hoje em dia abandonamos justificadamente Já não acreditamos que saúde e doença normais e nervosos devam ser diferenciados nitidamente e que traços neuróticos tenham de ser vistos como provas de uma inferioridade geral Hoje sabemos que os sinto mas neuróticos são formações substitutivas para certas repressões que tivemos de realizar no curso de nosso desenvolvimento de criança a adulto civilizado que todos nós produzimos tais formações substitutivas e que apenas o número a in tensidade e a distribuição delas justificam o conceito prático de doença e a con clusão de haver uma inferioridade constitucional Segundo pequenos indícios na personalidade de Leonardo podemos situálo na vizinhança do tipo neurótico que denominamos obsessivo e comparar sua atividade pesquisadora à rumin ação obsessiva dos neuróticos e suas inibições às assim chamadas abulias dos mesmos O objetivo de nosso trabalho tem sido explicar as inibições na vida sexual de Leonardo e em sua atividade artística Sejanos permitido para esse fim sintetiz ar o que pudemos discernir sobre o curso de seu desenvolvimento psíquico 147316 Nada sabemos de suas condições hereditárias mas percebemos que as circun stâncias ocasionais de sua infância tiveram efeito profundo e perturbador Seu nascimento ilegítimo o privou da influência do pai até os cinco anos talvez e o entregou à terna sedução de uma mãe para a qual era o único consoloq Tendo a sexualidade precocemente incitada pelos beijos da mãe deve ter entrado numa fase de atividade sexual infantil da qual uma única manifestação está segura mente documentada a intensidade de sua pesquisa sexual infantil Os impulsos de olhar e de saberr foram maximamente estimulados pelas impressões da primeira infância a zona erógena da boca recebeu um destaque que nunca mais abandon ou A partir da conduta posterior contrária a enorme compaixão pelos animais podemos concluir que fortes traços de sadismo não estiveram ausentes nesse período da infância Uma vigorosa onda de repressão deu fim a este excesso infantil e estabeleceu as predisposições que apareceriam nos anos da puberdade O mais evidente res ultado da transformação foi o afastamento de qualquer atividade grosseiramente sensual Leonardo pôde viver de modo abstinente e dar a impressão de um indi víduo assexual Quando as marés de excitação da puberdade tomaram o menino não o tornaram doente ao obrigálo a formações substitutivas custosas e prejudi ciais a maior parte das necessidades do instinto sexual pôde ser sublimada em ím peto geral de saber devido ao precoce favorecimento da curiosidade sexual es capando assim à repressão Outra parte da libido bem menor permaneceu voltada para metas sexuais e representou a atrofiada vida sexual do homem adulto Devido à repressão do amor pela mãe essa parte foi levada a uma atitude homossexual e manifestouse como amor idealizado a garotos Continuou preser vada no inconsciente a fixação na mãe e nas venturosas recordações do trato com ela momentaneamente porém em estado inativo Dessa maneira repressão 148316 fixação e sublimação determinaram as contribuições do instinto sexual para a vida psíquica de Leonardo Após uma obscura infância Leonardo nos aparece como artista pintor e es cultor graças a um talento específico que pode ter sido reforçado pelo precoce despertar do impulso de olhar nos primeiros anos de vida Bem gostaríamos de mostrar como o talento artístico deriva dos instintos psíquicos primordiais se justamente nesse ponto não falhassem nossos meios Contentamonos em acentu ar o fato já praticamente indubitável de que a criação do artista também dá vazão a seus desejos sexuais e lembrar a respeito de Leonardo a informação transmitida por Vasari de que entre seus primeiros esforços artísticos sobres saíam cabeças de mulheres sorridentes e garotos bonitos ou seja representações de seus objetos sexuais Em plena juventude Leonardo parecia trabalhar sem inibição Tomando o pai como modelo na conduta exterior da vida teve uma época de viril força criadora e produtividade artística em Milão onde uma sina favorável o fez encontrar um sucedâneo do pai no duque Ludovico o Mouro Mas logo se confirmou nele nossa experiência de que a quase completa supressão da vida sexual real não proporciona as condições mais favoráveis para o exercício das tendências sexuais sublimadas O caráter modelar da vida sexual se impôs a atividade e a capacidade de decisão rápida começaram a fraquejar a inclinação a ponderar e hesitar já se fez evidente e estorvou o trabalho na Última ceia também determinando a sina dessa obra formidável ao influenciar em sua técnica Lenta mente foi se realizando nele um processo que podemos equiparar às regressões dos neuróticos O desenvolvimento que o tornou um artista na puberdade foi sobrepujado por aquele determinado no início da infância que fez dele um pesquisador a segunda sublimação de seus instintos eróticos retrocedeu ante aquela primordial preparada na primeira repressão Ele se tornou um pesquisad or primeiro a serviço de sua arte depois independentemente e afastado dela 149316 Com a perda do patrono que substituía o pai e o crescente ensombrecimento de sua vida tal substituição regressiva ganhou espaço cada vez maior Ele se tornou impacientissimo al pennello muito impaciente ao pintar como informou um correspondente da marquesa Isabella dEste que muito desejava possuir um quadro pintado por ele83 Seu passado infantil obteve domínio sobre ele O es forço de pesquisa que então substituiu a criação artística parece reunir alguns dos traços que caracterizam a atividade de instintos inconscientes a insaciabilid ade a implacável rigidez a ausência da capacidade de adaptarse às condições reais No auge da vida logo após os cinquenta anos num momento em que na mulher as características sexuais já regrediram e não é raro que no homem a li bido ainda faça uma enérgica arremetida uma nova transformação sobreveio a Leonardo Camadas ainda mais profundas de seu conteúdo psíquico tornaram se novamente ativas mas essa nova regressão beneficiou sua arte que estava se atrofiando Ele encontrou a mulher que lhe despertou a recordação do sorriso fel iz e sensualmente arrebatado de sua mãe e influenciado por isso reconquistou o ímpeto que o guiara no começo de seus esforços artísticos quando representou mulheres sorridentes Então pintou a Monna Lisa SantAna com a Virgem e o Menino e a série de quadros caracterizados pelo sorriso misterioso Com a ajuda de seus mais antigos impulsos eróticos teve o triunfo de mais uma vez superar a inibição em sua arte Esse último desenvolvimento é obscurecido para nós na penumbra da velhice iminente Antes disso seu intelecto ainda fora capaz das mais altas realizações de uma concepção de mundo que estava bastante à frente de seu tempo Nas seções anteriores expus o que pode justificar essa apresentação do desen volvimento de Leonardo essa forma de subdividir sua vida e explicar sua hesit ação entre arte e ciência Se essas minhas explanações despertarem mesmo entre 150316 amigos e conhecedores da psicanálise a objeção de que eu escrevi apenas um ro mance psicanalítico responderei que não superestimo o grau de certeza desses resultados Assim como outros autores sucumbi à atração que vem desse homem grande e misterioso em cuja natureza acreditamos perceber poderosas paixões instintuais que se manifestam apenas de modo curiosamente amortecido no entanto Qualquer que seja a verdade sobre a vida de Leonardo porém não podemos encerrar nossa tentativa de examinála psicanaliticamente sem antes lidar com outra tarefa Precisamos de maneira bem geral fixar os limites do que a psicanál ise pode realizar no campo da biografia para que toda explicação que não obte mos não nos seja apresentada como um fracasso O material à disposição da pesquisa psicanalítica são os dados da história do indivíduo de um lado os acasos dos eventos e as influências do meio de outro as reações dele que nos fo ram transmitidas Então com base em seu conhecimento dos mecanismos psíqui cos ela procura sondar dinamicamente a natureza do indivíduo a partir de suas reações busca desvelar tanto as forças motrizes originais de sua psique como os posteriores desenvolvimentos e transformações delas Havendo êxito nisso o comportamento de uma personalidade ao longo da vida é explicado pela ação conjunta de constituição e destino forças internas e poderes externos Se tal empreendimento não gera resultados seguros como talvez ocorra no caso de Leonardo a culpa não está no método inadequado ou defeituoso da psicanálise mas no caráter incerto e fragmentário do material que a tradição nos fornece a re speito da pessoa Portanto o fracasso deve ser imputado somente ao autor que obrigou a psicanálise a dar um parecer baseandose em material insuficiente Mas mesmo dispondo de um rico material histórico e lidando seguramente com os mecanismos psíquicos em dois pontos significativos uma investigação psicanalítica não seria capaz de esclarecer por que o indivíduo desenvolveuse 151316 necessariamente de uma forma e não de outra No caso de Leonardo tivemos de sustentar o ponto de vista de que o acaso de seu nascimento ilegítimo e a exces siva ternura de sua mãe tiveram decisiva influência na formação de seu caráter e em seu destino posterior já que a repressão sexual sobrevinda após essa fase in fantil o levou a sublimar a libido em ânsia de saber e estabeleceu sua inatividade sexual por toda a vida posterior Mas tal repressão após as primeiras satisfações sexuais da infância não era inevitável talvez não tivesse aparecido em outro indi víduo ou tivesse proporção muito menor Temos de reconhecer quanto a isso um grau de liberdade que já não pode ser decifrado psicanaliticamente Tampou co podemos afirmar que o desenlace desse empuxo repressivo era o único pos sível Outra pessoa provavelmente não teria conseguido salvar da repressão a maior parte de sua libido sublimandoa em desejo de saber Submetida às mes mas influências de Leonardo teria sofrido um permanente dano na atividade in telectual ou adquirido uma insuperável predisposição para a neurose obsessiva Portanto estas duas peculiaridades de Leonardo permanecem inexplicáveis me diante o exame psicanalítico sua tendência muito especial para repressões instin tuais e sua extraordinária capacidade para a sublimação dos instintos primitivos Os instintos e suas transformações são o limite do que a psicanálise é capaz de discernir Daí em diante ela dá lugar à investigação biológica Tanto a tendência à repressão como a capacidade de repressão nós somos obrigados a fazer re montar aos fundamentos orgânicos do caráter sobre os quais se ergue o edifício psíquico Como talento artístico e capacidade de realização se acham intimamente ligados à sublimação precisamos admitir que também a natureza da realização artística nos é inacessível mediante a psicanálise A pesquisa biológica moderna tende a explicar os traços principais da constituição orgânica de um indivíduo pela mistura de predisposições masculinas e femininas com base em substâncias químicas a beleza física de Leonardo e o seu canhotismo poderiam dar algum 152316 apoio a essa abordagems Mas não vamos abandonar o terreno da pesquisa pura mente psicológica Nosso objetivo continua a ser a demonstração do nexo pela vida da atividade instintual entre as vivências exteriores e as reações da pessoa Ainda que a psicanálise não explique a natureza artística de Leonardo ela nos torna compreensíveis suas manifestações e limitações Parece de fato que apenas um homem com as vivências infantis de Leonardo teria podido pintar a Monna Lisa e SantAna com a Virgem e o Menino proporcionar aquele triste destino a suas obras e sobressair de tal maneira como investigador da natureza como se a chave para todas as suas realizações e para seu infortúnio estivesse oculta na fantasia infantil com o abutre Mas não se deveria desaprovar os resultados de uma investigação que atribui às casualidades da constelação parental uma influência tão decisiva no destino de uma pessoa que relaciona o destino de Leonardo por exemplo a seu nascimento ilegítimo e à esterilidade de sua primeira madrasta donna Albiera Acho que não que não seria justo fazer isso Considerar o acaso indigno de determinar nosso destino é simplesmente uma recaída na visão de mundo religiosa cuja superação o próprio Leonardo antecipou ao escrever que o Sol não se move Ficamos ofen didos naturalmente de que um Deus justo e uma Providência bondosa não nos protejam melhor de tais influências no período mais indefeso de nossa vida Nisso esquecemos que praticamente tudo na vida humana é acaso desde o mo mento em que nos originamos através do encontro do espermatozoide com o óvulo acaso porém que participa das leis e da necessidade da natureza e não tem nenhum nexo com nossos desejos e ilusões Ainda pode ser incerta em por menores a divisão dos fatores determinantes de nossa vida entre as necessidades de nossa constituição e as casualidades de nossa infância no conjunto porém não cabem mais dúvidas sobre a importância justamente dos primeiros anos da infância Todos nós ainda mostramos pouquíssimo respeito 153316 para com a natureza que na sibilina afirmação de Leonardo que nos recorda a frase de Hamlet é plena de infinitas razões que jamais entraram na exper iência La natura è piena dinfinite ragioni che no furono mai in isperienza M Herzfeld op cit p iit Cada um de nós seres humanos corresponde a um dos inúmeros experimentos em que essas ragioni da natureza buscam penetrar na experiência 1 Nas palavras de Jacob Burckhardt citadas por Alexandra Konstantinowa Die Entwicklung des Madonnentypus bei Leonardo da Vinci A evolução do tipo da Madona em Leonardo da Vinci Estrasburgo 1907 Zur Kunstgeschichte des Auslandes n 54 2 Egli per reverenza rizzatosi a sedere sul letto contando il male suo e gli accidenti di quello mostrava tuttavia quanto avevva offeso Dio e gli uomini del mondo non avendo operato nellarte como si conve nia O rei ia muitas vezes amavelmente visitálo e ele por reverência sentavase no leito cont ando o seu mal e as circunstâncias dele mostrava todavia como tinha ofendido Deus e os ho mens do mundo não tendo trabalhado na arte como se devia Vasari Vite lxxxiii 155084 3 Traktat von der Malerei Freud cita a tradução alemã de H Ludwig 1909 o trecho foi aqui traduzido do original italiano citado em duas versões italianas do presente texto Un ricordo din fanzia di Leonardo da Vinci em Opere 19091912 Turim Boringhieri 1974 e com o mesmo título no volume Psicoanalisi della cultura Milão Oscar Mondadori 1989 4 Solmi La resurrezione dell opera di Leonardo no volume coletivo Leonardo da Vinci Con ferenze fiorentine Milão 1910 p12 154316 5 Citado por Scognamiglio Ricerca e documenti sulla giovinezza di Leonardo da Vinci Nápoles 1900 6 W V Seidlitz Leonardo da Vinci der Wendepunkt der Renaissance 1909 v 1 p 203 7 Seidlitz op cit v 2 p 48 8 W Pater Die Renaissance tradução do inglês 2a ed 1906 Mas é certo que em determinado período de sua vida ele quase deixou de ser artista 9 Cf em Seidlitz op cit v 1 a história das tentativas de restauração e conservação 10 E Müntz Léonard de Vinci Paris 1899 p 18 Uma carta de um contemporâneo escrita da Índia para um membro da família Médici faz referência a essa peculiaridade de Leonardo cf Richter The literary works of Leonardo da Vinci 11 F Botrazzi Leonardo biologo e anatomico em Conferenze fiorentine p 186 12 E Solmi Leonardo da Vinci tradução alemã de Emmi Hirschberg Berlim 1908 A citação é aqui traduzida do original italiano que diverge do texto alemão utilizado por Freud em dois as pectos na maior crueza de expressão em alemão se acha O ato da procriação e tudo a ele rela cionado e na troca de os ornamentos dos envolvidos li ornamenti delli adopranti por um costume muito antigo eine althergebrachte Sitte que também foi deslocado para antes de a beleza dos semblantes 13 Marie Herzfeld Leonardo da Vinci Der Denker Forscher und Poet O pensador pesquisador e poeta 2a ed Jena 1906 14 Talvez os gracejos as belle facezie ou seja ditos licenciosos por ele reunidos que não foram traduzidos constituam uma exceção nesse ponto não muito significativa porém Cf Herzfeld op cit p cli Strachey observa que a referência a Eros antecipa a utilização do nome que Freud faria dez anos depois nas especulações de Além do princípio do prazer 1920 para desig nar os instintos sexuais que se opõem aos instintos de morte e destruição 15 Nota acrescentada em 1919 Um desenho de Leonardo representando o ato sexual em corte anatômico sagital que certamente não pode ser qualificado de obsceno permite reconhecer al guns erros notáveis que o dr R Reitler descobriu e examinou cf Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse iv 191617 levando em conta as características de Leonardo que aqui apontei Eis o que ele diz 16 ere uma passagem obscura e até mesmo lida de formas diversas do Códice Atlântico Quando io feci Domeneddio putto voi mi metteste in prigione ora sio lo fo grande voi mi farete peggio Quando eu fiz o senhor Deus pequeno vocês me meteram na prisão se agora o faço grande vo cês me farão coisa pior Códice Atlântico é o nome dado à mais volumosa compilação de 155316 manuscritos de Leonardo que contém anotações e desenhos de natureza científica artística liter ária pessoal etc 17 Merejkóvski Leonardo da Vinci Um romance biográfico trad alemã de C v Gülschow Leipzig Tratase do volume central de uma grande trilogia intitulada Cristo e AntiCristo Os dois outros volumes são Juliano o Apóstata e Pedro o Grande Os volumes Leonardo e Juliano fo ram publicados no Brasil pela editora Globo de Porto Alegre na década de 1940 18 Solmi op cit p essa e outras citações da obra de Solmi foram aqui traduzidas do original italiano citado nas duas versões italianas consultadas já referidas em outra nota do tradutor 19 Filippo Botazzi Leonardo biologo e anatomico p 193 20 Traktat von der Malerei Jena as citações do Trattato della pittura são também traduzidas do original italiano 21 Solmi La ressurrezione p 11 22 La ressurrezione p 8 Leonardo aveva posto como regola al pittore lo studio della natura poi la passione dello studio era divenuta dominante egli aveva voluto acquistare non più la scienza per larte ma la scienza per la scienzaLeonardo havia estabelecido como regra para o pintor o estudo da ciência depois a paixão pelo estudo se tornou dominante ele já não queria ad quirir a ciência para a arte mas a ciência pela ciência 23 Ver a listagem de suas realizações científicas na bela introdução biográfica de Marie Herzfeld Jena op cit nos vários ensaios das Conferenze fiorentine e em outros lugares 24 Para fundamentação dessas afirmativas aparentemente inverossímeis vejase a Análise da fobia de um garoto de cinco anos de e observações similares Num ensaio sobre as Teorias sexuais in fantis 1908 eu escrevi Essas dúvidas e ruminações se tornarão o modelo para todo futuro labor intelectual voltado para a solução de problemas e o primeiro fracasso tem um efeito paral isador que prosseguirá por todo o tempo 25 Scognamiglio op cit p 15 26 Questo scriver si distintamente del nibbio par che sia mio destino perché nella prima ricordazione della mia infanzia e mi parea che essendo io in culla che um nibbio venissi a me e mi aprissi la bocca colla sua coda e molte volte mi percotessi com tal coda dentro alle labbra A citação que Freud faz em alemão tem duas discrepâncias em relação ao original reproduzido nesta nota que foram manti das na tradução do texto a omissão da palavra dentro ao mencionar as batidas da cauda na boca e principalmente a versão equivocada da palavra nibbioque corresponde em por tuguês a milhafre uma ave de rapina semelhante ao falcão muito diferente de abutre Geier como se acha no texto em alemão James Strachey assinalou esse equívoco em seu prefácio ao texto na edição Standard inglesa mas considerou que não afetava o argumento de Freud Outros 156316 estudiosos foram menos benevolentes com esse e alguns outros erros e lacunas A mais incisiva dessas críticas é a de David E Stannard The lessons of Leonardo em Shrinking history On Freud and the failure of psychohistory Oxford University Press pp as objeções de Stannard se acham resumidas num capítulo de Decadência e queda do império freudiano de Hans Eysenck Rio de Janeiro Civilização Brasileira título original Decline and fall of the Freudian empire 27 Nota acrescentada em Numa simpática resenha do presente texto publicada no Journal of Mental Science em Havelock Ellis objetou a essa concepção que a lembrança de Leonardo poder ia muito bem ter fundamento real pois com frequência as recordações infantis retrocedem bastante além do que geralmente acreditamos Isto eu concedo de bom grado e para atenuar essa dificuldade ofereço a suposição de que a mãe notou a presença do pássaro junto ao filho que ela facilmente pôde tomar como um significativo presságio e depois relatoua várias vezes ao menino de modo que ele pôde conservar a lembrança desse relato e depois como frequentemente ocorre confundila com a lembrança de uma vivência própria Contudo essa alteração em nada prejudica a validade de minha caracterização As fantasias que as pessoas criam posteriormente sobre sua infância costumam apoiarse em pequenas realidades desse período primordial de resto esquecido Era necessário um motivo secreto portanto para dar destaque a um evento real insig nificante e desenvolvêlo da forma como Leonardo faz com o pássaro que denomina abutre e sua notável conduta 28 Nota acrescentada em ligeiramente alterada em Desde então procurei fazer uso semel hante de uma recordação de infância também não compreendida de outro grande homem Nas primeiras páginas da autobiografia de Goethe Dichtung und Wahrheit Poesia e verdade escrita por volta dos sessenta anos somos informados de que por instigação dos vizinhos ele arremes sou pela janela peças de louça de barro pequenas e grandes que se espatifaram na rua e essa é a única cena que ele relata da infância A ausência de ligação com outra coisa o fato de coincidir com as lembranças infantis de outras pessoas que não se tornaram especialmente grandes e tam bém a circunstância de que nessa passagem Goethe não se refere ao irmãozinho que nasceu quando ele tinha três anos e nove meses e depois morreu quando ele tinha quase dez fizeramme empreender uma análise dessa recordação da infância É verdade que ele menciona esse irmão depois quando se detém nas muitas doenças da época da infância Eu esperava poder substituir essa lembrança por algo que melhor se ajustasse ao contexto do relato de Goethe e cujo teor o fizesse digno de conservação e do lugar que lhe foi atribuído na história de sua vida Essa pequena análise Uma recordação de infância em Poesia e verdade permitiu ver o ato de jogar a louça pela janela como uma ação mágica dirigida contra um intruso que perturbava e no trecho em que o incidente é narrado ele significaria o triunfo de que um segundo filho não pôde afinal 157316 perturbar a íntima relação entre Goethe e sua mãe O que haveria de surpreendente no fato de a mais antiga recordação de infância conservada em disfarces assim tanto no caso de Goethe como no de Leonardo referirse à mãe 29 Cf a propósito o Fragmento da análise de um caso de histeria Caso Dora1905 30 Horapollo Hieroglyphica Μητέρα δέ γράnpντες γlπα ςωγραnlσιν Para representar uma mãe desenhavam um abutre 31 Roscher Ausführliches Lexikon der griechischen und römischen Mythologie verbete Mut v ii 189497 Lanzone Dizionario di mitologia egizia Turim 1882 32 H Harzleben Champollion Sein Leben und sein Werk Champollion Sua vida e sua obra 1906 33 γlπα δέ hρρενα pr nασf γfνέσvαf πpτε kλλd vηλείας mπάσας Dizse que jamais existiu abutre macho que todos são fêmeas Eliano De natura animalium ii 46 apud Von Römer Über die androgynische Idee des Lebens Sobre a ideia andrógina da vida Jahrbuch für sexuelle Zwischenstufen Anuário de estágios sexuais intermediários v 1903 p 732 34 Plutarco Veluti scarabaeos mares tantum esse putarunt Aegyptii sic inter vultures mares non in veniri statuerunt Assim como acreditavam que apenas escaravelhos machos existiam os egípcios concluíram que entre os abutres não se encontravam machos Segundo vários tradutores Freud atribui erroneamente a Plutarco uma frase que é de C Leemans de um comentário deste em sua edição da obra de Horapollo ver a nota seguinte 35 Horapollonis Niloi Hieroglyphica edidit Conradus Leemans Amsterdam 1835 As palavras ref erentes ao sexo dos abutres são p 14 μητέρα μέν tπεfδz hρρεν tν τpύτω τx γένεf τxν sώων peπάρcεf Usam a imagem de um abutre para indicar a mãe porque nesse gênero de animais não há macho A frase não corresponde à referência do texto foi descuido do autor ou erro de edição A frase correta de Horapollo seria outra que é apresentada na nota da edição italiana da Boringhieri quando o abutre deseja conceber abre sua vagina ao vento boreal e é por esse penetrado durante cinco dias em que não toma alimento nem bebida 36 E Müntz Léonard de Vinci Paris 1899 p 282Essa lista se acha também na biografia de Carlo Vecce op cit pp 1612 outra lista posterior e mais extensa encontrase nas pp 23842 37 Cf as ilustrações em Lanzone op cit lâminas cxxxviviii 38 Römer op cit 39 Cf as observações no Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen ou seja o caso do pequeno Hans ali publicado em 1909 segue um acréscimo na nota feito em 1919 na Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse e na Imago 158316 40 Nota acrescentada em 1919 Acho inevitável supor que aí também se encontra uma das raízes do ódio aos judeus que aparece de forma tão elementar e atua tão irracionalmente em povos do Ocidente A circuncisão é inconscientemente equiparada à castração Se ousamos transpor nossas conjecturas para a préhistória da espécie humana podemos suspeitar que originalmente a circun cisão devia ser um sucedâneo atenuado um resgate da castração 41 Cf Richard Payne Knight Le Culte du Priape Traduzido do inglês Bruxelas 1883 42 São principalmente as investigações de I Sadger que minha própria experiência confirma no essencial Sei além disso que às mesmas conclusões chegaram W Stekel de Viena e S Ferenczi de Budapeste 43 Nota acrescentada em 1919 A pesquisa psicanalítica trouxe para a compreensão da homos sexualidade dois fatos indiscutíveis sem acreditar com isso ter exaurido as causas desse desvio sexual O primeiro é a mencionada fixação das necessidades amorosas na mãe o outro está na afirmação de que toda pessoa inclusive a mais normal é capaz da escolha de objeto homossexual realizoua alguma vez na vida e em seu inconsciente ainda a mantém ou contra ela se garante por meio de enérgicas atitudes contrárias Essas duas constatações põem fim tanto à pretensão dos ho mossexuais de serem reconhecidos como um terceiro sexo como à diferenciação considerada importante entre homossexualidade congênita e adquirida A presença de características somátic as do outro sexo o montante de hermafroditismo físico é bastante propícia à exteriorização da escolha de objeto homossexual mas não é decisiva Infelizmente é preciso dizer que os represent antes dos homossexuais no campo da ciência não souberam extrair nenhum ensinamento das se guras averiguações da psicanálise 44 E Solmi op cit p152 45 Solmi op cit p 203citações traduzidas do original italiano Leonardo faz como alguém que estava habituado a confessarse diariamente a outra pessoa e que agora substitui essa pessoa pelo diário Para uma suposição de quem pode ter sido ela ver Merejkóvski op cit p 367 46 M Herzfeld Leonardo da Vinci 1906 p cxli 47 Apud Merejkkóvski op cit p 282 48 Ou modelo Na realidade é o mesmo discípulo ou modelo da anotação anterior que Leonardo apelidou de Salaí pequeno diabo e cujo nome verdadeiro era Giangiacomo Caprotti Ele permaneceu com o mestre até o final da vida deste quase trinta anos depois Há in dícios de que a relação entre os dois não era tão idealizada como imagina Freud cf Vecce op cit pp 292 2967 O rosto de Salaí aparece em algumas obras de Leonardo entre elas um 159316 desenho preliminar para o anjo da Anunciação sorridente com longos cabelos encaracolados e o pênis ereto numa área escurecida da imagem e o quadro de S João Batista que está no Louvre 49 Da estátua equestre de Francesco Sforza 50 O texto completo está em M Herzfeld op cit p xlv 51 Merejkóvski op cit p 372 Essa lista é aqui citada conforme as duas traduções italianas do presente ensaio e a biografia de Carlo Vecce Excetuando a troca de florins por soldi as difer enças não são consideráveis como afirma Freud na nota que se segue o total da versão com flor ins é 124 Como triste atestado da incerteza das notícias de resto escassas acerca da vida íntima de Leonardo devo mencionar que a mesma conta é reproduzida por Solmi trad alemã p 104 com diferenças consideráveis A mais séria é que os florins são substituídos por soldi É lícito supor quenessa conta os florins não representam os velhos florins de ouro mas a unidade que depois seria comum equivalente a 1 23 lira ou 33 13 soldi Solmi faz de Caterina uma ser vente que cuidou da casa de Leonardo durante certo período Não tive acesso à fonte para as duas diferentes versões dessa conta 52 Caterina veio no dia 16 de julho de 1943 Giovannina rosto fantástico pergunta por Caterina no hospital A segunda frase teria sido mal traduzida por Merejkóvski a fonte de Freud para ela significaria na verdade Giovannina rosto fantástico achase no hospital de Santa Caterina 53 As formas de expressão em que a libido reprimida de Leonardo pôde se manifestar minuci osidade e preocupação com dinheiro achamse entre os traços de caráter que vêm do erotismo anal Cf Caráter e erotismo anal 1908 54 Nota acrescentada em 1919 O conhecedor de arte pensará aqui no peculiar sorriso imóvel que exibem as esculturas gregas arcaicas as de Egina por exemplo talvez também descubra algo semelhante nas figuras do mestre de Leonardo Verrocchio e por isso tenderá a ler com al guma reserva as considerações que se seguem 55 Gruyer apud Seidlitz op cit v ii p 280 A rigor Monna deveria ser escrito com minús cula e em itálico pois é uma abreviatura de Madonna que se usava antes do prenome da mulher de certa condição social mais ou menos como hoje se usa dona em português Mas a tradição a conservou em maiúscula como se fosse parte do nome da personagem e muitas vezes a encon tramos com um n só Seu correspondente masculino era ser que vemos empregado quando se fala do pai de Leonardo ser Piero da Vinci 56 Geschichte der Malerei História da pintura v i p 314 57 A Conti Leonardo pittore em Conferenze fiorentine op cit p 93 160316 58 W Pater Die Renaissance 2a ed 1906 p 157 edição alemã 59 M Herzfeld op cit p lxxxviii 60 Apud Scognamiglio op cit p 32 61 O mesmo supõe Merejkóvski que no entanto conjectura para Leonardo uma infância que di verge em pontos essenciais de nossas conclusões extraídas da fantasia do abutre Se o próprio Leonardo possuísse aquele sorriso como crê Merejkóvski dificilmente a tradição teria deixado de nos informar sobre tal coincidência 62 Op cit p 309 63 A Konstantinowa op cit Maria olha plena de ternura para seu filho querido com um sor riso que lembra a enigmática expressão da Gioconda e em outra passagem a respeito de Maria Em seus traços há o sorriso da Gioconda 64 Cf Von Seidlitz op cit v ii p 274 notas 65 Acrescentado em 1919 Se tentamos delimitar nesse quadro as figuras de Ana e de Maria per cebemos que isso não é fácil Diríamos que as duas se acham tão ligadas quanto figuras oníricas mal condensadas de forma que em vários pontos é difícil dizer onde termina Ana e onde começa Maria O que aos olhos dos críticos aparece como falha como defeito na composição justificase para o analista por referência ao significado secreto desta As duas mães da infância do artista puderam convergir numa só figura Acrescentado em 1923 É particularmente interessante comparar ao trio de SantAna do Louvre o famoso cartão de Londres que apresenta outra composição do mesmo tema Nele as duas figur as maternas estão ainda mais intimamente reunidas seus limites são ainda mais incertos de modo que houve observadores alheios a qualquer empenho de interpretação que afirmaram ser como se duas cabeças saíssem de um só corpo A maioria dos autores concorda em que esse cartão de Londres é o trabalho mais antigo situando sua origem no primeiro período milanês de Leonardo antes de 1500 Adolf Rosenberg Leonardo da Vinci 1898 porém vê na composição do cartão um tratamento posterior e mais feliz do mesmo tema e acompanhando Anton Springer acredita que ele surgiu até mesmo depois da Monna Lisa Combina muito bem com nossa argumentação se o desenho for uma obra bastante anterior Também não é difícil imaginar como o quadro do Louvre teria se originado do cartão enquanto o oposto não faria sentido Se partimos da composição do cartão parece que Leonardo sentiu a necessidade de cancelar a onírica fusão das duas mulheres que correspondia à sua re cordação de infância e afastar fisicamente as duas cabeças Isso ele fez separando a cabeça e o tronco de Maria da figura de sua mãe e inclinandoos para a frente Para motivar esse 161316 deslocamento teve de passar o menino Jesus para o chão não havendo mais lugar para João Batista menino substituído então pelo cordeiro Acrescentado em 1919 Oskar Pfister fez uma notável descoberta no quadro do Louvre à qual não se pode absolutamente negar o interesse ainda quando não se esteja inclinado a aceitála sem reservas Na vestimenta de Maria de arranjo peculiar e um tanto confuso ele enxerga os con tornos de um abutre e interpretaos como uma imagem críptica inconsciente No quadro que representa a mãe do artista achase nitidamente o abutre o símbolo da maternidade No tecido azul que se torna visível na altura do quadril da primeira mulher e se estende na direção do colo e do joelho direito veemse a cabeça tão característica do abutre o pescoço o arco superior do tronco Das pessoas a quem mostrei meu pequeno achado quase nenhuma pôde se furtar à evidência dessa imagem críptica Kryptolalie Kryptographie und unbewußtes Vex ierbild bei Normalen Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathische Forschungen v 1913 Neste ponto o leitor não deixará de observar a ilustração anexa a fim de nela buscar o desenho de abutre que Pfister enxergou O tecido azul cujas bordas formam o contorno da imagem é aqui destacado em listras escuras Pfister prossegue op cit p 147 A questão importante agora é Até onde vai a imagem críptica Acompanhando o tecido que tão claramente se destaca no conjunto a partir do meio da asa notamos que ele cai até o pé da mulher por um lado e sobe até seu ombro e o menino por outro lado A primeira dessas partes seria aproximadamente a asa e a cauda natural do abutre e essa última um ventre angulado e sobretudo se atentamos para as linhas em forma de raios sim ilares a contornos de penas uma cauda desdobrada de abutre cuja ponta direita exatamente como no fatídico sonho de infância de Leonardo conduz à boca do menino ou seja Leonardo Em seguida o autor desenvolve a interpretação em detalhes e aborda as dificuldades que daí resultam 66 Cf Três ensaios de uma teoria da sexualidade 5a ed 1922 1905 terceiro ensaio seção 5 67 Apud E Müntz op cit nota citado aqui conforme as duas edições italianas em que há ligeir as diferenças em relação ao texto dos Gesammelte Werke a principal sendo que a hora aparece antes de meu pai na segunda vez 68 Deixo de lado um erro maior que Leonardo comete nessa anotação quando atribui ao pai a id ade de 80 anos ao morrer em vez de 77 na realidade 78 69 Canto xxvii v 225 Aquele que na terra usurpa meu lugar Meu lugar meu lugar que está vago Na presença do Filho de Deus Fez de meu cemitério uma cloaca 162316 70 Parece que nesse ponto do diário Leonardo se enganou quanto ao número de seus irmãos o que se acha em notável contraste com a aparente exatidão da passagem Reproduzimos o comentário a esta nota que se acha na edição italiana da Boringhieri Na verdade é Freud que aqui se confunde ao atribuir doze irmãos e irmãs a Leonardo quando foram onze de modo que o pai deixou doze filhos incluindo Leonardo Aqui se fala apenas dos meiosirmãos paternos já que sua mãe também lhe deu vários 71 Il Duca perse lo Stato e la roba e libertà e nessuna sua opera si finì per lui ou seja nenhuma obra começada por ele ou para ele foi terminada apud Seidlitz op cit ii p 270 72 Op cit p 348 73 Chi disputa allegando autorità non adopra lingegno mas piuttosto la memoria apud Solmi Con ferenze fiorentine p 13 74 Müntz op cit La religion de Léonard op cit p 292 ss 75 Apud Herzfeld p 292 76 Apud Herzfeld op cit p 32 O grande Cisne deve indicar o monte Cecero próximo a Florença Agora se chama monte Ceceri em italiano cecero significa cisne 77 Nota acrescentada em 1919 Segundo as investigações de Paul Federn e também as de Mourly Vold 1912 Über den Traum 2 v Leipzig pesquisador norueguês sem ligação com a psicanálise 78 Vasari na tradução de Schorn 1843 aqui traduzido do original italiano com pequenas diver gências da citação alemã de Freud 79 Ibidem p 39 O termo aqui traduzido por gênio nisso acompanhando a tradução alemã usada por Freud onde se acha Genie é virtù no original italiano que admite vários significa dos antigos e modernos 80 Sobre essas cartas e as conjecturas a elas relacionadas ver Müntz op cit pp 82 ss o texto delas e de outras anotações correlatas está em M Herzfeld op cit pp 223 ss 81 Além disso gastou tempo a desenhar grupos de nós feitos numa corda que pode ser acompan hada de uma ponta à outra formando um conjunto circular de modo que se vê um desenho di ficílimo e muito belo tendo no meio estas palavras Leonardi Vinci Academia Vasari op cit p 8 Sabese hoje com certeza que essa academia foi mais uma ficção de Leonardo 82 Essa crítica pretende ser geral não visa especificamente os biógrafos de Leonardo 83 Seidlitz p 271 a No original das Strahlende zu schwärzen Und das Erhabene in den Staub zu ziehen do poema Das Mädchen von Orleans A donzela de Orleans 1801 de Friedrich Schiller 163316 b Michelangelo pintava ao mesmo tempo a Batalha de Cascina numa parede da Sala del Maggior Consiglio c Em setembro e outubro de 1792 Goethe acompanhou seu patrão o duque de Weimar na caót ica e sangrenta campanha para restaurar a monarquia na França liderada pelos austríacos e prus sianos e depois manifestouse criticamente acerca de tudo d Naquela que é possivelmente a mais bem documentada biografia do pintor da Mona Lisa o pro fessor italiano Carlo Vecce considera mais provável que a mãe de Leonardo não fosse uma cam ponesa de Vinci pois segundo um cronista do século ele era pela mãe nascido de bom sangue Esse biógrafo também acredita que ela voltou a viver com o filho na velhice tendose encontrado uma lista com as despesas de seu enterro entre os papéis de Leonardo cf C Vecce Leonardo da Vinci Lisboa Verbo trad Conceição Maia e José Maia a edição italiana é de 1998 e Respeitável no original bürgerlich termo que admite significados diversos segundo o con texto Nas versões estrangeiras deste ensaio que foram consultadas duas em espanhol as de LópezBallesteros e Etcheverry duas em italiano já mencionadas uma francesa de Marie Bonaparte e três em inglês de A A Brill J Strachey e D McLintock encontramse burguesa civilizada borghese idem bourgeoise commonly considered respectable middleclass f É interessante registrar que o verbo alemão saugen significa tanto chupar como mamar g Reelaborada umgearbeitet no infinitivo umarbeiten composto de arbeiten trabalhar laborar e do prefixo um que indica movimento ou mudança o substantivo Umarbeitung foi utilizado no parágrafo anterior As versões consultadas empregam transformada refundida ri elaborata idem sest muée elaborated transformed idem Esse verbo reaparece poucas páginas adiante e três dessas outras versões empregam um termo diferente do de agora a francesa trans posé a Standard inglesa recast e a nova inglesa da Penguin adapted Isso não deve causar es pécie já que diferentemente de Durcharbeiten não se pretende que seja um termo técnico cf nota à tradução do artigo Recordar repetir e elaborar de 1914 no v 10 destas Obras completas p 208 h Reproduzimos a nota que A A Brill um dos primeiros discípulos americanos de Freud acres centou nesse ponto à tradução que fez do presente texto publicada em 1916 Essa perversão sádica que era frequente antes que a maioria de nossas mulheres se desfizesse de seus cabelos lon gos é encontrada raramente hoje em dia i O trecho da frase até esse ponto foi um acréscimo feito em 1919 j Ou seja ao inverso como num espelho k No original Verkörperung aller Liebeserfahrung der Kulturmenschheit Freud cita a tradução alemã do livro de Pater sobre o Renascimento o original inglês citado na Standard edition é um 164316 tanto diferente a presence expressive of what in the ways of a thousand years men had come to desire uma presença reveladora do que ao longo de mil anos os homens vieram a desejar Nas duas outras citações desse autor as diferenças não são significativas l Uma de suas figuras paternas no original eine Person aus der Vaterreihe que literalmente se traduziria como uma pessoa da série paterna m Palavra acrescentada na edição dos Gesammelte Schriften em 1925 n A última frase foi acrescentada na segunda edição do texto em 1919 o Verbo derivado de Vogel pássaro corresponde ao sentido vulgar de trepar no Brasil p Impulso brincalhão Spieltrieb composto de Trieb e de Spiel jogo brincadeira as traduções consultadas empregam inclinación a los juegos pulsión de juego pulsione di giuoco pulsione al gioco instinct de jeu impulse to play playinstinct play drive q Na realidade sabese hoje que a mãe de Leonardo teve vários filhos com o camponês que a des posou no ano seguinte ao nascimento dele a primeira meiairmã de Leonardo nasceu quando ele tinha dois anos de idade r Impulsos de olhar e de saber Schau und Wißtrieb uma ocasião em que instinto não é usado para traduzir Trieb e que portanto assinalamos em nota conforme a orientação geral desta edição Da mesma forma recorremos a impulso brincalhão para verter Spieltrieb um pouco antes s Alusão a certas concepções de Wilhelm Fliess que enxergava relação entre bilateralidade e bis sexualidade cf a carta de Freud a Fliess de 9 de outubro de 1898 entre outras que diz Leonardo não se sabe de nenhum caso amoroso dele é talvez o mais famoso indivíduo canhoto Pode lhe servir t A frase de Shakespeare a que Freud faz alusão é provavelmente a famosa passagem de Hamlet ato i cena 5 There are more things in heaven and earth Horatio Than are dreamt of in your philosophy 165316 CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE 1910 PROFERIDAS NAS FESTIVIDADES DO 20O ANIVERSÁRIO DE FUNDAÇÃO DA CLARK UNIVERSITY EM WORCESTER MASSACHUSETTS SETEMBRO DE 1909 AO SR G STANLEY HALL PHD LLD REITOR DA CLARK UNIVERSITY PROFESSOR DE PSICOLOGIA E PEDAGOGIA ESTA OBRA É PENHORADAMENTE DEDICADA TÍTULO ORIGINAL ÜBER PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO LEIPZIG E VIENA DEUTICKE 1910 62 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 360 I Senhoras e senhores Para mim é uma sensação nova e desconcertante apresentarme como conferencista ante uma plateia de interessados do Novo Mundo Suponho que esta honra se deva apenas ao fato de meu nome estar ligado ao tema da psicanálise portanto é dela que pretendo lhes falar Tentarei lhes dar de maneira bastante concisa uma visão de conjunto da origem e do desenvolvi mento desse novo método de pesquisa e cura Se constitui um mérito haver criado a psicanálise ele não pertence a mim1 Não participei dos primórdios da psicanálise Era estudante e me preparava para as últimas provas quando outro médico de Viena o dr Josef Breuer2 pela primeira vez usou esse procedimento com uma jovem histérica entre 1880 e 1882 Vamos abordar inicialmente esse caso clínico e sua terapia Ele se acha ex posto minuciosamente nos Estudos sobre a histeria que Breuer e eu publicamos depois3 uma observação preliminar Eu soube não sem alguma satisfação que a maioria de meus ouvintes não pertence à classe médica Não creiam que seja pre ciso haver estudado medicina para acompanhar o que tenho a dizer É certo que avançaremos um trecho ao lado dos médicos mas logo devemos nos separar e seguir o dr Breuer num caminho bastante peculiar A paciente do dr Breuer uma moça de 21 anos e com elevados dotes intelec tuais desenvolveu ao longo de sua doença que já durava mais de dois anos uma série de distúrbios físicos e psíquicos que requeriam atenção Ela tinha uma paralisia espástica acompanhada de insensibilidade nas pontas dos dois membros 167316 direitos do corpo às vezes o mesmo problema no lado esquerdo distúrbios nos movimentos dos olhos e variadas deficiências da visão dificuldade em manter a cabeça erguida severa tosse nervosa nojo de alimentos certa vez foi incapaz de tomar líquidos durante semanas apesar da sede martirizante mostrava uma di minuição da faculdade de expressão que chegou à perda da capacidade de falar e compreender a língua materna e por fim sofria de estados de ausênciaa e con fusão delírios alteração de toda a personalidade os quais examinaremos adiante Ao tomar conhecimento de um quadro clínico desses os senhores tenderão a supor mesmo não sendo médicos que ele diz respeito a uma séria enfermidade provavelmente do cérebro que oferece pouca perspectiva de restabelecimento e que talvez não demore em levar ao fim da paciente Mas os médicos poderão lhes informar que numa série de casos com sintomas assim graves é justificado ter outra opinião bem mais otimista Quando surge tal quadro patológico numa mulher jovem que tem os órgãos vitais internos coração rins normais segundo o exame objetivo mas que experimentou fortes comoções afetivas e quando os sintomas divergem em pequenos traços daquilo que se poderia esperar então os médicos não veem o caso como realmente sério Afirmam que não se trata de uma doença orgânica do cérebro mas daquela condição misteriosa que já nos tempos da medicina grega era chamada histeria que é capaz de simular muitos quadros de adoecimento grave Não consideram a vida ameaçada e acham provável até mesmo uma recuperação completa Nem sempre é fácil diferenciar uma histeria de uma enfermidade orgânica séria Mas aqui não precisamos saber como se faz um diagnóstico diferencial desse tipo basta que nos seja garantido que a paciente de Breuer é um desses casos em que um médico experiente não erra ao diagnosticar a histeria E neste ponto cabe também acrescentar conforme a história clínica que a doença apareceu quando ela cuidava do pai que muito 168316 amava durante a grave doença que o levou à morte e que devido à sua própria enfermidade ela teve de abandonar a assistência ao pai Até agora foi proveitoso acompanharmos os médicos mas logo nos sep araremos deles Pois os senhores não devem esperar que as perspectivas de auxílio médico para o doente melhorem significativamente pelo fato de lhe ser diagnosticada uma histeria em vez de uma grave afecção orgânica do cérebro Na maioria dos casos a arte médica é impotente ante as sérias enfermidades do cérebro mas também diante da afecção histérica o médico nada pode fazer Tem de deixar que a benévola natureza decida quando e como realizará o esperançoso prognóstico dele4 Ao se reconhecer a doença como histeria pouco muda para o doente mas muito para o médico Podemos observar que sua atitude para com o doente histérico é bastante diferente daquela diante do que sofre de uma doença orgân ica Ele não dispensa em relação ao primeiro o mesmo interesse que tem por esse último pois a doença daquele é muito menos séria e no entanto parece reivindicar a mesma seriedade E outro fator se junta a isso O médico que em seus estudos aprendeu tanta coisa que permanece ignorada pelos leigos pôde formar a respeito das causas da doença e das alterações que acarreta por exem plo no cérebro de quem tem uma apoplexia ou um tumor ideias que até certo ponto têm de ser exatas pois lhe permitem compreender os detalhes do quadro mórbido Mas todo o seu saber todo o seu treino anatomofisiológico e patológico de nada lhe servem ante as singularidades dos fenômenos histéricos Não con segue entender a histeria diante dela se acha na mesma situação que um leigo E isso não agrada a quem costuma ter em alta conta o próprio saber Os histéricos são privados da simpatia do médico portanto Ele os vê como pessoas que in fringem as leis de sua ciência tal como os fiéis veem os heréticos julgaos 169316 capazes de todo mal acusaos de exagero e de fingimento e os pune subtraindo lhes seu interesse Certamente o dr Breuer não mereceu tal objeção no caso de sua paciente Tratoua com simpatia e interesse embora não soubesse como ajudála inicial mente É provável que ela mesma contribuísse para essa atitude mediante as ex celentes qualidades de intelecto e de caráter por ele documentadas na história clínica que redigiu Mas logo o seu afetuoso acompanhamento achou o caminho que possibilitou o primeiro auxílio terapêutico Haviase observado que a enferma em seus estados de ausência de alteração e confusão da psique murmurava algumas palavras que pareciam originarse de outra situação que lhe ocupava o pensamento O médico tendose informado dessas palavras punha a moça numa espécie de hipnose e as repetia para fazer com que relacionasse algo a elas A enferma procedeu dessa forma e reproduziu para o médico as criações psíquicas que a dominavam durante as ausências e se haviam denunciado naquelas palavras isoladas Eram fantasias profundamente tristes muitas vezes de poética beleza nós as chamaríamos devaneios que em geral tinham como ponto de partida a situação de uma garota junto ao leito do pai doente Depois de relatar certo número dessas fantasias ela se achava como que liberada retornando à vida psíquica normal Esse bemestar permane cia durante várias horas mas no dia seguinte dava lugar a uma nova ausência que do mesmo modo cessava com a exteriorização de novas fantasias Não se po dia escapar à impressão de que a alteração psíquica manifestada nas ausências era consequência do estímulo que emanava dessas fantasias tão carregadas de afetos A própria paciente que curiosamente falava e compreendia apenas o inglês nesse período da doença deu a esse novo tipo de tratamento o nome de talking cure cura pela fala e também referiuse a ele de maneira jocosa como chim ney sweeping limpeza de chaminé 170316 Logo se verificou como que por acaso que mediante essa limpeza psíquica podia se alcançar mais do que a eliminação temporária das frequentes perturb ações Também se conseguia fazer desaparecer sintomas patológicos quando a paciente era lembrada durante a hipnose com exteriorização de afetos em qual ocasião e em relação com o quê os sintomas haviam aparecido pela primeira vez Tinha havido um momento de calor intenso no verão e a paciente sofrera de uma sede atroz pois sem que pudesse indicar algum motivo viuse de repente impossibilitada de beber Tomava em sua mão o ansiado copo dágua mas assim que ele lhe tocava os lábios o repelia como se fosse uma hidrófoba Nesses pou cos segundos encontravase evidentemente num estado de ausência Para abrandar sua sede torturante vivia apenas de frutas melões etc Isso perdurava havia cerca de seis semanas quando um dia na hipnose ela discorreu sobre sua dama de companhia inglesa a quem não amava e relatou com todos os sinais de repulsa como fora a seu quarto e ali vira seu cãozinho o repugnante animal bebendo de um copo Não dissera nada pois quisera ser gentil Depois de ener gicamente dar expressão à fúria que lhe ficara retida pediu para beber bebeu sem dificuldade um grande volume de água e despertou da hipnose com o copo nos lábios Com isso o transtorno desapareceu para sempre5 Permitamme que me detenha por um instante nessa experiência Até então ninguém havia eliminado um sintoma histérico por esse meio e penetrado tão fundo na compreensão de suas causas Devia ser uma descoberta momentosa caso se confirmasse a expectativa de que outros sintomas da paciente talvez a maioria deles haviam surgido de tal forma e podiam ser suprimidos de tal forma Breuer não poupou esforços para convencerse disso e pôsse a investigar sis tematicamente a patogênese de outros sintomas mais graves Era realmente as sim quase todos os sintomas haviam se originado como resíduos como pre cipitados se quiserem de vivências carregadas de afetos que por causa disso 171316 depois denominamos traumas psíquicos e sua peculiaridade se explicava pela relação com a cena traumática que os havia ocasionado Eles eram para usar um termo técnico determinados determiniert pelas cenas das quais constituíam resí duos de lembranças já não precisavam ser vistos como produtos arbitrários ou enigmáticos da neurose Houve apenas uma divergência em relação à expect ativa Não era sempre uma só vivência que deixava o sintoma em geral eram nu merosos traumas recorrentes muitas vezes bastante semelhantes que haviam concorrido para aquele efeito Toda essa cadeia de lembranças patogênicas tinha então de ser reproduzida em sequência cronológica em sentido inverso primeiramente a última e a primeira por último e era totalmente impossível avançar para o primeiro trauma muitas vezes o mais influente pulando os que haviam ocorrido depois Os senhores certamente desejarão saber de outros exemplos de causação de sintomas histéricos além desse da hidrofobia provocada por nojo ao cão que be beu do copo Mas devo limitarme a umas poucas amostras a fim de manterme dentro da programação Assim Breuer conta que os transtornos de visão da pa ciente remontavam a ocasiões como aquela em que a paciente com lágrimas nos olhos estava sentada junto ao leito do pai enfermo quando de repente ele lhe perguntou que horas eram Ela não enxergava com nitidez esforçouse trouxe o relógio para perto dos olhos e o mostrador pareceulhe então muito grande mac ropsia e estrabismo convergente ou esforçouse para conter as lágrimas a fim de que o doente não as visse6 Todas as impressões patogênicas aliás vinham da época em que ela tinha dado assistência ao pai enfermo Certa vez não dormiu durante a noite em grande angústia pelo doente alta mente febril e na tensão da espera pois aguardavase um cirurgião de Viena para operálo Sua mãe se afastara por um algum tempo e Anna estava sentada junto ao leito do doente o braço direito pousado sobre o espaldar da cadeira Caiu num 172316 estado de sonho acordado e viu como vindo pela parede uma serpente negra se aproximava do doente para mordêlo É muito provável que no gramado atrás da casa realmente houvesse algumas serpentes com as quais a menina já se tivesse sobressaltado antes e que agora forneciam o material da alucinação Quis rechaçar o animal mas estava como que paralisada o braço direito pendente sobre o espaldar da cadeira ficara adormecido insensível e parético e quando o observou seus dedos transformaramse em pequenas serpentes com cabeça de caveira as unhas Provavelmente tentara afugentar a serpente com o braço direito paralisado e com isso sua anestesia e paralisia se associaram com a alu cinação da serpente Quando esta desapareceu quis rezar em sua angústia mas todas as línguas lhe faltaram não pôde falar em nenhuma delas até que final mente encontrou um poema infantil inglês e então pôde continuar a pensar e rez ar nessa língua7 Com a recordação desta cena sob hipnose foi eliminada também a paralisia do braço direito existente desde o início da enfermidade e foi concluído o tratamento Quando comecei a usar o método de investigação e tratamento de Breuer em meus próprios pacientes anos depois fiz constatações que se harmonizavam in teiramente com as dele Uma senhora de cerca de quarenta anos apresentava um tique fazia um peculiar ruído estalante sempre que se agitava e mesmo sem motivo aparente Isso havia se originado em duas vivências que tinham em comum sua intenção de não fazer ruído algum naquele momento e o fato de por uma espécie de vontade contrária o silêncio ser quebrado justamente por esse barulho uma vez quando finalmente conseguira fazer adormecer a filha doente e disse a si mesma que precisava ficar bastante quieta a fim de não acordála e outra vez quando durante um passeio de carroça com os dois filhos os cavalos se assustaram com a tempestade e ela desejou evitar cuidadosamente fazer algum 173316 ruído para não amedrontar mais ainda os animais 8 Dou esses exemplos entre muitos outros que são oferecidos nos Estudos sobre a histeria9 Senhoras e senhores se me permitem uma generalização inevitável aliás numa exposição assim resumida podemos formular da seguinte maneira o que até agora sabemos Nossos histéricos sofrem de reminiscências Seus sintomas são resíduos e símbolos mnêmicos de certas vivênciastraumáticas Uma com paração com símbolos mnêmicos de outras áreas talvez nos leve a compreender melhor esse simbolismo Também os monumentos e estátuas com que ador namos nossas cidades são símbolos desse tipo Se fizerem um passeio por Lon dres encontrarão na frente de uma das maiores estações de trem da cidade uma coluna gótica ricamente ornada a Charing Cross No século xiii um dos antigos reis plantagenetas transferiu para Westminster o corpo de sua amada rainha Eleanor e ergueu cruzes góticas em cada uma das paradas onde o sarcófago fora depositado no chão Charing Cross é o último dos monumentos que conservam a lembrança desse préstito10 Em outro ponto da cidade não muito distante da London Bridge vêse uma coluna mais moderna elevada chamada simples mente de The Monument Ela se destina a lembrar o grande incêndio que em 1666 irrompeu ali perto e que destruiu boa parte da cidade Portanto esses monumentos são símbolos mnêmicos tal como os sintomas histéricos até aqui parece se justificar a comparação Mas o que diriam os senhores de um morador de Londres que ainda hoje se detivesse pesaroso ante o monumento do cortejo fúnebre da rainha Eleanor em vez de cuidar dos seus afazeres com a pressa re querida pelo trabalho moderno ou de pensar alegremente na jovem rainha de seu próprio coração Ou de outro que diante do Monument pranteasse o aniquila mento de sua cidade natal embora há muito ela se tenha reerguido com tanto mais brilho No entanto é como esses dois pouco pragmáticos londrinos que se comportam os histéricos e neuróticos não apenas recordam vivências dolorosas 174316 há muito passadas mas ainda se prendem emocionalmente a elas não se desven cilham do passado e por causa dele negligenciam a realidade e o presente Tal fix ação da vida psíquica nos traumas patogênicos é uma das características mais im portantes e de maior consequência prática da neurose De bom grado aceito a objeção que provavelmente os senhores fazem nesse momento ao refletir sobre a história clínica da paciente de Breuer Todos os seus traumas vinham da época em que cuidava do pai enfermo e os sintomas podem ser entendidos como meros sinais de recordação da doença e da morte dele Logo correspondem a um luto e uma fixação na memória do falecido tão pouco tempo após sua morte certamente não é nada patogênico constituindo antes um processo afetivo normal Eu lhes concedo que a fixação nos traumas não é uma coisa notável na paciente de Breuer Mas em outros casos como no tique por mim mesmo tratado cujas causas precipitadoras remontavam a mais de quinze e a dez anos antes a característica do apego anormal ao passado é bastante nítida e provavelmente a paciente de Breuer a teria desenvolvido também se não tivesse recebido tratamento catártico logo depois que vivenciou os traumas e que sur giram os sintomas Até agora discutimos apenas a relação dos sintomas histéricos com a vida dos doentes mas dois outros elementos da observação de Breuer podem também nos indicar como devemos conceber os processos de adoecimento e de recuperação Em primeiro lugar cabe enfatizar que a paciente de Breuer em quase todas as situações patogênicas tinha de suprimir uma forte excitação em vez de possibil itar o desafogo da excitação mediante os correspondentes sinais de afeto palavras e atos No pequeno episódio com o cachorro de sua dama de companhia ela suprimiu em consideração a esta qualquer manifestação de seu intenso nojo en quanto velava na cabeceira do pai tinha o permanente cuidado de não deixar que o doente percebesse algo de seu medo e doloroso estado de ânimo Depois 175316 quando reproduziu tais cenas diante de seu médico o afeto antes inibido apareceu com particular veemência como se tivesse se poupado durante aquele tempo De fato o sintoma que restara dessas cenas adquiriu sua maior intensidade quando o tratamento se avizinhava da causa precipitadora e desapareceu após esta ser in teiramente esclarecida Por outro lado pôdese constatar que a recordação da cena na presença do médico não tinha efeito quando por algum motivo ocorria sem desenvolvimento de afetos Assim o que sucedia a esses afetos que podiam ser concebidos como grandezas deslocáveis era também o decisivo tanto no ad oecimento como na recuperação Impôsse a conjectura de que a doença se produzia porque os afetos desenvolvidos nas situações patogênicas tinham a saída normal bloqueada e que a essência da doença consistia em que esses afetos estrangulados sujeitavamse então a um emprego anormal Em parte per maneciam como duradouro fardo para a vida psíquica e fonte de contínua excit ação para ela e em parte experimentavam uma transformação em inusitadas in ervações e inibições somáticas que se apresentavam como os sintomas físicos do caso Para designar esse último processo recorremos ao nome de conversão histérica Certa parte de nossa excitação psíquica é normalmente guiada pelas vias da inervação somática e resulta no que se conhece como expressão de emoções A conversão histérica exagera essa parte do desafogo de um processo psíquico in vestido de afeto ela corresponde a uma expressão de afetos bem mais intensa guiada por novas trilhas Se um rio flui por dois canais num deles ocorre uma in undação quando a corrente do outro depara com um obstáculo Como veem estamos a ponto de chegar a uma teoria puramente psicológica da histeria em que atribuímos o primeiro lugar aos processosb afetivos Uma se gunda observação de Breuer nos obriga a conceder elevada importância aos esta dos de consciência na caracterização do evento patológico Sua paciente exibia variadas disposições psíquicas estados de ausência confusão e alteração do 176316 caráter além do estado normal No estado normal ela nada sabia das cenas pato gênicas e da relação entre estas e seus sintomas esquecera estas cenas ou de todo modo rompera a conexão patológica Quando era hipnotizada conseguiase após considerável esforço chamarlhe de volta à lembrança estas cenas e medi ante esse trabalho de recordação foram eliminados os sintomas Haveria enorme dificuldade em interpretar esse fato se os conhecimentos e experimentos do hipnotismo não tivessem indicado o caminho para isso Pelo estudo dos fenô menos hipnóticos habituamonos à concepção de início surpreendente de que no mesmo indivíduo são possíveis vários grupamentos psíquicos que podem per manecer mais ou menos independentes um do outro nada saber um do outro e que se alternam em chamar para si a consciência Casos desse tipo que são de nominados double conscience ocasionalmente se oferecem também de modo es pontâneo à observação Quando em tal cisão da personalidade a consciência permanece ligada constantemente a um dos dois estados esse é designado como estado psíquico consciente e aquele dele separado como inconsciente Nos notóri os fenômenos da assim chamada sugestão póshipnótica em que uma ordem dada sob hipnose é depois cumprida no estado normal temos um ótimo exemplo das influências que o estado consciente pode experimentar daquele que lhe é incon sciente e conforme esse modelo conseguiuse dar uma explicação para o que su cede na histeria Breuer adotou a hipótese de que os sintomas histéricos surgiram nesses estados psíquicos especiais que ele chamou de hipnoides Excitações que sobrevêm nesses estados hipnoides tornamse facilmente patogênicas pois eles não oferecem as condições para um desafogo normal dos processos de excitação Então nasce do processo de excitação um produto insólito o sintoma e este ir rompe como um corpo estranho no estado normal que não tem conhecimento da situação patogênica hipnoide Onde há um sintoma encontrase também uma 177316 amnésia uma lacuna na lembrança e o preenchimento dessa lacuna implica a eliminação das condições que geraram o sintoma Receio que essa parte de minha exposição não lhes tenha parecido muito clara Mas tenham em conta que se trata de concepções novas e difíceis que talvez não possam ser apresentadas mais nitidamente uma prova de que ainda não avançamos muito em nosso conhecimento De resto a tese dos estados hipnoides de Breuer revelouse limitadora e supérflua tendo sido abandonada pela psicanálise de hoje Mais adiante os senhores saberão ao menos em linhas gerais que influências e processos havia a descobrir por trás da barreira dos esta dos hipnoides postulada por Breuer Os senhores também terão tido a impressão justificadamente de que a pesquisa de Breuer pôde lhes oferecer apenas uma teoria incompleta e um esclarecimento insatisfatório dos fenômenos observados mas teorias acabadas não caem do céu e os senhores também desconfiarão de maneira ainda mais justificada se alguém lhes propuser uma teoria arrematada e sem lacunas já no começo das observações Uma teoria assim só poderia ser fruto da especulação de seu autor e não produto da investigação despreconcebida dos fatos II Senhoras e senhores Na mesma época aproximadamente em que Breuer fazia a talking cure com sua paciente o grande Charcot começava em Paris as 178316 investigações sobre os doentes histéricos da Salpêtrière que resultariam numa nova compreensão da enfermidade Esses resultados não podiam ser conhecidos em Viena naquele tempo Mas quando cerca de dez anos depois Breuer e eu publicamos a comunicação preliminar sobre o mecanismo psíquico dos fenô menos histéricos baseada no tratamento catártico da primeira paciente de Breuer estávamos inteiramente fascinados pelas pesquisas de Charcot Tomando as vivências patogênicas de nossos enfermos como traumas psíquicos nós as equiparamos aos traumas físicos que influenciavam as paralisias histéricas na constatação de Charcot e a tese dos estados hipnoides de Breuer não é outra coisa senão um reflexo do fato de Charcot haver reproduzido artificialmente aquelas paralisias traumáticas Esse grande observador francês de quem fui aluno em 188586 não era dado a concepções psicológicas ele mesmo Apenas seu discípulo P Janet buscou aprofundarse nos processos psíquicos peculiares da histeria e nós seguimos seu exemplo ao colocar a cisão psíquica e a desintegração da personalidade no centro de nossa concepção Os senhores encontram em Janet uma teoria da histeria que leva em conta as doutrinas vigentes na França sobre o papel da hereditariedade e da degeneração A histeria é segundo ele uma forma de alteração degenerativa do sistema nervoso que se manifesta por uma fraqueza congênita na capacidade de síntese psíquica Os histéricos seriam desde o princípio incapazes de juntar numa unidade os múltiplos processos psíquicos daí sua tendência à dissociação psíquica Se me permitem uma imagem banal porém clara o paciente histérico de Janet lembra uma mulher fraca que saiu para fazer compras e depois retorna com uma pilha de pacotes e caixas Não consegue segurar tudo com os dois braços e dez dedos e então lhe escapa um dos volumes Quando ela se abaixa para pegálo outro lhe cai das mãos e assim por diante Mas não se harmoniza bem com essa suposta fraqueza psíquica dos histéricos o fato de neles podermos 179316 observar além de manifestações de rendimento diminuído exemplos de aumento parcial da capacidade de realização como que para compensar as primeiras No tempo em que a paciente de Breuer havia esquecido sua língua materna e qualquer outra exceto o inglês seu domínio desta alcançou tal nível que ela era capaz quando lhe apresentavam um livro em alemão de fornecer em voz alta uma tradução inglesa correta e fluente de alguma passagem dele Depois quando prossegui por conta própria as pesquisas iniciadas por Breuer logo cheguei a outro ponto de vista sobre a gênese da dissociação histérica cisão da consciência Era inevitável que aparecesse uma divergência assim decisiva para tudo o que viria pois eu não partia de experiências de labor atório como Janet e sim de empenhos terapêuticos Impeliame sobretudo a necessidade prática O tratamento catártico tal como Breuer o havia empregado pressupunha que se pusesse o doente em hipnose pro funda pois somente em estado hipnótico achava ele o conhecimento dos nexos patogênicos que lhe escapava no estado normal Mas logo vim a desgostar da hipnose por ser um recurso caprichoso e digamos assim místico e quando notei que apesar de todos os esforços conseguia pôr em estado hipnótico apenas uma fração de meus pacientes resolvi abandonar a hipnose e tornar independente dela o tratamento catártico Como não podia alterar à vontade o estado psíquico da maioria de meus doentes propusme trabalhar com seu estado normal É certo que no primeiro instante isso parecia um empreendimento sem sentido e sem per spectiva Consistia na tarefa de saber do próprio doente algo que se ignorava e que também ele não sabia mas como se podia obter esse conhecimento Então me veio à lembrança um experimento muito curioso e instrutivo que eu havia presenciado quando estava com Bernheim em Nancy Bernheim nos mostrou que as pessoas que ele punha em sonambulismo hipnótico e fazia viver experiên cias diversas nesse estado apenas aparentemente haviam perdido a memória das 180316 coisas vividas durante o sonambulismo e que era possível lhes despertar aquelas lembranças também no estado normal Quando ele lhes perguntava sobre aquelas vivências inicialmente afirmavam nada saber mas quando não desistia in sistindo e assegurando que sabiam então as lembranças esquecidas retornavam sempre Assim também fiz com meus pacientes Quando chegava com eles a um ponto em que diziam nada saber mais eu lhes assegurava que sabiam sim que deviam apenas dizêlo e ousava afirmar que teriam a lembrança correta no momento em que eu pusesse a mão sobre sua testa Dessa maneira consegui sem recorrer à hipnose saber dos doentes tudo o que era preciso para estabelecer o nexo entre as cenas patogênicas esquecidas e os sintomas por elas deixados Mas era um pro cedimento laborioso e mesmo extenuante a longo prazo que não se prestava para uma técnica definitiva Mas não o abandonei sem que tirasse conclusões decisivas do que ali perce bera Eu vira confirmado o fato de que as lembranças esquecidas não se achavam perdidas Estavam em poder do doente e prontas para emergir em associação com o que ainda sabia mas alguma força as impedia de se tornarem conscientes obrigavaas a permanecer inconscientes A existência dessa força podia ser ad mitida com segurança pois notavase a tensão a ela correspondente quando nos empenhávamos em introduzir na consciência do doente as lembranças incon scientes em oposição a ela Vimos como resistência do paciente a força que mantinha o estado patológico Foi sobre essa ideia de resistência que baseei minha concepção dos processos psíquicos da histeria Para a recuperação do doente mostravase necessário afastar essas resistências e a partir do mecanismo da cura podíamos então form ar ideias bem definidas sobre o desenvolvimento da doença As mesmas forças que naquele momento se opunham na qualidade de resistência a que o material 181316 esquecido se tornasse consciente deviam ter provocado esse esquecimento e em purrado as vivências patogênicas em questão para fora da consciência Chamei repressão a este processo que supunha e o considerei demonstrado pela inegável existência da resistência Mas cabia também perguntar quais eram essas forças e quais as condições para a repressão em que então discerníamos o mecanismo patogênico da histeria Um exame comparativo das situações patogênicas que havíamos conhecido mediante o tratamento catártico permitiu responder a essa questão Em todas aquelas vivências havia aflorado um desejoc que se achava em agudo contraste com os demais desejos do indivíduo que se mostrava inconciliável com as exigências ét icas e estéticas da personalidade Ocorrera um breve conflito e no final dessa luta interior a ideia que aparecia ante a consciência como portadora daquele desejo incompatível sucumbiu à repressão sendo impelida para fora da consciência e es quecida junto com as lembranças a ela relacionadas O motivo da repressão portanto era a incompatibilidade entre a ideia em questão e o Eu do paciente as forças repressivas eram as reivindicações éticas etc do indivíduo A aceitação do desejo inconciliável ou o prosseguimento do conflito teriam gerado intenso de sprazer esse desprazer foi evitado pela repressão que dessa maneira revelouse como um dos dispositivos de proteção da personalidade psíquica Em vez de muitos exemplos quero lhes apresentar um só de meus casos no qual as condições para a repressão e sua utilidade são bastante claras É certo que para meus propósitos terei que abreviar também essa história clínica deixando de lado importantes premissas dela Uma moça que pouco antes havia perdido seu amado pai e que lhe havia dado assistência uma situação análoga à da pa ciente de Breuer demonstrou após o casamento da irmã mais velha simpatia especial pelo novo cunhado sentimento esse que podia ser tomado por afeição familiar Pouco tempo depois a irmã adoeceu e morreu quando a paciente e sua 182316 mãe estavam ausentes Elas foram rapidamente chamadas sem ter uma inform ação precisa do triste acontecimento Quando a moça estava se aproximando do leito da irmã falecida ocorreulhe num breve instante uma ideia que podia ser expressa nas palavras seguintes Agora ele está livre e pode se casar comigo Po demos dar como certo que tal ideia que traía seu amor intenso pelo cunhado de que ela mesma não tinha consciência foi entregue à repressão no instante seguinte graças ao tumulto de seus sentimentos A garota adoeceu com graves sintomas histéricos e quando a tomei em tratamento verificouse que havia es quecido completamente a cena junto ao leito da irmã e o feio impulso egoísta que nela se manifestara Lembrouse dele no tratamento reproduziu o instante pato gênico dando mostras de violenta emoção e ficou sã com o tratamento Talvez eu possa ilustrarlhes o processo da repressão e seu necessário vínculo com a resistência mediante uma tosca analogia retirada justamente da nossa situ ação presente Suponham que nesta sala e no meio desta plateia cujo silêncio e atenção exemplares eu não posso louvar o bastante houvesse um indivíduo que se comportasse de modo perturbador que com impertinentes risadas falas e bati das dos pés me desviasse a atenção de minha tarefa Eu declararia não poder con tinuar a palestra dessa forma e então alguns cavalheiros robustos se levantariam entre os senhores e após uma breve peleja poriam o maleducado na rua Ele es taria então reprimidod e eu poderia dar prosseguimento à palestra Mas para que o distúrbio não se repetisse caso o indivíduo tentasse entrar novamente os cavalheiros que haviam feito cumprir minha vontade moveriam suas cadeiras para junto da porta e se estabeleceriam como resistência após a repressão con sumada Se agora os senhores traduzirem esses dois locais em termos psíquicos como consciente e inconsciente terão uma imagem aceitável do processo da repressão 183316 Agora os senhores veem onde a nossa concepção se diferencia da de Janet Nós não derivamos a cisão da psique de uma inata deficiência do aparelho psíquico para realizar a síntese e sim a explicamos dinamicamente pelo conflito entre forças psíquicas contrastantes nela enxergando o resultado de uma ativa oposição entre os dois grupamentos psíquicos Desta nossa concepção nascem novas questões em grande número Sabese que é muito frequente a situação de conflito psíquico o esforço do Eu em defenderse de recordações dolorosas é ob servado com inteira regularidade sem que leve a uma cisão psíquica Não po demos afastar o pensamento de que outras condições são requeridas para que o conflito resulte na dissociação Também admito de bom grado que com a hipótese da repressão estamos apenas no começo não no final de uma teoria psicológica mas só podemos avançar aos poucos o conhecimento completo de penderá de um trabalho maior e mais profundo Por outro lado os senhores não devem tentar refletir sobre o caso da paciente de Breuer a partir da repressão Essa história clínica não se presta a isso pois foi obtida mediante a influência hipnótica Somente quando os senhores excluírem a hipnose poderão notar as resistências e repressões e formar uma ideia adequada do verdadeiro processo patogênico A hipnose esconde a resistência e torna acessível determinado âmbito da psique mas em troca acumula a resistência nos limites desse âmbito formando uma muralha que torna inacessível tudo o que es tá além O que extraímos de mais valioso da observação de Breuer foram os esclareci mentos sobre o vínculo entre os sintomas e as vivências patogênicas ou traumas psíquicos e agora não podemos deixar de avaliar essas percepções a partir da teoria da repressão Não percebemos à primeira vista como se chega à formação de sintomas partindo da repressão Em vez de fornecer uma complicada argu mentação teórica quero retornar neste ponto à imagem que utilizamos 184316 anteriormente para a repressão Considerem que o incidente não terminou neces sariamente com a exclusão do indivíduo incômodo e o posicionamento dos vigias ante a porta Pode muito bem ter ocorrido que o sujeito irritado e ainda mais desconsiderado prosseguisse nos dando trabalho É certo que já não estava entre nós que nos livramos de sua presença de seu riso galhofeiro de suas obser vações a meiavoz mas em determinado sentido a repressão malogrou pois ele passou a apresentar lá fora seu intolerável espetáculo e seus gritos e golpes na porta inibiam minha palestra mais ainda que o comportamento grosseiro de antes Em tal situação ficaríamos contentes se digamos nosso estimado presid ente o dr Stanley Hall se dispusesse a assumir o papel de mediador e pacific ador Ele sairia para falar com o intratável sujeito e retornaria com a proposta de que o deixássemos entrar novamente garantindo que o homem se comportaria melhor Fiados na autoridade do dr Hall concordaríamos em suspender a repressão e haveria novamente paz e sossego Esta não seria uma descrição inad equada da tarefa que toca ao médico na terapia psicanalítica das neuroses Para dizêlo mais diretamente estudando os doentes histéricos e outros neuróticos chegamos à conclusão de que neles fracassou a repressão da ideia a que se liga o desejo insuportável É certo que a impeliram para fora da consciên cia e da lembrança e aparentemente se pouparam uma enorme soma de desprazer mas no inconsciente o desejo reprimido continua a existir espreita por uma opor tunidade de ser ativado e então consegue enviar à consciência uma formação sub stitutiva para o que foi reprimido deformada e tornada irreconhecível à qual logo se ligam os mesmos sentimentos de desprazer dos quais o indivíduo se acreditava poupado mediante a repressão Tal formação substitutiva da ideia rep rimida o sintoma é imune a ataques subsequentes por parte do Eu defens ivo e no lugar do breve conflito surge um sofrimento interminável No sintoma se constata junto aos indícios da deformação um resíduo de semelhança indireta 185316 com a ideia reprimida originalmente as vias pelas quais a formação substitutiva se realizou podem ser descobertas durante o tratamento psicanalítico do doente e para a cura é necessário que o sintoma seja reconduzido pelas mesmas vias até a ideia reprimida Se o que foi reprimido é novamente levado à atividade psíquica consciente o que pressupõe a superação de consideráveis resistências o conflito psíquico resultante que o paciente pretendia evitar pode ter melhor desenlace sob a direção do médico do que o oferecido pela repressão Existem várias soluções assim apropriadas que levam o conflito e a neurose a bom termo e que em certos casos podem ser alcançadas em combinação Ou a personalid ade do doente é convencida de que rechaçou injustamente o desejo patogênico e induzida a aceitálo total ou parcialmente ou esse desejo é dirigido para uma meta mais elevada e portanto irrepreensível o que é chamado de sublimação ou se admite sua rejeição como sendo justa mas se substitui o mecanismo automático e portanto insuficiente da repressão por um juízo de condenação com o auxílio das mais elevadas funções intelectuais do ser humano alcançase o domínio consciente do desejo Queiram perdoarme se não tive êxito em expor de modo mais claramente apreensível esses pontos fundamentais do método de tratamento agora denom inado psicanálise As dificuldades não estão apenas na novidade do tema Algu mas observações posteriores esclarecerão sobre a natureza dos desejos intolerá veis que apesar da repressão conseguem se fazer perceptíveis desde o incon sciente e sobre as condições subjetivas ou constitucionais que têm de estar presentes numa pessoa para que ocorra esse malogro da repressão e haja uma formação substitutiva ou de sintoma 186316 III Senhoras e senhores Nem sempre é fácil dizer a verdade especialmente quando é preciso ser breve por isso devo corrigir uma inexatidão que expressei na última conferência Eu lhes disse que tendo renunciado à hipnose insistia para que os pacientes me informassem tudo o que lhes ocorria acerca do problema que abor dávamos pois sabiam de fato o que se achava supostamente esquecido e o que lhes ocorresse certamente conteria o que se buscava e efetivamente descobria que a primeira coisa que lhes vinha à mente trazia o esperado e demonstrava ser a esquecida continuação da lembrança Bem isso não é inteiramente correto eu o expus desse modo simplificado para manter a concisão Na realidade somente nas primeiras vezes acontecia de o que fora mesmo esquecido se apresentar por mera insistência minha Continuando com o procedimento sempre vinham coisas que não podiam ser as corretas pois não se adequavam ao contexto e os próprios pacientes as rejeitavam como incorretas A insistência não ajudava e parecia um erro haver abandonado a hipnose Nessa fase de perplexidade agarreime a um preconceitoe que teria sua legit imidade científica demonstrada por C G Jung e seus discípulos de Zurique anos depois Devo dizer que pode ser útil às vezes ter preconceitos Eu tinha em alta conta o rigor do determinismo dos processos psíquicos e não podia crer que um pensamento que o paciente produzia num estado de extrema atenção fosse com pletamente arbitrário e sem relação com a ideia esquecida que procurávamos o fato de que não era idêntico a essa podia ser explicado satisfatoriamente a partir 187316 da situação psicológica postulada No doente em tratamento atuavam duas forças contrárias de um lado seu esforço consciente em atrair o material esquecido presente no inconsciente para a consciência de outro a resistência nossa con hecida que se opunha a que o reprimido ou seus derivados se tornassem con scientes Se tal resistência era igual a zero ou muito pouca o esquecido se tornava consciente sem deformação logo era plausível supor que a deformação do que era buscado resultaria tanto maior quanto maior fosse a resistência a que ele se tornasse consciente O pensamento aparecido no lugar do que era buscado havia ele mesmo se originado como um sintoma portanto era uma nova formação substitutiva artificial e efêmera para o que fora reprimido e tanto mais diferente desse quanto maior a deformação que ele sofrera por influxo da resistência Mas ele tinha de mostrar certa semelhança com o que era buscado devido à sua natureza de sintoma e se a resistência não era muito forte devia ser possível a partir do pensamento surgido chegar ao que era buscado O pensamento tinha de ser em relação ao elemento reprimido como que uma alusão uma representação dele em discurso indireto Conhecemos no âmbito da vida psíquica normal casos em que situações aná logas àquela que supusemos produzem resultados também semelhantes Um caso assim é o do chiste Os problemas da técnica psicanalítica fizeram com que eu também me ocupasse da técnica de formação dos chistes Vou lhes dar apenas um exemplo desse tipo aliás uma anedota em língua inglesa A piada diz o seguinte Dois negociantes pouco escrupulosos haviam con seguido mediante uma série de empreendimentos ousados acumular uma grande fortuna e então se esforçavam por serem acolhidos na boa sociedade Entre out ras coisas pareceulhes conveniente se fazerem retratar pelo mais caro e emin ente pintor da cidade cujos quadros eram considerados verdadeiros aconteci mentos Numa grande soirée foram apresentadas as caríssimas pinturas e os dois 188316 anfitriões conduziram pessoalmente o mais prestigioso crítico e conhecedor de arte até o local do salão onde se achavam pendurados os dois retratos a fim de escutar sua opinião maravilhada Ele contemplou longamente os quadros bal ançou a cabeça como se notasse a ausência de algo e perguntou apontando para o espaço vazio entre os dois quadros And where is the Saviour E onde está o Salvador Vejo que todos riem dessa boa piada vamos buscar compreendêla juntos Entendemos o que o conhecedor de arte quer dizer Vocês são dois vel hacos exatamente como aqueles entre os quais o Salvador foi crucificado Mas ele não diz assim em vez disso expressa algo que à primeira vista parece inad equado e fora de contexto mas que no momento seguinte percebemos como alusão ao insulto que tinha em mente e como substituto perfeito para este Não podemos esperar que na anedota se achem todas as condições que supomos haver na origem do pensamento que ocorre a nosso paciente mas enfatizamos a iden tidade da motivação para a anedota e o pensamento Por que o crítico não fala diretamente aos dois velhacos o que gostaria de lhes dizer Porque bons motivos contrários estão presentes nele além de sua vontade de lhes dizer isso na cara Não deixa de ser arriscado ofender pessoas que nos recebem e que dispõem dos vigorosos punhos de uma extensa criadagem Podese ter o mesmo destino que na conferência anterior apresentei numa analogia para a repressão Por essa razão o crítico não expressa diretamente o insulto imaginado e sim de forma dis torcida como uma alusão com omissão e à mesma constelação se deve a nosso ver que o paciente produza em vez da ideia esquecida que buscamos um pensamento substitutivo mais ou menos distorcido Senhoras e senhores é pertinente acompanhando a escola de Zurique Bleuler Jung e outros denominar complexo um grupo de elementos ideat ivos relacionados e investidos de afeto Vemos assim que se partimos do que um paciente ainda se recorda para chegarmos a um complexo reprimido temos toda 189316 probabilidade de descobrilo se o paciente nos oferecer um número suficiente de seus pensamentos espontâneos Assim deixamos o doente falar o que quiser atendonos ao pressuposto de que só poderá lhe ocorrer o que indiretamente se relacionar ao complexo buscado Se este caminho para chegar ao reprimido lhes parecer muito trabalhoso posso lhes garantir contudo que é o único praticável No emprego dessa técnica somos estorvados pelo fato de que muitas vezes o doente para põese a hesitar afirma que não tem o que dizer que nada lhe ocorre absolutamente Se assim fosse e ele tivesse razão nosso procedimento se revelaria deficiente No entanto uma observação mais atenta mostra que os pensamentos espontâneos nunca deixam de surgir Isso parece ocorrer porque o doente retém ou afasta de si a ideia percebida sob o influxo das resistências que se travestem de variados juízos críticos sobre o valor daquele pensamento O modo de se resguardar disso é predizer essa conduta e solicitar ao paciente que não se preocupe com essa crítica Ele deve renunciando completamente a uma seleção crítica falar tudo o que lhe vier à mente mesmo que o considere errado despropositado sem sentido e sobretudo quando lhe for desagradável ocuparse daquele pensamento Seguindo esse preceito garantimos o material que nos põe na trilha dos complexos reprimidos Esse material dos pensamentos espontâneos que o doente rejeita com des dém quando é influenciado pela resistência e não pelo médico representa para o psicanalista o minério do qual com o auxílio de algumas simples artes de inter pretação ele extrai o conteúdo de metal valioso Querendo obter um conheci mento rápido e provisório dos complexos reprimidos de um paciente sem exam inar ainda sua organização e interrelação os senhores podem recorrer à exper iência da associação tal como foi desenvolvida por C G Jung e seus discípulos11 Esse procedimento alcança para o psicanalista o mesmo que a análise qualitativa para o químico é dispensável na terapia de doentes neuróticos mas indispensável 190316 para a demonstração objetiva dos complexos e na investigação das psicoses que foi empreendida com muito êxito pela escola de Zurique Ocuparse dos pensamentos que ocorrem ao paciente quando ele se submete à principal regra psicanalítica não é o nosso único recurso técnico para a explor ação do inconsciente Há dois outros procedimentos que servem para a mesma fi nalidade a interpretação de seus sonhos e o aproveitamento de seus atos falhos e casuais Devo confessarlhes prezados ouvintes que muito refleti se não seria mel hor em vez desta sucinta visão de todo o campo da psicanálise oferecerlhes uma exposição detalhada da interpretação de sonhos12 Uma razão puramente subjetiva e aparentemente secundária me impediu de fazêlo Pareceume quase indecente apresentarme como intérprete de sonhos neste país tão voltado para fins práticos antes que os senhores soubessem da importância que pode reivindicar essa arte velha e ridicularizada A interpretação dos sonhos é na realidade a via régia para o conhecimento do inconsciente o mais seguro alicerce da psicanálise e o campo em que qualquer estudioso pode adquirir sua convicção e buscar seu treinamento Quando me perguntam como alguém pode se tornar psicanalista eu respondo Pelo estudo de seus próprios sonhos Com perfeito discernimento todos os oponentes da psicanálise evitaram até hoje apreciar a Interpretação dos sonhos ou buscaram superála com as mais rasas objeções Se ao contrário deles os senhores forem capazes de admitir as soluções para os problemas da vida onírica então as novidades que a psicanálise propõe ao seu pensamento já não oferecerão dificuldades Não devem esquecer que as nossas produções oníricas noturnas exibem por um lado enorme semelhança exterior e parentesco interior com as criações da doença psíquica e por outro lado são também compatíveis com a plena saúde da vida de vigília Não é paradoxal afirmar que quem vê as ilusões sensoriais ideias 191316 delirantes e mudanças de caráter normais com espanto em vez de com preensão não tem perspectiva de entender as formações anormais dos estados anímicos patológicos senão como um leigo Os senhores podem tranquilamente incluir entre esses leigos quase todos os psiquiatras de hoje Queiram agora acompanharme numa breve excursão pela área dos problemas do sonho Quando acordados costumamos tratar os sonhos com o mesmo desdém que o paciente mostra pelos pensamentos espontâneos que o psicanalista lhe solicita Também os rejeitamos ao esquecêlos de maneira rápida e completa Nosso menosprezo se funda no caráter estranho até mesmo dos sonhos que não são con fusos e disparatados e na evidente absurdidade e falta de sentido de outros son hos e nossa rejeição se baseia nas tendências imorais e despudoradas que muitas vezes se manifestam nos sonhos Sabemos que na Antiguidade os sonhos não eram menosprezados Tampouco as camadas baixas de nosso povo têm dúvidas quanto a seu valor tal como os antigos esperam obter dos sonhos revelações sobre o futuro Devo dizer que não sinto necessidade de suposições místicas para preencher as lacunas de nosso conhecimento atual e portanto jamais encontrei algo que confirmasse a natureza profética dos sonhos Há muitas outras coisas já sufi cientemente espantosas que podem ser ditas sobre os sonhos Primeiramente nem todos os sonhos são ininteligíveis confusos e estranhos para o sonhador Se os senhores examinarem os sonhos de crianças pequenas de um ano e meio em diante eles lhes parecerão absolutamente simples e de fácil ex plicação A criança pequena sempre sonha com a realização de desejos que no dia anterior lhe foram despertados mas não satisfeitos Os senhores não precisarão de nenhuma arte interpretativa para encontrar esta singela solução apenas de in formações sobre as vivências da criança no dia anterior dia do sonho A solução mais satisfatória do enigma do sonho seria sem dúvida que os sonhos dos 192316 adultos não fossem diferentes daqueles das crianças realizações de desejos que lhes vieram no dia do sonho E assim é na realidade os obstáculos que se acham no caminho desta solução podem ser gradualmente eliminados mediante uma an álise detida dos sonhos A primeira e mais séria objeção é de que os sonhos dos adultos têm geral mente um conteúdo incompreensível em que não se percebe nenhuma realização de desejo A resposta é que esses sonhos experimentaram uma deformação o processof psíquico que subjaz a eles deveria ter originalmente outra expressão verbal Os senhores devem distinguir entre o conteúdo manifesto do sonho de que se lembram vagamente de manhã e põem em palavras de maneira trabalhosa e aparentemente arbitrária e os pensamentos latentes do sonho cuja presença no in consciente precisamos supor Essa deformação onírica é o mesmo processo de que tomaram conhecimento ao investigar a formação dos sintomas histéricos ela indica que o mesmo jogo de forças psíquicas opostas participa da formação dos sonhos e da formação dos sintomas O conteúdo manifesto do sonho é o sucedâneo deformado dos pensamentos oníricos inconscientes e tal deformação é obra de forças defensivas do Eu de resistências que impedem os desejos reprim idos do inconsciente de terem acesso à consciência na vida diurna mas embora reduzidas durante o sono ainda são fortes o bastante para obrigálos a se dis farçar De modo que o sonhador não entende o sentido de seus sonhos como o histérico não percebe as relações e o significado de seus sintomas Os senhores poderão convencerse de que existem pensamentos oníricos e de que entre eles e o conteúdo manifesto do sonho há realmente o nexo que acabo de expor se fizerem a análise dos sonhos cuja técnica é idêntica à psicanalítica Não considerem a aparente relação entre os elementos do sonho manifesto e procurem reunir os pensamentos que por livre associação aparecem para cada elemento do sonho conforme a regra de trabalho psicanalítica A partir desse material os 193316 senhores chegarão aos pensamentos oníricos latentes exatamente como chegaram aos complexos ocultos do paciente a partir do que lhe ocorria em re lação com os seus sintomas e lembranças Nos pensamentos oníricos latentes as sim encontrados verão imediatamente como é justificado referir os sonhos dos adultos aos sonhos infantis O que então substituise ao conteúdo manifesto do sonho como verdadeiro sentido deste é sempre claro e compreensível ligase às impressões do dia anterior e mostra ser uma realização de desejos não satisfeitos Assim o sonho manifesto que os senhores conhecem da lembrança ao acordar pode ser caracterizado apenas como realização disfarçada de desejos reprimidos Agora os senhores também podem mediante uma espécie de trabalho de síntese conhecer o processo que levou à deformação e transformação dos pensamentos oníricos inconscientes em conteúdo manifesto do sonho Denomin amos esse processo trabalho do sonho Ele merece nosso pleno interesse teórico pois sobretudo nele podemos estudar os insuspeitados processos psíqui cos que são possíveis no inconsciente ou melhor entre dois sistemas psíquicos diferenciados como o consciente e o inconsciente Entre esses processos psíquicos descobertos sobressaem o da condensação e o do deslocamento O trabalho do sonho é um caso especial dos efeitos recíprocos de diferentes grupamentos psíquicos ou seja das consequências da cisão psíquica e parece ser idêntico no essencial ao trabalho de deformação que transforma os complexos reprimidos em sintomas na repressão malograda Além disso os senhores se admirarão ao descobrir na análise dos sonhos e da maneira mais convincente dos seus próprios o papel enorme insuspeitado que as impressões e vivências dos primeiros anos da infância têm no desenvolvi mento do indivíduo Na vida onírica a criança como que continua a existir na pessoa mantendo todos os desejos e características inclusive os que se tornaram imprestáveis na vida adulta De forma imperiosa se apresentarão aos senhores os 194316 desenvolvimentos repressões sublimações e formações reativas mediante os quais resulta de uma criança de tão diferentes propensões o assim chamado indi víduo normal que é portador e em parte vítima da civilização penosamente alcançada Também desejo lhes assinalar que pela análise dos sonhos pudemos notar que o inconsciente se utiliza especialmente para a representação de complexos sexuais de um simbolismo determinado que em parte varia individualmente mas também é fixado em formas típicas e que parece coincidir com o simbolismo que conjeturamos haver em nossos mitos e fábulas É possível que tais criações dos povos venham a ser esclarecidas através dos sonhos Por fim devo lhes admoestar que não se deixem levar pela objeção de que o aparecimento de sonhos angustiados contradiz nossa concepção do sonho como realização de desejos Sem considerar que também esses sonhos angustiados ne cessitam de interpretação antes de serem julgados devemos dizer em termos bastante gerais que a angústia não se liga tão simplesmente ao conteúdo do sonho como se pode imaginar sem maior conhecimento das condições que de terminam a angústia neurótica A angústia é uma das reações negativas do Eu em relação a desejos reprimidos que se tornaram fortes e por isso também é ex plicada facilmente no sonho quando a formação do sonho se pôs demasiada mente a serviço da realização desses desejos reprimidos Como veem a indagação sobre o sonho já se justificaria pelos esclarecimen tos que traz sobre coisas que de outro modo dificilmente saberíamos Mas chegamos a ela com o tratamento psicanalítico dos neuróticos Após o que foi dito os senhores compreendem como a interpretação dos sonhos se não é muito dificultada pelas resistências do paciente leva ao conhecimento de seus desejos ocultos e reprimidos e dos complexos por esses alimentados e posso agora 195316 abordar o terceiro grupo de fenômenos psíquicos cujo estudo também se tornou recurso técnico da psicanálise Tratase dos pequenos atos falhos de indivíduos tanto normais como neuróti cos aos quais não se costuma dar importância o esquecimento de coisas que po dem saber e às vezes sabem realmente por exemplo a momentânea dificuldade em recordar um nome os lapsos verbais em que todos incorremos os lapsos an álogos quando se lê ou se escreve as atrapalhações ao realizar tarefas simples o ato de perder ou quebrar objetos etc coisas para as quais normalmente não se busca uma determinação psicológica e que se deixa passar sem questionamento como eventos casuais consequências de distração desatenção e circunstâncias similares Há também os atos e gestos que as pessoas executam sem perceber e tampouco sem lhes atribuir valor psíquico como brincar ou mexer com objetos trautear melodias tocar em partes do corpo ou da própria roupa etc13 Essas pequenas coisas os atos falhos e ações sintomáticas e casuais não são desprovidas de significado como as pessoas em geral numa espécie de acordo tácito se dispõem a crer São perfeitamente significativas podem ser interpretadas com facilidade e segurança a partir da situação em que ocorrem e verificase que também expressam impulsosg e intenções que devem ser postos para trás escon didos da própria consciência ou que procedem dos mesmos complexos e desejos reprimidos que já conhecemos como criadores dos sintomas e formadores dos sonhos Merecem ser vistas como sintomas portanto e o seu exame assim como o dos sonhos pode conduzir ao desvelamento do que se acha oculto na psique Por meio delas o indivíduo geralmente revela seus mais íntimos segredos Quando acontecem de modo bastante fácil e frequente mesmo na pessoa sã que costuma ter êxito na repressão de seus impulsos inconscientes devem isso ao seu caráter trivial e discreto Mas podem reivindicar um alto valor teórico pois nos 196316 demonstram a existência da repressão e da formação substitutiva mesmo em con dições de saúde Os senhores já percebem que o psicanalista se distingue pela rigorosa crença no determinismo da vida psíquica Para ele não existe nada pequeno nada arbit rário ou casual nas manifestações da psique Ele sempre espera encontrar uma motivação suficiente ali onde habitualmente não há essa expectativa mais ainda dispõese a achar uma motivação múltipla para um só efeito psíquico enquanto nossa exigência de causalidade que se supõe inata declarase satisfeita com uma única causa psíquica Se agora os senhores reunirem todos os meios que possuímos para o desvela mento do que se acha oculto esquecido reprimido na psique o estudo dos pensamentos do paciente evocados na associação livre dos seus sonhos e dos seus atos falhos e sintomáticos se juntarem a isso a utilização de outros fenômenos que ocorrem durante o tratamento psicanalítico sobre os quais farei depois algu mas observações ao abordar a transferência chegarão comigo à conclusão de que nossa técnica já tem eficácia bastante para realizar sua tarefa para levar à consciência o material psíquico patogênico e assim eliminar o sofrimento oca sionado pela formação de sintomas substitutivos O fato de em nosso esforço terapêutico enriquecermos e aprofundarmos o conhecimento da vida psíquica das pessoas doentes e das normais deve apenas ser considerado um atrativo e uma vantagem particulares desse trabalho Não sei se tiveram a impressão de que a técnica cujo arsenal acabo de lhes mostrar é particularmente difícil Penso que é inteiramente adequada ao material com que tem de lidar Certamente não é óbvia tem de ser aprendida tal como a técnica histológica ou cirúrgica Talvez fiquem admirados ao saber que na Europa ouvimos muitos julgamentos sobre a psicanálise feitos por pessoas que nada sabem dessa técnica e não a aplicam e depois requerem como que 197316 zombando que lhes demonstremos a correção de nossos resultados Também há entre esses opositores sem dúvida pessoas para as quais o modo de pensamento científico não é desconhecido normalmente que não rejeitariam o resultado de um exame microscópico porque não se pode confirmálo no preparado anatômico a olho nu nem antes de formar elas próprias um juízo sobre a questão com o auxílio do microscópio No tocante à psicanálise porém as condições são realmente mais desfavoráveis ao reconhecimento A psicanálise busca levar o que se acha reprimido na psique ao reconhecimento consciente e todo aquele que a julga é ele próprio um ser humano que tem essas repressões mantidas talvez a duras penas Portanto ela deve provocar nele a mesma resistência que desperta nos doentes e para esta é fácil mascararse de rejeição intelectual e aduzir argu mentos semelhantes àqueles que rebatemos em nossos pacientes com a regra psic analítica fundamental Assim como em nossos pacientes também em nossos ad versários podemos constatar com frequência uma clara influência afetiva sobre a capacidade de julgamento no sentido de que é debilitada A presunção da con sciência que tanto menospreza o sonho por exemplo é um dos mais fortes dis positivos protetores de que todos somos dotados para impedir a irrupção dos complexos inconscientes e por isso é tão difícil convencer as pessoas da realidade do inconsciente e lhes dar a conhecer algo novo que contradiz seu saber consciente 198316 IV Senhoras e senhores Agora desejarão saber o que com o auxílio dos meios técni cos que descrevemos conseguimos apurar sobre os complexos patogênicos e desejos reprimidos dos neuróticos Tratase de uma coisa sobretudo com surpreendente regularidade a pesquisa psicanalítica descobre que os sintomas patológicos dos doentes são lig ados a impressões de sua vida amorosa mostra que os desejos patogênicos são da natureza de componentes instintuais eróticos e nos obriga a supor que devemos atribuir a máxima importância aos distúrbios eróticos entre as influências que conduzem à doença e que isso ocorre em ambos os sexos Bem sei que as pessoas não creem de bom grado nesta minha afirmação Até mesmo os pesquisadores que se dispõem a acompanhar meus trabalhos psicológi cos tendem a achar que superestimo a contribuição dos fatores sexuais e me per guntam por que outras excitações psíquicas também não dariam ensejo aos fenô menos de repressão e de formação substitutiva que caracterizei Posso apenas re sponder Não sei por que não poderiam fazêlo e tampouco tenho algo contra isso mas a experiência mostra que não têm essa importância que dão respaldo à ação dos fatores sexuais quando muito mas jamais os substituem Isso não foi postulado teoricamente por mim ainda nos Estudos sobre a histeria que publiquei juntamente com o dr Josef Breuer em 1895 eu não adotava esse ponto de vista tive de abraçálo quando minhas experiências se multiplicaram e penetrei mais profundamente na questão Caros senhores encontramse aqui alguns de meus 199316 amigos e seguidores mais próximos que me acompanharam nesta viagem a Worcester Perguntemlhes acerca disso e ouvirão que todos eles inicialmente descriam por completo da afirmação sobre a importância decisiva da etiologia sexual até que o seu próprio labor analítico os obrigou a subscrevêla Convencerse da justeza da tese em questão não é exatamente facilitado pelo comportamento dos pacientes Em vez de solicitamente nos darem informações a respeito de sua vida sexual eles buscam ocultálas de toda maneira As pessoas não são francas em matéria sexual Não mostram livremente sua sexualidade usam isto sim um espesso manto de mentiras para escondêla como se fizesse mau tempo no mundo da sexualidade E não deixam de estar certas o sol e o ar não são realmente propícios à atividade sexual em nosso mundo civilizado nen hum de nós pode livremente revelar aos outros o seu erotismo Mas quando seus pacientes notarem que podem sentirse à vontade sob o seu tratamento irão se desfazer desse envoltório de mentiras e só então os senhores estarão capacitados a formar um juízo sobre esse tema controverso Infelizmente tampouco os médi cos têm privilégio sobre os demais seres humanos em sua relação pessoal com as questões da vida sexual e muitos deles se acham dominados pela mescla de con cupiscência e hipocrisia que governa a conduta da maioria dos homens civiliza dos em matéria de sexualidade Vamos prosseguir com a exposição de nossos resultados Em outro conjunto de casos é certo que a investigação psicanalítica não refere os sintomas a vivên cias sexuais e sim a triviais vivências traumáticas Mas outra circunstância torna irrelevante essa distinção O trabalho de análise requerido para o completo es clarecimento e a cura definitiva de um caso não se detém jamais nas vivências da época em que o paciente adoeceu mas retrocede sempre até a puberdade e a primeira infância para somente ali deparar com as impressões e ocorrências de terminantes para o adoecimento posterior Apenas as vivências da infância 200316 explicam a suscetibilidade a traumas posteriores e apenas desvelando e tornando conscientes esses traços mnemônicos quase invariavelmente esquecidos é que ad quirimos o poder para eliminar os sintomas Chegamos aqui ao mesmo resultado que na investigação dos sonhos isto é que são os desejos imorredouros e reprim idos da infância que emprestam à formação dos sintomas a sua força sem a qual a reação aos traumas posteriores tomaria um curso normal Mas podemos de maneira bastante geral designar como sexuais esses poderosos desejos infantis Agora estou realmente seguro de que se espantaram Então existe uma sexu alidade infantil perguntarão A infância não é o período da vida caracterizado pela ausência do instinto sexual Não meus senhores certamente não ocorre que o instinto sexual penetre nas crianças no momento da puberdade tal como o demônio entra nos porcos numa passagem do Evangelho A criança tem seus in stintos e atividades sexuais desde o início vem com eles ao mundo e deles pro cede mediante um desenvolvimento significativo e pleno de etapas aquilo que se chama a sexualidade normal do adulto E essas manifestações de atividade sexual infantil não são nada difíceis de observar pelo contrário é preciso alguma arte para ignorálas ou interpretálas de outra maneira Por um obséquio do destino achome em condições de invocar o testemunho de um dos seus próprios colegas em favor de minha tese Eis aqui um trabalho do dr Sanford Bell publicado no American Journal of Psychology em 1902 O autor pertence ao quadro da Clark University em cuja sede nos encontramos agora Nesse trabalho intitulado A preliminary study of the emotion of love between the sexes Um estudo preliminar da emoção do amor entre os sexos e que sur giu três anos antes de meus Três ensaios de uma teoria da sexualidade 1905 ele afirma exatamente o que acabo de lhes dizer The emotion of sexlove does not make itsappearance for the first time at the period of adolescence as has been thought A emoção do amor sexual não aparece pela primeira vez no período da 201316 adolescência como se tem pensado Ele trabalhou ao modo americano como diríamos na Europa reuniu nada menos que 2500 observações no decorrer de quinze anos entre elas oitocentas que ele próprio realizou The unprejudiced mind in observing these manifestations in hundreds of couples of children cannot es cape referring them to sex origin The most exacting mind is satisfied when to these observations are added the confessions of those who have as children experienced the emotion to a marked degree of intensity and whose memories of childhood are relat ively distinct A mente despreconcebida ao observar essas manifestações em centenas de casais de crianças não pode deixar de referilas a uma origem sexual O mais exigente espírito fica satisfeito quando a essas observações se juntam as confissões daqueles que sendo crianças experimentaram a emoção num alto grau de intensidade e cujas memórias da infância são relativamente nítidas O que mais surpreenderá aqueles entre os senhores que desejariam não crer na sexualidade infantil porém será ouvir que entre essas crianças precocemente en amoradas se encontram várias com a tenra idade de três quatro e cinco anos Não me admiraria se os senhores acreditassem antes nessas observações de seu colega e patrício do que nas minhas Recentemente me foi dado obter a partir da análise de um garoto de cinco anos que sofria de angústia empreendida por seu próprio pai seguindo a técnica correta 14 um quadro razoavelmente com pleto das manifestações instintuais somáticas e das produções psíquicas num dos primeiros estágios da vida amorosa infantil E devo lembrarlhes que há poucas horas nesta mesma sala meu amigo C G Jung apresentou sua observação de uma garota ainda mais jovem que motivada pelo mesmo ensejo de meu paciente o nascimento de um irmãozinho evidenciou quase os mesmos impulsos sensuais desejos e complexos Não perco a esperança portanto de que os sen hores ainda se conciliarão com a ideia inicialmente estranha de uma sexualidade infantil e gostaria também de lhes mencionar o honroso exemplo do psiquiatra 202316 E Bleuler de Zurique que ainda há poucos anos declarou publicamente não en tender minhas teorias sexuais mas desde então confirmou a sexualidade infantil em sua plena extensão através de observações próprias15 É bastante fácil explicar por que a maioria das pessoas sejam observadores clínicos ou não prefere nada saber sobre a vida sexual das crianças Elas esque ceram sua própria atividade sexual infantil sob a pressão da educação para a vida em sociedade e não desejam ser lembradas do que foi reprimido Chegariam a outras convicções se iniciassem o exame com uma autoanálise uma revisão e in terpretação de suas lembranças infantis Deixem de lado as dúvidas e acompanhemme numa apreciação da sexualid ade infantil desde os primeiros anos16 O instinto sexual da criança se revela bastante complexo pode ser decomposto em muitos elementos que procedem de fontes diversas E sobretudo é ainda independente da função da procriação a cujo serviço se porá mais tarde Ele se presta para a obtenção de diferentes sensações de prazer que com base em analogias e conexões reunimos sob a de nominação de prazer sexual A principal fonte do prazer sexual infantil é a excit ação apropriada de certos locais do corpo especialmente suscetíveis de estímulo que são além dos genitais os orifícios da boca ânus e uretra mas também a pele e outras superfícies sensoriais Como nessa primeira fase da vida sexual infantil a satisfação é encontrada no próprio corpo prescindese de um objeto exterior nós a denominamos fase do autoerotismo recorrendo a um termo cunhado por Havelock Ellis Aqueles locais importantes para a obtenção de prazer sexual nós chamamos de zonas erógenas O ato de chupar o dedo ou de mamar dos be bês é um bom exemplo desta satisfação autoerótica a partir de uma zona erógena O primeiro estudioso desse fenômeno um pediatra de nome Lindner de Bud apeste já o interpretava corretamente como satisfação sexual e descreveu ex austivamente sua transição para outras formas mais elevadas de atividade 203316 sexual17 Outra satisfação sexual desse período da vida é a excitação masturb atória dos genitais que conserva enorme importância na vida posterior e que al guns indivíduos jamais abandonam completamente Além dessas e de outras atividades autoeróticas manifestamse bem cedo na criança aqueles componentes instintuais do prazer sexual ou como apreciamos dizer da libido que pres supõem outra pessoa como objeto Esses instintos aparecem em pares de opostos como ativos e passivos Devo mencionar como os mais significativos represent antes desse grupo o prazer em causar dor sadismo com sua contraparte passiva masoquismo e o prazer em olhar ou em ser olhado sendo que do primeiro de riva posteriormente a ânsia de saber e desse último o impulso para a exibição artística e teatral Outras atividades sexuais da criança já entram no âmbito da escolha de objeto em que o principal elemento é outra pessoa que deve sua im portância originalmente a considerações oriundas do instinto de autoconser vação Mas a diferença sexual ainda não tem papel decisivo nesse período da in fância assim podemos atribuir a toda criança sem lhe fazer injustiça um quê de inclinação homossexual Essa dispersa vida sexual da criança abundante mas dissociada em que um instinto busca o prazer independentemente dos outros é então concentrada e or ganizada em duas direções principais de modo que no fim da puberdade o caráter sexual definitivo da pessoa geralmente já se encontra formado De um lado os diversos instintos ficam subordinados ao predomínio da zona genital pelo que toda a vida sexual se põe a serviço da procriação e a satisfação deles mantém a importância apenas para preparar e favorecer o ato sexual propria mente dito De outro lado a escolha de objeto relega para trás o autoerotismo de maneira que na vida amorosa os componentes todos do instinto sexual passam a procurar satisfação na pessoa amada Mas nem todos os componentes instintuais originais são admitidos nesse estabelecimento definitivo da vida sexual Ainda 204316 antes da puberdade repressões extremamente enérgicas de determinados instin tos se realizam sob influência da educação e produzemse forças psíquicas como o pudor o nojo a moral que zelam como vigias por essas repressões Quando na época da puberdade sobrevém a inundação da necessidade sexual ela encon tra nas mencionadas formações psíquicas reativas ou de resistência diques que lhe impõem o fluxo pelas assim chamadas vias normais e lhe tornam impossível reavivar os instintos submetidos à repressão Em particular são os impulsos coprófilos da infância isto é aqueles relacionados aos excrementos os mais pro fundamente atingidos pela repressão e também a fixação nas pessoas da primitiva escolha de objeto Meus senhores uma tese da patologia geral nos diz que todo processo de desenvolvimento traz consigo os germens da predisposição patológica já que ele pode ser inibido adiado ou suceder de forma incompleta O mesmo vale para o complicado desenvolvimento da função sexual Ele não se dá sem problemas em todo indivíduo pode deixar anormalidades ou predisposições para um adoeci mento posterior pelo caminho da involução regressão Pode acontecer que nem todos os instintos parciais se submetam ao domínio da zona genital um instinto que tenha assim continuado independente produz o que denominamos perversão que pode substituir a meta sexual normal por uma própria Como já mencionei muitas vezes ocorre que o autoerotismo não é inteiramente superado algo que as mais diversas perturbações depois evidenciam Pode se manter a equivalência original dos dois sexos como objeto sexual e disso resultará uma inclinação para a atividade homossexual na vida adulta que em determinadas circunstâncias chega à homossexualidade exclusiva Esta série de distúrbios corresponde às inib ições diretas do desenvolvimento da função sexual compreende as perversões e o nada raro infantilismo geral da vida sexual 205316 A predisposição às neuroses relacionase de outra maneira ao desenvolvi mento sexual prejudicado As neuroses estão para as perversões como o negativo para o positivo nelas podem ser demonstrados os mesmos componentes instin tuais que nas perversões como portadores dos complexos e formadores de sinto mas mas atuando a partir do inconsciente Experimentaram uma repressão port anto mas puderam apesar dela firmarse no inconsciente A psicanálise nos permite ver que uma manifestação excessiva desses instintos em idade muito tenra leva a uma espécie de fixação parcial que representará um ponto fraco no conjunto da função sexual Se o exercício da função sexual normal encontra ob stáculos na vida adulta a repressão da época de desenvolvimento é rompida justamente nos locais em que houve as fixações infantis Agora os senhores talvez façam a objeção de que isso não é sexualidade Em prego a palavra num sentido bem mais amplo do que aquele a que estão acos tumados Isto lhes concedo de bom grado Mas cabe perguntar se os senhores não empregariam o termo em sentido muito restrito ao limitálo ao âmbito da procri ação Assim fazendo sacrificam o entendimento das perversões o nexo entre perversão neurose e vida normal e ficam incapacitados para perceber em sua verdadeira significação os primórdios facilmente observáveis da vida amorosa física e psíquica das crianças O que quer que decidam sobre o uso dessa palavra tenham presente que os psicanalistas tomam a sexualidade naquele sen tido pleno a que somos levados pela consideração da sexualidade infantil Retornemos mais uma vez ao desenvolvimento sexual da criança Nisso temos algumas coisas a acrescentar pois nossa atenção dirigiuse mais às mani festações somáticas da vida sexual do que às psíquicas A escolha de objeto prim itiva da criança que deriva de sua necessidade de amparo solicita agora o nosso interesse Ela se volta inicialmente para todas as pessoas que cuidam da criança mas logo essas dão lugar aos pais A observação direta da criança e a posterior 206316 investigação analítica do adulto concordam em que a relação da criança com os pais não se acha livre de elementos de excitação sexual Ela toma o pai e a mãe especialmente um deles como objeto de seus desejos eróticos Nisso responde habitualmente a um estímulo dos próprios pais cuja afeição tem nítidas caracter ísticas de uma atividade sexual ainda que inibida em suas metas O pai prefere normalmente a filha a mãe o filho A criança reage a isso desejando estar no lugar do pai se é um menino ou no lugar da mãe se é uma menina Os senti mentos despertados nessas relações entre pais e filhos e nas dos irmãos entre si que são apoiadas naquelas são de natureza não só positiva afetuosa mas também negativa hostil O complexo assim formado é logo reprimido mas continua a ter um efeito grande e persistente a partir do inconsciente É lícito formular a hipótese de que ele representa com suas ramificações o complexo nuclear de toda e qualquer neurose e não nos surpreenderá encontrálo igualmente atuante em outros âmbitos da vida psíquica O mito do rei Édipo que mata seu pai e toma por esposa a mãe constitui uma revelação ainda pouco modificada desse desejo infantil que depois é rechaçado pela barreira do incesto A peça Hamlet de Shakespeare tem raízes no mesmo terreno do complexo do incesto que ali é mais encoberto No tempo em que a criança é dominada pelo complexo nuclear ainda não rep rimido parte significativa de sua atividade intelectual é posta a serviço dos in teresses sexuais Ela começa a pesquisar de onde vêm os bebês e avaliando os in dícios que se lhe apresentam compreende mais das circunstâncias reais do que os adultos podem imaginar Geralmente seu interesse na pesquisa é despertado pela ameaça concreta de um novo irmão que chega no qual inicialmente vê tão só um concorrente Por influência dos instintos parciais nela própria atuantes chega a várias teorias sexuais infantis como a de que os dois sexos partilham o mesmo genital o masculino a de que os bebês são gerados através da 207316 alimentação e nascem pela extremidade intestinal e a que concebe a relação sexu al como um ato hostil uma espécie de subjugação Mas justamente o caráter in acabado de sua constituição sexual e a lacuna em seus conhecimentos devida à condição latente do canal sexual feminino obrigam o pequeno pesquisador a in terromper seu trabalho pela ausência de resultados O próprio fato dessa pesquisa infantil assim como as teorias sexuais que ela promove têm importância decisiva na formação do caráter da criança e no conteúdo de seu posterior adoeci mento neurótico É inevitável e inteiramente normal que a criança tome os pais como objetos de sua primeira escolha amorosa Mas sua libido não deve permanecer fixada nesses primeiros objetos deve apenas tomálos depois como modelos e passar deles para outras pessoas na época da escolha definitiva de objeto O desliga mento da criança em relação aos pais tornase então uma tarefa inelutável para que a aptidão social do jovem indivíduo não venha a ser comprometida No per íodo em que a repressão faz a seleção entre os instintos parciais da sexualidade e depois quando deve se afrouxar a influência dos pais que arca essencialmente com o dispêndio necessário para tais repressões o trabalho de educação depara com grandes tarefas que nos dias de hoje nem sempre são realizadas de modo compreensivo e inatacável Senhoras e senhores não devem pensar que com esta discussão sobre a vida sexual e o desenvolvimento psicossexual da criança nos afastamos muito da psic análise e da tarefa de eliminar os distúrbios nervosos Podem descrever o trata mento psicanalítico se quiserem como simplesmente uma continuada educação que visa superar os resíduos infantis 208316 V Senhoras e senhores Com a revelação da sexualidade infantil e a ligação dos sin tomas neuróticos aos componentes instintuais eróticos chegamos a algumas ines peradas formulações sobre a natureza e as tendências das enfermidades neurótic as Vemos que as pessoas adoecem quando devido a obstáculos externos ou falta de adaptação interna não acham satisfação para suas necessidades eróticas na realidade Vemos que então se refugiam na doença a fim de com o auxílio desta encontrar uma satisfação substitutiva para o que lhes é negado Percebemos que os sintomas patológicos constituem uma parte da atividade sexual do indivíduo ou até mesmo toda a sua vida sexual e enxergamos no distanciamento da realid ade a principal tendência mas também o principal dano causado pela doença Suspeitamos que a resistência de nossos doentes à recuperação não é simples mas composta de vários motivos Não apenas o Eu do paciente se recusa a abandonar as repressões mediante as quais se destacou de suas disposições originais como também os instintos sexuais não querem renunciar à sua satisfação substitutiva enquanto for incerto que a realidade lhes venha a oferecer algo melhor A fuga da realidade insatisfatória para aquilo que por sua nocividade bioló gica denominamos doença embora nunca se dê sem um imediato ganho de prazer para o doente efetuase pela via da involução regressão do retorno a fases anteriores da vida sexual em que a satisfação não esteve ausente Tal re gressão é dupla ao que parece uma temporal na medida em que a libido a ne cessidade erótica recorre a estágios de desenvolvimento anteriores e uma 209316 formal na medida em que são usados os meios originais e primitivos de expressão psíquica para manifestar essa necessidade Mas as duas espécies de regressão se orientam para a infância e coincidem na produção de um estado infantil da vida sexual Quanto mais os senhores penetrarem na patogênese da doença nervosa tanto mais se lhes revelará o nexo entre as neuroses e outros produtos da psique hu mana inclusive os mais valiosos entre eles Hão de notar que nós homens com as elevadas exigências de nossa cultura e sob o peso de nossas repressões internas vemos a realidade como totalmente insatisfatória e por isso entretemos uma vida de fantasias em que produzindo realizações de desejos adoramos compensar as deficiências da vida real Nessas fantasias há muito da natureza propriamente constitutiva da personalidade e também daqueles seus impulsos reprimidos em prol da realidade O indivíduo enérgico e bemsucedido é aquele que mediante o trabalho consegue transformar em realidade suas fantasias que encerram desejos Quando isso não é alcançado devido às resistências do mundo externo e à fraqueza da pessoa ocorre o afastamento da realidade o indivíduo se retira para um mundo de fantasias mais satisfatório cujo conteúdo transforma em sintomas no caso de enfermidade Em determinadas condições favoráveis ainda lhe resta a possibilidade de achar outro caminho para a realidade a partir dessas fantasias em vez de alhearse permanentemente dela pela regressão ao estado infantil Quando a pessoa desavinda com a realidade possui o dom artístico que para nós é ainda um enigma psicológico pode converter suas fantasias em obras de arte em vez de sintomas assim escapando ao destino da neurose e recon quistando por essa via indireta o vínculo com a realidade18 Se existir revolta contra o mundo real e esse valioso dom for ausente ou insuficiente será pratica mente inevitável que a libido obedecendo à origem das fantasias tome a via da repressão e chegue à revivescência dos desejos infantis e dessa maneira à 210316 neurose Em nosso tempo a neurose substitui o mosteiro para onde costumavam se retirar todos aqueles a quem a vida decepcionara ou que se sentiam demasiado fracos para ela Permitamme agora expor o principal resultado a que chegamos através da investigação psicanalítica das neuroses o de que elas não têm um conteúdo psíquico peculiar que não se ache igualmente no indivíduo são ou como formu lou C G Jung que os neuróticos adoecem dos mesmos complexos com que tam bém nós os sadios lutamos Se essa luta leva à saúde à neurose ou a realizações compensativas é algo que depende de considerações de quantidade das pro porções entre as forças em choque Senhoras e senhores até o momento lhes soneguei a observação mais import ante que confirma nossa hipótese das forças instintuais sexuais da neurose Sempre que tratamos psicanaliticamente um neurótico surge nele o estranho fenômeno chamado transferência isto é ele dirige para o médico uma certa medida de impulsos afetuosos muitas vezes mesclados de hostilidade que não se baseia numa relação real e que como evidenciam todos os detalhes de seu surgi mento só pode remontar a velhas fantasias e desejos que se tornaram incon scientes Assim aquela parte da vida emocional do paciente que ele não pode mais evocar na lembrança é vivenciada novamente na sua relação com o médico e apenas com esse reviver na transferência ele é persuadido da existência e do poder de tais impulsos sexuais inconscientes Os sintomas que para recorrer a uma imagem da química são precipitados de anteriores vivências amorosas no mais amplo sentido podem ser dissolvidos e transformados em outros produtos psíquicos apenas na elevada temperatura da transferência O médico desempenha nessa reação o papel de para usar a ótima expressão de S Ferenczi19 fer mento catalítico que temporariamente atrai para si os afetos liberados no pro cesso O estudo da transferência também pode lhes dar a chave para compreender 211316 a sugestão hipnótica que utilizamos inicialmente como técnica para a pesquisa do inconsciente em nossos pacientes Naquele tempo ela se revelou um auxílio terapêutico mas também um obstáculo ao conhecimento científico dos fatos na medida em que tirava as resistências psíquicas de determinado âmbito e as jun tava nos limites dele formando um muro intransponível Mas não pensem que o fenômeno da transferência do qual pouco lhes posso falar aqui infelizmente é produto da influência psicanalítica A transferência ocorre espontaneamente em todas as relações humanas assim como entre o paciente e o médico é sempre o veículo da influência terapêutica e seu efeito é tanto maior quanto menos se suspeita de sua existência Portanto a psicanálise não a produz apenas a desvela para a consciência dela se apoderando a fim de guiar os processos psíquicos para a meta desejada Não posso abandonar o tema da transferência sem destacar que esse fenômeno tem papel decisivo para se obter não apenas a convicção do pa ciente mas também a do médico Sei que apenas por experiência própria com a transferência os meus seguidores se persuadiram da correção de minhas afirm ativas sobre a patogênese das neuroses e posso muito bem compreender que tal segurança de julgamento não seja conquistada enquanto o indivíduo não realizar psicanálises ele mesmo isto é não observar por si próprio os efeitos da transferência Senhoras e senhores acho que devemos considerar dois obstáculos especial mente por parte do intelecto para o reconhecimento do modo de pensar psic analítico primeiro a inexistência do hábito de contar com o estrito e absoluto de terminismo da vida psíquica segundo o desconhecimento das peculiaridades mediante as quais os processos psíquicos inconscientes se diferenciam daqueles conscientes que nos são familiares Uma das mais difundidas resistências ao tra balho psicanalítico tanto em pessoas doentes como em sadias está ligada a esse último fator Temese fazer mal com a psicanálise há o receio de chamar à 212316 consciência do doente os instintos sexuais reprimidos como se isso acarretasse o perigo de eles sobrepujarem as mais elevadas tendências éticas da pessoa despojandoa de suas conquistas culturaish Notase que o doente tem locais feridos em sua psique mas evitase tocar neles para que o seu sofrimento não aumente acreditase Podemos adotar essa analogia Sem dúvida é mais delicado não tocar nas feridas quando assim provocamos apenas dor Mas como se sabe o cirurgião não se abstém de examinar e mexer no foco da doença quando pre tende realizar uma intervenção que há de trazer a cura permanente Ninguém mais cogita incriminálo pelas inevitáveis dores do exame ou pelas reações pós operatórias quando a cirurgia tem êxito e o doente alcança uma definitiva mel hora de seu estado mediante o temporário agravamento dele Sucede de maneira semelhante com a psicanálise Ela pode reivindicar o mesmo que a cirurgia o ac réscimo nas dores que ela exige dos pacientes durante o tratamento é muito menor empregandose a boa técnica do que o causado pelo cirurgião e perfeita mente desprezível em relação à gravidade do sofrimento básico Mas o temido resultado final de uma destruição do caráter civilizado pelos instintos livrados da repressão é algo impossível pois esse medo não leva em consideração aquilo que a experiência nos ensinou de modo seguro que a força psíquica e somática de um impulso envolvendo um desejo uma vez falhada a sua repressão resulta incom paravelmente maior quando é inconsciente do que quando é consciente de maneira que só poderá ser debilitada ao se tornar consciente O desejo incon sciente não pode ser influenciado é independente em relação a todas as tendên cias contrárias enquanto aquele consciente é inibido por tudo que seja igual mente consciente e a ele se oponha Portanto o trabalho psicanalítico se põe a serviço das mais altas e valiosas tendências da civilização como um substituto melhor para a repressão malsucedida 213316 Que destino têm os desejos inconscientes liberados pela psicanálise por quais meios conseguimos tornálos inócuos para a vida do indivíduo Esses meios são vários O que sucede mais frequentemente é que tais desejos são anulados já dur ante o trabalho pela atividade psíquica correta dos impulsos melhores que lhes são contrários A repressão é substituída por uma condenação realizada com os melhores recursos Isso é possível porque em grande parte temos de eliminar apenas consequências de estágios mais antigos do desenvolvimento do Eu Naquele tempo o indivíduo efetuou apenas uma repressão do instinto inutil izável pois ele próprio ainda estava fraco e insuficientemente organizado em sua atual força e maturidade talvez possa dominar impecavelmente aquilo que lhe é hostil Um segundo desfecho do trabalho psicanalítico é aquele em que os instintos inconscientes revelados podem ser conduzidos àquela adequada aplicação que já deveriam ter encontrado mais cedo se o seu desenvolvimento não tivesse sido perturbado Pois a extirpação dos desejos infantis não é de maneira nenhuma a meta ideal do desenvolvimento O neurótico perde com suas repressões muitas fontes de energia psíquica que afluindo para a formação de seu caráter e sua atividade teriam sido de grande valor Conhecemos um processo de desenvolvi mento muito mais adequado chamado sublimação em que a energia dos impulsos infantis não é bloqueada mas continua aproveitável dandose aos impulsos uma meta mais elevada eventualmente não mais sexual no lugar daquela inutilizável Pois precisamente os componentes do instinto sexual se distinguem por essa ca pacidade especial de sublimação de substituição da sua meta sexual por uma mais distante e socialmente mais valiosa É provável que as maiores conquistas da civilização se devam aos aportes de energia para nossas realizações psíquicas que foram obtidos dessa forma Uma repressão ocorrida precocemente exclui a 214316 sublimação do instinto reprimido suspensa a repressão está novamente livre o caminho da sublimação Não podemos deixar de considerar o terceiro desfecho possível do trabalho psicanalítico Certa parte dos impulsos libidinais reprimidos tem direito a uma satisfação direta e deve alcançála em vida As exigências de nossa cultura tornam a existência difícil para a maioria das criaturas humanas e assim favorecem o dis tanciamento da realidade e o surgimento das neuroses sem obter um acréscimo do ganho cultural com esse aumento da repressão sexual Não devemos nos en soberbecer a ponto de negligenciar o que há de originalmente animal em nossa natureza e também é preciso não esquecer que a realização da felicidade indi vidual não pode ser riscada do conjunto de metas da nossa cultura A plasticidade dos componentes sexuais que se manifesta em sua capacidade de sublimação pode realmente gerar a tentação de obter conquistas culturais cada vez maiores mediante a sublimação cada vez mais ampla de tais componentes Mas assim como em nossas máquinas esperamos transformar em trabalho mecânico útil apenas determinada fração do calor despendido tampouco devemos procurar desviar de seus fins próprios todo o montante de energia do instinto sexual Não é possível fazêlo e se a restrição da sexualidade for levada longe demais inev itavelmente trará consigo todos os males de uma exploração abusiva Pode ser que os senhores vejam como uma presunção esta minha advertência final Sejame concedido apenas expor de forma indireta a minha convicção narrandolhes uma velha anedota cuja moral poderão julgar A literatura alemã fala de uma cidadezinha chamada Schilda a cujos habitantes são atribuídas esper tezas de todo gênero Contase que os cidadãos de Schilda possuíam entre outras coisas um cavalo que lhes dava muita satisfação com seu vigoroso trabalho Uma só coisa lhe reprochavam ele consumia bastante aveia que estava longe de ser barata Decidiram fazêlo cuidadosamente abandonar esse péssimo hábito 215316 diminuindo em alguns grãos a sua ração diária até que ele se acostumasse à privação total Por algum tempo a coisa funcionou otimamente a alimentação do cavalo chegou a uns poucos grãos em determinado dia e no dia seguinte ele fi nalmente iria trabalhar sem aveia nenhuma Na manhã desse dia porém o traiçoeiro animal foi encontrado sem vida e os cidadãos de Schilda não sabiam explicar de que havia morrido Nós nos inclinamos a crer que o cavalo morreu de fome e que sem alguma ração de aveia não se pode esperar que animal nenhum trabalhe Quero lhes agradecer pelo convite e pela atenção com que me honraram 1 Nota acrescentada em 1923 Vejase porém o que escrevo a respeito disso em Contribuição à história do movimento psicanalítico 1914 onde me declaro inteiramente responsável pela psicanálise 2 Dr Josef Breuer nascido em 1842 e falecido em 1925 membro correspondente da Academia Imperial de Ciências conhecido por trabalhos sobre a respiração e a fisiologia do equilíbrio 3 Estudos sobre a histeria Viena 1895 4a impressão 1922 Trechos de minha participação neste volume foram traduzidos para o inglês pelo dr A A Brill de Nova York Selected papers on hys teria and other psychoneuroses no 4 da Nervous and Mental Disease Monograph Series Nova York 3a ed ampliada 1920 216316 4 Sei que agora essa afirmação já não procede mas na conferência eu me transponho a mim e aos ouvintes para a época anterior a Se desde 1880 então as coisas mudaram em boa parte isto se deve aos esforços que estou relatando sucintamente 5 Estudos sobre a histeria 4a ed p 26 Gesammelte Werke Nachtragsband pp 23233 6 Op cit 4a ed p 31GW N p 237 7 Op cit 4a ed p 30 GW N pp 23637 8 Cf op cit 4a ed pp 43 e 46 Caso da sra Emmy von N 9 Uma seleção de passagens desse livro acrescida de alguns ensaios posteriores sobre a histeria tem atualmente tradução para o inglês feita pelo dr A A Brill de Nova York 10 Ou melhor tratase de uma cópia mais recente daquele monumento O nome Charing se gundo me informou o dr Ernest Jones parece vir das palavras chère reine cara rainha 11 C G Jung Diagnostische Assoziationstudien v i 1906 12 A interpretação dos sonhos 1900 13 Psicopatologia da vida cotidiana 1905 14 Análise da fobia de um garoto de cinco anos Jahrbuch für psychoanalytische und psychopatholo gische Forschungen v 1 1a metade 1909 15 Bleuler Sexuelle Abnormitäten der Kinder Anormalidades sexuais das crianças Jahrbuch der Schweizerischen Gesellschaft für Schulgesundheispflege ix 1908 16 Três ensaios de uma teoria da sexualidade Viena 1905 17 ahrbuch für Kinderheilkunde Anuário de Pediatria 1879 Lindner Das Saugen an den Fingern Lippen etc bei den Kindern Ludeln 18 Cf Otto Rank Der Künstler O artista Viena 1907 19 S Ferenczi Introjektion und Übertragung Jahrbuch für psychoanalytische und psychopatholo gische Forschungen v 1 1909 a Ausência diferentemente do que dá a entender a Standard inglesa não é empregado o termo francês nesse ponto e sim o termo alemão Abwesenheit Cabe registrar que este trabalho de Freud é apresentado na edição Standard brasileira como o único traduzido diretamente do alemão Uma tradução publicada originalmente em 1931 pelos drs Durval Marcondes e J Barbosa Cor rêa foi reaproveitada pelo diretor da coleção Jayme Salomão e por ele revisada O título dessa tradução Cinco lições de psicanálise tornouse conhecido tem boa sonoridade e é adotado na presente versão Mas diferentemente do que afirma Salomão que nisso apenas acompanhou o que a Editora Nacional de São Paulo afirmava na capa e no frontispício da edição de 1931 Durval Marcondes nada diz sobre o texto utilizado no prefácio que assina um simples 217316 cotejamento dessa tradução com o original alemão revela que o texto que lhe serviu de base não foi o alemão Ela foi feita a partir do francês e do espanhol provavelmente b Processos afetivos Affektvorgänge no original Aqui como em outros lugares devese ter presente que o termo alemão Vorgang admite os sentidos de evento fato além de processo c Desejo Wunschregung literalmente desejoimpulso na mesma frase desejos é tradução de Wünsche o plural de Wunsch o que evidencia que os dois termos são equivalentes e podem ser traduzidos por um só como foi argumentado no apêndice B de As palavras de Freud o vocabulário freudiano e suas versões de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras nova ed revista 2010 pp 28589 Nas versões consultadas encontramos para Wunschregung desejo optación moción de deseo impulso di desiderio wishful impulse Na Standard brasileira que como dissemos acima aproveitou a primeira das versões aqui citadas feita em 1931 o diretor da edição que revisou essa versão substituiu desejo por impulso desejoso que lhe pareceu a tradução adequada para wishful impulse algo como impulso pleno de desejo d No original verdrängt particípio do verbo verdrängen que significa literalmente empurrar de salojar cf capítulo sobre as possíveis versões do substantivo Verdrängung em As palavras de Freud op cit e No sentido de préconceito Vorurteil em alemão ver nota sobre o termo e sua tradução em Nietzsche Além do bem e do mal trad Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 1992 nota n 9 f Ou evento Vorgang g Impulsen no original cf nota na página 18 também existe o adjetivo impulsiv em alemão para caracterizar um ato ou uma pessoa tal como em português h Strachey chama a atenção para o fato de que as últimas palavras dessa frase despojandoa não se acham na edição dos Gesammelte Werke que reproduzem o texto dos Gesammelte Schriften Escritos completos da década de 1920 Certamente ele teve acesso à primeira edição desse texto de 1910 e pôde constatar essa pequena omissão Nós as traduzimos da Standard inglesa já que não dispomos da primeira edição original Elas estão na tradução assinada por D Marcondes e J Barbosa Corrêa da qual pudemos consultar a primeira edição publicada em 1931 o que indica que a tradução francesa ou espanhola que provavelmente utilizaram foi feita da edição alemã an terior aos Gesammelte Schriften Eis como esse trecho é traduzido por Marcondes e Corrêa e o privassem das conquistas da civilização 218316 AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPIA PSICANALÍTICA 1910 CONFERÊNCIA DE ABERTURA DO II CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE REALIZADO EM NUREMBERG EM 30 E 31 DE MARÇO DE 1910 TÍTULO ORIGINAL DIE ZUKÜNFTIGEN CHANCEN DER PSYCHOANALYTISCHEN THERAPIE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ZENTRALBLATT FÜR PSYCHOANALYSE FOLHA CENTRAL DE PSICANÁLISE V 1 N 11 PP 19 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 10415 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNZUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 12132 Caros senhores Como são de natureza sobretudo prática os objetivos que motivaram nosso encontro também escolhi como tema de minha palestra de abertura uma questão prática dirigindome antes ao seu interesse médico do que à sua preocupação científica Posso imaginar como julgam os sucessos de nossa terapia e suponho que a maioria dos senhores já tenha ultrapassado as duas fases de todo iniciante o entusiasmo pelo inesperado aumento de nossa ação terapêutica e a depressão pela grandeza das dificuldades que se interpõem a nossos esforços Mas seja qual for o ponto desse desenvolvimento em que cada um dos senhores esteja hoje pretendo lhes mostrar que de maneira nenhuma chegamos ao fim de nossos recursos para combater as neuroses e que podemos contar com uma substancial melhora das nossas perspectivas terapêuticas no futuro próximo Acho que esse fortalecimento virá de três direções 1 do progresso interno 2 do acréscimo em autoridade 3 do efeito geral de nosso trabalho I Por progresso interno entendo o avanço em a nosso conhecimento analítico e b nossa técnica A O avanço em nosso conhecimento sem dúvida estamos longe de saber tudo o que necessitamos para compreender o inconsciente de nossos doentes É claro que todo avanço em nosso conhecimento significa maior poder para nossa terapia Enquanto nada compreendemos nada conseguimos quanto mais com preendermos mais realizaremos No início o tratamento psicanalítico era im placável e cansativo O paciente tinha de falar tudo ele mesmo e a atividade do médico consistia em pressionálo ininterruptamente Hoje a coisa é mais amigável O tratamento se compõe de duas partes do que o médico percebe e 220316 fala ao paciente e da elaboração por parte deste daquilo que escutou É fácil compreender o mecanismo de nosso auxílio nós fornecemos ao doente a ideia antecipatória conscientea cuja semelhança com a ideia reprimida inconsciente lhe permite encontrar esta dentro de si Este é o auxílio intelectual que lhe facilita a superação das resistências entre consciente e inconsciente Devo lhes fazer notar aliás que esse não é o único mecanismo utilizado no tratamento analítico já con hecem aquele bem mais poderoso que consiste no uso da transferência Tenho a intenção de abordar proximamente numa Metodologia geral da psicanáliseb to dos esses fatores relevantes para a compreensão do tratamento Além disso não vejo necessidade de refutar na presença dos senhores a objeção de que a atual prática do tratamento obscurece o valor testemunhal em favor da correção de nossas hipóteses os senhores não esquecerão de que tal evidência deve ser bus cada em outros lugares e uma intervenção terapêutica não pode ser conduzida como uma pesquisa teórica Permitamme agora mencionar algumas áreas em que temos coisas novas a aprender e em que realmente descobrimos coisas novas a cada dia Antes de tudo há o simbolismo nos sonhos e no inconsciente Um tema bastante controverso como sabem Não constitui mérito pequeno de nosso colega Wilhelm Stekel o fato de haver se dedicado ao estudo do simbolismo dos sonhos sem fazer caso das objeções de todos os oponentes Nisso ainda há muito a aprender realmente meu livro Interpretação dos sonhos escrito em 1899 aguarda importantes acrésci mos que virão do estudo do simbolismo Gostaria de lhes dizer algumas palavras sobre um dos símbolos recentemente percebidos Algum tempo atrás informaramme que um psicólogo de pontos de vista um tanto alheios aos nossos dirigiuse a um de nós com a observação de que certamente superestimamos o significado sexual oculto dos sonhos O seu sonho mais frequente afirmou era subir uma escada e certamente nada havia de 221316 sexual nisso Alertados por essa objeção começamos a atentar para o surgimento de escadas degraus etc nos sonhos e logo pudemos verificar que a escada ou o que lhe seja análogo representa um indiscutível símbolo do coito Não é difícil encontrar o fundamento da comparação chegamos ao topo em movimentos rít micos com fôlego cada vez menor e depois com alguns breves saltos estamos novamente no chão Assim o ritmo do coito se acha igualmente na subida da es cada E não esqueçamos a linguagem corrente Ela nos mostra que a subida das Steigen é outra designação para o ato sexualc Costumase dizer que um homem é um Steiger subidor e falar em nachsteigen correr atrás Em francês o degrau da escada se chama la marche e un vieux marcheur literalmente um velho andador corresponde exatamente ao nosso ein alter Steiger O ma terial onírico de onde vêm esses símbolos agora percebidos será apresentado aos senhores no devido tempo pelo grupo de pesquisas do simbolismo que vamos organizar Acerca de outro símbolo interessante o do salvamento e suas mudanças de significado encontrarão observações no segundo volume de nosso anuáriod Mas devo parar aqui ou não passarei aos outros pontos Cada um dos senhores notará por experiência própria como encara de forma inteiramente diversa um novo caso uma vez que tenha compreendido a estrutura de uns poucos casos típicos da doença Agora imaginem que tivéssemos fixado em breves formulações as regularidades na construção das diferentes formas de neurose tal como até o momento conseguimos fazer com a formação dos sinto mas histéricos como isso tornaria seguro o nosso prognóstico De fato assim como o obstetra verifica inspecionando a placenta se ela foi expelida completa mente ou se ainda ficaram restos nocivos poderíamos dizer independentemente do resultado e da condição momentânea do paciente se o trabalho foi definitivamente bemsucedido ou se devemos estar preparados para recidivas ou nova enfermidade 222316 B Apressome a considerar as inovações no âmbito da técnica em que a maioria das coisas ainda aguarda sua comprovação final e muitas começam a se tornar claras apenas agora A técnica psicanalítica propõese dois objetivos atual mente poupar trabalho ao médico e dar ao doente o mais irrestrito acesso ao seu inconsciente Como os senhores sabem houve uma mudança fundamental em nossa técnica Na época do tratamento catártico tínhamos por objetivo o esclare cimento dos sintomas depois nos afastamos dos sintomas e estabelecemos como meta a revelação dos complexos na expressão de C G Jung que se tornou indispensável mas agora dirigimos os esforços diretamente para a descoberta e superação das resistências confiando justificadamente em que os complexos se entregarão sem dificuldade tão logo as resistências sejam reconhecidas e elim inadas Em alguns dos senhores manifestouse a exigência de ter uma visão de conjunto dessas resistências e classificálas Peçolhes então que examinem seu material para ver se podem confirmar o resumo seguinte nos pacientes homens as mais significativas resistências no tratamento parecem vir do complexo pater no e decomporse em medo do pai desobediência ao pai e descrença em relação ao pai Outras inovações na técnica dizem respeito à própria pessoa do médico Tornamonos cientes da contratransferência que surge no médico quando o pa ciente influencia os seus sentimentos inconscientes e estamos quase inclinados a solicitar que o médico reconheça e domine essa contratransferência dentro de si Desde que um bom número de pessoas vem exercendo a psicanálise e trocando experiências notamos que cada psicanalista consegue ir apenas até onde per mitem seus próprios complexos e resistências internas e por isso exigimos que ele dê início à sua atividade com uma autoanálise e a aprofunde continuamente enquanto amplia sua experiência com os doentes Quem nada obtém numa 223316 autoanálise pode muito bem abandonar a ideia de que é capaz de tratar analitica mente pessoas doentese Agora também nos aproximamos do ponto de vista de que a técnica analítica deve experimentar certas modificações conforme a natureza da doença e os in stintos predominantes no paciente Começamos pelo tratamento da histeria de conversão na histeria de angústia nas fobias temos de alterar em alguma me dida o nosso procedimento Pois esses doentes não podem trazer o material decis ivo para a dissolução da fobia enquanto se sentem protegidos mantendo a con dição fóbica Naturalmente não conseguimos que já no começo do tratamento eles renunciem ao dispositivo de proteção e trabalhem nas condições da angústia É preciso então ajudálos por meio da tradução de seu inconsciente até que possam decidirse a renunciar à proteção da fobia e exporse a uma angústia agora bastante moderada Outras modificações da técnica que ainda não me parecem maduras para comunicação serão requeridas no tratamento das neur oses obsessivas Em relação com isso aparecem questões muito importantes e ainda não esclarecidas até onde se deve conceder no tratamento alguma satis fação aos instintos combatidos do paciente e que diferença faz se esses instintos forem de natureza ativa sádica ou passiva masoquista Os senhores terão obtido a impressão espero de que quando todos souber mos tudo isso que agora apenas suspeitamos e tivermos realizado todos os aper feiçoamentos da técnica a que nos deve conduzir a experiência aprofundada com nossos pacientes então nossa prática médica adquirirá uma precisão e uma cer teza de êxito que não se acham em todos os campos da medicina 2 Eu disse que teríamos muito a esperar do crescimento em autoridade que nos há de vir no decorrer do tempo Não preciso lhes falar sobre a importância da autoridade Muito poucos indivíduos civilizados são capazes de existir sem 224316 apoiarse nos demais ou até mesmo de chegar a um juízo autônomo Não po demos exagerar a ânsia de autoridade e inconsistência interior das pessoas A ex traordinária multiplicação das neuroses desde o enfraquecimento das religiões pode lhes fornecer uma medida disso O empobrecimento do Eu graças ao enorme dispêndio em repressão que a civilização requer de todo indivíduo deve ser uma das principais causas desta situação Essa autoridade com a imensa sugestão que dela provém era contrária a nós Todos os nossos êxitos terapêuticos foram obtidos apesar dessa sugestão é de surpreender que ainda houvesse êxito em tais circunstâncias Não chegarei ao ponto de lhes narrar as coisas agradáveis do tempo em que eu representava soz inho a psicanálise Digo apenas que os doentes aos quais eu assegurava que po deria aliviar duradouramente os sofrimentos olhavam para minhas modestas in stalações pensavam em meus escassos títulos e pouco renome e talvez me vissem como alguém que numa casa de jogos afirmava ter um infalível sistema para ganhar mas do qual se dizia que se realmente fosse capaz daquilo deveria ter outra aparência E realmente não era fácil realizar operações psíquicas enquanto um colega que teria o dever de nos dar assistência sentia gosto especial em cuspir na área da operação e os familiares ameaçavam o cirurgião tão logo havia sangue ou movimentos inquietos no paciente É inevitável que uma operação produza reações há muito estamos habituados a isso no campo da cirurgia As pessoas simplesmente não acreditavam em mim tal como hoje ainda acreditam pouco em todos nós Em condições tais algumas intervenções tinham de fracassar A fim de calcular o aumento em nossas perspectivas terapêuticas quando há confiança ger al em nós pensem na posição de um ginecologista na Turquia e no Ocidente Tudo o que um ginecologista pode fazer na Turquia é sentir o pulso de um braço que lhe é estendido através de um buraco na parede o êxito médico é pro porcional à acessibilidade do objeto Nossos opositores no Ocidente querem nos 225316 conceder uma disponibilidade semelhante sobre a vida psíquica de nossos doentes Mas desde que o poder de sugestão da sociedade leva a mulher doente ao ginecologista este se torna auxiliador e salvador da mulher Não digam que quando a autoridade da sociedade vier em nosso auxílio e aumentar grandemente nossos êxitos isso não provará em nada a correção de nossas premissas A sug estão pode supostamente tudo e nossos êxitos então serão êxitos da sugestão e não da psicanálise No momento o poder de sugestão da sociedade vai ao encon tro dos tratamentos hidroterápicos dietéticos e elétricos sem que tais recursos consigam sobrepujar as neuroses O tempo dirá se os tratamentos psicanalíticos são capazes de fazer mais Mas agora devo novamente amortecer suas expectativas A sociedade não se apressará em nos conceder autoridade Ela tem de nos oferecer resistência pois nos comportamos criticamente em relação a ela demonstramolhe que ela mesma tem grande participação no surgimento das neuroses Assim como transform amos o indivíduo em nosso inimigo desvelando o que nele se acha reprimido também a sociedade não pode responder com simpatia ao implacável desnuda mento de seus danos e deficiências pelo fato de destruirmos ilusões acusamnos de pôr em perigo os ideais Portanto parece que jamais se dará a condição da qual eu esperava grande favorecimento de nossas perspectivas terapêuticas A situação contudo não é tão desesperadora como poderíamos achar nesse in stante Embora sejam fortes os afetos e os interesses dos homens também o in telecto é uma força não a que se faz valer de imediato mas certamente no final As verdades mais incisivas são finalmente escutadas e reconhecidas depois que se esgotam os interesses por elas feridos e os afetos por elas despertados Até agora sempre foi assim e as verdades indesejáveis que nós psicanalistas temos para dizer ao mundo encontrarão o mesmo destino Apenas isso não ocorrerá em breve temos de ser capazes de esperar 226316 3 Devo explicarlhes enfim o que entendo por efeito geral de nosso trabalho e como chego a depositar esperança nele Temos aqui uma peculiaríssima con stelação terapêutica que talvez não se encontre em nenhuma outra parte e que também lhes parecerá estranha inicialmente até reconhecerem nela algo que há muito é familiar Como sabem as psiconeuroses são satisfações substitutivas de formadas de instintos cuja existência a pessoa tem de negar para si mesma e para os outros Sua existência se baseia nessa deformação e nesse não reconhecimento Com a solução do enigma que apresentam e a aceitação desta solução por parte dos doentes esses estados patológicos perdem a razão de ser Dificilmente se en contra algo semelhante na medicina nas fábulas é que ouvimos falar de maus es píritos que têm o poder anulado quando alguém é capaz de dizer seus nomes que eram mantidos em segredo Agora ponham no lugar do indivíduo enfermo a sociedade inteira sofrendo de neuroses e composta de pessoas doentes e sadias no lugar da aceitação indi vidual da solução o reconhecimento geral e uma breve reflexão lhes mostrará que essa substituição em nada altera o resultado O êxito que a terapia pode ter com a pessoa deve suceder igualmente com a massa Os doentes não poderão dar a conhecer suas diferentes neuroses sua angustiada ternura excessiva que pre tende esconder seu ódio sua agorafobia que revela sua decepcionada ambição seus atos obsessivos que constituem recriminações por maus propósitos e medi das preventivas contra eles se todos os parentes e desconhecidos dos quais querem ocultar seus processos psíquicos conhecerem o sentido geral dos sinto mas e se eles próprios souberem que nada produzem em seus fenômenos patoló gicos que os outros não sejam capazes de interpretar imediatamente Mas o efeito não se limitará ao ocultamento dos sintomas aliás frequentemente impossível pois essa necessidade de ocultamento torna inútil a doença A comunicação do 227316 segredo terá atacado no ponto mais sensível a equação etiológicaf de que se originam as neuroses terá tornado ilusório o ganho obtido com a doença e por isso a consequência última da situação modificada pela indiscrição do médico só poderá ser o fim da produção da doença Se tal esperança lhes parece utópica lembremse de que a eliminação de fenô menos neuróticos por essa via já ocorreu de fato embora em casos isolados Pensem em como era frequente outrora moças camponesas terem alucinações com a Virgem Maria Enquanto essas aparições ocasionavam grande afluência de crentes e às vezes até a construção de uma capela no local das graças o estado visionário das moças era inacessível a qualquer influência Hoje em dia até mesmo o clero mudou de atitude em relação a essas coisas permite que a polícia e os médicos examinem a visionária e desde então a Virgem aparece raramente Ou permitamme examinar esses mesmos processos que venho situando no futuro numa situação análoga mas em escala menor e por isso mais fácil de per ceber Imaginem que um grupo de cavalheiros e damas da boa sociedade tenha combinado passar o dia numa pousada campestre As damas acertaram entre si que quando uma delas quisesse satisfazer uma necessidade natural diria em voz alta Estou indo colher flores Mas um indivíduo malicioso descobriu o segredo e fez constar no programa impresso enviado aos participantes Quando uma dama precisar se afastar poderá dizer que está indo colher flores Naturalmente nenhuma das damas se utilizará desse eufemismo e também outras combinações similares serão dificultadas Qual será a consequência As damas admitirão fran camente suas necessidades naturais e nenhum dos cavalheiros se escandalizará com isso Retornemos ao nosso caso que é mais sério Muitas pessoas diante de conflitos cuja solução lhes parece muito difícil refugiamse na neurose assim ob tendo um inconfundível embora custoso a longo prazo ganho com a doença Que terão de fazer essas pessoas quando a fuga para a doença lhes for 228316 vedada pelos indiscretos esclarecimentos da psicanálise Terão de ser honestas admitir os instintos que nelas atuam permanecer firmes no conflito combater ou renunciar e a tolerância da sociedade consequência inevitável do esclarecimento psicanalítico virá em seu auxílio Recordemonos porém de que não se pode enfrentar a vida como um higi enista ou terapeuta fanático Admitamos que essa prevenção ideal das doenças neuróticas não será vantajosa para todos os indivíduos Boa parte daqueles que hoje se refugiam na doença não suportaria o conflito nas condições que viemos de supor mas sucumbiria rapidamente ou causaria dano maior do que sua própria enfermidade neurótica Pois as neuroses têm sua função biológica como disposit ivo protetor e sua justificação social o ganho com a doença não é sempre puramente subjetivo Quem entre os senhores já não perscrutou as causas de uma neurose e teve de reconhecêla como o mais suave desfecho entre todas as possibilidades daquela situação Deveríamos então abandonar nossos esforços para esclarecer o sentido secreto das neuroses por serem em última instância perigosos para o indivíduo e nocivos para o movimento da sociedade deixando de tirar a consequência prát ica de um conhecimento científico Não acho que nosso dever nos leva à direção contrária O ganho obtido com as neuroses é no conjunto e ao fim um prejuízo para os indivíduos e para a sociedade O infortúnio que pode resultar de nosso trabalho de esclarecimento atingirá poucos afinal Tais sacrifícios não represent arão um custo muito alto na mudança para um estado da sociedade mais digno e verdadeiro Sobretudo as energias todas que atualmente são gastas na produção de sintomas neuróticos a serviço de um mundo de fantasia isolado da realidade ajudarão a reforçar se já não puderem reverter em favor da vida o clamor pelas transformações em nossa cultura nas quais enxergamos a única salvação para os nossos descendentes 229316 Despeçome dos senhores então garantindolhes que cumprem seu dever em mais de um sentido quando tratam psicanaliticamente os seus doentes Trabal ham não apenas a serviço da ciência ao aproveitar a oportunidade única de pen etrar os segredos das neuroses não apenas proporcionam a seus doentes o trata mento mais eficaz para seus males que hoje temos à disposição mas também con tribuem para o esclarecimento das massas do qual esperamos a mais abrangente profilaxia das enfermidades neuróticas pela via indireta da autoridade social a A ideia antecipatória consciente die bewusste Erwartungsvorstellung as versões estrangeiras consultadas apresentam representación consciente provisional representaciónexpectativa conciente rappresentazione anticipatoria cosciente the conscious idea of what he may be expected do find com o original entre colchetes the conscious anticipatory Idea the idea of what he may expect to find Além daquelas normalmente utilizadas as duas em espanhol a italiana e a Standard inglesa recorremos à tradução inglesa de 1924 assinada por Joan Riviere que aqui aparece em penúltimo lugar b Uma obra que não chegou a ser escrita Mas Freud publicaria entre 1911 e 1915 uma série de ensaios sobre a técnica psicanalítica que se encontram no volume destas Obras completas c Como se sabe no português do Brasil é usado o verbo trepar num registro grosseiro ou apenas muito coloquial a depender do grupo social d Provável referência ao ensaio Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem pub licado originalmente no Anuário de Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas v 2 1910 230316 e Mas Freud logo abandonaria a concepção de que era suficiente uma autoanálise para a formação do analista passando a defender a necessidade de uma análise de treinamento didática con duzida por um analista mais experiente cf Recordações ao médico que pratica a psicanálise 1912 f Segundo Strachey é uma referência ao artigo Sobre a crítica à Neurose de angústia de 1895 em que Freud introduz esse conceito de equação etiológica a qual consistiria de diferentes ter mos que necessitam estar presentes para que se produza a neurose algo que tornasse impossível um desses termos teria efeito terapêutico então 231316 SOBRE O SENTIDO ANTITÉTICO DAS PALAVRAS PRIMITIVAS 1910 TÍTULO ORIGINAL ÜBER DEN GEGENSINN DER URWORTE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM JAHRBUCH FÜR PSYCHOANALYTISCHE UND PSYCHOPATHOLOGISCHE FORSCHUNGEN ANUÁRIO DA PESQUISA PSICANALÍTICA E PSICOPATOLÓGICA 2 N 1 PP 17984 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 21421 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IV PP 22734 Em minha Interpretação dos sonhos fiz uma afirmação sobre um resultado do tra balho analítico que então não compreendia e quero repetila aqui dando início a esta comunicação É surpreendente o modo como os sonhos tratam a categoria de oposição e contradição Esta é simplesmente ignorada O não parece não existir para os sonhos Com singular predileção os opostos são combinados numa unidade ou representados como uma só coisa Os sonhos também tomam a liberdade de representar um elemento qualquer pelo oposto desejado de modo que primeiramente não há como decidir se um elemento que admite o oposto se acha nos pensamentos oníricos de forma positiva ou negativa1 Os intérpretes de sonhos da Antiguidade parecem ter recorrido extensamente à premissa de que algo pode significar seu oposto no sonho Ocasionalmente essa possibilidade é também admitida por pesquisadores modernos do sonho quando concedem que ele tenha sentido e seja interpretável2 E creio não suscitar objeção ao supor que todos os que me acompanharam na via de uma interpretação científica dos sonhos puderam corroborar a afirmação acima Cheguei à compreensão da peculiar tendência do trabalho do sonho de ig norar a negação e exprimir opostos com um só meio de representação apenas mediante a leitura casual de um trabalho do linguista Karl Abel publicado em 1884 como brochura independente e incorporado aos Sprachwissenschaftliche Abhandlungen Ensaios de linguística do autor no ano seguinte O interesse do tema justificará que eu apresente aqui literalmente as passagens cruciais do texto de Abel embora omitindo a maioria dos exemplos Elas nos trazem a espantosa informação de que mencionada tendência do trabalho do sonho coincide com uma peculiaridade das línguas mais antigas que conhecemos 233316 Depois de enfatizar a antiguidade do idioma egípcio que deve ter se desen volvido muito tempo antes das primeiras inscrições hieroglíficas Abel prossegue p 4 Na língua egípcia esta singular relíquia de um mundo primitivo há um número considerável de palavras com dois sentidos em que um é o exato oposto do outro Imaginemos se tão evidente absurdo pode ser imaginado que a palavra forte em alemão signifique tanto forte como fraco que em Berlim o termo luz seja empregado tanto para designar luz como es curidão que um cidadão de Munique chame a cerveja de cerveja mas um outro use a mesma palavra quando se refere à água e teremos a espantosa prática que os antigos egípcios costumavam seguir em sua linguagem Como repreender quem balance a cabeça incrédulo diante disso Seguem se exemplos Em vista desse e de muitos casos semelhantes de significado antitético ver Apêndice está fora de dúvida que ao menos em uma língua houve grande número de palavras que designavam uma coisa e seu contrário ao mesmo tempo Por mais espantoso que seja isso estamos diante de um fato e temos de leválo em conta p 7 Em seguida o autor rejeita a explicação desse fato mediante a homofonia cas ual e protesta também de modo firme contra a tentativa de relacionálo a um baixo nível do desenvolvimento intelectual egípcio Mas o Egito estava longe de ser uma terra de absurdos Foi pelo contrário um dos primeiros lugares onde se desenvolveu a razão humana Con hecia uma moral pura e digna e já havia formulado uma grande parte dos Dez Mandamentos quando os povos que hoje lideram a civilização ainda sacri ficavam vítimas humanas a ídolos sedentos de sangue Um povo que mantinha acesa a tocha da justiça e da cultura em tempos tão obscuros não 234316 podia ser estúpido na fala e no pensamento cotidiano Quem conseguia fabricar vidro e erguer e transportar imensos blocos de pedra com máquinas devia ser racional o bastante para não tomar uma coisa por ela mesma e por seu oposto simultaneamente Como conciliar isso e o fato de os egípcios ad mitirem uma linguagem tão contraditória de darem o mesmo veículo fonético aos pensamentos mais díspares e juntarem numa espécie de união in dissolúvel coisas que se opunham da maneira mais cabal p 9 Antes de qualquer ensaio de explicação é preciso considerar ainda uma ex acerbação desse incompreensível procedimento do idioma egípcio De todas as excentricidades do léxico egípcio talvez a mais extraordinária tenha sido possuir além de palavras que juntavam significações opostas out ras palavras em que dois vocábulos de significado oposto eram reunidos numa composição que tinha o significado de um dos dois membros constitu intes Portanto nessa língua extraordinária existem não apenas palavras que designam tanto forte como fraco ou tanto mandar como obedecer há também compostos como velhojovem longeperto ligarseparar foraden tro que embora combinem extremos opostos significam a primeira apenas jovem a segunda apenas perto a terceira apenas ligar e a quarta apenas dentro Ou seja nessas palavras compostas juntaramse inten cionalmente contradições conceituais não a fim de criar um terceiro conceito como no chinês mas apenas para exprimir através da composição o signific ado de um de seus membros contraditórios que sozinho significaria o mesmo No entanto o enigma tem solução mais fácil do que parece Nossos conceitos surgem mediante a comparação Se fosse sempre claro não poderíamos distin guir entre claro e escuto e em consequência não teríamos nem o conceito de claridade nem a palavra para ele É evidente que tudo neste planeta é 235316 relativo e tem existência independente só enquanto é diferenciado em suas re lações com outras coisas Assim desde que todo conceito é irmão gêmeo de seu oposto como poderia ele ser primeiramente pensado como poderia ser comunicado a outras pessoas que buscavam pensálo se não medido pelo seu oposto p 15 Como não se podia conceber a noção de força senão em contraposição a fraqueza a palavra que denotava forte continha ao mesmo tempo a lembrança de fraco através da qual chegou a existir Essa palavra na verdade não significava nem forte nem fraco mas a relação entre os dois e a diferença entre os dois que criou ambos igualmente O ser humano não pôde adquirir seus mais velhos e mais simples conceitos senão em oposição a seus opostos e apenas gradualmente aprendeu a distinguir os dois lados da antítese e a pensar em um sem medilo conscientemente pelo outro Como a linguagem serve não apenas para expressar os próprios pensamentos mas essencialmente para comunicálos a outros podese perguntar de que maneira o egípcio primevo dava a entender ao semelhante a que lado do con ceito híbrido ele se referia em cada ocasião Na escrita isso acontecia com a ajuda dos chamados sinais determinativos que colocados após os alfabéticos indicam o sentido desses e não são pronunciados p 18 Quando a palavra egípcia ken deve significar forte depois de seu som escrito alfabeticamente achase a imagem de um homem armado e em pé quando a mesma palavra quer dizer fraco após as letras que representam o som há a imagem de um indivíduo acocorado indolente De modo similar a maioria das outras palavras de dois sentidos é acompanhada de imagens explicativas Na língua falada eram os ges tos conforme julga Abel que serviam para indicar o sentido desejado É nas mais antigas raízes segundo Abel que se observa o fenômeno do du plo sentido antitético Na evolução posterior das línguas desapareceu essa am biguidade mas pelo menos no egípcio antigo podemos seguir todos os estágios 236316 até chegar ao caráter unívoco do vocabulário moderno Uma palavra original mente de duplo sentido se decompõe na linguagem posterior em duas de um só significado na medida em que cada um dos dois sentidos opostos toma para si uma redução modificação fonética da mesma raiz Assim por exemplo já na escrita hieroglífica ken fortefraco dividese em ken forte e kan fraco Ou seja os conceitos a que só se podia chegar de forma antitética tornaramse ao longo do tempo suficientemente familiares ao espírito humano para possibilit ar uma existência autônoma a cada uma das suas duas partes e assim proporcion ar um representante fonético distinto para cada uma delas A existência de significados originais contraditórios facilmente comprovável na língua egípcia é também encontrada segundo Abel nas línguas semitas e indoeuropeias Ainda não se sabe até onde isso pode ocorrer em outras famílias linguísticas pois embora o sentido antitético inevitavelmente se apresentasse aos indivíduos pensantes de qualquer raça não foi necessariamente reconhecido e conservado nos significados dos vocábulos Abel também ressalta que o filósofo A Bain sem conhecimento dos fenô menos ao que parece defendeu esse duplo sentido das palavras por razões puramente teóricas como uma necessidade lógica A passagem em questão começa com as seguintes frases Logic I p 54 Londres 1870 The essential relativity of all knowledge thought or consciousness cannot but show itself in language If everything that we can know is viewed as a transition from something else every experience must have two sides and either every name must have a double meaning or else for every meaning there must be two names A relatividade essencial de todo conhecimento pensamento ou consciência não pode senão manifestarse na linguagem Se tudo o que podemos saber for visto como uma transição a partir de alguma outra coisa toda experiência 237316 deve ter dois lados e ou todo nome deve ter duplo sentido ou para todo sen tido deve haver dois nomes Destacarei do Apêndice com exemplos de sentido antitético egípcio indo germânico e árabe alguns casos que poderão impressionar também a nós leigos em filologia No latim altus significa alto e profundo sacer sagrado e maldito em que ainda se acha o pleno sentido antitético sem modificação do som da pa lavra A alteração fonética para a distinção dos contrários é atestada mediante ex emplos como clamare gritar clam quieto calado siccus seco succus suco Em alemão ainda hoje Boden se refere tanto ao local mais alto como ao mais baixo da casa sótão e chão Ao nosso bös ruim corresponde bass bom em altosaxão bat gut corresponde ao inglês bad ruim em inglês to lock trancar corresponde em alemão a Lücke Loch lacuna buraco Em alemão kleben grudar em inglês to cleave fender em alemão stumm Stimme mudo voz etc Desse modo talvez até a ridicularizada derivação lucus a non lucendo venha a fazer sentidoa No ensaio sobre a Origem da linguagem 1885 p 305 Abel chama a atenção para outros vestígios de antigos esforços do pensamento Ainda hoje um inglês diz para designar sem without ou seja comsem e um prussiano ori ental faz o mesmo With que agora corresponde ao nosso com significava ori ginalmente tanto com como sem algo que se nota em withdraw retirar e withhold reter A mesma transformação percebemos no alemão em wider con tra e wieder juntamente com Para a comparação com o trabalho do sonho outro peculiaríssimo traço do antigo idioma egípcio tem importância Em egípcio as palavras podem aparentemente diremos de início in verter tanto o som como o sentido Supondo que o termo alemão gut bom fosse egípcio poderia significar além de bom mau e poderia soar além de gut 238316 tug Muitos exemplos de tais inversões fonéticas que são numerosas demais para serem explicadas pelo acaso podem ser aduzidos também de línguas arianas e semitas Limitandonos primeiramente às línguas germânicas ob servemos Topf pot ambos panela boat tub barco tina wait täuwen esperar tardar hurry Ruhe pressa quietude care reck cuidado preocupação Balken Klobe club trave cepo porrete Considerando também as outras línguas indogermânicas o número de casos relevantes cresce proporcionalmente por exemplo capere latim pegar packen alemão idem ren latim rim Niere alemão idem leaf inglês folha folium latim idem duma russo pensamento θυμoς grego espírito sânscrito mêdh mûdha mente Mut alemão ânimo Rauchen alemão fumaça russo kurít fumar kreischen alemão grit ar guinchar to shriek inglês idem e assim por diante Abel procura explicar o fenômeno da troca fonética com base numa duplicação ou reduplicação da raiz Nisso teríamos alguma dificuldade em acompanhar o filólogo Sabemos como as crianças gostam de brincar invertendo o som das pa lavras e como o trabalho do sonho frequentemente se utiliza da inversão do seu material figurativo para propósitos diversos aí já não são letras mas imagens que têm a sequência invertida Portanto nós nos inclinaríamos antes a relacionar a troca fonética a um fator de alcance mais profundo3 Na concordância entre a peculiaridade do trabalho do sonho destacada no iní cio e a prática das mais antigas línguas revelada pela filologia podemos ver uma confirmação de nossa concepção do caráter regressivo arcaico da expressão de pensamentos no sonho E a nós psiquiatras impõese de modo imperioso a sus peita de que entenderíamos melhor e traduziríamos mais facilmente a linguagem dos sonhos se conhecêssemos mais a evolução da linguagem4 239316 1 A interpretação dos sonhos 1900 2a ed p 232 cap vi parte c 2 Ver por exemplo G H Von Schubert Die Symbolik des Traumes O simbolismo do sonho 4a ed 1862 cap 2 A linguagem do sonho 3 Sobre o fenômeno da troca fonética metátese que talvez tenha laços ainda mais íntimos com o trabalho do sonho do que o sentido antitético cf também W MeyerRinteln no Kölnische Zeitung de 7 de março de 1909 4 É também plausível supor que o original sentido antitético das palavras mostra o mecanismo préformado que é utilizado para fins diversos pelo lapso verbal em que se diz o oposto do pretendido a Em De lingua latina Varrão 11627 aC sugeriu que o termo lucus pequeno bosque derivava de lucere luzir pois no bosque não há luz um exemplo de etimologia arbitrária segundo os linguistas contemporâneos de Freud Quanto ao argumento e aos exemplos de Karl Abel que tanto seduziram o criador da psicanálise a linguística atual não lhes dá nenhum crédito cf por exemplo Émile Benveniste Remarques sur la fonction du langage dans la découverte freudi enne em Problèmes de linguistique générale 1971 ed bras Problemas de linguística geral Camp inas Pontes 2005 240316 CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DO TRANSTORNO PSICOGÊNICO DA VISÃO 1910 TÍTULO ORIGINAL DIE PSYCHOGENE SEHSTÖRUNG IN PSYCHOANALYTISCHER AUFFASSUNG PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ÄRZTLICHE FORTBILDUNG SUPLEMENTO DE ÄRZTLICHE STANDESZEITUNG JORNAL DA CLASSE MÉDICA V 9 N 9 PP 424 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 94102 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VI PP 20513 Caros colegas Quero lhes mostrar com base no transtorno psicogênico da visão as mudanças que nossa concepção da gênese de tais problemas experimentou por in fluência do método de pesquisa psicanalítico Como sabem a cegueira histérica é considerada o caso típico de um transtorno psicogênico da visão Após as pesquisas da escola francesa de homens como Charcot Janet Binet acreditase que sua gênese é conhecida Com efeito podese produzir experimentalmente essa cegueira quando se dispõe de alguém suscetível de sonambulismo Se colocamos essa pessoa em hipnose profunda e lhe sugerimos que não enxerga com determinado olho ela se comporta realmente como alguém cego daquele olho como uma histérica com um transtorno visual espontaneamente desen volvido É possível então construir konstruiereno mecanismo do transtorno histérico espontâneo da visão sobre o modelo do transtorno hipnótico sugerido Numa histérica a ideia de estar cega não surge inspirada pelo hipnotizador mas de forma espontânea por autossugestão como se diz e essa ideia é tão poderosa em ambos os casos que se converte em realidade exatamente como uma alucin ação uma paralisia etc sugeridas Isso parece perfeitamente verossímil e deve satisfazer qualquer um que não se incomode com os muitos enigmas que existem por trás dos conceitos de hipnose sugestão e autossugestão Em especial a autossugestão dá ensejo a outras pergun tas mais Quando e em que condições uma ideia se torna tão poderosa que chega a se comportar como uma sugestão e se transformar em realidade Uma invest igação mais detida nos ensinou que não podemos responder a essa questão sem recorrer à noção de inconsciente Muitos filósofos são contrários à suposição de tal inconsciente psíquico pois não se ocuparam dos fenômenos que nos obri gam a postulálo Tornouse inevitável para os psicopatologistas trabalhar com processos psíquicos inconscientes ideias inconscientes etc 242316 Experimentos engenhosos demonstraram que os cegos histéricos veem em determinado sentido ainda que não no sentido pleno Estímulos do olho cego podem produzir certas consequências psíquicas despertar afetos por exemplo apesar de não se tornarem conscientes Portanto os histericamente cegos são ce gos apenas para a consciência enxergam no inconsciente São observações desse tipo que nos fazem distinguir entre processos psíquicos conscientes e incon scientes Como é que tais pessoas desenvolvem a autossugestão inconsciente de que são cegas quando porém continuam enxergando no inconsciente A essa pergunta os pesquisadores franceses respondem com a explicação de que já de antemão existe nos doentes predispostos à histeria um pendor para a dissociação para a dissolução dos nexos no funcionamento psíquico e em consequência disso alguns processos inconscientes não prosseguem até a con sciência Sem considerar agora o valor dessa tentativa de explicação no que toca ao entendimento dos fenômenos em pauta vamos nos voltar para outro ponto de vista Como veem os senhores abandonamos a identidade inicialmente enfatiz ada entre a cegueira histérica e a cegueira produzida mediante a sugestão Os histéricos não estão cegos em consequência da ideia autossugestiva de que não veem mas sim por causa da dissociação entre processos inconscientes e con scientes no ato de ver sua ideia de que não vê é a justificada expressão do estado de coisas psíquico e não a causa deste Senhores Se objetarem que falta clareza à exposição precedente não me será fácil defendêla Procurei lhes dar uma síntese das opiniões de diferentes pesquisadores e nisso provavelmente esquematizei demais os nexos Quis juntar numa composição homogênea os conceitos lançados para a compreensão dos transtornos psicogênicos sua origem em ideias muito poderosas a distinção entre processos psíquicos conscientes e inconscientes e a hipótese da dissociação psíquica e tive tão pouco êxito nisso quanto os autores franceses com Pierre 243316 Janet à frente Queiram perdoarme além da pouca clareza também a infidelid ade de minha exposição e deixemme lhes contar como a psicanálise nos levou a uma concepção mais firme e provavelmente mais realista dos transtornos psicogênicos da visão A psicanálise aceita igualmente as hipóteses da dissociação e do inconsciente mas estabelece outra relação entre elas É uma concepção dinâmica que explica a vida psíquica como um jogo de forças que favorecem ou inibem umas às outras Quando por exemplo um grupo de ideias permanece no inconsciente ela não conclui pela existência de uma incapacidade constitucional para a síntese que se manifestaria nessa dissociação afirma isto sim que a oposição ativa de outros grupos de ideias causou o isolamento e a inconsciência desse grupo específico Chama repressão ao processo que ocasiona esse destino para esse grupo e nele reconhece algo similar ao que no âmbito da lógica é o juízo de condenação De monstra que tais repressões têm papel extraordinariamente relevante em nossa vida psíquica e que o fracasso da repressão é a precondição para que se forme o sintoma Portanto se como vimos o transtorno visual psicogênico se baseia no fato de que determinadas ideias ligadas à visão ficam separadas da consciência a abord agem psicanalítica tem de supor que tais ideias entraram em oposição a outras mais fortes para as quais utilizamos o conceito geral de Eu composto difer entemente segundo a ocasião e por isso incorreram na repressão Mas de onde deve se originar essa oposição que provoca a repressão entre o Eu e determina dos grupos de ideias Os senhores notam que essa pergunta não era possível antes da psicanálise pois nada se sabia a respeito do conflito psíquico e da repressão Nossas investigações nos puseram em condição de dar a resposta Pas samos a atentar para a importância dos instintos na vida imaginativa verificamos que cada instinto procura se impor mediante a vivificação das ideias condizentes 244316 com suas metas Nem sempre esses instintos são compatíveis entre si com fre quência têm conflitos de interesses as oposições das ideias são apenas expressão das lutas entre os instintos que servem à sexualidade à obtenção de prazer sexual e os outros que têm por meta a autoconservação do indivíduo os instintos do Eua Todos os instintos orgânicos que atuam em nossa alma podem ser classifica dos como fome ou como amor nas palavras do poetab Acompanhamos o instinto sexual desde as primeiras manifestações na criança até a forma final que se chama normal e vimos que é composto de numerosos instintos parci ais que se ligam a excitações de regiões do corpo percebemos que esses instin tos têm de perfazer um complicado desenvolvimento até poderem conformarse adequadamente aos objetivos da procriação A indagação psicológica de nossa evolução cultural nos ensinou que a civilização se origina essencialmente à custa dos instintos sexuais parciais que esses têm de ser reprimidos limitados trans formados desviados para metas mais elevadas a fim de que se produzam as con struções psíquicas civilizadas Como precioso resultado de nossas investigações pudemos perceber algo que nossos colegas ainda não querem aceitar que os males conhecidos como neuroses derivam das múltiplas formas de malogro desses processos de transformação dos instintos sexuais parciais O Eu se sente ameaçado pelas exigências dos instintos sexuais e defendese delas por meio de repressões que nem sempre têm o êxito desejado mas acarretam isto sim peri gosas formações substitutivas do reprimido e incômodas formações reativas do Eu Dessas duas classes de fenômenos se compõe aquilo que denominamos sinto mas das neuroses Aparentemente nos afastamos muito de nossa tarefa mas nisso tocamos nos laços entre os estados neuróticos e nossa vida psíquica como um todo Voltemos agora ao nosso problema específico Os instintos sexuais e os do Eu têm à dis posição em geral os mesmos órgãos e sistemas de órgãos O prazer sexual não se 245316 acha ligado apenas à função dos genitais a boca serve tanto para o beijo como para a alimentação e a comunicação os olhos percebem não apenas as alterações no mundo exterior que são importantes para a preservação da vida mas também as características dos objetos que os tornam elegíveis como objetos de amor seus encantosc Confirmase então que não é fácil servir dois senhores ao mesmo tempo Quanto mais íntima é a relação que um órgão de dupla função desse tipo estabelece com um dos dois grandes instintos tanto mais rejeita o outro Esse princípio tem inevitáveis consequências patológicas quando os dois instintos básicos se desavêm quando por parte do Eu se mantém uma repressão contra o instinto sexual parcial correspondente A aplicação disso ao olho e à visão é simples Quando o instinto sexual parcial que se utiliza da visão o prazer sexu al em olhar atrai a reação defensiva dos instintos do Eu por suas exigências ex cessivas de modo que as ideias em que se exprimem seus desejos sucumbem à repressão e são mantidas longe da consciência a relação do olho e da visão com o Eu e a consciência é perturbada O Eu perde seu domínio sobre o órgão que en tão se coloca inteiramente à disposição do instinto sexual reprimido É como se a relação por parte do Eu fosse longe demais como se ela jogasse fora a criança com a água do banho pois o Eu nada mais quer enxergar desde que os interesses sexuais em ver adquiriram tamanho relevo Mais pertinente é outra explicação que põe a atividade do lado do reprimido prazer em olhar Constitui a vingança a compensação para o instinto reprimido o fato de ele impedido de maior avanço psíquico conseguir então aumentar seu domínio sobre o órgão que o serve A perda do domínio consciente sobre o órgão é a nociva formação sub stitutiva para a repressão malograda que apenas a esse preço foi tornada possível Tal relação de um órgão duplamente solicitado relação com o Eu con sciente e com a sexualidade reprimida é ainda mais claramente visível nos ór gãos motores do que no olho quando por exemplo a mão que pretendia realizar 246316 uma agressão sexual fica histericamente paralisada e após aquela inibição nada mais consegue fazer como se teimosamente insistisse em realizar a inervação rep rimida ou quando os dedos de pessoas que deixaram a masturbação se recusam a aprender os sutis movimentos requeridos para tocar piano ou violino Quanto ao olho costumamos traduzir os obscuros processos psíquicos que se verificam na repressão do prazer sexual de olhar e no surgimento do transtorno psicogênico da visão como se uma voz punitiva se manifestasse no indivíduo dizendo Porque você pretendia utilizar seu órgão da visão para um mau prazer sensual é bem feito que não consiga mais enxergar e assim aprovando o desfecho do processo Nisso está a ideia do castigo de Talião e nossa explicação do transtorno psicogênico da visão coincide realmente com aquela oferecida pela lenda pelo mito Na bela história de lady Godiva todos os habitantes de uma pequena cid ade têm de se esconder atrás de suas janelas cerradas de modo a facilitar para a dama a tarefa de andar nua pelos caminhos montada num cavalo O único mor ador que espreita a beldade despida através do postigo da janela tem o castigo de se tornar cegod Esse não é único exemplo aliás que nos leva a suspeitar que a neurose também encerra a chave para a mitologia Senhores a psicanálise é alvo da injusta recriminação de levar a teorias pura mente psicológicas dos processos mórbidos A ênfase no papel patogênico da sexualidade que certamente não é um fator apenas psicológico já deveria protegêla dessa acusação A psicanálise jamais esquece que o psíquico se baseia no orgânico embora seu trabalho possa acompanhálo apenas até esse funda mento e não além Assim a psicanálise também se dispõe a admitir e mesmo a postular que nem todos os distúrbios funcionais da visão são psicogênicos como aqueles provocados pela repressão do prazer erótico de olhar Quando um órgão que serve aos dois tipos de instintos aumenta seu papel erógeno é de esperar em termos bem gerais que isso não ocorra sem alterações na excitabilidade e na 247316 inervação que se darão a conhecer como transtornos na função do órgão a ser viço do Eu De fato se virmos que um órgão que ordinariamente serve à per cepção sensorial se conduz francamente como um genital quando é aumentado seu papel erógeno não consideraremos improvável que também alterações tóx icas nele se verifiquem Por falta de um termo melhor teremos de conservar o velho inadequado nome de transtornos neuróticos para as duas espécies de distúrbios funcionais tanto os de origem fisiológica como os de origem tóxica que se devem a um aumento da importância erógena Os transtornos neuróticos da visão estão para aqueles psicogênicos de modo geral como as neuroses atuais para as psiconeuroses dificilmente transtornos psicogênicos da visão aparecerão sem distúrbios neuróticos mas esses poderão surgir sem aqueles Infelizmente tais sintomas neuróticos ainda são muito pouco examinados e entendidos pois não são diretamente acessíveis à psicanálise e os outros modos de investigação não consideraram o aspecto da sexualidade Há ainda outra linha de pensamento que procede da psicanálise e se estende à pesquisa orgânica Podese perguntar se a repressão de instintos sexuais parciais gerada pelas influências da vida é suficiente em si para causar os transtornos funcionais dos órgãos ou se não deveriam estar presentes condições constitu cionais especiais que antes levem os órgãos a exacerbar seu papel erógeno e assim provoquem a repressão dos instintose Teríamos de enxergar nessas condições a parte constitucional da predisposição para adoecer de transtornos psicogênicos e neuróticos Esse é o fator que em relação à histeria designei provisoriamente como complacência somática dos órgãosf 248316 a Segundo Strachey esta é a primeira vez em que Freud usa a expressão Ichtriebe instintos do Eu distinguindoos resolutamente dos Sexualtriebe instintos sexuais b Alusão aos versos finais do célebre poema Die Weltweisen Os sábios universais de Schiller c No original Reize que significa encantos atrações e também estímulos d Conforme a lenda inglesa a bela Godiva mulher do senhor de Coventry em meados do séc xi apiedouse dos vassalos oprimidos pelos impostos do marido e pediu a este que os sus pendesse Ele impôs como condição que ela percorresse as ruas de Coventry nua num cavalo coberta somente pelos longos cabelos e Embora tenhamos usado a mesma palavra repressão para traduzir os dois termos na primeira ocasião consta Unterdrückung no original e na segunda Verdrängung cf nota sobre a versão dos dois termos no v 10 destas Obras completas p 88 f Cf Fragmento da análise de um caso de histeria Caso Dora 1905 e também O debate sobre a masturbação 1912 Na primeira edição de 1910 o presente artigo terminava com a seguinte frase Os conhecidos trabalhos de Alfred Adler procuram definir esse fator em termos biológicos 249316 SOBRE PSICANÁLISE SELVAGEM 1910 TÍTULO ORIGINAL ÜBER WILDE PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ZENTRALBLATT FÜR PSYCHOANALYSE V 1 N 3 PP 915 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 11825 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNZUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 13341 Há alguns dias apresentouse em meu consultório acompanhada de uma amiga uma senhora que dizia sofrer de estados de angústia Tinha seus quarenta e tantos anos estava bem conservada e claramente ainda não renunciara à sua feminilid ade O ensejo precipitador da angústia foi a separação de seu último marido mas essa angústia conforme seu relato aumentara consideravelmente após ela con sultar um jovem médico da localidade em que vivia nos arredores de Viena pois esse lhe explicara que a causa da angústia era sua carência sexual Ela não podia se privar das relações com o marido segundo ele portanto havia apenas três caminhos para recuperar a saúde ou ela voltava para o marido ou arranjava um amante ou satisfazia a si mesma Desde então ela estava convencida de que era incurável pois para o marido não desejava voltar e os dois outros meios repug navam sua moral e sua religiosidade Procuroume porque o médico lhe havia dito que se tratava de um novo conhecimento que se devia a mim e que ela ne cessitava apenas me visitar para ter a confirmação daquilo A amiga uma senhora mais velha mirrada e de aparência não muito sadia imploroume então que asse gurasse à paciente que o médico se enganara Não podia ser verdade ela própria era viúva desde muito tempo e permanecera respeitável não sofrendo de angústia Não me deterei na difícil situação em que essa visita me colocou tentarei isto sim esclarecer a conduta do médico que a enviou Primeiramente quero lembrar uma precaução que talvez ou oxalá não seja supérflua Uma longa exper iência me ensinou como teria ensinado a qualquer outro a não tomar ime diatamente como verdadeiro o que os pacientes em especial os neuróticos re latam de seus médicos Em toda espécie de tratamento o especialista em doenças nervosas não apenas se torna facilmente o objeto de muitos dos impulsos hostis do paciente como às vezes tem de conformarse em assumir por uma espécie de projeção a responsabilidade pelos ocultos desejos reprimidos dos neuróticos É 251316 algo triste mas significativo que tais acusações achem crédito principalmente junto aos outros médicos Portanto tenho o direito de pensar que aquela senhora me fez um relato tend encioso das afirmações de seu médico e que faço uma injustiça com ele que pessoalmente não conheço ao tomar esse caso como ponto de partida para min has observações sobre psicanálise selvagema Assim fazendo no entanto eu talvez impeça outros de prejudicarem seus pacientes Vamos supor então que o médico tenha dito exatamente o que a paciente me relatou Qualquer pessoa lhe adiantará a crítica de que se um médico acha ne cessário discutir o tema da sexualidade com uma mulher tem de fazêlo com tato e discrição Ora tal exigência coincide com a observância de determinados pre ceitos técnicos da psicanálise e além do mais o médico teria ignorado ou enten dido mal uma série de teorias científicas da psicanálise mostrando que pouco avançou na compreensão de sua natureza e seus propósitos Comecemos com os últimos os erros científicos Os conselhos do médico mostram claramente em que sentido ele compreende a vida sexual naquele popular no qual se entende por necessidades sexuais apenas a necessidade do co ito ou de atos semelhantes que produzam o orgasmo e a liberação de determin adas substâncias Mas ele não pode ter ignorado que costumam fazer à psicanálise a objeção de que ela estende a noção de sexual muito além da sua amplitude ha bitual Isso é um fato se ele pode ser usado como uma objeção é algo que não discutiremos aqui O conceito de sexual abrange muito mais na psicanálise vai além do sentido popular tanto para cima como para baixo Tal ampliação se jus tifica geneticamente incluímos na vida sexual todas as manifestações de senti mentos afetuosos que provêm da fonte dos primitivos impulsos sexuais mesmo quando esses impulsos experimentaram uma inibição de sua original meta sexual ou trocaram essa por outra não mais sexual Por isso preferimos falar em 252316 psicossexualidade enfatizando que o elemento psíquico da vida sexual não deve ser esquecido nem subestimado Empregamos o termo sexualidade no mesmo sentido abrangente em que a língua alemã usa a palavra lieben amar Há muito sabemos que pode haver insatisfação psíquica com todas as suas consequências também quando não falta o intercurso sexual normal e como terapeutas sempre levamos em conta que frequentemente os impulsos sexuais insatisfeitos cujas satisfações substitutivas combatemos na forma de sintomas nervosos somente em pequena medida encontram desafogo mediante o coito e outros atos sexuais Quem não partilha essa concepção da psicossexualidade não tem o direito de invocar as teses da psicanálise que tratam da importância etiológica da sexualid ade Essa pessoa simplifica bastante o problema ao acentuar exclusivamente o fator somático na sexualidade mas a responsabilidade pelo procedimento deve ser apenas sua Outra incompreensão igualmente grave transparece nos conselhos do médico É certo que a psicanálise afirma que a insatisfação sexual é causa de tran stornos nervosos Mas ela não diz mais do que isso Pretendese deixar de lado por demasiado complexo seu ensinamento de que os sintomas nervosos nascem de um conflito entre dois poderes uma libido que geralmente se tornou exces siva e uma rejeição da sexualidade ou repressão rigorosa demais Quem não es quece esse último fator que realmente não é secundário não pode crer que a sat isfação sexual constitua em si um remédio de eficácia geral para as queixas dos neuróticos Afinal boa parte desses indivíduos é incapaz de satisfação absoluta mente ou nas circunstâncias dadas Se eles fossem capazes disso se não tivessem suas resistências internas a força do instinto lhes apontaria o caminho para a sat isfação mesmo quando o médico não aconselhasse Para que então um conselho como o que o médico teria dado à senhora 253316 Mesmo que ele se justifique cientificamente ela não tem como seguilo Caso não tivesse resistências internas à masturbação ou à relação amorosa há muito ela já teria recorrido a um desses meios Ou o médico acredita que uma mulher de mais de quarenta anos não sabe que é possível arranjar um amante ou superes tima ele de tal modo sua influência que acha que ela jamais daria um passo desses sem aprovação médica Tudo isso parece bastante claro mas devemos admitir que há um fator que muitas vezes dificulta o julgamento Vários estados nervosos tanto as assim cha madas neuroses atuais como a neurastenia típica e a pura neurose de angústia de pendem claramente do fator somático da vida sexual ao passo que não temos ainda ideia segura sobre o papel que neles desempenham o fator psíquico e a repressão Nesses casos é natural que o médico considere inicialmente uma ter apia atual uma alteração da atividade somática sexual e ele o faz com plena justi ficação se o seu diagnóstico foi correto A senhora que consultou o jovem médico queixavase principalmente de estados de angústia e provavelmente ele supôs que ela sofria de neurose de angústia sentindose justificado em lhe re comendar uma terapia somática Novamente um cômodo malentendido Quem sofre de angústia não tem necessariamente uma neurose de angústia esse dia gnóstico não deve ser tirado do nome É preciso saber que manifestações con stituem uma neurose de angústia e distinguila de outros estados patológicos em que aparece a angústia Pareceme que a senhora em questão sofria de uma his teria de angústia e todo o valor dessas distinções nosográficas aquilo que tam bém as justifica está no fato de que indicam outra etiologia e outra terapia Quem considerasse a possibilidade de uma histeria de angústia não incorreria nessa negligência dos fatores psíquicos que se mostra nas alternativas aconselha das pelo médico 254316 Curiosamente nessas alternativas terapêuticas do suposto psicanalista não so bra espaço para a psicanálise A senhora poderia se curar da angústia apenas se voltasse para o marido ou satisfazendose pela via da masturbação ou com um amante Onde ficaria o tratamento analítico em que vemos o principal recurso para os estados de angústia Com isso chegamos às falhas técnicas que percebemos na conduta do médico no caso presente Uma concepção há muito superada baseada na simples aparên cia diz que o doente sofre devido a uma espécie de ignorância e que quando re movemos essa ignorância através da informação sobre os nexos causais entre sua doença e sua vida sobre suas vivências infantis etc ele certamente se cura O fator patogênico não é a ignorância em si mas o fato de ela se fundamentar em resistências internas que inicialmente a provocaram e ainda a sustentam A tarefa da terapia é combater essas resistências Informar o que o paciente não sabe porque o reprimiu é apenas um dos preparativos necessários à terapia Se a in formação sobre o inconsciente fosse tão importante para o doente como acredit am os não iniciados na psicanálise bastaria para seu restabelecimento que ele frequentasse palestras e lesse livros Mas essas medidas têm tão pouca influência nos sintomas da doença nervosa quanto a distribuição de cardápios para os famintos numa época de fome E a comparação pode ir além pois informar ao doente acerca do inconsciente resulta via de regra em exacerbação do conflito e intensificação das dores Porém como a psicanálise não pode prescindir dessa comunicação determina que ela não suceda antes que se cumpram duas condições Primeiro antes que o paciente mesmo se avizinhe mediante preparação daquilo que foi por ele rep rimido segundo antes que tenha se apegado tanto ao médico transferência que a ligação emocional a esse torne impossível a fuga 255316 Apenas depois de cumpridas essas condições será possível conhecer e domin ar as resistências que levaram à repressão e à insciência Logo uma intervenção psicanalítica pressupõe um contato prolongado com o doente e tentativas de surpreendêlo na primeira sessão comunicandolhe abruptamente os segredos adivinhados são tecnicamente condenáveis e acarretam muitas vezes seu próprio castigo ao atrair a autêntica inimizade do paciente e impedir qualquer influência ulterior Sem considerar que às vezes o médico aconselha erradamente e jamais pode perceber tudo Na psicanálise essas prescrições técnicas definidas substituem a exigência do inapreensível tato médico que é visto como um dom especial Portanto para o médico não basta conhecer algumas conclusões da psicanál ise é preciso também familiarizarse com a técnica se quiser que sua prática médica seja guiada pelas concepções psicanalíticas Essa técnica ainda não pode ser aprendida em livros e certamente pode ser obtida apenas com grandes sacrifí cios de tempo esforço e resultados Como outras técnicas médicas o indivíduo a aprende com aqueles que já a dominam Por isso não deixa de ser relevante na avaliação do caso que tomei como ponto de partida para estas observações que eu não conheça o médico que teria dado esses conselhos nem jamais tenha ouvido seu nome Não é agradável para mim e meus amigos e colaboradores monopolizar dessa maneira a prerrogativa de exercer uma técnica médica Mas não tivemos outra escolha em face dos perigos que traz consigo para os doentes e a causa da psicanálise o previsível exercício de uma psicanálise selvagem Na primavera de fundamos uma sociedade psicanalítica internacionalb em que a lista dos mem bros se acha à disposição do público para poder rechaçar a responsabilidade pelos atos de todos aqueles que não são um dos nossos e chamam de psicanálise seu procedimento médico Pois na realidade tais psicanalistas selvagens 256316 prejudicam mais a causa do que os doentes Frequentemente observei que um desses procedimentos inábeis embora no início tenha provocado uma piora na condição do paciente acabou por leválo à recuperação Nem sempre mas com frequência Depois de xingar por algum tempo o médico e sentirse a alguma dis tância de sua influência o doente vê os sintomas cederem ou resolve dar um bom passo no caminho da cura A melhora final ocorre então por si mesma ou é at ribuída a algum tratamento anódino de um médico ao qual o paciente se dirigiu depois No caso da senhora que se queixou do médico inclinome a crer que tudo somado o psicanalista selvagem fez mais por sua cliente do que alguma prestigiosa autoridade que lhe dissesse que ela sofria de uma neurose vasomo tora Ele a fez voltar a atenção para os verdadeiros motivos de seu problema ou para as proximidades desse e apesar da revolta da paciente essa intervenção não terá ficado sem consequências positivas Mas ele prejudicou a si mesmo e con tribuiu para aumentar os preconceitos que devido a compreensíveis resistências afetivas os doentes nutrem em relação à atividade do analista E isso pode ser evitado a Selvagem tradução literal do adjetivo alemão wild que é grafado como seu equivalente inglês e como ele pode ter o sentido de desregrado irregular sentido que não é tão fre quente em português mas que se acha por exemplo na expressão capitalismo selvagem 257316 b Com minúsculas no original ein internationaler psychoanalytischer Verein Esse último termo é o mesmo empregado na designação das sociedades psicanalíticas locais Wiener de Viena Psycho analytischer Verein por exemplo Na Contribuição à história do movimento psicanalítico 1914 cap iii e na Autobiografia 1925 cap v Freud fala de Internationale Psychoanalytische Vereini gung traduzida por Associação Psicanalítica Internacional 258316 UM TIPO ESPECIAL DE OBJETO FEITA PELO HOMEM 1910 CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR I TÍTULO ORIGINAL ÜBER EINEN BESONDEREN TYPUS DER OBJEKTWAHL BEIM MANNE BEITRÄGE ZUR PSYCHOLOGIE DES LIEBESLEBENS I PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM JAHRBUCH FÜR PSYCHOANALYTISCHE UND PSYCHOPATHOLOGISCHE FORSCHUNGEN ANUÁRIO DE PESQUISAS PSICANALÍTICAS E PSICOPATOLÓGICAS V 2 N 2 PP 38997 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 6677 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 18595 Até agora deixamos que os poetas e romancistas descrevessem as condições amorosas segundo as quais as pessoas fazem sua escolha de objeto e a maneira como harmonizam as exigências da realidade com sua fantasia Eles dispõem de algumas qualidades que os habilitam a realizar essa tarefa sobretudo de sensibil idade para perceber movimentos psíquicos ocultos em outras pessoas e coragem para fazer seu próprio inconsciente falar Do ponto de vista do conhecimento porém há uma circunstância que diminui o valor do que têm a dizer Os es critores obedecem à condição de visar o prazer intelectual e estético assim como determinados efeitos emocionais por isso não podem apresentar sem mudanças o material da realidade mas têm de isolar parcelas dele excluir nexos que atrapal ham atenuar o conjunto e substituir o que falta São as prerrogativas da chamada licença poética Além disso não podem manifestar grande interesse pela ori gem e pelo desenvolvimento dos estados mentais que descrevem de forma acabada Então é inevitável que a ciência com uma mão mais pesada e menor ob tenção de prazer venha a se ocupar das mesmas matérias cuja elaboração poética deleita os seres humanos há milênios Essas observações talvez justifiquem uma abordagem estritamente científica da vida amorosa humana Pois a ciência é a mais completa renúncia do princípio do prazer que a nossa atividade psíquica é capaz de fazer No tratamento psicanalítico temos ampla oportunidade de reunir impressões da vida amorosa de pessoas neuróticas e podemos recordar já ter observado ou sa bido de comportamento semelhante também em indivíduos medianos sadios e até naqueles excepcionais Havendo acúmulo de impressões devido a um material favorável emergem mais nitidamente alguns tipos particulares É um desses tipos de escolha de objeto pelo homem que descreverei inicialmente porque se 260316 distingue por uma série de condições amorosas cuja combinação não se en tende e é mesmo de estranhar e porque admite um esclarecimento psicanalítico simples 1 A primeira dessas condições para o amor pode ser designada como real mente específica tão logo é encontrada devese aguardar a presença das outras características desse tipo É possível chamála de condição de um terceiro preju dicado consiste em que o interessado nunca toma por objeto amoroso uma mul her que esteja livre isto é solteira ou sozinha mas apenas uma mulher sobre a qual outro homem possa ter direitos como noivo marido ou namorado Tal condição mostrase tão inexorável em alguns casos que uma mulher pode ser inicialmente ignorada ou mesmo desprezada enquanto não pertence a ninguém e logo se tornar objeto de paixão ao estabelecer relação de um daqueles tipos com outro homem 2 A segunda condição é talvez menos frequente mas não menos singular Apenas quando ela se une à primeira o tipo se torna completo enquanto a primeira parece ocorrer por si só com muita frequência Esta segunda condição diz que a mulher casta e insuspeita nunca exerce o fascínio que a transforma em objeto amoroso mas apenas a mulher de alguma má fama sobre cuja fidelidade e constância paira certa dúvida Essa última característica pode variar numa gama significativa da ligeira sombra na reputação de uma esposa inclinada ao flerte até a conduta abertamente poligâmica de uma cocotte ou artista do amor mas a algo desse gênero não renunciam os que se enquadram nesse tipo Com alguma crueza podemos denominar esta condição de amor à prostituta Assim como a primeira condição dá oportunidade para satisfazer impulsos competitivos hostis em relação ao homem do qual se tira a mulher amada a se gunda a da facilidade feminina achase ligada à ativação do ciúme que parece constituir uma necessidade para os amantes desse tipo Apenas quando podem 261316 estar enciumados a paixão atinge seu ápice a mulher adquire seu inteiro valor e nunca deixam escapar a ocasião de experimentar esses fortes sentimentos Curi osamente não é para o dono legal da mulher amada que se volta este ciúme mas para novos conhecidos em relação aos quais se pode suspeitar da amada Em casos gritantes o amante não mostra nenhum desejo de ter somente para si a mulher parecendo sentirse bem no relacionamento triangular Um de meus pa cientes que sofrera terrivelmente com as escapadas de sua dama não fez ob jeções ao casamento desta mas o promoveu de todas as formas e nos anos seguintes não demonstrou nenhum ciúme do marido É verdade que outro caso típico tivera bastante ciúme do marido em seu primeiro caso amoroso e obrigara a dama a suspender as relações conjugais mas em seus numerosos relacionamen tos posteriores comportouse como os demais e não enxergou no marido legítimo um estorvo Os pontos que seguem não abordam mais as condições requeridas do objeto amoroso mas a atitude do amante para com o objeto de sua escolha 3 Na vida amorosa normal o valor da mulher é definido pela sua integridade sexual e reduzido por qualquer aproximação à característica da facilidade Parece então um notável afastamento da normalidade que as mulheres com essa carac terística sejam tratadas como objetos sexuais valiosíssimos pelos amantes deste nosso tipo As relações amorosas com tais mulheres são conduzidas mediante um elevado dispêndio psíquico até a consumição de quaisquer outros interesses elas são as únicas pessoas que podem ser amadas e a autoexigência de fidelidade é sempre renovada pelo amante por mais que possa não ser cumprida na realidade Nesses traços da relação amorosa que descrevemos se exprime bem claramente o caráter obsessivo que em certa medida é próprio de todo enamoramento Mas a fidelidade e a intensidade da ligação não devem levar à expectativa de que uma única relação desse gênero preencha a vida amorosa da pessoa ou aconteça 262316 apenas uma vez nela Ocorre isto sim que tais paixões se repetem com as mes mas peculiaridades cada uma a exata cópia da outra várias vezes na vida dos que pertencem a esse tipo e devido a condições externas como mudança de endereço e de ambiente os objetos de amor podem mesmo suceder um ao outro com tal frequência que se chega à formação de uma longa série 4 O que mais surpreende o observador nos amantes desse tipo é a tendência que manifestam de salvar a mulher amada O homem está convencido de que a amada necessita dele que sem ele perderia todo amparo moral e rapidamente desceria a um nível lamentável Então ele a salva ao não abandonála O propósito de salvamento pode justificarse em alguns casos invocando a volubil idade e a posição social ameaçada da mulher mas ele surge com igual clareza quando não existe esse apoio na realidade Um homem do tipo que descrevo que sabia conquistar suas damas com refinada sedução e sutil dialética não poupava então esforços na relação amorosa para conservar a amante do momento na via da virtude mediante tratados por ele mesmo redigidos Examinando os traços do quadro que descrevemos as condições de que a amada não seja livre e seja fácil o alto valor a ela dado a necessidade de ter ciúmes a fi delidade compatível com as substituições numa longa série e o propósito de salvamento achase pouco provável que eles derivem todos de uma única fonte No entanto o aprofundamento psicanalítico na vida das pessoas em questão rev ela que tal fonte existe Essa escolha de objeto peculiarmente determinada e a conduta amorosa singular têm a mesma origem psíquica da vida amorosa da pess oa normal vêm da fixação infantil de sentimentos ternos na mãe e representam um dos desenlaces de tal fixação Na vida amorosa normal restam poucos traços que revelam inconfundivelmente o modelo materno na escolha do objeto como por exemplo a predileção de homens jovens por mulheres maduras o 263316 desligamento da libido em relação à mãe ocorreu de modo relativamente rápido Já em nosso tipo a libido permaneceu tanto tempo na mãe mesmo após o ad vento da puberdade que nos objetos amorosos depois escolhidos ficam impressas as características maternas que todos eles se tornam substitutos maternos facil mente reconhecíveis Impõese aqui a analogia com a forma do crânio do recémnascido após um parto demorado o crânio da criança apresentará o molde da pelve da mãe Agora nos cabe tornar verossímil que os traços característicos de nosso tipo as condições para o amor e a conduta amorosa procedam realmente da con stelação materna Isto seria mais fácil no tocante à primeira condição a de que a mulher não seja livre ou de que haja um terceiro prejudicado Sem dificuldade percebemos que para a criança que se desenvolve no seio da família o fato de a mãe pertencer ao pai tornase algo indissociável da natureza materna e que a ter ceira pessoa prejudicada não é outra senão o pai Também se ajusta naturalmente ao contexto infantil o traço superestimador segundo o qual a amada é única e in substituível pois ninguém possui mais que uma mãe e a relação com ela baseia se no alicerce de um evento livre de qualquer dúvida e que não pode se repetir Se os objetos amorosos de nosso tipo devem ser substitutos da mãe acima de tudo tornase compreensível também a formação de série que parece contrariar tão diretamente a condição da fidelidade A psicanálise nos ensina também por outros exemplos que algo insubstituível que atua no inconsciente manifestase frequentemente pela decomposição numa série infinita infinita porque todo sub stituto deixa de proporcionar a satisfação desejada De modo que o insaciável gosto por perguntas presente nas crianças de certa idade se explica pelo fato de terem uma única pergunta a fazer que não chegam a expressar e assim também a garrulice de várias pessoas afetadas pela neurose vivendo sob a pressão de um 264316 segredo que pede para ser revelado e que elas não denunciam apesar de toda a tentação Já a segunda condição para o amor a da volubilidade do objeto escolhido parece contradizer energicamente uma derivação a partir do complexo materno O pensamento consciente do adulto gosta de ver a mãe como uma pessoa de inatacável pureza moral e pouca coisa é mais ofensiva quando vem de fora ou dolorosa quando surge de dentro do que a dúvida relativa a esse aspecto da mãe Mas justamente essa relação de agudo contraste entre a mãe e a mulher fácil nos estimula a investigar a história do desenvolvimento e a relação incon sciente desses dois complexos quando há muito sabemos que com frequência se acha reunido num só no inconsciente o que na consciência é dividido em opos tos A investigação nos conduz então ao período em que o garoto adquire um conhecimento maior das relações sexuais entre os adultos aproximadamente nos anos da prépuberdade Comunicações brutais francamente voltadas para o descrédito e a provocação familiarizamno com o segredo da vida sexual e destroem a autoridade dos adultos que se revela incompatível com o descobri mento de suas atividades sexuais O que nessas revelações mais afeta o iniciado é sua aplicação aos próprios pais Muitas vezes ela é diretamente rechaçada por quem a ouve em palavras como estas É possível que os teus pais e outras pess oas façam isso uma com a outra mas os meus pais não Como provável corolário ao esclarecimento sexual o menino aprende tam bém que determinadas mulheres praticam o ato sexual como ofício e por isso são alvo do desprezo de todos Ele mesmo deve estar longe de partilhar esse de sprezo olha para essas infelizes com uma mistura de anseio e horror tão logo fica sabendo que também ele pode ser iniciado por elas na vida sexual que até então lhe parecera reservada apenas aos grandes Depois não mais podendo se apegar à dúvida que tornava seus pais uma exceção às feias regras da atividade 265316 sexual diz a si mesmo com cínica coerência que a diferença entre a mãe e a prostituta não é tão grande afinal pois no fundo fazem a mesma coisa Aquelas esclarecedoras informações despertaram nele os traços mnêmicos das impressões e dos desejos de sua primeira infância e a partir deles reativaram certos impulsos psíquicos Ele começa a desejar a mãe no sentido então descoberto e a nova mente odiar o pai como o rival que põe obstáculos a esse desejo ele cai segundo costumamos dizer sob o domínio do complexo de Édipo Não perdoa isto à mãe e vê como uma infidelidade que ela tenha concedido ao pai e não a ele o favor do intercurso sexual Quando não passam rapidamente tais impulsos não têm outra saída senão esgotarse em fantasias cujo teor é a atividade sexual da mãe nas mais diversas circunstâncias e cuja tensão leva facilmente a buscar alívio na masturbação Devido à persistente atuação conjunta dos dois motivos que o impelem desejo e sede de vingança fantasias sobre a infidelidade da mãe são suas prediletas o amante com o qual ela comete a infidelidade tem quase sempre os traços do próprio Eu ou melhor de sua própria pessoa idealizada amadure cida até a idade do pai O que em outro lugar caracterizei de romance familiar1 abrange as múltiplas ramificações dessa atividade da fantasia e o seu entrelaça mento com variados interesses egoístas desse período de vida Uma vez conhecida essa parte do desenvolvimento psíquico não mais po demos achar contraditório e incompreensível que seja diretamente derivada do complexo materno a condição da volubilidade da mulher amada O tipo de amor masculino que descrevemos carrega os traços dessa evolução e pode ser enten dido como fixação nas fantasias da puberdade que depois ainda encontraram saída para a vida real Não há dificuldade em supor que a masturbação tão prat icada durante a puberdade tenha contribuído para a fixação dessas fantasias Entre essas fantasias que cresceram até dominar a vida amorosa real e a tendência a salvar a amada parece haver uma ligação apenas frouxa superficial 266316 que se esgotaria na fundamentação consciente A mulher amada corre perigo por inclinarse à inconstância e infidelidade então é compreensível que o amante se esforce em protegêla dos perigos zelando por sua virtude e contrariando seus pendores ruins No entanto o estudo das lembranças encobridoras fantasias e sonhos das pessoas mostra que temos aí uma bemsucedida racionalização de um motivo inconsciente equiparável a uma boa elaboração secundária do sonho Na realidade o tema da salvação tem história e significação próprias e é um de rivado autônomo do complexo materno ou mais precisamente do complexo par ental Quando o menino ouve que deve a vida aos pais que a mãe lhe deu a vida conjugamse nele impulsos ternos e que anseiam por grandeza e inde pendência para dar origem ao desejo de restituir aos pais esse presente de recompensálos com um de igual valor É como se a rebeldia do garoto quisesse dizer Eu não preciso de nada do meu pai quero devolver tudo o que lhe custei Ele forma então a fantasia de salvar o pai de um perigo mortal mediante a qual fica quite com ele e essa fantasia é frequentemente deslocada para o im perador o rei ou algum outro grãosenhor e após essa deformação tornase ad missível na consciência e até mesmo aproveitável para o poeta Na aplicação ao pai prevalece na fantasia de salvação o sentido desafiador enquanto à mãe se di rige geralmente o sentido carinhoso A mãe deu à criança a vida e não é fácil re tribuir com algo do mesmo valor a essa dádiva única Com ligeira mudança de significado facilitada no inconsciente e comparável ao interfluir dos conceitos na consciência a salvação da mãe adquire o significado de lhe dar ou fazer um filho naturalmente um filho como ele próprio O distanciamento do sentido ori ginal de salvar não é muito grande a mudança de significado não é arbitrária A mãe lhe deu uma vida a própria vida dele e recebe em troca uma outra vida a de uma criança que tem a maior semelhança com ele próprio O filho mostrase agradecido ao desejar ter da mãe um filho que seja igual a ele isto é na fantasia 267316 de salvação ele se identifica inteiramente com o pai Todos os impulsos Triebe os de ternura gratidão prazer desafio independência são satisfeitos mediante o desejo de ser seu próprio pai Também o fator do perigo não se perdeu na mudança de sentido pois o ato mesmo de nascer é o perigo do qual ele se salvou pelos esforços da mãe O nascimento é tanto o primeiro dos perigos da vida como o modelo de todos os outros que nos causam medo Angst e é provável que a ex periência do nascimento tenha deixado em nós a expressão de afeto a que chamamos medo Macduff o personagem da lenda escocesa que não foi parido pela mãe mas tirado de seu ventre não conhecia o medo graças a isso Artemidoro o antigo intérprete de sonhos tinha certamente razão ao afirmar que o sonho muda de sentido conforme o sonhador Segundo as leis que regem a expressão de pensamentos inconscientes salvação pode variar de significado conforme o autor da fantasia seja um homem ou uma mulher Tanto pode signifi car fazer um filho fazer com que nasça para o homem como parir um filho para a mulher Sobretudo em relação com a água podese reconhecer claramente esses varia dos sentidos da salvação nas fantasias e nos sonhos Se um homem num sonho salva uma mulher da água isto significa que faz dela uma mãe o que segundo as considerações anteriores equivale a fazer dela a sua mãe Se uma mulher salva da água outra pessoa uma criança confessa deste modo como a filha do faraó na lenda de Moisés2 ser sua genitora Ocasionalmente também a fantasia de salvação relativa ao pai tem um sen tido carinhoso Quer então expressar o desejo de ter o pai como filho isto é ter um filho que seja como o pai Devido a todos esses nexos entre o tema da sal vação e o complexo parental a tendência a salvar a amada constitui um traço es sencial do tipo de amor aqui descrito 268316 Não me parece necessário justificar meu método de trabalho que tal como na apresentação do erotismo anal visa primeiramente destacar no material de obser vação tipos extremos e claramente delimitados Nos dois casos há um número bem maior de indivíduos em que se pode constatar apenas alguns traços desse tipo ou traços pouco pronunciados sendo óbvio que uma apreciação correta dos tipos é possível apenas com a exposição de todo o contexto em que eles se acham integrados 1 O romance familiar do neurótico 1909 2 Em Otto Rank Der Mythus von der Geburt des Helden O mito do nascimento do herói 1909 2a ed 1922 269316 SOBRE A MAIS COMUM DEPRECIAÇÃO NA VIDA AMOROSA 1912 CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR II TÍTULO ORIGINAL ÜBER DIE ALLGEMEINSTE ERNIEDRIGUNG DES LIEBESLEBENS BEITRÄGE ZUR PSYCHOLOGIE DES LIEBESLEBENS II PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM JAHRBUCH FÜR PSYCHOANALYTISCHE UND PSYCHOPATHOLOGISCHE FORSCHUNGEN ANUÁRIO DE PESQUISAS PSICANALÍTICAS E PSICOPATOLÓGICAS V 4 N 1 PP 4050 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE VIII PP 7891 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 197209 I Quando o psicanalista se pergunta por qual motivo ele é mais procurado tem de responder não considerando as muitas formas de angústia que é por causa da impotência psíquica Esse peculiar transtorno atinge homens de natureza in tensamente libidinosa e se manifesta no fato de que os órgãos executivos da sexu alidade se recusam a perfazer o ato sexual embora antes e depois se revelem in tactos e capazes e embora exista uma forte inclinação psíquica à realização do ato O primeiro indício para compreender seu estado é fornecido pelo doente mesmo ao notar que esse fracasso ocorre apenas com determinadas pessoas não se apresentando jamais com outras Ele sabe então que a inibição de sua potên cia viril vem de uma característica do objeto sexual e às vezes conta que sente um obstáculo dentro de si percebe uma vontade contrária que tem êxito em perturb ar a intenção consciente Mas não pode descobrir que obstáculo interior é esse e qual característica do objeto sexual o torna operante Se experimentou repetida mente esse fracasso julgará talvez fazendo uma conexão sabidamente errada que a lembrança da primeira vez sendo uma perturbadora representação angus tiosa produziu as repetições essa primeira vez porém ele a atribui a uma im pressão casual Estudos psicanalíticos sobre a impotência psíquica já foram feitos e publica dos por diversos autores Cada analista pode confirmar pela própria experiência clínica as explicações que neles aparecem Tratase realmente do efeito inibidor de certos complexos psíquicos que se furtam ao conhecimento do indivíduo 271316 Como teor mais comum desse material patogênico destacase a fixação incestu osa nunca superada na mãe e na irmã Além disso há que considerar a influência de impressões penosas acidentais ligadas à atividade sexual infantil e os fatores que de forma geral diminuem a libido a ser dirigida ao objeto sexual feminino Submetendo casos gritantes de impotência psíquica a um estudo aprofundado mediante a psicanálise chegase à informação seguinte sobre os processos psicos sexuais que neles atuam O fundamento da doença é de novo como em todos os distúrbios neuróticos provavelmente uma inibição no desenvolvimento da libido antes de ela tomar a configuração definitiva que se chama de normal Não se juntaram duas correntes cuja união é imprescindível para uma atitude inteira mente normal no amor duas correntes que podemos caracterizar como a terna e a sensual A corrente terna é a mais antiga das duas Ela vem dos primeiros anos da infância formouse com base nos interesses do instinto de autoconservação e se dirige às pessoas da família e aos que cuidam da criança Desde o início recebeu contribuições dos instintos sexuais componentes de interesse erótico que já na infância aparecem com nitidez maior ou menor e que nos neuróticos se revelam em todos os casos mediante a psicanálise posterior Ela corresponde à escolha de objeto infantil primária Por ela vemos que os instintos sexuais acham seus primeiros objetos apoiandose nas avaliações dos instintos do Eu exatamente como as primeiras satisfações sexuais são experimentadas apoiandose nas fun ções corporais necessárias à conservação da vida O carinho dos pais e pessoas que cuidam da criança que raramente nega sua natureza erótica a criança é um brinquedo erótico ajuda bastante a elevar na criança as contribuições do erot ismo aos investimentos dos instintos do Eu levandoas a uma medida que terá de ser considerada no desenvolvimento posterior sobretudo quando algumas outras circunstâncias concorrem para isso 272316 Tais fixações ternas da criança continuam através da infância e sempre incor poram erotismo que assim é desviado de suas metas sexuais Na época da puber dade sobrevém a poderosa corrente sensual que já não ignora suas metas Ao que parece ela nunca deixa de seguir os caminhos anteriores e de investir os ob jetos da escolha infantil primária com montantes de libido bem mais intensos Mas como vai de encontro aos obstáculos erguidos nesse meiotempo pela bar reira do incesto envidará esforços para logo transitar desses objetos impróprios na realidade para outros desconhecidos com os quais seja possível uma vida sexual real Esses novos objetos ainda serão escolhidos segundo o modelo a imago daqueles infantis mas com o tempo atrairão para si a ternura que se ligava aos primeiros O homem deixará pai e mãe conforme o preceito bíblico e se apegará à mulher ternura e sensualidade ficarão unidas O grau máximo de paixão sensual acarretará o máximo de valoração psíquica A superestimação do objeto sexual normal no homem Dois fatores serão decisivos para o malogro desse avanço no desenvolvi mento da libido Primeiro a medida de real frustração que se opõe à nova escolha de objeto e a desvaloriza para o indivíduo Pois não tem sentido voltarse para a escolha de objeto quando não se pode escolher ou não há perspectiva de escolher algo satisfatório Em segundo lugar há a medida de atração que os objetos infant is a serem abandonados podem exercer proporcional ao investimento erótico que lhes foi concedido na infância Sendo esses dois fatores suficientemente fortes o mecanismo geral de formação das neuroses entra em operação A libido se afasta da realidade é tomada pela fantasia introversão reforça as imagens dos primeiros objetos sexuais fixase neles Mas o obstáculo ao incesto obriga a li bido voltada para esses objetos a permanecer no inconsciente A ocupação em atos onanistas por parte da corrente sensual que agora é parte do inconsciente contribui para reforçar tal fixação Nada muda nesse estado de coisas se então é 273316 realizado na fantasia o que malogrou na realidade se nas situações fantasiosas conducentes à satisfação onanista os objetos sexuais originais são substituídos por outros As fantasias se tornam com essa substituição capazes de chegar à con sciência e nenhum progresso se efetua na real alocação da libido Desse modo pode ocorrer que toda a sensualidade de um jovem seja ligada no inconsciente a objetos incestuosos ou como também podemos dizer seja fixada em fantasias inconscientes incestuosas O resultado é então uma absoluta impot ência que talvez seja ainda confirmada pela efetiva debilitação verificada simul taneamente dos órgãos que perfazem o ato sexual A instauração da impotência psíquica propriamente dita requer condições menos severas A corrente sensual não pode sofrer o destino de ter de ocultarse toda por trás da corrente terna é preciso que tenha permanecido forte ou desini bida o bastante para obter em parte o acesso à realidade Mas a atividade sexual dessas pessoas faz perceber por indícios bem claros que não tem o respaldo de toda a energia instintual da psiquea Ela é caprichosa facilmente perturbável fre quentemente incorreta na atuação e de escasso prazer Acima de tudo porém ela precisa evitar a corrente terna Produziuse portanto uma limitação na escolha do objeto A corrente sensual que permaneceu ativa busca apenas objetos que não lembrem as pessoas incestuosas proibidas quando uma pessoa faz uma impressão que pode conduzir a uma elevada apreciação psíquica isto não resulta em excit ação da sensualidade mas em ternura ineficaz eroticamente A vida amorosa de tais pessoas fica cindida em duas direções que a arte personifica em amor celesti al e amor terreno ou animal Quando amam não desejam e quando desejam não podem amar Buscam objetos que não necessitam amar a fim de manter sua sensualidade longe dos objetos amados e o estranho fracasso da impotência psíquica surge conforme as leis da sensibilidade do complexob e do retorno 274316 do reprimido quando o objeto escolhido para escapar ao incesto recorda num traço às vezes insignificante o objeto a ser evitado Para protegerse desse distúrbio o principal meio de que alguém se vale nesta cisão amorosa é a depreciação psíquica do objeto sexual enquanto é reservada para o objeto incestuoso e seus representantes a superestimação que normalmente cabe ao objeto sexual Tão logo é atendida a condição da depreciação a sensual idade pode manifestarse livremente com significativa atividade sexual e elevado prazer Para esse resultado também contribui outro elemento Pessoas nas quais a corrente carinhosa e a sensual não confluíram devidamente têm em geral uma vida amorosa pouco refinada nelas se conservaram metas sexuais pervertidas cujo não cumprimento é tido como sensível perda de prazer mas cujo cumprimento parece possível apenas com um objeto sexual depreciado menosprezado Agora vêm a ser compreensíveis nos seus motivos as fantasias de garotos mencionadas na primeira Contribuição que rebaixam a mãe ao nível de mulh er fácil Constituem esforços de ao menos na fantasia fechar o abismo entre as duas correntes da vida amorosa de ganhar a mãe como objeto de sensualidade pela depreciação II 275316 Até o momento nos ocupamos de uma investigação médicopsicológica da im potência psíquica algo que o título deste ensaio não justifica Mas logo se verá que necessitávamos dessa introdução para chegar ao nosso verdadeiro tema Reduzimos a impotência psíquica à não convergência das correntes terna e sensual na vida amorosa e explicamos tal inibição no desenvolvimento pelas in fluências das fortes fixações infantis e da posterior frustração na realidade com a interferência da barreira do incesto A essa teoria podese fazer uma objeção sobretudo ela é excessiva ela nos explica por que determinadas pessoas sofrem de impotência psíquica mas faz parecer enigmático que outras possam escapar a este sofrimento Como todos os fatores claros e considerados a intensa fixação infantil a barreira do incesto e a frustração nos anos de desenvolvimento após a puberdade podem ser encontrados em praticamente todo indivíduo civilizado seria justo esperar que a impotência psíquica seja um mal comum na civilização em vez da doença de algumas pessoas Seria tentador fugir a esta conclusão indicando o fator quantitativo nas causas da doença a maior ou menor contribuição dos vários elementos que determinam se surge ou não uma doença reconhecível Mas embora eu admita essa resposta como correta não tenho a intenção de por isso rejeitar a conclusão mesma Pelo contrário sustentarei que a impotência psíquica é bem mais difundida do que se crê e que certa medida dessa conduta caracteriza realmente a vida amorosa do homem civilizado Se ampliamos o conceito de impotência psíquica não mais o limitando ao fra casso no coito quando há a intenção de obter prazer e o aparelho genital se acha intacto ele pode abranger também todos os homens designados como psicanestésicos que nunca fracassam no ato mas o realizam sem prazer espe cial algo mais comum do que se pensa A investigação psicanalítica desses casos revela os mesmos fatores etiológicos que achamos na impotência psíquica 276316 em sentido restrito sem poder inicialmente explicar as diferenças sintomáticas Uma analogia facilmente justificável nos leva dos homens anestésicos às mul heres frígidas cuja conduta no amor não pode realmente ser descrita ou enten dida melhor do que através da comparação com a mais clamorosa impot ência psíquica do homem1 No entanto se não cuidarmos de uma ampliação do conceito de impotência psíquica mas das gradações de sua sintomatologia não poderemos fugir à per cepção de que o comportamento amoroso do homem no mundo civilizado de hoje traz geralmente a marca da impotência psíquica Em poucas das pessoas cul tivadas as correntes terna e sensual se acham apropriadamente fundidas quase sempre o homem se sente limitado pelo respeito ante a mulher em sua atividade sexual e somente desenvolve a plena potência quando tem diante de si um objeto sexual depreciado o que é causado entre outras coisas pela participação de com ponentes perversos em suas metas sexuais que ele não ousa satisfazer com a mul her respeitada Um pleno gozo sexual lhe é dado apenas quando pode entregarse à satisfação sem escrúpulos o que não se arrisca a fazer com sua morigerada es posa Daí vem então sua necessidade de um objeto sexual depreciado de uma mulher eticamente inferior a que ele não precise atribuir escrúpulos estéticos que não o conheça nem possa julgálo em suas outras relações sociais A uma mulher assim ele prefere dedicar sua energia sexual ainda que sua ternura per tença a outra de nível mais alto É possível que também a inclinação muito ob servada entre homens das classes altas de tomar por amante ou mesmo por es posa uma mulher de condição baixa não seja senão consequência da necessidade de um objeto sexual depreciado ao qual se liga psicologicamente a possibilidade da plena satisfação Não hesito em responsabilizar também os dois fatores atuantes na impotência psíquica propriamente dita a intensa fixação incestuosa da infância e a frustração 277316 real da época da adolescência por essa conduta tão frequente na vida amorosa dos homens civilizados Ainda que soe pouco agradável e mesmo paradoxal devese dizer que para ser realmente livre e feliz no amor é preciso haver super ado o respeito ante a mulher haver se familiarizado com a ideia do incesto com a mãe ou a irmã Quem diante de tal exigência submeterse a um sério autoexame certamente descobrirá que no fundo vê o ato sexual como algo degradante que macula e polui não apenas o corpo A gênese desta valoração que o indivíduo não confessa de bom grado ele encontrará apenas naquele período da juventude em que sua corrente sensual já estava bastante desenvolvida mas a satisfação dela com um objeto fora da família era quase tão proibida quanto com um objeto incestuoso Em nossa cultura as mulheres se acham sob um semelhante efeito de sua edu cação e além disso sob o reflexo da conduta dos homens Naturalmente para elas é tão desfavorável que o homem não as aborde em sua plena potência como que a superestimação inicial da paixão dê lugar ao menosprezo após a posse Quase não se nota na mulher a necessidade de depreciar o objeto sexual isto se relaciona sem dúvida com o fato de normalmente ela não apresentar algo semel hante à superestimação sexual encontrada no homem Mas o longo afastamento da sexualidade e o confinamento da sensualidade na fantasia têm para ela outra consequência importante Ela frequentemente não pode mais desfazer o laço entre atividade sensual e proibição e mostrase psicologicamente impotente isto é frígida quando essa atividade lhe é enfim permitida Vem daí o esforço de muitas mulheres em manter secretas por algum tempo mesmo as relações lícitas e a capacidade de outras terem sensações normais tão logo se restabelece a con dição da proibição num caso amoroso secreto infiéis ao marido podem guardar ao amante uma fidelidade de segunda ordem 278316 Penso que a condição de proibido na vida amorosa da mulher deve ser equiparada à necessidade de depreciação do objeto sexual por parte do homem Ambas são consequência do longo intervalo entre maturação sexual e atividade sexual requerido pela educação por razões culturais Ambas procuram eliminar a impotência psíquica resultante da não convergência de impulsos ternos e sen suais Se as mesmas causas têm efeitos tão diversos no homem e na mulher isto se deve talvez a outra diferença na conduta dos dois sexos A mulher civilizada costuma não transgredir a proibição no período da espera e desse modo adquire o íntimo nexo entre sexualidade e proibição Geralmente o homem infringe esta proibição sob condição de depreciar o objeto e por isso leva tal condição para sua vida amorosa posterior Em vista do empenho por uma reforma na vida sexual tão intenso na cultura de hoje não seria supérfluo lembrar que a investigação psicanalítica como toda pesquisa é alheia a qualquer tendência Ela pretende tão só descobrir nexos rela cionando o que é manifesto ao que se acha oculto Ela estará de acordo se as re formas utilizarem suas averiguações para trocar o que é prejudicial pelo que for vantajoso Mas não pode predizer se outras instituições não acarretarão outros sacrifícios talvez mais graves III 279316 O fato de a restrição cultural da vida amorosa acarretar uma depreciação geral dos objetos sexuais talvez nos convide a retirar nossa atenção dos objetos e voltá la para os instintos mesmos O dano causado pela frustração inicial do prazer sexual se exprime no fato de sua posterior liberação no casamento não trazer mais uma plena satisfação Mas também a irrestrita liberdade sexual desde o início não conduz a um resultado melhor É fácil constatar que o valor psíquico da necessid ade amorosa cai imediatamente tão logo a sua satisfação se torna cômoda É pre ciso um obstáculo para impulsionar a libido para o alto e quando as resistências naturais à satisfação não bastam em todas as épocas as pessoas introduziram res istências convencionais a fim de poder fruir o amor Isso vale para indivíduos e para povos Em períodos em que a satisfação amorosa não encontrou di ficuldades como durante o declínio da Antiguidade o amor ficou sem valor a vida tornouse vazia e foram necessárias poderosas formações reativas para restabelecer os indispensáveis valores afetivos Quanto a isso podese afirmar que a corrente ascética do cristianismo criou para o amor valorizações psíquicas que a cultura pagã dos antigos nunca pôde lhe dar Ela atingiu seu maior signific ado com os monges ascéticos cuja vida consistia quase exclusivamente em lutar contra a tentação libidinal Num primeiro momento nos inclinamos a relacionar as dificuldades que aqui aparecem a características gerais de nossos instintos orgânicos Sem dúvida é também correto em geral que a importância psíquica de um instinto cresce com a sua frustração Experimentese deixar que certo número de indivíduos os mais variados passe fome igualmente Com a exacerbação da imperiosa necessidade de alimento todas as diferenças individuais se apagam e em seu lugar surgem as manifestações uniformes do instinto não saciado Mas é também certo que com a satisfação de um instinto cai geralmente o seu valor psíquico Recordese por exemplo a relação que uma pessoa que bebe mantém com o vinho Não é fato 280316 que o vinho proporciona ao bebedor a mesma satisfação tóxica que frequente mente a poesia comparou à erótica comparação que também do ponto de vista científico pode ser feita Já se ouviu falar de um bebedor obrigado a mudar con stantemente de bebida porque logo já não lhe agrada a habitual Pelo contrário o hábito estreita cada vez mais a ligação entre um homem e o tipo de vinho que ele bebe Sabese de algum bebedor que sentiu necessidade de ir para um país em que o vinho seja mais caro ou seja proibido para reavivar interpondo essas di ficuldades a sua satisfação em declínio Absolutamente Se ouvimos as de clarações de nossos grandes alcoólatras Böcklin por exemplo2 sobre sua relação com o vinho elas parecem indicar uma perfeita harmonia um modelo de casamento feliz Por que é tão diferente a relação entre o amante e o seu objeto sexual Acho que devemos levar em conta por mais estranho que pareça a possibil idade de que algo na natureza do próprio instinto sexual não seja favorável à plena satisfação No longo e difícil desenvolvimento do instinto destacamse de imediato dois fatores que poderiam ser responsáveis por tal dificuldade Em primeiro lugar graças ao duplo encetamento da escolha de objeto com inter posição da barreira ao incesto o objeto definitivo do instinto sexual nunca mais é o original mas apenas um substituto dele Mas a psicanálise nos ensina que quando o objeto original de um desejo é perdido em consequência da repressão frequentemente ele é representado por uma série interminável de objetos substi tutos nenhum dos quais chega a satisfazer plenamente Isso talvez explique a in constância na escolha de objeto a fome de estímulos que caracteriza tão fre quentemente a vida amorosa dos adultos Em segundo lugar sabemos que o instinto sexual decompõese inicialmente numa grande série de elementos melhor nasce deles dos quais nem todos podem ser acolhidos em sua configuração posterior tendo que ser antes 281316 suprimidos ou empregados de outra maneira Sobretudo os elementos instintuais coprófilos demonstraram ser incompatíveis com a nossa cultura estética provavelmente depois que adotando a postura ereta afastamos da terra o nosso órgão olfativo assim também com boa parcela dos impulsos sádicos que fazem parte da vida amorosa Mas todos esses processos de desenvolvimento dizem re speito somente às camadas superiores da complicada estrutura Os processos fun damentais que produzem a excitação amorosa ficam inalterados O excremental se acha íntima e inseparavelmente unido ao sexual a posição dos genitais inter urinas et faeces permanece o fator determinante e imutável Podese dizer modificando uma conhecida frase do grande Napoleão que Anatomia é des tino Os genitais mesmos não acompanharam o desenvolvimento das formas do corpo humano em direção à beleza continuaram animalescos e também o amor permaneceu no fundo tão animal como sempre foi Os instintos amorosos são difíceis de educar a sua educação ora obtém muito pouco ora demasiado Aquilo que a cultura pretende fazer deles não parece atingível sem considerável perda de prazer a persistência dos impulsos não aproveitados se expressa na atividade sexual como insatisfação De modo que deveríamos talvez nos habituar à ideia de que uma conciliação das exigências do instinto sexual com os reclamos da cultura não é possível de que não podem ser evitados a renúncia e o sofrimento assim como num futuro remoto o perigo de extinção da espécie humana em consequência de sua evolução cultural Este sombrio prognóstico baseiase é verdade apenas na con jectura de que a insatisfação cultural é a consequência necessária de certas peculi aridades que o instinto sexual adquiriu sob a pressão da cultura Mas a própria in capacidade de o instinto sexual produzir plena satisfação tão logo se submete às primeiras exigências da cultura tornase fonte das mais grandiosas realizações culturais obtidas através da sublimação cada vez maior de seus componentes 282316 instintuais Pois que motivo teriam os homens para dar outras aplicações às ener gias instintuais sexuais se delas resultasse por qualquer distribuição plena satis fação do prazer Eles nunca abandonariam tal prazer e não realizariam mais nen hum progresso Parece então que a diferença inconciliável entre as reivin dicações dos dois instintos o sexual e o egoísta torna os homens capazes de realizações cada vez mais altas é certo que sob uma constante ameaça à qual atu almente sucumbem os mais fracos na forma da neurose A ciência não tem o propósito de atemorizar nem de consolar Mas eu próprio admito de bom grado que conclusões de tão largo alcance como essas deveriam repousar sobre bases mais amplas e que talvez outros desenvolvimentos da hu manidade possam corrigir o resultado desses que aqui abordamos isoladamente 1 Mas devese admitir que a frigidez da mulher é um tema complexo que pode ser abordado tam bém de outro ângulo Mas devese admitir que a frigidez da mulher é um tema complexo que pode ser abordado também de outro ângulo 2 G Floerke Zehn Jahre mit Böcklin Dez anos com Böcklin 2a ed 1902 p 16 Arnold Böck lin182791 pintor suíço a No original die volle psychische Triebkraft Esse último termo significa normalmente força mo triz assim é encontrado nos dicionários bilíngues alemãoportuguês As versões estrangeiras consultadas empregam la plena energía instintiva psíquica la íntegra fuerza pulsional psíquica la piena forza motrice psichica the whole psychical driving force of the instinct 283316 b Uma nota de James Strachey informa que a expressão foi tomada das experiências de Jung com associação de palavras 284316 O TABU DA VIRGINDADE 1917 CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR III TÍTULO ORIGINAL DAS TABU DER VIRGINITÄT COMUNICAÇÃO À SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE VIENA 12 DE DEZEMBRO DE 1917 PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM SAMMLUNG KLEINER SCHRIFTEN ZUR NEUROSENLEHRE PEQUENOS TEXTOS SOBRE TEORIA DAS NEUROSES VIENA 1918 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XII PP 159180 PP 128211 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 21128 Entre as peculiaridades da vida sexual dos povos primitivos poucas são tão sur preendentes para a nossa sensibilidade como a sua atitude ante a virgindade da mulher A valorização da virgindade por parte do homem que faz a corte parecenos algo tão firme e evidente que quase ficamos perplexos ao ter que fun damentar esse juízo A exigência de que a moça não traga para o casamento com um homem a lembrança do comércio sexual com outro homem não passa afinal da continuação lógica do exclusivo direito de posse sobre uma mulher que con stitui a essência da monogamia a ampliação desse monopólio ao passado Então não nos é difícil explicar a partir de nossas concepções sobre a vida amorosa da mulher o que antes parecia um preconceito Quem é o primeiro a satisfazer a ânsia de amor trabalhosamente contida por largo tempo de uma donzela superando as resistências que nela se formaram por influência do meio e da educação tornase aquele com o qual ela forma uma relação duradoura não mais possível para nenhum outro Com base nessa experiência produzse na mulher um estado de sujeição que garante o calmo prosseguimento da posse e que a torna capaz de resistir a novas impressões e desconhecidas tentações A expressão servidão sexual foi utilizada por KrafftEbing em 18921 para designação do fato de que uma pessoa pode adquirir um extraordinário grau de dependência em relação a outra com a qual tem relacionamento sexual Pode acontecer que esta servidão vá muito longe até a perda de toda vontade autônoma e a tolerância dos maiores sacrifícios do próprio interesse mas o autor não deixa de observar que um determinado grau dessa dependência é realmente necessário se a ligação for durar um certo tempo Alguma medida de servidão sexual é de fato imprescindível para a manutenção do casamento civilizado e para a detenção das tendências polígamas que o ameaçam e em nossa comunid ade esse fator é normalmente levado em conta 286316 Um grau incomum de enamoramento e fraqueza de caráter de um lado e ilimitado egoísmo do outro é dessa conjunção que KrafftEbbing deriva a gênese da servidão sexual Mas a experiência analítica não permite que nos con tentemos com esta singela tentativa de explicação Podese perceber isto sim que a magnitude da resistência sexual superada é o fator decisivo e também o fato de a superação acontecer de forma concentrada e somente uma vez Em con formidade a isso a sujeição é muito mais frequente e intensa na mulher do que no homem embora neste seja mais frequente agora do que na Antiguidade Quando pudemos estudar a servidão sexual nos homens ela demonstrou ser consequência da superação de uma impotência psíquica por obra e graça de uma mulher à qual o homem permaneceu então ligado Muitos matrimônios surpreendentes e mais de um destino trágico até mesmo de amplas consequências parecem ter explicação nessa origem Não se descreve corretamente a conduta dos povos primitivos quando se afirma que eles não atribuem valor à virgindade e se aduz como prova disso o fato de consumarem a defloração da menina fora do casamento e antes do primeiro intercurso matrimonial Parece ao contrário que também para eles a defloração é um ato significativo mas veio a ser objeto de um tabu de uma proibição que chamaríamos de religiosa Em vez de reservála para o noivo e fu turo esposo da menina o costume exige que ele evite esta ação2 Está fora de meu escopo reunir cabalmente as provas da existência dessa proibição tradicional acompanhar a sua difusão geográfica e enumerar todas as formas em que se manifesta Limitome à constatação de que é bastante difun dida entre os povos primitivos de hoje tal ruptura do hímen fora do matrimônio subsequente Eis o que diz Crawley This marriage ceremony consists in perfora tion of the hymen by some appointed person other than the husband it is most common in the lowest stages of culture especially in Australia Esta cerimônia de casamento 287316 consiste na perfuração do hímen por uma pessoa indicada que não seja o marido é bastante comum nos estágios mais baixos da cultura especialmente na Austrália Mas quando a defloração não ocorre no primeiro ato matrimonial tem de ser realizada antes de alguma maneira e por alguma pessoa Citarei outras passagens do livro de Crawley que informam sobre esse ponto e que também nos dão en sejo para algumas observações críticas P 191 Assim entre os dieris e tribos vizinhas é costume universal quando a garota chega à puberdade romper o hímen Nas tribos de Portland e Glenelg isso é feito por uma velha senhora e às vezes por esse motivo homens bran cos são solicitados a deflorar meninas3 P 307 Às vezes a ruptura artificial do hímen ocorre na infância em geral porém na puberdade Frequentemente é combinada como sucede na Austrália com um ato cerimonial de intercurso4 P 348 A respeito de tribos australianas em que se acham as conhecidas re strições matrimoniais exogâmicas segundo comunicam Spencer e Gillen O hímen é perfurado artificialmente e os homens presentes têm acesso cerimo nial seja notado à garota em determinada ordem O ato acontece em duas partes perfuração e intercurso5 P 349 Entre os masais na África Equatorial o empreendimento dessa op eração na menina é uma importante preliminar do casamento Entre os sakais Malaia battas Sumatra e entre os alfoers de Celebesaa defloração é realiz ada pelo pai da noiva Nas Filipinas havia certos homens cuja profissão era deflorar noivas no caso de o hímen não ter sido rompido na infância por uma velha senhora às vezes empregada para isso Em algumas tribos esquimós a defloração da noiva era atribuição do angekok o sacerdote6 288316 As observações que anunciei referemse a dois pontos Primeiro é lamentável que nesses relatos não se tenha maior cuidado em distinguir entre a mera destru ição do hímen sem coito e o coito com a finalidade dessa destruição Apenas em um trecho vimos expressamente que a operação consiste em dois atos na deflor ação manual ou instrumental e na cópula subsequente O material de Ploss e Bartels tão rico em outros aspectos tem pouca utilidade para o nosso objetivo pois em sua exposição avulta o resultado anatômico do ato da defloração em det rimento da importância psicológica Em segundo lugar gostaríamos de saber o que diferencia o coito cerimonial puramente formal solene oficial que acontece em tais ocasiões do ato sexual regular Os autores que consultei tinham demasiado pudor em escrever sobre isso ou subestimaram uma vez mais a im portância psicológica desses detalhes sexuais Esperamos que os relatos originais dos viajantes e missionários sejam mais completos e inequívocos mas com a presente inacessibilidade da maior parte da bibliografia que é em língua es trangeira nada posso dizer de seguro a respeito dissob Podemos contornar a dúvida relativa a esse segundo ponto aliás considerando que um pseudocoito cerimonial representaria o substituto e talvez tomasse inteiramente o lugar de um plenamente consumado em tempos remotos 7 Para explicar esse tabu da virgindade podese recorrer a vários fatores que apreciarei rapidamente Na de floração de uma menina em geral é derramado sangue a primeira tentativa de explicação pois baseiase no temor dos primitivos ao sangue para eles a sede da vida Esse tabu do sangue é demonstrado por muitos preceitos que nada têm a ver com a sexualidade e ligase claramente à proibição de matar constitui uma me dida protetora contra a avidez de sangue dos primórdios o prazer de matar dos primeiros homens Nesta concepção o tabu da virgindade é relacionado ao tabu da menstruação observado quase sem exceções O primitivo não pode manter afastado de ideias sádicas o enigmático fenômeno do fluxo de sangue mensal A 289316 menstruação sobretudo a primeira é por ele interpretada como a mordida de um bicho espectral talvez como indício de relacionamento sexual com esse espírito Ocasionalmente algum relato permite reconhecer nesse espírito aquele de um antepassado e então compreendemos apoiandonos em outras percepções8 que a menina menstruada enquanto propriedade desse espírito ancestral seja tabu Por outro lado somos advertidos a não superestimar a influência de um fator como o horror ao sangue Afinal este não pôde suprimir costumes como a cir cuncisão do menino e aquele ainda mais cruel praticado nas meninas excisão do clitóris e dos pequenos lábios que vigoram parcialmente nesses povos nem ab olir outras cerimônias em que é derramado sangue Logo não seria de estranhar que ele fosse superado em benefício do marido na primeira coabitação Uma segunda explicação também prescinde do elemento sexual mas é de al cance muito mais geral Ela diz que o primitivo está à mercê de uma permanente disposição à angústia tal como afirmamos na teoria psicanalítica daqueles que sofrem de neurose de angústia Essa disposição à angústia se apresentará mais fortemente nas ocasiões que de algum modo desviamse do habitual que trazem consigo algo novo inesperado incompreendido inquietante Daí também pro cede o cerimonial bastante presente nas religiões posteriores relacionado ao começo de toda nova empresa ao início de cada estação aos primeiros frutos da vida humana animal e vegetal Os perigos de que o homem angustiado se crê ameaçado nunca aparecem mais fortes na sua expectativa do que no início da situação perigosa e apenas então é adequado protegerse deles Não há dúvida de que o primeiro ato sexual no casamento requer por seu significado ser precedido por tais medidas acauteladoras As duas tentativas de explicação a do horror ao sangue e a da angústia dos primeiros frutos não contradizem mas sim reforçam uma à outra O primeiro ato sexual é certamente um ato considerável tanto mais se faz verter sangue 290316 Uma terceira explicação a preferida de Crawley pede atenção para o fato de que o tabu da virgindade é parte de um contexto imenso que abrange toda a vida sexual Não apenas a primeira relação com a mulher é tabu mas o próprio ato sexual quase poderíamos dizer que a mulher é toda tabu Ela não só é tabu nas situações especiais que decorrem de sua vida sexual na menstruação na gravidez no parto e puerpério também fora delas o trato com a mulher está sujeito a tão sérias e numerosas limitações que temos toda razão em duvidar da suposta liberdade sexual dos selvagens É verdade que em determinadas ocasiões a sexualidade dos primitivos extrapola toda inibição de ordinário no entanto ela parece mais vigorosamente coartada por proibições do que nos está gios de cultura mais elevados Se o homem empreende algo especial uma ex pedição uma caçada uma incursão guerreira tem de manterse longe da mulher sobretudo do ato sexual com a mulher de outro modo sua força ficaria paralis ada e ele atrairia o fracasso Também nos usos cotidianos há uma inconfundível tendência a manter os sexos à parte Mulheres vivem com mulheres homens com homens dificilmente haverá em muitas tribos primitivas uma vida familiar no sentido que conhecemos Às vezes a separação vai ao ponto de não se permitir a um sexo pronunciar os nomes próprios do outro de as mulheres desenvolverem uma linguagem com vocabulário particular A necessidade sexual pode sempre tornar a romper essas barreiras mas em algumas tribos até os encontros dos es posos têm de ocorrer fora da casa e em segredo Ali onde o primitivo ergueu um tabu é porque teme o perigo e não se pode negar que um temor básico ante a mulher se exprime em todos esses preceitos para evitála Talvez ele se fundamente no fato de a mulher ser algo diferente do homem eternamente incompreensível e misteriosa estranha e por isso apar entemente hostil O homem teme ser debilitado pela mulher ser contagiado por sua feminilidade e então mostrarse incapaz O efeito relaxante e dissolvedor de 291316 tensões que tem o coito talvez seja exemplar para esse temor e a percepção da influência que a mulher adquire sobre o homem através do ato sexual a consider ação que ela assim obtém talvez explique a difusão desse temor Em tudo isso não há nada que tenha envelhecido nada que não perdure entre nós Muitos observadores dos primitivos atuais julgam que seus impulsos eróticos são relativamente fracos e nunca atingem as intensidades que nos acostumamos a ver no homem civilizado Outros contradizem tal avaliação mas de todo modo os tabus enumerados demonstram a existência de um poder que os opõe ao amor ao rejeitar a mulher como estranha e hostil Em palavras que pouco se diferenciam da terminologia habitual da psicanál ise Crawley afirma que cada indivíduo separase dos outros mediante um taboo of personal isolation e que justamente as pequeninas diferenças dentro da semel hança geral motivam os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles Seria tentador perseguir essa ideia e derivar desse narcisismo das pequenas difer enças a hostilidade que em todas as relações humanas combate vitoriosamente os sentimentos de solidariedade e sobrepuja o mandamento de amor ao próximo Ao atentar para o complexo da castração e sua influência no juízo que se faz da mulher a psicanálise acredita haver apreendido boa parte do que fundamenta a rejeição da mulher pelo homem narcísica e bastante entremeada com menosprezo Notamos porém que essas últimas considerações nos levaram muito além do nosso tema O tabu geral da mulher não lança nenhuma luz sobre os preceitos particulares relativos ao primeiro ato sexual com uma virgem Nisso per manecemos limitados às duas primeiras explicações do temor ao sangue e do temor à primeira ocasião e mesmo delas é preciso dizer que não tocam o cerne do tabu em questão Na base deste achase evidentemente a intenção de negar ou poupar ao futuro esposo algo que não pode ser separado do primeiro ato sexual 292316 embora dessa mesma relação conforme a observação inicial que fizemos devesse resultar uma ligação especial da mulher com esse homem Não é nossa tarefa aqui abordar a origem e o derradeiro significado dos pre ceitos do tabu Fiz isso na minha obra Totem e tabu na qual considerei a ambival ência original na determinação do tabu e sustentei a gênese deste nos eventos pré históricos que levaram à fundação da família humana Já não se pode reconhecer nos tabus dos primitivos de hoje tal significado anterior Esquecemos facilmente com tal expectativa que também os povos mais primitivos vivem numa cultura bem distante daquela dos tempos primevos tão antiga como a nossa que igual mente corresponde a um estágio de desenvolvimento posterior embora diverso Hoje em dia vemos o tabu articulado num sistema engenhoso entre os primit ivos tal como os neuróticos desenvolvem nas suas fobias e encontramos velhos temas substituídos por outros mais novos harmoniosamente ajustados Deixando de lado os problemas genéticos retomemos então à ideia de que o primitivo es tabelece um tabu onde receia um perigo Esse perigo é de modo geral psíquico pois o homem primitivo não é impelido a fazer neste ponto duas distinções que nos parecem inevitáveis Ele não diferencia o perigo material do psíquico e o real do imaginário Em sua concepção do mundo coerentemente aplicada todo perigo vem da intenção hostil de um ser animado como ele tanto o perigo de uma força natural como o de outros homens ou animais Por outro lado ele está acostumado a projetar seus impulsos hostis internos no mundo exterior ou seja a atribuílos aos objetos que sente como desagradáveis ou apenas como descon hecidos Então a mulher é também percebida como fonte de tais perigos e o primeiro ato sexual com a mulher é visto como um perigo particularmente intenso Acredito que obteremos algum esclarecimento sobre qual é esse perigo in tensificado e por que precisamente ele ameaça o futuro esposo se investigarmos 293316 mais detidamente o comportamento das mulheres de nosso estágio cultural nas mesmas circunstâncias Já antecipo como resultado desse exame que existe real mente esse perigo de modo que o homem primitivo se defende com o tabu da virgindade de um perigo corretamente pressentido embora psíquico Avaliamos como sendo a reação normal que a mulher após o coito abrace firmemente o homem no auge da satisfação e vemos nisso uma expressão de seu agradecimento e um penhor de duradoura sujeição Mas sabemos que não con stitui absolutamente a regra que já a primeira relação traga esse comportamento muito frequentemente ela significa uma decepção para a mulher que permanece fria e insatisfeita e de ordinário se requer mais tempo e frequente repetição do ato sexual para que nele ocorra também a satisfação da mulher Há uma sequên cia contínua desde esses casos de frigidez apenas inicial e passageira até o de sagradável resultado de uma frigidez permanente que os ternos esforços do homem não conseguem vencer Acho que essa frigidez da mulher ainda não é su ficientemente compreendida e excetuando os casos que devem ser imputados à insuficiente potência do homem exige explicação se possível através de fenô menos que lhe são próximos Neste ponto não quero abordar as frequentes tentativas de fugir ao primeiro ato sexual porque admitem vários significados podendo ser vistas em primeira linha mas não totalmente como expressão da tendência defensiva geral da mulh er Creio por outro lado que certos casos patológicos lançam alguma luz sobre o enigma da frigidez feminina casos em que a mulher após o primeiro ou após cada novo ato exprime abertamente sua hostilidade ao homem insultandoo erguendo a mão contra ele ou golpeandoo de fato Num caso bem notável desse tipo que pude analisar a fundo isso ocorria embora a mulher amasse bastante o marido costumasse ela mesma solicitar o coito e claramente obtivesse grande sat isfação nele Quero dizer que essa estranha reação contrária é resultado dos 294316 mesmos impulsos que ordinariamente podem manifestarse apenas como fri gidez isto é que são capazes de deter a reação terna sem imporse eles próprios No caso patológico é dividido em seus dois componentes por assim dizer aquilo que na frigidez bem mais frequente unese para produzir um efeito inibidor ex atamente como tempos atrás percebemos nos chamados sintomas em duas fases da neurose obsessivac O perigo assim ativado pela defloração da mulher consistiria em atrair a sua hostilidade e justamente o futuro esposo teria toda razão para subtrairse a tal inimizade A análise leva a descobrir sem dificuldade que impulsos da mulher tomam parte no surgimento dessa conduta paradoxal na qual espero achar a explicação da frigidez O primeiro coito mobiliza uma série de impulsos que são inapro veitáveis para a atitude feminina desejada e deles alguns não necessitam repetir se nos atos posteriores Pensamos aqui em primeiro lugar na dor que a deflor ação causa na virgem e talvez nos inclinemos a ver como decisivo esse fator pre scindindo de buscar outros Mas não se pode realmente atribuir à dor tal importância devese pôr em seu lugar a injúria narcísica que advém da destru ição de um órgão e que acha mesmo uma representação racional no conheci mento do diminuído valor sexual da moça deflorada Mas os costumes matrimo niais dos primitivos contêm uma advertência acerca de tal superestimação Vimos que em alguns casos a cerimônia tem duas fases após a ruptura manual ou in strumental do hímen há um coito oficial ou pseudorrelação com os represent antes do marido o que demonstra que o sentido da prescrição do tabu não é satis feito com evitarse a defloração anatômica que ao marido será poupada outra coisa mais que a reação da mulher à lesão dolorosa Outro motivo para a decepção com o primeiro coito achamos é o fato de nele a expectativa e a realização não poderem coincidir ao menos para a mulher civilizada O intercurso sexual foi até então fortemente ligado à proibição e por 295316 isso o intercurso legal e permitido não é sentido como a mesma coisa Como pode ser íntima esta associação é algo evidenciado de maneira quase cômica pelo empenho de tantas noivas em ocultar a nova relação amorosa de outras pess oas até mesmo dos pais quando não há real necessidade disso nem se espera ob jeção alguma As moças dizem abertamente que o seu amor perde algum valor para elas quando outros sabem dele Ocasionalmente esse motivo pode tornarse preponderante e impedir o desenvolvimento da capacidade para o amor no mat rimônio A mulher só reencontra sua sensibilidade amorosa numa relação inter dita que deve ser mantida em segredo a única na qual ela está certa de que sua vontade é soberana No entanto tampouco esse motivo vai suficientemente a fundo ligado a con dições culturais além disso não se vincula muito bem à situação dos primitivos Logo tanto mais significativo é o fator seguinte baseado na evolução da libido Graças aos esforços da psicanálise aprendemos como são regulares e poderosas as primeiras alocações da libido Tratase de desejos sexuais infantis tenazmente conservados na mulher geralmente fixação da libido no pai ou no irmão que o substitui desejos que frequentemente não se dirigiam para o coito ou que o incluíam apenas como vago objetivo O marido é sempre digamos um homem substituto jamais o homem certo O primeiro lugar na capacidade amorosa da mulher pertence a outro em casos típicos o pai o marido tem no máximo o se gundo lugar Para que o substituto seja rejeitado como insatisfatório importa qual a intensidade da fixação e com que pertinácia é mantida Assim a frigidez se acha entre as condições genéticas da neurose Quanto mais poderoso o elemento psíquico na vida sexual da mulher tanto mais a sua distribuição libidinal se mostrará capaz de resistência à comoção do primeiro ato sexual tanto menos avassalador poderá ser o efeito da sua posse física A frigidez pode então firmar se como inibição neurótica ou aplanar o chão para o desenvolvimento de outras 296316 neuroses e mesmo ligeiras diminuições da potência masculina contribuirão para isso O tema do desejo sexual infantil parece ser levado em conta pelo costume em que os primitivos transferem a defloração para um homem idoso um sacerdote ou indivíduo sagrado isto é um substituto do pai ver acima Daí uma linha direta me parece conduzir ao jus primae noctis direito da primeira noite dos sen hores feudais da Idade Média A J Storfer sustentou a mesma concepção9 e tam bém viu na difundida instituição das bodas de Tobias o costume da continên cia nas três primeiras noites um reconhecimento dos privilégios do patriarca tal como fizera C G Jung10 Corresponde a nossa expectativa portanto se encon tramos imagens de deuses entre os substitutos do pai encarregados da defloração Em algumas regiões da Índia a recémcasada tinha de sacrificar seu hímen ao lingam de madeira e segundo o relato de Santo Agostinho havia esse costume na cerimônia de casamento romana de seu tempo na forma atenuada em que a jovem precisava apenas sentarse no enorme falo de pedra de Príapo11 Há outro motivo relacionado a camadas ainda mais profundas que demon stravelmente tem a principal culpa pela reação paradoxal ao homem e cuja influência manifestase também na frigidez da mulher segundo penso O primeiro ato sexual ativa na mulher outros velhos impulsos além daqueles descritos que contrariam inteiramente a função e o papel femininos Sabemos pela análise de muitas mulheres neuróticas que bem cedo elas pas sam por um estágio em que invejam o sinal de masculinidade do irmão e sentem se prejudicadas e rebaixadas por sua ausência por sua diminuição na verdade Incluímos essa inveja do pênis no complexo da castração Se entendemos por masculino também o querer ser masculino adequase a essa conduta a desig nação protesto masculino que Alfred Adler cunhou a fim de proclamar esse fator o responsável pela neurose em geral Nessa fase é frequente as meninas não 297316 esconderem a sua inveja e a hostilidade que dela resulta para com o irmão favore cido elas procuram também urinar em pé como o irmão para defender a sua suposta igualdade No caso mencionado de agressão da mulher ao marido que amava após o coito pude constatar que essa fase havia precedido a escolha de objeto Somente depois a libido da garota se voltou para o pai e então ela dese jou em vez do pênis um filho12 Não me surpreenderia se em outros casos a sequência de tais impulsos fosse invertida e essa parte do complexo da castração tivesse efeito apenas depois de realizada a escolha objetal Mas a fase masculina da mulher na qual ela inveja o pênis do menino ocorre mais cedo no desenvolvimento de todo modo e achase mais próxima do narcisismo original do que do amor objetal Há algum tempo tive ensejo de examinar o sonho de uma recémcasada no qual transparecia a reação à perda da virgindade Ele mostrava facilmente o desejo de castrar o seu jovem marido e guardar para si o pênis É certo que tam bém cabia a interpretação mais inofensiva de que ela desejava o prolongamento e a repetição do ato mas vários pormenores do sonho extrapolavam esse sentido e o caráter e o comportamento posterior da sonhadora deram testemunho em favor da concepção mais séria Por trás dessa inveja do pênis vem à luz o hostil am argor da mulher frente ao homem que nunca está ausente de todo nas relações entre os sexos e do qual vemos claros indícios nos esforços e nos escritos das emancipadas Numa especulação de natureza paleobiológica Ferenczi faz re montar essa hostilidade não sei se é o primeiro nisso à época da diferen ciação dos sexos No início pensa ele a copulação realizavase entre dois indiví duos de gênero igual dos quais um tornouse mais forte e obrigou o mais fraco a suportar a união sexual O amargor com tal submissão ainda persistiria na atual disposição da mulher Não vejo o que censurar no uso de tais especulações desde que se evite superestimálas 298316 Após essa enumeração dos motivos para a reação paradoxal da mulher à de floração da qual perduram traços na frigidez podemos dizer resumindo que a sexualidade inacabada da mulher se descarrega no homem que primeiro a faz con hecer o ato sexual Então o tabu da virgindade faz sentido e entendemos o pre ceito que manda poupar desses perigos justamente o homem que vai partilhar a vida com tal mulher Em estágios de cultura mais elevados diminui a importância dada a esse perigo ante a promessa de sujeição e sem dúvida ante outros motivos e atrações a virgindade é considerada uma possessão a que o homem não deve renunciar Mas a análise dos distúrbios matrimoniais ensina que tam pouco na vida psíquica da mulher civilizada se extinguiram completamente os motivos que buscam levar a mulher a vingarse de sua defloração Acho que não pode escapar a um observador o número extraordinário de casos em que a mulh er permanece frígida e sentese infeliz num primeiro casamento e após a dissol ução deste tornase uma esposa terna e dedicada para o segundo marido A reação arcaica esgotouse no primeiro objeto digamos Mas também em outros aspectos o tabu da virgindade não desapareceu de nossa vida civilizada É conhecido da alma popular e os escritores utilizam oca sionalmente esse tema Uma comédia de Anzengruberd mostra um camponês simplório que se abstém de casar com a moça a ele destinada porque ela é uma rapariga que vai custar a vida ao primeiro Então ele concorda em que ela se case com outro e a terá quando for viúva e não representar perigo O título da peça Das Jungferngift O veneno da virgem alude ao fato de os domadores de serpentes fazerem as cobras venenosas morderem antes um pedaço de pano a fim de manejálas sem perigo13 O tabu da virgindade e parte de sua motivação acharam sua mais forte ex pressão numa conhecida personagem teatral da tragédia Judite e Holofernes de Hebbel Judite é uma daquelas mulheres cuja virgindade se acha protegida por 299316 um tabu Seu primeiro marido foi paralisado na noite de núpcias por um medo misterioso e não mais ousou tocála Minha beleza é como a beladona diz ela Sua fruição traz loucura e morte Quando o general assírio sitia a cidade ela planeja seduzilo com sua beleza e destruílo usando um motivo patriótico para encobrir um sexual Após ser desvirginada por esse homem violento que se van gloria de sua força e impiedade a indignação de Judite lhe dá forças para decapitálo e assim ela liberta seu povo A ação de decapitar nos é bem con hecida como substituto simbólico de castrar Judite é a mulher que castra o homem que a deflorou tal como no desejo do sonho que relatei de uma mulher recémcasada Hebbel sexualizou deliberadamente a narrativa patriótica achada nos livros apócrifos do Antigo Testamento pois nela Judite pode gabarse após o seu retorno de não haver sido maculada e no texto bíblico também não se acha menção nenhuma à sua perturbadora noite de núpcias Mas é provável que com fina sensibilidade de escritor ele tenha percebido o tema antiquíssimo que se per dera na história tendenciosa não fazendo mais que restituir ao material seu con teúdo anterior Numa excelente análise Isidor Sadger mostrou como o complexo parental do próprio Hebbel determinou sua escolha do material e como ele veio a tomar sempre o partido da mulher na luta entre os sexos e a penetrar os mais recônditos impulsos da alma da mulher14 Ele também menciona os motivos que o próprio escritor oferece para a alteração que fez no material corretamente julgandoos artificiais e como que destinados a justificar externamente e no fundo ocultar algo de que o próprio autor não tem consciência Não contestarei a explicação dada por Sadger para a transformação de Judite que na história bíblica é uma viúva numa viúva virgem Ele invoca a intenção encontrada nas fantasias in fantis de negar as relações sexuais dos pais e fazer da mãe uma mulher inviolada Mas acrescento depois que o escritor estabeleceu a virgindade da sua heroína 300316 sua imaginação sensível detevese na reação hostil desencadeada pela profanação da virgindade Podemos então dizer concluindo que a defloração não tem só a consequên cia cultural de ligar duradouramente a mulher ao homem ela também desperta uma reação arcaica de hostilidade ao homem que pode assumir formas patoló gicas que se manifestam com frequência em inibições da vida amorosa conjugal e à qual podemos atribuir o fato de o segundo matrimônio frequentemente vingar mais que o primeiro O surpreendente tabu da virgindade o temor com que nos povos primitivos o marido foge do ato da defloração acham nessa reação hostil a sua plena justificação É interessante que na qualidade de psicanalista encontremos mulheres em que as reações opostas de sujeição e hostilidade acharam expressão e permane ceram intimamente ligadas Há mulheres que parecem desavirse totalmente com os maridos e fazem apenas esforços vãos para distanciarse deles Por mais que tentem dirigir seu amor para outro homem a imagem do primeiro a quem já não amam intervém de forma inibidora A análise mostra então que tais mulheres ainda se apegam a seus primeiros maridos por sujeição não mais por ternura Não se libertam deles porque não chegaram a vingarse deles e em casos pro nunciados nem tomaram consciência do impulso de vingança 301316 1 KrafftEbing Bemerkungen über geschlechtiche Hörigkeit und Masochismus Observações sobre servidão sexual e masoquismo Jahrbücher für Psychiatrie v x 1892 2 Crawley The Mystic Rose A Study of Primitive Marriage Londres 1902 Ploss e Bartels Das Weib in der Naturund Völkerkunde diversas passagens em Frazer Taboo and the Perils of the Soul 1911 e Havelock Ellis Studies in the Psychology of Sex 1913 3 Thus in the Dieri and neighbouring tribes it is the universal custom when a girl reaches pu berty to rupture the hymen Journ Anthrop Inst xxiv 169 In the Portland and Glenelg tribes this is done to the bride by an old woman and sometimes white men are asked for this reas on to deflower maidens Brough Smith op cit ii 319 4 The artificial rupture of the hymen sometimes takes place in infancy but generally at puberty It is often combined as in Australia with a ceremonial act of intercourse 5 The hymen is artificially perforated and then assisting men have access ceremonial be it ob served to the girl in a stated order The act is in two parts perforation and intercourse 6 As informações entre parênteses foram acrescentadas por Freud Cabe registrar também que excetuando a primeira reproduzida apenas em inglês e no corpo do texto as citações aparecem vertidas para o alemão no texto e com o original inglês no rodapé e suas especificações biblio gráficas e consequente distinção entre uma e outra foram omitidas por Freud no texto 7 Em inúmeros outros exemplos de cerimônia nupcial não há dúvida de que outras pessoas que não o noivo como seus assistentes e companheiros os nossos padrinhos podem dispor sexu almente da noiva 8 Ver Totem e tabu 1913 9 Zur Sonderstellung des Vatermordes A posição especial do parricídio 1911 Schriften zur an gewandten Seelenkunde Escritos de psicologia aplicada 10 Die Bedeutung des Vaters für das Schicksal des Einzelnen A significação do pai para o des tino do indivíduo Jahrbuch für Psychoanalyse Anuário de Psicanálise 1 1909 11 Ploss e Bartels Das Weib A mulher i xii e Dulaure Des Divinités génératrices Paris1885 reimpressão da edição de 1825 pp 142 ss 302316 12 Ver Sobre transformações dos instintos em particular no erotismo anal 1917 13 Um conto magistral de Arthur Schnitzler Das Schicksal des Freiherrn v Leisenbogh O destino do barão von Leisenbogh merece ser lembrado aqui não obstante a diferença da situ ação O amante de uma atriz experimentada no amor condenado por um acidente cria uma es pécie de nova virgindade para ela ao amaldiçoar mortalmente aquele que primeiro a possuir de pois dele Durante algum tempo a mulher sobre quem pesa esse tabu não ousa ter uma relação amorosa Mas depois que se apaixona por um cantor recorre ao expediente de conceder antes uma noite ao barão Von Leisenbogh que há anos a corteja sem sucesso E nele se cumpre a maldição morre de um ataque ao saber do motivo de sua inesperada fortuna amorosa 14 Sadger Von der Pathographie zur Psychografie Da patografia à psicografia Imago i 1912 a An important preliminary of marriage among the Masai is the performance of this operation on the girl J Thomson op cit 258 This defloration is performed by the father of the bride amongst the Sakais Battas and Alfoers of Celebes Ploss e Bartels op cit ii 474 In the Philip pines there were certain men whose profession it was to deflower brides in case the hymen had not been ruptured in childhood by an old woman who was sometimes employed for this Feather man op cit ii 474 The defloration of the bride was amongst some Eskimo tribes entrusted to the angekok or priest id iii 406 b A bibliografia estrangeira era inacessível naquele momento devido às circunstâncias da i Guerra c Cf Conferências introdutórias à psicanálise 191617 no final da conferência xix d Ludwig Anzengruber 183989 dramaturgo vienense no parágrafo seguinte fazse referência ao tragediógrafo alemão Friedrich Hebbel 181363 303316 TEXTOS BREVES 1910 INTRODUÇÃO E CONCLUSÃO DE UM DEBATE SOBRE O SUICÍDIOa 1 INTRODUÇÃO Senhores Todos escutaram com grande satisfação o apelo de um educador que não admite que se faça uma acusação injustificada contra a instituição que lhe é cara Mas sei que de toda forma os senhores não se inclinavam a crer facilmente na alegação de que a escola empurra seus alunos para o suicídio Não nos deix emos levar muito longe contudo em nossa simpatia pela parte agravada Nem todos os argumentos do expositor me parecem sólidos Se os casos de suicídio ju venil ocorrem não apenas entre alunos do secundário mas também com aprend izes etc tal circunstância não absolve a escola secundária ela talvez requeira a interpretação de que a escola secundária para os alunos toma o lugar dos trau mas que outros adolescentes experimentam em suas outras condições de vida Mas a escola secundária deve fazer mais do que deixar de impelir os jovens para o suicídio deve lhes dar vontade de viver e lhes proporcionar apoio e esteio numa fase da vida em que pelas próprias condições de seu desenvolvimento veemse obrigados a afrouxar os vínculos com a casa paterna e a família Pareceme indis cutível que as escolas não fazem isso e que em muitos pontos não cumprem a tarefa de fornecer substituição para a família e despertar o interesse pela vida no mundo lá fora Este não é o lugar para uma crítica da escola secundária em sua atual configuração Mas talvez me seja permitido ressaltar um só fator A escola não pode esquecer que lida com pessoas ainda imaturas a quem não é lícito negar 305316 o direito de se demorar em certos estágios até mesmo desagradáveis do desenvolvimento Ela não pode arrogar para si o caráter inexorável da vida não pode querer ser mais do que um jogo de vida 2 CONCLUSÃO Senhores Tenho a impressão de que apesar do valioso material aqui ap resentado não conseguimos chegar a uma decisão a respeito do problema que nos interessa Queríamos saber principalmente como é possível subjugar o po deroso instinto de vida se isso pode ocorrer apenas com a ajuda da libido decep cionada ou se o Eu renuncia à afirmação de si mesmo por motivos próprios do Eu Talvez não tenhamos obtido a resposta a essa questão psicológica porque não temos uma boa aproximação a ela Quero dizer que nisso podemos partir apenas do estado da melancolia conhecido clinicamente e da comparação entre ele o afeto do luto Mas os processos afetivos da melancolia as vicissitudes da libido nesse estado sãonos inteiramente desconhecidos e também o duradouro afeto do luto ainda não se tornou psicanaliticamente compreensível Vamos suspender nosso julgamento portanto até que a experiência tenha resolvido essa questão CARTA A FRIEDRICH S KRAUSS SOBRE A REVISTA ANTHROPOPHYTEIAb Caro dr Kauss 306316 O sr me pergunta que valor científico podem reivindicar na minha opinião as coletâneas de piadas eróticas gracejos anedotas etc Sei que o sr não tem a menor dificuldade em justificar essa atividade de compilação deseja apenas meu testemunho na condição de psicólogo sobre a utilidade e até mesmo o caráter in dispensável desse material Gostaria de acentuar principalmente duas coisas As anedotas e pilhérias erót icas que o senhor reuniu nos volumes da Anthropophyteia só foram produzidas e passadas adiante porque deram prazer tanto aos narradores como aos ouvintes Não é difícil imaginar quais componentes do instinto sexual tão complexo e composto nelas encontraram satisfação Essas historietas nos informam direta mente sobre quais instintos parciais da sexualidade são preservados em certo grupo de pessoas como particularmente adequados para se obter prazer e assim corroboram perfeitamente as conclusões a que chegou a investigação psicanalít ica de indivíduos neuróticos Permitame lembrar o mais importante exemplo desse tipo A psicanálise nos levou a constatar que a região do ânus normal mente e também nos não pervertidos é um local de sensibilidade erógena que em determinados aspectos se comporta exatamente como um genital Os médicos e psicólogos a quem falamos de um erotismo anal e do caráter anal dele decor rente ficaram bastante indignados Nisso a Anthropophyteia vem ao encontro da psicanálise mostrando como é universal as pessoas se deterem prazerosamente nessa região do corpo suas atividades e até mesmo produto de sua função Não fosse assim todas essas histórias despertariam nojo naqueles que as escutam ou o povo seria pervertido no sentido de uma psychopathia sexualis moralizante Não seria difícil dar outros exemplos de como é valioso para o conhecimento sexualpsicológico o material coletado pelos autores da Anthropophyteia Talvez o seu valor seja ainda acrescido pelo fato que em si não representa uma 307316 vantagem de os compiladores nada saberem sobre as conclusões teóricas da psicanálise e reunirem esse material sem concepções orientadoras Outro ganho psicológico de natureza mais geral resulta em especial das pia das propriamente eróticas como das piadas em si Em meu estudo sobre o chiste mostrei que a revelação do que é normalmente reprimido na psique humana pode seguindose determinadas regras tornarse uma fonte de prazer e assim uma técnica para a formação de chistes Na psicanálise chamamos de complexo uma trama de ideias com o afeto a elas relacionado e afirmamos que muitas das piadas mais apreciadas são piadas de complexos e que devem seu efeito anim ador e liberador ao hábil desnudamento de complexos normalmente reprimidos Demonstrar essa tese com exemplos tomaria espaço demasiado aqui mas podese enunciar como resultado dessa investigação que as piadas eróticas e outras que circulam no povo constituem excelentes meios para pesquisa da psique incon sciente dos seres humanos de modo muito semelhante aos sonhos e aos mitos e lendas que a psicanálise já procura estudar Portanto podemos abrigar a esperança de que o valor psicológico do folclore será cada vez mais reconhecido e os laços entre essa pesquisa e a psicanálise logo se tornarão mais íntimos Subscrevome caro dr Krauss muito cordialmente Freud 26 de junho de 1910 308316 EXEMPDE COMOLOS OS NEURÓTICOS REVELAM SUAS FANTASIAS PATOGÊNICASc Há pouco tempo examinei um paciente de cerca de vinte anos que apresentava um quadro inequívoco de dementia praecox hebefrenia identificado também por outros médicos Nos estágios iniciais da doença ele havia mostrado per iódicas mudanças de ânimo tivera considerável melhora e num desses estados favoráveis fora retirado da instituição pelos pais Durante uma semana regalaramno com toda espécie de entretenimento festejando sua suposta recu peração Após esta semana sobreveio de imediato uma recaída Levado de volta ao sanatório ele contou que o médico atendente lhe havia dado o conselho de flertar um pouco com sua mãe Não há dúvida de que nesse delirante equívoco da memória ele expressou a excitação que a companhia da mãe produzira nele e que fora a causa imediata para a sua recaída Há mais de dez anos numa época em que os resultados e pressupostos da psicanálise eram familiares a poucas pessoas foime relatado de uma fonte con fiável o seguinte caso Uma garota filha de um médico adoeceu de histeria com sintomas localizados O pai negou a histeria e fez com que se realizassem trata mentos somáticos diversos que pouco adiantaram Certa vez uma amiga per guntou à garota Você nunca pensou em consultar o dr F Ao que a doente respondeu Para quê Sei muito bem a pergunta que ele me faria Já lhe ocorreu a ideia de ter relações sexuais com seu pai Não preciso garantir que nem 309316 naquele tempo nem agora eu faço perguntas desse tipo Mas notese que muita coisa que os pacientes relatam como sendo palavras ou atos dos médicos pode ser entendida como revelação de suas próprias fantasias patogênicas RESENHA DE CARTAS A MULHERES NEURÓTICAS DE WILHELM NEUTRAd Deveria ser visto como um auspicioso sinal do interesse crescente pela psicoter apia o fato de em tão breve tempo se ter feito uma reimpressão desse livro Infel izmente não podemos saudar o próprio livro como algo auspicioso O autor médico assistente do instituto de hidroterapia Gainfahrn próximo a Viena ad otou a forma das Cartas psicoterapêuticas de Oppenheim e preencheu essa forma de um conteúdo psicanalítico Isso é em determinado sentido um desacerto pois a psicanálise não pode ser combinada satisfatoriamente com a técnica persuasiva de Oppenheim ou de Dubois se preferireme ela busca seu efeito terapêutico por vias muito diferentes Mais grave porém é que o autor não alcança os méri tos de seu modelo o tato e a seriedade moral e que na apresentação das teorias psicanalíticas incorre frequentemente numa retórica oca e faz algumas de clarações incorretas No entanto muita coisa é dita de modo hábil e apropriado a obra pode ser admitida como leitura popular Numa exposição séria científica o autor teria de indicar com maior escrupulosidade as fontes de seus pontos de vista e afirmações 310316 a Título originalZur SelbstmordDiskussion Publicado primeiramente em Diskussionen des Wiener psychoanalytischen Vereins 1 Wiesbaden Bergmann 1910 Traduzido de Gesammelte Werke viii 624 b Publicada primeiramente em Anthropophyteia 7 p 472 Traduzida de Gesammelte Werke viii pp 2245 c Título original Beispiele des Verrats pathogener Phantasien bei Neurotikern publicado primeiramente em Zentralblatt für Psychoanalyse 1 p 43 Traduzido de Gesammelte Werke viii p 228 d Título original Besprechung von Dr Wilhelm Neutra Briefe an nervöse Frauen Dresden 1909 Publicada originalmente em Zentralblatt für Psychoanalyse 1 1910 p 49 Traduzida de Gesammelte Werke Nachtragsband Volume suplementar p 500 e Hermann Oppenheim conhecido neurologista publicou Cartas psicoterapêuticas em 1906 Paul Dubois 18481918 foi professor de neuropatologia em Berna e adquiriu notoriedade por seu tratamento de neuróticos mediante a persuasão 311316 SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES COORDENAÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA 1 TEXTOS PRÉPSICANALÍTICOS 18861899 2 ESTUDOS SOBRE A HISTERIA 18931895 3 PRIMEIROS ESCRITOS PSICANALÍTICOS 18931899 4 A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS 1900 5 PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA E SOBRE OS SONHOS 1901 6 TRÊS ENSAIOS DE UMA TEORIA DA SEXUALIDADE FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA O CASO DORA E OUTROS TEXTOS 19011905 7 O CHISTE E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE 1905 8 O DELÍRIO E OS SONHOS NA GRADIVA ANÁLISE DA FOBIA DE UM GAROTO DE CINCO ANOS O PEQUENO HANS E OUTROS TEXTOS 19061909 9 OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 10 OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER ARTIGOS SOBRE TÉCNICA E OUTROS TEXTOS 19111913 11 TOTEM E TABU HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO E OUTROS TEXTOS 19131914 12 INTRODUÇÃO AO NARCISISMO ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS 19141916 13 CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 14 HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 15 PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 16 O EU E O ID AUTOBIOGRAFIA E OUTROS TEXTOS 19231925 17 INIBIÇÃO SINTOMA E ANGÚSTIA O FUTURO DE UMA ILUSÃO E OUTROS TEXTOS 19261929 18 O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 313316 19 MOISÉS E O MONOTEÍSMO COMPÊNDIO DE PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19371939 20 ÍNDICES E BIBLIOGRAFIA 314316 Copyright da tradução 2013 by Paulo César Lima de Souza Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Os textos deste volume foram traduzidos de Gesammelte Werke volumes vii viii e xii Londres Imago 1941 1943 e 1947 Os títulos originais estão na página inicial de cada texto A outra edição alemã referida é Studienausgabe Frankfurt Fischer 2000 Capa e projeto gráfico warrakloureiro Preparação Célia Euvaldo Revisão Renata Lopes Del Nero Valquíria Della Pozza ISBN 9788580866490 Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz sa Rua Bandeira Paulista 702 cj 32 04532002 São Paulo sp Telefone 11 37073500 Fax 11 37073501 wwwcompanhiadasletrascombr wwwblogdacompanhiacombr Created by PDF to ePub