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619 Educação e Pesquisa São Paulo v32 n3 p 619634 setdez 2006 A busca do sentido da formação humana tarefa da Filosofia da Educação Antônio Joaquim Severino Universidade de São Paulo Resumo O trabalho desenvolve uma reflexão sobre a educação entendida como processo de formação humana buscando ver quais os sentidos que essa formação recebeu ao longo de nossa tradição filosófica e na contemporaneidade uma vez que ocorreram mudanças nas concepções que os homens fizeram do ideal de sua humanização Sob tal perspectiva recoloca em discussão as relações entre as diversas dimensões da educabilidade humana destacando as dimensões ética e política que até o atual momento prevaleceram como fundamentos da compreensão da própria natureza da educação e concluindo que hoje a formação humana visada pela educação compreendese como formação cultural Essa idéia dá à educação uma finalidade intrínseca de cunho mais antropológico do que ético ou político Essa reflexão sobre a natureza da educação implica igualmente explicitar o lugar e o papel da Filosofia da Educação como esforço hermenêutico de desvelamento da prática educacional tal como ela precisa se desenrolar nas mudadas condições históricoculturais da atualidade A discussão permite assim não apenas interpelar momentos significativos da expressão histórica da Filosofia da Educação na cultura ocidental mas também debater conteúdos teóricos fundamentais do debate filosófico sobre o sentido da educação debate que se impõe com renovada força para os educadores no enfrentamento dos desafios que estão sendo colocados pelas novas condições da pósmodernidade responsável por um profundo questionamento das referências filosóficas da tradição cultural do ocidente Palavraschave Filosofia da Educação Ética Política Formação cultural Correspondência Antônio Joaquim Severino Rua Raul Pompéia 905 apto 133 05025010 São Paulo SP email ajsevuolcombr Educação e Pesquisa São Paulo v32 n3 p 619634 setdez 2006 620 The search for the meaning of human formation a task for the philosophy of education Antônio Joaquim Severino Universidade de São Paulo Abstract The work conducts a reflection on education understood as a process of human formation trying to perceive the meanings attributed to this formation throughout our philosophical tradition and in contemporaneity since there have been changes in the conceptions men have made of the ideal of their humanization Under such perspective the article brings back to the discussion the relations between the various dimensions of human educability highlighting the ethical and political dimensions which until the present moment have prevailed as the foundations of the understanding of the very nature of education and reaching the conclusion that human formation today as targeted by education is understood as cultural formation This idea gives education an intrinsic purpose of a character that is more anthropological than ethical or political Such reflection on the nature of education equally entails making explicit the place and role of the Philosophy of Education as a hermeneutic effort of disclosure of the educational practice as it needs to unfold under todays changed historicalcultural conditions The discussion thus allows not just to inquire into significant moments of the historical expression of the philosophy of education in Western culture but also to debate fundamental theoretical contents of the philosophical argument over the meaning of education an argument that stands with renewed strength before the educators meeting the challenges posed by the new conditions of postmodernity responsible for a profound examination of the philosophical references of Western cultural tradition Keywords Philosophy of education Ethics Politics Cultural formation Contact Antônio Joaquim Severino Rua Raul Pompéia 905 apto 133 05025010 São Paulo SP email ajsevuolcombr 621 Educação e Pesquisa São Paulo v32 n3 p 619634 setdez 2006 Na cultura ocidental a educação foi sem pre vista como processo de formação humana Essa formação significa a própria humanização do homem que sempre foi concebido como um ente que não nasce pronto que tem necessidade de cuidar de si mesmo como que buscando um estágio de maior humanidade uma condição de maior perfeição em seu modo de ser humano Portanto a formação é processo do devir huma no como devir humanizador mediante o qual o indivíduo natural devém um ser cultural uma pessoa é bom lembrar que o sentido dessa ca tegoria envolve um complexo conjunto de di mensões que o verbo formar tenta expressar constituir compor ordenar fundar criar instruir se colocarse ao lado de desenvolverse darse um ser É relevante observar que seu sentido mais rico é aquele do verbo reflexivo como que indi cando que é uma ação cujo agente só pode ser o próprio sujeito Nessa linha afastase de alguns de seus cognatos por incompletude como infor mar reformar e repudia outros por total incom patibilidade como conformar deformar Conver ge apenas com transformar A idéia de formação é pois aquela do alcance de um modo de ser mediante um devir modo de ser que se caracte rizaria por uma qualidade existencial marcada por um máximo possível de emancipação pela con dição de sujeito autônomo Uma situação de ple na humanidade A educação não é apenas um processo institucional e instrucional seu lado visível mas fundamentalmente um investimen to formativo do humano seja na particularida de da relação pedagógica pessoal seja no âmbi to da relação social coletiva Por isso a interação docente é considerada mediação universal e insubstituível dessa formação tendose em vista a condição da educabilidade do homem Tratase sem dúvida de um objetivo que soa utópico e de difícil consecução à vis ta da dura realidade histórica de nossa existên cia No entanto foi sempre um horizonte cons tantemente almejado e buscado E ainda o continua sendo mesmo diante das condições atuais da civilização por mais que estejam marcadas pelo poder de degradação no mun do técnico e produtivo do trabalho de opres são na esfera da vida social e de alienação no universo cultural Essas condições manifestam se em que pesem as alegações em contrário de variados discursos como profundamente adver sas à formação o que tem levado a um cres cente descrédito quanto ao papel e à relevân cia da Educação como processo intencional e sistemático No entanto essa situação degrada da do momento históricosocial que atravessa mos só faz aguçar o desafio da formação hu mana necessária pelas carências ônticas e pela contingência ontológica dos homens mas pos sível pela educabilidade humana Quando se fala pois em educação para além de qualquer processo de qualificação técnica o que está em pauta é uma autêntica Bildung uma paidéia formação de uma personalidade integral O objetivo deste ensaio é desenvolver uma reflexão sobre como a educação na qua lidade de processo de formação humana foi concebida buscando ver quais os sentidos que essa formação recebeu ao longo de nossa tra dição filosófica uma vez que ocorreram mu danças nas concepções que os homens fizeram do ideal de sua humanização Sob tal perspec tiva recoloco em discussão as relações entre as diversas dimensões da educabilidade humana destacando as dimensões ética e política que até o atual momento prevaleceram como fun damentos da compreensão da própria natureza da educação Ao refletir assim sobre a nature za da educação busco igualmente explicitar o lugar e o papel da Filosofia da Educação como esforço hermenêutico de desvelamento da prá tica educacional tal como ela precisa se desen rolar nas mudadas condições históricoculturais da atualidade Essa discussão permite assim não apenas interpelar momentos significativos da expressão histórica da filosofia na cultura ocidental mas também retomar conteúdos te óricos fundamentais do debate filosófico atual sobre o sentido da educação O propósito é o de trazer à tona a questão da natureza da educação em relação à formação ética e à formação política campos 622 Antônio J SEVERINO A busca do sentido da formação humana da prática humana que sempre foram associa dos à educação pela reflexão filosófica E a hipótese que me proponho defender é a de que a educação vem sendo pensada hoje como formação cultural perspectiva que realiza uma síntese superadora das perspectivas anteriores que a conceberam como formação ética num primeiro momento e como formação política num segundo momento A elaboração desse novo modo de se conceituar a educação na minha leitura ocorreu tanto como processo históricocultural e como processo de constru ção lógicoconceitual Com efeito constatase no âmbito da história da filosofia no contexto do desenvolvi mento da cultura ocidental que num primeiro momento históricoteórico identificável com os períodos da Antiguidade grega e da Medievalidade latina que a ética prevaleceu como matriz paradigmática da formação humana ou seja o ideal humano era o aprimoramento éticopessoal e esta era a finalidade essencial da educação Já num segundo momento historicamente situado na Era Moderna esse ideal se delineava como uma adequada inserção da pessoa na sociedade A política era a grande matriz E agora no mo mento histórico recente da contemporaneidade a reflexão filosófica passa por uma inflexão nesse modo de se conceber a própria idéia da forma ção humana e conseqüentemente também se transforma o modo de se ver a educação Mes mo sem a nitidez das perspectivas anteriores o que parece estar se delineando é uma dimensão do formar que afirma nega e supera as perspec tivas éticas e políticas da educação tais quais delineadas ao longo da nossa tradição filosófica ocidental Sem perder as imprescindíveis referên cias éticas e políticas mais que se afirmar como processo de formação de um sujeito ético ou de um sujeito cidadão o que está em pauta é a própria construção do sujeito humano no tempo histórico e no espaço social como sujeito inte gralmente ético e político pessoahabitante de um universo coletivo Para o olhar da contempo rânea Filosofia da Educação o homem ser em devir ser inacabado e lacunar não tem um ideal a ser buscado ou a ser realizado mas encontra se condenado a construir para si uma configura ção própria não prevista nem previsível como se tivesse que dar a si mesmo uma destinação E assim tanto a ética como a política perdem suas até então exacerbadas autonomia e preponde rância como referências básicas isoladas para a prática educacional Agora nessa prática o ho mem não se desenha mais como um ser pessoal desempenhando um modelo de ação nem como puro ser social membro devidamente adequado à sociedade tal parece ser o significado que vem tomando hoje no quadro da filosofia contempo rânea o próprio conceito de formação perspec tiva articulada particularmente pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt marco referencial da emergência do modo atual de filosofar Sem dú vida ao longo dos três milênios da expressão cultural da filosofia no Ocidente ética e política sempre apareceram como referentes da educação Já a Antiguidade expressava explicitamente essa relação tanto quanto a Modernidade nunca des cartara a referência à ética Também hoje conti nua recorrente a presença dessas perspectivas nos discursos educacionais No entanto nesses três momentos sua força significadora assume conotações específicas diferenciadoras em função do papel que assumem nessa relação Em que pese a forte inspiração da ma triz frankfurtiana dessa reflexão meu ângulo de abordagem centra a atenção no significado da educação tal qual eu o vejo no processo de constituição teórica no âmbito da atual tendên cia da Filosofia da Educação É para destacar esse momento de instauração que vi a necessi dade de me reportar a momentos articuladores da trajetória histórica de grandes expressões fi losóficoantropológicas da Filosofia da Educação no contexto da cultura ocidental Essa retoma da apresentaseme não apenas como uma cir cunstância contextuante mas como uma exigên cia propriamente filosófica por entender que também o pensamento se constitui historica mente não sendo possível compreender suas manifestações atuais sem acompanhar sua gêne se e formação No entanto o objetivo do pre 623 Educação e Pesquisa São Paulo v32 n3 p 619634 setdez 2006 sente trabalho é refletir sobre o sentido em si da educação frente a suas modificadas relações com a ética e a política tais como essas dimen sões foram vistas até hoje Nunca é demais lembrar que a Filoso fia da Educação não é uma revisita à história da Filosofia O seu objeto de preocupação e estu do são as condições reais da educação tais como se desenham a cada momento histórico e o recurso às referências históricas só se jus tifica quando se precisa estabelecer algumas balizas contextuais ou quando se trata de evi denciar a historicidade das manifestações lógi coconceituais do pensamento humano Trata se pois de uma reflexão analítica e crítica sobre a problemática da educação com o pro pósito de tentar decifrar o seu sentido possível Entretanto por outro lado é também oportu no lembrar que embora precise considerar os conhecimentos produzidos pelas Ciências da Educação e pelas Ciências Humanas a perspec tiva filosófica é diferente dessas ciências dada sua intenção de buscar fundamentos entendi dos estes como nexos conceituais explicativos Isso justifica a démarche filosófica como exer cício mais autônomo da subjetividade em rela ção a procedimentos metodológicos e técnicos e a abordagens empíricas dos fenômenos ob jetos das ciências A questão fundamental que cabe à Filosofia da Educação responder é aque la do sentido e da finalidade da educação Em assim sendo sua perspectiva é diferente daque la da Sociologia da Educação da Psicologia da Educação da História da Educação da Econo mia da Educação etc encarregadas de estudar os fatos educativos sob os diversos aspectos de suas manifestações concretas A educação sob o signo da ética O testemunho da história da filosofia autoriza a afirmar que a educação foi primeira mente pensada como formação ética De fato o discurso filosófico da Antiguidade e da Medievalidade sempre concebeu a educação como proposta de transformação aprimoradora do sujeito humano De imediato essa propos ta se radica na pressuposta universalidade da natureza humana e a educação é vista como formação ética Ainda que etimologicamente ética e moral retirem seu sentido de costume ethos em grego e mos em latim e este por sua vez do habitat da moradia habitual estrutura modal dos seres vivos de habitar o mundo o conceito quer designar no categorial filosófico uma qualidade do sujeito humano como ser sensível aos valores com um agir cuja configuração se deixe marcar por esses valores a que sua cons ciência subjetiva está sempre se referindo Sen sibilidade axiológica que do ponto de vista de sua experiência pelo sujeito é análoga à sensibi lidade epistêmica da razão Característica especí fica dos seres humanos ela precisa ser cultivada e sustentada pois tanto quanto o conhecimen to essa experiência não é fruto da ação exclusi va das forças vitais e instintivas do ser vivo Daí o papel primordial que é atribuído à educação empreendimento éticoformativo processo de autoconstituição do sujeito como pessoa ética É a paidéia proposta no quadro da cultura clássica grega e latina No entanto desse processo de constitui ção do sujeito ético não estão ausentes na Fi losofia antiga e medieval as alusões às dimen sões social política comunitária da existência histórica dos seres humanos Basta citar como exemplos as clássicas obras A república de Platão e a Política de Aristóteles No entanto todas as referências ao político que são feitas nessas e em outras obras direcionamse à ação dos indivídu os A política fica como que condicionada à éti ca ou seja à qualidade e à intensidade do apri moramento da postura e das ações morais das pessoas individuais A boa qualidade da pólis está na dependência direta da qualidade da vida indi vidual dos seus habitantes Platão ao construir seu modelo da cidade ideal desenvolve uma proposta filosófica de uma pedagogia éticopo lítica na qual o conhecimento e a prática da virtude vão garantir a viabilidade e a legitimida 624 Antônio J SEVERINO A busca do sentido da formação humana de do Estado Para Platão a educação se prati cada pela razão procedendo dialeticamente tor nase o fundamento e a sustentação da justiça Entretanto a justiça nada mais é do que a dimen são social da virtude o princípio da ética social que sustenta a vida digna da comunidade A so ciedade justa se sustenta nos princípios da ética Primeiro a estabelecer uma Filosofia da Educação na cultura ocidental de acordo com parecer de Moreau 1978 Platão via a educa ção como a necessária formação do espírito Ao ensino cabia o conhecimento em geral mas a educação visava uma boa conduta de vida a virtude A grande questão era como formar os homens de bem e leválos ao conhecimento do bem assim como à sua prática Em pauta pois como lembra no Banquete a transcendência soberana do espírito Platão 1979 205212 Também a idéia aristotélica de política está intrinsecamente vinculada a um fundamen to ético É bem verdade que muito mais que Platão Aristóteles valoriza a realidade empírica do Estado e a condição social do indivíduo Sua célebre fórmula de que o homem é por nature za um animal político Política I 1 1253a 3 III 6 1278b 19 Ética a Nicômaco I 7 1097b 11 sintetiza bem seu pensamento a respeito Quis dizer com isso que o indivíduo não basta a si mesmo No entanto Aristóteles também é incisi vo em afirmar que a finalidade da pólis não é apenas biológica mas sobretudo moral Política III 9 1280 b 1317 A cidade é antes o ambiente em que pode ser realizada graças à independên cia que ela assegura o ideal de uma vida perfei ta o lugar onde o homem pode atingir a felici dade pelo exercício da virtude no respeito da justiça Política III 9 1289 b 30 Afinal o fim do Estado não é propriamente nem a defesa comum nem a organização das trocas mas o reino da justiça Política I 2 1253 a 3738 No entanto apesar desse avanço Aristóteles continua entendendo que a formação ética do indivíduo é o único caminho para a virtude para cujo desen volvimento as estruturas políticoadministrativas devem fornecer as condições objetivas e a edu cação as subjetivas A relação íntima da educação com a formação ética de acordo com o essencialismo típico da filosofia grega consolidase com a teoria do ato e da potência pois a educação não será nada mais do que um processo de atualização das potencialidades do ser humano uma vez que a infância é a idade adulta em potência As posições aristotélicas são ainda mais reforçadas nessa direção com sua apropri ação pela Teologia cristã graças ao profundo trabalho filosófico de São Tomás de Aquino que incorpora o aristotelismo de modo análo go ao que Agostinho fizera com o platonismo Na própria Ética a Nicômaco Aristóteles 1973 enfatiza as referências à vida política à inser ção na sociedade Diz ele o objetivo da vida política é o melhor dos fins e essa ciência dedi ca o melhor de seus esforços a fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações p 259 passagens 11099 b30 Entretanto toda sua investigação visa explicitar o bem para se viver com felicidade e justiça O homem precisa da virtude para inserirse na sociedade Assim a idéiaforça que predomina na Filosofia da Educação na Antiguidade é que a dimensão política é inteiramente derivada da qualidade ética dos sujeitos pessoais É por isso mesmo que desde Sócrates a ética é a força motriz de todo investimento pedagógico Tra tase de levar o aprendiz a incorporar uma tí pica atitude espiritual darlhe consistência e permanência de modo que possa tornarse fon te reguladora de seu agir que passará a quali ficarse como agir moralmente bem E se todos os indivíduos se tornarem pessoas éticas a cidade a pólis será igualmente uma comunida de justa O político decorre do ético nele en contrando seu fundamento A ética assume lugar tão relevante na filosofia socrática que todo o empenho essencial do conhecimento deve ser aquele que visa descobrir o bem A natureza do homem passa a ser objeto do co nhecimento filosófico na exata medida em que aspira ao bem ao comportamento virtuoso Virtude e bem são os efetivos critérios e guia para toda ação pessoal e conseqüentemente 625 Educação e Pesquisa São Paulo v32 n3 p 619634 setdez 2006 também para a vida na cidade Não é por ou tra razão que o modelo de sociedade propos to por Santo Agostinho em A cidade de Deus como lugar da verdadeira felicidade é aquele que é constituído por homens virtuosos Virtu oso é o homem que escolhe o caminho do bem para viver como esclarece o próprio Santo Agostinho em seu outro texto Do livre arbítrio É essa maneira de entender a natureza do homem como ser ético que explica a força do conceito de alma na filosofia de lastro socrático bem como da importância que nela assumirá a categoria de substância essencial A alma como a substância humana é o sujeito da ética e o seu cuidado é o que há de mais divino no homem cuidado a ser exercido mediante o conhecimen to dos valores da bondade e da verdade Com base nessas noções de alma e de bem a ética socrática objeto por excelência da educação busca atingir a interioridade humana centro em que se encontra a lei do autodomí nio da ordenação dos valores da virtude e da felicidade Domínio do homem sobre si mesmo o que o eleva à liberdade moral como autono mia frente à sua conatureza animal Com a impregnação profunda da cultura helênica pelo Cristianismo a natureza da educação como es sencialmente formação ética ganhou ainda mais força como podemos ver na obra dos Padres da Igreja e destacadamente em Santo Agostinho e São Tomás de Aquino Nessa tradição da Filosofia a educação é vista como garantindo a humanização do homem na medida em que ela possa contribuir diretamente para a construção do próprio su jeito A imagem é dada pela metáfora da iden tidade e da autonomia do sujeito espiritual individual pessoal que princípio de atividade atua pela força energética de sua vontade livre A transformação do mundo a construção da sociedade o aprimoramento da existência ob jetiva decorrem agora diretamente da transfor mação do aprimoramento íntimo do sujeito A pólis como cidade justa e democrática será resultante das ações eticamente respaldadas postas pelos indivíduos transformados O direito positivo só pode se legitimar se fundado em diretrizes éticas âmbito em que deve prevale cer a dignidade subjetiva da pessoa humana Nessa tradição de valorização da auto nomia subjetiva a educação é sempre entendi da como um investimento feito pelos sujeitos dos recursos da exterioridade com vistas ao desenvolvimento de sua interioridade subjetiva A educação identificase então com o próprio método do conhecimento com o exercício da vivência da consciência uma vez que educar se é apreenderse cada vez mais como sujeito buscando agir com vistas a realizarse cada vez mais como tal O ético predomina sobre o político atuando o educacional como media ção É por isso que essa orientação enfatiza mais os fundamentos antropológicos e éticos dos processos do que suas mediações práticas ou suas implicações políticas A educação como formação política Sem dúvida podese afirmar com segu rança que o Iluminismo como amplo movimento cultural e filosófico que aconteceu na Europa na era moderna ao instaurar sua proposta pedagógica retoma as idéias da natureza humana da autono mia racional e moral do indivíduo e da perfectibilidade humana No entanto por outro lado essas categorias têm seu sentido profunda mente modificado Marcado pela longa lenta e sofrida constituição da moderna sociedade bur guesa e mercantil que vai se distanciando cada vez mais do mundo feudal e cristão o pensamento iluminista se instaura sob o crescente impacto da formação dos estados como entidades políticas au tônomas A consciência ética se confronta agora com a realidade da vida política que não é mais mera circunstância na existência dos indivíduos mas ao contrário é uma forte e densa realidade autônoma ditando e impondo regras e leis Ago ra a legitimação da existência não se sustenta apenas na conformação à lei interior do espírito mas também necessariamente num acordo com a lei exterior estabelecida autonomamente pela 626 Antônio J SEVERINO A busca do sentido da formação humana sociedade É preciso doravante considerar também os dispositivos do contrato social E essa sociedade determinante não se apresenta como entidade aprioristicamente definida mas como processo histórico real a ser empiricamente abordado e es quadrinhado Recusando o modo metafísico de pensar a filosofia moderna opõese também à ética essencialista da vida puramente interior JeanJacques Rousseau e Immanuel Kant podem ser tomados com os mais significativos representantes dos construtores do projeto iluminista da modernidade no que se refere a essa perspectiva de uma outra pedagogia de acordo com a qual a formação humana visada pela edu cação passa necessariamente pela consideração da condição natural do homem como ser social A filosofia moderna referese aos indivíduos mas pressupondoos como partes integrantes de um corpo social que os atravessa de fora a fora Consciência liberdade moral perfeição humana vontade livre são dimensões relacionadas à vida dos indivíduos mas elas só ganham consistência plena com a inserção dos indivíduos na estrutu ra social É por isso que as propostas pedagógi cas de Rousseau 1968 não podem ser plena mente compreendidas separadas de sua teoria po lítica Rousseau 1999 Do mesmo modo a pro posta educativa de Kant não faz sentido separa da de sua visão do destino da civilização huma na como um todo Desse modo na modernidade o critério fundamental da educação o aspecto que recebe maior ênfase na formação humana é aquele da formação política a formação do cida dão entendida esta à luz de seus pressupostos antropológicos e epistemológicos do racionalismo naturalista Como bem o resume Lyotard a educação tem uma finalidade explícita na modernidade do fim do século XVIII É a do projecto geral das Luzes libertar a humanidade do despotismo do despotismo político mas também da ignorância e da miséria A edu cação tem pois uma intenção fundamental fazer com que a nação a comunidade de facto se torne numa República de direito apud Kechikian 1993 p 49 Para Kant 1996 a educação prática e moral é aquela que diz respeito à construção do homem para que viver como ser livre o qual pode bastarse a si mesmo constituirse mem bro da sociedade p 20 Ainda que se trate de aprimorar o homem em sua individualidade tal objetivo diz respeito ao seu viver em sociedade sua ineludível moradia Na Modernidade são todas as modalidades da vida que assumem mais explicitamente essa dimensão política Essa condição do homem viver em sociedade modifica profundamente o seu pro cesso de autoaperfeiçoamento pois seu apri moramento ou sua degradação não mais de pendem apenas da lei interior de sua vontade mas também das determinações exteriores da vida social Assim o instinto divino da consci ência de que fala Rousseau que é fonte da excelência moral do indivíduo confrontase com as exigências da vida em sociedade esfe ra da liberdade civil É por isso que o homem que nasce livre por toda parte encontrase a ferros Rousseau 1999 p 53 Parafraseando se os metafísicos clássicos podese afirmar que na modernidade o social é o elemento que constitui a substância da essência humana não é mais um mero acidente De acordo com os princípios filosóficos de Rousseau 1958 o homem só pode ser bom numa sociedade racional A finalidade da educa ção é a reconstrução do homem por isso mesmo ela pode ser até desnaturação Ela deve dar às almas a forma racional e dirigir de tal forma as suas opiniões e gostos que sejam patriotas por inclinação paixão e necessidade cap 4 p 605 A cidade deve ser sobreposta a tudo mais A li berdade consiste na obediência total à lei da ci dade ideal Chateau 1956 Essa participação do elemento social na natureza intrínseca do modo de ser humano tornase marca característica da antropologia fundante da compreensão da educação no sé culo XIX constituindo a base central do co nhecimento que nessa fase já se constitui como conhecimento científico graças à emer gência das ciências humanas É que ao lado da 627 Educação e Pesquisa São Paulo v32 n3 p 619634 setdez 2006 expressão filosófica dandose como filosofia social ou filosofia política as ciências humanas se instauram fundamental e preponderante mente como ciências sociais E sob as inspira ções de todos os paradigmas epistemológicos daquele momento o pensamento teórico se manifesta enfatizando a primazia do social É o que podemos conferir na obra de Émile Durkheim Na esteira da perspectiva positivista inaugurada por Auguste Comte Durkheim dedica todo o seu engenho em mos trar a consistência e a centralidade do social como elemento explicativo do modo de existir humano O social não reduz jamais ao individu al nem a Sociologia a uma Psicologia de gran des número de indivíduos Sua obra teórica sistematiza a solidariedade social o trabalho social a consciência coletiva a anomia social enfim a vida autonomizada da sociedade uma entidade que embora formada pelos indivídu os tem uma realidade própria distinta É inde pendente das condições particulares dos indi víduos estes passam ela permanece É sob a prática do trabalho que os indivíduos se vincu lam intrinsecamente à sociedade fortificados por uma solidariedade orgânica que os mantém unidos como se estivessem atraídos por uma força centrípeta Por isso mesmo a realização dos indivíduos em particular depende da boa realização da sociedade Só que essa realização está sempre ameaçada pela anomia que pode impedir que a sociedade preencha sua função de regulação e controle De igual modo o pensamento de outro grande profeta da modernidade Max Weber 18641920 segue a mesma linha de consagra ção da prevalência das leis impessoais da soci edade Weber 1974 enfoca a política como tema central de sua obra fazendo uma análise profunda e completa da modernidade Busca explicitar as leis das ações humanas Embora muito cauteloso para evitar uma entificação da sociedade mediante o uso de categorias coleti vas preocupado em livrar as ciências históricas dos pressupostos metafísicos do idealismo ale mão Weber vê na ação racional mediada pelos tipos ideais critério da prática que independe da vontade individual dos agentes Um sistema político e econômico que com uma lógica própria a da racionalidade dita leis para o comportamento humano É certamente na obra de Karl Marx 18181883 que o caráter determinante da essência humana pelo social é mais assumido teoricamente e justificado questionando de vez qualquer referência metafísica de caráter essencialista Herdeiro da tradição dialética hegeliana Marx e Engels 1997 vê o homem se constituindo historicamente mediante seu agir prático coletivo Em que pese seu idealis mo metafísico exacerbado e romântico Hegel já havia integrado em sua síntese filosófica a participação do processo histórico real da so ciedade humana e de sua manifestação políti ca sob a forma do Estado como figuras subs tanciais da realização do Espírito Absoluto Escoimando o hegelianismo dessas dimensões metafísicas que entende ser puras ilusões ide ológicas Marx incorpora a dialeticidade do processo histórico real que se realiza na histó ria da sociedade humana Muito sensível por outro lado à dura realidade histórica e social de sua época quando o modo de produção capi talista já se encontra em pleno vigor Marx adentrase sob a perspectiva da ciência histó rica no estudo da economia política solo da efetiva realização dos seres humanos Analisan do as condições reais em que se dá a produ ção concreta da existência humana sob os di tames da economia capitalista Marx explicita a tragédia da existência histórica do homem como despossuído de sua essência pela aliena ção do trabalho imposta pelas leis da produ ção material E para chegar à realização de si mesmo como homem inteiramente emancipado e totalmente humano a partir de sua condição de ser natural de ser sensível num mundo sen sível os homens que se alienam em sua histó ria coletiva só podem engendrarse como ho mens por meio de seu trabalho humano O tra balho dinâmica responsável pela efetiva condi ção do modo de ser humano só é realizável no 628 Antônio J SEVERINO A busca do sentido da formação humana contexto históricosocial Se de um lado ele é o lugar da alienação da perda da essência ele é também o único espaço para a realização do humano Os homens são seres ativos práticos produtores de objetos sensíveis não em sua condição de gênero universal mas em sua existência histórica e social em sua realidade constituída pelo conjunto de suas relações sociais O trabalho como força engendradora do indivíduo humano e meio de produção e reprodução da existência pressupõe a presen ça efetiva dessa rede de relações sociais com um mínimo de eqüidade e liberdade o que exi ge a permanente luta política revolucionária contra todas as formas históricas de opressão numa sociedade burguesa e capitalista hierarquizada e cristalizada em classes sociais com interesses objetivos conflitantes Para Marx o homem se define em sua humanidade pela relação com a natureza e com a sociedade Ele não é um indivíduo solitário nem um elemen to avulso da humanidade em geral mas um ser histórico e social cujo perfil concreto é defini do pelas leis provisórias de um determinado modo de produção Marx pensa a reificação e a alienação como conseqüências de modos históricos de produção e não como determina ções essenciais do homem em geral pois acei tar isso seria recair na reificação e na alienação A concreta realidade humana não é resultante nem da realização da Idéia ou do Espírito Ab soluto Hegel nem da consciência racional dos homens de suas vontades puras e reflexões abstratas Metafísica clássica e Idealismo mo derno mas do real movimento histórico das forças produtivas desencadeado e sustentado pelos homens a partir das contradições perma nentes que devora suas entranhas Essas grandes sínteses filosóficas aqui apenas tangenciadas produzidas por Marx Weber e Durkheim em que pesem as diferen ças de seus pontos de partida e de apoio têm um ar de família e a grande referência comum é a marca fundante do social na constituição da efetiva realidade do ser humano contrapondo se os três pensadores de forma radicalmente igual a toda pretensão metafísica Com essa incisiva afirmação da centralidade nuclear da prática social manifestandose historicamente a presença das contribuições desses pensamen tos feitas todas as necessárias ressalvas tor nouse elemento de todas as ciências humanas e de toda filosofia crítica da atualidade Não é pois sem razão que essa pers pectiva marcou profundamente o modo de se compreender a educação na virada do século XIX e no início do século XX Ainda que a temática educacional não tenha recebido um tratamento explícito nessas obras é evidente que por decorrência intrínseca a educação só tem sentido sob as mesmas referências como modalidade do próprio processo social É o que explica e justifica porque as ciências sociais vão passando a ocupar no período o lugar das ciências psicológicas na explicação do fenôme no educacional E não se pode legitimar a in tervenção pedagógica a não ser sob uma jus tificativa política de ordenação do social Tanto quanto os antigos e os medievais os pensadores modernos vão aproximar verdade e bem aproximando o conhecimento racional da prática educacional Só que agora a razão é toma da na sua condição de potência natural atuando por conta própria sem qualquer intervenção de ordem sobrenatural O homem volta a ser a medi da de todas as coisas e não mais Deus Esse antropocentrismo radical colocando o homem racional no centro e na direção de um mundo desencantado laiciza o olhar e o agir das pesso as Isso dá uma outra dimensão para a vida social e para as instituições políticas modificando pro fundamente o sentido da educação Nesse mo mento para se formar bem o indivíduo é pre ciso considerar a sociedade estruturada como condição substantiva do existir humano O ho mem não pode ser eticamente bom contando apenas com uma eventual coerência com os valores de sua subjetividade e muito menos com a obediência a preceitos divinos sobrenaturais Antes precisa integrarse adequadamente à so ciedade à pólis E antes de mais nada cabe à educação propiciar de modo sistemático as 629 Educação e Pesquisa São Paulo v32 n3 p 619634 setdez 2006 condições para essa integração Inserção não mais à cidade de Deus mas à cidade dos homens Por isso mesmo a educação passa a assumir ao lon go da Modernidade o caráter de uma ação e de uma prestação pública definindose como medi ação própria para a constituição da cidadania E seu grande instrumento é o conhecimento racio nal Não mais o conhecimento metafísico das es sências das coisas mas o conhecimento científico dos fenômenos naturais única e exclusiva manifes tação do real E agora a Filosofia de serva da Te ologia que era na Idade Média passa a ser serva da ciência exercendose fundamentalmente como reflexão metacientífica É compreensível que só na Modernidade a filosofia se desse conta da extrema relevância do social para a própria constituição do sujeito pessoal considerando a sociedade como condição fundamental para a vida moral das pessoas Em que pesem já os avanços organizacionais da sociedade prémoder na ela não foi muito além de uma comunidade natural ainda não política Essa condição só se tornou possível no período moderno expressan dose fundamentalmente na constituição dos Es tados como entidades específicas e autônomas de gerenciamento da vida social Educação e formação cultural na contemporaneidade Esse panorama está em processo de mu dança agora na contemporaneidade Uma nova forma de se compreender a educação nem mais sob a prevalência de uma teleologia ética nem mais sob a perspectivação política Tanto a ética como a política estão sendo questionadas como referên cias básicas da educação Como se trata de um pensamento ainda em construção fica difícil por falta de distanciamento apreendêlo em toda sua extensão profundidade e magnitude Essa nova orientação vem sendo designada de filosofia pós moderna ou pósestruturalista substrato filosófico de uma possível nova era históricocultural a pós modernidade Levada a seus extremos tal tendên cia cai no irracionalismo inviabilizando qualquer alcance construtivo da racionalidade humana Seu irracionalismo potencial emerge com a acusação que faz aos comprometimentos da razão com o poder opressivo sobre o homem da hostilidade da razão à vida A razão acaba sendo vista apenas como agente de repressão e não instância de li bertação como o pretendia o Iluminismo Os germens dessa crítica radical surgiram na própria Modernidade com Nietzsche Freud e Marx mas se consolidam no pensamento atual com Foucault Deleuze Guattari Lyotard Beaudrillard e Maffesoli entre outros pensadores Como acertadamente observa Rouanet há nessa atitude crítica radical um forte núcleo de verdade Depois de Marx e Freud não podemos mais aceitar a idéia de uma razão soberana livre de condicionamentos materiais e psíquicos Depois de Weber não há como ignorar a diferença entre uma razão substantiva capaz de pensar fins e valores e uma razão instrumental cuja compe tência se esgota no ajustamento de meios e fins Depois de Adorno não é possível escamotear o lado repressivo da razão a serviço de uma astú cia imemorial de um projeto imemorial de domi nação da natureza e sobre os homens Depois de Foucault não é lícito fechar os olhos ao entrela çamento do saber e do poder Precisamos de um racionalismo novo fundado numa nova razão Rouanet 1987 p 12 Não integra o objetivo deste ensaio aprofundar as posições dessa tendência em ges tação na filosofia contemporânea até porque eu a vejo como diretamente tributária da críti ca desenvolvida pelos teóricos da Escola de Frankfurt Com efeito é possível identificar nas formulações da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt as referências históricas e teóricas dessa inflexão que marca a entrada da cultura e da filosofia ocidentais na era contemporânea Cabe atribuirlhe com toda legitimidade esse papel pois foi dela a iniciativa histórica de apresentar de forma sistemática o balanço inaugural de toda a produção filosóficocientí fica da modernidade deslanchando um acerto 630 Antônio J SEVERINO A busca do sentido da formação humana de contas que ainda não terminou e que ain da continua sendo retomado e prolongado na atualidade Não é por acaso que a filosofia frankfurtiana nasce e se constitui como diálo go competente e crítico com as heranças do positivismo do neokantismo do hegelianismo e do marxismo Como bem o assinala Goergen 2001 é preciso atentar que as posições frankfurtianas embora em muitos momentos assumindo tra ços de uma crítica radical à racionalidade pre tende na verdade salvar a razão das armadilhas de sua instrumentação e de seu uso contra o próprio ser humano Distinguese portanto das teses pósmodernistas críticas da própria razão moderna e não apenas de seu mau uso Para os pósmodernos a razão iluminista com seus traços de teleologia progressista firmada em seu manejo adequado perdeu ela própria sua legitimidade p 23 Habermas 1990 defen de que a razão comunicativa assegura o exer cício de uma racionalidade processual aberta à contingência e à pluralidade sem abandonar as pretensões de validade universal a unidade da razão na multiplicidade de suas vozes p 151 Minha idéia é de que as posições teóricas elaboradas pelos pensadores frankfurtianos parti cularmente por Adorno e Horkheimer inauguram uma concepção diferenciada da educação que não se expressaria mais nem como formação ética do sujeito pessoal nem como formação política do sujeito coletivo mas como formação cultural con ceituada como realização antropológica tout court sem qualquer adjetivação de qualquer natureza E no rastro dessa idéia originante a grande maioria das manifestações da filosofia contemporânea vai avançando no sentido de se conceber essa forma ção como a própria substância da educação Adorno 1985 defende a idéia de que a sobrevivência da Filosofia exige a renúncia à busca de qualquer significado predeterminado das coisas pretensão que até a Modernidade ficara a cargo de uma razão que se revelava totalitária globalizante e mistificadora para com o ser humano concreto toda vez que se propunha delinear esse sentido É o que já fala em sua aula inaugural sobre a atu alidade da filosofia de 1931 e que volta a ser enfatizada em Dialética do esclarecimento de 1947 em Dialética negativa de 1966 e em Teo ria estética de 1970 A razão transformase numa razão instrumental ferramenta por excelência da ciência e da tecnologia Ética e política perdem toda sua densidade e sustentação em decorrência dessa hipertrofia do racional puro que exorcizou o corpo e desencantou o mundo Isso impediu que se pudesse falar da perfeição moral do sujeito pessoal e de qualquer futuro político formulável Resta ao filósofo um trabalho teórico crítico cal cado numa negação radical da realidade presente ainda justificando a luta contra todas as formas de dominação desde que renuncie à tentação da uni versalidade e da totalidade tanto no campo ético como político Tal a única maneira de garantir uma autonomia do sujeito num contexto onde haja igualmente a liberdade de todos O pensamento crítico contemporâneo tende a questionar radicalmente tudo aquilo que era a própria sustentação do edifício filo sófico da modernidade a pedra fundamental da racionalidade emancipadora e altaneira Kant 1996 arrastando consigo os ideais iluministas da ética e da política Por isso mes mo não podia deixar de recuperar as perspec tivas dionisíacas da filosofia a marteladas de Nietzsche bem como não poderia deixar de voltarse para a estética via privilegiada de resgate da corporeidade e o lugar possível do sentido encarnado Podese então afirmar que a contemporaneidade cultural e filosófica inau gurada por essa crítica instalase tendo como mote a paráfrase bermansiana da fala de Marx no Manifesto do Partido Comunista de 1851 tudo o que é sólido desmancha no ar1 Nada 1 Marshall Bermann 1996 simplificou o texto de Marx 1977 que era mais complexo no original Na melhor tradução a que tive acesso Marx escreveu Tudo o que era sólido e estável evaporouse no ar tudo o que era sagrado é profanado e por fim os homens são obrigados a encarar com serenidade suas verdadeiras condições de vida e suas relações com os demais homens Manifesto do Partido Comunista 1977 p 87 Encarar com serenidade suas verdadeiras condições de vida e suas relações com os demais homens depois de derrubados todos os ídolos e mitos eis uma intenção de descrever a situação de há 150 anos atrás mas não pode haver descrição melhor da situação enfrentada hoje pela humanidade apesar de todas as mudanças ocorridas desde então 631 Educação e Pesquisa São Paulo v32 n3 p 619634 setdez 2006 mais se sustenta do edifício filosóficocientífi co da modernidade a não ser seu lado sombrio e irracional que é aquele da mais perversa e destrutiva dominação Uma significativa verten te da filosofia contemporânea vai se constitu indo então como denúncia e recusa de todas as modalidades de metanarrativas de todos os dogmas e discursos da racionalidade estejam elas nas ciências na filosofia ou em qualquer outro lugar da cultura Junto com essa denúncia da instrumentalidade da razão e de suas graves conseqüências para a vida humana a reflexão crítica dos frankfurtianos Adorno à frente res gata a experiência estética como vivência sub jetiva da corporeidade mediante o exercício de seus sentidos enfatizando sua importância como experiência primordial do homem até então danificada pelo uso puramente instru mental da razão ao lidar com as coisas huma nas A experiência estética constitui o último modo de resistência dos indivíduos à desenfre ada opressão causada universalmente pela racionalidade técnica da sociedade capitalista contemporânea Os ecos da inspiração frankfurtiana além de tornar audíveis as invectivas nietzscheanas em pleno final do século XX ressoa por todo o ambiente cultural e filosófico da atualidade sus citando novos jogos de linguagem que se apre sentam tão somente como nichos de experiência de conhecimento sem qualquer ambição de ex por verdades inquestionáveis O núcleo de verdade do novo concei to de educação se expressa pois como a pró pria formação do sujeito No entanto alguns prévios cuidados esclarecedores precisam ser tomados em decorrência da ambigüidade e ambivalência dos signos lingüísticos pois como já ensinava o mestre de Santo Agostinho nada pode ser ensinado sem signos mas os signos não ensinam nada Sobre o mestre O termo formação é onipresente nas diversas conceituações de educação mas o mais das vezes para contraporse à informação Outras vezes arrasta consigo a conotação do pôr em forma moldar sentido que é exatamente o contrário daquele em que está sendo tomado aqui O sentido aqui é exatamente aquele da constituição do sujeito que não tem molde onde se encaixar para se enquadrar medidas para se medir Um sujeito totalmente contin gente com muito precárias referências históri cas para se guiar em sua existência Precisa ser ou melhor viraser sem que caminhos precisos estejam previamente traçados Igualmente o conteúdo cultural no contexto ora em questão não denota apenas sua significação de ilustração de erudição li terária de performance artística etc mas envolve todas essas dimensões desde que elas estejam articuladas na experiência vivenciada da autoreflexão crítica na autonomia do su jeito humano como praticante do exercício público da racionalidade uma vez superados os limites da liberdade impostos pela semicultura Pucci 1995 ou seja é culturalmente forma do portanto educado o homem que dispõe do esclarecimento com o qual se identifica pois a própria educação No categorial frankfurtiano a semicultura é o embotamento da cultura a alienação a padronização o conformismo si tuações em que se encontram os homens por renúncia subserviência ou dominação Dito de outro modo é própria barbárie que na visão de Adorno é o preconceito delirante a repressão o genocídio e a tortura Tabus apud Ramos Oliveira 1995 p 9293 O conceito adorniano de formação cultu ral embora forjado a partir da sua vivência no contexto da cultura alemã Pucci RamosOlivei ra Zuin 2000 ganha um alcance mais amplo tornandose uma fecunda categoria de análise da vida social contemporânea A Bildung como lado subjetivo da Kultur só se legitima como exercício de juízo existencial crítico e autocrítico de cará ter emancipatório indo além da semiformação Halbebildung definição de uma produção simbó lica em que prevalecem a adaptação e o confor mismo típicos da cultura massificada A proposta e até certo ponto a aposta frankfurtiana de uma educação emancipadora vinculamse à afirmação da intrínseca necessida 632 Antônio J SEVERINO A busca do sentido da formação humana de de uma crítica permanente Após Auschwitz impõese uma reelaboração do passado uma se vera crítica do presente se se almeja um futuro mais humanizado E ao mesmo tempo em que Adorno alerta para os riscos de um processo edu cacional pautado apenas nas luzes da consciên cia pura formação éticoepistêmica sem con siderar sua orientação social chama a atenção para os igualmente graves perigos do compro metimento do ético frente à determinação social pura formação política O desafio que se apre senta é o de pensar a sociedade e a educação em seu devir Só assim seria possível encontrar alternativas históricas capazes de assegurar a emancipação de todos tornandoos sujeitos da histórica aptos a vencer a barbárie e a realizar o conteúdo emancipatório do movimento de ilustração da razão Maar 1995 p 12 A pro posta da educação como formação cultural des taca que a educação não concerne apenas a formação da consciência de si como aperfeiço amento moral mas nem por isso reduzse a mero enquadramento social pura determinação política A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma autoreflexão crítica p 121 Adorno 1995 explicita sua concepção de educação Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas porque não temos o direito de mode lar pessoas a partir de seu exterior mas também não a mera transmissão de conhecimentos cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada mas a produção de uma consciência verdadeira Isto seria inclusive de maior impor tância política sua idéia se é permitido dizer assim é uma exigência política Isto é uma de mocracia com o dever de não apenas funcionar mas operar conforme seu conceito demanda pessoas emancipadas Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado p 141142 Para Adorno 1995 o conhecimento tem papel fundamental no processo educativo No entanto impõese entender bem o sentido da razão e da subjetividade Em geral o con ceito de racionalidade ou de consciência é apreendido de um modo excessivamente estrei to como capacidade formal de pensar Mas esta constitui uma limitação da inteligência um caso especial de inteligência de que certamente há neces sidade Mas aquilo que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em relação à realidade a relação entre as formas e estruturas do pensamento do sujeito e aquilo que este não é Este sentido mais profundo de consciência ou faculdade de pensar não é apenas o lógicoformal mas ele corresponde lite ralmente à capacidade de fazer experiências Eu diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelec tuais Nesta medida e nos termos que procuramos expor a educação para a experiência é idêntica à educação para a imaginação p 151 O compromisso da educação é com a desbarbarização é transformarse num processo emancipatório no qual ocorra uma luta sistemáti ca pela autonomia pela emancipação E sua úni ca ferramenta é o esclarecimento que se constitui como passagem do inconsciente para o consciente do não ciente para o ciente do pseudociente para o ciente O esclarecimento ilumina e elimina Na perspectiva da Teoria Crítica o papel da educação é o de assegurar a sobrevivência da formação cultural numa sociedade que a privou de suas bases É que a industrialização cultural com prometeu essa formação Cabe aos processos educativos investir na transformação da razão ins trumental em razão emancipatória Por sua vez a educação pode viabilizarse garantindose sua fecundidade formativa se se constituir como exer cício da autoreflexão crítica Tratase para a edu cação de produzir uma consciência verdadeira Tratase de uma formação imanente do sujeito da história real da desalienação na his tória presente alienada É que na sociedade in dustrializada do capitalismo a educação críti ca do indivíduo base de sua formação emancipatória encontrase travada realizando se apenas como adaptação ou seja como 633 Educação e Pesquisa São Paulo v32 n3 p 619634 setdez 2006 semiformação Adorno1995 travamento da experiência emancipadora A qualificação essencial da educação emancipadora encontrase na dissecação visceral do nexo entre dominação e racionalidade A educação crítica só pode realizarse como re construção crítica da racionalidade social reve lando a deformação que produz em face de sua reificação e conduzindoa a uma clara exposi ção de suas contradições e por essa via apre endendo nela as possibilidades alternativas Momento de transformação da subjetividade destituída de experiência formativa Maar 1995 A organização social em que vivemos continua sendo heterônoma isto é nenhuma pessoa pode existir na sociedade atual realmente conforme suas próprias determinações enquanto isto ocor re a sociedade forma as pessoas mediante inú meros canais e instâncias mediadores de um modo tal que tudo absorvem e aceitam nos ter mos dessa configuração heterônoma que se des viou de si mesma em sua consciência p 181 Conclusão Tendo em conta a insustentabilidade das referências éticopolíticas das tradições metafísica e iluminista o novo conceito de edu cação que vem sendo forjado no contexto da contemporaneidade questionadas a universa lidade a transcendentalidade e a apoditicidade dos valores vai partir da condição de contin gência imanente do próprio sujeito A propos ta possível de sua educação é aquela de sua própria formação como sujeito cultural Por isso mesmo no que concerne ao conceito da educação tal qual vem sendo cons tituído a referência passa a ser não mais a an tiga ética ou a recente política mas uma nova estética Não há mais valores éticos referenciais nem muito menos consígnias políticas válidas conta apenas o novo sentir bem dos sujeitos humanos Sem dúvida o cenário da cultura atual é complexo Sobrevivem e convivem os diversos paradigmas filosóficos a inspirarem as buscas da Filosofia da Educação Particularmente fazse ainda muito forte a marca de uma concepção tecnofuncionalista da educação colocandose em nome da ciência e de seu poder tecnocrático numa ponta do espectro enquanto que na outra ponta agigantase a perspectiva estetizante Cu riosamente esses extremos se tocam e acabam tendo uma paradoxal convivência com um ní vel de tolerância recíproca muito mais harmo nioso do que com a esfera dos paradigmas éticos ou políticos No entanto na verdade a exacerbação estetizante é mesmo resultante do impulso da radicalidade da crítica à razão instrumental Sua verdade está na afirmação de que uma nova re ferência para a educação precisa ser levantada e que nela não se faça ausente a dimensão esté tica do existir Entretanto essa dimensão estéti ca é apenas uma parte do todo sem dúvida aquela cuja visibilidade é de mais fácil percep ção e que por não ter sido devidamente consi derada pela tradição filosóficoeducacional ago ra faz sua reivindicação de forma mais ruidosa e às vezes até mesmo acintosa A idéia de formação cultural dá à educa ção uma finalidade intrínseca de cunho mais an tropológico do que ético ou político num senti do estrito Até para transformar os indivíduos em pessoas éticas e políticas a educação precisa efe tivarse como formação cultural No entanto em si mesma a educação não tem como garantir dire tamente que as pessoas se tornem éticas ela é uma experiência eminentemente pessoal nem como metanoia assegurar o aprimoramento do social a revolução política é uma experiência exclusiva do sujeito coletivo em sua especificidade 634 Antônio J SEVERINO A busca do sentido da formação humana Referências bibliográficas ADORNO T HORKHEIMER M Dialética do esclarecimento Dialética do esclarecimento Dialética do esclarecimento Dialética do esclarecimento Dialética do esclarecimento Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985 ADORNO T W Educação e emancipação Educação e emancipação Educação e emancipação Educação e emancipação Educação e emancipação Rio de Janeiro Paz e Terra 1995 AGOSTINHO S A cidade de Deus A cidade de Deus A cidade de Deus A cidade de Deus A cidade de Deus São Paulo Edameris 1964 Do livre arbítrio Do livre arbítrio Do livre arbítrio Do livre arbítrio Do livre arbítrio Braga Faculdade de Filosofia 1986 ConfissõesDe magistro ConfissõesDe magistro ConfissõesDe magistro ConfissõesDe magistro ConfissõesDe magistro Do mestre São Paulo Abril Cultural 1980 ARISTOTELES Ética a Nicômaco Ética a Nicômaco Ética a Nicômaco Ética a Nicômaco Ética a Nicômaco São Paulo Abril Cultural 1973 Coleção Os Pensadores v IV Política Política Política Política Política São Paulo Martins Fontes 1991 BERMAN Marshall TTTTTudo que é sólido desmancha no ar udo que é sólido desmancha no ar udo que é sólido desmancha no ar udo que é sólido desmancha no ar udo que é sólido desmancha no ar a aventura da modernidade São Paulo Companhia das Letras 1996 CHATEAU JJ Rousseau ou a pedagogia da vocação In Os g Os g Os g Os g Os grandes peda randes peda randes peda randes peda randes pedagogos gogos gogos gogos gogos São Paulo Nacional 1978 p 171 208 GOERGEN P Pósmodernidade Pósmodernidade Pósmodernidade Pósmodernidade Pósmodernidade ética e educação Campinas Autores Associados 2001 Coleção Polêmicas de Nosso Tempo v 79 HABERMAS J Pensamento pósmetafísico Pensamento pósmetafísico Pensamento pósmetafísico Pensamento pósmetafísico Pensamento pósmetafísico Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1990 KANT I Peda Peda Peda Peda Pedagog gog gog gog gogiaiaiaiaia Piracicaba Unimep 1996 Resposta à pergunta que é esclarecimento In TTTTTextos seletos extos seletos extos seletos extos seletos extos seletos Petrópolis Vozes 1974 p 100117 KECHIKIAN A Os filósofos e a educação Os filósofos e a educação Os filósofos e a educação Os filósofos e a educação Os filósofos e a educação Lisboa Edições Colibri 1993 MAAR W L Introdução In ADORNO T W Educação e emancipação Educação e emancipação Educação e emancipação Educação e emancipação Educação e emancipação Rio de Janeiro Paz e Terra 1995 p 1128 MARX K ENGELS F Manifesto do Partido Comunista In MARX K ENGELS F Cartas filosóficas e outros escritos Cartas filosóficas e outros escritos Cartas filosóficas e outros escritos Cartas filosóficas e outros escritos Cartas filosóficas e outros escritos São Paulo Grijalbo 1977 p 83116 MOREAU J Platão e a educação In CHATEAU JJ Os g Os g Os g Os g Os grandes peda randes peda randes peda randes peda randes pedagogos gogos gogos gogos gogos Lisboa Livros do Brasil 1956 p 2139 PLATÃO Diálogos Diálogos Diálogos Diálogos Diálogos São Paulo Abril Cultural 1979 Coleção Os Pensadores República República República República República 2ed São Paulo Abril Cultural 1979 Coleção Os Pensadores PUCCI B Org TTTTTeoria crítica e educação eoria crítica e educação eoria crítica e educação eoria crítica e educação eoria crítica e educação a questão da formação cultural na Escola de Frankfurt PetrópolisSão Carlos Vozes Editora da Ufscar 1995 PUCCI B RAMOSDEOLIVEIRA N ZUIN A A S Adorno Adorno Adorno Adorno Adorno o poder educativo do pensamento crítico Petrópolis Vozes 2000 Coleção Educação e Conhecimento ROUANET S P As razões do iluminismo As razões do iluminismo As razões do iluminismo As razões do iluminismo As razões do iluminismo São Paulo Companhia das Letras 1982 ROUSSEAU JJ Emílio Emílio Emílio Emílio Emílio São Paulo Difel 1968 Do contrato social Do contrato social Do contrato social Do contrato social Do contrato social São Paulo Abril cultural 1999 O governo da Polônia In Obras Obras Obras Obras Obras Porto Alegre Globo 1958 WEBER M Ensaios de Sociologia Ensaios de Sociologia Ensaios de Sociologia Ensaios de Sociologia Ensaios de Sociologia 3 ed Rio de Janeiro Zahar Editores 1974 Recebido em 250506 Aprovado em 110906 Antônio Joaquim Severino é doutor em Filosofia livredocente em Filosofia da Educação Professor titular de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo