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DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos bem como o simples teste da qualidade da obra com o fim exclusivo de compra futura É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda aluguel ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa Você pode encontrar mais obras em nosso site LeLivrossite ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais lutando por dinheiro e poder então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível Coleção Lygia Fagundes Telles CONSELHO EDITORIAL Alberto da Costa e Silva Antonio Dimas Lilia Moritz Schwarcz Luiz Schwarcz COORDENACÃO EDITORIAL Marta Garcia LIVROS DE LYGIA FAGUNDES TELLES PUBLICADOS PELA COMPANHIA DAS LETRAS Ciranda de Pedra 1954 2009 Antes do Baile Verde 1970 2009 As Meninas 1973 2009 Seminário dos Ratos 1977 2009 A Noite Escura e Mais Eu 1995 2009 Invenção e Memória 2000 2009 Lygia Fagundes Telles Seminário dos Ratos Contos Nova edição revista pela autora POSFÁCIO DE José Castello Sumário SEMINÁRIO DOS RATOS As Formigas Senhor Diretor Tigrela Herbarium A Sauna Pomba Enamorada ou Uma História de Amor WM Lua Crescente em Amsterdã A Mão no Ombro A Presença Noturno Amarelo A Consulta Seminário dos Ratos SOBRE LYGIA FAGUNDES TELLES E ESTE LIVRO Posfácio Lygia na Penumbra José Castello Depoimento Péricles Eugênio da Silva Ramos A Autora As Formigas Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas iguais a dois olhos tristes um deles vazado por uma pedrada Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima É sinistro Ela me impeliu na direção da porta Tínhamos outra escolha Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio Subimos a escada velhíssima cheirando a creolina Pelo menos não vi sinal de barata disse minha prima A dona era uma velha balofa de peruca mais negra do que a asa da graúna Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelhoescuro descascado nas pontas encardidas Acendeu um charutinho É você que estuda medicina perguntou soprando a fumaça na minha direção Estudo direito Medicina é ela A mulher nos examinou com indiferença Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara A saleta era escura atulhada de móveis velhos desparelhados No sofá de palhinha furada no assento duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido os bordados salpicados de vidrilho Vou mostrar o quarto fica no sótão disse ela em meio a um acesso de tosse Fez um sinal para que a seguíssemos O inquilino antes de vocês também estudava medicina tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui estava sempre mexendo neles Minha prima voltouse Um caixote de ossos A mulher não respondeu concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto Acendeu a luz O quarto não podia ser menor com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas Duas camas dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico Minha prima largou a mala e pondose de joelhos puxou o caixotinho pela alça de corda Levantou o plástico Parecia fascinada Mas que ossos tão miudinhos São de criança Ele disse que eram de adulto De um anão De um anão É mesmo a gente vê que já estão formados Mas que maravilha é raro à beça esqueleto de anão E tão limpo olha aí admirouse ela Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal Tão perfeito todos os dentinhos Eu ia jogar tudo no lixo mas se você se interessa pode ficar com ele O banheiro é aqui ao lado só vocês é que vão usar tenho o meu lá embaixo Banho quente extra Telefone também Café das sete às nove deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica fechem bem a garrafa recomendou coçando a cabeça A peruca se deslocou ligeiramente Soltou uma baforada final Não deixem a porta aberta senão meu gato foge Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada E a tosse encatarrada Esvaziei a mala dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana prendi na parede com durex uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro Fiquei vendo minha prima subir na cadeira desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola O quarto ficou mais alegre Em compensação agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho Examinoua Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel Guardouas com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa Um anão Raríssimo entende E acho que não falta nenhum ossinho vou trazer as ligaduras quero ver se no fim da semana começo a montar ele Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão minha prima tinha sempre alguma lata escondida costumava estudar até a madrugada e depois fazia sua ceia Quando acabou o pão abriu um pacote de bolacha Maria De onde vem esse cheiro perguntei farejando Fui até o caixotinho voltei cheirei o assoalho Você não está sentindo um cheiro meio ardido É de bolor A casa inteira cheira assim ela disse E puxou o caixotinho para debaixo da cama No sonho um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto Sentouse na cama da minha prima cruzou as perninhas e ali ficou muito sério vendoa dormir Eu quis gritar Tem um anão no quarto mas acordei antes A luz estava acesa Ajoelhada no chão ainda vestida minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho Que é que você está fazendo aí perguntei Essas formigas Apareceram de repente já enturmadas Tão decididas está vendo Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta atravessavam o quarto subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro disciplinadas como um exército em marcha exemplar São milhares nunca vi tanta formiga assim E não tem trilha de volta só de ida estranhei Só de ida Conteilhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama Está debaixo dela disse minha prima e puxou para fora o caixotinho Levantou o plástico Preto de formiga Me dá o vidro de álcool Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram formiga descobre tudo Se eu fosse você levava isso lá pra fora Mas os ossos estão completamente limpos eu já disse Não ficou nem um fiapo de cartilagem limpíssimos Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui Respingou fartamente o álcool em todo o caixote Em seguida calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame foi pisando firme um pé diante do outro na trilha de formigas Foi e voltou duas vezes Apagou o cigarro Puxou a cadeira E ficou olhando dentro do caixotinho Esquisito Muito esquisito O quê Me lembro que botei o crânio em cima da pilha me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar E agora ele está aí no chão do caixote com uma omoplata de cada lado Por acaso você mexeu aqui Deus me livre tenho nojo de osso Ainda mais de anão Ela cobriu o caixotinho com o plástico empurrouo com o pé e levou o fogareiro para a mesa era a hora do seu chá No chão a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé já ia esmagála quando vi que levava as mãos à cabeça como uma pessoa desesperada Deixeia sumir numa fresta do assoalho Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo com os exames o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado Às seis horas o despertador disparou veementemente Travei a campainha Minha prima dormia com a cabeça coberta No banheiro olhei com atenção para as paredes para o chão de cimento à procura delas Não vi nenhuma Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido Olhei para o chão desaparecera também a trilha do exército massacrado Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto Quando cheguei por volta das sete da noite minha prima já estava no quarto Acheia tão abatida que carreguei no sal da omelete tinha a pressão baixa Comemos num silêncio voraz Então me lembrei E as formigas Até agora nenhuma Você varreu as mortas Ela ficou me olhando Não varri nada estava exausta Não foi você que varreu Eu Quando acordei não tinha nem sinal de formiga nesse chão estava certa que antes de deitar você juntou tudo Mas então quem Ela apertou os olhos estrábicos ficava estrábica quando se preocupava Muito esquisito mesmo Esquisitíssimo Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro mas seria bolor Não me parecia um cheiro assim inocente quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto mas ela estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta Espargi águadecolônia Flor de Maçã por todo o quarto e se ele cheirasse como um pomar e fui deitar cedo Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral nele eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo E no mesmo lugar Chegava o primeiro e minha aflição era leválo embora dali antes que chegasse o segundo O segundo desta vez era o anão Quando só restou o oco de silêncio e sombra a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície Abri os olhos com esforço Ela estava sentada na beira da minha cama de pijama e completamente estrábica Elas voltaram Quem As formigas Só atacam de noite antes da madrugada Estão todas aí de novo A trilha da véspera intensa fechada seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro Sem caminho de volta E os ossos Ela se enrolou no cobertor estava tremendo Aí é que está o mistério Aconteceu uma coisa não entendo mais nada Acordei pra fazer pipi devia ser umas três horas Na volta senti que no quarto tinha algo mais está me entendendo Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas você se lembra Não tinha nenhuma quando chegamos Fui ver o caixotinho todas se trançando lá dentro lógico mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás tem uma coisa mais grave é que os ossos estão mesmo mudando de posição eu já desconfiava mas agora estou certa pouco a pouco eles estão Estão se organizando Como se organizando Ela ficou pensativa Comecei a tremer de frio peguei uma ponta do seu cobertor Cobri meu urso com o lençol Você lembra o crânio entre as omoplatas não deixei ele assim Agora é a coluna vertebral que já está quase formada uma vértebra atrás da outra cada ossinho tomando o seu lugar alguém do ramo está montando o esqueleto mais um pouco e Venha ver Credo não quero ver nada Estão colando o anão é isso Ficamos olhando a trilha rapidíssima tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira Puleia com o maior cuidado quando fui esquentar o chá Uma formiguinha desgarrada a mesma daquela noite sacudia a cabeça entre as mãos Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado rolaria por ali de tanto rir Dormimos juntas na minha cama Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula No chão nem sombra de formiga mortas e vivas desapareciam com a luz do dia Voltei tarde essa noite um colega tinha se casado e teve festa Vim animada com vontade de cantar passei da conta Só na escada é que me lembrei o anão Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro Hoje não vou dormir quero ficar de vigia ela avisou O assoalho ainda estava limpo Me abracei ao urso Estou com medo Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir Fico vigiando pode dormir sossegada Por enquanto não apareceu nenhuma não está na hora delas é daqui a pouco que começa Examinei com a lupa debaixo da porta sabe que não consigo descobrir de onde brotam Tombei na cama acho que nem respondi No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto Acorda acorda Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos Estava lívida E vesga Voltaram ela disse Apertei entre as mãos a cabeça dolorida Estão aí Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz Acabei dormindo em cima da mesa estava exausta Quando acordei a trilha já estava em plena movimentação Então fui ver o caixotinho aconteceu o que eu esperava O que foi Fala depressa o que foi Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama Estão mesmo montando ele E rapidamente entende O esqueleto já está inteiro só falta o fêmur E os ossinhos da mão esquerda fazem isso num instante Vamos embora daqui Você está falando sério Vamos embora já arrumei as malas A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados Mas sair assim de madrugada Podemos sair assim Imediatamente melhor não esperar que a bruxa acorde Vamos levanta E para onde a gente vai Não interessa depois a gente vê Vamos vista isto temos que sair antes que o anão fique pronto Olhei de longe a trilha nunca elas me pareceram tão rápidas Calcei os sapatos descolei a gravura da parede enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas mais intenso o cheiro que vinha do quarto deixamos a porta aberta Foi o gato que miou comprido ou foi um grito No céu as últimas estrelas já empalideciam Quando encarei a casa só a janela vazada nos via o outro olho era penumbra Senhor Diretor Seca no Nordeste Na Amazônia cheia leu Maria Emília na manchete do jornal preso aos varais da banca com prendedores de roupa Desviou o olhar severo para a capa da revista com a jovem de biquíni amarelo na frente ele atrás enlaçandoa na altura dos seios nus amassados sob os braços peludos Estavam molhados com se tivessem saído juntos de uma ducha Sérios Por que todas essas fotos obscenas tinham esse ar agressivo Emendados feito animais E brilhosos escorrendo uma água oleosa desde Sodoma e Gomorra os óleos e unguentos perfumados fazendo parte das orgias Até a manteiga imagine a inocente manteiga Audácia da Mariana em contar o episódio da manteiga aquela indecência que viu num cinema em Paris E se sacudindo de rir foi tão engraçado Mimi ele dançando o tango de calças abaixadas tão cômico E confessou que viu o filme duas vezes para entender melhor aquele pedaço a debiloide É o cúmulo Disse que apareceu uma marca de manteiga que aproveitou para fazer sua propaganda funcional com ou sem sal Três anos mais velha do que eu sessenta e quatro e meio E se deliciando com a cena de um anormal pedindo manteiga Como é que as autoridades permitem tamanho deboche Falta de respeito De pudor Se uma mulher de sessenta e quatro anos e meio se deixa levar como uma folha na correnteza o que dizer então dos jovens Meus Céus meus Céus os frágeis jovens sem estrutura sem defesa vendo esses filmes Essas publicações Televisão é outro foco de imoralidade Anúncios mais sujos uma afronta Hoje mesmo escreveria uma carta ao Jornal da Tarde carta vazada em termos educados Suspirou Ainda há pessoas educadas mas que também a fisionomia endureceu podem ficar coléricas Senhor Diretor antes e acima de tudo quero me apresentar professora aposentada que sou paulista solteira Um momento solteira não imagine por que declinar meu estado civil Basta isto uma professora paulista que tomou a liberdade de lhe escrever porque a ninguém mais lhe ocorre expor sua revolta mais do que revolta seu horror diante desse espetáculo que a nossa pobre cidade nos obriga a presenciar desde o instante em que se põe o pé na rua O pé na rua A coisa já invadiu a intimidade dos nossos lares não tenho filhos é lógico mas se tivesse estaria agora desesperada essa mania de iniciar as crianças em assuntos de sexo esses livros esses programas infantis Senhor Diretor e esses programas que conspurcam nossas inocentes crianças e o filme que fizeram com a manteiga Um momento espera esse pedaço não digo que a tevê está exorbitando de um modo geral em nos impor a imagem da boçalidade e digo que resisti em comprar uma televisão Senhor Diretor Mas sou sozinha e às vezes a solidão A perigosa solidão Mas fico vigilante aprumouse levantou a cabeça para não acontecer comigo o que aconteceu com a Mariana tão fina tão prendada Família tradicional de um dos melhores troncos paulistas olha aí a Mariana Viagem joia Fiz compras lindas mas está na hora de voltar porque minha calça já perdeu o vinco escreveu no cartão que me mandou de Manaus A calça perdeu o vinco e ela a vergonha Sessenta e quatro anos e meio Quem visse podia pensar É uma jovem que foi fazer contrabando Espera jovem não que jovem não se importa com vinco de calça postal de uma velha mesmo e com medo de parecer desatualizada Então conta bandalheiras me diz ôi no telefone e usa calça grudada no derrière Só falta usar aquelas camisetas com coisas escritas nas costas Tanto medo Senhor Diretor Tanto medo Eu também tenho medo é duro envelhecer reconheço Mas e o orgulho Apertou a bolsa contra o peito e lançou um olhar em redor Meus cabelos branquearam meus dentes escureceram e minhas mãos Senhor Diretor estas mãos que era voz corrente foram sempre o que tive de mais bonito Olhou as próprias mãos enluvadas Ainda bem que estão enluvadas A senhora me dá licença disse o vendedor de jornais despregando do varal a revista com os jovens escorrendo água Ela afastouse com um olhar desaprovador para a mocinha de olhos bistrados mascando chiclete de bola queria a revista e queria também uma novela em quadrinhos Aquela ali pediu e entre os lábios o chiclete estufou rosado até estourar num puf Maria Emília voltou depressa para o outro lado o rosto desgostoso eis aí Já estava escrevendo uma outra carta meus Céus não misturar os assuntos que velhice era outro tópico agora tinha que se concentrar nessa sufocante vaga de vulgaridade que contaminava até as pedras A poluição também ficaria para uma outra vez o que interessava denunciar era essa poluição da alma A Mariana por exemplo Está resistindo bem ao ar até que está saudável apesar da asma mas e por dentro Resistir quem há de Uma ilusão gemia em cada canto gemia ou chorava Tempo de sentimento De poesia Agora o tempo ficou só de detergentes para as pias desodorantes para as partes a quantidade de anúncios de desodorantes Como se o simples sabão não resolvesse mais Mariana ouvia a publicidade na tevê no rádio entrava nos mercados e comprava tudo até pílulas homeopáticas para excesso e escassez mas Mariana minha querida já faz tanto tempo que você está na menopausa Ela riu meu Deus é claro ando atordoada com tanta ordem que eles dão não é que acabei me distraindo Um dia ainda vai me dizer que foi lançado o ser biônico para damas e cavalheiros solitários a tevê deu Mimi fazem tudo com a gente Portátil Eletrodomésticos Eletrochoques Desconfio às vezes que ela está ficando louca que todos estamos ficando loucos Que estamos nos afastando cada vez mais de um planeta de paz e nos aproximando rapidamente de outro planeta só de aflição só de violência essa ideia é boa e daí Senhor Diretor é preciso alertar a população alertar as autoridades temos que neutralizar essa influência perversa O senhor eu a elite pode estar a salvo Mas e os outros Quando fui de ônibus para Brasília eu mesma não me envolvi como uma criança débil Por toda parte só um anúncio Beba CocaCola Beba CocaCola Nas estradas nas cidades nas árvores e nas fachadas nos muros e nos postes até no toalete de lanchonetes perdidas lá no inferno velho a ordem Beba CocaCola E eu então ai de mim com toda a ojeriza que tenho por esse refrigerante pensando em pedir uma tônica com limão ou um guaraná naquele calor e naquele cansaço cheguei no balcão e pedi uma CocaCola gelada Acordei do obumbramento engolindo aquela coisa marrom com gosto de sabonete de trem tinha um trem faz tanto tempo Senhor Diretor com esse sabonete redondo e preto dependurado na correntinha do toalete Meu pai me ajudava a esfregar as mãos eu era uma menininha de cachos mas até hoje sinto o cheiro daquela espuma Imagine se papai estivesse vivo e soubesse do que aconteceu no Municipal um moço subindo no palco e fazendo a necessidade ali em cima dos dourados sob as vistas de Carlos Gomes de Verdi Espera melhor cortar esse pedaço mais objetividade insistir apenas nisso no perigo dessa propaganda que bem dirigida pode até torcer um destino como aquele mágico torcia talheres A ordem de beber CocaCola não corresponde de um certo modo a essa ordem de fazer amor Faça amor faça amor Cheguei um dia a ter uma miragem quando em lugar da garrafinha escorrendo água no anúncio vi um fálus no fundo vermelho Em ereção espumejando no céu de fogo horror horror nunca vi nenhum fálus mas a gente não acaba mesmo fazendo associações desse tipo E os santos meus Céus como é que estão se defendendo os que têm vocação para a santidade É preciso ter couro de jacaré para aguentar tamanho impacto E esta pobre pele tão fina apesar do tempo ainda preservada nas partes cobertas Não foi no jornal que a Mariana leu o fascínio que tem por jornais populares o caso daquele moço Monstruosidade o moço que pegou uma garrafinha de CocaCola e enfiou quase inteira lá dentro da menina horrível quando chegaram ao hospital ela já estava agonizando Mas por que fez isso monstro o delegado perguntou e ele respondeu chorando aos gritos que também não sabia não sabia só se lembrava que uma vez leu numa revista que em Hollywood numa festa que durou três dias um artista enfiou uma garrafa de champanhe na namorada quando também não conseguiu fazer naturalmente Mas me lembrei disso por lembrar ideias extravagantes Assustouse com a buzina de um carro que passou rente à calçada levantando poeira Mas é preciso buzinar assim Aproximouse novamente da banca e percorreu com o olhar incerto o jornal que o vento sacudia E se fosse tranquilamente ler na praça Mas a praça devia estar tão suja que prazer podia se encontrar numa praça assim Era um bom assunto para a carta a sujeira dos nossos jardins o único problema é que podia ficar comprida demais E queria ser breve Mas é difícil ser breve Senhor Diretor Tão difícil O Nordeste passa por uma forte estiagem que já destruiu mais de 90 da produção agrícola ao passo que a Amazônia sofre o flagelo das cheias com a chegada das chuvas leu Maria Emília Desespero na escassez Desespero no excesso Não tive ninguém mas Mariana exorbitou três maridos sem falar nos amantes Rim quente Se ela pudesse fazer uma plástica ainda ia continuar mas Doutor Braga foi positivo Se a senhora se opera fica na mesa que seu coração não aguenta está me compreendendo Compreendeu Ainda bem A Elza não ficou Outra vítima da publicidade a querida Elza Lastimava tanto a agitação de Mariana se gabava de aceitar a velhice sem resistência a pobre querida Mas tanto ouviu contar das rainhas e estrelas de cinema chegando de longe para renovar a cara que acabou se impressionando era muito impressionável O telefonema de madrugada Dona Maria Emília eu queria avisar que o enterro da vovó vai ser às nove horas sabemos que eram tão amigas Mas enterro de quem meus Céus Da Elza Mas a Elza morreu Não a Elza não Estivemos juntas faz dois dias ela estava esplêndida Síncope Síncope cardíaca Mesmo em meio do meu pranto senti as reticências do neto cheguei a pensar num absurdo quer ver que ela se matou Enterro às nove Quando me debrucei no caixão é que entendi tudo a querida a pobre querida com a cara toda pincelada de mercurocromo Morreu na anestesia quando o tal médico com nome de bicho como é mesmo bem quando ele já se preparava para os primeiros cortes Imagine operar uma velha Elza tinha seguramente seis anos mais do que eu Mas é proibido envelhecer Outro ponto importante Senhor Diretor devia haver um dispositivo regulando isso essa velharada se operando por aí já com começo de esclerose Nem agonizantes escapam lembra da prima do Leal que estava com aquela doença Um mês antes da morte a pobrezinha inventou de puxar a cara e o médico sabia o mercenário O consolo é que ela morreu bastante remoçada a tonta da Mariana veio me dizer na missa Um cinema Olhou o céu de um azulpálido Puro Uma pena trocar aquela tarde por uma sala escura mas ir aonde então Um chá Mas será que restara alguma confeitaria decente por ali Ficou olhando crispada o homem de cabelos emplastrados que se aproximou para examinar de perto o pôster colorido preso no varal inferior da banca Ele usava brilhantina e mesmo sem verlhe a cara podia adivinhar a cupidez dos olhinhos ramelosos deviam ser miúdos ramelosos colados ao biquíni vermelho da ruiva montada de frente numa cadeira empinados os bicos dos seios duros Botas chapéu de caubói um revólver em cada mão E o biquíni tão ajustado entre as pernas que se via nitidamente o montículo de pelos aplacados sob o cetim mais expostos do que se estivessem sem nada em cima Olha aí Senhor Diretor A imagem da mulher objeto como dizem as meninas lá do grupo feminista Meninas inteligentes cultas quase todas de nível universitário Mas meus Céus se ao menos fossem mais moderadas Mais discretas Reivindicar tanta coisa ao mesmo tempo tanta mudança de repente não pode ser prejudicial Um abalo nas nossas raízes acho que estão correndo demais Com a idade delas eu nem pensava por exemplo nesta palavra prostituta E a própria se levanta e começa a defender a profissão pensei que não estivesse entendendo direito profissão E a jovem ali em carne e osso precisei me beliscar Mas será que estou acordada Até que tinha um jeitinho de secretária de uma dessas firmas americanas o perfil mimoso que me fez lembrar uma antiga colega do Des Oiseaux a Carola que morreu antes da nossa primeira comunhão Juro que me esforcei para compreender participar de sua cólera a mundana estava colérica com uma série de coisas realmente deploráveis que a polícia faz com essas mulheres Então tentei ficar solidária na cólera e descobri que estava era com raiva dela ora que despautério Será que não podia escolher uma outra atividade Assegurar sua liberdade profissional que topete Quando se levantou a advogada de óculos respirei agora o nível das discussões vai subir pensei e até que no começo ela foi bastante feliz quando fez uma exposição das raízes históricas da condição da mulher acho tão nobre essa expressão condição da mulher E de repente desatou a falar em clitóris porque o clitóris o clitóris E com homens por ali eu já não sabia onde enfiar a cabeça quando ela contou que não sei mais em que país eles faziam uma incisão no clitóris da mulher para que ela não sentisse nenhum prazer o sexo transformado em agulheiro simples instrumento de penetração E deu outros exemplos igualmente horríveis Concordo uma crueldade essas práticas todas Mas trazer isso para um debate Quis disfarçar mostrar que não estava chocada mas quando dei conta de mim estava aplaudindo mais do que todas sempre acontece que por timidez por medo do palco acabo entrando no próprio Se frequentasse esse grupo ia acabar como a Mariana de jeans e dedos cheios de anéis Os crimes contra a mulher agora lembro era esse o tema da mesaredonda Eu acuso eu acuso repetia uma moça de bata rendada grávida e defendendo o direito de abortar tinha sido estuprada em plena rua e agora atacava até o Papa Deus que me perdoe a heresia mas em casos assim extremos quem sabe seria mesmo aconselhável alguma medida que interrompesse a gestação Fiquei com muita pena Eu acuso eu acuso ela repetia com os olhos cheios de lágrimas mas ao mesmo tempo aceitar o aborto oh essa palavra tão forte Fiquei deprimida pensando na mamãe que não fez a tal incisão mas que nunca sentiu o menor prazer E teve oito filhos Oito Quarenta anos de casamento sem prazer um agulheiro calado Mas já estou enveredando por outros caminhos que difícil meus Céus dizer exatamente o que se deseja dizer tanta coisa vem pelo meio A Forma fria e espessa é um sepulcro de neve E a Palavra pesada abafa a Ideia leve escreveu Olavo Bilac na Inania Verba Meu poeta predileto Senhor Diretor sempre gostei de poesia Até declamava E se no final da carta à guisa de quem pede desculpas transcrever esses versos Mas espera vamos pelo princípio Senhor Diretor antes e acima de tudo quero me apresentar professora que sou Paulista Aposentada Paulista aposentada olha aí a tolice Professora que sou aposentada Com duas rugas fundas entre as sobrancelhas de tanto olhar brava para as meninas não vou escrever esse pedaço mas me lembro bem do começo dessas rugas querendo com elas segurar aquela meninada que vinha espumejante como um rio cobrindo tudo tamanha força uma classe depois da outra uma depois da outra por que me fazem pensar num rio sem princípio nem fim Eu ficava sem voz de tanto pedir silêncio a garganta escalavrada Então olhava com essa cara e elas iam sossegando durante alguns minutos ficavam com medo Para recomeçar em seguida na maior algazarra os peitinhos empurrando o avental excitadas úmidas explodiam principalmente no verão Eu evitava roçar nelas quando voltavam do recreio mais forte o cheiro ácido de suor e poeira mastigando ainda a banana o pão com manteiga Os gritos os risos a raiva tudo uma coisa só No fim do ano se despediam chorando me davam flores Todas me esqueceram A marca ficou só em mim nesse meu jeito de olhar as pessoas vigilante desconfiada A verdade é que eu tinha medo delas como elas tinham medo de mim mas seu medo era curto O meu foi tão longo Senhor Diretor Tão longo Lançou um último olhar para a banca de jornais onde o jornaleiro palitava os dentes e proseava com o homem da brilhantina Uma altiva dama bem distante de toda essa frivolidade os dois deviam estar pensando quando passou diante deles pisando com firmeza emocionada com a própria distinção Foi indo pela calçada batida de sol Não era mesmo uma delicadeza aquele sol Levou a mão à lapela do casaco para se certificar a camélia ainda estava ali Uma pequena extravagância Senhor Diretor hoje é o meu aniversário e como estava um domingo tão azul prendi aqui esta flor Meu costume é sóbrio meu penteado é sóbrio Uma sóbria senhora que se permitiu usar uma flor Posso Deixou que os lábios se distendessem num discreto sorriso que a fez pensar na Gioconda tinha a gravura fixada no vidro da estante o sorriso assim mesmo reticente maduro de sabedoria apertou os olhos e inabordável Devia ser também uma mulher só essa Gioconda Adentrando a velhice pisou com mais firmeza e intacta Apertou a bolsa debaixo do braço e cruzou molemente as mãos na altura do peito num movimento de pontas de xale as longas franjas relaxou os dedos pendendo mas o que significa isso Fechou o sorriso Essa mulher aí de minissaia vindo toda rebolante com o homem de óculos escuros Varizes nas pernas E a inconsciente com o saiote ridículo mostrando a rendinha da calça mas e a polícia Não tem mais polícia nesta terra Logo atrás uma pequena prostituta catorze anos mal se equilibrando nos tamancos com grossas plataformas de cortiça as pálpebras pesadas de purpurina verde Colado ao seu calcanhar um velho com perfil de caçador meus Céus mas onde anda o juizado de menores Em pleno dia Um farrapo de papel higiênico azul levantouse do lixo amontoado na esquina e veio em voo rasteiro ondulante no inesperado vento Ela desviouse rápida e a serpentina se enrolou no tornozelo do homem que vinha um pouco atrás descascando uma tangerina O homem ia atirando as cascas para os lados semeador alegre Realizado Quando emparelhou com ele ostensivamente ela indicou num movimento de cabeça a lixeira metálica presa ao poste São Paulo é uma cidade limpa estava escrito na lixeira quase vazia Mas o homem prosseguia cuspindo os caroços com força como uma criança disputando com outra para ver quem consegue cuspir mais longe Compete à prefeitura Senhor Diretor estudar urgentemente um projeto de educação desse povo que tem a idade mental daquelas meninas que eu ia fiscalizar quando saíam do reservado Puxou a descarga eu perguntava E a cara inocente de susto Ai esqueci Mas será que só eu no meio desta multidão se importa Se constrange Parou desarvorada na esquina Avançou o olhar por cima dos carros até o imenso cartaz de cinema no outro lado da rua Filme nacional Nacional claro se tem cama mulher com cara de gozo e homem em trajes menores só pode ser cinema brasileiro uma verdadeira afronta incrível como a censura permite Não a carta não seria sobre o lixo nada de misturar os assuntos a sujeira interna Senhor Diretor essa é pior do que o lixo atômico porque não se lava com uma simples escova Acelerou a marcha devia ter outro cinema adiante esperaria pela noite num cinema Agradeço muito meus queridos mas hoje já tenho um compromisso com um grupo de amigas vão me oferecer um chá vocês não se importam se marcarmos um outro dia Os sobrinhos protestaram até que se importavam e muito oh mas que tia ingrata esnobando a sobrinhada no dia do aniversário E bem no fundo será que não sentiram a maliciosa alegriazinha de quem acaba de ganhar uma tarde E sem remorso pois não foi ela que recusou Agora ali estava cercada de gente por todos os lados E ainda mais solitária do que fechada no quarto onde seus objetos lhe asseguravam a memória já na faixa da insegurança badulaques Retratos Vontade de voltar depressa mas não saíra para fazer um programa Não posso estar com vocês porque me comprometi com minhas amigas As amigas Eleonora de bacia quebrada a coitadinha Mariana se embaralhando em alguma mesa a cabeça já não dava nem para um sete e meio e inventou de aprender bridge não estava na moda Beatriz pajeando o bando de netos enquanto a nora adernava no oitavo mês E Elza estava morta No fim do quarteirão um cinema menor exibia cartazes com cenas de caçadores num safári Interessouse pela foto da loura sendo atacada por um crocodilo enquanto o caçador mas que homem lindo era pisoteado por um javali Ainda bem O porteiro informou que o filme já ia adiantado por acaso não preferia entrar na próxima sessão Agradeceu mas não podia esperar a temperatura estava caindo logo mais seria inverno com um chuvisco e esquecera o guardachuva Também esqueci o meu ele disse e ela o encarou mais demoradamente Não era mesmo gentil Em meio da invasão dos bárbaros ainda restavam alguns antigos habitantes da aldeia raros sim completamente derrotados a roupa do porteiro mal guardara a cor mas conservando o sentimento do respeito ao próximo não não pedia amor mas ao menos respeito Desceu a escada apoiada ao corrimão E sob o olhar dele tão zeloso podia até jurar que a seguia Cuidado com os degraus Entrou emocionada no aconchego da sala escura Pouca gente Descansou a bolsa no colo abriu o botão da gola da blusa e colocou os óculos Na tela um barbudo de cabelos esgrouvinhados espiava por entre a folhagem uma loura que tinha ido nadar nua na lagoa Ela foi afundando na poltrona enquanto a loura emergia do fundo na direção do homem Meus Céus também aqui Fixou o olhar no casal todo enrolado na fileira da frente Beijavamse com tanta fúria que o som pegajoso era ainda mais nítido do que o barulho dos dois corpos amassando a folhagem na tela Um pouco adiante na mesma fileira outro casal que acabara de chegar já se atracava resfolegante a mão dele procurando sob as roupas dela encontrou Encontrou Podia sentir o hálito ardente dos corpos se sacudindo tão intensamente que toda a tosca fila de cadeiras começou a se sacudir no mesmo ritmo Encolheuse Feito bichos O melhor era não ligar pensar em outra coisa que coisa A manchete tinha memória excelente no colégio podia repetir uma página inteira lida duas ou três vezes O Nordeste passa por uma forte estiagem por uma forte estiagem mas onde anda o homem da lanterninha não tem mais esse homem Eram tão atentos os vagalumes acendendo suas lanternas na cara dos inconvenientes Mas não vai clarear Se ao menos clareasse Segurou com força no assento e o couro da poltrona lhe pareceu viscoso Sêmen Calçou as luvas e juntou as pernas Senhor Diretor antes e acima de tudo quero me apresentar professora aposentada que sou Paulista Virgem Fechou os olhos virgem virgem verdadeira não é para escrever mas não seria um dado importante Desabotoou o segundo botão a blusa encolheu na lavagem ou seu pescoço estava mais grosso Sentiuse desalinhada descomposta mas deixa eu ficar um pouco assim está escuro ninguém está prestando atenção em mim nem no claro prestam quem é que está se importando quem E se por acaso o certo for isso mesmo que está aí Esse gozo essa alegria úmida nos corpos Nas palavras Esse arfar espumejante como o rio daquelas meninas aquelas minhas alunas que eram como um rio tentou detêlo com sua voz rouca com seus vincos e o rio transbordou inundando tudo camas casas ruas E se o normal for o sexo contente da moça suspirando aí nessa poltrona pois não seria para isso mesmo que foi feito Virgem Senhor Diretor Que sei eu desse desejo que ferve desde a Bíblia todos conhecendo e gerando e conhecendo e gerando homens plantas bichos Mamãe tinha medo do sexo herdei esse medo não foi dela que herdei Aquelas moças lá do movimento feminista tão desreprimidas tão soltas será que são assim mesmo ou representam Nenhum pudor falam de tudo Fazem tudo Meu constrangimento quando me queixei para mamãe e o constrangimento dela quando me levou à médica só uma mulher podia examinar minhas partes baixava a voz quando dizia partes Minha filha está com um pouco de corrimento disse e fez aquela cara infeliz Enrijeci as pernas quando o dedo enluvado me tocou e me lembrei dela dizendo à minha avó que cumpria seus deveres de esposa sem nenhum prazer até o amargo fim Até o amargo fim mamãe A fonte do seu sofrimento era agora esta fonte de onde corria um fluxo Tentei me descontrair na posição medonha você está tão dura menina parece de ferro relaxa que não vou te machucar e olhei para mamãe Ela era inteira uma estátua lacrimosa apertando solidária a minha mão Pronto pode vestir a calcinha ordenou a voz por entre minhas pernas Nada grave menina você tem floresbrancas às vezes as virgens padecem disso Flores brancas Secaram Senhor Diretor também elas foram secando Seca tudo a velhice é seca toda água evaporou de mim minha pele secou as unhas secaram o cabelo que estala e quebra no pente O sexo sem secreções Seco Faz tempo que secou completamente fonte selada A única diferença é que um dia no Nordeste volta a chuva Na tela o homem do safári entrou na tenda e deitouse sob o mosquiteiro fumando tristíssimo porque a amante mulher do amigo estava de partida era mais uma história de traição Soubera de tantas a começar por Mariana quando veio lhe pedir chorando que não ficasse brava que não a condenasse Não briga comigo Mimi mas estou apaixonada pelo Afonso Que Afonso Mariana Só conheço um o amigo do seu marido não é o amigo do seu marido E os olhos de Mariana se abrindo feito duas torneiras amigo íntimo Foi implacável brigou Você é uma louca Mariana uma louca varrida por que não escolheu ao menos um homem de fora um estranho E ela enxugando a cara perplexa Mas Mimi então você não compreende A gente acaba se apaixonando pelos homens da roda mesmo Afonso é parecido com meu marido parecido comigo a gente tem os mesmos gostos frequenta os mesmos lugares e um dia se olha e então é tarde É tarde ficou repetindo e sacudindo a cabeça desarvorada os cabelos ainda castanhos ainda com a cor natural na velhice é que tingiu as mechas de louro acinzentado Não me condene pediu tanto Condeneia sim e com que rigor Não seria pura inveja Esse meu sentimento de superioridade Desprezo Inveja meus Céus Eu tinha inveja da sua vida inquieta imprevista rica de acontecimentos rica de paixão era então inveja Olha que você pintou e bordou eu lhe disse outro dia e ela riu e seu olhar ficou úmido como se ainda fosse jovem juventude é umidade Os poros fechados retendo a água da carne sumorosa que fruta lembra pêssego Que a gente morde e o sumo escorre cálido a gente Que os outros morderam que sei eu dessa fruta Entrelaçou as mãos no regaço Assim no escuro as luvas pareciam tão brancas como se nunca tivessem tocado em nada Fechou depressa os braços contra o corpo para não roçar com o cotovelo no homem que se sentou na poltrona ao lado Coma com as asas fechadas mamãe me dizia Viva com as asas fechadas podia ter dito Sim o meu amor por Deus Mas tanta disciplina tanta exatidão pode se chamar de amor Se ao menos tivesse entrado para um convento me abrasado nas vigílias nos jejuns dilacerando pés e mãos na piedade que provas dei da minha devoção É a vontade de Deus mamãe costumava dizer e eu fiquei repetindo É a vontade de Deus mas seria mesmo Que sei eu dessa Vontade Minha nota subiu professora Só se o caderno estiver em ordem sem rasgões ou nódoas encapado com papelmanteiga verde Manteiga com ou sem sal Que sei eu desse rio com seus descaminhos Mas não é no coração que vão dar todos eles O coração ele também não se irriga nesse amor Abriu a bolsa tirou o lenço e enxugou os olhos Através do vidro embaçado dos óculos pressentiu que o filme chegava ao fim e desejou ardentemente que ele se prolongasse agora não queria mais a claridade espera estava tão desalinhada meus Céus deixa me abotoar e este cabelo onde foi parar o grampo Apalpou depressa a lapela do casaco desprendeu a camélia e guardou a no fundo da bolsa A lágrima contornoulhe a boca limpou a boca como fui me comover desse jeito Feito uma velha tonta espera eu estava querendo dizer que a nossa cidade Senhor Diretor que esta pobre cidade que é que tem mesmo esta pobre cidade Acabei falando em outras pessoas em mim Espera vamos começar de novo sim a carta Senhor Diretor antes e acima de tudo Antes e acima de tudo Senhor Diretor Senhor Diretor Senhor Diretor Tigrela Encontrei Romana por acaso num café Estava meio bêbada mas lá no fundo da sua transparente bebedeira senti um depósito espesso subindo rápido quando ficava séria Então a boca descia pesada fugidio o olhar que se transformava de caçador em caça Duas vezes apertou minha mão Eu preciso de você disse Mas logo em seguida já não precisava mais e esse medo virava indiferença quase desprezo com um certo traço torpe engrossando o lábio Voltava a ser adolescente quando ria a melhor da nossa classe sem mistérios Sem perigo Fora belíssima e ainda continuava mas sua beleza corrompida agora era triste até na alegria Contoume que se separou do quinto marido e vivia com um pequeno tigre num apartamento de cobertura Com um tigre Romana Ela riu Tivera um namorado que andara pela Ásia e na bagagem trouxera Tigrela dentro de um cestinho era pequenina assim precisou criála com mamadeira Crescera pouco mais do que um gato desses de pelo fulvo e com listras tostadas o olhar de ouro Dois terços de tigre e um terço de mulher foi se humanizando e agora No começo me imitava tanto era divertido comecei também a imitála e acabamos nos embrulhando de tal jeito que já não sei se foi com ela que aprendi a me olhar no espelho com esse olho de fenda Ou se foi comigo que aprendeu a se estirar no chão e deitar a cabeça no braço para ouvir música é tão harmoniosa Tão limpa disse Romana deixando cair o cubo de gelo no copo O pelo é desta cor acrescentou mexendo o uísque Colheu com a ponta dos dedos uma lâmina de gelo que derretia no fundo do copo Trincoua nos dentes e o som me fez lembrar que antigamente costumava morder o sorvete Gostava de uísque essa Tigrela mas sabia beber era contida só uma vez chegou a ficar realmente de fogo E Romana sorriu quando se lembrou do bicho dando cambalhotas rolando pelos móveis até pular no lustre e ficar lá se balançando de um lado para outro fez Romana imitando frouxamente o movimento de um pêndulo Despencou com metade do lustre no almofadão e aí dançamos um tango juntas foi atroz Depois ficou deprimida e na depressão se exalta quase arrasou com o jardim rasgou meu chambre quebrou coisas No fim quis se atirar do parapeito do terraço que nem gente igual Igual repetiu Romana procurando o relógio no meu pulso Recorreu a um homem que passou ao lado da nossa mesa As horas as horas Quando soube que faltava pouco para a meianoite baixou o olhar num cálculo sombrio Ficou em silêncio Esperei Quando recomeçou a falar me pareceu uma jogadora excitada escondendo o jogo na voz artificial Mandei fazer uma grade de aço em toda a volta da mureta se quiser ela trepa fácil nessa grade é claro Mas já sei que só tenta o suicídio na bebedeira e então basta fechar a porta que dá para o terraço Está sempre tão lúcida prosseguiu baixando a voz e seu rosto escureceu O que foi Romana perguntei tocandolhe a mão Estava gelada Fixou em mim o olhar astuto Pensava em outra coisa quando me disse que no crepúsculo quando o sol batia de lado no topo do edifício a sombra da grade se projetava até o meio do tapete da sala e se Tigrela estivesse dormindo no almofadão era linda a rede de sombra se abatendo sobre seu pelo como uma armadilha Mergulhou o dedo indicador no copo fazendo girar o gelo do uísque Usava nesse dedo uma esmeralda quadrada como as rainhas Mas não é mesmo extraordinário O pouco espaço do apartamento condicionou o crescimento de um tigre asiático na sábia mágica da adaptação não passava de um gatarrão que exorbitou como se intuísse que precisava mesmo se restringir não mais do que um gato aumentado Só eu sei que cresceu só eu notei que está ocupando mais lugar embora continue do mesmo tamanho ultimamente mal cabemos as duas uma de nós teria mesmo que Interrompeu para acender a cigarrilha a chama vacilante na mão trêmula Dorme comigo mas quando está de mal vai dormir no almofadão Deve ter dado tanto problema E os vizinhos perguntei Romana endureceu o dedo que mexia o gelo Não tinha vizinhos um apartamento por andar num edifício altíssimo todo branco estilo mediterrâneo Você precisa ver como Tigrela combina com o apartamento Andei pela Pérsia você sabe não E de lá trouxe os panos os tapetes ela adora esse conforto veludoso é tão sensível ao tato aos cheiros Quando amanhece inquieta acendo um incenso o perfume a amolece Ligo o tocadiscos Então dorme em meio de espreguiçamentos desconfio que vê melhor de olhos fechados como os dragões Tivera algum trabalho em convencer Aninha de que era apenas um gato desenvolvido Aninha era a empregada Mas agora tudo bem as duas guardavam uma certa distância e se respeitavam o importante era isso o respeito Aceitara Aninha que era velha e feia mas quase agredira a empregada anterior uma jovem Enquanto essa jovem esteve comigo Tigrela praticamente não saiu do jardim enfurnada na folhagem o olho apertado as unhas cravadas na terra As unhas eu comecei e fiquei sem saber o que ia dizer em seguida A esmeralda tombou de lado como uma cabeça desamparada e foi bater no copo o dedo era fino demais para o aro O som da pedra no vidro despertou Romana que me pareceu por um momento apática Levantou a cabeça e vagou o olhar pelas mesas repletas Que barulho não Sugeri que saíssemos mas ao invés da conta pediu outro uísque Fique tranquila estou acostumada disse e respirou profundamente Endireitou o corpo Tigrela gostava de joias e de Bach sim Bach insistia sempre nas mesmas músicas particularmente na Paixão Segundo São Mateus Uma noite enquanto eu me vestia para o jantar ela veio me ver detesta que eu saia mas nessa noite estava contente aprovou meu vestido prefere vestidos mais clássicos e esse era um longo de seda cor de palha as mangas compridas a cintura baixa Gosta Tigrela perguntei e ela veio pousou as patas no meu colo lambeu de leve meu queixo para não estragar a maquilagem e começou a puxar com os dentes meu colar de âmbar Quer para você perguntei e ela grunhiu delicada mas firme Tirei o colar e o enfiei no pescoço dela Viuse no espelho o olhar úmido de prazer Depois lambeu minha mão e lá se foi com o colar dependurado no pescoço as contas maiores roçando o chão Quando está calma o olho fica amarelo bem clarinho da mesma cor do âmbar Aninha dorme no apartamento perguntei e Romana teve um sobressalto como se apenas naquele instante tivesse tomado consciência de que Aninha chegava cedo e ia embora ao anoitecer as duas ficavam sós Encareia mais demoradamente e ela riu Já sei você está me achando louca mas assim de fora ninguém entende mesmo é complicado E tão simples você teria que entrar no jogo para entender Vesti o casaco mas tinha esfriado Lembra Romana eu perguntei Da nossa festa de formatura ainda tenho o retrato você comprou para o baile um sapato apertado acabou dançando descalça na hora da valsa te vi rodopiando de longe o cabelo solto o vestido leve achei uma beleza aquilo de dançar descalça Ela me olhava com atenção mas não ouviu uma só palavra Somos vegetarianas sempre fui vegetariana você sabe Eu não sabia Tigrela só come legumes ervas frescas e leite com mel não entra carne em casa que carne dá mau hálito E certas ideias disse e apertou minha mão Eu preciso de você Inclineime para ouvir mas o garçom estendeu o braço para apanhar o cinzeiro e Romana ficou de novo frívola interessada na limpeza do cinzeiro Por acaso eu já tinha provado leite batido com agrião e melado A receita é facílima a gente bate tudo no liquidificador e depois passa na peneira acrescentou e estendeu a mão O senhor sabe as horas Você tem algum compromisso perguntei e ela respondeu que não não tinha nada pela frente Nada mesmo repetiu e tive a impressão de que empalideceu enquanto a boca se entreabria para voltar ao seu cálculo obscuro Colheu na ponta da língua o cubo diminuído de gelo trincouo nos dentes Ainda não aconteceu mas vai acontecer disse com certa dificuldade porque o gelo lhe queimava a língua Fiquei esperando O largo gole de uísque pareceu devolverlhe algum calor Uma noite dessas quando eu voltar para casa o porteiro pode vir correndo me dizer A senhora sabe De algum desses terraços Mas pode também não dizer nada e terei que subir e continuar bem natural para que ela não perceba ganhar mais um dia Às vezes nos medimos e não sei o resultado ensineilhe tanta coisa aprendi outro tanto disse Romana esboçando um gesto que não completou Já contei que é Aninha quem lhe apara as unhas Entregalhe a pata sem a menor resistência mas não permite que lhe escove os dentes tem as gengivas muito sensíveis Comprei uma escova de cerda natural o movimento da escova tem que ser de cima para baixo bem suavemente a pasta com sabor de hortelã Não usa o fio dental porque não come nada de fibroso mas se um dia me comer sabe onde encontrar o fio Pedi um sanduíche Romana pediu cenouras cruas bem lavadas E sal avisou apontando o copo vazio Enquanto o garçom serviu o uísque não falamos Quando se afastou comecei a rir É verdade Romana Tudo isso Não respondeu somava de novo suas lembranças e entre todas aquela que lhe tirava o ar respirou com esforço afrouxando o laço da echarpe A nódoa roxa apareceu em seu pescoço Desviei o olhar para a parede Através do espelho vi quando refez o nó e cheirou o uísque Riu Tigrela sabia quando o uísque era falsificado Até hoje não distingo mas uma noite ela deu uma patada na garrafa que voou longe Por que fez isso Tigrela Não me respondeu Fui ver os cacos e então reconheci era a mesma marca que me deu uma alucinante ressaca Você acredita que ela conhece minha vida mais do que Yasbeck E Yasbeck foi quem mais teve ciúme de mim até detetive punha me vigiando Finge que não liga mas a pupila se dilata e transborda como tinta preta derramando no olho inteiro eu já falei nesse olho É nele que vejo a emoção O ciúme Fica intratável Recusa a manta a almofada e vai para o jardim o apartamento fica no meio de um jardim que mandei plantar especialmente uma selva em miniatura Fica lá o dia inteiro a noite inteira amoitada na folhagem posso morrer de chamar que não vem o focinho molhado de orvalho ou de lágrimas Fiquei olhando para o pequeno círculo de água que seu copo deixou na mesa Mas Romana não seria mais humano se a mandasse para o zoológico Deixe que ela volte a ser bicho acho cruel isso de lhe impor sua jaula e se for mais feliz na outra Você a escravizou E acabou se escravizando tinha que ser Não vai lhe dar ao menos a liberdade de escolha Com impaciência Romana afundou a cenoura no sal Lambeua Liberdade é conforto minha querida Tigrela também sabe disso Teve todo o conforto como Yasbeck fez comigo até me descartar E agora você quer se descartar dela eu disse Em alguma mesa um homem começou a cantar aos gritos um trecho de ópera mas depressa a voz submergiu nas risadas Romana falava tão rapidamente que tive de interrompêla Mais devagar não estou entendendo nada Freou as palavras mas logo recomeçou o galope desatinado como se não lhe restasse muito tempo Nossa briga mais violenta foi por causa dele Yasbeck você entende aquela confusão de amor antigo que de repente reaparece às vezes ele me telefona e então dormimos juntos ela sabe perfeitamente o que está acontecendo Ouviu a conversa Quando voltei estava acordada me esperando feito uma estátua diante da porta está claro que disfarcei como pude mas é esperta farejou até sentir cheiro de homem em mim Ficou uma fera Acho que eu gostaria de ter um unicórnio você sabe aquele lindo cavalo alourado com um chifre corderosa na testa vi na tapeçaria medieval estava apaixonado pela princesa que lhe oferecia um espelho para que se olhasse Mas onde está esse garçom Garçom por favor pode me dizer as horas E traga mais gelo Imagine que ela passou dois dias sem comer entigrada prosseguiu Romana Agora falava devagar a voz pesada uma palavra depois da outra com os pequenos cálculos se ajustando nos espaços vazios Dois dias sem comer arrastando pela casa o colar e a soberba Estranhei Yasbeck tinha ficado de telefonar e não telefonou mandou um bilhete O que aconteceu com seu telefone que está mudo Fui ver e então encontrei o fio completamente moído as marcas dos dentes em toda a extensão do plástico Não disse nada mas senti que ela me observava por aquelas suas fendas que atravessam vidro parede Acho que naquele dia mesmo descobriu o que eu estava pensando ficamos desconfiadas mas ainda assim está me entendendo Tinha tanto fervor Tinha perguntei Ela abriu as mãos na mesa e me enfrentou Por que está me olhando assim O que mais eu poderia fazer Deve ter acordado às onze horas é a hora que costuma acordar gosta da noite Ao invés de leite enchi sua tigela de uísque e apaguei as luzes no desespero enxerga melhor no escuro e hoje estava desesperada porque ouviu minha conversa pensa que estou com ele agora A porta do terraço está aberta essa porta também ficou aberta outras noites e não aconteceu mas nunca se sabe é tão imprevisível acrescentou com voz sumida Limpou o sal dos dedos no guardanapo de papel Já vou indo Volto tremendo para o apartamento porque nunca sei se o porteiro vem ou não me avisar que de algum terraço se atirou uma jovem nua com um colar de âmbar enrolado no pescoço Herbarium Todas as manhãs eu pegava o cesto e me embrenhava no bosque tremendo inteira de paixão quando descobria alguma folha rara Era medrosa mas arriscava pés e mãos por entre espinhos formigueiros e buracos de bichos tatu cobra procurando a folha mais difícil aquela que ele examinaria demoradamente a escolhida ia para o álbum de capa preta Mais tarde faria parte do herbário ele tinha em casa um herbário com quase duas mil espécies de plantas Você já viu um herbário ele quis saber Herbarium ensinoume logo no primeiro dia em que chegou ao sítio Fiquei repetindo a palavra herbarium Herbarium Disse ainda que gostar de botânica era gostar de latim quase todo o reino vegetal tinha denominação latina Eu detestava latim mas fui correndo desencavar a gramática cor de tijolo escondida na última prateleira da estante decorei a frase que achei mais fácil e na primeira oportunidade apontei para a formiga saúva subindo na parede formica bestiola est Ele ficou me olhando A formiga é um inseto apresseime em traduzir Então ele riu a risada mais gostosa de toda a temporada Fiquei rindo também confundida mas contente ao menos achava alguma graça em mim Um vago primo botânico convalescendo de uma vaga doença Que doença era essa que o fazia cambalear esverdeado e úmido quando subia rapidamente a escada ou quando andava mais tempo pela casa Deixei de roer as unhas para espanto da minha mãe que já tinha feito ameaças de cortes de mesada ou proibição de festinhas no grêmio da cidade Sem resultado Se eu contar ninguém acredita disse ela quando viu que eu esfregava para valer a pimenta vermelha nas pontas dos dedos Fiz minha cara inocente na véspera ele me advertira que eu podia ser uma moça de mãos feias Ainda não pensou nisso Nunca tinha pensado antes nunca me importei com as mãos mas no instante em que ele fez a pergunta comecei a me importar E se um dia elas fossem rejeitadas como as folhas defeituosas Ou banais Deixei de roer as unhas e deixei de mentir Ou passei a mentir menos mais de uma vez ele me falou no horror que tinha por tudo quanto cheirava a falsidade escamoteação Estávamos sentados na varanda Ele selecionava as folhas ainda pesadas de orvalho quando me perguntou se já tinha ouvido falar em folha persistente Não Alisava o tenro veludo de uma malvamaçã A fisionomia ficou branda quando amassou a folha nos dedos e sentiu o seu perfume As folhas persistentes duravam até mesmo três anos mas as cadentes amareleciam e se despregavam ao sopro do primeiro vento Assim a mentira folha cadente que podia parecer tão brilhante mas de vida breve Quando o mentiroso olhava para trás via no final de tudo uma árvore nua Seca Mas o ser verdadeiro esse teria uma árvore farfalhante cheia de passarinhos e abriu as mãos para imitar o bater de folhas e asas Fechei as minhas Fechei a boca em brasa agora que os tocos das unhas já crescidas eram tentação e punição maior Podia dizerlhe que justamente por me achar assim apagada é que precisava me cobrir de mentira como se veste um manto fulgurante Dizerlhe que diante dele mais do que diante dos outros tinha de inventar e fantasiar para obrigálo a se demorar em mim como se demorava agora na verbena será que não percebia essa coisa tão simples Chegou ao sítio com suas largas calças de flanela cinza e grosso suéter de lã tecida em trança era inverno E era noite Minha mãe tinha queimado incenso era sextafeira e preparou o Quarto do Corcunda corria na família a história de um corcunda que se perdeu no bosque e minha bisavó instalouo naquele quarto que era o mais quente da casa não podia haver melhor lugar para um corcunda perdido ou para um primo convalescente Convalescente do quê Qual doença tinha ele Tia Marita que era alegrinha e gostava de se pintar respondeu rindo falava rindo que nossos chazinhos e bons ares faziam milagres Tia Clotilde embutida reticente deu aquela sua resposta que servia a qualquer tipo de pergunta tudo na vida podia se alterar menos o destino traçado na mão ela sabia ler as mãos Vai dormir feito uma pedra cochichou tia Marita quando me pediu que lhe levasse o chá de tília Encontreio recostado na poltrona a manta de xadrez cobrindolhe as pernas Aspirou o chá E me olhou Quer ser minha assistente perguntou soprando a fumaça A insônia me pegou pelo pé ando tão fora de forma preciso que me ajude A tarefa é colher folhas para a minha coleção vai juntando o que bem entender que depois seleciono Por enquanto não posso me mexer muito terá que ir sozinha disse e desviou o olhar úmido para a folha que boiava na xícara Suas mãos tremiam tanto que a xícara transbordou no pires É o frio pensei Mas continuaram tremendo no dia seguinte que fez sol amareladas como os esqueletos de ervas que eu catava no bosque e queimava na chama da vela Mas o que ele tem perguntei e minha mãe respondeu que mesmo que soubesse não diria fazia parte de um tempo em que doença era assunto íntimo Eu mentia sempre com ou sem motivo Mentia principalmente à tia Marita que era bastante tonta Menos à minha mãe porque tinha medo de Deus e menos ainda à tia Clotilde que era meio feiticeira e sabia ver o avesso das pessoas Aparecendo a ocasião eu enveredava por caminhos os mais imprevistos sem o menor cálculo de volta Tudo ao acaso Mas aos poucos diante dele minha mentira começou a ser dirigida com um objetivo certo Seria mais simples por exemplo dizer que colhi a bétula perto do córrego onde estava o espinheiro Mas era preciso fazer render o instante em que se detinha em mim ocupálo antes de ser posta de lado como as folhas sem interesse amontoadas no cesto Então ramificava os perigos exagerava as dificuldades inventava histórias que encompridavam a mentira Até ser decepada com um rápido golpe de olhar não com palavras mas com o olhar ele fazia a hidra verde rolar emudecida enquanto minha cara se tingia de vermelho o sangue da hidra Agora você vai me contar direito como foi ele pedia tranquilamente tocando na minha cabeça O olhar transparente Reto Queria a verdade E a verdade era tão sem atrativos como a folha da roseira expliqueilhe isso mesmo acho a verdade tão banal como esta folha Ele me deu a lupa e abriu a folha na palma da mão Veja então de perto Não olhei a folha que me importava a folha olhei sua pele ligeiramente úmida branca como o papel com seu misterioso emaranhado de linhas estourando aqui e ali em estrelas Fui percorrendo as cristas e depressões onde era o começo Ou o fim Demorei a lupa num terreno de linhas tão disciplinadas que por elas devia passar o arado Ih vontade de deitar minha cabeça nesse chão Afastei a folha queria ver apenas os caminhos O que significa este cruzamento perguntei e ele me puxou o cabelo Também você menina Nas cartas do baralho tia Clotilde já lhe desvendara o passado e o presente E mais desvendaria acrescentou ele guardando a lupa no bolso do avental branco às vezes vestia o avental O que ela previu Ora tanta coisa De mais importante só isso que no fim da semana viria uma amiga buscálo uma moça muito bonita podia ver até a cor do seu vestido de corte antiquado verdemusgo Os cabelos eram compridos com reflexos de cobre tão forte o reflexo na palma da mão Uma formiga vermelha entrou na greta do lajedo e lá se foi com seu pedaço de folha veleiro desarvorado soprado pelo vento Soprei eu também a formiga é um inseto gritei as pernas flexionadas pendentes os braços para diante e para trás no movimento do macaco Hi hi hu hu hi hi hu hu é um inseto um inseto repeti rolando no chão Ele ria e procurava me levantar você se machuca menina cuidado Cuidado Fugi para o campo os olhos desvairados de pimenta e sal sal na boca não não vinha ninguém tudo loucura uma louca varrida essa tia invenção dela invenção pura como podia Até a cor do vestido verde musgo E os cabelos uma louca tão louca como a irmã de cara pintada feito uma palhaça rindo e tecendo seus tapetinhos centenas de tapetinhos pela casa na cozinha na privada duas loucas Lavei os olhos cegos de dor lavei a boca pesada de lágrimas os últimos fiapos de unha me queimando a língua não Não Não existia ninguém de cabelo de cobre que no fim da semana ia aparecer para buscálo ele não ia embora nunca mais Nunca mais repeti e minha mãe que viera me chamar para o almoço acabou se divertindo com a cara de diabo que fiz disfarçava o medo fazendo caras de medo E as pessoas se distraíam com essas caras e não pensavam mais em mim Quando lhe entreguei a folha de hera com formato de coração um coração de nervuras trementes se abrindo em leque até as bordas verdeazuladas ele beijou a folha e levoua ao peito Espetoua na malha do suéter Esta vai ser guardada aqui Mas não me olhou nem mesmo quando saí tropeçando no cesto Corri até a figueira posto de observação onde podia ver sem ser vista Através do rendilhado de ferro do corrimão da escada ele me pareceu menos pálido A pele mais seca e mais firme a mão que segurava a lupa sobre a lâmina do espinho dobrejo Estava se recuperando não estava Abracei o tronco da figueira e pela primeira vez senti que abraçava Deus No sábado levantei mais cedo O sol forcejava a névoa o dia seria azul quando ele conseguisse rompêla Aonde você vai com esse vestido de maria mijona perguntou minha mãe me dando a xícara de café com leite Por que desmanchou a barra Desviei sua atenção para a cobra que inventei ter visto no terreiro toda preta com listras vermelhas seria uma coral Quando ela correu com a tia para ver peguei o cesto e entrei no bosque Como explicarlhe que descera todas as barras das saias para esconder minhas pernas finas cheias de marcas de picadas de mosquitos Numa alegria desatinada fui colhendo as folhas mordi goiabas verdes atirei pedras nas árvores espantando os passarinhos que cochichavam seus sonhos me machucando de contente por entre a galharia Corri até o córrego Alcancei uma borboleta e prendendoa pelas pontas das asas deixeia na corola de uma flor Te solto no meio do mel griteilhe O que vou receber em troca Quando perdi o fôlego tombei de costas nas ervas do chão Fiquei rindo para o céu de névoa atrás da malha apertada dos ramos Virei de bruços e esmigalhei nos dedos os cogumelos tão macios que minha boca começou a se encher dágua Fui avançando de rastros até o pequeno vale de sombra debaixo da pedra Ali era mais frio e maiores os cogumelos pingando um líquido viscoso dos seus chapéus inchados Salvei uma abelhinha das mandíbulas de uma aranha permiti que a saúva gigante arrebatasse a aranha e a levasse na cabeça como uma trouxa de roupa esperneando mas recuei quando apareceu o besouro de lábio leporino Por um instante me vi refletida em seus olhos facetados Fez meiavolta e se escondeu no fundo da fresta Levantei a pedra o besouro tinha desaparecido mas no tufo raso vi uma folha que nunca encontrara antes única Solitária Mas que folha era aquela Tinha a forma aguda de uma foice o verde do dorso com pintas vermelhas irregulares como pingos de sangue Uma pequena foice ensanguentada foi no que se transformou o besouro Escondi a folha no bolso peça principal de um jogo confuso Essa eu não juntaria às outras folhas essa tinha que ficar comigo segredo que não podia ser visto Nem tocado Tia Clotilde previa os destinos mas eu podia modificálos assim assim e desfiz na sola do sapato o ninho de cupins que se armava debaixo da amendoeira Fui andando solene porque no bolso onde levara o amor levava agora a morte Tia Marita veio ao meu encontro mais aflita e gaguejante do que de costume Antes de falar já começou a rir Acho que vamos perder nosso botânico sabe quem chegou A amiga a mesma moça que Clotilde viu na mão dele lembra Os dois vão embora no trem da tarde ela é linda como os amores bem que Clotilde viu uma moça igualzinha estou toda arrepiada olha aí me pergunto como a mana adivinha uma coisa dessas Deixei na escada os sapatos pesados de barro Larguei o cesto Tia Marita me enlaçou pela cintura enquanto se esforçava para lembrar o nome da recém chegada um nome de flor como era mesmo Fez uma pausa para estranhar minha cara branca e esse brancor de repente Respondi que voltara correndo a boca estava seca e o coração fazia um tumtum tão alto ela não estava ouvindo Encostou o ouvido no meu peito e riu se sacudindo inteira quando tinha minha idade pensa que também não vivia assim aos pulos Fui me aproximando da janela Através do vidro poderoso como a lupa vi os dois Ela sentada com o álbum provisório de folhas no colo Ele um pouco atrás da cadeira acariciandolhe o pescoço e seu olhar era o mesmo que tinha para as folhas escolhidas a mesma leveza de dedos indo e vindo no veludo da malvamaçã O vestido não era verde mas os cabelos soltos tinham o reflexo de cobre que transparecera na mão Quando me viu veio até a varanda no seu andar calmo Mas vacilou quando disse que esse era o nosso último cesto por acaso não tinham me avisado O chamado era urgente teriam que voltar nessa tarde Sentia muito perder tão devotada ajudante mas um dia quem sabe Precisaria agora perguntar à tia Clotilde em que linha do destino aconteciam os reencontros Estendilhe o cesto mas ao invés de segurar o cesto segurou meu pulso eu estava escondendo alguma coisa não estava O que estava escondendo o quê Tentei me livrar fugindo para os lados aos arrancos não estou escondendo nada me larga Ele me soltou mas continuou ali sem tirar os olhos de mim Encolhi quando me tocou no braço E o nosso trato de só dizer a verdade Hem Esqueceu nosso trato perguntou baixinho Enfiei a mão no bolso e apertei a folha intacta a umidade pegajosa da ponta aguda onde se concentravam as nódoas vermelhas Ele esperava Eu quis então arrancar a toalha de crochê da mesinha cobrir com ela a cabeça e fazer micagens hi hi hu hu até vêlo rir pelos buracos da malha quis pular da escada e sair correndo em ziguezague até o córrego me vi atirando a foice na água que sumisse na correnteza Fui levantando a cabeça Ele continuava esperando e então No fundo da sala a moça também esperava numa névoa de ouro tinha rompido o sol Encareio pela última vez sem remorso quer mesmo Entreguei lhe a folha A Sauna Eucalipto era esse sim era esse o perfume de Rosa e do seu mundo de infusões de plantas silvestres filtros verdolengos e boiões de vidro estagnados nas prateleiras Esse o perfume verdeúmido que senti quando se debruçou na janela para posar Tinha chovido e um vapor morno subiu do jardim com o sol É o primeiro retrato que faço preciso acertar avisei e ela se retraiu na janela Então beijeilhe a testa Vamos relaxa não pense no que eu disse mas pense nesta laranja que você vai segurar assim pode falar se quiser mas não se mexa quietinha segurando a laranja Quando esbocei o oval do seu rosto estava tão séria que parecia posar para uma foto frenteperfil datada Rosa Retratada eu disse e ela aproveitou o sorriso para molhar os lábios com a ponta da língua Continuaram sem brilho os lábios anêmicos Minha Rosa Anêmica você precisa parar com essas verduras coma bifes sangrentos você precisa de carne O melhor retrato que já fiz Mas o que foi feito dele perguntou Marina Deve estar com ela respondi Por onde andam o modelo e o retrato é o que eu gostaria de saber não foi há mais de trinta anos Tempo à beça O funcionário de avental branco achou que eu estivesse me referindo ao tempo de duração da sauna e quis me tranquilizar que eu poderia sair antes se quisesse Não é nada não Estava só pensando É a primeira vez que o senhor vem aqui perguntou tirando do armário um roupão branco Colocou em cima os chinelos de plástico Temos alguns artistas na nossa lista de clientes a maior parte faz massagem O senhor não quer fazer uma massagem Só sauna Diz que em Tóquio esses institutos são servidos por meninas lindas de morrer que fazem tudo com a gente Aqui também se encontra esse gênero mas no Oriente é outra coisa O senhor conhece Tóquio O tecido felpudo do roupão está morno A música E o perfume de eucalipto mais forte Tiro o lenço e enxugo a testa Afrouxo o colarinho Ser simpático é retribuirlhe o sorriso de Tóquio é fácil ser simpático E difícil já começa a ficar bastante difícil a simpatia para este simpático pintor da moda Não da primeira linha mas a burguesia média em ascensão pensa que é da primeira e compra o que eu assinar Mas enriqueci não enriqueci Não era isso o que eu queria merda Então não se queixe tudo bem qual é o problema Vou seguindo submisso o avental branco em lugares como este fico de uma submissão absoluta As solas dos seus sapatos de borracha vão se colando à passadeira de oleado verde O senhor está com seu peso normal No Inferno deve ter um círculo a mais o dos perguntadores fazendo suas perguntinhas seu nome sua idade massagem ou ducha fogueira ou forca sem parar Sem parar Marina também já fez muita pergunta mas agora deu de ficar me olhando Tempo de perguntar e tempo de olhar e esse olhar soma subtrai e soma de novo ela é excelente em contas A revolução das mulheres devia aproveitála para a contabilidade Mas parece que lá no Inferno o sistema é de entrevista Perguntas Num certo período perguntou tanto sobre Rosa ficou tão fixada uma curiosidade tamanha por nós dois Teve um domingo que me obrigou a lhe mostrar a casa queria ver a casa o jardim Quero ver a janela onde ela posou para o retrato Onde era a casa tinham construído um edifício sombrio de terraços estreitos com roupas dependuradas nos varais Pronto era aí eu disse E se me veio um certo alívio passou passou tive a sensação meio angustiante de que alguma coisa me fora tirada o quê Como se a casa guardasse o período daquelas primeiras aspirações tanta energia planos enquanto vivesse a casa esse passado estaria intacto Rosa Laboriosa fabricando perfumes e molduras todos os projetos ainda por fazer meu fervor minha sede de reconhecimento vinte anos Tantas as veredas ali à espera Este caminho Aquele O edifício na minha frente era a resposta cor de pó com seus sulcos de goteiras e escarros Quis me arrancar dali mas Marina me reteve vê lá se posso fugir fácil assim dessa sua mania de ficar desparafusando o que deve ficar parafusado Olha aí querida era mesmo o que você queria ver Não tem mais casa nem retrato nem Rosa está satisfeita Ela acendeu um cigarro sinal de que estava disposta a conversar acho que o que fica mesmo de um longo casamento é a gente saber quando o outro quer falar ou ficar quieto Também acendi o meu cigarro e esperei Quer dizer que Rosa vendeu a casa para você poder viajar Pergunta afirmação Marina é perita nesse tipo de pergunta Mas eu tinha acabado de receber meu prêmio de viagem se esqueceu do prêmio Não tinha esquecido mas se lembrava que num dos nossos primeiros encontros em Paris quando eu disse que pretendia ficar algum tempo além do prêmio acrescentei também que ia receber um dinheiro aí de uma casa que estava sendo vendida mas não era essa a casa E não era esse o dinheiro que Rosa ia me mandar Moça sagaz essa Marina quando nos casamos eu não fazia ideia de que fosse tão sagaz assim E que tivesse essa memória acho que falei demais se me casasse de novo só abriria a boca para pedir o saleiro No segundo andar do edifício tinha uma toalha amarela secando no varal E fraldas uma quantidade enorme de fraldas Ou panos de prato Você acha que aquilo lá é pano de prato perguntei apontando o terraço desfraldado Ela atirou o cigarro pela janela e olhou fraldas Liguei o rádio no painel do carro que se iluminou para a voz que vinha de rastros Ne me quitte pas ne me quitte pas Ouvir isso assim cantado enternecia dava vontade de ficar Mas ouvir não me deixes sem música Rosa não pediu mas pensou Desliguei o rádio Com essa sua memória de computador Marina comecei devagar com esse poderoso arquivo espero que não se esqueça de que Rosa estava grávida quando embarquei não contei esse detalhe em Paris contei mais tarde lembra agora Sim claro e lembra ainda que não tínhamos o dinheiro para o aborto um pequeno pormenor não tínhamos dinheiro minha querida eu não conseguia vender nenhum quadro Rosa tinha deixado o emprego na farmácia restou só uma casa com jardim mas a gente não pode comer um jardim não pode fazer o aborto num jardim pode repeti segurandoa pelo pulso com força gostávamos desse gênero de brincadeira que podia acabar num nariz escorrendo sangue Ela se desvencilhou Está me machucando seu bruto Beijei lhe o pulso Abrandei a voz Eu quis vender minha passagem e darlhe o dinheiro para o médico mas Rosa não aceitou já contei isso não contei Ela acreditava em mim ela me amava Sabia o quanto era importante para a minha carreira essa oportunidade de fazer um curso na Europa conhecer gente fazer contatos Insistiu em vender a casa que agora estava grande demais o tio no sanatório e eu longe sem ideia do tempo que ia ficar por lá de que adiantava uma casa grande assim E a gravidez adiantada e o médico exigindo adiantado tinha outra solução Já sei aborto não era problema para você uma pequena usineira flanando pelo mundo Hoje pode parecer ridículo à dona Marina um amor tão pobre como foi esse Mas foi assim Agora tudo ficou simples como líder libertadora você sabe que suas irmãzinhas dispõem de pílulas creches psicólogas pelo menos é o que reivindicam nos discursos Mas naquele tempo já esqueceu não tinha nem pílula nem nada E se ela insistiu em mandar o cheque depois do maldito aborto foi porque queria que eu aproveitasse o prêmio tinha fé no meu trabalho como nunca ninguém teve Frisei esse ninguém com tanta eloquência e não adiantou Marina já não prestava a menor atenção em mim Tirou o pente penteouse Procurou me ver através do espelhinho do carro Ela trabalhava numa farmácia não trabalhava Farmácia de homeopatia você disse aquelas coisas Ganhava bem era independente sustentava até o tio mudo não sustentava Então você apareceu e foi morar com ela Internaram o tio no asilo porque você precisava de mais espaço para montar seu ateliê Rosa deixou o emprego porque você precisava de alguém para montar suas molduras não foi Espera deixa eu falar naturalmente você começou a fazer sucesso prêmios exposições e justo justo nesta hora aconteceu a maldita gravidez que iria se somar aos gastos da viagem Lógico vender a casa Quer dizer ela ficou sem a casa sem o emprego sem o nenê e sem você que já estava de partida Ah ia me esquecendo e sem o velho tio que apesar de mudo parece que era uma boa companhia ao menos podia ouvir Tudo somado podese concluir que a sua aparição não foi um bom negócio Mas não se pode falar em termos de negócio você a amava e quando se ama acrescentou ela tirando um tablete de chocolate do portaluvas Mastigou pensativa Ainda uma coisa conhecendo minhas irmãzinhas como conheço vou além querido Vou além Acho que o sonho da sua Rosa era ter esse filho te amava e mulher assim apaixonada logo pensa em filho é na primeira coisa que pensa aos vinte anos um filho Nunca se casaram já sei vi nos seus papéis meu marido não é um bígamo Mas o fato de não ter casado não significa que ela não quisesse fez uma pausa para examinar a unha lascada no portaluvas esse casamento um monte de filhos tudo direitinho Não era seu esquema esse querido ela sabia perfeitamente e só se adaptou para não te perder Para não te perder Ficaria muito espantada se soubesse que a ideia do aborto foi dela foi mesmo dela perguntou e voltouse para o céu num arroubo Olha que tarde Um azul tão azul vamos até a chácara Desviei a cara porque senti que estava escurecendo de ódio Agora ia satisfeita reconfortada com a certeza de que eu seguiria minhocando envenenado Sozinho É que já tinha acabado o amor eu disse calmo Entrávamos pelos portões da chácara Que amor perguntou ela com a candura do caseiro se o caseiro da chácara tivesse me ouvido O senhor não gostaria de tomar um café Foi feito há pouco O funcionário da sauna aponta para um preto também de avental que vem vindo com a bandeja Tiro o paletó deixoo na cadeira e o funcionário vem todo solícito me livrar do roupão dobrado com os chinelos em cima Tenho a impressão de que carrego esse roupão há horas Há anos Aceito o café para descobrir no primeiro gole que não quero café queria entrar nessa maldita sauna e acabar com isso por que fui inventar Viro a xícara até aparecer a poeira preta da borra acumulada no fundo me engrossando a língua Devolvo a xícara e agradeço Estava ótimo O perfume de eucalipto vem em ondas cálidas Afrouxo novamente o colarinho e me dirijo ao grande recipiente de vidro com sua água mineral verdeazul Mas o funcionário está atento ele se adianta na minha frente Só uns goles se não se importa Não me importo Fico vendo a água subir em bolha silenciosa antes de escorrer no copo de papel Marina quer que eu me sinta um egoísta Um interesseiro um egoísta É preciso se conhecer enfrentar sua verdade repetiu várias vezes nas nossas discussões Ficou cheia de ideias a pequena Marina mudou bastante ih como mudou Líder feminista Dirige com outras delirantes um jornal criam núcleos Todas conscientizadas muito interessante Ela e o bando as caras despojadas de sábias do Sião falando às criancinhas Bastante esclarecidas as moças E Marina na frente até meu passado lá longe resolveu esclarecer Libertação Depois ficam aí se matando ou endoidando Amasso o copo Umas perfeitas tontas Faço pontaria no cesto mas erro o alvo Fazendo polêmica com suas teorias espetaculosas ora assumir Assumir o quê Rosa precisava era de um homem como todas até as lésbicas que morrem enroladas no pai Está bem falhei Espero que Rosa tenha arranjado outro um apoio não é o que queria O que todas querem Rosa Homeopata Rosa Frágil Os olhos eram duas folhinhas de eucalipto foi como os desenhei no retrato só descobri que eram bonitos quando comecei a pintálos Às vezes Marina repete a pergunta Mas onde anda esse retrato E mais de uma vez adoraria me pegar em contradição repeti que dei o quadro à Rosa deve estar dependurado na sua sala de visitas as visitas que chegam ao sábado para o pôquer casais do quarteirão com intimidade suficiente para abrir a geladeira e emborcar sua latinha de cerveja O mais entendido de todos que assiste na tevê ao programa de artes plásticas fica admirando o retrato E faz sua avaliação que sobe atualizada na medida em que o dólar sobe Esse retrato está valendo hoje uma pequena fortuna sem dúvida um dos melhores quadros dele Nessa época ele ainda não estava comercializado começo de carreira não pergunta mascando o palito de fósforo que leva ágil de um canto para outro da boca a mulher já avisou que mascar palito dá ferida mas ele não perde o costume Os outros convidados ficam ouvindo com o respeito com que ouvem o guia das excursões a Buenos Aires Ah e a nova casa da Rosa Marina me observando e sorrindo então não havia de ter o mesmo espírito da outra O perfume de eucalipto escapando dos vidros de águadecolônia envelhecendo no porão ela achava que os perfumes deviam dormir algum tempo como os vinhos Os móveis simples Os grandes potes de avenca As samambaias Um abrigo para o carro no lado direito do pequeno jardim deve haver um carro sob o toldo de lona o dentista precisa de carro Mas ela se casou com um dentista interrompe Marina que já não está mais sorrindo É a minha hora de achar graça Sei lá suponho que é dentista tinha um que ela frequentava quando a gente vivia junto um amiguinho da família com consultório no bairro Por acaso era com ele que eu tratava dos dentes quis saber Marina Com esse dentista Não eu ia num outro na cidade respondi sabendo muito bem aonde ela queria chegar quando me olhou os lábios delgados um pouco contraídos Reparo que seus lábios estão mais finos ultimamente o que lhe dá uma expressão fria Resultado da plástica que lhe aguçou o perfil é isso Mas que original Então uma feminista assim fanática não vai assumir a velhice feminina Não vai declarar seus cinquenta anos Queria muito ver esse retrato ela disse voltando a ler sua tese está sempre às voltas com teses entesada na própria ou na de alguma intelectual do núcleo ô a solidão A solidão que vem e me toma no seu bico e me larga em seguida despenco sem ter onde me segurar nada ninguém No começo ela se interessava pelo meu trabalho Depois foi se distanciando cada vez mais Mais Está bem pulei a cerca desde Paris e ela soube a traição apodrece o amor me disse mas não é ridículo Querer que eu contasse a verdade toda vez que me deitei com alguém que eu chegasse e dissesse Olha querida estou vindo do apartamento de Carla ouvimos disco bebemos e trepamos das três às seis Estou sendo franco e por isso não foi uma traição traição é o que se esconde e eu fiz às claras você tem que me aceitar e se deitar neste instante comigo se neste instante eu tiver vontade de deitar com você era assim que eu devia agir para não poluir nosso amor Camuflei como pude a gente pode tão mal menti até à saturação Perdi Mas se tivesse sido verdadeiro o resultado do jogo seria outro Quer que me analise me concentre Que me conheça em profundidade sem mistificação sem mentira Se conseguir isso afirma poderia então voltar a pintar como no começo Mas se não faço outra coisa porra Isso de ficar me parafusando Adianta Tem dias em que me sinto perfeito outros dias uma bela merda nos dois estados não consigo trabalhar Preciso não me sentir nem eufórico nem deprimido estar assim normal Mediocremente profissional Daí faço um quadro atrás do outro Perdi o fervor Marina é isso Perdi o fervor Muita técnica Muitos compradores os compradores compram tudo quem falou em crise Mas é diferente eu sei Você sabe também e me despreza fiz todas as concessões Todos os arreglos Acabei rico E é nesse ponto que quero chegar já não preciso do sovina do seu pai já precisei mas agora não preciso mais fiquem aí sacudindo seu dinheiro que eu sacudo o meu Quem quer casar com dona Baratinha que tem dinheiro na caixinha minha mãe cantarolava fazendo voz aflautada como devia ser a voz da barata que achou uma moeda na fresta do assoalho Minha mãe era a verdade Você não quer a verdade só a verdade nada além da verdade Pois minha mãe existiu com seu vestido de andorinhas num fundo azulnoite Também é verdade que era delicada e que morreu cedo Mas meu pai Professor Não ele não era professor querida nem foi baleado por causa de política era um simples tira que vivia torturando os presos enquanto torturou pé de chinelo tudo bem mas se meteu com presos políticos insistiu no método de arrancar confissões e dentes com alicate e acabou sequestrado e moído de pancadas reconheceram o cadáver devido a um anelzinho de pedra vermelha que usava no dedo Teve o que merecia disse minha irmã a mocinha de cabelos cor de mel repartidos bem no meio como as santas sobre o cabelo não menti mas menti quando disse que ela morreu afogada quando o barco virou sempre achei lindo isso das mocinhas morrerem afogadas como Ofélia os cabelos se enredando nas ervas carreguei na descrição propositadamente uma sugestão de Shakespeare ajuda no cotidiano Afogada Afogouse sim mas foi no puteiro lá da divisa do Paraguai fugiu com um campeão de caratê e um dia vieram me contar em voz baixa com discrição essas notícias exigem respeito que minha irmã tinha sido vista na casa de uma cafetina instalada na fronteira uma mulata chamada Albina Malvina um nome assim Ela e a colega já estavam com o pé na estrada depois de uma briga com faca num baile de carnaval Mas minha mãe era verdadeira com seu vestido azulnoite e sua delicadeza Aceita minha mãe Marina Serve minha mãe pensei perguntar enquanto me aquecia na lareira fazia muito frio em Campos do Jordão lá frequentemente é frio e o frio estimula a memória Então me aproximei do fogo até sentir a cara esbraseada Por que não me deixa em paz tive vontade de gritar Aqueci o conhaque no fundo do copo Mas será que eu quero mesmo ficar em paz O sabonete diz o funcionário me entregando um pequeno sabonete verde E a chave do seu armário Quer me acompanhar por favor O sabonete com perfume de eucalipto Enfio o sabonete e a chave dentro do chinelo que se desequilibra e quase despenca do alto do roupão embolado vou empilhando os objetos que recebo como os sentenciados do cinema no primeiro dia de presídio A música nostálgica não está mais alta também de cinema reconheçoa é antiquíssima ouvimos isso juntos não ouvimos Hem Rosa Eu trabalhava no retrato mas já entardecia mais dez minutos e saímos em seguida tem aí uma fita que eu gostaria de ver convidei e ela aceitou mas não se mexeu os cotovelos apoiados na janela o olhar verdeágua colado em mim às vezes eu me escondia atrás do jornal do livro da tela sempre atrás da tela e ainda assim atrás do muro me sentia observado Sua face foi se integrando na folhagem escurecia rápido Peguei o tubo verde e fui espremendo até o fim quis tudo verdefolha a janela o vestido também eu sufocado numa alegria espessa como a tinta que só foi amadurecer na laranja que ela segurava com a maior gravidade Eu te amo Rosa está ouvindo Eu te amo gritei porque o retrato estava ficando como eu queria antes de fazer todos os outros que fiz já estava sabendo que esse seria o melhor Comecei a rir Ela segurava a laranja com o ar responsável do Menino Jesus de capa de cetim e coroa dourada segurando na mão direita o cetro e na esquerda o globo estrelado Minha mãe pregou esse quadro na cabeceira da minha cama Olha reza toda noite pra Ele não se distrair e deixar cair o mundo Sabe o nome dessa música pergunto ao funcionário Ele vai buscar debaixo da cadeira o sabonete que escorregou da minha pilha Devolveme a chave que caiu junto Desconfio que é de um filme antigo As músicas antigas tinham outro gabarito o senhor não acha Guardo o sabonete no bolso Meu ódio por palavras como gabarito ou válido chega a ser um ódio físico As palavras da moda As pessoas da moda Depois vãose gastando e sendo substituídas tenho ouvido menos ilação conotação eu também estou na moda Ou estive O espaçoso vestiário metálico converge para um espelho de moldura branca tomando toda a parede do fundo Conforto e ordem para os clientes aparentemente em ordem penso e me desvio do homenzinho repleto que passa por mim com a solenidade de um César romano no seu chambre a toalha enrolada no braço num panejamento de túnica Procuro o número do meu armário A trilha sonora posso assobiar junto E faz sucesso até hoje fita e música uma love story da época Rosa ficou lavada em lágrimas porque a bomba acertou em cheio no correspondente de guerra apaixonado pela médica eurasiana Tudo besteira eu cochichei e Rosa me apertou o braço que eu calasse o bico o pedaço agora era tristíssimo a moça subia na colina onde sempre se encontravam e fazia aquela cara sublime diante da miragem do amado com a música sublime subindo a todo o pano porque o amor entende o verdadeiro amor Rosa Manhosa eu disse quando saímos do cinema dandolhe o lenço e a mão porque estava se sentindo a própria eurasiana prestes a me perder de novo Levoume a um restaurante vegetariano Mas isto não é comida protestei e ela sorriu e encomendou a salada Rosa Leguminosa Temperava meus bifes quase sem olhar para a carne desde que viu um boi indo para o matadouro Falava pouco mas foi minuciosa na descrição que fez do sofrimento do boi estampado no olho saltado assim que sentiu o cheiro de sangue Fincou as patas no chão resistiu Depois num cansaço deixouse levar de cabeça baixa Mas eu também vi os bois seguindo em fila no corredor estreito e daí pergunteilhe Também vi o olho arregalado em pânico Esse olho Não queria me lembrar e agora lembro o tio de Rosa o mudo Ele me olhou assim intenso na madrugada da internação Como está quente eu disse desabotoando a camisa O funcionário teve seu sorriso melífluo e me ofereceu um cabide para o paletó É a présauna Ele lidava com suas plantas esse tio mudo Quando Rosa aproximouse endireitou o corpo estava de joelhos e lhe mostrou uma raiz morta que acabara de desencavar Ela ajoelhouse ao seu lado acaricioulhe os cabelos ralos Limpou um pouco do barro seco que respingara em sua barba grisalha e entrelaçou as mãos nos joelhos Estava pálida quando começou dizendo que ele devia ser internado para um tratamento o lugar era muito bom tinha árvores flores Você vai gostar tio Ele ouviu e fez que sim com a cabeça fez que sim Eu espiava da janela e quis me afastar da cena da sobrinha sentimental explicando ao tio velho que nossa casa não era o lugar ideal para um velho mudo com mania de plantas Fiquei Entre os dois o instante de imobilidade e silêncio ela olhando para a terra Ele olhando para a terra onde estavam ajoelhados Depois ele fechou os dedos em redor da raiz que ainda segurava e dedos e raiz ficou tudo uma coisa só Tinha as unhas pretas a terra era quase preta As unhas de Rosa eram limpíssimas mas às vezes guardavam traços da terra que vinha em meio das suas experiências Unhas fracas Dentes fracos E você permitiu que ela se tratasse com o amigo do bairro que nem formado era estranhou Marina E agora já nem sei se foi Marina ou se sou eu que pensa nisso tanta pergunta que começo a me misturar com as dela Marina meu juiz Vou respondendo Exatamente Rosa era magrinha como um galho daquela planta que agora esqueci o nome tinha no nosso quintal várias prateleiras só com esses potes de folhinhas trementes se estendendo nervosas para o lado da sombra Ficam mais viçosas quando cuidadas por freira Rosa me contou e agora lembro avenca Marina interessouse seu interesse por Rosa é permanente e quis saber Por que freira Lá sei em geral as freiras são virgens e virgem tem poderes as raízes reconhecem as mãos himenizadas e agradecem fortalecidas na aura de castidade Rosa Mística não tinha imagens em casa as plantas eram suas imagens o tufo das violetas era Santa Teresinha O eucalipto magrinho São Francisco de Assis O ipêroxo já nem lembro que santo era tudo assim dentro de um ritual de uma aura ela via uma aura se irradiar das plantas brilhante se as plantas estavam saudáveis Aura mortiça se estavam doentes ou iam morrer como acontece com a gente igualzinho Os bichos mais evoluídos e algumas pessoas os videntes conseguem ver essa aura Rosa achava que o tio era vidente Marina me atalhou rápida Esse tio era meio louco ou apenas velho Achei mais simples não resistir Chega a ser aterrorizante esse prazer de me entregar deuses e gentes pensem o que bem entenderem que estou me lixando com seus julgamentos Apenas velho respondi Implicou comigo achei que queria me matar e a maneira que descobri para me ver livre dele foi essa o asilo O curioso é que quando me entrego Marina se desinteressa e passa para outro assunto queria saber mais sobre as avencas por acaso não ficaram debilitadas com a minha chegada A Rosa não era virgem Um ponto que a impressionou foi esse o fato de uma moça com mais de vinte anos independente com cursos e ainda virgem Lembreilhe que naquele tempo usava as moças pobres se guardarem as ricas podiam ter seus amiguinhos e se casar sem problemas mas Rosa Preconceituosa era da pequena burguesia E do reino vegetal as virgens vegetais ultrapassam as de outros reinos a primeira vez foi tão difícil Marina mas tão difícil que precisei sair de madrugada e não encontrava farmácia aberta Andei feito doido quase uma hora fazia um frio cão Quando voltei ela tomava tranquilamente um daqueles seus chazinhos de ervas me ofereceu uma xícara Rosa Encadeada chamei e ela riu mas depois chorou eu não conseguia esconder minha irritação A pobrezinha disse Marina Fiquei pensando por que não se enternece comigo Por que nunca se enterneceu comigo Minha mãe teria ficado com pena de mim e não de Rosa era para o meu lado que sempre inclinava a cabeça Mas Marina não é minha mãe nem mãe de ninguém não tivemos filhos Seria por isso que ficou assim dura Mas as amigas com filhos também são do mesmo tipo agressivas irônicas Vai ver é esse movimento cretino que está cretinizando o mulherio Não querem machos e viram machonas ô onde estão as mulheresgueixas O funcionário aí disse que em Tóquio Nós não sustentamos sempre vocês Arrumar emprego é se mudar para a rua merda É ter enfarto que nem nós é dizer palavrão mas é isso que vocês querem Marido filho casamento tudo atirado às traças O importante agora é a irmã Antes nossas empregadas podiam beber querosene e Marina no cabeleireiro no desfile de alguma bicha a empregada está morrendo Marina E ela mandava o motorista levar flores Agora mudou tudo se preocupa se responsabiliza se questiona Adotou aí uma pequena puta que adora ser puta assim que olhei para a adotada pensei vigarice pura Mas o núcleo decidiu que deve orientála educála diz que é uma vítima do sistema e olha aí outra palavra no auge sistema Adotou uma modelo que adora posar nua se amanhã se casar com o rei da soja vai continuar posando nua porque simplesmente gosta de mostrar o rabo Direito dela tudo bem mas o que não entendo é ficar fazendo depois aquelas caras de mulherobjeto miseravelmente explorada Mulher objeto E o que tem ser objeto Se é um objeto útil não estaria cumprindo sua função O caso da prima esse então é de chorar de rir A prima fazendeira sempre foi infeliz com o marido nenhum problema iam se aguentando Depois da orientação grupal separouse e está agora mais infeliz ainda porque de infeliz rica passou a ser infeliz pobre Ela vai se equilibrar Marina diz com tamanha segurança que dá gosto ouvir Confia em todos menos em mim Se comove com a primeira que vem contar sua historinha se comoveu com Rosa até com Rosa nenhum ciúme póstumo mas ternura admiração sei lá Aquela noite por exemplo Eu me sentindo estuprado numa luta que de prazer ficou sendo de resistência desafio meu vexame na farmácia as coisas que pedi às três da madrugada para que o homem não desconfiasse escova de dente talco sabonete Ah iame esquecendo o senhor tem vaselina pura Ele então sorriu Marina também mas o sorriso de Marina foi pouco espontâneo já não acha tanta graça em mim Guardo a roupa no armário Calço os chinelos Antes de vestir o roupão enfrento o espelho inteiro e nu Ainda em forma por que não E o meu golfe Meu tênis porra Talvez um pouco de estômago Pego a dobra com dois dedos está aqui o excesso Encolho a barriga e viro de perfil até ver meu queixo duplo com o rabo do olho Olho tem rabo perguntei à minha mãe e ela me beijou Seu bobinho seu bobinho Rosa fazia um pouco a minha mãe Tínhamos quase a mesma idade mas me sentia como um casulo dentro do seu amor eu disse à Marina quando entramos no Café SaintAndrédesArts Até o último dia da minha viagem Rosa corria eficientíssima com seu casaco preto e seu enjoo já começava a enjoar Mas não venha me dizer que ela está te esperando que vai voltar para o Brasil na semana que vem Marina me atalhou e mudamos de assunto havia tanta algazarra no café tanto calor Bebemos o vinho de um só trago glugluglu esfregamos as mãos geladas e aspiramos a fumaça fumegante do sanduíche Que bom estar aqui Que bom que você ainda está livre ela disse e nunca Rosa ficou tão longe como nessa hora Sim vivemos alguns anos juntos mas quando embarquei já estava tudo acabado ou quase Marina pediu mais vinho Mais sanduíches ô alívio afinal ela encontrara alguém em disponibilidade seu mais recente amor fora um suíço com duas famílias duas pátrias E agora um descompromissado e pintor No encontro no dia seguinte fez uma ou duas perguntas sobre Rosa mas perguntas ligeiras ocasionais Achei que eram ocasionais não estava afeito à sua técnica Ou ainda não desenvolvera essa técnica uma perfeição mesmo quando ela está na superfície de um ocioso movimento de chave de parafuso desinteressado em afundar ela afunda Queixase da minha atitude na defensiva mas não tenho mesmo que me defender Não posso ser nítido como pede que seja é possível contar um fato com nitidez As coisas devem ser contadas com aparato para que não fiquem mesquinhas Cruéis Se descrevo um crime e digo que a mulher apontou e deu um tiro no coração do amante se menciono simplesmente o gesto sem a ambiguidade sem a circunstância que é todo o labirinto dando voltas e voltas até desembocar nesse alvo Está certo vou tentar ser reto quando conheci Rosa ela era noiva de um amigo e companheiro de quarto eu morava numa pensão Ele foi providencial para mim sem sua ajuda eu teria voltado para Goiás Goiás Velho sim senhora é longe Goiás não Longe à beça Então ele pagou minha parte na pensão e me forneceu cigarros tinta No dia em que viajou pro Recife era de lá ia ao enterro do pai me pediu que eu fosse avisar a noiva ela o esperava para o jantar E não tinha telefone Fui jantei seu jantar e ceei sua noiva nitidamente a coisa se passou assim Pronto viro um maucaráter total porque nesse tom também o episódio do tio fica abominável Esse tio mudo que cuidava do jardim a casa ficava no meio de um jardim e ele morava num barracão no fundo do quintal o barracão que transformei no meu estúdio Um dia sonhei com ele com esse estranho mudo que conversava com as plantas Chegava às vezes a rir quando elas diziam alguma gracinha ria baixinho mas ria Se entendem na perfeição Rosa veio me dizer ele toca nelas e através dos dedos se comunicam até às raízes as flores desabrocham mais depressa quando ele está por perto e morrem sem sofrimento quando ele toma a corola nas mãos Inútil explicarlhe que a discreta loucura do tio estava se fortalecendo como as raízes no escuro Tive então que exagerar recorrer à ênfase para provar que de repente ele poderia ficar perigoso Como naquela manhã em que me olhou enquanto segurava um daqueles seus ferros de jardinagem cheguei a recuar Você tinha saído Rosa estávamos só os dois Então me fechei no barracão até que ele se afastasse fiquei lá dentro pintando até você chegar evidente não fez nada assim de concreto mas senti a ameaça O perigo Ela sacudia a cabeça negando negava sempre O tio perigoso O tio Um velho tão inofensivo como as samambaias as begônias Que ameaça podia haver numa roseira Talvez tivesse medo isso sim talvez eu o intimidasse o deixasse inseguro Então se refugiava em suas plantas Mas lá também tem plantas querida eu disse Lá nesse asilo que andei vendo já providenciei tudo ele vai ficar feliz na companhia de outros velhos velho precisa de velho em redor Um mês depois eu o levava Foi sem resistência Na hora de subir no táxi me olhou demoradamente Tomeio pelo braço impelindoo suave mas firme pensei que fosse reagir se desvencilhar Sentouse no banco e ficou olhando em frente as mãos escondidas no meio das pernas tinha muito esse gesto para aquecêlas Rosa chorava trancada no banheiro fazia algum tempo que se fechava no banheiro para comer doce escondido ou chorar já estava engordando Voltei e ela ainda trancada lá dentro Bati na porta Não seja criança Rosa ele está felicíssimo venha tomar um vinho aura positiva você não disse que somos nós que determinamos nossa aura Eu mesmo preparei os sanduíches enquanto falava sem parar animadíssimo o barracão ia ficar ótimo com a reforma podíamos pintar tudo arrumaria minha cama num canto para poder trabalhar até tarde dormir até tarde talvez pudesse expor em setembro setembro era primavera um mês de sorte podíamos dar uma festa no meu próprio estúdio e depois pensar naquele giro pela Amazônia tantos projetos hem Rosa Incluindo aquele curso que quero um dia fazer na Europa sei que vai acontecer Ela ouvia em silêncio Bebia em silêncio os olhos inchados de tanto chorar Fui buscar seus chocolates e caramelos que comia escondido Pronto coma o que quiser Rosa Adocicada Rosa Louca Acordei tarde no dia seguinte A mesa estava posta mas não a encontrei Fui para o jardim lá estava ela ajoelhada no canteiro das begônias consolandoas Chega disso Rosa vem que eu preciso que me arme uma moldura chamei Ela limpou no avental as mãos sujas de terra Amarro o cinto do roupão O tecido esponjoso morno retém nas dobras o perfume de eucalipto Os vidros luminosos de tão transparentes O licor transparente A alegria com que veio me contar sua descoberta era um licor verde com um leve toque de menta me trouxe num cálice Prova O simples perfume já excitava antes mesmo do calor se irradiar da boca para o peito para o sexo Mas é um licor afrodisíaco eu disse Podemos ficar ricos com essa fórmula um licor de monges Ela riu e vi a luz do licor nos seus olhos Eu já tinha ouvido falar muito no seu nome mas nunca vi nenhum quadro seu só assim em revistas O senhor vai fazer alguma exposição Sigo o avental branco Noto que seus pés são enormes mas pisam com mansidão Só em Washington Não ficou rica nem com essa fórmula nem com as outras não tinha o menor senso prático as pessoas em redor ganhando ficando conhecidas Ela não Acabou cedendo até a fórmula da águadecolônia à italiana que batizou com novo nome Petronius e pôs para vender em toda parte Por que fez isso Rosa perguntei me controlando para não sacudir até despetalar a Rosa Obesa estava quase obesa Ela colava nos frascos caseiros os pequeninos rótulos com o antigo nome escrito com sua letrinha verde Rosana Homenagem à mãe que lecionava botânica conheceu o marido num centro de pesquisas vegetais uma família rara todos naturalistas Contei a Marina mas o que não lhe contei o caso dessa mãe que viveu além da data marcada porque Rosa a fazia tomar chá de ipê roxo quando a morte veio buscála encontrou o tio mudo guardando a árvore e a árvore guardando a doente Então parece que o tio mudo trocou com a morte algumas palavras e a morte fez meiavolta e só voltou dez anos depois A mudez eloquente acrescentei mas Marina não riu estava muito compenetrada tecendo seu tapete nesse tempo fazia dessas coiselhas para ocupar as mãos enquanto a mente ia longe ocupada com outros tecidos Vejo que a agulha não segue metódica o desenho sem explicação retrocede para um arabesco que ficou para trás corre por ali e de repente reaparece de novo na mancha lilás na extremidade do pano a lei é a das cores Agora Marina quer saber nas minúcias o que aconteceu nessa noite em que cheguei com o recado do meu amigo o jantar arrumado para ele Rosa esperando E você chega e daí Daí fiquei como não podia deixar de ser Tinha chovido a casa longe cheguei escorrendo água Não deixou que eu ficasse com aquela roupa me fez vestir o macacão do tio enquanto secava minha calça com o ferro A chuva não parava e eu estava febril acabei dormindo nas almofadas que arrumou na sala Antes de dormir me fez tomar um chá quente de flor de laranjeira Meu amigo precisou se demorar no Recife tinha irmãos pequenos inventário uma embrulhada Então passei a visitála diariamente E ela não fez nenhuma questão de casamento perguntou Marina só por hábito sabe perfeitamente que eu não pensava sequer em casar Mas se casou comigo retrucou com a cara que conheço bem Não demora e dá aquele salto com a agulha mas eu me adianto com você foi diferente querida Filha única pai riquíssimo Um avarento que não diz bomdia de graça esse pormenor é interessante mas e a esperança Não soma nisso Ela riu abrindo o tapete nos joelhos Nunca perdi essa esperança nunca Já estamos ficando meio velhos é verdade mas sustentar a chama como seu pai vem sustentando não é a mais valiosa doação E nem vai morrer nada chá de ipêroxo Marina ele não soube desse ipê pergunto e vejo que a agulha parece gracejar quando envereda sinuosa até uma zona que já não alcanço ô Marina Por que falamos tanta tolice que começa inocente e vai se turvando Você provoca Eu respondo mais ou menos no mesmo tom Mas e se eu quiser esquecer Você não deixa Por que você não deixa Aonde está querendo chegar Ela dobrou o tapete Guardou as linhas Pode ter sido devido à fumaça acendeu um cigarro mas tive a impressão de que seus olhos se umedeceram Acho que você nunca amou ninguém a não ser você mesmo ela disse apertando as palmas das mãos contra os olhos Amei você quis dizer e não tive forças Ela sabe que se a tivesse encontrado como encontrei tantas outras se aventurando em Paris não a teria levado até a embaixada para o casamento Usava roupetas pobres porque estava na moda ser pobre mas eu estava ciente de que o pai era dono de fábricas de tecido da avareza soube bem mais tarde Amei Rosa podia ter dito Mas sabe também que se Rosa tivesse ganho com suas fórmulas se ficasse aquele tipo de mulher que se leva pelo braço assim na frente como um troféu eu não viajaria sozinho Nunca amei ninguém a não ser a mim mesmo Mas se também não me amo você sabe que vivo fugindo de mim Ou não Aperto o roupão contra o peito onde o suor já escorre despudorado Subo na balança o funcionário do pé grande dá as ordens e vou obedecendo Agora é para pesar Então vamos pesar Fico sabendo que estou com três quilos a mais Uma parte desses três quilos o senhor vai perder daqui a pouco ele anuncia e respondo que já estou perdendo a sauna começou na entrada Ele anota na ficha o meu peso A balança que Rosa comprou para se controlar não controlou porra nenhuma como impedir que se trancasse no banheiro com seus chocolates seus bolos Rosa eu chamava e ela abria a torneira abria o chuveiro mas estava era mastigando Ou se masturbando Masturbando estranhou Marina Você acha que ela se masturbava Melhor esgotar o tema inesgotável melhor dizer logo que já fazia tempo que nem nos tocávamos mais a gravidez foi só bebedeira loucura Já estava gordíssima quando aconteceu tão acidental Mas tão inoportuno que eu tive que lhe dizer A ocasião não é ideal Rosa Detesto essa palavra ideal mas foi a única que me ocorreu na hora Então ela vestiu o casaco preto e saiu em todos os acontecimentos vestia esse casaco que eu não podia nem ver pensava que com ele disfarçava sua gordura Não disfarçava ô Marina preciso mesmo continuar Foi na noite do meu vernissage Ela me preparou um lanche e depois fiquei bebendo ainda era cedo Podia ouvila no quarto ao lado trabalhando nas molduras gostava de trabalhar de noite com música e mastigando seus biscoitos Quando tomei o último gole de uísque e disse Vou indo ela me apareceu com o tal casaco A bolsa preta Eu também vou Fiquei sem saber o que dizer É que fazia meses que a gente não saía mais juntos eu tinha meus amigos meus compromissos ninguém perguntava por ela ficou naturalmente excluída Mas não se importava com isso tinha engordado e era bastante lúcida para saber que nenhuma roupa lhe caía bem Então se vestia sem vaidade cheguei um dia a pensar que fazia questão de parecer mais feia Ela sabia da sua amante perguntou Marina Encareia Mas quem disse que eu tinha uma amante Marina sustentou o olhar Irritouse Mas você tinha ou não tinha uma amante E então Ela não suspeitava Suspeitava respondi e esperei as perguntas detalhistas Não perguntou Ali estava ela de bolsa e casaco preto prossegui contando Pronta para ir também Me ocorreu na hora um pormenor tão tolo se o casaco ficaria melhor abotoado ou desabotoado Tive um sentimento de culpa mas por que deixei que engordasse assim E aquelas roupas medonhas Abraceia No dia seguinte mesmo lhe daria dinheiro para uns vestidos Quero você elegante de novo vamos jogar no telhado esse casaco e essa bolsa hem Rosa Ela apertava na mão a alça da bolsa preta como há alguns anos quantos apertara a laranja Olhei o retrato Olheia ambas com os olhos verdeágua colados em mim Minha Rosa eu disse estou muito contente porque você vai comigo tudo o que sou devo a você lembra Não quero mais que faça a Rosa Obscura todos vão gostar de te ver mesmo que eu não venda um mísero quadro vamos comemorar depois ceia boate uma farra completa Mas você está gelada toma antes um gole vamos esquentar toma este uísque Abri uma lata de amêndoas ela gostava dessas amêndoas É cedo ainda melhor chegar quando todos já estiverem lá Mas não fique assim tensa tire o casaco venha aqui no meu braço Sentamos na esteira bebemos no mesmo copo e quando ela riu beijeia Senti um resquício de sabor de baunilha em sua língua Você andou comendo pudim confessa Ela negava e ria há muito tempo que não ria e fiquei feliz Rosa Risonha ali ao meu lado como antigamente Tireilhe os sapatos Quando tirei sua blusa o bico do seu seio se retraiu e se fechou como a folha da plantinha que dormia quando tocada não era sensitiva DormeMaria vinha da minha infância Beijei o outro seio que também se fechou AcordaRosa Seus olhos escureceram Abriuse sem resistência Nunca a penetrei antes assim tão fundo nunca a tive tão completa num gozo que já era sofrimento Como se adivinhasse Marina ouvindo pálida que era a nossa última vez Cobria com o casaco e deixeia dormindo Ou fingindo dormir Na rua comecei a correr Se pegasse um táxi chegaria sem atraso Fui indo estonteado pela noite de estrelas com a lua no fundo e pensei na minha mãe com seu vestido da mesma cor da noite Está me vendo mãe gritei e descobri que na morte ela se integrara ao globo estrelado que o Menino Jesus segurava eu não precisava mais ter medo de que o globo caísse porque ela já fazia parte dele Você está aí gritei e no delírio senti que meu sangue latejava da mesma cor da noite intenso Livre Cheguei bêbado mas lúcido na exposição latejante da porta me veio o bafo ardente Entrei azul e grave a glória é azul Marina Azul azul Se precisar de alguma coisa tem a campainha avisou o funcionário abrindo a porta de vidro opaco O vapor me sufoca Fecho os olhos que ardem lacrimejantes foi como se um tampão de gaze úmida se colasse à minha cara Está muito forte para o senhor ele pergunta O tampão vai se diluindo rarefeito Escorre no suor Respiro o eucalipto que sopra em lufadas quentes do chão do teto Abro os olhos Tento ritmar a respiração sacudida pela tosse Espera Prefiro entrar aos poucos Agora está bem está bem assim No nevoeiro denso vou distinguindo os bancos de madeira manchas dispostas em círculo como num anfiteatro No primeiro círculo completamente nu está o homem que passou por mim no vestiário é lustroso e sem alento espiando a barriga desabada em pregas sucessivas até a prega mais funda que quase lhe cobre o sexo pequeno como o de um menino mas escuro Procuro me sentar a uma certa distância que o gordo não cisme de enredar conversa Mas ele também quer sossego porque as energias aqui são todas canalizadas no suor Estamos imóveis só o suor escorre veloz formando pequenas poças nos bancos No chão Poças isoladas umas das outras como ilhas Os vasos incomunicantes Mas por que Marina disse isso Que nunca amei ninguém Não te amei Marina Nem no começo A vontade de te montar e ser montado aquela ânsia A satisfação que me estufava o peito quando entrava com você numa sala não pela sua beleza que você não era bonita mas tão elegante Raçuda Então eu te levava pelo braço é minha É minha Sofreu com meus casos quase nos separamos no episódio Carla quer dizer que não amei a Carla E Rosa também não Me manchei com o sangue dela e você diz que não foi amor Eu tomaria uns três litros dágua Fácil murmura o homem levantando a cabeça e olhando o teto Tem olhos de peixe com saudade do mar Um litro atrás do outro Suas pernas são lisas como cera derretendo em camadas que empaparam o roupão e agora se estendem num friso escuro que se infiltra nas gretas do lajedo Não é verdade que me envergonhasse dela tão fina tão sensível Tão mais rica do que todo aquele mulherio brilhante que me cercava foi o que expliquei a Marina não é que me envergonhasse de levála às festas ou me envergonhava Gostava de têla em casa com seu cabelo preso na nuca e aqueles aventais de laboratório Rosa Particular As tentativas que fiz para deixá la menos desajeitada Menos suburbana E agora que falo nessas tentativas Será que fiz tantas assim Ou achei conveniente aquele seu retraimento principalmente quando desandou a engordar Não sei por que engordou assim eu avisei Chocolates biscoitos mastigava o dia inteiro Posso ser calculista Mas ninguém é só cálculo Ninguém é só interesse Abro o roupão As gotas de suor se cruzam no meu peito e acabam por se juntar em riozinhos que deslizam abrindo caminho por entre os pelos do ventre Fico olhando meu sexo emurchecido como aquelas raízes que o tio mudo ia desencavar Escuta Marina então não amei Como é que você pode dizer isso Acho que nunca me entreguei totalmente isso não sempre ficava uma parte menor ou maior de mim mesmo que olhava com lucidez a outra parte possuída Essa história também de amar o próximo como a mim mesmo não amei coisa nenhuma Abstrações bestas fantasias Sempre recebi muito mais do que dei concordo estou sendo honesto Passo a língua nos lábios eucalipto e sal Amei meu trabalho eu trabalhava com tanto amor lembra Se ao menos tivéssemos tido filhos Marina Mas você nunca pôde ter filhos espero que não me culpe também por isso Então estamos sós sem desejo Sem paixão quer dizer sem paixão eu porque você está toda fervorosa com suas irmãzinhas seu jornal Libertação Vai acabar se libertando de mim Sabe Marina eu esperava que envelhecêssemos juntos o sexo apaziguado não mais traições só aquela ternura tranquila sem ressentimentos Sem mágoas Com os nossos filhos Sempre achei besteira essa conversa de filhos que logo se casam e querem ver a gente pelas costas planejando discretamente bem discretamente um asilo para a nossa velhice quando formos velhos os sacanas Como fiz com o tio E agora sinto falta deles desses filhos que não tive Podia ter tido com Rosa Mas a ideia me apavorou tanto Depressa Rosa vai abortar correndo correndo Você estava certa Marina ela resistiu queria um filho nosso Também obriguei Carla Você está louca Carla Mãe solteira é isso o que você quer ser É o que seria Mas Carla eu não vou me separar da Marina se pensa que com isso vai me pegar pelo pé Então ela pediu uísque estávamos num bar Não não é isso me respondeu Não é isso que eu quero Também nem quero mais esse filho que um dia pode me olhar como você está me olhando A Carla era corajosa devia fazer parte aí desse seu movimento Enxugo o peito onde o suor brota mais quente em cócega desesperante Nem completo o gesto e novas gotas já nascem em lugar das outras Arranco o roupão O vapor ardente sopra dos quatro cantos da sauna como da boca do dragão tinha sempre um dragão nas histórias da minha mãe com homens maus castigados até o fim o castigo quente era obrigatório Fecho os olhos e a vejo vir vindo com seu vestido azulnoite E minha mãe Também não amei minha mãe As lágrimas escorrem e se misturam ao suor que me inunda a boca estou chorando como nunca chorei e quero chorar mais suar mais verter tudo nesta porra de sauna e minha mãe Estou banhado em lágrimas O seu tempo já se esgotou diz o funcionário abrindo a porta Aproxima se do homem gordo Recua tosse Mas pode ficar mais uns minutos o senhor é que sabe O homem se levanta com dificuldade Apanha o roupão caído debaixo do banco vesteo num movimento penoso e vai saindo curvado arrastando os pés descalços esqueceu os chinelos Chega Por hoje chega Vem pela fresta da porta uma lufada fria de ar E a música Me encolho cubro a cara com as mãos e apoio os cotovelos nos joelhos Agora o funcionário se dirige a mim Respondo por entre a fresta das mãos Estou ótimo Ele agradece e avisa que virá me chamar quando se esgotar meu tempo Fecha a porta Me descubro As lágrimas correm mais espaçadamente revigoradas em seu trajeto pelas veredas de suor Fico olhando num só ponto Marina diz que é assim e Marina sabe olhar um ponto em frente escolho a campainha e no silêncio sem mentira sem disfarce ir se desvencilhando das camadas e camadas que se acumularam as horas nuas foi um livro Um filme Deixar ir caindo o que não for verdadeiro Mas será que eu posso fazer essa seleção eu Tudo está tão misturado Marina E você fala em eleger a verdade como aquela gente da Inquisição acho que você veio desse tempo devia ser um Inquisidor mor de barrete marrom Eu era um moedeiro falso queimado na fogueira que você mesma ajudou a armar Então nos encontramos em Paris todos esses séculos depois e vim me derreter aqui concentrado num só ponto até escorrer minha última lágrima Ficar sozinho mesmo você aconselha Mas não sou boa companhia você sabe quando fico assim quieto a onda trevosa começa a subir lá dentro miasmas de lembranças que nem têm mais forma de tão comprimidas não distingo caras palavras mas só treva grudenta invadindo os vãos as brechas O corpo sem ar e com todo o ar do espaço rolando em abandono sem ter onde agarrar e sendo agarrado Sendo agarrado O bico o pássaro desce e me levanta pelo bico e depois nem fica comigo me solta sem apoio num desvalimento tão desvalido estou morrendo não é isto morrer Olho o ponto vermelho e não faço nenhum movimento minha vontade é sair desembestado quero beber conversar com o funcionário de avental aceito o cafezinho aceito a festa a música a puta deitar com a primeira puta jantar o primeiro convite E estou quieto Se a felicidade está no movimento permaneço imóvel podre de infeliz e imóvel até escorrer a camada final Lá bem no centro como num furacão tem uma zona de trégua Calma Respiro melhor está passando A angústia da agonia está passando Coordenar a respiração até que o ar consiga varar o funil obstruído soprar o coração ainda assustado me comovo com meu coração que treme como um pequeno pássaro com medo daquele outro enorme que me arrebatou há pouco Acaricioo de leve fique tranquilo Entrelaço as mãos no ventre o gesto da minha mãe Mas ela não ficava olhando para as mãos ficava olhando para dentro Não foi como eu contei Marina você sabe que não foi Pediu que eu mesmo dissesse pois estou dizendo ela me espera para o jantar a minha noiva mas tenho que seguir imediatamente ele disse Aquele meu amigo Vá e avise que meu pai morreu mas avise com jeito ela é tão sensível Pode deixar respondi sou jeitoso Quando atravessei o jardim tinha decidido vou me instalar aqui Até meu resfriado lembra Se ela se comover comigo um pobre pintor desconhecido e de Goiás Velho o que comove mais ainda se for tocada pela minha pobreza Pelo meu desamparo e se for do tipo maternal se quiser ser minha mãezinha Aceitei a roupa seca Aceitei o chá RosaChá eu disse e ficamos sorrindo das outras rosas que viriam depois É fácil representar Marina mas quero insistir num ponto não foi só representação você gosta de nitidez e ninguém é líquido nem sólido pastoso As coisas são embrulhadas até o dragão tem o seu lado me pergunto agora mesmo sem cinismo não era amor Não acabou sendo amor Nunca se sabe na hora Nem depois A noite do vernissage sim representei eu não queria que ela fosse comigo não queria mostrar minha mulher uma gorda de casaco preto Mas engordou quando se sentiu rejeitada Estou bloqueado eu dizia e ia trepar lá fora com outras mulheres e nem disfarçava ela sabia Sabia Quando chegou aquela noite e disse Vou com você pensei na mesma hora dou lhe um porre vai beber tanto que só vai acordar no dia seguinte Mas no meio não estou dizendo veio o desejo Não estava programado aquele amor dolorido doce a exposição me esperando as estrelas e ela dormindo em seguida cúmplice da minha fuga a Rosa Generosa estou certo de que fingiu que dormia Totalmente a meu serviço a Rosa Rejeitada deixou suas loções e passou a cuidar das minhas molduras tinha talento também para a madeira Nunca pudemos ter empregada ela sozinha dava conta da casa do jardim A alegria que me tomava às vezes só de pensar que estava à minha espera sem ressentimento O olhar limpo as mãos limpas Os vidros verdes e o perfume A sopa verde e meu bife sangrento era calma Minha Rosa Tranquila eu lhe dizia baixinho se você me abandonar me mato E estava sendo sincero e por isso me pergunto se não era amor um amor calculado mas amor existe sim A gravidez foi o imprevisto Nem o retrato ficou com ela que também o retrato acabei vendendo tive uma oferta alta e não resisti Véspera da viagem Faço outro Rosa prometi antes de embarcar faço dúzias depois Não não está na sua sala de visitas com as visitas que não chegam para o pôquer invenção essa história do dentista quero dizer de fato ele tratou dos dentes dela mas depois nunca mais se viram ela não saía quase Uma droga de dentista que a fez sofrer vivia com os dentes encrencados o dentista bom era o meu Véspera da viagem Então ela saía sem parar tinha o aborto A mudança E tinha que providenciar o seu quarto no apartamento de uma conhecida Uma tarde foi a última voltei mais cedo o embarque era naquela noite estava ali quieta olhando suas plantas parada no meio do jardim Não me viu chegar e continuou de braços pendidos ao lado do corpo as mãos abertas em leque sobre o canteiro era um gesto de despedida Não podia leválas e foi dizerlhes isso dizia adeus ao seu São Francisco de Assis à sua Santa Teresinha ô Marina a vontade que tive de gritar quando a vi assim Apaga tudo Rosa não tem mais viagem nem aborto nem mudança vamos ficar Ficar Mas que filho da puta você virou para permitir uma coisa dessas fiquei repetindo só para mim enquanto a tomei pela mão Vamos Sua mão estava gelada O táxi está esperando Rosa estamos atrasados Ela fechou no peito a gola do casaco preto Sim vamos O táxi esperando eu estava com pressa Marina e minha carreira Meu prêmio Você me esperando em Paris Place SaintAndrédesArts Duas semanas depois da minha chegada recebi a ordem de pagamento do cheque que prometeu para encompridar minha viagem Mas não recebi nenhuma carta Nem sequer um bilhete Escrevi para o endereço que tinha me dado e a carta me foi devolvida Endereço desconhecido Recorri aos nossos amigos que eram só meus não ninguém tinha ideia de onde ela poderia estar era esquiva não Marina escuta já estávamos casados e ainda assim em silêncio eu tentava encontrála remorso Lá sei ah Rosa Desaparecida Desaparecida Desaparecida Tentei refazer o retrato e ficou uma imitação pobre apenas uma moça na janela segurando uma laranja e não a Rosa segurando o meu mundo foi o meu mundo que ela segurou quando lhe dei a laranja Segura assim não se mexa Apodreceu Tentei um segundo retrato e acabei rasgando tudo estava só e bêbado quando chamei o Diabo Quero pintar como pintava me faça pintar como antes e lhe dou já minhalma Será que você não quer a minha alma Mas é uma alma tão porcaria assim que nem você aceita Quando Marina chegou contei que quis fazer o maldito do retrato e o Diabo nem deu sinal de vida Ele já tem alma demais ela disse está querendo se desfazer das que tem Apodreceu A laranja Não não se refaz nada meio século já se esvaiu quanto ainda me resta E se eu tentar de novo você acha que é tarde Escuta Marina se eu tentar novamente Me responda Marina e se eu recomeçar Se você me ajudasse se tivesse confiança em mim eu poderia voltar a trabalhar a sério largo tudo isso vai ser uma alegria vencer essa vaidade essa ânsia trabalhar em silêncio só nós dois ficaremos juntos e quem sabe na solidão A fé O amor e se voltar o amor não é possível isso Responda Marina responda Já não aconteceu antes Se quiser me chamar basta apertar a campainha diz o funcionário E vai abrir a porta ao novo cliente que entra pisando firme majestoso Não está muito forte não Por obséquio a sua toalha Faz um gesto na minha direção É suficiente Calço os chinelos e me enrolo no roupão Enxugo os olhos A cara Estou banhado em lágrimas É suficiente Aproximase para me ver melhor Tenho vontade de rir já me derreti inteiro as manchas azuis dos meus olhos estão boiando lá adiante na correnteza ô Marina Você está sorrindo tem razão tantas vezes prometi exatamente essas mesmas coisas tantos projetos lembra Verdadeiros delírios de intenções palavras Não tem o futuro não vamos falar em futuro que isso não existe Só tem agora Agora Respondo só por agora Então pergunta o funcionário enquanto me conduz de volta Vejo os seus pés enormes e comunico que estou um tanto enfraquecido mas limpo Pomba Enamorada ou Uma História de Amor Encontrouo pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio dágua pensou acho que vou amar ele pra sempre Ao ser tirada teve uma tontura enxugou depressa as mãos molhadas de suor no corpete do vestido fingindo que alisava alguma prega e de pernas bambas abriulhe os braços e o sorriso Sorriso meio de lado para esconder a falha do canino esquerdo que prometeu a si mesma arrumar no dentista do Rôni o Doutor Élcio isso se subisse de ajudante para cabeleireira Ele disse apenas meia dúzia de palavras tais como Você é que devia ser a rainha porque a rainha é uma bela bosta com o perdão da palavra Ao que ela respondeu que o namorado da rainha tinha comprado todos os votos infelizmente não tinha namorado e mesmo que tivesse não ia adiantar nada porque só conseguia coisas a custo de muito sacrifício era do signo de Capricórnio e os desse signo têm que lutar o dobro pra vencer Não acredito nessas babaquices ele disse e pediu licença pra fumar lá fora já estavam dançando o bis da Valsa dos Miosótis e estava quente pra danar Ela deu a licença Antes não desse diria depois à rainha enquanto voltavam pra casa Isso porque depois dessa licença não conseguiu mais botar os olhos nele embora o procurasse por todo o salão e com tal empenho que o diretor do clube veio lhe perguntar o que tinha perdido Meu namorado ela disse rindo quando ficava nervosa ria sem motivo Mas o Antenor é seu namorado estranhou o diretor apertandoa com força enquanto dançavam Nosotros É que ele saiu logo depois da valsa todo atracado com uma escurinha de frente única informou com ar distraído Um cara legal mas que não esquentava o rabo em nenhum emprego no começo do ano era motorista de ônibus mês passado era borracheiro numa oficina da Praça Marechal Deodoro mas agora estava numa loja de acessórios na Guaianases quase esquina da General Osório não sabia o número mas era fácil de achar Não foi fácil assim ela pensou quando o encontrou no fundo da oficina polindo uma peça Não a reconheceu em que podia servila Ela começou a rir Mas eu sou a princesa do São Paulo Chique lembra Ele lembrou enquanto sacudia a cabeça impressionado Mas ninguém tem este endereço porra como é que você conseguiu E levoua até a porta tinha um monte assim de serviço andava sem tempo pra se coçar mas agradecia a visita deixasse o telefone tinha aí um lápis Não fazia mal guardava qualquer número numa hora dessas dava uma ligada tá Não deu Ela foi à Igreja dos Enforcados acendeu sete velas para as almas mais aflitas e começou a Novena Milagrosa em louvor de Santo Antônio isso depois de telefonar várias vezes só pra ouvir a voz dele No primeiro sábado em que o horóscopo anunciou um dia maravilhoso para os nativos de Capricórnio aproveitando a ausência da dona do salão de beleza que saíra para pentear uma noiva telefonou de novo e dessa vez falou mas tão baixinho que ele precisou gritar Fala mais alto merda não estou escutando nada Ela então se assustou com o grito e colocou o fone no gancho delicadamente Só se animou com a dose de vermute que o Rôni foi buscar na esquina e então tentou novamente justo na hora em que houve uma batida na rua e todo mundo foi espiar na janela Disse que era a princesa do baile riu quando negou ter ligado outras vezes e convidouo pra ver um filme nacional muito interessante que estava passando ali mesmo perto da oficina dele na São João O silêncio do outro lado foi tão profundo que o Rôni deulhe depressa uma segunda dose Beba meu bem que você está quase desmaiando Acho que caiu a linha ela sussurrou apoiandose na mesa meio tonta Senta meu bem deixa eu ligar pra você ele se ofereceu bebendo o resto do vermute e falando com a boca quase colada ao fone Aqui é o Rôni coleguinha da princesa você sabe ela não está nada brilhante e por isso eu vim falar no lugar dela nada de grave graças a Deus mas a pobre está tão ansiosa por uma resposta lógico Em voz baixa amarrada assim do tipo de voz dos mafiosos do cinema a gente sente uma coisa diria o Rôni mais tarde revirando os olhos ele pediu calmamente que não telefonassem mais pra oficina porque o patrão estava puto da vida e além disso a voz foi engrossando não podia namorar com ninguém estava comprometido se um dia me der na telha EU MESMO TELEFONO certo Ela que espere porra Esperou Nesses dias de expectativa escreveulhe catorze cartas nove sob inspiração romântica e as demais calcadas no livro Correspondência Erótica de Glenda Edwin que o Rôni lhe emprestou com recomendações Porque agora querida a barra é o sexo se ele que voz maravilhosa é Touro você tem que dar logo os de Touro falam muito na lua nos barquinhos mas gostam mesmo é de trepar Assinou Pomba Enamorada mas na hora de mandar as cartas rasgou as eróticas foram só as outras Ainda durante esse período começou pra ele um suéter de tricô verde linha dupla o calor do cão mas nesta cidade nunca se sabe e duas vezes pediu ao Rôni que lhe telefonasse disfarçando a voz como se fosse o locutor do programa Intimidade no Ar para avisar que em tal e tal horário nobre a Pomba Enamorada tinha lhe dedicado um bolero especial É muito muito macho comentou o Rôni com um sorriso pensativo depois que desligou E só devido a muita insistência acabou contando que ele bufou de ódio e respondeu que não queria ouvir nenhum bolero do caralho Diga a ela que viajei que morri Na noite em que terminou a novela com o Doutor Amândio felicíssimo ao lado de Laurinha quando depois de tantas dificuldades venceu o amor verdadeiro ela enxugou as lágrimas acabou de fazer a barra do vestido novo e no dia seguinte alegando cólicas fortíssimas saiu mais cedo pra cercálo na saída do serviço Chovia tanto que quando chegou já estava esbagaçada e com o cílio postiço só no olho esquerdo o do direito já tinha se perdido no aguaceiro Ele a puxou pra debaixo do guardachuva disse que estava putíssimo porque o Corinthians tinha perdido e entredentes lhe perguntou onde era seu ponto de ônibus Mas a gente podia entrar num cinema ela convidou segurando tremente no seu braço as lágrimas se confundindo com a chuva Na Conselheiro Crispiniano se não estava enganada tinha em cartaz um filme muito interessante ele não gostaria de esperar a chuva passar num cinema Nesse momento ele enfiou o pé até o tornozelo numa poça funda duas vezes repetiu Essa filha da puta de chuva e empurroua para o ônibus estourando de gente e fumaça Antes falou bem dentro do seu ouvido que não o perseguisse mais porque já não estava aguentando agradecia a camisa o chaveirinho os ovos de Páscoa e a caixa de lenços mas não queria namorar com ela porque estava namorando com outra Me tire da cabeça pelo amor de Deus PELO AMOR DE DEUS Na próxima esquina ela desceu do ônibus tomou condução no outro lado da rua foi até a Igreja dos Enforcados acendeu mais treze velas e quando chegou em casa pegou o Santo Antônio de gesso tirou o filhinho dele escondeuo na gaveta da cômoda e avisou que enquanto Antenor não a procurasse não o soltava nem lhe devolvia o menino Dormiu banhada em lágrimas a meia de lã enrolada no pescoço por causa da dor de garganta o retratinho de Antenor três por quatro que roubou da sua ficha de sócio do São Paulo Chique com um galhinho de arruda debaixo do travesseiro No dia do Baile das Hortênsias comprou um ingresso para cavalheiro gratificou o bilheteiro que fazia ponto na Guaianases pra que levasse o ingresso na oficina e pediu à dona do salão que lhe fizesse o penteado da Catherine Deneuve que foi capa do último número de Vidas Secretas Passou a noite olhando para a porta de entrada do baile Na tarde seguinte comprou o disco AveMaria dos Namorados na liquidação escreveu no postal a frase que Lucinha diz ao Mário na cena da estação Te amo hoje mais do que ontem e menos do que amanhã assinou PE e depois de emprestar dinheiro do Rôni foi deixar na encruzilhada perto da casa de Alzira o que o Pai Fuzô tinha lhe pedido há duas semanas pra se alegrar e cumprir os destinos uma garrafa de champanhe e um pacote de cigarro Minister Se ela quisesse um trabalho mais forte podia pedir Alzira ofereceu Um exemplo Se cosesse a boca de um sapo o cara começaria a secar secar e só parava o definhamento no dia em que a procurasse era tiro e queda Só de pensar em fazer uma ruindade dessas ela caiu em depressão Imagine como é que podia desejar uma coisa assim horrível pro homem que amava tanto A preta respeitou sua vontade mas lhe recomendou usar alho virgem na bolsa na porta do quarto e reservar um dente pra enfiar lá dentro Lá dentro ela se espantou e ficou ouvindo outras simpatias só por ouvir porque essas eram impossíveis para uma moça virgem como ia pegar um pelo das injúrias dele pra enlear com o seu e enterrar os dois assim enleados em terra de cemitério No último dia do ano numa folga que mal deu pra mastigar um sanduíche Rôni chamoua de lado fez um agrado em seus cabelos Mas que macios meu bem foi o banho de óleo foi e depois de lhe tirar da mão a xícara de café contou que Antenor estava de casamento marcado para os primeiros dias de janeiro Desmaiou ali mesmo em cima da freguesa que estava no secador Quando chegou em casa a vizinha portuguesa lhe fez uma gemada A menina está que é só osso e lhe ensinou um feitiço infalível por acaso não tinha um retrato do animal Pois colasse o retrato dele num coração de feltro vermelho e quando desse meiodia tinha que cravar três vezes a ponta de uma tesoura de aço no peito do ingrato e dizer fulano fulano Como se chamava ele Antenor Pois na hora dos pontaços devia dizer com toda fé Antenor Antenor Antenor não vais comer nem dormir nem descansar enquanto não vieres me falar Levou ainda um pratinho de doces pra São Cosme e São Damião deixou o pratinho no mais florido dos jardins que encontrou pelo caminho tarefa dificílima porque os jardins públicos não tinham flores e os particulares eram fechados com a guarda de cachorros e foi vêlo de longe na saída da oficina Não pôde vêlo porque soube através de Gilvan um chofer de praça muito bonzinho amigo de Antenor nessa tarde ele se casava com uma despedida íntima depois do religioso no São Paulo Chique Dessa vez não chorou foi ao crediário Mappin comprou um licoreiro escreveu um cartão desejandolhe todas as felicidades do mundo pediu ao Gilvan que levasse o presente escreveu no papel de seda do pacote um P E bem grande tinha esquecido de assinar o cartão e quando chegou em casa bebeu soda cáustica Saiu do hospital cinco quilos mais magra amparada por Gilvan de um lado e por Rôni do outro o táxi de Gilvan cheio de lembrancinhas que o pessoal do salão lhe mandou Passou ela disse a Gilvan num fio de voz Nem penso mais nele acrescentou mas prestou bem atenção em Rôni quando ele contou que agora aquele virafolhas era manobrista de um estacionamento da Vila Pompeia parece que ficava na rua Tito Escreveulhe um bilhete contando que quase tinha morrido mas se arrependia do gesto tresloucado que lhe causara uma queimadura no queixo e outra na perna que ia se casar com Gilvan que tinha sido muito bom no tempo em que esteve internada e que a perdoasse por tudo o que aconteceu Seria melhor que ela tivesse morrido porque assim parava de encher o saco Antenor teria dito quando recebeu o bilhete que picou em mil pedaços isso diante de um conhecido do Rôni que espalhou a notícia na festa de São João do São Paulo Chique Gilvan Gilvan você foi a minha salvação ela soluçou na noite de núpcias enquanto fechava os olhos para se lembrar melhor daquela noite em que apertou o braço de Antenor debaixo do guardachuva Quando engravidou mandoulhe um postal com uma vista do Cristo Redentor ele morava agora em Piracicaba com a mulher e as gêmeas comunicandolhe o quanto estava feliz numa casa modesta mas limpa com sua televisão a cores seu canário e seu cachorrinho chamado Perereca Assinou por puro hábito porque logo em seguida riscou a assinatura mas levemente deixando sob a tênue rede de risquinhos a Pomba Enamorada e um coração flechado No dia em que Gilvanzinho fez três anos de lenço na boca estava enjoando por demais nessa segunda gravidez escreveulhe uma carta desejandolhe todas as venturas do mundo como chofer de uma empresa de ônibus da linha PiracicabaSão Pedro Na carta colou um amorperfeito seco No noivado da sua caçula Maria Aparecida só por brincadeira pediu que uma cigana muito famosa no bairro deitasse as cartas e lesse seu futuro A mulher embaralhou as cartas encardidas espalhou tudo na mesa e avisou que se ela fosse no próximo domingo à estação rodoviária veria chegar um homem que iria mudar por completo sua vida Olha ali o Rei de Paus com a Dama de Copas do lado esquerdo Ele devia chegar num ônibus amarelo e vermelho podia ver até como era os cabelos grisalhos costeleta O nome começava por A olha aqui o Ás de Espadas com a primeira letra do seu nome Ela riu seu risinho torto a falha do dente já preenchida mas ficou o jeito e disse que tudo isso era passado que já estava ficando velha demais pra pensar nessas bobagens mas no domingo marcado deixou a neta com a comadre vestiu o vestido azulturquesa das bodas de prata deu uma espiada no horóscopo do dia não podia ser melhor e foi WM A chuva mansa e o céu de aço Na mesa do Doutor Werebe o relógio branco marca três horas três horas em ponto Cheguei há pouco e a enfermeira pediu que esperasse Então como vão as coisas ele vai perguntar enquanto acende o cigarro Como vai minha irmã pergunto eu O silêncio ajuda a abrir o intrincado caminho aqui dentro por onde vou descendo até o fundo para ajudála preciso eu também descer aos infernos E no terceiro dia ressuscitar dos mortos rezo muito mas não aos santos limpos rezo aos outros aqueles rasgados por espinhos por demônios Rezo principalmente a São Francisco de Assis com seus olhos cosidos e mãos furadas ele pode ajudar minha irmã ele e Doutor Werebe que me acompanha nessa descida e me levanta e anima quando tropeço fiquei demais envolvido Como vão as coisas me pergunta enquanto acende o cigarro Acendo o meu E sem nenhuma pressa começamos a falar nela Vou até a porta envidraçada que dá para o pátio No vidro embaçado com o dedo escrevo um W e um M duas letras recortadas na folhagem brilhante de chuva o resto é névoa Minhas iniciais e as iniciais dela Wanda e Wlado uma família de nomes começando com dáblio mamãe se chamava Webe Wanda minha irmã Por esse W ela foi subindo ágil com seu passo elástico atingiu a ponta aguda da letra e ficou equilibrada lá no alto bailarina de malha corderosa se apurando no seu exercício mais raro as sapatilhas de cetim num prolongamento do ângulo Desequilibrouse e rolou pela encosta da letra até ficar comprimida no fundo nesse segundo vértice que toca o chão No escuro presa entre as duas paredes ela continua até agora Seu silêncio é suave porque ela é suave Mas o olhar não vai além da parede em frente Wanda minha irmã não quer mais vestir sua linda malha e tentar subir de novo Doutor Werebe não responde É preciso esperar ele disse Espero Teve uma crise na infância mamãe me falou nos meses em que foi obrigada a passar na sua cabeceira quando ela era ainda uma menininha Recuperouse Aprendeu bailado Línguas Cinco anos mais velha do que eu e tão mais desenvolvida nesse tempo vivíamos numa casa luxuosa mamãe era uma artista importante e bonita com muitos homens em volta Tantos empregados mas era Wanda quem cuidava de mim quem me contava histórias Quando resolveu me ensinar a ler comprou um quadronegro e uma caixa de giz de todas as cores nos intervalos eu desenhava Aprendi o EME com facilidade mas resisti ao DÁBLIO me lembro como ela ria quando minha língua enrolava no blio Mas o DÁBLIO não passa de um EME de cabeça para baixo explicou enquanto escrevia um grande W seguido de um M Não é simples Dei uma cambalhota e fiquei plantado nas duas mãos Assim Wanda É uma letra assim Ela me segurou pelos pés apertouos contra o peito E retomando o giz foi enchendo o quadronegro de dáblios e emes chegou até à moldura escreveu na moldura invadiu a parede e contornou a janela subiu na estante o giz se esfarelando nas lombadas dos livros no chão W M W M W M W M W M W M Não é fácil Não é fácil ia perguntando sem poder parar Fiquei na maior excitação dando gritos até mamãe vir lá de dentro e me sacudir enfurecida Quer fazer o favor de parar com isso Foi a Wanda eu denunciei mas ela continuou me sacudindo Vai parar Mamãe era uma atriz famosa mas agitada como um vento de tempestade Ou estava estudando algum papel em meio de crises de angústia era uma perfeccionista ou estava dando entrevistas ou experimentando roupas ou telefonando levava o telefone para o quarto deitava e ficava horas falando com uma amiga ou algum amante Pílulas para dormir pílulas para acordar a cara sempre enlambuzada de creme Não tomava conhecimento nem de Wanda nem de mim Atrás de um móvel ou pela fresta da janela eu a via entrar e sair se queixando se queixava muito das pessoas Do tempo curto que a obrigava a correr e nessa corrida ia perdendo coisas Onde está meu lenço meu perfume minha chave minha echarpe Leva esse menino daqui gritou certa vez que me aproximei mais Wanda me consolou com um sorvete de chocolate e com a história do Martinho Pescador que pescou um peixe encantado e o peixe lhe suplicou que o soltasse em troca lhe daria o que pedisse Quero uma casa pediu o pescador que vivia numa tapera Voltou e encontrou a mulher de vestido novo radiante no palacete mais bonito do bairro Só uma tarde durou esse contentamento porque de noite a mulher já começou a se queixar ao invés de uma casa tão banal bem que o tolo do marido podia ter pedido um palácio Vai lá e pede um palácio Ele foi pediu um palácio e quando voltou ela já estava resmungando de que adiantava tanto mármore e ouro se não tinha o poder Volta ao peixe ordenou quero ser rei Depois começou a se queixar de novo era tão limitado o poder do rei que não chegava ao reino dos céus Agora quero ser papa Mas um dia se sentou no trono da igreja chamou o Martinho Pescador e mandouo de volta à praia Diga ao peixe que quero ser Deus Deus perguntou o peixe E aí tudo revirou Chegou em casa e encontrou a mulher esfarrapada e chorando na porta da casa Embora menino de modo obscuro eu associava mamãe com a mulher de Martinho que não sossegava Estreava a peça e vinham as críticas Os telegramas As homenagens Então ficava macia o sorriso flutuante igual ao da deusa da gravura uma roliça mulher coroada de anjos numa gôndola puxada por dois cisnes brancos Vem brincar com a mamãe chamava por entre as plumas do seu négligé Eu ia mas nunca ficava muito à vontade atento ao primeiro sinal de impaciência tinha sempre um crítico que se omitia e um outro que foi meio ambíguo mas por que o público do último sábado não aplaudiu de pé A desconfiança crescia numa conspiração apontava inimigos descobria tramas Irritavase quando o telefone tocava sem parar ou quando as pessoas a abordavam na rua pedindo autógrafos retratos Mas quando chegou o tempo em que o telefone ficou calado e as pessoas não se viravam para vêla caiu no mais completo desespero Os vasos vazios de flores As pessoas distraídas O tremor de excitação durava até a hora do carteiro Hoje não veio carta Nem hoje nem ontem só convites para exposições ou avisos de banco que eram rasgados com tanto ódio que comecei a rezar para que eles não chegassem mais Sobrava o jornal que costumava deixar para depois nunca entendi por que reservava para o fim o jornal Ia diretamente à página de arte percorria os textos Não fui mencionada E quem sabe alguma referência na página seguinte Ou na outra ô que insipidez que vazio Dobrava o jornal com uma crispação que eu ouvia de longe Passava os cremes tomava as pílulas e ia dormir Para recomeçar tudo quando acordava e zonza ainda queria saber Ninguém telefonou Fingia alívio ótimo Mas o maxilar endurecia Evitava Wanda porque Wanda ficou moça não suportava sua juventude E me evitava porque eu era parecido com meu pai aquele que um dia saiu para comprar fósforos e nunca mais apareceu Na afobação do sucesso achou bom mesmo que ele tivesse sumido Mas assim que começou a envelhecer o ódio que fora curto voltou revigorado Na estreia de uma peça que queria demais fazer perdeu o papel para uma mais jovem ficou em tal estado que tirei dinheiro da sua bolsa corri à floricultura e lhe mandei um imenso ramo de rosas com um cartão Para a maior atriz do mundo de um fervoroso admirador Durante uma semana ela se alimentou dessas rosas Ficou apaziguada Sonhadora Quando começou a se crispar de novo mandeilhe um disco E uma caixa de bombons e em seguida outro disco com o dinheiro que eu ia tirando escondido Fiz uma pausa quando ela se impacientou Mas por que esse imbecil de admirador não aparece nunca Vai ver é um negro E rasgou o cartão Wanda cuidava dela cuidava de mim E ainda achava tempo para marcar a roupa com nossas letras tão pessoais as toalhas de banho com um dáblio e um eme bem grande em vermelho me enrolava neles para me enxugar Quando me deitava podia sentilos quase invisíveis bordados no canto da fronha Ou no guardanapo As letras tinham floreios na ponta da caneta de prata mas eram despojadas por entre os arabescos de ferro do portão W M Wanda teve um momento de cólera quando mamãe descobriu que era eu quem estava lhe tirando dinheiro as flores foram ficando mais caras Mas no dia seguinte mesmo era meu aniversário deixou no meu quarto um bolo com um W M escrito no creme de chocolate Sentamos os três em redor do bolo Flutuante como nos dias antigos mamãe vestiu um longo decotado e me ofereceu uma pequena tartaruga que batizamos com vinho Eu te batizo Wamusa Muito fina na sua malha de um rosaenvelhecido Wanda dançou para mim só para mim desde que mamãe polidamente continuava a ignorála Depois prendeu no meu pulso uma corrente com as iniciais gravadas na plaquinha de prata W M Beijei as letras beijei mamãe e guardei a tartaruguinha no bolso Minha família Uma estranha família diferente das outras mas nessas diferenças não estaria o nosso vínculo Dormi mal com um curioso sentimento de que devia ficar em vigília Madrugada ainda pulei da cama em todos os meus livros e cadernos nas capas e nas folhas internas os dáblios e os emes se multiplicavam em todos os tamanhos e cores Tentei apagálos o crayon e a aquarela o carvão e o nanquim eram irremovíveis Encontrei minha irmã na cozinha comendo uma fatia do bolo da véspera o ar ajuizado de uma mocinha disciplinada esperando a hora da aula de alemão Negou mas acabou confessando em prantos que não pudera resistir a uma espécie de comando que a possuía e a obrigava a marcar tudo que ia encontrando até a exaustão Enxuguei suas lágrimas Não se preocupe Wanda não se preocupe Direi no colégio que perdi os livros como é esqueça em alemão Os dias ocos muitas vezes já falei sobre esses dias que vieram em seguida quando a tempestade mudou de rumo Ficou a brisa por entre os cabelos de minha mãe que parecia menos infeliz enquanto escrevia suas memórias Atarefada com aulas Wanda mostrava a carinha de quem se propõe um trabalho sério O problema dos livros resolvido assumi a responsabilidade com a ajuda de um psicólogo do colégio Esse relaxar por dentro e por fora essa calma curiosidade por uma nuvem por uma folha que tomba e que se examina com amor e inocência era isso ser feliz Achei graça quando no tronco do abacateiro dei com as duas letras entalhadas a canivete mas recuei estarrecido quando entrei no seu quarto nas paredes nos móveis em superfícies e reentrâncias no chão e nos espelhos o W M furiosamente desenhados Ou abertos a canivete Passei a mão na poltroninha de couro rasgada de alto a baixo o algodão escapando do dáblio mais eviscerado do que o eme No canto do quarto a tartaruguinha marcada até o cerne lívido da carapaça Fui cambaleando até o quarto da mamãe Ela escrevia suas memórias mas devia estar num pedaço triste tinha o olhar apagado A Wanda onde ela foi perguntei Mamãe apertou minha mão e começou a chorar Mas meu querido a Wanda morreu faz tanto tempo Você fica falando nela fica falando e faz tanto tempo que ela morreu Acariciei seus cabelos que já estavam completamente grisalhos quando deixara de pintálos Sim mamãe é claro não falo mais eu disse Ela cruzou os braços na mesa e pousou neles a cabeça Dormiu Dormia em meio de uma frase de um gesto envelhecera tão rapidamente Saí e andei sem parar Mamãe e suas pílulas Wanda e suas letras O começo daquelas letras foi naquele quadronegro Mas o que significava isso vontade de afirmação De posse Lembreime da sua longa enfermidade na infância mamãe não entrou em minúcias mas se referiu ao medo que ela tinha das pessoas do escuro Estaria se transferindo para as iniciais Se buscando nelas Tanta pergunta me confundiu Me abrasei na dúvida e se com essa minha cumplicidade eu estivesse apenas agravando o seu estado Acabei a noite descendo num inferninho com uma gentil putinha sentada em meus joelhos Tinha olhos de amêndoa doce e dentes perfeitos devia andar pelos dezoito anos Os ombros estreitos a franja negra e lisa Você é chinesa perguntei Só a mamãe disse examinando a plaquinha da minha pulseira Riu quando deu com as letras Mas meu nome também começa assim quer ver E molhando o dedo no copo escreveu na mesa Wing Leveia para um hotel Por dois dias esqueci Wanda mamãe esqueci aquele eme andando de cabeça para baixo plantado nas mãos esqueci tudo em meio ao gozo eu estava precisado desse gozo feito de pausas amenas Wing só falava amenidades com sua voz mais leve do que a asa de uma borboleta Na noite do terceiro dia comprei para ela um pacote de cerejas era tempo de cerejas deixeia instalada no pequeno hotel com seu tocadiscos e fui para casa Encontrei Wanda de malha corderosa estava ensaiando Falei sobre o meu pobre amor chinês que achei na zona e ela me abraçou e rodopiou comigo então eu tinha um amor Quis conhecêla imediatamente Depois eu prometi depois eu a trago aqui Foi buscar uma garrafa de vinho para comemorar se eu estava amando ela também amava porque a única coisa que podia nos salvar me encarou com gravidade era o amor Mamãe tinha ido ao teatro com uma amiga Ouvimos música bebemos acabei dormindo ali mesmo no sofá No sonho tão real vi Wanda aproximarse de mim com uma expressão má Veio devagar bailarina pisando branda Inclinouse Mas o que trazia escondido Voltei a cara para a parede na hora em que a ponta da lâmina riscou um W e um M na palma da minha mão Os talhes seguros nem rasos nem fundos na medida exata A dor fria escorrendo devagar Quando acordei o sol já entrava pela janela e queimava minha boca Não tive forças de olhar a mão que latejava Amarrei nela um lenço e fui procurar um psiquiatra para Wanda Indicaramme seis um deles era o Doutor Werebe Wanda resistiu tinha horror de análises de sanatórios Em casa comigo e com mamãe ao lado ainda se aguentava mas no dia em que embarcasse nesse mar jamais voltaria disse esfregando as mãos num pânico de criança Tranquilizeia mas quem falou em internamento Ficaria com a gente convivendo com a nossa loucura razoável E pedilhe a lâmina o canivete tinha que me prometer que não marcaria mais nada Ela beijou a palma da minha mão ainda inchada e me entregou sua pulseira de iniciais um presente para a minha Wing No fim desse mês mamãe morreu A amiga atriz foi visitála e a encontrou caída no banheiro segurando o vidro de pílulas Foi acidente perguntei e o médico do prontosocorro olhoua mais demoradamente estava serena na morte Quem pode dizer Comprei um ramo de rosas igual ao que ela costumava receber do admirador anônimo e Wanda então me abraçou em prantos Quer dizer que era você Ficamos no velório de mãos dadas falando em voz baixa sobre mamãe Sobre nós mesmos A noite estava gelada mas era quente o hálito de Wanda me contando como lhe fazia bem a análise Conteilhe o quanto me fazia bem o amor Quando fui buscar a tampa do caixão vacilei num desfalecimento outra vez Fechei os olhos sob as pontas dos dedos apalpei as duas letras apressadamente cavadas na madeira polida Com as unhas tentei aplacar as farpas enquanto olhava para minha irmã ali encostada na porta silhueta espiralada de uma bailarina em descanso Mas por quê Wanda pergunteilhe na volta do cemitério Você tinha prometido Wanda Por quê Ela não se perturbou marcara o caixão como marcara nossos pertences mamãe gostava como eu das pequenas marcas da posse Até na morte Onde o mal Ouço vozes na saleta Doutor Werebe está conversando com a enfermeira Então como vão as coisas vai me perguntar com sua simpatia profissional nos primeiros momentos fica profissional Como vai minha irmã pergunto eu Volto sempre a alguns acontecimentos que me parecem as portas do labirinto a tarde em que encontrei Wing com os olhos inchados de tanto chorar Por que chorou Wing Ela fechou as janelas desceu as persianas e me abraçou com força demoradamente Entra em mim pediu Wing sabia que eu não gostava de nada escuro entre nós dois fazia parte do gozo ver seus olhos se estreitando até escorrerem diluídos para dentro dos meus Wing a luz Não obedeceu ela que era obediente Deixa ficar assim pediu Quando acendi o abajur tentou esconder depressa os seios seus lindos seus pequeninos seios horrivelmente tatuados com um W e um M azulmarinho em cada bico Cobria com o meu corpo Wing minha amada por que você deixou que ela fizesse um horror desses eu não te avisei Não respondeu Seu olhar atônito ficou cravado em mim mas do que eu estava falando Que Wanda Pois então não me lembrava Fomos os dois ao homem das tatuagens que prometeu ser discreto apenas duas letrinhas ah por favor não queria mais esse assunto Eu te amo ficou repetindo eu te amo Nem todas as letras do mundo iam interferir nesse amor Quando cheguei Wanda estava na sua poltroninha folheando um velho álbum de retratos Será este o pai Será que ainda está vivo perguntou Quando viu que não respondi fechou o álbum e ficou olhando para dentro de si mesma Tomeilhe as mãos singularmente infantis Wanda querida não podemos continuar desse jeito tenho sido seu cúmplice fico encobrindo tudo está errado está errado Agora até Wing dizendo para te proteger que não foi com você ao homem das tatuagens Quero que saiba que amanhã falo com Doutor Werebe se ele achar que você está precisada de um tratamento mais intenso se aconselhar o sanatório promete que não vai resistir Que não vai desobedecer Ela ficou me olhando através do espelho e seu rosto secreto era um reflexo do meu Depois ajoelhouse aos meus pés e com a ponta do dedo escreveu um dáblio e um eme na poeira dos meus sapatos Apago no vidro da janela as duas letras feitas no bafo Aqui ela não vai ser maltratada disse o Doutor Werebe Nem você Fale só se tiver vontade está me compreendendo A chuva fortalecida faz tremer o arvoredo no meio do pátio Começo também a tremer por que o Doutor Werebe está demorando Ele é bom me dá a mão enquanto descemos juntos até a ressurreição da carne ele me ajuda quando tropeço com a minha carga nos braços Doutor Werebe está pesado demais para mim digo e ele me segura Na realidade Wanda não pesa mais do que uns trinta quilos mas fica de ferro quando começamos a descida E precisamos eu e ela ir até o fundo do fundo lá onde fica o hotel corro sabendo o que vou encontrar e ainda assim continuo correndo subo a escada abro a porta e a primeira coisa que vejo é o tocadiscos ligado a agulha girando na zona silenciosa girando girando no silêncio e a cadeira tombada não sei quanto tempo tombada e a agulha na zona encontrei Wing na zona ela sentou no meu colo e a franja e os olhos de amêndoa doce meu pobre amor chinês de ombros estreitos entra em mim pedia e o gozo cálido eu te amo eu te amo eu te amo entra em mim disse e a certeza de que ela estava fria na zona de silêncio como a agulha Onde está você Wing gritei quando vi o jornal aberto no chão e a data a data com a gota de sangue respingada era a véspera pisei no respingo estatelado duro e adiante a mão pendendo para fora da cama com sua linda pulseira de prata fui subindo pelo fio sanguinolento do braço passando agachado debaixo da pulseira como o fio que escorreu sem sujála não esqueça esse detalhe sem sujála fui subindo pelo fio ressequido como fazia Wanda com sua malha subindo na letra até ficar hasteada em cima Wing Wing não abra a porta Wanda vai pedir vai implorar mas não abra e agora esse rasgão na roupa e esse peito rasgado Wanda morreu faz tanto tempo mamãe disse e não sabia que ela era inaparente porque eu ia atrás apagando os rastros por onde ela passava mas se eu limpar essa crosta no peito de Wing vai aparecer o W M de lábios azuis de tão frios deixando entrever bem no vértice seu pequenino seu amado coração Lua Crescente em Amsterdã O jovem casal parou diante do jardim e ali ficou sem palavra ou gesto apenas olhando A noite cálida sem vento Uma menina loura surgiu na alameda de areia brancoazulada e veio correndo Ficou a uma certa distância dos forasteiros observandoos com curiosidade enquanto comia a fatia de bolo que tirou do bolso do avental Vai me dar um pedaço deste bolo pediu a jovem estendendo a mão Me dá um pedaço hem menininha Ela não entende ele disse A jovem levou a mão até a boca Comer comer Estou com fome insistiu na mímica que se acelerou exasperada Quero comer Aqui é a Holanda querida Ninguém entende A menina foi se afastando de costas E desatou a correr pelo mesmo caminho por onde viera Ele adiantouse para chamar a menina e notou então que a estreita alameda se bifurcava em dois longos braços curvos que deviam se dar as mãos lá no fim abarcando o pequeno jardim redondo Um abraço tão apertado ele disse Acho que este é o jardim do amor Tinha lá em casa uma estatueta com um anjo nu fervendo de desejo apesar do mármore todo inclinado para a amada seminua chegava a enlaçála Mas as bocas a um milímetro do beijo um pouco mais que ele abaixasse A aflição que me davam aquelas bocas entreabertas sem poder se juntar Sem poder se juntar Mas que língua falam em Amsterdã A língua de Amsterdã ele disse enfiando os dedos nos bolsos da jaqueta à procura de cigarros Teríamos que morrer e renascer aqui para entender o que falam Queria tanto aquele bolo não sente o cheiro Queria aquele bolo uma migalha que fosse e ficaria mastigando mastigando e o bolo ia se espalhar em mim na mão no cabelo não sente o cheiro Ele limpou nas calças os dedos sujos da poeira de fumo que encontrou nos bolsos Vamos dormir aqui Mas vê se para de chorar quer que venha o guarda Quero chorar Então chora Molemente ela se recostou numa árvore Enlaçoua Os cabelos lhe caíam em abandono pela cara mas através dos cabelos e da folhagem podia ver o céu Que lua magrinha É lua minguante Ele avançou até o meio da alameda e expôs a cara que se banhou na luz do céu estrelado Acho que é crescente tem o formato de um C Vem querida ali tem um banco Não me chame mais de querida Está bem não chamo Não somos mais queridos não somos mais nada Está certo Agora vem O banco é frio quero minha cama quero minha cama ela soluçou e os soluços fracamente se perderam num gemido Que fome Que fome Amanhã a gente Quero hoje ela ordenou endireitando o corpo Voltou para ele a face endurecida Se você me amasse mesmo faria agora um ensopado com seu fígado com seu coração Meus cachorros gostavam de coração de boi eram enormes Não vai me fazer um ensopado com seu coração não vai Meu coração é de isopor e isopor não dá nenhum ensopado Li uma vez que ele acrescentou Puxoua com brandura Vem Ana Ali tem um banco Meu coração é de verdade Ele riu O seu Isopor ou acrílico na história que li o homem achou que tinha tanto sofrimento em redor mas tanto que não aguentou e substituiu seu coração por um de acrílico acho que era acrílico E daí Ele ficou olhando para os pés enegrecidos da jovem forçando as tiras das sandálias rotas Subiu o olhar até o jeans esfiapado pesado de poeira Daí nada Não deu certo ele teria que nascer outra coisa Você sabia contar histórias melhores Sob a camiseta de algodão transparente os pequeninos bicos dos seios pareciam friorentos E não estava frio Foram escurecendo durante a viagem ele pensou Qual era a Ana verdadeira esta ou a outra A que jurou amálo na terra no mar no braseiro na neve debaixo da ponte na cama de ouro Você mentiu Ana Quando Quando foi que menti Ele desviou o olhar desinteressado Vem que amanhã a gente vai ver o museu de Rembrandt lembra Você disse que era o que mais queria ver no mundo Tenho ódio de Rembrandt Não esfregue assim a cara Ana Você vai se machucar Quero me machucar Então se machuque Mas vem Minhas unhas eram limpas E agora esta crosta gemeu ela examinando os dedos em garra Limpou a gota de sangue que lhe escorreu do arranhão aberto no queixo Confessa que quer seguir sozinho a viagem que quer se ver livre de mim Nem isso Não queria nada apenas comer E mesmo assim sem aquele antigo empenho do começo Gostaria também de sair dançando a música leve ele leve e dançando por entre as árvores até se desintegrar numa pirueta Você disse que seria a menina mais feliz do mundo quando pisasse comigo em Amsterdã lembra Tenho ódio de Amsterdã Eu era tão perfumada tão limpa Me sujei com você Nos sujamos quando acabou o amor Agora vem vamos dormir naquele banco Vem Ana Ela puxoulhe a barba Quando foi que fiquei assim imunda fala Mas eu já disse foi quando deixou de me amar Mas você também ela soqueoulhe fracamente o peito Nega que você também Sim nós dois A queda dos anjos não tem um livro Ah que diferença faz Vem O banco é frio Quando ele a tomou pela cintura chegou a se assustar um pouco era como se estivesse carregando uma criança precisamente aquela menininha que fugira há pouco com seu pedaço de bolo Quis se comover E descobriu que se inquietara mais com o susto da menina do que com o corpo que agora carregava como se carrega uma empoeirada boneca de vitrina sem saber o que fazer com ela Depositoua no banco e sentouse ao lado Contudo era lua crescente E estavam em Amsterdã Abriu os braços Tão oco Leve Poderia sair voando pelo jardim pela cidade Só o coração pesando não era estranho De onde vinha esse peso Das lembranças Pior do que a ausência do amor a memória do amor E onde estão os outros Para a viagem Você não disse que era aqui o reino deles perguntou ela dobrando o corpo para a frente até encostar o queixo nos joelhos Tudo invenção Isso de Marte ser pedregoso deserto Uma vez fui lá queria tanto voltar Detesto este jardim Perdemos o outro Que outro A voz dela também mudara era como se viesse do fundo de uma caverna fria Sem saída Se ao menos pudesse transmitirlhe esse distanciamento Nem piedade nem rancor Você sabia Ana Algumas estrelas são leves assim como o ar a gente pode carregálas numa maleta Uma bagagem de estrelas Já pensou no espanto do homem que fosse roubar essa maleta Ficaria para sempre com as mãos cintilantes mas tão cintilantes que não poderia mais tirar as luvas Olha minhas unhas Até a menininha fugiu de mim queixouse ela enlaçando as pernas Desconfiou que você ia avançar no seu bolo Olha minhas unhas Será que aqui também dão comida em troca de sangue Não sei Uma droga de comida Aquela de Marrocos disse ela esfregando na areia a sola da sandália Nosso sangue também deve ser uma droga de sangue O silêncio foi se fazendo de pequenos ruídos de bichos e plantas até formar um tênue tecido que perpassava pela folhagem enganchavase imponderável numa folha e prosseguia em ondas até se romper no bico de um pássaro Queria um chocolate quente com bolo O creme eu enchia uma colher de creme que se espalhava na minha boca eu abria a boca Abriu a boca Fechou os olhos Ele sorriu Estou ouvindo uma música a gente podia dançar Se a gente se amasse a gente saía dançando Ela levantou as mãos e passou as pontas dos dedos nos cabelos Na boca E agora O que acontece quando não se tem mais nada com o amor Quase ele levou de novo a mão no bolso para pegar o cigarro onde fumara o último Quando acaba o amor sopra o vento e a gente vira outra coisa respondeu ele Que coisa Sei lá Não quero é voltar a ser gente eu teria que conviver com as pessoas e as pessoas ele murmurou Queria ser um passarinho vi um dia um passarinho bem de perto e achei que devia ser simples a vida de um passarinho de penas azuis os olhinhos lustrosos Acho que eu queria ser aquele passarinho Nunca me teria como companheira nunca Gosto de mel acho que quero ser borboleta E fácil a vida de borboleta É curta O vento soprou tão forte que a menina loura teve que parar porque o avental lhe tapou a cara Segurou o avental arrumou a fatia de bolo dentro do guardanapo e olhou em redor Aproximouse do banco vazio Procurou os forasteiros por entre as árvores voltou até o banco e alongou o olhar meio desapontado pela alameda também deserta Ficou esfregando as solas dos sapatos na areia fina Guardou o bolo no bolso e agachouse para ver melhor o passarinho de penas azuis bicando com disciplinada voracidade a borboleta que procurava se esconder debaixo do banco de pedra A Mão no Ombro O homem estranhou aquele céu verde com a lua de cera coroada por um fino galho de árvore as folhas se desenhando nas minúcias sobre o fundo opaco Era uma lua ou um sol apagado Difícil saber se estava anoitecendo ou se já era manhã no jardim que tinha a luminosidade fosca de uma antiga moeda de cobre Estranhou o úmido perfume de ervas E o silêncio cristalizado como num quadro com um homem ele próprio fazendo parte do cenário Foi andando pela alameda atapetada de folhas cor de brasa mas não era outono Nem primavera porque faltava às flores o hálito doce avisando as borboletas não viu borboletas Nem pássaros Abriu a mão no tronco da figueira viva mas fria um tronco sem formigas e sem resina não sabia por que motivo esperava encontrar a resina vidrada nas gretas Não era verão Nem inverno embora a frialdade limosa das pedras o fizesse pensar no sobretudo que deixara no cabide do escritório Um jardim fora do tempo mas dentro do meu tempo pensou O húmus que subia do chão o impregnava do mesmo torpor da paisagem Sentiuse oco a sensação de leveza se misturando ao sentimento inquietante de um ser sem raízes se abrisse as veias não sairia nenhuma gota de sangue não sairia nada Apanhou uma folha Mas que jardim era esse Nunca estivera ali nem sabia como o encontrara Mas sabia e com que força que a rotina fora quebrada porque alguma coisa ia acontecer o quê Sentiu o coração disparar Habituarase tanto ao quotidiano sem imprevistos sem mistérios E agora a loucura desse jardim atravessado em seu caminho E com estátuas aquilo não era uma estátua Aproximouse da mocinha de mármore arregaçando graciosamente o vestido para não molhar nem a saia nem os pés descalços Uma mocinha medrosamente fútil no centro do tanque seco pisando com cuidado escolhendo as pedras amontoadas em redor Mas os pés delicados tinham os vãos dos dedos corroídos por uma época em que a água chegara até eles Uma estria negra lhe descia do alto da cabeça deslizava pela face e se perdia ondulante no rego dos seios meio descobertos pelo corpete desatado Notou que a estria marcara mais profundamente a face devorandolhe a asa esquerda do nariz Mas por que a chuva se concentrara só naquele percurso numa obstinação de goteira Ficou olhando a cabeça encaracolada os anéis se despencando na nuca que pedia carícia Me dá sua mão que eu ajudo ele disse e recuou um inseto penugento num enrodilhamento de aranha foi saindo de dentro da pequenina orelha Deixou cair a folha seca enfurnou as mãos nos bolsos e seguiu pisando com a mesma prudência da estátua Contornou o tufo de begônias vacilou entre os dois ciprestes mas o que significava essa estátua e enveredou por uma alameda que lhe pareceu menos sombria Um jardim inocente E inquietante como o jogo de quebracabeça que o pai gostava de jogar com ele no caprichoso desenho de um bosque onde estava o caçador escondido tinha que achálo depressa para não perder a partida Vamos filho procura nas nuvens na árvore ele não está enfolhado naquele ramo No chão veja no chão não forma um boné a curva ali do regato Está na escada ele respondeu Esse caçador familiarmente singular que viria por detrás na direção do banco de pedra onde ia se sentar Logo ali adiante tinha um banco Para não me surpreender desprevenido detestava surpresas discretamente ele daria algum sinal antes de pousar a mão no meu ombro Então eu me voltaria para ver Estacou A revelação o fez cambalear numa vertigem agora sabia Fechou os olhos e se encolheu quase tocando os joelhos no chão O sinal seria como uma folha tombando em seu ombro mas se olhasse para trás se atendesse o chamado Foi endireitando o corpo Passou as mãos nos cabelos Sentiuse observado pelo jardim julgado até pela roseira de rosas miúdas numa expressão reticente logo adiante Envergonhouse Meu Deus murmurou num tom de quem pede desculpas por ter entrado em pânico assim com essa facilidade meu Deus que papel miserável e se for um amigo Simplesmente um amigo Começou a assobiar e as primeiras notas da melodia o transportaram ao menino antigo com sua roupa de Senhor dos Passos na procissão de Sexta Feira Santa O Cristo cresceu no esquife de vidro oscilando suspenso sobre as cabeças Me levanta mãe quero ver Mas Ele continuava alto demais tanto na procissão como depois lá na igreja deposto no estrado de panos roxos fora do esquife para o beijamão O remorso velando as caras O medo atrofiando a marcha dos pés tímidos atrás do Filho de Deus o que mais nos espera se até com Ele A vontade de que o pesadelo acabasse logo e amanhecesse sábado ressuscitar na Aleluia do sábado Mas a hora ainda era a da música da banda de batas pretas Das tochas Dos turíbulos atirados para os lados vupt vupt até o extremo das correntes Falta muito mãe A vontade de evasão de tudo quanto era grave e profundo certamente vinha dessa noite os planos de fuga na primeira esquina desvencilharse da coroa de falsos espinhos da capa vermelha fugir do morto tão divino mas morto A procissão seguia por ruas determinadas era fácil se desviar dela descobriu mais tarde O que continuava difícil era fugir de si mesmo No fundo secreto fonte de ansiedade era sempre noite os espinhos verdadeiros lhe espetando a carne ô por que não amanhece Quero amanhecer Sentouse no banco verde de musgo tudo em redor mais quieto e mais úmido agora que chegara ao âmago do jardim Correu as pontas dos dedos no musgo e achouo sensível como se lhe brotasse da própria boca Examinou as unhas E abaixouse para tirar a teia de aranha que se colara despedaçada à bainha da calça o trapezista de malha branca foi na estreia do circo despencou do trapézio lá em cima varou a rede e se estatelou no picadeiro A tia tapoulhe depressa os olhos Não olhe querido mas por entre os dedos enluvados viu o corpo se debater sob a rede que foi arrastada na queda As contorções se espaçaram até à imobilidade só a perna de inseto vibrando ainda Quando a tia o carregou para fora do circo o pé em ponta escapava pela rede estraçalhada num último estremecimento Olhou para o próprio pé adormecido tentou movêlo Mas a dormência já subia até o joelho Solidário o braço esquerdo adormeceu em seguida um pobre braço de chumbo pensou enternecido com a lembrança de quando aprendera que alquimia era transformar metais vis em ouro o chumbo era vil Com a mão direita recolheu o braço que pendia avulso Bondosamente colocouo sobre os joelhos já não podia fugir E fugir para onde se tudo naquele jardim parecia dar na escada Por ela viria o caçador de boné sereno habitante de um jardim eterno só ele mortal A exceção E se cheguei até aqui é porque vou morrer Já horrorizouse olhando para os lados mas evitando olhar para trás A vertigem o fez fechar de novo os olhos Equilibrouse tentando se agarrar ao banco Não quero gritou Agora não meu Deus espera um pouco ainda não estou preparado Calouse ouvindo os passos que desciam tranquilamente a escada Mais tênue que a brisa um sopro pareceu reavivar a alameda Agora está nas minhas costas ele pensou e sentiu o braço se estender na direção do seu ombro Ouviu a mão ir baixando numa crispação de quem familiar e contudo cerimonioso dá um sinal Sou eu O toque manso Preciso acordar ordenou se contraindo inteiro isso é apenas um sonho Preciso acordar acordar Acordar ficou repetindo e abriu os olhos Demorou um pouco para reconhecer o travesseiro que apertava contra o peito Limpou a baba morna que lhe escorria pelo queixo e puxou o cobertor até os ombros Que sonho murmurou abrindo e fechando a mão esquerda formigante pesada Estendeu a perna e quando a mulher abriu a janela e perguntou se tinha dormido bem quis contarlhe o sonho do jardim com a Morte vindo por detrás sonhei que ia morrer Mas ela podia gracejar a novidade não seria sonhar o contrário Virouse para a parede Não queria nenhum tipo de resposta do gênero bemhumorado como era irritante quando ela exibia seu bom humor Gostava de se divertir à custa dos outros mas se encrespava quando se divertiam à sua custa Massageou o braço dolorido e deu uma vaga resposta quando ela lhe perguntou que gravata queria usar estava um dia lindo Era dia ou noite no jardim Tantas vezes pensara na morte dos outros entrara mesmo na intimidade de algumas dessas mortes e jamais imaginara que pudesse lhe acontecer o mesmo jamais Um dia quem sabe Um dia tão longe mas tão longe que a vista não alcançava essa lonjura ele próprio se perdendo na poeira de uma velhice remota diluído no esquecimento No nada E agora nem cinquenta anos Examinou o braço os dedos Levantouse molemente vestiu o chambre não era estranho Isso de não ter pensado em fugir do jardim Voltou se para a janela e estendeu a mão para o sol Pensei é claro mas a perna desatarraxada e o braço advertindo que não podia escapar porque todos os caminhos iam dar na escada que não havia nada a fazer senão ficar ali no banco esperando o chamado que viria por detrás de uma delicadeza implacável E então perguntoulhe a mulher Assustouse Então o quê Ela passava creme na cara fiscalizandoo através do espelho mas ele não ia fazer sua ginástica Hoje não disse massageando de leve a nuca chega de ginástica Chega também de banho ela perguntou enquanto dava tapinhas no queixo Ele calçou os chinelos se não estivesse tão cansado poderia odiála E como desafina agora ela cantarolava nunca teve bom ouvido a voz até que é agradável mas se não tem bom ouvido Parou no meio do quarto o inseto saindo do ouvido da estátua não seria um sinal Só o inseto se movimentando no jardim parado O inseto e a morte Apanhou o maço de cigarro mas deixouo hoje fumaria menos Abriu os braços esse dolorimento na gaiola do peito era real ou memória do sonho Tive um sonho ele disse passando por detrás da mulher e tocandolhe o ombro Ela afetou curiosidade no leve arquear das sobrancelhas Um sonho E recomeçou a espalhar o creme em torno dos olhos preocupada demais com a própria beleza para pensar em qualquer coisa que não tivesse relação com essa beleza Que já está perdendo o viço ele resmungou ao entrar no banheiro Examinouse no espelho estava mais magro ou essa imagem era apenas um eco multiplicador do jardim Cumpriu a rotina da manhã com uma curiosidade comovida atento aos menores gestos que sempre repetiu automaticamente e que agora analisava fragmentandoos em câmara lenta como se fosse a primeira vez que abria uma torneira Podia também ser a última Fechoua mas que sentimento era esse Despediase e estava chegando Ligou o aparelho de barbear examinouo através do espelho e num movimento caricioso aproximouo da face não sabia que amava assim a vida Essa vida da qual falava com tamanho sarcasmo com tamanho desprezo Acho que ainda não estou preparado foi o que tentei dizer Não estou preparado Seria uma morte repentina coisa do coração mas não é o que eu detesto O imprevisto a mudança dos planos Enxugouse com indulgente ironia era exatamente isso o que todos diziam Os que iam morrer E nunca pensaram sequer em se preparar até o avô velhíssimo quase cem anos e alarmado com a chegada do padre Mas está na hora Já Tomou o café em goles miúdos como era gostoso o primeiro café A manteiga se derretendo no pão aquecido O perfume das maçãs de mistura com outro perfume vindo de onde Jasmins Os pequeninos prazeres Baixou o olhar para a mesa posta os pequenos objetos Ao entregarlhe o jornal a mulher lembrou que tinham dois compromissos para a noite um coquetel e um jantar E se emendássemos ela sugeriu Sim emendar ele disse Mas não era o que faziam ano após ano sem interrupção O brilhante fio mundano era desenrolado infinitamente Sim emendaremos repetiu E afastou o jornal mais importante do que todos os jornais do mundo era agora o raio de sol trespassando as uvas do prato Colheu um bago cor de mel e pensou que se houvesse uma abelha no jardim do sonho ao menos uma abelha podia ter esperança Olhou para a mulher que passava geleia de laranja na torrada uma gota amareloouro escorrendolhe pelo dedo e ela rindo e lambendo o dedo mas há quanto tempo tinha acabado o amor Ficara esse jogo Essa acomodada representação já em decadência por desfastio preguiça Estendeu a mão para acariciarlhe a cabeça Que pena disse Ela voltouse Pena por quê Ele demorou o olhar em seus cabelos encaracolados como os da estátua Uma pena aquele inseto disse E a perna ficar metálica na metamorfose final Não se importe estou delirando Serviuse de mais café Mas estremeceu quando ela lhe perguntou se por acaso não estava atrasado Hoje entraria mais tarde queria fumar um último cigarro Teria dito último Beijou o filho de uniforme azul entretido em arrumar a pasta do colégio exatamente como fizera na véspera Como se não soubesse que naquela manhã ou noite o pai quase olhara a morte nos olhos Mais um pouco e dou de cara com ela segredou ao menino que não ouviu conversava com o copeiro Se não acordo antes disse para a mulher que se debruçou na janela para avisar ao motorista que tirasse o carro Vestiu o paletó podia dizer o que quisesse ninguém se interessava E por acaso eu me interesso pelo que dizem ou fazem Afagou o cachorro que veio saudálo com uma alegria tão cheia de saudade que se comoveu não era extraordinário A mulher o filho os empregados todos continuavam impermeáveis só o cachorro sentia o perigo com seu faro visionário Acendeu o cigarro atento à chama do palito queimando até o fim Vagamente de algum cômodo da casa veio a voz do locutor de rádio na previsão do tempo Quando se levantou a mulher e o filho já tinham saído Ficou olhando o café esfriando no fundo da xícara O beijo que lhe deram foi tão automático que nem sequer se lembrava agora de ter sido beijado Telefone para o senhor o copeiro veio avisar Encarouo há mais de três anos aquele homem trabalhava ali ao lado e quase nada sabia sobre ele Baixou a cabeça e fez um gesto de quem se recusa e se desculpa Tanta pressa nas relações dentro de casa Lá fora um empresário de sucesso casado com uma mulher na moda A outra fora igualmente ambiciosa mas não tinha charme e era preciso charme para investir nas festas nas roupas Investir no corpo A gente tem que se preparar como se todos os dias tivesse um encontro de amor ela repetiu mais de uma vez Olha aí não me distraio nenhum sinal de barriga A distração era de outro gênero O doce distraimento de quem tem a vida pela frente mas não tenho Deixou cair o cigarro dentro da xícara agora não mais O sonho do jardim interrompera o fluxo da sua vida num corte O incrível sonho fluindo tão natural apesar da escada com seus degraus esburacados de tão gastos Apesar dos passos do caçador embutido pisando na areia da malícia fina até o toque no ombro Entrou no carro ligou o contato O pé esquerdo resvalou para o lado recusandose a obedecer Repetiu o comando com mais energia e o pé resistindo Tentou mais vezes Não perder a calma não se afobar foi repetindo enquanto desligava a chave Fechou o vidro O silêncio A quietude De onde vinha esse perfume de ervas úmidas Descansou no assento as mãos desinteressadas A paisagem foi se aproximando numa aura de cobre velho estava clareando ou escurecia Levantou a cabeça para o céu esverdinhado com a lua de calva exposta coroada de folhas Vacilou na alameda bordejada pela folhagem escura Mas o que é isso estou no jardim De novo E agora acordado espantouse examinando a gravata que ela escolhera para esse dia Tocou na figueira sim outra vez a figueira Enveredou pela alameda um pouco mais e chegaria ao tanque seco A moça dos pés cariados ainda estava em suspenso sem se decidir com medo de molhar os pés Como ele mesmo tanto cuidado em não se comprometer nunca em não assumir a não ser as superfícies Uma vela para Deus outra para o Diabo Sorriu das próprias mãos abertas se oferecendo Passei a vida assim pensou mergulhandoas nos bolsos num desesperado impulso de aprofundamento Afastouse antes que o inseto fofo irrompesse de novo de dentro da pequenina orelha não era absurdo Isso da realidade imitar o sonho num jogo onde a memória se sujeitava ao planificado Planificado por quem Assobiou e o Cristo da procissão foi se esboçando no esquife indevassável tão alto A mãe enrolouo depressa no xale a roupa do Senhor dos Passos era leve e tinha esfriado Está com frio filho Tudo agora se passava mais rápido ou era apenas impressão A marcha funeral se precipitou em meio das tochas e correntes soprando fumaça e brasa E se eu tivesse mais uma chance gritou Tarde porque o Cristo já ia longe O banco no centro do jardim Afastou a teia despedaçada e entre os dedos musgosos como o banco vislumbrou o corpo do antigo trapezista enredado nos fios da rede só a perna viva Fezlhe um afago e a perna não reagiu Sentiu o braço tombar metálico como era a alquimia Se não fosse o chumbo derretido que agora lhe atingia o peito sairia rodopiando pela alameda Descobri Descobri A alegria era quase insuportável da primeira vez escapei acordando Agora vou escapar dormindo Não era simples Recostou a cabeça no espaldar do banco mas não era sutil Enganar assim essa morte saindo pela porta do sono Preciso dormir murmurou fechando os olhos Por entre a sonolência verde cinza viu que retomava o sonho no ponto exato em que fora interrompido A escada Os passos Sentiu o ombro tocado de leve Voltouse A Presença Quando entrou pela alameda de pedregulhos e parou o carro defronte do hotel o casal de velhos que passeava pelo gramado afastouse rapidamente e ficou espiando de longe O velho porteiro que o atendeu no balcão de recepção também teve um movimento de recuo Ele pousou a mala no chão e pediu um apartamento Por quanto tempo Não estava bem certo talvez uns vinte dias Ou mais O porteiro examinouo da cabeça aos pés Forçou o sorriso paternal disfarçando o espanto com uma cordialidade exagerada Mas o jovem queria um apartamento Ali naquele hotel Mas era um hotel só de velhos quase todos moradores fixos antiquíssimos que graça um hotel desses podia ter para um jovem Depois das nove da noite silêncio absoluto porque todos dormiam cedíssimo E a comida tão insípida sem gordura sem sal com pratos sem nenhuma imaginação dentro de dietas rigorosas pois não eram todos velhos E os velhos têm problemas de saúde tantas doenças reais e imaginárias artritismo bronquite crônica asma pressão alta flebite enfisema pulmonar Sem falar nas doenças mais dramáticas Ocioso enumerar tudo A própria velhice já era uma doença Um jovem assim saudável passar suas férias num hotel tão frio quanto um hospital Nos hospitais ao menos havia uma esperança a dos pacientes saírem curados mas a doença da velhice era sem cura e com a agravante de piorar com o tempo Injusto oferecerlhe esse quadro de decadência que apesar de mascarada os hóspedes pertenciam à burguesia era por demais deprimente O prazer com que a juventude se vê refletida num espelho Mas a velhice ali concentrada chegava a ser tão cruel que os espelhos acabaram por ser afastados Na última reforma foram removidos os espelhos que apresentavam sinais mais acentuados de decomposição nas manchas porosas e bordas amarelecidas contraídas sob o cristal como um fino papel queimando brandamente Com esses foram levados também os espelhos maiores da sala de refeições e que ainda estavam em bom estado A substituição nunca foi providenciada e nem se voltou a falar no assunto mas seria mesmo preciso Era evidente o alívio dos hóspedes livres daquelas testemunhas geladas captandoos em todos os ângulos mais do que suficientes os espelhos menores dos banheiros apenas o essencial para uma barba um penteado Um irrisório carmim E a quantidade de espelhos na inauguração do hotel Estaria o jovem com disposição para ouvir mais Bem tinha sido há cinquenta anos Nessa época não passava de um rapazola que ajudava a carregar a bagagem As famílias chegavam com os carros pojados de malas caixas pajens crianças bicicletas Nas longas temporadas de verão a piscina que ainda se conservava apesar dos rachões ficava fervilhante As danças até de madrugada O jogo E as competições na quadra de tênis as cavalgadas pelo campo o hotel dispunha de ótimos cavalos Charretes Mas aos poucos os hóspedes mais velhos foram dominando à medida que os mais jovens começaram a rarear não sabia explicar o motivo o fato é que a transformação embora lenta fora definitiva Um hotelmausoléu Que jovem podia se sentir bem num hotel assim Se ele prosseguisse pela mesma estrada por onde viera alguns quilômetros adiante encontraria um hotel excelente tinha várias setas indicando o caminho ficava num bosque bastante aprazível E pelo que ouvira contar o ambiente era alegre Jovial Ele tirou os documentos do bolso da jaqueta de couro e colocouos no mármore do balcão queria um apartamento nesse hotel e só não insistiria se o regulamento tivesse uma cláusula que proibisse um jovem de vinte e cinco anos de hospedarse ali O velho porteiro passou as pontas dos dedos vacilantes na gola puída do uniforme pardo Já não sorria quando examinou os documentos do recém chegado Devolveuos Os olhos de um azulpálido estavam frios Talvez não tivesse sido suficientemente claro talvez mas o fato é que se ele não se importava com a presença dos velhos era bem provável que os velhos se importassem e quanto com a sua presença Tão fácil de entender como um jovem assim sagaz não entendia Os velhos formavam uma comunidade com seus usos e costumes Uniramse e a antiga fragilidade tão agredida além daqueles portões foi se transformando numa força Num sistema Eram seres obstinados Na secreta luta para garantir a sobrevivência perderam a memória do mundo que os rejeitara e se não eram felizes pelo menos conseguiram isso a segurança O direito de morrer em paz No segundo andar do hotel por exemplo vivia uma atriz de revista que fora muito famosa Muito amada Reduzida agora a um simples destroço fecharase na sua concha apavorada com a curiosidade do público com o realismo da imprensa ávida por fotografála na sua solidão Mas o que vocês querem de mim ela gritou ao repórter que conseguiu apanhála numa cilada e publicar a foto com a manchete que a fez chorar dois dias Quando o elevador quebrou só ela que ainda andava com certa agilidade continuou no segundo andar os outros foram transferidos para o primeiro por causa da escada Nesse andar morava um antigo ídolo do atletismo que chegara a duas olimpíadas Vivia numa cadeira de rodas E como não lia jornais nem ligava a televisão quem quisesse tinha seu televisor particular conseguira esquecer que a corrida com a tocha acesa prosseguia gloriosa sem ele Esqueceu assim como foi esquecido As medalhas e troféus que nos primeiros tempos de invalidez não podia nem ver estavam agora expostos na estante do seu quarto às vezes os olhava mas sem a antiga emoção integrados na sua senilidade como o saco de água quente ou a cadeira O vizinho ao lado era um comerciante esclerosado que em poucos anos regredira à juventude depois à adolescência e agora estava ficando criança de novo Mas uma criança que era protegida até pelo mais neurastênico dos hóspedes um homossexual que morava com um gato velhíssimo Tivera na mocidade uma experiência trágica quando o amigo tentou matálo todos ficaram sabendo o que destemperadamente procurara esconder ambos tinham família e eram conhecidíssimos Hoje é claro ninguém se importava com isso mas naquele tempo era só rejeição Sofrimento Reencontrara um certo equilíbrio naquele hotel vendo as gêmeas da paciência abrir o leque do baralho no taciturno jogo do silêncio Ouvindo a gorda solteirona do bandolim tocar pontualmente aos sábados Relendo na pequena biblioteca escassos volumes já gastos Os Três Mosqueteiros Ou O Conde de Monte Cristo Uma tênue cinza baixara sobre essas cabeças Sobre seus guardados E agora chegava um jovem para ficar Para lembrar e com que veemência o que todos já tinham perdido beleza Amor Um jovem com dentes músculos e sexo perfeito como um deus Não não precisava rir a antiga medida de todas as coisas Essa medida eles já tinham esquecido Com sua simples presença iria revolver tudo a revolução da memória E passara o tempo das revoluções ninguém queria renovar mas conservar Assegurar essa sobrevida o que já significava um verdadeiro heroísmo os mais fracos tinham morrido todos Restaram esses empenhados numa luta terrível porque dissimulada eram dissimulados será que estava sendo claro Não eram bons Ele acendeu o cigarro e ofereceu outro ao porteiro que agradeceu não podia fumar Olhou o lustre com longos pingentes de cristal em formato de lágrimas pesadas de poeira Sorriu enquanto apontava na direção do pequeno elevador dourado e redondo Mas é lindo parece uma gaiola Abriu o zíper da jaqueta de couro fazia calor O porteiro inclinouse sobre o grosso caderno de registro molhou a caneta no tinteiro mas ficou com a mão parada no ar Arqueou as sobrancelhas fatigadas será que o amigo não percebia que ia ser importuno Um intruso Representava o direito do avesso Ou o avesso desse direito O problema é que ele um simples porteiro não podia sequer defendêlo se a comunidade decidisse sutilmente pela sua exclusão Por mais tolos que esses velhos pudessem parecer guardavam o segredo de uma sabedoria que se afiava na pedra da morte Era preciso lembrar que usariam de todos os recursos para que as regras do jogo fossem cumpridas até onde poderia chegar o ódio por aquele que viera humilhálos irônico provocativo tumultuando a partida O jovem se animara com a ideia da piscina Mas se nessa mesma piscina coalhada de folhas aparecesse uma manhã seu belo corpo boiando tão desligado quanto as folhas Eles fechariam depressa a porta devido à correnteza de vento os velhos não gostam de vento E voltariam satisfeitos aos seus assuntos Ao seu joguinho dos domingos aquele loto tão alegre os cartões sendo cobertos com grãos de milho enquanto o anunciador nenhum estranho por perto vai cantando os números com as brincadeiras de costume sempre as mesmas porque eles se divertem com as repetições como as crianças número vinte e dois dois patinhos na lagoa Quarenta e quatro bico de pato Número três gato escocês Tão brincalhões esses velhinhos O jovem riu tirou os óculos escuros e sua fisionomia se acendeu tinha lâminas douradas no fundo das pupilas Por acaso o porteiro lia romance policial os romances da velhinha inglesa Não Ah preferia palavras cruzadas Apanhou a mala Se possível um apartamento no segundo andar O jantar era às sete não Ótimo tinha tempo para dar umas boas braçadas a tarde estava uma delícia Nenhuma importância se a piscina estava abandonada a água não era corrente Pediria apenas que lhe levassem um pouco de gelo gostava de bebericar na piscina Não não precisava de uísque trouxera sua marca Uma velhinha de gargantilha lilás cruzou o saguão na sua cadeira de rodas empurrada por uma calma enfermeira de touca ia gesticulando brava deixando escapar resmungos por entre as gengivas duras enquanto a outra seguia atrás voltandose para os lados e sorrindo Poor poor darling Hoje está meio irritada mas também com oitenta e nove anos Poor poor darling O recémchegado fez uma profunda reverência na direção de ambas e voltouse para o porteiro que mostrava num sorriso constrangido a dentadura opaca Quer dizer que insistia mesmo em ficar Bem tinha um apartamento bastante ensolarado no segundo andar dando para a piscina Espero que o senhor fique satisfeito acrescentou enquanto fazia sinal para um velho de avental até os joelhos Por favor pode conduzir o novo hóspede Em largas passadas o jovem galgou os degraus de veludo vermelho e foi esperar o empregado lá em cima segurando a mala que em vão o velho tentou levar Quando entrou no apartamento seguido pelo empregado com seu molho de chaves aspirou com uma expressão de prazer o esmaecido perfume que parecia vir dos móveis antiquados lavanda E perguntou enquanto abria a mala se por ali não havia fantasmas sempre sonhara com um hotel de fantasmas Os fantasmas somos nós respondeulhe o velho e ele riu alto Tirou a garrafa de uísque da mala Ligou o rádio Quando subiu ao trampolim notou um vulto que espiava através da cortina rendada de uma das janelas Baixou o olhar divertido para a água de um verde profundo onde as folhas boiavam num ondulado calmo Abriu os braços Saltou Enquanto nadava de costas entreviu uma cabeça branca na fresta de uma janela do primeiro andar Logo apareceu outra cabeça de homem que ficou um pouco atrás na sombra Chegoulhe vagamente o fiapo triturado de uma discussão antes que a janela se fechasse com força Ele deitouse no banco de pedra e ali ficou de braços pendentes a tanga vermelha escorrendo água os olhos cerrados Passou cariciosamente as pontas dos dedos no peito onde os pelos dourados de sol já começavam a secar Riu silenciosamente enquanto apanhava o copo que deixara no chão seus movimentos se fragmentavam em câmara lenta calculados No jantar antes mesmo de provar a comida despejou o sal o molho inglês a pimenta e bateu palmas vigorosas para os três velhos músicos um pianista um violinista e o careca do rabecão que tocaram antigas peças que alguns hóspedes poucos desceram para o jantar ouviram imperturbáveis Achou um certo amargor na goiabada com queijo Ao se deitar depois de ter tomado o chá servido às vinte e uma horas ele já não se sentia bem Noturno Amarelo Vi as estrelas Mas não vi a lua embora sua luminosidade se derramasse pela estrada Apanhei um pedregulho e fecheio com força na mão Por onde andará a lua perguntei Fernando arrancou o paletó no auge da impaciência e perguntou com voz esganiçada se eu pretendia ficar a noite inteira ali de estátua enquanto ele teria que encher o tanque naquela escuridão de merda porque ninguém lhe passava o raio da lanterna Inclineime para dentro do carro de portas escancaradas outra forma que ele tinha de manifestar o mau humor era deixar gavetas e portas escancaradas Que eu ia fechando em silêncio com ódio igual ou maior Fiquei olhando o relógio embutido no painel Onde está a lanterna Mas onde poderia estar uma lanterna senão no portaluvas a princesa esqueceu Através do vidro a estrela maior Vênus pulsava reflexos azuis Gostaria de estar numa nave mas com o motor desligado sem ruído sem nada Quieta Ou neste carro silencioso mas sem ele Já fazia algum tempo que queria estar sem ele mesmo com o problema de ter acabado a gasolina As coisas ficariam mais fáceis se você fosse menos grosso eu disse entreabrindo a mão e experimentando a lanterna no pedregulho que achei na estrada Está bem minha princesa se não for muito incômodo será que podia me passar a lanterninha Quando me lembro dessa noite e estou sempre lembrando me vejo repartida em dois momentos antes e depois Antes as pequenas palavras os pequenos gestos os pequenos amores culminando nesse Fernando aventura medíocre de gozo breve e convivência comprida Se ao menos ele não fizesse aquela voz para perguntar se por acaso alguém tinha levado a sua caneta Se por acaso alguém tinha pensado em comprar um novo fio dental porque este estava no fim Não está respondi é que ele se enredou lá dentro se a gente tirar esta plaqueta tentei levantar a plaqueta a gente vê que o rolo está inteiro mas enredado e quando o fio se enreda desse jeito nunca mais melhor jogar fora e começar outro rolo Não joguei Anos e anos tentando desenredar o fio impossível medo da solidão Medo de me encontrar quando tão ardentemente me buscava Damadanoite eu disse respirando de boca aberta o perfume que o vento trouxe de repente E vem daquele lado Se o jantar não for bom juro que viro a mesa disse ele com sua falsa calma Destapou o vasilhame Estou a fim de comer peixe será que vai ter peixe O ruído do fiozinho de gasolina caindo no tanque Os ruídos miúdos vindos da terra Fui andando na direção daquele lado conduzida pelo perfume que ficou mais pesado enquanto eu ia ficando mais leve Agora eu quase corria pela margem da estrada as pontas franjadas do meu xale se abrindo em asa fechei as no peito E atravessei a faixa de mato rasteiro que bordejava o caminho a barra do meu vestido se prendendo nos galhinhos secos poderia arregaçálo mas era excitante me sentir assim delicadamente retida pelos carrapichos não eram carrapichos que eu acabava arrastando Segui pela vereda Tão familiar Como a casa lá adiante lá estava a casa alta e branca fora do tempo mas dentro do jardim O perfume que me servira de guia estava agora diluído como se cumprida a tarefa relaxasse agora num esvaimento posso Vi as estrelas maiores nessa noite dentro da noite Com naturalidade abri o portão e o som dos gonzos me saudou com a antiga ranhetice de dentes doloridos sob a crosta da ferrugem entra logo menina entra A folhagem completamente parada Uma luz acendeu no andar superior da casa Outra janela acendeu em seguida No andar inferior três das janelas projetaram sucessivamente seus fachos amarelos até a varanda nas colunas de tijolinhos vermelhos as flores branquíssimas das trepadeiras pareciam feitas de material fosforescente Então Ifigênia apareceu na porta principal o avental nítido no fundo preto do vestido Levou as mãos à cara numa alegria infantil Voltouse para dentro É dona Laurinha Que bom que a senhora veio dona Laurinha que bom Abraceia Cheirava a bolo Bolo de fubá Lógico disse me examinando Viera ao meu encontro na alameda e agora parava para me ver melhor A senhora está de vestido novo não é novo Tomeilhe o braço Andava com dificuldade as pernas curtas inchadas Ficamos um instante na varanda e sem saber por que na hora eu não soube por que evitei ficar muito exposta à luz da janela Puxeia para mais perto de mim Estão todos aí Ela respondeu num tom secreto Só falta o Rodrigo Apoieime na coluna Mas ele não está no sanatório Saiu faz duas semanas a senhora não sabia Mas fique sossegada dona Laurinha agora ele está melhor mudou tanto disse e tomou a ponta do meu xale examinando a tessitura mais nos dedos do que através das grossas lentes dos óculos Acho que esse ponto é o mesmo da manta que fiz pra Avó lembra Só que usei uma lã mais grossa Acho lindo xale branco fiz pra dona Eduarda com linha de seda Interrompi seu devaneio mas e o Rodrigo O médico tinha dito que ele teria de ficar no mínimo mais seis meses não foi o que os médicos disseram Tinha fugido Ele fugiu Ifigênia Agora ela fechava o xale em redor do meu ombro e seu gesto era o mesmo com que enrolava em meu pescoço uma meia embebida em álcool um santo remédio pra dor de garganta mas não pode mexer menina Ah e tem que ser o pé de meia verde do pai Mas espera o Rodrigo ele então parou de beber Parou completamente E está ajuizado a senhora lembra como ele falava gritando Agora fala baixinho mudou mesmo acho até que sarou disse apertando os olhos para me ver Estranhou meu cabelo curto gostava mais quando eu usava assim comprido até o ombro por que cortou dona Laurinha por que cortou É que eu não sou mais aquela jovenzinha Ela protestou meio distraidamente interessada ainda no xale há de ver que paguei uma fortuna não Por que não lhe pedi que fizesse um Impeliume para dentro da casa tinha acendido a lareira com uma lenha sequinha estava um fogo tão limpo E não tentou mais Ifigênia Me responda ele não tentou mais Ela arqueou as sobrancelhas inocentes Se matar Não dona Laurinha não tentou mais nem vai tentar Deus é grande um menino tão bom O vestíbulo de paredes forradas com o desbotado papel bege salpicado de rosinhas pálidas O retrato de Pedro I na pesada moldura de ouro gasto circundado pelos retratos de homens severos e mulheres rígidas nos seus tafetás pretos O rendilhado das traças avançando audaz na gola de renda de minha avó portuguesa até a fronteira do queixo sépia A vitrina dos bibelôs de porcelana e jade A larga passadeira de veludo vermelho ao longo do corredor ponte silenciosa se oferecendo para me transportar ao âmago do quê E tem também biscoito de polvilho como a senhora gosta anunciou Ifigênia tirando o meu xale Dobrouo no braço com gestos melífluos Estou pensando sempre em fazer a vontade dos outros mas os outros não pensam nunca em fazer a minha vontade Uma coisa que eu queria tanto que pedi tanto será que a senhora ainda se lembra Enlaceia mas eu me lembrava sim a viagem Prometera que a levaria de carro até Aparecida do Norte queria cumprir uma promessa e me ofereci então para levála convencia mesmo a desistir da reserva da passagem de ônibus deixa que eu levo Não levei Mas não foi por mal Ifigênia é que fui adiando adiando e acabei me esquecendo Me perdoa Perdoar o quê ouvi alguém perguntar atrás de mim Ducha Ela gostava de chegar assim sorrateira na ponta das sapatilhas da cor do papel da parede Notei que seu busto continuava tímido sob a malha preta de balé e ainda fina a cintura de menina treze anos Beijoume com seu jeitinho polido afetando indiferença Tive que me conter para não puxála pelo cabelo sua bobinha bobinha É que sua irmã prometeu me levar de carro até Aparecida e até hoje estou esperando disse Ifigênia Acariciava o xale dobrado no braço como se acaricia um gato Se eu soubesse ia de ônibus Ducha compôs a pose de bailarina em repouso Olhou para o teto Ela também me prometeu uma coisa e não cumpriu Era uma troca Eu daria o suéter amarelo e ela me daria o espelho grande aquele com o anjinho eu precisava demais de um espelho pra ensaiar no quarto e o que aconteceu Minha irmãzinha ficou com o meu suéter sim senhora amanhã mesmo trago o espelho prometeu Jacaré trouxe Continuo ensaiando tapou os olhos fingindo chorar num espelho pequenino assim Quis abraçála e ela se esquivou não fosse desmancharlhe o cabelo engomado preso na nuca por uma fivela Nada de sentimentalismo eu quero é meu espelho parecia dizer com o labiozinho irônico e meu coração se derramou de alegria e dor sua malha preta guardava o cheiro dos armários profundos com resquícios dos saquinhos de plantas aromáticas O passado confundido no futuro que me vinha agora na fumaça cálida da lareira Ou na fumaça das velas Apagueias Não velas não Escuta Ducha juro que amanhã sem falta sem falta Acredita em mim Amanhã Pschiu ordenou ela que me calasse porque a Avó na sala já se decidia por sua valsa de Chopin Ducha eu comecei e não consegui dizer mais nada Ela endireitou o corpo levantou a cabeça E esquecida de mim do espelho de tudo enveredou diáfana pelo corredor afora Sou uma artista exprimia em cada movimento de inspiração desdenhosa Uma artista Parece uma fadinha dançando suspirou Ifigênia ao me tomar pela cintura e me conduzir pelo tapete vermelho Ouvi ainda as batidas do meu coração tão assustado que me virei para Ifigênia ela teria ouvido Mas tinha o piano E as vozes que já chegavam até nós estávamos na metade do corredor Passei as pontas dos dedos no braço do banco de madeira acetinada de tão lisa um pescoço de cisne se enrodilhando numa curva mansa até descer e afundar a ponta do bico nas penas da asa entalhada na parte lateral do assento Ao lado mais uma vitrina de bibelôs com as xicrinhas de porcelana fina como casca de ovo o famoso serviço de chá em miniatura paixão da minha vida Não pode ralhava a Avó isso não é brincadeira de criança você vai quebrar tudo Não quebrei engoli um bulinho gostava de encher a boca com as peças que ia cuspindo em seguida na mesa de chá das bonecas Senti de novo o bule na inquieta travessia da garganta Estou tão contente Ifigênia Então por que está chorando Enxuguei depressa os olhos na barra do seu avental e recuei não era estranho Na cambraia alvíssima nenhuma marca da minha pintura só o úmido limpo das lágrimas Fiquei sem saber que olhos tinham chorado se os atuais ou os de outrora A sala parecia palpitar sob os reflexos do fogo forte da lareira avermelhando os espelhos O lustre Vi o Avô na sua cadeira alta jogando xadrez com o professor de Eduarda Não era aquele o professor de Eduarda A Eduarda arranjou um professor de alemão que é um pão Ducha tinha me anunciado Quer dizer que o alemãopão já estava assim íntimo quis perguntar mas Eduarda não me viu estava entretida em preparar uma bebida na mesa posta no fundo da sala Tinha uma flor nos cabelos sinal de alegria você está amando Eduarda Vi a Avó querida querida no seu vestido das cerimônias especiais Tinha a cabeça inclinada para o teclado acelerando o ritmo para acompanhar Ducha que se desencadeava numa grinalda de passos em torno do piano Vi Ifigênia no seu andar curto a respiração curta arrumando os copos na mesa era um ponche que Eduarda preparava E me vi a mim mesma tão mais velha e ainda guardando uma ambígua inocência a suficiente inocência para me comportar com espontaneidade na reunião dos convidados certos Um ou outro elemento esclarecedor que eu já tinha ou ia ter me advertia que era nova essa noite antiga Contornei a cadeira do Avô abraceio por detrás Ele me saudou levantando na mão a torre que já ia movimentar O professor conhece esta minha neta A intelectual da tribo hem menina O alemão era mais alto do que eu supunha lembrou que já tínhamos sido apresentados e teve uma expressão meio maliciosa meio divertida a Eduarda falava muito em mim Interrogueio desconfiada mas seu olhar penetrante fez baixar o meu Voltouse para o Avô que ainda segurava a torre É a sua vez Eduarda então me viu e veio trazendo um copo de ponche Estava tão jovem de cabelos soltos e cara lavada que me perturbei era como se me visse vir vindo ao meu próprio encontro num flagrante de juventude Beijoume rápida e me entregou o copo Vamos prova acho que exagerei no açúcar não está doce demais Vi que a Avó me chamava para sentar a seu lado no banco do piano e vi ainda num relance atrás do piano o grande relógio marcando nove horas No copo o ponche com a cereja descaroçada exposta boiando na superfície roxa Vamos beba não tem veneno ordenou Eduarda e seu riso era tão confiante que achei injusto que o tempo continuasse e quis correr e agarrar o pêndulo do relógio para Esvaziei o copo trincando nos dentes a cereja cristalizada com pedaços de outras frutas que não identifiquei Eduarda guardava o mistério dos ingredientes Cuidado Avô eu disse Você vai perder este cavalo O namorado de Eduarda piscou para ela Já está perdido O Avô olhou o cavalo Me olhou E sacudindo a mão fingiu uma cólera que estava longe de sentir quando me acusou de ter feito tramoia na nossa última partida Fez tramoia sim senhora pensa que não sei Aproveitou enquanto fui buscar meu suéter e mudou a torre que defendia minha rainha eu não podia perder como perdi Roubou a torre do Avô Roubou a torre do Avô gritou Ducha aproximandose num salto e fugindo de novo espavorida de braços abertos e curvada como que impelida por uma ventania Ficou com meu espelho e com a torre do Avô Mais grave do que roubar uma torre é roubar o noivo da prima sussurrou Eduarda me puxando pela mão Fomos para perto da janela Seus olhos eram roxos como o ponche Fechei os meus Eduarda eu queria tanto explicar isso e não tinha coragem mas agora escuta ele disse que vocês tinham rompido que estava tudo acabado Ele disse Não tive culpa Eduarda Quando começamos o namoro eu estava certa de que vocês dois já estavam afastados que não se amavam mais Não me senti traindo ninguém Não Vi as estrelas brilhando próximas Próximo também o perfume da noite que me tomou e me devolveu íntegra Verdadeira Encarei Eduarda pela primeira vez realmente a encarei Mas era preciso falar Era mesmo preciso Ficamos nos olhando e meu pensamento era agora um fluxo que passava das minhas mãos para as suas estávamos de mãos dadas sim eu era ciumenta insegura quis me afirmar e tudo foi só decepção sofrimento Tinha o Rodrigo meu Deus o Rodrigo que era o meu querido amor um amor tumultuado só imprevisão só loucura mas amor E achei que seria a oportunidade de me livrar dele a troca era vantajosa mas calculei mal logo nos primeiros encontros descobri que a traição faz apodrecer o amor Na rua no restaurante no cinema na cama e em toda parte Eduarda você esteve presente Cheguei um dia a sentir sua respiração Foi ficando tão insuportável que na última vez quando ele entrou na cabine para ouvir um disco eu não aguentei e fugi estávamos numa loja comprando discos Quero ouvir este ele disse entrando na cabine envidraçada me espera um instante Fui até a vitrina fingindo procurar Deus sabe o quê e então aproveitei fugi de cabeça baixa sem olhar para os lados Eduarda diga que acredita em mim diga que acredita Seus olhos que estavam escuros foram ficando transparentes Agora está tudo bem Laura estamos juntas de novo parecia me dizer Estamos juntas para sempre e apertou com força a minha mão Mas não deixou que eu me comovesse mais pegou um biscoito de polvilho que Ifigênia ofereceu levouo à minha boca Vamos você está muito magra precisa comer não fique assim triste Comecei a me sentir uma coisa miserável Fiz trapaça no jogo com o Avô eu disse mas me engasguei com o biscoito e Eduarda desatou a rir como na festa das bonecas quando engoli o bulinho Sua pulseira uma argola de ouro ficou enganchada no meu vestido tentou tirála Fica com ela Laura nossa nova aliança você gosta desses símbolos Mas a pulseira já solta do meu vestido não se soltava do seu pulso argola inteiriça que só podia sair pela mão Engordei está vendo Engordei de feliz estou feliz demais com o meu alemão não é lindo O fogo da lareira se refletia na sua face como no lustre no espelho Tenho vontade de gritar de tanto amor Enlaçoume e saímos dançando rindo feito duas tontas até chegarmos ao piano onde ela me entregou à Avó Fica aí que vou salvar meu amado vovô deve estar querendo jogar outra partida disse E ficou séria Apertou meu braço O Rodrigo não demora Quem perguntou a Avó Afastouse para me dar lugar no banco Quem não demora O Rodrigo disse Ducha abrindo os braços num suave movimento de asas e desabando no almofadão Quando ela se inclinou para amarrar a fita da sapatilha vi o menininho deitado no tapete Estava de pijama e brincava com os cubos coloridos de uma caixa mas ele já estava aqui quando cheguei Você emagreceu Laurinha lamentou a Avó examinandome afetuosa mas fiscalizante e será que eu não estava pintada demais Me preferia mil vezes sem pintura como a Eduarda E por que eu estava assim trêmula Você está gelada menina tome este chá ordenou pegando a xícara Era por causa dele que estava tão tensa Do disse o nome em voz baixa Rodrigo Seus cabelos faceiramente frisados tinham reflexos de um tom azullilás que me fez pensar em violetas Agora procurava me acalmar no mesmo tom com que vinha me dizer na hora do boanoite que não tem nada essa história de fantasmas Isso tudo é invenção minha bobinha vamos durma O Rodrigo Mas agora ele está curado não se preocupe mais foi uma crise muito séria não nego mas passou Passou Ainda ontem conversamos ele está pensando em recomeçar os estudos já faz planos disse e senti no seu olhar ou no meu algo de reticente Por um instante a Avó me pareceu feita de um úmido tecido azul lilás do mesmo tom dos cabelos Não vá ainda espera pedi e fiquei sem saber se gritei Na lareira o fogo era mais brando Às vezes volta o medo eu disse Medo do quê minha querida Mas você não está amando Então precisa amar disse olhando para as minhas mãos Nenhum anel especial Nenhum namorado especial Pois a Eduarda que tinha a minha idade Hesitou tomando o lorgnon dependurado na corrente de ouro Mas não tínhamos a mesma idade Sempre pensei que vocês duas regulassem porque quando a Ivone estava de barriga a sua mãe também Fez contas nos dedos mas se perdeu nas datas O que eu queria dizer é que a Eduarda arrumou esse namorado de repente tudo foi no galope Vão se casar em dezembro não é maravilhoso Sua voz passava agora para um outro plano enquanto ia entrando em detalhes depois do casamento seguiriam para a Alemanha os pais dele moravam lá numa cidadezinha que tinha um nome muito gracioso Ulm mas depois da visita viajariam por toda a Europa no período das grandes férias A Ducha estava ardendo de vontade queria ir junto para se matricular num curso de balé em Paris uma pirralha dessas vê se pode Não estava era gostando nada dessa ideia de avião por que os jovens têm mania de avião Tão melhor um vapor ih as deliciosas viagens por mar ainda se lembrava bem quando foi com o Avô para a Itália tantas brincadeiras de bordo os jogos as festas Mas a hora melhor ainda era aquela em que se recostava na cadeira do tombadilho puxava a manta até os joelhos e ficava lendo um romance de Conan Doyle Ou simplesmente olhando o mar Será que ele ainda pensa em mim A Avó demorou para responder Fez um ligeiro movimento juntando as mãos espalmadas como se fechasse um livro Quem o Rodrigo Sim pensava mas de modo diferente sem aflição sem rancor estava bastante mudado depois da tentativa Se ele pudesse sair fazer uma viagem mas uma viagem por mar num vapor como aquele não lembrava o nome do vapor não era curioso Mas não se esquecia das gaivotas Do vento Onde ele conseguiu o revólver A palavra revólver caiulhe no colo como uma gaivota Ou um peixe A Avó assustouse sacudindo do vestido os farelos de biscoito Limpou com a ponta do lenço a gota de chá que escorreu no teclado O revólver Quem é que sabe Sempre foi um menino tão reservado vivia inventando um mundo particular só dele não deixava ninguém entrar nesse mundo Ele me chamou mas recusei Ducha apoiouse nos cotovelos e veio se arrastando pelo tapete até tocar no meu sapato Que chique este salto dourado disse e fez um sinal para que me abaixasse queria falar no meu ouvido A bala passou um tantinho assim perto do coração Vão pegar por lá um inverno forte Se fossem de vapor não sentiriam a mudança tão rápida suspirou a Avó Voltouse enervada para a Ducha que lhe apontava o piano Quero dançar toca toca Espera menina espera Se você não precisa de intervalo eu preciso Olhei para as cortinas pesadas Para a cristaleira que me pareceu menos brilhante sob a leve camada de pó O tempo não alcança você Avó eu disse Estão todos iguais Iguais O piano mudou querida disse a Avó sorrindo e dando um acorde grave Mandei afinar lembra como ele estava E se você não sabe é porque nunca vem me visitar Fiquei doente sarei fiquei doente de novo e nem um telefonema Nada Podia ter morrido e minha neta nem ficaria sabendo porque não ligou uma só vez para saber a Avó como vai Vovó querida você sabe muito bem como amo vocês E que tenho andado mesmo sumida mas você sabe Sei Laurinha Mas gosto de provas tão importantes as provas Ducha fez uma careta Que feio Laura A Chapeuzinho Vermelho atravessou um bosque cheio de lobos só pra levar o bolo pra Avozinha que estava com resfriado não era um resfriado Pôsse na ponta dos pés pronta para dançar Teve seu sorrisinho Não veio buscar Ifigênia que queria cumprir a promessa não trouxe meu espelho roubou a torre do Avô roubou o noivo de Eduarda e não visitou a Avó É demais Ducha vai dançar vai pediu a Avó Começara uma melodia um tanto dissonante Esgarçada Pronto vai dançar E ainda por cima faz a femme fatale acrescentou Ducha rapidamente com o gesto de quem empunha uma arma e aponta contra o próprio peito Acionou o gatilho Pum Cambaleou esboçando o movimento de se desvencilhar da arma Estendeuse no almofadão a mão direita apertando o peito a outra acenando na despedida frouxa Me mataria em março se te assemelhasses às coisas perecíveis recitou arquejante E levantouse de um salto Por que março H H é que sabe Se a poeta diz que é em março tem que ser março Foi recuando os braços em arco Março ou abril É um amor de menina mas cansa um pouco murmurou a Avó inclinandose para me beijar Esta música é minha você gosta Vai se chamar Noturno Amarelo Antes mesmo de me aproximar da lareira adivinhei o fogo se reavivar num último esforço Ifigênia tocou no meu braço pensei que fosse me oferecer alguma coisa O Rodrigo acabou de chegar avisou Escondi a cara nas mãos mas mesmo assim podia vêlo na minha frente com seu jeans puído e o blusão preto com reforços de couro nos cotovelos Seguroume pelos punhos e me descobriu Ardia o carvão dos seus olhos mas tinha o mesmo doce sorriso de antes Esperou Quando consegui falar a cinza já cobria completamente o braseiro Eu te neguei Rodrigo Te neguei e te traí e traí Eduarda Mas queria que soubesse o quanto amei vocês dois Ele arrumou meu cabelo Acendeu meu cigarro Riu Se a gente não trair os mais próximos a quem mais a gente vai trair Ficou sério Éramos muito jovens querida Éramos Levantei a cabeça Já não me importava que ele me visse de frente queria mesmo me expor assim devastada ele então sabia Ouvi minha voz vindo de longe Passei a noite me desculpando só faltava você Ó Deus como eu precisava desse encontro disse tocando no seu peito Ele estremeceu Então me lembrei Mas ainda dói Rodrigo E continuam as bandagens Ele pegou um copo de ponche me fez beber que eu não me impressionasse com isso era mesmo um sensível e nos sensíveis essa zona é sensível demais demora a cicatrização Nem precisamos falar Dentro de mim e dele agora era só a calma O silêncio Comecei a sentir frio fui buscar o xale Quando voltei não o encontrei mais E o Rodrigo perguntei a Ifigênia Ela levava pela mão o menininho que resistia O Rodrigo Mas agora mesmo ele não estava aqui com você Eu sei fazer cara de bicho olha tia o menino gritou espetando os dedos na testa Olha o bicho Tudo então aconteceu muito rápido Ou foi lento Vi o Avô dirigirse para a porta que ficava no fundo da sala pegar a chave que estava no chão abrir a porta deixar a chave no mesmo lugar e sair fechando a porta atrás de si Foi a vez da Avó que passou por mim com sua bengala e seu lorgnon me fez um aceno e deixando a chave no mesmo lugar seguiu o Avô Vi Eduarda de longe ajudando o noivo a vestir a capa Mas onde foram todos perguntei e ela não ouviu ou não entendeu Estavam rindo quando foram se aproximando da porta enlaçados Num salto Ducha varou por entre ambos pegou a chave ajoelhouse num só joelho e pousou a chave no outro flexionado inclinandose na reverência de um pajem medieval oferecendo seus serviços Desviei a cara não quis mais olhar Por pudor continuei de costas quando Ifigênia passou arrastando o menino que queria brincar mais Não pode amor nada de manha fica bonzinho A pirâmide dos cubos coloridos que ele erguera no tapete foi desabando através das minhas lágrimas Quando olhei de novo a sala já estava vazia Vi o jogo de xadrez interrompido ao meio O piano aberto ela terminou o Noturno e o livro em cima da lareira A xícara pela metade A fivela de Ducha esquecida no almofadão A pirâmide Por que os objetos os projetos me comoviam agora mais do que as pessoas Olhei o lustre ele parecia tão apagado quanto a lareira Saí pela porta da frente e antes mesmo de dar a volta na casa já tinha adivinhado que atrás da porta por onde todos tinham saído não havia nada apenas o campo Atravessei o jardim que não era mais jardim sem o portão Sem o perfume A vereda mais fechada ou era apenas impressão fora desembocar na estrada o carro continuava lá adiante com suas portas abertas e seus dois faróis acesos Fernando tapava o vasilhame Demorei muito Ele vestiu o casaco Acendeu um cigarro Se eu demorei Mas como Eu tinha saído Entrei no carro e me vi no espelho iluminado pela lanterna minha pintura estava intacta Sabe as horas Fernando Nove em ponto Por quê perguntou ele ligando o rádio do painel Pôs a mão no meu joelho Você está linda amor mas tão distante tão fria Ih que merda de música gritou mudando de estação Será que o jantar vai ser bom Hoje estou a fim de comer peixe Fiquei olhando a Via Láctea através do vidro Fechei os olhos Fechei com força a argola de Eduarda que ainda trazia na mão Não é um esquilo perguntou Fernando apontando excitado para a estrada Ali não está vendo Pode ser uma lebre Mas agora não é hora de lebre Nem de esquilo pensei em dizer ou disse E de repente eu me senti sozinha e feliz assim em silêncio olhando a estrada A Consulta Doutor Ramazian debruçouse na janela e ficou olhando o jardim banhado por um débil sol de inverno Alguns pacientes estavam sentados nos bancos outros passeavam pálidos e perplexos Um velho deitouse no gramado despiu o pulôver atirouo longe e quando já ia arrancar a camiseta de lã o enfermeiro de jeans tomouo pelos cotovelos e trouxeo para dentro Um jovem de alpargatas escondeu depressa a cara nas mãos Max Maximiliano o médico chamou Pode vir aqui um instante O homem que espiava a rua através do portão de ferro voltouse Veio vindo sorridente as mãos metidas nos bolsos do blazer azulmarinho com botões prateados Inclinouse para tirar uma folha seca da calça de flanela Boa tarde doutor O médico bateu na janela o cachimbo já esvaziado soprou um pouco de cinza e encarou o homem Você me parece muito bemdisposto Max Eu estou bemdisposto E tive pesadelos doutor vi um pombo esmagado no meio da rua com um raminho verde no bico Tão verde o raminho no meio do sangue Não é curiosa essa coincidência Que coincidência Um gatinho foi atropelado bem aí na frente do portão Ficou que nem o pombo Sem o raminho verde Sem o raminho verde repetiu Maximiliano fixando o olhar no cachimbo que o médico deixou na mesa O senhor vai sair Tenho um compromisso e Dona Dóris ainda não apareceu eu queria que você ficasse aqui para atender o telefone me faz esse favor Antes das quatro devo estar de volta Com prazer disse Maximiliano apoiandose na janela baixa Pulou ágil para dentro do consultório Fico feliz quando o senhor confia em mim mesmo para tarefas menores como atender o telefone ou limpar seus sapatos O médico fechou o zíper da maleta Você nunca limpou meus sapatos Max Mas limparia Os seus e os de Jesus Jesus usava sandálias disse Doutor Ramazian guardando a caneta no bolso Apontou para um bloco ao lado do telefone Qualquer recado tome nota aqui sim Se quiser café já sabe onde encontrar Não demoro Quando o médico saiu Maximiliano sentouse na cadeira giratória e apoiou os cotovelos na mesa Apanhou o cachimbo examinouo atentamente Ficou aspirando o cheiro de fumo Deixou o cachimbo apanhou a espátula metálica As batidas na porta eram tímidas constrangidas Doutor Ramazian perguntou o recémchegado abrindo a porta e espiando pela fresta Ainda segurava o trinco Me desculpe ter vindo assim adiantado minha hora era às quatro mas se o senhor pudesse me atender agora Pode me atender agora Sim claro entre É a primeira vez não A primeira Falei com Dona Dóris mas Ela não veio hoje Sentese faz favor É que não aguentei esperar disse o homem afrouxando o colarinho Passou ansiosamente a mão no queixo Nem fiz a barba está vendo Cheguei cedo demais e fiquei andando lá na calçada mas foi me dando uma aflição acho que estou em ponto de enlouquecer Exagero Os que estão em ponto de enlouquecer não dizem Nem sabem Quer fumar perguntou Maximiliano abrindo a caixa de cigarros ao lado do portacachimbos Obrigado prefiro minha marca disse o homem tirando o maço do bolso Sua mão tremia Estou fumando três quatro maços por dia acendo um no outro sem parar acrescentou vagando em torno o olhar inquieto Fixouo na janela São todos loucos Esses aí fora Maximiliano abriu a bolsa de fumo Encheu o cachimbo Nem todos têm médicos e enfermeiros misturados com eles Aqui o regime é de liberdade total suprimimos aventais uniformes os doentes precisam se sentir iguais a nós Eu mesmo às vezes não distingo Meu pai conhecia os loucos pelos olhos Maximiliano apertou os seus Sorriu É um elemento disse inclinandose Segurava ainda o cachimbo apagado Mas então Nem sei como começar doutor é demais absurdo ridículo Essa obsessão Não faz sentido tanto medo tanto medo Medo do quê filho Da morte O telefone branco em cima da mesa tocou baixinho com o som reprimido de uma cigarra fechada na gaveta Maximiliano atendeu disse um não está fez um movimento para pegar o lápis e depois de um conformado como queira desligou Apanhou o cachimbo mas recusou o isqueiro que o recémchegado lhe ofereceu agradecia mas não ia fumar contentavase em ficar segurando o cachimbo assim cheio como fazia nesse instante O homem teve uma expressão desolada Quisera eu poder resistir doutor Mais de três maços por dia queixouse pousando o cigarro no cinzeiro Entrelaçou com veemência as mãos magras Já não durmo não como direito não cumpro minhas obrigações não faço mais nada a não ser pensar nisso Não posso nem dizer a palavra nem ouvir que já me sinto mal Ainda agora não viu eu falei e já comecei a transpirar me veio uma ânsia O tempo todo pensando pensando perdi o apetite da vida No trabalho em casa com minha mulher na cama com minha amante tenho uma amante uma menina tão boazinha nem sei como ainda me aguenta venho me esquivando dos encontros a última vez foi um vexame no meio doutor parei no meio feito um velho broxei feito um idiota ali em cima dela ou debaixo nem me lembro parece que foi há séculos Séculos repetiu sacudindo a cabeça Tragou profundamente cerrando os olhos congestionados Hoje minha mulher precisou me mandar trocar de roupa esqueço de fazer a barba estou exausto exausto Quase um ano nessa agonia doutor Começou aos poucos com um certo malestar quando me avisavam que alguém tinha mor tinha empacotado Eu evitava o assunto me desviava dos campossantos das casas de saúde onde sentia de longe o cheiro dela da coisa desinfetada enluvada mas presente atuante está me compreendendo Até que o malestar foi aumentando virou náusea pânico me levanto já pensando que ela pode acontecer não só para mim mas para as pessoas que eu amo Olho meus filhos tenho dois meninos que já estão rindo de mim desse meu medo de contágio de acidentes acho que tudo nos conduz a ela e num galope Já senti todas as doenças do mundo Fiz dezenas de exames radiografias meu médico nem quer mais me receber Você não tem nada já me repetiu não sei quantas vezes E tenho tudo O medo quando me deito medo que aconteça durante o sono medo que ela me pegue em flagrante às vezes a imagino com uma cara de puta safada cafona me gozando com seu olho antiquíssimo Outras vezes quando ouço música meu único consolo ainda é a música doutor nessas horas ela me aparece etérea suave como uma dessas virgens das baladas coroada com uma grinalda de jasmins me acenando com seus frios dedos de éter Ainda não sei qual das duas me assusta mais se essa ou a outra que é suja podre Ah doutor um homem de trinta e cinco anos e tremendo inteiro como uma criancinha perdida no escuro choramingando chamando pela mãe Recostouse na cadeira relaxou a posição Chamei ontem por ela no sonho Veio tão afetuosa me estendeu sua mão mas quando senti na minha a umidade mole verde me lembrei que já estava mor Quero dizer me lembrei está me compreendendo E fugi espavorido Assim como fugi do meu irmão mais velho quando ele teve o enfarto que o levou O senhor acredita que tomei um avião para o Rio meia hora depois que me avisaram que ele tinha acabado de Inventei a viagem só para não ver fiz o indiferente o apático minha cunhada nem fala mais comigo me despreza mas posso lhe explicar o que está acontecendo e ela vai entender Vai acreditar que cheguei num hotel do Rio que me tranquei num quarto e fiquei lá dentro chorando Éramos amicíssimos meu irmão e eu Eu também amava muito meu irmão menor foi esmagado bem aqui defronte do portão da clínica Aqui defronte doutor Sim Mas continue por favor continue O homem soprou a cinza que se espalhou na sua lapela Apagou o cigarro Olhou para as pontas dos dedos manchados de nicotina Pois é isso aí doutor Não posso continuar fugindo e para onde fugir se ela está em toda parte Nos jornais nas ruas nas televisões nas feiras nos bailes Está dentro de casa Dentro de mim Está principalmente dentro de mim prisioneira de mim mesmo Não leio mais jornal não vou mais a cinema a teatro os temas só giram em torno dela não aguento mais A única coisa que conseguia me distrair da ideia eram essas revistas eróticas com meninas se mostrando nuas pelo menos nelas não havia a menor insinuação está me compreendendo Tanta energia tanto sexo Tanta vontade de usar esse sexo Mas aos poucos comecei a pressentir debaixo de tanta juventude de tanta beleza escondida lá no fundo a semente da coisa Na plenitude hoje mas e amanhã Platão lembraria a metáfora da maçã Mas continue Senhor Gutierrez continue Uma manhã dessas acordei sem nenhum medo diluído eu que estava tão denso cheguei a pensar que tinha me libertado quando aos poucos comecei a sentir medo de não ter medo está me compreendendo Parece que ficou pior ainda o vazio esse espaço que o medo ocupava Então quis me provar saber se realmente estava livre entrei a passos largos num ce num desses campos santos Não passava perto deles nem que me arrastassem pelos cabelos Fui indo até que na curva da alameda pressenti um uma cerimônia o doutor sabe onde quero chegar antes mesmo já senti o cheiro da coisa fiquei com o olfato apuradíssimo sinto de longe doutor Foi o suficiente para começar a vomitar ali mesmo atrás de um cipreste Saí ventando só dei acordo de mim em casa encharcado de suor Amarelo de medo Ou verde perguntou esboçando um riso frouxo Olhou as próprias mãos A cor do medo Tire uma licença meu chefe aconselhou sou funcionário público Se o senhor está doente faça um exame médico e vá viajar espairecer Quis me ajudar todos querem me ajudar Mas dizer o que aos médicos lá do Instituto Se o meu mal é o medo com que cara vou confessar que estou doente de medo Tudo em ordem E esta desordem esta angústia Seria melhor enlouquecer Ainda outra noite pensei muito nisso seria uma solução Mas não vou enlouquecer vou Morrer Não fala doutor não fala Só de ouvir está vendo murmurou ele enxugando no lenço o queixo a testa Acendeu um cigarro Suspirou Eu avisei que era uma história ridícula absurda não avisei Quando vinha hoje para cá meu táxi foi cortado por um cortejo o senhor sabe Só de ver aqueles carros todos atrás do carro principal foi me dando tamanha aflição que saltei mudei de rua mas pensa que adiantou Logo mais dei com a manchete de um jornal o menino me abriu a manchete na cara mal tive tempo de desviar e a voz adiante de outro jornaleiro anunciando a tragédia um ônibus que despencou num precipício dezenas de feridos fatais Entrei num café e lá dentro a conversa sobre um condenado americano que quer que exige que o que o executem Mas só se fala na coisa Ou já falavam antes apenas era eu que estava distraído Não sei Sei que ando com vontade de me isolar sumir num lugar onde essa presença não tenha tanta importância mas existe esse lugar Os conventos são solitários Defendidos Lá nem a vida nem a antevida importam era de se esperar que não se preocupassem com a nossa finitude Mas se importam querem a santidade através da autoflagelação e nessa flagelação está a memória da coisa exaltada em orações cantorias imagens repetida até nos cumprimentos lembrate da O senhor sabe tem uma comunidade que se cumprimenta assim desde que eles acordam um vê o outro sorri e diz Memento mori lembrate da Ah Ah não sei por que tirar a despreocupação da vida enquanto vida Maximiliano ficou olhando o cachimbo fechado na gruta da mão Vou lhe contar um caso Senhor Gutierrez serei rápido Fernandez doutor Samuel Fernandez Perdão Mas todo esse horror que o senhor tem por essa digamos fatalidade um meu paciente tinha pelo automóvel Pela máquina Começou também assim como o senhor manifestando a princípio uma certa má vontade de guiar vendeu o carro Queixavase do trânsito dos motoristas A má vontade se agravou ficou agressivo assustadiço o medo de entrar num carro crescendo de tal jeito que só andava a pé desconfiado fugindo das ruas movimentadas as orelhas atufadas de algodão para atenuar o som das buzinas entrando em pânico se um carro se aproximasse mais Ora nossa cidade tem carro à beça o que significa que ele vivia em estado de pânico permanente Quando chegavam as férias ele era bancário fugia alucinado para o campo para as praias mas praia e campo está tudo invadido o carro está em toda parte como Deus Fugir para onde Tentou se adaptar dominar o horror Não conseguiu Quando resolveu me procurar parecia um cadáver Perdão estava abatidíssimo Fez a confissão quase em prantos a fobia estava ficando insuportável Essa repugnância que o senhor tem pelo avesso da vida o cheiro especial que o senhor sente quando esse avesso se aproxima ele sentia também mas no cheiro da gasolina do óleo daquele bafo negro do motor sentia tudo mesmo fechado num armário mesmo escondido debaixo da cama Então ordeneilhe que se empregasse imediatamente numa fábrica de automóveis De automóveis Maximiliano deu uma risadinha Vejo seu espanto Senhor Gutierrez mas não é novidade que a única forma de se curar de um veneno é recorrer ao próprio veneno Como é que se cura picada de cobra Hum E o que vem a ser a homeopatia Empreguese numa fábrica de automóveis receitei E o moço que não podia se aproximar sequer de uma garagem de carros entrou no coração deles obrigado a lidar com as peças montando desmontando parafusando pintando a cara enfiada na máquina os ouvidos saturados do barulho da máquina De manhãzinha já ia se esfregar nos motores as unhas impregnadas de graxa vi suas unhas nem escova com sabão podia limpar aquelas unhas da presença detestável Ensineilhe que é preciso destruir os fantasmas indo de encontro a eles desvendálos meu caro sabe o que é desvendar É levantar o véu e olhar a coisa nos olhos Nos olhos O telefone tocou e dessa vez Maximiliano tomou algumas notas depois de informar que a pessoa em questão se ausentara da clínica por algumas horas Voltouse para o homem que esperava ansioso o cigarro pendendo do canto da boca as mãos tortuosas abertas nos joelhos Examinouo num silêncio cordial Tranquilo Ele sarou doutor Quem O moço Ah definitivamente Passada aquela fase de sofrimento maior começou a se interessar pelo trabalho Vinha me ver três vezes por semana nunca pensei que o processo de adaptação marchasse assim rápido um mês depois já tinha comprado um carro E lia revistas de automóveis ajudou a montar o Salão da Máquina colaborava na revista Oito Rodas contava anedotas sobre o trânsito virou um técnico Durante esse período só teve uma recaída quando foi todo satisfeito ver uma fita sobre corrida de carros e de repente no meio se levantou aos gritos e saiu espavorido todo o antigo horror explodindo tão forte que pensei Pronto voltou ao marco zero Mas não no dia seguinte já estava normal tudo bem De admirador da máquina passou a ser seu amante Ih a paixão que eu tenho por isto me disse certa vez alisando um paralama como se alisa a coxa da namorada Mas sua paixão pelo automóvel não era de ficar por aí não demorou muito e integrouse no próprio Não estou entendendo doutor Tão simples Gutierrez ele assumiu o automóvel Virou um automóvel e com tamanho fervor que certa manhã bebeu gasolina azul e saiu buzinando pela rua afora uon uon uon brrrrrrrrrr brrrrrrrrrr Perdeu para uma jamanta que vinha em sentido contrário Morreu Isso aí E agora o senhor soltou a palavra tão natural está vendo Pronto já é o caminho da cura assumir os fantasmas Melhor ainda virar um deles Então ele não se curou doutor Cariciosamente Maximiliano passou e repassou no lábio risonho o cachimbo apagado Mas o que o senhor chama de cura Por acaso queria que ele continuasse um automóvel para o resto da vida O senhor por exemplo quer continuar assim em pânico até o fim É isso que quer Me responda Quer sofrer esse medo até morrer de medo Não doutor não é isso que eu quero não queria ter medo nunca mais nunca mais Eu poderia lhe recomendar um estágio de enfermeiro num hospital daquele estilo em que o doente entra sem o raminho verde no bico sem esperança disse e riu Ficou sério Olhou o relógio de pulso Seria retomar o tratamento daquele caso os hospitais são fábricas de defuntos os que não morrem da doença com que entram pegam outra lá dentro o senhor teria um material de primeira ordem Mas quero que pule essa fase não vamos fazer cera mesmo porque não vai ter outra consulta esta é a última A última Seria pura perda de tempo filho Por que uma volta tão grande para se chegar ao mesmo fim No hospital o senhor iria se acostumando com posso falar a palavra com a morte e de tal jeito que acabaria se afeiçoando à ideia De simples admirador passaria a ser seu amante que nem o moço da máquina montado nela o dia inteiro aquele tesão Mas não parava nisso a identificação seria tão profunda que de repente ia querer se matar Melhor então que se mate já Doutor Imediatamente Saia e se mate é uma ordem O homem levantouse cambaleando Deixou cair no cinzeiro o cigarro e ali ficou de pé a boca entreaberta a face porejando branca O senhor está falando sério doutor Nunca falei tão seriamente em minha vida Só com a morte se cura o medo da morte Matese Não quer se libertar Pois lhe ordeno a libertação está salvo matese disse Maximiliano fixando no homem o olhar reto Saia e se mate em seguida Uma boa morte para o senhor Mas doutor espera Suave mas firmemente Maximiliano foi impelindo o homem até a porta Obedeça Agora adeus Assim que se viu sozinho foi até a janela e através do vidro ficou vendo o homem atravessar o jardim num passo vacilante as mãos abertas pendidas Virouse ainda uma vez a face aterrada se contraindo inteira numa interrogação de quem se esqueceu de dizer ou fazer alguma coisa o quê Quando o Doutor Ramazian voltou Maximiliano estava de pé ao lado da mesa com o bloco de notas na mão O cachimbo esvaziado O cinzeiro limpo Pronto Max Agora pode ir tomar seu lanche Algum recado Uma senhora telefonou mas não quis dizer o nome E um cliente o Professor Nóbrega também ligou disse que só pode vir na sextafeira vai combinar a hora com Dona Dóris Doutor Ramazian encheu o cachimbo Falou depois de uma baforada Ótimo Nada mais Alguém me procurou Um momento deixa eu ver disse Maximiliano franzindo a testa Encarou o médico Não ninguém Ninguém Posso ir Sim sem dúvida disse o médico passando o olhar distraído na folha de bloco com as anotações Ótimo Max Você vai indo muito bem o progresso que fez Estou muito satisfeito Eu também Falta apenas o último passo você sabe assumir sem possibilidades de retrocesso Então estará curado Maximiliano sorriu A voz saiu mansa num quase sussurro curado e fodido O que foi Você disse alguma coisa Não doutor nada O senhor tem razão Vamos ao lanche Seminário dos Ratos Que século meu Deus exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE O Chefe das Relações Públicas um jovem de baixa estatura atarracado sorriso e olhos extremamente brilhantes ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de leve na porta do Secretário do BemEstar Público e Privado Excelência O Secretário do BemEstar Público e Privado pousou o copo de leite na mesa e fez girar a poltrona de couro Suspirou Era um homem descorado e flácido de calva úmida e mãos acetinadas Lançou um olhar comprido para os próprios pés o direito calçado o esquerdo metido num grosso chinelo de lã com debrum de pelúcia Pode entrar disse ao Chefe das Relações Públicas que já espiava pela fresta da porta Entrelaçou as mãos na altura do peito Então Correu bem o coquetel Tinha a voz branda com um leve acento lamurioso O jovem empertigouse Um ligeiro rubor cobriulhe o rosto bem escanhoado Tudo perfeito Excelência Perfeito Foi no Salão Azul que é menor Vossa Excelência sabe Poucas pessoas só a cúpula ficou uma reunião assim aconchegante íntima mas muito agradável Fiz as apresentações bebericouse e consultou o relógio veja Excelência nem seis horas e já se dispersaram O Assessor da Presidência da RATESP está instalado na ala norte vizinho do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas que está ocupando a suíte cinzenta Já a Delegação Americana achei conveniente instalar na ala sul Por sinal deixeios há pouco na piscina o crepúsculo está deslumbrante Excelência deslumbrante O senhor disse que o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas está ocupando a suíte cinzenta Por que cinzenta O jovem pediu licença para se sentar Puxou a cadeira mas conservou uma prudente distância da almofada onde o Secretário pousara o pé metido no chinelo Pigarreou Bueno escolhi as cores pensando nas pessoas começou com certa hesitação Animouse A suíte do Delegado Americano por exemplo é rosa forte Eles gostam das cores vivas Para a de Vossa Excelência escolhi este azul pastel mais de uma vez vi Vossa Excelência de gravata azul Já para a suíte norte me ocorreu o cinzento Vossa Excelência não gosta da cor cinzenta O Secretário moveu com dificuldade o pé estendido na almofada Levantou a mão Ficou olhando a mão É a cor deles Rattus alexandrinus Dos conservadores Não dos ratos Mas enfim não tem importância prossiga por favor O senhor dizia que os americanos estão na piscina por que os Veio mais de um Pois com o Delegado de Massachusetts veio também a secretária uma jovem E veio ainda um ruivo de terno xadrez tipo um pouco de boxer meio calado está sempre ao lado dos dois Suponho que é um guardacostas mas é simples suposição Excelência o cavalheiro em questão é uma incógnita Só falam inglês Aproveitei para conversar com eles completei há pouco meu curso de inglês para executivos Se os debates forem em inglês conforme já foi aventado darei minha colaboração Já o castelhano eu domino perfeitamente enfim Vossa Excelência sabe Santiago Buenos Aires Fui contra a indicação Desse americano atalhou o Secretário num tom suave mas infeliz Os ratos são nossos as soluções têm que ser nossas Por que botar todo mundo a par das nossas mazelas Das nossas deficiências Devíamos só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade mas da nossa família De nós mesmos acrescentou apontando para o pé em cima da almofada Por que não apareci ainda por quê Porque simplesmente não quero que me vejam indisposto de pé inchado mancando Amanhã calço o sapato para a instalação de bom grado faço esse sacrifício O senhor que é um candidato em potencial desde cedo precisa ir aprendendo essas coisas moço Mostrar só o lado positivo só o que pode nos enaltecer Esconder nossos chinelos Mas Vossa Excelência me permite esse americano é um técnico em ratos nos Estados Unidos também têm muitos ratos ele poderá nos trazer sugestões preciosas Aliás estive sabendo que é um expert em jornalismo eletrônico Pior ainda Vai sair buzinando por aí suspirou o Secretário tentando mudar a posição do pé Enfim não tem importância Prossiga prossiga queria que me informasse sobre a repercussão Na imprensa é óbvio O Chefe das Relações Públicas pigarreou discretamente murmurou um bueno e apalpou os bolsos Pediu licença para fumar Bueno é do conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local Por que instalar o VII Seminário dos Roedores numa casa de campo completamente isolada Essa a primeira indagação geral A segunda é que gastamos demais para tornar esta mansão habitável um desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos O noticiarista de um vespertino marquei bem a cara dele Excelência esse chegou a ser insolente quando rosnou que tem tanto edifício em disponibilidade que as implosões até já se multiplicam para corrigir o excesso E nós gastando milhões para restaurar esta ruína O Secretário passou o lenço na calva e procurou se sentar mais confortavelmente Começou um gesto que não se completou Gastando milhões Bilhões estão consumindo esses demônios por acaso ele ignora as estatísticas Estou apostando como é da esquerda estou apostando Ou então amigo dos ratos Enfim não tem importância prossiga por favor Mas são essas as críticas mais severas Excelência Bisonhices Ah e aquela eterna tecla que não cansam de bater que já estamos no VII Seminário e até agora nada de objetivo que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do I Seminário que temos agora cem ratos para cada habitante que nas favelas não são as Marias mas as ratazanas que andam de lata dágua na cabeça acrescentou contendo uma risadinha O de sempre Não se conformam é de nos reunirmos em local retirado que devíamos estar lá no Centro dentro do problema Nosso Assessor de Imprensa já esclareceu o óbvio que este Seminário é o QuartelGeneral de uma verdadeira batalha E que traçar as coordenadas de uma ação conjunta deste porte exige meditação Lucidez Onde poderiam os senhores trabalhar senão aqui respirando um ar que só o campo pode oferecer Nesta bendita solidão em contato íntimo com a natureza O Delegado de Massachusetts achou genial essa ideia do encontro em pleno campo Um moço muito gentil tão simples Achou excelente nossa piscina térmica Vossa Excelência sabia Foi campeão de nado de peito está lá se divertindo adorou nossa águadecoco Contoume uma coisa curiosa que os ratos do Polo Norte têm pelos deste tamanho para aguentar o frio de trinta abaixo de zero se guarnecem de peliças os marotos Podiam viver em Marte uma saúde de ferro O Secretário parecia pensar em outra coisa quando murmurou evasivamente um enfim Levantou o dedo pedindo silêncio Olhou com desconfiança para o tapete Para o teto Que barulho é esse Barulho Um barulho esquisito não está ouvindo O Chefe das Relações Públicas voltou a cabeça concentrado Não estou ouvindo nada Já está diminuindo disse o Secretário baixando o dedo almofadado Agora parou Mas o senhor não ouviu Um barulho tão esquisito como se viesse do fundo da terra subiu depois para o teto Não ouviu mesmo O jovem arregalou os olhos de um azul inocente Absolutamente nada Excelência Mas foi aqui no quarto Ou lá fora não sei Como se alguém Tirou o lenço limpou a boca e suspirou profundamente Não me espantaria nada se cismassem de instalar aqui algum gravador O senhor se lembra Esse Delegado americano Mas Excelência ele é convidado do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas Não confio em ninguém Em quase ninguém corrigiu o Secretário num sussurro Fixou o olhar suspeitoso na mesa Nos baldaquins azuis da cama Onde essa gente está tem sempre essa praga de gravador Enfim não tem importância prossiga por favor E o Assessor de Imprensa Bueno ontem à noite ele sofreu um pequeno acidente Vossa Excelência sabe como anda o nosso trânsito Teve que engessar um braço Só pode chegar amanhã já providenciei o jatinho acrescentou o jovem com energia Na retaguarda fica toda uma equipe armada para a cobertura Nosso Assessor vai pingando o noticiário por telefone criando suspense até o encerramento quando virão todos num jato especial fotógrafos canais de televisão correspondentes estrangeiros uma apoteose Finis coronat opus o fim coroa a obra Só sei que ele já deveria estar aqui começa mal lamentou o Secretário inclinandose para o copo de leite Tomou um gole e teve uma expressão desaprovadora Enfim o que me preocupava muito é ficarmos incomunicáveis Não sei mesmo se essa ideia do Assessor da Presidência da RATESP vai funcionar isso de deixarmos os jornalistas longe Tenho minhas dúvidas Vossa Excelência vai me perdoar mas penso que a cúpula se valoriza ficando assim inacessível Aliás é sabido que uma certa distância um certo mistério excita mais do que o contato diário com os meios de comunicação Nossa única fonte vai soltando notícias discretas influindo sem alarde até o encerramento quando abriremos as baterias Não é uma boa tática Com dedos tamborilantes o Secretário percorreu vagamente os botões do colete Entrelaçou as mãos e ficou olhando as unhas polidas Boa tática meu jovem é influenciar no começo e no fim todos os meios de comunicação do país Esse é o objetivo Que já está prejudicado com esse assessor de perna quebrada Braço Excelência O antebraço mais precisamente O Secretário moveu penosamente o corpo para a direita e para a esquerda Enxugou a testa Os dedos Ficou olhando para o pé em cima da almofada Hoje mesmo o senhor poderia lhe telefonar para dizer que estrategicamente os ratos já se encontram sob controle Sem detalhes enfatize apenas isto que os ratos já estão sob inteiro controle A ligação é demorada Bueno cerca de meia hora Peço já Excelência O Secretário foi levantando o dedo Abriu a boca Girou a cadeira em direção da janela Com o mesmo gesto lento foi se voltando para a lareira Está ouvindo Está ouvindo O barulho Ficou mais forte agora O jovem levou a mão à concha da orelha A testa ruborizouse no esforço da concentração Levantouse e andou na ponta dos pés Vem daqui Excelência Não consigo perceber nada Aumenta e diminui Olha aí em ondas como um mar Agora parece um vulcão respirando aqui perto e ao mesmo tempo tão longe Está fugindo olha aí Tombou para o espaldar da poltrona exausto Enxugou o queixo úmido Quer dizer que o senhor não ouviu nada O Chefe das Relações Públicas arqueou as sobrancelhas perplexas Espiou dentro da lareira Atrás da poltrona Levantou a cortina da janela e olhou para o jardim Tem dois empregados lá no gramado motoristas creio Ei vocês aí chamou estendendo o braço para fora Fechou a janela Sumiram Pareciam agitados talvez discutissem mas suponho que nada tenham a ver com o barulho Não ouvi coisa alguma Excelência Escuto tão mal deste ouvido Pois eu escuto demais devo ter um ouvido suplementar Tão fino Quando fiz a Revolução de 32 e depois no Golpe de 64 era sempre o primeiro do grupo a pressentir qualquer anormalidade O primeiro Lembro que uma noite avisei meus companheiros O inimigo está aqui com a gente e eles riram Bobagem você bebeu demais tínhamos tomado no jantar um vinho delicioso Pois quando saímos para dormir estávamos cercados O Chefe das Relações Públicas teve um olhar de suspeita para a estatueta de bronze em cima da lareira uma opulenta mulher de olhos vendados empunhando a espada e a balança Estendeu a mão até a balança Passou o dedo num dos pratos empoeirados Olhou o dedo e limpouo com um gesto furtivo no espaldar da poltrona Vossa Excelência quer que eu vá fazer uma sondagem O Secretário estendeu doloridamente a perna Suspirou Enfim não tem importância Nestas minhas crises sou capaz de ouvir alguém riscando um fósforo na sala Entre consternado e tímido o jovem apontou para o pé enfermo É algo grave A gota E dói Excelência Muito Pode ser a gota dágua Pode ser a gota dágua cantarolou ele ampliando o sorriso que logo esmoreceu no silêncio taciturno que se seguiu à sua intervenção musical Pigarreou Ajustou o nó da gravata Bueno é uma canção que o povo canta por aí O povo o povo disse o Secretário do BemEstar Público entrelaçando as mãos A voz ficou um brando queixume Só se fala em povo e no entanto o povo não passa de uma abstração Abstração Excelência Que se transforma em realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas Ou a roer os pés das crianças da periferia então sim o povo passa a existir nas manchetes da imprensa de esquerda Da imprensa marrom Enfim pura demagogia Aliada às bombas dos subversivos não esquecer esses bastardos que parecem ratos suspirou o Secretário percorrendo languidamente os botões do colete Desabotoou o último No Egito Antigo resolveram esse problema aumentando o número de gatos Não sei por que aqui não se exige mais da iniciativa privada se cada família tivesse em casa um ou dois gatos esfaimados Mas Excelência não sobrou nenhum gato na cidade já faz tempo que a população comeu tudo Ouvi dizer que dava um ótimo cozido Enfim sussurrou o Secretário esboçando um gesto que não completou Está escurecendo não O jovem levantouse para acender as luzes Seus olhos sorriam intensamente E à noite todos os gatos são pardos Depois sério Quase sete horas Excelência O jantar será servido às oito a mesa decorada só com orquídeas e frutas A mais fina cor local encomendei do Norte abacaxis belíssimos E as lagostas então O CozinheiroChefe ficou entusiasmado nunca viu lagostas tão grandes Bueno eu tinha pensado num vinho nacional que anda de primeiríssima qualidade digase de passagem mas me veio um certo receio e se der alguma dor de cabeça Por um desses azares Vossa Excelência já imaginou Então achei prudente encomendar vinho chileno De que safra De Pinochet naturalmente O Secretário do BemEstar Público e Privado baixou o olhar ressentido para o próprio pé Para mim um caldo sem sal uma canjinha rala Mais tarde talvez um Emudeceu A cara pasmada foise voltando para o jovem Está ouvindo agora Está mais forte ouviu isso Fortíssimo O Chefe das Relações Públicas levantouse de um salto Apertou entre as mãos a cara ruborizada Mas claro Excelência está repercutindo aqui no assoalho o assoalho está tremendo Mas o que é isso Eu não disse eu não disse perguntou o Secretário Parecia satisfeito Nunca me enganei nunca Já faz horas que estou ouvindo coisas mas não queria dizer nada podiam pensar que fosse delírio Olha aí agora Parece até que estamos em zona vulcânica como se um vulcão fosse irromper aqui embaixo Vulcão Ou uma bomba têm bombas que antes de explodir dão avisos Meu Deus exclamou o jovem Correu para a porta Vou verificar imediatamente Excelência Não se preocupe não há de ser nada com licença volto logo Meu Deus zona vulcânica Quando fechou a porta atrás de si abriuse a porta em frente e pela abertura introduziuse uma carinha louramente risonha Os cabelos estavam presos no alto por um laçarote de bolinhas amarelas What is that Perhaps nothing perhaps something respondeu ele abrindo o sorriso automático Acenoulhe com um frêmito de dedos imitando asas Supper at eight Miss Gloria Apressou o passo quando viu o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas que vinha com seu chambre de veludo verde Encolheuse para lhe dar passagem fez uma mesura Excelência e quis prosseguir mas teve a passagem barrada pela montanha veludosa Que barulho é esse Bueno também não sei dizer Excelência é o que vou verificar Volto num instante Não é mesmo estranho Tão forte O Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas farejou o ar E esse cheiro O barulho diminuiu mas não está sentindo um cheiro Franziu a cara Uma maçada Cheiros barulhos e o telefone que não funciona Por que o telefone não está funcionando Preciso me comunicar com a Presidência e não consigo o telefone está mudo Mudo Mas fiz dezenas de ligações hoje cedo Vossa Excelência já experimentou o do Salão Azul Venho de lá Também está mudo uma maçada Procure meu motorista veja se o telefone do meu carro está funcionando tenho que fazer essa ligação urgente Fique tranquilo Excelência Vou tomar providências e volto em seguida Com licença sim fez o jovem esgueirandose numa mesura rápida Enveredou pela escada Parou no primeiro lance Mas o que significa isso Pode me dizer o que significa isso Esbaforido sem o gorro e com o avental rasgado o CozinheiroChefe veio correndo pelo saguão O jovem fez um gesto enérgico e precipitouse ao seu encontro Como é que o senhor entra aqui neste estado O homem limpou no peito as mãos sujas de suco de tomate Aconteceu uma coisa horrível doutor Uma coisa horrível Não grita o senhor está gritando calma e o jovem tomou o Cozinheiro Chefe pelo braço arrastouo a um canto Controlese Mas o que foi Sem gritar não quero histerismo vamos calma o que foi As lagostas as galinhas as batatas eles comeram tudo Tudo Não sobrou nem um grão de arroz na panela Comeram tudo e o que não tiveram tempo de comer levaram embora Mas quem comeu tudo Quem Os ratos doutor os ratos Ratos Que ratos O CozinheiroChefe tirou o avental embolouo nas mãos Voume embora não fico aqui nem mais um minuto Acho que a gente está no mundo deles Pela alma da minha mãe quase morri de susto quando entrou aquela nuvem pela porta pela janela pelo teto só faltou me levar e mais a Euclídea Até os panos de prato eles comeram Só respeitaram a geladeira que estava fechada mas a cozinha ficou limpa limpa Ainda estão lá Não assim como entrou saiu tudo guinchando feito doido Eu já estava ouvindo fazia um tempinho aquele barulho me representou um veio dágua correndo forte debaixo do chão depois martelou assobiou a Euclídea que estava batendo maionese pensou que fosse um fantasma quando começou aquela tremedeira e na mesma hora entrou aquilo tudo pela janela pela porta não teve lugar que a gente olhasse que não desse com o monte deles guinchando E cada ratão viu Deste tamanho A Euclídea pulou em cima do fogão eu pulei em cima da mesa ainda quis arrancar uma galinha que um deles ia levando assim no meu nariz taquei o vidro de suco de tomate com toda força e ele botou a galinha de lado ficou de pé na pata traseira e me enfrentou feito um homem Pela alma da minha mãe doutor me representou um homem vestido de rato Meu Deus que loucura E o jantar Jantar O senhor disse jantar Não ficou nem uma cebola Uma trempe deles virou o caldeirão de lagostas e a lagostada se espalhou no chão foi aquela festa não sei como não se queimaram na água fervendo Cruzcredo vou me embora e é já Espera calma E os empregados Ficaram sabendo Empregados doutor Empregados Todo mundo já foi embora ninguém é louco E se eu fosse vocês também me mandava viu Não fico aqui nem que me matem Um momento espera O importante é não perder a cabeça está me compreendendo O senhor volta lá abre as latas que as latas ainda ficaram não ficaram A geladeira não estava fechada Então deve ter alguma coisa prepare um jantar com o que puder evidente Não não Não fico nem que me matem Espera eu estou falando o senhor vai voltar e cumprir sua obrigação O importante é que os convidados não fiquem sabendo de nada disso me incumbo eu está me compreendendo Vou já até a cidade trago um estoque de alimentos e uma escolta de homens armados até os dentes quero ver se vai entrar um mísero camundongo nesta casa quero ver Mas o senhor vai como Só se for a pé doutor O Chefe das Relações Públicas empertigouse A cara se tingiu de cólera Apertou os olhinhos e fechou os punhos para soquear a parede mas interrompeu o gesto quando ouviu vozes no andar superior Falou quase entredentes Covardes miseráveis Quer dizer que os empregados levaram todos os carros Foi isso levaram os carros Levaram nada fugiram a pé mesmo nenhum carro está funcionando O José experimentou um por um viu Os fios foram comidos comeram também os fios Vocês fiquem aí que eu vou pegar a estrada e é já O jovem encostouse na parede a cara agora estava lívida Quer dizer que o telefone murmurou e cravou o olhar estatelado no avental que o Cozinheiro Chefe largou no chão As vozes no andar superior começaram a se cruzar Uma porta bateu com força Encolheuse mais no canto quando ouviu seu nome era chamado aos gritos Com olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no tapete o chinelo deslizava a sola voltada para cima rápido como se tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível Foi a última coisa que viu porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus alicerces As luzes se apagaram Então deu se a invasão espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados numa treva dura de músculos guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos Quando a primeira dentada lhe arrancou um pedaço da calça ele correu sobre o chão enovelado entrou na cozinha com os ratos despencando na sua cabeça e abriu a geladeira Arrancou as prateleiras que foi encontrando na escuridão jogou a lataria para o ar esgrimou com uma garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras expulsouos e num salto pulou lá dentro Fechou a porta mas deixou o dedo na fresta que a porta não batesse Quando sentiu a primeira agulhada na ponta do dedo que ficou de fora substituiu o dedo pela gravata No rigoroso inquérito que se processou para apurar os acontecimentos daquela noite o Chefe das Relações Públicas jamais pôde precisar quanto tempo teria ficado dentro da geladeira enrodilhado como um feto a água gelada pingando na cabeça as mãos endurecidas de câimbra a boca aberta no mínimo vão da porta que de vez em quando algum focinho tentava forcejar Lembrava se isso sim de um súbito silêncio que se fez no casarão nenhum som nenhum movimento Nada Lembravase de ter aberto a porta da geladeira Espiou Um tênue raio de luar era a única presença na cozinha esvaziada Foi andando pela casa completamente oca nem móveis nem cortinas nem tapetes Só as paredes E a escuridão Começou então um murmurejo secreto rascante que parecia vir da Sala de Debates e teve a intuição de que estavam todos reunidos ali de portas fechadas Não se lembrava sequer de como conseguiu chegar até o campo não poderia jamais reconstituir a corrida correu quilômetros Quando olhou para trás o casarão estava todo iluminado Sobre Lygia Fagundes Telles e Este Livro Raros são os contos em Seminário dos Ratos nos quais Lygia adota a narração objetiva na terceira pessoa Prefere a participação direta do testemunho Narrando na primeira pessoa ela assume suas personagens e acaba por imprimirlhes uma criatividade de pronta identificação A escritora sai de sua oficina de criatividade e passa a andar a sonhar a viver com suas criaturas entranhada no íntimo de cada uma procurando descer no fundo de suas consciências HÉLIO PÓLVORA Cada vez mais atraída pelo essencial a escritora abre mão do acessório e anedótico para só perscrutar o íntimo de suas criaturas às voltas com conflitos insolúveis ilhadas em seu sofrimento empurradas para o declive da loucura ou roídas pela morte que nelas se instalou Esse universo cruel cujo espetáculo na palavra de Carlos Drummond de Andrade nos faz sofrer e ao mesmo tempo nos oferece o remédio compensador da arte gravase inesquecivelmente em nossa memória E o mais notável dessa arte é que segundo observou Wilson Martins renova um gênero em que tudo parecia ter sido feito sem escapar das suas linhas tradicionais das suas leis não escritas PAULO RÓNAI Com prodigiosa força e sutileza a autora consegue exprimir a diversidade e os contrastes através de uma linguagem extremamente flexível e que se ajusta a todas as metamorfoses seja de forma apenas alusiva seca ou com envolvimento e fascínio MICHEL MURIDSANY LE FIGARO PARIS Lygia na Penumbra POSFÁCIO JOSÉ CASTELLO Meados dos anos de 1990 Em busca de uma metáfora que ilustre sua relação com a literatura Lygia Fagundes Telles me confidencia uma experiência pessoal recente que acredita ajuda a definila Perto da meianoite depois de uma sessão de cinema a escritora sobe sozinha a rua em que mora em São Paulo Está a dois quarteirões de casa É inverno e a cidade está vazia O ronco de um motor ecoa de repente às suas costas É um motoqueiro identifica O gaguejar da máquina indica que ele diminui a velocidade Vou morrer Lygia pensa Serei assassinada e em plena rua Não tem coragem de se voltar para encarar a verdade Trata de apressar o passo mas o rapaz não se afoba No mesmo ritmo vagaroso continua a seguila A um quarteirão de casa pronta para enfrentar a morte que ela imagina virá de um tiro pelas costas a escritora passa a correr Pratica natação tem bom fôlego Não vou me entregar pensa Vou morrer lutando Começa a ganhar distância quando com um arranque o motoqueiro a ultrapassa Não pode mais se iludir sua hora chegou Então o ronco do motor é cortado por um grito Eu te amo Lygia Fagundes Telles A moto acelera e invertendo a cena surge à sua frente O motoqueiro é um rapaz miúdo o rosto submerso em um capacete Eu te amo Lygia Eu te amo ele insiste antes de disparar desaparecendo na noite escura Lygia chega em casa aos prantos É doloroso aceitar o frágil limite que separa o medo da morte e a paixão pela literatura Vivemos tempos estranhos em que amor e morte se confundem ela me diz interrompendo seu relato Tenta aplicar no mundo uma ideia que na verdade diz respeito apenas a si É do medo da morte que nascem os grandes escritores pensa É desse fio insignificante que separa o espanto da coragem que a literatura se alimenta Já em casa ainda soluçando Lygia se acomoda em uma poltrona Súbito um pensamento a sacode Pouco antes de sair de casa trabalhava nos contos de A Noite Escura e Mais Eu livro que lançaria naquele ano de 1995 O título é um empréstimo de Assobio poema de Cecília Meirelles Muito adequado ao livro que escreve E agora espantosamente nomeia a experiência que acabara de viver Faixas distintas da existência literatura e vida entram em súbita sincronia A aproximação do motoqueiro fora uma encenação impecável de sua relação com a literatura Medo e paixão ocupam um só lugar Avesso e direito Uma coisa só Não foi uma experiência nova em sua vida Desde os primeiros rascunhos Lygia Fagundes Telles tem consciência dos laços arbitrários e invisíveis que atam a experiência humana Escrever para ela é manipular esses nós que ali estão não tanto para amarrar mas para perverter e desestabilizar os rumos da vida comum Lygia é uma escritora que trabalha com mistérios e com pequenas revelações Porém não se entenda errado sua escrita não é religiosa nem mística Se há religiosidade é no modo como ela escava a banalidade em busca de seu miolo Se há misticismo ele se esconde em sua inclinação para valorizar as zonas subterrâneas da existência São experiências que ilustram o poder do acaso e o modo fatal como a ele estamos submetidos Todos não apenas os escritores Experiências extremas que antes disso já se expressavam de forma radical em Seminário dos Ratos de 1977 Os contos aqui reunidos desenham uma difícil relação entre o homem e o poder O livro foi escrito e publicado durante os anos do governo de general Ernesto Geisel quando a ditadura militar já arriscava passos modestos de distensão política Sob a pressão das circunstâncias os textos foram lidos na época como metáforas de uma realidade ainda obscura mas que começava a se esgarçar Essa redução contudo empobrece a literatura de Lygia que não é um simples retrato do mundo e sim uma escavação sutil sob a crosta da existência Outros leitores de Seminário dos Ratos apressaramse em definila como uma retratista da decadência burguesa Críticos estrangeiros como a alemã Ilse Schlede de Colônia consideraram este livro prova da inclusão de Lygia na longa série dos escritores do fantástico Aprisionaramna assim na escrita política na narrativa sociológica no realismo mágico Todo esse esforço de classificação porém deixava escapar o que sua literatura tem de mais forte e que em Seminário dos Ratos se expressa de modo mais escandaloso o poder discreto sutil de penetrar nas entrelinhas da vida Suas histórias devem ser lidas não pelo que dizem mas pelo que subentendem Pelo que escondem As entrelinhas e não o político ou o social são o verdadeiro objeto de sua escrita Lygia Fagundes Telles é uma escritora que se dedica aos temas universais a loucura o amor a paixão o medo a morte Temas clássicos que nos atormentam desde os gregos e que a expõem ao grande risco da repetição e do banal Como os enfrenta Em seus relatos esses temas antigos experimentam relações imprevistas como a morte e a paixão que se entrelaçaram na figura do mesmo motoqueiro em uma noite escura de São Paulo A escrita de Lygia é contida e gelada Ela é uma escritora contemplativa É conhecida sua paixão pela máxima de Agostinho Foge escondete calate Pode parecer estranho que um escritor mestre da palavra se deixe nortear pelo desvio pela ocultação e pelo silêncio Mas é essa postura esquiva que alimenta as narrativas reunidas em Seminário dos Ratos O conto que empresta título ao livro contém alguns dos elementos fundamentais de sua literatura Seu objeto é menos a realidade do que aquelas zonas de atordoamento e dúvida em que ela se move Um seminário oficial que se propõe a discutir métodos para erradicar roedores se transforma lentamente em um encontro gerido pelos próprios ratos As posições do mundo Lygia nos sugere não são estáveis Você pensa que pisa em solo firme e que é o sujeito da situação mas de repente os papéis se invertem e o objeto antes precário submisso avança e toma o lugar de sujeito A história de Lygia trabalha com a dupla e paradoxal noção de sujeito Sujeito como aquele que se reconhece em uma sentença e que acionando um verbo age nela mas também aquele que está subordinado ou dependente de algo ou alguém e que não tem como escapar dessa submissão A dupla função do sujeito se exibe de modo escandaloso na figura do Secretário do BemEstar Público e Privado que preside o congresso sobre roedores Ele começa o relato investido do poder de mandar autorizar e agir mas termina prisioneiro da fúria dos ratos que invadem a cozinha do evento comem as fiações dos automóveis roem os alicerces da casa e por fim em um mundo de pernas para o ar se instalam como doutores em seu próprio seminário No fundo da cena há um murmurejo secreto rascante som perturbador que expressa a derrota do humano Destituído de seu poder o Chefe das Relações Públicas se esconde em uma geladeira enrodilhado como um feto em uma regressão que aponta para a inconstância do real A realidade em vez de lhe estender um chão firme e estável é só uma onda que se desfigura A invasão dos ratos evoca outras narrativas a mais célebre delas Casa Tomada o célebre conto do argentino Julio Cortázar Relatos que relativizam o poder humano sempre dependente dos pontos de vista e das circunstâncias e que a qualquer momento a força do acaso pode revirar Um guardachuva velho que traiçoeiro em vez de proteger mata Poder que brutal e onipotente ainda assim lança sobre a realidade uma leve sombra de desarmonia expressa em um contrapoder que um dia surge para ameaçálo As mesmas irregularidades que recobrem o poder surgem já na abertura do livro no primoroso As Formigas As duas primas que ingênuas dividem um humilde quarto de pensão logo farejam na banalidade das horas um cheiro do estranho que a princípio associam ao bolor Ocorre que o estranho não é o fantástico não é o absurdo nem o extraordinário confusão comum que leva à crença de que Lygia Fagundes Telles seria praticante da literatura mágica Traiçoeiro ele também o estranho ao contrário se guarda em estreitas frestas do real Estranho é o particular é o único No caso as miseráveis formigas pequenas e ruivas que com diligência usam o mofo da noite para reconstruir a ossada de um anão Só aparecem de madrugada não apenas para se protegerem mas porque habitam zonas de matéria escura e vazia que indiferentes ao nosso testemunho compõem o real O fecho abrupto do relato aponta para os lapsos e as falhas que compõem a realidade e também para a incapacidade de a literatura dar conta das coisas do mundo A literatura dizia João Cabral de Melo Neto é uma faca só lâmina que corta o real e nesse sangramento nos desloca da posição de serenidade para a experiência do assombro Se há algo fantástico nas narrativas de Lygia ele não está em coisas absurdas ou assombrosas mas na maneira como somos capazes de nos cegar diante dos pequenos eventos da vida Um conto perturbador como WM joga justamente com a ideia de verso e reverso dupla face das coisas Wlado frequenta o consultório do Doutor Werebe certo de que ali está para ter notícias do tratamento de Wanda sua irmã quando ele mesmo Wlado é o paciente W e M letras que se invertem e se embaralham apontam para a fragilidade da língua e a precariedade da nomeação Basta um leve toque um roçar descuidado para que a realidade se revire Essa dualidade se infiltra também na vida íntima Não é só o poder político e social que fracassa mas também o poder que o sujeito supostamente tem sobre si Em A Sauna um homem aproveita o ambiente esfumaçado para passar em revista a própria vida Longe da nitidez do mundo solar à meialuz lembranças e dúvidas encontram uma atmosfera propícia para a revelação Sob a luz cruel da realidade não passamos de máscaras endurecidas sugere Lygia É no lusco fusco que a vida frágil e arredia se encorpa É também nessas zonas de trevas que a literatura enfim se faz Já no começo do relato o homem fala de sua segunda mulher Marina uma líder feminista que tem a mania de ficar desparafusando o que deve ficar parafusado Se as roldanas e os apoios que sustentam o real se afrouxam não é por indolência ou maldade mas porque a realidade de fato se compõe de fragmentos e estilhaços e não da matéria sólida prometida pelas instituições que a regem como o casamento a religião e a política Quando um homem na solidão da sauna com a mente diluída e fluida vasculha seu passado surgem mais interrogações e dúvidas do que fatos e descobertas É ali nesse ambiente nevoento que a vida se esboça É também assim em meio a relances e emanações que a literatura de Lygia toma corpo O protagonista de A Sauna é um pintor que depois de alguns momentos de criação legítima se acomoda aos apelos do mercado e do conforto Para pintar seus quadros vendáveis sabe que não deve estar nem eufórico nem deprimido mas equilibrado sobre as aparências do normal Perdi o fervor resume É justamente da perda desse calor interno que esvazia e deprime que os contos de Lygia tratam Mundo em que os homens sempre prontos para consumir devorar e gozar se comportam como tenazes roedores ansiosos para abocanhar os melhores pedaços da vida e para triturar e acumular experiências Essa atitude que parece realista e objetiva na verdade corrói a existência Transposta para a escrita só pode produzir literatura de segunda classe Estamos imóveis só o suor escorre veloz formando pequenas poças nos bancos o narrador relata Poças isoladas umas das outras como ilhas Os vasos incomunicantes Eis o ambiente de Lygia a penumbra É dela a tese de que a relação entre realidade e ficção se assemelha ao vínculo entre dois vasos comunicantes desses usados em laboratórios Quando se retira parte do líquido de um dos vasos o mesmo volume de líquido é subtraído do outro mesmo que não o desejemos Não existem atos autônomos nem ações isoladas Não a ficção não é um espelho do mundo É sim uma segunda dimensão desse mundo que o suga e repuxa ou o alimenta e expande Lygia aposta todo o tempo no poder inventivo da literatura que é transitório e precário parece inofensivo e imprudente mas que se manipulado com delicadeza revela uma súbita potência Nesse ambiente opaco a leitura do mundo se faz não a partir de sinais nítidos mas de indícios frágeis Os personagens de Lygia vivem em um mundo de limites rasurados no qual já não podemos distinguir entre a lua que brilha e um sol que se apaga e onde é impossível dizer se anoitece ou amanhece Um mundo fosco que nos escurece um pouco também Acostumados à ideia de um cotidiano sem imprevistos e sem mistérios seus personagens estão sempre a levar sustos É o que acontece com o protagonista de A Mão no Ombro O roçar de uma mão que lhe toca de leve as costas e não a grosseria de um empurrão forte basta para lhe anunciar a morte que se avizinha Sinal fugidio indicando que é no traço delicado e não no golpe tosco que o destino se delineia Basta um relance e a realidade se revela Nada disso se faz sem alguma dor e por isso os personagens de Seminário dos Ratos estão sempre a sofrer Situação trágica que para Lygia se sintetiza na sentença do Rei Lear de Shakespeare Esse céu tão borrascoso não se desanuvia sem uma tormenta Se é para tratar da dor portanto que seja com delicadeza E o que existe de mais delicado que a escrita Se os ratos tomam nosso lugar e nos expulsam do mundo se miseráveis formigas desenham a figura da morte não adianta fugir Bem melhor é escrever É nesse sentido que para ela a literatura tem o caráter de salvação Lygia trabalha com um mundo de miniaturas quinquilharias e pequenos sentimentos Plantas bichos insetos desabafos tremores frágeis revelações objetos suaves que a aproximam da poesia Não se espere dela porém o derramamento e os adornos que em geral caracterizam a prosa poética A escrita de Lygia é refinada É cortante Ela escreve como um tapeceiro que ciente de que qualquer ruptura brusca nos fios transversais de sua trama rasgará ato contínuo o conjunto de fios longitudinais da urdidura prefere manipular suas agulhas na penumbra Se a urdidura é o real a trama é a literatura De um lado o motoqueiro leitor com sua paixão De outro Lygia escritora com sua imaginação Vida e escrita se tornam assim inseparáveis JOSÉ CASTELLO nasceu no Rio de Janeiro em 1951 Mestre em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ trabalhou em vários órgãos de imprensa entre eles o semanário Opinião e a revista Veja Atualmente é colunista do suplemento Prosa e Verso de O Globo DEPOIMENTO PÉRICLES EUGÊNIO DA SILVA RAMOS Naqueles dias éramos uns puros Apenas uma coisa nos interessava a conquista do renome literário que sabíamos longínquo fortuito quase inacessível Cintilassem a nossa frente todas as Pasárgadas mesmo o trono do rei pesado de luz e pedrarias nós declinaríamos esse resplendor mundano pois não era o que desejávamos Queríamos uma província infinitamente menor que talvez coubesse na palma da mão mas cheia de asas e promessas queríamos escrever E naquelas manhãs da Faculdade de Direito nos inícios do decênio de 1940 o mundo conflagrado e nós com os olhos e o coração alandose para o futuro Durante os intervalos de aula o costume era nos encontrar no Pátio das Arcadas Lygia Fagundes e alguns colegas interessados nas coisas literárias No grupo eu próprio então a poetar e a crer nos versos como se fossem eles a razão da existência Conspirávamos para atingir a ambição comum que nos movia ou seja a de provar que escrevendo é que existíamos Eram muitas conversas muitos sonhos muitos debates e cada um de nós galgando lentamente e a duras penas os degraus liminares da carreira que pretendíamos sob o olhar austero da estátua de José Bonifácio o Moço Após a publicação de Praia Viva que repercutiu criticamente fora dos muros da Faculdade marcando verdadeiramente o início de uma caminhada que prometia ser vitoriosa e séria Lygia Fagundes partiu para outros livros de contos até chegar ao romance Ciranda de Pedra que em cuidado trabalho paralelo constituiu novela de sucesso na televisão Se Lygia Fagundes Telles ambicionava renome literário conquistouo amplamente e o que é mais importante sem fazer concessões para isso Num esforço continuado e progressivo a maturidade veio a confirmar as esperanças da contista jovem e com a estranha peculiaridade de escrever as histórias na cabeça passandoas para o papel totalmente acabadas até com as vírgulas e os pontos como num manuscrito a máquina Quando ela dizia estou escrevendo um conto já sabíamos que a elaboração era mental e quando dizia querem ouvir o conto que acabei já sabíamos que ela não ia puxar papel algum mas simplesmente narrar o conto que depois iria para o papel E esse hábito de assim compor os contos não mudou através dos anos a exceção seriam os romances cuja dimensão exige redação parcelada fora do sistema Talvez por isso mesmo a escritora teria dividido em duas partes o mais lírico deles lírico do lirismo que vem da infância e suas fontes Ciranda de Pedra Era uma nova técnica da qual ela se assenhorou em Verão no Aquário com sua irredutível integridade As Meninas o terceiro romance talvez seja o mais recheado de atualidade de todos eles o mais vivo e assim a trilogia tem o mérito de não se repetir mas de inovar de um para outro livro com conquista cabal do monólogo interior e com a manutenção sustentada do centro de interesse Já a história dos contos é uma história de clara ascensão a ponto de podermos dizer com firme confiança que com Seminário dos Ratos a escritora Lygia Fagundes Telles é um dos grandes contistas que o Brasil já produziu Não que antes não tivesse escrito contos notáveis como A Caçada que nos dá em poucas páginas a compacta visão de uma obraprima mas esse conto de singular grandeza como que se adensa e se torna sangue vivo nos contrastes de Seminário dos Ratos Estamos assim distantes dos contos para entreter simplesmente ou para fazerse um nome o contar aqui não reproduz a vida mas adquire uma vida própria quente violenta a pulsar como um coração Não precisamos mais indagar se tal ou qual conto está ou não realizado eles nos arrastam caudalosamente todos eles certos de sua própria existência de fábula inquestionada e transfeita em gente a fluir Não serei o primeiro a dizer pois isso já é um lugarcomum da crítica a exuberante imaginação de Lygia Eu disse imaginação e não fantasia pois se a fantasia paira aérea e distante a imaginação segundo Coleridge coleta os materiais fragmentários da experiência e lhes dá unidade Em alto grau a escritora tem a faculdade de dramatizar isto é de projetar sua personalidade reencarnandoa em personagens que estão fora do seu círculo porque existem por direito próprio Isso se patenteia nitidamente no monólogo interior que reproduz o pensamento de criaturas as mais diversas homens ou mulheres jovens ou idosos humildes ou refinados A autora sai para fora de si mesma para criar pessoas ágeis com tal segurança que os paralelos com o mundo exterior já não interessam À porta dessas páginas deixamos toda a capacidade de descrer e adentramos uma existência onde moço e moça podem tornarse de súbito um passarinho e uma borboleta a esconderse sob um banco de praça pública A realidade dessa ficção está nela própria em seu mundo particular parecido com este que frequentamos mas capaz de suspender as leis naturais Estamos no reino de uma outra realidade criada pelo espírito e com tal convicção que novos sóis giram pelos céus e novas criaturas surgem sofrem e sonham nessas páginas Creio não exagerar se disser que como Schopenhauer a escritora acredita no primado da dor pois seus contos exprimem no fundo não a substância da vida como queria Machado de Assis mas a tristeza da vida que o mestre igualmente não desdenhava Com uma diferença para Machado de Assis a vida era negra às vezes mas para a escritora ela é triste apenas cheia de melancolia de uma ave de asas partidas Não são as pessoas que são tristes é a vida esta vida independente e que é todavia um espelho poderoso desta nossa capaz de tudo exceto de modificála ou tornála feliz Assim a experiência da autora cria personagens efetivas sem que necessariamente elas reflitam a autora Já Wilson Martins assinalou que esses contos indicam uma experiência que nem sempre é biograficamente a da escritora antes de mais nada esclareceu o crítico ela ultrapassa o círculo de giz autobiográfico em que giram desesperadamente tantos contistas modernos Indica assim a primeira qualidade de ficcionista a de saber colocarse na pele dos outros E essa é mais uma ambiguidade do conto remata Wilson Martins que a autora assume com a mesma autoridade de Machado de Assis e de Joaquim Paço dArcos Assim anulamse as fronteiras entre a realidade e a irrealidade para que a autora circule livremente entre as duas livre na narração de sucessos do dia a dia imaginado como no urdimento de situações que refogem ao terra a terra para esbaterse no puramente psicológico no suspense ou no fantástico Em Seminário dos Ratos depois de vários livros anteriores entre os quais Antes do Baile Verde livro cheio de qualidades basta dizer que nele figura A Caçada alcança a escritora repito aquele mundo definitivo em que a palavra se faz sangue mundo ainda mais verdadeiro que o nosso porque intemporal e como que sem fim ao contrário da nossa pobre mortalidade Fora do conto e do romance Lygia Fagundes Telles publicou também uma espécie de diário ou de memórias e reflexões avulsas sob o título de A Disciplina do Amor Vários desses fragmentos poderiam figurar em alguns dos contos ou romances que ela escreveu como monólogo interior das personagens Alguns parecem mesmo esboços de contos que acabou por não escrever como este O Jardineiro Só colhia as rosas ao anoitecer porque durante o sono elas não sentiam o aço frio da tesoura Uma noite ele sonhou que cortava as hastes de manhã em pleno sol as rosas despertas e gritando na altura do corte das cabeças decepadas Quando ele acordou viu que estava com as mãos sujas de sangue Trechos do discurso de Péricles Eugênio da Silva Ramos na Academia Paulista de Letras A Autora Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo e passou a infância no interior do estado onde o pai o advogado Durval de Azevedo Fagundes foi promotor público A mãe Maria do Rosário Zazita era pianista Voltando a residir com a família em São Paulo a escritora fez o curso fundamental na Escola Caetano de Campos e em seguida ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo onde se formou Quando estudante do préjurídico cursou a Escola Superior de Educação Física da mesma universidade Ainda na adolescência manifestouse a paixão ou melhor a vocação de Lygia Fagundes Telles para a literatura incentivada pelos seus maiores amigos os escritores Carlos Drummond de Andrade Erico Verissimo e Edgard Cavalheiro Contudo mais tarde a escritora viria a rejeitar seus primeiros livros porque em sua opinião a pouca idade não justifica o nascimento de textos prematuros que deveriam continuar no limbo Ciranda de Pedra 1954 é considerada por Antonio Candido a obra em que a autora alcança a maturidade literária Lygia Fagundes Telles também considera esse romance o marco inicial de suas obras completas O que ficou para trás são juvenilidades Quando da sua publicação o romance foi saudado por críticos como Otto Maria Carpeaux Paulo Rónai e José Paulo Paes No mesmo ano fruto de seu primeiro casamento nasceu o filho Goffredo da Silva Telles Neto cineasta e que lhe deu as duas netas Lúcia e Margarida Ainda nos anos 1950 saiu o livro Histórias do Desencontro 1958 que recebeu o prêmio do Instituto Nacional do Livro O segundo romance Verão no Aquário 1963 prêmio Jabuti saiu no mesmo ano em que já divorciada casouse com o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes Em parceria com ele escreveu o roteiro para cinema Capitu 1967 baseado em Dom Casmurro de Machado de Assis Esse roteiro que foi encomenda de Paulo Cezar Saraceni recebeu o prêmio Candango concedido ao melhor roteiro cinematográfico A década de 1970 foi de intensa atividade literária e marcou o início da sua consagração na carreira Lygia Fagundes Telles publicou então alguns de seus livros mais importantes Antes do Baile Verde 1970 cujo conto que dá título ao livro recebeu o Primeiro Prêmio no Concurso Internacional de Escritoras na França As Meninas 1973 romance que recebeu os prêmios Jabuti Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras e Ficção da Associação Paulista de Críticos de Arte APCA Seminário dos Ratos 1977 premiado pelo PEN Clube do Brasil O livro de contos Filhos Pródigos 1978 seria republicado com o título de um de seus contos A Estrutura da Bolha de Sabão 1991 A Disciplina do Amor 1980 recebeu o prêmio Jabuti e o prêmio APCA O romance As Horas Nuas 1989 recebeu o prêmio Pedro Nava de Melhor Livro do Ano Os textos curtos e impactantes passaram a se suceder na década de 1990 quando então é publicado A Noite Escura e Mais Eu 1995 que recebeu o prêmio Arthur Azevedo da Biblioteca Nacional o prêmio Jabuti e o prêmio Aplub de Literatura Os textos do livro Invenção e Memória 2000 receberam os prêmios Jabuti APCA e o Golfinho de Ouro Durante Aquele Estranho Chá 2002 textos que a autora denomina de perdidos e achados antecedeu o seu mais recente livro Conspiração de Nuvens 2007 que mistura ficção e memória e foi premiado pela APCA Em 1998 foi condecorada pelo governo francês com a Ordem das Artes e das Letras mas a consagração definitiva viria com o prêmio Camões 2005 distinção maior em língua portuguesa pelo conjunto da obra Lygia Fagundes Telles conduziu sua trajetória literária trabalhando ainda como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo cargo que exerceu até a aposentadoria Foi ainda presidente da Cinemateca Brasileira fundada por Paulo Emílio Sales Gomes É membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Letras Teve seus livros publicados em diversos países Portugal França Estados Unidos Alemanha Itália Holanda Suécia Espanha e República Checa entre outros com obras adaptadas para tevê teatro e cinema Vivendo a realidade de uma escritora do terceiro mundo Lygia Fagundes Telles considera sua obra de natureza engajada comprometida com a difícil condição do ser humano em um país de tão frágil educação e saúde Participante desse tempo e dessa sociedade a escritora procura apresentar através da palavra escrita a realidade envolta na sedução do imaginário e da fantasia Mas enfrentando sempre a realidade deste país em 1976 durante a ditadura militar integrou uma comissão de escritores que foi a Brasília entregar ao ministro da Justiça o famoso Manifesto dos Mil veemente declaração contra a censura assinada pelos mais representativos intelectuais do Brasil Lygia Fagundes Telles já declarou em uma entrevista A criação literária O escritor pode ser louco mas não enlouquece o leitor ao contrário pode até desviálo da loucura O escritor pode ser corrompido mas não corrompe Pode ser solitário e triste e ainda assim vai alimentar o sonho daquele que está na solidão Retrato da autora feito por Carlos Drummond de Andrade na década de 1970 Copyright 1977 2009 by Lygia Fagundes Telles Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 CAPA E PROJETO GRÁFICO warrakloureiro sobre detalhe de Conversa de Beatriz Milhazes 2000 acrílica sobre tela 150 x 248 cm Coleção particular FOTO DA AUTORA Adriana Vichi PREPARAÇÃO Cristina Yamazaki Todotipo Editorial REVISÃO Valquíria Della Pozza Ana Maria Barbosa ISBN 9788580860245 Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção não se referem a pessoas e fatos concretos e sobre eles não emitem opinião Todos os direitos reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA Rua Bandeira Paulista 702 cj 32 04532002 São Paulo SP Telefone 11 37073500 Fax 11 37073501 wwwcompanhiadasletrascombr