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Carta a justiça Escrever uma carta ela deve conter Um destinatário Possuir no mínimo 3 folhas Desenvolver as ideias de liberdade direito e justiça Entregar até o dia 09 de março Email ricardoniquettiunoescedubr eBookLibris DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA Étienne de La Boétie LCC Publicações Eletrônicas wwwculturabrasilorg Discurso Sobre a Servidão Voluntária 1549 Título original Discours de la servitude volontaire Étienne de La Boétie 15301563 Versão para eBookLibris eBooksBrasil Os textos colocados entre são interpolações Fonte Digital Documento do Editor 2006 Étienne de la Boétie Palavras iniciais Étienne de La Boétie morreu aos 33 anos de idade em 1563 Deixou sonetos traduções de Xenofonte e Plutarco e o Discurso Sobre a Servidão Voluntária o primeiro e um dos mais vibrantes hinos à liberdade dentre os que já se escreveram Toda a sua obra ficou como legado ao filósofo Montaigne 1533 1592 seu amigo pessoal que diante de uma primeira publicação pirata do Discurso em 1571 viuse obrigado a se pronunciar a respeito da Obra que procura minimizar em seus efeitos apodandolhe o epíteto de obra de infância e mero exercício intelectual Montaigne com todo o seu inegável brilho intelectual era um Homem do Estado e disso não escapava Entre muitos pontos importantes e relevantes do Discurso em si ressaltase O poder que um só homem exerce sobre os outros é ilegítimo A preferência pela república em detrimento da monarquia As crenças religiosas são freqüentemente usadas pelas monarquias para manter o povo sob sujeição e jugo Étienne de La Boétie afirma no Discurso a liberdade e a igualdade de todos os homens na dimensão política Evidencia pela primeira vez na história a força da opinião pública Repele todas as formas de demagogia Incursionando pioneiramente pelo que mais tarde ficará conhecido como psicologia de massas informa da irracionalidade da servidão desde o título provocativo da Obra indicada como uma espécie de vício de doença coletiva O Discurso que no século XVI Montaigne considerava difícil prefaciar hoje em dia é ainda tristemente atual O ser humano encontrase em amarras autoinfligidas por toda a parte Como dizia Manuel J Gomes importante tradutor de La Boétie para o português Se em 1600 era tarefa difícil escrever um prefácio a La Boétie hoje não é mais fácil Hoje como nos tempos de La Boétie e Montaigne a alienação é demasiado doce como um refrigerante e a liberdade demasiado amarga porque está demasiado próxima da solidão E da loucura LCC verão de 2004 Discurso Sobre a Servidão Voluntária Étienne de La Boétie Muita gente a mandar não me parece bem Um só chefe um só rei é o que mais nos convém Assim proclamava publicamente Ulisses em Homero Homero Ilíada cap II Teria toda a razão se tivesse dito apenas Muita gente a mandar não me parece bem Deveria para ser mais claro ter explicado que o domínio de muitos nunca poderia ser boa coisa pela razão de o domínio de um só que usurpe o título de soberano ser já assaz duro e pouco razoável em vez disso porém acrescentou Um só chefe um só rei é o que mais nos convém Uma única desculpa terá Ulisses e é a necessidade que teve de recorrer a tais palavras para apaziguar as tropas amotinadas adaptando julgo o discurso às circunstâncias mais do que à verdade Vistas bem as coisas não há infelicidade maior do que estar sujeito a um chefe nunca se pode confiar na bondade dele e só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver Ter vários amos é ter outros tantos motivos para se ser extremamente desgraçado Não quero por enquanto levantar o discutidíssimo problema de saber se as outras formas de governar a coisa pública são melhores do que a monarquia A minha intenção é antes interrogarme sobre o lugar que à monarquia cabe se algum lhe cabe entre as mais formas de governar Porque não é fácil admitir que o governo de um só tenha a preocupação da coisa pública É melhor todavia que esse problema seja discutido separadamente em tratado próprio pois é daqueles que traz consigo toda a casta de disputas políticas Quero para já se possível esclarecer tão somente o fato de tantos homens tantas vilas cidades e nações suportarem às vezes um tirano que não tem outro poder de prejudicálos enquanto eles quiserem suportálo que só lhes pode fazer mal enquanto eles preferem agüentá lo a contrariálo Digno de espanto se bem que vulgaríssimo e tão doloroso quanto impressionante é ver milhões de homens a servir miseravelmente curvados ao peso do jugo esmagados não por uma força muito grande mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustálos visto que é um só e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente Tal é a fraqueza humana temos freqüentemente de nos curvar perante a força somos obrigados a contemporizar não podemos ser sempre os mais fortes Se portanto uma nação é pela força da guerra obrigada a servir a um só como a cidade de Atenas aos trinta tiranos não nos espanta que ela se submeta devemos antes lamentála ou então não nos espantarmos nem lamentarmos mas sofrermos com paciência e esperarmos que o futuro traga dias mais felizes Está na nossa natureza o deixarmos que os deveres da amizade ocupem boa parte da nossa vida É justo amarmos a virtude estimarmos as boas ações ficarmos gratos aos que fazem o bem renunciarmos a certas comodidades para melhor honrarmos e favorecermos aqueles a quem amamos e que o merecem Assim também quando os habitantes de um país encontram uma personagem notável que dê provas de ter sido previdente a governálos arrojado a defendêlos e cuidadoso a guiálos passam a obedecerlhe em tudo e a concederlhe certas prerrogativas é uma prática reprovável porque vão acabar por afastálo da prática do bem e empurrálo para o mal Mas em tais casos julgase que poderá vir sempre bem e nunca mal de quem um dia nos fez bem Mas o que vem a ser isto afinal Que nome se deve dar a esta desgraça Que vício que triste vício é este um número infinito de pessoas não a obedecer mas a servir não governadas mas tiranizadas sem bens sem pais sem vida a que possam chamar sua Suportar a pilhagem as luxúrias as crueldades não de um exército não de uma horda de bárbaros contra os quais dariam o sangue e a vida mas de um só Não de um Hércules ou de um Sansão mas de um só indivíduo que muitas vezes é o mais covarde e mulherengo de toda a nação acostumado não tanto à poeira das batalhas como à areia dos torneios menos dotado para comandar homens do que para ser escravo de mulheres Chamaremos a isto covardia Temos o direito de afirmar que todos os que assim servem são uns míseros covardes É estranho que dois três ou quatro se deixem esmagar por um só mas é possível poderão dar a desculpa de lhes ter faltado o ânimo Mas quando vemos cem ou mil submissos a um só não podemos dizer que não querem ou que não se atrevem a desafiálo Como não é covardia poderá ser desprezo poderá ser desdém Quando vemos não já cem não já mil homens mas cem países mil cidades e um milhão de homens submeteremse a um só todos eles servos e escravos mesmo os mais favorecidos que nome é que isto merece Covardia Ora todos os vícios têm naturalmente um limite além do qual não podem passar Dois podem ter medo de um ou até mesmo dez mas se mil homens se um milhão deles se mil cidades não se defendem de um só não pode ser por covardia A covardia não vai tão longe da mesma forma que a valentia também tem os seus limites um só não escala uma fortaleza não defronta um exército não conquista um reino Que vício monstruoso então é este que sequer merece o nome vil de covardia Que a natureza nega ter criado a que a língua se recusa nomear Disponhamse de um lado cinqüenta homens armados e outros tantos de outro lado ponhamse em ordem de batalha prontos para o combate sendo uns livres e lutando pela liberdade enquanto os outros tentam arrebatála dos primeiros a quais deles por conjectura se atribui a vitória Quais deles irão para a luta com maior entusiasmo os que em recompensa deste trabalho receberão o prêmio de conservar a liberdade ou os que dos golpes que derem ou receberem esperam tãosomente a servidão Os primeiros têm constantemente diante dos olhos a felicidade de sua vida passada a esperança de no porvir a poderem conservar Preocupaos menos o que têm de sofrer no decurso da batalha do que tudo o que vão ter de suportar eles os filhos e toda a posteridade Os outros nada têm que os anime a não ser um pouco de cobiça que é insuficiente para protegê los do perigo e tão pouco ardente que não tardará a extinguirse logo que derramem as primeiras gotas de sangue Nas muito famosas batalhas de Milcíades Leônidas e Temístocles travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem nessas batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar E para desbaratarem nações tão numerosas que em toda a armada grega não se achariam soldados que chegassem para preencherem se tal fosse mister os postos de comandantes desses navios É que em boa verdade o que estava em causa nesses dias gloriosos não era tanto a luta entre gregos e persas como a vitória da liberdade sobre a dominação da razão sobre a cupidez Quantos prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a defendem Mas o que acontece afinal em todos os países com todos os homens todos os dias Quem só de ouvir contar sem o ter visto acreditaria que um único homem tenha logrado esmagar mil cidades privandoas da liberdade Se casos tais acontecessem apenas em países remotos e outros nolos contassem quem não diria que era tudo invenção e impostura Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano não é preciso defendermosnos dele Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servilo Não é necessário tirarlhe nada basta que ninguém lhe dê coisa alguma Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio basta que não faça nada contra si próprio São pois os povos que se deixam oprimir que tudo fazem para serem esmagados pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir É o povo que se escraviza que se decapita que podendo escolher entre ser livre e ser escravo se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo é ele que aceita o seu mal que o procura por todos os meios Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida eu não insistiria mais haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural deixar digamos a condição de alimária e voltar a ser homem Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele limitome a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejála Se basta um ato de vontade se basta desejála que nação há que a considere assim tão difícil Como pode alguém por falta de querer perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue Um bem que uma vez perdido torna para as pessoas honradas a vida aborrecida e a morte salutar Vejase como ateado por pequena fagulha acendese o fogo que cresce cada vez mais e quanto mais lenha encontra tanta mais consome e como sem se lhe despejar água deixando apenas de lhe fornecer lenha a consumir a si próprio se consome perde a forma e deixa de ser fogo Assim são os tiranos quanto mais eles roubam saqueiam exigem quanto mais arruínam e destroem quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo Se nada se lhes der se não se lhe obedecer eles sem ser preciso luta ou combate acabarão por ficar nus pobres e sem nada da mesma forma que a raiz sem umidade e alimento se torna ramo seco e morto Os audazes para que obtenham o que procuram não receiam perigo algum os avisados não recusam passar por problemas e privações Os covardes e os preguiçosos não sabem suportar os males nem recuperar o bem Deixam de desejálo e a força para o conseguirem lhes é tirada pela covardia mas é natural que neles fique o desejo de o alcançarem Esse desejo essa vontade são comuns aos sábios e aos indiscretos aos corajosos e aos covardes todos eles ao atingirem o desejado ficam felizes e contentes Numa só coisa estranhamente a natureza se recusa a dar aos homens um desejo forte Tratase da liberdade um bem tão grande e tão aprazível que perdida ela não há mal que não sobrevenha e até os próprios bens que lhe sobrevivam perdem todo o seu gosto e sabor corrompidos pela servidão A liberdade é a única coisa que os homens não desejam e isso por nenhuma outra razão julgo eu senão a de que lhes basta desejála para a possuírem como se recusassem conquistála por ela ser tão simples de obter Gentes miserandas povos insensatos nações apegadas ao mal e cegas para o bem Assim deixais que vos arrebatem a maior e melhor parte das vossas riquezas que devastem os vossos campos roubem as vossas casas e vo las despojem até das antigas mobílias herdadas dos vossos pais A vida que levais é tal que podeis afirmá lo nada tendes de vosso Mas parece que vos sentis felizes por serdes senhores apenas de metade dos vossos haveres das vossas famílias e das vossas vidas e todo esse estrago essa desgraça essa ruína provêm afinal não dos seus inimigos mas de um só inimigo daquele mesmo cuja grandeza lhe é dada só por vós por amor de quem marchais corajosamente para a guerra por cuja grandeza não recusais entregar à morte as vossas próprias pessoas Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir poder que vós lhe concedestes Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis Onde teria ele mãos para vos bater se não tivesse as vossas Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos Que poder tem ele sobre vós que de vós não venha Como ousaria ele perseguirvos sem a vossa própria conivência Que poderia ele fazer se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos Semeais os vossos frutos para ele pouco depois calcar aos pés Recheais e mobiliais as vossas casas para ele vir saqueálas criais as vossas filhas para que ele tenho em quem cevar sua luxúria Criais filhos a fim de que ele quando lhe apetecer venha recrutálos para a guerra e conduzilos ao matadouro fazer deles acólitos da sua cupidez e executores das suas vinganças Mataivos a trabalhar para que ele possa regalarse e refestelarse em prazeres vis e imundos Enquanto vós definhais ele vai ficando mais forte para mais facilmente poder refrear vos E de todas as ditas indignidades que os próprios brutos se as sentissem não suportariam de todas podeis libertarvos se tentardes não digo libertarvos mas apenas querer fazêlo Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis mas somente que o não apoieis não tardareis a ver como qual Colosso descomunal a que se tire a base cairá por terra e se quebrará Os médicos aconselham a não se tocar com a mão nas chagas incuráveis não é pois sensato que eu dê conselhos a um povo que há muito perdeu a consciência e cuja doença uma vez que ele já não sente dor é evidentemente mortal Temos antes de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a ponto de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural Antes demais eu creio firmemente que se nós vivêssemos de acordo com a natureza e com os seus ensinamentos seríamos naturalmente obedientes ao país submissos à razão e de ninguém escravos Todos os homens por si próprios sem outro conselho que não seja o da natureza guardam obediência ao pai e à mãe quanto à razão discutem muito os acadêmicos e todas as escolas filosóficas se ela nasce ou não conosco De momento penso não errar se crer que há na nossa alma uma semente natural de razão a qual se cultivada com bons conselhos e bons costumes floresce em virtude se pelo contrário é atacada pelos vícios morre de asfixia e aborta Uma coisa é claríssima na natureza tão clara que a ninguém é permitido ser cego a tal respeito e é o fato de a natureza ministra de Deus e governanta dos homens nos ter feito todos iguais com igual forma aparentemente num mesmo molde de forma a que todos nos reconhecêssemos como companheiros ou mesmo irmãos Ao fazer as partilhas dos dons que nos legou deu mais a uns do que a outros certos dons corporais e espirituais mas é igualmente certo que não pretendeu pôrnos neste mundo como em campo fechado nem deu aos mais fortes e aos mais avisados ordem para quais salteadores emboscados no mato e armados dizimarem os mais fracos É de crer isso sim que favorecendo alguns e desfavorecendo outros pretendia dar lugar à fraterna afeição darlhes meios de se manifestar pois se a uns assiste o poder de ajudar os outros tinham necessidade de ser ajudados Esta boa mãe deunos a todos a terra para nela morarmos albergounos a todos numa mesma casa moldounos a todos numa mesma massa para assim todos podermos mirarnos e reconhecernos uns nos outros a todos em comum outorgou o grande dom da voz e da palavra para sermos mais amigos e mais irmãos e pela comum e mútua declaração dos nossos pensamentos estabelecermos a comunhão de nossas vontades E pois ela buscou por todos os meios apertar e estreitar mais fortemente os nós da nossa aliança e sociedade e por todas as formas mostrou mais desejar vernos unidos do que unos não há dúvida de que somos todos companheiros e ninguém poderá jamais admitir que a natureza integrandonos a todos numa sociedade tenha destinado uns para escravos Não importa verdadeiramente discutir se a liberdade é natural provado que esteja ser a escravidão uma ofensa para quem a sofre e uma injúria à natureza que em tudo quanto faz é razoável Não há dúvidas pois de que a liberdade é natural e que pela mesma ordem e de idéias todos nós nascemos não só senhores da nossa alforria mas também com condições para a defendermos Se acaso pusermos isso em dúvida e descermos tão baixo que não sejamos capazes de reconhecer qual o nosso direito e as nossas qualidades naturais vou ter de vos tratar como mereceis e por os próprios animais a darvos lições e a ensinarvos qual é vossa verdadeira natureza e condição Só quem for surdo não ouve o que dizem os animais viva a liberdade Muitos deles morrem quando os apanham Como o peixe que fora da água perde a vida também outros animais se negam a viver sem a liberdade que lhes é natural Se os animais estabelecessem entre si quaisquer grandezas e proeminências fariam creio firmemente da liberdade a sua nobreza Alguns há que dos maiores aos menores ao serem presos opõem resistência com as garras os chifres as patas e o bico demonstrando assim claramente o quanto prezam a liberdade perdida E uma vez no cativeiro dão evidentes sinais do conhecimento que têm da sua desgraça e deixam ver perfeitamente que se sentem mais mortos do que vivos continuando a viver mais para lamentarem a liberdade perdida do que por lhes agradar a servidão O que quer dizer o elefante que depois de se defender até mais não poder sentindose impotente e prestes a ser apanhado espeta as presas nas árvores e as quebra assim mostrando o grande desejo que tem de continuar livre como nasceu Assim dá a entender que deseja negociar com os caçadores dandolhes os dentes para que o soltem entregandolhes o marfim em penhor da liberdade Começamos a domesticar o cavalo desde o momento em que ele nasce preparamolo para nos servir e não podemos glorificarnos de que uma vez domado ele não morde o freio e não se empina quando o esporeamos como se assim parece quisesse mostrar à natureza e testemunhar por essa forma que serve não de boa vontade mas por ser obrigado a servir Que dizer perante isto Que Até os bois sob o jugo andam gemendo E na gaiola as aves vão chorando como escrevi no tempo em que versejava à francesa não receio escrevendote em particular citar versos meus coisa que nunca faço como tens mostrado gostar deles não me acusarás de ser pretensioso Todas as coisas que têm sentimento sentem a dor da sujeição e suspiram pela liberdade as alimárias feitas para servirem o homem não são capazes de se habituar à servidão sem protestarem desejos contrários A que azar pois se deverá que o homem livre por natureza tenha perdido a memória da sua condição e o desejo de a ela regressar Há três espécies de tiranos Refirome aos maus príncipes Chegam uns ao poder por eleição do povo outros por força das armas outros sucedendo aos da sua raça Os que chegam ao poder pelo direito da guerra portamse como quem pisa terra conquistada Os que nascem reis as mais das vezes não são melhores nascidos e criados no sangue da tirania tratam os povos em quem mandam como se fossem seus servos hereditários e consoante a compleição a que são mais atreitos avaros ou pródigos assim fazem do reino o que fazem com outra herança qualquer Aquele a quem o povo deu o Estado deveria ser mais suportável e sêloia a meu ver se desde o momento em que se vê colocado em altos postos e tomando o gosto à chamada grandeza não decidisse ocupálos para todo o sempre O que geralmente acontece é tudo fazerem para transmitirem aos filhos o poder que o povo lhes concedeu E tão depressa tomam essa decisão por estranho que pareça ultrapassam em vício e até em crueldade os outros tiranos para conservarem a nova tirania não acham melhor meio do que aumentar a servidão e afastar tanto dos súditos a idéia de liberdade que eles tendo embora a memória fresca começam a esquecerse dela Assim para dizer toda a verdade encontro entre eles alguma diferença mas não vejo por onde escolher Sendo diversos os modos de alcançar o poder a forma de reinar é sempre idêntica Os eleitos procedem como quem doma touros os conquistadores como quem se assenhoreia de uma presa a que têm direito os sucessores como quem lida com escravos naturais Se acaso hoje nascesse um povo completamente novo que não estivesse acostumado à sujeição nem soubesse o que é a liberdade que ignorasse tudo sobre uma e outra coisa incluindo os nomes e se lhe fosse dado a escolher entre o ser sujeito ou o viver a liberdade qual seria a escolha desse povo Não custa a responder que prefeririam obedecer à razão em vez de servirem a um homem a não ser que se tratasse dos israelitas os quais sem ninguém os obrigar e sem necessidade elegeram um tirano I Samuel capítulo 8 mas nunca leio a história de tal povo sem uma grande decepção e alguma fúria tanta que quase me alegro por lhe terem acontecido tantas desgraças Uma coisa é certa porém os homens enquanto neles houver algo de humano só de deixam subjugar se foram forçados ou enganados enganados pelas armas estrangeiras como Esparta e Atenas pelas forças de Alexandre ou pelas facções como aconteceu quando o governo de Atenas caiu nas mãos de Pisístrates Pisístrates 600 527 foi por três vezes tirano de Atenas Da primeira vez foi derrubado por Licurgo Da segunda por Hermódio e Aristogíton Devese contudo a Pisístrates a compilação das obras de Homero como a Ilíada e a Odisséia Muitas vezes perdem a liberdade porque são levados ao engano não são seduzidos por outrem mas sim enganados por si próprios Assim o povo de Siracusa cidade capital da Sicília denominada hoje Saragoça aqui Boétie se equivoca apertado pelas guerras sem olhar a nada a não ser o perigo elevou ao poder Dionísio Primeiro e entregoulhe o comando do exército Tantos poderes lhe foi dando que o velhaco uma vez vitorioso como se tivesse triunfado não sobre os inimigos mas sobre os cidadãos subiu de capitão a rei e de rei a tirano Incrível coisa é ver o povo uma vez subjugado cair em tão profundo esquecimento da liberdade que não desperta nem a recupera antes começa a servir com tanta prontidão e boa vontade que parece ter perdido não a liberdade mas a servidão É verdade que a princípio serve com constrangimento e pela força mas os que vêm depois como não conheceram a liberdade nem sabem o que ela seja servem sem esforço e fazem de boa mente o que seus antepassados tinham feito por obrigação Assim é os homens nascem sob o jugo são criados na servidão sem olharem para lá dela limitamse a viver tal como nasceram nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer aceitam como natural o estado que acharam à nascença E todavia não há herdeiro tão pródigo e desleixado que uma vez não passe os olhos pelos livros de registros para ver se goza de todos os direitos hereditários e se não foi esbulhado nos seus direitos ele ou o seu predecessor Mas o costume que sobre nós exerce um poder considerável tem uma grande orça de nos ensinar a servir e tal como de Mitrídates se diz que aos poucos foi se habituando a beber veneno a engolir tudo até que deixamos de sentir o amargor do veneno da servidão Não pode negarse que a natureza tem força para nos levar aonde ela queira e fazer a nós livres ou escravos mas importa confessar que ela tem sobre nós menos poder do que o costume e que a natureza por muito boa que seja acaba por se perder se não for tratada com os cuidados necessários e o alimento que comemos transmitenos muito de seu faça a natureza o que fizer As sementes do bem que a natureza em nós coloca são tão pequenas e inseguras que não agüentam o embate do alimento contrário Não se mantêm facilmente estragamse desfazem se reduzemse a nada Como acontece com as árvores de fruto possuidoras de uma natureza própria que conservarão enquanto as deixarem mas passarão a ter outra e a dar frutos estranhos não os delas a partir do momento em que sejam enxertadas As ervas têm cada uma a sua propriedade a sua natureza e a sua singularidade próprias mas o frio o tempo a terra ou a mão do jardineiro acrescentamlhe ou tiramlhe muitas das suas virtudes Vêse num sítio uma planta que outro sítio não reconhece Vejamse os venezianos um punhado de pessoas livres tanto que até o pior de todos se recusaria a ser rei nascidos e criados de tal modo que a grande ambição deles é defenderem ciosamente a liberdade de cada um educados desde o berço nestes princípios não aceitariam todas as outras felicidades da terra se para isso tivessem de perder a menor de suas liberdades Vejamse os venezianos repito e reparese depois nos que habitam as terras daquele a que chamamos GrãoSenhor gente que nada mais faz do que servilo e que para o manterem no poder dão a própria vida Diria quem visse uns e outros que possuem todos a mesma natureza Não julgaria antes que saíra de uma cidade de homens para entrar num curral de animais Licurgo reformador de Esparta criara dizse dois cães que eram irmãos alimentados com o mesmo leite um deles habituado a ficar na cozinha e o outro acostumado a correr pelo campo ao som da trompa e da corneta querendo mostrar ao povo lacedemônio que os homens são o que a educação faz de cada um colocou os dois cães no meio da praça e no meio deles uma sopa e uma lebre Um correu para o prato e o outro para a lebre Muito embora disse ele fossem irmãos Lembrarei com prazer um dito dos favoritos de Xerxes senhor da Pérsia a respeito dos espartanos Quando Xerxes se aparelhava para conquistar a Grécia mandou embaixadores às cidades gregas a pedirlhes água e terra A Esparta e Atenas não os enviou porque os enviados de seu pai Dario que lá tinha ido fazer igual pedido tinhamnos os espartanos e atenienses lançado em covas e outros em poços dizendolhes que tirassem terra e água à vontade e que fossem levála a seu príncipe Nenhum daqueles povos tolerava que sequer por palavras alguém lhes tocasse na liberdade Por assim terem feito viram os espartanos que tinham incorrido no ódio dos próprios deuses especialmente no de Taltíbio deus dos arautos Para os apaziguarem mandaram a Xerxes dois cidadãos para que fossem à presença dele e ele os tratasse como lhe aprouvesse tirando assim a desforra dos embaixadores que seu pai enviara e tinham sido mortos Dois espartanos um de nome Specto e outro Bulis ofereceramse voluntariamente para esta missão Foram e pelo caminho entraram no palácio de um persa chamado Gidarno lugar tenente do rei em todas as cidades do litoral da Ásia Este os recebeu com muita honraria E como fossem conversando sobre vários assuntos perguntoulhes que motivos tinham para recusarem a amizade do rei Podeis crer espartanos dizialhes jurovos que o rei sabe honrar quem o merece e se vos tornardes seus súditos vereis que assim é Se aceitardes e ele vos conhecer vereis como será cada um de vós nomeado imediatamente senhor de uma cidade da Grécia Ao que lhe responderam os lacedemônios Ruim conselho é o que nos dás Gidarno O bem que nos prometes já o experimentaste mas nada sabes do que nós já possuímos gozas do favor do rei mas nada sabes da liberdade do gosto que ela tem da sua doçura Se a conhecesses havias de nos aconselhar a defendêla não só com lança e escudo mas até com unhas e dentes O espartano é que tinha razão mas um e outro falavam de acordo com o que tinham aprendido Não era possível ao persa avaliar a liberdade pois nunca a tivera nem ao lacedemônio aceitar a sujeição depois de ter conhecido o gosto da liberdade Catão de Útica quando era ainda menino de escola entrava muitas vezes na casa do ditador Sila cujas portas lhe estavam abertas não só por pertencer a uma família nobre como até por ser parente próximo de Sila Acompanhavao sempre o preceptor como era costume entre os filhos de boas famílias Deu ele então conta de que em casa de Sila na presença deste ou por sua ordem muitos cidadãos eram presos e condenados eram uns banidos e outros estrangulados decretavase a confiscação dos bens e era perdida a cabeça de muitos Ou seja mais parecia o paço do tirano do que a morada do governador da cidade era menos um tribunal de justiça do que uma espelunca da tirania Perguntou o nobre infante ao preceptor Darmeeis um punhal Metêloei sob a toga e como entro muitas vezes nos aposentos de Sila antes de ele acordar o meu braço há de ter força suficiente para libertar o povo Este é um dito digno de Catão Assim já se revelava digno da morte que teve Mas se porventura a história não referisse o nome dele nem o local seria facílimo adivinhar que se trata de um romano e natural de Roma da verdadeira Roma quando ela era livre Mas para que dizer mais Em boa verdade não creio que o país o a terra importem muito Em todos os países em todos os climas sabe mal a sujeição e é gostosa a liberdade Dignos de dó são os que nasceram com a canga no pescoço Devem ser desculpados e perdoados pois nunca tendo visto sequer a sombra da liberdade e ninguém lha tendo mostrado não sabem como é mal serem escravos Há países em que o Sol aparece de modo diverso daquele a que estamos habituados depois de brilhar durante seis meses seguidos deixaos ficar mergulhados na escuridão nunca os visitando no meio do ano se os que nasceram durante essa longa noite nunca tivessem ouvido falar do dia seria de espantar que eles se habituassem às trevas em que nasceram e nunca desejassem a luz Nunca se lastima o que não se conhece só se tem desgosto depois de ter gozado o prazer depois de se ter conhecido o bem e se recordar a alegria passada É natural no homem o ser livre e o querer sêlo mas está igualmente na sua natureza ficar com certos hábitos que a educação lhe dá Digase pois que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém pela educação e pelo costume mas da essência da sua natureza é o que lhe vem da mesma natureza pura e não alterada assim a primeira razão da servidão voluntária é o hábito provamno os cavalos sem rabo que no princípio mordem o freio e acabam depois por brincar com ele e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os apertam Afirmam que sempre viveram na sujeição que já os pais assim tinham vivido Pensam que são obrigados a usar freio provamno com exemplos e com o fato de há muito serem propriedade daqueles que os tiranizam Mas a verdade é que os anos não dão o direito de se praticar o mal antes agravam a injúria Sempre haverá umas poucas almas melhor nascidas do que outras que sentem o peso do jugo e não evitam sacudilo almas que nunca se acostumam à sujeição e que à imitação de Ulisses o qual por mar e terra procurava avistar o fumo de sua casa nunca se esquecem dos seus privilégios naturais nem dos antepassados e de sua antiga condição São esses dotados de claro entendimento e espírito clarividente não se limitam como o vulgo a olhar só para o que têm adiante dos pés olham também para trás e para frente e estudando bem as coisas passadas conhecem melhor o futuro e o presente Além de terem um espírito bem formado tudo fazem para aperfeiçoálo pelo estudo e pelo saber Esses ainda quando a liberdade se perdesse por completo e desaparecesse para sempre do mundo não deixariam de imaginála de sentila e saborear para eles a servidão por muito bem disfarçada que lhes aparecesse nunca seria coisa boa O GrãoTurco teve perfeita consciência de que os livros e a doutrina mais do que qualquer outra coisa dão aos homens a capacidade de se conhecerem e de odiarem a tirania Sabese que nas suas terras não há mais sábios do que os que lhe convém a ele Acontece que o zelo e a dedicação dos que apesar de tudo prezam a liberdade não têm efeito algum pois mesmo que sejam em grande número não se podem conhecer uns aos outros A tirania subtrailhes toda e qualquer liberdade de agir de falar e quase de pensar Têm de guardar só para eles as suas fantasias Razão tinha Momo para zombar quando censurou o homem forjado por Vulcano por não lhe ter feito no coração uma janela através da qual pudessem ser vistos os seus pensamentos É sabido que Brutus e Cássio ao planejarem a libertação de Roma ou antes do mundo inteiro não quiseram que Cícero o maior zelador do bem público entrasse na conspiração julgaram que tinha um coração demasiado débil para tal façanha confiavam na vontade dele mas não estavam muito seguros da sua coragem Quem estudar os efeitos da antiguidade e as velhas crônicas descobrirá que vendose o país mal governado e maltratado e tomandose a decisão firme de libertálo poucos ou nenhum deixaram de conseguilo tiveram nisso a ajuda da própria liberdade ansiosa por renascer Harmódio Aristogíton Trasíbulo Brutus oVelho Valério e Díon executaram cabalmente o que valorosamente planejaram Em casos assim a sorte quase nunca falta a quem quer o bem O jovem Brutus e Cássio derrubaram a servidão e repuseram a liberdade tendo por isso morrido mas não desonrosamente Desonroso seria dizer que foi desonrosa a vida ou a morte desses jovens Tristeza e desgraça foram a ruína da república que viria a ser enterrada com eles As conjuras que depois houve contra os imperadores romanos foram todas atos de gente ambiciosa e não devemos lamentar as derrotas que sofreram era evidente que não queriam derrubar mas arruinar a coroa pretendiam expulsar o tirano e manter a tirania Não é para mim desejável que eles tivessem triunfado e aprazme que pelo exemplo tenham mostrado com não se deve abusar do sagrado nome da liberdade para levar a cabo ruins empreendimentos Mas voltando ao assunto principal de que me afastei a primeira razão que leva os homens a servirem de boamente é o terem nascidos e sido criados na servidão A esta somase outra que é a de sob a tirania os homens se tornarem covardes e efeminados Nisso concordo com Hipócrates pai da medicina que assim afirmou e escreveu num de seus livros intitulado Das Doenças Este homem tinha o coração no lugar e bem o demonstrou quando o rei quis atraílo para junto de si com muitas dádivas e oferendas respondeulhe francamente que teria muitos escrúpulos em tratar e curar os bárbaros que queriam matar os gregos e de pôr a sua arte a serviço de um rei que pretendia escravizar a Grécia A carta que lhe mandou pode ainda hoje verse entre as suas outras obras e constituirá para todo o sempre uma prova do seu bom coração e de sua natureza nobre Com a perda da liberdade perdese imediatamente a valentia As pessoas escravizadas não mostram no combate qualquer ousadia ou intrepidez Vão para o castigo como que manietadas e entorpecidas como quem vai cumprir uma obrigação E não sentem arder no coração o fogo da liberdade que faz desprezar o perigo e dá ganas de comprar com a morte ao lado dos companheiros a honra da glória Entre homens livres todos disputam invejosamente quem há de ser o primeiro a servir o bem comum todos desejam ter o seu quinhão no mal da derrota ou no bem da vitória Mas as pessoas escravizadas além desta falta de valor na guerra perdem também a energia em todo o resto têm o coração abatido e mole e não são capazes de grandes ações Os tiranos o sabem e à vista deste vício tudo fazem para piorálo Xenofonte historiador grave e da melhor cepa entre os gregos em um livro fez Simônides falar com Hierão rei de Siracusa sobre as misérias dos tiranos É um livro eivado de bons costumes e graves argumentos e a meu ver escrito com muita graça Bom seria que todos os tiranos que já houve pusessem diante dos olhos e dele se servissem como de um espelho Não creio que deixassem de ver nele todas as suas verrugas e não se envergonhassem de todas as suas manchas Conta no referido tratado o tormento por que passam os tiranos que por fazerem mal a todos a todos devem temer Diz entre outras coisas que os maus reis recorrem a estrangeiros para fazerem a guerra subornamnos e não se atrevem a meter armas nas mãos dos próprios súditos a quem ofenderam Reis houve alguns até franceses mais outrora do que nos dias de hoje que contrataram para a guerra mais de uma nação estrangeira com intenção de preservarem os seus por acharem que não era perdido o dinheiro gasto em defesa das pessoas Era o que dizia Cipião o grande Africano julgo para quem valia mais defender a vida de um cidadão do que desbaratar cem inimigos Mas não há dúvida alguma de que o tirano se julga absolutamente seguro e só se preocupa quando percebe que já não tem a seu serviço um único homem de valor Com razão se lhe poderá dizer nessa altura o que Trasão em Terêncio se gloria de ter dito ao domador de elefantes Tão bravo vos hei mostrado Que sois das bestas criado Mas esse estratagema com que os tiranos humilham os súditos está mais do que em qualquer outro lado explicitado no que Ciro fez aos lídios depois de se ter apoderado de Sardes capital da Lídia quando aprisionou o riquíssimo rei Creso e o levou cativo Trouxeramlhe a notícia de que os de Sardes se tinham revoltado Terlheia sido fácil dominálos Não desejando saquear uma tão bela cidade nem querendo destacar para lá um exército que a vigiasse recorreu a um outro expediente Fundou nela bordéis tabernas e jogos públicos e publicou um decreto que obrigava os habitantes a freqüentálos Tão bons resultados teve esta guarnição que foi desnecessário daí em diante levantar a espada contra os lídios Os desgraçados divertiramse a inventar toda a casta de jogos de tal forma que a palavra latina usada para significar passatempos é a palavra ludi que vem de Lydi lídios Nem todos os tiranos foram tão explícitos no seu desejo de efeminarem os homens mas o que este ordenou formalmente foi em grande parte realizado de forma velada É muito próprio do vulgo mormente o que pulula nas cidades desconfiar de quem o estima e ser ingênuo para com aqueles que o enganam Atrair o pássaro com o apito ou o peixe com a isca do anzol é mais difícil que atrair o povo para a servidão pois basta passarlhes junto à boca um engodo insignificante É espantoso como eles se deixam levar pelas cócegas Os teatros os jogos as farsas os espetáculos as feras exóticas as medalhas os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão preço da liberdade instrumentos da tirania Deste meio desta prática destes engodos se serviam os tiranos para manterem os antigos súditos sob o jugo Os povos assim ludibriados achavam bonitos estes passatempos divertiam se com o vão prazer que lhes passava diante dos olhos e habituavamse a servir com simplicidade igual se bem que mais nociva à das crianças que aprendem a ler atraídas pelas figuras coloridas dos livros iluminados Os tiranos romanos decretaram também na celebração freqüente das decenálias públicas para as quais atraiam a canalha que põe acima de tudo os prazeres da boca Nem o mais esclarecido de todos eles trocaria a malga da sopa pela liberdade da república de Platão Os tiranos ofereciam o quarto de trigo o sesteiro de vinho e o sestércio E os vivas ao rei eram então coisa triste de ouvir Não davam conta os néscios de que recuperavam dessa forma parte do que era seu e que não podia o tirano darlhes coisa que não lhes tivesse furtado antes O que hoje ganhava o sestércio o que se fartava de comer no festim público louvando a grande liberalidade de Tibério e Nero era no dia seguinte obrigado a entregar os seus haveres à avareza os filhos da luxúria e o próprio sangue à crueldade daqueles magníficos imperadores e faziao sem dizer palavra mudo como uma pedra quedo como um cepo O povo sempre foi assim É perante o prazer que honestamente não pode atingir aberto e dissoluto e face ao agravo e à dor que honestamente não deveria sofrer insensível Não sei hoje em dia de pessoa alguma que ao ouvir falar de Nero não trema só com o nome de tão vil monstro de tão hedionda e imunda besta Pode porém dizerse que após a sua morte vil tanto quanto foi a sua vida o povo romano ficou com tanta pena por se lembrar dos seus jogos e festins que pouco faltou para vestir luto Assim o escreveu Cornélio Tácito autor dos melhores e mais graves e só pode estranhar o fato quem não conheça bem o que o povo fez após a morte de Júlio César que tinha abolido as leis e a liberdade Achavam que era um homem sem valor creio mas louvaram muito a sua humanidade que afinal foi tão nociva como a crueldade mais selvagem de todos os tiranos Em boa verdade a sua peçonhenta doçura serviu só para adoçar a servidão que impôs ao povo romano Mas depois de morto o dito povo que tinha ainda na boca o sabor dos banquetes e a recordação das suas prodigalidades queimou para honrálo e incinerálo todos os bancos da praça edificoulhe uma coluna como a um verdadeiro pai do povo assim rezava a inscrição no capitel e prestoulhe mais honrarias após a morte do que a qualquer outro homem à exceção talvez dos que o mataram Os imperadores romanos não deixavam de tomar sempre o título de tribuno do povo seja porque seu cargo era tido na conta de santo e sagrado seja porque havia sido estabelecido para se defenderem do povo e estarem sob o favor do estado Deste modo tinham por certo que o povo lhes daria toda a confiança tendo em maior consideração o título do que os atos deles Não procedem melhor hoje em dia os que sempre que cometem aleivosias incluindo as mais graves fazemnas acompanhar de discursos sobre o bem comum e a utilidade pública Não ignoras Longa os considerandos de que habilmente eles costumam lançar mão Mas na maioria das vezes não há habilidade que chegue para cobrir tanto despudor Os reis assírios e depois deles os medos só apareciam em público o mais tarde possível ao anoitecer para a populaça julgar que eles tinham algo de sobrehumano assim iludindo as gentes propensas ao devaneio e amigas de imaginar aquilo que não vêem claramente visto Foi assim que as nações que durante longos anos pertenceram ao império sírio se habituaram com tal mistério a servir e serviam tanto mais quanto não sabiam quem era o soberano e todos o respeitavam e temiam sem nenhum deles o ter visto Os primeiros reis do Egito esses nunca se mostravam em público sem levarem um ramo ou uma luz na cabeça e mascaravamse como saltimbancos coisa tão estranha de ver que os súditos se enchiam de respeito e veneração por eles e havia gente tão doida e tão submissa que se prestava a tal comédia em vez de com ela se rir Faz pena ouvir comentar as artimanhas a que os tiranos de antigamente recorriam para consolidarem as suas tiranias e o modo como de coisas somenos tiravam grande partido Tinham compreendido ser possível fazerem o que quisessem de um povo que se deixava apanhar na rede por muito frágil que ela fosse um povo tão fácil de enganar e submeter que quanto mais dele zombavam mais se rebaixava E que direi daquela outra patranha a que os povos antigos sempre deram grande crédito Acreditaram de fato que o dedo grande do pé de Pirro rei dos epirotas fazia milagres e curava as doenças do baço Acreditavam na lenda de que o dito dedo após a cremação do corpo de Pirro ficaria inteiro no meio das cinzas Era o próprio povo que forjava as mentiras em que posteriormente acreditava Muitos assim o escreveram e pelo modo como o fizeram é patente que se limitaram a reunir o que ouviam dizer nas cidades entre o povo miúdo Vespasiano no regresso da Assíria passando por Alexandria a caminho de Roma tomar o governo do Império teria realizado muitos milagres Punha os coxos a andar dava vista aos cegos e obrava muitas outras façanhas em que só podia acreditar quem fosse mais cego do que aqueles a quem pretensamente curava Até os mesmos tiranos se espantavam com a forma como os homens podem suportar um homem que lhes faz mal utilizavam por isso o disfarce da religião e se possível tomavam o aspecto de certas divindades disso se servindo para protegerem a má vida que levavam Se dermos credo à Sibila de Virgílio e à sua descrição do inferno Salmoneu por ter zombado dos deuses e vestido a indumentária de Júpiter está agora no fundo do inferno a receber o castigo que merece As penas vi cruéis e penetrantes De Salmoneu soberbo que tanto erra De Júpiter Tonante o raio horrendo E do Olimpo os trovões contrafazendo De quatro frisões este conduzido Uma tocha acendida meneando Pelos povos de Grécia ia atrevido E pelo meio de Elides triunfando O culto aos altos deuses só devido Pedia mentecapto que rodando Pela ponte no coche miserável Fingia a chuva e o raio imitável Mas de uma nuvem densa um raio horrendo Vibrando irado o padre onipotente O derrubou com ímpeto tremendo Não com fumoso raio ou tocha ardente Eneida Virgílio Cap VI Se este cujo crime foi fazer de tolo padece hoje tais tormentos no inferno é de crer que merecem muito pior os que abusaram da religião para fins ruins Os nossos semearam pela França sapos flores de lis a ampola e a oriflama Pela parte que mais me cabe não ponho em dúvida que os nossos maiores e nós não temos razão de queixa pois sempre tivemos reis bons em tempo de paz valorosos na guerra reis que embora sendoo de nascença parecem ter sido não criados pela natureza como os outros mas eleitos por Deus Todopoderoso antes de tomarem nas mãos as rédeas do governo e a guarda do reino Ainda que assim não fosse não poria em dúvida a verdade contada pelas nossas histórias nem as discutiria com vistas a rebaixar a nossa bela nação e deslustrar a nossa poesia francesa a qual mais do que remoçada está hoje completamente renovada graças aos nossos Ronsard Baïf e Du Bellay que fizeram evoluir a nossa língua a pontos ouso esperálo de os gregos e latinos não serem em nada superiores a não ser quiçá no direito de antiguidade E seria da minha parte grande ofensa à nossa métrica uso de boa mente a palavra e não me desagrada que tornada embora por muitos mecânica tem muita gente capaz de enobrecêla e de restituíla à sua honra primitiva seria digo grande ofensa subtrairlhe os belos contos do rei Clóvis nos quais julgo ver despontar fácil e elegantemente a veia do nosso Ronsard e da sua Francíada Pressinto o seu alcance reconheço lhe a graça e finura de espírito Tem arte para fazer da oriflama o que os romanos fizeram das ancilas como diz Virgílio E os escudos do céu jazendo em terra Erguerá a nossa ampola tanto quanto os atenienses o cesto de Eríctono e as nossas armas serão faladas tanto quanto o foi a oliveira que ainda hoje se encontra na torre de Minerva Seria de fato ultrajante renegar os nossos livros e desdizer os nossos poetas Mas voltando ao assunto de que sem querer me afastei quem mais do que os tiranos tem conseguido para sua segurança habituar o povo não só à obediência e à servidão mas até à devoção Tudo pois o que até aqui disse sobre o hábito de as pessoas serem voluntariamente escravas aplicase apenas às relações entre os tiranos e a arraia miúda e embrutecida Passarei agora a um ponto que a meu ver constitui o segredo e a mola da dominação o apoio e o alicerce da tirania Quem pensar que as alabardas dos guardas e das sentinelas protegem o tirano está na minha opinião muito enganado usamnos creio mais por formalidade e como espantalho do que por lhes merecerem a confiança Os arqueiros vedam a entrada no paço aos pouco hábeis aos que não têm meios não aos bem armados e aos façanhudos Dos imperadores romanos se pode dizer que foram menos os que escaparam de qualquer perigo por intervenção dos arqueiros do que os que pelos próprios guardas foram mortos Não são as hordas de soldados a cavalo não são as companhias de soldados peões não são as armas que defendem o tirano Parece à primeira vista incrível mas é a verdade São sempre quatro ou cinco os que estão no segredo do tirano são esses quatro ou cinco que sujeitam o povo à servidão Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos foram sempre esses os que lograram aproximarse dele ou ser por ele convocados para serem cúmplices das suas crueldades companheiros dos seus prazeres alcoviteiros suas lascívias e com ele beneficiários das rapinas Tal é a influência deles sobre o caudilho que o povo tem de sofrer não só a maldade dele como também a deles Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração do dinheiro para que eles ocultem as suas avarezas e crueldades para serem seus executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça E abaixo de todos estes vêm outros Quem queira perder tempo a desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mil ou cem milhões agarrados à corda do tirano tal como em Homero Júpiter se gloria de que puxando a corda todos os deuses virão atrás Tal cadeia está na origem do crescimento do Senado no tempo de Júlio do estabelecimento de novos cargos e das eleições de ofícios que não são de modo algum uma reforma na justiça mas novo apoio à tirania E pelos favores ganhos e lucros que os tiranos concedem chegase a isto são quase tantas pessoas a quem a tirania parece proveitosa como as que prezam a liberdade Dizem os médicos que havendo no nosso corpo uma parte afetada é nela que naturalmente se reúnem os humores malignos da mesma forma quando um rei se declara tirano tudo quanto é mau a escória do reino não me refiro aos larápios e outros desorelhados que no conjunto da república não fazem bem ou mal algum os que são ambiciosos e avarentos todos se juntam à volta dele para apoiaremno para participarem do saque e serem outros tantos tiranetes logo abaixo do tirano É o caso dos grandes ladrões e corsários famosos Há uns que exploram o país e assaltam os viajantes estão uns de emboscada e outros à espreita uns chacinam outros saqueiam e havendo muito embora alguns mais proeminentes uns que são criados e outros chefes de bando todos afinal se sentem donos senão do espólio principal pelo menos de parte dele Contase que os piratas sicilianos não só se juntaram em tão grande número que foi mister enviar contra eles Pompeu Magno como também conseguiram estabelecer alianças com algumas belas cidades e grandes praças fortes em cujos portos ancoravam com toda a segurança no regresso do corso dandolhes em recompensa uma parte dos bens que rapinavam O tirano submete a uns por intermédio dos outros É assim protegido por aqueles que se algo valessem antes devia recear e dá razão ao adágio que diz ser a lenha rachada com cunhas feitas da mesma lenha Vejamse os arqueiros os guardas e porta estandartes que do tirano recebem não poucos agravos Mas os desgraçados banidos por Deus e pelos homens suportam de boa mente o mal e descarregam depois esse mal não naquele que os maltrata mas nos que são como ele maltratados e não têm defesa À vista dos que servilmente giram em redor do tirano a executar as suas tiranias e a oprimir o povo fico muitas vezes espantado com a maldade deles e sinto igualmente pena de tanta estupidez Porque em boa verdade o que fazem eles ao acercaremse do tirano senão afastaremse da liberdade darem por assim dizer ambas as mãos à servidão e abraçarem a escravatura Ponham eles algum freio à ambição renunciem um pouco à avareza olhem depois para si próprios vejamse bem e perceberão claramente que os camponeses os servos que eles espezinham e tratam como escravos são em comparação com eles livres e felizes O camponês e o artesão embora servos limitamse a fazer o que lhes mandam e feito isso ficam quites Os que giram em volta do tirano e mendigam seus favores não se poderão limitar a fazer o que ele diz têm de pensar o que ele deseja e muitas vezes para ele se dar por satisfeito têm de lhe adivinhar os pensamentos Não basta que lhe obedeçam têm de lhe fazer todas as vontades têm de se matar de trabalhar nos negócios dele de ter os gostos que ele tem de renunciar à sua própria pessoa e de se despojar do que a natureza lhes deu Têm de se acautelar com o que dizem com as mínimas palavras os mínimos gestos com o modo como olham não têm olhos nem pés nem mãos têm de consagrar tudo ao trabalho de espiar a vontade e descobrir os pensamentos do tirano Será isto viver feliz Será isto vida Haverá no mundo coisa mais insuportável do que isto Não me refiro sequer a homens bem nascidos mas sim a quem tenha o sentido do bem comum ou para mais não dizer cara de homem Haverá condição mais miserável do que viver assim sem ter nada de seu sujeitando a outrem a liberdade o corpo a vida Fazem tudo o que fazem para ganharem fortuna Como se pudessem ganhar alguma coisa de seu quando da sua própria pessoa não podem dizer que seja sua Como se fosse possível na presença do tirano alguém possuir o que quer que seja eles fazem tudo para acumularem riquezas e não se lembram de que são eles que lhe dão a força para roubar tudo a todos não deixando a ninguém nada de seu Vêem que é o ter que mais sujeita os homens à crueldade que não há para o tirano crime mais digno de morte do que a posse de quaisquer bens que ele só quer possuir riquezas que rouba aos ricos que se apresentam diante dele como num matadouro para que ele os veja bem recheados e ornados e deles tenha inveja Estes favoritos deveriam lembrarse menos dos poucos que no convívio com o tirano ganharam fortunas do que dos muitos que tendo acumulado assim alguns haveres acabaram por perder os bens e a vida Bom será pensar que se alguns poucos ganharam riquezas pouquíssimos foram os que as conservaram Percorreramse as histórias antigas pense se nas de fresca data e se verá claramente quão grande é o número dos que ganhando as boas graças dos príncipes com falsidades e tendo recorrido à maldade ou abusado da simplicidade deles acabaram por ser aniquilados pelos mesmos príncipes os quais tão facilmente quanto os tinham elevado viram que não podiam conserválos Entre o grande número de pessoas que algum dia viveram nas cortes dos maus reis poucos ou nenhum escaparam de sentir em si a crueldade do tirano a quem tinham acirrado contra os outros Tendo o mais das vezes enriquecido à custa da proteção deles com os despojos dos outros foram eles que depois enriqueceram os outros com seus próprios despojos As próprias pessoas de bem se acaso as há ao redor do tirano e gozam das suas graças enquanto nelas brilha a virtude e a integridade que vistas de perto até aos maus inspiram respeito essas pessoas de bem não ficarão muito tempo sem perceber o mal que os outros sofrem e aprenderão às suas custas os malefícios da tirania Sêneca Burro Trázeas esse trio de pessoas de bem que tiveram a pouca sorte de viver perto do tirano e a missão de tratar dos seus negócios foram todos por ele estimados e benquistos um deles fora seu preceptor e tinha como penhor da amizade e educação que lhe dera ora todos eles testemunharam pela sua morte cruel quão pouca confiança merecem os tiranos Que amizade afinal pode esperarse daquele cujo coração é tão duro que odeia o próprio reino que em tudo lhe obedece Que por não conseguir fazerse amar se empobrece e destrói seu império Poderá dizerse que todos os que referi incorreram em grandes desgraças por terem sido virtuosos mas olhemos também para o resto do séqüito do tirano e veremos que todos quantos obtiveram os seus favores e os mantiveram por maldade acabaram por não durar muito Onde se ouviu falar de amor mais dedicado de afeto mais duradouro onde é que já se viu homem mais obstinadamente preso a uma mulher do que ele estava a Pompéia a quem afinal envenenou Agripina mãe de Nero matara o marido Cláudio para por o filho no trono Fezlhe todas as vontades não se poupou a trabalhos para lhe agradar Ora foi esse mesmo filho por ela gerado e feito imperador foi ele que depois de muitas vezes debalde o tentar acabou por lhe tirar a vida e ninguém depois diria que ela não mereceu esse castigo mas a opinião geral é que devia têlo recebido das mãos de outrem e não daquele que lho infligiu Onde houve já homem mais fácil de manobrar mais simples digamos até mais ingênuo do que o Imperador Cláudio Quem se apaixonou algum dia por uma mulher mais do que ele por Messalina Nem por isso deixou de entregála ao carrasco A simplicidade é uma crueldade de todos os tiranos tanto que todos ignoram o que seja praticar o bem Mas não sei como chega sempre o dia em que usam de crueldade para com os que os rodeiam e a pouca inteligência que possuem desperta de imediato É bem conhecida a palavra daquele que vendo a descoberto o colo da mulher amada sem a qual parecia não poder viver a acariciou dizendo este belo pescoço logo que eu o ordene pode ser cortado Por isso é que a maior parte dos antigos tiranos eram geralmente mortos pelos seus favoritos os quais uma vez conhecida a natureza da tirania perdiam toda a fé na vontade do tirano e desconfiavam do seu poder Assim foi que Domiciano morreu às mãos de Estevão Cômodo assassinado por uma das suas amantes Antonino por Macrino e o mesmo aconteceu com quase todos os outros A verdade é que o tirano nunca é amado nem ama A amizade é uma palavra sagrada é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem só se mantém quando há estima mútua conservase não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade a forma como corresponde à sua amizade o seu bom feitio a fé e a constância Não cabe amizade onde há crueldade onde há deslealdade onde há injustiça Quando os maus se reúnem fazemno para conspirar não para travarem amizade Apóiamse uns aos outros mas tememse reciprocamente Não são amigos são cúmplices Ainda que assim não fosse havia de ser sempre difícil achar num tirano um amor firme É que estando ele acima de todos e não tendo companheiros situase para lá de todas as raias da amizade a qual tem seu alvo na equidade não aceita a superioridade antes quer que todos sejam iguais Por isso é que entre os ladrões reina a maior confiança no dividir do que roubaram todos são pares e companheiros e se não se amam tememse pelo menos uns aos outros e não querem desunindose tornarse mais fracos Quanto ao tirano nem os próprios favoritos podem ter confiança nele pois aprenderam por si que ele pode tudo que não há direitos nem deveres a que esteja obrigado a sua única lei é a sua vontade não é companheiro de ninguém antes é senhor de todos Quão dignos de piedade portanto são aqueles que perante exemplos tão evidentes face a um perigo tão iminente não aprendem com o que outros já sofreram Como pode haver tanta gente que gosta de conviver com os tiranos e que nem um só tenha inteligência e ousadia que bastem para lhes dizer o que no dizer do conto a raposa respondeu ao leão que se fingia doente De boa mente entraria no teu covil mas só vejo pegadas de bichos que entram e nenhuma dos que dele tenham saído Esses desgraçados só vêem o brilho dos tesouros do tirano e ficam olhando espantados para o fulgor das suas suntuosidades deslumbrados com tanto esplendor aproximam se e não vêem que estão a atirarse para o meio de uma fogueira que não tardará a consumilos O Sátiro indiscreto reza a fábula ao ver aceso o lume descoberto por Prometeu achouo tão belo que foi beijálo e se queimou A borboleta que esperando encontrar algum prazer se atira ao fogo vendoo luzir acaba por ser vítima de uma outra qualidade que o fogo tem a de tudo queimar diz o poeta lucano Vamos admitir que os favoritos consigam escapar às mãos daqueles a quem servem Não escaparão do rei que vier depois Se for bom tudo fará para pedir contas e repor a justiça Se for mau e semelhante ao que eles serviram há de ter os seus favoritos que evidentemente além de pretenderem ocupar o lugar dos outros hão de querer também os bens e as vidas deles Assim sendo como pode haver alguém que no meio de tantos perigos de tanta insegurança queira ocupar tão desgraçada posição e servir com tal risco tão perigoso amo Que tormento que martírio este Deus meu viver dia e noite a pensar em ser agradável a alguém e ao mesmo tempo temêlo mais do que a qualquer homem Que tormento estar sempre de olho à espreita de ouvido a escuta a espiar de onde virá o golpe para descobrir embustes examinando sempre as feições dos companheiros a ver se descobre quem o trai rindose para todos receandoos a todos não tendo inimigo declarado nem amigo certo Que tormento fazer sempre rosto risonho tendo o coração transido não poder mostrarse contente e não se atrever a ser triste Aprazível é considerar o que eles ganham com tanto tormento o que podem esperar dos trabalhos que passam e da mísera vida que levam O povo gosta de acusar dos males que sofre não o tirano mas os que o aconselham os povos as nações toda a gente incluindo os camponeses e os lavradores todos sabem os nomes deles e os respectivos vícios sobre eles lançam mil ultrajes mil vilanias mil maldições Todas as suas orações e votos são contra eles Todas as desgraças todas as pestes todas as fomes lhes são atribuídas e se às vezes exteriormente lhes tributam algum respeito não deixam de amaldiçoálo no mais fundo do coração têm por eles um horror maior do que têm aos animais ferozes Tal é a honra tal é a glória que recebem em paga dos serviços que prestam aos povos os quais nunca se darão por saciados e compensados do que sofreram ainda que por eles repartissem o corpo em pedaços Mesmo depois de morrerem os que ficam tudo farão para que o nome de ComeGente lhes seja atribuído e manchado pela tinta de mil penas e a sua reputação desfeita em milhares de livros e os próprios ossos a bem dizer pisados pelos vindouros que assim castigam depois de mortos os que tiveram vida ruim Aprendamos com estes exemplos aprendamos a fazer o bem Ergamos os olhos para o Céu seja por amor da nossa honra seja pelo amor da própria virtude olhemos para Deus Todopoderoso testemunha certa de nossos atos e justo juiz de nossas faltas De minha parte penso e não me engano que nada há de mais contrário a um Deus liberal e bondoso do que a tirania e que ele reserva aos tiranos e seus cúmplices um castigo especial 2006 Étienne de La Boétie Versão para eBookLibris eBooksBrasil Maio 2006 Proibido todo e qualquer uso comercial Se você pagou por esse livro VOCÊ FOI ROUBADO Você tem este e muitos outros títulos GRÁTIS direto nas fontes eBooksBrasilorg httpwwwculturabrasilorg eBookLibris 2006 eBooksBrasilorg nome rua cidade estado e CEP Email 9 de março de 2022 Prezado senhor Vladimir Putin Ao ver a escalada beligerante de seu governo contra a Ucrânia por motivos geopolíticos que não cabem mencionar nessa carta tenho refletido sobre de que maneira os povos podem se submeter voluntariamente ao governo de um só homem o que é o caso do senhor e os reflexos à legitimidade de um governo tirano e popular no âmbito interno pelo caráter nacionalista Podese dizer que o senhor pode invadir oprimir e matar porque conta com relações de favorecimento e obediência em múltiplos níveis ou instâncias Conta também com uma elite que dirá que a Ucrânia nunca foi dos ucranianos bem como tudo o mais que existe na Europa ou além O senhor pode alegar que os mísseis e balas russas não matam tampouco queimam criancinhas já que isso não aparece nos veículos de comunicação e que resistir às suas agressões contra outros seres humanos que querem buscar liberdade entender a justiça e o direito bem como entender que é indício irrefutável de falta de consciência geopolítica quando não uma agressão ao agressor ou nas palavras de Étienne de La Boétie ao tirano Isso nos leva a uma reflexão sobre uma questão que está na base da política o motivo que leva as pessoas a obedecerem ao senhor De forma particular o que está por trás dessa questão é entender a causa que pode levar um cidadão russo a abrir mão de sua própria liberdade já que para obtêla precisa apenas em um primeiro momento desejála Assim a servidão voluntária refletida nas atitudes do senhor para com seu povo e com nações vizinhas remete à perda do desejo de liberdade uma vez que os homens enquanto neles houver algo de humano só se deixam subjugar se forem forçados ou enganados É possível que os homens percam a liberdade pela força como está acontecendo em solo Ucraniano mas o que surpreende é o fato de não lutarem para reconquistála refletido em boa parte dos governados pelo senhor que ao longo de seu interminável governo assistem suas ações de forma inerte Percebo que a liberdade encontra novas formas de coerção oriundas não mais de fora mas sistematicamente imposta ao povo e pelo povo Penso que muitas pessoas seriam educadas por seus pais a aderir a sistemas opressivos O governo do senhor contribuiu nessa direção oferecendo à população pão e circo representado pelas mais diversas formas Também age nessa direção por meio da manipulação ideológica não digo de forma política de direita ou esquerda algo muito mais profundo fazendo crer que sua tirania é sábia e justa Com isso percebo que mesmo em condições de se rebelar e romper com a tirania o povo acaba renunciando a suas liberdades e recebe o próprio sofrimento de forma naturalizada sendo assim induzido a uma aceitação ou mesmo à valorização dos arranjos opressores vindo até mesmo de outros países que o senhor provoca Sob esse aspecto a ação do processo educativo sobre o indivíduo pode permitir características como a percebida da existência que precede a essência Indo além há também a da essência preceder a existência definindo a essência do indivíduo antes mesmo dele existir transformando o senso analítico e o florescimento do pensamento conservandose estruturas em muitos casos de soberania Um dos sustentáculos da servidão voluntária segundo La Boétie é o medo de ficar estigmatizado Os servos estão seguros de alguma forma quando ajustados e submissos a um arranjo hierárquico Temem em consequência o que pode pode acontecer a partir de um eventual confronto com seus dominadores Esse sentimento de acomodação explicaria a passividade que assumem e a forma como se submetem de bom grado a todo tipo de injustiça por vezes provocada pelo senhor sem nem mesmo perceber o quanto estão sendo prejudicados Destarte as três razões que levam o homem à servidão voluntária refletidas na liberdade no direito e na justiça estão presentes no modus operandi do senhor Primeiro que embora a natureza tenha uma grande força sobre nós muito mais forte do que ela é o costume Consequentemente os homens são o que a educação faz de cada um Em outras palavras La Boétie descreve Assim é os homens nascem sob o jugo são criados na servidão sem olharem para além dela limitamse a viver como nasceram nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer aceitam como natural o estado que acharam à nascença A segunda razão que o senhor tornouse covarde sob a sua tirania e se mistificou na figura do líder do povo russo com a perda da liberdade perdese imediatamente a valentia Perdem também a energia em todo o resto têm o coração abatido e mole e não são capazes de grandes ações Os tiranos o conhecem e à vista deste vício fazem tudo para piorálo Além disso o povo russo por não ter acesso claro às estruturas de pensamento e atitudes do senhor criam um mistério em torno da sua figura que o faz respeitálo sem nunca conhecer profundamente seus pensamentos No texto o autor acha estranho os súditos se encherem de respeito e de veneração pelos tiranos como se estivessem sob o efeito de um encanto ou magia pois na verdade era o próprio povo que forjava as mentiras em que posteriormente acreditava O terceiro ponto talvez o mais evidente no arcabouço do direito e da justiça é a própria estrutura do poder que o senhor criou em volta de si O autor da obra cita uma espécie de pirâmide de poder mas o senhor aprimorou essa ideia haja vista que chegou ao Kremlin em 1999 e contrariando prognósticos em 31 de dezembro do ano passado completou duas décadas governando a Rússia subvertendo totalmente o sistema do Estado ao seu favor Portanto as tiranias somente sobrevivem quando contam com aceitação por parte da população Por mais violentos que sejam os métodos de repressão são insuficientes para conter a longo prazo movimentos emancipatórios os quais no entanto nem sempre se manifestam porque os servos acabam se acostumando com sua condição e em consequência deixam de lutar pela liberdade pelo direito e pela justiça Esse processo ocorre por vezes de forma tão contundente que parece haver uma vontade obstinada das pessoas em servilo induzindo à suposição de que o amor à justiça e especialmente à liberdade não seria tão natural como se normalmente crê Por fim senhor as críticas apresentadas têm por finalidade uma motivação de estimular o repensar de determinadas práticas que o senhor tem adotado que refletem diretamente em seu povo Atenciosamente
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Carta a justiça Escrever uma carta ela deve conter Um destinatário Possuir no mínimo 3 folhas Desenvolver as ideias de liberdade direito e justiça Entregar até o dia 09 de março Email ricardoniquettiunoescedubr eBookLibris DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA Étienne de La Boétie LCC Publicações Eletrônicas wwwculturabrasilorg Discurso Sobre a Servidão Voluntária 1549 Título original Discours de la servitude volontaire Étienne de La Boétie 15301563 Versão para eBookLibris eBooksBrasil Os textos colocados entre são interpolações Fonte Digital Documento do Editor 2006 Étienne de la Boétie Palavras iniciais Étienne de La Boétie morreu aos 33 anos de idade em 1563 Deixou sonetos traduções de Xenofonte e Plutarco e o Discurso Sobre a Servidão Voluntária o primeiro e um dos mais vibrantes hinos à liberdade dentre os que já se escreveram Toda a sua obra ficou como legado ao filósofo Montaigne 1533 1592 seu amigo pessoal que diante de uma primeira publicação pirata do Discurso em 1571 viuse obrigado a se pronunciar a respeito da Obra que procura minimizar em seus efeitos apodandolhe o epíteto de obra de infância e mero exercício intelectual Montaigne com todo o seu inegável brilho intelectual era um Homem do Estado e disso não escapava Entre muitos pontos importantes e relevantes do Discurso em si ressaltase O poder que um só homem exerce sobre os outros é ilegítimo A preferência pela república em detrimento da monarquia As crenças religiosas são freqüentemente usadas pelas monarquias para manter o povo sob sujeição e jugo Étienne de La Boétie afirma no Discurso a liberdade e a igualdade de todos os homens na dimensão política Evidencia pela primeira vez na história a força da opinião pública Repele todas as formas de demagogia Incursionando pioneiramente pelo que mais tarde ficará conhecido como psicologia de massas informa da irracionalidade da servidão desde o título provocativo da Obra indicada como uma espécie de vício de doença coletiva O Discurso que no século XVI Montaigne considerava difícil prefaciar hoje em dia é ainda tristemente atual O ser humano encontrase em amarras autoinfligidas por toda a parte Como dizia Manuel J Gomes importante tradutor de La Boétie para o português Se em 1600 era tarefa difícil escrever um prefácio a La Boétie hoje não é mais fácil Hoje como nos tempos de La Boétie e Montaigne a alienação é demasiado doce como um refrigerante e a liberdade demasiado amarga porque está demasiado próxima da solidão E da loucura LCC verão de 2004 Discurso Sobre a Servidão Voluntária Étienne de La Boétie Muita gente a mandar não me parece bem Um só chefe um só rei é o que mais nos convém Assim proclamava publicamente Ulisses em Homero Homero Ilíada cap II Teria toda a razão se tivesse dito apenas Muita gente a mandar não me parece bem Deveria para ser mais claro ter explicado que o domínio de muitos nunca poderia ser boa coisa pela razão de o domínio de um só que usurpe o título de soberano ser já assaz duro e pouco razoável em vez disso porém acrescentou Um só chefe um só rei é o que mais nos convém Uma única desculpa terá Ulisses e é a necessidade que teve de recorrer a tais palavras para apaziguar as tropas amotinadas adaptando julgo o discurso às circunstâncias mais do que à verdade Vistas bem as coisas não há infelicidade maior do que estar sujeito a um chefe nunca se pode confiar na bondade dele e só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver Ter vários amos é ter outros tantos motivos para se ser extremamente desgraçado Não quero por enquanto levantar o discutidíssimo problema de saber se as outras formas de governar a coisa pública são melhores do que a monarquia A minha intenção é antes interrogarme sobre o lugar que à monarquia cabe se algum lhe cabe entre as mais formas de governar Porque não é fácil admitir que o governo de um só tenha a preocupação da coisa pública É melhor todavia que esse problema seja discutido separadamente em tratado próprio pois é daqueles que traz consigo toda a casta de disputas políticas Quero para já se possível esclarecer tão somente o fato de tantos homens tantas vilas cidades e nações suportarem às vezes um tirano que não tem outro poder de prejudicálos enquanto eles quiserem suportálo que só lhes pode fazer mal enquanto eles preferem agüentá lo a contrariálo Digno de espanto se bem que vulgaríssimo e tão doloroso quanto impressionante é ver milhões de homens a servir miseravelmente curvados ao peso do jugo esmagados não por uma força muito grande mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustálos visto que é um só e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente Tal é a fraqueza humana temos freqüentemente de nos curvar perante a força somos obrigados a contemporizar não podemos ser sempre os mais fortes Se portanto uma nação é pela força da guerra obrigada a servir a um só como a cidade de Atenas aos trinta tiranos não nos espanta que ela se submeta devemos antes lamentála ou então não nos espantarmos nem lamentarmos mas sofrermos com paciência e esperarmos que o futuro traga dias mais felizes Está na nossa natureza o deixarmos que os deveres da amizade ocupem boa parte da nossa vida É justo amarmos a virtude estimarmos as boas ações ficarmos gratos aos que fazem o bem renunciarmos a certas comodidades para melhor honrarmos e favorecermos aqueles a quem amamos e que o merecem Assim também quando os habitantes de um país encontram uma personagem notável que dê provas de ter sido previdente a governálos arrojado a defendêlos e cuidadoso a guiálos passam a obedecerlhe em tudo e a concederlhe certas prerrogativas é uma prática reprovável porque vão acabar por afastálo da prática do bem e empurrálo para o mal Mas em tais casos julgase que poderá vir sempre bem e nunca mal de quem um dia nos fez bem Mas o que vem a ser isto afinal Que nome se deve dar a esta desgraça Que vício que triste vício é este um número infinito de pessoas não a obedecer mas a servir não governadas mas tiranizadas sem bens sem pais sem vida a que possam chamar sua Suportar a pilhagem as luxúrias as crueldades não de um exército não de uma horda de bárbaros contra os quais dariam o sangue e a vida mas de um só Não de um Hércules ou de um Sansão mas de um só indivíduo que muitas vezes é o mais covarde e mulherengo de toda a nação acostumado não tanto à poeira das batalhas como à areia dos torneios menos dotado para comandar homens do que para ser escravo de mulheres Chamaremos a isto covardia Temos o direito de afirmar que todos os que assim servem são uns míseros covardes É estranho que dois três ou quatro se deixem esmagar por um só mas é possível poderão dar a desculpa de lhes ter faltado o ânimo Mas quando vemos cem ou mil submissos a um só não podemos dizer que não querem ou que não se atrevem a desafiálo Como não é covardia poderá ser desprezo poderá ser desdém Quando vemos não já cem não já mil homens mas cem países mil cidades e um milhão de homens submeteremse a um só todos eles servos e escravos mesmo os mais favorecidos que nome é que isto merece Covardia Ora todos os vícios têm naturalmente um limite além do qual não podem passar Dois podem ter medo de um ou até mesmo dez mas se mil homens se um milhão deles se mil cidades não se defendem de um só não pode ser por covardia A covardia não vai tão longe da mesma forma que a valentia também tem os seus limites um só não escala uma fortaleza não defronta um exército não conquista um reino Que vício monstruoso então é este que sequer merece o nome vil de covardia Que a natureza nega ter criado a que a língua se recusa nomear Disponhamse de um lado cinqüenta homens armados e outros tantos de outro lado ponhamse em ordem de batalha prontos para o combate sendo uns livres e lutando pela liberdade enquanto os outros tentam arrebatála dos primeiros a quais deles por conjectura se atribui a vitória Quais deles irão para a luta com maior entusiasmo os que em recompensa deste trabalho receberão o prêmio de conservar a liberdade ou os que dos golpes que derem ou receberem esperam tãosomente a servidão Os primeiros têm constantemente diante dos olhos a felicidade de sua vida passada a esperança de no porvir a poderem conservar Preocupaos menos o que têm de sofrer no decurso da batalha do que tudo o que vão ter de suportar eles os filhos e toda a posteridade Os outros nada têm que os anime a não ser um pouco de cobiça que é insuficiente para protegê los do perigo e tão pouco ardente que não tardará a extinguirse logo que derramem as primeiras gotas de sangue Nas muito famosas batalhas de Milcíades Leônidas e Temístocles travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem nessas batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar E para desbaratarem nações tão numerosas que em toda a armada grega não se achariam soldados que chegassem para preencherem se tal fosse mister os postos de comandantes desses navios É que em boa verdade o que estava em causa nesses dias gloriosos não era tanto a luta entre gregos e persas como a vitória da liberdade sobre a dominação da razão sobre a cupidez Quantos prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a defendem Mas o que acontece afinal em todos os países com todos os homens todos os dias Quem só de ouvir contar sem o ter visto acreditaria que um único homem tenha logrado esmagar mil cidades privandoas da liberdade Se casos tais acontecessem apenas em países remotos e outros nolos contassem quem não diria que era tudo invenção e impostura Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano não é preciso defendermosnos dele Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servilo Não é necessário tirarlhe nada basta que ninguém lhe dê coisa alguma Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio basta que não faça nada contra si próprio São pois os povos que se deixam oprimir que tudo fazem para serem esmagados pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir É o povo que se escraviza que se decapita que podendo escolher entre ser livre e ser escravo se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo é ele que aceita o seu mal que o procura por todos os meios Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida eu não insistiria mais haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural deixar digamos a condição de alimária e voltar a ser homem Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele limitome a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejála Se basta um ato de vontade se basta desejála que nação há que a considere assim tão difícil Como pode alguém por falta de querer perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue Um bem que uma vez perdido torna para as pessoas honradas a vida aborrecida e a morte salutar Vejase como ateado por pequena fagulha acendese o fogo que cresce cada vez mais e quanto mais lenha encontra tanta mais consome e como sem se lhe despejar água deixando apenas de lhe fornecer lenha a consumir a si próprio se consome perde a forma e deixa de ser fogo Assim são os tiranos quanto mais eles roubam saqueiam exigem quanto mais arruínam e destroem quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo Se nada se lhes der se não se lhe obedecer eles sem ser preciso luta ou combate acabarão por ficar nus pobres e sem nada da mesma forma que a raiz sem umidade e alimento se torna ramo seco e morto Os audazes para que obtenham o que procuram não receiam perigo algum os avisados não recusam passar por problemas e privações Os covardes e os preguiçosos não sabem suportar os males nem recuperar o bem Deixam de desejálo e a força para o conseguirem lhes é tirada pela covardia mas é natural que neles fique o desejo de o alcançarem Esse desejo essa vontade são comuns aos sábios e aos indiscretos aos corajosos e aos covardes todos eles ao atingirem o desejado ficam felizes e contentes Numa só coisa estranhamente a natureza se recusa a dar aos homens um desejo forte Tratase da liberdade um bem tão grande e tão aprazível que perdida ela não há mal que não sobrevenha e até os próprios bens que lhe sobrevivam perdem todo o seu gosto e sabor corrompidos pela servidão A liberdade é a única coisa que os homens não desejam e isso por nenhuma outra razão julgo eu senão a de que lhes basta desejála para a possuírem como se recusassem conquistála por ela ser tão simples de obter Gentes miserandas povos insensatos nações apegadas ao mal e cegas para o bem Assim deixais que vos arrebatem a maior e melhor parte das vossas riquezas que devastem os vossos campos roubem as vossas casas e vo las despojem até das antigas mobílias herdadas dos vossos pais A vida que levais é tal que podeis afirmá lo nada tendes de vosso Mas parece que vos sentis felizes por serdes senhores apenas de metade dos vossos haveres das vossas famílias e das vossas vidas e todo esse estrago essa desgraça essa ruína provêm afinal não dos seus inimigos mas de um só inimigo daquele mesmo cuja grandeza lhe é dada só por vós por amor de quem marchais corajosamente para a guerra por cuja grandeza não recusais entregar à morte as vossas próprias pessoas Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir poder que vós lhe concedestes Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis Onde teria ele mãos para vos bater se não tivesse as vossas Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos Que poder tem ele sobre vós que de vós não venha Como ousaria ele perseguirvos sem a vossa própria conivência Que poderia ele fazer se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos Semeais os vossos frutos para ele pouco depois calcar aos pés Recheais e mobiliais as vossas casas para ele vir saqueálas criais as vossas filhas para que ele tenho em quem cevar sua luxúria Criais filhos a fim de que ele quando lhe apetecer venha recrutálos para a guerra e conduzilos ao matadouro fazer deles acólitos da sua cupidez e executores das suas vinganças Mataivos a trabalhar para que ele possa regalarse e refestelarse em prazeres vis e imundos Enquanto vós definhais ele vai ficando mais forte para mais facilmente poder refrear vos E de todas as ditas indignidades que os próprios brutos se as sentissem não suportariam de todas podeis libertarvos se tentardes não digo libertarvos mas apenas querer fazêlo Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis mas somente que o não apoieis não tardareis a ver como qual Colosso descomunal a que se tire a base cairá por terra e se quebrará Os médicos aconselham a não se tocar com a mão nas chagas incuráveis não é pois sensato que eu dê conselhos a um povo que há muito perdeu a consciência e cuja doença uma vez que ele já não sente dor é evidentemente mortal Temos antes de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a ponto de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural Antes demais eu creio firmemente que se nós vivêssemos de acordo com a natureza e com os seus ensinamentos seríamos naturalmente obedientes ao país submissos à razão e de ninguém escravos Todos os homens por si próprios sem outro conselho que não seja o da natureza guardam obediência ao pai e à mãe quanto à razão discutem muito os acadêmicos e todas as escolas filosóficas se ela nasce ou não conosco De momento penso não errar se crer que há na nossa alma uma semente natural de razão a qual se cultivada com bons conselhos e bons costumes floresce em virtude se pelo contrário é atacada pelos vícios morre de asfixia e aborta Uma coisa é claríssima na natureza tão clara que a ninguém é permitido ser cego a tal respeito e é o fato de a natureza ministra de Deus e governanta dos homens nos ter feito todos iguais com igual forma aparentemente num mesmo molde de forma a que todos nos reconhecêssemos como companheiros ou mesmo irmãos Ao fazer as partilhas dos dons que nos legou deu mais a uns do que a outros certos dons corporais e espirituais mas é igualmente certo que não pretendeu pôrnos neste mundo como em campo fechado nem deu aos mais fortes e aos mais avisados ordem para quais salteadores emboscados no mato e armados dizimarem os mais fracos É de crer isso sim que favorecendo alguns e desfavorecendo outros pretendia dar lugar à fraterna afeição darlhes meios de se manifestar pois se a uns assiste o poder de ajudar os outros tinham necessidade de ser ajudados Esta boa mãe deunos a todos a terra para nela morarmos albergounos a todos numa mesma casa moldounos a todos numa mesma massa para assim todos podermos mirarnos e reconhecernos uns nos outros a todos em comum outorgou o grande dom da voz e da palavra para sermos mais amigos e mais irmãos e pela comum e mútua declaração dos nossos pensamentos estabelecermos a comunhão de nossas vontades E pois ela buscou por todos os meios apertar e estreitar mais fortemente os nós da nossa aliança e sociedade e por todas as formas mostrou mais desejar vernos unidos do que unos não há dúvida de que somos todos companheiros e ninguém poderá jamais admitir que a natureza integrandonos a todos numa sociedade tenha destinado uns para escravos Não importa verdadeiramente discutir se a liberdade é natural provado que esteja ser a escravidão uma ofensa para quem a sofre e uma injúria à natureza que em tudo quanto faz é razoável Não há dúvidas pois de que a liberdade é natural e que pela mesma ordem e de idéias todos nós nascemos não só senhores da nossa alforria mas também com condições para a defendermos Se acaso pusermos isso em dúvida e descermos tão baixo que não sejamos capazes de reconhecer qual o nosso direito e as nossas qualidades naturais vou ter de vos tratar como mereceis e por os próprios animais a darvos lições e a ensinarvos qual é vossa verdadeira natureza e condição Só quem for surdo não ouve o que dizem os animais viva a liberdade Muitos deles morrem quando os apanham Como o peixe que fora da água perde a vida também outros animais se negam a viver sem a liberdade que lhes é natural Se os animais estabelecessem entre si quaisquer grandezas e proeminências fariam creio firmemente da liberdade a sua nobreza Alguns há que dos maiores aos menores ao serem presos opõem resistência com as garras os chifres as patas e o bico demonstrando assim claramente o quanto prezam a liberdade perdida E uma vez no cativeiro dão evidentes sinais do conhecimento que têm da sua desgraça e deixam ver perfeitamente que se sentem mais mortos do que vivos continuando a viver mais para lamentarem a liberdade perdida do que por lhes agradar a servidão O que quer dizer o elefante que depois de se defender até mais não poder sentindose impotente e prestes a ser apanhado espeta as presas nas árvores e as quebra assim mostrando o grande desejo que tem de continuar livre como nasceu Assim dá a entender que deseja negociar com os caçadores dandolhes os dentes para que o soltem entregandolhes o marfim em penhor da liberdade Começamos a domesticar o cavalo desde o momento em que ele nasce preparamolo para nos servir e não podemos glorificarnos de que uma vez domado ele não morde o freio e não se empina quando o esporeamos como se assim parece quisesse mostrar à natureza e testemunhar por essa forma que serve não de boa vontade mas por ser obrigado a servir Que dizer perante isto Que Até os bois sob o jugo andam gemendo E na gaiola as aves vão chorando como escrevi no tempo em que versejava à francesa não receio escrevendote em particular citar versos meus coisa que nunca faço como tens mostrado gostar deles não me acusarás de ser pretensioso Todas as coisas que têm sentimento sentem a dor da sujeição e suspiram pela liberdade as alimárias feitas para servirem o homem não são capazes de se habituar à servidão sem protestarem desejos contrários A que azar pois se deverá que o homem livre por natureza tenha perdido a memória da sua condição e o desejo de a ela regressar Há três espécies de tiranos Refirome aos maus príncipes Chegam uns ao poder por eleição do povo outros por força das armas outros sucedendo aos da sua raça Os que chegam ao poder pelo direito da guerra portamse como quem pisa terra conquistada Os que nascem reis as mais das vezes não são melhores nascidos e criados no sangue da tirania tratam os povos em quem mandam como se fossem seus servos hereditários e consoante a compleição a que são mais atreitos avaros ou pródigos assim fazem do reino o que fazem com outra herança qualquer Aquele a quem o povo deu o Estado deveria ser mais suportável e sêloia a meu ver se desde o momento em que se vê colocado em altos postos e tomando o gosto à chamada grandeza não decidisse ocupálos para todo o sempre O que geralmente acontece é tudo fazerem para transmitirem aos filhos o poder que o povo lhes concedeu E tão depressa tomam essa decisão por estranho que pareça ultrapassam em vício e até em crueldade os outros tiranos para conservarem a nova tirania não acham melhor meio do que aumentar a servidão e afastar tanto dos súditos a idéia de liberdade que eles tendo embora a memória fresca começam a esquecerse dela Assim para dizer toda a verdade encontro entre eles alguma diferença mas não vejo por onde escolher Sendo diversos os modos de alcançar o poder a forma de reinar é sempre idêntica Os eleitos procedem como quem doma touros os conquistadores como quem se assenhoreia de uma presa a que têm direito os sucessores como quem lida com escravos naturais Se acaso hoje nascesse um povo completamente novo que não estivesse acostumado à sujeição nem soubesse o que é a liberdade que ignorasse tudo sobre uma e outra coisa incluindo os nomes e se lhe fosse dado a escolher entre o ser sujeito ou o viver a liberdade qual seria a escolha desse povo Não custa a responder que prefeririam obedecer à razão em vez de servirem a um homem a não ser que se tratasse dos israelitas os quais sem ninguém os obrigar e sem necessidade elegeram um tirano I Samuel capítulo 8 mas nunca leio a história de tal povo sem uma grande decepção e alguma fúria tanta que quase me alegro por lhe terem acontecido tantas desgraças Uma coisa é certa porém os homens enquanto neles houver algo de humano só de deixam subjugar se foram forçados ou enganados enganados pelas armas estrangeiras como Esparta e Atenas pelas forças de Alexandre ou pelas facções como aconteceu quando o governo de Atenas caiu nas mãos de Pisístrates Pisístrates 600 527 foi por três vezes tirano de Atenas Da primeira vez foi derrubado por Licurgo Da segunda por Hermódio e Aristogíton Devese contudo a Pisístrates a compilação das obras de Homero como a Ilíada e a Odisséia Muitas vezes perdem a liberdade porque são levados ao engano não são seduzidos por outrem mas sim enganados por si próprios Assim o povo de Siracusa cidade capital da Sicília denominada hoje Saragoça aqui Boétie se equivoca apertado pelas guerras sem olhar a nada a não ser o perigo elevou ao poder Dionísio Primeiro e entregoulhe o comando do exército Tantos poderes lhe foi dando que o velhaco uma vez vitorioso como se tivesse triunfado não sobre os inimigos mas sobre os cidadãos subiu de capitão a rei e de rei a tirano Incrível coisa é ver o povo uma vez subjugado cair em tão profundo esquecimento da liberdade que não desperta nem a recupera antes começa a servir com tanta prontidão e boa vontade que parece ter perdido não a liberdade mas a servidão É verdade que a princípio serve com constrangimento e pela força mas os que vêm depois como não conheceram a liberdade nem sabem o que ela seja servem sem esforço e fazem de boa mente o que seus antepassados tinham feito por obrigação Assim é os homens nascem sob o jugo são criados na servidão sem olharem para lá dela limitamse a viver tal como nasceram nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer aceitam como natural o estado que acharam à nascença E todavia não há herdeiro tão pródigo e desleixado que uma vez não passe os olhos pelos livros de registros para ver se goza de todos os direitos hereditários e se não foi esbulhado nos seus direitos ele ou o seu predecessor Mas o costume que sobre nós exerce um poder considerável tem uma grande orça de nos ensinar a servir e tal como de Mitrídates se diz que aos poucos foi se habituando a beber veneno a engolir tudo até que deixamos de sentir o amargor do veneno da servidão Não pode negarse que a natureza tem força para nos levar aonde ela queira e fazer a nós livres ou escravos mas importa confessar que ela tem sobre nós menos poder do que o costume e que a natureza por muito boa que seja acaba por se perder se não for tratada com os cuidados necessários e o alimento que comemos transmitenos muito de seu faça a natureza o que fizer As sementes do bem que a natureza em nós coloca são tão pequenas e inseguras que não agüentam o embate do alimento contrário Não se mantêm facilmente estragamse desfazem se reduzemse a nada Como acontece com as árvores de fruto possuidoras de uma natureza própria que conservarão enquanto as deixarem mas passarão a ter outra e a dar frutos estranhos não os delas a partir do momento em que sejam enxertadas As ervas têm cada uma a sua propriedade a sua natureza e a sua singularidade próprias mas o frio o tempo a terra ou a mão do jardineiro acrescentamlhe ou tiramlhe muitas das suas virtudes Vêse num sítio uma planta que outro sítio não reconhece Vejamse os venezianos um punhado de pessoas livres tanto que até o pior de todos se recusaria a ser rei nascidos e criados de tal modo que a grande ambição deles é defenderem ciosamente a liberdade de cada um educados desde o berço nestes princípios não aceitariam todas as outras felicidades da terra se para isso tivessem de perder a menor de suas liberdades Vejamse os venezianos repito e reparese depois nos que habitam as terras daquele a que chamamos GrãoSenhor gente que nada mais faz do que servilo e que para o manterem no poder dão a própria vida Diria quem visse uns e outros que possuem todos a mesma natureza Não julgaria antes que saíra de uma cidade de homens para entrar num curral de animais Licurgo reformador de Esparta criara dizse dois cães que eram irmãos alimentados com o mesmo leite um deles habituado a ficar na cozinha e o outro acostumado a correr pelo campo ao som da trompa e da corneta querendo mostrar ao povo lacedemônio que os homens são o que a educação faz de cada um colocou os dois cães no meio da praça e no meio deles uma sopa e uma lebre Um correu para o prato e o outro para a lebre Muito embora disse ele fossem irmãos Lembrarei com prazer um dito dos favoritos de Xerxes senhor da Pérsia a respeito dos espartanos Quando Xerxes se aparelhava para conquistar a Grécia mandou embaixadores às cidades gregas a pedirlhes água e terra A Esparta e Atenas não os enviou porque os enviados de seu pai Dario que lá tinha ido fazer igual pedido tinhamnos os espartanos e atenienses lançado em covas e outros em poços dizendolhes que tirassem terra e água à vontade e que fossem levála a seu príncipe Nenhum daqueles povos tolerava que sequer por palavras alguém lhes tocasse na liberdade Por assim terem feito viram os espartanos que tinham incorrido no ódio dos próprios deuses especialmente no de Taltíbio deus dos arautos Para os apaziguarem mandaram a Xerxes dois cidadãos para que fossem à presença dele e ele os tratasse como lhe aprouvesse tirando assim a desforra dos embaixadores que seu pai enviara e tinham sido mortos Dois espartanos um de nome Specto e outro Bulis ofereceramse voluntariamente para esta missão Foram e pelo caminho entraram no palácio de um persa chamado Gidarno lugar tenente do rei em todas as cidades do litoral da Ásia Este os recebeu com muita honraria E como fossem conversando sobre vários assuntos perguntoulhes que motivos tinham para recusarem a amizade do rei Podeis crer espartanos dizialhes jurovos que o rei sabe honrar quem o merece e se vos tornardes seus súditos vereis que assim é Se aceitardes e ele vos conhecer vereis como será cada um de vós nomeado imediatamente senhor de uma cidade da Grécia Ao que lhe responderam os lacedemônios Ruim conselho é o que nos dás Gidarno O bem que nos prometes já o experimentaste mas nada sabes do que nós já possuímos gozas do favor do rei mas nada sabes da liberdade do gosto que ela tem da sua doçura Se a conhecesses havias de nos aconselhar a defendêla não só com lança e escudo mas até com unhas e dentes O espartano é que tinha razão mas um e outro falavam de acordo com o que tinham aprendido Não era possível ao persa avaliar a liberdade pois nunca a tivera nem ao lacedemônio aceitar a sujeição depois de ter conhecido o gosto da liberdade Catão de Útica quando era ainda menino de escola entrava muitas vezes na casa do ditador Sila cujas portas lhe estavam abertas não só por pertencer a uma família nobre como até por ser parente próximo de Sila Acompanhavao sempre o preceptor como era costume entre os filhos de boas famílias Deu ele então conta de que em casa de Sila na presença deste ou por sua ordem muitos cidadãos eram presos e condenados eram uns banidos e outros estrangulados decretavase a confiscação dos bens e era perdida a cabeça de muitos Ou seja mais parecia o paço do tirano do que a morada do governador da cidade era menos um tribunal de justiça do que uma espelunca da tirania Perguntou o nobre infante ao preceptor Darmeeis um punhal Metêloei sob a toga e como entro muitas vezes nos aposentos de Sila antes de ele acordar o meu braço há de ter força suficiente para libertar o povo Este é um dito digno de Catão Assim já se revelava digno da morte que teve Mas se porventura a história não referisse o nome dele nem o local seria facílimo adivinhar que se trata de um romano e natural de Roma da verdadeira Roma quando ela era livre Mas para que dizer mais Em boa verdade não creio que o país o a terra importem muito Em todos os países em todos os climas sabe mal a sujeição e é gostosa a liberdade Dignos de dó são os que nasceram com a canga no pescoço Devem ser desculpados e perdoados pois nunca tendo visto sequer a sombra da liberdade e ninguém lha tendo mostrado não sabem como é mal serem escravos Há países em que o Sol aparece de modo diverso daquele a que estamos habituados depois de brilhar durante seis meses seguidos deixaos ficar mergulhados na escuridão nunca os visitando no meio do ano se os que nasceram durante essa longa noite nunca tivessem ouvido falar do dia seria de espantar que eles se habituassem às trevas em que nasceram e nunca desejassem a luz Nunca se lastima o que não se conhece só se tem desgosto depois de ter gozado o prazer depois de se ter conhecido o bem e se recordar a alegria passada É natural no homem o ser livre e o querer sêlo mas está igualmente na sua natureza ficar com certos hábitos que a educação lhe dá Digase pois que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém pela educação e pelo costume mas da essência da sua natureza é o que lhe vem da mesma natureza pura e não alterada assim a primeira razão da servidão voluntária é o hábito provamno os cavalos sem rabo que no princípio mordem o freio e acabam depois por brincar com ele e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os apertam Afirmam que sempre viveram na sujeição que já os pais assim tinham vivido Pensam que são obrigados a usar freio provamno com exemplos e com o fato de há muito serem propriedade daqueles que os tiranizam Mas a verdade é que os anos não dão o direito de se praticar o mal antes agravam a injúria Sempre haverá umas poucas almas melhor nascidas do que outras que sentem o peso do jugo e não evitam sacudilo almas que nunca se acostumam à sujeição e que à imitação de Ulisses o qual por mar e terra procurava avistar o fumo de sua casa nunca se esquecem dos seus privilégios naturais nem dos antepassados e de sua antiga condição São esses dotados de claro entendimento e espírito clarividente não se limitam como o vulgo a olhar só para o que têm adiante dos pés olham também para trás e para frente e estudando bem as coisas passadas conhecem melhor o futuro e o presente Além de terem um espírito bem formado tudo fazem para aperfeiçoálo pelo estudo e pelo saber Esses ainda quando a liberdade se perdesse por completo e desaparecesse para sempre do mundo não deixariam de imaginála de sentila e saborear para eles a servidão por muito bem disfarçada que lhes aparecesse nunca seria coisa boa O GrãoTurco teve perfeita consciência de que os livros e a doutrina mais do que qualquer outra coisa dão aos homens a capacidade de se conhecerem e de odiarem a tirania Sabese que nas suas terras não há mais sábios do que os que lhe convém a ele Acontece que o zelo e a dedicação dos que apesar de tudo prezam a liberdade não têm efeito algum pois mesmo que sejam em grande número não se podem conhecer uns aos outros A tirania subtrailhes toda e qualquer liberdade de agir de falar e quase de pensar Têm de guardar só para eles as suas fantasias Razão tinha Momo para zombar quando censurou o homem forjado por Vulcano por não lhe ter feito no coração uma janela através da qual pudessem ser vistos os seus pensamentos É sabido que Brutus e Cássio ao planejarem a libertação de Roma ou antes do mundo inteiro não quiseram que Cícero o maior zelador do bem público entrasse na conspiração julgaram que tinha um coração demasiado débil para tal façanha confiavam na vontade dele mas não estavam muito seguros da sua coragem Quem estudar os efeitos da antiguidade e as velhas crônicas descobrirá que vendose o país mal governado e maltratado e tomandose a decisão firme de libertálo poucos ou nenhum deixaram de conseguilo tiveram nisso a ajuda da própria liberdade ansiosa por renascer Harmódio Aristogíton Trasíbulo Brutus oVelho Valério e Díon executaram cabalmente o que valorosamente planejaram Em casos assim a sorte quase nunca falta a quem quer o bem O jovem Brutus e Cássio derrubaram a servidão e repuseram a liberdade tendo por isso morrido mas não desonrosamente Desonroso seria dizer que foi desonrosa a vida ou a morte desses jovens Tristeza e desgraça foram a ruína da república que viria a ser enterrada com eles As conjuras que depois houve contra os imperadores romanos foram todas atos de gente ambiciosa e não devemos lamentar as derrotas que sofreram era evidente que não queriam derrubar mas arruinar a coroa pretendiam expulsar o tirano e manter a tirania Não é para mim desejável que eles tivessem triunfado e aprazme que pelo exemplo tenham mostrado com não se deve abusar do sagrado nome da liberdade para levar a cabo ruins empreendimentos Mas voltando ao assunto principal de que me afastei a primeira razão que leva os homens a servirem de boamente é o terem nascidos e sido criados na servidão A esta somase outra que é a de sob a tirania os homens se tornarem covardes e efeminados Nisso concordo com Hipócrates pai da medicina que assim afirmou e escreveu num de seus livros intitulado Das Doenças Este homem tinha o coração no lugar e bem o demonstrou quando o rei quis atraílo para junto de si com muitas dádivas e oferendas respondeulhe francamente que teria muitos escrúpulos em tratar e curar os bárbaros que queriam matar os gregos e de pôr a sua arte a serviço de um rei que pretendia escravizar a Grécia A carta que lhe mandou pode ainda hoje verse entre as suas outras obras e constituirá para todo o sempre uma prova do seu bom coração e de sua natureza nobre Com a perda da liberdade perdese imediatamente a valentia As pessoas escravizadas não mostram no combate qualquer ousadia ou intrepidez Vão para o castigo como que manietadas e entorpecidas como quem vai cumprir uma obrigação E não sentem arder no coração o fogo da liberdade que faz desprezar o perigo e dá ganas de comprar com a morte ao lado dos companheiros a honra da glória Entre homens livres todos disputam invejosamente quem há de ser o primeiro a servir o bem comum todos desejam ter o seu quinhão no mal da derrota ou no bem da vitória Mas as pessoas escravizadas além desta falta de valor na guerra perdem também a energia em todo o resto têm o coração abatido e mole e não são capazes de grandes ações Os tiranos o sabem e à vista deste vício tudo fazem para piorálo Xenofonte historiador grave e da melhor cepa entre os gregos em um livro fez Simônides falar com Hierão rei de Siracusa sobre as misérias dos tiranos É um livro eivado de bons costumes e graves argumentos e a meu ver escrito com muita graça Bom seria que todos os tiranos que já houve pusessem diante dos olhos e dele se servissem como de um espelho Não creio que deixassem de ver nele todas as suas verrugas e não se envergonhassem de todas as suas manchas Conta no referido tratado o tormento por que passam os tiranos que por fazerem mal a todos a todos devem temer Diz entre outras coisas que os maus reis recorrem a estrangeiros para fazerem a guerra subornamnos e não se atrevem a meter armas nas mãos dos próprios súditos a quem ofenderam Reis houve alguns até franceses mais outrora do que nos dias de hoje que contrataram para a guerra mais de uma nação estrangeira com intenção de preservarem os seus por acharem que não era perdido o dinheiro gasto em defesa das pessoas Era o que dizia Cipião o grande Africano julgo para quem valia mais defender a vida de um cidadão do que desbaratar cem inimigos Mas não há dúvida alguma de que o tirano se julga absolutamente seguro e só se preocupa quando percebe que já não tem a seu serviço um único homem de valor Com razão se lhe poderá dizer nessa altura o que Trasão em Terêncio se gloria de ter dito ao domador de elefantes Tão bravo vos hei mostrado Que sois das bestas criado Mas esse estratagema com que os tiranos humilham os súditos está mais do que em qualquer outro lado explicitado no que Ciro fez aos lídios depois de se ter apoderado de Sardes capital da Lídia quando aprisionou o riquíssimo rei Creso e o levou cativo Trouxeramlhe a notícia de que os de Sardes se tinham revoltado Terlheia sido fácil dominálos Não desejando saquear uma tão bela cidade nem querendo destacar para lá um exército que a vigiasse recorreu a um outro expediente Fundou nela bordéis tabernas e jogos públicos e publicou um decreto que obrigava os habitantes a freqüentálos Tão bons resultados teve esta guarnição que foi desnecessário daí em diante levantar a espada contra os lídios Os desgraçados divertiramse a inventar toda a casta de jogos de tal forma que a palavra latina usada para significar passatempos é a palavra ludi que vem de Lydi lídios Nem todos os tiranos foram tão explícitos no seu desejo de efeminarem os homens mas o que este ordenou formalmente foi em grande parte realizado de forma velada É muito próprio do vulgo mormente o que pulula nas cidades desconfiar de quem o estima e ser ingênuo para com aqueles que o enganam Atrair o pássaro com o apito ou o peixe com a isca do anzol é mais difícil que atrair o povo para a servidão pois basta passarlhes junto à boca um engodo insignificante É espantoso como eles se deixam levar pelas cócegas Os teatros os jogos as farsas os espetáculos as feras exóticas as medalhas os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão preço da liberdade instrumentos da tirania Deste meio desta prática destes engodos se serviam os tiranos para manterem os antigos súditos sob o jugo Os povos assim ludibriados achavam bonitos estes passatempos divertiam se com o vão prazer que lhes passava diante dos olhos e habituavamse a servir com simplicidade igual se bem que mais nociva à das crianças que aprendem a ler atraídas pelas figuras coloridas dos livros iluminados Os tiranos romanos decretaram também na celebração freqüente das decenálias públicas para as quais atraiam a canalha que põe acima de tudo os prazeres da boca Nem o mais esclarecido de todos eles trocaria a malga da sopa pela liberdade da república de Platão Os tiranos ofereciam o quarto de trigo o sesteiro de vinho e o sestércio E os vivas ao rei eram então coisa triste de ouvir Não davam conta os néscios de que recuperavam dessa forma parte do que era seu e que não podia o tirano darlhes coisa que não lhes tivesse furtado antes O que hoje ganhava o sestércio o que se fartava de comer no festim público louvando a grande liberalidade de Tibério e Nero era no dia seguinte obrigado a entregar os seus haveres à avareza os filhos da luxúria e o próprio sangue à crueldade daqueles magníficos imperadores e faziao sem dizer palavra mudo como uma pedra quedo como um cepo O povo sempre foi assim É perante o prazer que honestamente não pode atingir aberto e dissoluto e face ao agravo e à dor que honestamente não deveria sofrer insensível Não sei hoje em dia de pessoa alguma que ao ouvir falar de Nero não trema só com o nome de tão vil monstro de tão hedionda e imunda besta Pode porém dizerse que após a sua morte vil tanto quanto foi a sua vida o povo romano ficou com tanta pena por se lembrar dos seus jogos e festins que pouco faltou para vestir luto Assim o escreveu Cornélio Tácito autor dos melhores e mais graves e só pode estranhar o fato quem não conheça bem o que o povo fez após a morte de Júlio César que tinha abolido as leis e a liberdade Achavam que era um homem sem valor creio mas louvaram muito a sua humanidade que afinal foi tão nociva como a crueldade mais selvagem de todos os tiranos Em boa verdade a sua peçonhenta doçura serviu só para adoçar a servidão que impôs ao povo romano Mas depois de morto o dito povo que tinha ainda na boca o sabor dos banquetes e a recordação das suas prodigalidades queimou para honrálo e incinerálo todos os bancos da praça edificoulhe uma coluna como a um verdadeiro pai do povo assim rezava a inscrição no capitel e prestoulhe mais honrarias após a morte do que a qualquer outro homem à exceção talvez dos que o mataram Os imperadores romanos não deixavam de tomar sempre o título de tribuno do povo seja porque seu cargo era tido na conta de santo e sagrado seja porque havia sido estabelecido para se defenderem do povo e estarem sob o favor do estado Deste modo tinham por certo que o povo lhes daria toda a confiança tendo em maior consideração o título do que os atos deles Não procedem melhor hoje em dia os que sempre que cometem aleivosias incluindo as mais graves fazemnas acompanhar de discursos sobre o bem comum e a utilidade pública Não ignoras Longa os considerandos de que habilmente eles costumam lançar mão Mas na maioria das vezes não há habilidade que chegue para cobrir tanto despudor Os reis assírios e depois deles os medos só apareciam em público o mais tarde possível ao anoitecer para a populaça julgar que eles tinham algo de sobrehumano assim iludindo as gentes propensas ao devaneio e amigas de imaginar aquilo que não vêem claramente visto Foi assim que as nações que durante longos anos pertenceram ao império sírio se habituaram com tal mistério a servir e serviam tanto mais quanto não sabiam quem era o soberano e todos o respeitavam e temiam sem nenhum deles o ter visto Os primeiros reis do Egito esses nunca se mostravam em público sem levarem um ramo ou uma luz na cabeça e mascaravamse como saltimbancos coisa tão estranha de ver que os súditos se enchiam de respeito e veneração por eles e havia gente tão doida e tão submissa que se prestava a tal comédia em vez de com ela se rir Faz pena ouvir comentar as artimanhas a que os tiranos de antigamente recorriam para consolidarem as suas tiranias e o modo como de coisas somenos tiravam grande partido Tinham compreendido ser possível fazerem o que quisessem de um povo que se deixava apanhar na rede por muito frágil que ela fosse um povo tão fácil de enganar e submeter que quanto mais dele zombavam mais se rebaixava E que direi daquela outra patranha a que os povos antigos sempre deram grande crédito Acreditaram de fato que o dedo grande do pé de Pirro rei dos epirotas fazia milagres e curava as doenças do baço Acreditavam na lenda de que o dito dedo após a cremação do corpo de Pirro ficaria inteiro no meio das cinzas Era o próprio povo que forjava as mentiras em que posteriormente acreditava Muitos assim o escreveram e pelo modo como o fizeram é patente que se limitaram a reunir o que ouviam dizer nas cidades entre o povo miúdo Vespasiano no regresso da Assíria passando por Alexandria a caminho de Roma tomar o governo do Império teria realizado muitos milagres Punha os coxos a andar dava vista aos cegos e obrava muitas outras façanhas em que só podia acreditar quem fosse mais cego do que aqueles a quem pretensamente curava Até os mesmos tiranos se espantavam com a forma como os homens podem suportar um homem que lhes faz mal utilizavam por isso o disfarce da religião e se possível tomavam o aspecto de certas divindades disso se servindo para protegerem a má vida que levavam Se dermos credo à Sibila de Virgílio e à sua descrição do inferno Salmoneu por ter zombado dos deuses e vestido a indumentária de Júpiter está agora no fundo do inferno a receber o castigo que merece As penas vi cruéis e penetrantes De Salmoneu soberbo que tanto erra De Júpiter Tonante o raio horrendo E do Olimpo os trovões contrafazendo De quatro frisões este conduzido Uma tocha acendida meneando Pelos povos de Grécia ia atrevido E pelo meio de Elides triunfando O culto aos altos deuses só devido Pedia mentecapto que rodando Pela ponte no coche miserável Fingia a chuva e o raio imitável Mas de uma nuvem densa um raio horrendo Vibrando irado o padre onipotente O derrubou com ímpeto tremendo Não com fumoso raio ou tocha ardente Eneida Virgílio Cap VI Se este cujo crime foi fazer de tolo padece hoje tais tormentos no inferno é de crer que merecem muito pior os que abusaram da religião para fins ruins Os nossos semearam pela França sapos flores de lis a ampola e a oriflama Pela parte que mais me cabe não ponho em dúvida que os nossos maiores e nós não temos razão de queixa pois sempre tivemos reis bons em tempo de paz valorosos na guerra reis que embora sendoo de nascença parecem ter sido não criados pela natureza como os outros mas eleitos por Deus Todopoderoso antes de tomarem nas mãos as rédeas do governo e a guarda do reino Ainda que assim não fosse não poria em dúvida a verdade contada pelas nossas histórias nem as discutiria com vistas a rebaixar a nossa bela nação e deslustrar a nossa poesia francesa a qual mais do que remoçada está hoje completamente renovada graças aos nossos Ronsard Baïf e Du Bellay que fizeram evoluir a nossa língua a pontos ouso esperálo de os gregos e latinos não serem em nada superiores a não ser quiçá no direito de antiguidade E seria da minha parte grande ofensa à nossa métrica uso de boa mente a palavra e não me desagrada que tornada embora por muitos mecânica tem muita gente capaz de enobrecêla e de restituíla à sua honra primitiva seria digo grande ofensa subtrairlhe os belos contos do rei Clóvis nos quais julgo ver despontar fácil e elegantemente a veia do nosso Ronsard e da sua Francíada Pressinto o seu alcance reconheço lhe a graça e finura de espírito Tem arte para fazer da oriflama o que os romanos fizeram das ancilas como diz Virgílio E os escudos do céu jazendo em terra Erguerá a nossa ampola tanto quanto os atenienses o cesto de Eríctono e as nossas armas serão faladas tanto quanto o foi a oliveira que ainda hoje se encontra na torre de Minerva Seria de fato ultrajante renegar os nossos livros e desdizer os nossos poetas Mas voltando ao assunto de que sem querer me afastei quem mais do que os tiranos tem conseguido para sua segurança habituar o povo não só à obediência e à servidão mas até à devoção Tudo pois o que até aqui disse sobre o hábito de as pessoas serem voluntariamente escravas aplicase apenas às relações entre os tiranos e a arraia miúda e embrutecida Passarei agora a um ponto que a meu ver constitui o segredo e a mola da dominação o apoio e o alicerce da tirania Quem pensar que as alabardas dos guardas e das sentinelas protegem o tirano está na minha opinião muito enganado usamnos creio mais por formalidade e como espantalho do que por lhes merecerem a confiança Os arqueiros vedam a entrada no paço aos pouco hábeis aos que não têm meios não aos bem armados e aos façanhudos Dos imperadores romanos se pode dizer que foram menos os que escaparam de qualquer perigo por intervenção dos arqueiros do que os que pelos próprios guardas foram mortos Não são as hordas de soldados a cavalo não são as companhias de soldados peões não são as armas que defendem o tirano Parece à primeira vista incrível mas é a verdade São sempre quatro ou cinco os que estão no segredo do tirano são esses quatro ou cinco que sujeitam o povo à servidão Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos foram sempre esses os que lograram aproximarse dele ou ser por ele convocados para serem cúmplices das suas crueldades companheiros dos seus prazeres alcoviteiros suas lascívias e com ele beneficiários das rapinas Tal é a influência deles sobre o caudilho que o povo tem de sofrer não só a maldade dele como também a deles Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração do dinheiro para que eles ocultem as suas avarezas e crueldades para serem seus executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça E abaixo de todos estes vêm outros Quem queira perder tempo a desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mil ou cem milhões agarrados à corda do tirano tal como em Homero Júpiter se gloria de que puxando a corda todos os deuses virão atrás Tal cadeia está na origem do crescimento do Senado no tempo de Júlio do estabelecimento de novos cargos e das eleições de ofícios que não são de modo algum uma reforma na justiça mas novo apoio à tirania E pelos favores ganhos e lucros que os tiranos concedem chegase a isto são quase tantas pessoas a quem a tirania parece proveitosa como as que prezam a liberdade Dizem os médicos que havendo no nosso corpo uma parte afetada é nela que naturalmente se reúnem os humores malignos da mesma forma quando um rei se declara tirano tudo quanto é mau a escória do reino não me refiro aos larápios e outros desorelhados que no conjunto da república não fazem bem ou mal algum os que são ambiciosos e avarentos todos se juntam à volta dele para apoiaremno para participarem do saque e serem outros tantos tiranetes logo abaixo do tirano É o caso dos grandes ladrões e corsários famosos Há uns que exploram o país e assaltam os viajantes estão uns de emboscada e outros à espreita uns chacinam outros saqueiam e havendo muito embora alguns mais proeminentes uns que são criados e outros chefes de bando todos afinal se sentem donos senão do espólio principal pelo menos de parte dele Contase que os piratas sicilianos não só se juntaram em tão grande número que foi mister enviar contra eles Pompeu Magno como também conseguiram estabelecer alianças com algumas belas cidades e grandes praças fortes em cujos portos ancoravam com toda a segurança no regresso do corso dandolhes em recompensa uma parte dos bens que rapinavam O tirano submete a uns por intermédio dos outros É assim protegido por aqueles que se algo valessem antes devia recear e dá razão ao adágio que diz ser a lenha rachada com cunhas feitas da mesma lenha Vejamse os arqueiros os guardas e porta estandartes que do tirano recebem não poucos agravos Mas os desgraçados banidos por Deus e pelos homens suportam de boa mente o mal e descarregam depois esse mal não naquele que os maltrata mas nos que são como ele maltratados e não têm defesa À vista dos que servilmente giram em redor do tirano a executar as suas tiranias e a oprimir o povo fico muitas vezes espantado com a maldade deles e sinto igualmente pena de tanta estupidez Porque em boa verdade o que fazem eles ao acercaremse do tirano senão afastaremse da liberdade darem por assim dizer ambas as mãos à servidão e abraçarem a escravatura Ponham eles algum freio à ambição renunciem um pouco à avareza olhem depois para si próprios vejamse bem e perceberão claramente que os camponeses os servos que eles espezinham e tratam como escravos são em comparação com eles livres e felizes O camponês e o artesão embora servos limitamse a fazer o que lhes mandam e feito isso ficam quites Os que giram em volta do tirano e mendigam seus favores não se poderão limitar a fazer o que ele diz têm de pensar o que ele deseja e muitas vezes para ele se dar por satisfeito têm de lhe adivinhar os pensamentos Não basta que lhe obedeçam têm de lhe fazer todas as vontades têm de se matar de trabalhar nos negócios dele de ter os gostos que ele tem de renunciar à sua própria pessoa e de se despojar do que a natureza lhes deu Têm de se acautelar com o que dizem com as mínimas palavras os mínimos gestos com o modo como olham não têm olhos nem pés nem mãos têm de consagrar tudo ao trabalho de espiar a vontade e descobrir os pensamentos do tirano Será isto viver feliz Será isto vida Haverá no mundo coisa mais insuportável do que isto Não me refiro sequer a homens bem nascidos mas sim a quem tenha o sentido do bem comum ou para mais não dizer cara de homem Haverá condição mais miserável do que viver assim sem ter nada de seu sujeitando a outrem a liberdade o corpo a vida Fazem tudo o que fazem para ganharem fortuna Como se pudessem ganhar alguma coisa de seu quando da sua própria pessoa não podem dizer que seja sua Como se fosse possível na presença do tirano alguém possuir o que quer que seja eles fazem tudo para acumularem riquezas e não se lembram de que são eles que lhe dão a força para roubar tudo a todos não deixando a ninguém nada de seu Vêem que é o ter que mais sujeita os homens à crueldade que não há para o tirano crime mais digno de morte do que a posse de quaisquer bens que ele só quer possuir riquezas que rouba aos ricos que se apresentam diante dele como num matadouro para que ele os veja bem recheados e ornados e deles tenha inveja Estes favoritos deveriam lembrarse menos dos poucos que no convívio com o tirano ganharam fortunas do que dos muitos que tendo acumulado assim alguns haveres acabaram por perder os bens e a vida Bom será pensar que se alguns poucos ganharam riquezas pouquíssimos foram os que as conservaram Percorreramse as histórias antigas pense se nas de fresca data e se verá claramente quão grande é o número dos que ganhando as boas graças dos príncipes com falsidades e tendo recorrido à maldade ou abusado da simplicidade deles acabaram por ser aniquilados pelos mesmos príncipes os quais tão facilmente quanto os tinham elevado viram que não podiam conserválos Entre o grande número de pessoas que algum dia viveram nas cortes dos maus reis poucos ou nenhum escaparam de sentir em si a crueldade do tirano a quem tinham acirrado contra os outros Tendo o mais das vezes enriquecido à custa da proteção deles com os despojos dos outros foram eles que depois enriqueceram os outros com seus próprios despojos As próprias pessoas de bem se acaso as há ao redor do tirano e gozam das suas graças enquanto nelas brilha a virtude e a integridade que vistas de perto até aos maus inspiram respeito essas pessoas de bem não ficarão muito tempo sem perceber o mal que os outros sofrem e aprenderão às suas custas os malefícios da tirania Sêneca Burro Trázeas esse trio de pessoas de bem que tiveram a pouca sorte de viver perto do tirano e a missão de tratar dos seus negócios foram todos por ele estimados e benquistos um deles fora seu preceptor e tinha como penhor da amizade e educação que lhe dera ora todos eles testemunharam pela sua morte cruel quão pouca confiança merecem os tiranos Que amizade afinal pode esperarse daquele cujo coração é tão duro que odeia o próprio reino que em tudo lhe obedece Que por não conseguir fazerse amar se empobrece e destrói seu império Poderá dizerse que todos os que referi incorreram em grandes desgraças por terem sido virtuosos mas olhemos também para o resto do séqüito do tirano e veremos que todos quantos obtiveram os seus favores e os mantiveram por maldade acabaram por não durar muito Onde se ouviu falar de amor mais dedicado de afeto mais duradouro onde é que já se viu homem mais obstinadamente preso a uma mulher do que ele estava a Pompéia a quem afinal envenenou Agripina mãe de Nero matara o marido Cláudio para por o filho no trono Fezlhe todas as vontades não se poupou a trabalhos para lhe agradar Ora foi esse mesmo filho por ela gerado e feito imperador foi ele que depois de muitas vezes debalde o tentar acabou por lhe tirar a vida e ninguém depois diria que ela não mereceu esse castigo mas a opinião geral é que devia têlo recebido das mãos de outrem e não daquele que lho infligiu Onde houve já homem mais fácil de manobrar mais simples digamos até mais ingênuo do que o Imperador Cláudio Quem se apaixonou algum dia por uma mulher mais do que ele por Messalina Nem por isso deixou de entregála ao carrasco A simplicidade é uma crueldade de todos os tiranos tanto que todos ignoram o que seja praticar o bem Mas não sei como chega sempre o dia em que usam de crueldade para com os que os rodeiam e a pouca inteligência que possuem desperta de imediato É bem conhecida a palavra daquele que vendo a descoberto o colo da mulher amada sem a qual parecia não poder viver a acariciou dizendo este belo pescoço logo que eu o ordene pode ser cortado Por isso é que a maior parte dos antigos tiranos eram geralmente mortos pelos seus favoritos os quais uma vez conhecida a natureza da tirania perdiam toda a fé na vontade do tirano e desconfiavam do seu poder Assim foi que Domiciano morreu às mãos de Estevão Cômodo assassinado por uma das suas amantes Antonino por Macrino e o mesmo aconteceu com quase todos os outros A verdade é que o tirano nunca é amado nem ama A amizade é uma palavra sagrada é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem só se mantém quando há estima mútua conservase não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade a forma como corresponde à sua amizade o seu bom feitio a fé e a constância Não cabe amizade onde há crueldade onde há deslealdade onde há injustiça Quando os maus se reúnem fazemno para conspirar não para travarem amizade Apóiamse uns aos outros mas tememse reciprocamente Não são amigos são cúmplices Ainda que assim não fosse havia de ser sempre difícil achar num tirano um amor firme É que estando ele acima de todos e não tendo companheiros situase para lá de todas as raias da amizade a qual tem seu alvo na equidade não aceita a superioridade antes quer que todos sejam iguais Por isso é que entre os ladrões reina a maior confiança no dividir do que roubaram todos são pares e companheiros e se não se amam tememse pelo menos uns aos outros e não querem desunindose tornarse mais fracos Quanto ao tirano nem os próprios favoritos podem ter confiança nele pois aprenderam por si que ele pode tudo que não há direitos nem deveres a que esteja obrigado a sua única lei é a sua vontade não é companheiro de ninguém antes é senhor de todos Quão dignos de piedade portanto são aqueles que perante exemplos tão evidentes face a um perigo tão iminente não aprendem com o que outros já sofreram Como pode haver tanta gente que gosta de conviver com os tiranos e que nem um só tenha inteligência e ousadia que bastem para lhes dizer o que no dizer do conto a raposa respondeu ao leão que se fingia doente De boa mente entraria no teu covil mas só vejo pegadas de bichos que entram e nenhuma dos que dele tenham saído Esses desgraçados só vêem o brilho dos tesouros do tirano e ficam olhando espantados para o fulgor das suas suntuosidades deslumbrados com tanto esplendor aproximam se e não vêem que estão a atirarse para o meio de uma fogueira que não tardará a consumilos O Sátiro indiscreto reza a fábula ao ver aceso o lume descoberto por Prometeu achouo tão belo que foi beijálo e se queimou A borboleta que esperando encontrar algum prazer se atira ao fogo vendoo luzir acaba por ser vítima de uma outra qualidade que o fogo tem a de tudo queimar diz o poeta lucano Vamos admitir que os favoritos consigam escapar às mãos daqueles a quem servem Não escaparão do rei que vier depois Se for bom tudo fará para pedir contas e repor a justiça Se for mau e semelhante ao que eles serviram há de ter os seus favoritos que evidentemente além de pretenderem ocupar o lugar dos outros hão de querer também os bens e as vidas deles Assim sendo como pode haver alguém que no meio de tantos perigos de tanta insegurança queira ocupar tão desgraçada posição e servir com tal risco tão perigoso amo Que tormento que martírio este Deus meu viver dia e noite a pensar em ser agradável a alguém e ao mesmo tempo temêlo mais do que a qualquer homem Que tormento estar sempre de olho à espreita de ouvido a escuta a espiar de onde virá o golpe para descobrir embustes examinando sempre as feições dos companheiros a ver se descobre quem o trai rindose para todos receandoos a todos não tendo inimigo declarado nem amigo certo Que tormento fazer sempre rosto risonho tendo o coração transido não poder mostrarse contente e não se atrever a ser triste Aprazível é considerar o que eles ganham com tanto tormento o que podem esperar dos trabalhos que passam e da mísera vida que levam O povo gosta de acusar dos males que sofre não o tirano mas os que o aconselham os povos as nações toda a gente incluindo os camponeses e os lavradores todos sabem os nomes deles e os respectivos vícios sobre eles lançam mil ultrajes mil vilanias mil maldições Todas as suas orações e votos são contra eles Todas as desgraças todas as pestes todas as fomes lhes são atribuídas e se às vezes exteriormente lhes tributam algum respeito não deixam de amaldiçoálo no mais fundo do coração têm por eles um horror maior do que têm aos animais ferozes Tal é a honra tal é a glória que recebem em paga dos serviços que prestam aos povos os quais nunca se darão por saciados e compensados do que sofreram ainda que por eles repartissem o corpo em pedaços Mesmo depois de morrerem os que ficam tudo farão para que o nome de ComeGente lhes seja atribuído e manchado pela tinta de mil penas e a sua reputação desfeita em milhares de livros e os próprios ossos a bem dizer pisados pelos vindouros que assim castigam depois de mortos os que tiveram vida ruim Aprendamos com estes exemplos aprendamos a fazer o bem Ergamos os olhos para o Céu seja por amor da nossa honra seja pelo amor da própria virtude olhemos para Deus Todopoderoso testemunha certa de nossos atos e justo juiz de nossas faltas De minha parte penso e não me engano que nada há de mais contrário a um Deus liberal e bondoso do que a tirania e que ele reserva aos tiranos e seus cúmplices um castigo especial 2006 Étienne de La Boétie Versão para eBookLibris eBooksBrasil Maio 2006 Proibido todo e qualquer uso comercial Se você pagou por esse livro VOCÊ FOI ROUBADO Você tem este e muitos outros títulos GRÁTIS direto nas fontes eBooksBrasilorg httpwwwculturabrasilorg eBookLibris 2006 eBooksBrasilorg nome rua cidade estado e CEP Email 9 de março de 2022 Prezado senhor Vladimir Putin Ao ver a escalada beligerante de seu governo contra a Ucrânia por motivos geopolíticos que não cabem mencionar nessa carta tenho refletido sobre de que maneira os povos podem se submeter voluntariamente ao governo de um só homem o que é o caso do senhor e os reflexos à legitimidade de um governo tirano e popular no âmbito interno pelo caráter nacionalista Podese dizer que o senhor pode invadir oprimir e matar porque conta com relações de favorecimento e obediência em múltiplos níveis ou instâncias Conta também com uma elite que dirá que a Ucrânia nunca foi dos ucranianos bem como tudo o mais que existe na Europa ou além O senhor pode alegar que os mísseis e balas russas não matam tampouco queimam criancinhas já que isso não aparece nos veículos de comunicação e que resistir às suas agressões contra outros seres humanos que querem buscar liberdade entender a justiça e o direito bem como entender que é indício irrefutável de falta de consciência geopolítica quando não uma agressão ao agressor ou nas palavras de Étienne de La Boétie ao tirano Isso nos leva a uma reflexão sobre uma questão que está na base da política o motivo que leva as pessoas a obedecerem ao senhor De forma particular o que está por trás dessa questão é entender a causa que pode levar um cidadão russo a abrir mão de sua própria liberdade já que para obtêla precisa apenas em um primeiro momento desejála Assim a servidão voluntária refletida nas atitudes do senhor para com seu povo e com nações vizinhas remete à perda do desejo de liberdade uma vez que os homens enquanto neles houver algo de humano só se deixam subjugar se forem forçados ou enganados É possível que os homens percam a liberdade pela força como está acontecendo em solo Ucraniano mas o que surpreende é o fato de não lutarem para reconquistála refletido em boa parte dos governados pelo senhor que ao longo de seu interminável governo assistem suas ações de forma inerte Percebo que a liberdade encontra novas formas de coerção oriundas não mais de fora mas sistematicamente imposta ao povo e pelo povo Penso que muitas pessoas seriam educadas por seus pais a aderir a sistemas opressivos O governo do senhor contribuiu nessa direção oferecendo à população pão e circo representado pelas mais diversas formas Também age nessa direção por meio da manipulação ideológica não digo de forma política de direita ou esquerda algo muito mais profundo fazendo crer que sua tirania é sábia e justa Com isso percebo que mesmo em condições de se rebelar e romper com a tirania o povo acaba renunciando a suas liberdades e recebe o próprio sofrimento de forma naturalizada sendo assim induzido a uma aceitação ou mesmo à valorização dos arranjos opressores vindo até mesmo de outros países que o senhor provoca Sob esse aspecto a ação do processo educativo sobre o indivíduo pode permitir características como a percebida da existência que precede a essência Indo além há também a da essência preceder a existência definindo a essência do indivíduo antes mesmo dele existir transformando o senso analítico e o florescimento do pensamento conservandose estruturas em muitos casos de soberania Um dos sustentáculos da servidão voluntária segundo La Boétie é o medo de ficar estigmatizado Os servos estão seguros de alguma forma quando ajustados e submissos a um arranjo hierárquico Temem em consequência o que pode pode acontecer a partir de um eventual confronto com seus dominadores Esse sentimento de acomodação explicaria a passividade que assumem e a forma como se submetem de bom grado a todo tipo de injustiça por vezes provocada pelo senhor sem nem mesmo perceber o quanto estão sendo prejudicados Destarte as três razões que levam o homem à servidão voluntária refletidas na liberdade no direito e na justiça estão presentes no modus operandi do senhor Primeiro que embora a natureza tenha uma grande força sobre nós muito mais forte do que ela é o costume Consequentemente os homens são o que a educação faz de cada um Em outras palavras La Boétie descreve Assim é os homens nascem sob o jugo são criados na servidão sem olharem para além dela limitamse a viver como nasceram nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer aceitam como natural o estado que acharam à nascença A segunda razão que o senhor tornouse covarde sob a sua tirania e se mistificou na figura do líder do povo russo com a perda da liberdade perdese imediatamente a valentia Perdem também a energia em todo o resto têm o coração abatido e mole e não são capazes de grandes ações Os tiranos o conhecem e à vista deste vício fazem tudo para piorálo Além disso o povo russo por não ter acesso claro às estruturas de pensamento e atitudes do senhor criam um mistério em torno da sua figura que o faz respeitálo sem nunca conhecer profundamente seus pensamentos No texto o autor acha estranho os súditos se encherem de respeito e de veneração pelos tiranos como se estivessem sob o efeito de um encanto ou magia pois na verdade era o próprio povo que forjava as mentiras em que posteriormente acreditava O terceiro ponto talvez o mais evidente no arcabouço do direito e da justiça é a própria estrutura do poder que o senhor criou em volta de si O autor da obra cita uma espécie de pirâmide de poder mas o senhor aprimorou essa ideia haja vista que chegou ao Kremlin em 1999 e contrariando prognósticos em 31 de dezembro do ano passado completou duas décadas governando a Rússia subvertendo totalmente o sistema do Estado ao seu favor Portanto as tiranias somente sobrevivem quando contam com aceitação por parte da população Por mais violentos que sejam os métodos de repressão são insuficientes para conter a longo prazo movimentos emancipatórios os quais no entanto nem sempre se manifestam porque os servos acabam se acostumando com sua condição e em consequência deixam de lutar pela liberdade pelo direito e pela justiça Esse processo ocorre por vezes de forma tão contundente que parece haver uma vontade obstinada das pessoas em servilo induzindo à suposição de que o amor à justiça e especialmente à liberdade não seria tão natural como se normalmente crê Por fim senhor as críticas apresentadas têm por finalidade uma motivação de estimular o repensar de determinadas práticas que o senhor tem adotado que refletem diretamente em seu povo Atenciosamente