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A REPÚBLICA DAS MILÍCIAS DOS ESQUADRÕES DA MORTE À ERA BOLSONARO Bruno Paes Manso DADOS DE C OPY RIG H T S OBRE A OBRA PRES ENTE A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos bem como o simples teste da qualidade da obra com o fim exclusivo de compra futura É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda aluguel ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo S OBRE A EQ UIPE LE LIVROS O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa Você pode encontrar mais obras em nosso site LeLivroslove ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste LINK Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais lutando por dinheiro e poder então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível Bruno Paes Manso A república das milícias Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro 1 Apenas um miliciano 2 Os elos entre o passado e o futuro 3 As origens em Rio das Pedras e na Liga da Justiça 4 Fuzis polícia e bicho 5 Facções e a guerra dos tronos 6 Marielle e Marcelo 7 As milícias 5G e o novo inimigo em comum 8 Cruz Ustra Olavo e a ascensão do capitão Ubuntu Autor Créditos Notas 1 Apenas um miliciano A entrevista com Lobo foi marcada em frente ao McDonalds da estação de trem da Central do Brasil o que me deixou animado por dois motivos Primeiro ali eu poderia chegar um pouco antes da hora marcada tanto para reduzir minha ansiedade como para observar o intenso vaivém naquele prédio histórico de onde partia ainda no século X IX a estrada de ferro D Pedro II A estação ainda por cima ficava bem em frente ao Morro da Providência a primeira favela brasileira que eu pretendia conhecer Depois que comecei a pesquisa para este livro todas as coisas no Rio de Janeiro passaram a ter um lado fascinante Sentiame como um turista deslumbrado vagando pelo centro histórico e cultural brasileiro olhando tudo à minha volta querendo aprender todas as coisas que ainda não sabia e redescobrir aquelas que eu conhecia apenas de forma superficial Em segundo lugar aquele encontro era especial porque finalmente depois de algumas tentativas frustradas eu iria conversar sobre milícias com alguém que havia participado intensamente desse cenário e que tinha se oferecido para me contar o que sabia Demorou para conseguir mas a conversa prometia Lobo o entrevistado vivia num sítio na Baixada Fluminense e não se sentia seguro para falar sobre o tema no bairro em que morava Naquele dia ele iria ao centro do Rio para acompanhar o enteado em um curso de gastronomia ao lado da estação de trem Fico preocupado porque ele volta tarde e o Rio de Janeiro está muito perigoso Por isso eu vou com ele sempre que posso Teremos algumas horas para conversar enquanto espero ele me sugeriu em uma mensagem de áudio no WhatsApp Eu não sabia o que esperar O relato que ele me fez sobre a família sua preocupação com a segurança do enteado suavizavam na minha cabeça a imagem do miliciano Tínhamos sido apresentados por um colega nosso que eu havia conhecido meses antes e que trabalhava no sistema penitenciário do Rio Para convencer Lobo a falar me comprometi a não revelar seu nome Lobo é um apelido que surgiu durante o nosso papo Eu também não daria detalhes que acabassem por denunciálo às autoridades ou a inimigos Garantir seu anonimato era a condição para a nossa conversa E prometi presenteálo com um livro Vimos a foto um do outro no WhatsApp para que nos reconhecêssemos na estação A impressão inicial que tive de Lobo quando o vi pessoalmente não correspondeu às minhas expectativas Ele era forte com excesso de peso alto pouco mais de um metro e oitenta cabelo curto quase raspado Usava boné uma barba moderna dois alargadores de orelha e tatuagens grandes em um braço Vestia uma camisa preta cheia de caveiras estilizadas que evocavam mais o Dia dos Mortos mexicano do que os esquadrões da morte brasileiros Parecia um integrante de uma banda de rock indie Pegamos o trem e fomos para o hotel onde eu estava hospedado em Copacabana Nos acomodamos na varanda que estava vazia Pedi duas garrafas de água mineral dei a ele meu maço de cigarros quase cheio e iniciamos a conversa Nas mais de cinco horas de papo Lobo se revelou um ótimo contador de histórias Falou da infâ ncia em São João de Meriti onde convivia com matadores e grupos de extermínio de seu ingresso nas milícias no começo dos anos 2000 e também de sua relação com as companhias e os batalhões policiais da região onde atuava Fumou o maço inteiro Falamos ainda dos três anos em que ficou preso acusado de mais de vinte homicídios e ocultação de cadáveres de sua absolvição por falta de provas e por fim de sua nova vida em liberdade Ele contou com naturalidade até mesmo episódios truculentos sem remorso nem vergonha do passado Não que se mostrasse frio com toques de perversidade ou coisas do gênero Nada disso As histórias se respaldavam em crenças comuns no contexto em que ele viveu e no trabalho que passou a fazer Na sua rede profissional como segurança privado e depois miliciano ações violentas faziam sentido e não eram vistas como problema mas como solução para fortalecer a autoridade e a ordem num bairro ameaçado por criminosos Contou sobre os diversos homicídios que testemunhou ou cometeu como se não fossem nada de mais E de fato não seriam se eu seu interlocutor enxergasse o mundo da mesma forma que ele Como um soldado que lutou em uma guerra e matou diversos inimigos Lobo não tinha por que negar seu passado Fora do combate tornou a ser um cidadão comum preocupado com a volta para casa do enteado depois do curso de gastronomia Lobo falou de violência portanto como se fosse um miliciano reformado não precisava mais matar mas compreendia a relevâ ncia e a necessidade dos assassinatos que presenciou ou cometeu A disposição de praticar homicídios segundo ele colaborou na construção do poder e da ordem no bairro onde sua milícia agia A nova ordem que ele ajudou a criar na sua concepção era melhor do que a vigente no passado estabelecida pelos bandidos e pelo tráfico A violência fardada dos paramilitares se justificava por ser um meio de defender os interesses dos cidadãos de bem contra a ameaça dos criminosos Por isso se orgulhava de ter sido assassino e passado a trabalhar no exército dos paramilitares do Rio tinha se visto numa guerra contra o crime e os homicídios as surras e a violência eram ferramentas de trabalho Percebi que a sua obsessão por caveiras também tinha a ver com isso Essas tatuagens eu fiz na prisão Minha ideia era fazer uma caveira para cada pessoa que matei Fiz duas mas depois desisti de continuar tatuando Lobo disse que precisou matar pelo menos quatro pessoas quando era miliciano sem contar as vítimas durante trocas de tiros que não entram na sua contabilidade por terem ocorrido durante os conflitos Mortos de guerra a gente não conta explicou Os assassinatos que contam são aqueles feitos para punir ou dar lições em que ele agiu como se fosse um juiz aplicando uma sentença mortal aos desviantes Lobo arregaçou a manga da camisa e me mostrou tatuado o artigo 121 que no Código Penal identifica o crime de homicídio Antigamente quando eu ouvia um é nóis já é é o trem cara do meu lado falando gíria do Comando Vermelho eu já queria matar Depois que fui para a prisão e dividi a cela com muito vagabundo mudei aprendi a ver o lado humano disse No presídio Lobo começou a fumar maconha e acabou levando o hábito para sua vida fora da prisão Fumo todo dia É o meu Gardenal Acabo indo nas bocas comprar Ainda não gosto de ladrão mas não é como antes Mudei minha visão explicou justificando com uma frase que seu enteado lhe ensinou e que atribuiu a William Shakespeare Quando a mente de uma pessoa evolui não tem mais como voltar atrás A disposição de Lobo para matar portanto não era a de um psicopata Tampouco sua obsessão por caveiras era satâ nica Sua determinação homicida não decorria de uma pulsão nem fazia dele um assassino que matava para defender os próprios interesses Considerava a violência que praticava instrumento em defesa de um ideal coletivo Definiu sua trajetória com base numa antiga crença segundo a qual o assassinato garantia poder ao assassino e sua transformação em herói na guerra cotidiana contra o crime Sobretudo depois dos anos 1960 quando ladrões e criminosos passaram a ser vistos como uma grande ameaça aos moradores das metrópoles ideias semelhantes de uma justiça retaliativa vinham seduzindo muita gente nas cidades brasileiras De acordo com essa perspectiva para anular a violência do crime bastaria ser ainda mais forte e violento que o criminoso Crenças como essa se popularizaram entre policiais levando à formação de diferentes arranjos Policiais e vigilantes se organizaram em todo o Brasil No Rio de Janeiro e no Espírito Santo foi criada a Scuderie Le Cocq em homenagem ao detetive Milton Le Cocq morto em ação em 1964 Em São Paulo nos anos 1980 grupos de justiceiros começaram a agir Em diversas regiões do país formaramse batalhões especiais de polícia que exibiam caveiras como símbolo de sua coragem e letalidade no combate aos traficantes de drogas que estavam se armando e controlando territórios Tais grupos passaram a travar disputas entre si na tentativa de cumprir em suas áreas de atuação o papel que o Estado brasileiro não parecia capaz que seria o de garantir pelo monopólio legítimo da força a formação de uma autoridade que impusesse a todos o respeito às regras locais Durante o período democrático com a propagação desses grupos armados o Brasil se tornaria o país com a maior taxa de homicídios no mundo mesmo sem estar envolvido em guerras conflitos civis étnicos ou religiosos Lobo foi apenas uma das peças dessa engrenagem urbana de conflitos entre grupos que acreditavam participar de uma guerra legítima cada um defendendo interesses distintos e com efeitos devastadores sobre a imensa maioria da população obrigada a viver em meio a balas perdidas e submetida à tirania de forças à margem da lei Lobo ingressou nas milícias o lado paramilitar dessas organizações logo que esse modelo começou a se expandir no Rio de Janeiro Acompanhou portanto a rápida expansão desses grupos que cresceram e se infiltraram nas instituições do Rio a ponto de se tornarem a principal ameaça à democracia no estado Lobo nasceu no final dos anos 1970 em Duque de Caxias e passou a adolescência em São João de Meriti um dos treze municípios da Baixada Fluminense A região um conjunto de planícies que se estende ao longo de oitenta quilômetros da Via Dutra ficou famosa como reduto de grupos de extermínio Apoiados por empresários bicheiros políticos municipais e pela polícia local eles matavam sob a alegação de defender os trabalhadores O exmiliciano se recorda de uma cidade tranquila em sua infâ ncia e adolescência onde ele podia jogar futebol nos campinhos do bairro até as duas da manhã Conforme registros oficiais porém a cidade não era tão calma assim a taxa de homicídios ultrapassava os trinta casos por 100 mil habitantes no final dos anos 1990 Lobo mesmo frisando a sensação pessoal de segurança lembra de ter presenciado assassinatos Meu pai trabalhava com obras fazia empreitadas com um cara conhecido na Baixada como Papa Papa não era policial era justiceiro Não deixava roubarem no bairro Uma vez quando eu tinha uns oito anos estava sentado no bar e vi dois negros passarem pela avenida Na época a gente ainda não via fuzil as armas mais pesadas eram calibre 12 Papa estava passando de carro parou e matou os dois Depois entrou no bar pediu uma cerveja uma coca pra mim e ficou lá sentado Eram umas onze da manhã Passou a viatura da polícia e ele Opa é tudo comigo O problema lá onde eu morava era se você usasse droga ou roubasse Assim como outros de sua idade Lobo curtia baile funk e chegou a descolorir o cabelo num estilo semelhante ao de jovens de favelas ligadas ao Comando Vermelho Quase morreu pela ousadia Eu vinha subindo a rua o Papa parou o carro do meu lado no meu cu não passava nem agulha Ele acelerou foi na minha casa e deu o maior esporro no meu pai Pô seu filho é bandido agora Tá andando que nem vagabundo Eu quase matei seu filho Manda ele cortar o cabelo Foi prontamente atendido Em 1998 Papa que atuava como empresário na região e cujo nome é João Paulo Neves assassinou o vereador Sérgio Costa Barros O político foi sequestrado na Câ mara Municipal colocado no portamalas do carro e levado até um terreno baldio onde carro e corpo foram queimados Um amigo nosso o Berimba vinha pela estrada viu o Papa e ofereceu carona O justiceiro aceitou e contou o que tinha feito Depois disse que o Berimba tinha se tornado cúmplice por ajudálo a escapar da cena do crime Um ano depois durante as investigações sobre a morte do vereador a polícia descobriu a identidade do carona Berimba precisou testemunhar contra João Paulo virando uma granada sem pino que podia explodir a qualquer momento A vingança de Papa era dada como certa O matador no entanto perdoou o rapaz Em 2006 Papa foi condenado a dezoito anos de prisão pelo assassinato do político Os homicídios Lobo explicou funcionavam como um instrumento para controlar os comportamentos desviantes em seu bairro Normalmente só morria quem devia e usava drogas A ilusão de que as mortes são previsíveis e de que só morre quem desrespeita as regras é uma crença comum entre moradores de bairros onde atuam grupos de extermínio e que eu entrevisto faz alguns anos Como se tais ações fossem um dispositivo para garantir a preservação das regras locais Os roubos estes sim seriam ações intoleráveis e covardes Por serem imprevisíveis e atingirem vítimas escolhidas aleatoriamente causariam medo e repulsa nos moradores Seriam repudiados e associados a valores negativos por causar imprevisibilidade e desordem Já os matadores ganhariam aplausos ao resgatar a ordem usando violência contra os violadores das normas locais A amizade e o convívio com policiais reforçavam em Lobo a convicção de que violência produz ordem Uma noite ao sair de uma casa de shows na Baixada a Via Show em companhia de um amigo policial que estava de folga os dois pararam diante de um carrinho de cachorroquente que funcionava de madrugada fazia mais de vinte anos Os donos eram um casal de idosos que vendia o lanche a um real pelo copinho de refresco cobravam mais vinte centavos Enquanto Lobo e o amigo aguardavam na fila dois jovens pediram seus lanches com suco e se recusaram a pagar pelo refresco Como o vendedor insistiu na cobrança eles jogaram uma moeda de cinquenta centavos na cara dele e foram embora dando risada Vamos lá que eu vou enquadrar os moleques o colega policial disse a Lobo Calma aí não vai matar os moleques Lobo tentou ponderar Fica tranquilo só vou dar uns tapas na cara uns esculachos Os dois voltaram para o carro e foram atrás dos garotos O policial já desceu atirando Agora vocês não humilham mais um trabalhador disse enquanto os executava Havia muitos caminhos possíveis para quem vivia em um contexto conflagrado como o da Baixada dos anos 1980 e 1990 O cotidiano de conflitos ainda que influenciasse as escolhas não determinava o futuro de ninguém Existiam no entanto incentivos perversos que empurravam os jovens para a violência talvez o principal deles fosse fazer parte de um grupo que controlava o poder local Mesmo diante do risco de morte prematura e de prisão a ideia era forte e sedutora criava sonhos e oportunidades O sonho de agir em defesa da comunidade bem como as oportunidades geradas no ambiente conflagrado do Rio de Janeiro atraíram Lobo para a área de segurança Ele queria ser policial desde pequeno mas não passou nos concursos públicos Sempre gostou de armas Teve o primeiro revólver ainda com dezesseis anos um oitão enorme trocado por uma pistola 9 mm que apesar de mais impactante dificultava a compra de munição Para ganhar a vida foi trabalhar como estoquista em uma loja de brinquedos no centro do Rio A dona percebendo seu porte de estivador sempre o colocava para tomar conta da loja no final de ano e o convocava como motorista e segurança em festas noturnas Ele ia orgulhoso usando terno e dirigindo o carro da madame Demitido da loja investiu o dinheiro da demissão em um curso de segurança patrimonial O mercado de segurança privada em que predominam empresas de policiais era uma forma de permanecer fiel por outras vias a seu sonho de infâ ncia mesmo que longe da corporação Seguiu em frente e fez o curso avançado de tiro e de transporte de valor com pistola e espingarda calibre 12 para carrosfortes e o de segurança pessoal Ainda assim a oportunidade de um trabalho formal não aparecia porque ele nunca tinha sido contratado com carteira assinada e os empregadores exigiam a comprovação de experiência Restaram portanto os bicos Lobo foi trabalhar como segurança numa boate em Botafogo junto com outros cinco funcionários liderados por um policial da inteligência da Polícia Militar Como não ganhava muito e era recémcasado com uma filha de seis meses aceitou que um amigo dono de um açougue em Jacarepaguá o indicasse para alguns policiais que mandavam na comunidade em frente ao seu comércio e que sempre pediam carne fiada quando faziam churrasco para os moradores Conheço um moleque sério que faz segurança o açougueiro disse a um desses policiais O policial aceitou a indicação Quero falar com ele O salário era irrecusável quatro vezes mais do que Lobo ganhava na boate de Botafogo Precisava tomar uma decisão e acabou aceitando mesmo sem saber direito do que se tratava Era o ano de 2002 e ali começava sua carreira no negócio que anos depois seria batizado de milícia Lobo foi mais do que um segurança normal Integrou uma espécie de subprefeitura de uma área localizada em um pequeno morro em Jacarepaguá com 1500 casas Nos três primeiros meses como se mostrou confiável acabou se tornando o frente da comunidade o segundo posto numa hierarquia cuja liderança era exercida por dois policiais de batalhões cariocas um da zona norte e outro da zona oeste O trabalho era remunerado com a taxa de segurança paga à associação de moradores local que servia de fachada institucional aos milicianos O grupo de policiais também fornecia aos moradores gás por um preço acima do mercado produto que eles eram proibidos de adquirir fora do morro O fantasma da invasão dos traficantes da Cidade de Deus bairro vizinho controlado pelo fortemente armado Comando Vermelho favorecia a adesão dos moradores que não se viam em condições de recusar o pagamento Tudo com a aprovação tácita do 18o Batalhão de Jacarepaguá que se aproveitava da parceria para ganhar dinheiro e poder de fogo O morro também era vizinho da comunidade do Rio das Pedras bairro onde a governança historicamente feita por policiais e associados era considerada bem sucedida e começava a servir de exemplo para os arredores A nova solução para gerenciar o território se baseava na presença de autoridades policiais com capacidade e disposição para usar a violência Envolvia também uma parceria com a associação de moradores que fazia contatos no Parlamento municipal para conseguir benfeitorias em troca de votos e a cobrança de taxas que geravam receitas na própria comunidade como a venda de gás instalação de gato de eletricidade e água Tudo isso com o apoio dos policiais dos batalhões locais Em 2002 no pequeno morro de Jacarepaguá a instalação de TV a cabo clandestina a gatonet ainda não fazia parte do empreendimento Também não havia espaço físico para a expansão de área para grilagem ação ideal em regiões próximas a terrenos preservados por leis ambientais Os policiais contudo logo perceberam o potencial da construção de lajes erigidas sobre o térreo dos barracos para ganhar dinheiro com aluguel de quartos Os novos imóveis adensavam o bairro ampliavam as receitas com as taxas e multiplicavam os votos em potencial a serem trocados com políticos A vizinha Rio das Pedras como não podia deixar de ser era a fonte de inspiração Quando comecei a trabalhar com as milícias a gente via passar um paraíba forma pejorativa de se referir a pessoas que migraram do Nordeste com um carro zero quilômetro vindo lá do Rio das Pedras A gente pesquisava perguntava se era miliciano e eles diziam Não o cara tem trinta lajes na favela Aí as milícias começaram a fazer igual A estrutura do grupo que comandava o pequeno território em Jacarepaguá era formada pelo sargento e pelo cabo de dois batalhões distintos eles é quem davam as ordens nos bastidores Lobo era um dos contratados numa estrutura de cerca de vinte pessoas que incluía os funcionários da associação de moradores A taxa era de mais ou menos vinte reais por semana para os moradores e cinquenta reais ou mais para os comerciantes Quando não queriam pagar a gente era obrigado a oprimir Botava cartaz na casa das pessoas batia na porta e perguntava cadê o dinheiro Até pagar O dinheiro era enviado para a associação de moradores local onde se contavam os valores Esse grupo de cerca de vinte homens instalou uma cancela automática na frente da comunidade para controlar a entrada de moradores Alguns limites foram criados para o período da noite Quem chegasse de carro depois da uma e meia da manhã tinha que estacionar do lado de fora Foi proibida a estica ou seja a venda de drogas na calçada em frente ao morro onde se revendia a mercadoria vinda da Cidade de Deus Também ficou proibido o uso de drogas casas podiam ser invadidas se houvesse cheiro de maconha Os milicianos conseguiram ainda asfaltar parte das ruas do morro e pagavam salários para moradores varrerem a rua Os policiais dos batalhões donos do negócio apareciam somente a cada quinzena e eram os principais responsáveis pelo armamento pesado Arma nunca faltou disse Lobo Podia ser vendida pela polícia Um fuzil por baixo valia 25 mil reais O policial que pegava dois fuzis numa apreensão acabava botando 50 mil no bolso Isso se fosse fuzil velho um 762 Parafal Se fosse novo um AK 47 um AR15 um AR 10 o cara ganhava 30 mil por baixo Havia também o esqueminha do Paraguai com os matutos atacadistas que compram drogas e armas na fronteira para vender no Rio Eles chegavam com arma nova pistola Glock mandavam vir cinquenta cem de uma vez A ligação com os policiais era estreita Mesmo não sendo concursado Lobo contou que tinha farda e fazia operações conjuntas com os policiais do 18o Batalhão com direito a uso de armamentos pesados nas incursões à Cidade de Deus Eu entrava no 18o pegava fuzil saía a gente dominava tudo A parceria acabava funcionando para os dois lados Uma vez a gente foi pra uma churrascaria em Jacarepaguá Fui eu dois policiais e as piranhas prostitutas que os acompanhavam Quando eu saí tinha um K adett prata e uns moleques me olhando Os moleques olhando Sabe sexto sentido Eles foram almoçar na churrascaria Quando encostei no K adett escutei um barulho dentro do carro Alguém chutando Esperamos os moleques saírem Quando estavam chegando na Cidade de Deus enquadramos Passamos o rádio pros policiais do 18o Quando abriram o portamalas tinha uma mulher lá dentro Eles estavam fazendo saidinha de banco tiravam dinheiro passando em várias agências Na leitura de Lobo a parceria com o batalhão local e a tolerâ ncia política aos trabalhos dos milicianos são estruturais e condição para o funcionamento dos serviços de milícia no Rio Não adianta Se não tiver policial junto o trabalho não vinga O policial vai se sentir oprimido ver os caras andando com cordão de ouro cresce os olhos Tu não pode falar com eles de dinheiro Mexe com minha mulher mas não mexe com o meu bolso Durante a fase de expansão desses grupos em Curicica Taquara Tanque Pechincha Gardênia Azul Vila Sapê entre outras comunidades no entorno do bairromodelo Rio das Pedras a relação com os paramilitares se estreitava em noitadas animadas em que policiais se reuniam com parceiros depois do expediente em casas noturnas choperias ou casas de massagem muitas das quais deles próprios a maioria na região da Barra Recreio e Jacarepaguá Eram grandes confraternizações disse Lobo Nessas reuniões ninguém podia usar telefone Existia uma casa em Jacarepaguá a Fórmula do Gol uma tenda enorme com uns pagodes que era o ponto de encontro Você entrava e brincava se a Corregedoria da Polícia entrar aqui pega mais de cem pistolas Tudo miliciano e polícia cara com corrente de ouro de dois dedos Nike 12 molas Omega Marea só esses carros na porta Eu comecei a andar com os donos de onde eu trabalhava churrasco no Rio das Pedras assim tu ficava conhecido pegava o contato e assim tu vai se alinhando Outra presença forte testemunhada por Lobo nas comunidades dominadas pelas milícias eram os proprietários de máquinas de caçaníquel ligadas aos bicheiros criminosos tradicionais do Rio de Janeiro com relacionamentos antigos e consolidados com a segurança pública e a política no estado Uma vez a gente tava lá na comunidade fazendo um churrasquinho e um deles chegou Lobo afirmou que foi uma situação fora de contexto inusitada O homem parou sua picape na entrada do morro foi até onde eles estavam deu boatarde e perguntou Quem é o frente Quem manda aqui Lobo se assustou com a situação e com o tom de voz seguro do interlocutor Caralho o cara chegou com uma pressão fodida vamos conversar com ele Lobo disse ao grupo antevendo complicações Ele se aproximou do sujeito e explicou Tranquilo irmão olha só eu estou na frente mas não sou o dono são dois policiais O mensageiro porém havia ido propor a eles um negócio que poderia aumentar as receitas da milícia E fez a oferta Seguinte a gente quer colocar umas maquininhas de caçaníquel aqui Vocês fazem o recolhe ganham um porcentual Lobo ficou entusiasmado com a oportunidade e disse que iria acionar os policiais donos do morro para bater o martelo Tinha expectativas com a novidade sempre quis se envolver com as maquininhas porque sabia que a presença delas nos bares fazia girar muito dinheiro Liguei pros dois e falei o cara quer botar umas trinta maquininhas Lobo não esperava a resposta que ouviu do outro lado da linha pois achava que os donos da milícia eram o demônio O policial disse Fala que ele pode colocar quantas quiser que a gente faz o recolhe guarda o dinheiro dele e que não precisava dar nada pra gente Trabalhador gosta a polícia não vai interferir Lobo obedeceu mas achou estranho Quando encontrou os dois policiais pessoalmente perguntou o motivo do acordo desvantajoso Um deles explicou Eu não quero nada com esses caras a única máfia organizada que existe no Brasil são eles não quero nada deles pra eles só trabalho de graça não se envolve com os caras O primeiro dia que tu vacilar eles te matam na hora matam juiz desembargador delegado Não se envolve Duas semanas depois Lobo estava trabalhando e os policiais foram buscálo no morro Como era quase meiodia achei que a gente ia almoçar na churrascaria Mas eles me levaram na Cidade de Deus Tinha um corpo na rua cheio de moeda de um real na boca A gente te trouxe aqui pra tu ver Quer se envolver com caçaníquel olha o que acontece esse cara fazia um recolhe e deu a volta nos caras Quando eles enchem a boca de moedas é porque o cara roubou deles deu a volta neles Aí aprendi O que é bom eu sempre guardo Se o cara que era polícia bravo não queria se envolver imagina eu que não era nada As máquinas foram instaladas sem tarifa para os bicheiros E aí no Dia das Crianças das Mães eles bancavam as festas davam bicicletas geladeiras e televisões para sortear no bingo agradando os moradores e fortalecendo a milícia Na zona oeste a aliança informal entre paramilitares policiais e bicheiros ia além do dinheiro que proporcionava aos integrantes da rede Havia também o discurso de que essa nova força devia marcar posição e fazer frente ao avanço dos rivais do tráfico de drogas Muitos desses milicianos moravam na zona oeste com suas famílias tinham ligação com a região o que reforçava o elo com a comunidade Conforme se ampliavam os territórios dominados pelos aliados aumentava a rede de apoio entre eles e o arsenal de armas à disposição dos milicianos que se apoiavam na luta contra os rivais A capacidade de rapidamente arregimentar um pequeno exército formando um bonde pesado em defesa dos interesses econômicos e territoriais dos integrantes do grupo garantia o poder dos milicianos na zona oeste As facções também formavam seus bondes e arregimentavam armamentos e homens entre os morros aliados A diferença fundamental era que o bonde da milícia contava com o apoio das próprias polícias e comandos detendo mais capacidade de inteligência e articulação Essa ligação garantia inclusive capacitação para os soldados menos preparados Numa noite Lobo e dois jovens de sua milícia estavam de guarda na comunidade quando um bonde da Cidade de Deus passou atirando contra eles A situação se agravou quando um dos garotos da milícia não conseguiu disparar o fuzil que segurava Travou e os agressores perceberam Restou a Lobo aguentar a troca de tiros com uma Glock e três carregadores Para evitar que essa situação se repetisse os chefes contrataram um sargento do Bope Batalhão de Operações Policiais Especiais e tivemos duas semanas de treinamento numa mata disse Lobo Mesmo sem um comando único cada grupo ainda descobria as potencialidades de mercado e receitas em seu território havia uma afinidade natural entre os colegas de farda e seus aliados Isso não significava necessariamente vida fácil no controle das comunidades já que boa parte dos moradores era forçada a fazer pagamentos para o grupo o que gerava resistência A gestão dos milicianos portanto sentiu a necessidade de desenvolver estratégias de poder local para que sua liderança fosse vista como benéfica O poder se fortalece Lobo diz quando a liderança é respeitada em vez de temida Espancamentos assassinatos e ações simbólicas de força faziam parte da rotina e cada grupo podia pesar a mão com estratégias distintas Podia ir do corte de cabeça à conversa disse Lobo Eu sempre preferi a conversa Lobo contou que na comunidade que ele liderava os policiais donos da milícia eram inclementes Ele no entanto recorria ao diálogo pois acreditava ser essa a melhor forma de escapar do DisqueDenúncia entidade civil que colabora com a segurança pública do Rio de Janeiro ao passar com a garantia do anonimato informações da população sobre crimes e violência a fim de orientar ações da polícia e da Justiça Uma estratégia bemsucedida para a consolidação da autoridade foram os churrascos com moradores também frequentados por homens com uniformes e armas de calibre pesado representando a nova lei local Funcionava quase como um teatro público cheio de simbolismos para que as pessoas não só enxergassem o tamanho da encrenca caso pensassem em desobedecer às regras mas também para que se aproximassem deles Não adiantava simplesmente chegar em silêncio Lobo explicou ponderando que excesso de força por si só pode não funcionar Marca um churrasco avisa os moradores dá pra eles carne e cerveja e coloca um monte de homem armado na festa Para manter a boa relação com os moradores assumir o papel de provedor sempre foi o método Betinho na época chefe da milícia na comunidade da Vila Sapê seguia esse procedimento no começo dos anos 2000 Quando via um garoto andando descalço oferecia um chinelo Se estava com cabelo grande como um mendigo mandava cortar e pagava o serviço O segredo de ganhar a comunidade era fazer o que o Estado não conseguia fazer Até escola particular pra criancinha especial o Betinho pagava Quando o tráfico quis voltar os moradores amavam tanto o pessoal que alguns até pediam armas para ficar atirando da janela nos traficantes contou Lobo A disposição para usar a força bruta continuaria fundamental porque sempre havia aqueles que desacreditavam explicou Lobo Mesmo quando eles passaram a exercer o monopólio da venda de gás por exemplo havia um vendedor que insistia em entrar de moto com botijão Lobo avisou que era proibido mas o vendedor voltou como se quisesse pagar para ver Então surgia o dilema típico para um miliciano como ensinar aos demais que sua autoridade não deve ser desrespeitada No caso preferiram em vez de matar apenas queimar a moto do vendedor A proibição do consumo de drogas na comunidade também era problemática A milícia de Lobo proibia o uso no morro A lição aos infratores era dada por meio de coronhadas socos tapas e espancamentos dependendo do caso Lobo contou o caso de um menino pego com cem gramas de maconha prensada Primeiro fizeram o garoto dichavar a droga produzindo um volume suficiente para encher um copo grande Depois o obrigaram a comer tudo misturado com Coca Cola quente o que levou o jovem a ficar três dias internado no Centro de Tratamento Intensivo do hospital vomitando verde Outro garoto do bairro também conhecido por abusar do consumo de drogas levou uma surra um dia tendo os braços quebrados entre outras torturas porque também era acusado de roubar na comunidade Certo dia quando Lobo foi levar sua pistola para consertar em um armeiro do morro enquanto esperava esse mesmo garoto se aproximou dele com uma tesoura tentou enfiála na cabeça do miliciano e depois fugiu Esse tipo de atentado foi considerado imperdoável e danoso para a imagem da milícia local Eles tinham que punir aquela ousadia de forma exemplar Durante duas semanas procuraram o garoto que havia fugido para a vizinha Cidade de Deus Ele foi visto por um X 9 informante de policial que ajudou a armarem uma arapuca chamando o garoto para comprar pó Depois de morto ele teve as mãos os pés e a arcada dentária arrancados por um conhecido das milícias especialista em não deixar vestígios de corpos e que cobrava quinhentos reais pelo serviço de desaparecer com as provas A existência de falas e crenças que justificam a ação dos homicídios se repete em realidades com taxas elevadas de violência permitindo aos assassinos e homens violentos agir e depois explicar suas razões sem constrangimento Essas justificativas que se reproduzem como um padrão nas dezenas e dezenas de entrevistas que venho fazendo com matadores durante anos sempre me impressionaram Eles falam como se as vítimas fossem culpadas da própria morte como se eles os matadores estivessem apenas agindo conforme as regras da coletividade local Entender o processo de formação dessas falas e crenças sempre foi o objetivo das minhas pesquisas Por que e como esses homens passam a acreditar que matar é certo mesmo sendo ilegal Não se trata de uma questão trivial uma vez que o crescimento das cidades civilizadas dependeu da consolidação desse tabu que interditou os assassinatos que se tornou lei sagrada e fortaleceu freios morais internos que impediram os homens de matar seus iguais Por que como e quando essa lei deixou de funcionar e nos tornamos o país com o maior número de homicídios no mundo mesmo em tempos de paz Lobo por exemplo contou a história de um jovem amigo policial que fazia vídeos matando pessoas que para ele se enquadravam na categoria das que deviam morrer Depois mandava as imagens para o seu grupo de amigos mais próximos no WhatsApp Para de mandar essas mensagens senão saio do grupo alertou Lobo O policial era deslumbrado com o próprio poder Ligava para Lobo de madrugada bêbado dando tiros para o alto em frente a bares de São João de Meriti Numa dessas performances quase foi morto por dois garotos do Comando Vermelho Ele e os colegas perceberam a tempo que seriam atacados conseguindo se antecipar e matar os dois Segundo Lobo o pai desse jovem era um policial aposentado respeitado na cidade honesto Nunca quis que o filho entrasse na polícia mas não conseguiu evitar Lobo apelou para a figura do pai a fim de convencer o amigo a mudar de atitude Se você não for mais discreto seu pai vai ficar sabendo O jovem policial contudo respondeu que isso não o preocupava porque quando entrou na corporação recebeu estes conselhos do pai Tu pode matar quem quiser isso é contigo porque quem vai ficar com a pica é tu Mas veja bem Eu te visito na cadeia como homicida mas se tu for preso como corrupto ou ladrão esquece que tu tem pai Não vou passar a vergonha de ver meu filho virar ladrão depois de trinta anos de uma carreira íntegra na polícia E concluiu para Lobo Meu pai é bravo pra caralho mas ele não esquenta a cabeça se eu matar Só se eu roubar Num contexto conflagrado mesmo os fatos mais cruéis acabam se naturalizando Podem chocar o entrevistador que precisa se esforçar para manter o semblante impassível ou assustar pessoas que observam de fora mas não aqueles que convivem com essa realidade O filho de onze anos de Lobo contou a ele um dia ter testemunhado a punição de um jovem que tinha roubado o celular da mãe de um traficante do morro vizinho sem saber quem era o dono O tráfico não perdoou Eles ficaram batendo nele no ladrão do celular o dia inteiro amarrado num botijão de gás Depois picotaram ele todinho No final do dia quando estava escurecendo amarram os pés e os braços dele cortaram o moleque no meio e ficaram arrastando o corpo dando risada umas três horas depois jogaram bola com a cabeça dele valendo mil seis contra seis o filho de Lobo relatou ao pai Meu moleque viu tudo disse Lobo narrando a cena de barbárie sem indignação entendendo que ela fazia parte de um cotidiano impossível de mudar Lobo no entanto foi empurrado para fora dessa dinâ mica de conflitos Depois de mais de três anos trabalhando na milícia em dezembro de 2005 ele participou daquela que seria a surra derradeira e que levaria parte de seu grupo para a prisão As complicações começaram por causa de uma menina do bairro que namorava um garoto apontado como vapor do tráfico na Cidade de Deus Os milicianos alertavam a menina para tomar cuidado e romper o namoro Ela não dava ouvidos Um dia a garota levou o namorado para visitar sua família para indignação dos policiais que invadiram a casa dela e acabaram batendo na mãe e no pai um borracheiro da comunidade A mãe denunciou a agressão na Delegacia da Mulher que prendeu Lobo os policiaischefes da quadrilha e mais duas pessoas No dia da detenção eles foram presos por seus amigos do distrito e do batalhão policial do bairro numa situação constrangedora Lobo contou A gente frequentava muita orgia puteiro termas junto com eles No sábado da minha prisão ia ter a gravação de um DVD de pagode numa casa de shows Muita gente ia se encontrar lá Eu estava na associação porque era dia de pagamento O pessoal indo pagar as taxas e eu fazendo segurança quando meu colega foi me avisar Caralho tem um monte de carro da polícia parado lá embaixo Tranquilo eu falei é tudo amigo meu Os policiais subiram e lançaram um olhar estranho em sua direção Percebi que tinha alguma coisa errada disse Lobo A casa caiu um dos policiais disse a ele Você está com sua identidade Tem um mandado de prisão contra você Lobo estava com uma pistola 45 e com três granadas de efeito moral Entregou tudo ao policial e disse A gente não troca tiro Tamo numa só tudo junto e misturado Chamou o advogado e imaginou que sairia na mesma noite Na delegacia percebeu que a barra estava pesada e que haviam armado contra ele A surra da família foi só desculpa disse No tempo em que esteve preso veio a saber que o interesse deles tinha entrado em choque com o de uma milícia concorrente ligada a um deputado estadual poderoso Na semana que antecedera à prisão o policial dessa milícia havia chegado à paisana na área de Lobo com uma pistola 762 sem camisa e com um colete à prova de balas Foi abordado porque Lobo não o conhecia e achou que poderia ser um traficante A abordagem causou confusão Lobo precisou chamar seus chefes os policiais proprietários para evitar troca de tiros Eles deram razão a Lobo e esculacharam o invasor Quando só tinha encrenca nego desovando carro abandonado por aqui você não vinha Agora não se mete aqui Quando entrar tem que pedir licença Você está arrumando problema com o cara Lobo porque ele é PI pé inchado termo pejorativo para se referir a segurança privado Tem que falar comigo que sou Mike gíria para policial A prisão segundo Lobo foi uma forma de o chefe da outra milícia mostrar poder e lembrar quem de fato mandava naquela área Lição aprendida a duras penas A milícia de Lobo não tinha as mesmas conexões políticas nem os mesmos contatos na segurança pública Essas conexões são importantes porque não faltam razões para prender integrantes desses grupos Basta querer No caso da milícia à qual Lobo pertencia os policiais da delegacia local foram ao cemitério clandestino usado para a desova de corpos e acusaram o grupo pela morte de mais de vinte pessoas enterradas ali A prisão do grupo não acabaria com o negócio Apenas o levaria a mudar de mãos promovendo novos arranjos entre policiais que assumiriam o controle do território Foi uma das primeiras prisões de milicianos Outras viriam a acontecer sobretudo a partir de 2007 quando o tema ganhou destaque na imprensa Historicamente houve no Rio dois núcleos a partir dos quais esse modelo de negócios se irradiou Um deles em Jacarepaguá se consolidou com o domínio exercido por policiais na associação de bairro da comunidade de Rio das Pedras Outro núcleo na região de Campo Grande e Santa Cruz cresceu com a presença de policiais no setor de transportes clandestinos de vans dando origem ao grupo conhecido como Liga da Justiça A grande novidade desses modelos de negócios na cena criminal do Rio é que os policiais ao se organizarem em milícias passaram a disputar territórios e mercados com facções do tráfico que antes se relacionavam com policiais pagando propinas e comprando armas e munições Não é simples precisar quando esse modelo territorial inspirado no Rio das Pedras começou a crescer para os bairros vizinhos Mas existem alguns marcos Um deles é apontado pelo delegado Vinicius George um dos profissionais mais experientes da polícia do Rio George era chefe de gabinete do deputado Marcelo Freixo durante a CPI das Milícias ocorrida em 2008 na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro Liderada por Freixo a comissão pediu o indiciamento de 225 pessoas entre políticos policiais agentes penitenciários bombeiros e civis O delegado cita um episódio ocorrido na Vila São José Operário na Praça Seca quando policiais militares cansados dos atrasos de pagamento de propinas executaram o grupo de traficantes do morro O resultado foi a perda momentâ nea dos financiadores Diante do vácuo de poder esses policiais perceberam que eles próprios poderiam ganhar dinheiro no território sem intermediários Com o tempo assim como ocorreria nos bairros vizinhos de Jacarepaguá eles passaram a cobrar por serviços de segurança sinal de TV a cabo e internet a vender gás alugar barracas a cobrar taxas de mototáxi e transporte alternativo Ganharam o apoio político de um vereador do Partido Republicano PR Luiz André Ferreira da Silva o Deco que expandiu a atuação para as comunidades vizinhas de Bateau Mouche Chacrinha Mato Alto e Bela Vista A expansão foi rápida porque havia comunidades abandonadas pelo poder público e um modelo de negócio pronto para ser replicado Eles ganhariam para fazer o que o Estado não fazia Antes da prisão de Lobo em dezembro de 2005 ainda era difícil entender o que vinha ocorrendo A detenção do grupo foi noticiada de forma discreta em pequenas notas de jornal A jornalista Vera Araújo de O Globo foi a primeira a perceber a gravidade dessa movimentação de policiais Em março de 2005 ela assinou a reportagem inaugural sobre o tema e responsável pelo batismo da ação paramilitar como obra de milícia O termo foi usado em razão do espaço limitado para o título Milícias de PMs expulsam tráfico dizia a manchete da página 18 do jornal A linha fina usada abaixo do título explicava Grupos de policiais assumem o controle em 42 favelas mas há denúncias de abusos No dia seguinte em nova reportagem Vera e a jornalista Virgínia Honse também de O Globo apontaram a existência de onze grupos seis deles chefiados por policiais militares como protagonistas da ofensiva que teria tomado 42 favelas de Jacarepaguá e da Barra da Tijuca na zona oeste do Rio A matéria descrevia ainda uma série de características do modelo de negócios que começava a se consolidar cobrança por serviços de segurança assistência social fornecimento de cestas básicas para ganhar a simpatia dos moradores venda de gás e arrecadação com linhas do transporte clandestino Era nessa região que Lobo atuava sob a vista grossa do 18o Batalhão Mesmo sendo de conhecimento público e da inteligência da segurança pública do Rio o assunto contudo morreu por algum tempo Nos meses seguintes ocorreram as primeiras desavenças internas em outra rede de milicianos principalmente envolvendo disputas sobre transporte clandestino em Campo Grande e Santa Cruz mas ainda sem grande repercussão nos jornais O avanço territorial dos paramilitares sobre as comunidades da zona oeste voltou a ganhar destaque depois de uma série de ataques realizados na cidade às vésperas do réveillon de 2006 mais precisamente na madrugada de 28 de dezembro Criminosos armados com fuzis e granadas divididos em cerca de vinte carros praticaram diversos ataques e atentados contra delegacias ônibus e postos policiais matando dezoito pessoas e deixando trinta feridos Dois policiais militares estavam entre os mortos e oito entre os feridos Muitos atentados se concentraram na zona oeste no entorno de Jacarepaguá e das regiões dominadas pelas milícias O primeiro ataque ocorreu na Barra da Tijuca onde um policial foi assassinado e outro ferido com tiros de fuzil Na cena mais trágica um ônibus que ia do Espírito Santo para São Paulo foi incendiado na avenida Brasil e sete pessoas morreram queimadas O governo do estado comandado por Rosinha Garotinho se apressou em anunciar que os ataques eram um recado ao governador eleito Sérgio Cabral Filho que assumiria em 2007 para que não endurecesse o sistema prisional Anthony e Rosinha Garotinho encerravam seu ciclo de oito anos no poder Lembro que quando ouvi essa notícia na época imediatamente me ocorreu que as facções cariocas tinham imitado os criminosos das facções paulistas Sete meses antes em maio de 2006 o Primeiro Comando da Capital PCC havia realizado diversos atentados contra agentes de segurança delegacias ônibus e postos policiais matando 59 policiais e agentes num único fim de semana Os criminosos paulistas deram uma demonstração de força depois que o governo estadual transferiu 765 lideranças para uma penitenciária de segurança máxima De dentro dos presídios o grupo estabeleceu uma nova ordem no mercado criminal de São Paulo com regras e protocolos para os participantes desse universo encerrando as rivalidades entre pequenos grupos que marcaram os anos 1990 no estado A ação foi interpretada como uma demonstração de poder das lideranças do PCC para mostrar aos criminosos que havia uma autoridade a ser respeitada no mundo do crime paulista No Rio a situação caminhava em outra direção O domínio territorial continuaria estratégico para diversos grupos criminosos em disputa Os paramilitares seriam mais um a participar da confusão No começo dos anos 2000 havia o Comando Vermelho o maior deles e o Amigos dos Amigos que ainda estava junto com o Terceiro Comando numa união batizada como Terceiro Comando dos Amigos Os dois últimos grupos romperiam e a briga daria origem em 2003 ao Terceiro Comando Puro No entanto as novas estratégias da banda podre da polícia se espraiando a partir de dois núcleos no entorno de Jacarepaguá Campo Grande e Santa Cruz que apostavam no controle dos bairros para ganhar dinheiro não faziam parte do tenso acordo que havia anos as facções mantinham com os policiais Os paramilitares seriam afinal mais uma força a participar da pesada disputa pelo controle das mais de setecentas comunidades pobres do estado numa concorrência já acirrada e violenta Foi essa revolta na verdade que o Comando Vermelho buscou tornar pública no dia 28 de dezembro de 2006 apoiado por facções concorrentes quando atacou policiais e moradores do Rio Como se tentasse protestar contra a concorrência daqueles cuja missão deveria ser prendêlos O conteúdo de panfletos apócrifos apreendidos nos locais dos atentados deixava evidente a denúncia feita pelos criminosos As milícias eram chamadas de Comando Azul em referência à cor dos uniformes da Polícia Militar Rosinha e Garotinho apoiam a milícia contra o pobre e o favelado A milícia massacra os pobres da favela e a resposta é o rio de sangue dizia um dos panfletos Essa hipótese foi depois confirmada pelo secretário de Administração Penitenciária da época Astério Pereira que identificou nos ataques a revolta dos criminosos com a entrada de policiais na disputa por territórios Ele mostrou um documento da Subsecretaria de Inteligência apresentado à cúpula da Secretaria de Segurança informando dos planos para os ataques no dia 28 Escutas mostravam que o traficante Jorge Ferreira o Gim da Cidade de Deus havia se reunido com chefes de outras facções criminosas no Morro da Mangueira na zona norte para organizar as ações em represália às invasões de milícias Se os ataques de 2006 ocorreram em um novo contexto de certa forma representaram também uma reclamação antiga registrada na crônica policial do Rio de Janeiro pelo criminoso Lúcio Flávio cuja vida deu origem ao filme Lú cio Flávio passageiro da agonia dirigido por Hector Babenco em 1976 Na década de 1970 ao ser preso Lúcio Flávio reclamou das relações entre os policiais do Esquadrão da Morte com o crime indignado com a entrada dos policiais no negócio E soltou a frase Polícia é polícia bandido é bandido Não devem se misturar igual água e azeite O conselho nunca seria levado a sério A conversa com Lobo era um elemento entre tantos para eu entender a história da violência e suas dinâ micas a partir do Rio de Janeiro A sensação era de que um século não seria o bastante para eu conhecer a complexidade local Algumas perguntas de fundo que me perseguiam desde outras pesquisas voltariam a se repetir nas investigações sobre o Rio Eram perguntas diferentes das que agentes de segurança e da Justiça costumam fazer em busca de provas que apontem a culpa ou a inocência de alguém Minha investigação ao contrário da deles não buscava fazer julgamentos mas compreender por que e como a sociedade vem produzindo esses comportamentos violentos e induzindo seus participantes a seguir esses caminhos Minhas questões eram outras como esses grupos criminosos se articularam Quais as características das crenças e dos discursos em defesa de conflitos e homicídios e como elas se formaram Que mecanismos sociais entraram em ação Qual o papel dos erros e das omissões das instituições Ainda havia a principal pergunta inescapável que minha investigação tentaria responder até que ponto a realidade do crime no Rio de Janeiro ajudaria a entender a escolha dos eleitores por Jair Bolsonaro para presidente do país em 2018 Bolsonaro visto como um político contrário à corrupção defendia abertamente uma guerra violenta contra o crime mesmo que ela produzisse homicídios Ele queria o armamento da população e tinha ligações diretas com integrantes de grupos milicianos do estado Como e por que chegamos a essa situação Por que roubo e corrupção chocavam mais o eleitor do que a violência Lobo era apenas um miliciano um pé inchado nem policial ele era e na prisão o chamavam com desdém de Milicinha por ele não ter vínculo oficial com as forças de segurança Depois que o entrevistei naquele hotel em Copacabana conforme outras informações surgiam nossa conversa pareceu ter levantado um fio no emaranhado de dados e relatos que poderia ser puxado para revelar uma história pouco conhecida A trajetória de Lobo me ajudava a entender o contexto de Jacarepaguá no começo dos anos 2000 e o papel do 18o Batalhão naquela região dava mais cores ao cenário onde trabalhou o sargento Fabrício Queiroz cuja carreira policial transcorreu na maior parte do tempo naquele batalhão Desenrolando o fio também era possível chegar ao então tenente Adriano Magalhães da Nóbrega que depois viraria capitão Queiroz e Adriano da Nóbrega se conheceram em 2003 no 18o Batalhão Anos depois em 2007 Queiroz se tornou o faztudo do gabinete do deputado Flávio Bolsonaro Já Adriano da Nóbrega foi protegido pela família Bolsonaro durante anos com parentes empregados no gabinete de Flávio mesmo durante o período em que mergulharia no crime do Rio para se tornar um dos criminosos mais violentos da cena local Também era preciso entender a história dos dois núcleos de formação das milícias cariocas o de Rio das Pedras em Jacarepaguá e o de Campo Grande e Santa Cruz Conhecendo a origem desses grupos ficou claro como essas quadrilhas mesmo depois de uma CPI que prendeu centenas de envolvidos se reinventaram e se tornaram ainda mais poderosas Em paralelo era preciso investigar o modelo varejista de drogas no Rio de Janeiro e a história recente da polícia fluminense sobretudo sua ligação com a contravenção grupos de extermínio esquadrões da morte jogo do bicho e com os porões da ditadura militar Ao lado da polícia também desempenham papel central nessa narrativa em defesa de uma ordem violenta as Forças Armadas Desde a redemocratização em 1985 alguns grupos militares se ressentiram da perda de protagonismo e se uniram em torno de ideais que só vieram à tona depois da eleição de Bolsonaro em 2018 Durante anos esses movimentos ficaram longe do debate público com as instituições a imprensa e os políticos praticamente alheios como se a democracia reconquistada a duras penas com a Nova República pudesse se perpetuar por inércia sem que fossem necessários cuidados e ajustes Durante quase três décadas a situação parecia estável A inflação foi controlada a moeda se estabilizou e o Brasil voltou a crescer com diminuição da pobreza e expansão de serviços públicos na saúde e educação No Rio de Janeiro houve anos de euforia com a descoberta das reservas de petróleo do présal em 2006 a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora em comunidades dominadas pelo tráfico a partir de 2008 e com a expectativa da realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas nos anos seguintes Quando esse ciclo virtuoso se interrompeu não houve liderança capaz de reverter o quadro A operação Lava Jato deflagrada pela Polícia Federal deu origem a uma sequência de denúncias e prisões por corrupção a partir de 2014 Em junho de 2013 a população tinha ido às ruas e de lá não saiu pelos três anos que se seguiram protestando em meio a uma intensa crise fiscal econômica e política O caldeirão havia sido destampado transbordando raiva e ressentimento No Rio a situação se agravou com a falência fiscal do Estado Os assassinatos voltaram a crescer a partir de 2017 e multiplicaramse as notícias de novos territórios ocupados pelos milicianos Em 2016 o impeachment da presidente Dilma Rousseff acirrara os â nimos da população inviabilizando a gestão do sucessor o vicepresidente Michel Temer também atingido pelas investigações da Lava Jato No dia 16 de fevereiro de 2018 o governo decretou intervenção federal no estado do Rio de Janeiro para estancar a crise da segurança no Rio segundo anunciava o governo Tropas do Exército foram enviadas para a cidade e parte da cúpula das Forças Armadas assumiu a segurança pública carioca Os holofotes da imprensa nacional e internacional focalizaram os desdobramentos da intervenção Com todos os olhos voltados para as tropas militares na cidade uma bomba explodiu no dia 14 de março de 2018 às vésperas do aniversário de um mês da intervenção federal O assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes colocou em xeque a credibilidade do Exército e das forças de segurança do estado Marielle era uma das vozes mais críticas à intervenção federal Com seu assassinato era como se os milicianos dessem um recado claro não importa a presença do Exército os olhares da imprensa nacional e estrangeira o interesse dos políticos e das instituições democráticas quem manda no Rio são as milícias A eleição de Jair Bolsonaro se deu nesse turbilhão Com ele foram eleitos políticos que desdenharam do assassinato de Marielle e que a difamaram depois de sua morte O interventor do Rio o general Walter Braga Netto desafiado e humilhado pelos milicianos assumiu em 2020 o cargo político mais importante do governo Jair Bolsonaro a chefia da Casa Civil Braga Netto passou a liderar o governo de um político que sempre defendeu a ação e até mesmo a legalização dos grupos paramilitares e que havia feito pouco caso do assassinato de Marielle A dimensão dos problemas em que o país se enredou tornouse ainda mais assustadora com a pandemia do novo coronavírus a partir de março de 2020 com um governo repleto de militares e um presidente negacionista que deixou o vírus se espalhar de forma descontrolada Desenrolar o fio dessa história sem a intenção de buscar culpados ajuda a compreender a lógica por trás das escolhas feitas e dos caminhos seguidos por seus protagonistas A raiva e o ressentimento que inundaram as ruas levaram representantes desses sentimentos autodestrutivos à liderança do país Entender essa trajetória para evitar que esses erros se repitam é uma das poucas saídas que restam aos brasileiros 2 Os elos entre o passado e o futuro Em 2002 quando Lobo começava suas atividades nas milícias o sargento da polícia militar Fabrício Queiroz era uma figura presente nas ruas de Jacarepaguá Lotado no 18o Batalhão Queiroz assim como Lobo era apenas uma pequena peça na longeva engrenagem social de produzir conflitos no Rio A história dele só ganharia relevâ ncia anos depois em 2018 com a eleição do presidente Jair Bolsonaro Queiroz era amigo leal do presidente e se tornaria um assistente parlamentar merecedor de toda a confiança de Jair e da família Bolsonaro O vínculo do sargento com Jacarepaguá não era apenas profissional Era nessa região da zona oeste que Queiroz e seus familiares viviam com endereços na Praça Seca Taquara e Freguesia Ele havia entrado no 18o Batalhão em 1994 sete anos depois de ingressar na PM Passou nove anos lá Era considerado pelos colegas um policial linha de frente corajoso do tipo que não fazia olho de vidro para o crime Esse vínculo pessoal com o território onde moravam seus familiares e vizinhos de Jacarepaguá dava ao seu trabalho ares de missão era preciso protegêlos do tráfico e das drogas A área do inimigo para Queiroz seus colegas do 18o e os paramilitares da zona oeste tinha endereço certo Cidade de Deus bairro estratégico para as vendas do Comando Vermelho uma das ilhas varejistas do comércio de entorpecentes na região A parceria dos policiais do 18o com os milicianos conforme Lobo descreveu expandiu esse modelo de negócios das quadrilhas fardadas na primeira metade dos anos 2000 Os dois lados tinham afinidades relevantes além das batalhas cotidianas com os traficantes da Cidade de Deus nenhum dos grupos via problema em ganhar um dinheiro extra cobrando por proteção e por outros serviços de forma ilegal Naquela época a principal referência na região de Jacarepaguá era Rio das Pedras favela que também pertencia à área de patrulhamento do 18o Batalhão O bairro era famoso por não admitir a presença de traficantes e por ser controlado por policiais que também moravam na região Esses grupos eram vistos como aliados e por isso tolerados como reforço nos embates recorrentes contra o crime local Nem o 18o nem os demais batalhões da polícia recusavam esse apoio armado e além disso muitos ainda podiam faturar com parcerias A disposição de Queiroz para o confronto junto com colegas do 18o apareceu em vários episódios de sua carreira casos quase sempre ocorridos na Cidade de Deus Em 1997 quando ainda era soldado recebeu um aumento salarial por ações policiais em que teria demonstrado alto preparo profissional ao agir com destemida coragem para alcançar o sucesso das missões O bônus criado anos antes por meio de um decreto apelidado de gratificação faroeste premiava policiais que se envolviam em conflitos Foi extinto em 1998 mas Queiroz entrou com uma ação para que a gratificação fosse integrada a seu salário Em sua trajetória profissional Queiroz participou de diversas ocorrências com indícios de irregularidade que envolveram mortes mas que acabaram esquecidas no limbo dos arquivos da Justiça Afinal havia o consenso entre autoridades de que os excessos da guerra travada pelos policiais contra o crime deveriam ser tolerados Como se a violência cometida por eles estivesse perdoada de antemão Não foram poucas as confusões em que ele e seus colegas se meteram No dia 2 de outubro de 1998 durante uma ronda na Cidade de Deus Queiroz e outro sargento prenderam um suspeito na Favela K aratê uma das áreas mais pobres do bairro Jorge Marcelo da Paixão de 47 anos foi levado à delegacia Os dois policiais disseram que Paixão fora flagrado com uma pistola munição e sacolés de cocaína O suspeito já havia cumprido pena de 24 anos por homicídio e estava em liberdade condicional Preferiu ficar calado e aguardou o julgamento numa cela do distrito Um mês depois diante da juíza Paixão declarou ter sido vítima de achaque Disse que estava trabalhando como mecâ nico na casa de uma vizinha quando os policiais chegaram ao local e pediram 20 mil reais para não prendêlo Conhecido como Gim Macaco Paixão era um criminoso com grande potencial de gerar lucro para os policiais por sua longa história no crime Havia estado no presídio de Ilha Grande com presos políticos em 1973 e garantiu ter mudado de vida quando saiu de lá Quatro testemunhas confirmaram ao Ministério Público a versão do achaque dada por Paixão inclusive a dona da casa onde ele trabalhava naquele dia Os quatro policiais que acompanhavam Queiroz e o outro sargento não testemunharam a favor dos colegas O promotor do caso Felipe Rafael Ibeas então pediu a absolvição de Paixão e determinou que a Corregedoria investigasse Queiroz por falso testemunho abuso de autoridade e denunciação caluniosa Paixão foi solto Os policiais envolvidos na ação entre eles Fabrício Queiroz não foram punidos Casos suspeitos como esse envolvendo policiais não eram incomuns Você percebe que há algo estranho na hora da audiência quando ouve os testemunhos das vítimas afirmou o promotor Ibeas que não acompanhou os desdobramentos da investigação na Corregedoria Na noite de 16 de novembro de 2002 quatro anos depois desse episódio Queiroz se envolveu numa ocorrência que provocou a morte de um jovem de dezenove anos depois de um alegado tiroteio ocorrido num baile funk na Cidade de Deus O sargento Queiroz disse na delegacia que foi atacado primeiro por isso atirou agindo em legítima defesa A vítima Gênesis Luiz da Silva levou um tiro na nuca e morreu no hospital O caso não teve repercussão nem desdobramento na Justiça Seria apenas mais um naquele ano marcado pelo crescimento da violência policial no Rio de Janeiro que chegaria a novecentos homicídios aumento de 52 em relação ao ano anterior A governadora petista Benedita da Silva vinha tendo dificuldades para controlar os policiais militares As denúncias de corrupção não paravam de pipocar Benedita havia assumido em 2002 como vice de Anthony Garotinho PSB que tinha deixado o cargo para disputar a presidência Benedita ficaria menos de um ano no governo Os policiais mineiros aproveitaram essa breve transição no governo para faturar Mineiro do verbo minerar garimpar é a gíria usada para definir o policial que consegue identificar um criminoso endinheirado ou procurado a fim de extorqui lo Para os policiais mineiros não importa se o alvo é traficante sequestrador ladrão de banco ou de carga Quanto mais rico maior o potencial de lucro do policial e maior sua receita com a extorsão Para encontrar essas pedras preciosas contudo é preciso dispor de bons informantes e saber separar o minério da lama O pedido de 20 mil reais que o sargento Queiroz fez a Jorge Marcelo da Paixão acusado de tráfico na Cidade de Deus para não prendêlo foi um caso típico desse garimpo Pelo menos de acordo com a acusação feita por Paixão arquivada na Justiça A mineração era um dos artifícios usados pelos policiais para obter receitas com o crime antes que se consolidasse o modelo de negócios dos milicianos de domínio de território para a obtenção de receitas criminais diversas Queiroz viveu o período de transição entre esses dois tipos de negócio E foi justamente a partir de 2002 que a área sob a responsabilidade do 18o Batalhão teve mais de quarenta comunidades de Jacarepaguá dominadas pelos paramilitares sem prejuízo para os negócios criminais anteriores Ainda em novembro de 2002 menos de duas semanas depois de Queiroz ter matado Gênesis Luiz da Silva no baile funk um grande escâ ndalo implicaria diretamente os comandantes do 18o Batalhão em denúncias de extorsão de traficantes na Cidade de Deus Segundo essas denúncias os policiais estavam aterrorizando a comunidade para forçar os integrantes do tráfico local a lhes pagar o arrego outra palavra corrente nas conversas cotidianas sobre o crime no Rio de Janeiro Pagar o arrego significa comprar a trégua com o batalhão ou o distrito local que então passa a tolerar o movimento de vendas no território O pagamento do arrego foi fundamental para consolidar o mercado de drogas nos anos 1990 no Rio uma espécie de regulamentação informal do varejo de drogas estabelecida na ponta pelo policiamento No caso da extorsão policial na Cidade de Deus três oficiais do Grupamento Especial Tático Móvel Getam foram presos preventivamente depois de serem gravados pelo presidente da Associação de Moradores pedindo que ele passasse um recado aos traficantes eles deveriam pagar 120 mil reais para evitar as abordagens e operações no bairro e no baile funk local Arrego básico Mas a bagunça no 18o era tamanha que quadrilhas de policiais do batalhão disputavam o arrego entre elas Quem vai zoar a porra da favela é o Getam e não tem essa porra quer pagar pra lá outro grupo de PMs paga Não quer pagar pro Getam não paga Essa indefinição não tá com nada ele oficial do 18o falou que quer ele quer é 120 contos na mão disse o major do Getam sobre o total a ser pago para eles na gravação feita pelo presidente da associação do bairro A situação era delicada Os traficantes não queriam pagar para o Getam porque já bancavam os policiais do batalhão Diante desse impasse os policiais eram enviados à comunidade para patrulhar os bailes funks atrapalhando os ganhos do tráfico O presidente da associação contou na época que diversas operações começaram a ser feitas no bairro para pressionar o pagamento A solução encontrada por ele foi gravar o pedido de arrego e denunciar os policiais Queiroz estava inserido nesse ambiente de extorsão mineração e arregos Mas o modelo de milícias que começava a se expandir em Jacarepaguá proporcionava novas oportunidades menos arriscadas e mais estáveis As milícias dispensavam o tenso contato cotidiano com o crime para praticar extorsão Dominado o território o relacionamento passava a ser com a população e a economia local principal fonte das receitas A partir de 2003 durante o governo de Rosinha Garotinho esse modelo seria tolerado por alguns políticos Em 2005 o sargento dos Bombeiros Cristiano Girão acusado mais tarde de chefiar as milícias em Gardênia Azul nos arredores de Jacarepaguá seria indicado assessor especial da governadora Em 2003 Queiroz voltaria a se envolver em confusão No dia 15 de maio ele participou de um homicídio ao lado de um tenente novato Adriano Magalhães da Nóbrega recémchegado ao 18o Batalhão Apesar de jovem Adriano tinha uma ficha respeitável Com 26 anos o tenente já havia feito curso no Batalhão de Operações Policiais Especiais Bope e tinha formação de sniper atirador de elite Era chamado de Urso Polar O jovem também gostava da linha de frente o que ajudou a estreitar laços com o experiente sargento Fabrício Queiroz de 37 anos conhecedor das ruas da zona oeste e do garimpo na Cidade de Deus O homicídio cometido pela dupla ocorreu durante uma ronda no bairro preferido dos mineiros A vítima foi o técnico de refrigeração Anderson Rosa de Souza pai de dois filhos segundo o atestado de óbito Os policiais alegaram ter reagido a uma agressão e afirmaram que Anderson gerenciava o tráfico na Cidade de Deus O caso entrou na conta da guerra às drogas O depoimento dos dois alegando legítima defesa bastou para o arquivamento da ocorrência que entrou no balanço de mortes cometidas pela polícia Depois desse homicídio na Cidade de Deus Fabrício Queiroz e Adriano da Nóbrega deixaram o 18o Batalhão mas mantiveram a amizade Queiroz foi para o Batalhão de Policiamento em Vias Especiais e Adriano para o 16o Batalhão que desde o ano anterior 2002 era um foco de acusações de arregos e corrupção Naquele ano o chefe da Corregedoria Unificada da Secretaria de Segurança Pública pôs sob suspeita alguns policiais do 16o que foram investigados por dar guarida ao traficante Paulo César Silva dos Santos o Linho nome forte do Terceiro Comando e um dos bandidos mais procurados do Rio Os policiais daquele batalhão também estavam envolvidos no esquema de cobertura ao traficante Elias Maluco do Comando Vermelho acusado de matar o jornalista Tim Lopes em 2002 Élcio de Queiroz policial preso em 2019 e apontado como o motorista do carro usado por Ronnie Lessa para assassinar Marielle Franco e Anderson Gomes também trabalhava no 16o Batalhão A ligação do clã Bolsonaro com a rede de paramilitares e milicianos que se formava na zona oeste se estreitou em 2002 com a eleição de Flávio Bolsonaro para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro O deputado de apenas 22 anos neófito no Parlamento pretendia se vender como o representante político e ideológico dos guerreiros fardados que lutavam por espaço e poder nos territórios do Rio Ao longo dos anos coube a Fabrício Queiroz o papel de principal articulador dessa rede de apoio no mandato do deputado primogênito Queiroz seria fundamental para ajudar a fortalecer a base de votos do clã Bolsonaro nos batalhões policiais para onde levou Flávio em sua primeira campanha para pedir votos Queiroz era amigo de Jair Bolsonaro desde os tempos do Exército Eles se conheceram em 1984 no oitavo grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista na Vila Militar no Rio Flávio então tinha três anos e chamava Queiroz de tio Na mesma artilharia em 1987 Queiroz conheceu o futuro vicepresidente Hamilton Mourão trabalhando como motorista do jipe do oficial Na época Bolsonaro sugeriu ao soldado que prestasse concurso para a polícia O ingresso de Queiroz na corporação ocorreu naquele mesmo 1987 e a relação de lealdade e confiança entre os dois se manteria desde então Quando Flávio se elegeu deputado estadual Jair Bolsonaro o chefe do clã estava em uma encruzilhada Na época final de 2002 Jair era uma figura com perspectivas eleitorais duvidosas Folclórico no Congresso Nacional com apelo restrito à parcela ultraconservadora do eleitorado parecia destinado a perder força a exemplo de diversos parlamentares populistas defensores de uma polícia truculenta Faltava a ele jogo de cintura para se aproximar dos partidos e dos colegas Ostentava ainda um temperamento paranoico o que parecia um empecilho aos acordos que definiam os poderes na Nova República Na eleição de 2002 Jair obteve menos votos do que em suas duas eleições anteriores apesar do sobrenome ainda ser popular O futuro presidente do Brasil parecia satisfeito em seguir no Parlamento diante da situação política adversa Mas precisaria suar A direita sem espaço no período da redemocratização também estava fragilizada naquele ano Depois de três derrotas consecutivas o candidato Luiz Inácio Lula da Silva finalmente venceu as eleições e iniciou seu primeiro mandato como presidente A eleição do filho mais velho de Jair Bolsonaro o zero um abriu espaço para a família no debate estadual da segurança pública Flávio era o segundo rebento a ganhar uma eleição se valendo do nome da família Dois anos antes Carlos Bolsonaro o zero dois tinha sido o mais jovem vereador eleito da história do Brasil com dezessete anos Segurança pública entretanto não era um tema para debater no â mbito municipal Na Assembleia Legislativa Flávio poderia brilhar defendendo a bandeira populista do pai da guerra contra o crime Com isso também poderia se destacar entre os mandachuvas da política fluminense como os deputados Paulo Melo Jorge Picciani e Domingos Brazão pouco conhecidos fora do Rio mas capazes de grande articulação no submundo político Naquele ano o futuro governador Sérgio Cabral Filho deixaria a Assembleia depois de três mandatos consecutivos para concorrer ao Senado de onde sairia para assumir o governo do Rio em 2007 Flávio se movimentava com tranquilidade na zona de conforto da família Bolsonaro entremeando sua pauta antidireitos humanos com projetos de lei em defesa da polícia e com homenagens a seus integrantes Por sugestão do pai Flávio entregou inúmeras medalhas a policiais mesmo àqueles flagrados em ações suspeitas Durante seus quatro mandatos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro Alerj Flávio Bolsonaro aprovou 495 moções e concedeu 32 medalhas a policiais militares policiais civis bombeiros guardas municipais e membros do Exército da Marinha e da Aeronáutica1 As homenagens que naqueles anos não passavam de agrado à sua base eleitoral acabaram deixando um rastro das afinidades da família Bolsonaro com os milicianos mais perigosos do Rio A insistência em condecorar os maiores vilões da corporação deixou cristalizada a ideologia de guerra que Jair Bolsonaro sempre sustentou As primeiras homenagens ocorreram ainda no primeiro ano do mandato de Flávio Bolsonaro no dia 27 de outubro de 2003 O sargento Fabrício Queiroz estava entre os laureados e recebeu uma moção de louvor e congratulações concedida pelo Parlamento A estrela principal contudo foi Adriano Magalhães da Nóbrega o tenente que carregava na bagagem a marca da caveira do Bope e a parceria com Queiroz nas vielas da Cidade de Deus Na homenagem havia ainda sete integrantes do Grupo de Ações Táticas do 16o Batalhão de Olaria onde Adriano passara a trabalhar poucos meses antes O texto da homenagem era o mesmo para todos Com vários anos de atividade este policial militar desenvolve sua função com dedicação brilhantismo e galhardia Presta serviços à Sociedade desempenhando com absoluta presteza e excepcional comportamento nas suas atividades No decorrer de sua carreira atuou direta e indiretamente em ações promotoras de segurança e tranquilidade para a Sociedade recebendo vários elogios curriculares consignados em seus assentamentos funcionais Imbuído de espírito comunitário o que sempre pautou sua vida profissional atua no cumprimento do seu dever de policial militar no atendimento ao cidadão2 O fato de alguns homenageados serem suspeitos de extorsão não preocupava Afinal a prática era tolerada pela corporação Os verdadeiros inimigos no entender desse núcleo eram os bandidos e os defensores de direitos humanos e dos controles estabelecidos pela legislação que não entendiam os riscos envolvidos na guerra contra o crime Algumas homenagens pareciam concebidas apenas para provocar polêmica Eram oportunidades para um deputado sem brilho se afirmar como herdeiro das ideias folclóricas do pai Em março de 2004 o homenageado foi o capitão Ronald Paulo Alves Pereira que atuava no 22o Batalhão por seus importantes serviços prestados ao estado do Rio de Janeiro quando da operação policial realizada no Conjunto Esperança no dia 22 de janeiro de 2004 às 0h30 que resultou em confronto armado com marginais da Lei onde três destes vieram a falecer sendo um deles o meliante Macumba líder do tráfico no Conjunto Esperança Complexo da Maré logrado êxito em apreender dois fuzis M16 A2 uma granada marca FMK de fabricação argentina dois aparelhos de telefonia celular um rádio transmissor da marca ICOM 58 projéteis intactos de 556 mm e três projeteis de 762 mm3 Três meses antes o capitão Ronald havia sido acusado de participar da chacina de quatro jovens entre eles um garoto de treze anos na casa de espetáculos Via Show em São João de Meriti na Baixada Fluminense Os jovens foram abordados no estacionamento pelo chefe da segurança de uma boate formada por policiais que faziam bico Geraldo uma das vítimas era soldado do Exército Foi acusado de tentar roubar um carro pelo chefe da segurança que acionou os policiais militares Os PMs espancaram os garotos e os levaram para uma fazenda distante onde foram torturados e depois assassinados com tiros de fuzil Os corpos foram encontrados três dias depois num cemitério clandestino Além de Ronald oito policiais foram acusados pelo crime Quatro acabaram condenados sendo três deles soldados Ronald o único oficial envolvido na chacina desmembrou o processo e continuou trabalhando normalmente como policial Com o incentivo de políticos como o deputado Flávio Bolsonaro No caso de Adriano e de seus colegas do Grupo de Ações Táticas do 16o Batalhão a homenagem ocorreu um mês antes de uma situação suspeita e escandalosa que estouraria em seguida Depois da homenagem de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio Adriano e os policiais laureados foram presos acusados de sequestro tortura e extorsão de três jovens em Parada de Lucas comunidade da zona norte da cidade Segundo testemunhos os policiais aplicavam a velha prática da mineração e do arrego Contudo um homicídio em especial desafiou a Secretaria de Segurança comandada na época por Anthony Garotinho que assumira o posto na gestão de sua esposa e sucessora no governo do Rio Rosinha Garotinho A vítima de Adriano e sua tropa foi o guardador de carros Leandro dos Santos Silva de 24 anos morto com três tiros Antes de ser assassinado Leandro esteve na Inspetoria de Polícia órgão criado por Garotinho com a finalidade de apurar desvios de policiais para fazer uma denúncia Contou que na semana anterior tinha sido espancado por policiais do 16o Batalhão e foi obrigado a pagar mil reais a eles De acordo com o depoimento de Leandro os policiais usaram sacos plásticos para asfixiálo e exigiram outros mil reais para deixálo em paz Leandro foi levado à delegacia para confirmar as denúncias e depois encaminhado ao Instituto Médico Legal para o exame de corpo de delito O subsecretário de Segurança Marcelo Itagiba e o inspetor combinaram com Leandro um flagrante para prenderem o grupo no ato do pagamento do arrego Não deu tempo Ele foi assassinado às 6h30 na porta de casa Adriano e os demais foram indiciados por homicídio qualificado Garotinho entendeu que sua autoridade havia sido desafiada e determinou a prisão dos suspeitos O comandante do 16o Batalhão o tenente coronel Lourenço Pacheco Martins foi à delegacia armado de fuzil para defender a tropa e ameaçou processar os jornalistas que estavam na porta da delegacia O gesto levou Garotinho a exonerálo afirmando aos jornais que os PMs haviam plantado provas para forjar um tiroteio e assassinar a vítima que prestaria testemunho Durante as investigações do caso a Inspetoria apurou mais dois casos de sequestro e tortura praticados pelo grupo Em janeiro de 2004 Adriano e os policiais foram presos preventivamente Apesar da repercussão do caso e da evidência dos crimes Flávio Bolsonaro voltou a homenagear Adriano da Nóbrega Em junho de 2005 mesmo preso ele recebeu uma honraria ainda mais importante a Medalha Tiradentes Conforme o regimento da Assembleia Legislativa ela deve ser concedida a personalidades nacionais ou estrangeiras que de qualquer forma tenham serviços prestados ao estado do Rio de Janeiro ao Brasil ou à humanidade O deputado usou uma ocorrência de quatro anos antes para justificar a homenagem e escreveu Em 26 de junho de 2001 Adriano logrou êxito em prender doze marginais no Morro da Coroa além de apreender quatro fuzis calibre 762 uma submetralhadora calibre 9 mm duas pistolas 40 uma granada argentina FMK quatro carregadores calibre 556 três carregadores calibre 762 dois carregadores calibre 40 106 munições calibre 556 dezesseis munições calibre 40 130 munições calibre 762 22 munições calibre 9 mm uma faca e noventa trouxinhas de maconha Adriano recebeu a Medalha Tiradentes no Batalhão Especial Prisional em setembro de 2005 Com isso o deputado Flávio Bolsonaro marcava posição em defesa de seu protegido e de tudo aquilo que os crimes de Adriano representavam Como os matadores e achacadores estavam moralmente perdoados cabia agora lutar com todas as armas para ludibriar a Justiça Antes do julgamento que condenaria a equipe de Adriano em agosto de 2004 policiais do 16o Batalhão foram acusados de minerar um extraficante e obrigálo a depor em benefício de Adriano e de seus companheiros Uma nova finalidade da mineração Seis policiais entre os quais o comandante do 16o foram presos administrativamente por causa da denúncia A vítima era José Roberto da Silva Filho o Robertinho de Lucas exlíder da favela em que Leandro foi morto Robertinho tinha sido chefe do Terceiro Comando e um dos traficantes mais famosos do Rio nos anos 1990 As disputas sangrentas travadas com a vizinha Vigário Geral ficaram na memória da cidade Ele havia sido preso sete anos antes em 1997 na gestão do delegado Hélio Luz na Polícia Civil famoso por prender os principais chefões do tráfico Solto em 2002 Robertinho dizia ter mudado de vida O estigma de bandido contudo dava brecha para a polícia chantageálo Segundo o depoimento de Robertinho na delegacia ele foi torturado e coagido a convencer os moradores de Parada de Lucas a retirarem a acusação contra os policiais do 16o e a testemunhar em defesa deles Como se recusou os policiais plantaram uma arma durante o flagrante e o prenderam Os capítulos desse imbróglio policial se desenrolavam longe do interesse geral e da imprensa Adriano tinha as costas quentes e conseguia transformar seus crimes comuns em questões políticas para os Bolsonaro seus protetores Em outubro de 2005 um júri popular condenou Adriano da Nóbrega a dezenove anos de prisão pelo homicídio do guardador de carros Leandro dos Santos Silva Quatro dias depois o então deputado federal Jair Bolsonaro foi à tribuna da Câ mara Federal defender o tenente Bolsonaro pediu à deputada Denise Frossard exjuíza criminal que o ajudasse a reverter a condenação Na interpretação de Bolsonaro tudo não passava de disputa ideológica e Adriano tinha sido injustamente condenado Sr presidente sras e srs deputados antes de iniciar peço à deputada Juíza Denise Frossard que ouça minhas palavras pois não tenho experiência nessa área e quero depois me aconselhar com sua excelência Na segundafeira passada pela primeira vez compareci a um Tribunal do Júri Estava sendo julgado um tenente da Polícia Militar de nome Adriano acusado de ter feito incursão em uma favela onde teria sido executado um elemento que apesar de envolvido com o narcotráfico foi considerado pela imprensa um simples flanelinha Todas as testemunhas de acusação seis no total tinham envolvimento com o tráfico o que é muito comum na área em que vivem iniciou Bolsonaro4 O deputado insinuava que a incriminação dos policiais havia sido armada pelos traficantes Para livrar o policial da acusação bastaria desqualificar a vítima ou as testemunhas na Justiça Durante a investigação no entanto os testemunhos foram confrontados com o GPS da viatura A hora e o local das torturas e dos achaques citados pelas vítimas coincidiam com a localização da viatura no momento dos crimes O discurso de Bolsonaro não levava em conta essas informações porque era sobretudo ideológico O deputado estaria sempre ao lado do policial com uma lealdade incondicional O que é importante analisar no caso continuou ele em seu discurso na Câ mara Federal Não considero que a promotoria o condenou deputada Denise Frossard Um dos coronéis mais antigos do Rio de Janeiro compareceu fardado ao lado da promotoria e disse o que quis e o que não quis contra o tenente acusandoo de tudo que foi possível esquecendose até do fato de ele sempre ter sido um brilhante oficial Terminado o julgamento ao conversar com a defesa fiquei sabendo que ela não conseguira trazer para depor o outro coronel que havia comandado o tenente acusado Por quê Porque qualquer outro coronel que fosse depor favoravelmente ao tenente bateria de frente com o coronel e com toda a certeza seria enquadrado por estar chamando de mentiroso o colega coronel Para o futuro presidente do Brasil a punição do tenente Adriano da Nóbrega e o aumento do controle da polícia estavam ligados acima de tudo à subserviência do governo Rosinha e Anthony Garotinho a ONGs estrangeiras e aos direitos humanos uma agenda imposta de fora para dentro É importante saber a quem interessa a condenação pura e simples de militares da Polícia do Rio de Janeiro sejam eles culpados ou não Interessa ao casal Rosinha e Anthony Garotinho porque a Anistia Internacional cobra a punição de policiais em nosso país insistentemente É preciso ter um número xis ou certo percentual de policiais presos O Rio é o estado que mais prende percentualmente policiais militares e ao mesmo tempo o que mais se posiciona ao lado dos direitos humanos completou como se fizesse uma denúncia Apesar da condenação de Adriano e de seu grupo por júri popular um ano depois o caso chegou à segunda instâ ncia da Justiça Os desembargadores anularam a decisão com o argumento de que os jurados analisaram as provas de forma equivocada Adriano foi absolvido em janeiro de 2007 Com o apoio de Bolsonaro ganhou uma avenida aberta para mergulhar em sua meteórica carreira criminosa O apoio à ideia e a ações violentas de guerra contra o crime não surgiu do nada Ele dialogou com percepções e sentimentos sinceros e profundos da população carioca Em 2002 quando um novo modelo de milícias se espraiava por Jacarepaguá uma série de tragédias assustava a cidade cansada das disputas cotidianas que envolviam facções rivais por poder e pelo varejo das drogas A sensação de não haver como combater o poder do tráfico se aguçou em junho daquele ano quando o jornalista Tim Lopes da Rede Globo foi assassinado por traficantes da Vila Cruzeiro no Complexo do Alemão Lopes foi criado no Morro da Mangueira bairro pobre e tradicional da região central do Rio que começou a se formar nas duas primeiras décadas do século X X por moradores vindos de cortiços e de casas demolidas das imediações A origem social do repórter facilitava seu trâ nsito entre mundos diversos Tim Lopes amava samba e futebol Era vascaíno fanático e mangueirense apaixonado Pretendia publicar um livro com histórias do Carnaval Na ocasião do crime que o vitimou Tim Lopes investigava a opressão armada imposta pelos vendedores de droga nos morros tema arriscado porque exigia a busca por imagens proibidas pelo tráfico Em 2001 munido de uma microcâ mera ele havia conseguido filmar uma feira de drogas o que rendeu ao jornalista e sua equipe o principal prêmio nacional de telejornalismo naquele ano A matéria exibida no Jornal Nacional mostrava o comércio livre na rua da Grota em plena luz do dia Vendedores ofereciam maconha a dois reais pó em promoção a cinco ou uma trouxinha maior por quinze reais Filas para comprar cocaína se formavam em pontos de venda vigiados por homens armados de fuzis Crianças com uniforme escolar mães com bebês de colo pessoas voltando do trabalho todas obrigadas a andar no meio daquele cenário opressivo A reportagem ironizava a desinformação da polícia sobre a existência da feira Bastou a exibição para que policiais entrassem no Alemão e os organizadores fossem presos Quase um ano depois Tim voltou ao mesmo morro para denunciar os bailes funk Fontes tinham informado o repórter de que nesses eventos havia drogas em abundâ ncia e sexo com garotos e garotas menores de idade Dessa vez ele foi descoberto pelos traficantes alguns dos quais frequentadores da feira de drogas que ele revelara no ano anterior Antes de morrer a golpes de espada Tim foi torturado e queimado entre pneus em chamas Durante sete dias o jornalista ficou desaparecido O impacto da descoberta e das circunstâ ncias da morte de Tim Lopes provocou indignação em entidades de jornalismo em governantes e autoridades do Brasil e do mundo A primeira reportagem do Jornal Nacional anunciando o desfecho do crime que ocupou todo o programa foi na minha visão parcial de jornalista que cobria temas parecidos um dos momentos mais emocionantes do telejornalismo brasileiro Os traficantes que o mataram devem estar acreditando que calaram a sua voz Estão errados disse o apresentador William Bonner ao final daquela edição olhando para as câ meras como se dialogasse com Tim A sua voz será ouvida cada vez mais alto em cada reportagem que nós jornalistas do Brasil fizermos A sua voz vai ecoar na redação da Globo e nas casas de cada cidadão de bem Em vez do silêncio o nosso aplauso A câ mera então mostrou toda a equipe do jornal em pé batendo palmas em homenagem ao jornalista assassinado A morte de Tim Lopes era mais um efeito trágico da disputa entre facções rivais como Comando Vermelho CV Amigos dos Amigos ADA e Terceiro Comando TC O comércio das drogas movimentava muito dinheiro com empreendedores fortemente armados e dispostos ao tudo ou nada Ninguém duvidava que a próxima desgraça seria questão de tempo Naquele mercado lucrativo pequenos movimentos bastavam para interferir no cotidiano da cidade Em março daquele ano 2002 por exemplo a detenção de um chefe do tráfico do CV na Vila K ennedy provocou um bonde de mais de uma centena de homens ligados ao TC e à ADA armados com fuzis granadas e bazucas para tomar o território Bonde gíria comum no vocabulário criminal carioca designa o apoio de armas e homens para grupos aliados na tomada de territórios rivais Essa movimentação vinha sendo acompanhada por escutas feitas pela polícia que se antecipou ao ataque e ocupou o Morro do Adeus desmobilizando o bonde que partiria de lá Mas não adiantou Dois dias depois os traficantes voltaram a se reunir com os aliados para espalhar o terror pela zona norte e passar um recado aos policiais O comboio do TC e da ADA saiu pela madrugada fazendo disparos com fuzis atingindo um carro da polícia uma delegacia prédios residenciais antes de executar um sargento num posto policial e ferir um soldado do Batalhão de Operações Especiais que havia participado da invasão do morro na noite anterior Poucos dias depois os conflitos migraram para as ruas do Catumbi e do Estácio em mais uma disputa entre TC e CV dessa vez pelos pontos de venda no Morro do São Carlos Quatro pessoas foram mortas e sete ficaram feridas com balas perdidas entre elas uma criança de oito meses e a mãe Na noite dos tiroteios a um quilômetro dali na Praça da Apoteose ocorria o show de Roger Waters com 35 mil pessoas Policiais foram transferidos para a região dos conflitos e intensificaram a troca de tiros O calibre pesado dos armamentos tornou a situação especialmente dramática as balas perdidas atravessaram paredes e portas de carro A rivalidade havia começado quatro anos antes quando uma aliança entre TC e ADA promoveu um desequilíbrio na geografia do tráfico do Rio A nova joint venture criminal criou uma rede com mais armas e homens e com a possibilidade de fazer frente ao Comando Vermelho Além do mais o TCA TC ADA tinha contatos bem articulados nas fronteiras capazes de importar armas do Paraguai em grande quantidade quebrando o domínio de Fernandinho BeiraMar que abastecia o CV Policiais estimavam que a parceria entre as duas facções tinha quase dobrado o total de comunidades sob o domínio delas com mais de cem disputas somadas e espalhadas pelo mapa da cidade As taxas de homicídio na capital que haviam caído para menos de quarenta casos por 100 mil habitantes no fim dos anos 1990 voltaram a ultrapassar a casa dos cinquenta casos por 100 mil habitantes depois dos anos 2000 Esses embates pipocavam em diversas regiões da cidade espalhavamse pelo asfalto produziam balas perdidas e tiroteios fechavam túneis paravam o trâ nsito Histórias como essas eram testemunhadas pela população e contadas em elevadores restaurantes bares no transporte público na praia ampliando a sensação de desamparo e de ausência do poder público Em agosto de 2002 esse medo que impregnava o cotidiano do Rio de Janeiro marcou o clima da estreia do filme Cidade de Deus clássico do cinema nacional O bairro onde o filme se passa ganhou fama mundial com o estrondoso sucesso da obra dirigida por Fernando Meirelles baseada no livro homônimo de Paulo Lins A trajetória de Dadinho menino que se tornou um dos primeiros traficantes de lá conhecido como Zé Pequeno se baseava em fatos reais Ao mesmo tempo que abriu as portas para investimentos em novas produções e para o estímulo de uma cena cultural no território a exposição da crueldade dos traficantes na tela grande também ajudou a aumentar a fama de um local já estigmatizado em uma cidade onde as autoridades sabiam ser cruéis com os bodes expiatórios da vez Em Cidade de Deus meninos de dez anos pegam em armas Matam É como se de repente um filme tivesse o poder de revelar uma doença incurável ou ao menos um mal para o qual ainda não se descobriu a cura escreveu Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro em artigo para o jornal O Globo em setembro de 2002 As cidades brasileiras escondem pequenas Bósnias dentro de si O Brasil vive estado de guerra está nas telas É sentar no cinema para ver Todo cidadão brasileiro tem o dever cívico de assistir ao filme Os candidatos à presidência da República têm obrigação de prestar seu depoimento O que pretendem fazer no primeiro dia de suas administrações para tentar impedir que crianças de dez anos continuem a ser recrutadas pelo tráfico Que crianças de dez anos continuem a se matar O texto em tom alarmista reverberava os â nimos de uma cidade traumatizada Em setembro de 2002 três meses depois do assassinato de Tim Lopes cenas assustadoras vieram a público durante uma rebelião de presos em Bangu 1 liderada por Marcio dos Santos Nepomuceno o Marcinho VP líder do CV Os rebelados destruíram o presídio de segurança máxima amarraram reféns a um botijão de gás e ameaçaram explodilos gerando horas de tensão transmitidas ao vivo para todo o país Quatro pessoas ligadas a grupos rivais foram mortas entre elas Ernaldo Pinto de Medeiros o Uê mítico chefe da ADA Celsinho da Vila Vintém outro líder do grupo rival e figura importante na cena do crime do Rio foi poupado Os desdobramentos do conflito em Bangu prosseguiriam do lado de fora nos morros e nas comunidades A rebelião não era uma carnificina rotineira mas um movimento ousado capaz de provocar reações e vinganças entre os grupos entrincheirados em morros repletos de fuzis A sobrevivência de Celsinho da Vila Vintém foi vista com desconfiança pelo Terceiro Comando e provocou o rompimento da aliança até então bemsucedida entre as duas facções Seria formado o Terceiro Comando Puro TCP em oposição à ADA e ao CV obrigando diversos chefes de morros a optar entre as lideranças de Celsinho e Linho pela ADA e Robinho Pinga pelo TCP Novos focos de conflito se formariam Parecia não haver solução para lidar com o forte poder bélico e econômico dos traficantes Sempre houve contudo quem olhasse a crise na segurança de outra maneira com olhos de empreendedor a identificar oportunidades para lucrar com o medo e a sensação de insegurança da população Fortalecer os ganhos num mercado vigoroso vendendo sensação de proteção e ordem Para complicar o quadro tais empreendedores estavam dentro da própria polícia do Rio de Janeiro Muitos já aproveitavam havia décadas essas brechas para faturar ilegalmente mas novas modalidades de negócio podiam emergir As milícias lançariam mão de um modelo mais sofisticado que passaria a dominar territórios promovendo um tipo de tirania alternativa à das facções e que levaria muitos de seus representantes aos quadros mais elevados do poder Durante as entrevistas ouvi muitas vezes esta pergunta um falso dilema tipicamente fluminense tráfico ou milícia Como se as instituições democráticas e a garantia de direitos iguais para todos não fizessem parte do catálogo de escolhas A defesa de uma polícia violenta não era novidade nem no Rio nem no Brasil pelo contrário tinha lastro no passado Mas naquele 2002 apesar da violência sofrida pela cidade defender os excessos cometidos por autoridades e criticar de forma ostensiva o estado de direito pareciam atitudes anacrônicas A democracia não tinha completado duas décadas e despertava esperanças de que a Nova República ainda produzisse uma sociedade mais justa e civilizada Pelo menos era o que eu e muitos colegas pensávamos Com certa ingenuidade é preciso admitir No campo da segurança pública acreditávamos que o controle externo do Ministério Público sobre os excessos das polícias e o fortalecimento das corregedorias e das ouvidorias diminuiriam o ímpeto daqueles que defendiam a violência desmedida contra um inimigo interno a ser vencido Medidas mais racionais e inteligentes assim como ações preventivas do Estado deveriam se consolidar como as políticas públicas mais apropriadas para as cidades como se o processo civilizatório caminhasse sempre para a frente Figuras populistas e truculentas que defendiam o extermínio pareciam datadas fadadas a ser deixadas falando sozinhas A aposta da família Bolsonaro foi outra e acabou vingando Em suas trajetórias políticas Jair e seus filhos eleitos se dedicaram a defender grupos que compartilhavam com eles esses e outros ressentimentos e revoltas A defesa criminosa dos paramilitares e da ação imoral das polícias presente em toda a carreira parlamentar do clã Bolsonaro foi menosprezada por grande parte dos eleitores como se não passassem de falas tresloucadas sem consequência Mesmo diante de várias manifestações de apologia ao crime seus colegas parlamentares evitavam punilos permitindo impropérios cada vez mais radicais Em agosto de 2003 por exemplo o deputado federal Jair Bolsonaro defendeu abertamente na Câ mara dos Deputados o assassinato de suspeitos Sr presidente sras e srs deputados desde que a política de direitos humanos chegou ao país a violência só aumentou e passou a ocupar grandes espaços nos jornais A marginalidade tem estado cada vez mais à vontade tendo em vista os neoadvogados para defendêla Quero dizer aos companheiros da Bahia há pouco ouvi um parlamentar criticar os grupos de extermínio que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte o crime de extermínio no meu entender será muito bemvindo Se não houver espaço para ele na Bahia pode ir para o Rio de Janeiro Se depender de mim terão todo o meu apoio porque no meu estado só as pessoas inocentes são dizimadas Na Bahia pelas informações que tenho lógico que são grupos ilegais a marginalidade tem decrescido Meus parabéns 5 Na Assembleia Legislativa do Rio Flávio Bolsonaro que homenageava policiais suspeitos de assassinatos foi explícito na defesa política das milícias no momento em que o grupo ganhava força e se expandia pela zona oeste da cidade elegendo parlamentares e compartilhando o apoio de políticos locais Num debate com deputados ocorrido em fevereiro de 2007 o filho de Bolsonaro defendeu as milícias em plenário Sr presidente venho falar sobre as milícias assunto tão noticiado pela imprensa não se pode simplesmente estigmatizar as milícias em especial os policiais envolvidos nesse novo tipo de policiamento entre aspas A milícia nada mais é do que um conjunto de policiais militares ou não regidos por uma certa hierarquia e disciplina buscando sem dúvida expurgar do seio da comunidade o que há de pior os criminosos Em todas essas milícias sempre há um dois três policiais que são da comunidade e contam com a ajuda de outros colegas de farda para somar forças e tentar garantir o mínimo de segurança nos locais onde moram Há uma série de benefícios nisso Eu por exemplo gostaria de pagar vinte reais trinta reais quarenta reais para não ter meu carro furtado na porta de casa para não correr o risco de ver o filho de um amigo ir para o tráfico de ter um filho empurrado para as drogas Pergunte a qualquer morador de uma dessas comunidades se ele quer outra coisa se quer sair de lá se não está feliz de poder conversar com seus vizinhos na calçada até tarde da noite É claro que sim porque ele sabe que não corre mais o risco de morrer 6 Flávio Bolsonaro proferiu esse discurso ao assumir seu segundo mandato de deputado estadual Ele dividiu a tribuna com colegas acusados de serem chefes de milícias caso de Natalino José Guimarães apontado como a principal liderança da Liga da Justiça a milícia de Campo Grande e Santa Cruz Um mês depois Flávio contratou o amigo de seu pai Fabrício Queiroz para ser um faztudo em sua assessoria parlamentar Queiroz foi acusado de ser um dos articuladores do esquema da rachadinha no gabinete de Flávio repetindo um estratagema comum em câ maras municipais e assembleias em que a verba de gabinete destinada ao pagamento de funcionários é desviada para outros fins entre eles engordar o salário do vereador ou deputado No mesmo discurso no plenário da Assembleia Flávio continuou firme na defesa das ações dos paramilitares Penso que não há diferença entre o policial militar que vai fazer a segurança de um deputado ou de um condomínio de luxo e o policial que está fazendo a segurança na maioria esmagadora das vezes no local onde mora e onde tem família afirmou Não acho justa essa perseguição Eles se sentem apavorados com as milícias porque raríssimas exceções ONGs de direitos humanos políticos ligados a essa área vivem da miséria da desgraça e da violência de uma comunidade porque caso contrário ficarão sem trabalho Imaginem se acabassem com o tráfico na Rocinha O que o Viva Rio vai fazer lá dentro Como irá justificar os recursos financeiros públicos e privados que recebe para exercer esse trabalho social entre aspas naquele lugar Para essas ONGs não interessa ter milícia Se não houver violência miséria morte bala perdida estupro eles não terão o que fazer Esses políticos ligados aos direitos humanos estão preocupados com a sua própria carreira política O argumento da autodefesa comunitária sempre foi a tônica do discurso de Flávio Mas para ele o extermínio é também a defesa de uma ordem coletiva Os soldados e policiais são descritos como abnegados que arriscam a vida na luta em nome desse ideal Podemos condenar policiais que estão trabalhando para expurgar criminosos que não têm recuperação Qualquer jornal hoje estampa a foto de um grupo de traficantes segurando fuzis de última geração com carregadores onde cabem centenas de balas Será que um vagabundo sendo preso poderá se recuperar Será que ele quer se recuperar Será que é justo continuarmos mantendo esse tipo de gente na cadeia Para quê Temos de deixar de ser hipócritas Não há recuperação mesmo A família Bolsonaro cresceu e se fortaleceu num ambiente por ela definido como de guerra urbana A construção de um bode expiatório amedrontador era fundamental para a sobrevivência do ódio que mantinha o poder do clã Também ajudava a enriquecer os policiais e paramilitares que conheciam os caminhos para faturar com o medo da população Os Bolsonaro demonstravam esta qualidade valorizada entre soldados em guerra lealdade incondicional mesmo diante das ações criminosas que seus parceiros praticavam A sinceridade era outra qualidade Eles não pareciam simplesmente oportunistas mas convictos defensores de ações criminosas e violentas Dessa forma defendiam em público o que os próprios militares e policiais tentavam disfarçar a prática de tortura e assassinatos para conter o crime Não era algo estratégico ou premeditado pensado para futuros ganhos políticos Pareciam ideias resistente às regras do jogo cultivadas por um chefe de família que as tinha transmitido aos três filhos parlamentares um homem incapaz de esconder o que sente pronto como poucos para expor seu ponto de vista de forma franca e aberta como disse Flávio Bolsonaro sobre as opiniões contundentes do pai7 Mesmo depois de sair do Exército Jair se enxergava no campo de batalha com raiva dos inimigos cuja destruição parecia dar sentido à sua carreira política O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde reza uma de suas máximas preferidas ainda segundo seu filho mais velho8 O ódio ao inimigo faz par com a lealdade incondicional aos aliados Eles não abandonavam a defesa da tropa fardada mesmo quando acuados politicamente Em 2008 por exemplo milicianos da Favela do Batan torturaram jornalistas de O Dia que investigavam as milícias Mais uma vez como na morte de Tim Lopes o ataque a um jornalista gerou indignação na opinião pública criando o ambiente político para a aprovação da CPI das Milícias Flávio continuou defendendo os milicianos apesar de ter votado a favor da instalação da CPI Como explicou em seu discurso na Assembleia Legislativa ao subir na tribuna depois que o deputado Marcelo Freixo aprovou a convocação da CPI As milícias são consequência do descaso do Estado do salário de fome que recebe nosso policial O sonho de todo policial no Rio de Janeiro é viver só do contracheque mas não consegue Precisa de outras fontes e vai buscar atividades que muitas vezes são reprováveis pela opinião pública pela imprensa Sinceramente não acredito que essa situação acontecida na Favela do Batan seja regra entre as milícias Em muitas comunidades onde residem policiais onde residem bombeiros eles se organizam para que o tráfico não impere sem visar lucro sem exigir cobrança de nada Façam consultas populares na Favela de Rio das Pedras na própria Favela do Batan para que haja esse contrapeso porque sabemos que vários são os interesses por trás da discussão das milícias Há interesses comerciais há interesses políticos mas vamos também olhar os interesses das pessoas que estão nessas comunidades Flávio encerrou cobrando bom senso dos parlamentares Fica o meu voto favorável à criação desta CPI mas pedindo que haja o bom senso em se apurar e não apenas criticar atacar ou tentar botar atrás das grades os policiais ou na linguagem informal os peixes pequenos9 Jair Bolsonaro também partiu para a defesa dos milicianos em dezembro de 2008 Na ocasião o deputado federal Chico Alencar havia elogiado o relatório final da CPI de autoria de Marcelo Freixo seu companheiro de partido o PSOL O futuro presidente do país discursou O meu estado lamentavelmente é diferente dos demais Para pior Nenhum deputado estadual faz campanha para buscar realmente diminuir o poder de fogo dos traficantes diminuir a venda de drogas no nosso estado Não Querem atacar o miliciano que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes Existe miliciano que não tem nada a ver com gatonet com venda de gás Como ele ganha 850 reais por mês que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro e tem a sua própria arma ele organiza a segurança na sua comunidade Nada a ver com milícia ou exploração de gatonet venda de gás ou transporte alternativo Então sr presidente não podemos generalizar No final de seu discurso Bolsonaro distorceu uma informação para tentar deslegitimar a CPI Para terminar a relação de indiciados na CPI das Milícias entre aspas colocada lá foi buscada junto ao Disque Denúncia Nós sabemos como funciona o Disque Denúncia Ali entram pessoas que realmente devem mas em grande parte o pessoal para tirar o atraso começa a denunciar gente de bem policial de bem civil e militar bombeiro de bem Esse relatório está cheio de policiais e bombeiros que não têm nada a ver com isso É um relatório covarde feito em cima do DisqueDenúncia10 Uma afirmação em parte mentirosa O pedido de indiciamento de 225 pessoas no relatório havia sido feito com base em investigações da polícia e depoimentos colhidos por parlamentares na CPI O DisqueDenúncia apenas levava informações que ajudavam os investigadores a buscar outros indícios provas e novos testemunhos Já durante a campanha eleitoral para a Presidência em julho de 2018 Jair Bolsonaro manifestouse contra a ação dos milicianos As milícias tinham plena aceitação popular mas depois acabaram se desvirtuando Antes davam apenas proteção para uma comunidade Depois passaram a cobrar gatonet e gás Os jornalistas que o entrevistavam perguntaram sua opinião sobre as milícias de Rio das Pedras e Campo Grande Hoje em dia ninguém apoia milícia Mas não me interessa mais discutir isso Até quando vocês jornalistas vão fazer matéria sobre o que eu falei no passado ou quando eu fiz xixi no poste há quarenta anos Mas se durante a campanha o fantasma da proximidade de Bolsonaro com milicianos esteve um tanto distante ele voltaria a assombrar logo no começo do mandato do presidente Mais precisamente em janeiro de 2019 seu primeiro mês no cargo Na ocasião veio a público uma denúncia do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado Gaeco do Ministério Público do Rio de Janeiro envolvendo dois protegidos da família Bolsonaro apontados pelo Gaeco como chefes de duas das mais tradicionais milícias cariocas Rio das Pedras e Muzema O capitão Adriano Magalhães da Nóbrega tido como um injustiçado pelos Bolsonaro foi acusado de ser o cabeça da milícia o patrãozão de acordo com as escutas captadas pelos promotores O segundo na hierarquia conforme a denúncia era o major Ronald Paulo Alves Pereira a quem Flávio homenageara depois da acusação de tortura e mortes em São João de Meriti Não havia como desvincular a ligação entre eles e o presidente Essa ligação existia desde 2007 Adriano já tinha sido inocentado do homicídio de Leandro o guardador de carros de Parada de Lucas Naquele ano o deputado estadual Flávio Bolsonaro assumia seu segundo mandato na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e chamara Fabrício Queiroz para trabalhar com ele Seis meses depois de começar na Assembleia Fabrício contratou a mulher de Adriano Danielle Mendonça da Costa para trabalhar no gabinete de Flávio Ela permaneceu no posto por onze anos com salário pouco acima de 6 mil reais Quando o caso veio à público em 2019 Queiroz justificou a contratação dizendo que Adriano passava por dificuldades depois de ter sido injustamente preso Naquele ano Queiroz também indicou a própria filha para uma função administrativa no gabinete de Flávio Desde 2005 Adriano caminhava em direção às sombras aproximandose do crime comum e da poderosa máfia da contravenção Qualquer defesa que se fizesse de Adriano mais do que solidariedade de amigos era fruto de conivência cumplicidade e indício forte de formação de quadrilha Ele havia deixado para trás a prática da mineração e dos arregos para atuar como segurança privado na rica e antiga economia do jogo do bicho O sniper ofereceu aos bicheiros uma expertise rara no mercado a habilidade de assassinar sem deixar rastros Suas atividades começaram depois que ele deixou a prisão nas disputas sangrentas em torno do espólio do bicheiro Waldemir Paes Garcia o Maninho assassinado em setembro de 2004 e de seu pai Waldemir Garcia o Miro patrono da escola de samba Salgueiro que morreu poucos dias depois do filho de infecção pulmonar A relação de Adriano com o jogo do bicho vinha da infâ ncia Parte de sua criação ocorreu dentro de um haras onde seu pai morava O Haras Modelo em Cachoeiras de Macacu no interior do estado pertencia a Maninho e era administrado por Rogério Mesquita braço direito do bicheiro Mesquita conhecia Adriano desde a adolescência e o considerava um afilhado Depois da morte de Maninho no começo de 2005 Mesquita o procurou ainda na prisão para que Adriano ajudasse na proteção de Alcebíades Paes Garcia o Bid irmão de Maninho Bid morava em Roraima e tinha voltado para o Rio a fim de assumir os negócios da família cujo espólio se tornou alvo de disputa entre os herdeiros Mesquita contou em depoimento que o capitão Adriano foi indicado para organizar a proteção de Bid acionando de dentro da prisão nomes para compor a equipe e recebendo salário pela consultoria O grupo de segurança seria composto de catorze policiais Ao sair da cadeia Adriano ficou pouco tempo com Bid e em seguida foi trabalhar com José Luiz de Barros Lopes o Zé Personal também bicheiro casado com a filha de Maninho Shanna Harrouche Garcia Lopes Adriano encarregado da segurança das máquinas de caçaníquel do casal matou alguns desafetos deles segundo depoimento de Mesquita prestado em junho de 2008 De acordo com o mesmo depoimento Adriano havia assassinado também Carlos Alberto Alano funcionário de Maninho e o exdeputado estadual Ary Brum Ambos os crimes ocorreram em 2007 Mesmo com as declarações de Mesquita as investigações não avançaram O testemunho de Rogério Mesquita contra o afilhado foi uma tentativa desesperada de salvar a própria vida Em maio de 2008 ele foi vítima de uma tentativa de assassinato em que reconheceu o capitão Adriano como algoz Mesquita amigo de infâ ncia de Maninho passou a receber parte dos lucros da fazenda e das máquinas de caçaníquel do amigo morto para a contrariedade de sua filha Shanna e do marido dela Zé Personal Ambos segundo Mesquita mandaram Adriano eliminálo O atentado ocorreu quando Mesquita estava no carro com sua mulher e filhos Ferido na perna acionou a polícia tentando evitar sua morte anunciada A informação da participação de Adriano nesses conflitos consta em um relatório de outubro de 2011 feito pela Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança do Rio e da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas Draco e que resultou dois meses depois na operação Tempestade no Deserto As informações porém não foram suficientes para a polícia impedir os assassinatos Oito meses depois desse atentado em janeiro de 2009 Mesquita foi assassinado numa manhã ensolarada em Ipanema Ele estava saindo de uma academia de ginástica quando um homem na garupa de uma moto o atingiu com um tiro na nuca Em setembro de 2011 três meses antes da operação Tempestade no Deserto foi a vez de Zé Personal Ele morreu em uma emboscada na Praça Seca em Jacarepaguá depois de sair de um centro espírita O ciclo de vinganças não teria fim Um irmão de Shanna foi sequestrado e assassinado em 2017 Dois anos depois quando Adriano estava foragido Shanna sofreu um atentado ao chegar a um salão de beleza Ela sobreviveu A acusada de encomendar o crime Tamara Harrouche Garcia Lopes era irmã gêmea de Shanna Ambas haviam aberto outra frente de batalha pela herança do pai avaliada em 25 milhões de reais Em 2020 foi a vez de Bid assassinado um mês depois de prestar depoimento sobre a tentativa de assassinato de Shanna Um dos assassinos de Bid segundo a polícia seria Leonardo Gouvea da Silva o Mad indicado por Adriano para ser o chefe do grupo de matadores conhecido como Escritório do Crime Em dezembro de 2013 Adriano da Nóbrega foi expulso dos quadros da Polícia Militar por causa das acusações de sua ligação com o jogo do bicho Na época suspeitavase que o capitão era proprietário de diversas máquinas de caçaníquel na região de Jacarepaguá Mas nada disso abalou o relacionamento de Queiroz e Adriano com Flávio Bolsonaro Em junho de 2016 a mãe de Adriano foi indicada para trabalhar no gabinete de Flávio embora a desculpa de que a família do capitão Adriano precisava de dinheiro não fizesse mais sentido Nessa ocasião escutas do Ministério Público apontavam Adriano como chefe da milícia de Rio das Pedras e da Muzema atividade que exercia segundo denúncias pelo menos desde 2015 Depois da eleição de Jair Bolsonaro o capitão Adriano da Nóbrega e o sargento Fabrício Queiroz se tornaram granadas na iminência de explodir Eram esqueletos dentro do armário do presidente do Brasil elos criminosos do passado a ameaçálo Na sequência das operações deflagradas em janeiro de 2019 pelo Gaeco que desvendaram os crimes dos milicianos da Muzema e Rio das Pedras Ronald e outros onze integrantes do grupo foram presos Adriano conseguiu escapar da prisão em flagrante e desapareceu Monitorado pela Polícia Civil foi localizado mais de um ano depois na Bahia em um sítio na cidade de Esplanada a 170 quilômetros de Salvador Uma semana antes de morrer Adriano ligou para seu advogado Paulo Emílio Catta Preta dizendo que policiais o haviam descoberto e que ele seria morto Catta Preta ignorou o alerta e tentou convencêlo a se entregar Um habeas corpus estava para ser votado e Catta Preta acreditava que conseguiria livrar Adriano da prisão Tentou convencêlo a se entregar e se ofereceu para mediar um acordo com as autoridades Não posso doutor Eles vão me matar disse Uma semana depois mais de setenta policiais do Bope cercaram a casa onde o capitão estava escondido Havia meios de fazêlo se entregar sem violência Era imenso o valor potencial de seu testemunho para desvendar diversos crimes em aberto Mas Adriano foi executado Segundo os policiais eles atiraram porque houve reação Teorias sobre o ocorrido se multiplicaram Independentemente do que tenha acontecido naquele dia o capitão sabia que a contagem regressiva contra sua vida havia começado Segundo Catta Preta o capitão morreu sem contar quem eram os eles que desejavam sua morte Já Fabrício Queiroz foi preso preventivamente na manhã de 18 de junho de 2020 em decorrência da investigação sobre as rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro Ele estava em Atibaia no interior de São Paulo no sítio que pertencia a um amigo da família Bolsonaro Frederick Wassef advogado de Flávio Queiroz continuava ajudando o capitão Adriano e sua família Enquanto Adriano estava foragido Queiroz mantinha contato com a mãe do capitão Raimunda Veras Magalhães que estava morando em Minas Gerais e oferecia a ela suporte jurídico Mesmo em Atibaia Queiroz era procurado para mediar problemas cotidianos entre milicianos e um comerciante de Itanhangá na zona oeste do Rio como revelou um áudio interceptado pela Justiça Essas atividades motivaram a decretação da prisão preventiva do faz tudo dos Bolsonaro Quando foi detido na sala da casa onde estava sobre a lareira havia um cartaz em defesa do AI5 o ato institucional que endureceu a ditadura militar em 1968 Ao lado e um pouco à frente dele três bonecos Tony Montana o traficante vivido por Al Pacino no filme Scarface Fabrício Queiroz sempre foi um soldado fiel de seu comandante Jair Bolsonaro Um mero sargento reformado do subúrbio carioca que se rompesse seu silêncio com um simples sopro teria força para derrubar as estruturas do frágil castelo de cartas que sustentava a república das milícias 3 As origens em Rio das Pedras e na Liga da Justiça A chegada a Rio das Pedras pela avenida Engenheiro Souza Filho impactou um forasteiro como eu que tinha na cabeça imagens preconcebidas por histórias que lia e ouvia sobre as milícias locais Imaginava ver casas por todos os lados com homens armados em rodinhas nas esquinas Os textos ajudaram a me informar mas inevitavelmente se concentravam nos conflitos produzindo ideias estereotipadas Como jornalista estou acostumado a fazer esse filtro Antes de escrever procuro conhecer o lugar sentir o ambiente conversar com os moradores No caso de Rio das Pedras a visita me despertou diversas perguntas que até aquele momento eu não considerava importantes O centro comercial é um shopping center ao ar livre efervescente com lojas diversificadas e ruas lotadas Logo na chegada casas de material de construção decoração serrarias vidraçarias e galpões mostram um bairro em fase de transformação e crescimento O burburinho contrasta com as regiões famosas das zonas sul norte e central do Rio Em Copacabana por exemplo onde costumo me hospedar há um grande número de aposentados e proporcionalmente de farmácias Apesar de ser um dos bairros mais famosos e bonitos do mundo aparenta decadência Bem diferente do perfil de Rio das Pedras um bairro com pouco mais de cinquenta anos de existência e uma população mais jovem de 55 mil habitantes maior do que 90 dos municípios brasileiros Mesmo com a infraestrutura precária seu cotidiano transmite vitalidade e dinamismo Percorrer o bairro a pé ajuda a evitar o trâ nsito caótico e as ruas lotadas de carros ônibus e vans em que o fluxo é interrompido com frequência porque as vias são estreitas e mal planejadas Basta um veículo parado em fila dupla para causar longos congestionamentos Pela estrada variante de Jacarepaguá que depois vira rua Nova o percurso se aproxima do centro comercial do bairro Barracas de comida e bugigangas também atrapalham os pedestres na calçada As vias transversais levam a apartamentos residenciais com cinco seis e sete andares Na rua principal os térreos são reservados para as lojas e os andares superiores para moradia Por todos os cantos se vê o espírito do empreendedorismo Lojas de lingerie moda feminina jovem masculina infantil com tendências bregas e alternativas hambúrguer artesanal sushi restaurantes de carne de sol e sarapatel bares descolados e botecos cabeleireiros black e de madame barbearias descoladas e tradicionais kit com churrasqueiras e máquinas de chope tudo em meio a uma constante cacofonia com anúncios de instalação de TV a cabo pela rádio pirata transmitida por altofalantes pendurados nos postes que também sustentam novelos embaraçados de fios de luz telefone TV a cabo e internet As fachadas têm letreiros caprichados que valorizam as lojas Alguns negócios chegam a ter filiais em outros bairros Há também escolas e creches particulares para complementar a oferta da educação pública assim como médicos de diversas especialidades e dentistas particulares com fachadas também vistosas oferecendo seus serviços para os que preferem e podem evitar a rede de saúde do Estado Numa área aberta um pulapula para crianças proporciona alguns minutos de diversão por dois reais Há produtos e serviços acessíveis às diversas faixas de renda Fui tomar um açaí numa barraca de rua e havia sete opções de tamanho do copinho de brigadeiro de cem mililitros que custava meia passagem de ônibus até o copão de oitocentos mililitros sete vezes mais caro Aplicativos de transporte como Uber que atendem as regiões centrais da cidade não costumam se arriscar por Rio das Pedras Para levar e buscar moradores milicianos criaram um modelo alternativo que ganhou força depois que os motoristas dos concorrentes foram ameaçados A violência usada para garantir mercado aos empreendedores locais também ajuda a entender parte do sucesso dos negócios instalados em Rio das Pedras Muitas milícias criam monopólios de mercado que garantem o fornecimento exclusivo de produtos que vão de cigarros a kits de churrasco Em todo esse território pode não parecer mas há uma autoridade fiscalizando o certo e o errado É preciso não ultrapassar a linha Foi a partir desse núcleo comercial que a comunidade começou a se expandir no final dos anos 1960 e começo dos 1970 Há ordem naquele aparente caos de gente indo e vindo onde o dinheiro circula e contribui para que Rio das Pedras tenha o segundo maior potencial de consumo entre as favelas brasileiras mais de 1 bilhão de reais por ano1 Quando você chega de fora e se mete pelas ruelas residenciais há pessoas observando mesmo que discretamente É possível passear pelo local mas com bom senso respeitando as regras veladas do ambiente No meu caso eu procurava não demonstrar uma curiosidade exagerada sobre o poder dos milicianos Evitava fazer perguntas a desconhecidos Não queria parecer um investigador ou um repórter mas um visitante casual Por cautela pedi que um conhecido funcionário das forças de segurança do estado e morador da zona oeste do Rio me acompanhasse Para evitar problemas respeitamos alguns limites territoriais Meu parceiro me apontava os olheiros nas esquinas e as fronteiras que não deveriam ser ultrapassadas Achei que ele estava paranoico mas deixei Rio das Pedras com a sensação de que olhos invisíveis das milícias nos seguiram o tempo todo Apesar da fama de quadrados os milicianos apoiaram o baile funk do Castelo das Pedras Desde os anos 1990 o baile foi referência no Rio de Janeiro recebendo gente de várias classes sociais e regiões da cidade com a bênção e a participação das autoridades paramilitares Milicianos podem ser conservadores mas não rasgam dinheiro Rio das Pedras é o lugar em que você pode comprar um parafuso à uma hora da madrugada me contou um amigo que cresceu em Freguesia bairro vizinho O primeiro bar gay que frequentei ficava em Rio das Pedras ele disse para minha surpresa A própria venda de drogas cuja proibição começou como um ponto de honra para as milícias com o tempo foi flexibilizada entre elas Não basta ter força e armas para exercer o poder é preciso também legitimidade para ser aceito pelos moradores Os paramilitares e seus parceiros além de garantir a ordem acumulam recursos financeiros e dinamizam a economia local A lavagem de dinheiro e empréstimos a juros viabilizam novos empreendimentos na comunidade Os grileiros e proprietários abastados de casas de aluguel da mesma maneira acumulam renda que acaba direcionada a investimentos em Rio das Pedras O modelo de negócios miliciano se mostrou mais sustentável e gerador de riquezas do que o tráfico de drogas em outras comunidades por criar uma economia interna dinâ mica Mas essa economia por sua vez depende da ausência das operações policiais cotidianas vigentes nos morros do Rio Um exchefe do tráfico me ajudou a visualizar essa diferença Por muitos anos ele comandou o comércio varejista de drogas de uma importante favela ligada ao Comando Vermelho Foi preso em 2014 e enviado a um presídio federal Cumpriu pena até 2019 então se tornou evangélico e deixou o crime Quando conversamos ele havia acabado de ser solto e lutava para se adaptar à vida de assalariado Na época em que era traficante como número um da boca chegou a comandar mais de duzentas pessoas segundo ele esse era o tamanho de uma boca de médio porte para o padrão da cidade Politicamente contudo a firma dele era poderosa por ocupar um território estratégico Esse extraficante chegou a possuir mais de quarenta fuzis Meu interlocutor comparou as receitas financeiras dos dois empreendimentos criminais Na comunidade que comandava moravam cerca de 18 mil famílias Vamos supor ele disse que sejam cobrados dez reais por família de taxa de segurança como fazem as milícias Seriam 180 mil reais por mês Ele disse que estabelecimentos comerciais pagavam mais as lojinhas os bares os cabeleireiros Lá na favela por baixo são duzentos empreendimentos A cinquenta reais por mês mais 10 mil reais E ainda dá pra lucrar com a venda de gás água gatonet energia elétrica transporte terreno onde há espaço para vender ou alugar terra Tudo isso deixa o cara milionário em dois meses ele calculou O dinheiro muitas vezes é multiplicado pela prática da agiotagem que faz o capital girar aquece o mercado e o empreendimento local No caso do tráfico segundo o extraficante a situação é mais difícil por diferentes circunstâ ncias A começar pelo custo alto do negócio O traficante paga 8 mil reais o quilo do crack no atacado para ganhar 3 mil por quilo no varejo No caso de um pó bom ele custa de 14 mil a 15 mil reais pra ganhar 6 mil de lucro no varejo Pra ganhar 60 mil de lucro tem que vender pelo menos dez quilos Na estrutura de duas centenas de funcionários que ele comandava ele afirmou ter faturado cerca de 400 mil a 500 mil reais por mês com um lucro bruto de 150 mil a 200 mil reais Essa receita contudo era usada para controlar as externalidades do comércio que geravam despesas enormes Munição armamento arrego para policial despesas com soldados tudo isso faz parte Na favela que está em guerra o negócio não vai pra frente porque os custos são muito altos Sobra pouco dinheiro para investir Fiz dinheiro para muita gente inclusive para a polícia Mas não posso reclamar porque esses arregos me mantiveram vivo Só que ninguém sai rico do varejo de drogas Além da questão financeira a parceria dos paramilitares com os policiais é outra grande vantagem do negócio Se eu sou milícia vou com um carro carregado de fuzis sou parado numa blitz e basta dizer que sou da polícia para ser liberado Não há flagrante Isso dá grande vantagem Os milicianos também não são caçados como ocorre com os traficantes e eles não se envolvem em guerras Eles são aceitos e fazem parte do Estado Acaba sobrando dinheiro para ser investido e multiplicar o dinheiro do crime analisou O traficante mesmo o que ganha dinheiro não consegue sair da favela e gastar ele disse Fui pela primeira vez na vida numa churrascaria no mês passado Dirigindo um carro com a minha própria carteira de habilitação Pela primeira vez tenho conta em banco agora que cumpri o que devia na Justiça Não podia ser pai esposo não levava os filhos na escola não ia à praia Posso fazer isso agora que abandonei o crime mas não tenho dinheiro Tenho pela primeira vez liberdade para ser outras coisas além de traficante Apesar dos percalços esse antigo gerente do Comando Vermelho aponta dois motivos para o negócio da venda de drogas continuar em alta no varejo Primeiro os lucros elevados obtidos pelos vendedores atacadistas que abastecem os mercados consumidores e fazem a roda girar Esses empreendedores costuram redes de contatos a partir das fronteiras brasileiras com países como Bolívia Paraguai Peru e Colômbia ganhando grande volume de dinheiro em cada venda realizada Essa situação permite mais tempo para prever formas de esquentar o dinheiro criar lojas e empreendimentos de fachada criar um disfarce de empresário formal para ganhar mais poder Na língua do crime no Rio de Janeiro os atacadistas são chamados de matutos O cara tem empreendimento no Paraná por exemplo atravessa cem quilos de pó Gasta 100 mil 200 mil reais e ganha mais de 1 milhão Tem menos risco menos custo e dá mais dinheiro Caso o cara consiga colocar nas favelas sempre vai ter quem queira comprar disse o exchefe varejista do CV Em segundo lugar conforme sua avaliação o varejo segue a todo vapor porque o garoto do morro imaturo ainda se ilude com as promessas simbólicas da arma carro dinheiro e status associado ao traficante Depois ele percebe que esse status é ilusório Passa um tempo a ficha cai pra todo mundo Se o Estado oferecesse anistia para os traficantes que quisessem abandonar o tráfico aposto que a absoluta maioria ia aceitar sem pensar Na maturidade com filho esposa o cara cansa de ter inimigos e quer acima de tudo deixar os problemas pra trás Fernandinho BeiraMar considerado na segunda metade dos anos 1990 o maior traficante do país ganhou dinheiro e poder depois que foi para o Paraguai e para a Colômbia estabelecendo contatos com fontes atacadistas de armas e drogas para serem revendidas nos varejos do Rio e de São Paulo Como me disseram dois traficantes do Comando Vermelho BeiraMar era acima de tudo um matuto Tanto que nunca teve o mesmo poder na facção que Marcinho VP chefe do Complexo do Alemão e responsável pelas decisões mais importantes do grupo BeiraMar foi preso em 2001 nas selvas colombianas pelo Exército do país junto com integrantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia Farc que forneciam a ele cocaína em troca de armas O acesso a fontes atacadistas também fortaleceu em São Paulo o Primeiro Comando da Capital PCC que percebeu os riscos e os custos elevados do varejo das drogas na cidade apostando todas as fichas na expansão de seus negócios para as fronteiras O grupo paulista aproveitou o espaço deixado depois da prisão de BeiraMar e montou uma ampla rede de distribuição de drogas a partir de uma rede de aliados em presídios brasileiros história que a socióloga Camila Nunes Dias e eu contamos no livro A guerra A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil São Paulo Todavia 2018 O modelo de negócio do PCC conseguiu transcender o domínio de territórios aliviando custos e problemas com as autoridades locais Quando PCC e CV brigaram em 2016 provocando uma série de conflitos dentro dos presídios ao longo do ano seguinte os chefes da facção carioca deviam mais de 60 milhões de reais a atacadistas ligados ao grupo paulista segundo me informou um chefe do CV que no período do confronto cumpria pena em um presídio federal Os paulistas conforme ele me explicou haviam avançado nas fronteiras e se tornado matutos da facção carioca o tempo todo voltada para seus conflitos varejistas em morros e favelas Com a entrada das milícias na disputa por territórios no Rio de Janeiro elas passaram a digladiar pelo domínio geográfico das comunidades cariocas e fluminenses criando uma proposta de governança que ganhou aceitação das autoridades e de parte da população O modelo inovador oferecia vantagens comparado ao domínio dos traficantes Pelo menos no marketing O tráfico por exemplo domina a comunidade para vender a ela drogas no varejo Emprega muita gente recebe clientes de fora e de dentro acaba gerando renda no local mas a um custo social alto As operações policiais na comunidade tornam insuportável a vida dos moradores que também convivem com o risco de invasão de facções inimigas A juventude dos traficantes suas atitudes viris e desafiadoras as regras que impõem no local também geram problemas As famílias das comunidades receiam que seus descendentes ingressem na guerra ou se transformem em consumidores de droga Sem falar na tirania dos traficantes que para manter seus negócios evitar denúncias e preservar sua autoridade ameaçam moradores contrários a seus interesses Embora as milícias também comandem a comunidade com tirania e sua autoridade se mantenha à base de ameaças como fazem os traficantes e aqueles que contestam seu poder podem perder a vida e sofrer torturas ao contrário do tráfico os milicianos se vendem como fiadores de mercadorias valiosíssimas ordem estabilidade e possibilidade de planejar o futuro aliança política com o Estado e a polícia A presença das milícias na comunidade diminui os riscos de operações policiais tiroteios e as rotinas de guerra Também atrai investimentos públicos e privados Outra vantagem do negócio é que o empreendedorismo e a busca incessante por lucros ampliam a oferta de casas e terrenos grilados vendidos a novos moradores Claro a cidade perde com o desmatamento de matas nativas e o perigo de desabamento de prédios mal projetados Para quem adquire o imóvel contudo as vantagens imediatas compensam O crescimento do número de moradores também amplia a massa de apoiadores da governança da milícia O lado impopular desse modelo é que a maior parte das receitas para bancar o negócio vem da extorsão dos habitantes No tráfico em tese a população não seria explorada economicamente já que o dinheiro viria dos consumidores de droga No entanto já são relativamente comuns lugares onde convivem venda de droga e cobrança de taxas e venda de serviços misturando tráfico e milícia para a diversificação de receitas Esses grupos perceberam que o mais importante é o poder que exercem sobre os territórios Com o domínio das áreas podese maximizar como dizem os economistas o potencial de lucro local E mais o domínio territorial dos milicianos pode se reverter em votos para os políticos que os apoiam o que produz um comportamento ambíguo das autoridades no controle e combate a esses grupos As milícias dessa forma acabam funcionando como um Estado terceirizado ou leiloado expressão usada por seus principais críticos na academia e na política Cobram taxas e arrecadam receitas para preservar a governança local substituindo um Estado fraco e incapaz Tráfico ou milícia A pergunta volta a pairar como se não houvesse uma terceira via Como se a garantia da democracia e do estado de direito nos territórios não estivessem entre as opções possíveis Isso pode ser explicado pelo contraste entre o ideal e a realidade No papel os governantes dizem que o Rio é uma democracia Na prática a tarefa de governar é compartilhada com centenas de tiranos que dominam mais de setecentas comunidades pobres da cidade e exercem a autoridade com o suporte de dinheiro e armas Mesmo depois da redemocratização essas áreas de dominação armada se espalharam Em vez de garantir direitos e livrar a população de tal opressão a omissão do poder público ampliou o problema dando espaço para o surgimento desses governos genéricos que nada mais são do que tiranias paramilitares Dunas e vegetação de restinga solo impróprio para o plantio muitas lagoas que se interligavam numa região encharcada que recebia as águas de rios antes de eles desaguarem no mar No tempo do Brasil Colônia a região da Barra da Tijuca e da Baixada de Jacarepaguá recebeu engenhos de açúcar aos quais se tinha acesso apenas de barco Havia uma grande barreira formada pelas cadeias de montanha do Maciço da Tijuca com picos de mais de mil metros de altura que ajudava a separar essa vasta área da zona oeste do restante da cidade Em 1932 o Correio da Manhã definiu a região como o sertão carioca habitado principalmente por jacarés e cobras Em 1959 foi vista a última onça pintada vagando pelas matas de lá Com o processo de urbanização e a chegada de grandes levas de migrantes das zonas rurais do Brasil para os centros urbanos o Rio de Janeiro precisava encontrar alternativas para crescer O lado sul e norte do Maciço que formava a mancha urbana da capital estava saturado Era necessário e urgente desbravar o faroeste carioca tarefa colocada em prática no final dos anos 1960 Primeiro seria preciso criar um atalho para atravessar as montanhas missão para os engenheiros que nos anos 1970 abriram os túneis São Conrado Joá e Dois Irmãos juntamente com a construção de elevados e vias expressas Com a obra os motoristas que vinham do Leblon em vez de se arriscar nas estradas sinuosas do maciço à beiramar poderiam em poucos minutos alcançar um paraíso até então escondido Em 1969 o urbanista Lúcio Costa depois de ajudar a conceber Brasília com o arquiteto Oscar Niemeyer criou o Plano Piloto para a ocupação da Baixada de Jacarepaguá Nos anos 1980 o mercado percebeu que a região era a bola da vez Grandes torres de edifícios e shoppings centers com espaço para uma réplica da Estátua da Liberdade em meio a praias lagoas e vegetação intocada aqueceram a procura e a especulação imobiliária O plano de Lúcio Costa foi desvirtuado e depois renegado por ele atropelado pelo culto ao consumo que viria com tudo nos anos seguintes reproduzindo na região uma Miami brasileira de gosto duvidoso burguesa como São Paulo sem o charme aristocrático da zona sul carioca Como era de esperar os trabalhadores da construção civil que levantavam as paredes dos edifícios dos novos ricos da cidade também criaram seus bairros na vizinhança produzindo na região a mistura territorial de classes tão característica do Rio de Janeiro Um novo Rio surgiria do outro lado das montanhas A variação populacional da área ajuda a entender a dimensão dessa novidade Em 1970 a cidade tinha 43 milhões de habitantes Passou para 58 milhões de habitantes em 1990 15 milhão de pessoas a mais As regiões mais tradicionais no centro norte e sul chegaram a perder habitantes Quase todo o crescimento 13 milhão dos novos habitantes se concentrou na zona oeste Jacarepaguá e Barra da Tijuca por exemplo passaram de 241 mil habitantes para 680 mil habitantes Já os bairros de Bangu Campo Grande Santa Cruz e Guaratiba saltaram de 700 mil habitantes para 16 milhão de habitantes O modelo de negócios das milícias nasceu nessas duas grandes áreas da zona oeste e ali prosperou O bairro de Rio das Pedras pode ser considerado o principal laboratório de formação do modelo de governança política e econômica que se espalharia depois dos anos 2000 para outras regiões da cidade e do estado A semente da organização que anos depois passaria a ser chamada de milícias se estabeleceu com a ajuda do Estado incapaz de mediar e regulamentar a chegada dos grandes contingentes populacionais no lado oeste Rio das Pedras recebeu este nome por ficar às margens de um córrego homônimo No começo dos anos 1950 famílias ocuparam uma área privada e passaram a reivindicar a posse da terra junto às autoridades Elas criaram uma comissão de moradores e conseguiram em 1964 com o governador Negrão de Lima a desapropriação da área2 Foi o primeiro movimento associativo bemsucedido dos moradores junto ao Estado A nova condição permitiu que a comunidade se ampliasse em torno do núcleo central da rua Velha ao lado do córrego que passou a se expandir por aterros feitos pelos próprios moradores no terreno pantanoso A área começaria a receber um número crescente de habitantes principalmente migrantes do Nordeste do Brasil boa parte deles do interior da Paraíba e do Ceará O processo era semelhante ao de outras periferias do Rio e de São Paulo Um parente chamava o outro que passava as informações sobre o local Quem vinha chamava outro e assim sucessivamente Num efeito bola de neve milhares de pessoas migraram atraídas por sonhos e ilusões de felicidade prometidos pela vida urbana A centralidade da relação que se estabelecia entre os governos e as associações desses novos bairros foi uma das principais características desse processo de ocupação das favelas no Rio de Janeiro depois dos anos 1960 Comissões de moradores e associações se formavam para dialogar com as autoridades e negociar melhorias para os bairros em formação3 Com a democratização e a acirrada disputa por votos dos anos 1980 essas relações muitas vezes descambavam para o clientelismo com os presidentes das entidades trocando favores por votos Os presidentes das associações se tornavam portavozes de candidatos específicos em troca de luz asfalto cesta básica podendo com o tempo ele próprio se transformar em candidato a um cargo eletivo Era uma dinâ mica diferente da que ocorria nas favelas de São Paulo que nos anos 1960 e 1970 cresceram principalmente nos extremos da cidade as chamadas periferias perto de metalúrgicas e indústrias em geral Os bairros em São Paulo eram acima de tudo lugaresdormitórios e cresciam num contexto diverso O processo de organização política até pelo forte perfil industrial da economia paulista do período era mediado por sindicatos e pelas pastorais das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica com discursos coletivos e um esboço de consciência de classe Havia clientelismo mas também mobilização política de organização das bases que se tornaria uma das principais forças da Nova República dando origem por exemplo ao Partido dos Trabalhadores nos anos 1980 As características econômicas e sociais do Rio no período a ausência de uma classe trabalhadora organizada e de sindicatos fortes e até mesmo de uma igreja progressista o arcebispo do Rio d Eugênio Sales ao contrário de d Paulo Evaristo Arns era contrário à Teologia da Libertação abriram espaço para diferentes alianças entre políticos com as bases populares fortalecendo relações mais personalistas e populistas no Estado Rio das Pedras crescia dentro desse caldo político Dez anos depois da primeira mobilização na favela ainda durante a ditadura militar os moradores voltariam a se organizar para exigir a instalação de energia elétrica no bairro Criaram formalmente uma entidade comunitária em 1982 No ano seguinte durante o governo de Leonel Brizola PDT começaram a tomar a frente na organização do território O chefe do grupo Octacílio Bianchi estava entre as primeiras famílias que negociaram a regularização na favela nos anos 1960 Surgiu nesse período a Vila dos Caranguejos primeira ocupação planejada pelos moradores às margens da avenida Engenheiro Souza Filho As terras foram regularizadas em meio à disputa de uma grande área da região reclamada por uma empreiteira Com o ganho de causa a associação de moradores de Rio das Pedras comandou o processo de planejamento dos lotes criando vielas e corredores de circulação internos pressionando o Estado por novas benfeitorias como a instalação de rede de esgoto A legitimidade da associação de moradores se fortalecia diante da omissão dos governos na mediação regulamentação e definição de critérios urbanísticos para a formação dessa pequena cidade A medição da concessão a venda dos terrenos a construção das vias os certificados de propriedades tudo era empurrado para esses representantes informais amigos das autoridades que arregimentavam votos e passariam a disputar eleições e a formar a base de sustentação dos cargos executivos Em 1989 como o bairro continuava crescendo o governo Moreira Franco doou um terreno de 400 mil metros quadrados que originalmente seria usado para a construção de um conjunto habitacional No entanto abriu mão de seu papel de planejar a construção de imóveis no bairro e terceirizou a missão para a associação de moradores Os lotes foram distribuídos aos novos moradores que iniciaram o processo de autoconstrução de mais um bairro em Rio das Pedras conhecido como Areal I A dispensa da burocracia e da formalidade agilizava o processo de oferta de habitação disponibilizava casas com mais rapidez ajudava os comerciantes de material de construção e contribuía para que diretores da associação e alguns moradores acumulassem capital e poder A concessão de lotes e depois a autorização para a venda de lajes dinamizava o mercado imobiliário e criava uma fonte de receita para os moradores investirem no próprio bairro Com o surgimento desse novo poder a associação passa a cobrar mensalidades para fazer a administração do bairro Um dos principais atrativos de Rio das Pedras propagado pelos moradores era o fato de não sofrer os mesmos males dos morros das zonas sul e norte dominados por traficantes A garantia de que as comunidades estavam resguardadas dos jovens representantes da cultura urbana das favelas das zonas sul e norte e também da ameaça dos criminosos era um discurso que seduzia os migrantes rurais que erguiam os bairros novos da zona oeste As comunidades no entorno da Barra da Tijuca e na Baixada de Jacarepaguá representavam esse ideal de segurança associado à moralidade tradicional das pequenas cidades rurais em contraposição ao valetudo e à malandragem predominantes no mundo urbano Durante o comando de Octacílio em Rio das Pedras a punição dos criminosos era garantida por um violento grupo de extermínio local Longe de ser uma particularidade de Rio das Pedras esse brutal sistema de autodefesa dos bairros pobres se reproduziu em diversas cidades do Brasil Nos anos 1970 e 1980 essas figuras surgiram aos montes com o discurso de que matavam bandidos em defesa dos trabalhadores Na Baixada Fluminense esses grupos foram representados por políticos que viriam a se tornar lendários como é o caso de Tenório Cavalcanti deputado federal pelo Rio nas décadas de 1950 e 1960 morador de Duque de Caxias e conhecido como Rei da Baixada e Homem da Capa Preta que não se separava de sua metralhadora apelidada de Lurdinha A violência era o instrumento para a garantia da ordem Nos anos 1970 esses grupos atuaram junto com a Polícia Militar em diversas cidades Nos anos 1980 diante das muitas mortes de autoria desconhecida na Baixada Fluminense o jornal Última Hora atribuía esses extermínios ao misterioso Mão Branca mito criado pelos próprios matadores para se livrar da responsabilidade pelos crimes Era como se houvesse uma mão invisível a proteger a Baixada do crime Na mesma década esses grupos se associaram a empresários e comerciantes para a venda de segurança e por vezes também a policiais Ganharam o nome de Polícia Mineira O sociólogo José Cláudio de Souza Alves vê nesses grupos a origem das milícias Em São Paulo nesse período os matadores eram conhecidos como justiceiros ou pés de pato e atuaram na capital e na região metropolitana chegando a formar quase mil pequenos grupos de extermínio ao longo da década Os matadores de Rio das Pedras agiam com o mesmo espírito Assim como na Baixada Fluminense e nas periferias de São Paulo lá também se viam fixadas nas paredes de estabelecimentos comerciais listas com o nome das pessoas marcadas para morrer Quem não obedecia acabava assassinado Mesmo depois que a imprensa passou a usar o termo milícias a população local continuou chamando os chefes de Rio das Pedras de mineiros De todo modo foi essa a região que originou um tipo de organização inédita que configuraria o modelo depois conhecido como milícia E não foi à toa que ele vingou policiais que moravam na região criaram a milícia de Rio das Pedras e estabeleceram as regras da economia informal dessas áreas Ampliaram a fonte de receitas ilegais a compra de armamentos e estabeleceram conexões políticas Essa nova forma de dominação territorial transformou a geografia do crime no Rio disputando o controle de comunidades com facções do tráfico O formato prosperou ao longo dos anos 1990 depois de conflitos pelo comando da associação de moradores do bairro Octacílio tinha sido preso algumas vezes acusado dos crimes cometidos na região mas continuava em liberdade e mandando na área Foi assassinado em 1989 em Jacarepaguá no bairro do Anil Nos anos que se seguiram seu grupo permaneceu no poder liderado por Dinda sua mulher Em 1995 Dinda foi assassinada na sede da associação de moradores quando cadastrava candidatos à aquisição de lotes no bairro A morte de Dinda marcou o fim da dinastia original Policiais assumiram o controle da associação de bairro que já arrecadava mensalidades para mediar a compra de lotes e terrenos Eles criaram novos negócios e passaram a influenciar não somente instituições políticas mas também corporações policiais Profissional e organizado o grupo assumiu o papel de governo terceirizado de Rio das Pedras cobrando taxas dos moradores pela gestão e segurança Nessa época final dos anos 1990 o pequeno núcleo que havia surgido com cerca de quatrocentas pessoas à margem de Rio das Pedras já possuía quase 40 mil habitantes Comércios variados e casas com lajes sobrepostas marcavam a fisionomia da comunidade dividida entre a parte rica o entorno do núcleo antigo com lotes mais bem organizados e a parte pobre locais sujeitos a cheias e loteamentos feitos de maneira caótica com espaços pequenos e sem ventilação caso dos núcleos Areal II e Pantanal O inspetor da Polícia Civil Félix Tostes assumiu o comando de Rio das Pedras com o apoio de outros policiais da ativa Junto com eles ascendeu o comerciante Josinaldo Francisco da Cruz conhecido como Nadinho de Rio das Pedras amigo de infâ ncia de Tostes Nadinho havia se destacado em 1996 como uma liderança importante na organização de apoio aos desabrigados das enchentes no bairro Nos anos seguintes como presidente da associação esteve à frente de serviços assistenciais e parcerias com o poder público que fortaleceram o grupo As receitas também se diversificavam Tostes criou em 1997 a Cooperativa Mista de Trabalhadores em Transporte Alternativo para regulamentar e organizar as vans A ideia do inspetor era seguir o caminho do outro grupo de policiais empreendedores da região conhecido como Liga da Justiça Nos anos 1990 e 2000 a Liga assumiu o controle do transporte de peruas em Campo Grande e Santa Cruz liderados por outro inspetor da Polícia Civil Natalino José Guimarães e seu irmão Jerônimo Guimarães Filho conhecido como Jerominho Em Rio das Pedras a administração da cooperativa de vans foi concedida por Tostes ao sargento da Polícia Militar Dalmir Pereira Barbosa Como era funcionário público Barbosa não podia assumir formalmente a função e colocou como testas de ferro seu irmão Dalcemir e Getúlio Rodrigues Gama que se tornaria presidente da cooperativa de vans de Rio das Pedras4 Dois oficiais também mantinham influência no poder local o major Dilo Pereira Soares Júnior e o capitão Epaminondas de Queiroz Medeiros Júnior O sargento Dalmir ainda levou para Rio das Pedras dois praças que faziam serviços de cobrança Maurício Silva da Costa o Maurição e Paulo Alvarenga o Paulo Barraco A presença desses policiais nos novos grupos milicianos se revelou decisiva Eles ganharam o respaldo dos batalhões e das delegacias locais Maurição por exemplo era do 18o Batalhão Os paramilitares colaboravam com a polícia no combate ao tráfico ao mesmo tempo que abriam oportunidades para a criação de negócios semelhantes em bairros vizinhos Além de organizar as vans Tostes tinha uma revendedora de gás O negócio era lucrativo porque o grupo impedia a entrada de concorrentes e obrigava os moradores a comprar seu botijão a preços mais elevados que o de mercado Na CPI das Milícias em 2008 um representante do sindicato das empresas distribuidoras de gás estimou que uma das empresas de Rio das Pedras chegava a vender cerca de 3 mil botijões por dia o que representava um faturamento mensal de 600 mil reais Cobravase também pela instalação de sinais clandestinos de TV a cabo de cinquenta a sessenta reais internet de dez a 35 reais segurança de comércio de trinta a trezentos reais e de moradores de quinze a setenta reais5 O sargento Dalmir e o major Dilo também se tornaram sócios na Areal Crédito Fomento Mercantil que emprestava a juros aos comerciantes entre outros empreendimentos A nova composição mais profissional e influente abriu caminho para parcerias com a prefeitura Cesar Maia quando assumiu seu segundo mandato na prefeitura em 2001 nomeou Nadinho como administrador regional de Rio das Pedras Em poucos dias foi exonerado do cargo por causa da repercussão negativa de sua indicação na imprensa Nadinho voltou a presidir a associação de moradores onde podia mandar com menos amarras sem perder a parceria com a prefeitura Cesar Maia iniciou sua carreira política no Partido Comunista Brasileiro e foi preso durante a ditadura militar No Chile onde estava exilado junto com o ex governador paulista José Serra formouse em economia Ingressou mais tarde no PDT e participou do governo do Rio de Janeiro em 1983 a convite de Leonel Brizola como secretário da Fazenda A primeira disputa de Maia por um cargo no Executivo ocorreu em 1992 e ele se elegeu prefeito do Rio pelo PMDB depois de romper com seu padrinho Brizola Cesar Maia era um defensor da descentralização política da administração da cidade além de especialista na leitura de pesquisas de votos e mapas eleitorais Essas duas características aproximaram o prefeito dos administradores de Rio das Pedras principalmente em seu segundo mandato em 2001 Maia tratava as milícias como Autodefesas Comunitárias ou ADCs espécie de gestão popular sem as bases operárias e religiosas de São Paulo A aliança do prefeito Cesar Maia com Nadinho de Rio das Pedras descentralizava a gestão e garantia votos ao político Essa parceria gerou diversos convênios municipais para serviços como creches varrição de rua proteção de rios e lagoas limpeza dos valões atendimento de saúde e cursos de informática Os serviços foram fundamentais para a eleição de Nadinho à Câ mara Municipal pelo PFL em 2004 Cesar Maia por seu lado ganhava apoio eleitoral como ocorreu na eleição de 2006 quando seu filho Rodrigo Maia foi o segundo candidato a deputado federal mais votado em Rio das Pedras Maia parecia acreditar que tinha as milícias sob controle Não acreditava ou não quis enxergar que o modelo de negócios dos milicianos poderia desarticular o Estado e se tornar incontrolável como viria a acontecer mais tarde Nessa época de entusiasmo e parceria com as instituições cariocas os milicianos pareciam achar que não havia limite para suas ações Pacificação local controle dos traficantes num período em que as facções aterrorizavam o Rio de Janeiro assistencialismo via centro social tudo isso permitiu que eles dessem início a planos mais ambiciosos de poder concorrendo a vagas no Parlamento apoiando políticos estreitando relações até mesmo com secretários de Segurança seduzindo candidatos que apoiassem seus negócios com votos de seus currais eleitorais Em 2004 Nadinho de Rio das Pedras foi eleito vereador com uma campanha rica o suficiente para fazer dele o nono vereador mais votado do Rio com 34 764 votos depois de duas tentativas fracassadas em eleições anteriores Na mesma disputa Jerominho da Liga da Justiça foi eleito com 33 373 votos alcançando a 11ª posição de mais votado Natalino irmão e sócio de Jerominho na Liga foi eleito deputado estadual na eleição de 2006 com 49 405 votos Todos com suas bases eleitorais concentradas na região que dominavam O modelo de negócios inspirado em Rio das Pedras se espalhava desde 2002 e recebia o olhar complacente e oportunista das autoridades Os bairros de Anil Curicica Gardênia Azul Campinho e Vila Valqueire em Praça Seca Vila Sapê Freguesia Jardim Boiúna Santa Maria e Pau de Fome em Taquara que ficavam nos arredores da Barra Jacarepaguá e Recreio dos Bandeirantes um a um adotaram o modelo de Rio das Pedras numa expansão silenciosa sem repercussão De um lado a mistura de consentimento e falta de alternativa dos moradores de outro a promessa de dinheiro e poder para policiais e paramilitares que participavam do esquema ou que queriam participar O principal movimento de domínio territorial ocorria em direção às comunidades consideradas neutras ainda não dominadas por traficantes Um relatório da Subsecretaria de Inteligência do Estado apontou que em 2008 havia 171 áreas dominadas por milícias Em quase 70 delas não havia facções criminosas anteriormente Segundo o mesmo relatório em 52 dessas áreas houve a expulsão de traficantes pelas milícias 29 do Comando Vermelho catorze do Terceiro Comando Puro e nove da Amigos dos Amigos6 Esse embate teve reflexos no final de 2006 quando criminosos do CV para protestar contra o avanço dos policiais realizaram uma série de ataques causando dezoito mortes Esse caminho silencioso e discreto percorrido pelas milícias em direção às comunidades não seria contudo tão simples de preservar As milícias enfrentaram resistência da sociedade civil e das instituições Também bateram de frente com interesses políticos e de criminosos A reação surgiu em decorrência do barulho em bairros como Campo Grande Paciência Inhoaíba Cosmos Guaratiba e Santa Cruz onde procedimentos adotados pela Liga da Justiça liderada por Jerominho e Natalino eram mais ousados e violentos Natalino por exemplo tinha a alcunha de Mata Rindo7 Faziam parte do grupo Leandrinho QuebraOssos Ricardo Batman e Julinho Tiroteio entre outras figuras que não se importavam com a má fama A trupe andava com adesivos do Batman em seus carrões e apostava no terror para mandar na região com assassinatos à luz do dia para assustar a concorrência A Liga da Justiça além disso era mais numerosa e descentralizada Na CPI das Milícias foram apontados mais de cem nomes como integrantes do grupo que ainda teria cerca de 25 fuzis à disposição Em vez de recorrer à diplomacia a Liga dispunha de um pequeno exército tolerado pelos batalhões de polícia local que atacava empresários do transporte alternativo insubmissos ao grupo Em 2008 a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas atribuiu ao grupo cerca de sessenta assassinatos cometidos ao longo de cinco anos Estatística do Serviço de Inteligência da Polícia Militar mostrou que em três anos o grupo tinha praticado pelo menos 98 homicídios8 Com base nesses conflitos puxouse o fio que levaria muitos milicianos à prisão O processo de formação da milícia de Campo Grande e Santa Cruz foi diferente do verificado em Rio das Pedras Como esses três bairros têm histórias distintas as quadrilhas cresceram de acordo com as características oportunidades e limites de cada ambiente Campo Grande e Santa Cruz apesar de mais distantes do centro do Rio do que a região da Barra e Jacarepaguá sempre tiveram uma relação mais próxima com a capital carioca Nos tempos coloniais era o local de plantio de cana de açúcar e de criação de gado com forte presença dos jesuítas que lá deixaram prédios antigos pontes praças e canais Em 1808 com a vinda da família real portuguesa para o Brasil Santa Cruz se tornou local de passeio de d João VI e dos aristocratas que visitavam a Fazenda Imperial de Santa Cruz Caminho para o Vale do Paraíba e São Paulo pelo bairro também passava a linha de ferro D Pedro II e depois a Estrada RioSão Paulo e a avenida Brasil Esses bairros portanto longe de ser isolados habitados por cobras e jacarés tinham lugar na economia da capital assim como instituições mais fortes e presentes Natalino e Jerominho souberam aproveitar a chance aberta pela omissão do Estado no processo de crescimento da região a partir dos anos 1960 O transporte via trem e ônibus era insuficiente para conduzir os habitantes da região de casa para seus empregos nos bairros centrais No início dos anos 1990 as peruas e vans Topic é que forneciam esse serviço no Rio de Janeiro Pequenos empreendedores compravam vans e iam para o asfalto em busca das linhas e dos horários mais lucrativos Alguns já tinham experiência com os cabritinhos transportes feitos no interior das favelas onde as linhas regulares de transporte público não entravam Para disputar as linhas das vans que chegavam às regiões centrais os perueiros enfrentavam concorrências truculentas e achaques em torno dos melhores trajetos Linhas com mais passageiros e mais rentáveis eram cobiçadas Cooperativas de transporte foram criadas para administrar a desordem e mitigar os riscos policiais foram contratados como seguranças para impedir assaltos e possíveis agressões dos rivais Foi nesse contexto que a Liga da Justiça nasceu e se fortaleceu Eles perceberam que em vez de oferecer apenas segurança para as cooperativas poderiam organizar as linhas e lucrar diretamente com o dinheiro do transporte clandestino explicou o policial civil Cláudio Ferraz que esteve cinco anos à frente da Draco A organização da linha de transporte clandestino pela Liga da Justiça teve início em 1996 disse o promotor Luiz Antônio Ayres que começou a trabalhar no Fórum de Santa Cruz em 1998 Os policiais entraram primeiro como seguranças Depois assumiram o controle das cooperativas Com o tempo conquistaram a gestão dos territórios Essa autoridade local era exercida por meio de organizações que desenvolviam trabalhos sociais Jerominho por exemplo criou o centro SOS Social para ganhar influência política e popularidade com os moradores de Campo Grande Sua influência se estendia aos serviços públicos como hospitais e o Centro Esportivo Miécimo da Silva construído em Campo Grande nos anos 1980 e mais tarde reformado para os Jogos PanAmericanos de 2007 Assim como tinha acontecido com a associação de moradores de Rio das Pedras os policiais da Liga assumiam cada vez mais a condição de subprefeitos informais desempenhando nas favelas tarefas que cabiam ao Estado Quanto mais fortes politicamente eles ficavam no bairro mais possibilidades de lucro surgiam O grupo também passou a reproduzir em seus territórios os negócios geradores de receitas das milícias de Rio das Pedras monopólio da venda de gás instalação de gatonet taxas de segurança proteção para máquinas de caçaníquel agiotagem taxa para a regularização de imóveis e a acumular dinheiro e poder O delegado Marcus Neves que investigava o grupo afirmou em 2008 na CPI das Milícias que a Liga da Justiça faturava mensalmente 2 milhões de reais Para os integrantes desses grupos a situação começou a mudar depois de 2007 quando Sérgio Cabral Filho assumiu o governo do estado e colocou José Maria Beltrame à frente da Secretaria de Segurança O tema das milícias já havia entrado no radar do governador depois dos ataques do CV ocorridos em dezembro às vésperas de sua posse A preocupação aumentou depois que Beltrame ouviu o relato de que um grupo de milicianos havia passado em frente ao Fórum de Santa Cruz na caçamba de uma caminhonete ostentando tripé e fuzis O secretário determinou que a Draco investigasse o assunto Para comandar a delegacia ainda desestruturada foram escolhidos dois policiais abnegados e sabidamente competentes o delegado Cláudio Ferraz e o inspetor Jorge Gerhard Ambos foram discípulos de Hélio Luz um dos delegados mais respeitados da Polícia Civil conhecido por sua capacidade estratégica e operacional Também havia um cálculo político de Sérgio Cabral Filho Ele precisava evitar o fortalecimento de um grupo capaz de fazer frente a parceiros seus na Assembleia Legislativa como os deputados Jorge Picciani presidente da Casa e Paulo Melo seu principal interlocutor no Legislativo O governador era do diálogo mas sabia agir quando seus interesses estavam em jogo E Cabral sabia que para se equilibrar no poder não podia perder o controle de seus concorrentes Os problemas provocados pela expansão das milícias e os conflitos entre os grupos além da disputa com facções criaram o ambiente político para que o governo pudesse interferir Os casos envolvendo violência entre os integrantes das milícias começaram a pipocar e a despertar a atenção da opinião pública e dos policiais da Draco Em fevereiro de 2007 nove pessoas morreram na favela K elsons na Penha por causa do confronto entre milícia e tráfico Dez traficantes armados entraram na favela e mataram três homens supostamente envolvidos com o grupo de milicianos A favela tinha passado ao controle dos policiais em novembro do ano anterior Entre os mortos havia um pedreiro que tinha construído por ordem dos milicianos um muro com um portão de ferro em um dos acessos à favela Outros dois mortos seriam integrantes da milícia O carro de um dos chefes da milícia foi metralhado com mais de setenta tiros Durante o tiroteio os traficantes fugiram em dois carros Na saída da favela já na avenida Brasil os criminosos se depararam com dois carros da PM Os cinco traficantes que estavam no carro foram mortos Ainda em fevereiro o assessor do gabinete da Polícia Civil e chefe da milícia de Rio das Pedras o inspetor Félix Tostes foi morto com 34 tiros quando dirigia o carro de uma amiga no bairro do Recreio dos Bandeirantes Foram recolhidas 72 cápsulas deflagradas no local Segundo testemunhas três homens teriam saído de um carro cercado a picape em que estava o policial e atirado Um mês antes Félix Tostes tinha sido exonerado de seu cargo de confiança na Assessoria do Gabinete da Polícia Civil por suspeitas de ligação com as milícias e com a máfia dos caça níqueis A fratura no comando de Rio das Pedras ficou exposta com a morte de Tostes Era o começo de uma disputa fratricida repleta de traições que deixaria o grupo sem rumo por um período Problema parecido atingiu a Liga da Justiça que também passou a implodir numa série de conflitos que ao longo dos anos provocaria a denúncia e a prisão de vários integrantes Já em 2005 a Liga havia dado sinais do tamanho de seu apetite e vinha enfrentando resistências Tentava expandir os domínios no setor de transportes e vans ameaçando pequenos empreendedores de Campo Grande e dos bairros vizinhos Na noite de 15 de junho daquele ano um comboio de cinco carros com vinte homens se dirigiu a Guaratiba para assassinar Marcelo Eduardo dos Santos Lopes da Cooperouro uma empresa de vans Natalino e Jerominho estavam no grupo com Batman QuebraOssos Juninho Perneta Luciano filho de Jerominho entre outros Ao avistar os carros Marcelo conseguiu fugir invadindo casas do bairro Seu testemunho foi peçachave para a denúncia que levaria alguns deles à prisão que só ocorreria em dezembro de 2007 A demora de três anos para a conclusão do inquérito decorreu principalmente do pâ nico das testemunhas e das ameaças que muitos sofreram dos autores do atentado Durante as investigações um dos sócios de Marcelo desapareceu outro mudou seu depoimento uma testemunha foi assassinada e outras duas entraram para o Programa de Proteção à Testemunha O avanço da Liga sobre o mercado de transportes provocou a resistência de perueiros concorrentes que ameaçados não viram outra saída senão denunciar seus algozes para sobreviver A polícia acabou se beneficiando com a disputa e com pedidos de socorro que quebravam o silêncio O compromisso demonstrado pelos policiais da Draco dava confiança para que novas denúncias fossem feitas Em 14 de abril de 2007 César Moraes Gouveia da cooperativa de vans Rio da Prata em Bangu contou aos investigadores haver recebido na sede da empresa a visita de seis carros com integrantes da Liga obrigandoo a entregar a cooperativa ao grupo para não ter o mesmo destino de outros dois empresários o caixão Esse fora o fim do sócio da Cooperoeste Iltinho Mongol assassinado três dias antes e de Denise Indaiá da Cooper Santa Cruz assassinada três meses antes Cada nova história ajudava os policiais da Draco a montar o quebracabeça que daria consistência ao processo prestes a estourar Era questão de tempo e oportunidade Em agosto integrantes da Liga da Justiça foram presos em flagrante depois de numa ação ousada tentarem matar um perueiro e miliciano concorrente em São Pedro da Aldeia na Região dos Lagos fora dos limites territoriais do grupo em Campo Grande e Santa Cruz O sargento do 25o Batalhão Francisco César Silva Oliveira o Chico Bala desde 2001 investigado por coordenar uma cooperativa de transporte na zona oeste estava em seu carro junto com a mulher e o enteado de treze anos quando quatro homens abriram fogo Ele se feriu com estilhaços e tiros de raspão contudo sua mulher e o menino morreram Os suspeitos foram presos em Araruama no quilômetro 30 da Via Lagos dentro do carro que usavam para voltar a Campo Grande O bando era formado por quatro pessoas o policial André Luiz da Silva Malvar genro de Jerominho o exsoldado da PM Ricardo Teixeira Cruz o Batman José Carlos Silva ex PM expulso em 1999 e o cabo do 27o BPM Wellington Vaz de Oliveira No carro eles levavam três fuzis duas granadas M9 cinco pistolas 44 carregadores quatro toucas tipo ninja duas lunetas cinco rádios Nextel e três rádios transmissores As pistolas foram enviadas à Polícia Científica e uma delas que pertencia a André Malvar foi indicada como a arma que havia matado o chefão de Rio das Pedras Félix Tostes seis meses antes Conforme as peças iam sendo juntadas a investigação policial apontava para uma conspiração as duas principais milícias do Rio de Janeiro naquele momento a de Rio das Pedras e a Liga da Justiça buscavam formar uma aliança Malvar o dono da pistola havia atuado junto com Nadinho para matar Tostes O motivo seria a dominação do transporte alternativo na região e algumas desavenças pontuais entre Nadinho e Tostes no comando de Rio das Pedras Nadinho foi preso em novembro de 2007 mas acabou solto para aguardar as investigações em liberdade Em dezembro Jerominho Malvar Batman e Julinho Tiroteio foram presos Outros quatro integrantes da Liga da Justiça tinham mandado de prisão decretados mas estavam foragidos A prisão do deputado Natalino um dos chefões da Liga era questão de tempo As coisas finalmente pareciam fugir ao controle dos paramilitares que até então se sentiam intocáveis O cerco policial ameaçava se fechar em torno deles Por fim no primeiro semestre de 2008 explodiu um escâ ndalo que tudo indicava seria o golpe de misericórdia nas milícias A bomba explodia seis anos depois do assassinato de Tim Lopes Era a vez de repórteres do jornal O Dia serem torturados e escaparem por milagre das mãos de milicianos da Favela do Batan em Realengo na zona oeste O fotógrafo agredido Nilton Claudino era amigo de Tim Lopes com quem havia trabalhado em outras redações Assim como Tim Nilton não tinha medo de arriscar a vida em busca de matérias que denunciavam mazelas sociais e crimes cometidos por autoridades Em 2002 depois do assassinato do amigo Nilton obteve uma informação certeira sobre o paradeiro das ossadas de Tim Lopes Passou as coordenadas à polícia que subiu até o topo da Vila Cruzeiro Nilton estava trabalhando no dia em que localizaram os restos de Tim Fez as fotos chorando para a matéria que seria publicada no dia seguinte9 Depois de anos na profissão a apuração sobre as milícias do Batan faria Nilton abandonar o jornalismo para viver escondido abalado pelo que sofreu junto com uma jornalista em começo de carreira e o motorista que levava a dupla para a pauta e dava suporte ao casal O episódio começou em maio de 2008 quando Nilton e a jornalista foram morar na favela sem se identificar O objetivo era se disfarçar de moradores novos para descrever o ambiente e fazer fotos do cotidiano de uma favela dominada por milícias Em junho do ano anterior os milicianos haviam expulsado traficantes da favela e dominado o território Durante catorze dias os jornalistas fizeram amizades e se aproximaram dos moradores Mandavam boletins diários para o jornal de uma lan house Nilton conseguiu imagens de torturas feitas por milicianos em usuários de drogas tirou fotos do depósito de gás e da carcaça de carros roubados Acabaram descobertos Segundo os algozes um informante revelou aos milicianos a identidade dos dois Os dois foram algemados encapuzados e levados a um cativeiro junto com o motorista Ao longo de sete horas tomaram chutes socos choques e foram asfixiados Tinham certeza de que seriam assassinados Os milicianos disseram que os levariam para a favela vizinha e que culpariam o tráfico pela morte deles Como O Dia já tinha a informação de que o desaparecimento dos jornalistas e do motorista era responsabilidade das milícias e de seus chefes o chefe do grupo da Favela Batan decidiu poupar a vida dos três A repercussão foi imensa A história da tortura e do sequestro foi publicada no dia 1o de junho de 2008 com a manchete Tortura Milícia da zona oeste sequestra e espanca repórter fotógrafo e motorista de O Dia Houve repúdio generalizado e reações políticas de peso As milícias se tornaram motivo de preocupação recebendo mais atenção da imprensa e da opinião pública O clamor forçou os deputados estaduais do Rio a aprovarem uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar esses grupos o que o deputado estadual Marcelo Freixo já havia pedido no terceiro dia da nova legislatura em fevereiro de 2007 Professor de história e militante de direitos humanos Freixo estava em seu primeiro mandato para o qual tinha sido eleito com 13 547 votos Durante a campanha eleitoral Freixo quase abandonou a disputa quando seu irmão mais novo Renato Freixo foi assassinado com 34 anos depois de demitir seguranças que faziam bico no prédio em que morava Freixo foi convencido por amigos e pelo partido o PSOL a não desistir da eleição e a lutar em memória de Renato Como presidente da CPI evitou tratar da tragédia pessoal para não deslegitimar os trabalhos de apuração A Comissão iria com tudo para cima dos milicianos Freixo montou uma equipe corajosa e competente para atuar na CPI das Milícias O delegado Vinicius George pupilo de Hélio Luz nos anos 1990 foi importante para fortalecer a relação com os delegados da Draco Outra figura que se destacou foi Marielle Franco mesmo não atuando diretamente na CPI Com 27 anos trabalhou como assistente no gabinete de Freixo e depois seguiu com ele por dez anos saindo para se candidatar a vereadora em 2016 No relatório final depois de seis meses de trabalho e debates intensos a comissão pediu o indiciamento de 225 pessoas entre elas os chefes da Liga da Justiça Jerominho e Natalino e de Rio da Pedras Nadinho o vereador André Ferreira da Silva o Deco PR que comandava a milícia de Praça Seca o vereador Geiso Pereira Turques o Geiso do Castelo PDT em São Gonçalo Carmen Glória Guinâ ncio Guimarães conhecida como Carminha Batgirl PTdoB Cristiano Girão PMN o chefe em Gardênia Azul e Chiquinho Grandão PTB de Duque de Caxias Também foram indiciados o exchefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro e deputado cassado Á lvaro Lins além de 67 policiais militares oito policiais civis três bombeiros dois agentes penitenciários e dois cabos das Forças Armadas Embora não tenha sido indiciado o deputado federal Marcelo Itagiba PMDB que havia sido secretário de Segurança Pública foi mencionado como candidato dos milicianos O prefeito Cesar Maia foi acusado de atitude permissiva com os milicianos e o relatório da CPI afirmou que o secretário de Segurança do Rio José Mariano Beltrame não combatia as milícias como deveria por falta de prioridade no combate à segurança privada de ruas e outros espaços públicos No ano seguinte à CPI em 2009 246 pessoas foram presas suspeitas de integrar milícias Entre 2008 e 2017 o total de prisões relacionadas a milicianos chegou a 1310 131 milicianos presos em média por ano10 Muitos apostavam que as centenas de prisões fragilizariam os paramilitares e os anos seguintes no Rio de Janeiro reforçaram esse otimismo Em 2008 as Unidades de Polícias Pacificadoras UPPs ajudaram a promover a pacificação de favelas das zonas norte e sul do Rio Em 2010 o Ministério Público Estadual criou o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado com um núcleo de Inteligência que permitia aos promotores se envolver em atividades de investigação e despachar direto com juízes As taxas de homicídios caíram expressivamente até 2016 O Rio parecia em festa com a expectativa da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 As prisões de milicianos continuavam Foram 158 em 2016 e 155 em 2017 O sonho de um Rio de Janeiro pacificado contudo começou a ruir rapidamente A prisão do governador Sérgio Cabral Filho em novembro de 2016 suspeito de receber propina para a concessão de obras públicas e a crise fiscal que impediu até mesmo o pagamento de salário do funcionalismo acordaram todos para a dura realidade A expansão das milícias havia continuado intensa de maneira discreta longe das manchetes Os negócios ilícitos prosseguiram do mesmo modo com a venda de gás de imóveis e terrenos em áreas griladas com o gatonet e a cobrança de taxas de segurança entre outras atividades rentáveis devido aos monopólios de mercado impostos à força As estruturas que garantiam aos milicianos dinheiro e poder seguiam intocáveis As milícias estavam mais fortes do que nunca Depois de uma década esquecido nas preocupações prioritárias da opinião pública Rio das Pedras voltou a ficar sob os holofotes de forma apoteótica misturando a história e a trajetória de alguns personagens mais importantes da política Em janeiro de 2019 a operação Os Intocáveis do Gaeco do Rio levou à prisão vários integrantes do grupo de milicianos que atuava em Rio das Pedras O capitão Adriano Magalhães da Nóbrega velho conhecido da família Bolsonaro foi denunciado como chefe de milícia junto com o major Ronald Paulo Alves Pereira o oficial que também havia sido homenageado por Flávio Bolsonaro mesmo depois de Ronald ter sido acusado de participar da chacina de quatro jovens na Via Show em São João de Meriti A ficha do capitão Adriano na Justiça formada paralelamente à sua carreira na polícia mostrava a ação de um minerador contumaz sempre atento às oportunidades do submundo do Rio Dessa vez o passado de Adriano da Nóbrega viria à tona para assombrar a presidência de Jair Bolsonaro político que mais o apoiou ao longo de sua carreira com cargos para familiares no gabinete de seu filho Flávio agora senador Outros nomes recorrentes que já haviam sido mencionados na CPI das Milícias como integrantes do núcleo duro de Rio das Pedras voltaram a aparecer na estrutura dessa comunidade onze anos depois da CPI Foi o caso de Maurício Silva da Costa o Maurição Marcus Vinicius Rei dos Santos o Fininho Fabiano Cordeiro Ferreira o Mágico e Jorge Alberto Moreth o Beto Bomba presidente da associação de moradores Depois da morte de Nadinho e Félix Tostes o grupo ressurgiu ainda mais influente O capitão Adriano o major Ronald e Maurição eram os principais líderes na nova fase da organização criminosa que comandava Rio das Pedras Adriano nas escutas feitas nos telefones dos integrantes do grupo era chamado de patrãozão Segundo os promotores esses três líderes coordenavam e mantinham o controle de empreitadas criminosas como a venda e locação ilegal de imóveis grilagem de terras agiotagem receptação de carga roubada posse e porte ilegal de arma de fogo extorsão de moradores e comerciantes cobrando deles taxas de segurança uso de laranjas para esconder seus bens falsificação de documentos pagamento de propina a agentes públicos utilização de ligações clandestinas de água e energia elétrica A autoridade dos denunciados era imposta pela violência sobretudo pela prática de homicídios Contavam com armas de fogo de calibres pesados e a proteção de agentes públicos ativos e inativos que compartilham informações privilegiadas para ajudar o fortalecimento do grupo Havia uma clara incongruência entre a postura da Justiça e a da Segurança Pública para lidar com a milícia Ambas as instituições pretendiam a prisão de alguns indivíduos mas o Estado continuava delegando mesmo que por omissão suas principais funções aos milicianos que seguiam aproveitando a ausência do Estado na região para aumentar seus lucros e sua influência política De acordo com as denúncias tudo era fonte de receita para o grupo Um morador contou que motoristas tinham que pagar uma taxa de cem reais por mês para poder estacionar o carro no terreno da escola municipal do bairro A punição para os devedores era das leves carro danificado Já os comerciantes eram obrigados a pagar até cem reais por semana As calçadas das casas eram vendidas como ponto para a instalação de barracas de comércio O grupo de Adriano Ronald Maurição e Fininho também agia no ramo da agiotagem emprestando dinheiro a juros e detinha o monopólio da venda de gás Detalhes do cotidiano do poder local foram colhidos através de escutas e de informações passadas ao DisqueDenúncia Os moradores contaram que os criminosos recolhiam essas taxas toda sextafeira cinquenta reais de gatonet sessenta reais de internet noventa reais de gás e cem reais pelo gato de luz por residência Aqueles que não pagassem podiam ser expulsos de casa para depois terem seus imóveis alugados por novos moradores A construção de lajes sobre os imóveis e a grilagem de terrenos eram uma fonte de renda importante da milícia Adriano Ronald e Maurício atuavam como sócios investidores ou incorporadores aplicando as receitas obtidas em outras atividades criminosas nos empreendimentos imobiliários das comunidades de Rio das Pedras Muzema e adjacências onde controlavam desde a construção até a venda e a locação de imóveis Ronald mantinha em seu computador diversas tabelas contábeis plantas de imóveis e documentação de loteamento de terrenos As negociações dos apartamentos apareceram em conversas grampeadas com a autorização da Justiça A relevâ ncia dos negócios imobiliários para as receitas criminais do grupo era visível desde 2008 cerca de um ano depois da morte do inspetor e miliciano Félix Tostes Segundo as investigações Tostes foi assassinado para abrir caminho à aliança entre os vereadores Nadinho de Rio das Pedras e Jerominho da Liga da Justiça Com o passar dos anos contudo novas informações foram reveladas Havia outros interesses em jogo principalmente imobiliários O grupo que assumiria o poder na década seguinte 2010 lucraria bastante nesse ramo Com as investigações da Draco e da CPI das Milícias Jerominho Natalino e Nadinho perderam prestígio político uma vez que o cerco se fechava em torno deles Viraram símbolo de uma milícia old school ostensiva e truculenta Depois que eles sucumbiram as milícias de Campo Grande e Santa Cruz adotaram um estilo diferente como se sabe o poder não deixa vácuo e um novo núcleo se formou em Rio das Pedras Dele faziam parte Dalmir Pereira Barbosa policial militar da reserva e Dalcemir Pereira Barbosa além de Beto Bomba Maurição Fininho e Mágico O capitão Adriano e Ronald surgiram mais tarde querendo ganhar dinheiro com o mercado de venda de terrenos e de apartamentos Maria do Socorro Tostes viúva e herdeira de Félix estava no caminho de negócios imobiliários valiosos Informações sobre isso foram descobertas depois de 24 de novembro de 2008 quando ela sofreu uma tentativa de assassinato A CPI das Milícias já havia se encerrado e os holofotes da imprensa se apagado A vítima teve graves ferimentos e foi submetida a diversas cirurgias permanecendo hospitalizada com escolta policial o tempo todo Maria do Socorro sobreviveu e decidiu contar muito do que sabia Conforme as investigações da tentativa de homicídio avançavam o inquérito revelava mais e mais os interesses imobiliários do grupo que havia assumido o poder em Rio das Pedras Os irmãos Dalmir e Dalcemir eram os chefes Ambos tinham sociedades antigas com os milicianos do grupo anterior inclusive com Tostes e Nadinho Maria do Socorro disse que logo após a morte de Tostes os irmãos se mostraram revoltados com o assassinato O grupo acusava Nadinho de ser o mentor do golpe contra o núcleo de poder O próprio Tostes confirmou essa suspeita de traição antes de morrer Depois do crime o grupo pagava a Maria do Socorro uma mesada de 10 mil reais pela sociedade nos negócios que herdara do marido No primeiro semestre de 2008 contudo antes mesmo da CPI a relação dela com as novas lideranças de Rio das Pedras começou a estremecer O novo grupo de Dalmir Dalcemir e Maurição começou a aterrorizar a vida de Maria do Socorro Ameaças chegavam a seus ouvidos por terceiros Eles estavam atrás dela Seu filho quase foi morto por engano Na hora em que os assassinos iam atirar disseram Não é ela e foram embora Mas a vez dela acabou chegando e depois do crime confissões e testemunhos ajudaram a polícia a reconstituir os bastidores do atentado De acordo com as investigações a ação foi planejada dentro do Instituto Penal Câ ndido Mendes por ex policiais e militares que cumpriam pena em regime semiaberto Otto Luiz Stefan cabo reformado da Marinha preso em 1998 pelo feminicídio da esposa contratou os expoliciais Carlos Guedes e Sérgio de Barros Amorim expulsos da PM por homicídio e sequestro para executar Maria do Socorro Completava o bando o expolicial Carlos Alberto Vieira Dantas que cumpria pena por homicídio O contato entre a turma de Dalmir Dalcemir e Maurição e o grupo de matadores havia sido feito por Paulo Roberto Alvarenga um dos policiais condenados pela chacina de Vigário Geral em 1993 e que também cumpria o regime semiaberto O contato do preso com o lado de fora era Maurição outro policial envolvido na mesma chacina mas que tinha sido inocentado O passado tenebroso e mal resolvido da violência policial no Rio continuava a assombrar Dantas um dos contratados para o crime acabou preso e dando à polícia sua versão sobre a tentativa de assassinato de Maria do Socorro prevendo que seria morto e responsabilizado pelo fracasso da missão Ele disse que pilotava a moto que levou Amorim o autor dos disparos que atingiram Maria do Socorro A quebra do sigilo telefônico dos suspeitos e outros testemunhos confirmaram a versão de Dantas As coisas se complicavam para os desafetos do bando porque uma semana depois do atentado a Maria do Socorro foi a vez do vereador Nadinho ser vítima de uma tentativa de homicídio Cápsulas apreendidas no local revelaram que as armas nos dois crimes haviam sido as mesmas Até as motos usadas na fuga tinham as mesmas características Ainda faltava descobrir por que o grupo quis matar Maria do Socorro Em março de 2009 foi aberto um inquérito para identificar os mandantes O depoimento de Maria do Socorro tinha sido fundamental para levantar a provável motivação do atentado contra ela Na delegacia ela contou que a hipótese mais provável seria a disputa por um terreno situado na curva do Pinheiro um dos locais mais nobres de Rio das Pedras que ela tinha herdado do marido com outros três sócios um deles um coronel reformado da PM Depois do assassinato de Tostes Dalcemir aquele que assumiria o comando de Rio das Pedras junto com o irmão pediu aos sócios do terreno uma procuração para regularizar a área na prefeitura Sem desconfiar de nada Maria do Socorro e os demais proprietários passaram a procuração a Dalcemir Na época Nadinho ainda era visto por todos como o inimigo em comum do grupo de Rio das Pedras Não havia motivo para desconfiar de Dalcemir Ele porém passou a vender lotes do terreno de Maria do Socorro e dos sócios dela para a construção de prédios sem avisar os proprietários da área Maria do Socorro só ficou sabendo das vendas irregulares porque o morador de um terreno vizinho à área dela procurou a polícia para denunciar as investidas que vinha sofrendo de Dalmir e Dalcemir Eles queriam que o homem desocupasse a área de quinhentos metros quadrados onde morava fazia vinte anos e onde tinha montado também um restaurante e uma oficina mecâ nica O grupo de Dalmir e Dalcemir já havia derrubado o restaurante e os milicianos já estavam limpando o terreno dele e tinham dado um ultimato para que deixasse o local Foi então que o morador decidiu denunciar a pressão que vinha sofrendo e pedir ajuda à polícia Como era dona dos lotes vizinhos ao ser chamada pelo delegado para depor Maria do Socorro soube que seus lotes também estavam sendo vendidos de forma irregular sem seu conhecimento Sua disposição para denunciar a ação do grupo e resistir teria provocado as ameaças de morte contra ela As vendas dos lotes já vinham ocorrendo pelo menos desde agosto de 2007 meses depois da morte de Tostes rendendo um bom dinheiro aos novos chefes da milícia Um dos compradores Francisco contou na delegacia que havia pagado 100 mil reais a Dalcemir intermediado por uma imobiliária de Rio das Pedras para adquirir um lote de duzentos metros quadrados de Maria do Socorro Pretendia construir ali quatro casas Luizito outro comprador havia pagado 95 mil reais para Dalcemir José Freitas declarou ter pagado 100 mil reais por outros lotes onde iria construir um prédio de cinco lajes Outro comprador Reinaldo que depôs em agosto de 2008 afirmou ter pagado 80 mil reais aos mesmos vendedores e que até aquele momento já tinha erguido três andares de um prédio no local Os negócios eram intermediados por uma imobiliária ligada ao grupo de Dalcemir e os compradores acreditavam estar de posse de documentos legais do terreno que na verdade ainda nem estavam regularizados Havia portanto muito dinheiro em jogo ganho com a venda de bens que não pertenciam ao grupo que dominava Rio das Pedras A consolidação desse grupo no poder viria a se confirmar nos anos seguintes Antes tinha havido mudanças importantes no comando por causa das prisões que seguiam acontecendo depois da CPI das Milícias Dalmir e Dalcemir foram presos em 2011 e 2015 respectivamente acusados de diversos crimes Nadinho era um alvo certo como todos sabiam inclusive ele próprio Sua morte ocorreu em 10 de junho de 2009 seis meses depois do encerramento da CPI Três homens encapuzados invadiram o condomínio em que ele morava e o mataram na hora do almoço com diversos tiros de pistola Logo depois a mulher de Nadinho e a viúva de Tostes Maria do Socorro fugiram do Rio de Janeiro para não morrer Dantas o expolicial e autor do testemunho que vinculava as milícias de Rio das Pedras ao atentado contra Maria do Socorro outro que estava com os dias contados foi morto em março de 2011 Na versão divulgada pela polícia e nas notícias publicadas na imprensa pouco se falou do papel de Dantas no esclarecimento da tentativa de homicídio contra a viúva de Tostes A versão oficial com pequenas contestações foi de que policiais à paisana mataram Dantas por ele ter tentado assaltálos Em vez de queima de arquivo o homicídio de Dantas foi mais um que caiu na conta da legítima defesa O vácuo de poder na cúpula de Rio das Pedras contudo não enfraqueceu as milícias Com as mortes de Tostes e Nadinho e as prisões de Dalmir e Dalcemir os intocáveis capitão Adriano e major Ronald passaram a exercer maior influência no comando Conforme as escutas revelaram eles davam as ordens pelo menos desde 2015 A denúncia do Gaeco interromperia precocemente as ações desse grupo Também havia suspeitas de que o capitão Adriano da Nóbrega fazia parte de um grupo de matadores especializados que recebia encomendas do jogo do bicho e que poderia estar envolvido no assassinato de Marielle Franco ocorrido em março de 2018 Em 22 de janeiro de 2019 o Gaeco a Draco e a Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil Core saíram às ruas para cumprir treze mandados de prisão concedidos pela Justiça Apenas cinco milicianos foram presos entre eles um dos chefes o major Ronald Oito conseguiram escapar entre eles o capitão Adriano A pressão contra o grupo de Rio das Pedras entretanto continuaria a aumentar por causa de um fato imponderável apesar de previsível No dia 12 de abril menos de três meses depois da operação Os Intocáveis dois prédios desabaram no Condomínio Figueiras do Itanhangá em Muzema Eram 6h30 e muitos moradores estavam nos imóveis Vinte e quatro pessoas morreram Muito do que já se sabia foi revelado depois da tragédia com documentos comprovando o descaso na fiscalização das construções e a omissão do poder público para interromper os lucros milionários dos milicianos que organizavam o adensamento do bairro Havia uma série de problemas técnicos na construção dos edifícios como espaços subdimensionados nos blocos das fundações que ficavam mais vulneráveis à erosão do solo As chuvas intensas típicas do verão do Rio aceleraram a destruição das bases dos prédios O adensamento do bairro não era nenhuma novidade e diversos imóveis vinham sendo levantados nos últimos anos alguns com oito andares sem que fossem contratados engenheiros para as obras Desde 2014 denúncias chegavam apontando o desmatamento ilegal da Mata Atlâ ntica no entorno do Parque da Tijuca num total de 7 mil metros quadrados devastados em cinco anos Os lotes eram subdivididos para a construção de edifícios mistos em que a parte térrea era reservada para atividades comerciais e os andares superiores para moradias O Ministério Público calculou que o grupo havia movimentado 25 milhões de reais com a comercialização dos apartamentos Faziam parte desse grupo pessoas que ganhavam dinheiro ajudando a financiar a compra a intermediar os documentos de compra e venda em imobiliárias locais e até mesmo fornecendo o material de construção usado nas obras Advogados eram contratados para barrar as ações do poder público contra as obras luz e água eram adquiridas via ligação clandestina e agentes de fiscalização recebiam dinheiro para ignorar as irregularidades Ao longo dos anos fiscais da prefeitura e da Justiça visitaram a região apreenderam maquinários aplicaram multas prenderam pessoas em flagrante mas ainda assim as obras prosseguiram Dezenas de prédios foram levantados no local A violência dos milicianos e o medo dos moradores evitavam denúncias Mas havia outro apelo quem sabe mais determinante os milicianos afinal disponibilizavam aos moradores bens de primeira necessidade algo que o Estado não conseguia fazer Era melhor ter as moradias que eles ofereciam do que não ter nada Como aplicar uma lei que prejudicaria tanta gente ao restringir a construção de casas mais baratas Como de costume foi preciso ocorrer uma tragédia com mortos para que o dilema se revelasse e fizesse refletir sobre os bons motivos para se lutar por uma governança justa dentro de um Estado forte e democrático Os milicianos como demonstrado várias vezes priorizam seus próprios interesses e lucro pouco se importando com a legislação São dinheiristas e egoístas Não ligam nem cumprem o papel de zelar pelo interesse coletivo tarefa que cabe ao Estado Lutam e matam na verdade pelo interesse de seu sucesso pessoal e o de aliados E ainda assim seus valores foram e são compartilhados por lideranças políticas em ascensão que levam para dentro do Estado uma disputa só interessada em beneficiar o personalismo e ambições pessoais destilando ódio contra aqueles que tentam apontar limites 4 Fuzis polícia e bicho Ele era um pequeno empreendedor em Foz do Iguaçu na fronteira do Brasil com o Paraguai que fazia transportes de turistas às Cataratas e à Ciudad del Este Os anos 1990 estavam começando e o Brasil ainda iniciava a abertura da economia para importações Diante das restrições as muambas paraguaias exerciam um grande fascínio nos sacoleiros dispostos a comprar as mercadorias para depois revendêlas no mercado interno das grandes cidades Meu entrevistado poderia se dar por satisfeito com a leva de turistas que movimentava seus negócios mas ele sonhava em ser um homem muito rico Era meu maior objetivo na vida contou Em poucos anos de fato ficaria milionário vendendo armas e drogas para o Rio época em que ganhou o apelido de Senhor da Guerra No começo dos anos 2000 quando foi preso pela primeira vez era considerado pelas autoridades como o principal fornecedor de armas do Brasil Ganhou destaque no mercado por sua postura profissional de vendedor altamente confiável garantindo no fio do bigode a entrega de diversos tipos de encomendas de produtos ilegais mas principalmente armas de calibre pesado Um pouco dessa credibilidade eu mesmo senti durante nossa entrevista quando ele me contou sobre seu passado em tom professoral com um sotaque paranaense cantado que me lembrou o do filósofo Mario Sergio Cortella Ser vendedor atacadista de armas e drogas por tanto tempo e sair sem inimigos nem ameaças de morte é façanha para poucos Como me comprometi a não revelar seu nome vou chamálo de Bigode Bigode cumpriu três anos de pena deixou a prisão em 2005 mas acabou detido novamente dois anos depois ao cair em um grampo e sofrer outra acusação de contrabando de armamentos Ficou mais quatro anos preso e foi inocentado em segunda instâ ncia Nesse percurso no crime repleto de derrotas ele se tornou evangélico e missionário da Assembleia de Deus Eu o conheci com a ajuda de uma colega dele da igreja A principal peculiaridade da cena criminal do Rio de Janeiro é a imensa quantidade de fuzis e armamentos pesados nas mãos dos integrantes dos diversos grupos que comandam as favelas Em nenhum lugar do Brasil se vê um arsenal de armas e munições que chegue perto do que existe no mundo do crime fluminense e Bigode era a melhor pessoa para me ajudar a entender como esse mercado se formou Ele concordou acreditando que seu testemunho poderia ajudar outras pessoas a não cometer os mesmos erros que ele alguém que fez de tudo para enriquecer e que quando se tornou milionário percebeu que seu sonho era uma ilusão Bigode passou a não ver mais sentido em fornecer armas e drogas para o crime tornouse religioso ficou pobre e foi trabalhar como taxista Me garantiu que era incomparavelmente mais feliz Quando Bigode começou a atuar nas fronteiras do Brasil com o Paraguai não faltavam oportunidades para uma pessoa se tornar milionária bastava estar disposta a encarar os riscos Em 1995 ele passou a seguir o caminho do dinheiro entrando em negócios que eram mais lucrativos por ser ilegais no Brasil como o contrabando de cigarros Aproveitou a facilidade de acesso ao produto a preços baixos no Paraguai para descobrir atalhos e entrar com a mercadoria no Brasil driblando a fiscalização Percebeu que podia fazer o mesmo com produtos ainda mais rentáveis Na época policiais do Rio de Janeiro entraram em contato com Bigode para encomendar os primeiros lotes de armas e munições amplamente vendidas nas lojas de Ciudad del Este Bigode devia fazer a compra no Paraguai passar as mercadorias pela fronteira e entregálas aos compradores Com a experiência que já tinha a tarefa não foi difícil Os policiais fizeram novos pedidos e as encomendas iam sendo entregues cada vez mais perto do Rio Bigode foi aperfeiçoando seus esquemas descobrindo as rotas e os meios mais seguros de levar mercadorias ilegais no sentido SulSudeste Sua fama se espalhou e ele se tornou um dos matutos mais respeitados do mercado fluminense Um policial militar carioca preso com ele em 2002 era seu sócio no empreendimento A presença de militares nessas redes de vendas de armas sempre foi importante por causa da expertise em equipamentos de guerra e contatos com redes de fornecedores Houve prisões isoladas de militares mas o problema nunca foi tratado de forma abrangente O cuidado e a discrição eram o segredo de seu sucesso Bigode tinha como fornecedores de armas e drogas grandes nomes do contrabando no Paraguai como Jorge Rafaat e Jarvis Pavão A venda de armas nesse país ainda não era proibida podiase comprar uma pistola 9 mm apresentando apenas o documento de identidade de acordo com as cotas mensais definidas pelo governo Cotas que Bigode desrespeitava claro comprando às centenas por baixo do pano Fuzis e armamentos pesados eram as mercadorias mais cobiçadas vindos principalmente de fornecedores norteamericanos O principal desafio de Bigode como matuto era fazer as mercadorias chegarem aos distribuidores do Exército das polícias e dos morros No final dos anos 1990 problemas econômicos atingiram o Leste Europeu e diversos armamentos russos tchecos e dos Bálcãs passaram a inundar o mercado de armas com excelentes ofertas de AK 47 objeto de desejo do tráfico carioca capaz de disparar uma rajada de seiscentos tiros por minuto A mercadoria chegava segundo Bigode através de militares dos exércitos uruguaios e argentinos que acionavam os militares paraguaios e as colocavam no mercado Anos depois esses fuzis passariam pela China e pelos Estados Unidos antes de chegar à América do Sul Outra forma de comprar armas e munição era por meio da encomenda de colecionadores e atiradores de clube de tiros condição que garantia e até hoje garante acesso à compra de fuzis armamentos de calibre pesado e munições Também era comum a importação de peças isoladas de armas que não passavam por fiscalização para serem depois montadas no Brasil O sargento reformado da Polícia Militar Ronnie Lessa acusado de matar a vereadora Marielle Franco usava essas duas estratégias para trazer armamentos para o Rio de Janeiro Lessa tinha certificado de colecionador e atirador desportivo conferido pelo Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados concedido em 2018 com validade até 2021 O registro de Lessa era assinado por um tenente coronel que depois seria preso sob suspeita de desviar munições e armas do setor que controlava Ele também importava peças de armas para a montagem delas no Brasil Quando Lessa foi preso em março de 2019 os policiais encontraram 117 componentes de fuzil acessórios com miras e supressores de ruído na casa de um amigo dele de infâ ncia As investigações mostraram que o sargento mantinha uma oficina de montagem do armamento e de munições para serem vendidos no mercado Em maio do mesmo ano a Receita Federal interceptou nos Correios uma carga de seis peças de airsoft importadas em nome de Lessa Essas armas de brinquedo fabricadas para disparar bolinhas de plástico servem de carcaça para a montagem de fuzis reais desde que sofram pequenas adaptações Critérios frouxos para a concessão de licença para colecionadores e atiradores desportivos e uma fiscalização ineficiente sempre foram brechas para o ingresso de armas no mercado ilegal brasileiro Por exemplo na CPI do Tráfico de Armas da Assembleia do Rio realizada em 2006 foi citado o caso do exfuzileiro naval Marcos Paulo da Silva preso pela Polícia Federal em outubro daquele ano Conhecido como Marquinhos Sem Cérebro era segurança do bicheiro Rogério de Andrade Além de suas conexões com o crime o militar havia sido reformado por problemas psiquiátricos na Marinha onde ganhou o apelido Mesmo com esse quadro psicológico conseguiu certificado como praticante de tiro esportivo para o qual em tese deveriam ser solicitados testes psicológicos e análise da ficha criminal dos candidatos e pôde se filiar à Confederação Brasileira de Tiro Prático CBTP ganhando o direito de comprar armas e munições Na segunda metade dos anos 1990 Bigode conseguiu ampliar seus contatos no mercado e diversificar a clientela fornecendo para a rede ligada aos traficantes do Terceiro Comando TC e aos da Amigos dos Amigos ADA grupos que haviam se aliado e que passaram a ser chamados de TCA A proximidade maior dos policiais com esses dois grupos era conhecida nos morros do Rio O Comando Vermelho sempre foi identificado como a principal resistência no crime mais disposto a bater de frente com o sistema o inimigo principal a ser erradicado pela polícia Com seu sócio policial militar Bigode se tornou o principal matuto das facções de Ernaldo Pinto de Medeiros o Uê chefe da ADA e do traficante Paulo César Silva dos Santos conhecido como Linho do TC Fernandinho BeiraMar por sua vez era o principal matuto dos rivais responsável pelo fornecimento aos morros do CV Bigode contou que os fornecedores de armamentos no Paraguai costumavam também atender a outras facções do Rio Os atacadistas de armas não ligavam para as cores faccionais brasileiras as rivalidades ficavam circunscritas sobretudo ao varejo do Rio Nas fronteiras da América do Sul desde que o pagador fosse confiável para as relações comerciais não importava a que grupo ele pertencia Bigode lembra que era comum ele estar atrás de encomendas no mesmo período que Fernandinho BeiraMar A situação mudou somente no começo dos anos 2000 quando BeiraMar quis levar para o Paraguai a rivalidade dos morros cariocas O matuto do CV tentou obrigar os fornecedores paraguaios a atender apenas seu grupo iniciando uma série de disputas que levariam o traficante carioca a fugir para a Colômbia onde iniciaria contatos com os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia Farc BeiraMar seria preso na selva colombiana em 2001 A forte presença de policiais e integrantes das Forças Armadas na mediação de compra e venda de fuzis não significava necessariamente que os militares estavam passando para o lado da bandidagem Os militares continuavam odiando os bandidos mas tinham a ilusão de que podiam lucrar com eles sem perder o controle Bigode explicou que o lucro milionário que ele obtinha com a venda de armas exigia dele certo cinismo capaz de justificar a guerra que ele indiretamente alimentava com armas como uma fatalidade sem solução Os vendedores apenas aproveitavam as oportunidades oferecidas por aquele rico mercado da violência Eu me considerava um comerciante Não apertava o gatilho e me enganava dizendo que não era minha responsabilidade Comecei a me questionar mais seriamente quando minha filha de nove anos me perguntou um dia na lata Pai você está matando as pessoas no Rio de Janeiro Naquela semana uma menina com a idade da minha filha tinha sido morta por uma bala perdida em Vila Isabel Eu tinha entregado armas umas semanas antes na região Expliquei pra minha filha que as armas estavam à venda nas lojas em Ciudad del Este O papai pega as armas e a munição aqui em Foz e leva para o Rio de Janeiro Entrego e recebo o pagamento Para onde elas vão e o que as pessoas vão fazer com elas não é responsabilidade do papai Bigode sentiu que não tinha sido muito convincente Na verdade nem ele mesmo acreditava naquele argumento furado Além da participação de policiais e de militares no comércio de armamentos muita munição e fuzis eram desviados das instituições policiais e do Exército por funcionários dessas corporações Em dezembro de 2018 um sargento do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal foi preso por desviar munições da Polícia Militar local e do Comando do Exército para abastecer traficantes do Comando Vermelho no Rio de Janeiro O esquema criminoso vinha desde 2017 e as investigações identificaram que o militar Marcelo Rodrigues Gonçalves fornecia grande quantidade de munições de calibre 556 e 762 para fuzis Também vendia pistolas Glock G17 calibre 9 mm com seletor de rajadas muito usadas nos tiroteios ocorridos no Rio Apesar da vida paralela de fornecedor de armas para o crime desde 2014 o bombeiro atuava no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República como instrutor de tiro Desvios de munição sempre foram tolerados Em 2006 a CPI das Armas do Congresso Nacional solicitou o rastreamento de armas brasileiras apreendidas na ilegalidade pela polícia do Rio de Janeiro que estavam no depósito da Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos da Polícia Civil DFAE Foram rastreadas as armas que teriam sido vendidas das fábricas para o mercado civil interno para o poder público ou o mercado externo antes de serem apreendidas na ilegalidade A pesquisa concluiu que cerca de 18 numa amostragem de mais de 10 mil armas de um universo de mais de 100 mil existentes foram na origem vendidas da fábrica para o poder público antes de serem apreendidas na ilegalidade no Rio de Janeiro Do total das armas desviadas do poder público 27 eram das Forças Armadas e cerca de 70 vinham das instituições de segurança pública estaduais e federais Em 2007 uma pesquisa comparou o desvio de munição nos estoques estatais das cidades de K aramoja em Uganda e do Rio de Janeiro1 O trecho Morte por atacado o ciclo de desvio de munição de atores estatais para o crime organizado no Rio de Janeiro Brasil analisou uma amostra de munição apreendida pela polícia fluminense entre 2003 e 2006 As munições portanto tinham sido pegas com os criminosos O relatório concluiu que 1 grande parte da munição apreendida na ilegalidade é produzida quase exclusivamente para as Forças de Segurança do Estado 2 esses tipos de munição correspondem em volume e em origem aos tipos usados pelas forças de segurança do Rio de Janeiro 3 as munições apreendidas vieram de estoques de munição nova sugerindo uma cadeia de abastecimento curta ou seja eram desviadas pouco depois de compradas O problema do desvio e do comércio ilegal de munições da polícia reapareceu nas investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes Oito das nove munições encontradas no local do crime eram procedentes de um lote comprado pela Polícia Federal em 2006 da Companhia Brasileira de Cartuchos CBC A Polícia Civil e o Ministério Público identificaram que essas munições tinham aparecido também em pelo menos dezessete ocorrências desde 2013 em casos de disputas entre traficantes milicianos e em atividades policiais Munição do mesmo lote tinha aparecido ainda numa chacina de dezessete pessoas ocorrida em 2015 em Osasco e Barueri na Grande São Paulo com participação de policiais O desvio de armas e munições da própria polícia para os criminosos que eles combatem pode parecer à primeira vista incongruente ou suicida No entanto era esse mercado que azeitava a engrenagem da guerra que fortalecia a polícia Por um lado se as armas e munições de calibre pesado traumatizavam a população da cidade por outro ajudavam a transmitir à população a ideia de que os policiais e as forças de segurança eram imprescindíveis para combater o caos e a desordem no Rio Os fuzis nos morros sempre ajudaram a dar veracidade e dramaticidade ao teatro da guerra cotidiana contra o crime colaborando para consolidar o status da polícia como fiadora da vida do carioca É justamente esse status que intimida os governantes e os faz não querer enfrentar os riscos de iniciar reformas modernizantes e moralizadoras que interrompam os diversos negócios criminosos que locupletam muitos policiais do estado Portanto a existência de armas e munições pesadas nas mãos de criminosos parte delas vendida por militares acaba criando na população e nos governantes a sensação de que mais do que nunca dependem das forças policiais estabelecidas para defendêlos Dessa maneira com o apoio das forças de segurança a grande quantidade de fuzis nas mãos do crime se tornou marca registrada da violência no Rio Estudos sobre a origem das armas apreendidas na região Sudeste2 mostram que a apreensão de fuzis no estado fluminense destoa da ocorrida em outras unidades federativas Enquanto em nenhum estado do Sudeste a apreensão de fuzis alcançou 1 do total de armas apreendidas no Rio entre 2014 e 2019 ela ficou entre 3 e chegou a ultrapassar os 6 Mas o que mais chamou a atenção nos estudos dizia respeito ao perfil das munições apreendidas Nesse mesmo período as balas de fuzis corresponderam a um quarto do total confiscado com destaque para a 556 mm e a 762 mm revelando o uso cotidiano desse armamento A quantidade de fuzis possuída tornouse a métrica do poder dos tiranos que dominavam os territórios das comunidades pobres Em 2002 por exemplo quando os paramilitares começaram a se espalhar por Jacarepaguá a estimativa policial era de que os traficantes do Comando Vermelho na Cidade de Deus possuíam apenas dez fuzis Isso não os impedia de formar um bonde e se juntar aos aliados do Complexo do Alemão com duzentos fuzis mesma quantidade da Favela da Rocinha na época dominada pelo CV mas que no ano seguinte levantou a bandeira da Amigos dos Amigos O tráfico da Ilha do Governador do Terceiro Comando dispunha de cinquenta fuzis No Rio de Janeiro as coisas são fortes diferentes disse Bigode Tinha vezes que eu ia fazer entrega de armas e drogas e tinha cem homens de fuzil espalhados ali em volta eles ficavam de guarda para eu poder descarregar Eu pensava aqui é outro país quem manda são eles Eles tinham ramificações com outros crimes roubo de carga banco sequestro relação com a polícia tudo O dinheiro das vendas de drogas e do crime era usado para construir uma estrutura que protegia o território em que o chefe da facção mandava Resguardados por esse arsenal os criminosos ergueram pequenas cidadelas buscando autossuficiência e relativa autonomia em relação às forças do Estado o que fez crescer o poder dos comandantes e prejudicou a população local Os Donos do Morro viraram uma instituição carioca inexistente em outras cidades brasileiras Essa lógica de dominação baseada em armamento pesado provocou uma corrida armamentista entre grupos rivais mantendo o mercado de armas e munições sempre aquecido Ao mesmo tempo a rivalidade entre os grupos gerava um processo autodestrutivo entre as diferentes bandeiras criminosas que se fragilizavam com os conflitos e as mortes constantes facilitando o domínio das forças de segurança do Estado que podiam cobrar arregos e faturar com o crime O traficante compra uma 50 calibre com capacidade para derrubar um helicóptero mesmo sabendo que nunca vai usar É mais para assustar o rival Se o rival comprou o concorrente precisa comprar uma igual A lógica do comércio de armas passa por essa competição para ver quem é mais forte Mesmo com armas pesadas por falta de treinamento e conhecimento tática tudo nenhum desses grupos consegue fazer frente ao Estado completou Bigode Com tantas armas espalhadas pelas favelas flagradas nas mãos de jovens pobres e negros de rosto coberto nunca foi difícil vender a ideia das operações policiais como medidas necessárias nas comunidades Como se a ordem e a paz dependessem da guerra da polícia nos territórios pobres De acordo com os comandos policiais essas operações que muitas vezes usam tanques blindados helicópteros e armamento pesado servem para apreender armas drogas dinheiro recuperar carros e outros bens roubados prender ou matar suspeitos Apesar de serem estruturantes no modelo de segurança pública não figuram formalmente nos registros oficiais como eventos diferentes do patrulhamento de rotina e por isso não são contabilizadas nas estatísticas Um levantamento feito por pesquisadores do Rio no entanto baseados em notícias publicadas em três jornais cariocas O Dia Extra e MeiaHora apontou que entre 2007 e 2018 foram feitas pelo menos 10 218 dessas operações o que significa uma média de mais de duas por dia3 Para se ter ideia da especificidade da estratégia policial fluminense no estado de São Paulo não existe esse tipo de ação policial O patrulhamento ostensivo paulista se faz com a presença de carros e homens nas ruas em abordagens individuais e nas prisões em flagrante vinculadas às denúncias feitas pelo telefone 190 As operações policiais realizadas no Rio de Janeiro contribuem para tornar a polícia do estado a instituição que mais mata e a que mais morre no mundo Nesses onze anos abrangidos pelo levantamento no entanto morreram 22 vezes mais civis do que policiais Houve 3860 homicídios de pessoas que moravam nessas áreas de risco e 176 mortes de policiais vítimas nesses conflitos O Batalhão de Operações Policiais Especiais o Bope foi a divisão que mais participou dessas ações o que deu a seus membros a fama de superheróis Seus uniformes pretos ostentavam o símbolo da faca na caveira cuja origem remete aos soldados das forças especiais inglesas na Segunda Guerra Mundial Reza a lenda que depois de invadir o território dos nazistas e encontrar no local uma caveira os ingleses deram uma facada no crâ nio criando assim a marca reproduzida em batalhões de operações especiais em todo o mundo Havia só um detalhe a polícia brasileira nunca esteve em guerra como a inglesa nem os moradores desses bairros pobres eram seus inimigos Essa distorção que se repete em outros estados mas que no Rio ganha relevâ ncia por causa do armamento pesado envolvido nos conflitos e pela frequência com que as operações ocorrem também produziu um vocabulário típico que eu inicialmente ouvi sem entender direito do que se tratava O espólio de guerra por exemplo consiste no direito que o policial tem aos bens dos traficantes mortos ou presos depois de uma operação policial fuzis armas e drogas que garantam lucros com a revenda no mercado ilegal E dinheiro em espécie Outro tipo de ação com essa mesma lógica de guerra é a prática da troia termo que faz referência ao lendário Cavalo de Troia O grande cavalo oco de madeira como se sabe foi usado pelo exército grego para esconder seus soldados e invadir de surpresa e dominar a cidadela troiana há mais de 3 mil anos Já os policiais do Rio costumam fazer a troia ao invadir morros e comunidades para se posicionar em locais estratégicos e surpreender o grupo inimigo Na Maré por exemplo a troia foi usada com frequência ao longo de 2019 Conforme moradores de lá relataram nessas ocasiões uma primeira turma de policiais invade a comunidade iniciando uma série de conflitos isolados nos bairros A troia consiste em aproveitar essa primeira invasão feita de preferência de madrugada para invadir algumas casas de moradores sem mandado judicial com o objetivo de ocupar as lajes e nelas se posicionar para uma segunda investida policial Situados de forma estratégica nessas residências os policiais podem atirar e encurralar o inimigo Quando em 2007 subi no Complexo do Alemão um dia depois de uma invasão policial que deixou dezenove mortos ouvi relatos dos moradores sobre ter havido ocorrências desse tipo na véspera mas eu ainda não sabia que havia nomes específicos para elas Lajes foram ocupadas para servir de base de tiro dos policiais e saques foram feitos O ponto mais dramático e escandaloso desse teatro de guerra ocorreu em 2019 quando a Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil passou a realizar inúmeras ações com helicópteros e a disparar do alto contra comunidades pobres Deveria ser algo inaceitável num país onde as leis e o estado de direito são respeitados Só que as ações se repetiram com frequência ao longo do ano Em 2019 foram pelo menos 23 ações usando esse procedimento4 No ano seguinte numa ação em Angra dos Reis os disparos foram dados de um helicóptero ocupado pelo próprio governador do estado Wilson Witzel que assumira o cargo naquele ano Depois do sobrevoo soubese que uma tenda usada como ponto de apoio para uma peregrinação evangélica foi atingida pelos tiros Os atiradores pensaram que se tratava de uma casamata para esconder traficantes Por sorte não havia ninguém no local Durante o processo das entrevistas para este livro um amigo bem relacionado em muitas esferas sociais me ofereceu a chance de conversar com um figurão das milícias O entrevistado era um policial com uma longa história no submundo dos conflitos urbanos do Rio Eu já o conhecia de nome e a chance de ouvilo seria de fato uma oportunidade única desde que eu conseguisse desarmar seu espírito para ele me contar o que fosse possível sobre os bastidores do poder policial Para conquistar essa confiança eu receberia do meu amigo uma rápida aula sobre o jeito de ser carioca Minha postura de jornalista e de pesquisador forjada em São Paulo junto com meus trejeitos de paulista poucas piadas na conversa econômico na euforia poderiam colocar tudo a perder Aqui no Rio de Janeiro as coisas se resolvem ou por amor ou por dinheiro O cara com quem você vai conversar não vai falar por dinheiro Pode oferecer 50 mil reais Ele não fala Ele só vai falar contigo por amor Ele gosta de mim e eu gosto dele Também precisa ir com a sua cara Veja se não faz merda disse o meu amigo Ele me deu dicas objetivas Sugeriu que eu presenteasse o entrevistado com o livro que escrevi sobre o PCC Seria uma demonstração de respeito Eu também não poderia anotar nada durante o encontro A conversa tinha que ser em off sem identificação do entrevistado para evitar riscos para a fonte Concordei Minha intenção era entender o processo histórico que levou ao fortalecimento das milícias e era natural que muitos entrevistados se sentissem desconfiados vulneráveis Por isso todo o cuidado parecia justificável inclusive eu não mencionar depois no livro o bairro em que ele atuava Ainda conforme a orientação do meu amigo nosso batepapo deveria ser olho no olho e eu teria que me controlar para não parecer sedento por informações comprometedoras como se fosse um promotor ou policial As anotações seriam feitas longe do entrevistado Além disso seria importante ter certo jogo de cintura e malemolência para cativálo durante a conversa Quando eu apresentálo a você antes de qualquer pergunta sua a gente fala de coisas que fizemos juntos Faça piadas comigo dê risada para que ele perceba que temos intimidade e se sinta seguro para conversar Se ele não for com a sua cara ou achar você muito certinho o papo dura cinco minutos avisou meu amigo Ele não disse diretamente mas entendi o recado eu precisava ser menos paulista e mais carioca A conversa ia depender da minha capacidade de gerar empatia Achei que eu talvez não conseguisse e foi impossível não lembrar da frase de Nelson Rodrigues um expert na cultura carioca a pior forma de solidão é a companhia de um paulista Fomos até a casa dele num bairro afastado da capital Chegamos no fim da tarde já estava anoitecendo O local era simples uma boa casa mas longe de ser uma mansão A figura que encontrei era completamente diferente do que eu esperava Parecia mais um pescador do que um mandachuva Ele nos recebeu sem camisa de shorts e chinelo Tinha mais de sessenta anos pele queimada de sol magro mas com músculos rígidos e estatura mediana Logo reparei em duas tatuagens que tinha no peito de um lado uma imagem sagrada de outro uma figura macabra que achei que devia simbolizar a morte Sobre a mesa uma pistola cujo calibre fui incapaz de identificar Quando olhei ao redor percebi que estava em sua sala antiescuta Meu amigo já havia me alertado para a existência desse ambiente onde ocorriam algumas conversas mais tensas e comprometedoras com figurões da política e da segurança pública A tecnologia para evitar gravações consistia em cerca de quarenta gaiolas penduradas nas paredes com passarinhos que não paravam de cantar Mesmo que eu quisesse gravá lo dificilmente conseguiria escutar o que havia sido dito A cena era puro Rio de Janeiro Nunca teria acontecido em São Paulo Fazia anos que meu entrevistado vinha participando do submundo do poder no Rio mesmo com sua baixa patente na polícia A hierarquia é irrelevante nesse modelo miliciano Não importa se o sujeito é soldado cabo capitão ou coronel O que vale são suas conexões políticas e a habilidade para liderar de acordo com as crenças e os valores da tropa no front O entrevistado em nenhum momento se disse miliciano nem eu de forma direta perguntei se ele era É uma categorização simplista demais que depois de ser reproduzida diariamente na imprensa acabou criando estereótipos A realidade é bem mais complexa Meu interlocutor não parecia confortável dentro dessa caixinha mas falou da ascendência que tinha sobre os paramilitares da região e disse ter contato com grupos paramilitares de bairros do Rio Contou por exemplo a surra que deu num jovem membro da milícia local que foi armado em frente à escola para impressionar as meninas Como lição quebrou o braço do miliciano aprendiz com pancadas dadas com um remo Perguntei sobre Ecko o foragido Wellington da Silva Braga chefe da Liga da Justiça miliciano que em 2020 era o criminoso mais procurado do Rio de Janeiro representante da nova geração de paramilitares Ele elogiou a simplicidade do garoto contou que Ecko esteve em sua casa mostrou algumas armas e discutiu a situação criminal do Rio O clima da nossa conversa ficou bem amistoso quando descobrimos um ponto em comum Ele havia participado da invasão do Complexo do Alemão com as tropas da polícia em junho de 2007 no primeiro ano do governo Sérgio Cabral Filho e eu havia feito uma reportagem sobre ela Para mim essa reportagem tinha sido inesquecível Naquela operação Pescador daqui em diante chamarei assim meu entrevistado estava na linha de frente liderando soldados e cabos de seu batalhão e participando dos tiroteios que duraram o dia inteiro A operação resultou em dezenove mortes um dos maiores massacres em operações policiais da história do Rio Eu estive no Alemão como repórter de O Estado de S Paulo percorri ruas e vielas do morro para entrevistar os moradores que denunciaram inúmeras irregularidades e abusos histórias publicadas no dia seguinte Pescador era um dos algozes A gente estava no morro e encontramos um dos jovens do tráfico num beco bem na nossa frente Todo mundo atirou ao mesmo tempo Foi um lance de sorte ele disse sem esconder o orgulho por aquela execução que via como façanha para o meu contido incômodo Depois que saí de sua casa perto das dez da noite recebi carta branca para conversar com os milicianos que controlavam o território e circular pelo bairro Falei com três homens que estavam numa praça central todos de camiseta bermuda e chinelos e que não pareciam armados Eles eram as sentinelas do lugar e haviam sido avisados de que eu chegaria para uma conversa com o aval do mandachuva Os homens aparentavam cerca de trinta anos usavam cabelo curto estilo soldado mas não eram policiais A história deles sempre esteve vinculada ao crime Anos antes pertenciam à facção que dominava o bairro porém mudaram de lado e passaram a trabalhar para a nova ordem depois que a milícia assumiu Eles me receberam com uma postura de relações públicas da administração local Defenderam a gestão que faziam naquela área que garantia aos moradores a sensação de segurança no bairro Pude circular pelas praças e ruas Um deles nos acompanhou meu amigo continuava comigo Enquanto andava ao nosso lado o homem negociava por celular como oferecer o serviço de reboque a um morador do bairro Havia jovens jogando futebol nas quadras famílias nas ruas e o comércio e os bares estavam abertos e movimentados De pé na praça principal meio sem jeito fiz algumas perguntas rápidas ao miliciano Você saberia apontar a diferença entre o controle das facções e o controle das milícias Estávamos numa rodinha com outras pessoas inclusive amigos dele numa conversa informal Não havia muito como bancar o jornalista ou aprofundar a entrevista Ele defendeu o trabalho que vinham fazendo Agora está melhor A molecada não quer mais ir para o tráfico nem usar drogas Tem muita gente aqui querendo prestar concurso pra polícia Perguntei se ele não tinha receio de que uma facção do tráfico tentasse tomar a comunidade de novo e reiniciar os ciclos de conflito Esse risco praticamente não existe mais ele respondeu Um batalhão especial da polícia foi construído aqui ao lado O tráfico sabe que não pode entrar porque não aguentaria o peso da resposta A parceria com o batalhão local era ponto pacífico como se milicianos e polícia fossem parte do mesmo grupo Perguntei se os moradores não se incomodavam com as cobranças de taxa A resposta foi que eles ganhavam dinheiro somente com o gás o mais barato da região E que como eles eram crias da região sabiam lidar com os limites financeiros dos moradores Cria é outro termo do crime do Rio Os crias são pessoas nascidas e criadas no bairro com vínculos antigos na vizinhança e que por isso têm legitimidade São laços fundamentais para a manutenção de poder O domínio de uma facção estranha com chefes estrangeiros vindos de outra comunidade cria insegurança e tensão o que pode incentivar denúncias anônimas Para administrar esse problema os milicianos contratam crias para gerir o negócio e responder aos chefes que ficam de fora A presença dos crias contudo não era garantia de temperança ou civilidade naquele bairro Entrevistei e ouvi reclamações de moradores sobre assassinatos e corpos desaparecidos expulsão de moradores vinculados a grupos rivais e extorsão na cobrança de taxas Como em outras tiranias não havia espaço para contestar o poder local ou para oposição Aqueles que não gostavam deveriam se mudar de bairro Se insistissem em contestar o poder pior para eles Ficava evidente que a principal dualidade a caracterizar o abismo social carioca não era simplesmente riqueza e pobreza mas tirania com sua lei do silêncio e lei do mais forte democracia e estado de direito A primeira era a forma de governo implementada em boa parte das comunidades pobres do Rio independentemente da bandeira da facção criminosa A segunda se restringia a um espaço cada vez menor mais urbanizado e rico da cidade Durante minha conversa com Pescador entre os cantos incessantes dos passarinhos antiescuta mais ouvi do que falei Ele se mostrou amigável e falou sem se importar com eventuais segredos Minhas paulistices não atrapalharam Em entrevistas delicadas como essa com pessoas bem diversas de mim aposto na autenticidade Não nego minha origem social nem finjo ser quem não sou até porque sou um péssimo ator Mesmo sem o charme do carioca acho que a transparência ajudou na formação dos vínculos com Pescador que se sentiu confortável para falar sobre seu cotidiano Dias depois baixada a adrenalina surgiram em mim algumas reflexões Foi uma dessas entrevistas cuja relevâ ncia a gente só compreende mais tarde passado o impacto A sagacidade de meu entrevistado me levou a conhecer um tipo de inteligência estratégica que consiste em agir sempre levando em conta o terreno onde se pisa Para comandar é preciso saber claramente aonde se quer chegar ser capaz de construir uma rede de apoio para se manter no comando entender as crenças e os valores do grupo cujos interesses o líder representa conhecer bem o inimigo e saber se antecipar a ele punir quem ameace esse poder E o que achei ainda mais impressionante Pescador era especialista em desobedecer a seus superiores formais da polícia para poder mandar informalmente em seu grupo comando aceito por seus chefes Alguns casos emblemáticos de seu estilo de liderança parecem roteiros escritos para cinema Certa vez Pescador e sua tropa começaram a ser pressionados pelo capitão do batalhão em que ele trabalhava Uma das líderes comunitárias vinha organizando protestos junto à população denunciando os excessos da tropa e a violência policial e o capitão começou a pegar no pé dos policiais e a punir a conta gotas as irregularidades cometidas por eles Pescador porém tinha uma leitura mais maliciosa da ofensiva do capitão contra seus subordinados informantes haviam lhe contado que o oficial vinha mantendo um relacionamento amoroso com a líder comunitária que era muito bonita A dobradinha amorosa portanto estava atrapalhando a vida dele e de seus homens Pescador já tinha pensado num plano para derrotar o adversário e o pôs em prática um dia em sua ronda como policial Era de manhã Ele passava com a viatura da polícia em frente à entrada principal do morro quando viu a líder comunitária Desceu do carro sem dizer uma palavra caminhou em direção a ela e a atingiu no queixo com o cabo do fuzil A moça caiu desmaiada Ele virou as costas entrou no carro e a deixou caída na calçada Passadas algumas horas o policial Pescador foi chamado à delegacia pelo rádio da viatura Ele se dirigiu ao prédio cruzou com alguns PMs que o parabenizaram pela atitude Quando entrou na delegacia lá estavam a vítima ferida o capitão e o coronel do batalhão O delegado que fazia o registro da ocorrência lhe dirigiu a palavra O senhor agrediu essa senhora Sim ele respondeu Por quê perguntou o delegado Era a oportunidade que ele esperava para confrontar seu chefe Ela estava protestando na frente de uma favela e eu desci para perguntar se havia algum problema Ela disse que sim que os policiais do nosso batalhão eram todos corruptos Eu não gostei mas deixei ela continuar Só que aí a moça extrapolou Além de corrupto são todos boiolas O capitão de vocês por exemplo é um frouxo Quando se deita comigo só consegue gozar com o dedo no rabo Aí eu não aguentei doutor Chamar o meu capitão de homossexual foi a gota dágua Corrupto tudo bem mas boiola não Fiquei indignado e agredi a moça Pode colocar tudo aí no papel doutor Houve certo constrangimento na sala como se a revelação do relacionamento entre o oficial e a líder comunitária fosse mais grave do que a própria agressão que ela sofrera Além disso era uma afronta dissimulada contra a autoridade do capitão que o obrigava a tomar uma decisão Um movimento arriscado de Pescador mas certeiro O capitão colocaria em jogo sua privacidade Deixaria que aquela história chegasse ao conhecimento de sua mulher e afetasse sua família O oficial sentiu o golpe recuou e a agressão foi relevada Ambos sabiam que a tropa estava do lado do policial agressor que também tinha proteção superior em esferas mais elevadas Tudo seguiria como antes e Pescador saiu fortalecido do embate com seu capitão Nessa realidade do submundo do poder policial existem normas próprias em que as leis e o Código Penal não passam de abstrações São levados em consideração mas pouco funcionam na prática cotidiana As leis até podem ser defendidas em público ou usadas de forma tática para atingir adversários ou punir inimigos entretanto não são levadas tão a sério O policial quadradinho que age de acordo com o livro vai rapidamente sucumbir Para exercer poder só com vivência e certa malandragem Essa astúcia colocou por exemplo Pescador na posição de chefe de seu chefe e foi decisiva para a disseminação das milícias A valorização dessa autoridade orgâ nica e informal criada na linha de frente no exercício do poder na rua longe dos gabinetes com arcondicionado que menospreza as hierarquias e formalidades legais tornou as corporações policiais incontroláveis Essa rede para continuar forte e mobilizada precisa fazer dinheiro e descobrir oportunidades de negócios Sem dinheiro não há poder um problema que a criação do modelo de negócios miliciano soube resolver Em 2018 a eleição de um governador e de um presidente que representam em muito aqueles que veem o mundo de dentro desse subterrâ neo ruinoso mostrou aos paramilitares que eles tinham chegado mais longe do que imaginavam Os controles formais a Constituição a democracia não passavam de entraves para o poder dos mais fortes A história da relação promíscua entre as polícias do Rio e o crime remete aos tempos coloniais mas a viagem na linha do tempo pode ser mais breve Em meados dos anos 1950 quando o processo de urbanização brasileiro havia se tornado irreversível pouco antes de a cidade perder o posto de capital federal os morros e as comunidades pobres ocupadas desde o começo do século X X ficaram superpovoados Foram ocupados os morros no entorno dos bairros tradicionais da zona sul em direção aos subúrbios das zonas norte oeste e cidades da Baixada Fluminense que margeavam as linhas da Central do Brasil O Rio vivia tempos de otimismo no começo dos anos 1950 No livro Cidade partida Zuenir Ventura lembra desse território edênico do passado talvez idealizado quando João Gilberto e Roberto Menescal ainda dois jovens compositores andavam todas as noites de Copacabana à Urca tocando violão e conversando sobre o movimento depois batizado de bossa nova Na época a atriz norteamericana Lana Turner fugia do Copacabana Palace e dos seguranças para buscar amantes no calçadão de madrugada bêbada5 Qualquer senhora respeitável nada tinha a temer dos destituídos que raramente ousariam assustá la escreveu o jornalista Paulo Francis em seu livro de memórias O afeto que se encerra também citado por Zuenir A bossa nova cujo marco inaugural é o lançamento do LP Chega de saudade de João Gilberto em 1959 simboliza a atmosfera do período O Rio parecia gestar um Brasil moderno e urbano como se a sofisticação dos acordes de jazz e dos compositores eruditos aliada ao talento dos sambistas do morro concretizasse um projeto utópico tipicamente brasileiro Em algum momento contudo a face otimista dessa mistura cultural desandou assim como as utopias As coisas começaram a fugir ao controle nas cidades como se os novos centros não estivessem prontos para lidar com o passivo dos quatro séculos de história de um Brasil rural patriarcal e escravista Os habitantes dos bairros com pouca infraestrutura urbana e moradias precárias vindos das zonas rurais com baixa educação formal e sem treinamento para os empregos eram vistos como ameaça à tranquilidade dos moradores dos bairros tradicionais e dos subúrbios mais adaptados ao contexto urbano Uma tensão entre as classes e culturas demarcada nos territórios começou a assombrar o cotidiano carioca A criminalidade tornouse um problema típico desse novo Brasil sobretudo depois dos anos 1960 As identidades rurais e patriarcais que tinham formado a cultura tradicional ao longo dos séculos precisariam ser reinventadas no país que se urbanizava em alta velocidade de forma improvisada e sem planejamento no Rio em São Paulo e em outras grandes cidades O crime seria um caminho possível nessas cidades entre homens que buscavam honra e respeito de seus pares numa sociedade que valorizava dinheiro consumo e valentia Ser um criminoso um bicho solto não abaixar a cabeça para o sistema mesmo que para isso fosse preciso lançar mão da violência tornouse uma opção de identidade para as novas masculinidades urbanas Uma polícia violenta e disposta a ir à guerra para defender a parte civilizada os mais ricos e brancos dessas ideias ameaçadoras seria o contraponto identitário para a formação dos conflitos estabelecendo no imaginário da cidade o desenho da disputa entre mocinhos e bandidos A tal modernidade urbana em vez de incorporar a tradição rural para oferecer uma nova proposta de sociedade parecia renegar o passado que deveria ser exterminado porque representava o atraso Esse malestar produziu um caldeirão de emoções explosivas medo ressentimento raiva num processo que definiria a atuação violenta da polícia e dos grupos criminosos nos anos que viriam retroalimentando um ciclo de tragédias cotidianas retratadas nos jornais nos rádios nas conversas de bares nos almoços familiares O bode expiatório que criava essa sensação de vulnerabilidade era o bandido palavra que cunhou uma marca forte capaz de estigmatizar os jovens negros moradores das favelas que se tornariam os maiores alvos dessa guerra Em 1957 uma reportagem em tom alarmista publicada no jornal Última Hora dá uma ideia do clima que a cidade começava a viver com os crimes Um bandido em cada esquina uma quadrilha em cada bairro quer na zona norte sul centro ou mesmo rural desencadeando avassaladora onda de assaltos oferecendo à imprensa e à polícia registros patéticos transformaram o Rio numa cidade sitiada pelos gâ ngsters por dez gâ ngsters para sermos mais precisos Seus retratos estão expostos no quadro de procurados pela polícia e para eles estão voltadas as atenções gerais6 O medo abriria espaço para o surgimento de esquadrões da morte grupos de extermínio e justiceiros que começaram a se articular para eliminar os suspeitos e assim trazerem de volta a tranquilidade perdida Era esta a aposta principal a violência libertaria os habitantes da violência Os policiais assassinos em vez de serem vistos como criminosos seriam aceitos pelas instituições e ganhariam aplausos de parte da população O primeiro grupo a se organizar para a prática de extermínio se formou em 1957 quando o general do Exército Amaury K ruel chefe de polícia do Distrito Federal achou necessário responder às pressões da Associação Comercial e da população atemorizadas com o crescente aumento do crime de roubo A polícia da então capital brasileira ficava sob a responsabilidade do Departamento Federal de Segurança Pública cujo chefe era indicação do presidente da República na época Juscelino K ubitschek K ruel montou um grupo para combater assaltos à mão armada pesadelo do carioca naqueles dias que ganhou o nome de Turma Volante Especial de Repressão aos Assaltos à Mão Armada TVRAMA ligado ao Serviço de Diligências Especiais SDE da Delegacia de Vigilâ ncia responsável pela captura de bandidos que a cidade toda considerava perigosos Depois da criação desse grupo surgiram nos jornais notícias e fotos de corpos de diversos suspeitos apontados como ladrões A imprensa apelidou esses policiais de Esquadrão Suicida e destacou a coragem e o desprendimento de homens que não temiam a morte no enfrentamento dos marginais O entusiasmo dos jornalistas cessou no ano seguinte em fevereiro de 1958 quando um motorista da TV Tupi apareceu morto no Morro do Jacaré depois de uma incursão de policiais do TVRAMA Como voltaria a ocorrer no futuro e o corporativismo dos jornalistas explica isso a morte de um profissional da imprensa gerou comoção e debates sobre os excessos cometidos pela polícia7 Um padrão no entanto começou a se estabelecer A indignação diante de mortes indevidas era breve e incapaz de gerar mudanças estruturais O medo pesava mais na balança assim como a solução violenta proposta pelas polícias As atividades do SDE se estenderam para outros departamentos como a Invernada de Olaria delegacia localizada no bairro de Olaria na zona norte conhecida pela truculência de seus policiais O nome do departamento era uma referência a um matadouro de bois que funcionava na cidade no século X IX Também teve o apelido informal de Casa do Diabo Em 1962 a instabilidade política favoreceu a defesa de ações populistas e violentas A Invernada atuava como o braço armado do governador Carlos Lacerda sob as ordens do coronel Gustavo Borges Denúncias dos jornais da época falavam de extermínios e desovas de corpos pelo grupo no rio Guandu Um dos casos mais famosos atribuídos aos policiais da Invernada foi a morte de José Miranda Rosa o Mineirinho que levou treze tiros e acabou eternizado em um conto de Clarice Lispector que leva seu nome Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala só bastava O resto era vontade de matar Era prepotência disse Clarice numa entrevista em 1977 à TV Cultura A situação se agravou depois do golpe militar de 1964 quando os controles policiais foram flexibilizados No Rio em agosto daquele ano houve o assassinato do investigador Milton Le Cocq de Oliveira numa troca de tiros com Manoel Moreira criminoso conhecido como Cara de Cavalo Le Cocq comandava a Delegacia de Vigilâ ncia A busca dos policiais por vingança desencadeou práticas violentas na interminável guerra da polícia contra o crime Os planos de extermínio de bandidos passaram a ser defendidos publicamente nas páginas dos jornais A caçada a Cara de Cavalo que durou pouco mais de um mês foi um acontecimento histórico da imprensa policial Começou com uma carta manifesto com o título 10 x 1 no jornal Última Hora escrita por policiais Fazia referência a um mórbido placar com o número de criminosos que seriam assassinados para cada policial alvejado Repórteres que acompanharam o dia a dia da busca fotografaram a execução de Cara de Cavalo com 62 tiros à queima roupa Algo de fato vinha dando errado sensação captada na época por artistas como Hélio Oiticica que criou uma bandeira inspirada em foto do cadáver de Cara de Cavalo com os dizeres Seja marginal seja herói A esperada mistura emancipadora entre o rural e o urbano parecia descambar para um confronto entre ricos e pobres brancos e negros asfalto e favela em que os primeiros tentavam dominar os segundos A resistência marginal na obra colorida de Oiticica era uma bandeira em defesa da liberdade As caçadas a bandidos se tornaram mais comuns principalmente nas metrópoles do Rio de Janeiro e de São Paulo Em homenagem a Milton Le Cocq policiais civis do Rio formaram em 1965 a Scuderie Le Cocq grupo de extermínio que tinha como símbolo uma caveira duas tíbias cruzadas e as iniciais EM de Esquadrão da Morte Sem disfarçar o cinismo esses policiais diziam que as letras significavam Esquadrão Motorizado grupo onde Le Cocq havia trabalhado Suspeitos eram mortos nos bairros pobres e apareciam nos jornais com alarde como se policiais e jornalistas quisessem informar pedagogicamente com esses extermínios que o crime não compensa Nessa escalada em maio de 1968 a barbárie oficial subiria mais um degrau Na madrugada de 6 de maio uma pessoa que se identificou como portavoz do Esquadrão da Morte e se denominou Rosa Vermelha telefonou para os plantonistas dos jornais cariocas informando que havia um presunto em uma estrada da Barra da Tijuca Repórteres foram ao local e encontraram o corpo de um homem de cerca de vinte anos sem documentos com marcas de tortura dois tiros na nuca e dois nas nádegas que na cultura policial são tiros de esculacho As mãos estavam amarradas para trás e no pescoço havia um fio de náilon usado para sufocar a vítima antes da execução Junto ao cadáver estava a caveira com as duas tíbias cruzadas um cartaz com as iniciais EM e a frase Eu era ladrão de carros No verso do cartaz estava escrito o nome Sérgio Gordinho e o número 2 indicando que não havia sido a primeira morte do grupo O fio de náilon no pescoço se tornaria uma das assinaturas das mortes cometidas pelo grupo Meses depois em outubro de 1968 o grupo se sentiu encorajado para publicar no jornal Última Hora um manifesto justificando os homicídios de bandidos A voz do Esquadrão da Morte ao povo da Guanabara muitos dos nossos já tombaram vítimas de assaltantes e criminosos sanguinários O povo é testemunha que esses bandidos não respeitam crianças velhos senhoras e trabalhadores Assaltam e matam sem nenhuma piedade Nós trabalhamos apenas com uma intenção defender a família que mora e trabalha nesse estado A distâ ncia entre a Justiça e a polícia nem sempre permite um combate eficaz ao crime e aos criminosos Assim só nos resta falar a linguagem deles a lei do cão Sempre que contamos com o apoio de um Secretário de Segurança que quer ver a cidade livre do crime nós trabalhamos como agora Foi assim na época do general K ruel do Gustavo Borges e está sendo agora com o general França Esperamos que o distinto público da Guanabara compreenda nossas intenções Na mesma toada em julho de 1969 o estado da Guanabara criou o Grupo de Operações Especiais depois transformado na Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil o mesmo grupo que em 2019 faria sobrevoos de helicóptero disparando contra comunidades pobres No ano de sua fundação doze policiais foram retratados pela imprensa como os Doze Homens de Ouro Pertenciam ao grupo entre outros Mariel Mariscot José Guilherme Godinho Sivuca anos depois eleito com o bordão Bandido bom é bandido morto e Euclides Nascimento Marinho A caveira e as tíbias cruzadas também eram símbolo do grupo A quantidade de escâ ndalos e o envolvimento de alguns desses homens com o crime organizado principalmente com o jogo do bicho provocaram a desmobilização da equipe original em novembro de 1970 O aval para praticar homicídios como ficou evidente ao longo dos anos em vez de proteger a população favoreceu lucros ilegais que financiavam o poder dos policiais matadores A ideia de matar bandidos como uma solução saneadora contudo nunca perdeu o apelo e se espalharia por outros estados brasileiros com a criação de diversas modalidades de esquadrões da morte Em 1968 policiais civis de São Paulo liderados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury foram ao Rio de Janeiro trocar experiências com colegas para montarem uma sucursal paulista desse tipo de grupo de extermínio A justificativa foi a morte do investigador David Parré ocorrida em novembro de 1968 Durante o enterro imitando os cariocas os policiais de São Paulo também juraram vingança Para cada policial morto dez bandidos hão de morrer foi a promessa publicada nos jornais Assim como no Rio a caçada a Carlos Eduardo da Silva o Saponga suspeito da morte do investigador Parré tornouse épica e terminou com o fuzilamento da vítima O portavoz do esquadrão de São Paulo autodenominado Lírio Branco também passou a telefonar para as redações informando onde estavam os presuntos No Espírito Santo a Scuderie Le Cocq associada aos bicheiros locais tornouse uma força política relevante decisiva para transformar o pequeno estado capixaba no mais violento do Brasil por décadas Os policiais matadores valiamse da tensão política que mobilizava as Forças Armadas nos anos da ditadura militar Movimentos guerrilheiros de esquerda começavam a desafiar o regime nas grandes cidades brasileiras grupos clandestinos apostavam na estratégia da luta armada conectados com a ideia de uma guerra civil ideológica internacional entre capitalistas e comunistas iniciada depois da Segunda Guerra Mundial A Guerra Fria assumia formas diferentes nos quatro cantos do planeta através do apoio das duas superpotências mundiais da época Estados Unidos e União Soviética a lutas coloniais de independência e guerras civis opondo as duas nações Nas cidades brasileiras o conflito se intensificou depois dos primeiros anos da ditadura militar com os grupos lançando mão entre outras ações de assalto a bancos e de sequestros para arrecadar fundos ou trocar prisioneiros e de panfletagem para obtenção de apoio popular Em dezembro de 1968 com a decretação do AI5 os militares organizaram uma máquina de inteligência e combate à guerrilha adotando táticas usadas pelo Exército francês na luta colonial da Indochina e da Argélia os inimigos além de vencidos à bala precisavam ser derrotados no campo das ideias A batalha ideológica estava em curso O AI5 tentava impedir que os ideais revolucionários se espalhassem Direitos civis foram suspensos jornais e livros censurados e a oposição perseguida partiu para o exílio em grandes levas Nos conflitos ocorridos nas cidades e no campo a máquina de guerra militar agia contra os comandos revolucionários para evitar que a guerrilha inflamasse o país e tornasse irreversível o golpe comunista a exemplo do que ocorrera em Cuba Essa nova rede de combatentes dividiu as Forças Armadas Como explica o jornalista Elio Gaspari em A ditadura escancarada a ruptura se deu entre oficiais de gabinete de um lado e os participantes da guerra real travada nos aparelhos repressivos de outro Poucos se dispuseram a sujar as mãos Um militar tido como herói pelos oficiais do segundo grupo foi o major Carlos Alberto Brilhante Ustra que estruturou o DOICodi paulista centro do combate à luta armada onde ocorreram torturas assassinatos e desaparecimentos As táticas de violência e tortura policial foram replicadas e aperfeiçoadas nos porões da ditadura aproximando das Forças Armadas a banda podre da polícia A aproximação forneceu aos grupos de matadores uma justificativa nobre para seus crimes Eles matariam e torturariam em defesa da pátria contra o comunismo Muitos policiais que agiam em grupos de extermínio ingressaram na máquina de guerra urbana atuando no combate a opositores nos dez Departamentos de Operações de Informação DOIs espalhados pelo país somados aos policiais do Destacamento de Ordem Política e Social Dops e aos militares do Centro de Informações do Exército CIE Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica Cisa e Centro de Informações da Marinha Cenimar órgãos que formavam a espinha dorsal da repressão A Polícia Militar reformulada em 1969 assumiu papel crescente nos confrontos travados nos territórios pobres das favelas morros e periferias Em São Paulo por exemplo o delegado Sérgio Paranhos Fleury apontado como chefe do Esquadrão da Morte paulista liderou o grupo que executou o guerrilheiro Carlos Marighella em 1969 Fleury e policiais do Esquadrão da Morte paulista como os investigadores João Carlos Tralli e Ademar Augusto de Oliveira levaram aos porões métodos de tortura usados com criminosos comuns como o pau de arara e a cadeira do dragão feita de metal e conectada a fios elétricos Também foram implementadas técnicas que já no período democrático eram usadas pela Polícia Militar para combater o crime comum como simulações de tiroteios para justificar homicídios de criminosos prática surgida no DOICodi paulista No Rio de Janeiro a Invernada de Olaria foi uma das delegacias mais ativas no combate à guerrilha urbana A unidade onde parte dos policiais atuava no extermínio de presos comuns era um dos principais destinos de presos políticos O posto policial do Alto da Boa Vista ligado ao Centro de Informações da Marinha Cenimar também funcionava como extensão da Invernada Aurora Maria do Nascimento militante da Ação Nacional Libertadora ANL foi assassinada ali em novembro de 19728 Ela foi espancada e torturada por torniquetes apelidados pelos policiais de coroa de cristo tiras de ferro tensionadas em volta do crâ nio da vítima O corpo mutilado de Aurora foi entregue a seus pais com 29 perfurações de tiros e um furo de dois centímetros no crâ nio por causa da coroa Outro integrante da ANL Newton Leitão Duarte contou à Comissão da Verdade que foi preso em 1969 por Mariel Mariscot um dos Homens de Ouro torturado no Dops e depois levado ao prédio da Polícia do Exército onde começava a funcionar o DOICodi fluminense A proximidade entre os policiais matadores e os porões do Exército trouxe a reboque a influência dos bicheiros que já era forte em ambas as instituições para o coração do poder do Estado A mistura de violência policial e militar com a contravenção formou a base da rede clandestina de violência paramilitar que está na origem dos modelos milicianos O bicho era uma contravenção lucrativa e disseminada na cidade desde a primeira metade do século X X Vendia um produto bastante caro à antiga sede da Monarquia e da capital da República o sonho do enriquecimento e da ascensão social em um lance de sorte Respeitados desde épocas machadianas os bicheiros do Rio dispunham de credibilidade entre os clientes Sempre pagavam as apostas em dia uma questão de honra que garantia a longevidade dos negócios Também tinham bons contatos no poder Havia dois motivos para essa relação próxima Primeiro os apontadores do bicho estavam espalhados por todos os cantos da cidade Nenhuma estrutura empresarial ou de Estado tinha tamanha capilaridade o que tornava os apontadores peça fundamental na comunidade de informações Tanto os policiais como os funcionários dos serviços de Inteligência se abasteciam com as dicas preciosas desses informantes Em segundo lugar por ser uma atividade ilegal essa relação também rendia uma mesada para que os representantes da lei não os incomodassem O generalchefe da Polícia do Rio por exemplo Amaury K ruel criador da equipe que daria origem ao primeiro grupo de extermínio dentro da corporação foi retirado do cargo nos anos 1950 acusado de favorecer o bicho O próprio Milton Le Cocq um dos ícones da polícia do Rio cuja morte inspiraria a formação dos grupos de extermínio como Scuderie Le Cocq e derivados foi atingido numa troca de tiros quando defendia um apontador do jogo do bicho O contraventor tinha pedido a proteção de Le Cocq para evitar que o proxeneta Cara de Cavalo seguisse extorquindo sua banca9 Depois de armar o flagrante Le Cocq foi morto durante a perseguição ao criminoso A partir dos anos 1960 a infiltração do jogo do bicho nas instituições se aprofundou reproduzindo estratégias das máfias internacionais Havia semelhanças importantes entre os modelos funcionavam com uma estrutura vertical as ordens partiam de núcleos familiares atuavam em territórios delimitados boa parte da receita vinha das apostas e mantinham forte influência nos poderes do Estado A proximidade do bicho com a máfia já tinha origem pelo menos desde 1963 quando Antonio Salamone um dos chefes da Cosa Nostra siciliana se refugiou no Brasil depois de cometer um atentado na Itália que resultou na morte de sete policiais O bicheiro carioca Castor de Andrade o acolheu e lhe ofereceu um emprego de fachada na Tecelagem Bangu de sua propriedade Ainda por influência de Castor Salamone conseguiu durante os anos 1970 asilo e cidadania brasileira do então ministro da Justiça Armando Falcão Alguns bicheiros cariocas cativaram o público pela via cultural e emocional bancando duas das maiores paixões nacionais o futebol e o samba Castor de Andrade por exemplo foi patrono e presidente de honra do Bangu Atlético Clube que chegou a ser campeão carioca em 1966 No samba foi patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel no período em que a agremiação conquistou cinco títulos do Carnaval Na Baixada Fluminense em 1976 o bicheiro Anísio Abraão de Nilópolis levou o carnavalesco Joãosinho Trinta para a BeijaFlor transformando a escola numa potência popular Seu primeiro título no grupo especial já naquele ano foi obtido com um sambaenredo que falava do jogo do bicho Sonhar com o rei dá leão O Carnaval e o dinheiro ilegal também aproximaram os bicheiros dos políticos da Nova República sempre de olho nos financiamentos de campanha e de autoridades da segurança e do Judiciário diversas vezes fotografadas nos camarotes dos bicheiros no Carnaval Quando na segunda metade dos anos 1970 os movimentos guerrilheiros já haviam sido derrotados e a mão de obra dos porões da ditadura estava à deriva os bicheiros estenderam a mão a esses oficiais Muitos se sentiam abandonados e injustiçados por seus superiores São diversos os exemplos de policiais e de militares recrutados pelas hostes da contravenção muitos deles narrados no livro Os porões da contravenção de Aloy Jupiara e Chico Otavio O policial civil Luiz Claudio de Azeredo Vianna o Doutor Luizinho por exemplo homem forte do bicheiro Anísio Abraão da BeijaFlor havia passado pelo Centro de Informações do Exército CIE onde trabalhou na Casa da Morte principal núcleo de tortura e extermínio da ditadura no Rio Luizinho tinha sido recrutado para a Casa da Morte pelo oficial do Exército Paulo Malhães um dos principais nomes dos porões no Rio Quando Malhães foi para a reserva em 1985 montou um grupo de extermínio na Baixada e passou a atuar como chefe da segurança de empresas de ônibus em Nilópolis sob as bênçãos de Anísio Anos depois aposentado em um sítio na Baixada Fluminense contaria mais sobre os bastidores das torturas e métodos da ditadura militar Malhães foi assassinado no sítio em que morava em 2014 um mês depois de seu depoimento à Comissão Nacional da Verdade Sobre a escrivaninha ao lado de seu corpo estavam os números de telefone dos bicheiros Anísio Raul Capitão e Maninho três nomes da cúpula do bicho Mariel Mariscot que havia se tornado famoso em 1969 como um dos Homens de Ouro seria apontado por investigações do Cenimar como funcionário de Castor de Andrade e Euclides Nascimento este último outro Homem de Ouro que migrara do Esquadrão da Morte para o bicho Mariscot era acusado de integrar a quadrilha de Lúcio Flávio um dos bandidos mais famosos do Rio nos anos 1970 Em 1976 preso em Ilha Grande Mariscot empreendeu uma fuga com a ajuda do capitão do Exército Aílton Guimarães Jorge O capitão Guimarães tornouse símbolo dessa nova aliança entre bicheiros e policiais sob a tutela das Forças Armadas Guimarães formouse na Academia Militar das Agulhas Negras em 1962 Dois anos depois antecipou a volta ao trabalho durante as férias e se ofereceu voluntariamente para apoiar o golpe militar Passou a auxiliar no combate à subversão frequentando as delegacias da Baixada Fluminense para dar apoio na elaboração de inquéritos que investigavam os movimentos de esquerda Em 8 de outubro de 1969 o capitão ministrou uma aula expositiva sobre técnicas de interrogatório e tortura na 1ª Companhia da Polícia do Exército na Vila Militar para cerca de cem homens entre oficiais do Exército Marinha e Aeronáutica Testemunhos feitos à Comissão da Verdade do Rio declaram que dez presos políticos foram usados como cobaias em diferentes modalidades e instrumentos de tortura como pau de arara choques elétricos latas abertas onde a vítima era obrigada a se apoiar descalça e pedaços de ferro roliço utilizados para esmagar o dedo dos presos10 Em 1973 Guimarães foi preso e enviado a Ilha Grande condenado por contrabando Três anos mais tarde depois de ajudar Mariscot a fugir do presídio aderiu ao jogo do bicho iniciando a carreira como gerente de  ngelo Maria Longa o Tio Patinhas Usando as lições que havia aprendido no Exército de centralização da violência e de poder ele cresceu ganhou autonomia e tornouse um dos principais estrategistas da cúpula da contravenção no Clube Barão de Drummond espécie de irmandade que funcionava como um tribunal informal responsável por julgar aqueles que exploram o jogo ilegal O capitão Guimarães tinha apoio de outro agente histórico da repressão o coronel Freddie Perdigão Pereira carrasco da Casa da Morte e idealizador do atentado a bomba no Riocentro em 1981 cujo objetivo era frear a transição para a democracia A tragédia só não se efetivou porque o artefato explodiu no colo dos militares encarregados do ato terrorista Perdigão usava o mesmo pseudônimo pelo qual era conhecido na Casa da Morte dr Roberto Antes do atentado do Riocentro esse grupo de oficiais parte do Serviço Nacional de Informações SNI do governo João Baptista Figueiredo estouraria cerca de quarenta bombas em diversas cidades do Brasil e explodiria mais de cem bancas de jornal na tentativa de frear o processo de Abertura No Rio de Janeiro o capitão Guimarães continuava aproveitando suas costas quentes para ascender no jogo do bicho Em 1983 foi eleito presidente da escola de samba Vila Isabel O bicheiro Waldemir Garcia o Miro junto com seu filho Waldemir Paes Garcia o Maninho patronos da escola preferiram evitar o confronto com o exaraponga e foram patrocinar o Salgueiro Apesar dessas tensões a visão estratégica do capitão assim como sua autoridade e conexões ajudou a unificar e organizar os negócios criando uma confederação do crime aos moldes das máfias norte americanas de Chicago e Nova Y ork Um dos principais movimentos se deu em 1987 com a criação da Liga das Escolas de Samba do Rio Liesa formada pelas dez agremiações do Carnaval ligadas à contravenção A Liesa representava acima de tudo o pacto entre os grandes empresários do jogo que dividiram os territórios e organizaram os ganhos garantindo um período de trégua e de expansão para a jogatina O Clube Barão de Drummond o nome é uma referência ao dono do zoológico onde o jogo do bicho foi criado no século X IX era o tribunal que zelava pelas leis do pacto Todas essas articulações entre poderosos do submundo prosperaram mesmo depois da Abertura O projeto se reinventou adequandose às novas realidades Se não havia mais por que se preocupar com comunistas e guerrilheiros os anos 1980 e 1990 possibilitaram ao submundo do crime se envolver com a guerra às drogas e com a ameaça representada pelos traficantes nas comunidades pobres localizadas no entorno da aristocrática zona sul do Rio A encrenca era imensa e a figura do bandido com todos os significados que a palavra concentra tornouse o inimigo comum o novo bode expiatório A guerra mudou de inimigo mas a rede de policiais formada durante a ditadura seguiu influente e as conexões com os bicheiros continuaram valiosas para o financiamento dessa luta Também foi preciso lançar um conceito que legitimasse os crimes da polícia cujos excessos continuavam tolerados Em vez de lutar pela defesa da pátria a polícia passou a matar além do limite em nome do cidadão de bem 5 Facções e a guerra dos tronos No ano de 1980 Reginaldo Lima nascido e criado no Morro do Alemão era uma criança de onze anos Trabalhava desde os nove descarregando sacos de alimentos na Central de Abastecimento do Estado Ceasa na avenida Brasil para completar a renda de casa Quando cresceu tornouse educador mediador de conflitos ativista e empreendedor uma entre tantas figuras iluminadas do Rio de Janeiro acostumada a saltar os obstáculos que atravessaram sua vida A violência armada praticada por policiais e criminosos em seu bairro foi um desses obstáculos e letal que deixou muitos de seus amigos pelo caminho Sou filho de uma geração que viu as execuções na favela beirarem a barbárie Naqueles tempos anos 1980 ainda não havia fuzis pistolas e tinha poucas drogas No máximo uma carabina uma escopeta calibre 12 Mas muita morte acontecia por facada paulada e pedrada A forma de exercer o poder foi mudando com o tempo recorda Antes dos comandos nas décadas de 1970 e 1980 apesar da relativa tranquilidade nos morros já havia uma cena conflituosa com pequenas quadrilhas e bandos em disputas pelo poder A expansão do tráfico de drogas e a relação desses empreendedores com a polícia principalmente depois dos anos 1990 estabeleceram novas formas de tensão e drama nas comunidades Os primeiros moradores chegaram ao Alemão nos anos 1920 quando o bairro era uma zona ainda quase rural No começo havia poucos barracos distribuídos pela topografia íngreme da Serra da Misericórdia formada pelas montanhas do Alemão e da Alvorada com um vale entre os morros conhecido como Grota repleto de nascentes de água peixes criação de porcos e galinhas hortas e árvores frutíferas O conjunto de bairros desses morros passaria a ser chamado de Complexo do Alemão Na época para se fixar na região os donos de lotes autorizavam a construção de barracos cobrando um aluguel de chão nome dado para a mensalidade que o inquilino do terreno pagava para erguer sua moradia A população cresceu mais rapidamente depois dos anos 1950 com um ritmo semelhante ao de outras favelas das zonas sul central e dos subúrbios da zona norte que ocupavam os arredores da linha de trem Com o crescimento da procura por terras os assentamentos ocorreram através de loteamentos clandestinos fatiados e vendidos por proprietários particulares ou ocupados por movimentos sociais A chegada de novos habitantes era um desafio para a elite política e econômica das grandes cidades brasileiras De um lado bemvinda porque eles constituíam uma mão de obra barata para as indústrias e os serviços domésticos de outro um problema uma vez que a cidade não garantia aos recémchegados condições materiais e sociais para que tivessem uma vida digna As ações de Carlos Lacerda governador da Guanabara no começo dos anos 1960 são um exemplo dessa ambiguidade com os migrantes Na questão da moradia Lacerda pôs em curso um plano de erradicação de favelas nas áreas nobres da capital e buscou regulamentar a ocupação de lotes em bairros mais distantes como o Alemão Glebas públicas e privadas foram doadas aos moradores com indenização aos antigos proprietários para o início de um processo de urbanização e investimentos em benfeitorias locais mediado pelas associações de moradores Além de exercer funções cartoriais e imobiliárias as associações tentavam estabelecer uma ponte com os políticos para lidar com a falta de água energia saneamento coleta de lixo e moradia A intenção dos políticos foi induzir o crescimento dos bairros pobres em áreas mais distantes do centro econômico e político e ali formar seus currais eleitorais urbanos Em outra frente os mesmos políticos tentavam evitar que os novos moradores para escapar da pobreza partissem para a prática de roubos colocando em risco a população rica da cidade Com a Invernada de Olaria delegacia criada a partir de 1962 no bairro de Olaria cujos métodos inspirariam outros grupos de extermínio nos anos seguintes a violência policial tornouse um procedimento para demonstrar autoridade e assustar ladrões que ousassem desrespeitar a lei Não tinha como dar certo A população do Complexo do Alemão e de outras favelas chegou aos anos 1980 sob essa tensão marcada pela desconfiança da cidade em relação aos moradores desses bairros A falta de infraestrutura urbana de oportunidades sociais educacionais e econômicas somada ao drama de morar em um bairro considerado perigoso repleto de bandidos caçados pela polícia trouxe efeitos indesejáveis Na época o Alemão já possuía cerca de 30 mil habitantes e ainda havia muitos barracos de madeira em meio a vastas áreas descampadas Mesmo tendo uma população maior do que boa parte das cidades brasileiras o Complexo do Alemão sofria investidas das forças de segurança sempre usadas contra seus moradores nunca no auxílio deles Com a ausência da autoridade do Estado na região foram surgindo diversos bandos nas comunidades Eles se organizaram em pequenas tiranias tentando se impor pelo uso da violência contra desafetos e contra aqueles que desobedecessem às regras locais instituídas por eles Com armas e disposição para arriscar a vida muitos criminosos tentavam exercer o poder territorial para assumir o papel de polícia Como ocorreu em diversas periferias do Brasil também no Alemão a ação desses bandos promoveu rivalidades territoriais e conflitos sangrentos A tentativa de ser o mandachuva local inevitavelmente gerava rixas e assassinatos que despertavam reações dos atingidos e ciclos de vingança intermináveis Nas diferentes comunidades do Alemão tinha o bando do Ciço Cabeça do China e do Antônio Russo Meu pai sempre me pedia para evitar ir pros lugares onde esses grupos dominavam lembra Reginaldo Quase não havia rabecões e os corpos ficavam abandonados Diziam que alguns eram comidos pelos porcos Com onze anos eu já tinha visto muita gente morta nas ruas Com essa idade também vi os primeiros homicídios acontecerem bem na minha frente Na lembrança de Reginaldo era um momento difícil porque vários bandos estavam em conflito O bando da Alvorada tinha se juntado ao da Nova Brasília Talvez foi o primeiro ajuntamento de bando da história arrisca Reginaldo Os grupos se uniram para atacar o bando da Grota que também era inimigo do Morro do Alemão Todos esses bairros pertenciam ao Complexo A investida de um lado sobre o outro não demorou a ocorrer Como a Grota ficava no meio quando o ataque aconteceu eles não puderam correr pro Alemão Acabaram encurralados pelos três bandos Os chefes vitoriosos pegaram doze homens do bando da Grota E o que eles fizeram Você sabe o que é uma embira de caranguejo É um termo usado pelos pescadores do Nordeste e que a gente também conhecia no Alemão Eles amarraram os braços e pescoços desses homens como fazem na pesca de caranguejo e levaram todos juntos em fileira para um largo perto da minha casa A embira foi puxada pelo chefe do grupo Eu tinha acabado de chegar do trabalho Ainda era criança Estava sentado na soleira da minha porta não tinha muro Eu morava na subida do morro Ainda não se parecia com favela estava mais para fazenda O chefe do bando me viu e gritou Não sai daí não que é pra você ver e aprender a ser homem E aí começou a chacina Todos os doze foram mortos a pauladas socos pedradas e tiros de calibre 22 Esses confrontos entre pequenos grupos ocorriam também em outros bairros pobres e na década de 1980 ganharam um incentivo adicional para agravar o cenário o emergente e lucrativo mercado varejista de drogas As disputas mais famosas e documentadas em que as bocas de fumo já faziam parte do contexto ocorreram na Cidade de Deus e inspiraram o livro homônimo de Paulo Lins e o filme de Fernando Meirelles Em 2017 a antropóloga Alba Zaluar que iniciou suas pesquisas no bairro nos anos 1980 e na época coordenou a etnografia de Paulo Lins publicou um livro sobre Ailton Bitencourt o Ailton Batata chefe de um dos grupos envolvidos nos conflitos da Cidade de Deus1 O personagem Cenoura tanto do livro como do filme é baseado nele Os outros dois personagens inspirados em figuras reais eram o destemperado José Eduardo Barreto Conceição conhecido como Zé Pequeno e o leal Manuel Machado Rocha o Mané Galinha imortalizados em livro e filme com seus apelidos verdadeiros Ailton Batata conta que foi dono de uma das primeiras bocas de fumo da Cidade de Deus no final dos anos 1970 Vendia principalmente maconha na quadra 15 vinda do Paraguai e do Nordeste depois de 1977 a cocaína se tornou uma mercadoria acessível No começo dos anos 1970 a pequena cena criminal do bairro ainda era composta de ladrões voltados para roubos de casas as cachangas no Recreio e na Barra da Tijuca em busca de dólar ouro e revólver Figuras como Cabeleira Marreco e Alicate o Trio Ternura eram alguns desses poucos e temidos ladrões O mercado de drogas ainda engatinhava e era quase artesanal Nessa época porém os cartéis colombianos em Medellín e Cali começavam a desenvolver a estrutura de produção e distribuição da mercadoria que abasteceu as metrópoles durante o pósguerra O uso de drogas também estava em ascensão A ruptura dos babyboomers com a tradição iniciada nos Estados Unidos e na Europa se espalhou pelo mundo depois da década de 1960 No Brasil chegou aos grandes centros com mais força nos anos 1980 embalada pelo processo de urbanização e de comunicação de massa pela cultura pop pelas bandas de rock pelos grandes festivais de música pela valorização do prazer do consumo e da individualidade em detrimento das identidades coletivas e dos valores familiares e tradicionais da vida no campo As drogas ajudaram na celebração desses tempos hedonistas principalmente a maconha e a cocaína Para atender esse consumo mundial crescente rotas foram abertas a partir da Bolívia e do Paraguai de onde as drogas saíam para chegar aos portos brasileiros e seguir para os demais continentes A produção da folha de coca exigia a altitude elevada dos países andinos e o Brasil se tornou um corredor de passagem da mercadoria Os traficantes viram nessa logística uma oportunidade para abastecer também o mercado interno do Rio de Janeiro e de São Paulo que se revelava promissor Nesse negócio que começava a se formar nos anos 1980 matutos compravam carregamentos de maconha vindos do Paraguai e do Nordeste para vender nas bocas em favelas O negócio não chamava a atenção da polícia que estava focada nos assaltos a pedestres casas e bancos O dinheiro as armas e os lucros do varejo contudo já começavam a provocar problemas sérios nos territórios Na Cidade de Deus as disputas entre Batata e Zé Pequeno por exemplo começaram no final dos anos 1970 Batata era mais velho A relação entre os dois existia desde que Zé Pequeno era garoto e prestava favores a Batata como ir comprar comida e fazer outras tarefas simples para a boca de fumo Na época Zé Pequeno também participava de assaltos nos bairros mais ricos com o parceiro Jorge Devagar Quando se tornou maior de idade Zé Pequeno virou um criminoso ousado e ambicioso Tomou a boca de um traficante junto com seu antigo parceiro de assalto Eles passaram a vender drogas nos apartamentos da Cidade de Deus a algumas quadras da boca de Batata A relação entre Batata e Zé Pequeno no entanto ainda era amistosa Batata frequentava os sambas animados que a boca do concorrente organizava nos apartamentos que atraíam até gente famosa No entender de Batata a rivalidade entre eles se acirrou depois que Jorge Devagar saiu da cadeia e passou a fazer a cabeça de Zé Pequeno para que ele tivesse sua própria boca de fumo no bairro Os negócios de Batata então tornaramse visados pelo grupo rival A guerra entre os bandos começou em 1978 Um integrante da boca de Zé Pequeno roubou o dinheiro da venda de droga de um funcionário de Ailton Batata O ladrão foi executado Como se um rastilho de pólvora tivesse sido aceso a morte desencadeou outros assassinatos Cada lado passou a costurar sua rede de aliados que recebia revólveres para garantir o apoio Nos conflitos que se seguiram Batata ganhou a adesão de Mané Galinha que trabalhava numa viação de ônibus e fazia cachangas nos fins de semana Galinha que vinha sendo esculachado por gente do grupo de Pequeno e de Devagar tornouse o principal aliado de Batata Dezenas de pessoas foram mortas nesses conflitos que duraram até 1981 perdendo força depois da prisão de Zé Pequeno Batata descreveu cenas terríveis daquela época como o dia em que explodiram uma banana de dinamite nos conjuntos habitacionais onde ficava a boca do rival A bicicleta de uma criança voou pelos ares Não havia moradores no bloco onde a bomba foi lançada porque os traficantes já tinham expulsado todos dali para vender drogas No livro ele conta isso com naturalidade É um tipo de narrativa que ouço há mais de vinte anos com poucas variações de homens tão envolvidos nas batalhas que travam com seus inimigos tão enredados em seus próprios conflitos que parecem não enxergar o terror vivido pela população e pelo entorno que nada têm a ver com os negócios deles O conflito entre Batata Galinha e Zé Pequeno gerou três anos de tiroteios recorrentes mortes de familiares deles sem nenhum envolvimento com o crime cenas de barbárie que apesar da gravidade não mobilizavam as forças de segurança pública como se o problema não dissesse respeito à cidade do Rio de Janeiro Afinal os criminosos da Cidade de Deus estavam matando uns aos outros e não ameaçavam os moradores dos bairros ricos Nesse período muitas alianças foram firmadas entre bandos vindos de diferentes favelas Um dos criminosos mais importantes da história do submundo do Rio José Carlos dos Reis Encina o Escadinha que comandava as bocas de fumo no Morro do Juramento na zona norte tinha disputas em seu bairro com um bando aliado de Zé Pequeno Seguindo a lógica da guerra inimigo do meu inimigo é meu amigo Escadinha mandou reforços de armas e homens para ajudar Batata depois que a casa da família de Mané Galinha foi atacada por cerca de cinquenta homens do bando de Zé Pequeno Nos anos seguintes essa rede de apoio horizontal entre bandos de favelas foi sendo organizada por chefes de comandos articulados em presídios que estabeleceriam a dinâ mica dos conflitos do Rio a partir das facções Durante a década de 1980 a Falange Vermelha designada assim pelos jornais ainda era um projeto em construção tentando superar disputas entre quadrilhas na busca de unificar o crime O presídio de Ilha Grande onde o grupo foi criado em 1979 era conhecido como Sucursal do Inferno Caldeirão do Diabo ou ainda a Brasília do crime A história do nascimento da Falange em suas dependências é bem conhecida no jornalismo policial e em trabalhos acadêmicos apesar de haver mais de uma versão sobre sua origem A iniciativa de organizar um grupo de autodefesa dos internos numa penitenciária bastante violenta ocorreu num momento em que presos políticos e criminosos comuns conviviam nos presídios Apesar desse convívio os presos políticos ligados a organizações da luta armada como MR8 e Aliança Nacional Libertadora que estavam em Ilha Grande na primeira metade dos anos 1970 eram vistos como elitistas pelos presos comuns Um dos criadores da Falange Vermelha William da Silva Lima o Professor contou em seu livro 400 contra 1 que a união dos presos foi articulada por ladrões de banco sem filiação partidária presos comuns enquadrados na Lei de Segurança Nacional Eram cerca de noventa pessoas isoladas privadas de banho de sol e convívio Chamados de Turma da LSN ou Falange LSN eles se juntaram e propuseram a união dos presos do grupo para negociar com a direção de Ilha Grande a garantia de direitos e benefícios Isso em meados dos anos 1970 Com o passar dos anos conforme a direção de Ilha Grande flexibilizou o convívio da Falange LSN com os demais presos o grupo passou a se articular para defender outros detentos dos assaltos e estupros recorrentes promovidos por integrantes da Falange Jacaré e de outras quadrilhas que aterrorizavam o presídio A ideia era que o isolamento e o pensamento individualista fragilizavam a luta dos presos ao passo que unidos se fortaleceriam contra a opressão e poderiam estabelecer regras mais justas para o convívio em Ilha Grande Essas propostas ajudaram a produzir o amálgama entre homens até então sem um propósito para o crime Preso sem direção vira barata tonta dizia um dos integrantes do bando Para fortalecer financeiramente o grupo os presos da LSN criaram a cantina da Ilha Grande e com o dinheiro bancavam a comida dos presos que não recebiam visitas Também estabeleceram uma caixinha para bancar a organização A ajuda vinha de fora principalmente dos assaltos a banco praticados por aqueles que saíam ou fugiam do presídio A Falange ampliaria a visão de mundo de seus participantes como se seus crimes não devessem ter apenas objetivos individuais e egoístas mas coletivos Ao longo de 1979 alguns confrontos com os rivais da Falange Jacaré chamaram a atenção da imprensa que apelidou o grupo organizado de Falange Vermelha nome com mais apelo midiático naquele contexto de luta armada Pelo menos essa é a versão de Professor Os presos se apropriaram do nome mais tarde trocado para Comando Vermelho Numa primeira demonstração de força do grupo em agosto de 1979 integrantes da Falange Vermelha mataram 21 rivais e integrantes da Falange Jacaré e assumiram o controle de Ilha Grande 2 no episódio conhecido pelos presos como Noite de São Bartolomeu em referência ao massacre de protestantes mortos por católicos ocorrido na França em 1572 Assumiram também os negócios da quadrilha derrotada dentro do presídio como a venda de droga Entre os mortos da chacina ocorrida no presídio lembra Ailton Batata estava Jorge Devagar o companheiro de Zé Pequeno que durante o tempo em que esteve em Ilha Grande ingressou na quadrilha de Jacaré O domínio seguiu com pequenos contratempos A Falange Vermelha não conseguia seduzir a todos e criar uma hegemonia no crime e começaram as dissidências Seus integrantes foram acusados de usar a caixinha dos assaltos para fins particulares e de defender os próprios interesses em vez de lutarem pela coletividade Foi então que os presidiários da terceira galeria de Ilha Grande formada por presos comuns usaram esses deslizes como justificativa para criarem o Terceiro Comando3 Do lado de fora nas favelas e comunidades a ideologia e o modelo da Falange Vermelha começavam ainda que lentamente a influenciar a gestão do crime No início os assaltos a banco eram a modalidade preferida para construir o capital da organização voltada ao suporte dos presos Como esses roubos exigiam planejamento e trabalho em equipe gozavam de um status superior entre os ladrões se comparados aos roubos simples Um assalto bemfeito exigia estudo da rotina do banco e de seus funcionários além de participantes atuando em três frentes de ação Os linhas de frente responsáveis por render o caixa os seguranças e recolher o dinheiro ingressavam no banco com armas curtas Do lado de fora com armamentos pesados que já incluíam fuzis ficava o grupo para evitar a abordagem policial Com o dinheiro na mão esses dois grupos iam embora de carro e se encontravam com a equipe do transbordo que distribuía o grupo em outros carros com placas quentes para diminuir as suspeitas Esse esquema foi revelado em 1981 por Cesar Luiz de Araújo Paz motorista de um dos grupos de assalto da Falange No depoimento ele contou que as armas a munição e o transporte de lancha para resgatar presos de Ilha Grande eram recursos oferecidos por um sargento do Exército Araújo integrava o grupo do criminoso mais procurado do Rio de Janeiro naqueles dias o homem que se tornaria um mito José Jorge Saldanha que recebeu da imprensa o apelido de Zé Bigode era considerado em 1981 o principal chefe da Falange Vermelha em liberdade Ele havia fugido de Ilha Grande no ano anterior enfrentando ondas enormes durante a noite em uma pequena balsa junto com outro fundador do grupo Apolinário de Souza o Nanai filho de pastor que pregava a união entre os detentos com uma Bíblia na mão Zé Bigode articulou um grupo de assalto a bancos para mandar dinheiro a colegas presos mas acabou descoberto pela polícia Quando Zé Bigode foi localizado na Ilha do Governador um efetivo estimado em quatrocentos homens foi mandado ao local Policiais com holofotes cães picaretas espalharamse por parapeitos e telhados num evento transmitido pelo rádio e pela televisão O cerco começou na madrugada do dia 3 de abril de 1981 e se estendeu ao longo do dia A imprensa noticiou que 150 bombas de gás lacrimogênio foram lançadas no interior do prédio onde estava Zé Bigode quinze granadas e uma incontável quantidade de tiro que destruíram sete apartamentos Zé Bigode não se rendeu Foi retirado morto no amanhecer do dia 4 Essa história deu origem ao título do livro de Professor 400 contra 1 e ajudou a cultivar a mística do grupo nos anos seguintes A forte pressão exercida pela polícia contra assaltos a bancos e o capital acumulado pelo grupo empurraram alguns integrantes da Falange Vermelha para outro ramo o do varejo do tráfico de drogas ainda pouco combatido na ocasião e permeável ao convívio cotidiano com a comunidade onde atuavam Os morros seguiam sendo palco das disputas entre pequenos bandos e quadrilhas e a nova ideologia de união pretendia acabar com esses conflitos Na segunda metade da década de 1980 alguns nomes já despontavam como traficantes competentes Escadinha do Morro do Juramento foi um dos precursores Ele dizia ter começado no crime depois de levar uma surra da polícia e ser humilhado na frente da namorada que além disso foi abusada pelos policiais Passou a trabalhar para um traficante conhecido como Grande e herdou as bocas do Juramento depois da prisão do traficante Escadinha costurava alianças e se aproximava de criminosos de outros morros desde antes da fundação da Falange como fez quando apoiou Ailton Batata contra Zé Pequeno Também sempre apostou no assistencialismo para ter o apoio da população local Um de seus principais aliados era Paulo Roberto de Moura Lima o MeioQuilo que organizou a venda de drogas do Jacarezinho sob a bandeira do grupo Escadinha e MeioQuilo estabeleceram o modelo vertical nos territórios estruturado em torno da figura imperial dos donos de morro Naquele tempo a favela do Jacarezinho era considerada pelos criminosos o QG da Falange como lembra Marcio Santos Nepomuceno o Marcinho VP chefe do Comando Vermelho desde meados dos anos 1990 em seu livro de memórias4 Outro nome importante na formação desse tipo de estrutura foi Denir Leandro da Silva o Dênis da Rocinha que se destacou pelos bons contatos com matutos e atacadistas de droga Reproduzindo o modelo assistencialista dos bicheiros eles fizeram escola Distribuíam cestas básicas e dinheiro para festas promoviam bailes funks garantiam acesso a remédios e outras benfeitorias Também eram eles que proibiam os roubos no bairro fazendo o papel de polícia MeioQuilo impunha respeito aos demais criminosos Ladrões de banco assaltantes e traficantes costumavam buscar sua ajuda para se esconder da polícia em Jacarezinho quando a situação apertava5 A fama de MeioQuilo nasceu por sua ousadia e pela disposição em ajudar parceiros principalmente na realização de fugas espetaculares Em 31 de dezembro de 1985 MeioQuilo encarregou José Carlos Gregório o Gordo outro fundador da Falange de resgatar seu amigo Escadinha que desde 1983 estava no presídio de Ilha Grande Em vez de balsa lancha ou barco dessa vez o resgate ocorreria num helicóptero Naquele dia Escadinha recebia a visita de uma de suas mulheres e estava numa casa do lado de fora do muro Quando o helicóptero pousou bastou ele correr para o aparelho junto com a esposa Os guardas também demoraram para dar o alerta sobre a fuga Ela acabou marcando época A omissão dos guardas e dos agentes penitenciários que não tomaram nenhuma atitude ao ver uma aeronave não identificada sobrevoando o presídio por mais de duas horas também chamou a atenção Os criminosos sabiam que em vez do confronto o mais fácil era comprar as autoridades Em agosto de 1987 quando MeioQuilo estava detido no presídio Milton Dias Moreira no complexo da rua Frei Caneca em pleno centro do Rio ele tentou repetir a façanha e escapar junto com seus amigos mais próximos MeioQuilo Escadinha que havia sido preso três meses depois da fuga ao ser baleado em um tiroteio no Morro do Juramento e Gordo aguardavam no telhado do presídio quando um helicóptero foi descendo para resgatálos Policiais no entanto dispararam contra a aeronave que começou a subir para abortar o resgate MeioQuilo não desistiu Agarrouse aos esquis de pouso do helicóptero que subiu com o traficante pendurado ali antes de bater na caixa dágua do presídio e explodir no solo matando traficante e piloto Alguns entrevistados me disseram que MeioQuilo saltou antes da queda do aparelho e sobreviveu mas que apanhou da polícia até morrer Qualquer que seja a versão verdadeira MeioQuilo foi outro com fama de herói Mais de 3 mil pessoas compareceram a seu enterro e cinquenta coroas de flores foram enviadas por lideranças do crime e traficantes de diversas favelas do Rio de Janeiro Histórias como a dele fortaleciam a mística e divulgavam os ideais de resistência pregados pelo grupo Persistia o desejo de lançar um projeto coletivo que organizasse o crime Em 1993 essa ideia inspirou os presos de São Paulo a criarem o Primeiro Comando da Capital o PCC em cujo estatuto está reproduzido o lema original do CV de paz justiça e liberdade No Rio contudo as rivalidades históricas entre os bandos produziram uma nova configuração de conflito com redes aliadas defendendo dois grupos CV e TC A ideologia e o modelo de negócios eram praticamente os mesmos A diferença decorria apenas de rivalidades territoriais que se estendiam para as vizinhanças nas respectivas redes de alianças entre cada grupo Na definição do sociólogo Caio Ferraz o que existia era compadrio que formava uma teia baseada em relacionamentos pessoais em que o amigo do meu amigo também é meu amigo enquanto o amigo do meu inimigo é meu inimigo6 A definição de redes como essas começava a se tornar parte da cultura dos morros Em alguns bairros a rivalidade impedia que os moradores até mesmo usassem cores de facções inimigas vermelho no caso do Comando e verde no caso do Terceiro Esses conflitos causavam pâ nico quando chegavam aos bairros da zona sul Um desses transbordamentos ocorreu no Morro Dona Marta em Botafogo em 1987 Na ocasião Zacarias Gonçalves Neto o Zaca um exPM que liderava uma das quadrilhas locais se juntou ao chefe de outro bando Emílson dos Santos Fumero o Cabeludo para expulsar os integrantes da Família Lino donos de bocas de fumo que vendiam maconha A cocaína era fornecida pelo taxista e traficante Pedrinho Ribeiro que apoiou a ação conjunta dos dois bandos contra os Lino Depois da vitória a calmaria durou pouco Passado um ano da expulsão dos Lino foi a vez de Cabeludo e Zaca começarem a brigar iniciando uma disputa com tiroteios de balas traçantes que aterrorizaram a zona sul do Rio Fuzis calibre 762 e AR15 foram usados no conflito A Rocinha a maior favela brasileira incrustada entre prédios de superricos em São Conrado se tornou outro foco de tensão com o asfalto quando Dênis da Rocinha o chefe do morro foi preso em 1987 Um mês depois da prisão moradores da Rocinha desceram para protestar contra ela e fecharam o túnel Dois Irmãos bloqueando a passagem da zona sul para a oeste O protesto tinha sido ordenado de dentro da cadeia pelo próprio Dênis que queria evitar sua transferência para Bangu 1 presídio de segurança máxima que seria inaugurado no ano seguinte A polícia dispersou o grupo com gás e balas de borracha mas houve reação e os manifestantes apedrejaram os carros que passavam Quando sustos como esse atingiam os bairros da zona sul a reação das instituições e da imprensa era mais forte como se um limite tivesse sido ultrapassado Essa linha foi definitivamente transposta em 1992 por centenas de jovens vindos de favelas e dos subúrbios da zona norte do Rio protagonistas dos famigerados arrastões O estigma sofrido pelos jovens negros e pobres na zona sul parecia servir de combustível para a revanche dos garotos Nas praias lotadas do Arpoador e de Ipanema eles iniciavam o correcorre seguido de brigas furtos espancamentos e pâ nico entre os banhistas que deixavam as areias em desespero As cenas gravadas e mostradas no Fantástico e no Jornal Nacional provocaram indignação Um ritual sagrado do carioca a praia nos domingos de sol estava sendo profanado Tinha sido inaugurada a Linha 127 que corta toda a Maré O ônibus passava dentro da favela Já tinha facção na Maré mas não tinha guerra A Nova Holanda uma das favelas do Complexo era considerada neutra ainda não tinha a bandeira do CV recorda um ex traficante da Maré que participou da histórica confusão nas areias quando era adolescente Ele e outros dois extraficantes que atuaram na cena criminal do Rio me contaram suas histórias ao redor de uma mesa de madeira em um edifício na Lapa no centro Dois deles já tinham sido inimigos no Complexo da Maré um atuando pelo Comando Vermelho e o outro pelo Terceiro Comando e depois pelo Terceiro Comando dos Amigos O outro entrevistado tinha sido dono de bocas de fumo em Padre Miguel na zona oeste mas cresceu na carreira quando se tornou matuto e passou a vender para diversos morros do CV Quando chegamos na praia nossa galera deu de cara com a turma do Bola e do Renato os caras do Morro do Adeus A rixa já tinha começado no baile funk A porrada comeu O moleque que é ladrão aproveita Tu tá na praia vê aquelas cem pessoas correndo Os caras começam a catar chinelo carteira boné que vai ficando para trás Não foi premeditado O lance começou com uma briga da galera mas virou arrastão Briga da galera da Maré com Complexo Adeus Fazendinha Começou lá atrás no baile funk Era tudo amigo apesar das brigas Só que depois ia virar rixa de sangue Os próprios empreendedores do tráfico contudo já percebiam que eles deveriam encontrar formas e soluções para administrar essa desordem porque a resposta do Estado sempre vinha forte matando para dar lições a todos que vivessem em área de tráfico Foi o que ocorreu em Acari em 1990 quando onze moradores do bairro foram assassinados por policiais do 9o Batalhão Os agentes formavam um grupo de extermínio apelidado de Cavalos Corredores cujo oficialchefe coronel Emir Larangeira seria eleito deputado em 1992 Em julho de 1993 foi a vez de oito jovens seis com menos de dezoito anos que dormiam em frente à igreja da Candelária ser assassinados Um deles teria jogado uma pedra no carro da polícia dias antes Um mês depois os Cavalos Corredores voltariam para matar 21 moradores de Vigário Geral sete deles evangélicos que pertenciam a uma mesma família morreram segurando a Bíblia e seus documentos de trabalho numa tentativa de convencer os policiais que não mereciam o massacre A chacina foi uma vingança pelo assassinato de quatro policiais por traficantes do bairro comandados por Flávio Pires da Silva o Flávio Negão Do ponto de vista econômico e político era mais vantajoso para o tráfico evitar confrontos que assustassem a cidade e os prejudicassem O negócio das drogas dava cada vez mais dinheiro e o mercado seguia promissor pedindo racionalidade e um comando central nos territórios Os anos 1990 trouxeram essa mudança Os territórios neutros praticamente deixaram de existir e todos tiveram que tomar partido Os donos das bocas da favela Nova Holanda no Complexo da Maré assumiram a bandeira do Comando Vermelho em 1994 com a morte de Jorge Ferreira de Almeida o Jorge Negão Seu sucessor Mauro Reis Castellano o Gigante tornouse o novo chefe do pedaço abandonando a neutralidade e aproveitando a nova aliança que lhe garantia acesso a armamentos pesados e a soldados aliados A quadrilha vizinha da Baixa do Sapateiro optou por seu antagonista Terceiro Comando estabelecendo uma das principais rivalidades do Rio de Janeiro Durante os três primeiros anos a ligação familiar e de amizade entre alguns integrantes das duas facções na Maré manteve a situação equilibrada Mas as constantes incursões da polícia e as mudanças de chefia provocaram conflitos intensos entre 1999 e 2002 apavorando moradores e motoristas que transitavam pela Linha Vermelha surpreendidos por tiroteios de fuzis que muitas vezes atravessavam a lataria dos carros Na verdade nunca houve muita diferença de ideologia entre CV e Terceiro A maior delas no meu ponto de vista é de que o Terceiro dava mais liberdade de decisão para os chefes nas comunidades No CV não tinha essa autonomia precisava ouvir a opinião do Marcinho VP o chefe era mais centralizado explicou meu interlocutor que atuou no Terceiro A tentativa de criar um comando hegemônico capaz de unificar o crime no Rio objetivo alcançado pelo PCC em São Paulo no decorrer dos anos 2000 intensificou conflitos e gerou uma corrida armamentista nos morros da cidade principalmente depois de meados dos anos 1990 Boa parte dos lucros no comércio varejista de drogas e nos assaltos foi investida na compra de fuzis munição e rede de apoio O novo modelo buscou transformar as favelas em pequenas fortalezas com dezenas ou mesmo centenas de fuzis aprofundando o isolamento da população das comunidades sujeitas ao poder das tiranias armadas Seria uma espécie de guerra de tronos no estilo da série premiada com diversos reinos autônomos encerrados em si mesmos e em conflitos com outros reinos fragilizandose uns aos outros numa batalha que só faz sentido para os homens que dela participam O paralelo valia também para a enorme quantidade de reis mortos e depostos ao longo das lutas A evolução dos lucros no comércio de drogas no Rio dependeu do desbravamento das fronteiras da América do Sul e da aproximação com as fontes atacadistas dos grandes cartéis de droga Os primeiros passos em direção a esse novo estágio foram dados com ajuda decisiva da quadrilha de Antônio José Nicolau o Toninho Turco que tinha em seus quadros diversos integrantes das polícias do Rio de Janeiro Parte do grupo foi presa pela Polícia Federal em 1988 Entre os presos havia três praças um tenente e um capitão da Polícia Militar e dois detetives da Polícia Civil No livro CV PCC A irmandade do crime Carlos Amorim escreve que a quadrilha tinha setenta policiais e expoliciais Vinha deles a munição para as armas de guerra que protegiam o tráfico A quadrilha também produzia munições Toninho Turco acabou morto na operação policial que deveria prendêlo Na época seus familiares disseram que a morte dele foi uma queima de arquivo e que ele levou para o túmulo muitos segredos sobre o envolvimento de autoridades Amigo de bicheiros e ligado a políticos influentes Toninho Turco começou como fiscal de renda Nos 1970 e 1980 aproveitou o cargo para entrar no contrabando de cigarros bebidas e eletrônicos vindos da fronteira Fez bons contatos e desbravou rotas que permitiram a ele e a seu grupo trazer para o Brasil grande quantidade de drogas Seu envolvimento aumentou depois de ser nomeado detetive da delegacia de Roubos e Automóveis no Rio acumulando dois empregos oficiais A estimativa era de que seu grupo abastecia metade de todo o varejo dos morros cariocas girando cerca de 1 milhão de dólares por dia valor aparentemente superestimado Eles buscavam a mercadoria com seus contatos em Foz do Iguaçu Ponta Porã Manaus e Campo Grande No Rio de Janeiro Turco fornecia para mais de vinte comunidades como Jacarezinho Juramento Dona Marta Mangueira Providência Salgueiro Borel Parada de Lucas entre outras As bandeiras das facções ainda não eram determinantes Dois tenentes da PM ligados à quadrilha eram apontados pela PF como possíveis sucessores de seus negócios Num relatório emitido pelo Centro de Informações do Exército investigadores identificaram Turco como homem de confiança do jogo do bicho permitindo a esses empresários da contravenção a possibilidade de terem influência mesmo que indireta sobre o negócio criminoso que mais crescia no mundo O jogo não queria se misturar com as drogas para não manchar sua imagem Dilema também vivido pelas máfias de todo o planeta Um dos patronos do bicho Castor de Andrade já havia se manifestado sobre o motivo de não entrar no ramo decisão que se provaria acertada já que o tráfico se tornaria o mais odiado rival das forças policiais e das autoridades Bicho é coisa querida amada pelo povo Tóxico é odiado Por isso a gente não deve misturar7 A estratégia da contravenção era criar uma parceria bemsucedida com a polícia Funcionaria da seguinte forma os traficantes continuavam sob rédeas curtas pintados como o principal inimigo da cidade enquanto os policiais lucravam com o combate ao tráfico operações de guerra extorsões e venda de armas munições e drogas garantindo ao mesmo tempo que os traficantes não invadissem o interesse dos patronos da contravenção Os bicheiros além disso não precisavam brigar diretamente com os traficantes com quem também se relacionavam negociando a colocação de máquinas de caçaníquel em territórios dominados pelas facções O espaço deixado pela morte de Toninho Turco e pela prisão de sua quadrilha foi preenchido pelos novos empreendedores criminais dos morros que já acumulavam experiência e queriam cortar a dependência com quadrilhas de matutos muitas tinham participação de policiais Mesmo com a parceria entre policiais e bicheiros o controle sobre o tráfico não era fácil de ser mantido Os varejistas perceberam que chegar às fronteiras era estratégico para reduzir intermediários gerar ganhos em escala e aumentar lucros além de garantir mais autonomia nos negócios Um dos primeiros a se aventurar nessa trilha saindo diretamente dos morros foi Ernaldo Pinto Medeiros o Uê que se tornou fundamental na dinâ mica dos conflitos violentos que viriam nos anos 1990 Uê entrou no crime ainda adolescente no começo dos anos 1980 seguindo os caminhos do pai e de seu irmão Egnaldo cinco anos mais velho Antes de completar dezoito anos no Morro do Adeus vizinho ao Complexo do Alemão Uê já havia sido apreendido duas vezes Sua ascensão ocorreu pelas mãos de Escadinha a quem chamava de Paizão Escadinha o homem que havia fugido de Ilha Grande em um helicóptero foi um dos primeiros presos mandados para o presídio de segurança máxima o Bangu 1 em 1988 Diante do isolamento Escadinha mandou Uê administrar suas bocas de fumo Ele tinha apenas dezenove anos Apadrinhado por um dos mitos da Falange o jovem administrador tornouse responsável por cinco morros na zona norte Adeus Juramento ParaPedro Jorge Turco e Faz Quem Quer Em diversos sentidos podia ser considerado um gestor estratégico dando passos que o transformariam no principal traficante do Rio de Janeiro na primeira metade dos anos 1990 Uê ampliou sua rede de fornecedores e multiplicou a escala da compra de mercadorias reduzindo o preço no varejo e aumentando ganhos8 Chegou a montar um consórcio com os parceiros Jorge Luís de Acari e Celsinho da Vila Vintém para comprar armas e drogas em sociedade nas fronteiras decisão que mostrava sua flexibilidade para negociar com gente de fora do CV Uê possuía fornecedores em Rondônia e no Paraguai onde se aproximou da família Morel uma das principais fornecedoras de maconha do país e tinha bom trâ nsito na Bolívia e na Colômbia O acesso a fornecedores primários o levou a ter planos mais ambiciosos unir a cúpula do tráfico de drogas no Rio seguindo os passos dos bicheiros Apesar de investir em armamentos pesados sabia dos custos da guerra para os negócios inclusive com as autoridades Uê era famoso pelos arregos constantes que pagava à polícia Também recebia visitas periódicas de policiais mineiros Sua disposição para pagar propinas à polícia e propensão para a diplomacia lhe garantiam informações privilegiadas que o mantiveram em liberdade no período em que ascendeu na carreira de traficante Em 1994 com bom capital acumulado bons contatos atacadistas e o respaldo de nomes históricos da facção Uê tentou unificar o crime e criar um colegiado que encerrasse as disputas pelas bocas de fumo Antes contudo seria preciso eliminar os desafetos e as resistências mais graúdas inclusive dentro do próprio Comando Vermelho O resultado foi desastroso Um dos alvos do ataque foi o vizinho Orlando da Conceição o Orlando Jogador do Complexo do Alemão Jogador tinha conseguido diminuir a rivalidade entre os pequenos grupos das quinze comunidades se associando ao Comando Vermelho Seguindo procedimentos de outros traficantes ele usava práticas assistencialistas para ganhar apoio da comunidade e exercia o papel da justiça punindo os que desrespeitassem a moralidade local de acordo com os critérios de seu bando claro Ajudava aliados em disputas em outros territórios como fez no Dona Marta e passou a comandar dezenas de bocas de fumo nas diversas comunidades do Complexo ganhando ascendência na facção e juntando dinheiro para se armar Jogador poderia ser um aliado a somar com a cúpula mas Uê tinha problemas pessoais com o colega Em 1989 seu irmão Egnaldo fora vítima de um disparo na coluna que o deixou paraplégico Uê afirmava que Jogador havia sido o autor do crime Outros sustentam que Jogador era ambicioso demais teria se apropriado do dinheiro de um assalto a banco e tinha planos de ascender à liderança do CV Para muitos contudo o que movia Uê era ganâ ncia Ele estava de olho naquele mercado estratégico O ataque do grupo de Uê contra Jogador contou com a boafé da vítima Segundo uma das versões do crime Uê simulou o próprio sequestro Pediu socorro a Jogador e solicitou ao colega que intermediasse o pagamento de um resgate de 60 mil reais supostamente cobrado por policiais do Bope Jogador marcou o ponto de encontro para a entrega do malote Quando ele e seus doze homens chegaram para pagar o falso arrego Uê o esperava com um bonde de cerca de cem aliados que abriram fogo contra o grupo Jogador morreu com tiros de AK 47 Os corpos foram espalhados por pontos diferentes da cidade como se os matadores passassem com aquilo um recado Uê e seu grupo assumiram a gestão das bocas do morro dando início ao racha entre as facções do Rio A traição forçou os grupos a se posicionar De um lado Uê e seus aliados entre os quais nomes históricos do CV como Escadinha e Gordo Do outro a fração leal a Jogador que durante um breve período constituiu o Comando Vermelho Jovem A tensão que se instalou depois disso pode ser medida com base nas taxas de homicídios O ano seguinte à chacina de Jogador 1995 registrou o recorde absoluto nos quarenta anos de violência no Rio com a região metropolitana apresentando mais de setenta casos por 100 mil habitantes Os dez anos entre 1994 e 2003 foram os mais violentos da história da região com taxas acima de cinquenta casos por 100 mil habitantes No Alemão a principal reação contra a traição a Jogador foi articulada por uma jovem liderança ainda com dezoito anos Marcio Nepomuceno o Marcinho VP que se tornaria o mais longevo chefe do CV apesar de estar preso desde 1996 Ele cresceu graças à parceria com um novo matuto da mesma geração vindo de uma pequena favela de Duque de Caxias que seguiu viagem para desbravar as fronteiras e ocupar os espaços deixados pela prisão de Uê Luiz Fernando da Costa o Fernandinho BeiraMar chegou ao Paraguai e à Colômbia e se tornou fundamental para abastecer de armas e mercadorias o comércio de drogas nos morros que seria reorganizado por Marcinho VP A velha guarda da Falange como Escadinha e Gordo que tinham apoiado Uê no golpe contra Jogador fundaram na prisão a Amigos dos Amigos ADA junto com Celsinho da Vila Vintém também egresso do CV Depois o grupo se aliou ao Terceiro Comando para formar o Terceiro Comando dos Amigos Em 2002 um novo racha entre ADA e TC deu origem ao Terceiro Comando Puro O Complexo do Alemão tornouse o núcleo da nova geração do Comando Vermelho Marcinho VP costurou a rede de apoio nas demais favelas No Paraguai Beira Mar e suas fontes da fronteira abasteciam a rede com armas e drogas Fuzis Sig Sauer eram importados da Suíça por uma loja de caça e pesca em Assunção depois seguiam para os morros Mercadorias vinham também dos Estados Unidos e de países em guerra e com economias decadentes Nos anos 2000 BeiraMar chegou às selvas colombianas e passou a negociar diretamente com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia Farc Policiais e militares ajudavam a aquecer o mercado com armas e munição Modelos como Colt AR15 AK 47 M16 com miras a laser tripés carregadores potentes sem contar as pistolas passariam a ser a régua que media o poder de cada chefe de morro Bigode nosso entrevistado do capítulo anterior ajudou a abastecer o Terceiro Comando e a ADA os concorrentes do Comando Vermelho Os competidores na corrida armamentista aceleraram seus investimentos e entraram no mercado de 30 e 50 para derrubar aeronaves Mais uma vez não tinha como dar certo Os donos dos morros nessa alucinada corrida armamentista tornaram o Rio de Janeiro a cidade dos fuzis e das pistolas Ironicamente quanto mais pesados ficavam mais vulneráveis se tornavam Em vez de se concentrarem em seus negócios eles perdiam tempo e dinheiro se atacando e exterminando uns aos outros sem conseguir escapar dessa engrenagem autodestrutiva Também contribuíam para justificar as operações policiais que se tornaram outro componente desse mecanismo de violência A polícia soube tirar proveito desse processo suicida e fortaleceu seu modelo de negócio Primeiro ganhando com os arregos a mineração e os espólios de guerra Depois disputando o controle dos territórios oferecendo proteção e prometendo ordem cobrando e ganhando em diversas frentes por meio das milícias Além de se beneficiar com a guerra dos tronos e com o teatro das operações a polícia seguiu próxima dos bicheiros elementos fundamentais para garantir a rede de cobertura política nos postos mais elevados da segurança pública Os bicheiros costumam ser esquecidos na equação do poder criminal mas foram decisivos para o novo equilíbrio que se formaria nesse submundo Mesmo longe dos holofotes cujo foco está voltado para os confrontos nas favelas entre traficantes e policiais os empresários da contravenção seguiram na ativa e assumiram papel importante na sustentação das milícias aproveitando o domínio do território exercido pelos paramilitares para expandir sua capilaridade nesses pontos A influência dos bicheiros dependia da capacidade de se renovarem Apontadores e cartelas de papel estavam defasados Surgiram então as maquininhas de caçaníquel que se espalharam pelo Brasil e por países da América do Sul onde os jogos são regulamentados O investimento em maquinário também ocorrido na década de 1990 veio junto com um golpe de sorte Em 1992 Lillo Lauricella um emissário do mafioso italiano Totò Riina veio ao Brasil para armar um esquema de lavagem de dinheiro Lillo se aproximou dos bicheiros da Liga das Escolas de Samba do Rio e forneceu a eles 35 mil máquinas de caçaníqueis um investimento de 10 milhões de dólares Os bicheiros pagavam ao italiano o aluguel dos equipamentos e faturavam com as pequenas apostas nos bares e casas de jogos Nesse período contudo Lillo se tornou colaborador da polícia italiana na operação Mãos Limpas que havia começado em 1992 na Itália e vinha abalando a estrutura do crime e da política no país décadas depois serviria de modelo para a operação Lava Jato no Brasil Com a pecha de delator Lillo foi assassinado em 1997 deixando uma herança milionária nas mãos dos bicheiros do Rio que puderam espalhar essas máquinas por bares e bingos ampliando tentáculos para outros estados como Bahia Espírito Santo Belém Foz do Iguaçu São Paulo9 Os apontadores foram substituídos por nova tecnologia que se espalhou sob as vistas grossas dos distritos policiais cujos laços com a contravenção eram cada vez mais firmes Os territórios das milícias ganharam caçaníqueis Era esse o cenário do crime no Rio de Janeiro no início dos anos 2000 quando o modelo das milícias avançava pelos territórios Facções de drogas se destruindo com armamentos pesados e disputas por mercado e poder contravenção forte e lucrativa corporações militares e civis fornecendo armas e munição para o tráfico minerando criminosos cobrando arregos extorquindo e posando de heróis para a opinião pública e ainda ofereciam serviços especializados de assassinato por encomenda Ou seja um ambiente favorável para que o novo modelo de negócios desabrochasse Entre 2002 e 2007 os paramilitares avançaram Em vez de ganharem dinheiro com os criminosos os milicianos criaram uma forma diferente de governar as comunidades e favelas prometendo ordem em troca de dinheiro Tornaramse personagens poderosos da acirrada disputa pelo trono nos morros Os novos tiranos dos bairros pobres contudo em vez de bermudas chinelos e camisetas vestiam fardas Houve no entanto um hiato dentro desse percurso No ambiente conflagrado dos anos 2000 com as milícias em plena ascensão o governador Sérgio Cabral Filho assumiu o Executivo em janeiro de 2007 No Rio sempre houve espaço para o que já era complicado se tornar insuportavelmente complexo Cabral definiu a segurança pública como prioridade número um de sua administração De início seu governo de fato parecia ter descoberto o caminho para pacificar o estado até que tudo desandou O alvo era o Complexo do Alemão conjunto de comunidades que desde o assassinato de Tim Lopes havia se consolidado no imaginário da imprensa da cidade e das autoridades como o quartel general do Comando Vermelho Na primeira operação de Cabral dois meses depois de assumir cem homens do Bope e do Core deixaram um rastro de seis mortos Entre eles um morador atingido no rosto por uma bala perdida quando ia a um orelhão telefonar a seu chefe para avisar que faltaria ao trabalho naquele dia O governador disse estar atrás de um paiol de armas no local e acusou a omissão do governo anterior que tinha ficado mais de dois anos sem realizar operações ali Em maio as operações no Complexo do Alemão se tornaram quase diárias Foram 42 ataques sucessivos que mataram dezessete pessoas e deixaram mais de sessenta feridas A imagem das favelas era vendida para a opinião pública como o de um lugar impenetrável onde havia traficantes snipers centenas de barreiras nas ruas impedindo o acesso ao seu interior e vielas estreitas e matagais nos cumes dos morros que se tornavam esconderijos quatro caveirões já haviam sido danificados ao tentarem ingressar na área Os jornalistas sentiam a tensão e precisavam fazer a cobertura como se acompanhassem uma guerra ao lado das tropas policiais usando capacetes e coletes à prova de bala e com balas assobiando em seus ouvidos Essa guerra constante e sem sentido contra um bairro com mais de 70 mil habitantes começou a provocar discussões sobre políticas alternativas para a segurança pública Organizações de direitos humanos e lideranças de moradores passaram a denunciar nos jornais os abusos das medidas e o drama cotidiano de quem vivia no local Em meio a esse debate em maio de 2007 entrevistei um desses críticos o coordenador do AfroReggae José Júnior na bancada do programa Roda Viva sobre os conflitos no Rio O assunto seguia em alta e rendendo manchetes Em junho a cúpula de Segurança do estado decidiu mudar de estratégia A ideia era sufocar o comércio e derrubar a venda de drogas com o fechamento das entradas da favela Pretendiase criar uma alternativa ao modelo do confronto e levar investimentos sociais ao bairro O governo federal prometeu o apoio de 450 milhões de reais através do Programa de Aceleração e Crescimento PAC mas esse investimento só seria liberado se o tráfico de drogas fosse eliminado Os conflitos ininterruptos desde maio preparavam o ambiente para uma grande ação No dia 27 de junho cerca de 1350 homens se envolveram em uma megaoperação de ocupação dos morros O resultado foi trágico Dezenove pessoas morreram uma das maiores chacinas ocorridas em operações policiais No dia seguinte ao massacre viajei ao Rio Minha ideia era tentar escrever uma reportagem para o jornal O Estado de S Paulo e percorri ruas e vielas do Alemão para entrevistar moradores Ainda havia poucos relatos jornalísticos sobre o que tinha ocorrido Desde 2002 o recrudescimento dos conflitos os armamentos pesados das facções os controles exercidos pelos donos do morro associados à ferida ainda não cicatrizada da execução do jornalista Tim Lopes tinham levado a combativa imprensa do Rio a dar um passo atrás evitando entrar nas comunidades controladas por traficantes Havia um dilema real diante dos jornalistas como entrar se era preciso obter uma autorização do tráfico Como eu chegava de São Paulo apareci lá quase como um estrangeiro No jornal decidimos que a gravidade da situação exigia que eu entrasse no morro Pedi ajuda a José Júnior que desenvolvia um projeto social no Alemão e ele me deu o suporte para eu conversar com os moradores Ingressei no Alemão às onze da manhã e andei por cinco quilômetros durante seis horas Saí da rua da Grota e subi até o alto do Morro da Alvorada No caminho entrevistei cerca de quarenta pessoas ainda apavoradas que contaram sobre abusos violência execuções roubos ou espólios de guerra expressão que eu conheceria anos depois Ainda havia barricadas na entrada para evitar o ingresso da polícia No dia anterior casas de moradores foram arrombadas e invadidas para que a polícia disparasse das janelas e lajes a famosa troia palavra que eu também só viria a conhecer anos depois Cerca de dez policiais invadiram a casa de uma moradora Grávida ela cuidava do filho de dois anos que assustado teve uma crise de asma Entraram no quarto da avó da criança para terem uma visão privilegiada e fazer os disparos da janela Ela mostrou as balas de fuzil que haviam ficado pelo chão e que ela tinha guardado em uma lata de Nescau fiz a foto que foi parar na capa do jornal No largo do Coqueiro no alto do morro uma das poucas praças da comunidade uma igrejinha estava cravejada de tiros Na descida em direção à rua da Grota ouvi relatos de abusos O dono de um estacionamento contou que policiais desceram do caveirão e levaram uma moto que estava lá Também quebraram vidros de carros e furtaram os sons dos automóveis Espalhada pelas ruas da favela a tropa policial havia fugido ao controle dos comandos O dono de um bar contou que seu estabelecimento fora invadido pela polícia que roubou mantimentos e dinheiro Entrevistados testemunharam execuções Anos depois eu me veria de frente com Pescador policial que tinha liderado uma das tropas nessa invasão e que me contou sobre a execução de um traficante naquela operação Era como se um ciclo se fechasse O massacre teve repercussão internacional e evidenciou a necessidade de mudança de rumo das políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro Ganharam força as ideias que estão na base das Unidades Policiais Pacificadoras UPPs Em dezembro de 2008 pouco mais de um ano depois das mortes no Alemão o Morro Dona Marta foi o laboratório escolhido para iniciar a experiência A sigla ainda não existia e a medida recebeu pouca atenção da imprensa nos primeiros dias Com pouco mais de 4 mil moradores vista privilegiada do Cristo Redentor entre Botafogo e Laranjeiras a favela além das disputas violentas nos anos 1980 ficou famosa como cenário para o videoclipe de Michael Jackson em 1996 depois homenageado com uma estátua de bronze no topo da favela O diretor do clipe o cineasta Spike Lee recebeu autorização para gravar no Dona Marta do próprio chefe do tráfico Marcio Amaro de Oliveira o Marcinho VP II que garantiu a segurança dos ídolos Anos depois em 1999 a favela inspirou o documentário Notícias de uma guerra particular de João Moreira Salles e K átia Lund e o livro Abusado de Caco Barcellos Aos poucos as ocupações foram ganhando formato e estrutura de políticas públicas para serem replicadas em outros locais Dois anos depois da invasão do Complexo do Alemão em 2009 as UPPs foram implantadas na Cidade de Deus e na Favela do Batan onde no semestre anterior os jornalistas de O Dia tinham sido torturados Foram criados batalhões especiais para a ocupação do território com o objetivo de interromper o comando dos traficantes e barrar o uso ostensivo de armamentos pesados Em vez de entrar para atacar guerrear e depois sair como nas operações policiais comuns a polícia pacificadora entraria para ficar Mais importante do que acabar com a venda de drogas era proibir o uso de fuzis e o domínio territorial e político das áreas do crime Primeiro entraram os homens do Bope e da Polícia Civil depois o Batalhão de Choque para mapear o território e definir o local onde se instalariam as bases comunitárias Nas etapas seguintes de implantação e controle chegaram os soldados recémformados das UPPs com um adicional no salário e as equipes responsáveis por avaliar os resultados Só depois de dominados os territórios viriam os investimentos e benefícios sociais À medida que novos bairros e morros iam sendo ocupados a opinião pública se surpreendia A ocupação era anunciada e a data definida Na sequência em vez do teatro de guerra das operações policiais ao qual os cariocas estavam acostumados a assistir todos os dias as UPPs se instalavam sem a necessidade de um único disparo ou confrontos Por baixo do pano tinha havido uma articulação bem azeitada entre os diplomatas dos batalhões policiais locais e os criminosos com os quais eles mantinham contato para a mineração e seus arregos de praxe avisando que a medida era para valer e que daquela vez não haveria espaço para negociações nem encenações A polícia iria ocupar Os traficantes pragmáticos para não bater de frente com o Estado deixavam as comunidades a fim de aguardar que o entusiasmo das forças oficiais diminuísse ou que a chegada de um novo governo mudasse os rumos Um traficante que atuava na Cidade de Deus contou a uma pesquisadora Tinha arma pra caramba pra gente tirar daqui dono de boca para a gente tirar maior loucura Sabe como é que é polícia é bandido bandido é polícia é assim Como eles têm nossa informação daqui para lá nós temos de lá para cá também Aí nós batemos um rádio para a arregadeira policiais corruptos mandamos ir no comandante para ver se ia ter papo Aí o comandante falou Você está maluco Agora não tem mais nada não tem negociação A polícia vai ficar Pode falar para eles De tarde foi uma loucura atravessando daqui para a Penha de moto roubada casacão fuzil pistola pra caralho voando na Linha Amarela O dono da boca na tua garupa foragido pra caralho Aí perto do Natal entrou a UPP10 Um dos boatos que circularam nas comunidades ocupadas é que os olheiros e os emissários dos traficantes permaneceram ali para informar aos patrões quem estava colaborando com a polícia Quando o tráfico voltasse eles seriam punidos como traidores Foram tempos de otimismo As taxas de crimes violentos começaram a cair nos bairros com UPPs Casos de homicídio diminuíram assim como os de roubos e mortes por intervenção da polícia Crimes menos visíveis cresceram como estupros lesão corporal e desaparecimentos o que podia indicar maior confiança da população em registrar crimes antes não notificados A tendência de queda de homicídios e de letalidade policial alcançava todo o estado Depois das três primeiras unidades em 2009 ainda foram instaladas UPPs nos morros da Babilônia Chapéu Mangueira e no CantagaloPavãoPavãozinho na zona sul do Rio Paralelamente a CPI das Milícias da Assembleia Legislativa que se estendeu pelo segundo semestre de 2008 ajudou a promover centenas de prisões e parecia indicar novos caminhos Tudo levava a crer que a Liga da Justiça e a milícia de Rio das Pedras estavam desmoronando Junto com os resultados alvissareiros que vinham sendo obtidos na segurança pública em outubro de 2009 outra novidade inflou a autoestima da cidade O Rio de Janeiro foi escolhido como sede dos Jogos Olímpicos de 2016 O calendário de megaeventos com a Copa do Mundo em 2014 animou empresários do setor hoteleiro turístico gastronômico imobiliário e petrolífero que já esbanjavam otimismo desde a descoberta da camada do PréSal em 2006 Foram tempos de vacas gordas e esperança de paz Um símbolo desse momento de otimismo foi o Guia Gastronômico das favelas cariocas que listava 22 bares e restaurantes gourmets de oito comunidades com UPPs pontos que viraram atração cult para turistas descolados O passeio podia começar no Bar do David no alto do Chapéu Mangueira com uma feijoada de frutos do mar elogiada pelo New Y ork Times e terminar com uma selfie tendo ao fundo a estátua de Michael Jackson e o pôr do sol no mirante do Morro Dona Marta Os resultados positivos deixavam o Rio de Janeiro eufórico contagiando imprensa pesquisadores moradores dos morros e do asfalto esquerda e direita todos se agarravam àquela esperança de pacificação As pesquisas de opinião dentro e fora das favelas eram animadoras e as críticas feitas com cuidado para não soarem como torcida contra Também surgiam dúvidas como será que a diminuição dos homicídios cometidos pela polícia não podia estar associada ao crescimento do número de desaparecidos Difícil saber E também não havia clima para estragar a festa Em outubro de 2010 Sérgio Cabral Filho foi reeleito no primeiro turno com 66 dos votos A proposta de continuar levando forças de paz às comunidades agradava à opinião pública acostumada a descrever os conflitos do Rio como uma guerra urbana Parecia que o estado de direito chegava aos morros e que o governo finalmente conseguiria libertar a população local de seus pretensos donos Mas algo não encaixava o peso para levar adiante missão tão nobre recaía sobre a velha viciada e carcomida estrutura policial de sempre Mais oito UPPs foram instaladas em 2010 em TabajarasCabritos Providência Borel Formiga Andaraí Salgueiro Turano e Macacos Pesquisadores começaram a identificar certo critério para a escolha desses locais quase sempre concentrados em áreas turísticas da zona sul áreas de serviços comércio e turismo do centro e no cinturão da Tijuca na zona norte ao redor do estádio do Maracanã que dali a quatro anos receberia a final da Copa do Mundo O padrão se manteve em 2011 Houve apenas duas exceções na zona oeste Nenhuma das dezessete primeiras UPPs foi implantada na Baixada Fluminense ou nos bairros com as maiores taxas de homicídio Outro padrão notado quase todas as favelas ocupadas pelas unidades pacificadoras eram dominadas por traficantes ligados ao Comando Vermelho com exceção da Favela do Batan reduto das milícias Em novembro de 2010 passada a eleição pela primeira vez integrantes do tráfico haviam partido para o ataque como se para enviar ao governo a mensagem de que não tolerariam mais as UPPs no segundo mandato de Cabral Nesse teste de forças ao longo de quase uma semana mais de trinta ônibus e oitenta carros foram queimados nas ruas da cidade A resposta do governo foi pesada Era o auge da popularidade do governador do Rio e do Secretário de Segurança José Mariano Beltrame aplaudidos e apoiados em qualquer decisão que tomassem No contraataque as autoridades retomaram as operações policiais entrando em 28 favelas e deixando um rastro de 23 mortos e mais de sessenta presos Durante aquela semana Beltrame disse ter descoberto a origem da ordem para os ataques Informações do sistema penitenciário apontaram para o Complexo do Alemão e Vila Cruzeiro Era para lá que seguiam criminosos do CV depois da instalação de UPP em seus territórios levando armas e fuzis Serviços de inteligência diziam chegar a mil os traficantes presentes na região O Alemão era o bunker do tráfico conforme os jornais Começava a ganhar forma a mais cinematográfica de todas as operações policiais já vistas no Rio de Janeiro que prometia dividir a história da segurança pública em antes e depois A decisão foi tomada no dia 24 de novembro de 2010 uma quartafeira Cabral telefonou ao ministro da Defesa Nelson Jobim para pedir ajuda e este recebeu o aval do presidente Luiz Inácio Lula da Silva A Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão seriam ocupados com o apoio das Forças Armadas a primeira ação conjunta desde a redemocratização Os combates começaram perto do meiodia da quintafeira quando seis blindados do Corpo de Fuzileiros Navais modelos M113 semelhantes aos usados pelo Exército americano na Guerra do Vietnã chegaram à Vila Cruzeiro dando apoio aos caveirões do Bope e a cerca de 450 homens entre eles militares que tinham estado nas Forças de Paz do Haiti Para retardar a entrada do grupamento os traficantes haviam montado uma barricada com caminhões atravessados nas ruas que foram arrastados pelos blindados Carros eram incendiados no caminho dos tanques dando dramaticidade à cena alguns tiros foram disparados mas ao contrário do que se esperava os traficantes não resistiram Por volta das três da tarde durante um boletim ao vivo o helicóptero da Rede Globo filmou a fuga de dezenas de traficantes estimados em duzentos homens pelas matas e pela estrada de terra do Morro do Caricó que ligava a Vila Cruzeiro ao Complexo do Alemão Descalços ou de chinelos de bermudas e sem camisa pendurados nas portas dos carros alguns deles feridos aquela tropa miserável em fuga desesperada era a própria desconstrução da imagem de fortaleza impenetrável construída por tanto tempo Mas o ufanismo de militares e autoridades policiais não parou aí A chegada das tropas ao alto da Serra da Misericórdia na Vila Cruzeiro foi comparada por policiais à tomada das Colinas de Golã pelo Exército israelense na Guerra dos Seis Dias contra Síria Iraque Jordâ nia e Egito conquistase primeiro a parte mais alta do território inimigo para dar apoio à invasão que ocorrerá na parte baixa A tática de usar diversos blindados e tanques para surpreender garotos de fuzis e chinelos foi equiparada nos jornais às famosas blitzk rieg do Exército alemão durante a Segunda Guerra Mundial Todos aguardavam no entanto a chegada do Dia D quando finalmente o Complexo do Alemão cairia E esse dia foi o 28 de novembro um domingo O ultimato tinha sido dado a tempo de os traficantes se renderem Tentouse evitar um banho de sangue mas as pontes entre policiais mineiros e traficantes estavam danificadas Com a chegada dos bondes de outras favelas a situação do Alemão havia se transformado o local simbolizava a resistência o último refúgio dos exilados dos morros com unidades pacificadoras Os traficantes com seu arsenal contrabandeado do Paraguai acreditavam que podiam fazer frente às forças mobilizadas pelo Estado Na hora H contudo às vésperas da invasão ficou claro que não seria possível aguentar Na sextafeira Luciano Martiniano da Silva o Luciano Pezão um dos chefes do Alemão ligou para José Júnior do AfroReggae pedindo ajuda para uma mediação Desde setembro de 1993 quando o AfroReggae foi fundado um mês depois da chacina de Vigário Geral Júnior tinha se tornado um mediador de excelência o único capaz de transitar pelos diversos reinados e aristocracias cariocas Conversava com traficantes de todas as facções policiais caveiras autoridades políticos de esquerda e de direita com o Pezão do CV e com o vicegovernador Luiz Fernando Pezão Ao telefone Pezão o traficante disse a Júnior que queria se entregar O líder do AfroReggae resistiu bateu boca e desligou Depois de quase vinte anos atuando na diplomacia dos morros Júnior havia se desgastado com alguns desses interlocutores Ele sabia que Pezão tinha sido um dos autores de uma carta interceptada no sistema penitenciário pedindo autorização a Marcinho VP para matálo Teve receio de aceitar a mediação Pezão voltou a ligar e insistiu Depois de consultar autoridades gente do tráfico extraficantes jornalistas e amigos Júnior decidiu subir o morro no sábado véspera do ingresso das tropas para falar com Pezão Acompanhado de um pastor do presidente da associação comunitária e de outro integrante da ONG AfroReggae Júnior viu diversos fuzis e pistolas abandonados largados no chão Quando chegou ao topo onde o bonde do CV estava reunido Pezão já tinha fugido com outros traficantes Fabiano Atanásio o FB outro chefe do Comando Vermelho era a liderança que estava no local chorando com raiva da fuga dos aliados FB pensava em resistir e preservar sua fama Ele era um dos suspeitos de ter dado os tiros que derrubaram um helicóptero da polícia no ano anterior Ainda tinha explosivos para colocar nas obras dos teleféricos que davam acesso ao topo do morro Mas FB percebeu que estava sozinho Assim como os fuzis ele havia sido abandonado Restava fugir antes que as tropas entrassem No domingo às oito da manhã cerca de 2500 homens das polícias estaduais e federal e das Forças Armadas iniciaram o ingresso no morro com tanques caveirões helicópteros snipers agentes do Bope dos batalhões seguidos por ambulâ ncias vindo por diversas entradas acompanhados por jornalistas que transmitiam a ação de guerra ao vivo para todo o Brasil Não houve resistência Em quinze minutos os homens já haviam alcançado o Areal no centro do Complexo a dois quilômetros da entrada da Grota considerada uma região de difícil acesso Do outro lado do Complexo na Fazendinha entraram carros anfíbios cedidos pelos Fuzileiros Navais transportando mais policiais para dentro da favela Prisões e apreensões de drogas eram feitas ao longo do caminho entre elas a do traficante Eliseu Felício de Sousa o Zeu acusado de envolvimento no assassinato do jornalista Tim Lopes Uma hora depois a vitória estava garantida Para a comoção geral às 13h30 policiais do Bope e da Polícia Civil hastearam as bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro na estação de teleférico no alto do Alemão Transmitida pela TV a imagem do pano verde e amarelo tremulando em câ mera lenta acima de três policiais vestidos de preto entraria para a história Mas por motivos diferentes do que se imaginava no calor daqueles dias No decorrer dos anos à medida que desmoronavam os governos de Sérgio Cabral Filho e de seu sucessor Luiz Fernando Pezão a cena dos policiais no alto do Alemão se transformou no retrato de uma ilusão que muitos compraram com facilidade Entre os homens que hastearam as bandeiras estava Marcos Vieira de Souza o Marcos Falcon subtenente e presidente da Escola de Samba Portela acusado de ligação com o jogo do bicho Nas eleições de 2016 Falcon mirava o cargo de vereador mas foi assassinado O crime ficou sem solução e em 2019 esse esquecimento foi explicado Seus autores segundo depoimentos de conhecedores dessa cena criminal integravam um grupo de matadores que agiu por mais de uma década no Rio de Janeiro com a conivência da polícia ganhando muito dinheiro Já o teleférico do Alemão onde a bandeira foi hasteada seria inaugurado em julho de 2011 unindo a favela ao asfalto Em outubro de 2016 deixou de funcionar por falta de pagamento ao consórcio que operava o sistema Quatro anos depois quando este livro foi concluído ainda não havia previsão de que voltasse a funcionar Em 2011 já depois da ocupação o Complexo do Alemão tornouse alvo de policiais mineiros que buscavam apreender armas e drogas dos traficantes para revender a seus rivais Diante dessa fúria pelo espólio de guerra a região ganhou no submundo do crime o apelido jocoso de Serra Pelada As fugas rendiam dinheiro aos policiais garimpeiros como seria revelado na operação Guilhotina deflagrada em fevereiro daquele ano pela Polícia Federal Escutas teriam identificado que uma equipe da Delegacia de Combate às Drogas tinha encontrado 2 milhões de reais no alto do Alemão em uma picape de traficantes durante a famosa fuga da Vila Cruzeiro Como a trama das histórias reais do crime no Rio nunca decepciona o chefe dos mineiros flagrados pela operação era o policial Leonardo Torres conhecido como Inspetor Trovão Durante a incursão de 2007 ao Alemão a que resultou em dezenove mortos ele se tornara símbolo das forças de segurança ao se deixar fotografar na saída da operação com sua roupa camuflada fuzil em uma das mãos e charuto na outra A Guilhotina ainda apontou o envolvimento de policiais com os chefes dos morros da Rocinha comandada por Antônio Francisco Bonfim Lopes o Nem e com o Complexo de São Carlos reduto de Rogério Rios Mosqueira o Roupinol O Inspetor Trovão era um desses anjos da guarda Nem e Roupinol tinham montado uma respeitável estrutura de propinas que durante anos lhes garantiu liberdade Se por um lado as UPPs ajudavam a diminuir a exposição da população aos conflitos por outro criavam novas oportunidades para extorsão uma especialidade dos policiais A grande ficha contudo ainda demorou pelo menos dois anos para cair As UPPs seguiram em expansão até 2014 somando 38 projetos que atingiram 700 mil pessoas em 196 comunidades segundo estimativas do governo Os ecos da propalada vitória no Alemão continuaram reverberando A UPP foi instalada ali em maio de 2012 Em setembro foi a vez da Vila Cruzeiro Quinze dias depois o projeto chegou à Rocinha a maior favela brasileira considerada o segundo teste da segurança pública pósAlemão Antes de receber a UPP assim como havia acontecido no Alemão e na Vila Cruzeiro a Rocinha também foi ocupada por outra operação cinematográfica Ocorrida em novembro de 2011 a ação ganhou o nome de Choque de Paz e envolveu 3 mil homens das polícias e das Forças Armadas além de blindados helicópteros e caveirões A estreita e histórica relação entre o tráfico da Rocinha e policiais mineiros porém deu margem a que negociações se desenrolassem nas sombras mesmo depois do constrangimento causado pela operação Guilhotina Informações sobre o dia do ingresso no morro chegaram aos traficantes À s vésperas da operação Choque de Paz iniciaramse as artimanhas para a fuga com a ajuda de alguns policiais Nem o chefe do tráfico na Rocinha contudo seria preso tentando fugir escondido no portamalas de um Corolla preto onde estavam seu advogado e um funcionário do consulado do Congo O carro foi parado numa blitz no bairro da Lagoa Os policiais pediram que o portamalas fosse aberto mas o funcionário do consulado alegou imunidade diplomática e disse que só abriria na delegacia No caminho segundo os policiais os dois teriam oferecido 30 mil reais para liberarem o carro Os policiais decidiram abrir o portamalas e descobriram o traficante lá dentro exibido como troféu para a imprensa Antes disso de manhã três policiais civis e dois ex PMs tinham sido presos por fazerem a escolta de cinco traficantes em fuga Entre eles estava Anderson Rosa Mendonça o Coelho chefe do tráfico no Complexo do São Carlos Em fevereiro do mesmo ano na véspera da ocupação do Morro de São Carlos Coelho havia sido flagrado em escuta com um dos policiais presos pedindo ajuda para transportar quinze fuzis munição e drogas para a Rocinha Indignado com a traição que o levou a ser descoberto no portamalas Nem ao depor na Polícia Federal afirmou que metade de seu faturamento milionário na venda de drogas era usado para pagar arregos Apesar dos diversos aspectos positivos das UPPs os limites de sua política tornaramse evidentes com o correr dos anos As 700 mil pessoas contempladas com o projeto afinal representavam apenas 4 da população do estado e um terço dos moradores de favelas Isso trouxe desequilíbrio ao submundo do crime empurrando milícias e facções para territórios ainda não alcançados como a Baixada Fluminense e outras cidades e bairros do Rio de Janeiro O consumo e o lucro do tráfico de drogas seguiam altos As armas pesadas permaneciam nas mãos dos que participavam desses negócios Todos os vícios da estrutura policial se mantinham intactos A situação piorou com a falência fiscal do governo do Rio momento em que a insustentabilidade do projeto das unidades pacificadoras se evidenciou Havia investimentos desproporcionais em efetivos policiais nos territórios de UPPs que contavam com 9 mil homens ou 20 do efetivo mesmo atendendo uma fatia bem menor da população Como resultado o Rio de Janeiro chegou a 2016 liderando os investimentos em segurança pública entre as 27 unidades da Federação com 16 do orçamento investido na pasta em relação ao total São Paulo por exemplo investiu 57 no mesmo ano e gastando 525 reais por habitante São Paulo gastou 253 reais por habitante11 O problema não eram os gastos elevados mas o investimento em uma polícia sem controle que continuava a protagonizar ações criminosas e a comandar quadrilhas Em decorrência disso a situação se inverteu a partir de 2013 e os homicídios voltaram a crescer depois de sete anos de queda entre 2007 e 2012 as taxas no estado caíram de 497 homicídios por 100 mil habitantes para 287 A partir de 2013 subiram outra vez com quarenta homicídios por 100 mil habitantes em 201712 Em junho de 2013 manifestações populares ganharam as ruas de diversas cidades brasileiras em protestos contra o aumento do valor da passagem de ônibus No Rio de Janeiro os protestos se avolumaram depois do desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza morador da Rocinha quando a UPP não tinha ainda completado um ano na região Na noite de 14 de julho Amarildo havia chegado de uma pescaria e estava em casa limpando o peixe quando precisou sair para comprar tempero no supermercado No caminho foi abordado por policiais A ação foi filmada assim como o embarque de Amarildo na viatura Segundo a versão da polícia o pedreiro foi levado até um contêiner da UPP para prestar esclarecimentos e depois liberado Amarildo contudo desapareceu Policiais que trabalhavam no local no dia da abordagem afirmaram nas investigações sobre o caso que ele tinha sido torturado e não resistido aos choques e afogamentos porque era epiléptico O nome do pedreiro ganhou o mundo com uma campanha nas redes sociais que lançava ao público a pergunta Onde está Amarildo O Rio não seria mais o mesmo com a entrada de novos personagens em cena A popularização dos celulares e das redes sociais transformou a cobertura da violência e o papel dos moradores das comunidades do Rio de Janeiro que se tornaram verdadeiros correspondentes em locais relegados a segundo plano pela imprensa A corrente de publicações nas redes sociais cobrando respostas sobre o paradeiro de Amarildo mobilizou a sociedade civil artistas e autoridades produzindo uma pressão que levou à condenação de oito policiais envolvidos no desaparecimento do pedreiro Outras vozes importantes emergiram nas comunidades ajudando a furar a lei do silêncio imposta pelas tiranias armadas dentro das favelas O estudante Rene Silva morador do Morro do Adeus era uma voz potente desde 2010 depois da ocupação do Complexo do Alemão Na época ele tinha dezessete anos e postou em suas redes sociais imagens da entrada das tropas na comunidade Sua conta no Twitter passou a ser seguida por celebridades e jornalistas Rene se tornou uma fonte para quem não morava no morro averiguar informações inacessíveis Durante a invasão policial de 2010 seus duzentos seguidores passaram em poucas horas a 15 mil Em 2020 eram mais de 300 mil Rene Silva ajudou a abrir portas para outras vozes como a de Raull Santiago também do Alemão e a de Edu Carvalho da Rocinha Os tuítes publicados de dentro dos territórios ajudaram a criar a plataforma Fogo Cruzado que contabiliza com a ajuda dos próprios moradores os tiroteios por bairro e por cidades tiroteios muitas vezes provocados por operações policiais Os efeitos desses conflitos para a população ganharam uma nova perspectiva no debate público Essas novas vozes e ferramentas foram importantes para mostrar por meio de fatos e dados objetivos as fragilidades de uma política pública que em dado momento pareceu redentora Lideranças vindas desses territórios ganharam representação política A crítica à política de guerra às drogas contribuiu para a eleição em 2016 da vereadora Marielle Franco nascida e criada no Complexo da Maré Quando Marielle concorreu tinha a expectativa de obter 10 mil votos e ficar mais forte para a eleição seguinte Mas conseguiu mais de 46 mil votos e se elegeu no topo da lista com eleitores em todos os bairros do Rio A força de sua peça de campanha um vídeo simples produzido nas ruas da Maré trazia uma mensagem poderosa Sua imagem sorridente e firme de mulher negra mãe favelada lésbica propondo ações coletivas parecia desconstruir em poucos minutos o mundo da testosterona e de confrontos fatais entre homens Marielle morreu assassinada no dia 14 de março de 2018 junto com o motorista Anderson Gomes O crime marcou a história do Rio de Janeiro e do Brasil Na véspera de seu assassinato Marielle tinha denunciado em sua conta do Twitter mais um caso de violência policial cuja vítima era um agente de coleta seletiva e funcionário da Fiocruz assassinado em Jacarezinho Ela escreveu Mais um homicídio de um jovem negro que pode estar entrando para a conta da PM Matheus Melo estava saindo da igreja Encerrava a postagem com uma pergunta fundamental Quantos mais vão precisar morrer para que esta guerra acabe 6 Marielle e Marcelo Era uma noite quente na sala lotada de mulheres que se abanavam com leques de papelão em frente às amplas janelas do segundo andar do sobrado centenário da Casa das Pretas no bairro boêmio da Lapa Cinco cadeiras haviam sido colocadas na frente da sala para que a vereadora Marielle Franco pudesse mediar uma roda de conversa chamada Mulheres Negras Movendo Estruturas Era por volta das sete da noite de 14 de março de 2018 Vestida com uma camiseta azulescura calça florida e brincos azuis com o cabelo descolorido e armado Marielle estava radiante e recebia com entusiasmo quatro jovens cheias de carisma para falar sobre tecnologia literatura música comunicação e ativismo temas que depois derivaram para assuntos ligados a espiritualidade amor autoestima e poesia No local havia um espaço infantil e recreativo para que as mães pudessem levar seus filhos A presença de mulheres e crianças juntas durante a roda de conversa fazia daquele evento uma ocasião especial capaz de fortalecer as esperanças diante da crise política e econômica que se abatia sobre o Rio de Janeiro e o Brasil A lista de problemas era imensa O exgovernador Sérgio Cabral Filho estava preso desde novembro de 2016 por envolvimento em escâ ndalos de corrupção apontados pela operação Lava Jato Três meses antes de sua prisão em 31 de agosto a presidente Dilma Rousseff havia deixado o cargo depois de passar por um processo de impeachment O novo governador do Rio Luiz Fernando Pezão tinha assumido um estado quebrado e suspendeu o pagamento do funcionalismo público A situação parecia fugir ao controle e o aumento das taxas de homicídio era o termômetro a mostrar a temperatura da crise A volta da violência e do medo entre a população levou Pezão a pedir socorro ao governo federal nas mãos do então presidente Michel Temer A ajuda veio em 16 de fevereiro de 2018 sob a forma de uma intervenção militar comandada por um general do Exército que assumiu a responsabilidade sobre a segurança pública do estado A presença das Forças Armadas no Rio de Janeiro última cartada do governo Temer para se fortalecer antes das eleições daquele ano tinha direcionado os holofotes da imprensa para o estado Na roda de conversa daquela noite na Casa das Pretas esses temas contudo ficaram de lado A reunião trouxe pautas do movimento negro e feminista Naquele 14 de março a poeta Carolina de Jesus completaria 104 anos o que abriu oportunidade para as mulheres falarem de suas bisavós avós mães em reconhecimento à importâ ncia delas para a formação de suas identidades Marielle citou a origem nordestina de sua bisavó vinda de uma região quilombola entre Baía da Traição e Alagoa Grande na Paraíba e falou da chegada de seus avós ao Rio que foram um dos primeiros moradores da Favela da Maré ainda na época das palafitas A luta das mulheres da família teve continuidade com sua mãe Marinete que a criou junto com o pai Antônio Francisco garantindo que as duas filhas Marielle e Anielle chegassem à faculdade A filha de Marielle Luyara que estava com dezenove anos e acompanhava com interesse os debates da mãe seguia com o legado de luta Naquela noite Luyara não tinha ido ao encontro de mulheres porque estava com conjuntivite Depois de uma hora e meia de conversa Marielle encerrou o debate reproduzindo uma frase da poeta feminista norteamericana Audre Lorde Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas Agradeceu citou o nome de dez mulheres que ajudaram a organizar o evento e se despediu Vamo que vamo Vamos juntas ocupar tudo Eram quase nove da noite Ela ia direto para casa onde Mônica Benício sua companheira a aguardava para jantar Foi sua última aparição pública antes de ser assassinada A morte de Marielle abalou as estruturas fluminenses com a força de um terremoto tirando o chão dos ativistas que estavam no front da luta pelos direitos humanos e contra a violência policial Marielle saiu da Casa das Pretas acompanhada de sua assessora e amiga Fernanda Chaves As duas atravessaram a rua e entraram no carro que esperava por elas um Agile estacionado em frente ao sobrado com o motorista Anderson Gomes ao volante As duas sentaram no banco de trás para conversar sobre a agenda do dia seguinte No trajeto passaram a ver e a responder as mensagens de WhatsApp que haviam sido enviadas enquanto participavam do encontro Nenhum dos três percebeu que estavam sendo seguidos por um Cobalt prata Perto das 21h10 cerca de dois quilômetros e meio depois quando o carro da vereadora passava pelo cruzamento da rua Joaquim Palhares com a João Paulo I no Estácio o Cobalt emparelhou com o Agile e o atirador que estava no banco de trás com uma única rajada disparou quatro tiros na cabeça de Marielle e três na cabeça e nas costas de Anderson Fernanda se abaixou e foi ferida pelos estilhaços do vidro do carro Marielle morreu antes mesmo de ser levada ao hospital A dimensão política do assassinato se revelou já no dia seguinte quando uma multidão se concentrou em frente às escadarias da Assembleia Legislativa do Rio para protestar cobrando o esclarecimento do crime e a punição dos autores No mesmo dia ocorreram protestos em São Paulo Salvador Belo Horizonte e Brasília A indignação se espalhou e Marielle se tornaria símbolo da resistência contra a violência policial o machismo e o racismo Para agravar a situação política o assassinato ocorreu no primeiro mês da intervenção federal no Rio de Janeiro Parecia lançar um desafio direto aos militares ao governo federal à imprensa Como se os assassinos dissessem Não importa que a atenção de todo Brasil esteja voltada para o Rio Quem manda neste estado somos nós Num primeiro momento foi impossível dissociar o duplo homicídio do contexto político da intervenção Marielle seria a relatora de uma comissão instalada na Câ mara de Vereadores do Rio para acompanhar e fiscalizar a intervenção Um dia antes de ser assassinada ela tinha denunciado nas redes sociais a violência das operações policiais Marielle ainda fazia parte da rede de comunicadores ativistas que acompanhavam o dia a dia dos morros e da cidade pelo Observatório da Intervenção Por que milicianos matariam Marielle justamente num momento político de tamanha visibilidade Desde o começo mesmo com as investigações sobre o assassinato ainda em curso os principais suspeitos eram integrantes das milícias O uso da submetralhadora HK MP5 e de silenciadores a rajada solitária acertando bem no alvo a ausência de imagens de câ meras de rua para filmar o crime e os assassinos entre outros indícios apontavam para o trabalho de profissionais A ação porém não parecia fazer sentido do ponto de vista estratégico dos milicianos Em anos anteriores desde a instalação da CPI das Milícias os grupos paramilitares tinham aprendido a importâ ncia de se manter discretos para continuar faturando em liberdade com a conivência das autoridades1 Até mesmo o tráfico de drogas sempre evitou confusões durante grandes eventos na cidade como no PanAmericano na Copa do Mundo e nas Olimpíadas para evitar prejuízos Se fosse uma vingança política ou se Marielle ameaçasse negócios específicos por que agir e chamar a atenção em plena intervenção federal Seria algo que demandava ação tão urgente Ou o duplo homicídio tinha justamente o objetivo de atrapalhar ou desmoralizar a intervenção Independentemente das motivações não restava dúvida de que o crime havia lançado um desafio para as autoridades locais e para as Forças Armadas Era urgente uma resposta à altura das instituições que haviam sido confrontadas A procuradorageral da República Raquel Dodge e o ministro da Segurança Pública Raul Jungmann sentiram o baque e tentaram entrar com um pedido de deslocamento de competência para federalizar as investigações mas o Ministério Público Estadual bateu o pé dizendo que as autoridades estaduais iriam desvendar o crime De forma ingênua achei que haveria empenho e que o interventor federal o general Walter Braga Netto respeitado no Exército excoordenador de segurança dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos excomandante Militar do Leste e do EstadoMaior havia sido ferido em seus brios Cheguei a acreditar que a resposta seria dura para as milícias Não foi o que aconteceu Mesmo antes da afronta na manhã do dia em que Marielle foi assassinada já havia sinais de que os milicianos não respeitavam o comando do Exército O general Mauro Sinott chefe de gabinete da intervenção deu início naquele 14 de março a inspeções do Exército em batalhões da Polícia Militar O escolhido foi o 14o Batalhão em Bangu que tinha um histórico de envolvimento com as milícias locais Em 2014 o comandante do batalhão e 23 policiais foram presos sob a acusação de proteger paramilitares que cobravam propinas de empresas de ônibus vans mototaxistas e comerciantes do bairro A sociedade civil pedia que a intervenção deixasse de lado o desgastado teatro de guerra contra comunidades pobres e se concentrasse nos comandos nos departamentos e delegacias onde as milícias eram influentes Quando o general Sinott chegou ao batalhão acompanhado de oficiais do Exército para passar em revista a tropa o comandante do 14o deu ordens para que os policiais batessem continência Parte da tropa não se mexeu criando constrangimento entre os oficiais presentes O comandante precisou repetir a ordem com energia para ser obedecido2 Nos primeiros meses depois do assassinato de Marielle mesmo com a imensa repercussão a Delegacia de Homicídios e o Ministério Público do Rio ainda não tinham nenhuma pista dos assassinos as investigações pareciam andar em círculo administrando a pressão em banhomaria sem que os interventores se incomodassem com a falta de informações Olhando para trás a situação ganha gravidade Passados dois anos do crime os depoimentos e as informações que surgiram nas investigações mostram que os suspeitos eram conhecidos e já haviam matado outras pessoas de maneira parecida Mesmo com o cuidado dos matadores e mandantes para não deixar rastros materiais da autoria o duplo assassinato estava longe do que se costuma chamar de crime perfeito O grande trunfo dos assassinos nesse e em outros homicídios cometidos há pelo menos uma década no Rio segundo depoimentos obtidos pela investigação era a relação estreita entre os integrantes dos grupos de assassinos com policiais civis do Rio que negociavam arregos para manter impunes homicídios como os de Marielle e Anderson Policiais da Divisão de Homicídios como revelaram testemunhos e vários inquéritos e processos sem solução também tinham um modelo de negócios para faturar com o submundo do crime mais precisamente minerando a contravenção bicheiros e donos de maquininhas de caçaníquel associados a assassinos e milicianos Os tiras ganhavam para passar informações aos criminosos sobre as operações em curso o que ajudava os assassinos a destruir provas e fugir Os policiais também faziam vista grossa aos assassinatos cometidos pelo grupo e embuchavam a autoria de homicídios não esclarecidos aos inimigos das quadrilhas que os pagavam Embuchar é outra palavra do dia a dia do submundo policial carioca Como a polícia científica e a perícia do Rio estão sucateadas em vez de fundamentadas em testes de DNA e análise de digitais boa parte das condenações baseiamse em depoimentos e testemunhas de acusação escutas telefônicas registros de antenas de celular imagens de câ meras Esqueça as séries norteamericanas de investigação policial Na vida real da investigação brasileira basta arrumar uma testemunha convincente para embuchar um homicídio em um desafeto mesmo quando ele é inocente do crime do qual é acusado Para faturar esse modelo de negócios se aproveitou das fragilidades estruturais na investigação de homicídios A sagacidade e a malícia da polícia do Rio para faturar com o crime sempre surpreendia Em São Paulo por exemplo o Departamento de Homicídios sempre foi considerado um local para abnegados apaixonados pela investigação porque segundo a máxima de lá morto não paga propina Policiais paulistas malintencionados acabavam empurrados para as delegacias de bairro ou para as especializadas em drogas ou crimes patrimoniais No Rio porém a impunidade homicida passou a ter um preço assim como os assassinatos que haviam se tornado um serviço bem pago com a conivência dos policiais que deveriam investigálos e que aproveitaram as oportunidades financeiras oferecidas neste mercado da morte Essa história da omissão da Divisão de Homicídios começou a emergir um mês e meio depois do assassinato de Marielle e Anderson Naquele momento as investigações ainda não tinham chegado a nada A cobrança da sociedade civil por respostas das autoridades crescia No manual dos investigadores de homicídios é lugarcomum que as primeiras 48 horas após o crime são decisivas para colher indícios e testemunhos do que aconteceu Abril já estava chegando ao fim sem que houvesse avanço digno de nota No dia 24 daquele mês porém começaram a aparecer os nomes dos primeiros suspeitos Mas não passava de uma grande armação O policial militar e miliciano Rodrigo Jorge Ferreira o Ferreirinha prestou um depoimento informal ao delegado federal Helio K hristian em que relatou o envolvimento de Orlando Oliveira de Araújo o Orlando Curicica no assassinato de Marielle O crime teria sido praticado sob as ordens do vereador Marcello Siciliano PHS Dias depois Ferreirinha confirmou as acusações em três depoimentos feitos à Divisão de Homicídios A farsa foi bem montada Siciliano tinha diversas transações imobiliárias em Vargem Grande onde assessores de Marielle haviam estado para discutir regularização fundiária com associações locais para evitar o apetite dos grileiros Curicica que estava preso tinha uma longa ficha corrida e caso negasse era alguém a ser facilmente desacreditado A testemunha também deu os nomes daqueles que teriam executado os disparos Os assassinos seriam um policial do 16o Batalhão área do Alemão e Alan de Morais Nogueira um expolicial do 22o área da Maré que estariam no Cobalt prata junto com outros dois integrantes da quadrilha de Curicica Este último também havia sido implicado num duplo homicídio ocorrido em fevereiro de 2017 que vitimou dois policiais A motivação do assassinato de Marielle segundo o depoimento de Ferreirinha seriam as ações sociais da vereadora em áreas de milícias As conversas entre Curicica e Siciliano afirmou a testemunha tinham começado em junho de 2017 Em outubro Curicica foi preso com uma arma fria por suspeita de homicídio Teria assim dado a ordem do assassinato de dentro da prisão Até mesmo o fornecedor do celular Ferreirinha mencionou A acusação parecia redonda e ganhou ampla repercussão na imprensa como era de esperar Mas a tentativa de embuchar os dois homicídios que mais haviam mobilizado a opinião pública nos últimos tempos em figuras suspeitas desmoronou rapidamente graças aos esforços de Curicica para se defender E para isso resolveu delatar pecado grave nesse submundo regido pela lei do silêncio Mas Curicica não tinha nada a perder Preso em Bangu 9 na ala reservada a milicianos encurralado percebeu que precisava reagir Mesmo contra a sua vontade era a única forma de sobreviver Em 9 de maio um dia depois de a acusação de Ferreirinha ter se tornado pública Curicica conseguiu publicar uma carta no jornal O Dia alegando inocência e acusando Ferreirinha de não ter credibilidade e de chefiar as milícias do Morro do Banco em parceria com o tráfico de drogas Também se colocou à disposição das autoridades para contribuir com a elucidação do caso Marielle e Anderson Em represália no dia seguinte Curicica foi transferido para Bangu 1 a unidade de segurança máxima do sistema penitenciário do Rio Em tese havia motivos para esse rigor pois Ferreirinha vinha dizendo ter medo de ser assassinado por ordens de Curicica Em Bangu 1 isolado de todos Curicica não se deu por vencido Entrou em greve de fome para ser ouvido pelas autoridades do Rio Segundo relato posterior de Curicica ao Ministério Público Federal ele foi procurado pelo encarregado do caso na Divisão de Homicídios o delegado Giniton Lajes que foi firme em cobrar dele a confissão de haver matado Marielle e Anderson Curicica continuou sustentando sua inocência e disse ter informações que ajudariam a chegar à autoria dos homicídios citando a semelhança deles com outros três casos não esclarecidos cujas tramas ele conhecia de dentro Curicica disse que o delegado Giniton não quis tomar seu depoimento nem ouvir o que ele tinha a contar Ainda ameaçou embuchar outros homicídios na conta dele e transferilo para um presídio federal Curicica continuou em greve de fome e um dia recebeu a visita de um promotor do Ministério Público Estadual que apenas revistou sua cela e foi embora No período de um mês foi implicado em outros três homicídios Em 19 de junho transferiram Curicica para a Penitenciária Federal de Mossoró em regime de segurança máxima No presídio no Rio Grande do Norte distante dos chefes da segurança pública fluminense achou que estava acabado Mas foi ali finalmente que conseguiu ser ouvido Em setembro de 2018 a entrada da Polícia Federal da ProcuradoriaGeral da República PGR e do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado Gaeco do Ministério Público do Rio tirou as investigações da cômoda inércia em que se encontravam A partir dos depoimentos de Curicica dados em Mossoró começaram a aparecer histórias envolvendo suspeitos reais do crime assim como ligações de alguns deles com integrantes da Segurança Pública do Rio e com a Divisão de Homicídios Seis meses depois em 12 de março de 2019 chegouse a resultados concretos Os expoliciais militares Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz foram presos com indícios consistentes de participação no assassinato da vereadora Marielle e de seu motorista Anderson Antes da prisão de Lessa e de Élcio de Queiroz em janeiro de 2019 a parceria entre os agentes federais e o Gaeco havia resultado na prisão de diversos milicianos ligados ao capitão Adriano Magalhães um dos coordenadores do Escritório do Crime grupo de assassinos com extensa ficha de cadáveres no portfólio a maior parte das mortes ligada a disputas entre donos de máquinas de caçaníqueis Lessa foi acusado pela Divisão de Homicídios e denunciado pelo Ministério Público Estadual como autor dos disparos que mataram Marielle e Anderson Élcio de Queiroz compadre de Lessa e amigo de infâ ncia da mulher do matador foi chamado para dirigir o Cobalt prata Os tiras da Homicídios finalmente colhiam indícios que colocavam os dois suspeitos na cena do crime O assassinato de Marielle e Anderson como Curicica alertava só poderia ser compreendido dentro de um contexto mais amplo A história do submundo do crime do Rio e do envolvimento de seus personagens com as polícias ganhava novos capítulos e detalhes escandalosos No início de sua trajetória na Polícia Militar o sargento Ronnie Lessa era um jovem disposto a arriscar a vida em nome de certos ideais mas no fim foi acusado de se tornar um matador mercenário a serviço da contravenção O mais interessante nesse percurso é que o desvio não pode ser considerado um desvirtuamento de suas crenças da juventude Em 1988 com dezoito anos ele serviu o Exército e no ano seguinte se filiou à Scuderie Le Cocq o célebre grupo de policiais matadores criado para vingar a morte do detetive Milton Le Cocq O grupo também cultuava o símbolo da caveira e pregava o extermínio de bandidos agindo em sociedade com os bicheiros Até ser preso em seus quase trinta anos de dupla jornada no crime Lessa preservou o prestígio entre seus pares e a fama de herói Nunca havia sido indiciado pela polícia em casos ligados ao jogo do bicho apesar de seus colegas saberem de suas histórias com a contravenção Tornouse um homem rico morava numa mansão no mesmo condomínio do presidente da República Jair Bolsonaro na Barra da Tijuca andava de carro blindado e tinha uma lancha em sua casa de praia em Angra dos Reis A pecha de policial assassino e mercenário nunca abalou sua imagem entre seus colegas que o viam como um profissional disposto a atuar na linha de frente da guerra urbana e a matar em defesa dos valores de seus aliados Lessa tinha três caveiras tatuadas no peito A fama de matador implacável era motivo de orgulho sentimento compartilhado com seus parceiros de trabalho e seus amigos O ingresso de Lessa na Polícia Militar ocorreu em novembro de 1991 No ano seguinte entrou para o Batalhão de Choque Entre 1993 e 1997 atuou no Bope mesmo sem ter feito o curso de operações táticas exigido para a função Mostrava desprendimento e coragem nos tiroteios dos morros e sua habilidade com armamentos pesados lhe conferiu a fama de máquina fria e precisa de matar Em 2003 Lessa se tornou adido da Polícia Civil na antiga Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos extinta em 2011 depois de escâ ndalos envolvendo negociatas entre policiais e criminosos O trabalho conjunto entre policiais civis e militares criado para aproximar as duas corporações no combate a sequestros foi replicado em outras delegacias especiais e tornouse uma incubadora de talentos para a contravenção Juntava na mesma unidade a disposição guerreira dos militares com as históricas conexões dos policiais civis com o jogo do bicho O lugar ideal para os bicheiros recrutarem mão de obra Foram formados nesses núcleos alguns dos personagens mais temidos do submundo do crime no Rio de Janeiro A vaga de Lessa na contravenção se abriu num momento tumultuado para os chefões do jogo A geração dos patriarcas do bicho que havia se organizado em torno de um conselho para dividir territórios e arbitrar conflitos o Clube Barão de Drummond estava envelhecendo Com a chegada das máquinas de caçaníquel os negócios continuavam lucrativos mas a nova geração parecia não se importar com a honra dos patriarcas e vivia se engalfinhando por dinheiro e poder Alguns herdeiros desses espólios milionários travaram disputas sangrentas desarticulando um equilíbrio de décadas O crescimento desses confrontos abriu mercado para os matadores com treinamento de guerra capazes de oferecer não apenas o homicídio de desafetos mas também a impunidade em razão da parceria com aqueles que deveriam investigar seus crimes Futuros milicianos e militares parceiros do bicho foram recrutados entre os adidos da Delegacia Antissequestro DAS De 1995 a 1997 na gestão do delegado Hélio Luz na Polícia Civil a DAS havia sido referência na diminuição dos sequestros na cidade Nos anos 2000 quando esse tipo de crime ficou sob controle alguns policiais estreitaram a parceria com o bicho junto com outras delegacias especiais Entre os nomes saídos desses núcleos estava o sargento Marcos Vieira de Souza o Falcon assassinado em 2016 e que em 2010 havia hasteado as bandeiras do Brasil e do Rio no topo do Complexo do Alemão Outro foi o sargento reformado Geraldo Antônio Pereira assassinado no mesmo ano que Falcon quando atuava como empresário de máquinas de caçaníquel e importante miliciano da zona oeste E também foi o caso do próprio Orlando Curicica que se tornou informante do grupo de policiais da DAS depois de expulso da PM Esses policiais se aproximaram da contravenção e se aproveitaram das possibilidades da gestão miliciana que juntava o interesse pelas receitas do jogo com o domínio territorial exercido pelos paramilitares Além dos negócios tradicionais taxa de segurança venda de gás gatonet essa colaboração garantia exclusividade para máquinas de caçaníquel dos grupos parceiros e também outras tarefas conforme as habilidades de cada homem O assassinato era uma das mais valorizadas A aproximação de Ronnie Lessa com a contravenção ocorreu em meados dos anos 2000 quando ele foi trabalhar na segurança de Rogério de Andrade sobrinho do célebre bicheiro Castor de Andrade As brigas pela herança do tio provocaram rachas e homicídios dentro da família A confusão dos herdeiros começou logo depois da morte de Castor em 1997 O mais ilustre bicheiro carioca morreu de enfarte aos 71 anos jogando cartas Dividiu a herança em três partes para o sobrinho Rogério de Andrade o filho Paulo Roberto de Andrade o Paulinho e a filha Carmem Lúcia Em outubro de 1998 Paulinho foi assassinado junto com seu segurança As investigações apontaram Rogério como suspeito do mando Os anos seguintes foram marcados por uma sucessão de assassinatos o que causou violentos conflitos entre as duas gangues da família e cerca de cinquenta mortes segundo estimativas da polícia Um mercado promissor para assassinos profissionais Com sua grife de excaveira Lessa soube aproveitar a oportunidade Em outubro de 2009 Lessa integrava o 9o Batalhão da Polícia Militar e fazia bico como segurança de Rogério de Andrade quando um atentado a bomba o fez perder a perna esquerda Ele tinha acabado de entrar em seu carro uma Hilux quando a bomba explodiu embaixo da picape O carro andou cem metros e parou ao bater em um poste Lessa tentou sair mas ficou preso no cinto de segurança O sargento implantou uma prótese na perna amputada e se aposentou da polícia Mas seguiu no crime Em abril de 2010 uma bomba com dispositivo semelhante à que mutilara Lessa explodiu no carro de Rogério de Andrade um Toyota Corolla com blindagem para resistir a disparos de fuzil A bomba também tinha sido colocada sob o veículo no lado do banco do motorista Naquele dia quem dirigia o carro era o filho de Rogério Diogo Andrade de apenas dezessete anos Ele morreu na hora Rogério que estava no banco de passageiro saiu ferido Não restavam dúvidas de que o acordo entre os patriarcas do bicho estava estremecido Os contraventores do Rio tinham expandido as fronteiras dos jogos atuavam em cassinos da América do Sul e tinham estreitado contatos com máfias internacionais como a Bratva russa e a Família Abergil israelense Em compensação os herdeiros iniciavam uma nova fase de disputas e vinganças que envolvia não apenas membros das famílias mas também outros clãs e quadrilhas As redes da contravenção haviam se diversificado aliados e rivais tinham origens criminais diversas Os grupos de policiais matadores comprometidos com milícias em conflitos por territórios ganhavam espaço na rede do bicho no mercado das maquininhas de caçaníquel e do crime em geral3 Ronnie Lessa por exemplo tinha frentes de negócios diversas para aproveitar suas conexões com o bicho e habilidades de matador Investigações apontaram ligações do exmilitar com as milícias de Rio das Pedras e de Gardênia Azul Entre seus negócios legais montou uma academia de ginástica na principal rua de comércio de Rio das Pedras e um estúdio de tatuagem Mas ganhava dinheiro de verdade com atividades ilegais Era apontado como sócio de um bingo clandestino na Barra com mais de oitenta máquinas de caçaníquel Em setembro de 2018 depois da morte de Marielle investigações indicaram que ele chegou a reclamar com um dos chefes dos investigadores do 16o distrito policial Jorge Luiz Camillo Alves a liberação de máquinas apreendidas no bingo O investigador Camillo Alves havia sido preso na fase dois da operação Intocáveis por suas ligações com a quadrilha que coordenava as construções de apartamentos irregulares em Muzema chefiada pelo capitão Adriano da Nóbrega Os investigadores identificaram que Lessa havia assumido negócios do ex vereador e bombeiro Cristiano Girão durante o período em que ele esteve preso acusado de chefiar a milícia de Gardênia Azul Como se não bastasse o atirador estava sendo investigado pela intermediação no contrabando de armas Quando foi preso pela morte de Marielle a polícia encontrou peças para armar 117 fuzis calibre 556 que Lessa assumiu serem suas A Justiça estimou seus bens em 7 milhões de reais e bloqueou parte desse montante Foi esse ambiente explosivo repleto de criminosos bem armados poderosos e ricos imbricados havia décadas nas instituições estaduais de segurança que Orlando Curicica se ofereceu para ajudar a desvendar Curicica também conhecia bastante a vida do capitão Adriano Magalhães da Nóbrega que havia atuado como segurança de familiares que disputavam o espólio do bicheiro Waldemir Garcia o Miro Segundo Curicica o capitão funcionava como um headhunter de matadores profissionalizando a morte por encomenda e criando oportunidades rentáveis para pistoleiros urbanos Todo esse cenário de disputas e assassinatos era conhecido de perto por policiais civis e investigadores da Divisão de Homicídios e havia produzido uma longa lista de cadáveres entre os quais muitos eram seus próprios pares Várias mortes de figuras importantes contudo continuavam sem autoria definida Havia um modus operandi nesses grupos de matadores quase uma assinatura uso de submetralhadora carro clonado ausência de vestígios assassinatos precisos com uma rajada Muitos participantes eram conhecidos Mesmo com tantos sinais a suspeita de envolvimento de integrantes desse consórcio de matadores no assassinato de Marielle e Anderson só começou a ser levada a sério pelas investigações a partir de agosto de 2018 cinco meses depois do crime com a entrada de agentes federais e do Gaeco no caso Curicica que imaginava ser enterrado vivo no presídio federal de Mossoró depois de muito insistir conseguiu falar com o corregedor dos presídios e com o diretor da penitenciária e enfim ser ouvido pelo Ministério Público Federal No dia 22 de agosto dois procuradores federais foram tomar o depoimento de Curicica Ele contou sobre as tentativas fracassadas para esclarecer sua inocência no caso Marielle disse que ele e sua família no Rio estavam em risco que tinha muitas informações e que estava preocupado Não queria ser embuchado com diversos outros casos de homicídios As histórias que ele contou se verdadeiras tinham potencial para encaixar muitas peças daquele quebracabeça Os procuradores que o ouviram contudo possuíam pouca familiaridade com o cenário do crime no Rio Uma semana depois no dia 1o de setembro o Gaeco finalmente foi designado pelo Ministério Público do Rio para acompanhar as investigações do crime a pedido da nova promotora do caso Letícia Emile Ato contínuo Letícia e a chefe do Gaeco Simone Sibílio começaram a articular a viagem para Mossoró As duas ouviram Curicica no dia 25 de setembro e saíram de lá com novas frentes para investigar o submundo do Rio O papel do Escritório do Crime os homicídios ocorridos no passado a ligação com o jogo do bicho as propinas pagas à Divisão de Homicídios essas informações davam nova perspectiva à investigação do percurso trilhado pelas milícias Naquele dia o nome de Ronnie Lessa surgiu pela primeira vez no radar das autoridades Curicica contudo acreditava que seu esforço seria em vão Só que a DH Divisão de Homicídios tem o seguinte pensamento Só temos tempo para acusar o Orlando e outros acusados eles não querem por quê Porque eles vão se acusar Curicica tentou explicar às duas como consta no depoimento dele a que tive acesso Entendeu Dissolver o Escritório do Crime Eu tenho elementos que botam todos eles na cadeia A promotora Letícia perguntou o que ele sabia sobre a morte de Marielle Curicica afirmou que o ideal era começar ao contrário desvendando primeiro outras mortes semelhantes à dela Depois discorreu sobre os territórios de atuação dos grupos de matadores Toda a área do 18o Rio das Pedras Curicica Gardênia Toda aquela área porque tem a Gardênia né Tem o Lessa Vocês sabem do Lessa perguntou às promotoras Não respondeu Simone Do sem perna insistiu Curicica referindose à prótese na perna esquerda de Lessa O que a bomba explodiu dentro do carro dele e perdeu a perna o policial militar Simone voltou a dizer que não o conhecia Curicica continuou Foi baleado na UPP tem dois meses quatro meses cinco meses mencionando uma tentativa de assalto em 27 de abril quando ele levara um tiro no pescoço um mês e meio depois da morte de Marielle e Anderson Não se sei não estou me recordando agora honestamente não estou me recordando agora disse Letícia Curicica falou sobre os potenciais envolvidos Então o leque é muito grande entendeu Que eu até queira ajudar vocês eu até quero mas é um monte de coisa envolvida nisso principalmente proteção à minha família De início Curicica desconfiou das promotoras por elas terem vindo do MP do Rio Mas as duas conquistaram a sua confiança Desde que Curicica tinha começado a falar com as autoridades federais passou a sofrer retaliações como previu que aconteceria Ele soube pelas promotoras que o caminhão de água que pertencia a Thaís sua mulher tinha sido incendiado no dia anterior O incêndio havia ocorrido no Terreirão área onde Curicica tinha influência antes de ser preso Depois de ser envolvido no caso Marielle foi acusado de outros homicídios que ele alegou serem casos embuchados Desde que se mostrou disposto a colaborar nas investigações do assassinato de Marielle e Anderson ele disse às promotoras tinha sido acusado de seis novos homicídios Contar o que sabia era a única forma de se proteger dessa avalanche Ele contou sobre três homicídios o que ajudou a apontar os suspeitos da morte de Marielle e Anderson O primeiro foi o assassinato de Haylton Escafura em junho de 2017 cinco meses depois de deixar a prisão quando tentava se reerguer no comércio de máquinas de caçaníquel Haylton estava hospedado no Hotel Transamérica na Barra com a namorada a policial militar Franciene de Souza que também morreu Três homens encapuzados armados com pistolas e fuzis entraram pela garagem do hotel e subiram oito andares de escada até o quarto do casal Arrombaram a porta a tiros e executaram Haylton e Franciene que haviam se trancado no banheiro Os disparos de fuzil atravessaram a porta e os dois morreram ao lado do vaso sanitário Apesar das circunstâ ncias escandalosas o crime não foi esclarecido pela Divisão de Homicídios O segundo homicídio relatado por Curicica foi o do subtenente Marcos Falcon o policial que hasteara as bandeiras no Alemão Em setembro de 2016 homens encapuzados invadiram seu comitê de campanha em Madureira uma semana antes da eleição em que concorreria a vereador Em abril daquele ano ele havia sido eleito presidente da Portela Dois atiradores entraram no comitê um ficou no carro e outro fez a guarda do lado de fora Falcon levou quatro tiros de fuzil no peito e na cabeça Apesar da visibilidade política da vítima os assassinos não se intimidaram e o mataram diante de diversas testemunhas A confiança na impunidade se confirmou Quatro anos depois os autores não tinham sido descobertos Em maio do mesmo ano de 2016 quatro meses antes da morte de Falcon três encapuzados mataram o sargento reformado Geraldo Antônio Pereira quando ele saía de uma academia Estava acompanhado de um segurança e do exinspetor Hélio Machado da Conceição o Helinho que ficou ferido Pereira era apontado como um dos principais milicianos da zona oeste Além de extorsão cobranças de taxa e venda de gás atuava no ramo das maquininhas de caçaníquel Era da escola dos policiais mineiros do 18o Batalhão e chegou a ser expulso da polícia em 1997 quando veio a público um vídeo em que ele torturava jovens na Cidade de Deus O escâ ndalo eclodiu na mesma época do rumoroso caso da Favela Naval em São Paulo em que policiais militares foram filmados torturando jovens do bairro Passada a comoção Pereira conseguiu na Justiça reverter a expulsão e voltou a trabalhar na PM Nos anos 2000 tornouse adido da Divisão Antissequestro com Falcon Helinho que estava ao lado da vítima e sobreviveu tinha ficha corrida como integrante da turma do delegado Á lvaro Lins chefe de polícia dos governos Anthony e Rosinha Garotinho Formado por inspetores conhecidos como os inhos o grupo era composto de Helinho Jorginho Fabinho Marinho e Paulinho o bando organizava sob a supervisão de Lins o aluguel de delegacias para delegados e políticos interessados nos arregos de criminosos4 Curicica tornouse funcionário dos negócios criminosos de Pereira em 2007 quando foi chamado para trabalhar como segurança do miliciano Em seguida assumiu o comando das seguranças da milícia em bairros da zona oeste Logo depois do assassinato do chefe Curicica disse que foi à academia onde o crime ocorreu e assistiu às imagens da execução Conseguiu reconhecer um dos atiradores apesar da balaclava que ele vestia Segundo disse às promotoras era o expolicial militar Antônio Eugênio de Souza Freitas o Batoré um dos principais matadores do Escritório do Crime Ele fazia parte do grupo do capitão Adriano da Nóbrega desde a época dos conflitos pelo espólio do bicheiro Maninho em 2005 De acordo com Curicica Batoré assumiu a coordenação dos assassinatos depois que Adriano passou a gerir milícias e máquinas de caçaníquel na zona oeste Batoré era suspeito de participação nos assassinatos de Haylton e Falcon mas morreu antes que pudesse prestar esclarecimentos Em junho de 2019 foi atingido por disparos numa operação policial com mais de cem homens no Morro do Dendê na Ilha do Governador para prender o traficante Fernando Gomes de Freitas o Fernandinho Guarabu um dos donos de morro mais longevos do Rio Batoré era apontado como sócio e sucessor de Guarabu no novo modelo que aproximava as milícias e o tráfico Muitos especulavam que a morte de Batoré foi queima de arquivo O esquema que juntava milícias caçaníqueis e assassinos profissionais dependia da omissão de investigadores no desvendamento de assassinatos mesmo os mais gritantes como os casos de Escafura Falcon e do próprio Pereira Entender a configuração dessas alianças argumentou Curicica em seu depoimento às promotoras as ajudaria a conhecer o ambiente de impunidade em que fora gestado o assassinato de Marielle e Anderson em plena vigência da intervenção federal no estado A força dessa rede era grande porque envolvia contatos em diversas instituições Esse era o segredo de sua longevidade Os indivíduos podiam ser presos mortos e trocados mas a estrutura se mantinha intacta e permitia ao crime seguir faturando Não seriam as Forças Armadas comandadas por um presidente frágil como Michel Temer que iriam intimidálos Curicica falou ainda sobre a desastrada tentativa de embucharem o duplo homicídio em suas costas A forma como a trama foi montada e os personagens envolvidos ajudaram a dar consistência a seus relatos Ele contou que os problemas começaram quando Pereira seu antigo patrão sentiuse ameaçado por Jorge Luiz Fernandes o Jorginho outro dos inhos da turma de Á lvaro Lins Jorginho além de alugar delegacias era sócio de Pereira no arrendamento de máquinas de caçaníquel de Rogério de Andrade em Jacarepaguá eles pagavam o aluguel e ficavam com o dinheiro das apostas Jorginho e Pereira se estranharam primeiro por questões financeiras A Polícia Federal vinha fazendo batidas nos bingos de Jacarepaguá Barra e Recreio o que causava prejuízo ao miliciano Para diminuir as perdas Pereira descontava o valor do aluguel das máquinas apreendidas na hora de pagar a Andrade que não gostou da ousadia Jorginho interveio em favor do capo Para azedar a relação entre os dois Jorginho segundo Curicica mandou matar o braço direito de Pereira o cabo Ronis José do Couto Júnior que atuava nas milícias A partir daí surgiram boatos de que Pereira atacaria Rogério de Andrade e de que Rogério acionaria o Escritório do Crime para matar Pereira Curicica como segurança dizia ao chefe para tomar cuidado Ele sabia que o conflito entre os dois podia sugálo para a confusão Foi o que ocorreu Depois do assassinato de Pereira Curicica disse ter sido procurado por Jorginho para fazer as pazes e estancar o ciclo de vinganças Foi proposto um acordo Curicica herdaria a parte que era da segurança privada da milícia em Jacarepaguá Barra e Recreio enquanto Jorginho ficaria com as máquinas de caçaníquel Para convencer Curicica Jorginho teria pagado propina para os delegados da Divisão de Homicídios não investigarem a morte de seu chefe Curicica teria presenciado a entrega da mala Jorginho queria mostrar que a polícia estava sob controle Curicica sabia que não tinha alternativa e engoliu o armistício Mas o clima de desconfiança continuava A testemunha contou às promotoras que passou a sofrer represálias e que escapou da morte por pouco O assassinato segundo ele deveria ter ocorrido quando o Core grupo de operação policial da Polícia Civil foi a sua casa forjar um auto de resistência e matálo Como o dia seguinte era a festa de aniversário do filho dele a casa estava cheia de familiares vindos de outras cidades Quando os policiais chegaram sua mulher Thaís entrou na frente para que os policiais não o assassinassem Acabou preso por causa do flagrante de uma arma fria em casa Era outubro de 2017 e ele foi levado para Bangu 9 ala reservada a milicianos Jorginho segundo Curicica teria herdado seus negócios na zona oeste depois de sua prisão Por isso o rival queria mantêlo afastado pelo maior tempo possível Como matálo havia ficado difícil mas não impossível eles tentaram mandar comida com veneno para Curicica em Bangu 9 a estratégia era mantêlo na prisão Foi aí que surgiu a armação para incriminálo pela morte de Marielle e Anderson Apesar de a DH ter engolido a farsa e pressionado Curicica a confessar deu tudo errado Curicica resolveu contar os podres do submundo criminal chacoalhando a investigação do caso Marielle que caminhava a passos de tartaruga Vinte dias depois do depoimento de Curicica às promotoras as coisas começaram a andar na Divisão de Homicídios Os policiais civis contudo tentaram ganhar os méritos pelas novas descobertas O chefe da investigação Giniton Lages disse que a participação de Ronnie Lessa tinha sido revelada por denúncia anônima no dia 15 de outubro informando que o expolicial conhecido como Lessa apelidado de Perneta era o autor do duplo homicídio Segundo a testemunha anônima ele teria saído do restaurante Tamborill no QuebraMar para praticar o crime e recebido 200 mil reais A partir dessas pistas frágeis teve início a coleta de provas para confirmar as suspeitas sobre a presença de Lessa no carro e a participação de Élcio de Queiroz como motorista Os dois foram presos no dia 12 de março do ano seguinte 2019 O chefe da Polícia Civil Rivaldo Barbosa acusado por Curicica de organizar o pagamento de propinas para que homicídios não fossem investigados sempre negou as acusações Giniton Lages também era enfático em garantir o compromisso de Barbosa com a elucidação do caso Os dois alegavam que Curicica tinha interesse em prejudicálos para desqualificar as acusações de que ele próprio era alvo Mesmo assim logo depois de apontados os nomes dos executores Lages foi removido do caso Sob nova direção do delegado Daniel Rosa os investigadores teriam que ir para as ruas e recuperar o tempo perdido correr atrás de provas que pudessem condenar os dois que participaram da execução de Marielle e Anderson no Tribunal do Júri Seria preciso identificar a posição dos celulares captada pelas antenas no dia do crime conferir a pesquisa de Lessa sobre a agenda de Marielle nos dias anteriores ao crime comparar a tatuagem do atirador capturada por uma das câ meras de rua com a do acusado saber mais sobre o carro clonado e suas rotas localizar as armas do crime jogadas no mar No Presídio Federal de Porto Velho os acusados Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz negavam com veemência sua participação no crime apresentando álibis e justificativas para as pesquisas que fizeram na agenda de Marielle e para outras acusações A polícia e os promotores no entanto acumulavam indícios contundentes contra eles Ainda faltava porém encarar o principal desafio da investigação Mais de dois anos depois do crime duas grandes perguntas sobre o caso permaneciam em aberto quem havia mandado matar Marielle E por quê Dado o quadro de degradação moral dos possíveis envolvidos e a dimensão da rede em que atuavam o rol de perfis suspeitos era imenso O primeiro nome foi apontado pela ProcuradoriaGeral da República em setembro de 2019 um dia antes de Raquel Dodge deixar a chefia da instituição Era Domingos Brazão ex vereador exdeputado estadual e conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado TCE O nome de Brazão havia aparecido no inquérito em que a PF investigara por quase um ano a armação contra Curicica e o vereador Marcello Siciliano Mesmo fora do caso Marielle a PF investigou a farsa apostando que através dela poderia chegar ao mandante De acordo com a Polícia Federal o conselheiro Domingos Brazão teria ajudado a denunciar os falsos autores para que pudesse permanecer impune da autoria dos assassinatos de Marielle e Anderson A armação teria começado com um funcionário de seu gabinete no TCE o policial federal aposentado Gilberto Ribeiro da Costa Costa teria apresentado o miliciano Rodrigo Ferreira o Ferreirinha ao delegado federal Hélio K hristian que tomou o depoimento mentiroso A advogada de Ferreirinha Camila Nogueira teria ajudado o grupo Brazão e os quatro foram denunciados pela ProcuradoriaGeral da República ao Superior Tribunal de Justiça STJ Raquel Dodge pediu a federalização da investigação que apontava Brazão como mandante do crime porém o pedido foi negado pelo STJ em maio de 2020 A prova mais importante de que Brazão era o mentor da trama do duplo homicídio foi a gravação de uma conversa entre Siciliano e o presidente da associação de moradores de Rio das Pedras Jorge Alberto Moreth o Beto Bomba No áudio eles falaram sobre os supostos responsáveis pelo crime Os diálogos registrados em 8 de fevereiro de 2019 onze meses depois do assassinato de Marielle e Anderson estavam gravados no celular de Siciliano apreendido pelos policiais federais Na época Siciliano e Curicica eram considerados os principais suspeitos do crime Durante a conversa Siciliano perguntou a Beto Bomba quem tinha mandado matar Marielle e recebeu a resposta de batepronto com detalhes De repente a história que até então era um segredo inacessível escondido por quase um ano começou a ser contada sem constrangimento em um telefone suspeito de estar grampeado por aqueles que sabem como funciona uma investigação Ou então começou a ser construída a versão que ambos desejavam levar às autoridades e ao público No telefonema Bomba disse Lembra os caras que pegaram o Pereira sargento miliciano Geraldo Antônio Pereira o Nadinho Josinaldo Francisco da Cruz É o mesmo grupo Sabe disso né Siciliano se mostrou por dentro dos boatos É o que falam né É o Escritório do Crime né Na época desse diálogo a operação Os Intocáveis contra o grupo de matadores já havia se tornado pública Beto Bomba confirmou a participação do Escritório É verdade pô Agora essa parada de Marielle aqui nós ninguém papo de homem conhece nem conhecia não sabia nem que essa mulher existia na vida Bomba seguiu com a história que tentava inocentar a si e parte de seus amigos Só que o sr Brazão veio aqui fazer um pedido para um dos nossos aqui que fez contato com o pessoal do Escritório do Crime fora do capitão Adriano sem consentimento do Adriano Os moleques foram lá montaram uma cabrazinha fizeram o trabalho de casa tudo bonitinho bábábá escoltaram esperaram pápápá pápápá pum Foram lá e tacaram fogo nela Marielle Depois do trabalho de casa sendo feito o seu Brazão fez o outro trabalho que é o DisqueDenúncia e plantar um cara para jogar nas suas costas Siciliano questionou o interlocutor É mas se prenderem o Adriano o Adriano vai falar né irmão Você acha que o Adriano vai Antes de acabar a frase ele foi cortado pelo miliciano de Rio das Pedras O Adriano não tem nada a ver com isso O Adriano morre e não fala chefe E não acham o Adriano se sair um mandado de prisão pro Adriano eles não acham nunca Beto Bomba então falou do valor que Brazão teria pagado aos assassinos Aí o que acontece Saiu essa parada Ele Brazão foi e fez esse contato O bagulhinho foi quinhentos contos irmão Quinhentos cruzeiros Siciliano perguntou Mas qual motivo irmão A resposta de Beto Bomba foi Ô chefe aí eu não sei qual o motivo do sr Brazão com ela não sei mesmo de coração Mas algum problema eles tinham entre eles dois Siciliano como quem não queria nada levantou uma hipótese que vinha sendo discutida entre os investigadores da Homicídios Eles chegaram a falar que foi por causa do MDB né cara Que foi por causa do Jorge Picciani Paulo Melo Edson Albertassi que ele teria contratado Beto Bomba confirmou e implicou um nome que ainda não tinha entrado na história Então Picciani o papo veio que foi a pedido de Picciani pra Brazão e Brazão chegou em quem de direito e aí foram fazendo o cerco cê entendeu Beto Bomba seguiu sem freios na língua e disse a Siciliano que sabia o nome dos três moleques que tinham feito o serviço Vou te falar aqui pra gente aqui hein chefe morre aqui hein Mad Macaquinho que está foragido e Leleo E tinha uma guarida do e tinha uma guarida do tinham uma guarida de um oficial dando suporte para eles se eles tomassem um bote no meio do caminho que é o Ronald que ia soltar salvar os moleques mas isso é a pedido do malandragem do sr Brazão tudo isso saiu do sr Brazão Depois Bomba citou também o nome de Fininho Marcus Vinícius Reis dos Santos como responsável por colocar Brazão em contato com o Escritório do Crime Apesar das frases assertivas de Bomba havia razões para pôr em dúvida os fatos relatados na conversa Siciliano era suspeito de ter mandado matar Marielle e precisava desviar o foco de si Beto Bomba estava foragido da Justiça havia duas semanas por ser alvo da operação Os Intocáveis que em 22 de janeiro de 2019 atingira o coração da milícia de Rio das Pedras Ele era uma figura suspeita já havia manipulado investigações como em 2008 e 2009 na tentativa de assassinato de duas pessoas Maria do Socorro mulher do miliciano Félix Tostes e Nadinho cujo assassinato foi consumado pouco tempo depois do atentado A investigação dessas duas ocorrências não deu em nada apesar de indícios apontarem para Bomba e seus colegas milicianos Os ataques a Maria do Socorro e a Nadinho marcaram a ascensão da organização comandada pelo capitão Adriano com a participação de Bomba o grupo passou a apostar na grilagem e na verticalização de imóveis em Rio das Pedras e Muzema No diálogo gravado com Siciliano Beto Bomba se esforçou para inocentar o capitão Adriano Bomba foi preso em maio de 2019 quatro meses depois da operação Os Intocáveis Adriano permaneceu mais de um ano foragido até ser morto em fevereiro de 2020 numa controversa operação policial na Bahia Já o major Ronald segundo na hierarquia de Rio das Pedras e que pelo diálogo teria dado cobertura aos assassinos no dia da execução foi preso no dia da operação Em maio foi preso Fininho apontado por Bomba na conversa interceptada como o intermediário entre Brazão e os assassinos Os três supostos autores mencionados por Bomba também eram ligados ao Escritório do Crime Macaquinho Edmilson Gomes Menezes e Leleo Leonardo Luccas Pereira foram apontados em denúncias do Ministério Público como integrantes das milícias do Morro do Fubá Mad Leonardo Gouveia da Silva foi preso em junho de 2020 junto com seu irmão Leandro Gouvêa da Silva o Tonhão acusado de ter assumido a chefia do Escritório do Crime por indicação do capitão Adriano De acordo com as investigações Mad estava envolvido em pelo menos mais três homicídios entre os quais o do empresário Marcelo Diotti da Mata miliciano que também atuava na exploração de máquinas de caçaníquel em Gardênia Azul Diotti foi assassinado num restaurante na Barra da Tijuca na mesma noite da morte de Marielle Ele era marido de MC Samantha exmulher de Cristiano Girão miliciano que depois seria apontado como suspeito de ser um dos mentores da morte de Marielle A investigação implicou o capitão Adriano como mandante da morte de Diotti Mad também participou do assassinato de Haylton Escafura em junho de 2017 e de Alcebíades Paes Garcia o Bid irmão do bicheiro Maninho em fevereiro de 2020 O mandante do crime de Marielle contudo seguia desconhecido A acusação contra Brazão e o diálogo gravado entre Beto Bomba e Siciliano pareciam armados para acobertar os reais autores e despistar a opinião pública ou empurrar para as costas de outros as suspeitas que pairavam sobre eles A frequência com que esse teatro de versões ocorria tornava o caso mais escandaloso Foi o que disse Brazão quando interrogado por jornalistas sobre sua participação na morte de Marielle e sobre as acusações contra ele extraídas da conversa entre Bomba e Siciliano Em Marielle o documentário produzido pela equipe de jornalismo da TV Globo depois de negar o assassinato Brazão fala sobre o áudio O pessoal vem conversar no telefone sobre um assunto desses São bem inocentezinhos não são São meninos do jardim da infâ ncia Depois disso tudo das várias buscas e apreensão o outro também e resolvem conversar sobre o ocorrido tirando das costas desses caras e colocando nas costas do outro Os malandros do Morro do Fubá da Praça Seca É um teatrinho Eu que sou mais bobo não posso acreditar nesse teatrinho Imagina se os delegados da Homicídios e os procuradores vão acreditar A quem interessa eu não sei É um teatrinho montado Se eles quisessem conversar certamente eles não iam buscar o telefone celular Foi a tentativa de tentar entre aspas fazer a transferência da pica para alguém Nascido em Jacarepaguá Brazão fincou raízes na zona oeste da cidade Tinha uma carreira longeva no Parlamento do Rio e viu crescer sua influência à medida que as milícias se fortaleciam Foi eleito pela primeira vez em 1996 para o cargo de vereador Dois anos depois elegeuse deputado estadual e ingressou numa Assembleia Legislativa em que Sérgio Cabral Jorge Picciani e Paulo Melo se articulavam havia oito anos para receber propinas pela concessão de obras públicas A força eleitoral de Brazão vinha de sua relação assistencialista com os moradores das comunidades onde obtinha votos em troca de cestas básicas cursos e remédios Seu poder nos bairros onde atuava era fortalecido por suas ligações com o submundo do crime mais antigas do que sua amizade com políticos Em 1987 aos 22 anos foi preso por homicídio mas absolvido pela Justiça sob a alegação de legítima defesa Brazão havia começado no ramo de ferrovelho e de receptação de carros roubados segundo relato de Ferreirinha aos agentes federais Sempre teve influência em Rio das Pedras onde ele o irmão Chiquinho e o cunhado Pedro conseguiam parte dos votos que garantiam as eleições dos membros de seu clã Brazão chegou a ter seu mandato de deputado cassado em 2011 por acusações de compra de votos através de seu centro social mas o retomou na Justiça De acordo com Curicica Brazão tinha relacionamento com Jorginho e laços antigos com o Escritório do Crime Embora possuísse essa longa ficha corrida ainda havia dúvidas sobre sua participação no assassinato de Marielle e Anderson E lacunas a ser preenchidas Por que matar Marielle justamente quando as Forças Armadas e a imprensa faziam do Rio de Janeiro o centro das atenções do país Brazão se arriscaria naquele momento Quem teria tamanho atrevimento As ligações de Lessa com o bicho e caçaníquel poderiam apontar novos suspeitos Os negócios de Lessa com Cristiano Girão colocavam o exvereador no rol de suspeitos como mandante do crime motivado pelo desejo de se vingar dos participantes da CPI das Milícias cujas investigações ajudaram a mandálo para a prisão Os promotores apontariam ainda suspeitas da ligação entre Girão e Lessa em um caso de duplo homicídio ocorrido em junho de 2014 envolvendo disputas na região de Gardênia Azul As mortes de Marielle e de Diotti ocorridas no mesmo dia poderiam ter sido articuladas por grupos que tinham interesses em comum Mad do escritório do crime e Lessa poderiam ter combinado uma operação casada Capitão Adriano Girão e Lessa poderiam ter agido em parceria nessa empreitada Apesar das dúvidas e dos muitos assassinos possíveis e esquemas imagináveis havia um contraponto nessa história um político que comprava essa briga havia mais de uma década com um alvo imaginário desenhado no peito Marcelo Freixo Desde que entrou na política e presidira a CPI das Milícias em 2008 causa da prisão de centenas de milicianos o deputado havia se tornado o antípoda dos adoradores de caveiras Enquanto os paramilitares e seus aliados viam na violência um mal necessário para estabelecer a ordem no Rio Freixo arriscava a vida na defesa de princípios abstratos como estado de direito direitos humanos e democracia O assassinato de Marielle Franco poderia ter sido uma forma de atingilo No início dos anos 1990 Marcelo Freixo era professor de história e integrava a diretoria do Sindicato dos Professores Começou a frequentar o sistema penitenciário para coordenar projetos de educação popular para detentos O contato próximo com a população carcerária fez com que fosse chamado para mediar as rebeliões que começaram a eclodir nos anos 2000 Cabia a Freixo fazer a ponte entre presos rebelados e os policiais do Bope para evitar tragédias como a do Carandiru em São Paulo que em 1992 terminou com a morte de 111 presos A presença do ativista nas mediações tornouse intensa depois de abril de 2002 quando a transferência de Fernandinho Beira Mar da carceragem da Polícia Federal em Brasília para Bangu 1 no Rio produziu consequências explosivas O destino do principal matuto do Comando Vermelho capturado nas selvas colombianas no ano anterior havia se tornado pauta central do debate público No mês seguinte à chegada de BeiraMar a Bangu 1 em maio de 2002 as paredes do prédio da Secretaria de Direitos Humanos no centro do Rio foram alvejadas por dezenas de tiros de fuzil Dois cartazes com assinatura do CV e ameaças ao governo foram afixados em frente ao prédio As suspeitas sempre se voltavam para Bangu 1 Ainda naquele mês escutas do Ministério Público Estadual indicaram que BeiraMar tinha comprado um míssil Stinger e negociado drogas de dentro do presídio considerado a principal unidade de segurança máxima do Rio de Janeiro No começo da tarde do dia 12 de setembro de 2002 Marcelo Freixo foi chamado para mediar a rebelião deflagrada por uma das maiores inimizades do submundo do crime do Rio De um lado Uê o assassino de Orlando Jogador e líder da Amigos dos Amigos de outro os antigos parceiros de Jogador Marcinho VP e Fernandinho BeiraMar sequiosos de vingança para lavar a honra do CV O rastilho foi aceso quando Marcinho VP recebeu a informação de que Uê tinha subornado um carcereiro para conseguir as chaves de Bangu 1 e exterminar os integrantes do CV os presos de facções rivais ficavam em alas diferentes Marcinho VP ofereceu um valor maior para o mesmo funcionário e ganhou o leilão Essa foi uma das versões contadas pelos presos A ideia do grupo era fugir do presídio de segurança máxima mas quando os rebelados estavam no pátio indo em direção à porta foram flagrados por agentes do Serviço de Operações Externas Diante da impossibilidade de fuga os presos do CV voltaram ao prédio e partiram com armas e bombas para cima dos detentos da facção rival Uê o inimigo de Marcinho e de BeiraMar morreu a tiros e depois teve o corpo queimado por um colchão em chamas Outros três detentos da mesma facção foram mortos pelos rebelados Conversei com um preso que presenciou o evento e disse que BeiraMar não participou do ataque Para evitar o ingresso da Tropa de Choque os presos fizeram oito reféns Marcelo Freixo que passava o dia de folga com a família foi acionado policiais do Bope foram buscálo em casa para ele fazer a mediação A negociação durou cerca de dezoito horas O ativista dispensou o colete à prova de balas não só para conquistar a confiança dos presos mas também para evitar ações afoitas do Choque Ao entrar logo avistou entre os reféns um carcereiro amarrado a um botijão de gás Era um funcionário que costumava receber o professor de história com provocações sobre a defesa dos direitos de bandidos e considerado truculento pelos presos Enquanto as negociações se desenrolavam conversando com os presos pelas grades Freixo exigiu que o carcereiro fosse o primeiro refém a ser libertado Em caso de confusão o mediador avaliou aquela seria a vítima preferencial dos detentos Os presos se recusaram a soltálo e ofereceram outros nomes mas Freixo ameaçou deixar a negociação Os rebelados cederam e libertaram o refém antes dos outros A rebelião acabou sem que nenhum refém morresse A abertura e a flexibilidade de Freixo para dialogar com os diversos lados o levou para a política Em 2006 ele se candidatou pelo PSOL à Assembleia Legislativa do Rio num movimento raro no campo da esquerda em geral esquivo à bandeira da segurança pública Em julho de 2006 quando Freixo começava a buscar votos seu irmão mais novo Renato foi assassinado Renato era síndico de um condomínio em Niterói e tinha recebido ameaças por ter substituído um grupo de policiais militares que faziam a segurança no local Na noite do crime dois homens em uma moto interceptaram o carro de Renato na entrada do condomínio e o executaram Sua mulher recebeu um tiro no ombro mas sobreviveu A Polícia Civil do Rio demorou catorze anos para concluir o inquérito e chegar aos suspeitos um ex policial e dois policiais militares que tinham sido demitidos da empresa de segurança do condomínio Freixo quase desistiu de concorrer depois da morte do irmão mas foi convencido a continuar Passou raspando e conquistou a última vaga entre as setenta cadeiras da Assembleia Em seu terceiro dia como deputado Freixo apresentou o pedido de CPI das Milícias para deboche dos colegas alguns deles milicianos que se sentiam intocáveis e se divertiram com a ingenuidade do novato Quando a CPI foi aprovada um ano e meio depois Freixo deixou de fora o caso do assassinato de seu irmão para que ninguém o acusasse de agir por motivações pessoais Apesar da revolta avaliou que era fundamental não misturar o público com o privado Ainda em 2006 o candidato ganhou o apoio de um núcleo de jovens ativistas do Complexo da Maré e uma vez eleito deputado ofereceu ao grupo duas vagas de assessor em seu gabinete A primeira indicada pelos jovens foi uma jornalista e comunicadora popular de 24 anos chamada Renata Souza que em 2018 se elegeria deputada estadual e dois anos depois seria a candidata do PSOL à prefeitura do Rio A segunda uma socióloga chamada Marielle Franco Ela tinha apenas 27 anos mas acumulava experiências nos campos pessoal e profissional Trabalhou como camelô pertenceu a pastorais da Igreja católica e foi dançarina da equipe de funk Furacão 2000 Estudou em cursinhos populares entrou na faculdade de ciências sociais da PUCRio com bolsa do Prouni e depois partiu para o mestrado em administração pública na Universidade Federal Fluminense Aos dezenove anos tornouse mãe de uma menina Luyara Em 2000 passou a militar pelos direitos humanos depois de perder uma amiga assassinada em um tiroteio entre traficantes e policiais Em 2002 separouse do marido levantou a bandeira LGBT e se apaixonou por sua futura companheira Mônica Benício Marielle trabalhou por dez anos no gabinete de Freixo ajudando familiares de vítimas de violência desde moradores de favelas até familiares de trabalhadores da polícia Deixou o posto em 2016 ano em que se elegeu vereadora pelo PSOL Com uma competente equipe de assessores e a visibilidade da CPI das Milícias Freixo ganhou protagonismo entre as lideranças de esquerda do Rio Se em 2007 ele tinha conseguido pouco mais de 13 mil votos quatro anos depois sua base de eleitores cresceu de forma exponencial Em 2010 foi o segundo deputado estadual mais votado com o apoio de mais de 177 mil eleitores fama que se ampliou com o sucesso naquele ano do filme Tropa de Elite 2 de José Padilha O personagem Diogo Fraga um professor de história que se torna deputado e preside uma CPI contra as milícias foi inspirado em Freixo A cena que abre o filme se baseia em sua experiência como mediador na rebelião de Bangu 1 em 2002 O herói da saga no entanto é o carismático Capitão Nascimento policial violento e incorruptível cujos métodos truculentos levaram plateias ao delírio Uma década depois da CPI das Milícias além das inúmeras prisões pelo menos 53 milicianos citados no relatório final tinham sido assassinados5 Uma das vítimas o vereador Josinaldo Francisco da Cruz o Nadinho de Rio das Pedras foi executado por três encapuzados quando saía de sua casa em um condomínio de luxo em Jacarepaguá Ele estava marcado para morrer Seis meses antes já tinha sido vítima de um atentado Durante um depoimento secreto na CPI Nadinho chegou a se despedir do deputado Marcelo Freixo porque sabia que seria morto Essa é nossa despedida porque serei assassinado disse Freixo lhe ofereceu proteção policial mas Nadinho recusou Mesmo premeditado o assassinato do vereador caiu no limbo da Divisão de Homicídios do Rio A situação do estado do Rio que já era ruim piorou com a prisão do governador Sérgio Cabral Filho e as sucessivas crises políticas e econômicas que se abateram sobre o Rio de Janeiro e o Brasil Facções de diferentes bandeiras e milicianos de diversos territórios se agitaram diante do vácuo de poder As confusões tiveram início com a sucessão de escâ ndalos revelados na esteira da operação Lava Jato Em março de 2017 a operação Quinto do Ouro realizada com base em delações de executivos da Andrade Gutierrez prendeu temporariamente cinco dos sete conselheiros do Tribunal de Contas do Estado entre eles o presidente Aloysio Neves o filho do exgovernador Marcello Alencar Marco Antônio Alencar e Domingos Brazão O primeiro a ser acusado pelos empresários na delação foi um sexto conselheiro Jonas Lopes apontado como o organizador da caixinha de propinas no Tribunal que dava o aval a obras públicas superfaturadas Lopes no entanto fez acordo de delação premiada e se licenciou do cargo para entregar os colegas Segundo afirmou os conselheiros cobravam propinas de até 20 nos contratos públicos mesmo percentual que a Coroa Portuguesa cobrava pela extração de ouro no Brasil no século X VIII o que inspirou o nome da operação Quinto do Ouro Depois de soltos a Justiça determinou que os cinco conselheiros deveriam seguir afastados dos cargos até o julgamento da ação Temendo represálias Jonas Lopes deixou o país com a família se aposentou e cumpriu prisão domiciliar Restou apenas uma conselheira no TCE a corregedora Marianna Montebello Willeman que não tinha como votar e tomar decisões sozinha atravancando desse modo a administração do órgão Diante da situação inusitada era preciso indicar pelo menos três novos conselheiros para que houvesse quórum e legalidade nas decisões Como o escâ ndalo da Quinto do Ouro tinha apontado os vícios das indicações políticas no Tribunal era preciso escolher técnicos de carreira como conselheiros Três nomes foram indicados Nos dias que antecederam a escolha eles foram vistos andando pelos corredores do Parlamento estadual em conversa com deputados Passado algum tempo os três desistiram de concorrer ao cargo vitalício com salário elevado e diversas mordomias Para substituílos sem nenhum constrangimento o então governador Luiz Fernando Pezão indicou o líder do governo na Casa o deputado Edson Albertassi Freixo pediu para subir à tribuna do Parlamento e protestar contra a indicação política Eu era como o time do América Todo mundo apoiava dizia muito bem belo discurso porque sabiam que eu não ia ganhar No caso de Albertassi contudo foi diferente Ele se aproximou de Freixo e pediu que ele não se manifestasse na tribuna Eu falei em todos os casos Vou falar agora também Freixo respondeu Posso pedir um favor disse Albertassi O senhor marca uma reunião na semana que vem para que eu possa explicar para a bancada do PSOL os motivos da minha indicação Mas não houve tempo para que a reunião fosse marcada Depois do discurso Freixo recebeu o telefonema de um procurador federal da Lava Jato A gente precisa falar com o senhor Podemos nos encontrar No encontro ocorrido naquela mesma noite os procuradores mostraram preocupação com a possibilidade de Albertassi assumir o cargo Quando ele vai tomar posse Pode ser que seja agora Vai ser no fim de semana A ansiedade dos procuradores tinha explicação uma grande operação estava para ser deflagrada Se Albertassi assumisse a vaga no TCE ganharia foro privilegiado e a operação teria que ser abortada No dia 14 de novembro de 2017 foi desencadeada a operação Cadeia Velha com dez mandados de prisão conduções coercitivas buscas e apreensões que atingiram em cheio um esquema de propina da Assembleia a caixinha da Fetranspor Segundo a denúncia empresários ligados à Federação de Transporte de Passageiros compravam deputados para obter votos favoráveis na Assembleia aos projetos que beneficiavam o setor O esquema teria começado em 1991 com um trio de deputados eleitos naquele ano Sérgio Cabral Jorge Picciani e Paulo Melo Cabral foi presidente da Casa até a eleição para o Senado em 2002 quando passou o trono para o parceiro Picciani Depois de 2007 Paulo Melo foi o líder do governo Cabral na Assembleia Além de Melo e Picciani a operação Cadeia Velha prendeu Edson Albertassi três empresários do setor de transporte e sete supostos operadores do esquema entre eles Felipe Picciani filho do presidente da Assembleia A revelação desse e de outros desmandos ajudou a entender melhor o processo de fortalecimento dos milicianos e suas interconexões com outros esquemas criminosos O trio de deputados articulava as indicações do TCE que aprovava os contratos superfaturados O conselheiro Brazão por exemplo tinha sido indicado em 2015 por Paulo Melo A falta de fiscalização produzia serviços públicos de péssima qualidade As mesadas pagas por empresários de ônibus por exemplo faziam com que a população dos subúrbios ficasse desassistida e sem transporte público abrindo caminho para as empresas de vans ganharem mercado em sociedade com paramilitares Era apenas uma das pernas dessas quadrilhas cujos interesses se interligavam A dilapidação do Estado ao mesmo tempo que enriquecia os políticos incentivava a prestação de serviços alternativos por quadrilhas criminosas que substituíam um Estado corrupto e em bancarrota A hipótese de que o assassinato de Marielle pudesse ser uma retaliação contra Marcelo Freixo planejada pelos envolvidos nas operações Quinto de Ouro e Cadeia Velha era uma das possibilidades consideradas pelos investigadores A conversa suspeita entre Siciliano e Beto Bomba citava um suposto pedido feito por Picciani a Domingos Brazão para contratar o Escritório do Crime Os acusados negavam Muitas acusações de fato podiam ser injustas Picciani por exemplo que havia se envolvido em esquemas de desvios nunca tinha sido acusado de assassinato Mas a lentidão na descoberta do mandante da morte de Marielle abria espaço para teses diversionistas Ao mesmo tempo tamanha era a promiscuidade na relação entre assassinos paramilitares e parte da elite política que nenhuma suspeita devia ser deixada de lado Perguntei à promotora Simone Sibílio do Gaeco qual o principal desafio na investigação do caso Marielle A grande dificuldade segundo ela era o fato de os envolvidos estarem ligados à polícia e conhecerem por dentro os atalhos para atrapalhar ou despistar uma apuração Além de evitarem celulares imagens de vídeo testemunhas as quadrilhas trabalhavam com contrainformação plantando pistas falsas para implicar rivais O próprio Curicica que dera um testemunho importante também mentiu tentando incriminar os inimigos Jorginho e Brazão por exemplo eram dois rivais seus Todo cuidado era pouco O promotor Luiz Antônio Ayres me disse a mesma coisa Por serem policiais eles pensam com a cabeça dos investigadores e conseguem evitar rastros Ele citou um exemplo da criatividade dos paramilitares de Campo Grande e Santa Cruz para impedir a formação de provas Depois que os promotores começaram a encontrar covas clandestinas com os corpos de vítimas os milicianos passaram a enterrar os cadáveres em cemitérios públicos ao lado de outros mortos Optaram por essa tática por saberem que as autoridades dificilmente concederiam permissão para uma grande escavação que causasse transtornos a tantas famílias No decorrer da apuração montei minha lista de suspeitos O principal caminho conforme a investigação se afunilava era partir das conexões de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz para tentar chegar aos mandantes ou parceiros Lessa era um nome importante no crime e a decisão de matar Marielle poderia ter partido de um contratante ou da rede da qual ele fazia parte As conexões do sargento contudo eram diversas Mesmo sendo um matador avulso mantinha contatos com o Escritório do Crime e com milicianos de Muzema ligados ao capitão Adriano Lessa também se relacionava ou tinha bons contatos com figurões como Rogério de Andrade e Domingos Brazão Para complicar tinha convicções políticas firmes e um ódio visceral à esquerda Em geral suas amizades pareciam ter origem nas mais obscuras profundezas da deep w eb Essa turma no entanto longe de se manter invisível atrás de um computador era ativa no mundo do crime fluminense dominava territórios comprava carros importados mansões lanchas geria casas de jogos clandestinas bebia Chandon na praia e se achava dona do Rio Para chegar à autoria também era importante entender as motivações Seriam políticas para atrapalhar a intervenção Seriam uma tentativa de tumultuar o ambiente e provocar uma ação militar mais ampla e rigorosa Estariam vinculadas a grupos poderosos que mandam no estado há anos Ou estariam ligadas apenas às questões práticas das quadrilhas paramilitares como lucro e risco de prisão Apesar de muitas perguntas permanecerem no ar o caso Marielle evidenciou uma realidade incômoda a omissão da Divisão de Homicídios na elucidação de diversos assassinatos ao longo de pelo menos uma década foi fundamental para que os criminosos pudessem agir sem medo com a certeza de permanecerem impunes No meio desse turbilhão no fim de 2018 o deputado Marcelo Freixo se elegeu deputado federal o que o levou a deixar o Rio e a Assembleia Legislativa Era necessário respirar outros ares e debater assuntos nacionais Mas não havia motivos para celebrar nem mesmo pelos 342 mil votos conquistados a segunda maior votação do estado Junto com Freixo mudavase para Brasília mais especificamente para o Palácio do Planalto um aliado do chefe do principal grupo de assassinos em atividade no Rio de Janeiro Jair Bolsonaro que durante anos tinha apoiado o capitão Adriano Magalhães da Nóbrega em discursos e com cargos a seus familiares tornouse presidente da República Seu filho Flávio Bolsonaro que garantiu emprego para a mãe e a exmulher de Adriano em seu gabinete foi eleito senador Freixo ainda teria que compartilhar as cadeiras do Congresso Nacional com Chiquinho Brazão irmão de Domingos apontado pela PGR como suspeito de matar Marielle Outros simpatizantes das milícias foram eleitos como o deputado Daniel Silveira que ganhou notoriedade ao quebrar uma placa com o nome de Marielle Franco durante a campanha Wilson Witzel se elegeu governador do Rio com a mesma plataforma em defesa da violência policial e da guerra ao crime Havia algo errado com boa parte dos brasileiros A esperança de um projeto coletivo parecia ter desaparecido e a população começava a apostar em defensores do extermínio como solução para o Brasil 7 As milícias 5G e o novo inimigo em comum O capitão Adriano da Nóbrega tinha boas conexões dentro e fora do crime Um desses elos era Antônio Eugênio de Souza Freitas o Batoré Matador e narcomiliciano Batoré cultivava diversos contatos como a parceria com o traficante Fernando Gomes de Freitas o Fernandinho Guarabu do Terceiro Comando Puro TCP chefe no Morro do Dendê Guarabu sustentava com arregos os policiais do batalhão que deveriam vigiálo O traficante era evangélico fervoroso A trajetória dessas figuras com suas conexões variadas ajuda a enxergar como foram costuradas as diversas pontas de uma rede proeminente no submundo criminal do Rio de Janeiro Estabelecer alianças capazes de direcionar os negócios mediar o convívio entre concorrentes e forjar um ideal comum são pressupostos para sobreviver na rica e conflagrada economia criminal fluminense A missão não é simples considerando as décadas de disputas entre facções e organizações de diferentes bandeiras e cores Esse objetivo começou a se solidificar quando paramilitares policiais governantes e traficantes uniramse contra um mesmo inimigo o Comando Vermelho A cena criminosa se profissionaliza e prospera quando seus atores conseguem reduzir os custos dos negócios pela redução da violência A ausência de conflitos e o respeito a normas de relacionamento garantem previsibilidade e capacidade de planejamento Para alcançar esse estágio o mercado ilegal precisa ser mediado por um ou vários grupos capazes de criar e controlar as regras No mundo do crime paulista o PCC conseguiu exercer esse papel de agência reguladora fazendo a mediação de conflitos entre os participantes criando protocolos comerciais regras de convívio e punição para aqueles que as desrespeitassem A regulação permitiu aos integrantes do grupo ampliar seus negócios e lucros alcançando o mercado atacadista de drogas e armas nas fronteiras do continente para assim poderem distribuir mercadorias para varejistas em diversos estados brasileiros O PCC em vez de controlar os territórios das periferias paulistas para ali exercer seu poder impôs seu domínio ao cotidiano de mais de 150 presídios por onde mais de 1 milhão de criminosos já passaram ao longo de 25 anos Com o domínio do sistema prisional quem desrespeitasse interesses criminosos coletivos teria que prestar contas quando fosse preso com punições que implicavam penas em piores condições nas celas e prisões reservadas aos inimigos No Rio de Janeiro os patriarcas do jogo do bicho se articularam no Clube Barão de Drummond dividindo os mercados do jogo e caçaníquel com a participação e a conivência dos policiais Um movimento como esse era mais complicado no mercado das drogas fortemente vinculado a territórios A partir dos anos 2000 os donos de morros armados com fuzis e munições de grosso calibre distribuídos entre facções viveram competição acirrada com a chegada das milícias mais uma facção a disputar terreno Como organizar esse caos entre centenas de reinos em disputa Muito sangue seria derramado até que começasse a surgir uma solução para governar o mundo do crime fluminense Os conflitos fratricidas fragilizavam a todos Alianças improváveis se tornavam cada vez mais comuns lideradas por paramilitares e policiais que definiram os rumos desse mercado criminal O capitão Adriano da Nóbrega por exemplo depois de se tornar pistoleiro de luxo do jogo do bicho em 2004 e 2005 se aproximou das milícias de Rio das Pedras onde coordenava grilagens e construção de edifícios ilegais negócios que resultariam em desabamentos e mortes em Muzema Segundo Orlando Curicica Adriano também passou a atuar em jogos de azar depois que recebeu de Luizinho Drummond áreas para administrar na zona norte da cidade A manutenção do poder em ramos criminais variados se apoiava em serviços de um grupo de matadores especializados atividade que o capitão aprimorou graças a técnicas aprendidas no Bope Um dos companheiros de Adriano nesse núcleo especializado era João André Martins que agia com o capitão desde os tempos dos conflitos do bicho Adriano e João foram expulsos da Polícia Militar em 2014 por ligações com a contravenção O terceiro componente da gangue de matadores era Batoré que formava o núcleo inicial dos assassinos que integravam o Escritório do Crime Quando policial antes de se bandear de vez para o crime Batoré se envolvia em contravenções na PM como desvio de armas adquiridas nas operações de morro Em 2005 foi expulso ao ser flagrado tentando vender três fuzis para o traficante Fernandinho Guarabu Fora da corporação Batoré passou a atuar com milicianos da Liga da Justiça em Campo Grande e Santa Cruz na zona oeste Foi chamado para reorganizar os grupos fragilizados com as prisões e mortes decorrentes da CPI das Milícias Na outra frente de atuação o Escritório do Crime Batoré foi apontado como suspeito por exemplo da morte dos milicianos Geraldo Antônio Pereira e Marcos Falcon e do bicheiro Haylton Escafura Havia outros matadores no grupo como Leonardo Gouveia da Silva o Mad Leonardo Luccas Pereira o Leleo Diego Luccas Pereira o Playboy e Edmilson Gomes Menezes o Macaquinho que atuavam por empreitada Mad foi preso em junho de 2020 acusado de ser o novo chefe do grupo de matadores depois da morte de Adriano Os três últimos também eram apontados como chefes da milícia que controlava as comunidades do Morro da Barão Chacrinha Fubá Jordão e Campinho na região da Praça Seca na zona oeste Desde seu surgimento as milícias criaram grupos de matadores para atuar na linha de frente dos conflitos O núcleo do capitão Adriano no entanto havia elevado os assassinatos a um novo patamar graças à técnica apurada de seus integrantes e à influência que exerciam no setor de investigação da Divisão de Homicídios facilitada pela boa relação dos matadores com os bicheiros De olho nos lucros criminais a extensão dos negócios da rede não tinha preconceitos chegando ao superlucrativo mercado de drogas Batoré que já tinha vínculos com milicianos e matadores de Rio das Pedras e da Praça Seca passou a ganhar dinheiro sobretudo por meio de sua parceria com o tráfico no Morro do Dendê na Ilha do Governador Tornouse um dos parceiros mais próximos de Guarabu chegando ao posto de número dois Na narcomilícia do Dendê cabia a Batoré coordenar as linhas de cerca de trezentas vans que circulavam na Ilha do Governador e cobrar as taxas dos motoristas Policiais militares ainda pagavam pedágio ao grupo pela exclusividade da venda de gás na comunidade Segundo investigações Guarabu e Batoré também financiavam os arregos dos policiais do 17o Batalhão Em decorrência das investigações sobre o esquema de vans e propinas em 2017 Batoré ficou preso por um mês mas foi solto Teve prisão novamente decretada porém já havia sumido e se tornado foragido O Morro do Dendê era considerado estratégico para o mercado de drogas e de armas por seu acesso privilegiado à Baía de Guanabara e aos carregamentos vindos de barcos e navios Fernandinho Guarabu o sócio de Batoré era o chefe do morro desde 2004 quando tomou a comunidade do traficante Marcelo Soares de Medeiros o Marcelo PQD O apelido PQD fazia referência à passagem do traficante pela divisão de paraquedistas do Exército Foi dispensado das Forças Armadas em 1997 quando se aproximou do tráfico na condição de fornecedor de armamentos forma recorrente de parceria nas trajetórias criminais do Rio Preso em 2000 por porte de armas de uso restrito das Forças Armadas PQD ficou em Bangu 1 mas foi poupado da rebelião de 2002 liderada por Marcinho VP e BeiraMar Deixou o TCP para se aliar ao Comando Vermelho Por causa da mudança de facção Guarabu antigo aliado de PQD decidiu dar o golpe e assumir o comando do morro sob a bandeira do TCP Guarabu precisava de capacidade de articulação para manter o território sob controle considerando as habilidades técnicas do inimigo deposto Em 2007 PQD tentou retomar o Dendê com a ajuda de exparaquedistas que treinavam traficantes do CV no Complexo do Alemão mas foi preso antes do confronto A proximidade de Guarabu com policiais e milicianos garantia a estabilidade do grupo na região Diplomático ele sabia que a violência não bastava Apesar de diversos mandados de prisão o novo chefe do Dendê não foi incomodado durante quinze anos e se tornou um dos principais nomes do tráfico no Rio Guarabu foi precursor de um modelo que se espalhou por outros bairros a União 53 referência à sigla das milícias 5M e do Terceiro Comando Puro entre tráfico e milícia Guarabu prezava o assistencialismo e a boa relação com a comunidade Dava um sentido metafísico à sua luta Era um bandido de Cristo Evangélico desde 2006 frequentava a Assembleia de Deus Ministério Monte Sinai colecionava Bíblias mandava pintar muros com frases religiosas e tinha o nome de Jesus Cristo tatuado no antebraço direito Também impedia a exibição de conteúdos pornográficos no gatonet local Expulsou da favela fiéis de religiões de matrizes africanas e fechou dez terreiros na região Procedimento semelhante era seguido por outros chefes do tráfico do Rio principalmente do TCP A religiosidade ajudava alguns criminosos a justificar atos de violência como um mal necessário A guerra era moralmente justificada feita em nome de algo que eles acreditavam representar o bem Esse tipo de moralismo aproximou os traficantes de Cristo dos milicianos Ambos defendiam ordem no território que governavam separando o certo do errado e legitimandose pela punição aos desviantes mesmo que para isso fossem necessários assassinatos torturas e desaparecimento de corpos A principal afinidade no entanto era a existência de um inimigo comum o Comando Vermelho considerado a representação do mal A construção da figura do inimigo oferecia sentido às guerras Entre os traficantes religiosos o salmo 91 sempre foi popular O texto fala de um Deus que funciona como escudo protetor na luta pelo que enxergam como verdade Ele te cobrirá com suas penas e debaixo das suas asas te confiarás a sua verdade será o teu escudo e broquel Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia nem da peste que anda na escuridão nem da mortalidade que assola ao meiodia Mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita mas não chegará a ti diz um trecho O Bonde de Jesus por exemplo apelido conferido pela imprensa ao grupo de Á lvaro Malaquias Santa Rosa o Peixão comandava a venda de drogas em Parada de Lucas Cidade Alta Vigário Geral e Baixada Fluminense O grupo reunia bandidos cristãos mergulhados nessa cruzada moralizante de territórios para a venda de drogas A polícia dizia que Peixão não apenas havia se convertido como tinha se tornado pastor de uma igreja evangélica Peixão era liderança do TCP e tinha levado o grupo a se expandir para comunidades historicamente ligadas ao CV como Vigário Geral e Cidade Alta Nos ataques a terreiros seu bonde quebrava imagens de orixás agredia mães e pais de santo e aterrorizava seguidores de religiões de matriz africana A religiosidade dos traficantes não era atenuante para a crueldade contra os inimigos Em maio de 2019 o bonde de Peixão foi acusado de matar sete jovens da comunidade Cinco Bocas em Brás de Pina que eles tentaram tomar dos rivais Na invasão os agressores usavam roupas pretas e toucas ninja como nas operações policiais Durante o ataque segundo testemunhos eles gritavam Polícia e Bonde do Peixão Moradores ainda disseram que os corpos dos jovens foram triturados e dados de alimento aos porcos A união contra o CV colocou do mesmo lado milicianos policiais bicheiros e traficantes Essa aliança ajudou as forças de segurança a controlar o crime sem prejudicar os negócios da milícia e do tráfico de drogas Apenas o CV principal rede de traficantes do Rio e os moradores dos bairros controlados pela fação saíram perdendo A estrutura dessa rede era mais importante do que os nomes por trás dos grupos Alguns podiam ser mortos e presos desde que a aliança continuasse As aparências deviam ser preservadas e os limites respeitados No Morro do Dendê por exemplo a condescendência das autoridades com os integrantes do grupo de Guarabu chegou ao fim quando os cabeças da facção ultrapassaram uma dessas fronteiras Eles mataram o major Alan de Luna Freire que atuava no setor de Inteligência do 17o Batalhão e investigava o grupo O major havia instalado uma câ mera na casa onde Guarabu Batoré e outros integrantes da quadrilha se encontravam gravando imagens importantes para a investigação sobre drogas e corrupção policial O oficial foi executado em novembro de 2018 com mais de vinte tiros de fuzil quando chegava em sua casa em Nova Iguaçu na Baixada Fluminense Batoré o miliciano pistoleiro foi apontado como suspeito A polícia perdera o controle do grupo Não havia mais clima para a relação entre o grupo de Guarabu e os policiais Perto das 5h30 de uma manhã de junho de 2019 cerca de cem homens entre policiais do Bope e do 17o Batalhão fizeram uma operação no Morro do Dendê para cumprir três dezenas de mandados de prisão Guarabu e Batoré que acumulavam anos de informações valiosas sobre a promiscuidade entre o crime e o Estado foram mortos junto com seus comparsas mais próximos Segundo a polícia eles reagiram para não ser presos O susto foi grande Marcelo PQD ameaçou invadir o Morro do Dendê mas o plano foi descoberto pela polícia e abortado O TCP seguiu no comando nos meses seguintes O morro continuou reduto de um grupo armado e poderoso com cerca de duzentos fuzis Preservar a força desse grupo era importante para evitar o crescimento do CV presente na comunidade vizinha a do Barbante a cerca de sete quilômetros de distâ ncia A aproximação entre as milícias e o Terceiro Comando Puro começou depois da CPI das Milícias e do avanço das UPPs A CPI desestruturou os grupos de Rio das Pedras e da Liga da Justiça porém a chegada de novos aliados vitaminou o poder da rede o capitão Adriano com suas conexões no bicho e na polícia foi uma adesão de peso As UPPs também desempenharam papel decisivo Como foram implantadas sobretudo nos territórios do Comando Vermelho a facção sofreu um baque e precisou se reorganizar Com a perda de armas e drogas no Alemão o grupo contraiu dívidas com fornecedores entre eles o PCC Mudanças foram necessárias O quartelgeneral da facção teve que deixar o Alemão e migrar para o Complexo do Chapadão também na zona norte A dívida elevada se somou à queda nas vendas da droga Era a oportunidade ideal para os rivais ocuparem espaços de poder Tanto para as milícias como para o TCP havia muito a ganhar com a União 53 Agora havia um propósito capaz de organizar os diversos grupos envolvidos no mercado ilegal e informal do Rio uma economia cada vez mais relevante no estado A construção da hegemonia de um grupo sobre os demais nos moldes do que o PCC tinha conseguido em São Paulo seria o salto necessário para a construção da nova rede 5G com mais conexões e eficiência Para os milicianos seria preciso abandonar a resistência ao comércio de entorpecentes O tráfico poderoso e rentável não podia ser o antagonista do grupo e precisava ser cooptado desde que as vendas nos territórios fossem regulamentadas Para a Segurança Pública esse movimento também ajudava porque reduzia os conflitos e as taxas de homicídios sem que fosse preciso acabar com antigos negócios Os arregos continuariam a ser cobrados mas de criminosos de confiança que lucrariam mais com o fim dos conflitos A guerra e seu espólio rentável durariam por um bom tempo enquanto o CV conseguisse resistir Mesmo sem um acordo verbal alianças foram naturalmente se formando entre as partes A parceria ampliou a capacidade tática e operacional para invasões de territórios Drones coletes à prova de balas uniformes militares e rádios de comunicação se tornaram artefatos comuns no planejamento desses conflitos assim como o aprendizado de décadas em operações policiais nas incursões em comunidades compartilhado com criminosos aliados Até o aluguel do caveirão o veículo blindado usado em invasões para integrantes do TCP invadirem comunidades ligadas ao CV se tornou recorrente Investigações apontaram que a invasão da Cidade Alta por exemplo realizada por Peixão e seu bando em dezembro de 2016 ocorreu com ajuda de um blindado que teria sido alugado por 1 milhão de reais1 Antes da invasão uma grande operação policial prendeu 45 traficantes do CV e apreendeu 32 fuzis entre eles modelos potentes e modernos como AR10 AR15 AK 47 e Sig Sauer A Cidade Alta considerada um reduto tradicional do CV caiu sem grande resistência Em São Gonçalo numa operação policial feita com o caveirão imagens registraram um traficante do TCP Michael Zeferino da Silva o Jogador tirando a touca ninja e olhando para a câ mera ao lado dos policiais No mesmo ano outro escâ ndalo envolveu traficantes do TCP que posaram para fotos armados e sem camisa dentro de um blindado policial Também era possível realizar ações casadas Em abril de 2019 os traficantes da Serrinha invadiram comunidades do Cajueiro na zona norte Na mesma hora milicianos da região do Fubá atacavam um dos últimos redutos do CV na Praça Seca a comunidade de Bateau Mouche O grupo a que pertenciam esses milicianos era liderado por Macaquinho Leleo e Playboy comparsas do capitão Adriano da Nóbrega no Escritório do Crime Para tomar o território eles receberam ainda o apoio de cinquenta homens de outro grupo vindo da região de Campo Grande e Santa Cruz comandado por Wellington da Silva Braga o Ecko Ecko e seus bondes se tornaram a principal frente de expansão das milícias para outros territórios Ele também inovou nas estratégias de crescimento fazendo parcerias na Baixada Fluminense e no interior do estado com negócios semelhantes a franquias nos quais ele oferecia apoio segurança armada e contatos políticos aos pequenos em troca de uma parcela dos lucros A CPI das Milícias não acabou com os grupos Como costumava repetir Marcelo Freixo os negócios persistiriam se os mercados e as condições que promoviam o lucro dos milicianos continuassem a existir Foi o que aconteceu A Liga da Justiça por exemplo ganhou novos chefes e mudou a forma de atuar Houve muitas baixas Os irmãos Jerominho e Natalino Guimarães foram presos Em seguida os expoliciais militares Ricardo Teixeira da Cruz o Batman e Toni  ngelo de Souza assumiram a liderança do grupo Ambos também acabaram presos e delegaram a chefia da milícia a seus homens de confiança Mas estes entraram em choque e racharam o grupo Ricardo Gildes conhecido por Dentuço e aliado de Batman foi assassinado por Carlos Alexandre Braga o Carlinhos Três Pontes escolhido por Toni que passou a comandar o grupo Três Pontes tinha um perfil diferente de seus antecessores Era um pé inchado termo usado para milicianos que não tinham origem nos quadros policiais Ele começou como traficante do CV na comunidade Três Pontes em Santa Cruz de onde veio seu apelido Acabou aliciado pelos paramilitares e ajudou seus novos patrões a tomar áreas que pertenciam a antigos colegas do tráfico ganhando a confiança de Toni  ngelo para se tornar chefe do grupo Três Pontes tinha amizade com uma liderança do TCP Carlos José da Silva Fernandes o Arafat do Complexo da Pedreira na zona norte Nessa sociedade cargas roubadas pelo tráfico podiam ser guardadas e vendidas nas áreas de milícias Vans milicianas eram autorizadas a circular no território do tráfico que também passou a aceitar a venda do gás e do gatonet O novo modelo se expandiu para comunidades da Baixada Fluminense como Itaguaí Seropédica e Nova Iguaçu levando violência e conflito para fora da capital Em Seropédica em 2015 Três Pontes foi acusado de envolvimento na morte do vereador Luciano Nascimento Batista PCdoB conhecido como Luciano DJ assassinado quando saía de uma casa noturna No ano seguinte foi a vez do policial e précandidato a vereador Julio Reis ser assassinado na cidade Ainda em 2016 o grupo foi envolvido na morte do subtenente da polícia militar Manoel Primo Lisboa apontado como líder da milícia de Cabuçu em Nova Iguaçu Entre novembro de 2015 e agosto de 2016 treze candidatos vereadores e lideranças comunitárias foram assassinados O reinado de Três Pontes não durou muito Ele foi morto em abril de 2017 numa operação da Polícia Civil que o encontrou na casa da namorada único local em que ele dispensava seguranças Mas o novo modelo de negócios teve continuidade pelas mãos de seus dois irmãos Ecko que viraria o chefe e Luís Antonio da Silva Braga o Zinho que cuidaria das finanças A aposta nas parcerias horizontais favoreceu a expansão através do modelo semelhante às franquias o que rendeu ao grupo de Ecko o apelido de Firma As decisões eram descentralizadas a não ser as mais relevantes como assassinatos e novas cobranças de taxas sobre as quais o chefe devia ser consultado No caso de conflitos a depender do armamento do opositor Ecko poderia oferecer homens e armas para proteger aliados Em outras palavras a Firma funcionava como uma milícia guardachuva cobrando taxas de proteção dos pequenos milicianos A divisão de tarefas também era mais clara com pessoas encarregadas de cobrança de taxas instalações piratas de TV coleta de informações para a quadrilha dentro da polícia ou nos territórios e para as áreas financeira e imobiliária Outros mercados criminais rentáveis ganharam espaço Um setor que cresceu foi a venda ilegal de cigarros contrabandeados do Paraguai ou os chamados piratas dos piratas que imitavam as marcas paraguaias Um mercado altamente lucrativo Estimativas feitas pelo Ibope a pedido da indústria nacional de cigarros calculou que o consumo dos ilegais no Rio de Janeiro em 2019 foi de 41 de todo mercado o que correspondeu a uma receita estimada em 764 milhões de reais Caso tivessem sido taxados pelo Estado esses produtos teriam gerado 307 milhões de reais em Imposto sobre Circulação e Mercadorias e Serviços ICMS Em janeiro de 2018 o Ministério Público do Rio denunciou integrantes da quadrilha de Ecko que impunham a venda de cigarros piratas da marca Gift em Campo Grande Santa Cruz e em outros mercados do grupo distribuindo a mercadoria daquele que era apontado como o principal contrabandista de cigarros do Rio de Janeiro o expolicial militar Ronaldo Santana da Silva Essa capacidade de articulação fez com que o mercado de cigarros ilegais alcançasse 89 dos estabelecimentos comerciais na zona oeste contrastando com os 20 da região central2 As marcas mais consumidas no Rio de Janeiro não eram as tradicionais No primeiro lugar do ranking estava a Gift vinda do Paraguai alcançando 28 do consumo A cópia brasileira também chamada Gift e produzida por uma empresa em Duque de Caxias correspondia a 8 do total e ocupava a quinta posição entre os cigarros mais vendidos O preço final do produto não passava de quatro reais o maço menos da metade das marcas mais famosas Outro setor que contou com a ajuda da milícia de Ecko foi o de extração de areia em área de proteção ambiental como ocorria nas zonas rurais de Seropédica Areia pedra saibro eram retirados dessas áreas para ser fornecidos a outro braço dos paramilitares que investiam em imóveis ilegais de áreas griladas O preconceito contra a venda de drogas ficou no passado afinal Carlinhos Três Pontes tinha ingressado nas milícias pelo tráfico As afinidades entre traficantes e milicianos eram bem maiores do que suas diferenças Ecko passou a aproveitar a mão de obra dos funcionários das bocas de comunidades invadidas oferecendo salários e tarefas na nova gestão A medida tentava se valer dos crias para lidar com o estranhamento dos moradores com o novo comando tentando com isso reduzir ameaças de denúncias e traições Para os traficantes convertidos o novo plano de carreira representava menos risco pois não era preciso trocar tiros com a polícia nem enfrentar sucessivas operações O pacto de não agressão com o TCP flexibilizou também falsos moralismos e a venda de drogas e os bailes funk ganharam mais espaço no novo modelo Territórios importantes do CV começaram a cair As comunidades do Rola no Complexo do Rodo e Antares em Santa Cruz foram tomadas depois das eleições de 2018 A invasão das comunidades do Rodo teve como origem a traição do chefe do tráfico local Eduardo José dos Santos o Sonic que pertencia ao CV mas trocou de lado levando fuzis e dinheiro para seus novos parceiros milicianos A mudança de lado foi cantada em um vídeo proibidão intitulado Recado do Rodo pro Sonic visto mais de 350 mil vezes no Y ouTube Puta que o pariu pelo amor de Deus não acreditei no que aconteceu Tava no meu plantão e veio essa triste notícia O cuzão do Sonic pulou para a milícia Eu vou te dar uma ideia puta que o pariu Não pulou sozinho levou cinco fuzil Bagulho maneiro olha só essa palhaçada ainda por cima dos fuzil levou dez Glock Rajada Eu tô cheio de ódio não tô de fofoca quem mandou lançar essa foi a tropa da Marcola outra comunidade comandada pelo CV O refrão era uma sentença de morte bala no cuzão do Sonic Alguns traficantes do Rodo aderiram ao bonde de Ecko enquanto outros fugiram principalmente para as comunidades de Angra dos Reis Um novo conflito se estabeleceu na região de Costa Verde O Comando Vermelho reagiu à ofensiva do TCP em Angra Um dos homens fortes de Guarabu Tiago Farias Costa o Logan apoiou a invasão do TCP nas comunidades Os tiroteios interditaram a BR101 O governador Wilson Witzel no cargo havia quatro meses viu no conflito uma oportunidade para demonstrar sua disposição para a guerra Num sábado ele embarcou em um helicóptero da Polícia Civil que do alto efetuou disparos de fuzil em direção ao chão O governador gravou um vídeo e postou a cena em suas redes No dia seguinte soube que os tiros acertaram o teto de uma barraca onde evangélicos costumavam orar no fim de semana A expansão do bonde de Ecko tornou a zona oeste do Rio um reduto miliciano Um dos poucos territórios geridos pelo CV na região era a Cidade de Deus que passou a receber visitas de milicianos e constantes operações policiais O mesmo ocorreu com a Vila K ennedy localizada às margens da avenida Brasil Milicianos e traficantes do TCP ligados ao tráfico em Senador Camará se juntaram em tentativas recorrentes de tomar de assalto a vizinha comandada pelo grupo inimigo Também na zona oeste está um dos últimos redutos da Amigos dos Amigos a ADA na Vila Vintém em Padre Miguel A comunidade é chefiada por uma figura longeva da cena criminal carioca Celso Luís Rodrigues o Celsinho da Vila Vintém Traficante à moda antiga quase na terceira idade nasceu em 1961 Celsinho começou nos anos 1990 como assaltante de caminhões na avenida Brasil Diz a lenda que a carga roubada era repartida com a população A mística de Robin Hood ajudou a mantêlo por longo tempo no controle do tráfico no bairro apesar de estar preso há duas décadas O traficante mantinha diálogo aberto com os rivais chegou a fornecer drogas aos concorrentes em épocas de desabastecimento de comunidades do CV e foi poupado na chacina de Bangu 1 onde morreram quatro parceiros do Terceiro Comando O fato de ele não ter sido atacado e a desconfiança que isso gerou contribuíram para o racha do TCA que resultou na criação do Terceiro Comando Puro A ADA sofreu um grande abalo em 2017 com a perda da comunidade mais rentável do Rio de Janeiro a Favela da Rocinha Na linguagem do crime do Rio essas alternâ ncias de poder em que o dono do morro é derrubado com o uso da força são chamadas de golpe de Estado A mudança da bandeira ocorreu depois dos conflitos entre Antônio Francisco Bonfim Lopes o Nem preso desde 2011 e Rogério Avelino da Silva o Rogério 157 seu braço direito Rogério 157 assumiu o comando da comunidade durante a prisão de Nem Anos depois os dois romperam porque 157 começou a cobrar taxas de comerciantes mototaxistas entre outros serviços Nem ordenou a expulsão de Rogério 157 da Rocinha Em resposta o traficante matou três aliados de Nem desencadeando inúmeros conflitos em que pelo menos vinte pessoas morreram Escolas e hospitais foram fechados na comunidade Para resistir 157 aliouse ao Comando Vermelho recebendo o reforço de homens e armas para o combate Com a perda da Rocinha isolado na Vila Vintém cercado na zona oeste por milicianos e traficantes do TCP Celsinho precisava se mexer Aproximouse dos rivais do CV e os grupos fizeram um pacto de não agressão para ganhar fôlego e voltar a crescer O CV estava longe de jogar a toalha O grupo havia conseguido se reerguer do prejuízo e da perda de drogas e armas no Complexo do Alemão em 2010 O traficante Pezão que havia conseguido fugir na véspera da ocupação do morro pelas Forças Armadas tornouse o principal matuto a vender drogas do Paraguai e da Bolívia no atacado para as quadrilhas das comunidades do comando Para mim que praticamente caía de paraquedas numa realidade tão complexa todas as articulações entre essas elites armadas tirâ nicas e criminosas com seus reinos e bandeiras imaginários surgiam como um mundo novo quase inacreditável Um cenário bem diferente do paulista As instituições e as leis em São Paulo serviam como referência de autoridade O PCC e seus integrantes diziam atuar do lado certo de uma vida errada assumindo uma condição marginal No Rio de Janeiro a referência são os próprios criminosos confiantes o suficiente para mandar e desmandar como se representassem o estilo de vida correto como se os argumentos das narrativas milicianas tivessem vencido os dos defensores do estado de direito Depois da CPI das Milícias os grupos criminosos formaram dois grandes conjuntos Um deles mais inovador composto de grupos paramilitares associados ao bicho e a uma parte do tráfico mais precisamente ao TCP Outro ligado ao CV com apoio da ADA seguiu o tradicional modelo do tráfico de drogas O grupo das milícias contudo teria duas subdivisões No eixo da Barra da Tijuca Recreio e Jacarepaguá a partir de Rio das Pedras Muzema e adjacências as milícias seguiram com seus negócios tradicionais como cobranças de taxa de proteção gatonet vendas de gás água internet agiotagem grilagem em zonas protegidas por leis ambientais venda de apartamentos ilegais Seguiram vinculadas a uma narrativa moralista herdada dos vigilantes nordestinos e policiais que associavam o grupo ao modelo de autodefesa territorial A parceria com o TCP foi liberada Depois da CPI cresceu o protagonismo dos empresários dos jogos de azar com suas máquinas de caçaníquel e conexões internacionais que depois de meados dos anos 2000 se fortaleceram com a associação com grupos de assassinos profissionais A histórica relação da contravenção com o poder e com as polícias garantia impunidade aos assassinos Em compensação essas milícias também herdaram as rixas dos bicheiros e passaram a enfrentar intensos conflitos fratricidas Vieram desse núcleo os autores e os prováveis mandantes do assassinato de Marielle O outro modelo menos tradicionalista partiu das milícias de Campo Grande e Santa Cruz com sua estrutura mais flexível e expansionista lideradas pelos bondes de Ecko Os pés inchados tinham grande protagonismo nesses grupos incluindo extraficantes convertidos em paramilitares Nesse cenário diante da pergunta tráfico ou milícia cada lado tem sua lista de argumentos Os paramilitares se dirão defensores da ordem e da tradição contra a imprevisibilidade proporcionada pela venda de drogas Já os traficantes se dirão contrários à cobrança de taxas a moradores e comerciantes além de se colocarem como resistência a uma polícia opressiva e corrupta Na prática contudo o que move ambos os lados é a busca por mais dinheiro e poder Os integrantes dos dois blocos milicianos viviam uma relação atribulada mas eram forçados a se tolerar Um retrato dessa tensão foi revelado por operações deflagradas pelo Gaeco entre 2017 e 2019 batizadas de Quarto Elemento Os promotores denunciaram uma quadrilha com mais de cinquenta policiais e informantes que atuava em Santa Cruz Bangu e Nova Iguaçu extorquindo criminosos inclusive integrantes da milícia de Ecko Em janeiro de 2017 por exemplo um grupo de policiais de Bangu passava pelo bairro de Paciência quando viu um Porsche Cayenne ao lado de máquinas de terraplanagem O dono do carro presente no local era Zinho irmão de Ecko Segundo a denúncia ele pagou 20 mil reais para não ser preso em flagrante por crime ambiental Zinho que na época já tinha um mandado de prisão coordenava uma empresa de extração de areia para construir prédios irregulares em áreas protegidas pela legislação ambiental O bando de Ecko apesar das propinas pagas a diversos policiais não conseguia cooptar a todos e continuava sendo extorquido O grupo de policiais mineiros era poderoso Além dos tiras da 36ª e da 34ª DP em Bangu integrava o bando o policial civil Rafael Luz Souza o Pulgão apontado como chefe de uma milícia na Favela da Carobinha uma das principais rivais do bando de Ecko Em seu depoimento prestado no presídio federal de Mossoró Orlando Curicica apontou Pulgão como um dos matadores que atuavam para o bicheiro Rogério de Andrade Pulgão foi preso pela operação Quarto Elemento quando estava em uma boate com dois carros roubados cinco fuzis e uma metralhadora antiaérea 50 capaz de derrubar aeronaves Nessa operação também foram denunciados os irmãos gêmeos Alan e Alex Rodrigues de Oliveira seguranças da campanha de Flávio Bolsonaro ao Senado em 2018 A irmã dos gêmeos Valdenice trabalhava no gabinete de Flávio e ficou encarregada de administrar os gastos da campanha de Flávio ao Senado Alan e Alex eram sócios de um loteamento irregular e pagavam propinas aos policiais Outro policial civil preso na operação Quarto Elemento foi Flavio Pacca Castello Branco consultor de segurança do candidato Wilson Witzel e que havia se candidatado a deputado federal pelo Partido Social Cristão PSC o mesmo do governador Flávio e Witzel alegaram que não podiam ser acusados de crimes cometidos por pessoas ligadas a eles Do ponto de vista processual de fato não podiam mas é inegável que ambos compartilhavam valores morais com os criminosos Em entrevista ao Estadão logo depois de sua eleição Witzel afirmou O correto é matar o bandido que está de fuzil A polícia vai fazer o correto vai mirar na cabecinha e fogo Para não ter erro3 Witzel afirmou ainda que a polícia do Rio matava pouco Antes da posse Jair Bolsonaro brincou com o governador Num almoço com professores da Fundação Getulio Vargas Witzel contou aos convivas entre risadas o que o presidente tinha dito a ele Naval apelido que fazia referência a Witzel ter sido fuzileiro naval eu tenho um parafuso a menos Mas em você faltam dois parafusos4 Witzel assumiu o governo tendo à disposição 12 bilhão de reais para investir nas corporações policiais do Rio de Janeiro dinheiro herdado da intervenção federal Foram comprados 3 mil fuzis 12 milhão de cartuchos de munição vinte submetralhadoras cinco caveirões 4 mil carros de patrulhamento É certo que uma polícia bem equipada trabalha melhor Mas não quando suas estruturas estão comprometidas e associadas com o crime Os novos equipamentos serviram mesmo que indiretamente para vitaminar projetos dos milicianos como ataques ao Comando Vermelho Recordes de letalidade policial foram quebrados com operações direcionadas a áreas ligadas ao tráfico e ao CV No primeiro semestre de 2019 de acordo com um levantamento feito pelo site de notícias UOL nenhuma das 881 mortes cometidas pela polícia havia ocorrido em áreas dominadas por milícia5 Outro levantamento realizado pelo Observatório de Segurança a pedido da revista piauí identificou que 71 das 777 operações ocorridas em 2019 tinham sido feitas em áreas do CV O bairro da Cidade de Deus na zona oeste foi especialmente visado com dezesseis homicídios resultantes de dezoito operações policiais Os moradores viramse obrigados a conviver com sobrevoos diários de helicópteros e incursões policiais As operações se davam de manhã na hora em que a maioria dos moradores saía para o trabalho ou levava os filhos à escola não raro fechadas por causa dos confrontos Em junho durante um evento em Nova Iguaçu Witzel fez apologia ao genocídio mencionando os confrontos na Cidade de Deus O vagabundo bandido quer atalhos e aí nós cidadãos não vamos aceitar isso A nossa polícia ela não quer matar Mas nós não queremos ver cenas como na Cidade de Deus tiroteios que ocorreram no local Se fosse com autorização da ONU em outros lugares do mundo nós tínhamos autorização para mandar um míssil naquele local e explodir aquelas pessoas6 Depois para se justificar afirmou que ao dizer aquelas pessoas quis se referir aos bandidos que enfrentaram os policiais No ano de 2019 ocorreram 1810 mortes em supostos confrontos com policiais no estado do Rio de Janeiro o maior número da história fluminense e o equivalente a cerca de um terço das mortes cometidas pela polícia no Brasil7 A taxa oficial de homicídios da polícia do Rio não contabilizadas as mortes cometidas por paramilitares foi de 105 mortos por 100 mil habitantes Os representantes do Estado sozinhos mataram proporcionalmente mais do que todos os criminosos de São Paulo que no mesmo período registraram a taxa de nove homicídios por 100 mil habitantes considerando homicídio doloso latrocínio lesão corporal seguida de morte e letalidade policial O governador Witzel criou as condições para a construção de uma hegemonia miliciana nos territórios pobres do Rio não se sabe se deliberadamente ou por ignorâ ncia De um lado trouxe uma falsa sensação de ordem A região de Santa Cruz por exemplo nas mãos do bonde de Ecko e dos parceiros do TCP registrou as maiores quedas de homicídio no estado pois eles não tinham mais rivais à altura De outro lado essa ofensiva desencadeou uma sucessão de tragédias Ao longo de 2019 num período de dez meses seis crianças morreram por balas perdidas quase todas vítimas de operações policiais Em fevereiro Jenifer Silene Gomes de onze anos foi atingida no peito quando estava na calçada junto com a mãe no bairro de Triagem na zona norte Em março K auan Peixoto de doze anos morreu com tiros no pescoço e abdômen depois de tiroteio entre policiais e criminosos na comunidade de Chatuba na Baixada Fluminense Em maio K auã Rozário de onze anos foi atingido na Vila Aliança em Bangu Em setembro K auê dos Santos de doze anos morreu com um tiro na cabeça na comunidade Chica no Complexo do Chapadão Também em setembro Á gatha Vitória Sales Félix de oito anos foi morta com um tiro quando voltava para casa com a mãe na Comunidade da Fazendinha no Complexo do Alemão Em novembro K etellen Umbelino de Oliveira Gomes de cinco anos foi atingida por disparos feitos por um suspeito de integrar uma milícia em Realengo Todas as crianças mortas eram negras e moradoras de comunidades pobres O drama continuou em 2020 Durante a pandemia da Covid19 enquanto a sociedade civil se esforçava para cumprir o isolamento social com os hospitais públicos lotados distribuição de máscaras kits de higiene e alimentos para as populações carentes enquanto se conscientizavam as pessoas sobre a necessidade de ficar em casa o Bope invadiu o Complexo do Alemão numa chacina que matou pelo menos dez pessoas segundo a imprensa outras fontes noticiosas mencionaram doze e treze vítimas nos dias que se seguiram A polícia disse que cinco pessoas tinham morrido no confronto As autoridades não pareciam sequer chegar a um número oficial de mortos A operação ocorreu em 15 de maio quando o Rio seguia acelerado rumo ao pico da doença Os policiais entraram por diversos pontos do Complexo com caveirões helicópteros e carros A justificativa foi uma denúncia anônima sobre a existência de fuzis e a presença de um chefe do tráfico no local Houve relatos de saques granadas que explodiram além de muitos disparos e corpos expostos nas ruas da comunidade Apesar da gravidade do ataque as mortes repercutiram pouco Todos estavam assustados demais com a pandemia para prestar atenção na chacina Nos primeiros meses da crise sanitária a polícia aproveitou para acirrar as operações sem os holofotes da imprensa Entre 15 de março e 19 de maio a polícia matou 69 pessoas em operações monitoradas pelo coletivo Observatório da Segurança A sucessão de mortes violentas em plena pandemia mostrou a polícia como um instrumento de matança em vez de fiadora da segurança da população num momento de crise Dados oficiais de abril indicaram mais um recorde com a polícia matando em supostos confrontos 43 de vítimas a mais do que no mesmo período do ano anterior que já havia sido um recorde Coube aos comunicadores das comunidades descrever o horror daqueles que conviviam com a pandemia e ao mesmo tempo com as chacinas nas favelas e mobilizar a opinião pública No dia 18 de maio Raull Santiago do Coletivo Papo Reto escreveu em sua conta no Twitter uma série de mensagens É importante todo mundo saber que o Bope invadiu o Complexo do Alemão no momento em que foi feito o maior processo de isolamento social As pessoas estavam em casa o tráfico nitidamente recolhido Usaram as dicas de cuidados da pandemia para atacar e fazer uma chacina Outras operações foram realizadas em comunidades como Manguinhos e Jacarezinho interrompendo a distribuição de cestas básicas Duas semanas antes cinco pessoas haviam morrido em uma operação policial na Vila K ennedy na zona oeste Pior ainda é a polícia usar como estratégia a invasão das favelas pelo fato das ruas estarem vazias por conta do isolamento social Usar a pandemia como parte da estratégia de ação que pode virar grave confronto é absurdo imensurável E as pessoas ESTà O EM CASA gente Três dias depois da chacina do Alemão mais uma morte e dessa vez ela despertaria o interesse dos jornais João Pedro Mattos de catorze anos foi morto por policiais federais e civis quando brincava com os primos no quintal da casa de seu tio Os policiais invadiram a casa atirando e depois se justificaram dizendo que corriam atrás de suspeitos Um dos primos tentou alertar em vão Aqui só tem crianças A história de João Pedro foi contada no Jornal Nacional e chamou a atenção para a violência policial durante a quarentena O governador recebeu um grupo de ativistas e professores que cobraram mudanças Em junho uma liminar do Supremo Tribunal Federal proibiu operações da polícia durante a pandemia A sentença citava as denúncias feitas por Raull Santiago e Rene Silva A comoção como de costume teria tempo limitado até que a próxima batalha fizesse uma nova vítima A sensação de impotência foi resumida no tuíte de Raull Santiago Até quando continuaremos tendo que perguntar até quando Com a democratização do Brasil a partir dos anos 1980 se esperava que a ação militarizada das polícias fosse controlada e que o desrespeito aos direitos humanos diminuísse Não foi o que aconteceu No Rio de Janeiro em especial mas também em outros estados os problemas aumentaram Os governadores eleitos pelo voto popular a partir de 1982 precisaram lidar com dois enormes desafios as consequências do processo de urbanização acelerado e o fortalecimento de uma economia criminal lucrativa em torno principalmente da venda de drogas O gaúcho Leonel Brizola PDT foi o primeiro governador eleito do Rio de Janeiro depois da abertura política em 1982 vencendo o candidato dos militares Moreira Franco PDS O passado revolucionário e esquerdista de Brizola a resistência armada que organizou como governador do Rio Grande do Sul em defesa da posse do presidente João Goulart na mesma época em que estatizou empresas estrangeiras e promoveu a reforma agrária no estado assustava as Forças Armadas Para evitar a eleição do candidato no Rio o presidente João Baptista Figueiredo acionou colegas bicheiros como Anísio Abraão David da Beija Flor e Castor de Andrade da Mocidade para animar comícios com samba e passistas das escolas Não deu certo Brizola ganhou por uma margem apertada de votos e assumiu apostando na educação Construiu os Centros Integrados de Educação Pública Cieps escolas com refeitório cozinhas quadras esportivas atendimento médico e odontológico que ficavam abertas o dia inteiro oferecendo alimentação atividades recreativas e cursos profissionalizantes O antropólogo e educador Darcy Ribeiro vicegovernador foi um dos criadores do projeto e apontava o caminho das políticas para as comunidades pobres do Rio de Janeiro A favela não devia ser vista como problema mas como parte da solução Era preciso tornar seus habitantes cidadãos com acesso a direitos em vez de inimigos O governo devia regularizar as propriedades e investir na infraestrutura das casas e dos bairros pobres com medidas de saneamento iluminação e saúde A Polícia Militar comandada então pelo coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira concebeu projetos de policiamento comunitário para aproximar os agentes dos moradores determinando que as forças policiais deveriam cumprir as leis e não entrar nas residências pobres sem mandado judicial Brizola ao defender a legalidade no cotidiano da atividade policial ganhou a pecha de cúmplice dos criminosos num momento em que políticos e parte da sociedade defendiam o confronto aberto com os moradores das favelas O governo brizolista também coincidiu com o momento em que a produção de cocaína crescia na América Latina incentivando o mercado do produto em diversos países do mundo O rótulo de defensor de bandidos colou Brizola virou gíria para cocaína As críticas ao governador no entanto não identificaram o problema real que iria contaminar as polícias do estado nos sucessivos governos que viriam Brizola evitou brigar com os donos do dinheiro no estado e se aproximou dos bicheiros Em 1984 os contraventores criariam a Liga Independente das Escolas de Samba Liesa aumentando o poder do bicho sobre os desfiles do Rio As dez maiores escolas boa parte controlada pelo jogo se desmembrou das outras 34 agremiações menores assumindo o controle das verbas do Carnaval antes administradas pela RioTur Castor de Andrade Anísio e o capitão Guimarães foram os três primeiros presidentes da entidade O governador sempre negou ter feito qualquer acordo mas na eleição seguinte recebeu o apoio entusiasmado dos contraventores Durante a campanha de 1986 ao governo o candidato brizolista Darcy Ribeiro participou constrangido de um evento em uma churrascaria em Botafogo junto com a cúpula do bicho capitão Guimarães Anísio Miro Maninho entre outros Brizola deu a maior tranquilidade de todos os tempos ao jogo do bicho e nunca nos pediu dinheiro por isso Agora chegou a hora de retribuir e eleger Darcy Ribeiro governador além de votar em Marcello Alencar e José Frejat para o Senado Nós temos de apoiar esses homens Se votarmos neles estaremos pagando cinco por cento da dívida mas nós vamos pagar até o último tostão discursou o capitão Guimarães8 Mais uma vez o apoio do jogo não reverteu em eleição O eleito foi Moreira Franco que havia migrado do PDS para o PMDB O candidato ganhou a eleição prometendo durante a campanha acabar com o crime no Rio em seis meses Quando assumiu Franco manteve a relação de boa vizinhança com a contravenção mas perdeu o controle da segurança pública no estado As taxas de homicídios explodiram em seu mandato passando de 202 casos por 100 mil habitantes em 1986 para 56 por 100 mil A ação de grupos de extermínio na Baixada Fluminense ajudou a multiplicar esses índices Os sequestros também surgiram com força organizados com o apoio de policiais como denunciaria anos depois o delegado Hélio Luz O empresário Roberto Medina idealizador do festival Rock in Rio e encarregado do marketing da campanha de Franco em 1986 foi sequestrado em junho de 1990 numa onda que aterrorizou os endinheirados da cidade As relações perigosas entre autoridades e o submundo do crime seguiram firmes No último mês da gestão de Moreira Franco em fevereiro de 1991 o governador recebeu no Salão Verde do Palácio da Guanabara os bicheiros capitão Guimarães Anísio Luizinho Drumond e Carlinhos Maracanã para formalizar a cessão de um terreno em que seria erguido o Museu do Samba9 A fachada cultural da contravenção mais uma vez justificava a condescendência das autoridades A leniência dos governadores com o jogo do bicho nos anos 1980 delineou os confrontos que se iniciariam na década seguinte Os bicheiros tentaram se associar aos policiais para manter os traficantes sob controle e enquanto Toninho Turco foi o principal atacadista dos morros o esquema funcionou Depois de sua morte em 1988 a tentativa de controlar os traficantes passou a ser feita através de operações policiais e arregos A estratégia porém não conseguiu evitar o fortalecimento armado e financeiro do tráfico o que provocou a série de conflitos que marcaria os governos seguintes Entre o final dos anos 1980 e começo dos 1990 o mundo do crime e as políticas de segurança repetiram erros que iriam minar de modo crescente a credibilidade das instituições locais De 1990 a 2019 mais de 200 mil pessoas foram assassinadas no Rio de Janeiro a maioria negros homens com menos de trinta anos moradores de bairros pobres Com a instalação das UPPs houve um breve hiato entre 2008 e 2014 A redução das operações e da violência policiais nas comunidades levou à queda de homicídios mas com a falência desse modelo e com a crise fiscal e política do Rio a escalada de mortes reacendeu Brizola voltou a disputar o governo do Rio em 1990 e venceu no primeiro turno Assumiu o estado em uma situação adversa em março de 1991 O país enfrentava uma crise econômica severa com o fracasso do governo Collor deposto em 1992 por impeachment No Rio o comércio de drogas prosperava gerando uma corrida armamentista entre as quadrilhas de traficantes Para manter o controle as autoridades apostaram em estimular a divisão dos traficantes Enquanto as facções estivessem concentradas em disputas entre si dificilmente teriam forças para afrontar os poderosos Na eleição de 1995 Marcello Alencar se elegeu governador e via decreto criou o pagamento por mérito ou a gratificação faroeste como ficou conhecida na imprensa A medida premiava com 50 a 150 do valor do salário os policiais que participassem de operações nas comunidades O que já era ruim ficou pior Operações improvisadas sem planejamento e traumáticas passaram a ditar o rumo da segurança pública no estado A política foi abandonada três anos depois O entusiasmo que tinha vindo com a Nova República com a adoção de políticas educacionais a formação de cidadãos nas favelas e de uma polícia legalista perdeu espaço para outro paradigma o da guerra ao crime Os dois lados do conflito se desprenderam da legalidade democrática e formaram grupos autônomos Os traficantes com armas e munições passaram a ser donos de morros enquanto os policiais associados aos bicheiros aprenderam a governar a cena criminal e a ganhar dinheiro tirando proveito do caos O modelo se aperfeiçoava num movimento inercial Parecia não haver político disposto a reverter esse quadro Anthony e Rosinha Garotinho os governadores que sucederam Marcello Alencar fecharam os olhos para o avanço da banda podre que envolvia a estrutura que sustentava as instituições Quando assumiu em 1999 Garotinho mostrou disposição para enfrentar os problemas de segurança Chamou para a Subsecretaria de Segurança Justiça e Cidadania o antropólogo Luiz Eduardo Soares que levou para a pasta um grupo comprometido com reformas estruturais na polícia Soares teve a liberdade de indicar os chefes da Polícia Militar e da Polícia Civil escolhidos com a missão de reduzir a violência e a corrupção nas suas corporações Medidas foram tomadas como o fortalecimento da ouvidoria da polícia a criação do Instituto de Segurança Pública responsável pelo levantamento de dados sobre crime no estado a formação das Á reas Integradas de Segurança para que a administração tivesse mais informação e capacidade de gestão sobre os territórios os mutirões pela paz que propunham um policiamento mais próximo da vizinhança dessas áreas e que seria um dos embriões das UPPs e as delegacias legais que buscavam informatizar e modernizar os processos de investigação para tornar os resultados transparentes e minar os esquemas viciados de delegados e investigadores A pressão política dos policiais que tiveram seus interesses atingidos alguns deles atuavam dentro da própria Secretaria de Segurança levou o governador a interromper as reformas e a demitir Luiz Eduardo Soares um ano e três meses depois da posse Com a mudança o delegado Á lvaro Lins que mais tarde seria acusado de proteger empresários da contravenção e de se juntar a outros policiais para lotear as delegacias em troca de propinas ganhou espaço no governo Ao ser demitido Soares avisou que o governador tinha se aliado à banda podre da polícia Passou a sofrer diversas ameaças de morte e precisou deixar o Brasil com a família quando escreveu o livro Meu casaco de general Quinhentos dias no front da Segurança Pú blica do Rio de Janeiro em que conta sua experiência No governo de Rosinha Garotinho a banda podre continuou empoderada O delegado Á lvaro Lins se tornou chefe da Polícia Civil e o modelo de negócio miliciano viveria seu momento inicial de expansão Na CPI das Milícias o exsecretário de Segurança de Rosinha Garotinho Marcelo Itagiba foi acusado de fazer campanha com o apoio dos paramilitares de Rio das Pedras ele se elegeu deputado federal pelo PMDB em 2006 Cristiano Girão que na CPI das Milícias foi apontado como um dos chefes da comunidade da Gardênia Azul trabalhou como assessor especial de Rosinha Garotinho e levava parceiros do governo para buscar votos na comunidade Esse processo descontrolado se agravou no fim do segundo mandato do governo de Sérgio Cabral Filho O novo governador assumiu num momento econômico favorável beneficiado pelo alto valor das commodities no mundo em especial do petróleo que tinha se tornado o carrochefe da economia fluminense Em 2008 o preço do barril estava acima de cem dólares e os royalties adquiridos com a venda do produto correspondiam a 16 de toda a receita do governo Para ajudar as UPPs saíram do papel com bons resultados iniciais A situação política também favorecia o governador graças à proximidade com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva que fortalecia a liderança de Cabral Tudo parecia dar certo Vieram os anúncios da escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas os investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento PAC do Governo Federal a construção do teleférico no Complexo do Alemão notícias grandiosas que passaram a ideia de um futuro promissor para o Rio de Janeiro O governador gastava como um novorico deslumbrado mas a cobrança da conta ainda demoraria a aparecer Por algum tempo Cabral desfrutou a fama de estadista em 2009 a revista inglesa The Economist estampou na capa um Cristo Redentor com jatos propulsores sob os pés decolando como um foguete no Corcovado Essa imagem de prosperidade começou a ruir quatro anos depois em junho de 2013 quando milhões de brasileiros foram às ruas protestar contra o aumento das passagens de ônibus Os limites da bonança carioca tornavamse claros Naquele ano a revista inglesa dedicou outra capa ao Rio de Janeiro então com o Cristo Redentor se descontrolando logo depois da decolagem e descendo em queda livre Em abril de 2014 diante da pressão popular que cresceu depois do assassinato do pedreiro Amarildo na UPP da Rocinha e com a expectativa de se candidatar ao Senado Cabral renunciou ao cargo de governador cedendo a cadeira ao vice Luiz Fernando Pezão A crise econômica e política do Rio de Janeiro no entanto avançava com velocidade O crescimento do PIB brasileiro que em 2010 tinha alcançado 75 praticamente estagnou em 2014 Nos dois anos seguintes registrou quedas de 38 e 33 O Rio de Janeiro foi particularmente atingido O preço do barril de petróleo caiu de 132 dólares em 2008 para 31 dólares em 2016 reduzindo as receitas do governo com royalties Desde 2014 o Rio vinha recebendo 20 bilhões de reais a menos em receitas sendo 48 bilhões de reais apenas com redução de royalties Um estudo feito por auditores fiscais nas contas do governo fluminense calculou que entre 2007 e 2015 pelo menos 47 bilhões de reais tinham deixado de entrar no caixa em virtude de renúncias fiscais Nesse período as isenções de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços ICMS cresceram de 13 para 2910 Algumas empresas beneficiadas com a concessão desses benefícios depois seriam apontadas como pagadoras de propinas a autoridades estaduais Diante desse quadro de insolvência o Rio decretou estado de calamidade pública dois meses antes da abertura das Olimpíadas no Maracanã em agosto de 2016 O salário de outubro e o décimo terceiro do funcionalismo teve que ser parcelado Sérgio Cabral Filho foi preso em novembro de 2016 Até 2020 teve treze condenações na Justiça somando penas acumuladas de 282 anos Seu sucessor Luiz Fernando Pezão foi preso pela operação Lava Jato em 2018 ainda no cargo de governador acusado de receber propinas e acobertar casos de corrupção Passou mais de um ano na cadeia e saiu com tornozeleira eletrônica impedido de se candidatar a qualquer cargo político Antes disso o exgovernador Moreira Franco 27 anos depois de deixar o governo do Rio fora o principal articulador da intervenção federal no estado na condição de ministro da Secretaria Geral do presidente Michel Temer Foi nesse cenário desalentador que o governador Wilson Witzel surgiu como a grande surpresa das eleições de 2018 fazendo campanha colado a Flávio Bolsonaro que concorria ao Senado e ao candidato a presidente Jair Bolsonaro O Rio de Janeiro se defrontava com um quadro político inusitado As duas principais lideranças do estado Witzel no governo e Marcelo Crivella na prefeitura eleito dois anos antes tinham vínculos com igrejas evangélicas neopentecostais Crivella era bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus fundada pelo seu tio Edir Macedo Já Witzel havia sido lançado pelo pastor Everaldo Dias da Igreja Assembleia de Deus que depois da eleição de Witzel indicou nomes para compor a burocracia estadual inclusive o de seu filho O pastor tinha estreitas ligações com o deputado Eduardo Cunha também evangélico preso em 2016 na operação Lava Jato Tais escolhas pareciam dizer que o Rio estava farto da modernidade urbana e laica da Nova República Como se trinta anos depois seus eleitores tivessem abandonado a lógica para escolher governantes capazes de produzir milagres As instituições democráticas quebradas e desacreditadas haviam perdido o controle da situação Caberia ao governo Witzel apostar no combate ao Comando Vermelho e torcer para que a hegemonia dos comandos formados por milicianos bicheiros e traficantes do TCP estabelecessem a ordem perdida Menos de dois anos depois de assumir o governo contudo o governador seria acusado de corrupção e enfrentaria um processo de impeachment A desmoralização das instituições democráticas do Rio fortaleceria ainda mais o poder dos grupos criminosos sempre prontos para ocupar o vácuo deixado pelos políticos A construção de um pacto civilizatório garantidor de leis e direitos que vigorassem em todo o território fluminense tinha naufragado Os cidadãos no entanto não se esqueciam de que havia um projeto a ser restaurado Era preciso livrar os territórios pobres das tiranias armadas e criar uma democracia verdadeira no Rio de Janeiro Era urgente tirar os mais de 3500 fuzis de circulação e controlar as munições para que as instituições democráticas restabelecessem o monopólio legítimo do uso da força Os policiais precisavam agir em defesa da lei em vez de lutar pelos próprios interesses Algumas dessas bandeiras foram levantadas pela vereadora Marielle Franco Ao ser assassinada em março de 2018 tornou se mártir de uma ideia a ser reconstruída coletivamente pelas forças do campo democrático 8 Cruz Ustra Olavo e a ascensão do capitão O presidente Jair Bolsonaro já havia entrado em seu segundo ano de governo quando se viu diante da epidemia da Covid19 Naquele março de 2020 a velocidade de propagação da doença e os efeitos do vírus já eram conhecidos em todo o mundo e ameaçavam levar ao colapso os sistemas de saúde públicos e privados Na quintafeira 26 de março ele chegou ao Palácio da Alvorada residência oficial da presidência em Brasília para falar sobre a crise de saúde Quando lhe perguntaram se o Brasil corria o risco de viver uma situação parecida com a dos Estados Unidos que naquele mês já era o país com mais mortes por Covid19 Bolsonaro respondeu Eu acho que não vai chegar a esse ponto Até porque o brasileiro tem que ser estudado Ele não pega nada Você vê o cara pulando em esgoto ali sai mergulha tá certo E não acontece nada com ele A metáfora do brasileiro resistente ao esgoto sintetizava à perfeição o que havia representado sua chegada ao poder O novo mandatário durante sua carreira militar curta e banal e política inexpressiva assumiu ideais herdados dos subterrâ neos do regime militar nos quais autoridades planejavam conflitos em segredo compartilhados apenas entre os integrantes de uma espécie de irmandade que acreditava agir em nome da salvação do Brasil Essa cultura de heróis invisíveis guerreiros de uma batalha inglória surgiu nos anos 1960 e 1970 nos porões da ditadura nas batalhas das polícias e das Forças Armadas contra a guerrilha urbana e os opositores do regime Durante o processo de redemocratização muitos militares que participaram dos confrontos se ressentiram com as críticas de que foram alvo Entendiam a volta da democracia como um retrocesso como um espaço para que esquerdistas tomassem o poder justamente o grupo que militares e policiais haviam se dedicado tanto a combater Bolsonaro tirou do armário esse ressentimento e faria dele o mote de sua carreira política como se fosse um infiltrado com a missão de sabotar o sistema que se formava na Nova República Seu incômodo começou a se manifestar ainda no Exército quando ele era um oficial em meados dos anos 1980 Bolsonaro ingressou na Academia Militar das Agulhas Negras em 1973 Nessa primeira fase foi um cadete com iniciativa e boas notas que se destacou pelo voluntarismo e pela força física veio daí o apelido de Cavalão representando o Exército em competições esportivas de atletismo Ainda nos anos 1970 saiu do Rio para servir em Nioaque no Mato Grosso do Sul e depois voltou para atuar no Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista Tinha elogios em sua ficha mas também puxões de orelha dada a dificuldade em lidar com as normas rígidas do Exército e com os vencimentos limitados no final do mês Em 1983 durante férias no interior da Bahia ele se embrenhou em um garimpo atrás de ouro o que lhe valeu advertência de seu superior Também vendeu bolsas com tecido usado em paraquedas para complementar a renda O perfil de agitador fardado contudo veio durante a redemocratização no segundo ano da presidência de José Sarney Em 1986 Bolsonaro tornou público seu descontentamento com os vencimentos dos militares num artigo publicado na revista Veja com o título O salário está baixo A manifestação foi considerada um ato de indisciplina entre militares Bolsonaro foi preso por quinze dias mas ganhou apoio de muitos colegas inclusive superiores por defender o interesse coletivo Os confetes cessaram no ano seguinte quando a mesma revista revelou os planos do capitão Bolsonaro para explodir bombas em alguns pontos da Academia das Agulhas Negras para demonstrar insatisfação com os reajustes salariais O atentado não pretendia deixar vítimas segundo o capitão explicou à repórter Cassia Maria Rodrigues antes da publicação mas demonstrar a fragilidade do ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves e da autoridade do presidente Sarney Seriam apenas algumas espoletas Bolsonaro disse à jornalista A revista decidiu quebrar o off tornar público o que o capitão havia dito em segredo por entender que havia riscos públicos envolvidos no ato terrorista A revelação agitou o comando dos quartéis com provas desmentidos e um longo processo descrito em detalhes no livro O cadete e o capitão do jornalista Luiz Maklouf Carvalho No final do processo Bolsonaro foi absolvido pelo Superior Tribunal Militar mas a versão da revista era tão consistente que não houve como o capitão seguir no Exército da democracia Reformado pelo Exército após o julgamento Bolsonaro se candidatou a vereador pelo Rio de Janeiro em 1988 Eleito disputou dois anos depois o cargo de deputado federal para o qual também se elegeu Em Brasília atuou como parlamentar por 28 anos antes de se tonar presidente Entre as pessoas que serviram de inspiração para a base ideológica de seu mandato está o general Newton Cruz Chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações SNI Cruz foi um dos representantes da linhadura na presidência de João Baptista Figueiredo Ele foi um símbolo da resistência contra a abertura política que ganhava força durante o governo Figueiredo A distensão do regime começara em 1979 depois que o governo Figueiredo sancionou a Lei da Anistia perdoando os crimes políticos praticados por militares e pelos grupos de resistência à ditadura Em 1980 foi aprovada a eleição direta para governadores abrindo espaço para novas lideranças No Rio de Janeiro Leonel Brizola de volta ao Brasil entrou na disputa Em São Paulo começou a ganhar destaque o líder do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Luiz Inácio Lula da Silva Diante dessa efervescência democrática crescia o descontentamento de um grupo de ultradireita que deu início a uma onda de atentados no país A intenção era provocar medo de bombas e de desordem a fim de justificar novas medidas de endurecimento Newton Cruz era suspeito de planejar ações que tentavam brecar o processo de abertura política Entre 1979 e 1981 pelo menos quarenta bombas explodiram no Rio de Janeiro e em outros estados do Brasil no andar de um hotel onde Brizola se hospedava no Rio no aeroporto Guararapes em Recife na redação do jornal Em Tempo em Belo Horizonte no Tuca em São Paulo no Colégio Social da Bahia em Salvador Sem contar as explosões ocorridas em quase uma centena de bancas de jornal que vendiam publicações da imprensa alternativa A maioria eram apenas espoletas não havia vítimas mas uma pessoa morreu e seis ficaram feridas em um atentado no Rio de Janeiro contra a sede da OAB e a Câ mara dos Vereadores A onda de atentados culminou na explosão da bomba no Riocentro na Barra da Tijuca na noite de 30 de abril de 1981 durante um show de MPB em celebração ao Dia do Trabalho com cerca de 20 mil pessoas O artefato estourou no estacionamento do Riocentro dentro de um carro onde estavam dois militares matando o sargento que carregava o explosivo e ferindo um capitão que o acompanhava Os militares tentaram atribuir a responsabilidade do atentado a militantes de esquerda fora encontrada perto dali uma placa de sinalização pichada com a sigla VPR Vanguarda Popular Revolucionária Dias depois um relatório interno produzido pelo Exército apontou dois culpados a esquerda e a imprensa que teria criado o clima de tensões e mentiras1 A farsa seria exposta anos depois pelo próprio general Newton Cruz que assumiu ter tido conhecimento dos planos dos militares incendiários antes do crime quando os autores estavam prestes a acionar o artefato Não agiu para impedir segundo ele porque não havia tempo hábil Nada fez porém para evitar a armação e a farsa para responsabilizar a esquerda Em 1999 quando um novo Inquérito Policial Militar foi aberto sobre o caso o coronel Freddie Perdigão que encerraria sua carreira nas fileiras do jogo do bicho foi acusado de ter planejado o atentado do Riocentro e o general Newton Cruz de prevaricação por não ter impedido o crime Dois anos depois Cruz se envolveu em um novo escâ ndalo ao ser apontado como suspeito de ter mandado matar o jornalista Alexandre von Baumgarten a mulher dele e um pescador em decorrência de rusgas envolvendo a venda da revista O Cruzeiro O general Newton Cruz deixou o SNI em agosto de 1983 para assumir o Comando Militar do Planalto no governo Figueiredo A figura que transitava invisível pelos subterrâ neos subiria à ribalta revelando uma personalidade histriônica e truculenta emblema da decadência e da impopularidade da ditadura brasileira Durante seu comando em Brasília foram decretadas medidas para restringir filmagens e o trâ nsito de pessoas nos meses que antecediam a votação da emenda das eleições diretas O general também articulou a eleição de Paulo Maluf no Congresso como candidato da continuidade em oposição a Tancredo Neves Pouco acostumado a prestar contas teve problemas com jornalistas no período Durante uma entrevista coletiva Cruz se irritou com as perguntas do repórter Honório Dantas e o mandou calar a boca e desligar o gravador O jornalista se retirou do quebra queixo a rodinha formada por repórteres com câ meras e microfones em volta do entrevistado e reclamou de ter sido empurrado pelo militar Irritado o general partiu para cima do jornalista torceu seu braço o levou para a frente das câ meras e exigiu desculpas No ano seguinte em abril de 1984 flagrado por um fotógrafo em atrito com um estudante Cruz sacou um revólver e encostou a arma na barriga do fotógrafo O esforço para a continuidade do regime obscurantista fracassou com a derrota de Maluf para Tancredo Neves em votação indireta Tancredo morreu antes de sua posse e em março de 1985 seu vice presidente José Sarney assumiu o posto No novo governo o nome de Newton Cruz foi retirado da lista de candidatos à promoção de general de divisão para general de exército que correspondia ao topo da carreira Cruz entrou para a reserva e tentou sem sucesso a carreira política Jair Bolsonaro tomou as dores do general e passou a ventilar o ódio contra a Nova República que caracterizaria seu percurso político Na biografia de Jair Bolsonaro escrita por seu filho Flávio o autor menciona a frustração do pai ao veto à promoção do general Tal fato marcou a carreira de Newton Cruz e também os militares de uma forma geral pois era visto como uma referência para todos e o encerramento de sua carreira na ativa naquelas circunstâ ncias reforçou essa imagem de líder em especial para os jovens oficiais como Bolsonaro Cruz e Bolsonaro se conheceram depois do artigo do capitão publicado na revista Veja em 1986 quando então o general enviou um telegrama felicitandoo pela iniciativa Expresso meu acordo e minha tristeza com os fatos relatados em seu artigo escreveu o general2 Em 1987 Bolsonaro e Cruz se encontraram três vezes uma delas em Brasília em outubro pouco antes de o plano do capitão de explodir bombas ser revelado pela Veja Bolsonaro e outros oficiais foram jantar com o general em sua casa e o Correio Braziliense publicou uma nota maldosa sobre o encontro Não está nascendo grama na entrada da casa do general Newton Cruz Também naquela época já despontava a raiva de Bolsonaro contra a imprensa sempre disposta a constranger todos os militares3 Depois de publicada a matéria sobre seus planos de um atentado Bolsonaro viajou a Brasília sem permissão superior em busca do apoio do general da reserva Só tinha dinheiro para a passagem de ida e precisou pedir carona aos pilotos do avião na volta para o Rio Cruz foi arrolado como testemunha de defesa de Bolsonaro Em maio de 2020 em plena crise da pandemia o presidente Bolsonaro saiu a cavalo em Brasília durante uma manifestação que o apoiava Comentaristas identificaram no gesto uma alusão às cavalgadas de Newton Cruz mais de trinta anos antes em que de seu cavalo branco distribuía chicotadas nos carros de manifestantes que defendiam eleições diretas Outra referência decisiva na trajetória política e intelectual de Bolsonaro foi o coronel Carlos Brilhante Ustra chefe do Destacamento de Operações de Informações DOICodi do II Exército em São Paulo entre 1970 e 1974 Ustra se tornou para militares que atuavam na área de informação um símbolo da vitória da ditadura sobre os grupos armados de esquerda que lutaram naquele período Na visão desses militares Ustra era um valoroso representante dos oficiais que sujaram a mão na guerra enquanto militares burocratas articulavam em seus gabinetes com arcondicionado a entrega do poder aos comunistas No período em que Ustra esteve à frente do DOI paulista pelo menos 45 pessoas morreram ou sumiram depois de passar pelas dependências do órgão4 Dos 876 casos de tortura catalogados no livro Brasil nunca mais cerca de quatrocentos ocorriam no centro comandado por Ustra Uma dessas vítimas foi Ivan Seixas que na época tinha dezesseis anos e militava no Movimento Revolucionário Tiradentes Ele ficou preso no DOI junto com o pai Joaquim Alencar de Seixas também militante Durante dois dias ambos foram torturados lado a lado O filho pendurado no pau de arara e o pai levando choques na cadeira do dragão Sofreram espancamentos e afogamentos sucessivos A mãe de Ivan Fanny e suas duas irmãs Ieda e Iara acompanharam as torturas e ouviram quando o pai foi morto nas dependências do DOI Ieda sofreu violência sexual de três torturadores Os agentes segundo Ivan conversavam com Ustra sobre o andamento dos interrogatórios Ivan permaneceu preso até os 22 anos e depois se tornou militante de direitos humanos Anticomunista visceral Ustra foi um dos formuladores dos métodos de investigação usados no DOI que combinavam estratégias militares com táticas policiais Criou protocolos para chegar aos principais nomes da guerrilha urbana principalmente aqueles treinados em Cuba e na União Soviética Identificava suas redes de contato para descobrir e estourar seus aparelhos locais clandestinos usados pelos grupos políticos na época da luta contra a ditadura interrogando torturando e matando quando achasse necessário Também foi no DOI que surgiu o método conhecido como teatro que consistia em encenar tiroteios na rua para justificar a morte de presos Esse tipo de encenação continua sendo usado pelas polícias militares na democracia Não existe guerra sem sangue era uma das máximas de Ustra Ele não agia por impulso nem era meramente um sádico seguia ordens como um oficial disciplinado religioso respeitador da hierarquia e da equipe do DOI Gostava de citar que havia recebido a Medalha do Pacificador a mais alta comenda do Exército Levava com frequência a mulher e as duas filhas com ele para o trabalho e passou algumas noites de Natal com a família nas dependências do DOI Essa mistura de médico e monstro tinha lugar em sua personalidade porque Ustra acreditava ser o responsável por salvar o Brasil do comunismo uma guerra além de tiros e canhões Na visão dele e de parte da comunidade de informação esse tipo de conflito era mais desafiador por envolver o fanatismo ideológico dos comunistas que atuavam do outro lado Não se tratava somente de vencer no campo de batalha mas de ganhar a mente das massas Essa leitura que ele tinha da realidade vinha da doutrina da guerra revolucionária desenvolvida nos anos 1950 pelo Exército francês nas lutas coloniais na Indochina e na Argélia que norteou as ações das Forças Armadas brasileiras depois de 1964 Era essa guerra ideológica contra o marxismo que um grupo de militares entre os quais Ustra acreditava estar perdendo durante a abertura política e depois que a democracia foi estabelecida5 Interligado com uma rede de integrantes da comunidade de informação Ustra tentou articular a disputa de narrativas contra os exguerrilheiros que passariam a mandar no país Os militares queriam convencer as massas de que representavam a ordem a tradição e o progresso enquanto os esquerdistas da democracia submetiam os brasileiros à ideologia subversiva e revolucionária criada pelo marxismo O outro lado era numeroso e se tornaria cada vez mais influente assumindo cargos em escolas universidades jornais na cultura e na política Muitos dos que formariam essa nova elite tinham vindo da luta contra a ditadura e carregavam as marcas da tortura De acordo com o livro Brasil nunca mais pelo menos 1800 pessoas foram vítimas de tortura durante o regime militar6 Na Nova República muitas seriam alçadas à elite política e cultural brasileira Entre elas a futura presidente Dilma Rousseff presa pela operação Bandeirante que se transformaria nos DOIs em 1970 em Minas Gerais quando integrava a VAR Palmares Dilma foi pendurada no pau de arara levou choques apanhou com palmatória perdeu um dente sofreu hemorragia no útero Em 2011 foi a primeira mulher a assumir a presidência do Brasil sucedendo Luiz Inácio Lula da Silva preso pela ditadura em 1980 por comandar as greves do ABC Lula por sua vez havia sido eleito presidente em 2002 no lugar de Fernando Henrique Cardoso que se exilara no Chile em 1964 para não ser preso Regressou ao Brasil quatro anos depois para lecionar da Universidade de São Paulo mas foi aposentado compulsoriamente com a instituição do AI5 em dezembro daquele ano 1968 De FHC em 1995 ao impeachment de Dilma em 2016 os militares tiveram que aturar 21 anos de governos de exsubversivos Ustra mesmo depois de aposentado seguiu nas trincheiras travando uma guerra ideológica para salvar as massas da doutrinação esquerdista Sua atuação se deu em duas frentes Na sociedade civil colaborou em 1998 com a criação do grupo Terrorismo Nunca Mais contraponto à ONG Tortura Nunca Mais criada pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo No grupo conhecido como Ternuma Ustra era o encarregado de fazer a conexão entre membros da rede ou seja pessoas da comunidade de informações militares familiares e viúvas da ditadura Na segunda frente o exchefe do DOI coordenava e escrevia livros Seu primeiro projeto recebeu o nome de Orvil livro escrito ao contrário que pretendeu ser uma resposta ao Brasil nunca mais O Orvil foi um produto coletivo feito pelos integrantes da seção de informações do Exército iniciado em 1985 a pedido do ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves Os autores narravam as ofensivas dos comunistas para tomar o poder no Brasil desde a criação do Partido Comunista no país em 1922 passando pela Intentona em 1935 até a luta armada pós1964 A quarta e mais recente tentativa dizia o livro estava em pleno vigor na Nova República E seria a mais perigosa porque não ocorreria pela força e sim pelo controle das instituições culturais com os comunistas assumindo postos em escolas universidades jornais nas burocracias do governo O livro foi finalizado em 1987 com quase mil páginas mas teve sua publicação vetada por Leônidas Cópias do original passaram a circular de mão em mão entre a irmandade de militares inconformados com toda a fleuma das teorias da conspiração compreendidas apenas por alguns poucos iluminados Ustra ainda escreveu dois livros dessa vez assinados por ele Um deles Rompendo o silêncio publicado em 1987 foi escrito depois que a deputada Bete Mendes que pertencia ao Partido dos Trabalhadores o reconheceu como um de seus torturadores Os dois se encontraram durante uma viagem da deputada com o presidente Sarney ao Uruguai em agosto de 1985 Ustra era adido militar da embaixada brasileira em Montevidéu O livro negava essa e outras denúncias de tortura praticada por militares O segundo livro lançado em 2006 e intitulado A verdade sufocada A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça retomava a narrativa histórica do Orvil procuro desfazer mitos farsas e mentiras divulgadas para manipular a opinião pública e para desacreditar e desmoralizar aqueles que venceram escreveu o autor na quarta capa Foi esta obra que Bolsonaro disse ser seu livro de cabeceira durante a campanha presidencial As publicações de Ustra permitem compreender a narrativa que alimenta a agressividade do capitão reformado contra a esquerda A versão da história contada por Ustra ajudou a transformar um versículo bíblico do Evangelho de João em um mantra entoado pelo futuro presidente E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará De acordo com Ustra a verdade sufocada que devia ser reconhecida e que libertaria aqueles que a enxergassem pregava que o Brasil continuava em guerra e que os inimigos eram ainda mais ardilosos que os guerrilheiros de antigamente porque se fingiam de democratas Em 2016 na votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff como se um ciclo histórico se fechasse o deputado Jair Bolsonaro votou a favor do impedimento e se lembrou do torturador Ustra Perderam em 1964 Perderam agora em 2016 Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve Contra o comunismo pela nossa liberdade contra o foro de São Paulo pela memória do coronel Carlos Aberto Brilhante Ustra o pavor de Dilma Rousseff Pelo exército de Caxias Pelas nossas Forças Armadas Pelo Brasil acima de tudo Por Deus acima de todos O meu voto é sim Bolsonaro sempre desprezou partidos políticos com os quais se relacionava apenas para transformálos em instrumentos de seus objetivos e de suas estratégias pessoais Filiouse a sete partidos quase todos do centrão PDC PPR PPB PTB PFL PP PSC antes de ingressar no PSL em 2018 para concorrer à presidência Nunca se incomodou de estar filiado a agremiações envolvidas em escâ ndalos de corrupção porque atuava como um político solo Não se enturmava não buscava alianças nem mesmo com seus correligionários diversas vezes votou em desacordo com a indicação da liderança de seu partido Essa insociabilidade política o deixou de fora dos esquemas de financiamento ilegal de campanha via caixa dois que marcariam as eleições na Nova República Bolsonaro agia como um franco atirador sempre disposto a adotar um comportamento agressivo contra seus pares à esquerda Era uma peça que não se encaixava Sempre preferiu a violência mesmo que simbólica à política Como parlamentar foi um representante dos militares e dos policiais Atuava como um sindicalista que não se importava em usar armas sujas Em 1994 durante o governo Itamar Franco na aprovação da Unidade Real de Valor que daria as bases econômicas ao Plano Real Bolsonaro aprovou uma emenda de autoria dele que garantia benefícios ao salário de praças especiais mais do que dobrando os vencimentos da categoria Antes da sessão pediu a um assessor que enchesse um saco com estrume mole de vaca que ele levou ao Congresso A ideia era lançar os dejetos contra seus colegas em caso de derrota Só não fez isso porque a emenda foi aprovada7 Bolsonaro contudo tinha uma qualidade que não herdou nem de Ustra nem de Newton Cruz Falava tudo às claras seu ódio era transparente nunca dissimulou sua visão bélica seu desprezo pelas leis e pelo estado de direito Depois do Massacre do Carandiru em que 111 presos foram mortos por policiais em São Paulo episódio ocorrido em 1992 Bolsonaro afirmou Morreram poucos a PM tinha que ter matado mil Repetia que os direitos humanos serviam apenas para defender marginais e em sua obsessão por imagens escatológicas para a divulgação de seu site fez uma camiseta com a frase Direitos humanos esterco da vagabundagem Em 1999 quando exercia seu terceiro mandato como deputado federal deu um depoimento revelador ao programa Câ mera Aberta da TV Bandeirantes do Rio apresentado por Jair Marchesini Numa longa entrevista ele defendeu a tortura e sugeriu aplicála no expresidente do Banco Central Chico Lopes na época investigado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito Dar porrada no Chico Lopes Eu sou favorável à CPI no caso do Chico Lopes que tivesse pau de arara lá ele merecia isso pau de arara funciona Eu sou favorável à tortura tu sabe disso E o povo é favorável a isso também Depois confessou que sonegava impostos e aconselhou a população a fazer o mesmo Inclusive xará conselho meu e eu falo Eu sonego tudo que for possível Se eu puder não pagar nota fiscal eu não pago O dinheiro só vai pro ralo O apresentador perguntou se ele fecharia o Congresso Nacional caso fosse presidente do Brasil Não há a menor dúvida Daria o golpe no mesmo dia O Congresso não funciona e tenho certeza que 90 da população ia fazer festa e bater palma O Congresso hoje em dia não serve pra nada xará só vota o que o presidente quer Se ele é a pessoa que decide que manda que tripudia em cima do Congresso então dê logo o golpe parte logo pra ditadura Agora não vai falar em ditadura militar aqui Só desapareceram 282 a maioria marginais assaltantes de banco sequestradores Em vinte anos Só no último Carnaval de São Paulo morreram mais de trezentos O apresentador fez uma breve intervenção e disse que não era essa imagem que a população tinha da democracia Mas pra elite o que interessa é essa democracia que está aí eles estão se dando bem Eles estão deitando e rolando respondeu o deputado Bolsonaro O entrevistador perguntou o lógico Se o Congresso não serve pra nada por que o senhor está no Congresso Bolsonaro respondeu Pra não chegar um maucaráter no meu lugar No final do programa o apresentador perguntou O senhor tem esperança o senhor vê o Brasil num lugar melhor O senhor acredita nisso Bolsonaro mais uma vez não perdeu a chance Só com uma crise seríssima me desculpe Através do voto você não vai mudar nada nesse país nada absolutamente nada Só vai mudar quando infelizmente nós fizermos uma guerra civil aqui dentro e fazendo o trabalho que o regime militar não fez matando uns 30 mil começando com o FHC não deixar ele pra fora não matando Se vai morrer alguns inocentes sic tudo bem na guerra sempre morre inocente até fico feliz se eu morrer mas desde que vai 30 mil sic outros marginais junto comigo Fora isso fica nesse nhénhénhénhénhénhé não vamos chegar a lugar nenhum O apresentador queria encerrar o programa com uma mensagem otimista e tentou outra vez Qual a mensagem o senhor daria para um jovem de dezesseis dezessete anos que tem a idade dos seus filhos Bolsonaro Acreditar em Deus não ser ateu como o governo que está aí vamos combater o bom combate não aquilo que os estudantes fizeram no passado combatendo o regime militar aqueles que empurraram os estudantes para combater o regime militar estão todos em Brasília todo mundo lá se dando bem ou no Congresso no Judiciário no Executivo Eles falam em repartir riqueza tá todos eles muito mais ricos sic do que os que comandavam Brasília antigamente E para encerrar Vocês podem não gostar de mim mas eu sou uma pessoa sincera Essa figura controversa transparente e cheia de convicções que menosprezava as instituições democráticas e o estado de direito se manteve coerente Bolsonaro defendia uma violência purificadora contra um sistema bandido Daí seu envolvimento com o capitão Adriano da Nóbrega um herói na guerra contra os bandidos que aterrorizavam o Rio de Janeiro Os novos inimigos urbanos em vez de subversivos e comunistas passaram a ser os negros os pobres os jovens os moradores de favelas e os suspeitos de vender drogas Nessa guerra a morte do oponente não era problema mas caminho para a vitória A guerra continuava Os inimigos deveriam ser eliminados pelos verdadeiros patriotas dispostos a matar em defesa do Brasil contra o comunismo e contra os bandidos comuns Essa crença está na base da disposição homicida da rede de policiais militares e paramilitares que matam em nome de causas que consideram justificáveis A operação Bandeirante e os DOIs trabalharam com homens vindos dos grupos de extermínio dos anos 1960 como os esquadrões da morte a Invernada de Olaria os Homens de Ouro e integrantes da Scuderie Le Cocq peçaschave na tortura e na luta contra a guerrilha Em São Paulo o recrutamento do Exército seguiu a mesma linha Sérgio Paranhos Fleury o fundador do Esquadrão da Morte paulista replicou na polícia de São Paulo o modelo carioca Os conhecimentos de Fleury sobre tortura em presos comuns do pau de arara à cadeira do dragão assim como a cooptação de informantes ajudaram a definir os métodos depois aplicados nos DOIs Bolsonaro no entanto estava longe da linha de frente dos conflitos Durante a Nova República como deputado em Brasília dizia representar os que matavam em nome do Estado A ideia de que o homicídio podia ser um meio para alcançar um fim o aproximava da moral dos inimigos Na biografia que Flávio Bolsonaro escreveu do pai consta a participação de Bolsonaro em uma audiência de uma CPI no Congresso Nacional ocorrida em 2001 sobre tráfico de drogas Fernandinho BeiraMar iria prestar depoimento ele havia sido preso em território das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia as Farc Numa das salas da CPI estava Jair Bolsonaro Diz Flávio em seu livro Quando Bolsonaro assume a palavra se dirige a BeiraMar na CPI Senhor Fernando é muito dinheiro para estar na mão de um bandido em cima do morro Temos que parar de hipocrisia aqui nessa audiência como se tudo que acontece de errado no país fosse culpa de Fernandinho BeiraMar Se eu pudesse fazer algo contra você seria para matar ou morrer não podemos ficar na demagogia aqui O então deputado Bolsonaro quis insinuar que havia pessoas acima de BeiraMar na organização quando de fato se sabia que ele era o principal matuto do tráfico na época Flávio conta qual foi a resposta de BeiraMar carregada de sua admiração pelo parlamentar Eu sei que o senhor é um deputado que inclusive defende a pena de morte eu sei tudo do senhor O que falou foi a pura verdade não tem que ser hipócrita e ficar fazendo campanha política aqui Eu conheço a sua história muito mais do que o senhor crê ou imagina É uma pessoa que prega a pena de morte mas que também não tem rabo preso com ninguém não Flávio comenta no livro É evidente que atestado de idoneidade emitido por traficante não é algo a ser comemorado mas impressiona como a retidão de Bolsonaro na vida pública é reconhecida por todos os segmentos da sociedade inclusive por aqueles que são firmemente combatidos por ele como traficantes de droga BeiraMar e Bolsonaro acreditavam estar em guerra Mesmo em lados opostos no entanto viam os mesmos métodos violentos como necessários Era preciso matar ou morrer e certos erros deveriam ser pagos com a vida Como deputado federal Bolsonaro voltouse com discursos homenagens e iniciativas parlamentares para a rede de policiais militares e paramilitares que participavam desses conflitos cotidianos Bolsonaro também empurrou para esse universo seus três filhos Flávio Carlos e Eduardo Como Jair vivia em Brasília a aproximação com os grupos de policiais e paramilitares do Rio se deu por meio do sargento Fabrício Queiroz excolega de Bolsonaro no Exército e linha de frente do 18o Batalhão Queiroz era cria da Praça Seca em Jacarepaguá e participava dos conflitos policiais com os integrantes do tráfico na Cidade de Deus que sempre rendeu arrego armas e uma ampla diversidade de receitas Em 2003 Queiroz conheceu Adriano da Nóbrega com quem atuou num homicídio na Cidade de Deus A participação de policiais do 18o foi fundamental para que as milícias se espalhassem por Jacarepaguá Recreio e Barra principalmente depois de 2002 reinventando o modelo de Rio das Pedras Queiroz era o principal articulador da base de aliados bolsonarista no meio paramilitar Quando atuava na polícia a pedido de Jair ele foi cabo eleitoral de Flávio que com 22 anos ia concorrer ao Parlamento estadual Queiroz levou o garotão imberbe e criado na Tijuca para pedir votos nos batalhões policiais Anos depois também ajudou a indicar nomes a serem homenageados por Flávio no Parlamento o capitão Adriano suspeito de diversos assassinatos foi um condecorado recorrente Em 2007 Flávio contratou Queiroz para trabalhar em seu gabinete e quatro meses depois levou para lá a mulher do capitão Adriano Em 2016 foi a vez de a mãe de Adriano ser contratada por Flávio para atuar também em seu gabinete Em 2018 o Ministério Público do Rio apontou Fabrício Queiroz como articulador das rachadinhas apropriação de parte dos salários destinados aos funcionários do gabinete no gabinete de Flávio De acordo com as investigações do MP o esquema foi criado no ano em que Queiroz começou a trabalhar para Flávio Os Bolsonaro não pegavam dinheiro de empreiteiras nem de bancos não se vendiam a grandes empresários A família não precisava de muito dinheiro para fazer campanhas políticas pois já contava com os votos garantidos de militares e policiais e seus familiares Bolsonaro contudo achava que ganhava pouco como deputado federal Conforme explicou certa vez a maior parte de seu salário ia para o pagamento de impostos fundo de garantia e pensão para a ex mulher Fico somente com 5 do salário reclamou na entrevista que deu ao seu xará da Bandeirantes O dinheiro que os deputados recebiam ao assumir o mandato contudo era muito acima do salário de um parlamentar A verba de gabinete que a Assembleia Legislativa do Rio por exemplo destinava para cada deputado contratar até 25 funcionários com salários entre 548 reais e 15 mil reais era de 107 mil reais em 2020 No pedido de prisão preventiva expedido contra Fabrício Queiroz em junho de 2020 o juiz escreveu que as rachadinhas ocorreram no gabinete de Flávio Bolsonaro entre abril de 2007 um mês depois de Queiroz ser contratado e dezembro de 2018 Pelo menos onze ex assessores que repassavam parte de sua remuneração a Queiroz tinham com ele uma relação ou de parentesco ou de vizinhança ou de amizade Essas pessoas transferiram ao assessor de Flávio um total de 239 milhões de reais sendo 69 desse total em dinheiro vivo No mesmo período o Ministério Público detectou na conta corrente de Queiroz saques rotineiros que totalizaram 2967 milhões de reais As investigações descobriram que parte desse dinheiro era transferida para Flávio Bolsonaro por meio de depósitos bancários fatiados em pequenas parcelas Também foram encontrados depósitos na conta da mulher de Flávio e pagamentos mensais de boletos da escola das filhas do casal todos realizados por Queiroz O rolo financeiro acabaria alcançando o gabinete de Jair Bolsonaro na época em que ele era deputado federal Jair havia empregado a personal trainer Nathália Queiroz filha do sargento em seu gabinete em Brasília Nathália transferia parte do salário para as contas do pai foram repassados pouco mais de 150 mil reais de janeiro de 2017 a setembro de 2018 conforme mostraram os dados da quebra de sigilo de sua conta autorizada pela Justiça8 Anos antes entre 2007 e 2016 Nathália foi registrada no gabinete de Flávio na Assembleia do Rio e também repassava a maior parte do seu salário a Queiroz Mesmo registrada nos mandatos da família Bolsonaro Nathália seguiu sua bemsucedida carreira como personal trainer tendo várias celebridades entre seus clientes Nathália assim como as outras pessoas envolvidas parecia ter sido usada para os rolos de Queiroz nos gabinetes dos Bolsonaro Bolsonaro e sua família são representantes ideológicos de uma cultura miliciana que se fortaleceu no Rio e chegou à presidência do Brasil Defender extermínios seu pensamento dizia era lutar como um patriota pela missão de livrar o Brasil do mal Desde que enxergou essa sua verdade muitos anos atrás libertou se de freios morais e passou a pregar a violência abertamente Coube a Bolsonaro e a seus comensais da morte agir em defesa dessas crenças levantando a bandeira da ideologia paramilitar contra as instituições da Nova República que simbolizavam aquilo que deveria ser destruído Essa pregação se revelou especialmente sórdida depois da noite de quartafeira 14 de março de 2018 quando Marielle Franco e Anderson Gomes foram executados no Rio de Janeiro em plena intervenção militar A vereadora e o motorista morreram por volta das 21h30 causando comoção dentro e fora das redes sociais Na manhã seguinte começaram a circular no WhatsApp áudios fotos e memes querendo associar a vereadora ao tráfico de drogas Diziam que ela havia sido eleita pelo Comando Vermelho e que tinha namorado o traficante Marcinho VP chefe da facção Imagens de criminosos de bermuda e chinelo executando passageiros de um carro em data e local desconhecidos foram postadas a fim de sugerir que ela tinha sido morta por traficantes A viralização das mentiras era obra de expoentes do grupo que viria a se tornar poucos meses depois a base de apoio bolsonarista A desembargadora Marília Castro Neves acreditou nas mentiras que vinham se espalhando nas redes Dois dias depois do crime ela afirmou em seu Facebook que Marielle estava envolvida com bandidos Foi eleita pelo Comando Vermelho e descumpriu compromissos assumidos com seus apoiadores Ela mais do que qualquer outra pessoa longe da favela sabe como são cobradas as dívidas pelos grupos entre os quais ela transacionava Até nós sabemos disso A verdade é que jamais saberemos o que determinou a morte da vereadora mas temos certeza de que seu comportamento ditado por seu engajamento político foi determinante para seu trágico fim Qualquer outra coisa diversa é mimimi de esquerda tentando agregar valor a um cadáver tão comum como qualquer outro O site Ceticismo Político de propriedade do empresário Carlos Augusto de Moraes Afonso publicou uma reportagem com o título Desembargadora quebra narrativa do PSOL e diz que Marielle se envolvia com bandidos e é cadáver comum que falsificava uma matéria da Folha de SPaulo para simular que a notícia vinha da imprensa profissional Quatro horas depois o link foi compartilhado pelo Movimento Brasil Livre MBL e se tornou um dos mais populares sobre o tema com 360 mil compartilhamentos segundo levantamento da Universidade Federal do Espírito Santo e do jornal O Globo 9 Entre a quartafeira 14 de março e o domingo 18 de março a Fundação Getulio Vargas acompanhou tuítes que postavam notícias falsas sobre Marielle10 O primeiro foi publicado pouco depois das dez horas da manhã da sextafeira associando Marielle a Marcinho VP O deputado federal Alberto Fraga da bancada da bala e melhor amigo de Bolsonaro no Congresso reforçou o boato no fim da tarde ajudando a espalhar a mentira que ferveu nas redes no sábado Conheçam o novo mito da esquerda Marielle Franco Engravidou aos dezesseis anos usuária de maconha defensora de facção rival e eleita pelo Comando Vermelho exonerou seis funcionários mas quem a matou foi a PM escreveu o deputado Alberto Fraga Segundo o levantamento da FGV no período de cinco dias foram publicados 6676 tuítes espalhando notícias falsas sobre o crime e sobre Marielle Familiares e amigos da vereadora precisaram durante o luto articular uma rede de jornais agências e influenciadores para reverter a onda de mentiras nas redes sociais No dia 19 o PSOL havia recebido 15 mil e mails denunciando mentiras sobre a vereadora Ideias conspiratórias sobre política no Brasil não eram estranhas ao principal suspeito de ter executado Marielle e Anderson o sargento aposentado Ronnie Lessa Depois que policiais e promotores chegaram ao seu nome a Justiça autorizou a quebra dos dados telemáticos e telefônicos de Lessa Foram analisadas todas as suas atividades na internet de janeiro de 2017 a 14 de março de 2018 dia do assassinato Lessa fazia pesquisas sobre Carlos Brilhante Ustra sobre a ditadura militar e o Estado Islâ mico O policial também tinha obsessão pelo deputado Marcelo Freixo e por políticos da esquerda Em abril de 2017 lançou no campo de pesquisa do Google termos como mortes de marcelo freixo marcelo freixo enforcado lula enforcado dilmarousseff morta Também pesquisou sobre a filha e a exmulher de Freixo Em abril de 2017 Lessa mandou um email para si mesmo Adotem um bandido viva o PSOL Em julho o sargento reformado buscou dados sobre pesquisadores e ativistas de ONGs de direitos humanos com termos como ONG Redes da Maré Lidiane Malanquin Magacho Marina Mota Anistia Internacional Entre outubro de 2017 e fevereiro de 2018 Lessa pesquisou acessórios para a submetralhadora HK MP focando em silenciadores todos equipamentos usados no assassinato de Marielle e Anderson A partir de fevereiro de 2018 Lessa fez pesquisas sobre vereadores que haviam votado contra a intervenção federal no Rio Marielle era a relatora da comissão instalada na Câ mara Municipal para fiscalizar e acompanhar a intervenção Ainda em março Lessa buscou nomes importantes da universidade como as pesquisadoras Julita Lemgruber e Alba Zaluar Ainda foi atrás de militantes negras como a escritora K enia Maria e a cantora e compositora Iza que ele buscou como Iza Cantora Entre os dias 2 e 12 de março de 2018 pesquisou quatro endereços próximos aos lugares em que Marielle havia estado uma indicação de que ele monitorava os deslocamentos dela Se essa movimentação de Lessa pela rede não deixou claras suas motivações pelo menos mostrou pontos coincidentes entre seus interesses e o pensamento dos novos líderes que surgiram Não por acaso o duplo homicídio turbinou os votos de políticos que haviam ofendido a honra dos mortos Bolsonaro foi eleito presidente no final do ano com 578 milhões de votos ou 55 do total dos brasileiros que foram às urnas no segundo turno A escolha representava a derrota dos figurões da Nova República que depois de trinta anos de democracia haviam mergulhado o país numa crise econômica e política Os brasileiros também passavam um recado desnudando as angústias de uma população mal resolvida com sua própria história revelada na intolerâ ncia às diferenças e na tensão entre classes raças e culturas que a eleição do excapitão representava A sinceridade de Bolsonaro havia permitido ao brasileiro se olhar no espelho sem disfarces A imagem que se refletia era assustadora Haveria contudo um caminho a ser trilhado racionalizar o que veio à tona reconstruir o pacto político e amadurecer como nação Nesse processo não se deve diminuir o papel de Olavo de Carvalho que ajudou a dar sentido ao discurso de fúria e principalmente aproximar os militares ressentidos do antipetismo crescente que explodiria depois da reeleição da presidente Dilma Rousseff Conheci e comecei a ler os textos de Olavo na internet em 2002 quando cumpria meus créditos para o doutorado no Departamento de Ciência Política da USP O nome dele me foi indicado pelo meu professor e orientador Oliveiros S Ferreira referência no debate político nacional e que também havia sido diretor de redação e chefe dos editorialistas do jornal O Estado de S Paulo Oliveiros me disse que Olavo era a única pessoa que ele lia com interesse na imprensa daquela época Fui conhecer seus escritos Li os textos em seu site e tentei comprar um dos livros de Olavo Aristóteles em nova perspectiva Introdução à teoria dos quatro discursos A obra havia se esgotado e mandei um email para o autor me apresentando citando a conversa com Oliveiros e perguntando onde eu poderia comprála Como não havia mais exemplares à venda Olavo fez a gentileza de me enviar um arquivo do livro para eu ler Havia algo de fascinante nos textos de Olavo que discutia filosofia como alguém que dialogava com o leitor comum e não com seus pares da academia grupo do qual ele nunca fez parte Isso aumentava a sagacidade e a clareza de seus argumentos e tornava seus textos mais atraentes mesmo que repleto de distorções e sofismas Sua erudição era notável e se tornou um importante divulgador de autores de tradição conservadora ainda pouco debatidos no Brasil indicando títulos e organizando obras para uma rede de editoras algumas delas fundadas por exalunos de seus cursos de filosofia Livros como os dos economistas liberais Ludwig von Mises e Friedrich Hayek dos filósofos Roger Scruton Ortega y Gasset Eric Voegelin Mario Ferreira dos Santos dos críticos literários Otto Maria Carpeaux José Guilherme Merquior René Girard entre outros Olavo também tinha uma forte veia polemista que lembrava Paulo Francis mas que se tornaria cada vez mais agressiva Francis inclusive havia sido um leitor entusiasmado de um dos primeiros sucessos editoriais de Olavo O imbecil coletivo Atualidades inculturais brasileiras Nessa época começo dos anos 2000 Olavo ainda escrevia em jornais e revistas Aos poucos começou a perder esse espaço à medida que sobressaía outro traço de sua personalidade uma mistura de paranoia com anticomunismo visceral que o tornaria um dos mais criativos teóricos da conspiração no Brasil alertando com diversas citações a existência de um plano diabólico para dominar o Brasil e o mundo Olavo denunciava a formação de uma Nova Ordem Mundial a partir de uma corrente filosófica influenciada pelo marxismo que teria criado uma consciência coletiva que moldava corações e mentes com suas ideologias Essa hegemonia marxista no mundo das ideias estaria por trás do avanço mundial do comunismo que se encontrava em pleno vigor mesmo depois do fim da Guerra Fria A revolução comunista segundo essa interpretação ocorreria sem a necessidade de derramamento de sangue Seria definida como uma revolução do tipo gramsciano em referência ao filósofo italiano marxista Antonio Gramsci por ser uma tomada de poder passiva pelo domínio da cultura Olavo atacava ainda a omissão da imprensa em denunciar o avanço do comunismo na América Latina planejado no Foro de São Paulo organização fundada com o apoio do PT e que desde 1990 reunia mais de cem organizações e partidos de esquerda do continente que em breve tomariam o poder O comunismo ou a hegemonia cultural marxista ou o globalismo estaria portanto mais forte do que nunca com seus tentáculos espalhados pelo mundo e aceitos por uma população que nem sequer percebia como esses mecanismos de dominação funcionavam O marxismo dessa forma influenciava não apenas os partidos de esquerda mas também agências insuspeitas como a Organização das Nações Unidas a Rede Globo a imprensa em geral as principais ONGs mundiais cujo financiador central era o megainvestidor George Soros A construção narrativa de Olavo dialogava com a da ultradireita nos Estados Unidos que iria se fortalecer na oposição ao governo de Barack Obama e que levaria à surpreendente eleição de Donald Trump em 2016 Havia uma afinidade profunda entre as ideias olavistas sobre a revolução gramsciana e a doutrina da guerra revolucionária contida no livro de Brilhante Ustra A verdade sufocada Na edição ampliada de 2007 Ustra incluiu um trecho de O jardim das aflições de Olavo na conclusão Ao longo dos anos 2000 Olavo foi figura importante também em diálogos constantes com as Forças Armadas Fez conferências para oficiais e para o EstadoMaior do Exército teve textos publicados no site do grupo Terrorismo Nunca Mais do qual Ustra foi um dos fundadores Em 1999 Olavo recebeu a Medalha do Pacificador principal condecoração do Exército entregue pelo general Gleuber Vieira comandante no governo de Fernando Henrique Cardoso Era um discreto sinal de resistência infiltrada no governo que pagaria as primeiras indenizações a familiares de desaparecidos políticos e perseguidos pela ditadura Em 2001 Olavo de Carvalho recebeu a Medalha do Mérito Santos Dumont concedida pela Aeronáutica Um revisionista entusiasmado e seguidor das ideias de Ustra e de Olavo foi o general Hamilton Mourão vice presidente do Brasil no governo Bolsonaro A família Bolsonaro conheceria o filósofo anos depois e cairia de amores por ele Em 2012 o deputado Flávio Bolsonaro concedeu a Medalha Tiradentes a maior premiação da Assembleia Legislativa do Rio a Olavo de Carvalho a mesma entregue ao capitão Adriano da Nóbrega e a diversos milicianos Flávio fez questão de viajar aos Estados Unidos para fazer a entrega pessoalmente na casa do filósofo em Richmond na Virgínia Na gravação do encontro Flávio com 31 anos apareceu intimidado diante do professor Olavo agradeceu a comenda e depois passou a falar sobre a destruição da instituição familiar e do gayzismo com muitos palavrões e ofensas pessoais dirigidas aos opositores ideológicos As cenas seriam engraçadas se não fossem grotescas e protagonizadas por uma dupla cujas ideias seis anos depois ajudariam a definir o destino do Brasil Quando Jair Bolsonaro começou a planejar sua candidatura à presidência o futuro presidente ainda estava distante dos holofotes Os primeiros passos foram dados em março de 2014 quando se lançou pré candidato pelo PP e não foi levado a sério nem mesmo por seus correligionários Mandou uma carta ao partido oficializando o pedido mas acabou desistindo pela falta de interesse do partido em têlo como candidato a presidente e resolveu concorrer a mais um mandato de deputado federal seu sétimo Já havia no entanto uma energia diferente no ar Bolsonaro se elegeu com 464 mil votos tornandose o parlamentar mais votado no Rio Em novembro do mesmo ano durante a formatura de cadetes na Academia Militar das Agulhas Negras Bolsonaro ao falar com os formandos foi recebido com gritos de Líder Parabéns pra vocês Nós temos que mudar este Brasil tá ok Alguns vão morrer pelo caminho mas estou disposto em 2018 seja o que Deus quiser tentar jogar para a direita este país O nosso compromisso é dar a vida pela pátria e vai ser assim até morrer Nós amamos o Brasil temos valores e vamos preserválos Esse Brasil é maravilhoso tem tudo aqui Está faltando é político Há 24 anos apanho igual a um desgraçado em Brasília mas apanho de bandidos E apanhar de bandido é motivo de orgulho e glória Vamos continuar assim finalizou O clima sem dúvida havia mudado Em agosto de 1992 os militares barraram a entrada de Bolsonaro na Academia das Agulhas Negras na cerimônia de entrega de espadas Em protesto Bolsonaro deixou seu Chevette atravessado na portaria para bloquear a entrada dos convidados e só saiu rebocado por um guincho Integrantes das Forças Armadas embarcaram na onda bolsonarista Começou timidamente em 2015 quando o general Hamilton Mourão saiu em defesa da tutela militar durante as manifestações contra Dilma Rousseff11 Mourão seguiria com seu proselitismo nos anos seguintes aumentando o tom conforme se aproximava o prazo de ele ir para a reserva Em setembro de 2017 o general deu uma palestra numa casa maçônica em Brasília falando abertamente sobre a possibilidade de intervenção Ou as instituições solucionam o problema político pela ação do Judiciário retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos ou então nós teremos que impor isso Em outro momento reforçou a necessidade da tutela Os poderes terão que buscar uma solução se não conseguirem chegará a hora em que teremos que impor uma solução e essa imposição não será fácil ela trará problemas Diante da repercussão de sua fala na imprensa Mourão negou que defendesse a intervenção ou que tivesse a intenção de entrar na política Não Não sou político Sou soldado Mourão foi para a reserva em fevereiro de 2018 Em seu discurso de despedida chamou o coronel Carlos Brilhante Ustra de herói Questionado Mourão afirmou que Ustra havia sido seu comandante combateu o terrorismo e a guerrilha por isso é um herói Na mesma ocasião tornou público o descontentamento no interior das Forças Armadas com o pedido de intervenção federal no Rio de Janeiro ocorrido na semana anterior A intervenção no Rio de Janeiro é uma intervenção meiasola O general interventor Braga Netto não tem poder político Braga Netto é um cachorro acuado no final das contas Não vai conseguir resolver o problema dessa forma E nós só vamos apanhar afirmou A intervenção federal foi decretada em fevereiro A decisão se deu em uma reunião realizada na Quarta Feira de Cinzas sem planejamento ou comunicação prévia depois que assaltos e arrastões em Ipanema durante o Carnaval repercutiram no país O autor da ideia foi o secretáriogeral da presidência e ex governador do Rio Moreira Franco O objetivo era revigorar politicamente o governo Temer fragilizado com denúncias de corrupção e sem bandeiras depois de a reforma da Previdência ser inviabilizada no Congresso O marqueteiro de Temer Elsinho Mouco abraçou a medida Era a última cartada para o presidente Temer tentar a reeleição Bastava convencer o governador do Rio do mesmo partido o MDB Afogado em crises Luiz Fernando Pezão aceitou Na mesma semana da intervenção o governo federal publicou seu novo slogan O governo que está tirando o país da maior recessão da história agora vai tirar o Rio de Janeiro da violência As Forças Armadas seriam instrumentalizadas para tentar eleger um presidente afundado em denúncias de corrupção Além de se sentirem usados por um presidente sem credibilidade os militares já tinham seu candidato o próprio Mourão que em agosto seria anunciado como vice na chapa de Bolsonaro A dobradinha dos patriotas que idolatrava Ustra seguidora de Olavo de Carvalho era lançada para desbancar os políticos corruptos da Nova República A verdade sufocada poderia ser finalmente conhecida O assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes ocorreu em meio ao malestar criado entre Temer e os militares linhadura O duplo homicídio era uma evidente afronta ao governo federal e ao Exército no Rio mesmo assim foi tratado de forma pusilâ nime pelos comandantes da intervenção Os generais deram declarações protocolares sem sequer esboçar empenho para pegar os assassinos Houve também a percepção incômoda de que os militares concordavam com muito do que havia sido dito nos dias seguintes ao crime com o objetivo de minimizálo O comandante da intervenção no Rio de Janeiro o general Walter Braga Netto humilhado pelas milícias se tornaria o chefe da Casa Civil de Jair Bolsonaro dois anos depois Os militares que por mais de trinta anos tinham se mantido fiéis a seu papel constitucional assumiam ao lado do presidente o processo de desmoralização das Forças Armadas ressuscitando o fantasma de tiranetes que governam por baionetas A vitória de Donald Trump em novembro de 2016 animou os apoiadores de Bolsonaro no Brasil O caminho das pedras para eleger um outsider havia se iluminado Em janeiro de 2017 o deputado Eduardo Bolsonaro o zero três viajou aos Estados Unidos para conversar com o Bruxo de Virgínia o apelido fazia referência a uma suposta capacidade de Olavo para prever o futuro e ao estado americano em que morava Olavo já era um ídolo pop da ultradireita e Eduardo fez uma live da casa dele vestindo uma camiseta estampada com a frase Olavo tem razão e uma foto do filósofo Na transmissão de quinze minutos o filho de Bolsonaro fez duas perguntas a seu oráculo o que a vitória de Trump representava para o mundo e o que ocorreria na eleição brasileira em 2018 Sobre a primeira pergunta Olavo tergiversou e disse que o novo presidente norteamericano deveria destruir seus inimigos imediatamente senão não teria tréguas Depois sobre as eleições no Brasil alertou que a direita deveria tomar cuidado para não rachar pois uma divisão de votos levaria à derrota Existiam pontos em comum entre a realidade do Brasil e a de outros países assolados pela onda direitista como Itália Hungria Israel Filipinas Turquia Polônia Reino Unido e Estados Unidos Em geral eram países que viviam momentos de crise econômica ou instabilidade política o que favorecia a construção de bodes expiatórios com a ajuda das redes sociais A estratégia de comunicação da eleição de Trump por exemplo liderada pelo empresário e milionário Steve Bannon seguiu esse caminho com críticas à tolerâ ncia aos imigrantes à globalização que transferira empregos para a China ao importar seus produtos e à desconstrução de valores tradicionais No Brasil os vilões foram os petistas e os partidos corruptos da Nova República que haviam criado um Estado inchado e leis brandas para punir os culpados Também impunham valores esquerdistas e degenerados A narrativa da direita tentava convencer pela emoção instigando o medo a insegurança e a revolta A imposição dos valores globalistas e marxistas dos tempos de Lula e de Barack Obama tinha deixado tudo de pernas para o ar As acusações eram direcionadas a ativistas dos movimentos LGBT que buscavam fragilizar a família e incentivar o comportamento homossexual nas escolas primárias ao movimento negro que impunha a noção de raça sobre a de indivíduo criando tensões despropositadas aos ambientalistas que sob o pretexto de evitar o aquecimento climático queriam minar o motor da economia capitalista ou entregar a Amazônia aos estrangeiros O rompimento com a tradição anunciava a direita bolsonarista empurrava parte dos brasileiros para um lugar desconhecido Resgatar os valores transmitidos pelos pais avós e bisavós da época em que todos sabiam o que era certo e errado quem mandava na casa e na família a diferença entre homem e mulher dos tempos em que havia ordem e previsibilidade podia trazer a sensação de paz e segurança O bolsonarismo se propunha a engatar essa marcha a ré com a ajuda das novas ferramentas digitais As campanhas virais que impulsionaram o impeachment de Dilma Rousseff no Brasil e o sucesso eleitoral de Trump seriam a inspiração da campanha digital que elegeria Bolsonaro presidente A possibilidade de manipular a revolta das massas nunca havia sido tão acessível Nos Estados Unidos Steve Bannon foi diretor da Cambridge Analytica filiada da empresa inglesa Strategic Communication Laboratories SCL criada pelo empresário Robert Mercer especializada em marketing hiperindividualizado Com base em milhares de dados pessoais colhidos nos perfis de usuários das redes sociais a Cambridge direcionava mensagens ou notícias não importava se verdadeiras ou falsas para manipular o comportamento de seus alvos e induzir o voto em determinado candidato Em 2014 a empresa tinha armazenado cerca de 50 milhões de perfis do Facebook A Cambridge e o Facebook seriam acusados depois da vitória de Trump de fornecer sem autorização dados de usuários em ações consideradas decisivas para definir o resultado eleitoral 12 Em 2017 Eduardo Bolsonaro se aproximou desses grupos de influenciadores direitistas com a ajuda de um dos alunos mais aplicados de Olavo de Carvalho Filipe Martins que durante a campanha presidencial foi assessor do PSL Formado em relações internacionais pela Universidade de Brasília Martins tinha trabalhado na embaixada dos Estados Unidos na capital federal onde entrou em contato com o site Breitbart News e Steve Bannon Martins já escrevia para sites brasileiros de extrema direita como Terça Livre Mídia Sem Máscara e Senso Incomum Junto com Eduardo e Carlos Bolsonaro o zero dois Martins teve papel importante na campanha de Jair Bolsonaro à Presidência ajudando a mobilizar a rede de sites blogs e replicadores de notícias que vinha se fortalecendo desde as manifestações contra Dilma Rousseff Essa máquina de desinformação foi levada para dentro do governo de Jair Bolsonaro e apelidada internamente de gabinete do ódio por ministros e assessores do Palácio do Planalto Martins virou assessor especial da presidência e também ganhou um apelido Robespirralho que fazia referência ao radicalismo do líder jacobino da Revolução Francesa Robespierre Durante as eleições brasileiras as mentiras disseminadas principalmente através do WhatsApp chegaram a níveis degradantes Olavo de Carvalho por exemplo afirmou em sua página que Fernando Haddad oponente de Bolsonaro na eleição defendia o incesto Estou lendo um livrinho do Haddad onde ele defende a tese encantadora de que para implantar o socialismo é preciso primeiro derrubar o tabu do incesto K it gay é fichinha Haddad quer que os meninos comam suas mães O cientista político Marcos Coimbra analisou as pesquisas eleitorais e afirmou que a estratégia da campanha bolsonarista de focar em valores morais foi decisiva sobretudo para mudar o voto dos evangélicos que correspondem a 30 do eleitorado13 A mudança na intenção de votos dos evangélicos teria ocorrido no período de 26 de setembro a 5 de outubro principalmente entre as mulheres religiosas de classe média baixa A confiança nos políticos dos diversos partidos forjados na Nova República havia ido à lona A fúria contra os políticos despertada depois de junho de 2013 cresceria com a popularidade de agentes da lei e autoridades prontas a travar guerra contra os criminosos de colarinhobranco Perdiam pontos os políticos ganhavam pontos os militares os juízes e os policiais que se diziam dispostos a impor a ordem perdida E se prometessem tudo isso com discursos autoritários e truculentos ainda melhor As redes sociais e inúmeros comunicadores guiados por teóricos da conspiração ajudaram a construir uma narrativa capaz de fazer ferver e depois direcionar esse caldeirão de emoções contra as minorias os políticos e as instituições democráticas Foram tempos loucos violentos e doentios Tempos de Jair Bolsonaro o capitão da República das Milícias Ubuntu Flexibilizar as regras para porte posse e venda de armas reduzir o controle dos homicídios cometidos pela polícia Se eu tivesse que pensar em duas mudanças legislativas para facilitar a vida dos paramilitares no Brasil essas estariam em primeiro lugar Não apenas porque a venda de armas e munições é fonte complementar de receita dos milicianos mas também porque os homicídios têm sido um dos principais instrumentos de poder desses grupos O presidente não decepcionou sua base de apoio Como prometeu durante a campanha Bolsonaro editou duas semanas depois de assumir um primeiro decreto de flexibilização da posse de armas e de diminuição dos controles de fiscalização sobre elas com permissão até para o cidadão comum comprar fuzis Em maio de 2020 um novo decreto do governo ampliava o porte de armas autorizando diversas categorias profissionais a andar armadas na rua Era o cumprimento de promessas de campanha de estímulo ao mercado formal mas que ajudavam os negócios do mercado do crime O Congresso conseguiu barrar os dois decretos forçando o governo a negociar mudanças O presidente no entanto seguia tentando fragilizar os órgãos de controle e ampliar os limites de compra de armas e munições alcançando pequenas vitórias para facilitar a vida principalmente dos atiradores e colecionadores Os resultados apareceram No primeiro semestre de 2020 139 mil armas haviam entrado em circulação no país um total superior aos doze meses de 20181 Armar a população era uma meta obsessiva do governo Bolsonaro Em fevereiro de 2019 o ministro da Justiça Sergio Moro apresentou um projeto de lei que chamou de anticrime No pacote de medidas a ser apresentado ao Congresso uma delas determinava que o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicála se o excesso ocorrer de escusável medo surpresa ou violenta emoção em casos de legítima defesa A legítima defesa já era obviamente um direito garantido em lei Entre 2018 e 2019 mais de 12 mil homicídios foram cometidos pela polícia em supostas ações de legítima defesa o que tornou as corporações brasileiras as mais letais do mundo em números absolutos Em um cenário em que a violência da polícia vinha batendo recordes sucessivos sem que as instituições conseguissem coibir ou fiscalizar os excessos a proposta aumentava o descontrole sobre a corporação Se a impunidade já imperava o projeto de lei passava um recado é permitido exterminar O Congresso mais uma vez conseguiu barrar as propostas mais polêmicas do pacote que foi parcialmente aprovado Ainda assim nas ruas das grandes cidades a violência seguiu batendo recordes mesmo durante a pandemia As tropas das polícias militares eram forte base de apoio do governo Bolsonaro logo cumpriu diversas promessas de campanha Nomeou ministros obscurantistas para as pastas da Educação das Relações Exteriores do Meio Ambiente e da recémcriada pasta da Mulher Família e Direitos Humanos Também levou militares para o governo Tendo à frente os generais Hamilton Mourão Braga Netto Augusto Heleno Luiz Eduardo Ramos e Fernando Azevedo uma grande tropa fardada ganhou cargos na burocracia civil Até julho de 2020 segundo informações dos próprios ministérios já haviam passado pelo governo ou estavam nas pastas e em algumas autarquias mais de 250 militares2 Dez dos 23 ministros tinham origem militar Levantamento feito pela Folha de SPaulo indicou um crescimento de 33 de militares da ativa em cargos comissionados no governo Bolsonaro Eles ocupavam 2558 postos3 Pouco mais de três décadas depois do início da Nova República as Forças Armadas voltavam a ocupar postoschave no governo O ministro da Justiça Sergio Moro deixou o governo em abril de 2020 O exjuiz saiu acusando o presidente Bolsonaro de tentar intervir na Polícia Federal do Rio de Janeiro que investigava Flávio Bolsonaro no caso das rachadinhas O sargento Fabrício Queiroz preso preventivamente dois meses depois ganhou o direito de cumprir pena em prisão domiciliar por meio de um habeas corpus concedido pelo presidente de plantão do Superior Tribunal de Justiça João Otávio de Noronha A mulher de Queiroz Márcia Aguiar que estava foragida também recebeu o benefício A máquina de incitação contra bodes expiatórios passou a rodar no Palácio do Planalto e foi para as mãos de um grupo de funcionários que formavam o gabinete do ódio Liderados por Filipe Martins Carlos e Eduardo Bolsonaro o núcleo deu prosseguimento aos ataques contra opositores e à disseminação de mentiras iniciados durante a campanha O governo sempre negou a existência de um grupo que espalhava fake news até que o próprio Facebook derrubou diversas páginas de seus integrantes A beligerâ ncia continuou durante a pandemia do coronavírus Bolsonaro atacou epidemiologistas e médicos que recomendaram o isolamento social como a forma mais segura naquele momento de desacelerar contaminações e mortes e de evitar o caos no sistema de saúde Também vociferou contra os governadores que seguiam recomendações de médicos e cientistas agrediu a imprensa que noticiava e explicava sobre a gravidade da situação e demitiu dois ministros seus da Saúde médicos que tentavam controlar e reduzir os danos e as mortes causados pela epidemia substituindoos por um militar sem experiência na área Portanto não foi de espantar que em agosto de 2020 o Brasil tivesse alcançado o segundo lugar no ranking mundial de mortes pela Covid 19 com mais de 100 mil vítimas atrás apenas dos Estados Unidos Mesmo assim Bolsonaro seguia apoiado por mais de um terço da população brasileira4 Minha conversa com Lobo o exmiliciano entrevistado no primeiro capítulo havia me ajudado a pegar e a puxar o fio daquele emaranhado de fatos e desembaraçálo ao longo deste livro A linha de raciocínio de Lobo de defender o homicídio como instrumento para a obtenção de obediência e de ordem foi a mesma que contribuiu para a formação dos diversos grupos armados que passaram a disputar territórios no Rio Ao fim da pesquisa para este livro uma conversa que tive com os irmãos Jerominho e Natalino me permitiu saber ainda mais sobre a lógica dessa escolha reforçando os argumentos de Lobo Acusados em meados dos anos 2000 de serem os fundadores da Liga da Justiça os dois carregam nas costas um conjunto considerável de denúncias Carminha filha de Jerominho e sobrinha de Natalino também participou da conversa organizada para um projeto paralelo do qual participo liderado pelo cineasta Fernando Gronstein Foram duas horas e meia de um papo online com a família que estava em casa em Campo Grande na zona oeste do Rio de Janeiro Jerominho e Natalino são representantes de um tempo em que os paramilitares matavam em público em plena luz do dia com diversos tiros num só corpo para passar recados aos rivais Natalino foi apelidado de Mata Rindo pelos policiais Na época as mortes associadas a conflitos como esses foram estimadas em pelo menos sessenta casos a maior parte sem autoria comprovada por medo das testemunhas Em 2007 e 2008 os dois foram presos e condenados e passaram uma temporada de quase dez anos em presídios federais isolados com direito a raras horas de banho de sol em um lugar em que suicídios e surtos de prisioneiros eram comuns Foram soltos em outubro de 2018 Pouco mais de um ano depois Jerominho se candidatou a prefeito do Rio mas desistiu por problemas no coração Carminha sua filha que em 2008 também esteve presa por 45 dias em um presídio federal para homens assumiu a cabeça da candidatura tendo o pai como vice A chapa se chamava Coração Valente Durante o batepapo realizado por vídeo por causa da pandemia o que não esfriou o entusiasmo do trio Jerominho e Natalino se mostraram carismáticos Cantaram jingles antigos dos tempos em que Jerominho foi candidato a vereador em ritmo de funk com direito ao som de bateria eletrônica feito com a voz No fim nos convidaram para um churrasco com violão e samba para depois que saísse a vacina da Covid19 Aos 71 anos Jerominho não assustava mais com seu jeito de avô bonachão uma grande barriga e rosto vermelho Natalino aos 64 era o tipo risonho que se calava respeitoso quando o irmão mais velho começava a falar Eles me lembraram os coronéis dos sertões do Brasil reinventados nas periferias urbanas cariocas Assim como tinha me ocorrido no encontro com Lobo enquanto eu os ouvia me perguntava como duas personalidades distintas podiam conviver em um único indivíduo Habitavam o mesmo corpo o médico e o monstro O matador e o homem cordial Claro que eu não estava diante de pessoas com dupla personalidade O carisma e a violência não eram traços opostos mas complementares na formação dessas autoridades que mandavam nos bairros Foi para onde a conversa se dirigiu Jerominho e Natalino assim como Lobo e outras figuras importantes no crime quando matavam acreditavam agir em defesa de uma causa Os dois contaram que eram policiais em Campo Grande bairro onde moravam e passaram a ajudar os vizinhos em razão das imensas carências do local Ofereciam garrafas de oxigênio a comunidades pobres e criaram um centro comunitário que ampliou o atendimento à população Segundo Jerominho como ele era um policial conhecido na região moradores o procuravam para resolver problemas Conforme sua fama crescia os pedidos também aumentavam Certa vez ele baleou três ladrões que tentaram roubar sua filha Carminha na porta de casa A partir daí tornouse inevitável construir uma aliança de homens armados para se protegerem contra inimigos bem como pensar em fontes para financiar o grupo De acordo com os promotores o financiamento se deu inicialmente pelo controle do transporte alternativo na região Mais tarde outras fontes de receita surgiriam A violência vista dessa ótica ganha um papel instrumental Quando imposta pela defesa de uma causa coletiva em favor dos mais fracos ajuda na garantia da ordem e da obediência às regras Como uma ação pedagógica O homicídio ensinaria aos demais o destino dos ladrões que ousavam desobedecer Essa modalidade de assassinato portanto era vista como um antídoto ao roubo e ao tráfico de drogas formas de violência consideradas covardes desrespeitadoras das regras e geradoras de imprevisibilidade Assassinatos encarados desse ponto de vista podem levar à ordem que por sua vez traz segurança Já o roubo e o tráfico são sinônimos de desordem provocam medo e uma sensação de vulnerabilidade Por isso os esquadrões da morte foram criados e aplaudidos Eles vendiam a ideia de que eliminavam ladrões em nome da segurança O mesmo caminho foi seguido por outros grupos como a Invernada de Olaria a Scuderie Le Cocq as polícias mineiras da Baixada Fluminense os justiceiros de São Paulo Todos alegavam matar em defesa dos fracos mas acabavam matando em defesa dos próprios interesses À medida que a venda de drogas aumentava os traficantes passaram a se armar para seguir no jogo Houve diversos confrontos A violência desses grupos armados traficantes e paramilitares em vez de promover a obediência estimulou reações rivalidades vinganças e uma espiral de mortes Quando o Estado e a Justiça abrem mão de suas funções a disputa é definida pela lei do mais forte Bolsonaro venceu a eleição de 2018 porque parte dos brasileiros foi seduzida pela ideia da violência redentora Diante da crise econômica e da descrença na política os eleitores escolheram um justiceiro para governálos Como se o país decidisse abandonar suas instituições democráticas para se tornar uma enorme Rio das Pedras gerida por princípios milicianos Sem dúvida há espaço para aprender e amadurecer depois do surto bolsonarista A tristeza e a depressão chegaram porque o Brasil prometido pela Nova República não aconteceu Bolsonaro foi o sintoma dessa desesperança O momento de achar os culpados Como dizia Darcy Ribeiro contudo somos ainda um povo em ser na dura tarefa de encontrar o próprio destino há um país em busca de uma teoria sobre si mesmo que em vez de olhar para fora e se frustrar com o que não conseguiu ser precisa olhar para dentro e compreender melhor quem é Para encontrar esse rumo a via a ser trilhada depende da política Uma construção que necessita do diálogo entre representantes dos interesses em jogo para fortalecer os laços de solidariedade É preciso compreender aonde se quer chegar refletir sobre os valores coletivos para garantir um contrato que contemple interesses gerais e direitos individuais A obediência a esse pacto vai ocorrer conforme as regras do jogo sejam vistas como justas e legítimas A violência quando aclamada como solução alerta para a fragilidade do pacto abrindo espaço para a ruptura e a guerra fratricida Desde seu ingresso na política Marielle aspirava ajudar a construir esse diálogo Foi eleita vereadora do Rio de Janeiro em 2016 com uma campanha inspirada no ubuntu filosofia sulafricana que em 1994 serviu de base para que Nelson Mandela e o bispo Desmond Tutu costurassem um pacto para a reconstrução do país no pósapartheid Eu sou porque nós somos era o slogan da candidata Marielle que pregava entendimento entre as diferenças em contraposição à guerra As transformações contudo levam tempo e exigem esforço Depois do assassinato de Marielle uma das últimas mensagens que ela escreveu nas redes sociais continua a ressoar Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe Bolsonaro veio com a proposta de acirrar a guerra O surto que levou os eleitores a optar por essa via já faz parte da história brasileira mas se tudo der certo será passageiro Permanece a mensagem deixada por Marielle a apontar o único caminho possível Priscila Pezato Bruno Paes Manso é autor de A guerra A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil Todavia 2018 em coautoria com Camila Nunes Dias É jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP Bruno Paes Manso 2020 Todos os direitos desta edição reservados à Todavia Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 capa Pedro Inoue composição Jussara Fino leitura jurídica Luís Francisco Carvalho Filho preparação Ciça Caropreso checagem Luiza Miguez revisão Huendel Viana Tomoe Moroizumi versão digital Antonio Hermida Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Paes Manso Bruno 1971 A república das milícias Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro Bruno Paes Manso São Paulo Todavia 1ª ed 2020 304 páginas ISBN 9786556920672 1 Situação política 2 Segurança pública 3 Milícias 4 Rio de Janeiro I Título CDD 3209 Í ndices para catálogo sistemático 1 Situação política Segurança pública 3209 todav ia Rua Luís Anhaia 44 05433020 São Paulo SP T 55 11 3094 0500 wwwtodavialivroscombr Notas 2 Os elos entre o passado e o futuro 1 Balanço publicado em reportagem da revista piauí Luigi Mazza Flávio os condenados e os condecorados piauí 22 fev 2019 Disponível em httpspiauifolhauolcombrflaviooscondenadoseoscondecorados Acesso em 16 jul 2020 2 Moção 26502003 Disponível em httpalerjln1alerjrjgovbrscpro0307nsfe4bb858a5b3d42e383256cee00 6ab66a7c5e3718a895341783256dc9004b6f49OpenDocument Acesso em 16 jul 2020 3 Moção 31802004 Disponível em httpalerjln1alerjrjgovbrscpro0307nsfe00a7c3c8652b69a83256cca00 646ee520f1a3fbde44a5c283256e4d007055ecOpenDocument Acesso em 16 jul 2020 4 Disponível em httpswwwcamaralegbrinternetsitaqwebTextoHTMLasp etapa5nuSessao291352OnuQuarto30nuOrador2nuInsercao 0dtHorarioQuarto0958sgFaseSessaoBCData27102005txApelid oJAIR20BOLSONARO20PPRJtxFaseSessaoBreves20Comunic aC3A7C3B5estxTipoSessaoExtraordinC3A1ria20 20CDdtHoraQuarto0958txEtapa Acesso em 13 ago 2020 5 Disponível em httpswwwcamaralegbrinternetSitaqWebTextoHTMLasp etapa5nuSessao138152OnuQuarto13nuOrador1nuInsercao 0dtHorarioQuarto1454sgFaseSessaoBCData12082003 Acesso em 16 jul 2020 6 Disponível em httpwww3alerjrjgovbrlotusnotesdefaultasp id58urll3rhcwfszxjqmjawni5uc2yvogi5ownhmzhlmdc4mjzkyjazmju2ntm wmda0nmzkzjevyzcyywy4odi5ntqwzwfkzdgzmju3yjzimda2mjuyotkt3blbkrv y3vtzw50Jkv4cgfuzfnly3rpb249msnfu2vjdglvbje Acesso em 16 jul 2020 7 No livro Mito ou verdade que escreveu sobre o pai 8 Ibid 9 Disponível em httpalerjln1alerjrjgovbrtaqalerj2006nsf5d50d39bd976391b83256536 006a2502d8acec134b8797f983257b6b0064c41fOpenDocument Acesso em 13 ago 2020 10 Disponível em httpswwwcamaralegbrinternetsitaqwebTextohtmlasp etapa3nuSessao326253OnuQuarto20nuOrador1nuInsercao 0dtHorarioQuarto1548sgFaseSessaobc202020202020 2020Data17122008txApelidojair20bolsonarotxFaseSessaoBr eves20ComunicaC3A7C3B5es20202020202020 20202020dtHoraQuarto1548txEtapaCom20redaC3A7C 3A3o20final Acesso em 17 jul 2020 3 As origens em Rio das Pedras e na Liga da Justiça 1 Levantamento feito em 2020 pela Outdoor Social Inteligência OSI para a formação G10 das Favelas bloco econômico com as dez maiores comunidades brasileiras 2 Instituto Pereira Passos IPP Sistemas de Assentamentos de Baixa Renda Sabren Disponível em httppcrjmapsarcgiscomappsMapJournalindexhtml appid4df92f92f1ef4d21aa77892acb358540 Acesso em 17 jul 2020 3 Esse histórico do processo de ocupação de Rio das Pedras e do papel da associação de moradores está em Favela cidade e cidadania em Rio das Pedras In Marcelo Burgos A utopia da comunidade Rio das Pedras uma favela carioca Rio de Janeiro PUCRio Loyola 2002 4 Depoimento de Maria do Socorro Tostes no processo que investigava a tentativa de homicídio que ela sofreu em 2008 O seu marido Félix Tostes fora assassinado no ano anterior 5 Estimativa fornecida por testemunhas ao DisqueDenúncia e revelada na CPI das Milícias em 2008 6 Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar ação de milícias no Rio de Janeiro CPI das Milícias feito em 2008 ver Ignácio Cano e Thais Duarte No Sapatinho A evolução das milícias no Rio de Janeiro 20082011 Rio de Janeiro Fundação Heinrich Böll 2012 7 Relatório final da CPI das Milícias 8 Depoimento do delegado Marcus Neves à CPI das Milícias em 2008 9 Nilton Claudino contou sua história em Minha dor não sai no jornal piauí ago 2011 Disponível em httpspiauifolhauolcombrmateriaminhadornaosainojornal Acesso em 21 ago 2020 Em abril de 2019 ele deu entrevista ao programa Conversa com Bial disponível em httpsgloboplayglobocomv7546170 Acesso em 21 ago 2020 10 Números da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro Disponível em httppiauifolhauolcombrlupawp contentuploads201805milicianospresosbalancopng Acesso em 17 jul 2020 4 Fuzis polícia e bicho 1 Projeto do Instituto de PósGraduação dos Estudos Internacionais e Desenvolvimento localizado em Genebra publicou o relatório Small Arms Survey As armas e a cidade O estudo foi realizado pelos pesquisadores James Bevan Small Arms Survey e Pablo Dreyfus Viva Rio com a colaboração de Walter Barros Departamento Técnico e Científico da Polícia do Rio DPTC Marcelo de Souza Nascimento Instituto de Estudos da Religião Iser e Júlio Cesar Purcena Viva Rio 2 Ver Instituto Sou da Paz De onde vêm as armas do crime apreendidas no Sudeste Análise do perfil das armas de fogo apreendidas em 2014 Disponível em httpsoudapazorgoque fazemosconhecerpesquisascontroledearmasasarmasdocrime showdocumentos3563 Acesso em 17 jul 2020 3 Daniel Veloso Hirata e Carolina Christoph Grillo Operações policiais no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Fundação Heinrich Böll 2019 4 Levantamento feito pela plataforma Fogo Cruzado Disponível em httpsfogocruzadoorgbr Acesso em 17 jul 2020 5 Zuenir Ventura Cidade partida São Paulo Companhia das Letras 1994 p 17 6 David Maciel de Mello Neto Esquadrão da Morte Outra categoria de acumulação social da violência no Rio de Janeiro Dilemas v 10 n 1 2017 7 Para a história do Esquadrão Suicida e do Esquadrão da Morte ver David Maciel de Mello Neto op cit 8 Informações do relatório final da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro 9 Relato do jornalista Laurindo Ernesto que na época trabalhava no Última Hora ao programa Fora de Pauta 10 Relatório final da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro 2015 p 320 5 Facções e a guerra dos tronos 1 Alba Zaluar e Luiz Alberto Pinheiro de Freitas Cidade de Deus A história de Ailton Batata o sobrevivente Rio de Janeiro FGV 2017 2 Carlos Amorim CV PCC A Irmandade do Crime Rio de Janeiro Record 2003 3 Ibid 4 Márcio Santos Nepomuceno e Renato Homem Marcinho Verdades e Posições O direito penal do inimigo Rio de Janeiro Gramma 2017 5 Ibid 6 Marcos Alvito As cores de Acari Uma favela carioca Rio de Janeiro FGV 2001 7 Marcelo Rezende e Milton Costa Carvalho Um rei à Bangu Placar 14 mar 1980 Disponível em httpswwwbangunetbrinformacaoreportagens19800314php Acesso em 13 ago 2020 8 A história da ascensão de Uê na cena do crime do Rio foi contada no livro Enjaulados Presídios prisioneiros gangues e comandos Rio de Janeiro Gryphus 2009 na seção escrita pelo jornalista Marcelo Auler sobre o Rio de Janeiro 9 A história de Lillo Lauricella foi contada pelo jurista e exsecretário Nacional Antidrogas Wálter Maierovitch disponível em httpwwwibgforgbrindexphp dataidsecao3dataidmateria1195 Acesso em 20 jul 2020 e na reportagem Corleones do Brasil da Revista Superinteressante disponível em httpssuperabrilcombrhistoriacorleonesdobrasil Acesso em 20 jul 2020 10 Palloma Valle Menezes Os rumores da pacificação A chegada da UPP e as mudanças nos problemas públicos no Santa Marta e na Cidade de Deus Dilemas v 7 n 4 pp 66584 2014 11 Dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 12 Dados do Instituto de Segurança Pública do Estado 6 Marielle e Marcelo 1 Sobre a postura mais discreta e as mudanças na forma de agir dos paramilitares desde 2008 os sociólogos Ignácio Cano e Thais Duarte publicaram em 2012 o estudo No Sapatinho A evolução das milícias no Rio de Janeiro 20082011 Rio de Janeiro Fundação Heinrich Böll 2012 2 Carina Bacelar Luã Marinatto e Renan Rodrigues Jornada de trabalho de policiais militares pode ser mexida Extra 15 mar 2018 Disponível em httpsextraglobocomcasosdepoliciajornadadetrabalhodepoliciais militarespodesermexida22491313html Acesso em 21 jul 2020 3 Informações extraídas de inquéritos das Operações da Polícia Federal Black Ops Hurricane e Escambo 4 Conforme investigação da Polícia Federal e denúncia feita pelo Ministério Público Federal que subsidiou a operação Segurança Pública SA 5 Levantamento feito pelo jornalista Flávio Costa Em dez anos 53 milicianos citados em CPI foram assassinados no Rio UOL 16 abr 2018 Disponível em httpsnoticiasuolcombrcotidianoultimas noticias20180416emdezanos53milicianoscitadosemcpiforam assassinadosnoriohtm Acesso em 21 jul 2020 7 As milícias 5G e o novo inimigo em comum 1 Thiago Antunes Polícia cobrava propina de R 500 mil ao mês e R 1 milhão para uso de caveirão O Dia 7 jun 2017 Disponível em httpsodiaigcombrconteudoriodejaneiro20170607policia cobravapropinader500milaomeser1milhaoparausode caveiraohtml Acesso em 13 ago 2020 2 Estimativa da Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Propriedade Imaterial DRCPIM 3 Roberta Pennafort A polícia vai mirar na cabecinha e fogo diz novo governador do Rio O Estado de S Paulo 1 nov 2018 Disponível em httpspoliticaestadaocombrnoticiaseleicoesapoliciavaimirarna cabecinhaefogodiznovogovernadordorio70002578109 Acesso em 22 jul 2020 4 Ancelmo Gois Witzel ouve de Bolsonaro Eu tenho um parafuso a menos mas você tem dois O Globo 15 dez 2018 Disponível em httpsblogsogloboglobocomancelmopostwitzelouvedebolsonaro eutenhoumparafusomenosmasvocetemdoishtml Acesso em 22 jul 2020 5 Sérgio Ramalho Polícias mataram 881 pessoas em 6 meses no RJ Nenhuma em área de milícia UOL 20 ago 2019 Disponível em httpsnoticiasuolcombrcotidianoultimasnoticias20190820policias mataram881pessoasem6mesesnorjnenhumaemareade miliciahtm Acesso em 13 ago 2020 6 G1 Witzel diz que em outros lugares do mundo poderia ter autorização para jogar míssil em bandidos da Cidade de Deus G1 14 jun 2019 Disponível em httpsg1globocomrjriode janeironoticia20190614emdiscursowitzelfalaemjogarmissilem traficantesnacidadededeusghtml Acesso em 22 jul 2020 7 Clara Velasco Felipe Grandin e Thiago Reis Número de pessoas mortas pela polícia cresce no Brasil em 2019 assassinatos de policiais caem pela metade G1 16 abr 2020 Disponível em httpsg1globocommonitordaviolencianoticia20200416numerode pessoasmortaspelapoliciacrescenobrasilem2019assassinatosde policiaiscaempelametadeghtml Acesso em 22 jul 2020 8 A informação consta no livro Os porões da contravenção Jogo do bicho e ditadura militar A histórica aliança que profissionalizou o crime organizado Rio de Janeiro Record 2015 de Aloy Jupiara e Chico Otávio 9 Ibid 10 Alguns textos consultados no debate sobre economia no Rio de Janeiro são Bruno Leonardo Barth Sobral A crise no Rio não deve ser tratada como crise no Rio Brasil Debate 6 maio 2017 disponível em httpsbrasildebatecombracrisenorionaodevesertratadacomo crisedorio Acesso em 13 ago 2020 Observatório dos Benefícios Jogando Luz na Escuridão disponível em httpsapublicaorgwp contentuploads201611RelatoCC81rioObservatoCC81riodos BenefiCC81ciospdf Acesso em 13 ago 2020 Mauro Osório e Maria Helena Versiani O papel das instituições na trajetória econômica social do estado do Rio de janeiro Cadernos do Desenvolvimento Fluminense Rio de Janeiro n 2 jul 2013 8 Cruz Ustra Olavo e a ascensão do capitão 1 Elio Gaspari A ditadura acabada Rio de Janeiro Intrínseca 2016 2 Luiz Maklouf Carvalho O cadete e o capitão São Paulo Todavia 2019 3 Flávio Bolsonaro Jair Messias Bolsonaro Mito ou verdade Rio de Janeiro Altadena 2017 4 Relatório da Comissão Nacional da Verdade 5 A discussão sobre as influências sofridas pelo Exército está aprofundada no livro A Casa da Vovó Uma biografia do DOICodi 19691991 o centro de sequestro tortura e morte da ditadura militar São Paulo Alameda 2014 de Marcelo Godoy 6 Ver Brasil nunca mais São Paulo Vozes 2014 7 O relato está no livro de Flávio Bolsonaro op cit 8 Camila Mattoso e Italo Nogueira Gabinete de Jair Bolsonaro abasteceu rachadinha por meio da filha de Queiroz indicam extratos bancários Folha de SPaulo 12 ago 2020 Disponível em httpswww1folhauolcombrpoder202008gabinetedejairbolsonaro abasteceurachadinhapormeiodafilhadequeirozindicamextratos bancariosshtml Acesso em 17 ago 2020 9 Gabriela Cariello e Marco Grillo Como ganhou corpo a onda de fake news sobre Marielle Franco O Globo 23 mar 2018 Disponível em httpsogloboglobocomriocomoganhoucorpoondadefakenews sobremariellefranco22518202 Acesso em 22 jul 2020 10 Disponível em httpdappfgvbrpesquisadafgvdappidentificauso derobosemate5debatenotwittersobremortedemariellefranco e em httpdappfgvbrmortedemariellefrancomobilizamaisde567mil mencoesnotwitterapontalevantamentodafgvdapp Acesso em 22 jul 2020 11 O conteúdo da palestra foi divulgado em reportagem de Rodrigo Vizeu General critica políticos em palestra e pede despertar para a luta patriótica Folha de SPaulo 19 out 2015 Disponível em httpswww1folhauolcombrpoder2015101695840generalcritica politicosempalestraepededespertarparaalutapatrioticashtml Acesso em 22 jul 2020 12 Essas discussões sobre o papel da mídia e das redes sociais no Brasil e nos Estados Unidos se inspiram nos debate feitos no grupo Jornalismo Direito e Liberdade sobre o texto de Ciro Marcondes Filho Hora de reescrever as teorias da Comunicação Questões Transversais Revista de Epistemologias da Comunicação v 7 n 14 Disponível em httprevistasunisinosbrindexphpquestoesarticleview19765 Acesso em 22 jul 2020 13 A análise feita por Marcos Coimbra foi divulgada por Ciro Marcondes e pelo site Paz e Bem Ver Milhões de evangélicas pobres decidiram a eleição em favor de Bolsonaro É preciso conversar com elas Paz e Bem 20 fev 2019 Disponível em httpspazebemorgsociedade100512milhoesdeevangelicaspobres decidiramaeleicaoemfavordebolsonaroeprecisoconversarcom elas Acesso em 24 ago 2020 Ubuntu 1 Levantamento feito pelo programa de variedades Fantástico Quase 140 mil novas armas de fogo são registradas no Brasil só em 2020 G1 19 jul 2020 Disponível em httpsg1globocomfantasticonoticia20200719quase140milnovas armasdefogosaoregistradasnobrasilsoem2020ghtml Acesso em 22 jul 2020 2 Informações obtidas via Lei de Acesso à Informação pelo site Fiquem Sabendo jul 2020 3 Ranier Bragon e Camila Matoso Presença de militares da ativa no governo federal cresce 33 sob Bolsonaro e mais que dobra em 20 anos Folha de SPaulo 18 jul 2020 Disponível em httpswww1folhauolcombrpoder202007presencademilitaresda ativanogovernofederalcresce33sobbolsonaroemaisquedobraem 20anosshtml Acesso em 22 jul 2020 4 Em agosto de 2020 pesquisa Datafolha indicou que o presidente alcançou aprovação recorde com 37 dos brasileiros afirmando que consideram seu governo ótimo ou bom Ver DW Aprovação de Bolsonaro bate recorde no auge da pandemia UOL 14 ago 2020 Disponível em httpsnoticiasuolcombrultimas noticiasdeutschewelle20200814aprovacaodebolsonarobaterecorde noaugedapandemiahtm Acesso em 17 ago 2020 A GUERRA A ASCENSÃO DO PCC E O MUNDO DO CRIME NO BRASIL Bruno Paes Manso Camila Nunes Dias A Guerra a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil Manso Bruno Paes 9788588808041 344 páginas Compre agora e leia Uma reportagem de alta temperatura que comprova a falência da segurança pública no Brasil Os autores entrevistaram diversos integrantes do PCC e revelam as entranhas das organizações criminosas Este livro é uma reportagem capaz de fixar a fisionomia do crime no Brasil Os autores obtiveram relatos inéditos de integrantes das facções e contam essa história sob um ângulo inédito e revelador Geridas de dentro dos presídios as facções criminosas se profissionalizaram Quem assumiu a dianteira desse processo foi o PCC responsável por um grau inédito de organização nos presídios brasileiros Criada em 1993 meses após o Massacre do Carandiru quando 111 presos foram mortos pela polícia a facção passou a ditar as regras do crime nos presídios de São Paulo impôs sua influência sobre outros estados e agora se internacionaliza a uma velocidade vertiginosa Nunca essa realidade foi retratada com tintas tão fortes Compre agora e leia RAIVA BOB WOODWARD Raiva Woodward Bob 9786556920771 480 páginas Compre agora e leia Nesta nova e explosiva reportagem do lendário jornalista Bob Woodward que revelou os meandros da presidência de Donald Trump no bestseller Medo Trump na Casa Branca o leitor conhecerá o momento exato em que o presidente norteamericano foi avisado da ameaça representada pela Covid19 Conforme era informado de que o vírus poderia atingir a escala da Gripe Espanhola que matou 50 milhões de pessoas ao redor do mundo em 1918 Trump aparecia em público minimizando o perigo da pandemia Ao longo de sete meses Woodward gravou dezessete entrevistas com Trump num raro e detalhado vislumbre de sua mente O que emerge aqui é um presidente combativo em negação mas também ocasionalmente em dúvida afrontado pelas ameaças que vê à sua presidência ou como ele diz pela dinamite atrás de todas as portas Woodward o jornalista que trouxe à tona o caso Watergat e e que vem há décadas desnudando o poder em Washington acompanhou o presidente Trump nos momentos decisivos de 2020 Ele revela um presidente que age por instinto seguindo os hábitos e o estilo que definiram seus três primeiros anos no poder A partir de centenas de horas de entrevistas com o alto escalão do governo bem como de inúmeros documentos confidenciais diários agendas emails e cartas Woodward mostra como membros do gabinete tentavam manter o país a salvo enquanto Trump desmantelava qualquer tentativa de decisão colegiada nos assuntos de segurança nacional O livro traz com exclusividade vinte e cinco cartas trocadas entre Trump e Kim Jong Un um retrato inédito da amizade entre os dois líderes descrita pelo nortecoreano como saída de um filme de fantasia Raiva é um trabalho monumental Sua ampla documentação é base para uma narrativa dramática que detalha os bastidores da Casa Branca num momento de profunda crise doméstica e internacional Um dos maiores jornalistas de todos os tempos W oodw ard conseguiu acesso sem precedentes aos corredores do poder O resultado é um livro que precisa ser lido hoje mas que já nasce como um clássico do jornalismo Compre agora e leia O CADETE A VIDA DE JAIR BOLSONARO NO QUARTEL LUIZ MAKLOUF CARVALHO E O CAPITÃO O cadete e o capitão Maklouf Carvalho Luiz 9786580309368 256 páginas Compre agora e leia Uma investigação sobre um momento controverso na trajetória de Jair Bolsonaro o abandono da carreira militar e o ingresso na vida política Jair Bolsonaro tornouse uma figura pública em 1986 quando assinou na revista Veja um artigo em que reclamava do baixo soldo pago aos militares Um ano depois nas páginas da mesma revista reapareceu numa reportagem que revelava um plano de estourar bombas em locais estratégicos do Rio de Janeiro A revista publicou um desenho que detalhava o plano O croqui supostamente de autoria do capitão comprovaria a conspiração em curso no Exército Instado a prestar contas Bolsonaro foi considerado culpado no primeiro julgamento e mais tarde inocentado pelo Superior Tribunal Militar stm Após a decisão da corte deixou a farda passou à reserva e ingressou na política Esta é a reportagem mais completa já escrita sobre esse período pouco conhecido O autor examinou a documentação do processo reproduzida no livro e escutou as mais de cinco horas de áudio da sessão secreta ambos disponíveis no stm Também entrevistou personagens que atuaram no caso entre jornalistas de Veja e militares colegas de Bolsonaro Além de reunir indícios suficientes para apontar que a autoria do croqui como sustentou Veja até o fim era mesmo do capitão Maklouf reconstitui um episódio decisivo não apenas para a trajetória do presidente eleito em 2018 mas também para a redemocratização e o jornalismo no Brasil Compre agora e leia A alma perdida Olga Tokarczuk Joanna Concejo A alma perdida Tokarczuk Olga 9786556920689 40 páginas Compre agora e leia Ilustrada por Joanna Concejo vencedora da Menção Especial do Prêmio Bologna Ragazzi 2018 A alma perdida selecionada no White Ravens 2019 é a nova obraprima da escritora polonesa Olga Tokarczuk vencedora do Prêmio Nobel de Literatura Um livro que encanta enternece e faz pensar Era uma vez um homem que trabalhava muito e quase não prestava atenção no tempo que passava diante de seus olhos Não que sua vida fosse ruim Ele apenas sentia que tudo ao seu redor estava plano como se estivesse se movendo na folha de um caderno de matemática inteiramente coberta por quadradinhos iguais e onipresentes Esta é uma história que leva o leitor a buscar a si mesmo conduzindoo a um desenlace maravilhoso e inesperado como só os grandes contos de fadas são capazes de fazer Uma história que se abre para o futuro sem respostas mas com inúmeras e fascinantes perguntas destinadas a todas as idades Compre agora e leia OLGA TOKARCZUK SOBRE OS OSSOS DOS MORTOS Sobre os ossos dos mortos Tokarczuk Olga 9786580309702 256 páginas Compre agora e leia A aclamada autora mistura thriller e humor nesta reflexão sobre a condição humana e a natureza Vencedora do NOBEL DE LITERATURA Vencedor do MAN BOOKER INTERNATIONAL PRIZE 2018 Subversivo macabro e discutindo temas como mundo natural e civilização este livro parte de uma história de crime e investigação convencional para se converter numa espécie de suspense existencial Uma das grandes vozes humanistas da Europa segundo o jornal The Guardian Olga Tokarczuk oferece um romance instigante sobre temas como loucura injustiça e direitos dos animais Compre agora e leia
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A REPÚBLICA DAS MILÍCIAS DOS ESQUADRÕES DA MORTE À ERA BOLSONARO Bruno Paes Manso DADOS DE C OPY RIG H T S OBRE A OBRA PRES ENTE A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos bem como o simples teste da qualidade da obra com o fim exclusivo de compra futura É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda aluguel ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo S OBRE A EQ UIPE LE LIVROS O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa Você pode encontrar mais obras em nosso site LeLivroslove ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste LINK Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais lutando por dinheiro e poder então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível Bruno Paes Manso A república das milícias Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro 1 Apenas um miliciano 2 Os elos entre o passado e o futuro 3 As origens em Rio das Pedras e na Liga da Justiça 4 Fuzis polícia e bicho 5 Facções e a guerra dos tronos 6 Marielle e Marcelo 7 As milícias 5G e o novo inimigo em comum 8 Cruz Ustra Olavo e a ascensão do capitão Ubuntu Autor Créditos Notas 1 Apenas um miliciano A entrevista com Lobo foi marcada em frente ao McDonalds da estação de trem da Central do Brasil o que me deixou animado por dois motivos Primeiro ali eu poderia chegar um pouco antes da hora marcada tanto para reduzir minha ansiedade como para observar o intenso vaivém naquele prédio histórico de onde partia ainda no século X IX a estrada de ferro D Pedro II A estação ainda por cima ficava bem em frente ao Morro da Providência a primeira favela brasileira que eu pretendia conhecer Depois que comecei a pesquisa para este livro todas as coisas no Rio de Janeiro passaram a ter um lado fascinante Sentiame como um turista deslumbrado vagando pelo centro histórico e cultural brasileiro olhando tudo à minha volta querendo aprender todas as coisas que ainda não sabia e redescobrir aquelas que eu conhecia apenas de forma superficial Em segundo lugar aquele encontro era especial porque finalmente depois de algumas tentativas frustradas eu iria conversar sobre milícias com alguém que havia participado intensamente desse cenário e que tinha se oferecido para me contar o que sabia Demorou para conseguir mas a conversa prometia Lobo o entrevistado vivia num sítio na Baixada Fluminense e não se sentia seguro para falar sobre o tema no bairro em que morava Naquele dia ele iria ao centro do Rio para acompanhar o enteado em um curso de gastronomia ao lado da estação de trem Fico preocupado porque ele volta tarde e o Rio de Janeiro está muito perigoso Por isso eu vou com ele sempre que posso Teremos algumas horas para conversar enquanto espero ele me sugeriu em uma mensagem de áudio no WhatsApp Eu não sabia o que esperar O relato que ele me fez sobre a família sua preocupação com a segurança do enteado suavizavam na minha cabeça a imagem do miliciano Tínhamos sido apresentados por um colega nosso que eu havia conhecido meses antes e que trabalhava no sistema penitenciário do Rio Para convencer Lobo a falar me comprometi a não revelar seu nome Lobo é um apelido que surgiu durante o nosso papo Eu também não daria detalhes que acabassem por denunciálo às autoridades ou a inimigos Garantir seu anonimato era a condição para a nossa conversa E prometi presenteálo com um livro Vimos a foto um do outro no WhatsApp para que nos reconhecêssemos na estação A impressão inicial que tive de Lobo quando o vi pessoalmente não correspondeu às minhas expectativas Ele era forte com excesso de peso alto pouco mais de um metro e oitenta cabelo curto quase raspado Usava boné uma barba moderna dois alargadores de orelha e tatuagens grandes em um braço Vestia uma camisa preta cheia de caveiras estilizadas que evocavam mais o Dia dos Mortos mexicano do que os esquadrões da morte brasileiros Parecia um integrante de uma banda de rock indie Pegamos o trem e fomos para o hotel onde eu estava hospedado em Copacabana Nos acomodamos na varanda que estava vazia Pedi duas garrafas de água mineral dei a ele meu maço de cigarros quase cheio e iniciamos a conversa Nas mais de cinco horas de papo Lobo se revelou um ótimo contador de histórias Falou da infâ ncia em São João de Meriti onde convivia com matadores e grupos de extermínio de seu ingresso nas milícias no começo dos anos 2000 e também de sua relação com as companhias e os batalhões policiais da região onde atuava Fumou o maço inteiro Falamos ainda dos três anos em que ficou preso acusado de mais de vinte homicídios e ocultação de cadáveres de sua absolvição por falta de provas e por fim de sua nova vida em liberdade Ele contou com naturalidade até mesmo episódios truculentos sem remorso nem vergonha do passado Não que se mostrasse frio com toques de perversidade ou coisas do gênero Nada disso As histórias se respaldavam em crenças comuns no contexto em que ele viveu e no trabalho que passou a fazer Na sua rede profissional como segurança privado e depois miliciano ações violentas faziam sentido e não eram vistas como problema mas como solução para fortalecer a autoridade e a ordem num bairro ameaçado por criminosos Contou sobre os diversos homicídios que testemunhou ou cometeu como se não fossem nada de mais E de fato não seriam se eu seu interlocutor enxergasse o mundo da mesma forma que ele Como um soldado que lutou em uma guerra e matou diversos inimigos Lobo não tinha por que negar seu passado Fora do combate tornou a ser um cidadão comum preocupado com a volta para casa do enteado depois do curso de gastronomia Lobo falou de violência portanto como se fosse um miliciano reformado não precisava mais matar mas compreendia a relevâ ncia e a necessidade dos assassinatos que presenciou ou cometeu A disposição de praticar homicídios segundo ele colaborou na construção do poder e da ordem no bairro onde sua milícia agia A nova ordem que ele ajudou a criar na sua concepção era melhor do que a vigente no passado estabelecida pelos bandidos e pelo tráfico A violência fardada dos paramilitares se justificava por ser um meio de defender os interesses dos cidadãos de bem contra a ameaça dos criminosos Por isso se orgulhava de ter sido assassino e passado a trabalhar no exército dos paramilitares do Rio tinha se visto numa guerra contra o crime e os homicídios as surras e a violência eram ferramentas de trabalho Percebi que a sua obsessão por caveiras também tinha a ver com isso Essas tatuagens eu fiz na prisão Minha ideia era fazer uma caveira para cada pessoa que matei Fiz duas mas depois desisti de continuar tatuando Lobo disse que precisou matar pelo menos quatro pessoas quando era miliciano sem contar as vítimas durante trocas de tiros que não entram na sua contabilidade por terem ocorrido durante os conflitos Mortos de guerra a gente não conta explicou Os assassinatos que contam são aqueles feitos para punir ou dar lições em que ele agiu como se fosse um juiz aplicando uma sentença mortal aos desviantes Lobo arregaçou a manga da camisa e me mostrou tatuado o artigo 121 que no Código Penal identifica o crime de homicídio Antigamente quando eu ouvia um é nóis já é é o trem cara do meu lado falando gíria do Comando Vermelho eu já queria matar Depois que fui para a prisão e dividi a cela com muito vagabundo mudei aprendi a ver o lado humano disse No presídio Lobo começou a fumar maconha e acabou levando o hábito para sua vida fora da prisão Fumo todo dia É o meu Gardenal Acabo indo nas bocas comprar Ainda não gosto de ladrão mas não é como antes Mudei minha visão explicou justificando com uma frase que seu enteado lhe ensinou e que atribuiu a William Shakespeare Quando a mente de uma pessoa evolui não tem mais como voltar atrás A disposição de Lobo para matar portanto não era a de um psicopata Tampouco sua obsessão por caveiras era satâ nica Sua determinação homicida não decorria de uma pulsão nem fazia dele um assassino que matava para defender os próprios interesses Considerava a violência que praticava instrumento em defesa de um ideal coletivo Definiu sua trajetória com base numa antiga crença segundo a qual o assassinato garantia poder ao assassino e sua transformação em herói na guerra cotidiana contra o crime Sobretudo depois dos anos 1960 quando ladrões e criminosos passaram a ser vistos como uma grande ameaça aos moradores das metrópoles ideias semelhantes de uma justiça retaliativa vinham seduzindo muita gente nas cidades brasileiras De acordo com essa perspectiva para anular a violência do crime bastaria ser ainda mais forte e violento que o criminoso Crenças como essa se popularizaram entre policiais levando à formação de diferentes arranjos Policiais e vigilantes se organizaram em todo o Brasil No Rio de Janeiro e no Espírito Santo foi criada a Scuderie Le Cocq em homenagem ao detetive Milton Le Cocq morto em ação em 1964 Em São Paulo nos anos 1980 grupos de justiceiros começaram a agir Em diversas regiões do país formaramse batalhões especiais de polícia que exibiam caveiras como símbolo de sua coragem e letalidade no combate aos traficantes de drogas que estavam se armando e controlando territórios Tais grupos passaram a travar disputas entre si na tentativa de cumprir em suas áreas de atuação o papel que o Estado brasileiro não parecia capaz que seria o de garantir pelo monopólio legítimo da força a formação de uma autoridade que impusesse a todos o respeito às regras locais Durante o período democrático com a propagação desses grupos armados o Brasil se tornaria o país com a maior taxa de homicídios no mundo mesmo sem estar envolvido em guerras conflitos civis étnicos ou religiosos Lobo foi apenas uma das peças dessa engrenagem urbana de conflitos entre grupos que acreditavam participar de uma guerra legítima cada um defendendo interesses distintos e com efeitos devastadores sobre a imensa maioria da população obrigada a viver em meio a balas perdidas e submetida à tirania de forças à margem da lei Lobo ingressou nas milícias o lado paramilitar dessas organizações logo que esse modelo começou a se expandir no Rio de Janeiro Acompanhou portanto a rápida expansão desses grupos que cresceram e se infiltraram nas instituições do Rio a ponto de se tornarem a principal ameaça à democracia no estado Lobo nasceu no final dos anos 1970 em Duque de Caxias e passou a adolescência em São João de Meriti um dos treze municípios da Baixada Fluminense A região um conjunto de planícies que se estende ao longo de oitenta quilômetros da Via Dutra ficou famosa como reduto de grupos de extermínio Apoiados por empresários bicheiros políticos municipais e pela polícia local eles matavam sob a alegação de defender os trabalhadores O exmiliciano se recorda de uma cidade tranquila em sua infâ ncia e adolescência onde ele podia jogar futebol nos campinhos do bairro até as duas da manhã Conforme registros oficiais porém a cidade não era tão calma assim a taxa de homicídios ultrapassava os trinta casos por 100 mil habitantes no final dos anos 1990 Lobo mesmo frisando a sensação pessoal de segurança lembra de ter presenciado assassinatos Meu pai trabalhava com obras fazia empreitadas com um cara conhecido na Baixada como Papa Papa não era policial era justiceiro Não deixava roubarem no bairro Uma vez quando eu tinha uns oito anos estava sentado no bar e vi dois negros passarem pela avenida Na época a gente ainda não via fuzil as armas mais pesadas eram calibre 12 Papa estava passando de carro parou e matou os dois Depois entrou no bar pediu uma cerveja uma coca pra mim e ficou lá sentado Eram umas onze da manhã Passou a viatura da polícia e ele Opa é tudo comigo O problema lá onde eu morava era se você usasse droga ou roubasse Assim como outros de sua idade Lobo curtia baile funk e chegou a descolorir o cabelo num estilo semelhante ao de jovens de favelas ligadas ao Comando Vermelho Quase morreu pela ousadia Eu vinha subindo a rua o Papa parou o carro do meu lado no meu cu não passava nem agulha Ele acelerou foi na minha casa e deu o maior esporro no meu pai Pô seu filho é bandido agora Tá andando que nem vagabundo Eu quase matei seu filho Manda ele cortar o cabelo Foi prontamente atendido Em 1998 Papa que atuava como empresário na região e cujo nome é João Paulo Neves assassinou o vereador Sérgio Costa Barros O político foi sequestrado na Câ mara Municipal colocado no portamalas do carro e levado até um terreno baldio onde carro e corpo foram queimados Um amigo nosso o Berimba vinha pela estrada viu o Papa e ofereceu carona O justiceiro aceitou e contou o que tinha feito Depois disse que o Berimba tinha se tornado cúmplice por ajudálo a escapar da cena do crime Um ano depois durante as investigações sobre a morte do vereador a polícia descobriu a identidade do carona Berimba precisou testemunhar contra João Paulo virando uma granada sem pino que podia explodir a qualquer momento A vingança de Papa era dada como certa O matador no entanto perdoou o rapaz Em 2006 Papa foi condenado a dezoito anos de prisão pelo assassinato do político Os homicídios Lobo explicou funcionavam como um instrumento para controlar os comportamentos desviantes em seu bairro Normalmente só morria quem devia e usava drogas A ilusão de que as mortes são previsíveis e de que só morre quem desrespeita as regras é uma crença comum entre moradores de bairros onde atuam grupos de extermínio e que eu entrevisto faz alguns anos Como se tais ações fossem um dispositivo para garantir a preservação das regras locais Os roubos estes sim seriam ações intoleráveis e covardes Por serem imprevisíveis e atingirem vítimas escolhidas aleatoriamente causariam medo e repulsa nos moradores Seriam repudiados e associados a valores negativos por causar imprevisibilidade e desordem Já os matadores ganhariam aplausos ao resgatar a ordem usando violência contra os violadores das normas locais A amizade e o convívio com policiais reforçavam em Lobo a convicção de que violência produz ordem Uma noite ao sair de uma casa de shows na Baixada a Via Show em companhia de um amigo policial que estava de folga os dois pararam diante de um carrinho de cachorroquente que funcionava de madrugada fazia mais de vinte anos Os donos eram um casal de idosos que vendia o lanche a um real pelo copinho de refresco cobravam mais vinte centavos Enquanto Lobo e o amigo aguardavam na fila dois jovens pediram seus lanches com suco e se recusaram a pagar pelo refresco Como o vendedor insistiu na cobrança eles jogaram uma moeda de cinquenta centavos na cara dele e foram embora dando risada Vamos lá que eu vou enquadrar os moleques o colega policial disse a Lobo Calma aí não vai matar os moleques Lobo tentou ponderar Fica tranquilo só vou dar uns tapas na cara uns esculachos Os dois voltaram para o carro e foram atrás dos garotos O policial já desceu atirando Agora vocês não humilham mais um trabalhador disse enquanto os executava Havia muitos caminhos possíveis para quem vivia em um contexto conflagrado como o da Baixada dos anos 1980 e 1990 O cotidiano de conflitos ainda que influenciasse as escolhas não determinava o futuro de ninguém Existiam no entanto incentivos perversos que empurravam os jovens para a violência talvez o principal deles fosse fazer parte de um grupo que controlava o poder local Mesmo diante do risco de morte prematura e de prisão a ideia era forte e sedutora criava sonhos e oportunidades O sonho de agir em defesa da comunidade bem como as oportunidades geradas no ambiente conflagrado do Rio de Janeiro atraíram Lobo para a área de segurança Ele queria ser policial desde pequeno mas não passou nos concursos públicos Sempre gostou de armas Teve o primeiro revólver ainda com dezesseis anos um oitão enorme trocado por uma pistola 9 mm que apesar de mais impactante dificultava a compra de munição Para ganhar a vida foi trabalhar como estoquista em uma loja de brinquedos no centro do Rio A dona percebendo seu porte de estivador sempre o colocava para tomar conta da loja no final de ano e o convocava como motorista e segurança em festas noturnas Ele ia orgulhoso usando terno e dirigindo o carro da madame Demitido da loja investiu o dinheiro da demissão em um curso de segurança patrimonial O mercado de segurança privada em que predominam empresas de policiais era uma forma de permanecer fiel por outras vias a seu sonho de infâ ncia mesmo que longe da corporação Seguiu em frente e fez o curso avançado de tiro e de transporte de valor com pistola e espingarda calibre 12 para carrosfortes e o de segurança pessoal Ainda assim a oportunidade de um trabalho formal não aparecia porque ele nunca tinha sido contratado com carteira assinada e os empregadores exigiam a comprovação de experiência Restaram portanto os bicos Lobo foi trabalhar como segurança numa boate em Botafogo junto com outros cinco funcionários liderados por um policial da inteligência da Polícia Militar Como não ganhava muito e era recémcasado com uma filha de seis meses aceitou que um amigo dono de um açougue em Jacarepaguá o indicasse para alguns policiais que mandavam na comunidade em frente ao seu comércio e que sempre pediam carne fiada quando faziam churrasco para os moradores Conheço um moleque sério que faz segurança o açougueiro disse a um desses policiais O policial aceitou a indicação Quero falar com ele O salário era irrecusável quatro vezes mais do que Lobo ganhava na boate de Botafogo Precisava tomar uma decisão e acabou aceitando mesmo sem saber direito do que se tratava Era o ano de 2002 e ali começava sua carreira no negócio que anos depois seria batizado de milícia Lobo foi mais do que um segurança normal Integrou uma espécie de subprefeitura de uma área localizada em um pequeno morro em Jacarepaguá com 1500 casas Nos três primeiros meses como se mostrou confiável acabou se tornando o frente da comunidade o segundo posto numa hierarquia cuja liderança era exercida por dois policiais de batalhões cariocas um da zona norte e outro da zona oeste O trabalho era remunerado com a taxa de segurança paga à associação de moradores local que servia de fachada institucional aos milicianos O grupo de policiais também fornecia aos moradores gás por um preço acima do mercado produto que eles eram proibidos de adquirir fora do morro O fantasma da invasão dos traficantes da Cidade de Deus bairro vizinho controlado pelo fortemente armado Comando Vermelho favorecia a adesão dos moradores que não se viam em condições de recusar o pagamento Tudo com a aprovação tácita do 18o Batalhão de Jacarepaguá que se aproveitava da parceria para ganhar dinheiro e poder de fogo O morro também era vizinho da comunidade do Rio das Pedras bairro onde a governança historicamente feita por policiais e associados era considerada bem sucedida e começava a servir de exemplo para os arredores A nova solução para gerenciar o território se baseava na presença de autoridades policiais com capacidade e disposição para usar a violência Envolvia também uma parceria com a associação de moradores que fazia contatos no Parlamento municipal para conseguir benfeitorias em troca de votos e a cobrança de taxas que geravam receitas na própria comunidade como a venda de gás instalação de gato de eletricidade e água Tudo isso com o apoio dos policiais dos batalhões locais Em 2002 no pequeno morro de Jacarepaguá a instalação de TV a cabo clandestina a gatonet ainda não fazia parte do empreendimento Também não havia espaço físico para a expansão de área para grilagem ação ideal em regiões próximas a terrenos preservados por leis ambientais Os policiais contudo logo perceberam o potencial da construção de lajes erigidas sobre o térreo dos barracos para ganhar dinheiro com aluguel de quartos Os novos imóveis adensavam o bairro ampliavam as receitas com as taxas e multiplicavam os votos em potencial a serem trocados com políticos A vizinha Rio das Pedras como não podia deixar de ser era a fonte de inspiração Quando comecei a trabalhar com as milícias a gente via passar um paraíba forma pejorativa de se referir a pessoas que migraram do Nordeste com um carro zero quilômetro vindo lá do Rio das Pedras A gente pesquisava perguntava se era miliciano e eles diziam Não o cara tem trinta lajes na favela Aí as milícias começaram a fazer igual A estrutura do grupo que comandava o pequeno território em Jacarepaguá era formada pelo sargento e pelo cabo de dois batalhões distintos eles é quem davam as ordens nos bastidores Lobo era um dos contratados numa estrutura de cerca de vinte pessoas que incluía os funcionários da associação de moradores A taxa era de mais ou menos vinte reais por semana para os moradores e cinquenta reais ou mais para os comerciantes Quando não queriam pagar a gente era obrigado a oprimir Botava cartaz na casa das pessoas batia na porta e perguntava cadê o dinheiro Até pagar O dinheiro era enviado para a associação de moradores local onde se contavam os valores Esse grupo de cerca de vinte homens instalou uma cancela automática na frente da comunidade para controlar a entrada de moradores Alguns limites foram criados para o período da noite Quem chegasse de carro depois da uma e meia da manhã tinha que estacionar do lado de fora Foi proibida a estica ou seja a venda de drogas na calçada em frente ao morro onde se revendia a mercadoria vinda da Cidade de Deus Também ficou proibido o uso de drogas casas podiam ser invadidas se houvesse cheiro de maconha Os milicianos conseguiram ainda asfaltar parte das ruas do morro e pagavam salários para moradores varrerem a rua Os policiais dos batalhões donos do negócio apareciam somente a cada quinzena e eram os principais responsáveis pelo armamento pesado Arma nunca faltou disse Lobo Podia ser vendida pela polícia Um fuzil por baixo valia 25 mil reais O policial que pegava dois fuzis numa apreensão acabava botando 50 mil no bolso Isso se fosse fuzil velho um 762 Parafal Se fosse novo um AK 47 um AR15 um AR 10 o cara ganhava 30 mil por baixo Havia também o esqueminha do Paraguai com os matutos atacadistas que compram drogas e armas na fronteira para vender no Rio Eles chegavam com arma nova pistola Glock mandavam vir cinquenta cem de uma vez A ligação com os policiais era estreita Mesmo não sendo concursado Lobo contou que tinha farda e fazia operações conjuntas com os policiais do 18o Batalhão com direito a uso de armamentos pesados nas incursões à Cidade de Deus Eu entrava no 18o pegava fuzil saía a gente dominava tudo A parceria acabava funcionando para os dois lados Uma vez a gente foi pra uma churrascaria em Jacarepaguá Fui eu dois policiais e as piranhas prostitutas que os acompanhavam Quando eu saí tinha um K adett prata e uns moleques me olhando Os moleques olhando Sabe sexto sentido Eles foram almoçar na churrascaria Quando encostei no K adett escutei um barulho dentro do carro Alguém chutando Esperamos os moleques saírem Quando estavam chegando na Cidade de Deus enquadramos Passamos o rádio pros policiais do 18o Quando abriram o portamalas tinha uma mulher lá dentro Eles estavam fazendo saidinha de banco tiravam dinheiro passando em várias agências Na leitura de Lobo a parceria com o batalhão local e a tolerâ ncia política aos trabalhos dos milicianos são estruturais e condição para o funcionamento dos serviços de milícia no Rio Não adianta Se não tiver policial junto o trabalho não vinga O policial vai se sentir oprimido ver os caras andando com cordão de ouro cresce os olhos Tu não pode falar com eles de dinheiro Mexe com minha mulher mas não mexe com o meu bolso Durante a fase de expansão desses grupos em Curicica Taquara Tanque Pechincha Gardênia Azul Vila Sapê entre outras comunidades no entorno do bairromodelo Rio das Pedras a relação com os paramilitares se estreitava em noitadas animadas em que policiais se reuniam com parceiros depois do expediente em casas noturnas choperias ou casas de massagem muitas das quais deles próprios a maioria na região da Barra Recreio e Jacarepaguá Eram grandes confraternizações disse Lobo Nessas reuniões ninguém podia usar telefone Existia uma casa em Jacarepaguá a Fórmula do Gol uma tenda enorme com uns pagodes que era o ponto de encontro Você entrava e brincava se a Corregedoria da Polícia entrar aqui pega mais de cem pistolas Tudo miliciano e polícia cara com corrente de ouro de dois dedos Nike 12 molas Omega Marea só esses carros na porta Eu comecei a andar com os donos de onde eu trabalhava churrasco no Rio das Pedras assim tu ficava conhecido pegava o contato e assim tu vai se alinhando Outra presença forte testemunhada por Lobo nas comunidades dominadas pelas milícias eram os proprietários de máquinas de caçaníquel ligadas aos bicheiros criminosos tradicionais do Rio de Janeiro com relacionamentos antigos e consolidados com a segurança pública e a política no estado Uma vez a gente tava lá na comunidade fazendo um churrasquinho e um deles chegou Lobo afirmou que foi uma situação fora de contexto inusitada O homem parou sua picape na entrada do morro foi até onde eles estavam deu boatarde e perguntou Quem é o frente Quem manda aqui Lobo se assustou com a situação e com o tom de voz seguro do interlocutor Caralho o cara chegou com uma pressão fodida vamos conversar com ele Lobo disse ao grupo antevendo complicações Ele se aproximou do sujeito e explicou Tranquilo irmão olha só eu estou na frente mas não sou o dono são dois policiais O mensageiro porém havia ido propor a eles um negócio que poderia aumentar as receitas da milícia E fez a oferta Seguinte a gente quer colocar umas maquininhas de caçaníquel aqui Vocês fazem o recolhe ganham um porcentual Lobo ficou entusiasmado com a oportunidade e disse que iria acionar os policiais donos do morro para bater o martelo Tinha expectativas com a novidade sempre quis se envolver com as maquininhas porque sabia que a presença delas nos bares fazia girar muito dinheiro Liguei pros dois e falei o cara quer botar umas trinta maquininhas Lobo não esperava a resposta que ouviu do outro lado da linha pois achava que os donos da milícia eram o demônio O policial disse Fala que ele pode colocar quantas quiser que a gente faz o recolhe guarda o dinheiro dele e que não precisava dar nada pra gente Trabalhador gosta a polícia não vai interferir Lobo obedeceu mas achou estranho Quando encontrou os dois policiais pessoalmente perguntou o motivo do acordo desvantajoso Um deles explicou Eu não quero nada com esses caras a única máfia organizada que existe no Brasil são eles não quero nada deles pra eles só trabalho de graça não se envolve com os caras O primeiro dia que tu vacilar eles te matam na hora matam juiz desembargador delegado Não se envolve Duas semanas depois Lobo estava trabalhando e os policiais foram buscálo no morro Como era quase meiodia achei que a gente ia almoçar na churrascaria Mas eles me levaram na Cidade de Deus Tinha um corpo na rua cheio de moeda de um real na boca A gente te trouxe aqui pra tu ver Quer se envolver com caçaníquel olha o que acontece esse cara fazia um recolhe e deu a volta nos caras Quando eles enchem a boca de moedas é porque o cara roubou deles deu a volta neles Aí aprendi O que é bom eu sempre guardo Se o cara que era polícia bravo não queria se envolver imagina eu que não era nada As máquinas foram instaladas sem tarifa para os bicheiros E aí no Dia das Crianças das Mães eles bancavam as festas davam bicicletas geladeiras e televisões para sortear no bingo agradando os moradores e fortalecendo a milícia Na zona oeste a aliança informal entre paramilitares policiais e bicheiros ia além do dinheiro que proporcionava aos integrantes da rede Havia também o discurso de que essa nova força devia marcar posição e fazer frente ao avanço dos rivais do tráfico de drogas Muitos desses milicianos moravam na zona oeste com suas famílias tinham ligação com a região o que reforçava o elo com a comunidade Conforme se ampliavam os territórios dominados pelos aliados aumentava a rede de apoio entre eles e o arsenal de armas à disposição dos milicianos que se apoiavam na luta contra os rivais A capacidade de rapidamente arregimentar um pequeno exército formando um bonde pesado em defesa dos interesses econômicos e territoriais dos integrantes do grupo garantia o poder dos milicianos na zona oeste As facções também formavam seus bondes e arregimentavam armamentos e homens entre os morros aliados A diferença fundamental era que o bonde da milícia contava com o apoio das próprias polícias e comandos detendo mais capacidade de inteligência e articulação Essa ligação garantia inclusive capacitação para os soldados menos preparados Numa noite Lobo e dois jovens de sua milícia estavam de guarda na comunidade quando um bonde da Cidade de Deus passou atirando contra eles A situação se agravou quando um dos garotos da milícia não conseguiu disparar o fuzil que segurava Travou e os agressores perceberam Restou a Lobo aguentar a troca de tiros com uma Glock e três carregadores Para evitar que essa situação se repetisse os chefes contrataram um sargento do Bope Batalhão de Operações Policiais Especiais e tivemos duas semanas de treinamento numa mata disse Lobo Mesmo sem um comando único cada grupo ainda descobria as potencialidades de mercado e receitas em seu território havia uma afinidade natural entre os colegas de farda e seus aliados Isso não significava necessariamente vida fácil no controle das comunidades já que boa parte dos moradores era forçada a fazer pagamentos para o grupo o que gerava resistência A gestão dos milicianos portanto sentiu a necessidade de desenvolver estratégias de poder local para que sua liderança fosse vista como benéfica O poder se fortalece Lobo diz quando a liderança é respeitada em vez de temida Espancamentos assassinatos e ações simbólicas de força faziam parte da rotina e cada grupo podia pesar a mão com estratégias distintas Podia ir do corte de cabeça à conversa disse Lobo Eu sempre preferi a conversa Lobo contou que na comunidade que ele liderava os policiais donos da milícia eram inclementes Ele no entanto recorria ao diálogo pois acreditava ser essa a melhor forma de escapar do DisqueDenúncia entidade civil que colabora com a segurança pública do Rio de Janeiro ao passar com a garantia do anonimato informações da população sobre crimes e violência a fim de orientar ações da polícia e da Justiça Uma estratégia bemsucedida para a consolidação da autoridade foram os churrascos com moradores também frequentados por homens com uniformes e armas de calibre pesado representando a nova lei local Funcionava quase como um teatro público cheio de simbolismos para que as pessoas não só enxergassem o tamanho da encrenca caso pensassem em desobedecer às regras mas também para que se aproximassem deles Não adiantava simplesmente chegar em silêncio Lobo explicou ponderando que excesso de força por si só pode não funcionar Marca um churrasco avisa os moradores dá pra eles carne e cerveja e coloca um monte de homem armado na festa Para manter a boa relação com os moradores assumir o papel de provedor sempre foi o método Betinho na época chefe da milícia na comunidade da Vila Sapê seguia esse procedimento no começo dos anos 2000 Quando via um garoto andando descalço oferecia um chinelo Se estava com cabelo grande como um mendigo mandava cortar e pagava o serviço O segredo de ganhar a comunidade era fazer o que o Estado não conseguia fazer Até escola particular pra criancinha especial o Betinho pagava Quando o tráfico quis voltar os moradores amavam tanto o pessoal que alguns até pediam armas para ficar atirando da janela nos traficantes contou Lobo A disposição para usar a força bruta continuaria fundamental porque sempre havia aqueles que desacreditavam explicou Lobo Mesmo quando eles passaram a exercer o monopólio da venda de gás por exemplo havia um vendedor que insistia em entrar de moto com botijão Lobo avisou que era proibido mas o vendedor voltou como se quisesse pagar para ver Então surgia o dilema típico para um miliciano como ensinar aos demais que sua autoridade não deve ser desrespeitada No caso preferiram em vez de matar apenas queimar a moto do vendedor A proibição do consumo de drogas na comunidade também era problemática A milícia de Lobo proibia o uso no morro A lição aos infratores era dada por meio de coronhadas socos tapas e espancamentos dependendo do caso Lobo contou o caso de um menino pego com cem gramas de maconha prensada Primeiro fizeram o garoto dichavar a droga produzindo um volume suficiente para encher um copo grande Depois o obrigaram a comer tudo misturado com Coca Cola quente o que levou o jovem a ficar três dias internado no Centro de Tratamento Intensivo do hospital vomitando verde Outro garoto do bairro também conhecido por abusar do consumo de drogas levou uma surra um dia tendo os braços quebrados entre outras torturas porque também era acusado de roubar na comunidade Certo dia quando Lobo foi levar sua pistola para consertar em um armeiro do morro enquanto esperava esse mesmo garoto se aproximou dele com uma tesoura tentou enfiála na cabeça do miliciano e depois fugiu Esse tipo de atentado foi considerado imperdoável e danoso para a imagem da milícia local Eles tinham que punir aquela ousadia de forma exemplar Durante duas semanas procuraram o garoto que havia fugido para a vizinha Cidade de Deus Ele foi visto por um X 9 informante de policial que ajudou a armarem uma arapuca chamando o garoto para comprar pó Depois de morto ele teve as mãos os pés e a arcada dentária arrancados por um conhecido das milícias especialista em não deixar vestígios de corpos e que cobrava quinhentos reais pelo serviço de desaparecer com as provas A existência de falas e crenças que justificam a ação dos homicídios se repete em realidades com taxas elevadas de violência permitindo aos assassinos e homens violentos agir e depois explicar suas razões sem constrangimento Essas justificativas que se reproduzem como um padrão nas dezenas e dezenas de entrevistas que venho fazendo com matadores durante anos sempre me impressionaram Eles falam como se as vítimas fossem culpadas da própria morte como se eles os matadores estivessem apenas agindo conforme as regras da coletividade local Entender o processo de formação dessas falas e crenças sempre foi o objetivo das minhas pesquisas Por que e como esses homens passam a acreditar que matar é certo mesmo sendo ilegal Não se trata de uma questão trivial uma vez que o crescimento das cidades civilizadas dependeu da consolidação desse tabu que interditou os assassinatos que se tornou lei sagrada e fortaleceu freios morais internos que impediram os homens de matar seus iguais Por que como e quando essa lei deixou de funcionar e nos tornamos o país com o maior número de homicídios no mundo mesmo em tempos de paz Lobo por exemplo contou a história de um jovem amigo policial que fazia vídeos matando pessoas que para ele se enquadravam na categoria das que deviam morrer Depois mandava as imagens para o seu grupo de amigos mais próximos no WhatsApp Para de mandar essas mensagens senão saio do grupo alertou Lobo O policial era deslumbrado com o próprio poder Ligava para Lobo de madrugada bêbado dando tiros para o alto em frente a bares de São João de Meriti Numa dessas performances quase foi morto por dois garotos do Comando Vermelho Ele e os colegas perceberam a tempo que seriam atacados conseguindo se antecipar e matar os dois Segundo Lobo o pai desse jovem era um policial aposentado respeitado na cidade honesto Nunca quis que o filho entrasse na polícia mas não conseguiu evitar Lobo apelou para a figura do pai a fim de convencer o amigo a mudar de atitude Se você não for mais discreto seu pai vai ficar sabendo O jovem policial contudo respondeu que isso não o preocupava porque quando entrou na corporação recebeu estes conselhos do pai Tu pode matar quem quiser isso é contigo porque quem vai ficar com a pica é tu Mas veja bem Eu te visito na cadeia como homicida mas se tu for preso como corrupto ou ladrão esquece que tu tem pai Não vou passar a vergonha de ver meu filho virar ladrão depois de trinta anos de uma carreira íntegra na polícia E concluiu para Lobo Meu pai é bravo pra caralho mas ele não esquenta a cabeça se eu matar Só se eu roubar Num contexto conflagrado mesmo os fatos mais cruéis acabam se naturalizando Podem chocar o entrevistador que precisa se esforçar para manter o semblante impassível ou assustar pessoas que observam de fora mas não aqueles que convivem com essa realidade O filho de onze anos de Lobo contou a ele um dia ter testemunhado a punição de um jovem que tinha roubado o celular da mãe de um traficante do morro vizinho sem saber quem era o dono O tráfico não perdoou Eles ficaram batendo nele no ladrão do celular o dia inteiro amarrado num botijão de gás Depois picotaram ele todinho No final do dia quando estava escurecendo amarram os pés e os braços dele cortaram o moleque no meio e ficaram arrastando o corpo dando risada umas três horas depois jogaram bola com a cabeça dele valendo mil seis contra seis o filho de Lobo relatou ao pai Meu moleque viu tudo disse Lobo narrando a cena de barbárie sem indignação entendendo que ela fazia parte de um cotidiano impossível de mudar Lobo no entanto foi empurrado para fora dessa dinâ mica de conflitos Depois de mais de três anos trabalhando na milícia em dezembro de 2005 ele participou daquela que seria a surra derradeira e que levaria parte de seu grupo para a prisão As complicações começaram por causa de uma menina do bairro que namorava um garoto apontado como vapor do tráfico na Cidade de Deus Os milicianos alertavam a menina para tomar cuidado e romper o namoro Ela não dava ouvidos Um dia a garota levou o namorado para visitar sua família para indignação dos policiais que invadiram a casa dela e acabaram batendo na mãe e no pai um borracheiro da comunidade A mãe denunciou a agressão na Delegacia da Mulher que prendeu Lobo os policiaischefes da quadrilha e mais duas pessoas No dia da detenção eles foram presos por seus amigos do distrito e do batalhão policial do bairro numa situação constrangedora Lobo contou A gente frequentava muita orgia puteiro termas junto com eles No sábado da minha prisão ia ter a gravação de um DVD de pagode numa casa de shows Muita gente ia se encontrar lá Eu estava na associação porque era dia de pagamento O pessoal indo pagar as taxas e eu fazendo segurança quando meu colega foi me avisar Caralho tem um monte de carro da polícia parado lá embaixo Tranquilo eu falei é tudo amigo meu Os policiais subiram e lançaram um olhar estranho em sua direção Percebi que tinha alguma coisa errada disse Lobo A casa caiu um dos policiais disse a ele Você está com sua identidade Tem um mandado de prisão contra você Lobo estava com uma pistola 45 e com três granadas de efeito moral Entregou tudo ao policial e disse A gente não troca tiro Tamo numa só tudo junto e misturado Chamou o advogado e imaginou que sairia na mesma noite Na delegacia percebeu que a barra estava pesada e que haviam armado contra ele A surra da família foi só desculpa disse No tempo em que esteve preso veio a saber que o interesse deles tinha entrado em choque com o de uma milícia concorrente ligada a um deputado estadual poderoso Na semana que antecedera à prisão o policial dessa milícia havia chegado à paisana na área de Lobo com uma pistola 762 sem camisa e com um colete à prova de balas Foi abordado porque Lobo não o conhecia e achou que poderia ser um traficante A abordagem causou confusão Lobo precisou chamar seus chefes os policiais proprietários para evitar troca de tiros Eles deram razão a Lobo e esculacharam o invasor Quando só tinha encrenca nego desovando carro abandonado por aqui você não vinha Agora não se mete aqui Quando entrar tem que pedir licença Você está arrumando problema com o cara Lobo porque ele é PI pé inchado termo pejorativo para se referir a segurança privado Tem que falar comigo que sou Mike gíria para policial A prisão segundo Lobo foi uma forma de o chefe da outra milícia mostrar poder e lembrar quem de fato mandava naquela área Lição aprendida a duras penas A milícia de Lobo não tinha as mesmas conexões políticas nem os mesmos contatos na segurança pública Essas conexões são importantes porque não faltam razões para prender integrantes desses grupos Basta querer No caso da milícia à qual Lobo pertencia os policiais da delegacia local foram ao cemitério clandestino usado para a desova de corpos e acusaram o grupo pela morte de mais de vinte pessoas enterradas ali A prisão do grupo não acabaria com o negócio Apenas o levaria a mudar de mãos promovendo novos arranjos entre policiais que assumiriam o controle do território Foi uma das primeiras prisões de milicianos Outras viriam a acontecer sobretudo a partir de 2007 quando o tema ganhou destaque na imprensa Historicamente houve no Rio dois núcleos a partir dos quais esse modelo de negócios se irradiou Um deles em Jacarepaguá se consolidou com o domínio exercido por policiais na associação de bairro da comunidade de Rio das Pedras Outro núcleo na região de Campo Grande e Santa Cruz cresceu com a presença de policiais no setor de transportes clandestinos de vans dando origem ao grupo conhecido como Liga da Justiça A grande novidade desses modelos de negócios na cena criminal do Rio é que os policiais ao se organizarem em milícias passaram a disputar territórios e mercados com facções do tráfico que antes se relacionavam com policiais pagando propinas e comprando armas e munições Não é simples precisar quando esse modelo territorial inspirado no Rio das Pedras começou a crescer para os bairros vizinhos Mas existem alguns marcos Um deles é apontado pelo delegado Vinicius George um dos profissionais mais experientes da polícia do Rio George era chefe de gabinete do deputado Marcelo Freixo durante a CPI das Milícias ocorrida em 2008 na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro Liderada por Freixo a comissão pediu o indiciamento de 225 pessoas entre políticos policiais agentes penitenciários bombeiros e civis O delegado cita um episódio ocorrido na Vila São José Operário na Praça Seca quando policiais militares cansados dos atrasos de pagamento de propinas executaram o grupo de traficantes do morro O resultado foi a perda momentâ nea dos financiadores Diante do vácuo de poder esses policiais perceberam que eles próprios poderiam ganhar dinheiro no território sem intermediários Com o tempo assim como ocorreria nos bairros vizinhos de Jacarepaguá eles passaram a cobrar por serviços de segurança sinal de TV a cabo e internet a vender gás alugar barracas a cobrar taxas de mototáxi e transporte alternativo Ganharam o apoio político de um vereador do Partido Republicano PR Luiz André Ferreira da Silva o Deco que expandiu a atuação para as comunidades vizinhas de Bateau Mouche Chacrinha Mato Alto e Bela Vista A expansão foi rápida porque havia comunidades abandonadas pelo poder público e um modelo de negócio pronto para ser replicado Eles ganhariam para fazer o que o Estado não fazia Antes da prisão de Lobo em dezembro de 2005 ainda era difícil entender o que vinha ocorrendo A detenção do grupo foi noticiada de forma discreta em pequenas notas de jornal A jornalista Vera Araújo de O Globo foi a primeira a perceber a gravidade dessa movimentação de policiais Em março de 2005 ela assinou a reportagem inaugural sobre o tema e responsável pelo batismo da ação paramilitar como obra de milícia O termo foi usado em razão do espaço limitado para o título Milícias de PMs expulsam tráfico dizia a manchete da página 18 do jornal A linha fina usada abaixo do título explicava Grupos de policiais assumem o controle em 42 favelas mas há denúncias de abusos No dia seguinte em nova reportagem Vera e a jornalista Virgínia Honse também de O Globo apontaram a existência de onze grupos seis deles chefiados por policiais militares como protagonistas da ofensiva que teria tomado 42 favelas de Jacarepaguá e da Barra da Tijuca na zona oeste do Rio A matéria descrevia ainda uma série de características do modelo de negócios que começava a se consolidar cobrança por serviços de segurança assistência social fornecimento de cestas básicas para ganhar a simpatia dos moradores venda de gás e arrecadação com linhas do transporte clandestino Era nessa região que Lobo atuava sob a vista grossa do 18o Batalhão Mesmo sendo de conhecimento público e da inteligência da segurança pública do Rio o assunto contudo morreu por algum tempo Nos meses seguintes ocorreram as primeiras desavenças internas em outra rede de milicianos principalmente envolvendo disputas sobre transporte clandestino em Campo Grande e Santa Cruz mas ainda sem grande repercussão nos jornais O avanço territorial dos paramilitares sobre as comunidades da zona oeste voltou a ganhar destaque depois de uma série de ataques realizados na cidade às vésperas do réveillon de 2006 mais precisamente na madrugada de 28 de dezembro Criminosos armados com fuzis e granadas divididos em cerca de vinte carros praticaram diversos ataques e atentados contra delegacias ônibus e postos policiais matando dezoito pessoas e deixando trinta feridos Dois policiais militares estavam entre os mortos e oito entre os feridos Muitos atentados se concentraram na zona oeste no entorno de Jacarepaguá e das regiões dominadas pelas milícias O primeiro ataque ocorreu na Barra da Tijuca onde um policial foi assassinado e outro ferido com tiros de fuzil Na cena mais trágica um ônibus que ia do Espírito Santo para São Paulo foi incendiado na avenida Brasil e sete pessoas morreram queimadas O governo do estado comandado por Rosinha Garotinho se apressou em anunciar que os ataques eram um recado ao governador eleito Sérgio Cabral Filho que assumiria em 2007 para que não endurecesse o sistema prisional Anthony e Rosinha Garotinho encerravam seu ciclo de oito anos no poder Lembro que quando ouvi essa notícia na época imediatamente me ocorreu que as facções cariocas tinham imitado os criminosos das facções paulistas Sete meses antes em maio de 2006 o Primeiro Comando da Capital PCC havia realizado diversos atentados contra agentes de segurança delegacias ônibus e postos policiais matando 59 policiais e agentes num único fim de semana Os criminosos paulistas deram uma demonstração de força depois que o governo estadual transferiu 765 lideranças para uma penitenciária de segurança máxima De dentro dos presídios o grupo estabeleceu uma nova ordem no mercado criminal de São Paulo com regras e protocolos para os participantes desse universo encerrando as rivalidades entre pequenos grupos que marcaram os anos 1990 no estado A ação foi interpretada como uma demonstração de poder das lideranças do PCC para mostrar aos criminosos que havia uma autoridade a ser respeitada no mundo do crime paulista No Rio a situação caminhava em outra direção O domínio territorial continuaria estratégico para diversos grupos criminosos em disputa Os paramilitares seriam mais um a participar da confusão No começo dos anos 2000 havia o Comando Vermelho o maior deles e o Amigos dos Amigos que ainda estava junto com o Terceiro Comando numa união batizada como Terceiro Comando dos Amigos Os dois últimos grupos romperiam e a briga daria origem em 2003 ao Terceiro Comando Puro No entanto as novas estratégias da banda podre da polícia se espraiando a partir de dois núcleos no entorno de Jacarepaguá Campo Grande e Santa Cruz que apostavam no controle dos bairros para ganhar dinheiro não faziam parte do tenso acordo que havia anos as facções mantinham com os policiais Os paramilitares seriam afinal mais uma força a participar da pesada disputa pelo controle das mais de setecentas comunidades pobres do estado numa concorrência já acirrada e violenta Foi essa revolta na verdade que o Comando Vermelho buscou tornar pública no dia 28 de dezembro de 2006 apoiado por facções concorrentes quando atacou policiais e moradores do Rio Como se tentasse protestar contra a concorrência daqueles cuja missão deveria ser prendêlos O conteúdo de panfletos apócrifos apreendidos nos locais dos atentados deixava evidente a denúncia feita pelos criminosos As milícias eram chamadas de Comando Azul em referência à cor dos uniformes da Polícia Militar Rosinha e Garotinho apoiam a milícia contra o pobre e o favelado A milícia massacra os pobres da favela e a resposta é o rio de sangue dizia um dos panfletos Essa hipótese foi depois confirmada pelo secretário de Administração Penitenciária da época Astério Pereira que identificou nos ataques a revolta dos criminosos com a entrada de policiais na disputa por territórios Ele mostrou um documento da Subsecretaria de Inteligência apresentado à cúpula da Secretaria de Segurança informando dos planos para os ataques no dia 28 Escutas mostravam que o traficante Jorge Ferreira o Gim da Cidade de Deus havia se reunido com chefes de outras facções criminosas no Morro da Mangueira na zona norte para organizar as ações em represália às invasões de milícias Se os ataques de 2006 ocorreram em um novo contexto de certa forma representaram também uma reclamação antiga registrada na crônica policial do Rio de Janeiro pelo criminoso Lúcio Flávio cuja vida deu origem ao filme Lú cio Flávio passageiro da agonia dirigido por Hector Babenco em 1976 Na década de 1970 ao ser preso Lúcio Flávio reclamou das relações entre os policiais do Esquadrão da Morte com o crime indignado com a entrada dos policiais no negócio E soltou a frase Polícia é polícia bandido é bandido Não devem se misturar igual água e azeite O conselho nunca seria levado a sério A conversa com Lobo era um elemento entre tantos para eu entender a história da violência e suas dinâ micas a partir do Rio de Janeiro A sensação era de que um século não seria o bastante para eu conhecer a complexidade local Algumas perguntas de fundo que me perseguiam desde outras pesquisas voltariam a se repetir nas investigações sobre o Rio Eram perguntas diferentes das que agentes de segurança e da Justiça costumam fazer em busca de provas que apontem a culpa ou a inocência de alguém Minha investigação ao contrário da deles não buscava fazer julgamentos mas compreender por que e como a sociedade vem produzindo esses comportamentos violentos e induzindo seus participantes a seguir esses caminhos Minhas questões eram outras como esses grupos criminosos se articularam Quais as características das crenças e dos discursos em defesa de conflitos e homicídios e como elas se formaram Que mecanismos sociais entraram em ação Qual o papel dos erros e das omissões das instituições Ainda havia a principal pergunta inescapável que minha investigação tentaria responder até que ponto a realidade do crime no Rio de Janeiro ajudaria a entender a escolha dos eleitores por Jair Bolsonaro para presidente do país em 2018 Bolsonaro visto como um político contrário à corrupção defendia abertamente uma guerra violenta contra o crime mesmo que ela produzisse homicídios Ele queria o armamento da população e tinha ligações diretas com integrantes de grupos milicianos do estado Como e por que chegamos a essa situação Por que roubo e corrupção chocavam mais o eleitor do que a violência Lobo era apenas um miliciano um pé inchado nem policial ele era e na prisão o chamavam com desdém de Milicinha por ele não ter vínculo oficial com as forças de segurança Depois que o entrevistei naquele hotel em Copacabana conforme outras informações surgiam nossa conversa pareceu ter levantado um fio no emaranhado de dados e relatos que poderia ser puxado para revelar uma história pouco conhecida A trajetória de Lobo me ajudava a entender o contexto de Jacarepaguá no começo dos anos 2000 e o papel do 18o Batalhão naquela região dava mais cores ao cenário onde trabalhou o sargento Fabrício Queiroz cuja carreira policial transcorreu na maior parte do tempo naquele batalhão Desenrolando o fio também era possível chegar ao então tenente Adriano Magalhães da Nóbrega que depois viraria capitão Queiroz e Adriano da Nóbrega se conheceram em 2003 no 18o Batalhão Anos depois em 2007 Queiroz se tornou o faztudo do gabinete do deputado Flávio Bolsonaro Já Adriano da Nóbrega foi protegido pela família Bolsonaro durante anos com parentes empregados no gabinete de Flávio mesmo durante o período em que mergulharia no crime do Rio para se tornar um dos criminosos mais violentos da cena local Também era preciso entender a história dos dois núcleos de formação das milícias cariocas o de Rio das Pedras em Jacarepaguá e o de Campo Grande e Santa Cruz Conhecendo a origem desses grupos ficou claro como essas quadrilhas mesmo depois de uma CPI que prendeu centenas de envolvidos se reinventaram e se tornaram ainda mais poderosas Em paralelo era preciso investigar o modelo varejista de drogas no Rio de Janeiro e a história recente da polícia fluminense sobretudo sua ligação com a contravenção grupos de extermínio esquadrões da morte jogo do bicho e com os porões da ditadura militar Ao lado da polícia também desempenham papel central nessa narrativa em defesa de uma ordem violenta as Forças Armadas Desde a redemocratização em 1985 alguns grupos militares se ressentiram da perda de protagonismo e se uniram em torno de ideais que só vieram à tona depois da eleição de Bolsonaro em 2018 Durante anos esses movimentos ficaram longe do debate público com as instituições a imprensa e os políticos praticamente alheios como se a democracia reconquistada a duras penas com a Nova República pudesse se perpetuar por inércia sem que fossem necessários cuidados e ajustes Durante quase três décadas a situação parecia estável A inflação foi controlada a moeda se estabilizou e o Brasil voltou a crescer com diminuição da pobreza e expansão de serviços públicos na saúde e educação No Rio de Janeiro houve anos de euforia com a descoberta das reservas de petróleo do présal em 2006 a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora em comunidades dominadas pelo tráfico a partir de 2008 e com a expectativa da realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas nos anos seguintes Quando esse ciclo virtuoso se interrompeu não houve liderança capaz de reverter o quadro A operação Lava Jato deflagrada pela Polícia Federal deu origem a uma sequência de denúncias e prisões por corrupção a partir de 2014 Em junho de 2013 a população tinha ido às ruas e de lá não saiu pelos três anos que se seguiram protestando em meio a uma intensa crise fiscal econômica e política O caldeirão havia sido destampado transbordando raiva e ressentimento No Rio a situação se agravou com a falência fiscal do Estado Os assassinatos voltaram a crescer a partir de 2017 e multiplicaramse as notícias de novos territórios ocupados pelos milicianos Em 2016 o impeachment da presidente Dilma Rousseff acirrara os â nimos da população inviabilizando a gestão do sucessor o vicepresidente Michel Temer também atingido pelas investigações da Lava Jato No dia 16 de fevereiro de 2018 o governo decretou intervenção federal no estado do Rio de Janeiro para estancar a crise da segurança no Rio segundo anunciava o governo Tropas do Exército foram enviadas para a cidade e parte da cúpula das Forças Armadas assumiu a segurança pública carioca Os holofotes da imprensa nacional e internacional focalizaram os desdobramentos da intervenção Com todos os olhos voltados para as tropas militares na cidade uma bomba explodiu no dia 14 de março de 2018 às vésperas do aniversário de um mês da intervenção federal O assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes colocou em xeque a credibilidade do Exército e das forças de segurança do estado Marielle era uma das vozes mais críticas à intervenção federal Com seu assassinato era como se os milicianos dessem um recado claro não importa a presença do Exército os olhares da imprensa nacional e estrangeira o interesse dos políticos e das instituições democráticas quem manda no Rio são as milícias A eleição de Jair Bolsonaro se deu nesse turbilhão Com ele foram eleitos políticos que desdenharam do assassinato de Marielle e que a difamaram depois de sua morte O interventor do Rio o general Walter Braga Netto desafiado e humilhado pelos milicianos assumiu em 2020 o cargo político mais importante do governo Jair Bolsonaro a chefia da Casa Civil Braga Netto passou a liderar o governo de um político que sempre defendeu a ação e até mesmo a legalização dos grupos paramilitares e que havia feito pouco caso do assassinato de Marielle A dimensão dos problemas em que o país se enredou tornouse ainda mais assustadora com a pandemia do novo coronavírus a partir de março de 2020 com um governo repleto de militares e um presidente negacionista que deixou o vírus se espalhar de forma descontrolada Desenrolar o fio dessa história sem a intenção de buscar culpados ajuda a compreender a lógica por trás das escolhas feitas e dos caminhos seguidos por seus protagonistas A raiva e o ressentimento que inundaram as ruas levaram representantes desses sentimentos autodestrutivos à liderança do país Entender essa trajetória para evitar que esses erros se repitam é uma das poucas saídas que restam aos brasileiros 2 Os elos entre o passado e o futuro Em 2002 quando Lobo começava suas atividades nas milícias o sargento da polícia militar Fabrício Queiroz era uma figura presente nas ruas de Jacarepaguá Lotado no 18o Batalhão Queiroz assim como Lobo era apenas uma pequena peça na longeva engrenagem social de produzir conflitos no Rio A história dele só ganharia relevâ ncia anos depois em 2018 com a eleição do presidente Jair Bolsonaro Queiroz era amigo leal do presidente e se tornaria um assistente parlamentar merecedor de toda a confiança de Jair e da família Bolsonaro O vínculo do sargento com Jacarepaguá não era apenas profissional Era nessa região da zona oeste que Queiroz e seus familiares viviam com endereços na Praça Seca Taquara e Freguesia Ele havia entrado no 18o Batalhão em 1994 sete anos depois de ingressar na PM Passou nove anos lá Era considerado pelos colegas um policial linha de frente corajoso do tipo que não fazia olho de vidro para o crime Esse vínculo pessoal com o território onde moravam seus familiares e vizinhos de Jacarepaguá dava ao seu trabalho ares de missão era preciso protegêlos do tráfico e das drogas A área do inimigo para Queiroz seus colegas do 18o e os paramilitares da zona oeste tinha endereço certo Cidade de Deus bairro estratégico para as vendas do Comando Vermelho uma das ilhas varejistas do comércio de entorpecentes na região A parceria dos policiais do 18o com os milicianos conforme Lobo descreveu expandiu esse modelo de negócios das quadrilhas fardadas na primeira metade dos anos 2000 Os dois lados tinham afinidades relevantes além das batalhas cotidianas com os traficantes da Cidade de Deus nenhum dos grupos via problema em ganhar um dinheiro extra cobrando por proteção e por outros serviços de forma ilegal Naquela época a principal referência na região de Jacarepaguá era Rio das Pedras favela que também pertencia à área de patrulhamento do 18o Batalhão O bairro era famoso por não admitir a presença de traficantes e por ser controlado por policiais que também moravam na região Esses grupos eram vistos como aliados e por isso tolerados como reforço nos embates recorrentes contra o crime local Nem o 18o nem os demais batalhões da polícia recusavam esse apoio armado e além disso muitos ainda podiam faturar com parcerias A disposição de Queiroz para o confronto junto com colegas do 18o apareceu em vários episódios de sua carreira casos quase sempre ocorridos na Cidade de Deus Em 1997 quando ainda era soldado recebeu um aumento salarial por ações policiais em que teria demonstrado alto preparo profissional ao agir com destemida coragem para alcançar o sucesso das missões O bônus criado anos antes por meio de um decreto apelidado de gratificação faroeste premiava policiais que se envolviam em conflitos Foi extinto em 1998 mas Queiroz entrou com uma ação para que a gratificação fosse integrada a seu salário Em sua trajetória profissional Queiroz participou de diversas ocorrências com indícios de irregularidade que envolveram mortes mas que acabaram esquecidas no limbo dos arquivos da Justiça Afinal havia o consenso entre autoridades de que os excessos da guerra travada pelos policiais contra o crime deveriam ser tolerados Como se a violência cometida por eles estivesse perdoada de antemão Não foram poucas as confusões em que ele e seus colegas se meteram No dia 2 de outubro de 1998 durante uma ronda na Cidade de Deus Queiroz e outro sargento prenderam um suspeito na Favela K aratê uma das áreas mais pobres do bairro Jorge Marcelo da Paixão de 47 anos foi levado à delegacia Os dois policiais disseram que Paixão fora flagrado com uma pistola munição e sacolés de cocaína O suspeito já havia cumprido pena de 24 anos por homicídio e estava em liberdade condicional Preferiu ficar calado e aguardou o julgamento numa cela do distrito Um mês depois diante da juíza Paixão declarou ter sido vítima de achaque Disse que estava trabalhando como mecâ nico na casa de uma vizinha quando os policiais chegaram ao local e pediram 20 mil reais para não prendêlo Conhecido como Gim Macaco Paixão era um criminoso com grande potencial de gerar lucro para os policiais por sua longa história no crime Havia estado no presídio de Ilha Grande com presos políticos em 1973 e garantiu ter mudado de vida quando saiu de lá Quatro testemunhas confirmaram ao Ministério Público a versão do achaque dada por Paixão inclusive a dona da casa onde ele trabalhava naquele dia Os quatro policiais que acompanhavam Queiroz e o outro sargento não testemunharam a favor dos colegas O promotor do caso Felipe Rafael Ibeas então pediu a absolvição de Paixão e determinou que a Corregedoria investigasse Queiroz por falso testemunho abuso de autoridade e denunciação caluniosa Paixão foi solto Os policiais envolvidos na ação entre eles Fabrício Queiroz não foram punidos Casos suspeitos como esse envolvendo policiais não eram incomuns Você percebe que há algo estranho na hora da audiência quando ouve os testemunhos das vítimas afirmou o promotor Ibeas que não acompanhou os desdobramentos da investigação na Corregedoria Na noite de 16 de novembro de 2002 quatro anos depois desse episódio Queiroz se envolveu numa ocorrência que provocou a morte de um jovem de dezenove anos depois de um alegado tiroteio ocorrido num baile funk na Cidade de Deus O sargento Queiroz disse na delegacia que foi atacado primeiro por isso atirou agindo em legítima defesa A vítima Gênesis Luiz da Silva levou um tiro na nuca e morreu no hospital O caso não teve repercussão nem desdobramento na Justiça Seria apenas mais um naquele ano marcado pelo crescimento da violência policial no Rio de Janeiro que chegaria a novecentos homicídios aumento de 52 em relação ao ano anterior A governadora petista Benedita da Silva vinha tendo dificuldades para controlar os policiais militares As denúncias de corrupção não paravam de pipocar Benedita havia assumido em 2002 como vice de Anthony Garotinho PSB que tinha deixado o cargo para disputar a presidência Benedita ficaria menos de um ano no governo Os policiais mineiros aproveitaram essa breve transição no governo para faturar Mineiro do verbo minerar garimpar é a gíria usada para definir o policial que consegue identificar um criminoso endinheirado ou procurado a fim de extorqui lo Para os policiais mineiros não importa se o alvo é traficante sequestrador ladrão de banco ou de carga Quanto mais rico maior o potencial de lucro do policial e maior sua receita com a extorsão Para encontrar essas pedras preciosas contudo é preciso dispor de bons informantes e saber separar o minério da lama O pedido de 20 mil reais que o sargento Queiroz fez a Jorge Marcelo da Paixão acusado de tráfico na Cidade de Deus para não prendêlo foi um caso típico desse garimpo Pelo menos de acordo com a acusação feita por Paixão arquivada na Justiça A mineração era um dos artifícios usados pelos policiais para obter receitas com o crime antes que se consolidasse o modelo de negócios dos milicianos de domínio de território para a obtenção de receitas criminais diversas Queiroz viveu o período de transição entre esses dois tipos de negócio E foi justamente a partir de 2002 que a área sob a responsabilidade do 18o Batalhão teve mais de quarenta comunidades de Jacarepaguá dominadas pelos paramilitares sem prejuízo para os negócios criminais anteriores Ainda em novembro de 2002 menos de duas semanas depois de Queiroz ter matado Gênesis Luiz da Silva no baile funk um grande escâ ndalo implicaria diretamente os comandantes do 18o Batalhão em denúncias de extorsão de traficantes na Cidade de Deus Segundo essas denúncias os policiais estavam aterrorizando a comunidade para forçar os integrantes do tráfico local a lhes pagar o arrego outra palavra corrente nas conversas cotidianas sobre o crime no Rio de Janeiro Pagar o arrego significa comprar a trégua com o batalhão ou o distrito local que então passa a tolerar o movimento de vendas no território O pagamento do arrego foi fundamental para consolidar o mercado de drogas nos anos 1990 no Rio uma espécie de regulamentação informal do varejo de drogas estabelecida na ponta pelo policiamento No caso da extorsão policial na Cidade de Deus três oficiais do Grupamento Especial Tático Móvel Getam foram presos preventivamente depois de serem gravados pelo presidente da Associação de Moradores pedindo que ele passasse um recado aos traficantes eles deveriam pagar 120 mil reais para evitar as abordagens e operações no bairro e no baile funk local Arrego básico Mas a bagunça no 18o era tamanha que quadrilhas de policiais do batalhão disputavam o arrego entre elas Quem vai zoar a porra da favela é o Getam e não tem essa porra quer pagar pra lá outro grupo de PMs paga Não quer pagar pro Getam não paga Essa indefinição não tá com nada ele oficial do 18o falou que quer ele quer é 120 contos na mão disse o major do Getam sobre o total a ser pago para eles na gravação feita pelo presidente da associação do bairro A situação era delicada Os traficantes não queriam pagar para o Getam porque já bancavam os policiais do batalhão Diante desse impasse os policiais eram enviados à comunidade para patrulhar os bailes funks atrapalhando os ganhos do tráfico O presidente da associação contou na época que diversas operações começaram a ser feitas no bairro para pressionar o pagamento A solução encontrada por ele foi gravar o pedido de arrego e denunciar os policiais Queiroz estava inserido nesse ambiente de extorsão mineração e arregos Mas o modelo de milícias que começava a se expandir em Jacarepaguá proporcionava novas oportunidades menos arriscadas e mais estáveis As milícias dispensavam o tenso contato cotidiano com o crime para praticar extorsão Dominado o território o relacionamento passava a ser com a população e a economia local principal fonte das receitas A partir de 2003 durante o governo de Rosinha Garotinho esse modelo seria tolerado por alguns políticos Em 2005 o sargento dos Bombeiros Cristiano Girão acusado mais tarde de chefiar as milícias em Gardênia Azul nos arredores de Jacarepaguá seria indicado assessor especial da governadora Em 2003 Queiroz voltaria a se envolver em confusão No dia 15 de maio ele participou de um homicídio ao lado de um tenente novato Adriano Magalhães da Nóbrega recémchegado ao 18o Batalhão Apesar de jovem Adriano tinha uma ficha respeitável Com 26 anos o tenente já havia feito curso no Batalhão de Operações Policiais Especiais Bope e tinha formação de sniper atirador de elite Era chamado de Urso Polar O jovem também gostava da linha de frente o que ajudou a estreitar laços com o experiente sargento Fabrício Queiroz de 37 anos conhecedor das ruas da zona oeste e do garimpo na Cidade de Deus O homicídio cometido pela dupla ocorreu durante uma ronda no bairro preferido dos mineiros A vítima foi o técnico de refrigeração Anderson Rosa de Souza pai de dois filhos segundo o atestado de óbito Os policiais alegaram ter reagido a uma agressão e afirmaram que Anderson gerenciava o tráfico na Cidade de Deus O caso entrou na conta da guerra às drogas O depoimento dos dois alegando legítima defesa bastou para o arquivamento da ocorrência que entrou no balanço de mortes cometidas pela polícia Depois desse homicídio na Cidade de Deus Fabrício Queiroz e Adriano da Nóbrega deixaram o 18o Batalhão mas mantiveram a amizade Queiroz foi para o Batalhão de Policiamento em Vias Especiais e Adriano para o 16o Batalhão que desde o ano anterior 2002 era um foco de acusações de arregos e corrupção Naquele ano o chefe da Corregedoria Unificada da Secretaria de Segurança Pública pôs sob suspeita alguns policiais do 16o que foram investigados por dar guarida ao traficante Paulo César Silva dos Santos o Linho nome forte do Terceiro Comando e um dos bandidos mais procurados do Rio Os policiais daquele batalhão também estavam envolvidos no esquema de cobertura ao traficante Elias Maluco do Comando Vermelho acusado de matar o jornalista Tim Lopes em 2002 Élcio de Queiroz policial preso em 2019 e apontado como o motorista do carro usado por Ronnie Lessa para assassinar Marielle Franco e Anderson Gomes também trabalhava no 16o Batalhão A ligação do clã Bolsonaro com a rede de paramilitares e milicianos que se formava na zona oeste se estreitou em 2002 com a eleição de Flávio Bolsonaro para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro O deputado de apenas 22 anos neófito no Parlamento pretendia se vender como o representante político e ideológico dos guerreiros fardados que lutavam por espaço e poder nos territórios do Rio Ao longo dos anos coube a Fabrício Queiroz o papel de principal articulador dessa rede de apoio no mandato do deputado primogênito Queiroz seria fundamental para ajudar a fortalecer a base de votos do clã Bolsonaro nos batalhões policiais para onde levou Flávio em sua primeira campanha para pedir votos Queiroz era amigo de Jair Bolsonaro desde os tempos do Exército Eles se conheceram em 1984 no oitavo grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista na Vila Militar no Rio Flávio então tinha três anos e chamava Queiroz de tio Na mesma artilharia em 1987 Queiroz conheceu o futuro vicepresidente Hamilton Mourão trabalhando como motorista do jipe do oficial Na época Bolsonaro sugeriu ao soldado que prestasse concurso para a polícia O ingresso de Queiroz na corporação ocorreu naquele mesmo 1987 e a relação de lealdade e confiança entre os dois se manteria desde então Quando Flávio se elegeu deputado estadual Jair Bolsonaro o chefe do clã estava em uma encruzilhada Na época final de 2002 Jair era uma figura com perspectivas eleitorais duvidosas Folclórico no Congresso Nacional com apelo restrito à parcela ultraconservadora do eleitorado parecia destinado a perder força a exemplo de diversos parlamentares populistas defensores de uma polícia truculenta Faltava a ele jogo de cintura para se aproximar dos partidos e dos colegas Ostentava ainda um temperamento paranoico o que parecia um empecilho aos acordos que definiam os poderes na Nova República Na eleição de 2002 Jair obteve menos votos do que em suas duas eleições anteriores apesar do sobrenome ainda ser popular O futuro presidente do Brasil parecia satisfeito em seguir no Parlamento diante da situação política adversa Mas precisaria suar A direita sem espaço no período da redemocratização também estava fragilizada naquele ano Depois de três derrotas consecutivas o candidato Luiz Inácio Lula da Silva finalmente venceu as eleições e iniciou seu primeiro mandato como presidente A eleição do filho mais velho de Jair Bolsonaro o zero um abriu espaço para a família no debate estadual da segurança pública Flávio era o segundo rebento a ganhar uma eleição se valendo do nome da família Dois anos antes Carlos Bolsonaro o zero dois tinha sido o mais jovem vereador eleito da história do Brasil com dezessete anos Segurança pública entretanto não era um tema para debater no â mbito municipal Na Assembleia Legislativa Flávio poderia brilhar defendendo a bandeira populista do pai da guerra contra o crime Com isso também poderia se destacar entre os mandachuvas da política fluminense como os deputados Paulo Melo Jorge Picciani e Domingos Brazão pouco conhecidos fora do Rio mas capazes de grande articulação no submundo político Naquele ano o futuro governador Sérgio Cabral Filho deixaria a Assembleia depois de três mandatos consecutivos para concorrer ao Senado de onde sairia para assumir o governo do Rio em 2007 Flávio se movimentava com tranquilidade na zona de conforto da família Bolsonaro entremeando sua pauta antidireitos humanos com projetos de lei em defesa da polícia e com homenagens a seus integrantes Por sugestão do pai Flávio entregou inúmeras medalhas a policiais mesmo àqueles flagrados em ações suspeitas Durante seus quatro mandatos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro Alerj Flávio Bolsonaro aprovou 495 moções e concedeu 32 medalhas a policiais militares policiais civis bombeiros guardas municipais e membros do Exército da Marinha e da Aeronáutica1 As homenagens que naqueles anos não passavam de agrado à sua base eleitoral acabaram deixando um rastro das afinidades da família Bolsonaro com os milicianos mais perigosos do Rio A insistência em condecorar os maiores vilões da corporação deixou cristalizada a ideologia de guerra que Jair Bolsonaro sempre sustentou As primeiras homenagens ocorreram ainda no primeiro ano do mandato de Flávio Bolsonaro no dia 27 de outubro de 2003 O sargento Fabrício Queiroz estava entre os laureados e recebeu uma moção de louvor e congratulações concedida pelo Parlamento A estrela principal contudo foi Adriano Magalhães da Nóbrega o tenente que carregava na bagagem a marca da caveira do Bope e a parceria com Queiroz nas vielas da Cidade de Deus Na homenagem havia ainda sete integrantes do Grupo de Ações Táticas do 16o Batalhão de Olaria onde Adriano passara a trabalhar poucos meses antes O texto da homenagem era o mesmo para todos Com vários anos de atividade este policial militar desenvolve sua função com dedicação brilhantismo e galhardia Presta serviços à Sociedade desempenhando com absoluta presteza e excepcional comportamento nas suas atividades No decorrer de sua carreira atuou direta e indiretamente em ações promotoras de segurança e tranquilidade para a Sociedade recebendo vários elogios curriculares consignados em seus assentamentos funcionais Imbuído de espírito comunitário o que sempre pautou sua vida profissional atua no cumprimento do seu dever de policial militar no atendimento ao cidadão2 O fato de alguns homenageados serem suspeitos de extorsão não preocupava Afinal a prática era tolerada pela corporação Os verdadeiros inimigos no entender desse núcleo eram os bandidos e os defensores de direitos humanos e dos controles estabelecidos pela legislação que não entendiam os riscos envolvidos na guerra contra o crime Algumas homenagens pareciam concebidas apenas para provocar polêmica Eram oportunidades para um deputado sem brilho se afirmar como herdeiro das ideias folclóricas do pai Em março de 2004 o homenageado foi o capitão Ronald Paulo Alves Pereira que atuava no 22o Batalhão por seus importantes serviços prestados ao estado do Rio de Janeiro quando da operação policial realizada no Conjunto Esperança no dia 22 de janeiro de 2004 às 0h30 que resultou em confronto armado com marginais da Lei onde três destes vieram a falecer sendo um deles o meliante Macumba líder do tráfico no Conjunto Esperança Complexo da Maré logrado êxito em apreender dois fuzis M16 A2 uma granada marca FMK de fabricação argentina dois aparelhos de telefonia celular um rádio transmissor da marca ICOM 58 projéteis intactos de 556 mm e três projeteis de 762 mm3 Três meses antes o capitão Ronald havia sido acusado de participar da chacina de quatro jovens entre eles um garoto de treze anos na casa de espetáculos Via Show em São João de Meriti na Baixada Fluminense Os jovens foram abordados no estacionamento pelo chefe da segurança de uma boate formada por policiais que faziam bico Geraldo uma das vítimas era soldado do Exército Foi acusado de tentar roubar um carro pelo chefe da segurança que acionou os policiais militares Os PMs espancaram os garotos e os levaram para uma fazenda distante onde foram torturados e depois assassinados com tiros de fuzil Os corpos foram encontrados três dias depois num cemitério clandestino Além de Ronald oito policiais foram acusados pelo crime Quatro acabaram condenados sendo três deles soldados Ronald o único oficial envolvido na chacina desmembrou o processo e continuou trabalhando normalmente como policial Com o incentivo de políticos como o deputado Flávio Bolsonaro No caso de Adriano e de seus colegas do Grupo de Ações Táticas do 16o Batalhão a homenagem ocorreu um mês antes de uma situação suspeita e escandalosa que estouraria em seguida Depois da homenagem de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio Adriano e os policiais laureados foram presos acusados de sequestro tortura e extorsão de três jovens em Parada de Lucas comunidade da zona norte da cidade Segundo testemunhos os policiais aplicavam a velha prática da mineração e do arrego Contudo um homicídio em especial desafiou a Secretaria de Segurança comandada na época por Anthony Garotinho que assumira o posto na gestão de sua esposa e sucessora no governo do Rio Rosinha Garotinho A vítima de Adriano e sua tropa foi o guardador de carros Leandro dos Santos Silva de 24 anos morto com três tiros Antes de ser assassinado Leandro esteve na Inspetoria de Polícia órgão criado por Garotinho com a finalidade de apurar desvios de policiais para fazer uma denúncia Contou que na semana anterior tinha sido espancado por policiais do 16o Batalhão e foi obrigado a pagar mil reais a eles De acordo com o depoimento de Leandro os policiais usaram sacos plásticos para asfixiálo e exigiram outros mil reais para deixálo em paz Leandro foi levado à delegacia para confirmar as denúncias e depois encaminhado ao Instituto Médico Legal para o exame de corpo de delito O subsecretário de Segurança Marcelo Itagiba e o inspetor combinaram com Leandro um flagrante para prenderem o grupo no ato do pagamento do arrego Não deu tempo Ele foi assassinado às 6h30 na porta de casa Adriano e os demais foram indiciados por homicídio qualificado Garotinho entendeu que sua autoridade havia sido desafiada e determinou a prisão dos suspeitos O comandante do 16o Batalhão o tenente coronel Lourenço Pacheco Martins foi à delegacia armado de fuzil para defender a tropa e ameaçou processar os jornalistas que estavam na porta da delegacia O gesto levou Garotinho a exonerálo afirmando aos jornais que os PMs haviam plantado provas para forjar um tiroteio e assassinar a vítima que prestaria testemunho Durante as investigações do caso a Inspetoria apurou mais dois casos de sequestro e tortura praticados pelo grupo Em janeiro de 2004 Adriano e os policiais foram presos preventivamente Apesar da repercussão do caso e da evidência dos crimes Flávio Bolsonaro voltou a homenagear Adriano da Nóbrega Em junho de 2005 mesmo preso ele recebeu uma honraria ainda mais importante a Medalha Tiradentes Conforme o regimento da Assembleia Legislativa ela deve ser concedida a personalidades nacionais ou estrangeiras que de qualquer forma tenham serviços prestados ao estado do Rio de Janeiro ao Brasil ou à humanidade O deputado usou uma ocorrência de quatro anos antes para justificar a homenagem e escreveu Em 26 de junho de 2001 Adriano logrou êxito em prender doze marginais no Morro da Coroa além de apreender quatro fuzis calibre 762 uma submetralhadora calibre 9 mm duas pistolas 40 uma granada argentina FMK quatro carregadores calibre 556 três carregadores calibre 762 dois carregadores calibre 40 106 munições calibre 556 dezesseis munições calibre 40 130 munições calibre 762 22 munições calibre 9 mm uma faca e noventa trouxinhas de maconha Adriano recebeu a Medalha Tiradentes no Batalhão Especial Prisional em setembro de 2005 Com isso o deputado Flávio Bolsonaro marcava posição em defesa de seu protegido e de tudo aquilo que os crimes de Adriano representavam Como os matadores e achacadores estavam moralmente perdoados cabia agora lutar com todas as armas para ludibriar a Justiça Antes do julgamento que condenaria a equipe de Adriano em agosto de 2004 policiais do 16o Batalhão foram acusados de minerar um extraficante e obrigálo a depor em benefício de Adriano e de seus companheiros Uma nova finalidade da mineração Seis policiais entre os quais o comandante do 16o foram presos administrativamente por causa da denúncia A vítima era José Roberto da Silva Filho o Robertinho de Lucas exlíder da favela em que Leandro foi morto Robertinho tinha sido chefe do Terceiro Comando e um dos traficantes mais famosos do Rio nos anos 1990 As disputas sangrentas travadas com a vizinha Vigário Geral ficaram na memória da cidade Ele havia sido preso sete anos antes em 1997 na gestão do delegado Hélio Luz na Polícia Civil famoso por prender os principais chefões do tráfico Solto em 2002 Robertinho dizia ter mudado de vida O estigma de bandido contudo dava brecha para a polícia chantageálo Segundo o depoimento de Robertinho na delegacia ele foi torturado e coagido a convencer os moradores de Parada de Lucas a retirarem a acusação contra os policiais do 16o e a testemunhar em defesa deles Como se recusou os policiais plantaram uma arma durante o flagrante e o prenderam Os capítulos desse imbróglio policial se desenrolavam longe do interesse geral e da imprensa Adriano tinha as costas quentes e conseguia transformar seus crimes comuns em questões políticas para os Bolsonaro seus protetores Em outubro de 2005 um júri popular condenou Adriano da Nóbrega a dezenove anos de prisão pelo homicídio do guardador de carros Leandro dos Santos Silva Quatro dias depois o então deputado federal Jair Bolsonaro foi à tribuna da Câ mara Federal defender o tenente Bolsonaro pediu à deputada Denise Frossard exjuíza criminal que o ajudasse a reverter a condenação Na interpretação de Bolsonaro tudo não passava de disputa ideológica e Adriano tinha sido injustamente condenado Sr presidente sras e srs deputados antes de iniciar peço à deputada Juíza Denise Frossard que ouça minhas palavras pois não tenho experiência nessa área e quero depois me aconselhar com sua excelência Na segundafeira passada pela primeira vez compareci a um Tribunal do Júri Estava sendo julgado um tenente da Polícia Militar de nome Adriano acusado de ter feito incursão em uma favela onde teria sido executado um elemento que apesar de envolvido com o narcotráfico foi considerado pela imprensa um simples flanelinha Todas as testemunhas de acusação seis no total tinham envolvimento com o tráfico o que é muito comum na área em que vivem iniciou Bolsonaro4 O deputado insinuava que a incriminação dos policiais havia sido armada pelos traficantes Para livrar o policial da acusação bastaria desqualificar a vítima ou as testemunhas na Justiça Durante a investigação no entanto os testemunhos foram confrontados com o GPS da viatura A hora e o local das torturas e dos achaques citados pelas vítimas coincidiam com a localização da viatura no momento dos crimes O discurso de Bolsonaro não levava em conta essas informações porque era sobretudo ideológico O deputado estaria sempre ao lado do policial com uma lealdade incondicional O que é importante analisar no caso continuou ele em seu discurso na Câ mara Federal Não considero que a promotoria o condenou deputada Denise Frossard Um dos coronéis mais antigos do Rio de Janeiro compareceu fardado ao lado da promotoria e disse o que quis e o que não quis contra o tenente acusandoo de tudo que foi possível esquecendose até do fato de ele sempre ter sido um brilhante oficial Terminado o julgamento ao conversar com a defesa fiquei sabendo que ela não conseguira trazer para depor o outro coronel que havia comandado o tenente acusado Por quê Porque qualquer outro coronel que fosse depor favoravelmente ao tenente bateria de frente com o coronel e com toda a certeza seria enquadrado por estar chamando de mentiroso o colega coronel Para o futuro presidente do Brasil a punição do tenente Adriano da Nóbrega e o aumento do controle da polícia estavam ligados acima de tudo à subserviência do governo Rosinha e Anthony Garotinho a ONGs estrangeiras e aos direitos humanos uma agenda imposta de fora para dentro É importante saber a quem interessa a condenação pura e simples de militares da Polícia do Rio de Janeiro sejam eles culpados ou não Interessa ao casal Rosinha e Anthony Garotinho porque a Anistia Internacional cobra a punição de policiais em nosso país insistentemente É preciso ter um número xis ou certo percentual de policiais presos O Rio é o estado que mais prende percentualmente policiais militares e ao mesmo tempo o que mais se posiciona ao lado dos direitos humanos completou como se fizesse uma denúncia Apesar da condenação de Adriano e de seu grupo por júri popular um ano depois o caso chegou à segunda instâ ncia da Justiça Os desembargadores anularam a decisão com o argumento de que os jurados analisaram as provas de forma equivocada Adriano foi absolvido em janeiro de 2007 Com o apoio de Bolsonaro ganhou uma avenida aberta para mergulhar em sua meteórica carreira criminosa O apoio à ideia e a ações violentas de guerra contra o crime não surgiu do nada Ele dialogou com percepções e sentimentos sinceros e profundos da população carioca Em 2002 quando um novo modelo de milícias se espraiava por Jacarepaguá uma série de tragédias assustava a cidade cansada das disputas cotidianas que envolviam facções rivais por poder e pelo varejo das drogas A sensação de não haver como combater o poder do tráfico se aguçou em junho daquele ano quando o jornalista Tim Lopes da Rede Globo foi assassinado por traficantes da Vila Cruzeiro no Complexo do Alemão Lopes foi criado no Morro da Mangueira bairro pobre e tradicional da região central do Rio que começou a se formar nas duas primeiras décadas do século X X por moradores vindos de cortiços e de casas demolidas das imediações A origem social do repórter facilitava seu trâ nsito entre mundos diversos Tim Lopes amava samba e futebol Era vascaíno fanático e mangueirense apaixonado Pretendia publicar um livro com histórias do Carnaval Na ocasião do crime que o vitimou Tim Lopes investigava a opressão armada imposta pelos vendedores de droga nos morros tema arriscado porque exigia a busca por imagens proibidas pelo tráfico Em 2001 munido de uma microcâ mera ele havia conseguido filmar uma feira de drogas o que rendeu ao jornalista e sua equipe o principal prêmio nacional de telejornalismo naquele ano A matéria exibida no Jornal Nacional mostrava o comércio livre na rua da Grota em plena luz do dia Vendedores ofereciam maconha a dois reais pó em promoção a cinco ou uma trouxinha maior por quinze reais Filas para comprar cocaína se formavam em pontos de venda vigiados por homens armados de fuzis Crianças com uniforme escolar mães com bebês de colo pessoas voltando do trabalho todas obrigadas a andar no meio daquele cenário opressivo A reportagem ironizava a desinformação da polícia sobre a existência da feira Bastou a exibição para que policiais entrassem no Alemão e os organizadores fossem presos Quase um ano depois Tim voltou ao mesmo morro para denunciar os bailes funk Fontes tinham informado o repórter de que nesses eventos havia drogas em abundâ ncia e sexo com garotos e garotas menores de idade Dessa vez ele foi descoberto pelos traficantes alguns dos quais frequentadores da feira de drogas que ele revelara no ano anterior Antes de morrer a golpes de espada Tim foi torturado e queimado entre pneus em chamas Durante sete dias o jornalista ficou desaparecido O impacto da descoberta e das circunstâ ncias da morte de Tim Lopes provocou indignação em entidades de jornalismo em governantes e autoridades do Brasil e do mundo A primeira reportagem do Jornal Nacional anunciando o desfecho do crime que ocupou todo o programa foi na minha visão parcial de jornalista que cobria temas parecidos um dos momentos mais emocionantes do telejornalismo brasileiro Os traficantes que o mataram devem estar acreditando que calaram a sua voz Estão errados disse o apresentador William Bonner ao final daquela edição olhando para as câ meras como se dialogasse com Tim A sua voz será ouvida cada vez mais alto em cada reportagem que nós jornalistas do Brasil fizermos A sua voz vai ecoar na redação da Globo e nas casas de cada cidadão de bem Em vez do silêncio o nosso aplauso A câ mera então mostrou toda a equipe do jornal em pé batendo palmas em homenagem ao jornalista assassinado A morte de Tim Lopes era mais um efeito trágico da disputa entre facções rivais como Comando Vermelho CV Amigos dos Amigos ADA e Terceiro Comando TC O comércio das drogas movimentava muito dinheiro com empreendedores fortemente armados e dispostos ao tudo ou nada Ninguém duvidava que a próxima desgraça seria questão de tempo Naquele mercado lucrativo pequenos movimentos bastavam para interferir no cotidiano da cidade Em março daquele ano 2002 por exemplo a detenção de um chefe do tráfico do CV na Vila K ennedy provocou um bonde de mais de uma centena de homens ligados ao TC e à ADA armados com fuzis granadas e bazucas para tomar o território Bonde gíria comum no vocabulário criminal carioca designa o apoio de armas e homens para grupos aliados na tomada de territórios rivais Essa movimentação vinha sendo acompanhada por escutas feitas pela polícia que se antecipou ao ataque e ocupou o Morro do Adeus desmobilizando o bonde que partiria de lá Mas não adiantou Dois dias depois os traficantes voltaram a se reunir com os aliados para espalhar o terror pela zona norte e passar um recado aos policiais O comboio do TC e da ADA saiu pela madrugada fazendo disparos com fuzis atingindo um carro da polícia uma delegacia prédios residenciais antes de executar um sargento num posto policial e ferir um soldado do Batalhão de Operações Especiais que havia participado da invasão do morro na noite anterior Poucos dias depois os conflitos migraram para as ruas do Catumbi e do Estácio em mais uma disputa entre TC e CV dessa vez pelos pontos de venda no Morro do São Carlos Quatro pessoas foram mortas e sete ficaram feridas com balas perdidas entre elas uma criança de oito meses e a mãe Na noite dos tiroteios a um quilômetro dali na Praça da Apoteose ocorria o show de Roger Waters com 35 mil pessoas Policiais foram transferidos para a região dos conflitos e intensificaram a troca de tiros O calibre pesado dos armamentos tornou a situação especialmente dramática as balas perdidas atravessaram paredes e portas de carro A rivalidade havia começado quatro anos antes quando uma aliança entre TC e ADA promoveu um desequilíbrio na geografia do tráfico do Rio A nova joint venture criminal criou uma rede com mais armas e homens e com a possibilidade de fazer frente ao Comando Vermelho Além do mais o TCA TC ADA tinha contatos bem articulados nas fronteiras capazes de importar armas do Paraguai em grande quantidade quebrando o domínio de Fernandinho BeiraMar que abastecia o CV Policiais estimavam que a parceria entre as duas facções tinha quase dobrado o total de comunidades sob o domínio delas com mais de cem disputas somadas e espalhadas pelo mapa da cidade As taxas de homicídio na capital que haviam caído para menos de quarenta casos por 100 mil habitantes no fim dos anos 1990 voltaram a ultrapassar a casa dos cinquenta casos por 100 mil habitantes depois dos anos 2000 Esses embates pipocavam em diversas regiões da cidade espalhavamse pelo asfalto produziam balas perdidas e tiroteios fechavam túneis paravam o trâ nsito Histórias como essas eram testemunhadas pela população e contadas em elevadores restaurantes bares no transporte público na praia ampliando a sensação de desamparo e de ausência do poder público Em agosto de 2002 esse medo que impregnava o cotidiano do Rio de Janeiro marcou o clima da estreia do filme Cidade de Deus clássico do cinema nacional O bairro onde o filme se passa ganhou fama mundial com o estrondoso sucesso da obra dirigida por Fernando Meirelles baseada no livro homônimo de Paulo Lins A trajetória de Dadinho menino que se tornou um dos primeiros traficantes de lá conhecido como Zé Pequeno se baseava em fatos reais Ao mesmo tempo que abriu as portas para investimentos em novas produções e para o estímulo de uma cena cultural no território a exposição da crueldade dos traficantes na tela grande também ajudou a aumentar a fama de um local já estigmatizado em uma cidade onde as autoridades sabiam ser cruéis com os bodes expiatórios da vez Em Cidade de Deus meninos de dez anos pegam em armas Matam É como se de repente um filme tivesse o poder de revelar uma doença incurável ou ao menos um mal para o qual ainda não se descobriu a cura escreveu Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro em artigo para o jornal O Globo em setembro de 2002 As cidades brasileiras escondem pequenas Bósnias dentro de si O Brasil vive estado de guerra está nas telas É sentar no cinema para ver Todo cidadão brasileiro tem o dever cívico de assistir ao filme Os candidatos à presidência da República têm obrigação de prestar seu depoimento O que pretendem fazer no primeiro dia de suas administrações para tentar impedir que crianças de dez anos continuem a ser recrutadas pelo tráfico Que crianças de dez anos continuem a se matar O texto em tom alarmista reverberava os â nimos de uma cidade traumatizada Em setembro de 2002 três meses depois do assassinato de Tim Lopes cenas assustadoras vieram a público durante uma rebelião de presos em Bangu 1 liderada por Marcio dos Santos Nepomuceno o Marcinho VP líder do CV Os rebelados destruíram o presídio de segurança máxima amarraram reféns a um botijão de gás e ameaçaram explodilos gerando horas de tensão transmitidas ao vivo para todo o país Quatro pessoas ligadas a grupos rivais foram mortas entre elas Ernaldo Pinto de Medeiros o Uê mítico chefe da ADA Celsinho da Vila Vintém outro líder do grupo rival e figura importante na cena do crime do Rio foi poupado Os desdobramentos do conflito em Bangu prosseguiriam do lado de fora nos morros e nas comunidades A rebelião não era uma carnificina rotineira mas um movimento ousado capaz de provocar reações e vinganças entre os grupos entrincheirados em morros repletos de fuzis A sobrevivência de Celsinho da Vila Vintém foi vista com desconfiança pelo Terceiro Comando e provocou o rompimento da aliança até então bemsucedida entre as duas facções Seria formado o Terceiro Comando Puro TCP em oposição à ADA e ao CV obrigando diversos chefes de morros a optar entre as lideranças de Celsinho e Linho pela ADA e Robinho Pinga pelo TCP Novos focos de conflito se formariam Parecia não haver solução para lidar com o forte poder bélico e econômico dos traficantes Sempre houve contudo quem olhasse a crise na segurança de outra maneira com olhos de empreendedor a identificar oportunidades para lucrar com o medo e a sensação de insegurança da população Fortalecer os ganhos num mercado vigoroso vendendo sensação de proteção e ordem Para complicar o quadro tais empreendedores estavam dentro da própria polícia do Rio de Janeiro Muitos já aproveitavam havia décadas essas brechas para faturar ilegalmente mas novas modalidades de negócio podiam emergir As milícias lançariam mão de um modelo mais sofisticado que passaria a dominar territórios promovendo um tipo de tirania alternativa à das facções e que levaria muitos de seus representantes aos quadros mais elevados do poder Durante as entrevistas ouvi muitas vezes esta pergunta um falso dilema tipicamente fluminense tráfico ou milícia Como se as instituições democráticas e a garantia de direitos iguais para todos não fizessem parte do catálogo de escolhas A defesa de uma polícia violenta não era novidade nem no Rio nem no Brasil pelo contrário tinha lastro no passado Mas naquele 2002 apesar da violência sofrida pela cidade defender os excessos cometidos por autoridades e criticar de forma ostensiva o estado de direito pareciam atitudes anacrônicas A democracia não tinha completado duas décadas e despertava esperanças de que a Nova República ainda produzisse uma sociedade mais justa e civilizada Pelo menos era o que eu e muitos colegas pensávamos Com certa ingenuidade é preciso admitir No campo da segurança pública acreditávamos que o controle externo do Ministério Público sobre os excessos das polícias e o fortalecimento das corregedorias e das ouvidorias diminuiriam o ímpeto daqueles que defendiam a violência desmedida contra um inimigo interno a ser vencido Medidas mais racionais e inteligentes assim como ações preventivas do Estado deveriam se consolidar como as políticas públicas mais apropriadas para as cidades como se o processo civilizatório caminhasse sempre para a frente Figuras populistas e truculentas que defendiam o extermínio pareciam datadas fadadas a ser deixadas falando sozinhas A aposta da família Bolsonaro foi outra e acabou vingando Em suas trajetórias políticas Jair e seus filhos eleitos se dedicaram a defender grupos que compartilhavam com eles esses e outros ressentimentos e revoltas A defesa criminosa dos paramilitares e da ação imoral das polícias presente em toda a carreira parlamentar do clã Bolsonaro foi menosprezada por grande parte dos eleitores como se não passassem de falas tresloucadas sem consequência Mesmo diante de várias manifestações de apologia ao crime seus colegas parlamentares evitavam punilos permitindo impropérios cada vez mais radicais Em agosto de 2003 por exemplo o deputado federal Jair Bolsonaro defendeu abertamente na Câ mara dos Deputados o assassinato de suspeitos Sr presidente sras e srs deputados desde que a política de direitos humanos chegou ao país a violência só aumentou e passou a ocupar grandes espaços nos jornais A marginalidade tem estado cada vez mais à vontade tendo em vista os neoadvogados para defendêla Quero dizer aos companheiros da Bahia há pouco ouvi um parlamentar criticar os grupos de extermínio que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte o crime de extermínio no meu entender será muito bemvindo Se não houver espaço para ele na Bahia pode ir para o Rio de Janeiro Se depender de mim terão todo o meu apoio porque no meu estado só as pessoas inocentes são dizimadas Na Bahia pelas informações que tenho lógico que são grupos ilegais a marginalidade tem decrescido Meus parabéns 5 Na Assembleia Legislativa do Rio Flávio Bolsonaro que homenageava policiais suspeitos de assassinatos foi explícito na defesa política das milícias no momento em que o grupo ganhava força e se expandia pela zona oeste da cidade elegendo parlamentares e compartilhando o apoio de políticos locais Num debate com deputados ocorrido em fevereiro de 2007 o filho de Bolsonaro defendeu as milícias em plenário Sr presidente venho falar sobre as milícias assunto tão noticiado pela imprensa não se pode simplesmente estigmatizar as milícias em especial os policiais envolvidos nesse novo tipo de policiamento entre aspas A milícia nada mais é do que um conjunto de policiais militares ou não regidos por uma certa hierarquia e disciplina buscando sem dúvida expurgar do seio da comunidade o que há de pior os criminosos Em todas essas milícias sempre há um dois três policiais que são da comunidade e contam com a ajuda de outros colegas de farda para somar forças e tentar garantir o mínimo de segurança nos locais onde moram Há uma série de benefícios nisso Eu por exemplo gostaria de pagar vinte reais trinta reais quarenta reais para não ter meu carro furtado na porta de casa para não correr o risco de ver o filho de um amigo ir para o tráfico de ter um filho empurrado para as drogas Pergunte a qualquer morador de uma dessas comunidades se ele quer outra coisa se quer sair de lá se não está feliz de poder conversar com seus vizinhos na calçada até tarde da noite É claro que sim porque ele sabe que não corre mais o risco de morrer 6 Flávio Bolsonaro proferiu esse discurso ao assumir seu segundo mandato de deputado estadual Ele dividiu a tribuna com colegas acusados de serem chefes de milícias caso de Natalino José Guimarães apontado como a principal liderança da Liga da Justiça a milícia de Campo Grande e Santa Cruz Um mês depois Flávio contratou o amigo de seu pai Fabrício Queiroz para ser um faztudo em sua assessoria parlamentar Queiroz foi acusado de ser um dos articuladores do esquema da rachadinha no gabinete de Flávio repetindo um estratagema comum em câ maras municipais e assembleias em que a verba de gabinete destinada ao pagamento de funcionários é desviada para outros fins entre eles engordar o salário do vereador ou deputado No mesmo discurso no plenário da Assembleia Flávio continuou firme na defesa das ações dos paramilitares Penso que não há diferença entre o policial militar que vai fazer a segurança de um deputado ou de um condomínio de luxo e o policial que está fazendo a segurança na maioria esmagadora das vezes no local onde mora e onde tem família afirmou Não acho justa essa perseguição Eles se sentem apavorados com as milícias porque raríssimas exceções ONGs de direitos humanos políticos ligados a essa área vivem da miséria da desgraça e da violência de uma comunidade porque caso contrário ficarão sem trabalho Imaginem se acabassem com o tráfico na Rocinha O que o Viva Rio vai fazer lá dentro Como irá justificar os recursos financeiros públicos e privados que recebe para exercer esse trabalho social entre aspas naquele lugar Para essas ONGs não interessa ter milícia Se não houver violência miséria morte bala perdida estupro eles não terão o que fazer Esses políticos ligados aos direitos humanos estão preocupados com a sua própria carreira política O argumento da autodefesa comunitária sempre foi a tônica do discurso de Flávio Mas para ele o extermínio é também a defesa de uma ordem coletiva Os soldados e policiais são descritos como abnegados que arriscam a vida na luta em nome desse ideal Podemos condenar policiais que estão trabalhando para expurgar criminosos que não têm recuperação Qualquer jornal hoje estampa a foto de um grupo de traficantes segurando fuzis de última geração com carregadores onde cabem centenas de balas Será que um vagabundo sendo preso poderá se recuperar Será que ele quer se recuperar Será que é justo continuarmos mantendo esse tipo de gente na cadeia Para quê Temos de deixar de ser hipócritas Não há recuperação mesmo A família Bolsonaro cresceu e se fortaleceu num ambiente por ela definido como de guerra urbana A construção de um bode expiatório amedrontador era fundamental para a sobrevivência do ódio que mantinha o poder do clã Também ajudava a enriquecer os policiais e paramilitares que conheciam os caminhos para faturar com o medo da população Os Bolsonaro demonstravam esta qualidade valorizada entre soldados em guerra lealdade incondicional mesmo diante das ações criminosas que seus parceiros praticavam A sinceridade era outra qualidade Eles não pareciam simplesmente oportunistas mas convictos defensores de ações criminosas e violentas Dessa forma defendiam em público o que os próprios militares e policiais tentavam disfarçar a prática de tortura e assassinatos para conter o crime Não era algo estratégico ou premeditado pensado para futuros ganhos políticos Pareciam ideias resistente às regras do jogo cultivadas por um chefe de família que as tinha transmitido aos três filhos parlamentares um homem incapaz de esconder o que sente pronto como poucos para expor seu ponto de vista de forma franca e aberta como disse Flávio Bolsonaro sobre as opiniões contundentes do pai7 Mesmo depois de sair do Exército Jair se enxergava no campo de batalha com raiva dos inimigos cuja destruição parecia dar sentido à sua carreira política O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde reza uma de suas máximas preferidas ainda segundo seu filho mais velho8 O ódio ao inimigo faz par com a lealdade incondicional aos aliados Eles não abandonavam a defesa da tropa fardada mesmo quando acuados politicamente Em 2008 por exemplo milicianos da Favela do Batan torturaram jornalistas de O Dia que investigavam as milícias Mais uma vez como na morte de Tim Lopes o ataque a um jornalista gerou indignação na opinião pública criando o ambiente político para a aprovação da CPI das Milícias Flávio continuou defendendo os milicianos apesar de ter votado a favor da instalação da CPI Como explicou em seu discurso na Assembleia Legislativa ao subir na tribuna depois que o deputado Marcelo Freixo aprovou a convocação da CPI As milícias são consequência do descaso do Estado do salário de fome que recebe nosso policial O sonho de todo policial no Rio de Janeiro é viver só do contracheque mas não consegue Precisa de outras fontes e vai buscar atividades que muitas vezes são reprováveis pela opinião pública pela imprensa Sinceramente não acredito que essa situação acontecida na Favela do Batan seja regra entre as milícias Em muitas comunidades onde residem policiais onde residem bombeiros eles se organizam para que o tráfico não impere sem visar lucro sem exigir cobrança de nada Façam consultas populares na Favela de Rio das Pedras na própria Favela do Batan para que haja esse contrapeso porque sabemos que vários são os interesses por trás da discussão das milícias Há interesses comerciais há interesses políticos mas vamos também olhar os interesses das pessoas que estão nessas comunidades Flávio encerrou cobrando bom senso dos parlamentares Fica o meu voto favorável à criação desta CPI mas pedindo que haja o bom senso em se apurar e não apenas criticar atacar ou tentar botar atrás das grades os policiais ou na linguagem informal os peixes pequenos9 Jair Bolsonaro também partiu para a defesa dos milicianos em dezembro de 2008 Na ocasião o deputado federal Chico Alencar havia elogiado o relatório final da CPI de autoria de Marcelo Freixo seu companheiro de partido o PSOL O futuro presidente do país discursou O meu estado lamentavelmente é diferente dos demais Para pior Nenhum deputado estadual faz campanha para buscar realmente diminuir o poder de fogo dos traficantes diminuir a venda de drogas no nosso estado Não Querem atacar o miliciano que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes Existe miliciano que não tem nada a ver com gatonet com venda de gás Como ele ganha 850 reais por mês que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro e tem a sua própria arma ele organiza a segurança na sua comunidade Nada a ver com milícia ou exploração de gatonet venda de gás ou transporte alternativo Então sr presidente não podemos generalizar No final de seu discurso Bolsonaro distorceu uma informação para tentar deslegitimar a CPI Para terminar a relação de indiciados na CPI das Milícias entre aspas colocada lá foi buscada junto ao Disque Denúncia Nós sabemos como funciona o Disque Denúncia Ali entram pessoas que realmente devem mas em grande parte o pessoal para tirar o atraso começa a denunciar gente de bem policial de bem civil e militar bombeiro de bem Esse relatório está cheio de policiais e bombeiros que não têm nada a ver com isso É um relatório covarde feito em cima do DisqueDenúncia10 Uma afirmação em parte mentirosa O pedido de indiciamento de 225 pessoas no relatório havia sido feito com base em investigações da polícia e depoimentos colhidos por parlamentares na CPI O DisqueDenúncia apenas levava informações que ajudavam os investigadores a buscar outros indícios provas e novos testemunhos Já durante a campanha eleitoral para a Presidência em julho de 2018 Jair Bolsonaro manifestouse contra a ação dos milicianos As milícias tinham plena aceitação popular mas depois acabaram se desvirtuando Antes davam apenas proteção para uma comunidade Depois passaram a cobrar gatonet e gás Os jornalistas que o entrevistavam perguntaram sua opinião sobre as milícias de Rio das Pedras e Campo Grande Hoje em dia ninguém apoia milícia Mas não me interessa mais discutir isso Até quando vocês jornalistas vão fazer matéria sobre o que eu falei no passado ou quando eu fiz xixi no poste há quarenta anos Mas se durante a campanha o fantasma da proximidade de Bolsonaro com milicianos esteve um tanto distante ele voltaria a assombrar logo no começo do mandato do presidente Mais precisamente em janeiro de 2019 seu primeiro mês no cargo Na ocasião veio a público uma denúncia do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado Gaeco do Ministério Público do Rio de Janeiro envolvendo dois protegidos da família Bolsonaro apontados pelo Gaeco como chefes de duas das mais tradicionais milícias cariocas Rio das Pedras e Muzema O capitão Adriano Magalhães da Nóbrega tido como um injustiçado pelos Bolsonaro foi acusado de ser o cabeça da milícia o patrãozão de acordo com as escutas captadas pelos promotores O segundo na hierarquia conforme a denúncia era o major Ronald Paulo Alves Pereira a quem Flávio homenageara depois da acusação de tortura e mortes em São João de Meriti Não havia como desvincular a ligação entre eles e o presidente Essa ligação existia desde 2007 Adriano já tinha sido inocentado do homicídio de Leandro o guardador de carros de Parada de Lucas Naquele ano o deputado estadual Flávio Bolsonaro assumia seu segundo mandato na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e chamara Fabrício Queiroz para trabalhar com ele Seis meses depois de começar na Assembleia Fabrício contratou a mulher de Adriano Danielle Mendonça da Costa para trabalhar no gabinete de Flávio Ela permaneceu no posto por onze anos com salário pouco acima de 6 mil reais Quando o caso veio à público em 2019 Queiroz justificou a contratação dizendo que Adriano passava por dificuldades depois de ter sido injustamente preso Naquele ano Queiroz também indicou a própria filha para uma função administrativa no gabinete de Flávio Desde 2005 Adriano caminhava em direção às sombras aproximandose do crime comum e da poderosa máfia da contravenção Qualquer defesa que se fizesse de Adriano mais do que solidariedade de amigos era fruto de conivência cumplicidade e indício forte de formação de quadrilha Ele havia deixado para trás a prática da mineração e dos arregos para atuar como segurança privado na rica e antiga economia do jogo do bicho O sniper ofereceu aos bicheiros uma expertise rara no mercado a habilidade de assassinar sem deixar rastros Suas atividades começaram depois que ele deixou a prisão nas disputas sangrentas em torno do espólio do bicheiro Waldemir Paes Garcia o Maninho assassinado em setembro de 2004 e de seu pai Waldemir Garcia o Miro patrono da escola de samba Salgueiro que morreu poucos dias depois do filho de infecção pulmonar A relação de Adriano com o jogo do bicho vinha da infâ ncia Parte de sua criação ocorreu dentro de um haras onde seu pai morava O Haras Modelo em Cachoeiras de Macacu no interior do estado pertencia a Maninho e era administrado por Rogério Mesquita braço direito do bicheiro Mesquita conhecia Adriano desde a adolescência e o considerava um afilhado Depois da morte de Maninho no começo de 2005 Mesquita o procurou ainda na prisão para que Adriano ajudasse na proteção de Alcebíades Paes Garcia o Bid irmão de Maninho Bid morava em Roraima e tinha voltado para o Rio a fim de assumir os negócios da família cujo espólio se tornou alvo de disputa entre os herdeiros Mesquita contou em depoimento que o capitão Adriano foi indicado para organizar a proteção de Bid acionando de dentro da prisão nomes para compor a equipe e recebendo salário pela consultoria O grupo de segurança seria composto de catorze policiais Ao sair da cadeia Adriano ficou pouco tempo com Bid e em seguida foi trabalhar com José Luiz de Barros Lopes o Zé Personal também bicheiro casado com a filha de Maninho Shanna Harrouche Garcia Lopes Adriano encarregado da segurança das máquinas de caçaníquel do casal matou alguns desafetos deles segundo depoimento de Mesquita prestado em junho de 2008 De acordo com o mesmo depoimento Adriano havia assassinado também Carlos Alberto Alano funcionário de Maninho e o exdeputado estadual Ary Brum Ambos os crimes ocorreram em 2007 Mesmo com as declarações de Mesquita as investigações não avançaram O testemunho de Rogério Mesquita contra o afilhado foi uma tentativa desesperada de salvar a própria vida Em maio de 2008 ele foi vítima de uma tentativa de assassinato em que reconheceu o capitão Adriano como algoz Mesquita amigo de infâ ncia de Maninho passou a receber parte dos lucros da fazenda e das máquinas de caçaníquel do amigo morto para a contrariedade de sua filha Shanna e do marido dela Zé Personal Ambos segundo Mesquita mandaram Adriano eliminálo O atentado ocorreu quando Mesquita estava no carro com sua mulher e filhos Ferido na perna acionou a polícia tentando evitar sua morte anunciada A informação da participação de Adriano nesses conflitos consta em um relatório de outubro de 2011 feito pela Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança do Rio e da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas Draco e que resultou dois meses depois na operação Tempestade no Deserto As informações porém não foram suficientes para a polícia impedir os assassinatos Oito meses depois desse atentado em janeiro de 2009 Mesquita foi assassinado numa manhã ensolarada em Ipanema Ele estava saindo de uma academia de ginástica quando um homem na garupa de uma moto o atingiu com um tiro na nuca Em setembro de 2011 três meses antes da operação Tempestade no Deserto foi a vez de Zé Personal Ele morreu em uma emboscada na Praça Seca em Jacarepaguá depois de sair de um centro espírita O ciclo de vinganças não teria fim Um irmão de Shanna foi sequestrado e assassinado em 2017 Dois anos depois quando Adriano estava foragido Shanna sofreu um atentado ao chegar a um salão de beleza Ela sobreviveu A acusada de encomendar o crime Tamara Harrouche Garcia Lopes era irmã gêmea de Shanna Ambas haviam aberto outra frente de batalha pela herança do pai avaliada em 25 milhões de reais Em 2020 foi a vez de Bid assassinado um mês depois de prestar depoimento sobre a tentativa de assassinato de Shanna Um dos assassinos de Bid segundo a polícia seria Leonardo Gouvea da Silva o Mad indicado por Adriano para ser o chefe do grupo de matadores conhecido como Escritório do Crime Em dezembro de 2013 Adriano da Nóbrega foi expulso dos quadros da Polícia Militar por causa das acusações de sua ligação com o jogo do bicho Na época suspeitavase que o capitão era proprietário de diversas máquinas de caçaníquel na região de Jacarepaguá Mas nada disso abalou o relacionamento de Queiroz e Adriano com Flávio Bolsonaro Em junho de 2016 a mãe de Adriano foi indicada para trabalhar no gabinete de Flávio embora a desculpa de que a família do capitão Adriano precisava de dinheiro não fizesse mais sentido Nessa ocasião escutas do Ministério Público apontavam Adriano como chefe da milícia de Rio das Pedras e da Muzema atividade que exercia segundo denúncias pelo menos desde 2015 Depois da eleição de Jair Bolsonaro o capitão Adriano da Nóbrega e o sargento Fabrício Queiroz se tornaram granadas na iminência de explodir Eram esqueletos dentro do armário do presidente do Brasil elos criminosos do passado a ameaçálo Na sequência das operações deflagradas em janeiro de 2019 pelo Gaeco que desvendaram os crimes dos milicianos da Muzema e Rio das Pedras Ronald e outros onze integrantes do grupo foram presos Adriano conseguiu escapar da prisão em flagrante e desapareceu Monitorado pela Polícia Civil foi localizado mais de um ano depois na Bahia em um sítio na cidade de Esplanada a 170 quilômetros de Salvador Uma semana antes de morrer Adriano ligou para seu advogado Paulo Emílio Catta Preta dizendo que policiais o haviam descoberto e que ele seria morto Catta Preta ignorou o alerta e tentou convencêlo a se entregar Um habeas corpus estava para ser votado e Catta Preta acreditava que conseguiria livrar Adriano da prisão Tentou convencêlo a se entregar e se ofereceu para mediar um acordo com as autoridades Não posso doutor Eles vão me matar disse Uma semana depois mais de setenta policiais do Bope cercaram a casa onde o capitão estava escondido Havia meios de fazêlo se entregar sem violência Era imenso o valor potencial de seu testemunho para desvendar diversos crimes em aberto Mas Adriano foi executado Segundo os policiais eles atiraram porque houve reação Teorias sobre o ocorrido se multiplicaram Independentemente do que tenha acontecido naquele dia o capitão sabia que a contagem regressiva contra sua vida havia começado Segundo Catta Preta o capitão morreu sem contar quem eram os eles que desejavam sua morte Já Fabrício Queiroz foi preso preventivamente na manhã de 18 de junho de 2020 em decorrência da investigação sobre as rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro Ele estava em Atibaia no interior de São Paulo no sítio que pertencia a um amigo da família Bolsonaro Frederick Wassef advogado de Flávio Queiroz continuava ajudando o capitão Adriano e sua família Enquanto Adriano estava foragido Queiroz mantinha contato com a mãe do capitão Raimunda Veras Magalhães que estava morando em Minas Gerais e oferecia a ela suporte jurídico Mesmo em Atibaia Queiroz era procurado para mediar problemas cotidianos entre milicianos e um comerciante de Itanhangá na zona oeste do Rio como revelou um áudio interceptado pela Justiça Essas atividades motivaram a decretação da prisão preventiva do faz tudo dos Bolsonaro Quando foi detido na sala da casa onde estava sobre a lareira havia um cartaz em defesa do AI5 o ato institucional que endureceu a ditadura militar em 1968 Ao lado e um pouco à frente dele três bonecos Tony Montana o traficante vivido por Al Pacino no filme Scarface Fabrício Queiroz sempre foi um soldado fiel de seu comandante Jair Bolsonaro Um mero sargento reformado do subúrbio carioca que se rompesse seu silêncio com um simples sopro teria força para derrubar as estruturas do frágil castelo de cartas que sustentava a república das milícias 3 As origens em Rio das Pedras e na Liga da Justiça A chegada a Rio das Pedras pela avenida Engenheiro Souza Filho impactou um forasteiro como eu que tinha na cabeça imagens preconcebidas por histórias que lia e ouvia sobre as milícias locais Imaginava ver casas por todos os lados com homens armados em rodinhas nas esquinas Os textos ajudaram a me informar mas inevitavelmente se concentravam nos conflitos produzindo ideias estereotipadas Como jornalista estou acostumado a fazer esse filtro Antes de escrever procuro conhecer o lugar sentir o ambiente conversar com os moradores No caso de Rio das Pedras a visita me despertou diversas perguntas que até aquele momento eu não considerava importantes O centro comercial é um shopping center ao ar livre efervescente com lojas diversificadas e ruas lotadas Logo na chegada casas de material de construção decoração serrarias vidraçarias e galpões mostram um bairro em fase de transformação e crescimento O burburinho contrasta com as regiões famosas das zonas sul norte e central do Rio Em Copacabana por exemplo onde costumo me hospedar há um grande número de aposentados e proporcionalmente de farmácias Apesar de ser um dos bairros mais famosos e bonitos do mundo aparenta decadência Bem diferente do perfil de Rio das Pedras um bairro com pouco mais de cinquenta anos de existência e uma população mais jovem de 55 mil habitantes maior do que 90 dos municípios brasileiros Mesmo com a infraestrutura precária seu cotidiano transmite vitalidade e dinamismo Percorrer o bairro a pé ajuda a evitar o trâ nsito caótico e as ruas lotadas de carros ônibus e vans em que o fluxo é interrompido com frequência porque as vias são estreitas e mal planejadas Basta um veículo parado em fila dupla para causar longos congestionamentos Pela estrada variante de Jacarepaguá que depois vira rua Nova o percurso se aproxima do centro comercial do bairro Barracas de comida e bugigangas também atrapalham os pedestres na calçada As vias transversais levam a apartamentos residenciais com cinco seis e sete andares Na rua principal os térreos são reservados para as lojas e os andares superiores para moradia Por todos os cantos se vê o espírito do empreendedorismo Lojas de lingerie moda feminina jovem masculina infantil com tendências bregas e alternativas hambúrguer artesanal sushi restaurantes de carne de sol e sarapatel bares descolados e botecos cabeleireiros black e de madame barbearias descoladas e tradicionais kit com churrasqueiras e máquinas de chope tudo em meio a uma constante cacofonia com anúncios de instalação de TV a cabo pela rádio pirata transmitida por altofalantes pendurados nos postes que também sustentam novelos embaraçados de fios de luz telefone TV a cabo e internet As fachadas têm letreiros caprichados que valorizam as lojas Alguns negócios chegam a ter filiais em outros bairros Há também escolas e creches particulares para complementar a oferta da educação pública assim como médicos de diversas especialidades e dentistas particulares com fachadas também vistosas oferecendo seus serviços para os que preferem e podem evitar a rede de saúde do Estado Numa área aberta um pulapula para crianças proporciona alguns minutos de diversão por dois reais Há produtos e serviços acessíveis às diversas faixas de renda Fui tomar um açaí numa barraca de rua e havia sete opções de tamanho do copinho de brigadeiro de cem mililitros que custava meia passagem de ônibus até o copão de oitocentos mililitros sete vezes mais caro Aplicativos de transporte como Uber que atendem as regiões centrais da cidade não costumam se arriscar por Rio das Pedras Para levar e buscar moradores milicianos criaram um modelo alternativo que ganhou força depois que os motoristas dos concorrentes foram ameaçados A violência usada para garantir mercado aos empreendedores locais também ajuda a entender parte do sucesso dos negócios instalados em Rio das Pedras Muitas milícias criam monopólios de mercado que garantem o fornecimento exclusivo de produtos que vão de cigarros a kits de churrasco Em todo esse território pode não parecer mas há uma autoridade fiscalizando o certo e o errado É preciso não ultrapassar a linha Foi a partir desse núcleo comercial que a comunidade começou a se expandir no final dos anos 1960 e começo dos 1970 Há ordem naquele aparente caos de gente indo e vindo onde o dinheiro circula e contribui para que Rio das Pedras tenha o segundo maior potencial de consumo entre as favelas brasileiras mais de 1 bilhão de reais por ano1 Quando você chega de fora e se mete pelas ruelas residenciais há pessoas observando mesmo que discretamente É possível passear pelo local mas com bom senso respeitando as regras veladas do ambiente No meu caso eu procurava não demonstrar uma curiosidade exagerada sobre o poder dos milicianos Evitava fazer perguntas a desconhecidos Não queria parecer um investigador ou um repórter mas um visitante casual Por cautela pedi que um conhecido funcionário das forças de segurança do estado e morador da zona oeste do Rio me acompanhasse Para evitar problemas respeitamos alguns limites territoriais Meu parceiro me apontava os olheiros nas esquinas e as fronteiras que não deveriam ser ultrapassadas Achei que ele estava paranoico mas deixei Rio das Pedras com a sensação de que olhos invisíveis das milícias nos seguiram o tempo todo Apesar da fama de quadrados os milicianos apoiaram o baile funk do Castelo das Pedras Desde os anos 1990 o baile foi referência no Rio de Janeiro recebendo gente de várias classes sociais e regiões da cidade com a bênção e a participação das autoridades paramilitares Milicianos podem ser conservadores mas não rasgam dinheiro Rio das Pedras é o lugar em que você pode comprar um parafuso à uma hora da madrugada me contou um amigo que cresceu em Freguesia bairro vizinho O primeiro bar gay que frequentei ficava em Rio das Pedras ele disse para minha surpresa A própria venda de drogas cuja proibição começou como um ponto de honra para as milícias com o tempo foi flexibilizada entre elas Não basta ter força e armas para exercer o poder é preciso também legitimidade para ser aceito pelos moradores Os paramilitares e seus parceiros além de garantir a ordem acumulam recursos financeiros e dinamizam a economia local A lavagem de dinheiro e empréstimos a juros viabilizam novos empreendimentos na comunidade Os grileiros e proprietários abastados de casas de aluguel da mesma maneira acumulam renda que acaba direcionada a investimentos em Rio das Pedras O modelo de negócios miliciano se mostrou mais sustentável e gerador de riquezas do que o tráfico de drogas em outras comunidades por criar uma economia interna dinâ mica Mas essa economia por sua vez depende da ausência das operações policiais cotidianas vigentes nos morros do Rio Um exchefe do tráfico me ajudou a visualizar essa diferença Por muitos anos ele comandou o comércio varejista de drogas de uma importante favela ligada ao Comando Vermelho Foi preso em 2014 e enviado a um presídio federal Cumpriu pena até 2019 então se tornou evangélico e deixou o crime Quando conversamos ele havia acabado de ser solto e lutava para se adaptar à vida de assalariado Na época em que era traficante como número um da boca chegou a comandar mais de duzentas pessoas segundo ele esse era o tamanho de uma boca de médio porte para o padrão da cidade Politicamente contudo a firma dele era poderosa por ocupar um território estratégico Esse extraficante chegou a possuir mais de quarenta fuzis Meu interlocutor comparou as receitas financeiras dos dois empreendimentos criminais Na comunidade que comandava moravam cerca de 18 mil famílias Vamos supor ele disse que sejam cobrados dez reais por família de taxa de segurança como fazem as milícias Seriam 180 mil reais por mês Ele disse que estabelecimentos comerciais pagavam mais as lojinhas os bares os cabeleireiros Lá na favela por baixo são duzentos empreendimentos A cinquenta reais por mês mais 10 mil reais E ainda dá pra lucrar com a venda de gás água gatonet energia elétrica transporte terreno onde há espaço para vender ou alugar terra Tudo isso deixa o cara milionário em dois meses ele calculou O dinheiro muitas vezes é multiplicado pela prática da agiotagem que faz o capital girar aquece o mercado e o empreendimento local No caso do tráfico segundo o extraficante a situação é mais difícil por diferentes circunstâ ncias A começar pelo custo alto do negócio O traficante paga 8 mil reais o quilo do crack no atacado para ganhar 3 mil por quilo no varejo No caso de um pó bom ele custa de 14 mil a 15 mil reais pra ganhar 6 mil de lucro no varejo Pra ganhar 60 mil de lucro tem que vender pelo menos dez quilos Na estrutura de duas centenas de funcionários que ele comandava ele afirmou ter faturado cerca de 400 mil a 500 mil reais por mês com um lucro bruto de 150 mil a 200 mil reais Essa receita contudo era usada para controlar as externalidades do comércio que geravam despesas enormes Munição armamento arrego para policial despesas com soldados tudo isso faz parte Na favela que está em guerra o negócio não vai pra frente porque os custos são muito altos Sobra pouco dinheiro para investir Fiz dinheiro para muita gente inclusive para a polícia Mas não posso reclamar porque esses arregos me mantiveram vivo Só que ninguém sai rico do varejo de drogas Além da questão financeira a parceria dos paramilitares com os policiais é outra grande vantagem do negócio Se eu sou milícia vou com um carro carregado de fuzis sou parado numa blitz e basta dizer que sou da polícia para ser liberado Não há flagrante Isso dá grande vantagem Os milicianos também não são caçados como ocorre com os traficantes e eles não se envolvem em guerras Eles são aceitos e fazem parte do Estado Acaba sobrando dinheiro para ser investido e multiplicar o dinheiro do crime analisou O traficante mesmo o que ganha dinheiro não consegue sair da favela e gastar ele disse Fui pela primeira vez na vida numa churrascaria no mês passado Dirigindo um carro com a minha própria carteira de habilitação Pela primeira vez tenho conta em banco agora que cumpri o que devia na Justiça Não podia ser pai esposo não levava os filhos na escola não ia à praia Posso fazer isso agora que abandonei o crime mas não tenho dinheiro Tenho pela primeira vez liberdade para ser outras coisas além de traficante Apesar dos percalços esse antigo gerente do Comando Vermelho aponta dois motivos para o negócio da venda de drogas continuar em alta no varejo Primeiro os lucros elevados obtidos pelos vendedores atacadistas que abastecem os mercados consumidores e fazem a roda girar Esses empreendedores costuram redes de contatos a partir das fronteiras brasileiras com países como Bolívia Paraguai Peru e Colômbia ganhando grande volume de dinheiro em cada venda realizada Essa situação permite mais tempo para prever formas de esquentar o dinheiro criar lojas e empreendimentos de fachada criar um disfarce de empresário formal para ganhar mais poder Na língua do crime no Rio de Janeiro os atacadistas são chamados de matutos O cara tem empreendimento no Paraná por exemplo atravessa cem quilos de pó Gasta 100 mil 200 mil reais e ganha mais de 1 milhão Tem menos risco menos custo e dá mais dinheiro Caso o cara consiga colocar nas favelas sempre vai ter quem queira comprar disse o exchefe varejista do CV Em segundo lugar conforme sua avaliação o varejo segue a todo vapor porque o garoto do morro imaturo ainda se ilude com as promessas simbólicas da arma carro dinheiro e status associado ao traficante Depois ele percebe que esse status é ilusório Passa um tempo a ficha cai pra todo mundo Se o Estado oferecesse anistia para os traficantes que quisessem abandonar o tráfico aposto que a absoluta maioria ia aceitar sem pensar Na maturidade com filho esposa o cara cansa de ter inimigos e quer acima de tudo deixar os problemas pra trás Fernandinho BeiraMar considerado na segunda metade dos anos 1990 o maior traficante do país ganhou dinheiro e poder depois que foi para o Paraguai e para a Colômbia estabelecendo contatos com fontes atacadistas de armas e drogas para serem revendidas nos varejos do Rio e de São Paulo Como me disseram dois traficantes do Comando Vermelho BeiraMar era acima de tudo um matuto Tanto que nunca teve o mesmo poder na facção que Marcinho VP chefe do Complexo do Alemão e responsável pelas decisões mais importantes do grupo BeiraMar foi preso em 2001 nas selvas colombianas pelo Exército do país junto com integrantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia Farc que forneciam a ele cocaína em troca de armas O acesso a fontes atacadistas também fortaleceu em São Paulo o Primeiro Comando da Capital PCC que percebeu os riscos e os custos elevados do varejo das drogas na cidade apostando todas as fichas na expansão de seus negócios para as fronteiras O grupo paulista aproveitou o espaço deixado depois da prisão de BeiraMar e montou uma ampla rede de distribuição de drogas a partir de uma rede de aliados em presídios brasileiros história que a socióloga Camila Nunes Dias e eu contamos no livro A guerra A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil São Paulo Todavia 2018 O modelo de negócio do PCC conseguiu transcender o domínio de territórios aliviando custos e problemas com as autoridades locais Quando PCC e CV brigaram em 2016 provocando uma série de conflitos dentro dos presídios ao longo do ano seguinte os chefes da facção carioca deviam mais de 60 milhões de reais a atacadistas ligados ao grupo paulista segundo me informou um chefe do CV que no período do confronto cumpria pena em um presídio federal Os paulistas conforme ele me explicou haviam avançado nas fronteiras e se tornado matutos da facção carioca o tempo todo voltada para seus conflitos varejistas em morros e favelas Com a entrada das milícias na disputa por territórios no Rio de Janeiro elas passaram a digladiar pelo domínio geográfico das comunidades cariocas e fluminenses criando uma proposta de governança que ganhou aceitação das autoridades e de parte da população O modelo inovador oferecia vantagens comparado ao domínio dos traficantes Pelo menos no marketing O tráfico por exemplo domina a comunidade para vender a ela drogas no varejo Emprega muita gente recebe clientes de fora e de dentro acaba gerando renda no local mas a um custo social alto As operações policiais na comunidade tornam insuportável a vida dos moradores que também convivem com o risco de invasão de facções inimigas A juventude dos traficantes suas atitudes viris e desafiadoras as regras que impõem no local também geram problemas As famílias das comunidades receiam que seus descendentes ingressem na guerra ou se transformem em consumidores de droga Sem falar na tirania dos traficantes que para manter seus negócios evitar denúncias e preservar sua autoridade ameaçam moradores contrários a seus interesses Embora as milícias também comandem a comunidade com tirania e sua autoridade se mantenha à base de ameaças como fazem os traficantes e aqueles que contestam seu poder podem perder a vida e sofrer torturas ao contrário do tráfico os milicianos se vendem como fiadores de mercadorias valiosíssimas ordem estabilidade e possibilidade de planejar o futuro aliança política com o Estado e a polícia A presença das milícias na comunidade diminui os riscos de operações policiais tiroteios e as rotinas de guerra Também atrai investimentos públicos e privados Outra vantagem do negócio é que o empreendedorismo e a busca incessante por lucros ampliam a oferta de casas e terrenos grilados vendidos a novos moradores Claro a cidade perde com o desmatamento de matas nativas e o perigo de desabamento de prédios mal projetados Para quem adquire o imóvel contudo as vantagens imediatas compensam O crescimento do número de moradores também amplia a massa de apoiadores da governança da milícia O lado impopular desse modelo é que a maior parte das receitas para bancar o negócio vem da extorsão dos habitantes No tráfico em tese a população não seria explorada economicamente já que o dinheiro viria dos consumidores de droga No entanto já são relativamente comuns lugares onde convivem venda de droga e cobrança de taxas e venda de serviços misturando tráfico e milícia para a diversificação de receitas Esses grupos perceberam que o mais importante é o poder que exercem sobre os territórios Com o domínio das áreas podese maximizar como dizem os economistas o potencial de lucro local E mais o domínio territorial dos milicianos pode se reverter em votos para os políticos que os apoiam o que produz um comportamento ambíguo das autoridades no controle e combate a esses grupos As milícias dessa forma acabam funcionando como um Estado terceirizado ou leiloado expressão usada por seus principais críticos na academia e na política Cobram taxas e arrecadam receitas para preservar a governança local substituindo um Estado fraco e incapaz Tráfico ou milícia A pergunta volta a pairar como se não houvesse uma terceira via Como se a garantia da democracia e do estado de direito nos territórios não estivessem entre as opções possíveis Isso pode ser explicado pelo contraste entre o ideal e a realidade No papel os governantes dizem que o Rio é uma democracia Na prática a tarefa de governar é compartilhada com centenas de tiranos que dominam mais de setecentas comunidades pobres da cidade e exercem a autoridade com o suporte de dinheiro e armas Mesmo depois da redemocratização essas áreas de dominação armada se espalharam Em vez de garantir direitos e livrar a população de tal opressão a omissão do poder público ampliou o problema dando espaço para o surgimento desses governos genéricos que nada mais são do que tiranias paramilitares Dunas e vegetação de restinga solo impróprio para o plantio muitas lagoas que se interligavam numa região encharcada que recebia as águas de rios antes de eles desaguarem no mar No tempo do Brasil Colônia a região da Barra da Tijuca e da Baixada de Jacarepaguá recebeu engenhos de açúcar aos quais se tinha acesso apenas de barco Havia uma grande barreira formada pelas cadeias de montanha do Maciço da Tijuca com picos de mais de mil metros de altura que ajudava a separar essa vasta área da zona oeste do restante da cidade Em 1932 o Correio da Manhã definiu a região como o sertão carioca habitado principalmente por jacarés e cobras Em 1959 foi vista a última onça pintada vagando pelas matas de lá Com o processo de urbanização e a chegada de grandes levas de migrantes das zonas rurais do Brasil para os centros urbanos o Rio de Janeiro precisava encontrar alternativas para crescer O lado sul e norte do Maciço que formava a mancha urbana da capital estava saturado Era necessário e urgente desbravar o faroeste carioca tarefa colocada em prática no final dos anos 1960 Primeiro seria preciso criar um atalho para atravessar as montanhas missão para os engenheiros que nos anos 1970 abriram os túneis São Conrado Joá e Dois Irmãos juntamente com a construção de elevados e vias expressas Com a obra os motoristas que vinham do Leblon em vez de se arriscar nas estradas sinuosas do maciço à beiramar poderiam em poucos minutos alcançar um paraíso até então escondido Em 1969 o urbanista Lúcio Costa depois de ajudar a conceber Brasília com o arquiteto Oscar Niemeyer criou o Plano Piloto para a ocupação da Baixada de Jacarepaguá Nos anos 1980 o mercado percebeu que a região era a bola da vez Grandes torres de edifícios e shoppings centers com espaço para uma réplica da Estátua da Liberdade em meio a praias lagoas e vegetação intocada aqueceram a procura e a especulação imobiliária O plano de Lúcio Costa foi desvirtuado e depois renegado por ele atropelado pelo culto ao consumo que viria com tudo nos anos seguintes reproduzindo na região uma Miami brasileira de gosto duvidoso burguesa como São Paulo sem o charme aristocrático da zona sul carioca Como era de esperar os trabalhadores da construção civil que levantavam as paredes dos edifícios dos novos ricos da cidade também criaram seus bairros na vizinhança produzindo na região a mistura territorial de classes tão característica do Rio de Janeiro Um novo Rio surgiria do outro lado das montanhas A variação populacional da área ajuda a entender a dimensão dessa novidade Em 1970 a cidade tinha 43 milhões de habitantes Passou para 58 milhões de habitantes em 1990 15 milhão de pessoas a mais As regiões mais tradicionais no centro norte e sul chegaram a perder habitantes Quase todo o crescimento 13 milhão dos novos habitantes se concentrou na zona oeste Jacarepaguá e Barra da Tijuca por exemplo passaram de 241 mil habitantes para 680 mil habitantes Já os bairros de Bangu Campo Grande Santa Cruz e Guaratiba saltaram de 700 mil habitantes para 16 milhão de habitantes O modelo de negócios das milícias nasceu nessas duas grandes áreas da zona oeste e ali prosperou O bairro de Rio das Pedras pode ser considerado o principal laboratório de formação do modelo de governança política e econômica que se espalharia depois dos anos 2000 para outras regiões da cidade e do estado A semente da organização que anos depois passaria a ser chamada de milícias se estabeleceu com a ajuda do Estado incapaz de mediar e regulamentar a chegada dos grandes contingentes populacionais no lado oeste Rio das Pedras recebeu este nome por ficar às margens de um córrego homônimo No começo dos anos 1950 famílias ocuparam uma área privada e passaram a reivindicar a posse da terra junto às autoridades Elas criaram uma comissão de moradores e conseguiram em 1964 com o governador Negrão de Lima a desapropriação da área2 Foi o primeiro movimento associativo bemsucedido dos moradores junto ao Estado A nova condição permitiu que a comunidade se ampliasse em torno do núcleo central da rua Velha ao lado do córrego que passou a se expandir por aterros feitos pelos próprios moradores no terreno pantanoso A área começaria a receber um número crescente de habitantes principalmente migrantes do Nordeste do Brasil boa parte deles do interior da Paraíba e do Ceará O processo era semelhante ao de outras periferias do Rio e de São Paulo Um parente chamava o outro que passava as informações sobre o local Quem vinha chamava outro e assim sucessivamente Num efeito bola de neve milhares de pessoas migraram atraídas por sonhos e ilusões de felicidade prometidos pela vida urbana A centralidade da relação que se estabelecia entre os governos e as associações desses novos bairros foi uma das principais características desse processo de ocupação das favelas no Rio de Janeiro depois dos anos 1960 Comissões de moradores e associações se formavam para dialogar com as autoridades e negociar melhorias para os bairros em formação3 Com a democratização e a acirrada disputa por votos dos anos 1980 essas relações muitas vezes descambavam para o clientelismo com os presidentes das entidades trocando favores por votos Os presidentes das associações se tornavam portavozes de candidatos específicos em troca de luz asfalto cesta básica podendo com o tempo ele próprio se transformar em candidato a um cargo eletivo Era uma dinâ mica diferente da que ocorria nas favelas de São Paulo que nos anos 1960 e 1970 cresceram principalmente nos extremos da cidade as chamadas periferias perto de metalúrgicas e indústrias em geral Os bairros em São Paulo eram acima de tudo lugaresdormitórios e cresciam num contexto diverso O processo de organização política até pelo forte perfil industrial da economia paulista do período era mediado por sindicatos e pelas pastorais das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica com discursos coletivos e um esboço de consciência de classe Havia clientelismo mas também mobilização política de organização das bases que se tornaria uma das principais forças da Nova República dando origem por exemplo ao Partido dos Trabalhadores nos anos 1980 As características econômicas e sociais do Rio no período a ausência de uma classe trabalhadora organizada e de sindicatos fortes e até mesmo de uma igreja progressista o arcebispo do Rio d Eugênio Sales ao contrário de d Paulo Evaristo Arns era contrário à Teologia da Libertação abriram espaço para diferentes alianças entre políticos com as bases populares fortalecendo relações mais personalistas e populistas no Estado Rio das Pedras crescia dentro desse caldo político Dez anos depois da primeira mobilização na favela ainda durante a ditadura militar os moradores voltariam a se organizar para exigir a instalação de energia elétrica no bairro Criaram formalmente uma entidade comunitária em 1982 No ano seguinte durante o governo de Leonel Brizola PDT começaram a tomar a frente na organização do território O chefe do grupo Octacílio Bianchi estava entre as primeiras famílias que negociaram a regularização na favela nos anos 1960 Surgiu nesse período a Vila dos Caranguejos primeira ocupação planejada pelos moradores às margens da avenida Engenheiro Souza Filho As terras foram regularizadas em meio à disputa de uma grande área da região reclamada por uma empreiteira Com o ganho de causa a associação de moradores de Rio das Pedras comandou o processo de planejamento dos lotes criando vielas e corredores de circulação internos pressionando o Estado por novas benfeitorias como a instalação de rede de esgoto A legitimidade da associação de moradores se fortalecia diante da omissão dos governos na mediação regulamentação e definição de critérios urbanísticos para a formação dessa pequena cidade A medição da concessão a venda dos terrenos a construção das vias os certificados de propriedades tudo era empurrado para esses representantes informais amigos das autoridades que arregimentavam votos e passariam a disputar eleições e a formar a base de sustentação dos cargos executivos Em 1989 como o bairro continuava crescendo o governo Moreira Franco doou um terreno de 400 mil metros quadrados que originalmente seria usado para a construção de um conjunto habitacional No entanto abriu mão de seu papel de planejar a construção de imóveis no bairro e terceirizou a missão para a associação de moradores Os lotes foram distribuídos aos novos moradores que iniciaram o processo de autoconstrução de mais um bairro em Rio das Pedras conhecido como Areal I A dispensa da burocracia e da formalidade agilizava o processo de oferta de habitação disponibilizava casas com mais rapidez ajudava os comerciantes de material de construção e contribuía para que diretores da associação e alguns moradores acumulassem capital e poder A concessão de lotes e depois a autorização para a venda de lajes dinamizava o mercado imobiliário e criava uma fonte de receita para os moradores investirem no próprio bairro Com o surgimento desse novo poder a associação passa a cobrar mensalidades para fazer a administração do bairro Um dos principais atrativos de Rio das Pedras propagado pelos moradores era o fato de não sofrer os mesmos males dos morros das zonas sul e norte dominados por traficantes A garantia de que as comunidades estavam resguardadas dos jovens representantes da cultura urbana das favelas das zonas sul e norte e também da ameaça dos criminosos era um discurso que seduzia os migrantes rurais que erguiam os bairros novos da zona oeste As comunidades no entorno da Barra da Tijuca e na Baixada de Jacarepaguá representavam esse ideal de segurança associado à moralidade tradicional das pequenas cidades rurais em contraposição ao valetudo e à malandragem predominantes no mundo urbano Durante o comando de Octacílio em Rio das Pedras a punição dos criminosos era garantida por um violento grupo de extermínio local Longe de ser uma particularidade de Rio das Pedras esse brutal sistema de autodefesa dos bairros pobres se reproduziu em diversas cidades do Brasil Nos anos 1970 e 1980 essas figuras surgiram aos montes com o discurso de que matavam bandidos em defesa dos trabalhadores Na Baixada Fluminense esses grupos foram representados por políticos que viriam a se tornar lendários como é o caso de Tenório Cavalcanti deputado federal pelo Rio nas décadas de 1950 e 1960 morador de Duque de Caxias e conhecido como Rei da Baixada e Homem da Capa Preta que não se separava de sua metralhadora apelidada de Lurdinha A violência era o instrumento para a garantia da ordem Nos anos 1970 esses grupos atuaram junto com a Polícia Militar em diversas cidades Nos anos 1980 diante das muitas mortes de autoria desconhecida na Baixada Fluminense o jornal Última Hora atribuía esses extermínios ao misterioso Mão Branca mito criado pelos próprios matadores para se livrar da responsabilidade pelos crimes Era como se houvesse uma mão invisível a proteger a Baixada do crime Na mesma década esses grupos se associaram a empresários e comerciantes para a venda de segurança e por vezes também a policiais Ganharam o nome de Polícia Mineira O sociólogo José Cláudio de Souza Alves vê nesses grupos a origem das milícias Em São Paulo nesse período os matadores eram conhecidos como justiceiros ou pés de pato e atuaram na capital e na região metropolitana chegando a formar quase mil pequenos grupos de extermínio ao longo da década Os matadores de Rio das Pedras agiam com o mesmo espírito Assim como na Baixada Fluminense e nas periferias de São Paulo lá também se viam fixadas nas paredes de estabelecimentos comerciais listas com o nome das pessoas marcadas para morrer Quem não obedecia acabava assassinado Mesmo depois que a imprensa passou a usar o termo milícias a população local continuou chamando os chefes de Rio das Pedras de mineiros De todo modo foi essa a região que originou um tipo de organização inédita que configuraria o modelo depois conhecido como milícia E não foi à toa que ele vingou policiais que moravam na região criaram a milícia de Rio das Pedras e estabeleceram as regras da economia informal dessas áreas Ampliaram a fonte de receitas ilegais a compra de armamentos e estabeleceram conexões políticas Essa nova forma de dominação territorial transformou a geografia do crime no Rio disputando o controle de comunidades com facções do tráfico O formato prosperou ao longo dos anos 1990 depois de conflitos pelo comando da associação de moradores do bairro Octacílio tinha sido preso algumas vezes acusado dos crimes cometidos na região mas continuava em liberdade e mandando na área Foi assassinado em 1989 em Jacarepaguá no bairro do Anil Nos anos que se seguiram seu grupo permaneceu no poder liderado por Dinda sua mulher Em 1995 Dinda foi assassinada na sede da associação de moradores quando cadastrava candidatos à aquisição de lotes no bairro A morte de Dinda marcou o fim da dinastia original Policiais assumiram o controle da associação de bairro que já arrecadava mensalidades para mediar a compra de lotes e terrenos Eles criaram novos negócios e passaram a influenciar não somente instituições políticas mas também corporações policiais Profissional e organizado o grupo assumiu o papel de governo terceirizado de Rio das Pedras cobrando taxas dos moradores pela gestão e segurança Nessa época final dos anos 1990 o pequeno núcleo que havia surgido com cerca de quatrocentas pessoas à margem de Rio das Pedras já possuía quase 40 mil habitantes Comércios variados e casas com lajes sobrepostas marcavam a fisionomia da comunidade dividida entre a parte rica o entorno do núcleo antigo com lotes mais bem organizados e a parte pobre locais sujeitos a cheias e loteamentos feitos de maneira caótica com espaços pequenos e sem ventilação caso dos núcleos Areal II e Pantanal O inspetor da Polícia Civil Félix Tostes assumiu o comando de Rio das Pedras com o apoio de outros policiais da ativa Junto com eles ascendeu o comerciante Josinaldo Francisco da Cruz conhecido como Nadinho de Rio das Pedras amigo de infâ ncia de Tostes Nadinho havia se destacado em 1996 como uma liderança importante na organização de apoio aos desabrigados das enchentes no bairro Nos anos seguintes como presidente da associação esteve à frente de serviços assistenciais e parcerias com o poder público que fortaleceram o grupo As receitas também se diversificavam Tostes criou em 1997 a Cooperativa Mista de Trabalhadores em Transporte Alternativo para regulamentar e organizar as vans A ideia do inspetor era seguir o caminho do outro grupo de policiais empreendedores da região conhecido como Liga da Justiça Nos anos 1990 e 2000 a Liga assumiu o controle do transporte de peruas em Campo Grande e Santa Cruz liderados por outro inspetor da Polícia Civil Natalino José Guimarães e seu irmão Jerônimo Guimarães Filho conhecido como Jerominho Em Rio das Pedras a administração da cooperativa de vans foi concedida por Tostes ao sargento da Polícia Militar Dalmir Pereira Barbosa Como era funcionário público Barbosa não podia assumir formalmente a função e colocou como testas de ferro seu irmão Dalcemir e Getúlio Rodrigues Gama que se tornaria presidente da cooperativa de vans de Rio das Pedras4 Dois oficiais também mantinham influência no poder local o major Dilo Pereira Soares Júnior e o capitão Epaminondas de Queiroz Medeiros Júnior O sargento Dalmir ainda levou para Rio das Pedras dois praças que faziam serviços de cobrança Maurício Silva da Costa o Maurição e Paulo Alvarenga o Paulo Barraco A presença desses policiais nos novos grupos milicianos se revelou decisiva Eles ganharam o respaldo dos batalhões e das delegacias locais Maurição por exemplo era do 18o Batalhão Os paramilitares colaboravam com a polícia no combate ao tráfico ao mesmo tempo que abriam oportunidades para a criação de negócios semelhantes em bairros vizinhos Além de organizar as vans Tostes tinha uma revendedora de gás O negócio era lucrativo porque o grupo impedia a entrada de concorrentes e obrigava os moradores a comprar seu botijão a preços mais elevados que o de mercado Na CPI das Milícias em 2008 um representante do sindicato das empresas distribuidoras de gás estimou que uma das empresas de Rio das Pedras chegava a vender cerca de 3 mil botijões por dia o que representava um faturamento mensal de 600 mil reais Cobravase também pela instalação de sinais clandestinos de TV a cabo de cinquenta a sessenta reais internet de dez a 35 reais segurança de comércio de trinta a trezentos reais e de moradores de quinze a setenta reais5 O sargento Dalmir e o major Dilo também se tornaram sócios na Areal Crédito Fomento Mercantil que emprestava a juros aos comerciantes entre outros empreendimentos A nova composição mais profissional e influente abriu caminho para parcerias com a prefeitura Cesar Maia quando assumiu seu segundo mandato na prefeitura em 2001 nomeou Nadinho como administrador regional de Rio das Pedras Em poucos dias foi exonerado do cargo por causa da repercussão negativa de sua indicação na imprensa Nadinho voltou a presidir a associação de moradores onde podia mandar com menos amarras sem perder a parceria com a prefeitura Cesar Maia iniciou sua carreira política no Partido Comunista Brasileiro e foi preso durante a ditadura militar No Chile onde estava exilado junto com o ex governador paulista José Serra formouse em economia Ingressou mais tarde no PDT e participou do governo do Rio de Janeiro em 1983 a convite de Leonel Brizola como secretário da Fazenda A primeira disputa de Maia por um cargo no Executivo ocorreu em 1992 e ele se elegeu prefeito do Rio pelo PMDB depois de romper com seu padrinho Brizola Cesar Maia era um defensor da descentralização política da administração da cidade além de especialista na leitura de pesquisas de votos e mapas eleitorais Essas duas características aproximaram o prefeito dos administradores de Rio das Pedras principalmente em seu segundo mandato em 2001 Maia tratava as milícias como Autodefesas Comunitárias ou ADCs espécie de gestão popular sem as bases operárias e religiosas de São Paulo A aliança do prefeito Cesar Maia com Nadinho de Rio das Pedras descentralizava a gestão e garantia votos ao político Essa parceria gerou diversos convênios municipais para serviços como creches varrição de rua proteção de rios e lagoas limpeza dos valões atendimento de saúde e cursos de informática Os serviços foram fundamentais para a eleição de Nadinho à Câ mara Municipal pelo PFL em 2004 Cesar Maia por seu lado ganhava apoio eleitoral como ocorreu na eleição de 2006 quando seu filho Rodrigo Maia foi o segundo candidato a deputado federal mais votado em Rio das Pedras Maia parecia acreditar que tinha as milícias sob controle Não acreditava ou não quis enxergar que o modelo de negócios dos milicianos poderia desarticular o Estado e se tornar incontrolável como viria a acontecer mais tarde Nessa época de entusiasmo e parceria com as instituições cariocas os milicianos pareciam achar que não havia limite para suas ações Pacificação local controle dos traficantes num período em que as facções aterrorizavam o Rio de Janeiro assistencialismo via centro social tudo isso permitiu que eles dessem início a planos mais ambiciosos de poder concorrendo a vagas no Parlamento apoiando políticos estreitando relações até mesmo com secretários de Segurança seduzindo candidatos que apoiassem seus negócios com votos de seus currais eleitorais Em 2004 Nadinho de Rio das Pedras foi eleito vereador com uma campanha rica o suficiente para fazer dele o nono vereador mais votado do Rio com 34 764 votos depois de duas tentativas fracassadas em eleições anteriores Na mesma disputa Jerominho da Liga da Justiça foi eleito com 33 373 votos alcançando a 11ª posição de mais votado Natalino irmão e sócio de Jerominho na Liga foi eleito deputado estadual na eleição de 2006 com 49 405 votos Todos com suas bases eleitorais concentradas na região que dominavam O modelo de negócios inspirado em Rio das Pedras se espalhava desde 2002 e recebia o olhar complacente e oportunista das autoridades Os bairros de Anil Curicica Gardênia Azul Campinho e Vila Valqueire em Praça Seca Vila Sapê Freguesia Jardim Boiúna Santa Maria e Pau de Fome em Taquara que ficavam nos arredores da Barra Jacarepaguá e Recreio dos Bandeirantes um a um adotaram o modelo de Rio das Pedras numa expansão silenciosa sem repercussão De um lado a mistura de consentimento e falta de alternativa dos moradores de outro a promessa de dinheiro e poder para policiais e paramilitares que participavam do esquema ou que queriam participar O principal movimento de domínio territorial ocorria em direção às comunidades consideradas neutras ainda não dominadas por traficantes Um relatório da Subsecretaria de Inteligência do Estado apontou que em 2008 havia 171 áreas dominadas por milícias Em quase 70 delas não havia facções criminosas anteriormente Segundo o mesmo relatório em 52 dessas áreas houve a expulsão de traficantes pelas milícias 29 do Comando Vermelho catorze do Terceiro Comando Puro e nove da Amigos dos Amigos6 Esse embate teve reflexos no final de 2006 quando criminosos do CV para protestar contra o avanço dos policiais realizaram uma série de ataques causando dezoito mortes Esse caminho silencioso e discreto percorrido pelas milícias em direção às comunidades não seria contudo tão simples de preservar As milícias enfrentaram resistência da sociedade civil e das instituições Também bateram de frente com interesses políticos e de criminosos A reação surgiu em decorrência do barulho em bairros como Campo Grande Paciência Inhoaíba Cosmos Guaratiba e Santa Cruz onde procedimentos adotados pela Liga da Justiça liderada por Jerominho e Natalino eram mais ousados e violentos Natalino por exemplo tinha a alcunha de Mata Rindo7 Faziam parte do grupo Leandrinho QuebraOssos Ricardo Batman e Julinho Tiroteio entre outras figuras que não se importavam com a má fama A trupe andava com adesivos do Batman em seus carrões e apostava no terror para mandar na região com assassinatos à luz do dia para assustar a concorrência A Liga da Justiça além disso era mais numerosa e descentralizada Na CPI das Milícias foram apontados mais de cem nomes como integrantes do grupo que ainda teria cerca de 25 fuzis à disposição Em vez de recorrer à diplomacia a Liga dispunha de um pequeno exército tolerado pelos batalhões de polícia local que atacava empresários do transporte alternativo insubmissos ao grupo Em 2008 a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas atribuiu ao grupo cerca de sessenta assassinatos cometidos ao longo de cinco anos Estatística do Serviço de Inteligência da Polícia Militar mostrou que em três anos o grupo tinha praticado pelo menos 98 homicídios8 Com base nesses conflitos puxouse o fio que levaria muitos milicianos à prisão O processo de formação da milícia de Campo Grande e Santa Cruz foi diferente do verificado em Rio das Pedras Como esses três bairros têm histórias distintas as quadrilhas cresceram de acordo com as características oportunidades e limites de cada ambiente Campo Grande e Santa Cruz apesar de mais distantes do centro do Rio do que a região da Barra e Jacarepaguá sempre tiveram uma relação mais próxima com a capital carioca Nos tempos coloniais era o local de plantio de cana de açúcar e de criação de gado com forte presença dos jesuítas que lá deixaram prédios antigos pontes praças e canais Em 1808 com a vinda da família real portuguesa para o Brasil Santa Cruz se tornou local de passeio de d João VI e dos aristocratas que visitavam a Fazenda Imperial de Santa Cruz Caminho para o Vale do Paraíba e São Paulo pelo bairro também passava a linha de ferro D Pedro II e depois a Estrada RioSão Paulo e a avenida Brasil Esses bairros portanto longe de ser isolados habitados por cobras e jacarés tinham lugar na economia da capital assim como instituições mais fortes e presentes Natalino e Jerominho souberam aproveitar a chance aberta pela omissão do Estado no processo de crescimento da região a partir dos anos 1960 O transporte via trem e ônibus era insuficiente para conduzir os habitantes da região de casa para seus empregos nos bairros centrais No início dos anos 1990 as peruas e vans Topic é que forneciam esse serviço no Rio de Janeiro Pequenos empreendedores compravam vans e iam para o asfalto em busca das linhas e dos horários mais lucrativos Alguns já tinham experiência com os cabritinhos transportes feitos no interior das favelas onde as linhas regulares de transporte público não entravam Para disputar as linhas das vans que chegavam às regiões centrais os perueiros enfrentavam concorrências truculentas e achaques em torno dos melhores trajetos Linhas com mais passageiros e mais rentáveis eram cobiçadas Cooperativas de transporte foram criadas para administrar a desordem e mitigar os riscos policiais foram contratados como seguranças para impedir assaltos e possíveis agressões dos rivais Foi nesse contexto que a Liga da Justiça nasceu e se fortaleceu Eles perceberam que em vez de oferecer apenas segurança para as cooperativas poderiam organizar as linhas e lucrar diretamente com o dinheiro do transporte clandestino explicou o policial civil Cláudio Ferraz que esteve cinco anos à frente da Draco A organização da linha de transporte clandestino pela Liga da Justiça teve início em 1996 disse o promotor Luiz Antônio Ayres que começou a trabalhar no Fórum de Santa Cruz em 1998 Os policiais entraram primeiro como seguranças Depois assumiram o controle das cooperativas Com o tempo conquistaram a gestão dos territórios Essa autoridade local era exercida por meio de organizações que desenvolviam trabalhos sociais Jerominho por exemplo criou o centro SOS Social para ganhar influência política e popularidade com os moradores de Campo Grande Sua influência se estendia aos serviços públicos como hospitais e o Centro Esportivo Miécimo da Silva construído em Campo Grande nos anos 1980 e mais tarde reformado para os Jogos PanAmericanos de 2007 Assim como tinha acontecido com a associação de moradores de Rio das Pedras os policiais da Liga assumiam cada vez mais a condição de subprefeitos informais desempenhando nas favelas tarefas que cabiam ao Estado Quanto mais fortes politicamente eles ficavam no bairro mais possibilidades de lucro surgiam O grupo também passou a reproduzir em seus territórios os negócios geradores de receitas das milícias de Rio das Pedras monopólio da venda de gás instalação de gatonet taxas de segurança proteção para máquinas de caçaníquel agiotagem taxa para a regularização de imóveis e a acumular dinheiro e poder O delegado Marcus Neves que investigava o grupo afirmou em 2008 na CPI das Milícias que a Liga da Justiça faturava mensalmente 2 milhões de reais Para os integrantes desses grupos a situação começou a mudar depois de 2007 quando Sérgio Cabral Filho assumiu o governo do estado e colocou José Maria Beltrame à frente da Secretaria de Segurança O tema das milícias já havia entrado no radar do governador depois dos ataques do CV ocorridos em dezembro às vésperas de sua posse A preocupação aumentou depois que Beltrame ouviu o relato de que um grupo de milicianos havia passado em frente ao Fórum de Santa Cruz na caçamba de uma caminhonete ostentando tripé e fuzis O secretário determinou que a Draco investigasse o assunto Para comandar a delegacia ainda desestruturada foram escolhidos dois policiais abnegados e sabidamente competentes o delegado Cláudio Ferraz e o inspetor Jorge Gerhard Ambos foram discípulos de Hélio Luz um dos delegados mais respeitados da Polícia Civil conhecido por sua capacidade estratégica e operacional Também havia um cálculo político de Sérgio Cabral Filho Ele precisava evitar o fortalecimento de um grupo capaz de fazer frente a parceiros seus na Assembleia Legislativa como os deputados Jorge Picciani presidente da Casa e Paulo Melo seu principal interlocutor no Legislativo O governador era do diálogo mas sabia agir quando seus interesses estavam em jogo E Cabral sabia que para se equilibrar no poder não podia perder o controle de seus concorrentes Os problemas provocados pela expansão das milícias e os conflitos entre os grupos além da disputa com facções criaram o ambiente político para que o governo pudesse interferir Os casos envolvendo violência entre os integrantes das milícias começaram a pipocar e a despertar a atenção da opinião pública e dos policiais da Draco Em fevereiro de 2007 nove pessoas morreram na favela K elsons na Penha por causa do confronto entre milícia e tráfico Dez traficantes armados entraram na favela e mataram três homens supostamente envolvidos com o grupo de milicianos A favela tinha passado ao controle dos policiais em novembro do ano anterior Entre os mortos havia um pedreiro que tinha construído por ordem dos milicianos um muro com um portão de ferro em um dos acessos à favela Outros dois mortos seriam integrantes da milícia O carro de um dos chefes da milícia foi metralhado com mais de setenta tiros Durante o tiroteio os traficantes fugiram em dois carros Na saída da favela já na avenida Brasil os criminosos se depararam com dois carros da PM Os cinco traficantes que estavam no carro foram mortos Ainda em fevereiro o assessor do gabinete da Polícia Civil e chefe da milícia de Rio das Pedras o inspetor Félix Tostes foi morto com 34 tiros quando dirigia o carro de uma amiga no bairro do Recreio dos Bandeirantes Foram recolhidas 72 cápsulas deflagradas no local Segundo testemunhas três homens teriam saído de um carro cercado a picape em que estava o policial e atirado Um mês antes Félix Tostes tinha sido exonerado de seu cargo de confiança na Assessoria do Gabinete da Polícia Civil por suspeitas de ligação com as milícias e com a máfia dos caça níqueis A fratura no comando de Rio das Pedras ficou exposta com a morte de Tostes Era o começo de uma disputa fratricida repleta de traições que deixaria o grupo sem rumo por um período Problema parecido atingiu a Liga da Justiça que também passou a implodir numa série de conflitos que ao longo dos anos provocaria a denúncia e a prisão de vários integrantes Já em 2005 a Liga havia dado sinais do tamanho de seu apetite e vinha enfrentando resistências Tentava expandir os domínios no setor de transportes e vans ameaçando pequenos empreendedores de Campo Grande e dos bairros vizinhos Na noite de 15 de junho daquele ano um comboio de cinco carros com vinte homens se dirigiu a Guaratiba para assassinar Marcelo Eduardo dos Santos Lopes da Cooperouro uma empresa de vans Natalino e Jerominho estavam no grupo com Batman QuebraOssos Juninho Perneta Luciano filho de Jerominho entre outros Ao avistar os carros Marcelo conseguiu fugir invadindo casas do bairro Seu testemunho foi peçachave para a denúncia que levaria alguns deles à prisão que só ocorreria em dezembro de 2007 A demora de três anos para a conclusão do inquérito decorreu principalmente do pâ nico das testemunhas e das ameaças que muitos sofreram dos autores do atentado Durante as investigações um dos sócios de Marcelo desapareceu outro mudou seu depoimento uma testemunha foi assassinada e outras duas entraram para o Programa de Proteção à Testemunha O avanço da Liga sobre o mercado de transportes provocou a resistência de perueiros concorrentes que ameaçados não viram outra saída senão denunciar seus algozes para sobreviver A polícia acabou se beneficiando com a disputa e com pedidos de socorro que quebravam o silêncio O compromisso demonstrado pelos policiais da Draco dava confiança para que novas denúncias fossem feitas Em 14 de abril de 2007 César Moraes Gouveia da cooperativa de vans Rio da Prata em Bangu contou aos investigadores haver recebido na sede da empresa a visita de seis carros com integrantes da Liga obrigandoo a entregar a cooperativa ao grupo para não ter o mesmo destino de outros dois empresários o caixão Esse fora o fim do sócio da Cooperoeste Iltinho Mongol assassinado três dias antes e de Denise Indaiá da Cooper Santa Cruz assassinada três meses antes Cada nova história ajudava os policiais da Draco a montar o quebracabeça que daria consistência ao processo prestes a estourar Era questão de tempo e oportunidade Em agosto integrantes da Liga da Justiça foram presos em flagrante depois de numa ação ousada tentarem matar um perueiro e miliciano concorrente em São Pedro da Aldeia na Região dos Lagos fora dos limites territoriais do grupo em Campo Grande e Santa Cruz O sargento do 25o Batalhão Francisco César Silva Oliveira o Chico Bala desde 2001 investigado por coordenar uma cooperativa de transporte na zona oeste estava em seu carro junto com a mulher e o enteado de treze anos quando quatro homens abriram fogo Ele se feriu com estilhaços e tiros de raspão contudo sua mulher e o menino morreram Os suspeitos foram presos em Araruama no quilômetro 30 da Via Lagos dentro do carro que usavam para voltar a Campo Grande O bando era formado por quatro pessoas o policial André Luiz da Silva Malvar genro de Jerominho o exsoldado da PM Ricardo Teixeira Cruz o Batman José Carlos Silva ex PM expulso em 1999 e o cabo do 27o BPM Wellington Vaz de Oliveira No carro eles levavam três fuzis duas granadas M9 cinco pistolas 44 carregadores quatro toucas tipo ninja duas lunetas cinco rádios Nextel e três rádios transmissores As pistolas foram enviadas à Polícia Científica e uma delas que pertencia a André Malvar foi indicada como a arma que havia matado o chefão de Rio das Pedras Félix Tostes seis meses antes Conforme as peças iam sendo juntadas a investigação policial apontava para uma conspiração as duas principais milícias do Rio de Janeiro naquele momento a de Rio das Pedras e a Liga da Justiça buscavam formar uma aliança Malvar o dono da pistola havia atuado junto com Nadinho para matar Tostes O motivo seria a dominação do transporte alternativo na região e algumas desavenças pontuais entre Nadinho e Tostes no comando de Rio das Pedras Nadinho foi preso em novembro de 2007 mas acabou solto para aguardar as investigações em liberdade Em dezembro Jerominho Malvar Batman e Julinho Tiroteio foram presos Outros quatro integrantes da Liga da Justiça tinham mandado de prisão decretados mas estavam foragidos A prisão do deputado Natalino um dos chefões da Liga era questão de tempo As coisas finalmente pareciam fugir ao controle dos paramilitares que até então se sentiam intocáveis O cerco policial ameaçava se fechar em torno deles Por fim no primeiro semestre de 2008 explodiu um escâ ndalo que tudo indicava seria o golpe de misericórdia nas milícias A bomba explodia seis anos depois do assassinato de Tim Lopes Era a vez de repórteres do jornal O Dia serem torturados e escaparem por milagre das mãos de milicianos da Favela do Batan em Realengo na zona oeste O fotógrafo agredido Nilton Claudino era amigo de Tim Lopes com quem havia trabalhado em outras redações Assim como Tim Nilton não tinha medo de arriscar a vida em busca de matérias que denunciavam mazelas sociais e crimes cometidos por autoridades Em 2002 depois do assassinato do amigo Nilton obteve uma informação certeira sobre o paradeiro das ossadas de Tim Lopes Passou as coordenadas à polícia que subiu até o topo da Vila Cruzeiro Nilton estava trabalhando no dia em que localizaram os restos de Tim Fez as fotos chorando para a matéria que seria publicada no dia seguinte9 Depois de anos na profissão a apuração sobre as milícias do Batan faria Nilton abandonar o jornalismo para viver escondido abalado pelo que sofreu junto com uma jornalista em começo de carreira e o motorista que levava a dupla para a pauta e dava suporte ao casal O episódio começou em maio de 2008 quando Nilton e a jornalista foram morar na favela sem se identificar O objetivo era se disfarçar de moradores novos para descrever o ambiente e fazer fotos do cotidiano de uma favela dominada por milícias Em junho do ano anterior os milicianos haviam expulsado traficantes da favela e dominado o território Durante catorze dias os jornalistas fizeram amizades e se aproximaram dos moradores Mandavam boletins diários para o jornal de uma lan house Nilton conseguiu imagens de torturas feitas por milicianos em usuários de drogas tirou fotos do depósito de gás e da carcaça de carros roubados Acabaram descobertos Segundo os algozes um informante revelou aos milicianos a identidade dos dois Os dois foram algemados encapuzados e levados a um cativeiro junto com o motorista Ao longo de sete horas tomaram chutes socos choques e foram asfixiados Tinham certeza de que seriam assassinados Os milicianos disseram que os levariam para a favela vizinha e que culpariam o tráfico pela morte deles Como O Dia já tinha a informação de que o desaparecimento dos jornalistas e do motorista era responsabilidade das milícias e de seus chefes o chefe do grupo da Favela Batan decidiu poupar a vida dos três A repercussão foi imensa A história da tortura e do sequestro foi publicada no dia 1o de junho de 2008 com a manchete Tortura Milícia da zona oeste sequestra e espanca repórter fotógrafo e motorista de O Dia Houve repúdio generalizado e reações políticas de peso As milícias se tornaram motivo de preocupação recebendo mais atenção da imprensa e da opinião pública O clamor forçou os deputados estaduais do Rio a aprovarem uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar esses grupos o que o deputado estadual Marcelo Freixo já havia pedido no terceiro dia da nova legislatura em fevereiro de 2007 Professor de história e militante de direitos humanos Freixo estava em seu primeiro mandato para o qual tinha sido eleito com 13 547 votos Durante a campanha eleitoral Freixo quase abandonou a disputa quando seu irmão mais novo Renato Freixo foi assassinado com 34 anos depois de demitir seguranças que faziam bico no prédio em que morava Freixo foi convencido por amigos e pelo partido o PSOL a não desistir da eleição e a lutar em memória de Renato Como presidente da CPI evitou tratar da tragédia pessoal para não deslegitimar os trabalhos de apuração A Comissão iria com tudo para cima dos milicianos Freixo montou uma equipe corajosa e competente para atuar na CPI das Milícias O delegado Vinicius George pupilo de Hélio Luz nos anos 1990 foi importante para fortalecer a relação com os delegados da Draco Outra figura que se destacou foi Marielle Franco mesmo não atuando diretamente na CPI Com 27 anos trabalhou como assistente no gabinete de Freixo e depois seguiu com ele por dez anos saindo para se candidatar a vereadora em 2016 No relatório final depois de seis meses de trabalho e debates intensos a comissão pediu o indiciamento de 225 pessoas entre elas os chefes da Liga da Justiça Jerominho e Natalino e de Rio da Pedras Nadinho o vereador André Ferreira da Silva o Deco PR que comandava a milícia de Praça Seca o vereador Geiso Pereira Turques o Geiso do Castelo PDT em São Gonçalo Carmen Glória Guinâ ncio Guimarães conhecida como Carminha Batgirl PTdoB Cristiano Girão PMN o chefe em Gardênia Azul e Chiquinho Grandão PTB de Duque de Caxias Também foram indiciados o exchefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro e deputado cassado Á lvaro Lins além de 67 policiais militares oito policiais civis três bombeiros dois agentes penitenciários e dois cabos das Forças Armadas Embora não tenha sido indiciado o deputado federal Marcelo Itagiba PMDB que havia sido secretário de Segurança Pública foi mencionado como candidato dos milicianos O prefeito Cesar Maia foi acusado de atitude permissiva com os milicianos e o relatório da CPI afirmou que o secretário de Segurança do Rio José Mariano Beltrame não combatia as milícias como deveria por falta de prioridade no combate à segurança privada de ruas e outros espaços públicos No ano seguinte à CPI em 2009 246 pessoas foram presas suspeitas de integrar milícias Entre 2008 e 2017 o total de prisões relacionadas a milicianos chegou a 1310 131 milicianos presos em média por ano10 Muitos apostavam que as centenas de prisões fragilizariam os paramilitares e os anos seguintes no Rio de Janeiro reforçaram esse otimismo Em 2008 as Unidades de Polícias Pacificadoras UPPs ajudaram a promover a pacificação de favelas das zonas norte e sul do Rio Em 2010 o Ministério Público Estadual criou o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado com um núcleo de Inteligência que permitia aos promotores se envolver em atividades de investigação e despachar direto com juízes As taxas de homicídios caíram expressivamente até 2016 O Rio parecia em festa com a expectativa da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 As prisões de milicianos continuavam Foram 158 em 2016 e 155 em 2017 O sonho de um Rio de Janeiro pacificado contudo começou a ruir rapidamente A prisão do governador Sérgio Cabral Filho em novembro de 2016 suspeito de receber propina para a concessão de obras públicas e a crise fiscal que impediu até mesmo o pagamento de salário do funcionalismo acordaram todos para a dura realidade A expansão das milícias havia continuado intensa de maneira discreta longe das manchetes Os negócios ilícitos prosseguiram do mesmo modo com a venda de gás de imóveis e terrenos em áreas griladas com o gatonet e a cobrança de taxas de segurança entre outras atividades rentáveis devido aos monopólios de mercado impostos à força As estruturas que garantiam aos milicianos dinheiro e poder seguiam intocáveis As milícias estavam mais fortes do que nunca Depois de uma década esquecido nas preocupações prioritárias da opinião pública Rio das Pedras voltou a ficar sob os holofotes de forma apoteótica misturando a história e a trajetória de alguns personagens mais importantes da política Em janeiro de 2019 a operação Os Intocáveis do Gaeco do Rio levou à prisão vários integrantes do grupo de milicianos que atuava em Rio das Pedras O capitão Adriano Magalhães da Nóbrega velho conhecido da família Bolsonaro foi denunciado como chefe de milícia junto com o major Ronald Paulo Alves Pereira o oficial que também havia sido homenageado por Flávio Bolsonaro mesmo depois de Ronald ter sido acusado de participar da chacina de quatro jovens na Via Show em São João de Meriti A ficha do capitão Adriano na Justiça formada paralelamente à sua carreira na polícia mostrava a ação de um minerador contumaz sempre atento às oportunidades do submundo do Rio Dessa vez o passado de Adriano da Nóbrega viria à tona para assombrar a presidência de Jair Bolsonaro político que mais o apoiou ao longo de sua carreira com cargos para familiares no gabinete de seu filho Flávio agora senador Outros nomes recorrentes que já haviam sido mencionados na CPI das Milícias como integrantes do núcleo duro de Rio das Pedras voltaram a aparecer na estrutura dessa comunidade onze anos depois da CPI Foi o caso de Maurício Silva da Costa o Maurição Marcus Vinicius Rei dos Santos o Fininho Fabiano Cordeiro Ferreira o Mágico e Jorge Alberto Moreth o Beto Bomba presidente da associação de moradores Depois da morte de Nadinho e Félix Tostes o grupo ressurgiu ainda mais influente O capitão Adriano o major Ronald e Maurição eram os principais líderes na nova fase da organização criminosa que comandava Rio das Pedras Adriano nas escutas feitas nos telefones dos integrantes do grupo era chamado de patrãozão Segundo os promotores esses três líderes coordenavam e mantinham o controle de empreitadas criminosas como a venda e locação ilegal de imóveis grilagem de terras agiotagem receptação de carga roubada posse e porte ilegal de arma de fogo extorsão de moradores e comerciantes cobrando deles taxas de segurança uso de laranjas para esconder seus bens falsificação de documentos pagamento de propina a agentes públicos utilização de ligações clandestinas de água e energia elétrica A autoridade dos denunciados era imposta pela violência sobretudo pela prática de homicídios Contavam com armas de fogo de calibres pesados e a proteção de agentes públicos ativos e inativos que compartilham informações privilegiadas para ajudar o fortalecimento do grupo Havia uma clara incongruência entre a postura da Justiça e a da Segurança Pública para lidar com a milícia Ambas as instituições pretendiam a prisão de alguns indivíduos mas o Estado continuava delegando mesmo que por omissão suas principais funções aos milicianos que seguiam aproveitando a ausência do Estado na região para aumentar seus lucros e sua influência política De acordo com as denúncias tudo era fonte de receita para o grupo Um morador contou que motoristas tinham que pagar uma taxa de cem reais por mês para poder estacionar o carro no terreno da escola municipal do bairro A punição para os devedores era das leves carro danificado Já os comerciantes eram obrigados a pagar até cem reais por semana As calçadas das casas eram vendidas como ponto para a instalação de barracas de comércio O grupo de Adriano Ronald Maurição e Fininho também agia no ramo da agiotagem emprestando dinheiro a juros e detinha o monopólio da venda de gás Detalhes do cotidiano do poder local foram colhidos através de escutas e de informações passadas ao DisqueDenúncia Os moradores contaram que os criminosos recolhiam essas taxas toda sextafeira cinquenta reais de gatonet sessenta reais de internet noventa reais de gás e cem reais pelo gato de luz por residência Aqueles que não pagassem podiam ser expulsos de casa para depois terem seus imóveis alugados por novos moradores A construção de lajes sobre os imóveis e a grilagem de terrenos eram uma fonte de renda importante da milícia Adriano Ronald e Maurício atuavam como sócios investidores ou incorporadores aplicando as receitas obtidas em outras atividades criminosas nos empreendimentos imobiliários das comunidades de Rio das Pedras Muzema e adjacências onde controlavam desde a construção até a venda e a locação de imóveis Ronald mantinha em seu computador diversas tabelas contábeis plantas de imóveis e documentação de loteamento de terrenos As negociações dos apartamentos apareceram em conversas grampeadas com a autorização da Justiça A relevâ ncia dos negócios imobiliários para as receitas criminais do grupo era visível desde 2008 cerca de um ano depois da morte do inspetor e miliciano Félix Tostes Segundo as investigações Tostes foi assassinado para abrir caminho à aliança entre os vereadores Nadinho de Rio das Pedras e Jerominho da Liga da Justiça Com o passar dos anos contudo novas informações foram reveladas Havia outros interesses em jogo principalmente imobiliários O grupo que assumiria o poder na década seguinte 2010 lucraria bastante nesse ramo Com as investigações da Draco e da CPI das Milícias Jerominho Natalino e Nadinho perderam prestígio político uma vez que o cerco se fechava em torno deles Viraram símbolo de uma milícia old school ostensiva e truculenta Depois que eles sucumbiram as milícias de Campo Grande e Santa Cruz adotaram um estilo diferente como se sabe o poder não deixa vácuo e um novo núcleo se formou em Rio das Pedras Dele faziam parte Dalmir Pereira Barbosa policial militar da reserva e Dalcemir Pereira Barbosa além de Beto Bomba Maurição Fininho e Mágico O capitão Adriano e Ronald surgiram mais tarde querendo ganhar dinheiro com o mercado de venda de terrenos e de apartamentos Maria do Socorro Tostes viúva e herdeira de Félix estava no caminho de negócios imobiliários valiosos Informações sobre isso foram descobertas depois de 24 de novembro de 2008 quando ela sofreu uma tentativa de assassinato A CPI das Milícias já havia se encerrado e os holofotes da imprensa se apagado A vítima teve graves ferimentos e foi submetida a diversas cirurgias permanecendo hospitalizada com escolta policial o tempo todo Maria do Socorro sobreviveu e decidiu contar muito do que sabia Conforme as investigações da tentativa de homicídio avançavam o inquérito revelava mais e mais os interesses imobiliários do grupo que havia assumido o poder em Rio das Pedras Os irmãos Dalmir e Dalcemir eram os chefes Ambos tinham sociedades antigas com os milicianos do grupo anterior inclusive com Tostes e Nadinho Maria do Socorro disse que logo após a morte de Tostes os irmãos se mostraram revoltados com o assassinato O grupo acusava Nadinho de ser o mentor do golpe contra o núcleo de poder O próprio Tostes confirmou essa suspeita de traição antes de morrer Depois do crime o grupo pagava a Maria do Socorro uma mesada de 10 mil reais pela sociedade nos negócios que herdara do marido No primeiro semestre de 2008 contudo antes mesmo da CPI a relação dela com as novas lideranças de Rio das Pedras começou a estremecer O novo grupo de Dalmir Dalcemir e Maurição começou a aterrorizar a vida de Maria do Socorro Ameaças chegavam a seus ouvidos por terceiros Eles estavam atrás dela Seu filho quase foi morto por engano Na hora em que os assassinos iam atirar disseram Não é ela e foram embora Mas a vez dela acabou chegando e depois do crime confissões e testemunhos ajudaram a polícia a reconstituir os bastidores do atentado De acordo com as investigações a ação foi planejada dentro do Instituto Penal Câ ndido Mendes por ex policiais e militares que cumpriam pena em regime semiaberto Otto Luiz Stefan cabo reformado da Marinha preso em 1998 pelo feminicídio da esposa contratou os expoliciais Carlos Guedes e Sérgio de Barros Amorim expulsos da PM por homicídio e sequestro para executar Maria do Socorro Completava o bando o expolicial Carlos Alberto Vieira Dantas que cumpria pena por homicídio O contato entre a turma de Dalmir Dalcemir e Maurição e o grupo de matadores havia sido feito por Paulo Roberto Alvarenga um dos policiais condenados pela chacina de Vigário Geral em 1993 e que também cumpria o regime semiaberto O contato do preso com o lado de fora era Maurição outro policial envolvido na mesma chacina mas que tinha sido inocentado O passado tenebroso e mal resolvido da violência policial no Rio continuava a assombrar Dantas um dos contratados para o crime acabou preso e dando à polícia sua versão sobre a tentativa de assassinato de Maria do Socorro prevendo que seria morto e responsabilizado pelo fracasso da missão Ele disse que pilotava a moto que levou Amorim o autor dos disparos que atingiram Maria do Socorro A quebra do sigilo telefônico dos suspeitos e outros testemunhos confirmaram a versão de Dantas As coisas se complicavam para os desafetos do bando porque uma semana depois do atentado a Maria do Socorro foi a vez do vereador Nadinho ser vítima de uma tentativa de homicídio Cápsulas apreendidas no local revelaram que as armas nos dois crimes haviam sido as mesmas Até as motos usadas na fuga tinham as mesmas características Ainda faltava descobrir por que o grupo quis matar Maria do Socorro Em março de 2009 foi aberto um inquérito para identificar os mandantes O depoimento de Maria do Socorro tinha sido fundamental para levantar a provável motivação do atentado contra ela Na delegacia ela contou que a hipótese mais provável seria a disputa por um terreno situado na curva do Pinheiro um dos locais mais nobres de Rio das Pedras que ela tinha herdado do marido com outros três sócios um deles um coronel reformado da PM Depois do assassinato de Tostes Dalcemir aquele que assumiria o comando de Rio das Pedras junto com o irmão pediu aos sócios do terreno uma procuração para regularizar a área na prefeitura Sem desconfiar de nada Maria do Socorro e os demais proprietários passaram a procuração a Dalcemir Na época Nadinho ainda era visto por todos como o inimigo em comum do grupo de Rio das Pedras Não havia motivo para desconfiar de Dalcemir Ele porém passou a vender lotes do terreno de Maria do Socorro e dos sócios dela para a construção de prédios sem avisar os proprietários da área Maria do Socorro só ficou sabendo das vendas irregulares porque o morador de um terreno vizinho à área dela procurou a polícia para denunciar as investidas que vinha sofrendo de Dalmir e Dalcemir Eles queriam que o homem desocupasse a área de quinhentos metros quadrados onde morava fazia vinte anos e onde tinha montado também um restaurante e uma oficina mecâ nica O grupo de Dalmir e Dalcemir já havia derrubado o restaurante e os milicianos já estavam limpando o terreno dele e tinham dado um ultimato para que deixasse o local Foi então que o morador decidiu denunciar a pressão que vinha sofrendo e pedir ajuda à polícia Como era dona dos lotes vizinhos ao ser chamada pelo delegado para depor Maria do Socorro soube que seus lotes também estavam sendo vendidos de forma irregular sem seu conhecimento Sua disposição para denunciar a ação do grupo e resistir teria provocado as ameaças de morte contra ela As vendas dos lotes já vinham ocorrendo pelo menos desde agosto de 2007 meses depois da morte de Tostes rendendo um bom dinheiro aos novos chefes da milícia Um dos compradores Francisco contou na delegacia que havia pagado 100 mil reais a Dalcemir intermediado por uma imobiliária de Rio das Pedras para adquirir um lote de duzentos metros quadrados de Maria do Socorro Pretendia construir ali quatro casas Luizito outro comprador havia pagado 95 mil reais para Dalcemir José Freitas declarou ter pagado 100 mil reais por outros lotes onde iria construir um prédio de cinco lajes Outro comprador Reinaldo que depôs em agosto de 2008 afirmou ter pagado 80 mil reais aos mesmos vendedores e que até aquele momento já tinha erguido três andares de um prédio no local Os negócios eram intermediados por uma imobiliária ligada ao grupo de Dalcemir e os compradores acreditavam estar de posse de documentos legais do terreno que na verdade ainda nem estavam regularizados Havia portanto muito dinheiro em jogo ganho com a venda de bens que não pertenciam ao grupo que dominava Rio das Pedras A consolidação desse grupo no poder viria a se confirmar nos anos seguintes Antes tinha havido mudanças importantes no comando por causa das prisões que seguiam acontecendo depois da CPI das Milícias Dalmir e Dalcemir foram presos em 2011 e 2015 respectivamente acusados de diversos crimes Nadinho era um alvo certo como todos sabiam inclusive ele próprio Sua morte ocorreu em 10 de junho de 2009 seis meses depois do encerramento da CPI Três homens encapuzados invadiram o condomínio em que ele morava e o mataram na hora do almoço com diversos tiros de pistola Logo depois a mulher de Nadinho e a viúva de Tostes Maria do Socorro fugiram do Rio de Janeiro para não morrer Dantas o expolicial e autor do testemunho que vinculava as milícias de Rio das Pedras ao atentado contra Maria do Socorro outro que estava com os dias contados foi morto em março de 2011 Na versão divulgada pela polícia e nas notícias publicadas na imprensa pouco se falou do papel de Dantas no esclarecimento da tentativa de homicídio contra a viúva de Tostes A versão oficial com pequenas contestações foi de que policiais à paisana mataram Dantas por ele ter tentado assaltálos Em vez de queima de arquivo o homicídio de Dantas foi mais um que caiu na conta da legítima defesa O vácuo de poder na cúpula de Rio das Pedras contudo não enfraqueceu as milícias Com as mortes de Tostes e Nadinho e as prisões de Dalmir e Dalcemir os intocáveis capitão Adriano e major Ronald passaram a exercer maior influência no comando Conforme as escutas revelaram eles davam as ordens pelo menos desde 2015 A denúncia do Gaeco interromperia precocemente as ações desse grupo Também havia suspeitas de que o capitão Adriano da Nóbrega fazia parte de um grupo de matadores especializados que recebia encomendas do jogo do bicho e que poderia estar envolvido no assassinato de Marielle Franco ocorrido em março de 2018 Em 22 de janeiro de 2019 o Gaeco a Draco e a Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil Core saíram às ruas para cumprir treze mandados de prisão concedidos pela Justiça Apenas cinco milicianos foram presos entre eles um dos chefes o major Ronald Oito conseguiram escapar entre eles o capitão Adriano A pressão contra o grupo de Rio das Pedras entretanto continuaria a aumentar por causa de um fato imponderável apesar de previsível No dia 12 de abril menos de três meses depois da operação Os Intocáveis dois prédios desabaram no Condomínio Figueiras do Itanhangá em Muzema Eram 6h30 e muitos moradores estavam nos imóveis Vinte e quatro pessoas morreram Muito do que já se sabia foi revelado depois da tragédia com documentos comprovando o descaso na fiscalização das construções e a omissão do poder público para interromper os lucros milionários dos milicianos que organizavam o adensamento do bairro Havia uma série de problemas técnicos na construção dos edifícios como espaços subdimensionados nos blocos das fundações que ficavam mais vulneráveis à erosão do solo As chuvas intensas típicas do verão do Rio aceleraram a destruição das bases dos prédios O adensamento do bairro não era nenhuma novidade e diversos imóveis vinham sendo levantados nos últimos anos alguns com oito andares sem que fossem contratados engenheiros para as obras Desde 2014 denúncias chegavam apontando o desmatamento ilegal da Mata Atlâ ntica no entorno do Parque da Tijuca num total de 7 mil metros quadrados devastados em cinco anos Os lotes eram subdivididos para a construção de edifícios mistos em que a parte térrea era reservada para atividades comerciais e os andares superiores para moradias O Ministério Público calculou que o grupo havia movimentado 25 milhões de reais com a comercialização dos apartamentos Faziam parte desse grupo pessoas que ganhavam dinheiro ajudando a financiar a compra a intermediar os documentos de compra e venda em imobiliárias locais e até mesmo fornecendo o material de construção usado nas obras Advogados eram contratados para barrar as ações do poder público contra as obras luz e água eram adquiridas via ligação clandestina e agentes de fiscalização recebiam dinheiro para ignorar as irregularidades Ao longo dos anos fiscais da prefeitura e da Justiça visitaram a região apreenderam maquinários aplicaram multas prenderam pessoas em flagrante mas ainda assim as obras prosseguiram Dezenas de prédios foram levantados no local A violência dos milicianos e o medo dos moradores evitavam denúncias Mas havia outro apelo quem sabe mais determinante os milicianos afinal disponibilizavam aos moradores bens de primeira necessidade algo que o Estado não conseguia fazer Era melhor ter as moradias que eles ofereciam do que não ter nada Como aplicar uma lei que prejudicaria tanta gente ao restringir a construção de casas mais baratas Como de costume foi preciso ocorrer uma tragédia com mortos para que o dilema se revelasse e fizesse refletir sobre os bons motivos para se lutar por uma governança justa dentro de um Estado forte e democrático Os milicianos como demonstrado várias vezes priorizam seus próprios interesses e lucro pouco se importando com a legislação São dinheiristas e egoístas Não ligam nem cumprem o papel de zelar pelo interesse coletivo tarefa que cabe ao Estado Lutam e matam na verdade pelo interesse de seu sucesso pessoal e o de aliados E ainda assim seus valores foram e são compartilhados por lideranças políticas em ascensão que levam para dentro do Estado uma disputa só interessada em beneficiar o personalismo e ambições pessoais destilando ódio contra aqueles que tentam apontar limites 4 Fuzis polícia e bicho Ele era um pequeno empreendedor em Foz do Iguaçu na fronteira do Brasil com o Paraguai que fazia transportes de turistas às Cataratas e à Ciudad del Este Os anos 1990 estavam começando e o Brasil ainda iniciava a abertura da economia para importações Diante das restrições as muambas paraguaias exerciam um grande fascínio nos sacoleiros dispostos a comprar as mercadorias para depois revendêlas no mercado interno das grandes cidades Meu entrevistado poderia se dar por satisfeito com a leva de turistas que movimentava seus negócios mas ele sonhava em ser um homem muito rico Era meu maior objetivo na vida contou Em poucos anos de fato ficaria milionário vendendo armas e drogas para o Rio época em que ganhou o apelido de Senhor da Guerra No começo dos anos 2000 quando foi preso pela primeira vez era considerado pelas autoridades como o principal fornecedor de armas do Brasil Ganhou destaque no mercado por sua postura profissional de vendedor altamente confiável garantindo no fio do bigode a entrega de diversos tipos de encomendas de produtos ilegais mas principalmente armas de calibre pesado Um pouco dessa credibilidade eu mesmo senti durante nossa entrevista quando ele me contou sobre seu passado em tom professoral com um sotaque paranaense cantado que me lembrou o do filósofo Mario Sergio Cortella Ser vendedor atacadista de armas e drogas por tanto tempo e sair sem inimigos nem ameaças de morte é façanha para poucos Como me comprometi a não revelar seu nome vou chamálo de Bigode Bigode cumpriu três anos de pena deixou a prisão em 2005 mas acabou detido novamente dois anos depois ao cair em um grampo e sofrer outra acusação de contrabando de armamentos Ficou mais quatro anos preso e foi inocentado em segunda instâ ncia Nesse percurso no crime repleto de derrotas ele se tornou evangélico e missionário da Assembleia de Deus Eu o conheci com a ajuda de uma colega dele da igreja A principal peculiaridade da cena criminal do Rio de Janeiro é a imensa quantidade de fuzis e armamentos pesados nas mãos dos integrantes dos diversos grupos que comandam as favelas Em nenhum lugar do Brasil se vê um arsenal de armas e munições que chegue perto do que existe no mundo do crime fluminense e Bigode era a melhor pessoa para me ajudar a entender como esse mercado se formou Ele concordou acreditando que seu testemunho poderia ajudar outras pessoas a não cometer os mesmos erros que ele alguém que fez de tudo para enriquecer e que quando se tornou milionário percebeu que seu sonho era uma ilusão Bigode passou a não ver mais sentido em fornecer armas e drogas para o crime tornouse religioso ficou pobre e foi trabalhar como taxista Me garantiu que era incomparavelmente mais feliz Quando Bigode começou a atuar nas fronteiras do Brasil com o Paraguai não faltavam oportunidades para uma pessoa se tornar milionária bastava estar disposta a encarar os riscos Em 1995 ele passou a seguir o caminho do dinheiro entrando em negócios que eram mais lucrativos por ser ilegais no Brasil como o contrabando de cigarros Aproveitou a facilidade de acesso ao produto a preços baixos no Paraguai para descobrir atalhos e entrar com a mercadoria no Brasil driblando a fiscalização Percebeu que podia fazer o mesmo com produtos ainda mais rentáveis Na época policiais do Rio de Janeiro entraram em contato com Bigode para encomendar os primeiros lotes de armas e munições amplamente vendidas nas lojas de Ciudad del Este Bigode devia fazer a compra no Paraguai passar as mercadorias pela fronteira e entregálas aos compradores Com a experiência que já tinha a tarefa não foi difícil Os policiais fizeram novos pedidos e as encomendas iam sendo entregues cada vez mais perto do Rio Bigode foi aperfeiçoando seus esquemas descobrindo as rotas e os meios mais seguros de levar mercadorias ilegais no sentido SulSudeste Sua fama se espalhou e ele se tornou um dos matutos mais respeitados do mercado fluminense Um policial militar carioca preso com ele em 2002 era seu sócio no empreendimento A presença de militares nessas redes de vendas de armas sempre foi importante por causa da expertise em equipamentos de guerra e contatos com redes de fornecedores Houve prisões isoladas de militares mas o problema nunca foi tratado de forma abrangente O cuidado e a discrição eram o segredo de seu sucesso Bigode tinha como fornecedores de armas e drogas grandes nomes do contrabando no Paraguai como Jorge Rafaat e Jarvis Pavão A venda de armas nesse país ainda não era proibida podiase comprar uma pistola 9 mm apresentando apenas o documento de identidade de acordo com as cotas mensais definidas pelo governo Cotas que Bigode desrespeitava claro comprando às centenas por baixo do pano Fuzis e armamentos pesados eram as mercadorias mais cobiçadas vindos principalmente de fornecedores norteamericanos O principal desafio de Bigode como matuto era fazer as mercadorias chegarem aos distribuidores do Exército das polícias e dos morros No final dos anos 1990 problemas econômicos atingiram o Leste Europeu e diversos armamentos russos tchecos e dos Bálcãs passaram a inundar o mercado de armas com excelentes ofertas de AK 47 objeto de desejo do tráfico carioca capaz de disparar uma rajada de seiscentos tiros por minuto A mercadoria chegava segundo Bigode através de militares dos exércitos uruguaios e argentinos que acionavam os militares paraguaios e as colocavam no mercado Anos depois esses fuzis passariam pela China e pelos Estados Unidos antes de chegar à América do Sul Outra forma de comprar armas e munição era por meio da encomenda de colecionadores e atiradores de clube de tiros condição que garantia e até hoje garante acesso à compra de fuzis armamentos de calibre pesado e munições Também era comum a importação de peças isoladas de armas que não passavam por fiscalização para serem depois montadas no Brasil O sargento reformado da Polícia Militar Ronnie Lessa acusado de matar a vereadora Marielle Franco usava essas duas estratégias para trazer armamentos para o Rio de Janeiro Lessa tinha certificado de colecionador e atirador desportivo conferido pelo Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados concedido em 2018 com validade até 2021 O registro de Lessa era assinado por um tenente coronel que depois seria preso sob suspeita de desviar munições e armas do setor que controlava Ele também importava peças de armas para a montagem delas no Brasil Quando Lessa foi preso em março de 2019 os policiais encontraram 117 componentes de fuzil acessórios com miras e supressores de ruído na casa de um amigo dele de infâ ncia As investigações mostraram que o sargento mantinha uma oficina de montagem do armamento e de munições para serem vendidos no mercado Em maio do mesmo ano a Receita Federal interceptou nos Correios uma carga de seis peças de airsoft importadas em nome de Lessa Essas armas de brinquedo fabricadas para disparar bolinhas de plástico servem de carcaça para a montagem de fuzis reais desde que sofram pequenas adaptações Critérios frouxos para a concessão de licença para colecionadores e atiradores desportivos e uma fiscalização ineficiente sempre foram brechas para o ingresso de armas no mercado ilegal brasileiro Por exemplo na CPI do Tráfico de Armas da Assembleia do Rio realizada em 2006 foi citado o caso do exfuzileiro naval Marcos Paulo da Silva preso pela Polícia Federal em outubro daquele ano Conhecido como Marquinhos Sem Cérebro era segurança do bicheiro Rogério de Andrade Além de suas conexões com o crime o militar havia sido reformado por problemas psiquiátricos na Marinha onde ganhou o apelido Mesmo com esse quadro psicológico conseguiu certificado como praticante de tiro esportivo para o qual em tese deveriam ser solicitados testes psicológicos e análise da ficha criminal dos candidatos e pôde se filiar à Confederação Brasileira de Tiro Prático CBTP ganhando o direito de comprar armas e munições Na segunda metade dos anos 1990 Bigode conseguiu ampliar seus contatos no mercado e diversificar a clientela fornecendo para a rede ligada aos traficantes do Terceiro Comando TC e aos da Amigos dos Amigos ADA grupos que haviam se aliado e que passaram a ser chamados de TCA A proximidade maior dos policiais com esses dois grupos era conhecida nos morros do Rio O Comando Vermelho sempre foi identificado como a principal resistência no crime mais disposto a bater de frente com o sistema o inimigo principal a ser erradicado pela polícia Com seu sócio policial militar Bigode se tornou o principal matuto das facções de Ernaldo Pinto de Medeiros o Uê chefe da ADA e do traficante Paulo César Silva dos Santos conhecido como Linho do TC Fernandinho BeiraMar por sua vez era o principal matuto dos rivais responsável pelo fornecimento aos morros do CV Bigode contou que os fornecedores de armamentos no Paraguai costumavam também atender a outras facções do Rio Os atacadistas de armas não ligavam para as cores faccionais brasileiras as rivalidades ficavam circunscritas sobretudo ao varejo do Rio Nas fronteiras da América do Sul desde que o pagador fosse confiável para as relações comerciais não importava a que grupo ele pertencia Bigode lembra que era comum ele estar atrás de encomendas no mesmo período que Fernandinho BeiraMar A situação mudou somente no começo dos anos 2000 quando BeiraMar quis levar para o Paraguai a rivalidade dos morros cariocas O matuto do CV tentou obrigar os fornecedores paraguaios a atender apenas seu grupo iniciando uma série de disputas que levariam o traficante carioca a fugir para a Colômbia onde iniciaria contatos com os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia Farc BeiraMar seria preso na selva colombiana em 2001 A forte presença de policiais e integrantes das Forças Armadas na mediação de compra e venda de fuzis não significava necessariamente que os militares estavam passando para o lado da bandidagem Os militares continuavam odiando os bandidos mas tinham a ilusão de que podiam lucrar com eles sem perder o controle Bigode explicou que o lucro milionário que ele obtinha com a venda de armas exigia dele certo cinismo capaz de justificar a guerra que ele indiretamente alimentava com armas como uma fatalidade sem solução Os vendedores apenas aproveitavam as oportunidades oferecidas por aquele rico mercado da violência Eu me considerava um comerciante Não apertava o gatilho e me enganava dizendo que não era minha responsabilidade Comecei a me questionar mais seriamente quando minha filha de nove anos me perguntou um dia na lata Pai você está matando as pessoas no Rio de Janeiro Naquela semana uma menina com a idade da minha filha tinha sido morta por uma bala perdida em Vila Isabel Eu tinha entregado armas umas semanas antes na região Expliquei pra minha filha que as armas estavam à venda nas lojas em Ciudad del Este O papai pega as armas e a munição aqui em Foz e leva para o Rio de Janeiro Entrego e recebo o pagamento Para onde elas vão e o que as pessoas vão fazer com elas não é responsabilidade do papai Bigode sentiu que não tinha sido muito convincente Na verdade nem ele mesmo acreditava naquele argumento furado Além da participação de policiais e de militares no comércio de armamentos muita munição e fuzis eram desviados das instituições policiais e do Exército por funcionários dessas corporações Em dezembro de 2018 um sargento do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal foi preso por desviar munições da Polícia Militar local e do Comando do Exército para abastecer traficantes do Comando Vermelho no Rio de Janeiro O esquema criminoso vinha desde 2017 e as investigações identificaram que o militar Marcelo Rodrigues Gonçalves fornecia grande quantidade de munições de calibre 556 e 762 para fuzis Também vendia pistolas Glock G17 calibre 9 mm com seletor de rajadas muito usadas nos tiroteios ocorridos no Rio Apesar da vida paralela de fornecedor de armas para o crime desde 2014 o bombeiro atuava no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República como instrutor de tiro Desvios de munição sempre foram tolerados Em 2006 a CPI das Armas do Congresso Nacional solicitou o rastreamento de armas brasileiras apreendidas na ilegalidade pela polícia do Rio de Janeiro que estavam no depósito da Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos da Polícia Civil DFAE Foram rastreadas as armas que teriam sido vendidas das fábricas para o mercado civil interno para o poder público ou o mercado externo antes de serem apreendidas na ilegalidade A pesquisa concluiu que cerca de 18 numa amostragem de mais de 10 mil armas de um universo de mais de 100 mil existentes foram na origem vendidas da fábrica para o poder público antes de serem apreendidas na ilegalidade no Rio de Janeiro Do total das armas desviadas do poder público 27 eram das Forças Armadas e cerca de 70 vinham das instituições de segurança pública estaduais e federais Em 2007 uma pesquisa comparou o desvio de munição nos estoques estatais das cidades de K aramoja em Uganda e do Rio de Janeiro1 O trecho Morte por atacado o ciclo de desvio de munição de atores estatais para o crime organizado no Rio de Janeiro Brasil analisou uma amostra de munição apreendida pela polícia fluminense entre 2003 e 2006 As munições portanto tinham sido pegas com os criminosos O relatório concluiu que 1 grande parte da munição apreendida na ilegalidade é produzida quase exclusivamente para as Forças de Segurança do Estado 2 esses tipos de munição correspondem em volume e em origem aos tipos usados pelas forças de segurança do Rio de Janeiro 3 as munições apreendidas vieram de estoques de munição nova sugerindo uma cadeia de abastecimento curta ou seja eram desviadas pouco depois de compradas O problema do desvio e do comércio ilegal de munições da polícia reapareceu nas investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes Oito das nove munições encontradas no local do crime eram procedentes de um lote comprado pela Polícia Federal em 2006 da Companhia Brasileira de Cartuchos CBC A Polícia Civil e o Ministério Público identificaram que essas munições tinham aparecido também em pelo menos dezessete ocorrências desde 2013 em casos de disputas entre traficantes milicianos e em atividades policiais Munição do mesmo lote tinha aparecido ainda numa chacina de dezessete pessoas ocorrida em 2015 em Osasco e Barueri na Grande São Paulo com participação de policiais O desvio de armas e munições da própria polícia para os criminosos que eles combatem pode parecer à primeira vista incongruente ou suicida No entanto era esse mercado que azeitava a engrenagem da guerra que fortalecia a polícia Por um lado se as armas e munições de calibre pesado traumatizavam a população da cidade por outro ajudavam a transmitir à população a ideia de que os policiais e as forças de segurança eram imprescindíveis para combater o caos e a desordem no Rio Os fuzis nos morros sempre ajudaram a dar veracidade e dramaticidade ao teatro da guerra cotidiana contra o crime colaborando para consolidar o status da polícia como fiadora da vida do carioca É justamente esse status que intimida os governantes e os faz não querer enfrentar os riscos de iniciar reformas modernizantes e moralizadoras que interrompam os diversos negócios criminosos que locupletam muitos policiais do estado Portanto a existência de armas e munições pesadas nas mãos de criminosos parte delas vendida por militares acaba criando na população e nos governantes a sensação de que mais do que nunca dependem das forças policiais estabelecidas para defendêlos Dessa maneira com o apoio das forças de segurança a grande quantidade de fuzis nas mãos do crime se tornou marca registrada da violência no Rio Estudos sobre a origem das armas apreendidas na região Sudeste2 mostram que a apreensão de fuzis no estado fluminense destoa da ocorrida em outras unidades federativas Enquanto em nenhum estado do Sudeste a apreensão de fuzis alcançou 1 do total de armas apreendidas no Rio entre 2014 e 2019 ela ficou entre 3 e chegou a ultrapassar os 6 Mas o que mais chamou a atenção nos estudos dizia respeito ao perfil das munições apreendidas Nesse mesmo período as balas de fuzis corresponderam a um quarto do total confiscado com destaque para a 556 mm e a 762 mm revelando o uso cotidiano desse armamento A quantidade de fuzis possuída tornouse a métrica do poder dos tiranos que dominavam os territórios das comunidades pobres Em 2002 por exemplo quando os paramilitares começaram a se espalhar por Jacarepaguá a estimativa policial era de que os traficantes do Comando Vermelho na Cidade de Deus possuíam apenas dez fuzis Isso não os impedia de formar um bonde e se juntar aos aliados do Complexo do Alemão com duzentos fuzis mesma quantidade da Favela da Rocinha na época dominada pelo CV mas que no ano seguinte levantou a bandeira da Amigos dos Amigos O tráfico da Ilha do Governador do Terceiro Comando dispunha de cinquenta fuzis No Rio de Janeiro as coisas são fortes diferentes disse Bigode Tinha vezes que eu ia fazer entrega de armas e drogas e tinha cem homens de fuzil espalhados ali em volta eles ficavam de guarda para eu poder descarregar Eu pensava aqui é outro país quem manda são eles Eles tinham ramificações com outros crimes roubo de carga banco sequestro relação com a polícia tudo O dinheiro das vendas de drogas e do crime era usado para construir uma estrutura que protegia o território em que o chefe da facção mandava Resguardados por esse arsenal os criminosos ergueram pequenas cidadelas buscando autossuficiência e relativa autonomia em relação às forças do Estado o que fez crescer o poder dos comandantes e prejudicou a população local Os Donos do Morro viraram uma instituição carioca inexistente em outras cidades brasileiras Essa lógica de dominação baseada em armamento pesado provocou uma corrida armamentista entre grupos rivais mantendo o mercado de armas e munições sempre aquecido Ao mesmo tempo a rivalidade entre os grupos gerava um processo autodestrutivo entre as diferentes bandeiras criminosas que se fragilizavam com os conflitos e as mortes constantes facilitando o domínio das forças de segurança do Estado que podiam cobrar arregos e faturar com o crime O traficante compra uma 50 calibre com capacidade para derrubar um helicóptero mesmo sabendo que nunca vai usar É mais para assustar o rival Se o rival comprou o concorrente precisa comprar uma igual A lógica do comércio de armas passa por essa competição para ver quem é mais forte Mesmo com armas pesadas por falta de treinamento e conhecimento tática tudo nenhum desses grupos consegue fazer frente ao Estado completou Bigode Com tantas armas espalhadas pelas favelas flagradas nas mãos de jovens pobres e negros de rosto coberto nunca foi difícil vender a ideia das operações policiais como medidas necessárias nas comunidades Como se a ordem e a paz dependessem da guerra da polícia nos territórios pobres De acordo com os comandos policiais essas operações que muitas vezes usam tanques blindados helicópteros e armamento pesado servem para apreender armas drogas dinheiro recuperar carros e outros bens roubados prender ou matar suspeitos Apesar de serem estruturantes no modelo de segurança pública não figuram formalmente nos registros oficiais como eventos diferentes do patrulhamento de rotina e por isso não são contabilizadas nas estatísticas Um levantamento feito por pesquisadores do Rio no entanto baseados em notícias publicadas em três jornais cariocas O Dia Extra e MeiaHora apontou que entre 2007 e 2018 foram feitas pelo menos 10 218 dessas operações o que significa uma média de mais de duas por dia3 Para se ter ideia da especificidade da estratégia policial fluminense no estado de São Paulo não existe esse tipo de ação policial O patrulhamento ostensivo paulista se faz com a presença de carros e homens nas ruas em abordagens individuais e nas prisões em flagrante vinculadas às denúncias feitas pelo telefone 190 As operações policiais realizadas no Rio de Janeiro contribuem para tornar a polícia do estado a instituição que mais mata e a que mais morre no mundo Nesses onze anos abrangidos pelo levantamento no entanto morreram 22 vezes mais civis do que policiais Houve 3860 homicídios de pessoas que moravam nessas áreas de risco e 176 mortes de policiais vítimas nesses conflitos O Batalhão de Operações Policiais Especiais o Bope foi a divisão que mais participou dessas ações o que deu a seus membros a fama de superheróis Seus uniformes pretos ostentavam o símbolo da faca na caveira cuja origem remete aos soldados das forças especiais inglesas na Segunda Guerra Mundial Reza a lenda que depois de invadir o território dos nazistas e encontrar no local uma caveira os ingleses deram uma facada no crâ nio criando assim a marca reproduzida em batalhões de operações especiais em todo o mundo Havia só um detalhe a polícia brasileira nunca esteve em guerra como a inglesa nem os moradores desses bairros pobres eram seus inimigos Essa distorção que se repete em outros estados mas que no Rio ganha relevâ ncia por causa do armamento pesado envolvido nos conflitos e pela frequência com que as operações ocorrem também produziu um vocabulário típico que eu inicialmente ouvi sem entender direito do que se tratava O espólio de guerra por exemplo consiste no direito que o policial tem aos bens dos traficantes mortos ou presos depois de uma operação policial fuzis armas e drogas que garantam lucros com a revenda no mercado ilegal E dinheiro em espécie Outro tipo de ação com essa mesma lógica de guerra é a prática da troia termo que faz referência ao lendário Cavalo de Troia O grande cavalo oco de madeira como se sabe foi usado pelo exército grego para esconder seus soldados e invadir de surpresa e dominar a cidadela troiana há mais de 3 mil anos Já os policiais do Rio costumam fazer a troia ao invadir morros e comunidades para se posicionar em locais estratégicos e surpreender o grupo inimigo Na Maré por exemplo a troia foi usada com frequência ao longo de 2019 Conforme moradores de lá relataram nessas ocasiões uma primeira turma de policiais invade a comunidade iniciando uma série de conflitos isolados nos bairros A troia consiste em aproveitar essa primeira invasão feita de preferência de madrugada para invadir algumas casas de moradores sem mandado judicial com o objetivo de ocupar as lajes e nelas se posicionar para uma segunda investida policial Situados de forma estratégica nessas residências os policiais podem atirar e encurralar o inimigo Quando em 2007 subi no Complexo do Alemão um dia depois de uma invasão policial que deixou dezenove mortos ouvi relatos dos moradores sobre ter havido ocorrências desse tipo na véspera mas eu ainda não sabia que havia nomes específicos para elas Lajes foram ocupadas para servir de base de tiro dos policiais e saques foram feitos O ponto mais dramático e escandaloso desse teatro de guerra ocorreu em 2019 quando a Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil passou a realizar inúmeras ações com helicópteros e a disparar do alto contra comunidades pobres Deveria ser algo inaceitável num país onde as leis e o estado de direito são respeitados Só que as ações se repetiram com frequência ao longo do ano Em 2019 foram pelo menos 23 ações usando esse procedimento4 No ano seguinte numa ação em Angra dos Reis os disparos foram dados de um helicóptero ocupado pelo próprio governador do estado Wilson Witzel que assumira o cargo naquele ano Depois do sobrevoo soubese que uma tenda usada como ponto de apoio para uma peregrinação evangélica foi atingida pelos tiros Os atiradores pensaram que se tratava de uma casamata para esconder traficantes Por sorte não havia ninguém no local Durante o processo das entrevistas para este livro um amigo bem relacionado em muitas esferas sociais me ofereceu a chance de conversar com um figurão das milícias O entrevistado era um policial com uma longa história no submundo dos conflitos urbanos do Rio Eu já o conhecia de nome e a chance de ouvilo seria de fato uma oportunidade única desde que eu conseguisse desarmar seu espírito para ele me contar o que fosse possível sobre os bastidores do poder policial Para conquistar essa confiança eu receberia do meu amigo uma rápida aula sobre o jeito de ser carioca Minha postura de jornalista e de pesquisador forjada em São Paulo junto com meus trejeitos de paulista poucas piadas na conversa econômico na euforia poderiam colocar tudo a perder Aqui no Rio de Janeiro as coisas se resolvem ou por amor ou por dinheiro O cara com quem você vai conversar não vai falar por dinheiro Pode oferecer 50 mil reais Ele não fala Ele só vai falar contigo por amor Ele gosta de mim e eu gosto dele Também precisa ir com a sua cara Veja se não faz merda disse o meu amigo Ele me deu dicas objetivas Sugeriu que eu presenteasse o entrevistado com o livro que escrevi sobre o PCC Seria uma demonstração de respeito Eu também não poderia anotar nada durante o encontro A conversa tinha que ser em off sem identificação do entrevistado para evitar riscos para a fonte Concordei Minha intenção era entender o processo histórico que levou ao fortalecimento das milícias e era natural que muitos entrevistados se sentissem desconfiados vulneráveis Por isso todo o cuidado parecia justificável inclusive eu não mencionar depois no livro o bairro em que ele atuava Ainda conforme a orientação do meu amigo nosso batepapo deveria ser olho no olho e eu teria que me controlar para não parecer sedento por informações comprometedoras como se fosse um promotor ou policial As anotações seriam feitas longe do entrevistado Além disso seria importante ter certo jogo de cintura e malemolência para cativálo durante a conversa Quando eu apresentálo a você antes de qualquer pergunta sua a gente fala de coisas que fizemos juntos Faça piadas comigo dê risada para que ele perceba que temos intimidade e se sinta seguro para conversar Se ele não for com a sua cara ou achar você muito certinho o papo dura cinco minutos avisou meu amigo Ele não disse diretamente mas entendi o recado eu precisava ser menos paulista e mais carioca A conversa ia depender da minha capacidade de gerar empatia Achei que eu talvez não conseguisse e foi impossível não lembrar da frase de Nelson Rodrigues um expert na cultura carioca a pior forma de solidão é a companhia de um paulista Fomos até a casa dele num bairro afastado da capital Chegamos no fim da tarde já estava anoitecendo O local era simples uma boa casa mas longe de ser uma mansão A figura que encontrei era completamente diferente do que eu esperava Parecia mais um pescador do que um mandachuva Ele nos recebeu sem camisa de shorts e chinelo Tinha mais de sessenta anos pele queimada de sol magro mas com músculos rígidos e estatura mediana Logo reparei em duas tatuagens que tinha no peito de um lado uma imagem sagrada de outro uma figura macabra que achei que devia simbolizar a morte Sobre a mesa uma pistola cujo calibre fui incapaz de identificar Quando olhei ao redor percebi que estava em sua sala antiescuta Meu amigo já havia me alertado para a existência desse ambiente onde ocorriam algumas conversas mais tensas e comprometedoras com figurões da política e da segurança pública A tecnologia para evitar gravações consistia em cerca de quarenta gaiolas penduradas nas paredes com passarinhos que não paravam de cantar Mesmo que eu quisesse gravá lo dificilmente conseguiria escutar o que havia sido dito A cena era puro Rio de Janeiro Nunca teria acontecido em São Paulo Fazia anos que meu entrevistado vinha participando do submundo do poder no Rio mesmo com sua baixa patente na polícia A hierarquia é irrelevante nesse modelo miliciano Não importa se o sujeito é soldado cabo capitão ou coronel O que vale são suas conexões políticas e a habilidade para liderar de acordo com as crenças e os valores da tropa no front O entrevistado em nenhum momento se disse miliciano nem eu de forma direta perguntei se ele era É uma categorização simplista demais que depois de ser reproduzida diariamente na imprensa acabou criando estereótipos A realidade é bem mais complexa Meu interlocutor não parecia confortável dentro dessa caixinha mas falou da ascendência que tinha sobre os paramilitares da região e disse ter contato com grupos paramilitares de bairros do Rio Contou por exemplo a surra que deu num jovem membro da milícia local que foi armado em frente à escola para impressionar as meninas Como lição quebrou o braço do miliciano aprendiz com pancadas dadas com um remo Perguntei sobre Ecko o foragido Wellington da Silva Braga chefe da Liga da Justiça miliciano que em 2020 era o criminoso mais procurado do Rio de Janeiro representante da nova geração de paramilitares Ele elogiou a simplicidade do garoto contou que Ecko esteve em sua casa mostrou algumas armas e discutiu a situação criminal do Rio O clima da nossa conversa ficou bem amistoso quando descobrimos um ponto em comum Ele havia participado da invasão do Complexo do Alemão com as tropas da polícia em junho de 2007 no primeiro ano do governo Sérgio Cabral Filho e eu havia feito uma reportagem sobre ela Para mim essa reportagem tinha sido inesquecível Naquela operação Pescador daqui em diante chamarei assim meu entrevistado estava na linha de frente liderando soldados e cabos de seu batalhão e participando dos tiroteios que duraram o dia inteiro A operação resultou em dezenove mortes um dos maiores massacres em operações policiais da história do Rio Eu estive no Alemão como repórter de O Estado de S Paulo percorri ruas e vielas do morro para entrevistar os moradores que denunciaram inúmeras irregularidades e abusos histórias publicadas no dia seguinte Pescador era um dos algozes A gente estava no morro e encontramos um dos jovens do tráfico num beco bem na nossa frente Todo mundo atirou ao mesmo tempo Foi um lance de sorte ele disse sem esconder o orgulho por aquela execução que via como façanha para o meu contido incômodo Depois que saí de sua casa perto das dez da noite recebi carta branca para conversar com os milicianos que controlavam o território e circular pelo bairro Falei com três homens que estavam numa praça central todos de camiseta bermuda e chinelos e que não pareciam armados Eles eram as sentinelas do lugar e haviam sido avisados de que eu chegaria para uma conversa com o aval do mandachuva Os homens aparentavam cerca de trinta anos usavam cabelo curto estilo soldado mas não eram policiais A história deles sempre esteve vinculada ao crime Anos antes pertenciam à facção que dominava o bairro porém mudaram de lado e passaram a trabalhar para a nova ordem depois que a milícia assumiu Eles me receberam com uma postura de relações públicas da administração local Defenderam a gestão que faziam naquela área que garantia aos moradores a sensação de segurança no bairro Pude circular pelas praças e ruas Um deles nos acompanhou meu amigo continuava comigo Enquanto andava ao nosso lado o homem negociava por celular como oferecer o serviço de reboque a um morador do bairro Havia jovens jogando futebol nas quadras famílias nas ruas e o comércio e os bares estavam abertos e movimentados De pé na praça principal meio sem jeito fiz algumas perguntas rápidas ao miliciano Você saberia apontar a diferença entre o controle das facções e o controle das milícias Estávamos numa rodinha com outras pessoas inclusive amigos dele numa conversa informal Não havia muito como bancar o jornalista ou aprofundar a entrevista Ele defendeu o trabalho que vinham fazendo Agora está melhor A molecada não quer mais ir para o tráfico nem usar drogas Tem muita gente aqui querendo prestar concurso pra polícia Perguntei se ele não tinha receio de que uma facção do tráfico tentasse tomar a comunidade de novo e reiniciar os ciclos de conflito Esse risco praticamente não existe mais ele respondeu Um batalhão especial da polícia foi construído aqui ao lado O tráfico sabe que não pode entrar porque não aguentaria o peso da resposta A parceria com o batalhão local era ponto pacífico como se milicianos e polícia fossem parte do mesmo grupo Perguntei se os moradores não se incomodavam com as cobranças de taxa A resposta foi que eles ganhavam dinheiro somente com o gás o mais barato da região E que como eles eram crias da região sabiam lidar com os limites financeiros dos moradores Cria é outro termo do crime do Rio Os crias são pessoas nascidas e criadas no bairro com vínculos antigos na vizinhança e que por isso têm legitimidade São laços fundamentais para a manutenção de poder O domínio de uma facção estranha com chefes estrangeiros vindos de outra comunidade cria insegurança e tensão o que pode incentivar denúncias anônimas Para administrar esse problema os milicianos contratam crias para gerir o negócio e responder aos chefes que ficam de fora A presença dos crias contudo não era garantia de temperança ou civilidade naquele bairro Entrevistei e ouvi reclamações de moradores sobre assassinatos e corpos desaparecidos expulsão de moradores vinculados a grupos rivais e extorsão na cobrança de taxas Como em outras tiranias não havia espaço para contestar o poder local ou para oposição Aqueles que não gostavam deveriam se mudar de bairro Se insistissem em contestar o poder pior para eles Ficava evidente que a principal dualidade a caracterizar o abismo social carioca não era simplesmente riqueza e pobreza mas tirania com sua lei do silêncio e lei do mais forte democracia e estado de direito A primeira era a forma de governo implementada em boa parte das comunidades pobres do Rio independentemente da bandeira da facção criminosa A segunda se restringia a um espaço cada vez menor mais urbanizado e rico da cidade Durante minha conversa com Pescador entre os cantos incessantes dos passarinhos antiescuta mais ouvi do que falei Ele se mostrou amigável e falou sem se importar com eventuais segredos Minhas paulistices não atrapalharam Em entrevistas delicadas como essa com pessoas bem diversas de mim aposto na autenticidade Não nego minha origem social nem finjo ser quem não sou até porque sou um péssimo ator Mesmo sem o charme do carioca acho que a transparência ajudou na formação dos vínculos com Pescador que se sentiu confortável para falar sobre seu cotidiano Dias depois baixada a adrenalina surgiram em mim algumas reflexões Foi uma dessas entrevistas cuja relevâ ncia a gente só compreende mais tarde passado o impacto A sagacidade de meu entrevistado me levou a conhecer um tipo de inteligência estratégica que consiste em agir sempre levando em conta o terreno onde se pisa Para comandar é preciso saber claramente aonde se quer chegar ser capaz de construir uma rede de apoio para se manter no comando entender as crenças e os valores do grupo cujos interesses o líder representa conhecer bem o inimigo e saber se antecipar a ele punir quem ameace esse poder E o que achei ainda mais impressionante Pescador era especialista em desobedecer a seus superiores formais da polícia para poder mandar informalmente em seu grupo comando aceito por seus chefes Alguns casos emblemáticos de seu estilo de liderança parecem roteiros escritos para cinema Certa vez Pescador e sua tropa começaram a ser pressionados pelo capitão do batalhão em que ele trabalhava Uma das líderes comunitárias vinha organizando protestos junto à população denunciando os excessos da tropa e a violência policial e o capitão começou a pegar no pé dos policiais e a punir a conta gotas as irregularidades cometidas por eles Pescador porém tinha uma leitura mais maliciosa da ofensiva do capitão contra seus subordinados informantes haviam lhe contado que o oficial vinha mantendo um relacionamento amoroso com a líder comunitária que era muito bonita A dobradinha amorosa portanto estava atrapalhando a vida dele e de seus homens Pescador já tinha pensado num plano para derrotar o adversário e o pôs em prática um dia em sua ronda como policial Era de manhã Ele passava com a viatura da polícia em frente à entrada principal do morro quando viu a líder comunitária Desceu do carro sem dizer uma palavra caminhou em direção a ela e a atingiu no queixo com o cabo do fuzil A moça caiu desmaiada Ele virou as costas entrou no carro e a deixou caída na calçada Passadas algumas horas o policial Pescador foi chamado à delegacia pelo rádio da viatura Ele se dirigiu ao prédio cruzou com alguns PMs que o parabenizaram pela atitude Quando entrou na delegacia lá estavam a vítima ferida o capitão e o coronel do batalhão O delegado que fazia o registro da ocorrência lhe dirigiu a palavra O senhor agrediu essa senhora Sim ele respondeu Por quê perguntou o delegado Era a oportunidade que ele esperava para confrontar seu chefe Ela estava protestando na frente de uma favela e eu desci para perguntar se havia algum problema Ela disse que sim que os policiais do nosso batalhão eram todos corruptos Eu não gostei mas deixei ela continuar Só que aí a moça extrapolou Além de corrupto são todos boiolas O capitão de vocês por exemplo é um frouxo Quando se deita comigo só consegue gozar com o dedo no rabo Aí eu não aguentei doutor Chamar o meu capitão de homossexual foi a gota dágua Corrupto tudo bem mas boiola não Fiquei indignado e agredi a moça Pode colocar tudo aí no papel doutor Houve certo constrangimento na sala como se a revelação do relacionamento entre o oficial e a líder comunitária fosse mais grave do que a própria agressão que ela sofrera Além disso era uma afronta dissimulada contra a autoridade do capitão que o obrigava a tomar uma decisão Um movimento arriscado de Pescador mas certeiro O capitão colocaria em jogo sua privacidade Deixaria que aquela história chegasse ao conhecimento de sua mulher e afetasse sua família O oficial sentiu o golpe recuou e a agressão foi relevada Ambos sabiam que a tropa estava do lado do policial agressor que também tinha proteção superior em esferas mais elevadas Tudo seguiria como antes e Pescador saiu fortalecido do embate com seu capitão Nessa realidade do submundo do poder policial existem normas próprias em que as leis e o Código Penal não passam de abstrações São levados em consideração mas pouco funcionam na prática cotidiana As leis até podem ser defendidas em público ou usadas de forma tática para atingir adversários ou punir inimigos entretanto não são levadas tão a sério O policial quadradinho que age de acordo com o livro vai rapidamente sucumbir Para exercer poder só com vivência e certa malandragem Essa astúcia colocou por exemplo Pescador na posição de chefe de seu chefe e foi decisiva para a disseminação das milícias A valorização dessa autoridade orgâ nica e informal criada na linha de frente no exercício do poder na rua longe dos gabinetes com arcondicionado que menospreza as hierarquias e formalidades legais tornou as corporações policiais incontroláveis Essa rede para continuar forte e mobilizada precisa fazer dinheiro e descobrir oportunidades de negócios Sem dinheiro não há poder um problema que a criação do modelo de negócios miliciano soube resolver Em 2018 a eleição de um governador e de um presidente que representam em muito aqueles que veem o mundo de dentro desse subterrâ neo ruinoso mostrou aos paramilitares que eles tinham chegado mais longe do que imaginavam Os controles formais a Constituição a democracia não passavam de entraves para o poder dos mais fortes A história da relação promíscua entre as polícias do Rio e o crime remete aos tempos coloniais mas a viagem na linha do tempo pode ser mais breve Em meados dos anos 1950 quando o processo de urbanização brasileiro havia se tornado irreversível pouco antes de a cidade perder o posto de capital federal os morros e as comunidades pobres ocupadas desde o começo do século X X ficaram superpovoados Foram ocupados os morros no entorno dos bairros tradicionais da zona sul em direção aos subúrbios das zonas norte oeste e cidades da Baixada Fluminense que margeavam as linhas da Central do Brasil O Rio vivia tempos de otimismo no começo dos anos 1950 No livro Cidade partida Zuenir Ventura lembra desse território edênico do passado talvez idealizado quando João Gilberto e Roberto Menescal ainda dois jovens compositores andavam todas as noites de Copacabana à Urca tocando violão e conversando sobre o movimento depois batizado de bossa nova Na época a atriz norteamericana Lana Turner fugia do Copacabana Palace e dos seguranças para buscar amantes no calçadão de madrugada bêbada5 Qualquer senhora respeitável nada tinha a temer dos destituídos que raramente ousariam assustá la escreveu o jornalista Paulo Francis em seu livro de memórias O afeto que se encerra também citado por Zuenir A bossa nova cujo marco inaugural é o lançamento do LP Chega de saudade de João Gilberto em 1959 simboliza a atmosfera do período O Rio parecia gestar um Brasil moderno e urbano como se a sofisticação dos acordes de jazz e dos compositores eruditos aliada ao talento dos sambistas do morro concretizasse um projeto utópico tipicamente brasileiro Em algum momento contudo a face otimista dessa mistura cultural desandou assim como as utopias As coisas começaram a fugir ao controle nas cidades como se os novos centros não estivessem prontos para lidar com o passivo dos quatro séculos de história de um Brasil rural patriarcal e escravista Os habitantes dos bairros com pouca infraestrutura urbana e moradias precárias vindos das zonas rurais com baixa educação formal e sem treinamento para os empregos eram vistos como ameaça à tranquilidade dos moradores dos bairros tradicionais e dos subúrbios mais adaptados ao contexto urbano Uma tensão entre as classes e culturas demarcada nos territórios começou a assombrar o cotidiano carioca A criminalidade tornouse um problema típico desse novo Brasil sobretudo depois dos anos 1960 As identidades rurais e patriarcais que tinham formado a cultura tradicional ao longo dos séculos precisariam ser reinventadas no país que se urbanizava em alta velocidade de forma improvisada e sem planejamento no Rio em São Paulo e em outras grandes cidades O crime seria um caminho possível nessas cidades entre homens que buscavam honra e respeito de seus pares numa sociedade que valorizava dinheiro consumo e valentia Ser um criminoso um bicho solto não abaixar a cabeça para o sistema mesmo que para isso fosse preciso lançar mão da violência tornouse uma opção de identidade para as novas masculinidades urbanas Uma polícia violenta e disposta a ir à guerra para defender a parte civilizada os mais ricos e brancos dessas ideias ameaçadoras seria o contraponto identitário para a formação dos conflitos estabelecendo no imaginário da cidade o desenho da disputa entre mocinhos e bandidos A tal modernidade urbana em vez de incorporar a tradição rural para oferecer uma nova proposta de sociedade parecia renegar o passado que deveria ser exterminado porque representava o atraso Esse malestar produziu um caldeirão de emoções explosivas medo ressentimento raiva num processo que definiria a atuação violenta da polícia e dos grupos criminosos nos anos que viriam retroalimentando um ciclo de tragédias cotidianas retratadas nos jornais nos rádios nas conversas de bares nos almoços familiares O bode expiatório que criava essa sensação de vulnerabilidade era o bandido palavra que cunhou uma marca forte capaz de estigmatizar os jovens negros moradores das favelas que se tornariam os maiores alvos dessa guerra Em 1957 uma reportagem em tom alarmista publicada no jornal Última Hora dá uma ideia do clima que a cidade começava a viver com os crimes Um bandido em cada esquina uma quadrilha em cada bairro quer na zona norte sul centro ou mesmo rural desencadeando avassaladora onda de assaltos oferecendo à imprensa e à polícia registros patéticos transformaram o Rio numa cidade sitiada pelos gâ ngsters por dez gâ ngsters para sermos mais precisos Seus retratos estão expostos no quadro de procurados pela polícia e para eles estão voltadas as atenções gerais6 O medo abriria espaço para o surgimento de esquadrões da morte grupos de extermínio e justiceiros que começaram a se articular para eliminar os suspeitos e assim trazerem de volta a tranquilidade perdida Era esta a aposta principal a violência libertaria os habitantes da violência Os policiais assassinos em vez de serem vistos como criminosos seriam aceitos pelas instituições e ganhariam aplausos de parte da população O primeiro grupo a se organizar para a prática de extermínio se formou em 1957 quando o general do Exército Amaury K ruel chefe de polícia do Distrito Federal achou necessário responder às pressões da Associação Comercial e da população atemorizadas com o crescente aumento do crime de roubo A polícia da então capital brasileira ficava sob a responsabilidade do Departamento Federal de Segurança Pública cujo chefe era indicação do presidente da República na época Juscelino K ubitschek K ruel montou um grupo para combater assaltos à mão armada pesadelo do carioca naqueles dias que ganhou o nome de Turma Volante Especial de Repressão aos Assaltos à Mão Armada TVRAMA ligado ao Serviço de Diligências Especiais SDE da Delegacia de Vigilâ ncia responsável pela captura de bandidos que a cidade toda considerava perigosos Depois da criação desse grupo surgiram nos jornais notícias e fotos de corpos de diversos suspeitos apontados como ladrões A imprensa apelidou esses policiais de Esquadrão Suicida e destacou a coragem e o desprendimento de homens que não temiam a morte no enfrentamento dos marginais O entusiasmo dos jornalistas cessou no ano seguinte em fevereiro de 1958 quando um motorista da TV Tupi apareceu morto no Morro do Jacaré depois de uma incursão de policiais do TVRAMA Como voltaria a ocorrer no futuro e o corporativismo dos jornalistas explica isso a morte de um profissional da imprensa gerou comoção e debates sobre os excessos cometidos pela polícia7 Um padrão no entanto começou a se estabelecer A indignação diante de mortes indevidas era breve e incapaz de gerar mudanças estruturais O medo pesava mais na balança assim como a solução violenta proposta pelas polícias As atividades do SDE se estenderam para outros departamentos como a Invernada de Olaria delegacia localizada no bairro de Olaria na zona norte conhecida pela truculência de seus policiais O nome do departamento era uma referência a um matadouro de bois que funcionava na cidade no século X IX Também teve o apelido informal de Casa do Diabo Em 1962 a instabilidade política favoreceu a defesa de ações populistas e violentas A Invernada atuava como o braço armado do governador Carlos Lacerda sob as ordens do coronel Gustavo Borges Denúncias dos jornais da época falavam de extermínios e desovas de corpos pelo grupo no rio Guandu Um dos casos mais famosos atribuídos aos policiais da Invernada foi a morte de José Miranda Rosa o Mineirinho que levou treze tiros e acabou eternizado em um conto de Clarice Lispector que leva seu nome Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala só bastava O resto era vontade de matar Era prepotência disse Clarice numa entrevista em 1977 à TV Cultura A situação se agravou depois do golpe militar de 1964 quando os controles policiais foram flexibilizados No Rio em agosto daquele ano houve o assassinato do investigador Milton Le Cocq de Oliveira numa troca de tiros com Manoel Moreira criminoso conhecido como Cara de Cavalo Le Cocq comandava a Delegacia de Vigilâ ncia A busca dos policiais por vingança desencadeou práticas violentas na interminável guerra da polícia contra o crime Os planos de extermínio de bandidos passaram a ser defendidos publicamente nas páginas dos jornais A caçada a Cara de Cavalo que durou pouco mais de um mês foi um acontecimento histórico da imprensa policial Começou com uma carta manifesto com o título 10 x 1 no jornal Última Hora escrita por policiais Fazia referência a um mórbido placar com o número de criminosos que seriam assassinados para cada policial alvejado Repórteres que acompanharam o dia a dia da busca fotografaram a execução de Cara de Cavalo com 62 tiros à queima roupa Algo de fato vinha dando errado sensação captada na época por artistas como Hélio Oiticica que criou uma bandeira inspirada em foto do cadáver de Cara de Cavalo com os dizeres Seja marginal seja herói A esperada mistura emancipadora entre o rural e o urbano parecia descambar para um confronto entre ricos e pobres brancos e negros asfalto e favela em que os primeiros tentavam dominar os segundos A resistência marginal na obra colorida de Oiticica era uma bandeira em defesa da liberdade As caçadas a bandidos se tornaram mais comuns principalmente nas metrópoles do Rio de Janeiro e de São Paulo Em homenagem a Milton Le Cocq policiais civis do Rio formaram em 1965 a Scuderie Le Cocq grupo de extermínio que tinha como símbolo uma caveira duas tíbias cruzadas e as iniciais EM de Esquadrão da Morte Sem disfarçar o cinismo esses policiais diziam que as letras significavam Esquadrão Motorizado grupo onde Le Cocq havia trabalhado Suspeitos eram mortos nos bairros pobres e apareciam nos jornais com alarde como se policiais e jornalistas quisessem informar pedagogicamente com esses extermínios que o crime não compensa Nessa escalada em maio de 1968 a barbárie oficial subiria mais um degrau Na madrugada de 6 de maio uma pessoa que se identificou como portavoz do Esquadrão da Morte e se denominou Rosa Vermelha telefonou para os plantonistas dos jornais cariocas informando que havia um presunto em uma estrada da Barra da Tijuca Repórteres foram ao local e encontraram o corpo de um homem de cerca de vinte anos sem documentos com marcas de tortura dois tiros na nuca e dois nas nádegas que na cultura policial são tiros de esculacho As mãos estavam amarradas para trás e no pescoço havia um fio de náilon usado para sufocar a vítima antes da execução Junto ao cadáver estava a caveira com as duas tíbias cruzadas um cartaz com as iniciais EM e a frase Eu era ladrão de carros No verso do cartaz estava escrito o nome Sérgio Gordinho e o número 2 indicando que não havia sido a primeira morte do grupo O fio de náilon no pescoço se tornaria uma das assinaturas das mortes cometidas pelo grupo Meses depois em outubro de 1968 o grupo se sentiu encorajado para publicar no jornal Última Hora um manifesto justificando os homicídios de bandidos A voz do Esquadrão da Morte ao povo da Guanabara muitos dos nossos já tombaram vítimas de assaltantes e criminosos sanguinários O povo é testemunha que esses bandidos não respeitam crianças velhos senhoras e trabalhadores Assaltam e matam sem nenhuma piedade Nós trabalhamos apenas com uma intenção defender a família que mora e trabalha nesse estado A distâ ncia entre a Justiça e a polícia nem sempre permite um combate eficaz ao crime e aos criminosos Assim só nos resta falar a linguagem deles a lei do cão Sempre que contamos com o apoio de um Secretário de Segurança que quer ver a cidade livre do crime nós trabalhamos como agora Foi assim na época do general K ruel do Gustavo Borges e está sendo agora com o general França Esperamos que o distinto público da Guanabara compreenda nossas intenções Na mesma toada em julho de 1969 o estado da Guanabara criou o Grupo de Operações Especiais depois transformado na Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil o mesmo grupo que em 2019 faria sobrevoos de helicóptero disparando contra comunidades pobres No ano de sua fundação doze policiais foram retratados pela imprensa como os Doze Homens de Ouro Pertenciam ao grupo entre outros Mariel Mariscot José Guilherme Godinho Sivuca anos depois eleito com o bordão Bandido bom é bandido morto e Euclides Nascimento Marinho A caveira e as tíbias cruzadas também eram símbolo do grupo A quantidade de escâ ndalos e o envolvimento de alguns desses homens com o crime organizado principalmente com o jogo do bicho provocaram a desmobilização da equipe original em novembro de 1970 O aval para praticar homicídios como ficou evidente ao longo dos anos em vez de proteger a população favoreceu lucros ilegais que financiavam o poder dos policiais matadores A ideia de matar bandidos como uma solução saneadora contudo nunca perdeu o apelo e se espalharia por outros estados brasileiros com a criação de diversas modalidades de esquadrões da morte Em 1968 policiais civis de São Paulo liderados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury foram ao Rio de Janeiro trocar experiências com colegas para montarem uma sucursal paulista desse tipo de grupo de extermínio A justificativa foi a morte do investigador David Parré ocorrida em novembro de 1968 Durante o enterro imitando os cariocas os policiais de São Paulo também juraram vingança Para cada policial morto dez bandidos hão de morrer foi a promessa publicada nos jornais Assim como no Rio a caçada a Carlos Eduardo da Silva o Saponga suspeito da morte do investigador Parré tornouse épica e terminou com o fuzilamento da vítima O portavoz do esquadrão de São Paulo autodenominado Lírio Branco também passou a telefonar para as redações informando onde estavam os presuntos No Espírito Santo a Scuderie Le Cocq associada aos bicheiros locais tornouse uma força política relevante decisiva para transformar o pequeno estado capixaba no mais violento do Brasil por décadas Os policiais matadores valiamse da tensão política que mobilizava as Forças Armadas nos anos da ditadura militar Movimentos guerrilheiros de esquerda começavam a desafiar o regime nas grandes cidades brasileiras grupos clandestinos apostavam na estratégia da luta armada conectados com a ideia de uma guerra civil ideológica internacional entre capitalistas e comunistas iniciada depois da Segunda Guerra Mundial A Guerra Fria assumia formas diferentes nos quatro cantos do planeta através do apoio das duas superpotências mundiais da época Estados Unidos e União Soviética a lutas coloniais de independência e guerras civis opondo as duas nações Nas cidades brasileiras o conflito se intensificou depois dos primeiros anos da ditadura militar com os grupos lançando mão entre outras ações de assalto a bancos e de sequestros para arrecadar fundos ou trocar prisioneiros e de panfletagem para obtenção de apoio popular Em dezembro de 1968 com a decretação do AI5 os militares organizaram uma máquina de inteligência e combate à guerrilha adotando táticas usadas pelo Exército francês na luta colonial da Indochina e da Argélia os inimigos além de vencidos à bala precisavam ser derrotados no campo das ideias A batalha ideológica estava em curso O AI5 tentava impedir que os ideais revolucionários se espalhassem Direitos civis foram suspensos jornais e livros censurados e a oposição perseguida partiu para o exílio em grandes levas Nos conflitos ocorridos nas cidades e no campo a máquina de guerra militar agia contra os comandos revolucionários para evitar que a guerrilha inflamasse o país e tornasse irreversível o golpe comunista a exemplo do que ocorrera em Cuba Essa nova rede de combatentes dividiu as Forças Armadas Como explica o jornalista Elio Gaspari em A ditadura escancarada a ruptura se deu entre oficiais de gabinete de um lado e os participantes da guerra real travada nos aparelhos repressivos de outro Poucos se dispuseram a sujar as mãos Um militar tido como herói pelos oficiais do segundo grupo foi o major Carlos Alberto Brilhante Ustra que estruturou o DOICodi paulista centro do combate à luta armada onde ocorreram torturas assassinatos e desaparecimentos As táticas de violência e tortura policial foram replicadas e aperfeiçoadas nos porões da ditadura aproximando das Forças Armadas a banda podre da polícia A aproximação forneceu aos grupos de matadores uma justificativa nobre para seus crimes Eles matariam e torturariam em defesa da pátria contra o comunismo Muitos policiais que agiam em grupos de extermínio ingressaram na máquina de guerra urbana atuando no combate a opositores nos dez Departamentos de Operações de Informação DOIs espalhados pelo país somados aos policiais do Destacamento de Ordem Política e Social Dops e aos militares do Centro de Informações do Exército CIE Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica Cisa e Centro de Informações da Marinha Cenimar órgãos que formavam a espinha dorsal da repressão A Polícia Militar reformulada em 1969 assumiu papel crescente nos confrontos travados nos territórios pobres das favelas morros e periferias Em São Paulo por exemplo o delegado Sérgio Paranhos Fleury apontado como chefe do Esquadrão da Morte paulista liderou o grupo que executou o guerrilheiro Carlos Marighella em 1969 Fleury e policiais do Esquadrão da Morte paulista como os investigadores João Carlos Tralli e Ademar Augusto de Oliveira levaram aos porões métodos de tortura usados com criminosos comuns como o pau de arara e a cadeira do dragão feita de metal e conectada a fios elétricos Também foram implementadas técnicas que já no período democrático eram usadas pela Polícia Militar para combater o crime comum como simulações de tiroteios para justificar homicídios de criminosos prática surgida no DOICodi paulista No Rio de Janeiro a Invernada de Olaria foi uma das delegacias mais ativas no combate à guerrilha urbana A unidade onde parte dos policiais atuava no extermínio de presos comuns era um dos principais destinos de presos políticos O posto policial do Alto da Boa Vista ligado ao Centro de Informações da Marinha Cenimar também funcionava como extensão da Invernada Aurora Maria do Nascimento militante da Ação Nacional Libertadora ANL foi assassinada ali em novembro de 19728 Ela foi espancada e torturada por torniquetes apelidados pelos policiais de coroa de cristo tiras de ferro tensionadas em volta do crâ nio da vítima O corpo mutilado de Aurora foi entregue a seus pais com 29 perfurações de tiros e um furo de dois centímetros no crâ nio por causa da coroa Outro integrante da ANL Newton Leitão Duarte contou à Comissão da Verdade que foi preso em 1969 por Mariel Mariscot um dos Homens de Ouro torturado no Dops e depois levado ao prédio da Polícia do Exército onde começava a funcionar o DOICodi fluminense A proximidade entre os policiais matadores e os porões do Exército trouxe a reboque a influência dos bicheiros que já era forte em ambas as instituições para o coração do poder do Estado A mistura de violência policial e militar com a contravenção formou a base da rede clandestina de violência paramilitar que está na origem dos modelos milicianos O bicho era uma contravenção lucrativa e disseminada na cidade desde a primeira metade do século X X Vendia um produto bastante caro à antiga sede da Monarquia e da capital da República o sonho do enriquecimento e da ascensão social em um lance de sorte Respeitados desde épocas machadianas os bicheiros do Rio dispunham de credibilidade entre os clientes Sempre pagavam as apostas em dia uma questão de honra que garantia a longevidade dos negócios Também tinham bons contatos no poder Havia dois motivos para essa relação próxima Primeiro os apontadores do bicho estavam espalhados por todos os cantos da cidade Nenhuma estrutura empresarial ou de Estado tinha tamanha capilaridade o que tornava os apontadores peça fundamental na comunidade de informações Tanto os policiais como os funcionários dos serviços de Inteligência se abasteciam com as dicas preciosas desses informantes Em segundo lugar por ser uma atividade ilegal essa relação também rendia uma mesada para que os representantes da lei não os incomodassem O generalchefe da Polícia do Rio por exemplo Amaury K ruel criador da equipe que daria origem ao primeiro grupo de extermínio dentro da corporação foi retirado do cargo nos anos 1950 acusado de favorecer o bicho O próprio Milton Le Cocq um dos ícones da polícia do Rio cuja morte inspiraria a formação dos grupos de extermínio como Scuderie Le Cocq e derivados foi atingido numa troca de tiros quando defendia um apontador do jogo do bicho O contraventor tinha pedido a proteção de Le Cocq para evitar que o proxeneta Cara de Cavalo seguisse extorquindo sua banca9 Depois de armar o flagrante Le Cocq foi morto durante a perseguição ao criminoso A partir dos anos 1960 a infiltração do jogo do bicho nas instituições se aprofundou reproduzindo estratégias das máfias internacionais Havia semelhanças importantes entre os modelos funcionavam com uma estrutura vertical as ordens partiam de núcleos familiares atuavam em territórios delimitados boa parte da receita vinha das apostas e mantinham forte influência nos poderes do Estado A proximidade do bicho com a máfia já tinha origem pelo menos desde 1963 quando Antonio Salamone um dos chefes da Cosa Nostra siciliana se refugiou no Brasil depois de cometer um atentado na Itália que resultou na morte de sete policiais O bicheiro carioca Castor de Andrade o acolheu e lhe ofereceu um emprego de fachada na Tecelagem Bangu de sua propriedade Ainda por influência de Castor Salamone conseguiu durante os anos 1970 asilo e cidadania brasileira do então ministro da Justiça Armando Falcão Alguns bicheiros cariocas cativaram o público pela via cultural e emocional bancando duas das maiores paixões nacionais o futebol e o samba Castor de Andrade por exemplo foi patrono e presidente de honra do Bangu Atlético Clube que chegou a ser campeão carioca em 1966 No samba foi patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel no período em que a agremiação conquistou cinco títulos do Carnaval Na Baixada Fluminense em 1976 o bicheiro Anísio Abraão de Nilópolis levou o carnavalesco Joãosinho Trinta para a BeijaFlor transformando a escola numa potência popular Seu primeiro título no grupo especial já naquele ano foi obtido com um sambaenredo que falava do jogo do bicho Sonhar com o rei dá leão O Carnaval e o dinheiro ilegal também aproximaram os bicheiros dos políticos da Nova República sempre de olho nos financiamentos de campanha e de autoridades da segurança e do Judiciário diversas vezes fotografadas nos camarotes dos bicheiros no Carnaval Quando na segunda metade dos anos 1970 os movimentos guerrilheiros já haviam sido derrotados e a mão de obra dos porões da ditadura estava à deriva os bicheiros estenderam a mão a esses oficiais Muitos se sentiam abandonados e injustiçados por seus superiores São diversos os exemplos de policiais e de militares recrutados pelas hostes da contravenção muitos deles narrados no livro Os porões da contravenção de Aloy Jupiara e Chico Otavio O policial civil Luiz Claudio de Azeredo Vianna o Doutor Luizinho por exemplo homem forte do bicheiro Anísio Abraão da BeijaFlor havia passado pelo Centro de Informações do Exército CIE onde trabalhou na Casa da Morte principal núcleo de tortura e extermínio da ditadura no Rio Luizinho tinha sido recrutado para a Casa da Morte pelo oficial do Exército Paulo Malhães um dos principais nomes dos porões no Rio Quando Malhães foi para a reserva em 1985 montou um grupo de extermínio na Baixada e passou a atuar como chefe da segurança de empresas de ônibus em Nilópolis sob as bênçãos de Anísio Anos depois aposentado em um sítio na Baixada Fluminense contaria mais sobre os bastidores das torturas e métodos da ditadura militar Malhães foi assassinado no sítio em que morava em 2014 um mês depois de seu depoimento à Comissão Nacional da Verdade Sobre a escrivaninha ao lado de seu corpo estavam os números de telefone dos bicheiros Anísio Raul Capitão e Maninho três nomes da cúpula do bicho Mariel Mariscot que havia se tornado famoso em 1969 como um dos Homens de Ouro seria apontado por investigações do Cenimar como funcionário de Castor de Andrade e Euclides Nascimento este último outro Homem de Ouro que migrara do Esquadrão da Morte para o bicho Mariscot era acusado de integrar a quadrilha de Lúcio Flávio um dos bandidos mais famosos do Rio nos anos 1970 Em 1976 preso em Ilha Grande Mariscot empreendeu uma fuga com a ajuda do capitão do Exército Aílton Guimarães Jorge O capitão Guimarães tornouse símbolo dessa nova aliança entre bicheiros e policiais sob a tutela das Forças Armadas Guimarães formouse na Academia Militar das Agulhas Negras em 1962 Dois anos depois antecipou a volta ao trabalho durante as férias e se ofereceu voluntariamente para apoiar o golpe militar Passou a auxiliar no combate à subversão frequentando as delegacias da Baixada Fluminense para dar apoio na elaboração de inquéritos que investigavam os movimentos de esquerda Em 8 de outubro de 1969 o capitão ministrou uma aula expositiva sobre técnicas de interrogatório e tortura na 1ª Companhia da Polícia do Exército na Vila Militar para cerca de cem homens entre oficiais do Exército Marinha e Aeronáutica Testemunhos feitos à Comissão da Verdade do Rio declaram que dez presos políticos foram usados como cobaias em diferentes modalidades e instrumentos de tortura como pau de arara choques elétricos latas abertas onde a vítima era obrigada a se apoiar descalça e pedaços de ferro roliço utilizados para esmagar o dedo dos presos10 Em 1973 Guimarães foi preso e enviado a Ilha Grande condenado por contrabando Três anos mais tarde depois de ajudar Mariscot a fugir do presídio aderiu ao jogo do bicho iniciando a carreira como gerente de  ngelo Maria Longa o Tio Patinhas Usando as lições que havia aprendido no Exército de centralização da violência e de poder ele cresceu ganhou autonomia e tornouse um dos principais estrategistas da cúpula da contravenção no Clube Barão de Drummond espécie de irmandade que funcionava como um tribunal informal responsável por julgar aqueles que exploram o jogo ilegal O capitão Guimarães tinha apoio de outro agente histórico da repressão o coronel Freddie Perdigão Pereira carrasco da Casa da Morte e idealizador do atentado a bomba no Riocentro em 1981 cujo objetivo era frear a transição para a democracia A tragédia só não se efetivou porque o artefato explodiu no colo dos militares encarregados do ato terrorista Perdigão usava o mesmo pseudônimo pelo qual era conhecido na Casa da Morte dr Roberto Antes do atentado do Riocentro esse grupo de oficiais parte do Serviço Nacional de Informações SNI do governo João Baptista Figueiredo estouraria cerca de quarenta bombas em diversas cidades do Brasil e explodiria mais de cem bancas de jornal na tentativa de frear o processo de Abertura No Rio de Janeiro o capitão Guimarães continuava aproveitando suas costas quentes para ascender no jogo do bicho Em 1983 foi eleito presidente da escola de samba Vila Isabel O bicheiro Waldemir Garcia o Miro junto com seu filho Waldemir Paes Garcia o Maninho patronos da escola preferiram evitar o confronto com o exaraponga e foram patrocinar o Salgueiro Apesar dessas tensões a visão estratégica do capitão assim como sua autoridade e conexões ajudou a unificar e organizar os negócios criando uma confederação do crime aos moldes das máfias norte americanas de Chicago e Nova Y ork Um dos principais movimentos se deu em 1987 com a criação da Liga das Escolas de Samba do Rio Liesa formada pelas dez agremiações do Carnaval ligadas à contravenção A Liesa representava acima de tudo o pacto entre os grandes empresários do jogo que dividiram os territórios e organizaram os ganhos garantindo um período de trégua e de expansão para a jogatina O Clube Barão de Drummond o nome é uma referência ao dono do zoológico onde o jogo do bicho foi criado no século X IX era o tribunal que zelava pelas leis do pacto Todas essas articulações entre poderosos do submundo prosperaram mesmo depois da Abertura O projeto se reinventou adequandose às novas realidades Se não havia mais por que se preocupar com comunistas e guerrilheiros os anos 1980 e 1990 possibilitaram ao submundo do crime se envolver com a guerra às drogas e com a ameaça representada pelos traficantes nas comunidades pobres localizadas no entorno da aristocrática zona sul do Rio A encrenca era imensa e a figura do bandido com todos os significados que a palavra concentra tornouse o inimigo comum o novo bode expiatório A guerra mudou de inimigo mas a rede de policiais formada durante a ditadura seguiu influente e as conexões com os bicheiros continuaram valiosas para o financiamento dessa luta Também foi preciso lançar um conceito que legitimasse os crimes da polícia cujos excessos continuavam tolerados Em vez de lutar pela defesa da pátria a polícia passou a matar além do limite em nome do cidadão de bem 5 Facções e a guerra dos tronos No ano de 1980 Reginaldo Lima nascido e criado no Morro do Alemão era uma criança de onze anos Trabalhava desde os nove descarregando sacos de alimentos na Central de Abastecimento do Estado Ceasa na avenida Brasil para completar a renda de casa Quando cresceu tornouse educador mediador de conflitos ativista e empreendedor uma entre tantas figuras iluminadas do Rio de Janeiro acostumada a saltar os obstáculos que atravessaram sua vida A violência armada praticada por policiais e criminosos em seu bairro foi um desses obstáculos e letal que deixou muitos de seus amigos pelo caminho Sou filho de uma geração que viu as execuções na favela beirarem a barbárie Naqueles tempos anos 1980 ainda não havia fuzis pistolas e tinha poucas drogas No máximo uma carabina uma escopeta calibre 12 Mas muita morte acontecia por facada paulada e pedrada A forma de exercer o poder foi mudando com o tempo recorda Antes dos comandos nas décadas de 1970 e 1980 apesar da relativa tranquilidade nos morros já havia uma cena conflituosa com pequenas quadrilhas e bandos em disputas pelo poder A expansão do tráfico de drogas e a relação desses empreendedores com a polícia principalmente depois dos anos 1990 estabeleceram novas formas de tensão e drama nas comunidades Os primeiros moradores chegaram ao Alemão nos anos 1920 quando o bairro era uma zona ainda quase rural No começo havia poucos barracos distribuídos pela topografia íngreme da Serra da Misericórdia formada pelas montanhas do Alemão e da Alvorada com um vale entre os morros conhecido como Grota repleto de nascentes de água peixes criação de porcos e galinhas hortas e árvores frutíferas O conjunto de bairros desses morros passaria a ser chamado de Complexo do Alemão Na época para se fixar na região os donos de lotes autorizavam a construção de barracos cobrando um aluguel de chão nome dado para a mensalidade que o inquilino do terreno pagava para erguer sua moradia A população cresceu mais rapidamente depois dos anos 1950 com um ritmo semelhante ao de outras favelas das zonas sul central e dos subúrbios da zona norte que ocupavam os arredores da linha de trem Com o crescimento da procura por terras os assentamentos ocorreram através de loteamentos clandestinos fatiados e vendidos por proprietários particulares ou ocupados por movimentos sociais A chegada de novos habitantes era um desafio para a elite política e econômica das grandes cidades brasileiras De um lado bemvinda porque eles constituíam uma mão de obra barata para as indústrias e os serviços domésticos de outro um problema uma vez que a cidade não garantia aos recémchegados condições materiais e sociais para que tivessem uma vida digna As ações de Carlos Lacerda governador da Guanabara no começo dos anos 1960 são um exemplo dessa ambiguidade com os migrantes Na questão da moradia Lacerda pôs em curso um plano de erradicação de favelas nas áreas nobres da capital e buscou regulamentar a ocupação de lotes em bairros mais distantes como o Alemão Glebas públicas e privadas foram doadas aos moradores com indenização aos antigos proprietários para o início de um processo de urbanização e investimentos em benfeitorias locais mediado pelas associações de moradores Além de exercer funções cartoriais e imobiliárias as associações tentavam estabelecer uma ponte com os políticos para lidar com a falta de água energia saneamento coleta de lixo e moradia A intenção dos políticos foi induzir o crescimento dos bairros pobres em áreas mais distantes do centro econômico e político e ali formar seus currais eleitorais urbanos Em outra frente os mesmos políticos tentavam evitar que os novos moradores para escapar da pobreza partissem para a prática de roubos colocando em risco a população rica da cidade Com a Invernada de Olaria delegacia criada a partir de 1962 no bairro de Olaria cujos métodos inspirariam outros grupos de extermínio nos anos seguintes a violência policial tornouse um procedimento para demonstrar autoridade e assustar ladrões que ousassem desrespeitar a lei Não tinha como dar certo A população do Complexo do Alemão e de outras favelas chegou aos anos 1980 sob essa tensão marcada pela desconfiança da cidade em relação aos moradores desses bairros A falta de infraestrutura urbana de oportunidades sociais educacionais e econômicas somada ao drama de morar em um bairro considerado perigoso repleto de bandidos caçados pela polícia trouxe efeitos indesejáveis Na época o Alemão já possuía cerca de 30 mil habitantes e ainda havia muitos barracos de madeira em meio a vastas áreas descampadas Mesmo tendo uma população maior do que boa parte das cidades brasileiras o Complexo do Alemão sofria investidas das forças de segurança sempre usadas contra seus moradores nunca no auxílio deles Com a ausência da autoridade do Estado na região foram surgindo diversos bandos nas comunidades Eles se organizaram em pequenas tiranias tentando se impor pelo uso da violência contra desafetos e contra aqueles que desobedecessem às regras locais instituídas por eles Com armas e disposição para arriscar a vida muitos criminosos tentavam exercer o poder territorial para assumir o papel de polícia Como ocorreu em diversas periferias do Brasil também no Alemão a ação desses bandos promoveu rivalidades territoriais e conflitos sangrentos A tentativa de ser o mandachuva local inevitavelmente gerava rixas e assassinatos que despertavam reações dos atingidos e ciclos de vingança intermináveis Nas diferentes comunidades do Alemão tinha o bando do Ciço Cabeça do China e do Antônio Russo Meu pai sempre me pedia para evitar ir pros lugares onde esses grupos dominavam lembra Reginaldo Quase não havia rabecões e os corpos ficavam abandonados Diziam que alguns eram comidos pelos porcos Com onze anos eu já tinha visto muita gente morta nas ruas Com essa idade também vi os primeiros homicídios acontecerem bem na minha frente Na lembrança de Reginaldo era um momento difícil porque vários bandos estavam em conflito O bando da Alvorada tinha se juntado ao da Nova Brasília Talvez foi o primeiro ajuntamento de bando da história arrisca Reginaldo Os grupos se uniram para atacar o bando da Grota que também era inimigo do Morro do Alemão Todos esses bairros pertenciam ao Complexo A investida de um lado sobre o outro não demorou a ocorrer Como a Grota ficava no meio quando o ataque aconteceu eles não puderam correr pro Alemão Acabaram encurralados pelos três bandos Os chefes vitoriosos pegaram doze homens do bando da Grota E o que eles fizeram Você sabe o que é uma embira de caranguejo É um termo usado pelos pescadores do Nordeste e que a gente também conhecia no Alemão Eles amarraram os braços e pescoços desses homens como fazem na pesca de caranguejo e levaram todos juntos em fileira para um largo perto da minha casa A embira foi puxada pelo chefe do grupo Eu tinha acabado de chegar do trabalho Ainda era criança Estava sentado na soleira da minha porta não tinha muro Eu morava na subida do morro Ainda não se parecia com favela estava mais para fazenda O chefe do bando me viu e gritou Não sai daí não que é pra você ver e aprender a ser homem E aí começou a chacina Todos os doze foram mortos a pauladas socos pedradas e tiros de calibre 22 Esses confrontos entre pequenos grupos ocorriam também em outros bairros pobres e na década de 1980 ganharam um incentivo adicional para agravar o cenário o emergente e lucrativo mercado varejista de drogas As disputas mais famosas e documentadas em que as bocas de fumo já faziam parte do contexto ocorreram na Cidade de Deus e inspiraram o livro homônimo de Paulo Lins e o filme de Fernando Meirelles Em 2017 a antropóloga Alba Zaluar que iniciou suas pesquisas no bairro nos anos 1980 e na época coordenou a etnografia de Paulo Lins publicou um livro sobre Ailton Bitencourt o Ailton Batata chefe de um dos grupos envolvidos nos conflitos da Cidade de Deus1 O personagem Cenoura tanto do livro como do filme é baseado nele Os outros dois personagens inspirados em figuras reais eram o destemperado José Eduardo Barreto Conceição conhecido como Zé Pequeno e o leal Manuel Machado Rocha o Mané Galinha imortalizados em livro e filme com seus apelidos verdadeiros Ailton Batata conta que foi dono de uma das primeiras bocas de fumo da Cidade de Deus no final dos anos 1970 Vendia principalmente maconha na quadra 15 vinda do Paraguai e do Nordeste depois de 1977 a cocaína se tornou uma mercadoria acessível No começo dos anos 1970 a pequena cena criminal do bairro ainda era composta de ladrões voltados para roubos de casas as cachangas no Recreio e na Barra da Tijuca em busca de dólar ouro e revólver Figuras como Cabeleira Marreco e Alicate o Trio Ternura eram alguns desses poucos e temidos ladrões O mercado de drogas ainda engatinhava e era quase artesanal Nessa época porém os cartéis colombianos em Medellín e Cali começavam a desenvolver a estrutura de produção e distribuição da mercadoria que abasteceu as metrópoles durante o pósguerra O uso de drogas também estava em ascensão A ruptura dos babyboomers com a tradição iniciada nos Estados Unidos e na Europa se espalhou pelo mundo depois da década de 1960 No Brasil chegou aos grandes centros com mais força nos anos 1980 embalada pelo processo de urbanização e de comunicação de massa pela cultura pop pelas bandas de rock pelos grandes festivais de música pela valorização do prazer do consumo e da individualidade em detrimento das identidades coletivas e dos valores familiares e tradicionais da vida no campo As drogas ajudaram na celebração desses tempos hedonistas principalmente a maconha e a cocaína Para atender esse consumo mundial crescente rotas foram abertas a partir da Bolívia e do Paraguai de onde as drogas saíam para chegar aos portos brasileiros e seguir para os demais continentes A produção da folha de coca exigia a altitude elevada dos países andinos e o Brasil se tornou um corredor de passagem da mercadoria Os traficantes viram nessa logística uma oportunidade para abastecer também o mercado interno do Rio de Janeiro e de São Paulo que se revelava promissor Nesse negócio que começava a se formar nos anos 1980 matutos compravam carregamentos de maconha vindos do Paraguai e do Nordeste para vender nas bocas em favelas O negócio não chamava a atenção da polícia que estava focada nos assaltos a pedestres casas e bancos O dinheiro as armas e os lucros do varejo contudo já começavam a provocar problemas sérios nos territórios Na Cidade de Deus as disputas entre Batata e Zé Pequeno por exemplo começaram no final dos anos 1970 Batata era mais velho A relação entre os dois existia desde que Zé Pequeno era garoto e prestava favores a Batata como ir comprar comida e fazer outras tarefas simples para a boca de fumo Na época Zé Pequeno também participava de assaltos nos bairros mais ricos com o parceiro Jorge Devagar Quando se tornou maior de idade Zé Pequeno virou um criminoso ousado e ambicioso Tomou a boca de um traficante junto com seu antigo parceiro de assalto Eles passaram a vender drogas nos apartamentos da Cidade de Deus a algumas quadras da boca de Batata A relação entre Batata e Zé Pequeno no entanto ainda era amistosa Batata frequentava os sambas animados que a boca do concorrente organizava nos apartamentos que atraíam até gente famosa No entender de Batata a rivalidade entre eles se acirrou depois que Jorge Devagar saiu da cadeia e passou a fazer a cabeça de Zé Pequeno para que ele tivesse sua própria boca de fumo no bairro Os negócios de Batata então tornaramse visados pelo grupo rival A guerra entre os bandos começou em 1978 Um integrante da boca de Zé Pequeno roubou o dinheiro da venda de droga de um funcionário de Ailton Batata O ladrão foi executado Como se um rastilho de pólvora tivesse sido aceso a morte desencadeou outros assassinatos Cada lado passou a costurar sua rede de aliados que recebia revólveres para garantir o apoio Nos conflitos que se seguiram Batata ganhou a adesão de Mané Galinha que trabalhava numa viação de ônibus e fazia cachangas nos fins de semana Galinha que vinha sendo esculachado por gente do grupo de Pequeno e de Devagar tornouse o principal aliado de Batata Dezenas de pessoas foram mortas nesses conflitos que duraram até 1981 perdendo força depois da prisão de Zé Pequeno Batata descreveu cenas terríveis daquela época como o dia em que explodiram uma banana de dinamite nos conjuntos habitacionais onde ficava a boca do rival A bicicleta de uma criança voou pelos ares Não havia moradores no bloco onde a bomba foi lançada porque os traficantes já tinham expulsado todos dali para vender drogas No livro ele conta isso com naturalidade É um tipo de narrativa que ouço há mais de vinte anos com poucas variações de homens tão envolvidos nas batalhas que travam com seus inimigos tão enredados em seus próprios conflitos que parecem não enxergar o terror vivido pela população e pelo entorno que nada têm a ver com os negócios deles O conflito entre Batata Galinha e Zé Pequeno gerou três anos de tiroteios recorrentes mortes de familiares deles sem nenhum envolvimento com o crime cenas de barbárie que apesar da gravidade não mobilizavam as forças de segurança pública como se o problema não dissesse respeito à cidade do Rio de Janeiro Afinal os criminosos da Cidade de Deus estavam matando uns aos outros e não ameaçavam os moradores dos bairros ricos Nesse período muitas alianças foram firmadas entre bandos vindos de diferentes favelas Um dos criminosos mais importantes da história do submundo do Rio José Carlos dos Reis Encina o Escadinha que comandava as bocas de fumo no Morro do Juramento na zona norte tinha disputas em seu bairro com um bando aliado de Zé Pequeno Seguindo a lógica da guerra inimigo do meu inimigo é meu amigo Escadinha mandou reforços de armas e homens para ajudar Batata depois que a casa da família de Mané Galinha foi atacada por cerca de cinquenta homens do bando de Zé Pequeno Nos anos seguintes essa rede de apoio horizontal entre bandos de favelas foi sendo organizada por chefes de comandos articulados em presídios que estabeleceriam a dinâ mica dos conflitos do Rio a partir das facções Durante a década de 1980 a Falange Vermelha designada assim pelos jornais ainda era um projeto em construção tentando superar disputas entre quadrilhas na busca de unificar o crime O presídio de Ilha Grande onde o grupo foi criado em 1979 era conhecido como Sucursal do Inferno Caldeirão do Diabo ou ainda a Brasília do crime A história do nascimento da Falange em suas dependências é bem conhecida no jornalismo policial e em trabalhos acadêmicos apesar de haver mais de uma versão sobre sua origem A iniciativa de organizar um grupo de autodefesa dos internos numa penitenciária bastante violenta ocorreu num momento em que presos políticos e criminosos comuns conviviam nos presídios Apesar desse convívio os presos políticos ligados a organizações da luta armada como MR8 e Aliança Nacional Libertadora que estavam em Ilha Grande na primeira metade dos anos 1970 eram vistos como elitistas pelos presos comuns Um dos criadores da Falange Vermelha William da Silva Lima o Professor contou em seu livro 400 contra 1 que a união dos presos foi articulada por ladrões de banco sem filiação partidária presos comuns enquadrados na Lei de Segurança Nacional Eram cerca de noventa pessoas isoladas privadas de banho de sol e convívio Chamados de Turma da LSN ou Falange LSN eles se juntaram e propuseram a união dos presos do grupo para negociar com a direção de Ilha Grande a garantia de direitos e benefícios Isso em meados dos anos 1970 Com o passar dos anos conforme a direção de Ilha Grande flexibilizou o convívio da Falange LSN com os demais presos o grupo passou a se articular para defender outros detentos dos assaltos e estupros recorrentes promovidos por integrantes da Falange Jacaré e de outras quadrilhas que aterrorizavam o presídio A ideia era que o isolamento e o pensamento individualista fragilizavam a luta dos presos ao passo que unidos se fortaleceriam contra a opressão e poderiam estabelecer regras mais justas para o convívio em Ilha Grande Essas propostas ajudaram a produzir o amálgama entre homens até então sem um propósito para o crime Preso sem direção vira barata tonta dizia um dos integrantes do bando Para fortalecer financeiramente o grupo os presos da LSN criaram a cantina da Ilha Grande e com o dinheiro bancavam a comida dos presos que não recebiam visitas Também estabeleceram uma caixinha para bancar a organização A ajuda vinha de fora principalmente dos assaltos a banco praticados por aqueles que saíam ou fugiam do presídio A Falange ampliaria a visão de mundo de seus participantes como se seus crimes não devessem ter apenas objetivos individuais e egoístas mas coletivos Ao longo de 1979 alguns confrontos com os rivais da Falange Jacaré chamaram a atenção da imprensa que apelidou o grupo organizado de Falange Vermelha nome com mais apelo midiático naquele contexto de luta armada Pelo menos essa é a versão de Professor Os presos se apropriaram do nome mais tarde trocado para Comando Vermelho Numa primeira demonstração de força do grupo em agosto de 1979 integrantes da Falange Vermelha mataram 21 rivais e integrantes da Falange Jacaré e assumiram o controle de Ilha Grande 2 no episódio conhecido pelos presos como Noite de São Bartolomeu em referência ao massacre de protestantes mortos por católicos ocorrido na França em 1572 Assumiram também os negócios da quadrilha derrotada dentro do presídio como a venda de droga Entre os mortos da chacina ocorrida no presídio lembra Ailton Batata estava Jorge Devagar o companheiro de Zé Pequeno que durante o tempo em que esteve em Ilha Grande ingressou na quadrilha de Jacaré O domínio seguiu com pequenos contratempos A Falange Vermelha não conseguia seduzir a todos e criar uma hegemonia no crime e começaram as dissidências Seus integrantes foram acusados de usar a caixinha dos assaltos para fins particulares e de defender os próprios interesses em vez de lutarem pela coletividade Foi então que os presidiários da terceira galeria de Ilha Grande formada por presos comuns usaram esses deslizes como justificativa para criarem o Terceiro Comando3 Do lado de fora nas favelas e comunidades a ideologia e o modelo da Falange Vermelha começavam ainda que lentamente a influenciar a gestão do crime No início os assaltos a banco eram a modalidade preferida para construir o capital da organização voltada ao suporte dos presos Como esses roubos exigiam planejamento e trabalho em equipe gozavam de um status superior entre os ladrões se comparados aos roubos simples Um assalto bemfeito exigia estudo da rotina do banco e de seus funcionários além de participantes atuando em três frentes de ação Os linhas de frente responsáveis por render o caixa os seguranças e recolher o dinheiro ingressavam no banco com armas curtas Do lado de fora com armamentos pesados que já incluíam fuzis ficava o grupo para evitar a abordagem policial Com o dinheiro na mão esses dois grupos iam embora de carro e se encontravam com a equipe do transbordo que distribuía o grupo em outros carros com placas quentes para diminuir as suspeitas Esse esquema foi revelado em 1981 por Cesar Luiz de Araújo Paz motorista de um dos grupos de assalto da Falange No depoimento ele contou que as armas a munição e o transporte de lancha para resgatar presos de Ilha Grande eram recursos oferecidos por um sargento do Exército Araújo integrava o grupo do criminoso mais procurado do Rio de Janeiro naqueles dias o homem que se tornaria um mito José Jorge Saldanha que recebeu da imprensa o apelido de Zé Bigode era considerado em 1981 o principal chefe da Falange Vermelha em liberdade Ele havia fugido de Ilha Grande no ano anterior enfrentando ondas enormes durante a noite em uma pequena balsa junto com outro fundador do grupo Apolinário de Souza o Nanai filho de pastor que pregava a união entre os detentos com uma Bíblia na mão Zé Bigode articulou um grupo de assalto a bancos para mandar dinheiro a colegas presos mas acabou descoberto pela polícia Quando Zé Bigode foi localizado na Ilha do Governador um efetivo estimado em quatrocentos homens foi mandado ao local Policiais com holofotes cães picaretas espalharamse por parapeitos e telhados num evento transmitido pelo rádio e pela televisão O cerco começou na madrugada do dia 3 de abril de 1981 e se estendeu ao longo do dia A imprensa noticiou que 150 bombas de gás lacrimogênio foram lançadas no interior do prédio onde estava Zé Bigode quinze granadas e uma incontável quantidade de tiro que destruíram sete apartamentos Zé Bigode não se rendeu Foi retirado morto no amanhecer do dia 4 Essa história deu origem ao título do livro de Professor 400 contra 1 e ajudou a cultivar a mística do grupo nos anos seguintes A forte pressão exercida pela polícia contra assaltos a bancos e o capital acumulado pelo grupo empurraram alguns integrantes da Falange Vermelha para outro ramo o do varejo do tráfico de drogas ainda pouco combatido na ocasião e permeável ao convívio cotidiano com a comunidade onde atuavam Os morros seguiam sendo palco das disputas entre pequenos bandos e quadrilhas e a nova ideologia de união pretendia acabar com esses conflitos Na segunda metade da década de 1980 alguns nomes já despontavam como traficantes competentes Escadinha do Morro do Juramento foi um dos precursores Ele dizia ter começado no crime depois de levar uma surra da polícia e ser humilhado na frente da namorada que além disso foi abusada pelos policiais Passou a trabalhar para um traficante conhecido como Grande e herdou as bocas do Juramento depois da prisão do traficante Escadinha costurava alianças e se aproximava de criminosos de outros morros desde antes da fundação da Falange como fez quando apoiou Ailton Batata contra Zé Pequeno Também sempre apostou no assistencialismo para ter o apoio da população local Um de seus principais aliados era Paulo Roberto de Moura Lima o MeioQuilo que organizou a venda de drogas do Jacarezinho sob a bandeira do grupo Escadinha e MeioQuilo estabeleceram o modelo vertical nos territórios estruturado em torno da figura imperial dos donos de morro Naquele tempo a favela do Jacarezinho era considerada pelos criminosos o QG da Falange como lembra Marcio Santos Nepomuceno o Marcinho VP chefe do Comando Vermelho desde meados dos anos 1990 em seu livro de memórias4 Outro nome importante na formação desse tipo de estrutura foi Denir Leandro da Silva o Dênis da Rocinha que se destacou pelos bons contatos com matutos e atacadistas de droga Reproduzindo o modelo assistencialista dos bicheiros eles fizeram escola Distribuíam cestas básicas e dinheiro para festas promoviam bailes funks garantiam acesso a remédios e outras benfeitorias Também eram eles que proibiam os roubos no bairro fazendo o papel de polícia MeioQuilo impunha respeito aos demais criminosos Ladrões de banco assaltantes e traficantes costumavam buscar sua ajuda para se esconder da polícia em Jacarezinho quando a situação apertava5 A fama de MeioQuilo nasceu por sua ousadia e pela disposição em ajudar parceiros principalmente na realização de fugas espetaculares Em 31 de dezembro de 1985 MeioQuilo encarregou José Carlos Gregório o Gordo outro fundador da Falange de resgatar seu amigo Escadinha que desde 1983 estava no presídio de Ilha Grande Em vez de balsa lancha ou barco dessa vez o resgate ocorreria num helicóptero Naquele dia Escadinha recebia a visita de uma de suas mulheres e estava numa casa do lado de fora do muro Quando o helicóptero pousou bastou ele correr para o aparelho junto com a esposa Os guardas também demoraram para dar o alerta sobre a fuga Ela acabou marcando época A omissão dos guardas e dos agentes penitenciários que não tomaram nenhuma atitude ao ver uma aeronave não identificada sobrevoando o presídio por mais de duas horas também chamou a atenção Os criminosos sabiam que em vez do confronto o mais fácil era comprar as autoridades Em agosto de 1987 quando MeioQuilo estava detido no presídio Milton Dias Moreira no complexo da rua Frei Caneca em pleno centro do Rio ele tentou repetir a façanha e escapar junto com seus amigos mais próximos MeioQuilo Escadinha que havia sido preso três meses depois da fuga ao ser baleado em um tiroteio no Morro do Juramento e Gordo aguardavam no telhado do presídio quando um helicóptero foi descendo para resgatálos Policiais no entanto dispararam contra a aeronave que começou a subir para abortar o resgate MeioQuilo não desistiu Agarrouse aos esquis de pouso do helicóptero que subiu com o traficante pendurado ali antes de bater na caixa dágua do presídio e explodir no solo matando traficante e piloto Alguns entrevistados me disseram que MeioQuilo saltou antes da queda do aparelho e sobreviveu mas que apanhou da polícia até morrer Qualquer que seja a versão verdadeira MeioQuilo foi outro com fama de herói Mais de 3 mil pessoas compareceram a seu enterro e cinquenta coroas de flores foram enviadas por lideranças do crime e traficantes de diversas favelas do Rio de Janeiro Histórias como a dele fortaleciam a mística e divulgavam os ideais de resistência pregados pelo grupo Persistia o desejo de lançar um projeto coletivo que organizasse o crime Em 1993 essa ideia inspirou os presos de São Paulo a criarem o Primeiro Comando da Capital o PCC em cujo estatuto está reproduzido o lema original do CV de paz justiça e liberdade No Rio contudo as rivalidades históricas entre os bandos produziram uma nova configuração de conflito com redes aliadas defendendo dois grupos CV e TC A ideologia e o modelo de negócios eram praticamente os mesmos A diferença decorria apenas de rivalidades territoriais que se estendiam para as vizinhanças nas respectivas redes de alianças entre cada grupo Na definição do sociólogo Caio Ferraz o que existia era compadrio que formava uma teia baseada em relacionamentos pessoais em que o amigo do meu amigo também é meu amigo enquanto o amigo do meu inimigo é meu inimigo6 A definição de redes como essas começava a se tornar parte da cultura dos morros Em alguns bairros a rivalidade impedia que os moradores até mesmo usassem cores de facções inimigas vermelho no caso do Comando e verde no caso do Terceiro Esses conflitos causavam pâ nico quando chegavam aos bairros da zona sul Um desses transbordamentos ocorreu no Morro Dona Marta em Botafogo em 1987 Na ocasião Zacarias Gonçalves Neto o Zaca um exPM que liderava uma das quadrilhas locais se juntou ao chefe de outro bando Emílson dos Santos Fumero o Cabeludo para expulsar os integrantes da Família Lino donos de bocas de fumo que vendiam maconha A cocaína era fornecida pelo taxista e traficante Pedrinho Ribeiro que apoiou a ação conjunta dos dois bandos contra os Lino Depois da vitória a calmaria durou pouco Passado um ano da expulsão dos Lino foi a vez de Cabeludo e Zaca começarem a brigar iniciando uma disputa com tiroteios de balas traçantes que aterrorizaram a zona sul do Rio Fuzis calibre 762 e AR15 foram usados no conflito A Rocinha a maior favela brasileira incrustada entre prédios de superricos em São Conrado se tornou outro foco de tensão com o asfalto quando Dênis da Rocinha o chefe do morro foi preso em 1987 Um mês depois da prisão moradores da Rocinha desceram para protestar contra ela e fecharam o túnel Dois Irmãos bloqueando a passagem da zona sul para a oeste O protesto tinha sido ordenado de dentro da cadeia pelo próprio Dênis que queria evitar sua transferência para Bangu 1 presídio de segurança máxima que seria inaugurado no ano seguinte A polícia dispersou o grupo com gás e balas de borracha mas houve reação e os manifestantes apedrejaram os carros que passavam Quando sustos como esse atingiam os bairros da zona sul a reação das instituições e da imprensa era mais forte como se um limite tivesse sido ultrapassado Essa linha foi definitivamente transposta em 1992 por centenas de jovens vindos de favelas e dos subúrbios da zona norte do Rio protagonistas dos famigerados arrastões O estigma sofrido pelos jovens negros e pobres na zona sul parecia servir de combustível para a revanche dos garotos Nas praias lotadas do Arpoador e de Ipanema eles iniciavam o correcorre seguido de brigas furtos espancamentos e pâ nico entre os banhistas que deixavam as areias em desespero As cenas gravadas e mostradas no Fantástico e no Jornal Nacional provocaram indignação Um ritual sagrado do carioca a praia nos domingos de sol estava sendo profanado Tinha sido inaugurada a Linha 127 que corta toda a Maré O ônibus passava dentro da favela Já tinha facção na Maré mas não tinha guerra A Nova Holanda uma das favelas do Complexo era considerada neutra ainda não tinha a bandeira do CV recorda um ex traficante da Maré que participou da histórica confusão nas areias quando era adolescente Ele e outros dois extraficantes que atuaram na cena criminal do Rio me contaram suas histórias ao redor de uma mesa de madeira em um edifício na Lapa no centro Dois deles já tinham sido inimigos no Complexo da Maré um atuando pelo Comando Vermelho e o outro pelo Terceiro Comando e depois pelo Terceiro Comando dos Amigos O outro entrevistado tinha sido dono de bocas de fumo em Padre Miguel na zona oeste mas cresceu na carreira quando se tornou matuto e passou a vender para diversos morros do CV Quando chegamos na praia nossa galera deu de cara com a turma do Bola e do Renato os caras do Morro do Adeus A rixa já tinha começado no baile funk A porrada comeu O moleque que é ladrão aproveita Tu tá na praia vê aquelas cem pessoas correndo Os caras começam a catar chinelo carteira boné que vai ficando para trás Não foi premeditado O lance começou com uma briga da galera mas virou arrastão Briga da galera da Maré com Complexo Adeus Fazendinha Começou lá atrás no baile funk Era tudo amigo apesar das brigas Só que depois ia virar rixa de sangue Os próprios empreendedores do tráfico contudo já percebiam que eles deveriam encontrar formas e soluções para administrar essa desordem porque a resposta do Estado sempre vinha forte matando para dar lições a todos que vivessem em área de tráfico Foi o que ocorreu em Acari em 1990 quando onze moradores do bairro foram assassinados por policiais do 9o Batalhão Os agentes formavam um grupo de extermínio apelidado de Cavalos Corredores cujo oficialchefe coronel Emir Larangeira seria eleito deputado em 1992 Em julho de 1993 foi a vez de oito jovens seis com menos de dezoito anos que dormiam em frente à igreja da Candelária ser assassinados Um deles teria jogado uma pedra no carro da polícia dias antes Um mês depois os Cavalos Corredores voltariam para matar 21 moradores de Vigário Geral sete deles evangélicos que pertenciam a uma mesma família morreram segurando a Bíblia e seus documentos de trabalho numa tentativa de convencer os policiais que não mereciam o massacre A chacina foi uma vingança pelo assassinato de quatro policiais por traficantes do bairro comandados por Flávio Pires da Silva o Flávio Negão Do ponto de vista econômico e político era mais vantajoso para o tráfico evitar confrontos que assustassem a cidade e os prejudicassem O negócio das drogas dava cada vez mais dinheiro e o mercado seguia promissor pedindo racionalidade e um comando central nos territórios Os anos 1990 trouxeram essa mudança Os territórios neutros praticamente deixaram de existir e todos tiveram que tomar partido Os donos das bocas da favela Nova Holanda no Complexo da Maré assumiram a bandeira do Comando Vermelho em 1994 com a morte de Jorge Ferreira de Almeida o Jorge Negão Seu sucessor Mauro Reis Castellano o Gigante tornouse o novo chefe do pedaço abandonando a neutralidade e aproveitando a nova aliança que lhe garantia acesso a armamentos pesados e a soldados aliados A quadrilha vizinha da Baixa do Sapateiro optou por seu antagonista Terceiro Comando estabelecendo uma das principais rivalidades do Rio de Janeiro Durante os três primeiros anos a ligação familiar e de amizade entre alguns integrantes das duas facções na Maré manteve a situação equilibrada Mas as constantes incursões da polícia e as mudanças de chefia provocaram conflitos intensos entre 1999 e 2002 apavorando moradores e motoristas que transitavam pela Linha Vermelha surpreendidos por tiroteios de fuzis que muitas vezes atravessavam a lataria dos carros Na verdade nunca houve muita diferença de ideologia entre CV e Terceiro A maior delas no meu ponto de vista é de que o Terceiro dava mais liberdade de decisão para os chefes nas comunidades No CV não tinha essa autonomia precisava ouvir a opinião do Marcinho VP o chefe era mais centralizado explicou meu interlocutor que atuou no Terceiro A tentativa de criar um comando hegemônico capaz de unificar o crime no Rio objetivo alcançado pelo PCC em São Paulo no decorrer dos anos 2000 intensificou conflitos e gerou uma corrida armamentista nos morros da cidade principalmente depois de meados dos anos 1990 Boa parte dos lucros no comércio varejista de drogas e nos assaltos foi investida na compra de fuzis munição e rede de apoio O novo modelo buscou transformar as favelas em pequenas fortalezas com dezenas ou mesmo centenas de fuzis aprofundando o isolamento da população das comunidades sujeitas ao poder das tiranias armadas Seria uma espécie de guerra de tronos no estilo da série premiada com diversos reinos autônomos encerrados em si mesmos e em conflitos com outros reinos fragilizandose uns aos outros numa batalha que só faz sentido para os homens que dela participam O paralelo valia também para a enorme quantidade de reis mortos e depostos ao longo das lutas A evolução dos lucros no comércio de drogas no Rio dependeu do desbravamento das fronteiras da América do Sul e da aproximação com as fontes atacadistas dos grandes cartéis de droga Os primeiros passos em direção a esse novo estágio foram dados com ajuda decisiva da quadrilha de Antônio José Nicolau o Toninho Turco que tinha em seus quadros diversos integrantes das polícias do Rio de Janeiro Parte do grupo foi presa pela Polícia Federal em 1988 Entre os presos havia três praças um tenente e um capitão da Polícia Militar e dois detetives da Polícia Civil No livro CV PCC A irmandade do crime Carlos Amorim escreve que a quadrilha tinha setenta policiais e expoliciais Vinha deles a munição para as armas de guerra que protegiam o tráfico A quadrilha também produzia munições Toninho Turco acabou morto na operação policial que deveria prendêlo Na época seus familiares disseram que a morte dele foi uma queima de arquivo e que ele levou para o túmulo muitos segredos sobre o envolvimento de autoridades Amigo de bicheiros e ligado a políticos influentes Toninho Turco começou como fiscal de renda Nos 1970 e 1980 aproveitou o cargo para entrar no contrabando de cigarros bebidas e eletrônicos vindos da fronteira Fez bons contatos e desbravou rotas que permitiram a ele e a seu grupo trazer para o Brasil grande quantidade de drogas Seu envolvimento aumentou depois de ser nomeado detetive da delegacia de Roubos e Automóveis no Rio acumulando dois empregos oficiais A estimativa era de que seu grupo abastecia metade de todo o varejo dos morros cariocas girando cerca de 1 milhão de dólares por dia valor aparentemente superestimado Eles buscavam a mercadoria com seus contatos em Foz do Iguaçu Ponta Porã Manaus e Campo Grande No Rio de Janeiro Turco fornecia para mais de vinte comunidades como Jacarezinho Juramento Dona Marta Mangueira Providência Salgueiro Borel Parada de Lucas entre outras As bandeiras das facções ainda não eram determinantes Dois tenentes da PM ligados à quadrilha eram apontados pela PF como possíveis sucessores de seus negócios Num relatório emitido pelo Centro de Informações do Exército investigadores identificaram Turco como homem de confiança do jogo do bicho permitindo a esses empresários da contravenção a possibilidade de terem influência mesmo que indireta sobre o negócio criminoso que mais crescia no mundo O jogo não queria se misturar com as drogas para não manchar sua imagem Dilema também vivido pelas máfias de todo o planeta Um dos patronos do bicho Castor de Andrade já havia se manifestado sobre o motivo de não entrar no ramo decisão que se provaria acertada já que o tráfico se tornaria o mais odiado rival das forças policiais e das autoridades Bicho é coisa querida amada pelo povo Tóxico é odiado Por isso a gente não deve misturar7 A estratégia da contravenção era criar uma parceria bemsucedida com a polícia Funcionaria da seguinte forma os traficantes continuavam sob rédeas curtas pintados como o principal inimigo da cidade enquanto os policiais lucravam com o combate ao tráfico operações de guerra extorsões e venda de armas munições e drogas garantindo ao mesmo tempo que os traficantes não invadissem o interesse dos patronos da contravenção Os bicheiros além disso não precisavam brigar diretamente com os traficantes com quem também se relacionavam negociando a colocação de máquinas de caçaníquel em territórios dominados pelas facções O espaço deixado pela morte de Toninho Turco e pela prisão de sua quadrilha foi preenchido pelos novos empreendedores criminais dos morros que já acumulavam experiência e queriam cortar a dependência com quadrilhas de matutos muitas tinham participação de policiais Mesmo com a parceria entre policiais e bicheiros o controle sobre o tráfico não era fácil de ser mantido Os varejistas perceberam que chegar às fronteiras era estratégico para reduzir intermediários gerar ganhos em escala e aumentar lucros além de garantir mais autonomia nos negócios Um dos primeiros a se aventurar nessa trilha saindo diretamente dos morros foi Ernaldo Pinto Medeiros o Uê que se tornou fundamental na dinâ mica dos conflitos violentos que viriam nos anos 1990 Uê entrou no crime ainda adolescente no começo dos anos 1980 seguindo os caminhos do pai e de seu irmão Egnaldo cinco anos mais velho Antes de completar dezoito anos no Morro do Adeus vizinho ao Complexo do Alemão Uê já havia sido apreendido duas vezes Sua ascensão ocorreu pelas mãos de Escadinha a quem chamava de Paizão Escadinha o homem que havia fugido de Ilha Grande em um helicóptero foi um dos primeiros presos mandados para o presídio de segurança máxima o Bangu 1 em 1988 Diante do isolamento Escadinha mandou Uê administrar suas bocas de fumo Ele tinha apenas dezenove anos Apadrinhado por um dos mitos da Falange o jovem administrador tornouse responsável por cinco morros na zona norte Adeus Juramento ParaPedro Jorge Turco e Faz Quem Quer Em diversos sentidos podia ser considerado um gestor estratégico dando passos que o transformariam no principal traficante do Rio de Janeiro na primeira metade dos anos 1990 Uê ampliou sua rede de fornecedores e multiplicou a escala da compra de mercadorias reduzindo o preço no varejo e aumentando ganhos8 Chegou a montar um consórcio com os parceiros Jorge Luís de Acari e Celsinho da Vila Vintém para comprar armas e drogas em sociedade nas fronteiras decisão que mostrava sua flexibilidade para negociar com gente de fora do CV Uê possuía fornecedores em Rondônia e no Paraguai onde se aproximou da família Morel uma das principais fornecedoras de maconha do país e tinha bom trâ nsito na Bolívia e na Colômbia O acesso a fornecedores primários o levou a ter planos mais ambiciosos unir a cúpula do tráfico de drogas no Rio seguindo os passos dos bicheiros Apesar de investir em armamentos pesados sabia dos custos da guerra para os negócios inclusive com as autoridades Uê era famoso pelos arregos constantes que pagava à polícia Também recebia visitas periódicas de policiais mineiros Sua disposição para pagar propinas à polícia e propensão para a diplomacia lhe garantiam informações privilegiadas que o mantiveram em liberdade no período em que ascendeu na carreira de traficante Em 1994 com bom capital acumulado bons contatos atacadistas e o respaldo de nomes históricos da facção Uê tentou unificar o crime e criar um colegiado que encerrasse as disputas pelas bocas de fumo Antes contudo seria preciso eliminar os desafetos e as resistências mais graúdas inclusive dentro do próprio Comando Vermelho O resultado foi desastroso Um dos alvos do ataque foi o vizinho Orlando da Conceição o Orlando Jogador do Complexo do Alemão Jogador tinha conseguido diminuir a rivalidade entre os pequenos grupos das quinze comunidades se associando ao Comando Vermelho Seguindo procedimentos de outros traficantes ele usava práticas assistencialistas para ganhar apoio da comunidade e exercia o papel da justiça punindo os que desrespeitassem a moralidade local de acordo com os critérios de seu bando claro Ajudava aliados em disputas em outros territórios como fez no Dona Marta e passou a comandar dezenas de bocas de fumo nas diversas comunidades do Complexo ganhando ascendência na facção e juntando dinheiro para se armar Jogador poderia ser um aliado a somar com a cúpula mas Uê tinha problemas pessoais com o colega Em 1989 seu irmão Egnaldo fora vítima de um disparo na coluna que o deixou paraplégico Uê afirmava que Jogador havia sido o autor do crime Outros sustentam que Jogador era ambicioso demais teria se apropriado do dinheiro de um assalto a banco e tinha planos de ascender à liderança do CV Para muitos contudo o que movia Uê era ganâ ncia Ele estava de olho naquele mercado estratégico O ataque do grupo de Uê contra Jogador contou com a boafé da vítima Segundo uma das versões do crime Uê simulou o próprio sequestro Pediu socorro a Jogador e solicitou ao colega que intermediasse o pagamento de um resgate de 60 mil reais supostamente cobrado por policiais do Bope Jogador marcou o ponto de encontro para a entrega do malote Quando ele e seus doze homens chegaram para pagar o falso arrego Uê o esperava com um bonde de cerca de cem aliados que abriram fogo contra o grupo Jogador morreu com tiros de AK 47 Os corpos foram espalhados por pontos diferentes da cidade como se os matadores passassem com aquilo um recado Uê e seu grupo assumiram a gestão das bocas do morro dando início ao racha entre as facções do Rio A traição forçou os grupos a se posicionar De um lado Uê e seus aliados entre os quais nomes históricos do CV como Escadinha e Gordo Do outro a fração leal a Jogador que durante um breve período constituiu o Comando Vermelho Jovem A tensão que se instalou depois disso pode ser medida com base nas taxas de homicídios O ano seguinte à chacina de Jogador 1995 registrou o recorde absoluto nos quarenta anos de violência no Rio com a região metropolitana apresentando mais de setenta casos por 100 mil habitantes Os dez anos entre 1994 e 2003 foram os mais violentos da história da região com taxas acima de cinquenta casos por 100 mil habitantes No Alemão a principal reação contra a traição a Jogador foi articulada por uma jovem liderança ainda com dezoito anos Marcio Nepomuceno o Marcinho VP que se tornaria o mais longevo chefe do CV apesar de estar preso desde 1996 Ele cresceu graças à parceria com um novo matuto da mesma geração vindo de uma pequena favela de Duque de Caxias que seguiu viagem para desbravar as fronteiras e ocupar os espaços deixados pela prisão de Uê Luiz Fernando da Costa o Fernandinho BeiraMar chegou ao Paraguai e à Colômbia e se tornou fundamental para abastecer de armas e mercadorias o comércio de drogas nos morros que seria reorganizado por Marcinho VP A velha guarda da Falange como Escadinha e Gordo que tinham apoiado Uê no golpe contra Jogador fundaram na prisão a Amigos dos Amigos ADA junto com Celsinho da Vila Vintém também egresso do CV Depois o grupo se aliou ao Terceiro Comando para formar o Terceiro Comando dos Amigos Em 2002 um novo racha entre ADA e TC deu origem ao Terceiro Comando Puro O Complexo do Alemão tornouse o núcleo da nova geração do Comando Vermelho Marcinho VP costurou a rede de apoio nas demais favelas No Paraguai Beira Mar e suas fontes da fronteira abasteciam a rede com armas e drogas Fuzis Sig Sauer eram importados da Suíça por uma loja de caça e pesca em Assunção depois seguiam para os morros Mercadorias vinham também dos Estados Unidos e de países em guerra e com economias decadentes Nos anos 2000 BeiraMar chegou às selvas colombianas e passou a negociar diretamente com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia Farc Policiais e militares ajudavam a aquecer o mercado com armas e munição Modelos como Colt AR15 AK 47 M16 com miras a laser tripés carregadores potentes sem contar as pistolas passariam a ser a régua que media o poder de cada chefe de morro Bigode nosso entrevistado do capítulo anterior ajudou a abastecer o Terceiro Comando e a ADA os concorrentes do Comando Vermelho Os competidores na corrida armamentista aceleraram seus investimentos e entraram no mercado de 30 e 50 para derrubar aeronaves Mais uma vez não tinha como dar certo Os donos dos morros nessa alucinada corrida armamentista tornaram o Rio de Janeiro a cidade dos fuzis e das pistolas Ironicamente quanto mais pesados ficavam mais vulneráveis se tornavam Em vez de se concentrarem em seus negócios eles perdiam tempo e dinheiro se atacando e exterminando uns aos outros sem conseguir escapar dessa engrenagem autodestrutiva Também contribuíam para justificar as operações policiais que se tornaram outro componente desse mecanismo de violência A polícia soube tirar proveito desse processo suicida e fortaleceu seu modelo de negócio Primeiro ganhando com os arregos a mineração e os espólios de guerra Depois disputando o controle dos territórios oferecendo proteção e prometendo ordem cobrando e ganhando em diversas frentes por meio das milícias Além de se beneficiar com a guerra dos tronos e com o teatro das operações a polícia seguiu próxima dos bicheiros elementos fundamentais para garantir a rede de cobertura política nos postos mais elevados da segurança pública Os bicheiros costumam ser esquecidos na equação do poder criminal mas foram decisivos para o novo equilíbrio que se formaria nesse submundo Mesmo longe dos holofotes cujo foco está voltado para os confrontos nas favelas entre traficantes e policiais os empresários da contravenção seguiram na ativa e assumiram papel importante na sustentação das milícias aproveitando o domínio do território exercido pelos paramilitares para expandir sua capilaridade nesses pontos A influência dos bicheiros dependia da capacidade de se renovarem Apontadores e cartelas de papel estavam defasados Surgiram então as maquininhas de caçaníquel que se espalharam pelo Brasil e por países da América do Sul onde os jogos são regulamentados O investimento em maquinário também ocorrido na década de 1990 veio junto com um golpe de sorte Em 1992 Lillo Lauricella um emissário do mafioso italiano Totò Riina veio ao Brasil para armar um esquema de lavagem de dinheiro Lillo se aproximou dos bicheiros da Liga das Escolas de Samba do Rio e forneceu a eles 35 mil máquinas de caçaníqueis um investimento de 10 milhões de dólares Os bicheiros pagavam ao italiano o aluguel dos equipamentos e faturavam com as pequenas apostas nos bares e casas de jogos Nesse período contudo Lillo se tornou colaborador da polícia italiana na operação Mãos Limpas que havia começado em 1992 na Itália e vinha abalando a estrutura do crime e da política no país décadas depois serviria de modelo para a operação Lava Jato no Brasil Com a pecha de delator Lillo foi assassinado em 1997 deixando uma herança milionária nas mãos dos bicheiros do Rio que puderam espalhar essas máquinas por bares e bingos ampliando tentáculos para outros estados como Bahia Espírito Santo Belém Foz do Iguaçu São Paulo9 Os apontadores foram substituídos por nova tecnologia que se espalhou sob as vistas grossas dos distritos policiais cujos laços com a contravenção eram cada vez mais firmes Os territórios das milícias ganharam caçaníqueis Era esse o cenário do crime no Rio de Janeiro no início dos anos 2000 quando o modelo das milícias avançava pelos territórios Facções de drogas se destruindo com armamentos pesados e disputas por mercado e poder contravenção forte e lucrativa corporações militares e civis fornecendo armas e munição para o tráfico minerando criminosos cobrando arregos extorquindo e posando de heróis para a opinião pública e ainda ofereciam serviços especializados de assassinato por encomenda Ou seja um ambiente favorável para que o novo modelo de negócios desabrochasse Entre 2002 e 2007 os paramilitares avançaram Em vez de ganharem dinheiro com os criminosos os milicianos criaram uma forma diferente de governar as comunidades e favelas prometendo ordem em troca de dinheiro Tornaramse personagens poderosos da acirrada disputa pelo trono nos morros Os novos tiranos dos bairros pobres contudo em vez de bermudas chinelos e camisetas vestiam fardas Houve no entanto um hiato dentro desse percurso No ambiente conflagrado dos anos 2000 com as milícias em plena ascensão o governador Sérgio Cabral Filho assumiu o Executivo em janeiro de 2007 No Rio sempre houve espaço para o que já era complicado se tornar insuportavelmente complexo Cabral definiu a segurança pública como prioridade número um de sua administração De início seu governo de fato parecia ter descoberto o caminho para pacificar o estado até que tudo desandou O alvo era o Complexo do Alemão conjunto de comunidades que desde o assassinato de Tim Lopes havia se consolidado no imaginário da imprensa da cidade e das autoridades como o quartel general do Comando Vermelho Na primeira operação de Cabral dois meses depois de assumir cem homens do Bope e do Core deixaram um rastro de seis mortos Entre eles um morador atingido no rosto por uma bala perdida quando ia a um orelhão telefonar a seu chefe para avisar que faltaria ao trabalho naquele dia O governador disse estar atrás de um paiol de armas no local e acusou a omissão do governo anterior que tinha ficado mais de dois anos sem realizar operações ali Em maio as operações no Complexo do Alemão se tornaram quase diárias Foram 42 ataques sucessivos que mataram dezessete pessoas e deixaram mais de sessenta feridas A imagem das favelas era vendida para a opinião pública como o de um lugar impenetrável onde havia traficantes snipers centenas de barreiras nas ruas impedindo o acesso ao seu interior e vielas estreitas e matagais nos cumes dos morros que se tornavam esconderijos quatro caveirões já haviam sido danificados ao tentarem ingressar na área Os jornalistas sentiam a tensão e precisavam fazer a cobertura como se acompanhassem uma guerra ao lado das tropas policiais usando capacetes e coletes à prova de bala e com balas assobiando em seus ouvidos Essa guerra constante e sem sentido contra um bairro com mais de 70 mil habitantes começou a provocar discussões sobre políticas alternativas para a segurança pública Organizações de direitos humanos e lideranças de moradores passaram a denunciar nos jornais os abusos das medidas e o drama cotidiano de quem vivia no local Em meio a esse debate em maio de 2007 entrevistei um desses críticos o coordenador do AfroReggae José Júnior na bancada do programa Roda Viva sobre os conflitos no Rio O assunto seguia em alta e rendendo manchetes Em junho a cúpula de Segurança do estado decidiu mudar de estratégia A ideia era sufocar o comércio e derrubar a venda de drogas com o fechamento das entradas da favela Pretendiase criar uma alternativa ao modelo do confronto e levar investimentos sociais ao bairro O governo federal prometeu o apoio de 450 milhões de reais através do Programa de Aceleração e Crescimento PAC mas esse investimento só seria liberado se o tráfico de drogas fosse eliminado Os conflitos ininterruptos desde maio preparavam o ambiente para uma grande ação No dia 27 de junho cerca de 1350 homens se envolveram em uma megaoperação de ocupação dos morros O resultado foi trágico Dezenove pessoas morreram uma das maiores chacinas ocorridas em operações policiais No dia seguinte ao massacre viajei ao Rio Minha ideia era tentar escrever uma reportagem para o jornal O Estado de S Paulo e percorri ruas e vielas do Alemão para entrevistar moradores Ainda havia poucos relatos jornalísticos sobre o que tinha ocorrido Desde 2002 o recrudescimento dos conflitos os armamentos pesados das facções os controles exercidos pelos donos do morro associados à ferida ainda não cicatrizada da execução do jornalista Tim Lopes tinham levado a combativa imprensa do Rio a dar um passo atrás evitando entrar nas comunidades controladas por traficantes Havia um dilema real diante dos jornalistas como entrar se era preciso obter uma autorização do tráfico Como eu chegava de São Paulo apareci lá quase como um estrangeiro No jornal decidimos que a gravidade da situação exigia que eu entrasse no morro Pedi ajuda a José Júnior que desenvolvia um projeto social no Alemão e ele me deu o suporte para eu conversar com os moradores Ingressei no Alemão às onze da manhã e andei por cinco quilômetros durante seis horas Saí da rua da Grota e subi até o alto do Morro da Alvorada No caminho entrevistei cerca de quarenta pessoas ainda apavoradas que contaram sobre abusos violência execuções roubos ou espólios de guerra expressão que eu conheceria anos depois Ainda havia barricadas na entrada para evitar o ingresso da polícia No dia anterior casas de moradores foram arrombadas e invadidas para que a polícia disparasse das janelas e lajes a famosa troia palavra que eu também só viria a conhecer anos depois Cerca de dez policiais invadiram a casa de uma moradora Grávida ela cuidava do filho de dois anos que assustado teve uma crise de asma Entraram no quarto da avó da criança para terem uma visão privilegiada e fazer os disparos da janela Ela mostrou as balas de fuzil que haviam ficado pelo chão e que ela tinha guardado em uma lata de Nescau fiz a foto que foi parar na capa do jornal No largo do Coqueiro no alto do morro uma das poucas praças da comunidade uma igrejinha estava cravejada de tiros Na descida em direção à rua da Grota ouvi relatos de abusos O dono de um estacionamento contou que policiais desceram do caveirão e levaram uma moto que estava lá Também quebraram vidros de carros e furtaram os sons dos automóveis Espalhada pelas ruas da favela a tropa policial havia fugido ao controle dos comandos O dono de um bar contou que seu estabelecimento fora invadido pela polícia que roubou mantimentos e dinheiro Entrevistados testemunharam execuções Anos depois eu me veria de frente com Pescador policial que tinha liderado uma das tropas nessa invasão e que me contou sobre a execução de um traficante naquela operação Era como se um ciclo se fechasse O massacre teve repercussão internacional e evidenciou a necessidade de mudança de rumo das políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro Ganharam força as ideias que estão na base das Unidades Policiais Pacificadoras UPPs Em dezembro de 2008 pouco mais de um ano depois das mortes no Alemão o Morro Dona Marta foi o laboratório escolhido para iniciar a experiência A sigla ainda não existia e a medida recebeu pouca atenção da imprensa nos primeiros dias Com pouco mais de 4 mil moradores vista privilegiada do Cristo Redentor entre Botafogo e Laranjeiras a favela além das disputas violentas nos anos 1980 ficou famosa como cenário para o videoclipe de Michael Jackson em 1996 depois homenageado com uma estátua de bronze no topo da favela O diretor do clipe o cineasta Spike Lee recebeu autorização para gravar no Dona Marta do próprio chefe do tráfico Marcio Amaro de Oliveira o Marcinho VP II que garantiu a segurança dos ídolos Anos depois em 1999 a favela inspirou o documentário Notícias de uma guerra particular de João Moreira Salles e K átia Lund e o livro Abusado de Caco Barcellos Aos poucos as ocupações foram ganhando formato e estrutura de políticas públicas para serem replicadas em outros locais Dois anos depois da invasão do Complexo do Alemão em 2009 as UPPs foram implantadas na Cidade de Deus e na Favela do Batan onde no semestre anterior os jornalistas de O Dia tinham sido torturados Foram criados batalhões especiais para a ocupação do território com o objetivo de interromper o comando dos traficantes e barrar o uso ostensivo de armamentos pesados Em vez de entrar para atacar guerrear e depois sair como nas operações policiais comuns a polícia pacificadora entraria para ficar Mais importante do que acabar com a venda de drogas era proibir o uso de fuzis e o domínio territorial e político das áreas do crime Primeiro entraram os homens do Bope e da Polícia Civil depois o Batalhão de Choque para mapear o território e definir o local onde se instalariam as bases comunitárias Nas etapas seguintes de implantação e controle chegaram os soldados recémformados das UPPs com um adicional no salário e as equipes responsáveis por avaliar os resultados Só depois de dominados os territórios viriam os investimentos e benefícios sociais À medida que novos bairros e morros iam sendo ocupados a opinião pública se surpreendia A ocupação era anunciada e a data definida Na sequência em vez do teatro de guerra das operações policiais ao qual os cariocas estavam acostumados a assistir todos os dias as UPPs se instalavam sem a necessidade de um único disparo ou confrontos Por baixo do pano tinha havido uma articulação bem azeitada entre os diplomatas dos batalhões policiais locais e os criminosos com os quais eles mantinham contato para a mineração e seus arregos de praxe avisando que a medida era para valer e que daquela vez não haveria espaço para negociações nem encenações A polícia iria ocupar Os traficantes pragmáticos para não bater de frente com o Estado deixavam as comunidades a fim de aguardar que o entusiasmo das forças oficiais diminuísse ou que a chegada de um novo governo mudasse os rumos Um traficante que atuava na Cidade de Deus contou a uma pesquisadora Tinha arma pra caramba pra gente tirar daqui dono de boca para a gente tirar maior loucura Sabe como é que é polícia é bandido bandido é polícia é assim Como eles têm nossa informação daqui para lá nós temos de lá para cá também Aí nós batemos um rádio para a arregadeira policiais corruptos mandamos ir no comandante para ver se ia ter papo Aí o comandante falou Você está maluco Agora não tem mais nada não tem negociação A polícia vai ficar Pode falar para eles De tarde foi uma loucura atravessando daqui para a Penha de moto roubada casacão fuzil pistola pra caralho voando na Linha Amarela O dono da boca na tua garupa foragido pra caralho Aí perto do Natal entrou a UPP10 Um dos boatos que circularam nas comunidades ocupadas é que os olheiros e os emissários dos traficantes permaneceram ali para informar aos patrões quem estava colaborando com a polícia Quando o tráfico voltasse eles seriam punidos como traidores Foram tempos de otimismo As taxas de crimes violentos começaram a cair nos bairros com UPPs Casos de homicídio diminuíram assim como os de roubos e mortes por intervenção da polícia Crimes menos visíveis cresceram como estupros lesão corporal e desaparecimentos o que podia indicar maior confiança da população em registrar crimes antes não notificados A tendência de queda de homicídios e de letalidade policial alcançava todo o estado Depois das três primeiras unidades em 2009 ainda foram instaladas UPPs nos morros da Babilônia Chapéu Mangueira e no CantagaloPavãoPavãozinho na zona sul do Rio Paralelamente a CPI das Milícias da Assembleia Legislativa que se estendeu pelo segundo semestre de 2008 ajudou a promover centenas de prisões e parecia indicar novos caminhos Tudo levava a crer que a Liga da Justiça e a milícia de Rio das Pedras estavam desmoronando Junto com os resultados alvissareiros que vinham sendo obtidos na segurança pública em outubro de 2009 outra novidade inflou a autoestima da cidade O Rio de Janeiro foi escolhido como sede dos Jogos Olímpicos de 2016 O calendário de megaeventos com a Copa do Mundo em 2014 animou empresários do setor hoteleiro turístico gastronômico imobiliário e petrolífero que já esbanjavam otimismo desde a descoberta da camada do PréSal em 2006 Foram tempos de vacas gordas e esperança de paz Um símbolo desse momento de otimismo foi o Guia Gastronômico das favelas cariocas que listava 22 bares e restaurantes gourmets de oito comunidades com UPPs pontos que viraram atração cult para turistas descolados O passeio podia começar no Bar do David no alto do Chapéu Mangueira com uma feijoada de frutos do mar elogiada pelo New Y ork Times e terminar com uma selfie tendo ao fundo a estátua de Michael Jackson e o pôr do sol no mirante do Morro Dona Marta Os resultados positivos deixavam o Rio de Janeiro eufórico contagiando imprensa pesquisadores moradores dos morros e do asfalto esquerda e direita todos se agarravam àquela esperança de pacificação As pesquisas de opinião dentro e fora das favelas eram animadoras e as críticas feitas com cuidado para não soarem como torcida contra Também surgiam dúvidas como será que a diminuição dos homicídios cometidos pela polícia não podia estar associada ao crescimento do número de desaparecidos Difícil saber E também não havia clima para estragar a festa Em outubro de 2010 Sérgio Cabral Filho foi reeleito no primeiro turno com 66 dos votos A proposta de continuar levando forças de paz às comunidades agradava à opinião pública acostumada a descrever os conflitos do Rio como uma guerra urbana Parecia que o estado de direito chegava aos morros e que o governo finalmente conseguiria libertar a população local de seus pretensos donos Mas algo não encaixava o peso para levar adiante missão tão nobre recaía sobre a velha viciada e carcomida estrutura policial de sempre Mais oito UPPs foram instaladas em 2010 em TabajarasCabritos Providência Borel Formiga Andaraí Salgueiro Turano e Macacos Pesquisadores começaram a identificar certo critério para a escolha desses locais quase sempre concentrados em áreas turísticas da zona sul áreas de serviços comércio e turismo do centro e no cinturão da Tijuca na zona norte ao redor do estádio do Maracanã que dali a quatro anos receberia a final da Copa do Mundo O padrão se manteve em 2011 Houve apenas duas exceções na zona oeste Nenhuma das dezessete primeiras UPPs foi implantada na Baixada Fluminense ou nos bairros com as maiores taxas de homicídio Outro padrão notado quase todas as favelas ocupadas pelas unidades pacificadoras eram dominadas por traficantes ligados ao Comando Vermelho com exceção da Favela do Batan reduto das milícias Em novembro de 2010 passada a eleição pela primeira vez integrantes do tráfico haviam partido para o ataque como se para enviar ao governo a mensagem de que não tolerariam mais as UPPs no segundo mandato de Cabral Nesse teste de forças ao longo de quase uma semana mais de trinta ônibus e oitenta carros foram queimados nas ruas da cidade A resposta do governo foi pesada Era o auge da popularidade do governador do Rio e do Secretário de Segurança José Mariano Beltrame aplaudidos e apoiados em qualquer decisão que tomassem No contraataque as autoridades retomaram as operações policiais entrando em 28 favelas e deixando um rastro de 23 mortos e mais de sessenta presos Durante aquela semana Beltrame disse ter descoberto a origem da ordem para os ataques Informações do sistema penitenciário apontaram para o Complexo do Alemão e Vila Cruzeiro Era para lá que seguiam criminosos do CV depois da instalação de UPP em seus territórios levando armas e fuzis Serviços de inteligência diziam chegar a mil os traficantes presentes na região O Alemão era o bunker do tráfico conforme os jornais Começava a ganhar forma a mais cinematográfica de todas as operações policiais já vistas no Rio de Janeiro que prometia dividir a história da segurança pública em antes e depois A decisão foi tomada no dia 24 de novembro de 2010 uma quartafeira Cabral telefonou ao ministro da Defesa Nelson Jobim para pedir ajuda e este recebeu o aval do presidente Luiz Inácio Lula da Silva A Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão seriam ocupados com o apoio das Forças Armadas a primeira ação conjunta desde a redemocratização Os combates começaram perto do meiodia da quintafeira quando seis blindados do Corpo de Fuzileiros Navais modelos M113 semelhantes aos usados pelo Exército americano na Guerra do Vietnã chegaram à Vila Cruzeiro dando apoio aos caveirões do Bope e a cerca de 450 homens entre eles militares que tinham estado nas Forças de Paz do Haiti Para retardar a entrada do grupamento os traficantes haviam montado uma barricada com caminhões atravessados nas ruas que foram arrastados pelos blindados Carros eram incendiados no caminho dos tanques dando dramaticidade à cena alguns tiros foram disparados mas ao contrário do que se esperava os traficantes não resistiram Por volta das três da tarde durante um boletim ao vivo o helicóptero da Rede Globo filmou a fuga de dezenas de traficantes estimados em duzentos homens pelas matas e pela estrada de terra do Morro do Caricó que ligava a Vila Cruzeiro ao Complexo do Alemão Descalços ou de chinelos de bermudas e sem camisa pendurados nas portas dos carros alguns deles feridos aquela tropa miserável em fuga desesperada era a própria desconstrução da imagem de fortaleza impenetrável construída por tanto tempo Mas o ufanismo de militares e autoridades policiais não parou aí A chegada das tropas ao alto da Serra da Misericórdia na Vila Cruzeiro foi comparada por policiais à tomada das Colinas de Golã pelo Exército israelense na Guerra dos Seis Dias contra Síria Iraque Jordâ nia e Egito conquistase primeiro a parte mais alta do território inimigo para dar apoio à invasão que ocorrerá na parte baixa A tática de usar diversos blindados e tanques para surpreender garotos de fuzis e chinelos foi equiparada nos jornais às famosas blitzk rieg do Exército alemão durante a Segunda Guerra Mundial Todos aguardavam no entanto a chegada do Dia D quando finalmente o Complexo do Alemão cairia E esse dia foi o 28 de novembro um domingo O ultimato tinha sido dado a tempo de os traficantes se renderem Tentouse evitar um banho de sangue mas as pontes entre policiais mineiros e traficantes estavam danificadas Com a chegada dos bondes de outras favelas a situação do Alemão havia se transformado o local simbolizava a resistência o último refúgio dos exilados dos morros com unidades pacificadoras Os traficantes com seu arsenal contrabandeado do Paraguai acreditavam que podiam fazer frente às forças mobilizadas pelo Estado Na hora H contudo às vésperas da invasão ficou claro que não seria possível aguentar Na sextafeira Luciano Martiniano da Silva o Luciano Pezão um dos chefes do Alemão ligou para José Júnior do AfroReggae pedindo ajuda para uma mediação Desde setembro de 1993 quando o AfroReggae foi fundado um mês depois da chacina de Vigário Geral Júnior tinha se tornado um mediador de excelência o único capaz de transitar pelos diversos reinados e aristocracias cariocas Conversava com traficantes de todas as facções policiais caveiras autoridades políticos de esquerda e de direita com o Pezão do CV e com o vicegovernador Luiz Fernando Pezão Ao telefone Pezão o traficante disse a Júnior que queria se entregar O líder do AfroReggae resistiu bateu boca e desligou Depois de quase vinte anos atuando na diplomacia dos morros Júnior havia se desgastado com alguns desses interlocutores Ele sabia que Pezão tinha sido um dos autores de uma carta interceptada no sistema penitenciário pedindo autorização a Marcinho VP para matálo Teve receio de aceitar a mediação Pezão voltou a ligar e insistiu Depois de consultar autoridades gente do tráfico extraficantes jornalistas e amigos Júnior decidiu subir o morro no sábado véspera do ingresso das tropas para falar com Pezão Acompanhado de um pastor do presidente da associação comunitária e de outro integrante da ONG AfroReggae Júnior viu diversos fuzis e pistolas abandonados largados no chão Quando chegou ao topo onde o bonde do CV estava reunido Pezão já tinha fugido com outros traficantes Fabiano Atanásio o FB outro chefe do Comando Vermelho era a liderança que estava no local chorando com raiva da fuga dos aliados FB pensava em resistir e preservar sua fama Ele era um dos suspeitos de ter dado os tiros que derrubaram um helicóptero da polícia no ano anterior Ainda tinha explosivos para colocar nas obras dos teleféricos que davam acesso ao topo do morro Mas FB percebeu que estava sozinho Assim como os fuzis ele havia sido abandonado Restava fugir antes que as tropas entrassem No domingo às oito da manhã cerca de 2500 homens das polícias estaduais e federal e das Forças Armadas iniciaram o ingresso no morro com tanques caveirões helicópteros snipers agentes do Bope dos batalhões seguidos por ambulâ ncias vindo por diversas entradas acompanhados por jornalistas que transmitiam a ação de guerra ao vivo para todo o Brasil Não houve resistência Em quinze minutos os homens já haviam alcançado o Areal no centro do Complexo a dois quilômetros da entrada da Grota considerada uma região de difícil acesso Do outro lado do Complexo na Fazendinha entraram carros anfíbios cedidos pelos Fuzileiros Navais transportando mais policiais para dentro da favela Prisões e apreensões de drogas eram feitas ao longo do caminho entre elas a do traficante Eliseu Felício de Sousa o Zeu acusado de envolvimento no assassinato do jornalista Tim Lopes Uma hora depois a vitória estava garantida Para a comoção geral às 13h30 policiais do Bope e da Polícia Civil hastearam as bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro na estação de teleférico no alto do Alemão Transmitida pela TV a imagem do pano verde e amarelo tremulando em câ mera lenta acima de três policiais vestidos de preto entraria para a história Mas por motivos diferentes do que se imaginava no calor daqueles dias No decorrer dos anos à medida que desmoronavam os governos de Sérgio Cabral Filho e de seu sucessor Luiz Fernando Pezão a cena dos policiais no alto do Alemão se transformou no retrato de uma ilusão que muitos compraram com facilidade Entre os homens que hastearam as bandeiras estava Marcos Vieira de Souza o Marcos Falcon subtenente e presidente da Escola de Samba Portela acusado de ligação com o jogo do bicho Nas eleições de 2016 Falcon mirava o cargo de vereador mas foi assassinado O crime ficou sem solução e em 2019 esse esquecimento foi explicado Seus autores segundo depoimentos de conhecedores dessa cena criminal integravam um grupo de matadores que agiu por mais de uma década no Rio de Janeiro com a conivência da polícia ganhando muito dinheiro Já o teleférico do Alemão onde a bandeira foi hasteada seria inaugurado em julho de 2011 unindo a favela ao asfalto Em outubro de 2016 deixou de funcionar por falta de pagamento ao consórcio que operava o sistema Quatro anos depois quando este livro foi concluído ainda não havia previsão de que voltasse a funcionar Em 2011 já depois da ocupação o Complexo do Alemão tornouse alvo de policiais mineiros que buscavam apreender armas e drogas dos traficantes para revender a seus rivais Diante dessa fúria pelo espólio de guerra a região ganhou no submundo do crime o apelido jocoso de Serra Pelada As fugas rendiam dinheiro aos policiais garimpeiros como seria revelado na operação Guilhotina deflagrada em fevereiro daquele ano pela Polícia Federal Escutas teriam identificado que uma equipe da Delegacia de Combate às Drogas tinha encontrado 2 milhões de reais no alto do Alemão em uma picape de traficantes durante a famosa fuga da Vila Cruzeiro Como a trama das histórias reais do crime no Rio nunca decepciona o chefe dos mineiros flagrados pela operação era o policial Leonardo Torres conhecido como Inspetor Trovão Durante a incursão de 2007 ao Alemão a que resultou em dezenove mortos ele se tornara símbolo das forças de segurança ao se deixar fotografar na saída da operação com sua roupa camuflada fuzil em uma das mãos e charuto na outra A Guilhotina ainda apontou o envolvimento de policiais com os chefes dos morros da Rocinha comandada por Antônio Francisco Bonfim Lopes o Nem e com o Complexo de São Carlos reduto de Rogério Rios Mosqueira o Roupinol O Inspetor Trovão era um desses anjos da guarda Nem e Roupinol tinham montado uma respeitável estrutura de propinas que durante anos lhes garantiu liberdade Se por um lado as UPPs ajudavam a diminuir a exposição da população aos conflitos por outro criavam novas oportunidades para extorsão uma especialidade dos policiais A grande ficha contudo ainda demorou pelo menos dois anos para cair As UPPs seguiram em expansão até 2014 somando 38 projetos que atingiram 700 mil pessoas em 196 comunidades segundo estimativas do governo Os ecos da propalada vitória no Alemão continuaram reverberando A UPP foi instalada ali em maio de 2012 Em setembro foi a vez da Vila Cruzeiro Quinze dias depois o projeto chegou à Rocinha a maior favela brasileira considerada o segundo teste da segurança pública pósAlemão Antes de receber a UPP assim como havia acontecido no Alemão e na Vila Cruzeiro a Rocinha também foi ocupada por outra operação cinematográfica Ocorrida em novembro de 2011 a ação ganhou o nome de Choque de Paz e envolveu 3 mil homens das polícias e das Forças Armadas além de blindados helicópteros e caveirões A estreita e histórica relação entre o tráfico da Rocinha e policiais mineiros porém deu margem a que negociações se desenrolassem nas sombras mesmo depois do constrangimento causado pela operação Guilhotina Informações sobre o dia do ingresso no morro chegaram aos traficantes À s vésperas da operação Choque de Paz iniciaramse as artimanhas para a fuga com a ajuda de alguns policiais Nem o chefe do tráfico na Rocinha contudo seria preso tentando fugir escondido no portamalas de um Corolla preto onde estavam seu advogado e um funcionário do consulado do Congo O carro foi parado numa blitz no bairro da Lagoa Os policiais pediram que o portamalas fosse aberto mas o funcionário do consulado alegou imunidade diplomática e disse que só abriria na delegacia No caminho segundo os policiais os dois teriam oferecido 30 mil reais para liberarem o carro Os policiais decidiram abrir o portamalas e descobriram o traficante lá dentro exibido como troféu para a imprensa Antes disso de manhã três policiais civis e dois ex PMs tinham sido presos por fazerem a escolta de cinco traficantes em fuga Entre eles estava Anderson Rosa Mendonça o Coelho chefe do tráfico no Complexo do São Carlos Em fevereiro do mesmo ano na véspera da ocupação do Morro de São Carlos Coelho havia sido flagrado em escuta com um dos policiais presos pedindo ajuda para transportar quinze fuzis munição e drogas para a Rocinha Indignado com a traição que o levou a ser descoberto no portamalas Nem ao depor na Polícia Federal afirmou que metade de seu faturamento milionário na venda de drogas era usado para pagar arregos Apesar dos diversos aspectos positivos das UPPs os limites de sua política tornaramse evidentes com o correr dos anos As 700 mil pessoas contempladas com o projeto afinal representavam apenas 4 da população do estado e um terço dos moradores de favelas Isso trouxe desequilíbrio ao submundo do crime empurrando milícias e facções para territórios ainda não alcançados como a Baixada Fluminense e outras cidades e bairros do Rio de Janeiro O consumo e o lucro do tráfico de drogas seguiam altos As armas pesadas permaneciam nas mãos dos que participavam desses negócios Todos os vícios da estrutura policial se mantinham intactos A situação piorou com a falência fiscal do governo do Rio momento em que a insustentabilidade do projeto das unidades pacificadoras se evidenciou Havia investimentos desproporcionais em efetivos policiais nos territórios de UPPs que contavam com 9 mil homens ou 20 do efetivo mesmo atendendo uma fatia bem menor da população Como resultado o Rio de Janeiro chegou a 2016 liderando os investimentos em segurança pública entre as 27 unidades da Federação com 16 do orçamento investido na pasta em relação ao total São Paulo por exemplo investiu 57 no mesmo ano e gastando 525 reais por habitante São Paulo gastou 253 reais por habitante11 O problema não eram os gastos elevados mas o investimento em uma polícia sem controle que continuava a protagonizar ações criminosas e a comandar quadrilhas Em decorrência disso a situação se inverteu a partir de 2013 e os homicídios voltaram a crescer depois de sete anos de queda entre 2007 e 2012 as taxas no estado caíram de 497 homicídios por 100 mil habitantes para 287 A partir de 2013 subiram outra vez com quarenta homicídios por 100 mil habitantes em 201712 Em junho de 2013 manifestações populares ganharam as ruas de diversas cidades brasileiras em protestos contra o aumento do valor da passagem de ônibus No Rio de Janeiro os protestos se avolumaram depois do desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza morador da Rocinha quando a UPP não tinha ainda completado um ano na região Na noite de 14 de julho Amarildo havia chegado de uma pescaria e estava em casa limpando o peixe quando precisou sair para comprar tempero no supermercado No caminho foi abordado por policiais A ação foi filmada assim como o embarque de Amarildo na viatura Segundo a versão da polícia o pedreiro foi levado até um contêiner da UPP para prestar esclarecimentos e depois liberado Amarildo contudo desapareceu Policiais que trabalhavam no local no dia da abordagem afirmaram nas investigações sobre o caso que ele tinha sido torturado e não resistido aos choques e afogamentos porque era epiléptico O nome do pedreiro ganhou o mundo com uma campanha nas redes sociais que lançava ao público a pergunta Onde está Amarildo O Rio não seria mais o mesmo com a entrada de novos personagens em cena A popularização dos celulares e das redes sociais transformou a cobertura da violência e o papel dos moradores das comunidades do Rio de Janeiro que se tornaram verdadeiros correspondentes em locais relegados a segundo plano pela imprensa A corrente de publicações nas redes sociais cobrando respostas sobre o paradeiro de Amarildo mobilizou a sociedade civil artistas e autoridades produzindo uma pressão que levou à condenação de oito policiais envolvidos no desaparecimento do pedreiro Outras vozes importantes emergiram nas comunidades ajudando a furar a lei do silêncio imposta pelas tiranias armadas dentro das favelas O estudante Rene Silva morador do Morro do Adeus era uma voz potente desde 2010 depois da ocupação do Complexo do Alemão Na época ele tinha dezessete anos e postou em suas redes sociais imagens da entrada das tropas na comunidade Sua conta no Twitter passou a ser seguida por celebridades e jornalistas Rene se tornou uma fonte para quem não morava no morro averiguar informações inacessíveis Durante a invasão policial de 2010 seus duzentos seguidores passaram em poucas horas a 15 mil Em 2020 eram mais de 300 mil Rene Silva ajudou a abrir portas para outras vozes como a de Raull Santiago também do Alemão e a de Edu Carvalho da Rocinha Os tuítes publicados de dentro dos territórios ajudaram a criar a plataforma Fogo Cruzado que contabiliza com a ajuda dos próprios moradores os tiroteios por bairro e por cidades tiroteios muitas vezes provocados por operações policiais Os efeitos desses conflitos para a população ganharam uma nova perspectiva no debate público Essas novas vozes e ferramentas foram importantes para mostrar por meio de fatos e dados objetivos as fragilidades de uma política pública que em dado momento pareceu redentora Lideranças vindas desses territórios ganharam representação política A crítica à política de guerra às drogas contribuiu para a eleição em 2016 da vereadora Marielle Franco nascida e criada no Complexo da Maré Quando Marielle concorreu tinha a expectativa de obter 10 mil votos e ficar mais forte para a eleição seguinte Mas conseguiu mais de 46 mil votos e se elegeu no topo da lista com eleitores em todos os bairros do Rio A força de sua peça de campanha um vídeo simples produzido nas ruas da Maré trazia uma mensagem poderosa Sua imagem sorridente e firme de mulher negra mãe favelada lésbica propondo ações coletivas parecia desconstruir em poucos minutos o mundo da testosterona e de confrontos fatais entre homens Marielle morreu assassinada no dia 14 de março de 2018 junto com o motorista Anderson Gomes O crime marcou a história do Rio de Janeiro e do Brasil Na véspera de seu assassinato Marielle tinha denunciado em sua conta do Twitter mais um caso de violência policial cuja vítima era um agente de coleta seletiva e funcionário da Fiocruz assassinado em Jacarezinho Ela escreveu Mais um homicídio de um jovem negro que pode estar entrando para a conta da PM Matheus Melo estava saindo da igreja Encerrava a postagem com uma pergunta fundamental Quantos mais vão precisar morrer para que esta guerra acabe 6 Marielle e Marcelo Era uma noite quente na sala lotada de mulheres que se abanavam com leques de papelão em frente às amplas janelas do segundo andar do sobrado centenário da Casa das Pretas no bairro boêmio da Lapa Cinco cadeiras haviam sido colocadas na frente da sala para que a vereadora Marielle Franco pudesse mediar uma roda de conversa chamada Mulheres Negras Movendo Estruturas Era por volta das sete da noite de 14 de março de 2018 Vestida com uma camiseta azulescura calça florida e brincos azuis com o cabelo descolorido e armado Marielle estava radiante e recebia com entusiasmo quatro jovens cheias de carisma para falar sobre tecnologia literatura música comunicação e ativismo temas que depois derivaram para assuntos ligados a espiritualidade amor autoestima e poesia No local havia um espaço infantil e recreativo para que as mães pudessem levar seus filhos A presença de mulheres e crianças juntas durante a roda de conversa fazia daquele evento uma ocasião especial capaz de fortalecer as esperanças diante da crise política e econômica que se abatia sobre o Rio de Janeiro e o Brasil A lista de problemas era imensa O exgovernador Sérgio Cabral Filho estava preso desde novembro de 2016 por envolvimento em escâ ndalos de corrupção apontados pela operação Lava Jato Três meses antes de sua prisão em 31 de agosto a presidente Dilma Rousseff havia deixado o cargo depois de passar por um processo de impeachment O novo governador do Rio Luiz Fernando Pezão tinha assumido um estado quebrado e suspendeu o pagamento do funcionalismo público A situação parecia fugir ao controle e o aumento das taxas de homicídio era o termômetro a mostrar a temperatura da crise A volta da violência e do medo entre a população levou Pezão a pedir socorro ao governo federal nas mãos do então presidente Michel Temer A ajuda veio em 16 de fevereiro de 2018 sob a forma de uma intervenção militar comandada por um general do Exército que assumiu a responsabilidade sobre a segurança pública do estado A presença das Forças Armadas no Rio de Janeiro última cartada do governo Temer para se fortalecer antes das eleições daquele ano tinha direcionado os holofotes da imprensa para o estado Na roda de conversa daquela noite na Casa das Pretas esses temas contudo ficaram de lado A reunião trouxe pautas do movimento negro e feminista Naquele 14 de março a poeta Carolina de Jesus completaria 104 anos o que abriu oportunidade para as mulheres falarem de suas bisavós avós mães em reconhecimento à importâ ncia delas para a formação de suas identidades Marielle citou a origem nordestina de sua bisavó vinda de uma região quilombola entre Baía da Traição e Alagoa Grande na Paraíba e falou da chegada de seus avós ao Rio que foram um dos primeiros moradores da Favela da Maré ainda na época das palafitas A luta das mulheres da família teve continuidade com sua mãe Marinete que a criou junto com o pai Antônio Francisco garantindo que as duas filhas Marielle e Anielle chegassem à faculdade A filha de Marielle Luyara que estava com dezenove anos e acompanhava com interesse os debates da mãe seguia com o legado de luta Naquela noite Luyara não tinha ido ao encontro de mulheres porque estava com conjuntivite Depois de uma hora e meia de conversa Marielle encerrou o debate reproduzindo uma frase da poeta feminista norteamericana Audre Lorde Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas Agradeceu citou o nome de dez mulheres que ajudaram a organizar o evento e se despediu Vamo que vamo Vamos juntas ocupar tudo Eram quase nove da noite Ela ia direto para casa onde Mônica Benício sua companheira a aguardava para jantar Foi sua última aparição pública antes de ser assassinada A morte de Marielle abalou as estruturas fluminenses com a força de um terremoto tirando o chão dos ativistas que estavam no front da luta pelos direitos humanos e contra a violência policial Marielle saiu da Casa das Pretas acompanhada de sua assessora e amiga Fernanda Chaves As duas atravessaram a rua e entraram no carro que esperava por elas um Agile estacionado em frente ao sobrado com o motorista Anderson Gomes ao volante As duas sentaram no banco de trás para conversar sobre a agenda do dia seguinte No trajeto passaram a ver e a responder as mensagens de WhatsApp que haviam sido enviadas enquanto participavam do encontro Nenhum dos três percebeu que estavam sendo seguidos por um Cobalt prata Perto das 21h10 cerca de dois quilômetros e meio depois quando o carro da vereadora passava pelo cruzamento da rua Joaquim Palhares com a João Paulo I no Estácio o Cobalt emparelhou com o Agile e o atirador que estava no banco de trás com uma única rajada disparou quatro tiros na cabeça de Marielle e três na cabeça e nas costas de Anderson Fernanda se abaixou e foi ferida pelos estilhaços do vidro do carro Marielle morreu antes mesmo de ser levada ao hospital A dimensão política do assassinato se revelou já no dia seguinte quando uma multidão se concentrou em frente às escadarias da Assembleia Legislativa do Rio para protestar cobrando o esclarecimento do crime e a punição dos autores No mesmo dia ocorreram protestos em São Paulo Salvador Belo Horizonte e Brasília A indignação se espalhou e Marielle se tornaria símbolo da resistência contra a violência policial o machismo e o racismo Para agravar a situação política o assassinato ocorreu no primeiro mês da intervenção federal no Rio de Janeiro Parecia lançar um desafio direto aos militares ao governo federal à imprensa Como se os assassinos dissessem Não importa que a atenção de todo Brasil esteja voltada para o Rio Quem manda neste estado somos nós Num primeiro momento foi impossível dissociar o duplo homicídio do contexto político da intervenção Marielle seria a relatora de uma comissão instalada na Câ mara de Vereadores do Rio para acompanhar e fiscalizar a intervenção Um dia antes de ser assassinada ela tinha denunciado nas redes sociais a violência das operações policiais Marielle ainda fazia parte da rede de comunicadores ativistas que acompanhavam o dia a dia dos morros e da cidade pelo Observatório da Intervenção Por que milicianos matariam Marielle justamente num momento político de tamanha visibilidade Desde o começo mesmo com as investigações sobre o assassinato ainda em curso os principais suspeitos eram integrantes das milícias O uso da submetralhadora HK MP5 e de silenciadores a rajada solitária acertando bem no alvo a ausência de imagens de câ meras de rua para filmar o crime e os assassinos entre outros indícios apontavam para o trabalho de profissionais A ação porém não parecia fazer sentido do ponto de vista estratégico dos milicianos Em anos anteriores desde a instalação da CPI das Milícias os grupos paramilitares tinham aprendido a importâ ncia de se manter discretos para continuar faturando em liberdade com a conivência das autoridades1 Até mesmo o tráfico de drogas sempre evitou confusões durante grandes eventos na cidade como no PanAmericano na Copa do Mundo e nas Olimpíadas para evitar prejuízos Se fosse uma vingança política ou se Marielle ameaçasse negócios específicos por que agir e chamar a atenção em plena intervenção federal Seria algo que demandava ação tão urgente Ou o duplo homicídio tinha justamente o objetivo de atrapalhar ou desmoralizar a intervenção Independentemente das motivações não restava dúvida de que o crime havia lançado um desafio para as autoridades locais e para as Forças Armadas Era urgente uma resposta à altura das instituições que haviam sido confrontadas A procuradorageral da República Raquel Dodge e o ministro da Segurança Pública Raul Jungmann sentiram o baque e tentaram entrar com um pedido de deslocamento de competência para federalizar as investigações mas o Ministério Público Estadual bateu o pé dizendo que as autoridades estaduais iriam desvendar o crime De forma ingênua achei que haveria empenho e que o interventor federal o general Walter Braga Netto respeitado no Exército excoordenador de segurança dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos excomandante Militar do Leste e do EstadoMaior havia sido ferido em seus brios Cheguei a acreditar que a resposta seria dura para as milícias Não foi o que aconteceu Mesmo antes da afronta na manhã do dia em que Marielle foi assassinada já havia sinais de que os milicianos não respeitavam o comando do Exército O general Mauro Sinott chefe de gabinete da intervenção deu início naquele 14 de março a inspeções do Exército em batalhões da Polícia Militar O escolhido foi o 14o Batalhão em Bangu que tinha um histórico de envolvimento com as milícias locais Em 2014 o comandante do batalhão e 23 policiais foram presos sob a acusação de proteger paramilitares que cobravam propinas de empresas de ônibus vans mototaxistas e comerciantes do bairro A sociedade civil pedia que a intervenção deixasse de lado o desgastado teatro de guerra contra comunidades pobres e se concentrasse nos comandos nos departamentos e delegacias onde as milícias eram influentes Quando o general Sinott chegou ao batalhão acompanhado de oficiais do Exército para passar em revista a tropa o comandante do 14o deu ordens para que os policiais batessem continência Parte da tropa não se mexeu criando constrangimento entre os oficiais presentes O comandante precisou repetir a ordem com energia para ser obedecido2 Nos primeiros meses depois do assassinato de Marielle mesmo com a imensa repercussão a Delegacia de Homicídios e o Ministério Público do Rio ainda não tinham nenhuma pista dos assassinos as investigações pareciam andar em círculo administrando a pressão em banhomaria sem que os interventores se incomodassem com a falta de informações Olhando para trás a situação ganha gravidade Passados dois anos do crime os depoimentos e as informações que surgiram nas investigações mostram que os suspeitos eram conhecidos e já haviam matado outras pessoas de maneira parecida Mesmo com o cuidado dos matadores e mandantes para não deixar rastros materiais da autoria o duplo assassinato estava longe do que se costuma chamar de crime perfeito O grande trunfo dos assassinos nesse e em outros homicídios cometidos há pelo menos uma década no Rio segundo depoimentos obtidos pela investigação era a relação estreita entre os integrantes dos grupos de assassinos com policiais civis do Rio que negociavam arregos para manter impunes homicídios como os de Marielle e Anderson Policiais da Divisão de Homicídios como revelaram testemunhos e vários inquéritos e processos sem solução também tinham um modelo de negócios para faturar com o submundo do crime mais precisamente minerando a contravenção bicheiros e donos de maquininhas de caçaníquel associados a assassinos e milicianos Os tiras ganhavam para passar informações aos criminosos sobre as operações em curso o que ajudava os assassinos a destruir provas e fugir Os policiais também faziam vista grossa aos assassinatos cometidos pelo grupo e embuchavam a autoria de homicídios não esclarecidos aos inimigos das quadrilhas que os pagavam Embuchar é outra palavra do dia a dia do submundo policial carioca Como a polícia científica e a perícia do Rio estão sucateadas em vez de fundamentadas em testes de DNA e análise de digitais boa parte das condenações baseiamse em depoimentos e testemunhas de acusação escutas telefônicas registros de antenas de celular imagens de câ meras Esqueça as séries norteamericanas de investigação policial Na vida real da investigação brasileira basta arrumar uma testemunha convincente para embuchar um homicídio em um desafeto mesmo quando ele é inocente do crime do qual é acusado Para faturar esse modelo de negócios se aproveitou das fragilidades estruturais na investigação de homicídios A sagacidade e a malícia da polícia do Rio para faturar com o crime sempre surpreendia Em São Paulo por exemplo o Departamento de Homicídios sempre foi considerado um local para abnegados apaixonados pela investigação porque segundo a máxima de lá morto não paga propina Policiais paulistas malintencionados acabavam empurrados para as delegacias de bairro ou para as especializadas em drogas ou crimes patrimoniais No Rio porém a impunidade homicida passou a ter um preço assim como os assassinatos que haviam se tornado um serviço bem pago com a conivência dos policiais que deveriam investigálos e que aproveitaram as oportunidades financeiras oferecidas neste mercado da morte Essa história da omissão da Divisão de Homicídios começou a emergir um mês e meio depois do assassinato de Marielle e Anderson Naquele momento as investigações ainda não tinham chegado a nada A cobrança da sociedade civil por respostas das autoridades crescia No manual dos investigadores de homicídios é lugarcomum que as primeiras 48 horas após o crime são decisivas para colher indícios e testemunhos do que aconteceu Abril já estava chegando ao fim sem que houvesse avanço digno de nota No dia 24 daquele mês porém começaram a aparecer os nomes dos primeiros suspeitos Mas não passava de uma grande armação O policial militar e miliciano Rodrigo Jorge Ferreira o Ferreirinha prestou um depoimento informal ao delegado federal Helio K hristian em que relatou o envolvimento de Orlando Oliveira de Araújo o Orlando Curicica no assassinato de Marielle O crime teria sido praticado sob as ordens do vereador Marcello Siciliano PHS Dias depois Ferreirinha confirmou as acusações em três depoimentos feitos à Divisão de Homicídios A farsa foi bem montada Siciliano tinha diversas transações imobiliárias em Vargem Grande onde assessores de Marielle haviam estado para discutir regularização fundiária com associações locais para evitar o apetite dos grileiros Curicica que estava preso tinha uma longa ficha corrida e caso negasse era alguém a ser facilmente desacreditado A testemunha também deu os nomes daqueles que teriam executado os disparos Os assassinos seriam um policial do 16o Batalhão área do Alemão e Alan de Morais Nogueira um expolicial do 22o área da Maré que estariam no Cobalt prata junto com outros dois integrantes da quadrilha de Curicica Este último também havia sido implicado num duplo homicídio ocorrido em fevereiro de 2017 que vitimou dois policiais A motivação do assassinato de Marielle segundo o depoimento de Ferreirinha seriam as ações sociais da vereadora em áreas de milícias As conversas entre Curicica e Siciliano afirmou a testemunha tinham começado em junho de 2017 Em outubro Curicica foi preso com uma arma fria por suspeita de homicídio Teria assim dado a ordem do assassinato de dentro da prisão Até mesmo o fornecedor do celular Ferreirinha mencionou A acusação parecia redonda e ganhou ampla repercussão na imprensa como era de esperar Mas a tentativa de embuchar os dois homicídios que mais haviam mobilizado a opinião pública nos últimos tempos em figuras suspeitas desmoronou rapidamente graças aos esforços de Curicica para se defender E para isso resolveu delatar pecado grave nesse submundo regido pela lei do silêncio Mas Curicica não tinha nada a perder Preso em Bangu 9 na ala reservada a milicianos encurralado percebeu que precisava reagir Mesmo contra a sua vontade era a única forma de sobreviver Em 9 de maio um dia depois de a acusação de Ferreirinha ter se tornado pública Curicica conseguiu publicar uma carta no jornal O Dia alegando inocência e acusando Ferreirinha de não ter credibilidade e de chefiar as milícias do Morro do Banco em parceria com o tráfico de drogas Também se colocou à disposição das autoridades para contribuir com a elucidação do caso Marielle e Anderson Em represália no dia seguinte Curicica foi transferido para Bangu 1 a unidade de segurança máxima do sistema penitenciário do Rio Em tese havia motivos para esse rigor pois Ferreirinha vinha dizendo ter medo de ser assassinado por ordens de Curicica Em Bangu 1 isolado de todos Curicica não se deu por vencido Entrou em greve de fome para ser ouvido pelas autoridades do Rio Segundo relato posterior de Curicica ao Ministério Público Federal ele foi procurado pelo encarregado do caso na Divisão de Homicídios o delegado Giniton Lajes que foi firme em cobrar dele a confissão de haver matado Marielle e Anderson Curicica continuou sustentando sua inocência e disse ter informações que ajudariam a chegar à autoria dos homicídios citando a semelhança deles com outros três casos não esclarecidos cujas tramas ele conhecia de dentro Curicica disse que o delegado Giniton não quis tomar seu depoimento nem ouvir o que ele tinha a contar Ainda ameaçou embuchar outros homicídios na conta dele e transferilo para um presídio federal Curicica continuou em greve de fome e um dia recebeu a visita de um promotor do Ministério Público Estadual que apenas revistou sua cela e foi embora No período de um mês foi implicado em outros três homicídios Em 19 de junho transferiram Curicica para a Penitenciária Federal de Mossoró em regime de segurança máxima No presídio no Rio Grande do Norte distante dos chefes da segurança pública fluminense achou que estava acabado Mas foi ali finalmente que conseguiu ser ouvido Em setembro de 2018 a entrada da Polícia Federal da ProcuradoriaGeral da República PGR e do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado Gaeco do Ministério Público do Rio tirou as investigações da cômoda inércia em que se encontravam A partir dos depoimentos de Curicica dados em Mossoró começaram a aparecer histórias envolvendo suspeitos reais do crime assim como ligações de alguns deles com integrantes da Segurança Pública do Rio e com a Divisão de Homicídios Seis meses depois em 12 de março de 2019 chegouse a resultados concretos Os expoliciais militares Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz foram presos com indícios consistentes de participação no assassinato da vereadora Marielle e de seu motorista Anderson Antes da prisão de Lessa e de Élcio de Queiroz em janeiro de 2019 a parceria entre os agentes federais e o Gaeco havia resultado na prisão de diversos milicianos ligados ao capitão Adriano Magalhães um dos coordenadores do Escritório do Crime grupo de assassinos com extensa ficha de cadáveres no portfólio a maior parte das mortes ligada a disputas entre donos de máquinas de caçaníqueis Lessa foi acusado pela Divisão de Homicídios e denunciado pelo Ministério Público Estadual como autor dos disparos que mataram Marielle e Anderson Élcio de Queiroz compadre de Lessa e amigo de infâ ncia da mulher do matador foi chamado para dirigir o Cobalt prata Os tiras da Homicídios finalmente colhiam indícios que colocavam os dois suspeitos na cena do crime O assassinato de Marielle e Anderson como Curicica alertava só poderia ser compreendido dentro de um contexto mais amplo A história do submundo do crime do Rio e do envolvimento de seus personagens com as polícias ganhava novos capítulos e detalhes escandalosos No início de sua trajetória na Polícia Militar o sargento Ronnie Lessa era um jovem disposto a arriscar a vida em nome de certos ideais mas no fim foi acusado de se tornar um matador mercenário a serviço da contravenção O mais interessante nesse percurso é que o desvio não pode ser considerado um desvirtuamento de suas crenças da juventude Em 1988 com dezoito anos ele serviu o Exército e no ano seguinte se filiou à Scuderie Le Cocq o célebre grupo de policiais matadores criado para vingar a morte do detetive Milton Le Cocq O grupo também cultuava o símbolo da caveira e pregava o extermínio de bandidos agindo em sociedade com os bicheiros Até ser preso em seus quase trinta anos de dupla jornada no crime Lessa preservou o prestígio entre seus pares e a fama de herói Nunca havia sido indiciado pela polícia em casos ligados ao jogo do bicho apesar de seus colegas saberem de suas histórias com a contravenção Tornouse um homem rico morava numa mansão no mesmo condomínio do presidente da República Jair Bolsonaro na Barra da Tijuca andava de carro blindado e tinha uma lancha em sua casa de praia em Angra dos Reis A pecha de policial assassino e mercenário nunca abalou sua imagem entre seus colegas que o viam como um profissional disposto a atuar na linha de frente da guerra urbana e a matar em defesa dos valores de seus aliados Lessa tinha três caveiras tatuadas no peito A fama de matador implacável era motivo de orgulho sentimento compartilhado com seus parceiros de trabalho e seus amigos O ingresso de Lessa na Polícia Militar ocorreu em novembro de 1991 No ano seguinte entrou para o Batalhão de Choque Entre 1993 e 1997 atuou no Bope mesmo sem ter feito o curso de operações táticas exigido para a função Mostrava desprendimento e coragem nos tiroteios dos morros e sua habilidade com armamentos pesados lhe conferiu a fama de máquina fria e precisa de matar Em 2003 Lessa se tornou adido da Polícia Civil na antiga Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos extinta em 2011 depois de escâ ndalos envolvendo negociatas entre policiais e criminosos O trabalho conjunto entre policiais civis e militares criado para aproximar as duas corporações no combate a sequestros foi replicado em outras delegacias especiais e tornouse uma incubadora de talentos para a contravenção Juntava na mesma unidade a disposição guerreira dos militares com as históricas conexões dos policiais civis com o jogo do bicho O lugar ideal para os bicheiros recrutarem mão de obra Foram formados nesses núcleos alguns dos personagens mais temidos do submundo do crime no Rio de Janeiro A vaga de Lessa na contravenção se abriu num momento tumultuado para os chefões do jogo A geração dos patriarcas do bicho que havia se organizado em torno de um conselho para dividir territórios e arbitrar conflitos o Clube Barão de Drummond estava envelhecendo Com a chegada das máquinas de caçaníquel os negócios continuavam lucrativos mas a nova geração parecia não se importar com a honra dos patriarcas e vivia se engalfinhando por dinheiro e poder Alguns herdeiros desses espólios milionários travaram disputas sangrentas desarticulando um equilíbrio de décadas O crescimento desses confrontos abriu mercado para os matadores com treinamento de guerra capazes de oferecer não apenas o homicídio de desafetos mas também a impunidade em razão da parceria com aqueles que deveriam investigar seus crimes Futuros milicianos e militares parceiros do bicho foram recrutados entre os adidos da Delegacia Antissequestro DAS De 1995 a 1997 na gestão do delegado Hélio Luz na Polícia Civil a DAS havia sido referência na diminuição dos sequestros na cidade Nos anos 2000 quando esse tipo de crime ficou sob controle alguns policiais estreitaram a parceria com o bicho junto com outras delegacias especiais Entre os nomes saídos desses núcleos estava o sargento Marcos Vieira de Souza o Falcon assassinado em 2016 e que em 2010 havia hasteado as bandeiras do Brasil e do Rio no topo do Complexo do Alemão Outro foi o sargento reformado Geraldo Antônio Pereira assassinado no mesmo ano que Falcon quando atuava como empresário de máquinas de caçaníquel e importante miliciano da zona oeste E também foi o caso do próprio Orlando Curicica que se tornou informante do grupo de policiais da DAS depois de expulso da PM Esses policiais se aproximaram da contravenção e se aproveitaram das possibilidades da gestão miliciana que juntava o interesse pelas receitas do jogo com o domínio territorial exercido pelos paramilitares Além dos negócios tradicionais taxa de segurança venda de gás gatonet essa colaboração garantia exclusividade para máquinas de caçaníquel dos grupos parceiros e também outras tarefas conforme as habilidades de cada homem O assassinato era uma das mais valorizadas A aproximação de Ronnie Lessa com a contravenção ocorreu em meados dos anos 2000 quando ele foi trabalhar na segurança de Rogério de Andrade sobrinho do célebre bicheiro Castor de Andrade As brigas pela herança do tio provocaram rachas e homicídios dentro da família A confusão dos herdeiros começou logo depois da morte de Castor em 1997 O mais ilustre bicheiro carioca morreu de enfarte aos 71 anos jogando cartas Dividiu a herança em três partes para o sobrinho Rogério de Andrade o filho Paulo Roberto de Andrade o Paulinho e a filha Carmem Lúcia Em outubro de 1998 Paulinho foi assassinado junto com seu segurança As investigações apontaram Rogério como suspeito do mando Os anos seguintes foram marcados por uma sucessão de assassinatos o que causou violentos conflitos entre as duas gangues da família e cerca de cinquenta mortes segundo estimativas da polícia Um mercado promissor para assassinos profissionais Com sua grife de excaveira Lessa soube aproveitar a oportunidade Em outubro de 2009 Lessa integrava o 9o Batalhão da Polícia Militar e fazia bico como segurança de Rogério de Andrade quando um atentado a bomba o fez perder a perna esquerda Ele tinha acabado de entrar em seu carro uma Hilux quando a bomba explodiu embaixo da picape O carro andou cem metros e parou ao bater em um poste Lessa tentou sair mas ficou preso no cinto de segurança O sargento implantou uma prótese na perna amputada e se aposentou da polícia Mas seguiu no crime Em abril de 2010 uma bomba com dispositivo semelhante à que mutilara Lessa explodiu no carro de Rogério de Andrade um Toyota Corolla com blindagem para resistir a disparos de fuzil A bomba também tinha sido colocada sob o veículo no lado do banco do motorista Naquele dia quem dirigia o carro era o filho de Rogério Diogo Andrade de apenas dezessete anos Ele morreu na hora Rogério que estava no banco de passageiro saiu ferido Não restavam dúvidas de que o acordo entre os patriarcas do bicho estava estremecido Os contraventores do Rio tinham expandido as fronteiras dos jogos atuavam em cassinos da América do Sul e tinham estreitado contatos com máfias internacionais como a Bratva russa e a Família Abergil israelense Em compensação os herdeiros iniciavam uma nova fase de disputas e vinganças que envolvia não apenas membros das famílias mas também outros clãs e quadrilhas As redes da contravenção haviam se diversificado aliados e rivais tinham origens criminais diversas Os grupos de policiais matadores comprometidos com milícias em conflitos por territórios ganhavam espaço na rede do bicho no mercado das maquininhas de caçaníquel e do crime em geral3 Ronnie Lessa por exemplo tinha frentes de negócios diversas para aproveitar suas conexões com o bicho e habilidades de matador Investigações apontaram ligações do exmilitar com as milícias de Rio das Pedras e de Gardênia Azul Entre seus negócios legais montou uma academia de ginástica na principal rua de comércio de Rio das Pedras e um estúdio de tatuagem Mas ganhava dinheiro de verdade com atividades ilegais Era apontado como sócio de um bingo clandestino na Barra com mais de oitenta máquinas de caçaníquel Em setembro de 2018 depois da morte de Marielle investigações indicaram que ele chegou a reclamar com um dos chefes dos investigadores do 16o distrito policial Jorge Luiz Camillo Alves a liberação de máquinas apreendidas no bingo O investigador Camillo Alves havia sido preso na fase dois da operação Intocáveis por suas ligações com a quadrilha que coordenava as construções de apartamentos irregulares em Muzema chefiada pelo capitão Adriano da Nóbrega Os investigadores identificaram que Lessa havia assumido negócios do ex vereador e bombeiro Cristiano Girão durante o período em que ele esteve preso acusado de chefiar a milícia de Gardênia Azul Como se não bastasse o atirador estava sendo investigado pela intermediação no contrabando de armas Quando foi preso pela morte de Marielle a polícia encontrou peças para armar 117 fuzis calibre 556 que Lessa assumiu serem suas A Justiça estimou seus bens em 7 milhões de reais e bloqueou parte desse montante Foi esse ambiente explosivo repleto de criminosos bem armados poderosos e ricos imbricados havia décadas nas instituições estaduais de segurança que Orlando Curicica se ofereceu para ajudar a desvendar Curicica também conhecia bastante a vida do capitão Adriano Magalhães da Nóbrega que havia atuado como segurança de familiares que disputavam o espólio do bicheiro Waldemir Garcia o Miro Segundo Curicica o capitão funcionava como um headhunter de matadores profissionalizando a morte por encomenda e criando oportunidades rentáveis para pistoleiros urbanos Todo esse cenário de disputas e assassinatos era conhecido de perto por policiais civis e investigadores da Divisão de Homicídios e havia produzido uma longa lista de cadáveres entre os quais muitos eram seus próprios pares Várias mortes de figuras importantes contudo continuavam sem autoria definida Havia um modus operandi nesses grupos de matadores quase uma assinatura uso de submetralhadora carro clonado ausência de vestígios assassinatos precisos com uma rajada Muitos participantes eram conhecidos Mesmo com tantos sinais a suspeita de envolvimento de integrantes desse consórcio de matadores no assassinato de Marielle e Anderson só começou a ser levada a sério pelas investigações a partir de agosto de 2018 cinco meses depois do crime com a entrada de agentes federais e do Gaeco no caso Curicica que imaginava ser enterrado vivo no presídio federal de Mossoró depois de muito insistir conseguiu falar com o corregedor dos presídios e com o diretor da penitenciária e enfim ser ouvido pelo Ministério Público Federal No dia 22 de agosto dois procuradores federais foram tomar o depoimento de Curicica Ele contou sobre as tentativas fracassadas para esclarecer sua inocência no caso Marielle disse que ele e sua família no Rio estavam em risco que tinha muitas informações e que estava preocupado Não queria ser embuchado com diversos outros casos de homicídios As histórias que ele contou se verdadeiras tinham potencial para encaixar muitas peças daquele quebracabeça Os procuradores que o ouviram contudo possuíam pouca familiaridade com o cenário do crime no Rio Uma semana depois no dia 1o de setembro o Gaeco finalmente foi designado pelo Ministério Público do Rio para acompanhar as investigações do crime a pedido da nova promotora do caso Letícia Emile Ato contínuo Letícia e a chefe do Gaeco Simone Sibílio começaram a articular a viagem para Mossoró As duas ouviram Curicica no dia 25 de setembro e saíram de lá com novas frentes para investigar o submundo do Rio O papel do Escritório do Crime os homicídios ocorridos no passado a ligação com o jogo do bicho as propinas pagas à Divisão de Homicídios essas informações davam nova perspectiva à investigação do percurso trilhado pelas milícias Naquele dia o nome de Ronnie Lessa surgiu pela primeira vez no radar das autoridades Curicica contudo acreditava que seu esforço seria em vão Só que a DH Divisão de Homicídios tem o seguinte pensamento Só temos tempo para acusar o Orlando e outros acusados eles não querem por quê Porque eles vão se acusar Curicica tentou explicar às duas como consta no depoimento dele a que tive acesso Entendeu Dissolver o Escritório do Crime Eu tenho elementos que botam todos eles na cadeia A promotora Letícia perguntou o que ele sabia sobre a morte de Marielle Curicica afirmou que o ideal era começar ao contrário desvendando primeiro outras mortes semelhantes à dela Depois discorreu sobre os territórios de atuação dos grupos de matadores Toda a área do 18o Rio das Pedras Curicica Gardênia Toda aquela área porque tem a Gardênia né Tem o Lessa Vocês sabem do Lessa perguntou às promotoras Não respondeu Simone Do sem perna insistiu Curicica referindose à prótese na perna esquerda de Lessa O que a bomba explodiu dentro do carro dele e perdeu a perna o policial militar Simone voltou a dizer que não o conhecia Curicica continuou Foi baleado na UPP tem dois meses quatro meses cinco meses mencionando uma tentativa de assalto em 27 de abril quando ele levara um tiro no pescoço um mês e meio depois da morte de Marielle e Anderson Não se sei não estou me recordando agora honestamente não estou me recordando agora disse Letícia Curicica falou sobre os potenciais envolvidos Então o leque é muito grande entendeu Que eu até queira ajudar vocês eu até quero mas é um monte de coisa envolvida nisso principalmente proteção à minha família De início Curicica desconfiou das promotoras por elas terem vindo do MP do Rio Mas as duas conquistaram a sua confiança Desde que Curicica tinha começado a falar com as autoridades federais passou a sofrer retaliações como previu que aconteceria Ele soube pelas promotoras que o caminhão de água que pertencia a Thaís sua mulher tinha sido incendiado no dia anterior O incêndio havia ocorrido no Terreirão área onde Curicica tinha influência antes de ser preso Depois de ser envolvido no caso Marielle foi acusado de outros homicídios que ele alegou serem casos embuchados Desde que se mostrou disposto a colaborar nas investigações do assassinato de Marielle e Anderson ele disse às promotoras tinha sido acusado de seis novos homicídios Contar o que sabia era a única forma de se proteger dessa avalanche Ele contou sobre três homicídios o que ajudou a apontar os suspeitos da morte de Marielle e Anderson O primeiro foi o assassinato de Haylton Escafura em junho de 2017 cinco meses depois de deixar a prisão quando tentava se reerguer no comércio de máquinas de caçaníquel Haylton estava hospedado no Hotel Transamérica na Barra com a namorada a policial militar Franciene de Souza que também morreu Três homens encapuzados armados com pistolas e fuzis entraram pela garagem do hotel e subiram oito andares de escada até o quarto do casal Arrombaram a porta a tiros e executaram Haylton e Franciene que haviam se trancado no banheiro Os disparos de fuzil atravessaram a porta e os dois morreram ao lado do vaso sanitário Apesar das circunstâ ncias escandalosas o crime não foi esclarecido pela Divisão de Homicídios O segundo homicídio relatado por Curicica foi o do subtenente Marcos Falcon o policial que hasteara as bandeiras no Alemão Em setembro de 2016 homens encapuzados invadiram seu comitê de campanha em Madureira uma semana antes da eleição em que concorreria a vereador Em abril daquele ano ele havia sido eleito presidente da Portela Dois atiradores entraram no comitê um ficou no carro e outro fez a guarda do lado de fora Falcon levou quatro tiros de fuzil no peito e na cabeça Apesar da visibilidade política da vítima os assassinos não se intimidaram e o mataram diante de diversas testemunhas A confiança na impunidade se confirmou Quatro anos depois os autores não tinham sido descobertos Em maio do mesmo ano de 2016 quatro meses antes da morte de Falcon três encapuzados mataram o sargento reformado Geraldo Antônio Pereira quando ele saía de uma academia Estava acompanhado de um segurança e do exinspetor Hélio Machado da Conceição o Helinho que ficou ferido Pereira era apontado como um dos principais milicianos da zona oeste Além de extorsão cobranças de taxa e venda de gás atuava no ramo das maquininhas de caçaníquel Era da escola dos policiais mineiros do 18o Batalhão e chegou a ser expulso da polícia em 1997 quando veio a público um vídeo em que ele torturava jovens na Cidade de Deus O escâ ndalo eclodiu na mesma época do rumoroso caso da Favela Naval em São Paulo em que policiais militares foram filmados torturando jovens do bairro Passada a comoção Pereira conseguiu na Justiça reverter a expulsão e voltou a trabalhar na PM Nos anos 2000 tornouse adido da Divisão Antissequestro com Falcon Helinho que estava ao lado da vítima e sobreviveu tinha ficha corrida como integrante da turma do delegado Á lvaro Lins chefe de polícia dos governos Anthony e Rosinha Garotinho Formado por inspetores conhecidos como os inhos o grupo era composto de Helinho Jorginho Fabinho Marinho e Paulinho o bando organizava sob a supervisão de Lins o aluguel de delegacias para delegados e políticos interessados nos arregos de criminosos4 Curicica tornouse funcionário dos negócios criminosos de Pereira em 2007 quando foi chamado para trabalhar como segurança do miliciano Em seguida assumiu o comando das seguranças da milícia em bairros da zona oeste Logo depois do assassinato do chefe Curicica disse que foi à academia onde o crime ocorreu e assistiu às imagens da execução Conseguiu reconhecer um dos atiradores apesar da balaclava que ele vestia Segundo disse às promotoras era o expolicial militar Antônio Eugênio de Souza Freitas o Batoré um dos principais matadores do Escritório do Crime Ele fazia parte do grupo do capitão Adriano da Nóbrega desde a época dos conflitos pelo espólio do bicheiro Maninho em 2005 De acordo com Curicica Batoré assumiu a coordenação dos assassinatos depois que Adriano passou a gerir milícias e máquinas de caçaníquel na zona oeste Batoré era suspeito de participação nos assassinatos de Haylton e Falcon mas morreu antes que pudesse prestar esclarecimentos Em junho de 2019 foi atingido por disparos numa operação policial com mais de cem homens no Morro do Dendê na Ilha do Governador para prender o traficante Fernando Gomes de Freitas o Fernandinho Guarabu um dos donos de morro mais longevos do Rio Batoré era apontado como sócio e sucessor de Guarabu no novo modelo que aproximava as milícias e o tráfico Muitos especulavam que a morte de Batoré foi queima de arquivo O esquema que juntava milícias caçaníqueis e assassinos profissionais dependia da omissão de investigadores no desvendamento de assassinatos mesmo os mais gritantes como os casos de Escafura Falcon e do próprio Pereira Entender a configuração dessas alianças argumentou Curicica em seu depoimento às promotoras as ajudaria a conhecer o ambiente de impunidade em que fora gestado o assassinato de Marielle e Anderson em plena vigência da intervenção federal no estado A força dessa rede era grande porque envolvia contatos em diversas instituições Esse era o segredo de sua longevidade Os indivíduos podiam ser presos mortos e trocados mas a estrutura se mantinha intacta e permitia ao crime seguir faturando Não seriam as Forças Armadas comandadas por um presidente frágil como Michel Temer que iriam intimidálos Curicica falou ainda sobre a desastrada tentativa de embucharem o duplo homicídio em suas costas A forma como a trama foi montada e os personagens envolvidos ajudaram a dar consistência a seus relatos Ele contou que os problemas começaram quando Pereira seu antigo patrão sentiuse ameaçado por Jorge Luiz Fernandes o Jorginho outro dos inhos da turma de Á lvaro Lins Jorginho além de alugar delegacias era sócio de Pereira no arrendamento de máquinas de caçaníquel de Rogério de Andrade em Jacarepaguá eles pagavam o aluguel e ficavam com o dinheiro das apostas Jorginho e Pereira se estranharam primeiro por questões financeiras A Polícia Federal vinha fazendo batidas nos bingos de Jacarepaguá Barra e Recreio o que causava prejuízo ao miliciano Para diminuir as perdas Pereira descontava o valor do aluguel das máquinas apreendidas na hora de pagar a Andrade que não gostou da ousadia Jorginho interveio em favor do capo Para azedar a relação entre os dois Jorginho segundo Curicica mandou matar o braço direito de Pereira o cabo Ronis José do Couto Júnior que atuava nas milícias A partir daí surgiram boatos de que Pereira atacaria Rogério de Andrade e de que Rogério acionaria o Escritório do Crime para matar Pereira Curicica como segurança dizia ao chefe para tomar cuidado Ele sabia que o conflito entre os dois podia sugálo para a confusão Foi o que ocorreu Depois do assassinato de Pereira Curicica disse ter sido procurado por Jorginho para fazer as pazes e estancar o ciclo de vinganças Foi proposto um acordo Curicica herdaria a parte que era da segurança privada da milícia em Jacarepaguá Barra e Recreio enquanto Jorginho ficaria com as máquinas de caçaníquel Para convencer Curicica Jorginho teria pagado propina para os delegados da Divisão de Homicídios não investigarem a morte de seu chefe Curicica teria presenciado a entrega da mala Jorginho queria mostrar que a polícia estava sob controle Curicica sabia que não tinha alternativa e engoliu o armistício Mas o clima de desconfiança continuava A testemunha contou às promotoras que passou a sofrer represálias e que escapou da morte por pouco O assassinato segundo ele deveria ter ocorrido quando o Core grupo de operação policial da Polícia Civil foi a sua casa forjar um auto de resistência e matálo Como o dia seguinte era a festa de aniversário do filho dele a casa estava cheia de familiares vindos de outras cidades Quando os policiais chegaram sua mulher Thaís entrou na frente para que os policiais não o assassinassem Acabou preso por causa do flagrante de uma arma fria em casa Era outubro de 2017 e ele foi levado para Bangu 9 ala reservada a milicianos Jorginho segundo Curicica teria herdado seus negócios na zona oeste depois de sua prisão Por isso o rival queria mantêlo afastado pelo maior tempo possível Como matálo havia ficado difícil mas não impossível eles tentaram mandar comida com veneno para Curicica em Bangu 9 a estratégia era mantêlo na prisão Foi aí que surgiu a armação para incriminálo pela morte de Marielle e Anderson Apesar de a DH ter engolido a farsa e pressionado Curicica a confessar deu tudo errado Curicica resolveu contar os podres do submundo criminal chacoalhando a investigação do caso Marielle que caminhava a passos de tartaruga Vinte dias depois do depoimento de Curicica às promotoras as coisas começaram a andar na Divisão de Homicídios Os policiais civis contudo tentaram ganhar os méritos pelas novas descobertas O chefe da investigação Giniton Lages disse que a participação de Ronnie Lessa tinha sido revelada por denúncia anônima no dia 15 de outubro informando que o expolicial conhecido como Lessa apelidado de Perneta era o autor do duplo homicídio Segundo a testemunha anônima ele teria saído do restaurante Tamborill no QuebraMar para praticar o crime e recebido 200 mil reais A partir dessas pistas frágeis teve início a coleta de provas para confirmar as suspeitas sobre a presença de Lessa no carro e a participação de Élcio de Queiroz como motorista Os dois foram presos no dia 12 de março do ano seguinte 2019 O chefe da Polícia Civil Rivaldo Barbosa acusado por Curicica de organizar o pagamento de propinas para que homicídios não fossem investigados sempre negou as acusações Giniton Lages também era enfático em garantir o compromisso de Barbosa com a elucidação do caso Os dois alegavam que Curicica tinha interesse em prejudicálos para desqualificar as acusações de que ele próprio era alvo Mesmo assim logo depois de apontados os nomes dos executores Lages foi removido do caso Sob nova direção do delegado Daniel Rosa os investigadores teriam que ir para as ruas e recuperar o tempo perdido correr atrás de provas que pudessem condenar os dois que participaram da execução de Marielle e Anderson no Tribunal do Júri Seria preciso identificar a posição dos celulares captada pelas antenas no dia do crime conferir a pesquisa de Lessa sobre a agenda de Marielle nos dias anteriores ao crime comparar a tatuagem do atirador capturada por uma das câ meras de rua com a do acusado saber mais sobre o carro clonado e suas rotas localizar as armas do crime jogadas no mar No Presídio Federal de Porto Velho os acusados Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz negavam com veemência sua participação no crime apresentando álibis e justificativas para as pesquisas que fizeram na agenda de Marielle e para outras acusações A polícia e os promotores no entanto acumulavam indícios contundentes contra eles Ainda faltava porém encarar o principal desafio da investigação Mais de dois anos depois do crime duas grandes perguntas sobre o caso permaneciam em aberto quem havia mandado matar Marielle E por quê Dado o quadro de degradação moral dos possíveis envolvidos e a dimensão da rede em que atuavam o rol de perfis suspeitos era imenso O primeiro nome foi apontado pela ProcuradoriaGeral da República em setembro de 2019 um dia antes de Raquel Dodge deixar a chefia da instituição Era Domingos Brazão ex vereador exdeputado estadual e conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado TCE O nome de Brazão havia aparecido no inquérito em que a PF investigara por quase um ano a armação contra Curicica e o vereador Marcello Siciliano Mesmo fora do caso Marielle a PF investigou a farsa apostando que através dela poderia chegar ao mandante De acordo com a Polícia Federal o conselheiro Domingos Brazão teria ajudado a denunciar os falsos autores para que pudesse permanecer impune da autoria dos assassinatos de Marielle e Anderson A armação teria começado com um funcionário de seu gabinete no TCE o policial federal aposentado Gilberto Ribeiro da Costa Costa teria apresentado o miliciano Rodrigo Ferreira o Ferreirinha ao delegado federal Hélio K hristian que tomou o depoimento mentiroso A advogada de Ferreirinha Camila Nogueira teria ajudado o grupo Brazão e os quatro foram denunciados pela ProcuradoriaGeral da República ao Superior Tribunal de Justiça STJ Raquel Dodge pediu a federalização da investigação que apontava Brazão como mandante do crime porém o pedido foi negado pelo STJ em maio de 2020 A prova mais importante de que Brazão era o mentor da trama do duplo homicídio foi a gravação de uma conversa entre Siciliano e o presidente da associação de moradores de Rio das Pedras Jorge Alberto Moreth o Beto Bomba No áudio eles falaram sobre os supostos responsáveis pelo crime Os diálogos registrados em 8 de fevereiro de 2019 onze meses depois do assassinato de Marielle e Anderson estavam gravados no celular de Siciliano apreendido pelos policiais federais Na época Siciliano e Curicica eram considerados os principais suspeitos do crime Durante a conversa Siciliano perguntou a Beto Bomba quem tinha mandado matar Marielle e recebeu a resposta de batepronto com detalhes De repente a história que até então era um segredo inacessível escondido por quase um ano começou a ser contada sem constrangimento em um telefone suspeito de estar grampeado por aqueles que sabem como funciona uma investigação Ou então começou a ser construída a versão que ambos desejavam levar às autoridades e ao público No telefonema Bomba disse Lembra os caras que pegaram o Pereira sargento miliciano Geraldo Antônio Pereira o Nadinho Josinaldo Francisco da Cruz É o mesmo grupo Sabe disso né Siciliano se mostrou por dentro dos boatos É o que falam né É o Escritório do Crime né Na época desse diálogo a operação Os Intocáveis contra o grupo de matadores já havia se tornado pública Beto Bomba confirmou a participação do Escritório É verdade pô Agora essa parada de Marielle aqui nós ninguém papo de homem conhece nem conhecia não sabia nem que essa mulher existia na vida Bomba seguiu com a história que tentava inocentar a si e parte de seus amigos Só que o sr Brazão veio aqui fazer um pedido para um dos nossos aqui que fez contato com o pessoal do Escritório do Crime fora do capitão Adriano sem consentimento do Adriano Os moleques foram lá montaram uma cabrazinha fizeram o trabalho de casa tudo bonitinho bábábá escoltaram esperaram pápápá pápápá pum Foram lá e tacaram fogo nela Marielle Depois do trabalho de casa sendo feito o seu Brazão fez o outro trabalho que é o DisqueDenúncia e plantar um cara para jogar nas suas costas Siciliano questionou o interlocutor É mas se prenderem o Adriano o Adriano vai falar né irmão Você acha que o Adriano vai Antes de acabar a frase ele foi cortado pelo miliciano de Rio das Pedras O Adriano não tem nada a ver com isso O Adriano morre e não fala chefe E não acham o Adriano se sair um mandado de prisão pro Adriano eles não acham nunca Beto Bomba então falou do valor que Brazão teria pagado aos assassinos Aí o que acontece Saiu essa parada Ele Brazão foi e fez esse contato O bagulhinho foi quinhentos contos irmão Quinhentos cruzeiros Siciliano perguntou Mas qual motivo irmão A resposta de Beto Bomba foi Ô chefe aí eu não sei qual o motivo do sr Brazão com ela não sei mesmo de coração Mas algum problema eles tinham entre eles dois Siciliano como quem não queria nada levantou uma hipótese que vinha sendo discutida entre os investigadores da Homicídios Eles chegaram a falar que foi por causa do MDB né cara Que foi por causa do Jorge Picciani Paulo Melo Edson Albertassi que ele teria contratado Beto Bomba confirmou e implicou um nome que ainda não tinha entrado na história Então Picciani o papo veio que foi a pedido de Picciani pra Brazão e Brazão chegou em quem de direito e aí foram fazendo o cerco cê entendeu Beto Bomba seguiu sem freios na língua e disse a Siciliano que sabia o nome dos três moleques que tinham feito o serviço Vou te falar aqui pra gente aqui hein chefe morre aqui hein Mad Macaquinho que está foragido e Leleo E tinha uma guarida do e tinha uma guarida do tinham uma guarida de um oficial dando suporte para eles se eles tomassem um bote no meio do caminho que é o Ronald que ia soltar salvar os moleques mas isso é a pedido do malandragem do sr Brazão tudo isso saiu do sr Brazão Depois Bomba citou também o nome de Fininho Marcus Vinícius Reis dos Santos como responsável por colocar Brazão em contato com o Escritório do Crime Apesar das frases assertivas de Bomba havia razões para pôr em dúvida os fatos relatados na conversa Siciliano era suspeito de ter mandado matar Marielle e precisava desviar o foco de si Beto Bomba estava foragido da Justiça havia duas semanas por ser alvo da operação Os Intocáveis que em 22 de janeiro de 2019 atingira o coração da milícia de Rio das Pedras Ele era uma figura suspeita já havia manipulado investigações como em 2008 e 2009 na tentativa de assassinato de duas pessoas Maria do Socorro mulher do miliciano Félix Tostes e Nadinho cujo assassinato foi consumado pouco tempo depois do atentado A investigação dessas duas ocorrências não deu em nada apesar de indícios apontarem para Bomba e seus colegas milicianos Os ataques a Maria do Socorro e a Nadinho marcaram a ascensão da organização comandada pelo capitão Adriano com a participação de Bomba o grupo passou a apostar na grilagem e na verticalização de imóveis em Rio das Pedras e Muzema No diálogo gravado com Siciliano Beto Bomba se esforçou para inocentar o capitão Adriano Bomba foi preso em maio de 2019 quatro meses depois da operação Os Intocáveis Adriano permaneceu mais de um ano foragido até ser morto em fevereiro de 2020 numa controversa operação policial na Bahia Já o major Ronald segundo na hierarquia de Rio das Pedras e que pelo diálogo teria dado cobertura aos assassinos no dia da execução foi preso no dia da operação Em maio foi preso Fininho apontado por Bomba na conversa interceptada como o intermediário entre Brazão e os assassinos Os três supostos autores mencionados por Bomba também eram ligados ao Escritório do Crime Macaquinho Edmilson Gomes Menezes e Leleo Leonardo Luccas Pereira foram apontados em denúncias do Ministério Público como integrantes das milícias do Morro do Fubá Mad Leonardo Gouveia da Silva foi preso em junho de 2020 junto com seu irmão Leandro Gouvêa da Silva o Tonhão acusado de ter assumido a chefia do Escritório do Crime por indicação do capitão Adriano De acordo com as investigações Mad estava envolvido em pelo menos mais três homicídios entre os quais o do empresário Marcelo Diotti da Mata miliciano que também atuava na exploração de máquinas de caçaníquel em Gardênia Azul Diotti foi assassinado num restaurante na Barra da Tijuca na mesma noite da morte de Marielle Ele era marido de MC Samantha exmulher de Cristiano Girão miliciano que depois seria apontado como suspeito de ser um dos mentores da morte de Marielle A investigação implicou o capitão Adriano como mandante da morte de Diotti Mad também participou do assassinato de Haylton Escafura em junho de 2017 e de Alcebíades Paes Garcia o Bid irmão do bicheiro Maninho em fevereiro de 2020 O mandante do crime de Marielle contudo seguia desconhecido A acusação contra Brazão e o diálogo gravado entre Beto Bomba e Siciliano pareciam armados para acobertar os reais autores e despistar a opinião pública ou empurrar para as costas de outros as suspeitas que pairavam sobre eles A frequência com que esse teatro de versões ocorria tornava o caso mais escandaloso Foi o que disse Brazão quando interrogado por jornalistas sobre sua participação na morte de Marielle e sobre as acusações contra ele extraídas da conversa entre Bomba e Siciliano Em Marielle o documentário produzido pela equipe de jornalismo da TV Globo depois de negar o assassinato Brazão fala sobre o áudio O pessoal vem conversar no telefone sobre um assunto desses São bem inocentezinhos não são São meninos do jardim da infâ ncia Depois disso tudo das várias buscas e apreensão o outro também e resolvem conversar sobre o ocorrido tirando das costas desses caras e colocando nas costas do outro Os malandros do Morro do Fubá da Praça Seca É um teatrinho Eu que sou mais bobo não posso acreditar nesse teatrinho Imagina se os delegados da Homicídios e os procuradores vão acreditar A quem interessa eu não sei É um teatrinho montado Se eles quisessem conversar certamente eles não iam buscar o telefone celular Foi a tentativa de tentar entre aspas fazer a transferência da pica para alguém Nascido em Jacarepaguá Brazão fincou raízes na zona oeste da cidade Tinha uma carreira longeva no Parlamento do Rio e viu crescer sua influência à medida que as milícias se fortaleciam Foi eleito pela primeira vez em 1996 para o cargo de vereador Dois anos depois elegeuse deputado estadual e ingressou numa Assembleia Legislativa em que Sérgio Cabral Jorge Picciani e Paulo Melo se articulavam havia oito anos para receber propinas pela concessão de obras públicas A força eleitoral de Brazão vinha de sua relação assistencialista com os moradores das comunidades onde obtinha votos em troca de cestas básicas cursos e remédios Seu poder nos bairros onde atuava era fortalecido por suas ligações com o submundo do crime mais antigas do que sua amizade com políticos Em 1987 aos 22 anos foi preso por homicídio mas absolvido pela Justiça sob a alegação de legítima defesa Brazão havia começado no ramo de ferrovelho e de receptação de carros roubados segundo relato de Ferreirinha aos agentes federais Sempre teve influência em Rio das Pedras onde ele o irmão Chiquinho e o cunhado Pedro conseguiam parte dos votos que garantiam as eleições dos membros de seu clã Brazão chegou a ter seu mandato de deputado cassado em 2011 por acusações de compra de votos através de seu centro social mas o retomou na Justiça De acordo com Curicica Brazão tinha relacionamento com Jorginho e laços antigos com o Escritório do Crime Embora possuísse essa longa ficha corrida ainda havia dúvidas sobre sua participação no assassinato de Marielle e Anderson E lacunas a ser preenchidas Por que matar Marielle justamente quando as Forças Armadas e a imprensa faziam do Rio de Janeiro o centro das atenções do país Brazão se arriscaria naquele momento Quem teria tamanho atrevimento As ligações de Lessa com o bicho e caçaníquel poderiam apontar novos suspeitos Os negócios de Lessa com Cristiano Girão colocavam o exvereador no rol de suspeitos como mandante do crime motivado pelo desejo de se vingar dos participantes da CPI das Milícias cujas investigações ajudaram a mandálo para a prisão Os promotores apontariam ainda suspeitas da ligação entre Girão e Lessa em um caso de duplo homicídio ocorrido em junho de 2014 envolvendo disputas na região de Gardênia Azul As mortes de Marielle e de Diotti ocorridas no mesmo dia poderiam ter sido articuladas por grupos que tinham interesses em comum Mad do escritório do crime e Lessa poderiam ter combinado uma operação casada Capitão Adriano Girão e Lessa poderiam ter agido em parceria nessa empreitada Apesar das dúvidas e dos muitos assassinos possíveis e esquemas imagináveis havia um contraponto nessa história um político que comprava essa briga havia mais de uma década com um alvo imaginário desenhado no peito Marcelo Freixo Desde que entrou na política e presidira a CPI das Milícias em 2008 causa da prisão de centenas de milicianos o deputado havia se tornado o antípoda dos adoradores de caveiras Enquanto os paramilitares e seus aliados viam na violência um mal necessário para estabelecer a ordem no Rio Freixo arriscava a vida na defesa de princípios abstratos como estado de direito direitos humanos e democracia O assassinato de Marielle Franco poderia ter sido uma forma de atingilo No início dos anos 1990 Marcelo Freixo era professor de história e integrava a diretoria do Sindicato dos Professores Começou a frequentar o sistema penitenciário para coordenar projetos de educação popular para detentos O contato próximo com a população carcerária fez com que fosse chamado para mediar as rebeliões que começaram a eclodir nos anos 2000 Cabia a Freixo fazer a ponte entre presos rebelados e os policiais do Bope para evitar tragédias como a do Carandiru em São Paulo que em 1992 terminou com a morte de 111 presos A presença do ativista nas mediações tornouse intensa depois de abril de 2002 quando a transferência de Fernandinho Beira Mar da carceragem da Polícia Federal em Brasília para Bangu 1 no Rio produziu consequências explosivas O destino do principal matuto do Comando Vermelho capturado nas selvas colombianas no ano anterior havia se tornado pauta central do debate público No mês seguinte à chegada de BeiraMar a Bangu 1 em maio de 2002 as paredes do prédio da Secretaria de Direitos Humanos no centro do Rio foram alvejadas por dezenas de tiros de fuzil Dois cartazes com assinatura do CV e ameaças ao governo foram afixados em frente ao prédio As suspeitas sempre se voltavam para Bangu 1 Ainda naquele mês escutas do Ministério Público Estadual indicaram que BeiraMar tinha comprado um míssil Stinger e negociado drogas de dentro do presídio considerado a principal unidade de segurança máxima do Rio de Janeiro No começo da tarde do dia 12 de setembro de 2002 Marcelo Freixo foi chamado para mediar a rebelião deflagrada por uma das maiores inimizades do submundo do crime do Rio De um lado Uê o assassino de Orlando Jogador e líder da Amigos dos Amigos de outro os antigos parceiros de Jogador Marcinho VP e Fernandinho BeiraMar sequiosos de vingança para lavar a honra do CV O rastilho foi aceso quando Marcinho VP recebeu a informação de que Uê tinha subornado um carcereiro para conseguir as chaves de Bangu 1 e exterminar os integrantes do CV os presos de facções rivais ficavam em alas diferentes Marcinho VP ofereceu um valor maior para o mesmo funcionário e ganhou o leilão Essa foi uma das versões contadas pelos presos A ideia do grupo era fugir do presídio de segurança máxima mas quando os rebelados estavam no pátio indo em direção à porta foram flagrados por agentes do Serviço de Operações Externas Diante da impossibilidade de fuga os presos do CV voltaram ao prédio e partiram com armas e bombas para cima dos detentos da facção rival Uê o inimigo de Marcinho e de BeiraMar morreu a tiros e depois teve o corpo queimado por um colchão em chamas Outros três detentos da mesma facção foram mortos pelos rebelados Conversei com um preso que presenciou o evento e disse que BeiraMar não participou do ataque Para evitar o ingresso da Tropa de Choque os presos fizeram oito reféns Marcelo Freixo que passava o dia de folga com a família foi acionado policiais do Bope foram buscálo em casa para ele fazer a mediação A negociação durou cerca de dezoito horas O ativista dispensou o colete à prova de balas não só para conquistar a confiança dos presos mas também para evitar ações afoitas do Choque Ao entrar logo avistou entre os reféns um carcereiro amarrado a um botijão de gás Era um funcionário que costumava receber o professor de história com provocações sobre a defesa dos direitos de bandidos e considerado truculento pelos presos Enquanto as negociações se desenrolavam conversando com os presos pelas grades Freixo exigiu que o carcereiro fosse o primeiro refém a ser libertado Em caso de confusão o mediador avaliou aquela seria a vítima preferencial dos detentos Os presos se recusaram a soltálo e ofereceram outros nomes mas Freixo ameaçou deixar a negociação Os rebelados cederam e libertaram o refém antes dos outros A rebelião acabou sem que nenhum refém morresse A abertura e a flexibilidade de Freixo para dialogar com os diversos lados o levou para a política Em 2006 ele se candidatou pelo PSOL à Assembleia Legislativa do Rio num movimento raro no campo da esquerda em geral esquivo à bandeira da segurança pública Em julho de 2006 quando Freixo começava a buscar votos seu irmão mais novo Renato foi assassinado Renato era síndico de um condomínio em Niterói e tinha recebido ameaças por ter substituído um grupo de policiais militares que faziam a segurança no local Na noite do crime dois homens em uma moto interceptaram o carro de Renato na entrada do condomínio e o executaram Sua mulher recebeu um tiro no ombro mas sobreviveu A Polícia Civil do Rio demorou catorze anos para concluir o inquérito e chegar aos suspeitos um ex policial e dois policiais militares que tinham sido demitidos da empresa de segurança do condomínio Freixo quase desistiu de concorrer depois da morte do irmão mas foi convencido a continuar Passou raspando e conquistou a última vaga entre as setenta cadeiras da Assembleia Em seu terceiro dia como deputado Freixo apresentou o pedido de CPI das Milícias para deboche dos colegas alguns deles milicianos que se sentiam intocáveis e se divertiram com a ingenuidade do novato Quando a CPI foi aprovada um ano e meio depois Freixo deixou de fora o caso do assassinato de seu irmão para que ninguém o acusasse de agir por motivações pessoais Apesar da revolta avaliou que era fundamental não misturar o público com o privado Ainda em 2006 o candidato ganhou o apoio de um núcleo de jovens ativistas do Complexo da Maré e uma vez eleito deputado ofereceu ao grupo duas vagas de assessor em seu gabinete A primeira indicada pelos jovens foi uma jornalista e comunicadora popular de 24 anos chamada Renata Souza que em 2018 se elegeria deputada estadual e dois anos depois seria a candidata do PSOL à prefeitura do Rio A segunda uma socióloga chamada Marielle Franco Ela tinha apenas 27 anos mas acumulava experiências nos campos pessoal e profissional Trabalhou como camelô pertenceu a pastorais da Igreja católica e foi dançarina da equipe de funk Furacão 2000 Estudou em cursinhos populares entrou na faculdade de ciências sociais da PUCRio com bolsa do Prouni e depois partiu para o mestrado em administração pública na Universidade Federal Fluminense Aos dezenove anos tornouse mãe de uma menina Luyara Em 2000 passou a militar pelos direitos humanos depois de perder uma amiga assassinada em um tiroteio entre traficantes e policiais Em 2002 separouse do marido levantou a bandeira LGBT e se apaixonou por sua futura companheira Mônica Benício Marielle trabalhou por dez anos no gabinete de Freixo ajudando familiares de vítimas de violência desde moradores de favelas até familiares de trabalhadores da polícia Deixou o posto em 2016 ano em que se elegeu vereadora pelo PSOL Com uma competente equipe de assessores e a visibilidade da CPI das Milícias Freixo ganhou protagonismo entre as lideranças de esquerda do Rio Se em 2007 ele tinha conseguido pouco mais de 13 mil votos quatro anos depois sua base de eleitores cresceu de forma exponencial Em 2010 foi o segundo deputado estadual mais votado com o apoio de mais de 177 mil eleitores fama que se ampliou com o sucesso naquele ano do filme Tropa de Elite 2 de José Padilha O personagem Diogo Fraga um professor de história que se torna deputado e preside uma CPI contra as milícias foi inspirado em Freixo A cena que abre o filme se baseia em sua experiência como mediador na rebelião de Bangu 1 em 2002 O herói da saga no entanto é o carismático Capitão Nascimento policial violento e incorruptível cujos métodos truculentos levaram plateias ao delírio Uma década depois da CPI das Milícias além das inúmeras prisões pelo menos 53 milicianos citados no relatório final tinham sido assassinados5 Uma das vítimas o vereador Josinaldo Francisco da Cruz o Nadinho de Rio das Pedras foi executado por três encapuzados quando saía de sua casa em um condomínio de luxo em Jacarepaguá Ele estava marcado para morrer Seis meses antes já tinha sido vítima de um atentado Durante um depoimento secreto na CPI Nadinho chegou a se despedir do deputado Marcelo Freixo porque sabia que seria morto Essa é nossa despedida porque serei assassinado disse Freixo lhe ofereceu proteção policial mas Nadinho recusou Mesmo premeditado o assassinato do vereador caiu no limbo da Divisão de Homicídios do Rio A situação do estado do Rio que já era ruim piorou com a prisão do governador Sérgio Cabral Filho e as sucessivas crises políticas e econômicas que se abateram sobre o Rio de Janeiro e o Brasil Facções de diferentes bandeiras e milicianos de diversos territórios se agitaram diante do vácuo de poder As confusões tiveram início com a sucessão de escâ ndalos revelados na esteira da operação Lava Jato Em março de 2017 a operação Quinto do Ouro realizada com base em delações de executivos da Andrade Gutierrez prendeu temporariamente cinco dos sete conselheiros do Tribunal de Contas do Estado entre eles o presidente Aloysio Neves o filho do exgovernador Marcello Alencar Marco Antônio Alencar e Domingos Brazão O primeiro a ser acusado pelos empresários na delação foi um sexto conselheiro Jonas Lopes apontado como o organizador da caixinha de propinas no Tribunal que dava o aval a obras públicas superfaturadas Lopes no entanto fez acordo de delação premiada e se licenciou do cargo para entregar os colegas Segundo afirmou os conselheiros cobravam propinas de até 20 nos contratos públicos mesmo percentual que a Coroa Portuguesa cobrava pela extração de ouro no Brasil no século X VIII o que inspirou o nome da operação Quinto do Ouro Depois de soltos a Justiça determinou que os cinco conselheiros deveriam seguir afastados dos cargos até o julgamento da ação Temendo represálias Jonas Lopes deixou o país com a família se aposentou e cumpriu prisão domiciliar Restou apenas uma conselheira no TCE a corregedora Marianna Montebello Willeman que não tinha como votar e tomar decisões sozinha atravancando desse modo a administração do órgão Diante da situação inusitada era preciso indicar pelo menos três novos conselheiros para que houvesse quórum e legalidade nas decisões Como o escâ ndalo da Quinto do Ouro tinha apontado os vícios das indicações políticas no Tribunal era preciso escolher técnicos de carreira como conselheiros Três nomes foram indicados Nos dias que antecederam a escolha eles foram vistos andando pelos corredores do Parlamento estadual em conversa com deputados Passado algum tempo os três desistiram de concorrer ao cargo vitalício com salário elevado e diversas mordomias Para substituílos sem nenhum constrangimento o então governador Luiz Fernando Pezão indicou o líder do governo na Casa o deputado Edson Albertassi Freixo pediu para subir à tribuna do Parlamento e protestar contra a indicação política Eu era como o time do América Todo mundo apoiava dizia muito bem belo discurso porque sabiam que eu não ia ganhar No caso de Albertassi contudo foi diferente Ele se aproximou de Freixo e pediu que ele não se manifestasse na tribuna Eu falei em todos os casos Vou falar agora também Freixo respondeu Posso pedir um favor disse Albertassi O senhor marca uma reunião na semana que vem para que eu possa explicar para a bancada do PSOL os motivos da minha indicação Mas não houve tempo para que a reunião fosse marcada Depois do discurso Freixo recebeu o telefonema de um procurador federal da Lava Jato A gente precisa falar com o senhor Podemos nos encontrar No encontro ocorrido naquela mesma noite os procuradores mostraram preocupação com a possibilidade de Albertassi assumir o cargo Quando ele vai tomar posse Pode ser que seja agora Vai ser no fim de semana A ansiedade dos procuradores tinha explicação uma grande operação estava para ser deflagrada Se Albertassi assumisse a vaga no TCE ganharia foro privilegiado e a operação teria que ser abortada No dia 14 de novembro de 2017 foi desencadeada a operação Cadeia Velha com dez mandados de prisão conduções coercitivas buscas e apreensões que atingiram em cheio um esquema de propina da Assembleia a caixinha da Fetranspor Segundo a denúncia empresários ligados à Federação de Transporte de Passageiros compravam deputados para obter votos favoráveis na Assembleia aos projetos que beneficiavam o setor O esquema teria começado em 1991 com um trio de deputados eleitos naquele ano Sérgio Cabral Jorge Picciani e Paulo Melo Cabral foi presidente da Casa até a eleição para o Senado em 2002 quando passou o trono para o parceiro Picciani Depois de 2007 Paulo Melo foi o líder do governo Cabral na Assembleia Além de Melo e Picciani a operação Cadeia Velha prendeu Edson Albertassi três empresários do setor de transporte e sete supostos operadores do esquema entre eles Felipe Picciani filho do presidente da Assembleia A revelação desse e de outros desmandos ajudou a entender melhor o processo de fortalecimento dos milicianos e suas interconexões com outros esquemas criminosos O trio de deputados articulava as indicações do TCE que aprovava os contratos superfaturados O conselheiro Brazão por exemplo tinha sido indicado em 2015 por Paulo Melo A falta de fiscalização produzia serviços públicos de péssima qualidade As mesadas pagas por empresários de ônibus por exemplo faziam com que a população dos subúrbios ficasse desassistida e sem transporte público abrindo caminho para as empresas de vans ganharem mercado em sociedade com paramilitares Era apenas uma das pernas dessas quadrilhas cujos interesses se interligavam A dilapidação do Estado ao mesmo tempo que enriquecia os políticos incentivava a prestação de serviços alternativos por quadrilhas criminosas que substituíam um Estado corrupto e em bancarrota A hipótese de que o assassinato de Marielle pudesse ser uma retaliação contra Marcelo Freixo planejada pelos envolvidos nas operações Quinto de Ouro e Cadeia Velha era uma das possibilidades consideradas pelos investigadores A conversa suspeita entre Siciliano e Beto Bomba citava um suposto pedido feito por Picciani a Domingos Brazão para contratar o Escritório do Crime Os acusados negavam Muitas acusações de fato podiam ser injustas Picciani por exemplo que havia se envolvido em esquemas de desvios nunca tinha sido acusado de assassinato Mas a lentidão na descoberta do mandante da morte de Marielle abria espaço para teses diversionistas Ao mesmo tempo tamanha era a promiscuidade na relação entre assassinos paramilitares e parte da elite política que nenhuma suspeita devia ser deixada de lado Perguntei à promotora Simone Sibílio do Gaeco qual o principal desafio na investigação do caso Marielle A grande dificuldade segundo ela era o fato de os envolvidos estarem ligados à polícia e conhecerem por dentro os atalhos para atrapalhar ou despistar uma apuração Além de evitarem celulares imagens de vídeo testemunhas as quadrilhas trabalhavam com contrainformação plantando pistas falsas para implicar rivais O próprio Curicica que dera um testemunho importante também mentiu tentando incriminar os inimigos Jorginho e Brazão por exemplo eram dois rivais seus Todo cuidado era pouco O promotor Luiz Antônio Ayres me disse a mesma coisa Por serem policiais eles pensam com a cabeça dos investigadores e conseguem evitar rastros Ele citou um exemplo da criatividade dos paramilitares de Campo Grande e Santa Cruz para impedir a formação de provas Depois que os promotores começaram a encontrar covas clandestinas com os corpos de vítimas os milicianos passaram a enterrar os cadáveres em cemitérios públicos ao lado de outros mortos Optaram por essa tática por saberem que as autoridades dificilmente concederiam permissão para uma grande escavação que causasse transtornos a tantas famílias No decorrer da apuração montei minha lista de suspeitos O principal caminho conforme a investigação se afunilava era partir das conexões de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz para tentar chegar aos mandantes ou parceiros Lessa era um nome importante no crime e a decisão de matar Marielle poderia ter partido de um contratante ou da rede da qual ele fazia parte As conexões do sargento contudo eram diversas Mesmo sendo um matador avulso mantinha contatos com o Escritório do Crime e com milicianos de Muzema ligados ao capitão Adriano Lessa também se relacionava ou tinha bons contatos com figurões como Rogério de Andrade e Domingos Brazão Para complicar tinha convicções políticas firmes e um ódio visceral à esquerda Em geral suas amizades pareciam ter origem nas mais obscuras profundezas da deep w eb Essa turma no entanto longe de se manter invisível atrás de um computador era ativa no mundo do crime fluminense dominava territórios comprava carros importados mansões lanchas geria casas de jogos clandestinas bebia Chandon na praia e se achava dona do Rio Para chegar à autoria também era importante entender as motivações Seriam políticas para atrapalhar a intervenção Seriam uma tentativa de tumultuar o ambiente e provocar uma ação militar mais ampla e rigorosa Estariam vinculadas a grupos poderosos que mandam no estado há anos Ou estariam ligadas apenas às questões práticas das quadrilhas paramilitares como lucro e risco de prisão Apesar de muitas perguntas permanecerem no ar o caso Marielle evidenciou uma realidade incômoda a omissão da Divisão de Homicídios na elucidação de diversos assassinatos ao longo de pelo menos uma década foi fundamental para que os criminosos pudessem agir sem medo com a certeza de permanecerem impunes No meio desse turbilhão no fim de 2018 o deputado Marcelo Freixo se elegeu deputado federal o que o levou a deixar o Rio e a Assembleia Legislativa Era necessário respirar outros ares e debater assuntos nacionais Mas não havia motivos para celebrar nem mesmo pelos 342 mil votos conquistados a segunda maior votação do estado Junto com Freixo mudavase para Brasília mais especificamente para o Palácio do Planalto um aliado do chefe do principal grupo de assassinos em atividade no Rio de Janeiro Jair Bolsonaro que durante anos tinha apoiado o capitão Adriano Magalhães da Nóbrega em discursos e com cargos a seus familiares tornouse presidente da República Seu filho Flávio Bolsonaro que garantiu emprego para a mãe e a exmulher de Adriano em seu gabinete foi eleito senador Freixo ainda teria que compartilhar as cadeiras do Congresso Nacional com Chiquinho Brazão irmão de Domingos apontado pela PGR como suspeito de matar Marielle Outros simpatizantes das milícias foram eleitos como o deputado Daniel Silveira que ganhou notoriedade ao quebrar uma placa com o nome de Marielle Franco durante a campanha Wilson Witzel se elegeu governador do Rio com a mesma plataforma em defesa da violência policial e da guerra ao crime Havia algo errado com boa parte dos brasileiros A esperança de um projeto coletivo parecia ter desaparecido e a população começava a apostar em defensores do extermínio como solução para o Brasil 7 As milícias 5G e o novo inimigo em comum O capitão Adriano da Nóbrega tinha boas conexões dentro e fora do crime Um desses elos era Antônio Eugênio de Souza Freitas o Batoré Matador e narcomiliciano Batoré cultivava diversos contatos como a parceria com o traficante Fernando Gomes de Freitas o Fernandinho Guarabu do Terceiro Comando Puro TCP chefe no Morro do Dendê Guarabu sustentava com arregos os policiais do batalhão que deveriam vigiálo O traficante era evangélico fervoroso A trajetória dessas figuras com suas conexões variadas ajuda a enxergar como foram costuradas as diversas pontas de uma rede proeminente no submundo criminal do Rio de Janeiro Estabelecer alianças capazes de direcionar os negócios mediar o convívio entre concorrentes e forjar um ideal comum são pressupostos para sobreviver na rica e conflagrada economia criminal fluminense A missão não é simples considerando as décadas de disputas entre facções e organizações de diferentes bandeiras e cores Esse objetivo começou a se solidificar quando paramilitares policiais governantes e traficantes uniramse contra um mesmo inimigo o Comando Vermelho A cena criminosa se profissionaliza e prospera quando seus atores conseguem reduzir os custos dos negócios pela redução da violência A ausência de conflitos e o respeito a normas de relacionamento garantem previsibilidade e capacidade de planejamento Para alcançar esse estágio o mercado ilegal precisa ser mediado por um ou vários grupos capazes de criar e controlar as regras No mundo do crime paulista o PCC conseguiu exercer esse papel de agência reguladora fazendo a mediação de conflitos entre os participantes criando protocolos comerciais regras de convívio e punição para aqueles que as desrespeitassem A regulação permitiu aos integrantes do grupo ampliar seus negócios e lucros alcançando o mercado atacadista de drogas e armas nas fronteiras do continente para assim poderem distribuir mercadorias para varejistas em diversos estados brasileiros O PCC em vez de controlar os territórios das periferias paulistas para ali exercer seu poder impôs seu domínio ao cotidiano de mais de 150 presídios por onde mais de 1 milhão de criminosos já passaram ao longo de 25 anos Com o domínio do sistema prisional quem desrespeitasse interesses criminosos coletivos teria que prestar contas quando fosse preso com punições que implicavam penas em piores condições nas celas e prisões reservadas aos inimigos No Rio de Janeiro os patriarcas do jogo do bicho se articularam no Clube Barão de Drummond dividindo os mercados do jogo e caçaníquel com a participação e a conivência dos policiais Um movimento como esse era mais complicado no mercado das drogas fortemente vinculado a territórios A partir dos anos 2000 os donos de morros armados com fuzis e munições de grosso calibre distribuídos entre facções viveram competição acirrada com a chegada das milícias mais uma facção a disputar terreno Como organizar esse caos entre centenas de reinos em disputa Muito sangue seria derramado até que começasse a surgir uma solução para governar o mundo do crime fluminense Os conflitos fratricidas fragilizavam a todos Alianças improváveis se tornavam cada vez mais comuns lideradas por paramilitares e policiais que definiram os rumos desse mercado criminal O capitão Adriano da Nóbrega por exemplo depois de se tornar pistoleiro de luxo do jogo do bicho em 2004 e 2005 se aproximou das milícias de Rio das Pedras onde coordenava grilagens e construção de edifícios ilegais negócios que resultariam em desabamentos e mortes em Muzema Segundo Orlando Curicica Adriano também passou a atuar em jogos de azar depois que recebeu de Luizinho Drummond áreas para administrar na zona norte da cidade A manutenção do poder em ramos criminais variados se apoiava em serviços de um grupo de matadores especializados atividade que o capitão aprimorou graças a técnicas aprendidas no Bope Um dos companheiros de Adriano nesse núcleo especializado era João André Martins que agia com o capitão desde os tempos dos conflitos do bicho Adriano e João foram expulsos da Polícia Militar em 2014 por ligações com a contravenção O terceiro componente da gangue de matadores era Batoré que formava o núcleo inicial dos assassinos que integravam o Escritório do Crime Quando policial antes de se bandear de vez para o crime Batoré se envolvia em contravenções na PM como desvio de armas adquiridas nas operações de morro Em 2005 foi expulso ao ser flagrado tentando vender três fuzis para o traficante Fernandinho Guarabu Fora da corporação Batoré passou a atuar com milicianos da Liga da Justiça em Campo Grande e Santa Cruz na zona oeste Foi chamado para reorganizar os grupos fragilizados com as prisões e mortes decorrentes da CPI das Milícias Na outra frente de atuação o Escritório do Crime Batoré foi apontado como suspeito por exemplo da morte dos milicianos Geraldo Antônio Pereira e Marcos Falcon e do bicheiro Haylton Escafura Havia outros matadores no grupo como Leonardo Gouveia da Silva o Mad Leonardo Luccas Pereira o Leleo Diego Luccas Pereira o Playboy e Edmilson Gomes Menezes o Macaquinho que atuavam por empreitada Mad foi preso em junho de 2020 acusado de ser o novo chefe do grupo de matadores depois da morte de Adriano Os três últimos também eram apontados como chefes da milícia que controlava as comunidades do Morro da Barão Chacrinha Fubá Jordão e Campinho na região da Praça Seca na zona oeste Desde seu surgimento as milícias criaram grupos de matadores para atuar na linha de frente dos conflitos O núcleo do capitão Adriano no entanto havia elevado os assassinatos a um novo patamar graças à técnica apurada de seus integrantes e à influência que exerciam no setor de investigação da Divisão de Homicídios facilitada pela boa relação dos matadores com os bicheiros De olho nos lucros criminais a extensão dos negócios da rede não tinha preconceitos chegando ao superlucrativo mercado de drogas Batoré que já tinha vínculos com milicianos e matadores de Rio das Pedras e da Praça Seca passou a ganhar dinheiro sobretudo por meio de sua parceria com o tráfico no Morro do Dendê na Ilha do Governador Tornouse um dos parceiros mais próximos de Guarabu chegando ao posto de número dois Na narcomilícia do Dendê cabia a Batoré coordenar as linhas de cerca de trezentas vans que circulavam na Ilha do Governador e cobrar as taxas dos motoristas Policiais militares ainda pagavam pedágio ao grupo pela exclusividade da venda de gás na comunidade Segundo investigações Guarabu e Batoré também financiavam os arregos dos policiais do 17o Batalhão Em decorrência das investigações sobre o esquema de vans e propinas em 2017 Batoré ficou preso por um mês mas foi solto Teve prisão novamente decretada porém já havia sumido e se tornado foragido O Morro do Dendê era considerado estratégico para o mercado de drogas e de armas por seu acesso privilegiado à Baía de Guanabara e aos carregamentos vindos de barcos e navios Fernandinho Guarabu o sócio de Batoré era o chefe do morro desde 2004 quando tomou a comunidade do traficante Marcelo Soares de Medeiros o Marcelo PQD O apelido PQD fazia referência à passagem do traficante pela divisão de paraquedistas do Exército Foi dispensado das Forças Armadas em 1997 quando se aproximou do tráfico na condição de fornecedor de armamentos forma recorrente de parceria nas trajetórias criminais do Rio Preso em 2000 por porte de armas de uso restrito das Forças Armadas PQD ficou em Bangu 1 mas foi poupado da rebelião de 2002 liderada por Marcinho VP e BeiraMar Deixou o TCP para se aliar ao Comando Vermelho Por causa da mudança de facção Guarabu antigo aliado de PQD decidiu dar o golpe e assumir o comando do morro sob a bandeira do TCP Guarabu precisava de capacidade de articulação para manter o território sob controle considerando as habilidades técnicas do inimigo deposto Em 2007 PQD tentou retomar o Dendê com a ajuda de exparaquedistas que treinavam traficantes do CV no Complexo do Alemão mas foi preso antes do confronto A proximidade de Guarabu com policiais e milicianos garantia a estabilidade do grupo na região Diplomático ele sabia que a violência não bastava Apesar de diversos mandados de prisão o novo chefe do Dendê não foi incomodado durante quinze anos e se tornou um dos principais nomes do tráfico no Rio Guarabu foi precursor de um modelo que se espalhou por outros bairros a União 53 referência à sigla das milícias 5M e do Terceiro Comando Puro entre tráfico e milícia Guarabu prezava o assistencialismo e a boa relação com a comunidade Dava um sentido metafísico à sua luta Era um bandido de Cristo Evangélico desde 2006 frequentava a Assembleia de Deus Ministério Monte Sinai colecionava Bíblias mandava pintar muros com frases religiosas e tinha o nome de Jesus Cristo tatuado no antebraço direito Também impedia a exibição de conteúdos pornográficos no gatonet local Expulsou da favela fiéis de religiões de matrizes africanas e fechou dez terreiros na região Procedimento semelhante era seguido por outros chefes do tráfico do Rio principalmente do TCP A religiosidade ajudava alguns criminosos a justificar atos de violência como um mal necessário A guerra era moralmente justificada feita em nome de algo que eles acreditavam representar o bem Esse tipo de moralismo aproximou os traficantes de Cristo dos milicianos Ambos defendiam ordem no território que governavam separando o certo do errado e legitimandose pela punição aos desviantes mesmo que para isso fossem necessários assassinatos torturas e desaparecimento de corpos A principal afinidade no entanto era a existência de um inimigo comum o Comando Vermelho considerado a representação do mal A construção da figura do inimigo oferecia sentido às guerras Entre os traficantes religiosos o salmo 91 sempre foi popular O texto fala de um Deus que funciona como escudo protetor na luta pelo que enxergam como verdade Ele te cobrirá com suas penas e debaixo das suas asas te confiarás a sua verdade será o teu escudo e broquel Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia nem da peste que anda na escuridão nem da mortalidade que assola ao meiodia Mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita mas não chegará a ti diz um trecho O Bonde de Jesus por exemplo apelido conferido pela imprensa ao grupo de Á lvaro Malaquias Santa Rosa o Peixão comandava a venda de drogas em Parada de Lucas Cidade Alta Vigário Geral e Baixada Fluminense O grupo reunia bandidos cristãos mergulhados nessa cruzada moralizante de territórios para a venda de drogas A polícia dizia que Peixão não apenas havia se convertido como tinha se tornado pastor de uma igreja evangélica Peixão era liderança do TCP e tinha levado o grupo a se expandir para comunidades historicamente ligadas ao CV como Vigário Geral e Cidade Alta Nos ataques a terreiros seu bonde quebrava imagens de orixás agredia mães e pais de santo e aterrorizava seguidores de religiões de matriz africana A religiosidade dos traficantes não era atenuante para a crueldade contra os inimigos Em maio de 2019 o bonde de Peixão foi acusado de matar sete jovens da comunidade Cinco Bocas em Brás de Pina que eles tentaram tomar dos rivais Na invasão os agressores usavam roupas pretas e toucas ninja como nas operações policiais Durante o ataque segundo testemunhos eles gritavam Polícia e Bonde do Peixão Moradores ainda disseram que os corpos dos jovens foram triturados e dados de alimento aos porcos A união contra o CV colocou do mesmo lado milicianos policiais bicheiros e traficantes Essa aliança ajudou as forças de segurança a controlar o crime sem prejudicar os negócios da milícia e do tráfico de drogas Apenas o CV principal rede de traficantes do Rio e os moradores dos bairros controlados pela fação saíram perdendo A estrutura dessa rede era mais importante do que os nomes por trás dos grupos Alguns podiam ser mortos e presos desde que a aliança continuasse As aparências deviam ser preservadas e os limites respeitados No Morro do Dendê por exemplo a condescendência das autoridades com os integrantes do grupo de Guarabu chegou ao fim quando os cabeças da facção ultrapassaram uma dessas fronteiras Eles mataram o major Alan de Luna Freire que atuava no setor de Inteligência do 17o Batalhão e investigava o grupo O major havia instalado uma câ mera na casa onde Guarabu Batoré e outros integrantes da quadrilha se encontravam gravando imagens importantes para a investigação sobre drogas e corrupção policial O oficial foi executado em novembro de 2018 com mais de vinte tiros de fuzil quando chegava em sua casa em Nova Iguaçu na Baixada Fluminense Batoré o miliciano pistoleiro foi apontado como suspeito A polícia perdera o controle do grupo Não havia mais clima para a relação entre o grupo de Guarabu e os policiais Perto das 5h30 de uma manhã de junho de 2019 cerca de cem homens entre policiais do Bope e do 17o Batalhão fizeram uma operação no Morro do Dendê para cumprir três dezenas de mandados de prisão Guarabu e Batoré que acumulavam anos de informações valiosas sobre a promiscuidade entre o crime e o Estado foram mortos junto com seus comparsas mais próximos Segundo a polícia eles reagiram para não ser presos O susto foi grande Marcelo PQD ameaçou invadir o Morro do Dendê mas o plano foi descoberto pela polícia e abortado O TCP seguiu no comando nos meses seguintes O morro continuou reduto de um grupo armado e poderoso com cerca de duzentos fuzis Preservar a força desse grupo era importante para evitar o crescimento do CV presente na comunidade vizinha a do Barbante a cerca de sete quilômetros de distâ ncia A aproximação entre as milícias e o Terceiro Comando Puro começou depois da CPI das Milícias e do avanço das UPPs A CPI desestruturou os grupos de Rio das Pedras e da Liga da Justiça porém a chegada de novos aliados vitaminou o poder da rede o capitão Adriano com suas conexões no bicho e na polícia foi uma adesão de peso As UPPs também desempenharam papel decisivo Como foram implantadas sobretudo nos territórios do Comando Vermelho a facção sofreu um baque e precisou se reorganizar Com a perda de armas e drogas no Alemão o grupo contraiu dívidas com fornecedores entre eles o PCC Mudanças foram necessárias O quartelgeneral da facção teve que deixar o Alemão e migrar para o Complexo do Chapadão também na zona norte A dívida elevada se somou à queda nas vendas da droga Era a oportunidade ideal para os rivais ocuparem espaços de poder Tanto para as milícias como para o TCP havia muito a ganhar com a União 53 Agora havia um propósito capaz de organizar os diversos grupos envolvidos no mercado ilegal e informal do Rio uma economia cada vez mais relevante no estado A construção da hegemonia de um grupo sobre os demais nos moldes do que o PCC tinha conseguido em São Paulo seria o salto necessário para a construção da nova rede 5G com mais conexões e eficiência Para os milicianos seria preciso abandonar a resistência ao comércio de entorpecentes O tráfico poderoso e rentável não podia ser o antagonista do grupo e precisava ser cooptado desde que as vendas nos territórios fossem regulamentadas Para a Segurança Pública esse movimento também ajudava porque reduzia os conflitos e as taxas de homicídios sem que fosse preciso acabar com antigos negócios Os arregos continuariam a ser cobrados mas de criminosos de confiança que lucrariam mais com o fim dos conflitos A guerra e seu espólio rentável durariam por um bom tempo enquanto o CV conseguisse resistir Mesmo sem um acordo verbal alianças foram naturalmente se formando entre as partes A parceria ampliou a capacidade tática e operacional para invasões de territórios Drones coletes à prova de balas uniformes militares e rádios de comunicação se tornaram artefatos comuns no planejamento desses conflitos assim como o aprendizado de décadas em operações policiais nas incursões em comunidades compartilhado com criminosos aliados Até o aluguel do caveirão o veículo blindado usado em invasões para integrantes do TCP invadirem comunidades ligadas ao CV se tornou recorrente Investigações apontaram que a invasão da Cidade Alta por exemplo realizada por Peixão e seu bando em dezembro de 2016 ocorreu com ajuda de um blindado que teria sido alugado por 1 milhão de reais1 Antes da invasão uma grande operação policial prendeu 45 traficantes do CV e apreendeu 32 fuzis entre eles modelos potentes e modernos como AR10 AR15 AK 47 e Sig Sauer A Cidade Alta considerada um reduto tradicional do CV caiu sem grande resistência Em São Gonçalo numa operação policial feita com o caveirão imagens registraram um traficante do TCP Michael Zeferino da Silva o Jogador tirando a touca ninja e olhando para a câ mera ao lado dos policiais No mesmo ano outro escâ ndalo envolveu traficantes do TCP que posaram para fotos armados e sem camisa dentro de um blindado policial Também era possível realizar ações casadas Em abril de 2019 os traficantes da Serrinha invadiram comunidades do Cajueiro na zona norte Na mesma hora milicianos da região do Fubá atacavam um dos últimos redutos do CV na Praça Seca a comunidade de Bateau Mouche O grupo a que pertenciam esses milicianos era liderado por Macaquinho Leleo e Playboy comparsas do capitão Adriano da Nóbrega no Escritório do Crime Para tomar o território eles receberam ainda o apoio de cinquenta homens de outro grupo vindo da região de Campo Grande e Santa Cruz comandado por Wellington da Silva Braga o Ecko Ecko e seus bondes se tornaram a principal frente de expansão das milícias para outros territórios Ele também inovou nas estratégias de crescimento fazendo parcerias na Baixada Fluminense e no interior do estado com negócios semelhantes a franquias nos quais ele oferecia apoio segurança armada e contatos políticos aos pequenos em troca de uma parcela dos lucros A CPI das Milícias não acabou com os grupos Como costumava repetir Marcelo Freixo os negócios persistiriam se os mercados e as condições que promoviam o lucro dos milicianos continuassem a existir Foi o que aconteceu A Liga da Justiça por exemplo ganhou novos chefes e mudou a forma de atuar Houve muitas baixas Os irmãos Jerominho e Natalino Guimarães foram presos Em seguida os expoliciais militares Ricardo Teixeira da Cruz o Batman e Toni  ngelo de Souza assumiram a liderança do grupo Ambos também acabaram presos e delegaram a chefia da milícia a seus homens de confiança Mas estes entraram em choque e racharam o grupo Ricardo Gildes conhecido por Dentuço e aliado de Batman foi assassinado por Carlos Alexandre Braga o Carlinhos Três Pontes escolhido por Toni que passou a comandar o grupo Três Pontes tinha um perfil diferente de seus antecessores Era um pé inchado termo usado para milicianos que não tinham origem nos quadros policiais Ele começou como traficante do CV na comunidade Três Pontes em Santa Cruz de onde veio seu apelido Acabou aliciado pelos paramilitares e ajudou seus novos patrões a tomar áreas que pertenciam a antigos colegas do tráfico ganhando a confiança de Toni  ngelo para se tornar chefe do grupo Três Pontes tinha amizade com uma liderança do TCP Carlos José da Silva Fernandes o Arafat do Complexo da Pedreira na zona norte Nessa sociedade cargas roubadas pelo tráfico podiam ser guardadas e vendidas nas áreas de milícias Vans milicianas eram autorizadas a circular no território do tráfico que também passou a aceitar a venda do gás e do gatonet O novo modelo se expandiu para comunidades da Baixada Fluminense como Itaguaí Seropédica e Nova Iguaçu levando violência e conflito para fora da capital Em Seropédica em 2015 Três Pontes foi acusado de envolvimento na morte do vereador Luciano Nascimento Batista PCdoB conhecido como Luciano DJ assassinado quando saía de uma casa noturna No ano seguinte foi a vez do policial e précandidato a vereador Julio Reis ser assassinado na cidade Ainda em 2016 o grupo foi envolvido na morte do subtenente da polícia militar Manoel Primo Lisboa apontado como líder da milícia de Cabuçu em Nova Iguaçu Entre novembro de 2015 e agosto de 2016 treze candidatos vereadores e lideranças comunitárias foram assassinados O reinado de Três Pontes não durou muito Ele foi morto em abril de 2017 numa operação da Polícia Civil que o encontrou na casa da namorada único local em que ele dispensava seguranças Mas o novo modelo de negócios teve continuidade pelas mãos de seus dois irmãos Ecko que viraria o chefe e Luís Antonio da Silva Braga o Zinho que cuidaria das finanças A aposta nas parcerias horizontais favoreceu a expansão através do modelo semelhante às franquias o que rendeu ao grupo de Ecko o apelido de Firma As decisões eram descentralizadas a não ser as mais relevantes como assassinatos e novas cobranças de taxas sobre as quais o chefe devia ser consultado No caso de conflitos a depender do armamento do opositor Ecko poderia oferecer homens e armas para proteger aliados Em outras palavras a Firma funcionava como uma milícia guardachuva cobrando taxas de proteção dos pequenos milicianos A divisão de tarefas também era mais clara com pessoas encarregadas de cobrança de taxas instalações piratas de TV coleta de informações para a quadrilha dentro da polícia ou nos territórios e para as áreas financeira e imobiliária Outros mercados criminais rentáveis ganharam espaço Um setor que cresceu foi a venda ilegal de cigarros contrabandeados do Paraguai ou os chamados piratas dos piratas que imitavam as marcas paraguaias Um mercado altamente lucrativo Estimativas feitas pelo Ibope a pedido da indústria nacional de cigarros calculou que o consumo dos ilegais no Rio de Janeiro em 2019 foi de 41 de todo mercado o que correspondeu a uma receita estimada em 764 milhões de reais Caso tivessem sido taxados pelo Estado esses produtos teriam gerado 307 milhões de reais em Imposto sobre Circulação e Mercadorias e Serviços ICMS Em janeiro de 2018 o Ministério Público do Rio denunciou integrantes da quadrilha de Ecko que impunham a venda de cigarros piratas da marca Gift em Campo Grande Santa Cruz e em outros mercados do grupo distribuindo a mercadoria daquele que era apontado como o principal contrabandista de cigarros do Rio de Janeiro o expolicial militar Ronaldo Santana da Silva Essa capacidade de articulação fez com que o mercado de cigarros ilegais alcançasse 89 dos estabelecimentos comerciais na zona oeste contrastando com os 20 da região central2 As marcas mais consumidas no Rio de Janeiro não eram as tradicionais No primeiro lugar do ranking estava a Gift vinda do Paraguai alcançando 28 do consumo A cópia brasileira também chamada Gift e produzida por uma empresa em Duque de Caxias correspondia a 8 do total e ocupava a quinta posição entre os cigarros mais vendidos O preço final do produto não passava de quatro reais o maço menos da metade das marcas mais famosas Outro setor que contou com a ajuda da milícia de Ecko foi o de extração de areia em área de proteção ambiental como ocorria nas zonas rurais de Seropédica Areia pedra saibro eram retirados dessas áreas para ser fornecidos a outro braço dos paramilitares que investiam em imóveis ilegais de áreas griladas O preconceito contra a venda de drogas ficou no passado afinal Carlinhos Três Pontes tinha ingressado nas milícias pelo tráfico As afinidades entre traficantes e milicianos eram bem maiores do que suas diferenças Ecko passou a aproveitar a mão de obra dos funcionários das bocas de comunidades invadidas oferecendo salários e tarefas na nova gestão A medida tentava se valer dos crias para lidar com o estranhamento dos moradores com o novo comando tentando com isso reduzir ameaças de denúncias e traições Para os traficantes convertidos o novo plano de carreira representava menos risco pois não era preciso trocar tiros com a polícia nem enfrentar sucessivas operações O pacto de não agressão com o TCP flexibilizou também falsos moralismos e a venda de drogas e os bailes funk ganharam mais espaço no novo modelo Territórios importantes do CV começaram a cair As comunidades do Rola no Complexo do Rodo e Antares em Santa Cruz foram tomadas depois das eleições de 2018 A invasão das comunidades do Rodo teve como origem a traição do chefe do tráfico local Eduardo José dos Santos o Sonic que pertencia ao CV mas trocou de lado levando fuzis e dinheiro para seus novos parceiros milicianos A mudança de lado foi cantada em um vídeo proibidão intitulado Recado do Rodo pro Sonic visto mais de 350 mil vezes no Y ouTube Puta que o pariu pelo amor de Deus não acreditei no que aconteceu Tava no meu plantão e veio essa triste notícia O cuzão do Sonic pulou para a milícia Eu vou te dar uma ideia puta que o pariu Não pulou sozinho levou cinco fuzil Bagulho maneiro olha só essa palhaçada ainda por cima dos fuzil levou dez Glock Rajada Eu tô cheio de ódio não tô de fofoca quem mandou lançar essa foi a tropa da Marcola outra comunidade comandada pelo CV O refrão era uma sentença de morte bala no cuzão do Sonic Alguns traficantes do Rodo aderiram ao bonde de Ecko enquanto outros fugiram principalmente para as comunidades de Angra dos Reis Um novo conflito se estabeleceu na região de Costa Verde O Comando Vermelho reagiu à ofensiva do TCP em Angra Um dos homens fortes de Guarabu Tiago Farias Costa o Logan apoiou a invasão do TCP nas comunidades Os tiroteios interditaram a BR101 O governador Wilson Witzel no cargo havia quatro meses viu no conflito uma oportunidade para demonstrar sua disposição para a guerra Num sábado ele embarcou em um helicóptero da Polícia Civil que do alto efetuou disparos de fuzil em direção ao chão O governador gravou um vídeo e postou a cena em suas redes No dia seguinte soube que os tiros acertaram o teto de uma barraca onde evangélicos costumavam orar no fim de semana A expansão do bonde de Ecko tornou a zona oeste do Rio um reduto miliciano Um dos poucos territórios geridos pelo CV na região era a Cidade de Deus que passou a receber visitas de milicianos e constantes operações policiais O mesmo ocorreu com a Vila K ennedy localizada às margens da avenida Brasil Milicianos e traficantes do TCP ligados ao tráfico em Senador Camará se juntaram em tentativas recorrentes de tomar de assalto a vizinha comandada pelo grupo inimigo Também na zona oeste está um dos últimos redutos da Amigos dos Amigos a ADA na Vila Vintém em Padre Miguel A comunidade é chefiada por uma figura longeva da cena criminal carioca Celso Luís Rodrigues o Celsinho da Vila Vintém Traficante à moda antiga quase na terceira idade nasceu em 1961 Celsinho começou nos anos 1990 como assaltante de caminhões na avenida Brasil Diz a lenda que a carga roubada era repartida com a população A mística de Robin Hood ajudou a mantêlo por longo tempo no controle do tráfico no bairro apesar de estar preso há duas décadas O traficante mantinha diálogo aberto com os rivais chegou a fornecer drogas aos concorrentes em épocas de desabastecimento de comunidades do CV e foi poupado na chacina de Bangu 1 onde morreram quatro parceiros do Terceiro Comando O fato de ele não ter sido atacado e a desconfiança que isso gerou contribuíram para o racha do TCA que resultou na criação do Terceiro Comando Puro A ADA sofreu um grande abalo em 2017 com a perda da comunidade mais rentável do Rio de Janeiro a Favela da Rocinha Na linguagem do crime do Rio essas alternâ ncias de poder em que o dono do morro é derrubado com o uso da força são chamadas de golpe de Estado A mudança da bandeira ocorreu depois dos conflitos entre Antônio Francisco Bonfim Lopes o Nem preso desde 2011 e Rogério Avelino da Silva o Rogério 157 seu braço direito Rogério 157 assumiu o comando da comunidade durante a prisão de Nem Anos depois os dois romperam porque 157 começou a cobrar taxas de comerciantes mototaxistas entre outros serviços Nem ordenou a expulsão de Rogério 157 da Rocinha Em resposta o traficante matou três aliados de Nem desencadeando inúmeros conflitos em que pelo menos vinte pessoas morreram Escolas e hospitais foram fechados na comunidade Para resistir 157 aliouse ao Comando Vermelho recebendo o reforço de homens e armas para o combate Com a perda da Rocinha isolado na Vila Vintém cercado na zona oeste por milicianos e traficantes do TCP Celsinho precisava se mexer Aproximouse dos rivais do CV e os grupos fizeram um pacto de não agressão para ganhar fôlego e voltar a crescer O CV estava longe de jogar a toalha O grupo havia conseguido se reerguer do prejuízo e da perda de drogas e armas no Complexo do Alemão em 2010 O traficante Pezão que havia conseguido fugir na véspera da ocupação do morro pelas Forças Armadas tornouse o principal matuto a vender drogas do Paraguai e da Bolívia no atacado para as quadrilhas das comunidades do comando Para mim que praticamente caía de paraquedas numa realidade tão complexa todas as articulações entre essas elites armadas tirâ nicas e criminosas com seus reinos e bandeiras imaginários surgiam como um mundo novo quase inacreditável Um cenário bem diferente do paulista As instituições e as leis em São Paulo serviam como referência de autoridade O PCC e seus integrantes diziam atuar do lado certo de uma vida errada assumindo uma condição marginal No Rio de Janeiro a referência são os próprios criminosos confiantes o suficiente para mandar e desmandar como se representassem o estilo de vida correto como se os argumentos das narrativas milicianas tivessem vencido os dos defensores do estado de direito Depois da CPI das Milícias os grupos criminosos formaram dois grandes conjuntos Um deles mais inovador composto de grupos paramilitares associados ao bicho e a uma parte do tráfico mais precisamente ao TCP Outro ligado ao CV com apoio da ADA seguiu o tradicional modelo do tráfico de drogas O grupo das milícias contudo teria duas subdivisões No eixo da Barra da Tijuca Recreio e Jacarepaguá a partir de Rio das Pedras Muzema e adjacências as milícias seguiram com seus negócios tradicionais como cobranças de taxa de proteção gatonet vendas de gás água internet agiotagem grilagem em zonas protegidas por leis ambientais venda de apartamentos ilegais Seguiram vinculadas a uma narrativa moralista herdada dos vigilantes nordestinos e policiais que associavam o grupo ao modelo de autodefesa territorial A parceria com o TCP foi liberada Depois da CPI cresceu o protagonismo dos empresários dos jogos de azar com suas máquinas de caçaníquel e conexões internacionais que depois de meados dos anos 2000 se fortaleceram com a associação com grupos de assassinos profissionais A histórica relação da contravenção com o poder e com as polícias garantia impunidade aos assassinos Em compensação essas milícias também herdaram as rixas dos bicheiros e passaram a enfrentar intensos conflitos fratricidas Vieram desse núcleo os autores e os prováveis mandantes do assassinato de Marielle O outro modelo menos tradicionalista partiu das milícias de Campo Grande e Santa Cruz com sua estrutura mais flexível e expansionista lideradas pelos bondes de Ecko Os pés inchados tinham grande protagonismo nesses grupos incluindo extraficantes convertidos em paramilitares Nesse cenário diante da pergunta tráfico ou milícia cada lado tem sua lista de argumentos Os paramilitares se dirão defensores da ordem e da tradição contra a imprevisibilidade proporcionada pela venda de drogas Já os traficantes se dirão contrários à cobrança de taxas a moradores e comerciantes além de se colocarem como resistência a uma polícia opressiva e corrupta Na prática contudo o que move ambos os lados é a busca por mais dinheiro e poder Os integrantes dos dois blocos milicianos viviam uma relação atribulada mas eram forçados a se tolerar Um retrato dessa tensão foi revelado por operações deflagradas pelo Gaeco entre 2017 e 2019 batizadas de Quarto Elemento Os promotores denunciaram uma quadrilha com mais de cinquenta policiais e informantes que atuava em Santa Cruz Bangu e Nova Iguaçu extorquindo criminosos inclusive integrantes da milícia de Ecko Em janeiro de 2017 por exemplo um grupo de policiais de Bangu passava pelo bairro de Paciência quando viu um Porsche Cayenne ao lado de máquinas de terraplanagem O dono do carro presente no local era Zinho irmão de Ecko Segundo a denúncia ele pagou 20 mil reais para não ser preso em flagrante por crime ambiental Zinho que na época já tinha um mandado de prisão coordenava uma empresa de extração de areia para construir prédios irregulares em áreas protegidas pela legislação ambiental O bando de Ecko apesar das propinas pagas a diversos policiais não conseguia cooptar a todos e continuava sendo extorquido O grupo de policiais mineiros era poderoso Além dos tiras da 36ª e da 34ª DP em Bangu integrava o bando o policial civil Rafael Luz Souza o Pulgão apontado como chefe de uma milícia na Favela da Carobinha uma das principais rivais do bando de Ecko Em seu depoimento prestado no presídio federal de Mossoró Orlando Curicica apontou Pulgão como um dos matadores que atuavam para o bicheiro Rogério de Andrade Pulgão foi preso pela operação Quarto Elemento quando estava em uma boate com dois carros roubados cinco fuzis e uma metralhadora antiaérea 50 capaz de derrubar aeronaves Nessa operação também foram denunciados os irmãos gêmeos Alan e Alex Rodrigues de Oliveira seguranças da campanha de Flávio Bolsonaro ao Senado em 2018 A irmã dos gêmeos Valdenice trabalhava no gabinete de Flávio e ficou encarregada de administrar os gastos da campanha de Flávio ao Senado Alan e Alex eram sócios de um loteamento irregular e pagavam propinas aos policiais Outro policial civil preso na operação Quarto Elemento foi Flavio Pacca Castello Branco consultor de segurança do candidato Wilson Witzel e que havia se candidatado a deputado federal pelo Partido Social Cristão PSC o mesmo do governador Flávio e Witzel alegaram que não podiam ser acusados de crimes cometidos por pessoas ligadas a eles Do ponto de vista processual de fato não podiam mas é inegável que ambos compartilhavam valores morais com os criminosos Em entrevista ao Estadão logo depois de sua eleição Witzel afirmou O correto é matar o bandido que está de fuzil A polícia vai fazer o correto vai mirar na cabecinha e fogo Para não ter erro3 Witzel afirmou ainda que a polícia do Rio matava pouco Antes da posse Jair Bolsonaro brincou com o governador Num almoço com professores da Fundação Getulio Vargas Witzel contou aos convivas entre risadas o que o presidente tinha dito a ele Naval apelido que fazia referência a Witzel ter sido fuzileiro naval eu tenho um parafuso a menos Mas em você faltam dois parafusos4 Witzel assumiu o governo tendo à disposição 12 bilhão de reais para investir nas corporações policiais do Rio de Janeiro dinheiro herdado da intervenção federal Foram comprados 3 mil fuzis 12 milhão de cartuchos de munição vinte submetralhadoras cinco caveirões 4 mil carros de patrulhamento É certo que uma polícia bem equipada trabalha melhor Mas não quando suas estruturas estão comprometidas e associadas com o crime Os novos equipamentos serviram mesmo que indiretamente para vitaminar projetos dos milicianos como ataques ao Comando Vermelho Recordes de letalidade policial foram quebrados com operações direcionadas a áreas ligadas ao tráfico e ao CV No primeiro semestre de 2019 de acordo com um levantamento feito pelo site de notícias UOL nenhuma das 881 mortes cometidas pela polícia havia ocorrido em áreas dominadas por milícia5 Outro levantamento realizado pelo Observatório de Segurança a pedido da revista piauí identificou que 71 das 777 operações ocorridas em 2019 tinham sido feitas em áreas do CV O bairro da Cidade de Deus na zona oeste foi especialmente visado com dezesseis homicídios resultantes de dezoito operações policiais Os moradores viramse obrigados a conviver com sobrevoos diários de helicópteros e incursões policiais As operações se davam de manhã na hora em que a maioria dos moradores saía para o trabalho ou levava os filhos à escola não raro fechadas por causa dos confrontos Em junho durante um evento em Nova Iguaçu Witzel fez apologia ao genocídio mencionando os confrontos na Cidade de Deus O vagabundo bandido quer atalhos e aí nós cidadãos não vamos aceitar isso A nossa polícia ela não quer matar Mas nós não queremos ver cenas como na Cidade de Deus tiroteios que ocorreram no local Se fosse com autorização da ONU em outros lugares do mundo nós tínhamos autorização para mandar um míssil naquele local e explodir aquelas pessoas6 Depois para se justificar afirmou que ao dizer aquelas pessoas quis se referir aos bandidos que enfrentaram os policiais No ano de 2019 ocorreram 1810 mortes em supostos confrontos com policiais no estado do Rio de Janeiro o maior número da história fluminense e o equivalente a cerca de um terço das mortes cometidas pela polícia no Brasil7 A taxa oficial de homicídios da polícia do Rio não contabilizadas as mortes cometidas por paramilitares foi de 105 mortos por 100 mil habitantes Os representantes do Estado sozinhos mataram proporcionalmente mais do que todos os criminosos de São Paulo que no mesmo período registraram a taxa de nove homicídios por 100 mil habitantes considerando homicídio doloso latrocínio lesão corporal seguida de morte e letalidade policial O governador Witzel criou as condições para a construção de uma hegemonia miliciana nos territórios pobres do Rio não se sabe se deliberadamente ou por ignorâ ncia De um lado trouxe uma falsa sensação de ordem A região de Santa Cruz por exemplo nas mãos do bonde de Ecko e dos parceiros do TCP registrou as maiores quedas de homicídio no estado pois eles não tinham mais rivais à altura De outro lado essa ofensiva desencadeou uma sucessão de tragédias Ao longo de 2019 num período de dez meses seis crianças morreram por balas perdidas quase todas vítimas de operações policiais Em fevereiro Jenifer Silene Gomes de onze anos foi atingida no peito quando estava na calçada junto com a mãe no bairro de Triagem na zona norte Em março K auan Peixoto de doze anos morreu com tiros no pescoço e abdômen depois de tiroteio entre policiais e criminosos na comunidade de Chatuba na Baixada Fluminense Em maio K auã Rozário de onze anos foi atingido na Vila Aliança em Bangu Em setembro K auê dos Santos de doze anos morreu com um tiro na cabeça na comunidade Chica no Complexo do Chapadão Também em setembro Á gatha Vitória Sales Félix de oito anos foi morta com um tiro quando voltava para casa com a mãe na Comunidade da Fazendinha no Complexo do Alemão Em novembro K etellen Umbelino de Oliveira Gomes de cinco anos foi atingida por disparos feitos por um suspeito de integrar uma milícia em Realengo Todas as crianças mortas eram negras e moradoras de comunidades pobres O drama continuou em 2020 Durante a pandemia da Covid19 enquanto a sociedade civil se esforçava para cumprir o isolamento social com os hospitais públicos lotados distribuição de máscaras kits de higiene e alimentos para as populações carentes enquanto se conscientizavam as pessoas sobre a necessidade de ficar em casa o Bope invadiu o Complexo do Alemão numa chacina que matou pelo menos dez pessoas segundo a imprensa outras fontes noticiosas mencionaram doze e treze vítimas nos dias que se seguiram A polícia disse que cinco pessoas tinham morrido no confronto As autoridades não pareciam sequer chegar a um número oficial de mortos A operação ocorreu em 15 de maio quando o Rio seguia acelerado rumo ao pico da doença Os policiais entraram por diversos pontos do Complexo com caveirões helicópteros e carros A justificativa foi uma denúncia anônima sobre a existência de fuzis e a presença de um chefe do tráfico no local Houve relatos de saques granadas que explodiram além de muitos disparos e corpos expostos nas ruas da comunidade Apesar da gravidade do ataque as mortes repercutiram pouco Todos estavam assustados demais com a pandemia para prestar atenção na chacina Nos primeiros meses da crise sanitária a polícia aproveitou para acirrar as operações sem os holofotes da imprensa Entre 15 de março e 19 de maio a polícia matou 69 pessoas em operações monitoradas pelo coletivo Observatório da Segurança A sucessão de mortes violentas em plena pandemia mostrou a polícia como um instrumento de matança em vez de fiadora da segurança da população num momento de crise Dados oficiais de abril indicaram mais um recorde com a polícia matando em supostos confrontos 43 de vítimas a mais do que no mesmo período do ano anterior que já havia sido um recorde Coube aos comunicadores das comunidades descrever o horror daqueles que conviviam com a pandemia e ao mesmo tempo com as chacinas nas favelas e mobilizar a opinião pública No dia 18 de maio Raull Santiago do Coletivo Papo Reto escreveu em sua conta no Twitter uma série de mensagens É importante todo mundo saber que o Bope invadiu o Complexo do Alemão no momento em que foi feito o maior processo de isolamento social As pessoas estavam em casa o tráfico nitidamente recolhido Usaram as dicas de cuidados da pandemia para atacar e fazer uma chacina Outras operações foram realizadas em comunidades como Manguinhos e Jacarezinho interrompendo a distribuição de cestas básicas Duas semanas antes cinco pessoas haviam morrido em uma operação policial na Vila K ennedy na zona oeste Pior ainda é a polícia usar como estratégia a invasão das favelas pelo fato das ruas estarem vazias por conta do isolamento social Usar a pandemia como parte da estratégia de ação que pode virar grave confronto é absurdo imensurável E as pessoas ESTà O EM CASA gente Três dias depois da chacina do Alemão mais uma morte e dessa vez ela despertaria o interesse dos jornais João Pedro Mattos de catorze anos foi morto por policiais federais e civis quando brincava com os primos no quintal da casa de seu tio Os policiais invadiram a casa atirando e depois se justificaram dizendo que corriam atrás de suspeitos Um dos primos tentou alertar em vão Aqui só tem crianças A história de João Pedro foi contada no Jornal Nacional e chamou a atenção para a violência policial durante a quarentena O governador recebeu um grupo de ativistas e professores que cobraram mudanças Em junho uma liminar do Supremo Tribunal Federal proibiu operações da polícia durante a pandemia A sentença citava as denúncias feitas por Raull Santiago e Rene Silva A comoção como de costume teria tempo limitado até que a próxima batalha fizesse uma nova vítima A sensação de impotência foi resumida no tuíte de Raull Santiago Até quando continuaremos tendo que perguntar até quando Com a democratização do Brasil a partir dos anos 1980 se esperava que a ação militarizada das polícias fosse controlada e que o desrespeito aos direitos humanos diminuísse Não foi o que aconteceu No Rio de Janeiro em especial mas também em outros estados os problemas aumentaram Os governadores eleitos pelo voto popular a partir de 1982 precisaram lidar com dois enormes desafios as consequências do processo de urbanização acelerado e o fortalecimento de uma economia criminal lucrativa em torno principalmente da venda de drogas O gaúcho Leonel Brizola PDT foi o primeiro governador eleito do Rio de Janeiro depois da abertura política em 1982 vencendo o candidato dos militares Moreira Franco PDS O passado revolucionário e esquerdista de Brizola a resistência armada que organizou como governador do Rio Grande do Sul em defesa da posse do presidente João Goulart na mesma época em que estatizou empresas estrangeiras e promoveu a reforma agrária no estado assustava as Forças Armadas Para evitar a eleição do candidato no Rio o presidente João Baptista Figueiredo acionou colegas bicheiros como Anísio Abraão David da Beija Flor e Castor de Andrade da Mocidade para animar comícios com samba e passistas das escolas Não deu certo Brizola ganhou por uma margem apertada de votos e assumiu apostando na educação Construiu os Centros Integrados de Educação Pública Cieps escolas com refeitório cozinhas quadras esportivas atendimento médico e odontológico que ficavam abertas o dia inteiro oferecendo alimentação atividades recreativas e cursos profissionalizantes O antropólogo e educador Darcy Ribeiro vicegovernador foi um dos criadores do projeto e apontava o caminho das políticas para as comunidades pobres do Rio de Janeiro A favela não devia ser vista como problema mas como parte da solução Era preciso tornar seus habitantes cidadãos com acesso a direitos em vez de inimigos O governo devia regularizar as propriedades e investir na infraestrutura das casas e dos bairros pobres com medidas de saneamento iluminação e saúde A Polícia Militar comandada então pelo coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira concebeu projetos de policiamento comunitário para aproximar os agentes dos moradores determinando que as forças policiais deveriam cumprir as leis e não entrar nas residências pobres sem mandado judicial Brizola ao defender a legalidade no cotidiano da atividade policial ganhou a pecha de cúmplice dos criminosos num momento em que políticos e parte da sociedade defendiam o confronto aberto com os moradores das favelas O governo brizolista também coincidiu com o momento em que a produção de cocaína crescia na América Latina incentivando o mercado do produto em diversos países do mundo O rótulo de defensor de bandidos colou Brizola virou gíria para cocaína As críticas ao governador no entanto não identificaram o problema real que iria contaminar as polícias do estado nos sucessivos governos que viriam Brizola evitou brigar com os donos do dinheiro no estado e se aproximou dos bicheiros Em 1984 os contraventores criariam a Liga Independente das Escolas de Samba Liesa aumentando o poder do bicho sobre os desfiles do Rio As dez maiores escolas boa parte controlada pelo jogo se desmembrou das outras 34 agremiações menores assumindo o controle das verbas do Carnaval antes administradas pela RioTur Castor de Andrade Anísio e o capitão Guimarães foram os três primeiros presidentes da entidade O governador sempre negou ter feito qualquer acordo mas na eleição seguinte recebeu o apoio entusiasmado dos contraventores Durante a campanha de 1986 ao governo o candidato brizolista Darcy Ribeiro participou constrangido de um evento em uma churrascaria em Botafogo junto com a cúpula do bicho capitão Guimarães Anísio Miro Maninho entre outros Brizola deu a maior tranquilidade de todos os tempos ao jogo do bicho e nunca nos pediu dinheiro por isso Agora chegou a hora de retribuir e eleger Darcy Ribeiro governador além de votar em Marcello Alencar e José Frejat para o Senado Nós temos de apoiar esses homens Se votarmos neles estaremos pagando cinco por cento da dívida mas nós vamos pagar até o último tostão discursou o capitão Guimarães8 Mais uma vez o apoio do jogo não reverteu em eleição O eleito foi Moreira Franco que havia migrado do PDS para o PMDB O candidato ganhou a eleição prometendo durante a campanha acabar com o crime no Rio em seis meses Quando assumiu Franco manteve a relação de boa vizinhança com a contravenção mas perdeu o controle da segurança pública no estado As taxas de homicídios explodiram em seu mandato passando de 202 casos por 100 mil habitantes em 1986 para 56 por 100 mil A ação de grupos de extermínio na Baixada Fluminense ajudou a multiplicar esses índices Os sequestros também surgiram com força organizados com o apoio de policiais como denunciaria anos depois o delegado Hélio Luz O empresário Roberto Medina idealizador do festival Rock in Rio e encarregado do marketing da campanha de Franco em 1986 foi sequestrado em junho de 1990 numa onda que aterrorizou os endinheirados da cidade As relações perigosas entre autoridades e o submundo do crime seguiram firmes No último mês da gestão de Moreira Franco em fevereiro de 1991 o governador recebeu no Salão Verde do Palácio da Guanabara os bicheiros capitão Guimarães Anísio Luizinho Drumond e Carlinhos Maracanã para formalizar a cessão de um terreno em que seria erguido o Museu do Samba9 A fachada cultural da contravenção mais uma vez justificava a condescendência das autoridades A leniência dos governadores com o jogo do bicho nos anos 1980 delineou os confrontos que se iniciariam na década seguinte Os bicheiros tentaram se associar aos policiais para manter os traficantes sob controle e enquanto Toninho Turco foi o principal atacadista dos morros o esquema funcionou Depois de sua morte em 1988 a tentativa de controlar os traficantes passou a ser feita através de operações policiais e arregos A estratégia porém não conseguiu evitar o fortalecimento armado e financeiro do tráfico o que provocou a série de conflitos que marcaria os governos seguintes Entre o final dos anos 1980 e começo dos 1990 o mundo do crime e as políticas de segurança repetiram erros que iriam minar de modo crescente a credibilidade das instituições locais De 1990 a 2019 mais de 200 mil pessoas foram assassinadas no Rio de Janeiro a maioria negros homens com menos de trinta anos moradores de bairros pobres Com a instalação das UPPs houve um breve hiato entre 2008 e 2014 A redução das operações e da violência policiais nas comunidades levou à queda de homicídios mas com a falência desse modelo e com a crise fiscal e política do Rio a escalada de mortes reacendeu Brizola voltou a disputar o governo do Rio em 1990 e venceu no primeiro turno Assumiu o estado em uma situação adversa em março de 1991 O país enfrentava uma crise econômica severa com o fracasso do governo Collor deposto em 1992 por impeachment No Rio o comércio de drogas prosperava gerando uma corrida armamentista entre as quadrilhas de traficantes Para manter o controle as autoridades apostaram em estimular a divisão dos traficantes Enquanto as facções estivessem concentradas em disputas entre si dificilmente teriam forças para afrontar os poderosos Na eleição de 1995 Marcello Alencar se elegeu governador e via decreto criou o pagamento por mérito ou a gratificação faroeste como ficou conhecida na imprensa A medida premiava com 50 a 150 do valor do salário os policiais que participassem de operações nas comunidades O que já era ruim ficou pior Operações improvisadas sem planejamento e traumáticas passaram a ditar o rumo da segurança pública no estado A política foi abandonada três anos depois O entusiasmo que tinha vindo com a Nova República com a adoção de políticas educacionais a formação de cidadãos nas favelas e de uma polícia legalista perdeu espaço para outro paradigma o da guerra ao crime Os dois lados do conflito se desprenderam da legalidade democrática e formaram grupos autônomos Os traficantes com armas e munições passaram a ser donos de morros enquanto os policiais associados aos bicheiros aprenderam a governar a cena criminal e a ganhar dinheiro tirando proveito do caos O modelo se aperfeiçoava num movimento inercial Parecia não haver político disposto a reverter esse quadro Anthony e Rosinha Garotinho os governadores que sucederam Marcello Alencar fecharam os olhos para o avanço da banda podre que envolvia a estrutura que sustentava as instituições Quando assumiu em 1999 Garotinho mostrou disposição para enfrentar os problemas de segurança Chamou para a Subsecretaria de Segurança Justiça e Cidadania o antropólogo Luiz Eduardo Soares que levou para a pasta um grupo comprometido com reformas estruturais na polícia Soares teve a liberdade de indicar os chefes da Polícia Militar e da Polícia Civil escolhidos com a missão de reduzir a violência e a corrupção nas suas corporações Medidas foram tomadas como o fortalecimento da ouvidoria da polícia a criação do Instituto de Segurança Pública responsável pelo levantamento de dados sobre crime no estado a formação das Á reas Integradas de Segurança para que a administração tivesse mais informação e capacidade de gestão sobre os territórios os mutirões pela paz que propunham um policiamento mais próximo da vizinhança dessas áreas e que seria um dos embriões das UPPs e as delegacias legais que buscavam informatizar e modernizar os processos de investigação para tornar os resultados transparentes e minar os esquemas viciados de delegados e investigadores A pressão política dos policiais que tiveram seus interesses atingidos alguns deles atuavam dentro da própria Secretaria de Segurança levou o governador a interromper as reformas e a demitir Luiz Eduardo Soares um ano e três meses depois da posse Com a mudança o delegado Á lvaro Lins que mais tarde seria acusado de proteger empresários da contravenção e de se juntar a outros policiais para lotear as delegacias em troca de propinas ganhou espaço no governo Ao ser demitido Soares avisou que o governador tinha se aliado à banda podre da polícia Passou a sofrer diversas ameaças de morte e precisou deixar o Brasil com a família quando escreveu o livro Meu casaco de general Quinhentos dias no front da Segurança Pú blica do Rio de Janeiro em que conta sua experiência No governo de Rosinha Garotinho a banda podre continuou empoderada O delegado Á lvaro Lins se tornou chefe da Polícia Civil e o modelo de negócio miliciano viveria seu momento inicial de expansão Na CPI das Milícias o exsecretário de Segurança de Rosinha Garotinho Marcelo Itagiba foi acusado de fazer campanha com o apoio dos paramilitares de Rio das Pedras ele se elegeu deputado federal pelo PMDB em 2006 Cristiano Girão que na CPI das Milícias foi apontado como um dos chefes da comunidade da Gardênia Azul trabalhou como assessor especial de Rosinha Garotinho e levava parceiros do governo para buscar votos na comunidade Esse processo descontrolado se agravou no fim do segundo mandato do governo de Sérgio Cabral Filho O novo governador assumiu num momento econômico favorável beneficiado pelo alto valor das commodities no mundo em especial do petróleo que tinha se tornado o carrochefe da economia fluminense Em 2008 o preço do barril estava acima de cem dólares e os royalties adquiridos com a venda do produto correspondiam a 16 de toda a receita do governo Para ajudar as UPPs saíram do papel com bons resultados iniciais A situação política também favorecia o governador graças à proximidade com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva que fortalecia a liderança de Cabral Tudo parecia dar certo Vieram os anúncios da escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas os investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento PAC do Governo Federal a construção do teleférico no Complexo do Alemão notícias grandiosas que passaram a ideia de um futuro promissor para o Rio de Janeiro O governador gastava como um novorico deslumbrado mas a cobrança da conta ainda demoraria a aparecer Por algum tempo Cabral desfrutou a fama de estadista em 2009 a revista inglesa The Economist estampou na capa um Cristo Redentor com jatos propulsores sob os pés decolando como um foguete no Corcovado Essa imagem de prosperidade começou a ruir quatro anos depois em junho de 2013 quando milhões de brasileiros foram às ruas protestar contra o aumento das passagens de ônibus Os limites da bonança carioca tornavamse claros Naquele ano a revista inglesa dedicou outra capa ao Rio de Janeiro então com o Cristo Redentor se descontrolando logo depois da decolagem e descendo em queda livre Em abril de 2014 diante da pressão popular que cresceu depois do assassinato do pedreiro Amarildo na UPP da Rocinha e com a expectativa de se candidatar ao Senado Cabral renunciou ao cargo de governador cedendo a cadeira ao vice Luiz Fernando Pezão A crise econômica e política do Rio de Janeiro no entanto avançava com velocidade O crescimento do PIB brasileiro que em 2010 tinha alcançado 75 praticamente estagnou em 2014 Nos dois anos seguintes registrou quedas de 38 e 33 O Rio de Janeiro foi particularmente atingido O preço do barril de petróleo caiu de 132 dólares em 2008 para 31 dólares em 2016 reduzindo as receitas do governo com royalties Desde 2014 o Rio vinha recebendo 20 bilhões de reais a menos em receitas sendo 48 bilhões de reais apenas com redução de royalties Um estudo feito por auditores fiscais nas contas do governo fluminense calculou que entre 2007 e 2015 pelo menos 47 bilhões de reais tinham deixado de entrar no caixa em virtude de renúncias fiscais Nesse período as isenções de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços ICMS cresceram de 13 para 2910 Algumas empresas beneficiadas com a concessão desses benefícios depois seriam apontadas como pagadoras de propinas a autoridades estaduais Diante desse quadro de insolvência o Rio decretou estado de calamidade pública dois meses antes da abertura das Olimpíadas no Maracanã em agosto de 2016 O salário de outubro e o décimo terceiro do funcionalismo teve que ser parcelado Sérgio Cabral Filho foi preso em novembro de 2016 Até 2020 teve treze condenações na Justiça somando penas acumuladas de 282 anos Seu sucessor Luiz Fernando Pezão foi preso pela operação Lava Jato em 2018 ainda no cargo de governador acusado de receber propinas e acobertar casos de corrupção Passou mais de um ano na cadeia e saiu com tornozeleira eletrônica impedido de se candidatar a qualquer cargo político Antes disso o exgovernador Moreira Franco 27 anos depois de deixar o governo do Rio fora o principal articulador da intervenção federal no estado na condição de ministro da Secretaria Geral do presidente Michel Temer Foi nesse cenário desalentador que o governador Wilson Witzel surgiu como a grande surpresa das eleições de 2018 fazendo campanha colado a Flávio Bolsonaro que concorria ao Senado e ao candidato a presidente Jair Bolsonaro O Rio de Janeiro se defrontava com um quadro político inusitado As duas principais lideranças do estado Witzel no governo e Marcelo Crivella na prefeitura eleito dois anos antes tinham vínculos com igrejas evangélicas neopentecostais Crivella era bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus fundada pelo seu tio Edir Macedo Já Witzel havia sido lançado pelo pastor Everaldo Dias da Igreja Assembleia de Deus que depois da eleição de Witzel indicou nomes para compor a burocracia estadual inclusive o de seu filho O pastor tinha estreitas ligações com o deputado Eduardo Cunha também evangélico preso em 2016 na operação Lava Jato Tais escolhas pareciam dizer que o Rio estava farto da modernidade urbana e laica da Nova República Como se trinta anos depois seus eleitores tivessem abandonado a lógica para escolher governantes capazes de produzir milagres As instituições democráticas quebradas e desacreditadas haviam perdido o controle da situação Caberia ao governo Witzel apostar no combate ao Comando Vermelho e torcer para que a hegemonia dos comandos formados por milicianos bicheiros e traficantes do TCP estabelecessem a ordem perdida Menos de dois anos depois de assumir o governo contudo o governador seria acusado de corrupção e enfrentaria um processo de impeachment A desmoralização das instituições democráticas do Rio fortaleceria ainda mais o poder dos grupos criminosos sempre prontos para ocupar o vácuo deixado pelos políticos A construção de um pacto civilizatório garantidor de leis e direitos que vigorassem em todo o território fluminense tinha naufragado Os cidadãos no entanto não se esqueciam de que havia um projeto a ser restaurado Era preciso livrar os territórios pobres das tiranias armadas e criar uma democracia verdadeira no Rio de Janeiro Era urgente tirar os mais de 3500 fuzis de circulação e controlar as munições para que as instituições democráticas restabelecessem o monopólio legítimo do uso da força Os policiais precisavam agir em defesa da lei em vez de lutar pelos próprios interesses Algumas dessas bandeiras foram levantadas pela vereadora Marielle Franco Ao ser assassinada em março de 2018 tornou se mártir de uma ideia a ser reconstruída coletivamente pelas forças do campo democrático 8 Cruz Ustra Olavo e a ascensão do capitão O presidente Jair Bolsonaro já havia entrado em seu segundo ano de governo quando se viu diante da epidemia da Covid19 Naquele março de 2020 a velocidade de propagação da doença e os efeitos do vírus já eram conhecidos em todo o mundo e ameaçavam levar ao colapso os sistemas de saúde públicos e privados Na quintafeira 26 de março ele chegou ao Palácio da Alvorada residência oficial da presidência em Brasília para falar sobre a crise de saúde Quando lhe perguntaram se o Brasil corria o risco de viver uma situação parecida com a dos Estados Unidos que naquele mês já era o país com mais mortes por Covid19 Bolsonaro respondeu Eu acho que não vai chegar a esse ponto Até porque o brasileiro tem que ser estudado Ele não pega nada Você vê o cara pulando em esgoto ali sai mergulha tá certo E não acontece nada com ele A metáfora do brasileiro resistente ao esgoto sintetizava à perfeição o que havia representado sua chegada ao poder O novo mandatário durante sua carreira militar curta e banal e política inexpressiva assumiu ideais herdados dos subterrâ neos do regime militar nos quais autoridades planejavam conflitos em segredo compartilhados apenas entre os integrantes de uma espécie de irmandade que acreditava agir em nome da salvação do Brasil Essa cultura de heróis invisíveis guerreiros de uma batalha inglória surgiu nos anos 1960 e 1970 nos porões da ditadura nas batalhas das polícias e das Forças Armadas contra a guerrilha urbana e os opositores do regime Durante o processo de redemocratização muitos militares que participaram dos confrontos se ressentiram com as críticas de que foram alvo Entendiam a volta da democracia como um retrocesso como um espaço para que esquerdistas tomassem o poder justamente o grupo que militares e policiais haviam se dedicado tanto a combater Bolsonaro tirou do armário esse ressentimento e faria dele o mote de sua carreira política como se fosse um infiltrado com a missão de sabotar o sistema que se formava na Nova República Seu incômodo começou a se manifestar ainda no Exército quando ele era um oficial em meados dos anos 1980 Bolsonaro ingressou na Academia Militar das Agulhas Negras em 1973 Nessa primeira fase foi um cadete com iniciativa e boas notas que se destacou pelo voluntarismo e pela força física veio daí o apelido de Cavalão representando o Exército em competições esportivas de atletismo Ainda nos anos 1970 saiu do Rio para servir em Nioaque no Mato Grosso do Sul e depois voltou para atuar no Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista Tinha elogios em sua ficha mas também puxões de orelha dada a dificuldade em lidar com as normas rígidas do Exército e com os vencimentos limitados no final do mês Em 1983 durante férias no interior da Bahia ele se embrenhou em um garimpo atrás de ouro o que lhe valeu advertência de seu superior Também vendeu bolsas com tecido usado em paraquedas para complementar a renda O perfil de agitador fardado contudo veio durante a redemocratização no segundo ano da presidência de José Sarney Em 1986 Bolsonaro tornou público seu descontentamento com os vencimentos dos militares num artigo publicado na revista Veja com o título O salário está baixo A manifestação foi considerada um ato de indisciplina entre militares Bolsonaro foi preso por quinze dias mas ganhou apoio de muitos colegas inclusive superiores por defender o interesse coletivo Os confetes cessaram no ano seguinte quando a mesma revista revelou os planos do capitão Bolsonaro para explodir bombas em alguns pontos da Academia das Agulhas Negras para demonstrar insatisfação com os reajustes salariais O atentado não pretendia deixar vítimas segundo o capitão explicou à repórter Cassia Maria Rodrigues antes da publicação mas demonstrar a fragilidade do ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves e da autoridade do presidente Sarney Seriam apenas algumas espoletas Bolsonaro disse à jornalista A revista decidiu quebrar o off tornar público o que o capitão havia dito em segredo por entender que havia riscos públicos envolvidos no ato terrorista A revelação agitou o comando dos quartéis com provas desmentidos e um longo processo descrito em detalhes no livro O cadete e o capitão do jornalista Luiz Maklouf Carvalho No final do processo Bolsonaro foi absolvido pelo Superior Tribunal Militar mas a versão da revista era tão consistente que não houve como o capitão seguir no Exército da democracia Reformado pelo Exército após o julgamento Bolsonaro se candidatou a vereador pelo Rio de Janeiro em 1988 Eleito disputou dois anos depois o cargo de deputado federal para o qual também se elegeu Em Brasília atuou como parlamentar por 28 anos antes de se tonar presidente Entre as pessoas que serviram de inspiração para a base ideológica de seu mandato está o general Newton Cruz Chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações SNI Cruz foi um dos representantes da linhadura na presidência de João Baptista Figueiredo Ele foi um símbolo da resistência contra a abertura política que ganhava força durante o governo Figueiredo A distensão do regime começara em 1979 depois que o governo Figueiredo sancionou a Lei da Anistia perdoando os crimes políticos praticados por militares e pelos grupos de resistência à ditadura Em 1980 foi aprovada a eleição direta para governadores abrindo espaço para novas lideranças No Rio de Janeiro Leonel Brizola de volta ao Brasil entrou na disputa Em São Paulo começou a ganhar destaque o líder do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Luiz Inácio Lula da Silva Diante dessa efervescência democrática crescia o descontentamento de um grupo de ultradireita que deu início a uma onda de atentados no país A intenção era provocar medo de bombas e de desordem a fim de justificar novas medidas de endurecimento Newton Cruz era suspeito de planejar ações que tentavam brecar o processo de abertura política Entre 1979 e 1981 pelo menos quarenta bombas explodiram no Rio de Janeiro e em outros estados do Brasil no andar de um hotel onde Brizola se hospedava no Rio no aeroporto Guararapes em Recife na redação do jornal Em Tempo em Belo Horizonte no Tuca em São Paulo no Colégio Social da Bahia em Salvador Sem contar as explosões ocorridas em quase uma centena de bancas de jornal que vendiam publicações da imprensa alternativa A maioria eram apenas espoletas não havia vítimas mas uma pessoa morreu e seis ficaram feridas em um atentado no Rio de Janeiro contra a sede da OAB e a Câ mara dos Vereadores A onda de atentados culminou na explosão da bomba no Riocentro na Barra da Tijuca na noite de 30 de abril de 1981 durante um show de MPB em celebração ao Dia do Trabalho com cerca de 20 mil pessoas O artefato estourou no estacionamento do Riocentro dentro de um carro onde estavam dois militares matando o sargento que carregava o explosivo e ferindo um capitão que o acompanhava Os militares tentaram atribuir a responsabilidade do atentado a militantes de esquerda fora encontrada perto dali uma placa de sinalização pichada com a sigla VPR Vanguarda Popular Revolucionária Dias depois um relatório interno produzido pelo Exército apontou dois culpados a esquerda e a imprensa que teria criado o clima de tensões e mentiras1 A farsa seria exposta anos depois pelo próprio general Newton Cruz que assumiu ter tido conhecimento dos planos dos militares incendiários antes do crime quando os autores estavam prestes a acionar o artefato Não agiu para impedir segundo ele porque não havia tempo hábil Nada fez porém para evitar a armação e a farsa para responsabilizar a esquerda Em 1999 quando um novo Inquérito Policial Militar foi aberto sobre o caso o coronel Freddie Perdigão que encerraria sua carreira nas fileiras do jogo do bicho foi acusado de ter planejado o atentado do Riocentro e o general Newton Cruz de prevaricação por não ter impedido o crime Dois anos depois Cruz se envolveu em um novo escâ ndalo ao ser apontado como suspeito de ter mandado matar o jornalista Alexandre von Baumgarten a mulher dele e um pescador em decorrência de rusgas envolvendo a venda da revista O Cruzeiro O general Newton Cruz deixou o SNI em agosto de 1983 para assumir o Comando Militar do Planalto no governo Figueiredo A figura que transitava invisível pelos subterrâ neos subiria à ribalta revelando uma personalidade histriônica e truculenta emblema da decadência e da impopularidade da ditadura brasileira Durante seu comando em Brasília foram decretadas medidas para restringir filmagens e o trâ nsito de pessoas nos meses que antecediam a votação da emenda das eleições diretas O general também articulou a eleição de Paulo Maluf no Congresso como candidato da continuidade em oposição a Tancredo Neves Pouco acostumado a prestar contas teve problemas com jornalistas no período Durante uma entrevista coletiva Cruz se irritou com as perguntas do repórter Honório Dantas e o mandou calar a boca e desligar o gravador O jornalista se retirou do quebra queixo a rodinha formada por repórteres com câ meras e microfones em volta do entrevistado e reclamou de ter sido empurrado pelo militar Irritado o general partiu para cima do jornalista torceu seu braço o levou para a frente das câ meras e exigiu desculpas No ano seguinte em abril de 1984 flagrado por um fotógrafo em atrito com um estudante Cruz sacou um revólver e encostou a arma na barriga do fotógrafo O esforço para a continuidade do regime obscurantista fracassou com a derrota de Maluf para Tancredo Neves em votação indireta Tancredo morreu antes de sua posse e em março de 1985 seu vice presidente José Sarney assumiu o posto No novo governo o nome de Newton Cruz foi retirado da lista de candidatos à promoção de general de divisão para general de exército que correspondia ao topo da carreira Cruz entrou para a reserva e tentou sem sucesso a carreira política Jair Bolsonaro tomou as dores do general e passou a ventilar o ódio contra a Nova República que caracterizaria seu percurso político Na biografia de Jair Bolsonaro escrita por seu filho Flávio o autor menciona a frustração do pai ao veto à promoção do general Tal fato marcou a carreira de Newton Cruz e também os militares de uma forma geral pois era visto como uma referência para todos e o encerramento de sua carreira na ativa naquelas circunstâ ncias reforçou essa imagem de líder em especial para os jovens oficiais como Bolsonaro Cruz e Bolsonaro se conheceram depois do artigo do capitão publicado na revista Veja em 1986 quando então o general enviou um telegrama felicitandoo pela iniciativa Expresso meu acordo e minha tristeza com os fatos relatados em seu artigo escreveu o general2 Em 1987 Bolsonaro e Cruz se encontraram três vezes uma delas em Brasília em outubro pouco antes de o plano do capitão de explodir bombas ser revelado pela Veja Bolsonaro e outros oficiais foram jantar com o general em sua casa e o Correio Braziliense publicou uma nota maldosa sobre o encontro Não está nascendo grama na entrada da casa do general Newton Cruz Também naquela época já despontava a raiva de Bolsonaro contra a imprensa sempre disposta a constranger todos os militares3 Depois de publicada a matéria sobre seus planos de um atentado Bolsonaro viajou a Brasília sem permissão superior em busca do apoio do general da reserva Só tinha dinheiro para a passagem de ida e precisou pedir carona aos pilotos do avião na volta para o Rio Cruz foi arrolado como testemunha de defesa de Bolsonaro Em maio de 2020 em plena crise da pandemia o presidente Bolsonaro saiu a cavalo em Brasília durante uma manifestação que o apoiava Comentaristas identificaram no gesto uma alusão às cavalgadas de Newton Cruz mais de trinta anos antes em que de seu cavalo branco distribuía chicotadas nos carros de manifestantes que defendiam eleições diretas Outra referência decisiva na trajetória política e intelectual de Bolsonaro foi o coronel Carlos Brilhante Ustra chefe do Destacamento de Operações de Informações DOICodi do II Exército em São Paulo entre 1970 e 1974 Ustra se tornou para militares que atuavam na área de informação um símbolo da vitória da ditadura sobre os grupos armados de esquerda que lutaram naquele período Na visão desses militares Ustra era um valoroso representante dos oficiais que sujaram a mão na guerra enquanto militares burocratas articulavam em seus gabinetes com arcondicionado a entrega do poder aos comunistas No período em que Ustra esteve à frente do DOI paulista pelo menos 45 pessoas morreram ou sumiram depois de passar pelas dependências do órgão4 Dos 876 casos de tortura catalogados no livro Brasil nunca mais cerca de quatrocentos ocorriam no centro comandado por Ustra Uma dessas vítimas foi Ivan Seixas que na época tinha dezesseis anos e militava no Movimento Revolucionário Tiradentes Ele ficou preso no DOI junto com o pai Joaquim Alencar de Seixas também militante Durante dois dias ambos foram torturados lado a lado O filho pendurado no pau de arara e o pai levando choques na cadeira do dragão Sofreram espancamentos e afogamentos sucessivos A mãe de Ivan Fanny e suas duas irmãs Ieda e Iara acompanharam as torturas e ouviram quando o pai foi morto nas dependências do DOI Ieda sofreu violência sexual de três torturadores Os agentes segundo Ivan conversavam com Ustra sobre o andamento dos interrogatórios Ivan permaneceu preso até os 22 anos e depois se tornou militante de direitos humanos Anticomunista visceral Ustra foi um dos formuladores dos métodos de investigação usados no DOI que combinavam estratégias militares com táticas policiais Criou protocolos para chegar aos principais nomes da guerrilha urbana principalmente aqueles treinados em Cuba e na União Soviética Identificava suas redes de contato para descobrir e estourar seus aparelhos locais clandestinos usados pelos grupos políticos na época da luta contra a ditadura interrogando torturando e matando quando achasse necessário Também foi no DOI que surgiu o método conhecido como teatro que consistia em encenar tiroteios na rua para justificar a morte de presos Esse tipo de encenação continua sendo usado pelas polícias militares na democracia Não existe guerra sem sangue era uma das máximas de Ustra Ele não agia por impulso nem era meramente um sádico seguia ordens como um oficial disciplinado religioso respeitador da hierarquia e da equipe do DOI Gostava de citar que havia recebido a Medalha do Pacificador a mais alta comenda do Exército Levava com frequência a mulher e as duas filhas com ele para o trabalho e passou algumas noites de Natal com a família nas dependências do DOI Essa mistura de médico e monstro tinha lugar em sua personalidade porque Ustra acreditava ser o responsável por salvar o Brasil do comunismo uma guerra além de tiros e canhões Na visão dele e de parte da comunidade de informação esse tipo de conflito era mais desafiador por envolver o fanatismo ideológico dos comunistas que atuavam do outro lado Não se tratava somente de vencer no campo de batalha mas de ganhar a mente das massas Essa leitura que ele tinha da realidade vinha da doutrina da guerra revolucionária desenvolvida nos anos 1950 pelo Exército francês nas lutas coloniais na Indochina e na Argélia que norteou as ações das Forças Armadas brasileiras depois de 1964 Era essa guerra ideológica contra o marxismo que um grupo de militares entre os quais Ustra acreditava estar perdendo durante a abertura política e depois que a democracia foi estabelecida5 Interligado com uma rede de integrantes da comunidade de informação Ustra tentou articular a disputa de narrativas contra os exguerrilheiros que passariam a mandar no país Os militares queriam convencer as massas de que representavam a ordem a tradição e o progresso enquanto os esquerdistas da democracia submetiam os brasileiros à ideologia subversiva e revolucionária criada pelo marxismo O outro lado era numeroso e se tornaria cada vez mais influente assumindo cargos em escolas universidades jornais na cultura e na política Muitos dos que formariam essa nova elite tinham vindo da luta contra a ditadura e carregavam as marcas da tortura De acordo com o livro Brasil nunca mais pelo menos 1800 pessoas foram vítimas de tortura durante o regime militar6 Na Nova República muitas seriam alçadas à elite política e cultural brasileira Entre elas a futura presidente Dilma Rousseff presa pela operação Bandeirante que se transformaria nos DOIs em 1970 em Minas Gerais quando integrava a VAR Palmares Dilma foi pendurada no pau de arara levou choques apanhou com palmatória perdeu um dente sofreu hemorragia no útero Em 2011 foi a primeira mulher a assumir a presidência do Brasil sucedendo Luiz Inácio Lula da Silva preso pela ditadura em 1980 por comandar as greves do ABC Lula por sua vez havia sido eleito presidente em 2002 no lugar de Fernando Henrique Cardoso que se exilara no Chile em 1964 para não ser preso Regressou ao Brasil quatro anos depois para lecionar da Universidade de São Paulo mas foi aposentado compulsoriamente com a instituição do AI5 em dezembro daquele ano 1968 De FHC em 1995 ao impeachment de Dilma em 2016 os militares tiveram que aturar 21 anos de governos de exsubversivos Ustra mesmo depois de aposentado seguiu nas trincheiras travando uma guerra ideológica para salvar as massas da doutrinação esquerdista Sua atuação se deu em duas frentes Na sociedade civil colaborou em 1998 com a criação do grupo Terrorismo Nunca Mais contraponto à ONG Tortura Nunca Mais criada pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo No grupo conhecido como Ternuma Ustra era o encarregado de fazer a conexão entre membros da rede ou seja pessoas da comunidade de informações militares familiares e viúvas da ditadura Na segunda frente o exchefe do DOI coordenava e escrevia livros Seu primeiro projeto recebeu o nome de Orvil livro escrito ao contrário que pretendeu ser uma resposta ao Brasil nunca mais O Orvil foi um produto coletivo feito pelos integrantes da seção de informações do Exército iniciado em 1985 a pedido do ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves Os autores narravam as ofensivas dos comunistas para tomar o poder no Brasil desde a criação do Partido Comunista no país em 1922 passando pela Intentona em 1935 até a luta armada pós1964 A quarta e mais recente tentativa dizia o livro estava em pleno vigor na Nova República E seria a mais perigosa porque não ocorreria pela força e sim pelo controle das instituições culturais com os comunistas assumindo postos em escolas universidades jornais nas burocracias do governo O livro foi finalizado em 1987 com quase mil páginas mas teve sua publicação vetada por Leônidas Cópias do original passaram a circular de mão em mão entre a irmandade de militares inconformados com toda a fleuma das teorias da conspiração compreendidas apenas por alguns poucos iluminados Ustra ainda escreveu dois livros dessa vez assinados por ele Um deles Rompendo o silêncio publicado em 1987 foi escrito depois que a deputada Bete Mendes que pertencia ao Partido dos Trabalhadores o reconheceu como um de seus torturadores Os dois se encontraram durante uma viagem da deputada com o presidente Sarney ao Uruguai em agosto de 1985 Ustra era adido militar da embaixada brasileira em Montevidéu O livro negava essa e outras denúncias de tortura praticada por militares O segundo livro lançado em 2006 e intitulado A verdade sufocada A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça retomava a narrativa histórica do Orvil procuro desfazer mitos farsas e mentiras divulgadas para manipular a opinião pública e para desacreditar e desmoralizar aqueles que venceram escreveu o autor na quarta capa Foi esta obra que Bolsonaro disse ser seu livro de cabeceira durante a campanha presidencial As publicações de Ustra permitem compreender a narrativa que alimenta a agressividade do capitão reformado contra a esquerda A versão da história contada por Ustra ajudou a transformar um versículo bíblico do Evangelho de João em um mantra entoado pelo futuro presidente E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará De acordo com Ustra a verdade sufocada que devia ser reconhecida e que libertaria aqueles que a enxergassem pregava que o Brasil continuava em guerra e que os inimigos eram ainda mais ardilosos que os guerrilheiros de antigamente porque se fingiam de democratas Em 2016 na votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff como se um ciclo histórico se fechasse o deputado Jair Bolsonaro votou a favor do impedimento e se lembrou do torturador Ustra Perderam em 1964 Perderam agora em 2016 Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve Contra o comunismo pela nossa liberdade contra o foro de São Paulo pela memória do coronel Carlos Aberto Brilhante Ustra o pavor de Dilma Rousseff Pelo exército de Caxias Pelas nossas Forças Armadas Pelo Brasil acima de tudo Por Deus acima de todos O meu voto é sim Bolsonaro sempre desprezou partidos políticos com os quais se relacionava apenas para transformálos em instrumentos de seus objetivos e de suas estratégias pessoais Filiouse a sete partidos quase todos do centrão PDC PPR PPB PTB PFL PP PSC antes de ingressar no PSL em 2018 para concorrer à presidência Nunca se incomodou de estar filiado a agremiações envolvidas em escâ ndalos de corrupção porque atuava como um político solo Não se enturmava não buscava alianças nem mesmo com seus correligionários diversas vezes votou em desacordo com a indicação da liderança de seu partido Essa insociabilidade política o deixou de fora dos esquemas de financiamento ilegal de campanha via caixa dois que marcariam as eleições na Nova República Bolsonaro agia como um franco atirador sempre disposto a adotar um comportamento agressivo contra seus pares à esquerda Era uma peça que não se encaixava Sempre preferiu a violência mesmo que simbólica à política Como parlamentar foi um representante dos militares e dos policiais Atuava como um sindicalista que não se importava em usar armas sujas Em 1994 durante o governo Itamar Franco na aprovação da Unidade Real de Valor que daria as bases econômicas ao Plano Real Bolsonaro aprovou uma emenda de autoria dele que garantia benefícios ao salário de praças especiais mais do que dobrando os vencimentos da categoria Antes da sessão pediu a um assessor que enchesse um saco com estrume mole de vaca que ele levou ao Congresso A ideia era lançar os dejetos contra seus colegas em caso de derrota Só não fez isso porque a emenda foi aprovada7 Bolsonaro contudo tinha uma qualidade que não herdou nem de Ustra nem de Newton Cruz Falava tudo às claras seu ódio era transparente nunca dissimulou sua visão bélica seu desprezo pelas leis e pelo estado de direito Depois do Massacre do Carandiru em que 111 presos foram mortos por policiais em São Paulo episódio ocorrido em 1992 Bolsonaro afirmou Morreram poucos a PM tinha que ter matado mil Repetia que os direitos humanos serviam apenas para defender marginais e em sua obsessão por imagens escatológicas para a divulgação de seu site fez uma camiseta com a frase Direitos humanos esterco da vagabundagem Em 1999 quando exercia seu terceiro mandato como deputado federal deu um depoimento revelador ao programa Câ mera Aberta da TV Bandeirantes do Rio apresentado por Jair Marchesini Numa longa entrevista ele defendeu a tortura e sugeriu aplicála no expresidente do Banco Central Chico Lopes na época investigado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito Dar porrada no Chico Lopes Eu sou favorável à CPI no caso do Chico Lopes que tivesse pau de arara lá ele merecia isso pau de arara funciona Eu sou favorável à tortura tu sabe disso E o povo é favorável a isso também Depois confessou que sonegava impostos e aconselhou a população a fazer o mesmo Inclusive xará conselho meu e eu falo Eu sonego tudo que for possível Se eu puder não pagar nota fiscal eu não pago O dinheiro só vai pro ralo O apresentador perguntou se ele fecharia o Congresso Nacional caso fosse presidente do Brasil Não há a menor dúvida Daria o golpe no mesmo dia O Congresso não funciona e tenho certeza que 90 da população ia fazer festa e bater palma O Congresso hoje em dia não serve pra nada xará só vota o que o presidente quer Se ele é a pessoa que decide que manda que tripudia em cima do Congresso então dê logo o golpe parte logo pra ditadura Agora não vai falar em ditadura militar aqui Só desapareceram 282 a maioria marginais assaltantes de banco sequestradores Em vinte anos Só no último Carnaval de São Paulo morreram mais de trezentos O apresentador fez uma breve intervenção e disse que não era essa imagem que a população tinha da democracia Mas pra elite o que interessa é essa democracia que está aí eles estão se dando bem Eles estão deitando e rolando respondeu o deputado Bolsonaro O entrevistador perguntou o lógico Se o Congresso não serve pra nada por que o senhor está no Congresso Bolsonaro respondeu Pra não chegar um maucaráter no meu lugar No final do programa o apresentador perguntou O senhor tem esperança o senhor vê o Brasil num lugar melhor O senhor acredita nisso Bolsonaro mais uma vez não perdeu a chance Só com uma crise seríssima me desculpe Através do voto você não vai mudar nada nesse país nada absolutamente nada Só vai mudar quando infelizmente nós fizermos uma guerra civil aqui dentro e fazendo o trabalho que o regime militar não fez matando uns 30 mil começando com o FHC não deixar ele pra fora não matando Se vai morrer alguns inocentes sic tudo bem na guerra sempre morre inocente até fico feliz se eu morrer mas desde que vai 30 mil sic outros marginais junto comigo Fora isso fica nesse nhénhénhénhénhénhé não vamos chegar a lugar nenhum O apresentador queria encerrar o programa com uma mensagem otimista e tentou outra vez Qual a mensagem o senhor daria para um jovem de dezesseis dezessete anos que tem a idade dos seus filhos Bolsonaro Acreditar em Deus não ser ateu como o governo que está aí vamos combater o bom combate não aquilo que os estudantes fizeram no passado combatendo o regime militar aqueles que empurraram os estudantes para combater o regime militar estão todos em Brasília todo mundo lá se dando bem ou no Congresso no Judiciário no Executivo Eles falam em repartir riqueza tá todos eles muito mais ricos sic do que os que comandavam Brasília antigamente E para encerrar Vocês podem não gostar de mim mas eu sou uma pessoa sincera Essa figura controversa transparente e cheia de convicções que menosprezava as instituições democráticas e o estado de direito se manteve coerente Bolsonaro defendia uma violência purificadora contra um sistema bandido Daí seu envolvimento com o capitão Adriano da Nóbrega um herói na guerra contra os bandidos que aterrorizavam o Rio de Janeiro Os novos inimigos urbanos em vez de subversivos e comunistas passaram a ser os negros os pobres os jovens os moradores de favelas e os suspeitos de vender drogas Nessa guerra a morte do oponente não era problema mas caminho para a vitória A guerra continuava Os inimigos deveriam ser eliminados pelos verdadeiros patriotas dispostos a matar em defesa do Brasil contra o comunismo e contra os bandidos comuns Essa crença está na base da disposição homicida da rede de policiais militares e paramilitares que matam em nome de causas que consideram justificáveis A operação Bandeirante e os DOIs trabalharam com homens vindos dos grupos de extermínio dos anos 1960 como os esquadrões da morte a Invernada de Olaria os Homens de Ouro e integrantes da Scuderie Le Cocq peçaschave na tortura e na luta contra a guerrilha Em São Paulo o recrutamento do Exército seguiu a mesma linha Sérgio Paranhos Fleury o fundador do Esquadrão da Morte paulista replicou na polícia de São Paulo o modelo carioca Os conhecimentos de Fleury sobre tortura em presos comuns do pau de arara à cadeira do dragão assim como a cooptação de informantes ajudaram a definir os métodos depois aplicados nos DOIs Bolsonaro no entanto estava longe da linha de frente dos conflitos Durante a Nova República como deputado em Brasília dizia representar os que matavam em nome do Estado A ideia de que o homicídio podia ser um meio para alcançar um fim o aproximava da moral dos inimigos Na biografia que Flávio Bolsonaro escreveu do pai consta a participação de Bolsonaro em uma audiência de uma CPI no Congresso Nacional ocorrida em 2001 sobre tráfico de drogas Fernandinho BeiraMar iria prestar depoimento ele havia sido preso em território das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia as Farc Numa das salas da CPI estava Jair Bolsonaro Diz Flávio em seu livro Quando Bolsonaro assume a palavra se dirige a BeiraMar na CPI Senhor Fernando é muito dinheiro para estar na mão de um bandido em cima do morro Temos que parar de hipocrisia aqui nessa audiência como se tudo que acontece de errado no país fosse culpa de Fernandinho BeiraMar Se eu pudesse fazer algo contra você seria para matar ou morrer não podemos ficar na demagogia aqui O então deputado Bolsonaro quis insinuar que havia pessoas acima de BeiraMar na organização quando de fato se sabia que ele era o principal matuto do tráfico na época Flávio conta qual foi a resposta de BeiraMar carregada de sua admiração pelo parlamentar Eu sei que o senhor é um deputado que inclusive defende a pena de morte eu sei tudo do senhor O que falou foi a pura verdade não tem que ser hipócrita e ficar fazendo campanha política aqui Eu conheço a sua história muito mais do que o senhor crê ou imagina É uma pessoa que prega a pena de morte mas que também não tem rabo preso com ninguém não Flávio comenta no livro É evidente que atestado de idoneidade emitido por traficante não é algo a ser comemorado mas impressiona como a retidão de Bolsonaro na vida pública é reconhecida por todos os segmentos da sociedade inclusive por aqueles que são firmemente combatidos por ele como traficantes de droga BeiraMar e Bolsonaro acreditavam estar em guerra Mesmo em lados opostos no entanto viam os mesmos métodos violentos como necessários Era preciso matar ou morrer e certos erros deveriam ser pagos com a vida Como deputado federal Bolsonaro voltouse com discursos homenagens e iniciativas parlamentares para a rede de policiais militares e paramilitares que participavam desses conflitos cotidianos Bolsonaro também empurrou para esse universo seus três filhos Flávio Carlos e Eduardo Como Jair vivia em Brasília a aproximação com os grupos de policiais e paramilitares do Rio se deu por meio do sargento Fabrício Queiroz excolega de Bolsonaro no Exército e linha de frente do 18o Batalhão Queiroz era cria da Praça Seca em Jacarepaguá e participava dos conflitos policiais com os integrantes do tráfico na Cidade de Deus que sempre rendeu arrego armas e uma ampla diversidade de receitas Em 2003 Queiroz conheceu Adriano da Nóbrega com quem atuou num homicídio na Cidade de Deus A participação de policiais do 18o foi fundamental para que as milícias se espalhassem por Jacarepaguá Recreio e Barra principalmente depois de 2002 reinventando o modelo de Rio das Pedras Queiroz era o principal articulador da base de aliados bolsonarista no meio paramilitar Quando atuava na polícia a pedido de Jair ele foi cabo eleitoral de Flávio que com 22 anos ia concorrer ao Parlamento estadual Queiroz levou o garotão imberbe e criado na Tijuca para pedir votos nos batalhões policiais Anos depois também ajudou a indicar nomes a serem homenageados por Flávio no Parlamento o capitão Adriano suspeito de diversos assassinatos foi um condecorado recorrente Em 2007 Flávio contratou Queiroz para trabalhar em seu gabinete e quatro meses depois levou para lá a mulher do capitão Adriano Em 2016 foi a vez de a mãe de Adriano ser contratada por Flávio para atuar também em seu gabinete Em 2018 o Ministério Público do Rio apontou Fabrício Queiroz como articulador das rachadinhas apropriação de parte dos salários destinados aos funcionários do gabinete no gabinete de Flávio De acordo com as investigações do MP o esquema foi criado no ano em que Queiroz começou a trabalhar para Flávio Os Bolsonaro não pegavam dinheiro de empreiteiras nem de bancos não se vendiam a grandes empresários A família não precisava de muito dinheiro para fazer campanhas políticas pois já contava com os votos garantidos de militares e policiais e seus familiares Bolsonaro contudo achava que ganhava pouco como deputado federal Conforme explicou certa vez a maior parte de seu salário ia para o pagamento de impostos fundo de garantia e pensão para a ex mulher Fico somente com 5 do salário reclamou na entrevista que deu ao seu xará da Bandeirantes O dinheiro que os deputados recebiam ao assumir o mandato contudo era muito acima do salário de um parlamentar A verba de gabinete que a Assembleia Legislativa do Rio por exemplo destinava para cada deputado contratar até 25 funcionários com salários entre 548 reais e 15 mil reais era de 107 mil reais em 2020 No pedido de prisão preventiva expedido contra Fabrício Queiroz em junho de 2020 o juiz escreveu que as rachadinhas ocorreram no gabinete de Flávio Bolsonaro entre abril de 2007 um mês depois de Queiroz ser contratado e dezembro de 2018 Pelo menos onze ex assessores que repassavam parte de sua remuneração a Queiroz tinham com ele uma relação ou de parentesco ou de vizinhança ou de amizade Essas pessoas transferiram ao assessor de Flávio um total de 239 milhões de reais sendo 69 desse total em dinheiro vivo No mesmo período o Ministério Público detectou na conta corrente de Queiroz saques rotineiros que totalizaram 2967 milhões de reais As investigações descobriram que parte desse dinheiro era transferida para Flávio Bolsonaro por meio de depósitos bancários fatiados em pequenas parcelas Também foram encontrados depósitos na conta da mulher de Flávio e pagamentos mensais de boletos da escola das filhas do casal todos realizados por Queiroz O rolo financeiro acabaria alcançando o gabinete de Jair Bolsonaro na época em que ele era deputado federal Jair havia empregado a personal trainer Nathália Queiroz filha do sargento em seu gabinete em Brasília Nathália transferia parte do salário para as contas do pai foram repassados pouco mais de 150 mil reais de janeiro de 2017 a setembro de 2018 conforme mostraram os dados da quebra de sigilo de sua conta autorizada pela Justiça8 Anos antes entre 2007 e 2016 Nathália foi registrada no gabinete de Flávio na Assembleia do Rio e também repassava a maior parte do seu salário a Queiroz Mesmo registrada nos mandatos da família Bolsonaro Nathália seguiu sua bemsucedida carreira como personal trainer tendo várias celebridades entre seus clientes Nathália assim como as outras pessoas envolvidas parecia ter sido usada para os rolos de Queiroz nos gabinetes dos Bolsonaro Bolsonaro e sua família são representantes ideológicos de uma cultura miliciana que se fortaleceu no Rio e chegou à presidência do Brasil Defender extermínios seu pensamento dizia era lutar como um patriota pela missão de livrar o Brasil do mal Desde que enxergou essa sua verdade muitos anos atrás libertou se de freios morais e passou a pregar a violência abertamente Coube a Bolsonaro e a seus comensais da morte agir em defesa dessas crenças levantando a bandeira da ideologia paramilitar contra as instituições da Nova República que simbolizavam aquilo que deveria ser destruído Essa pregação se revelou especialmente sórdida depois da noite de quartafeira 14 de março de 2018 quando Marielle Franco e Anderson Gomes foram executados no Rio de Janeiro em plena intervenção militar A vereadora e o motorista morreram por volta das 21h30 causando comoção dentro e fora das redes sociais Na manhã seguinte começaram a circular no WhatsApp áudios fotos e memes querendo associar a vereadora ao tráfico de drogas Diziam que ela havia sido eleita pelo Comando Vermelho e que tinha namorado o traficante Marcinho VP chefe da facção Imagens de criminosos de bermuda e chinelo executando passageiros de um carro em data e local desconhecidos foram postadas a fim de sugerir que ela tinha sido morta por traficantes A viralização das mentiras era obra de expoentes do grupo que viria a se tornar poucos meses depois a base de apoio bolsonarista A desembargadora Marília Castro Neves acreditou nas mentiras que vinham se espalhando nas redes Dois dias depois do crime ela afirmou em seu Facebook que Marielle estava envolvida com bandidos Foi eleita pelo Comando Vermelho e descumpriu compromissos assumidos com seus apoiadores Ela mais do que qualquer outra pessoa longe da favela sabe como são cobradas as dívidas pelos grupos entre os quais ela transacionava Até nós sabemos disso A verdade é que jamais saberemos o que determinou a morte da vereadora mas temos certeza de que seu comportamento ditado por seu engajamento político foi determinante para seu trágico fim Qualquer outra coisa diversa é mimimi de esquerda tentando agregar valor a um cadáver tão comum como qualquer outro O site Ceticismo Político de propriedade do empresário Carlos Augusto de Moraes Afonso publicou uma reportagem com o título Desembargadora quebra narrativa do PSOL e diz que Marielle se envolvia com bandidos e é cadáver comum que falsificava uma matéria da Folha de SPaulo para simular que a notícia vinha da imprensa profissional Quatro horas depois o link foi compartilhado pelo Movimento Brasil Livre MBL e se tornou um dos mais populares sobre o tema com 360 mil compartilhamentos segundo levantamento da Universidade Federal do Espírito Santo e do jornal O Globo 9 Entre a quartafeira 14 de março e o domingo 18 de março a Fundação Getulio Vargas acompanhou tuítes que postavam notícias falsas sobre Marielle10 O primeiro foi publicado pouco depois das dez horas da manhã da sextafeira associando Marielle a Marcinho VP O deputado federal Alberto Fraga da bancada da bala e melhor amigo de Bolsonaro no Congresso reforçou o boato no fim da tarde ajudando a espalhar a mentira que ferveu nas redes no sábado Conheçam o novo mito da esquerda Marielle Franco Engravidou aos dezesseis anos usuária de maconha defensora de facção rival e eleita pelo Comando Vermelho exonerou seis funcionários mas quem a matou foi a PM escreveu o deputado Alberto Fraga Segundo o levantamento da FGV no período de cinco dias foram publicados 6676 tuítes espalhando notícias falsas sobre o crime e sobre Marielle Familiares e amigos da vereadora precisaram durante o luto articular uma rede de jornais agências e influenciadores para reverter a onda de mentiras nas redes sociais No dia 19 o PSOL havia recebido 15 mil e mails denunciando mentiras sobre a vereadora Ideias conspiratórias sobre política no Brasil não eram estranhas ao principal suspeito de ter executado Marielle e Anderson o sargento aposentado Ronnie Lessa Depois que policiais e promotores chegaram ao seu nome a Justiça autorizou a quebra dos dados telemáticos e telefônicos de Lessa Foram analisadas todas as suas atividades na internet de janeiro de 2017 a 14 de março de 2018 dia do assassinato Lessa fazia pesquisas sobre Carlos Brilhante Ustra sobre a ditadura militar e o Estado Islâ mico O policial também tinha obsessão pelo deputado Marcelo Freixo e por políticos da esquerda Em abril de 2017 lançou no campo de pesquisa do Google termos como mortes de marcelo freixo marcelo freixo enforcado lula enforcado dilmarousseff morta Também pesquisou sobre a filha e a exmulher de Freixo Em abril de 2017 Lessa mandou um email para si mesmo Adotem um bandido viva o PSOL Em julho o sargento reformado buscou dados sobre pesquisadores e ativistas de ONGs de direitos humanos com termos como ONG Redes da Maré Lidiane Malanquin Magacho Marina Mota Anistia Internacional Entre outubro de 2017 e fevereiro de 2018 Lessa pesquisou acessórios para a submetralhadora HK MP focando em silenciadores todos equipamentos usados no assassinato de Marielle e Anderson A partir de fevereiro de 2018 Lessa fez pesquisas sobre vereadores que haviam votado contra a intervenção federal no Rio Marielle era a relatora da comissão instalada na Câ mara Municipal para fiscalizar e acompanhar a intervenção Ainda em março Lessa buscou nomes importantes da universidade como as pesquisadoras Julita Lemgruber e Alba Zaluar Ainda foi atrás de militantes negras como a escritora K enia Maria e a cantora e compositora Iza que ele buscou como Iza Cantora Entre os dias 2 e 12 de março de 2018 pesquisou quatro endereços próximos aos lugares em que Marielle havia estado uma indicação de que ele monitorava os deslocamentos dela Se essa movimentação de Lessa pela rede não deixou claras suas motivações pelo menos mostrou pontos coincidentes entre seus interesses e o pensamento dos novos líderes que surgiram Não por acaso o duplo homicídio turbinou os votos de políticos que haviam ofendido a honra dos mortos Bolsonaro foi eleito presidente no final do ano com 578 milhões de votos ou 55 do total dos brasileiros que foram às urnas no segundo turno A escolha representava a derrota dos figurões da Nova República que depois de trinta anos de democracia haviam mergulhado o país numa crise econômica e política Os brasileiros também passavam um recado desnudando as angústias de uma população mal resolvida com sua própria história revelada na intolerâ ncia às diferenças e na tensão entre classes raças e culturas que a eleição do excapitão representava A sinceridade de Bolsonaro havia permitido ao brasileiro se olhar no espelho sem disfarces A imagem que se refletia era assustadora Haveria contudo um caminho a ser trilhado racionalizar o que veio à tona reconstruir o pacto político e amadurecer como nação Nesse processo não se deve diminuir o papel de Olavo de Carvalho que ajudou a dar sentido ao discurso de fúria e principalmente aproximar os militares ressentidos do antipetismo crescente que explodiria depois da reeleição da presidente Dilma Rousseff Conheci e comecei a ler os textos de Olavo na internet em 2002 quando cumpria meus créditos para o doutorado no Departamento de Ciência Política da USP O nome dele me foi indicado pelo meu professor e orientador Oliveiros S Ferreira referência no debate político nacional e que também havia sido diretor de redação e chefe dos editorialistas do jornal O Estado de S Paulo Oliveiros me disse que Olavo era a única pessoa que ele lia com interesse na imprensa daquela época Fui conhecer seus escritos Li os textos em seu site e tentei comprar um dos livros de Olavo Aristóteles em nova perspectiva Introdução à teoria dos quatro discursos A obra havia se esgotado e mandei um email para o autor me apresentando citando a conversa com Oliveiros e perguntando onde eu poderia comprála Como não havia mais exemplares à venda Olavo fez a gentileza de me enviar um arquivo do livro para eu ler Havia algo de fascinante nos textos de Olavo que discutia filosofia como alguém que dialogava com o leitor comum e não com seus pares da academia grupo do qual ele nunca fez parte Isso aumentava a sagacidade e a clareza de seus argumentos e tornava seus textos mais atraentes mesmo que repleto de distorções e sofismas Sua erudição era notável e se tornou um importante divulgador de autores de tradição conservadora ainda pouco debatidos no Brasil indicando títulos e organizando obras para uma rede de editoras algumas delas fundadas por exalunos de seus cursos de filosofia Livros como os dos economistas liberais Ludwig von Mises e Friedrich Hayek dos filósofos Roger Scruton Ortega y Gasset Eric Voegelin Mario Ferreira dos Santos dos críticos literários Otto Maria Carpeaux José Guilherme Merquior René Girard entre outros Olavo também tinha uma forte veia polemista que lembrava Paulo Francis mas que se tornaria cada vez mais agressiva Francis inclusive havia sido um leitor entusiasmado de um dos primeiros sucessos editoriais de Olavo O imbecil coletivo Atualidades inculturais brasileiras Nessa época começo dos anos 2000 Olavo ainda escrevia em jornais e revistas Aos poucos começou a perder esse espaço à medida que sobressaía outro traço de sua personalidade uma mistura de paranoia com anticomunismo visceral que o tornaria um dos mais criativos teóricos da conspiração no Brasil alertando com diversas citações a existência de um plano diabólico para dominar o Brasil e o mundo Olavo denunciava a formação de uma Nova Ordem Mundial a partir de uma corrente filosófica influenciada pelo marxismo que teria criado uma consciência coletiva que moldava corações e mentes com suas ideologias Essa hegemonia marxista no mundo das ideias estaria por trás do avanço mundial do comunismo que se encontrava em pleno vigor mesmo depois do fim da Guerra Fria A revolução comunista segundo essa interpretação ocorreria sem a necessidade de derramamento de sangue Seria definida como uma revolução do tipo gramsciano em referência ao filósofo italiano marxista Antonio Gramsci por ser uma tomada de poder passiva pelo domínio da cultura Olavo atacava ainda a omissão da imprensa em denunciar o avanço do comunismo na América Latina planejado no Foro de São Paulo organização fundada com o apoio do PT e que desde 1990 reunia mais de cem organizações e partidos de esquerda do continente que em breve tomariam o poder O comunismo ou a hegemonia cultural marxista ou o globalismo estaria portanto mais forte do que nunca com seus tentáculos espalhados pelo mundo e aceitos por uma população que nem sequer percebia como esses mecanismos de dominação funcionavam O marxismo dessa forma influenciava não apenas os partidos de esquerda mas também agências insuspeitas como a Organização das Nações Unidas a Rede Globo a imprensa em geral as principais ONGs mundiais cujo financiador central era o megainvestidor George Soros A construção narrativa de Olavo dialogava com a da ultradireita nos Estados Unidos que iria se fortalecer na oposição ao governo de Barack Obama e que levaria à surpreendente eleição de Donald Trump em 2016 Havia uma afinidade profunda entre as ideias olavistas sobre a revolução gramsciana e a doutrina da guerra revolucionária contida no livro de Brilhante Ustra A verdade sufocada Na edição ampliada de 2007 Ustra incluiu um trecho de O jardim das aflições de Olavo na conclusão Ao longo dos anos 2000 Olavo foi figura importante também em diálogos constantes com as Forças Armadas Fez conferências para oficiais e para o EstadoMaior do Exército teve textos publicados no site do grupo Terrorismo Nunca Mais do qual Ustra foi um dos fundadores Em 1999 Olavo recebeu a Medalha do Pacificador principal condecoração do Exército entregue pelo general Gleuber Vieira comandante no governo de Fernando Henrique Cardoso Era um discreto sinal de resistência infiltrada no governo que pagaria as primeiras indenizações a familiares de desaparecidos políticos e perseguidos pela ditadura Em 2001 Olavo de Carvalho recebeu a Medalha do Mérito Santos Dumont concedida pela Aeronáutica Um revisionista entusiasmado e seguidor das ideias de Ustra e de Olavo foi o general Hamilton Mourão vice presidente do Brasil no governo Bolsonaro A família Bolsonaro conheceria o filósofo anos depois e cairia de amores por ele Em 2012 o deputado Flávio Bolsonaro concedeu a Medalha Tiradentes a maior premiação da Assembleia Legislativa do Rio a Olavo de Carvalho a mesma entregue ao capitão Adriano da Nóbrega e a diversos milicianos Flávio fez questão de viajar aos Estados Unidos para fazer a entrega pessoalmente na casa do filósofo em Richmond na Virgínia Na gravação do encontro Flávio com 31 anos apareceu intimidado diante do professor Olavo agradeceu a comenda e depois passou a falar sobre a destruição da instituição familiar e do gayzismo com muitos palavrões e ofensas pessoais dirigidas aos opositores ideológicos As cenas seriam engraçadas se não fossem grotescas e protagonizadas por uma dupla cujas ideias seis anos depois ajudariam a definir o destino do Brasil Quando Jair Bolsonaro começou a planejar sua candidatura à presidência o futuro presidente ainda estava distante dos holofotes Os primeiros passos foram dados em março de 2014 quando se lançou pré candidato pelo PP e não foi levado a sério nem mesmo por seus correligionários Mandou uma carta ao partido oficializando o pedido mas acabou desistindo pela falta de interesse do partido em têlo como candidato a presidente e resolveu concorrer a mais um mandato de deputado federal seu sétimo Já havia no entanto uma energia diferente no ar Bolsonaro se elegeu com 464 mil votos tornandose o parlamentar mais votado no Rio Em novembro do mesmo ano durante a formatura de cadetes na Academia Militar das Agulhas Negras Bolsonaro ao falar com os formandos foi recebido com gritos de Líder Parabéns pra vocês Nós temos que mudar este Brasil tá ok Alguns vão morrer pelo caminho mas estou disposto em 2018 seja o que Deus quiser tentar jogar para a direita este país O nosso compromisso é dar a vida pela pátria e vai ser assim até morrer Nós amamos o Brasil temos valores e vamos preserválos Esse Brasil é maravilhoso tem tudo aqui Está faltando é político Há 24 anos apanho igual a um desgraçado em Brasília mas apanho de bandidos E apanhar de bandido é motivo de orgulho e glória Vamos continuar assim finalizou O clima sem dúvida havia mudado Em agosto de 1992 os militares barraram a entrada de Bolsonaro na Academia das Agulhas Negras na cerimônia de entrega de espadas Em protesto Bolsonaro deixou seu Chevette atravessado na portaria para bloquear a entrada dos convidados e só saiu rebocado por um guincho Integrantes das Forças Armadas embarcaram na onda bolsonarista Começou timidamente em 2015 quando o general Hamilton Mourão saiu em defesa da tutela militar durante as manifestações contra Dilma Rousseff11 Mourão seguiria com seu proselitismo nos anos seguintes aumentando o tom conforme se aproximava o prazo de ele ir para a reserva Em setembro de 2017 o general deu uma palestra numa casa maçônica em Brasília falando abertamente sobre a possibilidade de intervenção Ou as instituições solucionam o problema político pela ação do Judiciário retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos ou então nós teremos que impor isso Em outro momento reforçou a necessidade da tutela Os poderes terão que buscar uma solução se não conseguirem chegará a hora em que teremos que impor uma solução e essa imposição não será fácil ela trará problemas Diante da repercussão de sua fala na imprensa Mourão negou que defendesse a intervenção ou que tivesse a intenção de entrar na política Não Não sou político Sou soldado Mourão foi para a reserva em fevereiro de 2018 Em seu discurso de despedida chamou o coronel Carlos Brilhante Ustra de herói Questionado Mourão afirmou que Ustra havia sido seu comandante combateu o terrorismo e a guerrilha por isso é um herói Na mesma ocasião tornou público o descontentamento no interior das Forças Armadas com o pedido de intervenção federal no Rio de Janeiro ocorrido na semana anterior A intervenção no Rio de Janeiro é uma intervenção meiasola O general interventor Braga Netto não tem poder político Braga Netto é um cachorro acuado no final das contas Não vai conseguir resolver o problema dessa forma E nós só vamos apanhar afirmou A intervenção federal foi decretada em fevereiro A decisão se deu em uma reunião realizada na Quarta Feira de Cinzas sem planejamento ou comunicação prévia depois que assaltos e arrastões em Ipanema durante o Carnaval repercutiram no país O autor da ideia foi o secretáriogeral da presidência e ex governador do Rio Moreira Franco O objetivo era revigorar politicamente o governo Temer fragilizado com denúncias de corrupção e sem bandeiras depois de a reforma da Previdência ser inviabilizada no Congresso O marqueteiro de Temer Elsinho Mouco abraçou a medida Era a última cartada para o presidente Temer tentar a reeleição Bastava convencer o governador do Rio do mesmo partido o MDB Afogado em crises Luiz Fernando Pezão aceitou Na mesma semana da intervenção o governo federal publicou seu novo slogan O governo que está tirando o país da maior recessão da história agora vai tirar o Rio de Janeiro da violência As Forças Armadas seriam instrumentalizadas para tentar eleger um presidente afundado em denúncias de corrupção Além de se sentirem usados por um presidente sem credibilidade os militares já tinham seu candidato o próprio Mourão que em agosto seria anunciado como vice na chapa de Bolsonaro A dobradinha dos patriotas que idolatrava Ustra seguidora de Olavo de Carvalho era lançada para desbancar os políticos corruptos da Nova República A verdade sufocada poderia ser finalmente conhecida O assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes ocorreu em meio ao malestar criado entre Temer e os militares linhadura O duplo homicídio era uma evidente afronta ao governo federal e ao Exército no Rio mesmo assim foi tratado de forma pusilâ nime pelos comandantes da intervenção Os generais deram declarações protocolares sem sequer esboçar empenho para pegar os assassinos Houve também a percepção incômoda de que os militares concordavam com muito do que havia sido dito nos dias seguintes ao crime com o objetivo de minimizálo O comandante da intervenção no Rio de Janeiro o general Walter Braga Netto humilhado pelas milícias se tornaria o chefe da Casa Civil de Jair Bolsonaro dois anos depois Os militares que por mais de trinta anos tinham se mantido fiéis a seu papel constitucional assumiam ao lado do presidente o processo de desmoralização das Forças Armadas ressuscitando o fantasma de tiranetes que governam por baionetas A vitória de Donald Trump em novembro de 2016 animou os apoiadores de Bolsonaro no Brasil O caminho das pedras para eleger um outsider havia se iluminado Em janeiro de 2017 o deputado Eduardo Bolsonaro o zero três viajou aos Estados Unidos para conversar com o Bruxo de Virgínia o apelido fazia referência a uma suposta capacidade de Olavo para prever o futuro e ao estado americano em que morava Olavo já era um ídolo pop da ultradireita e Eduardo fez uma live da casa dele vestindo uma camiseta estampada com a frase Olavo tem razão e uma foto do filósofo Na transmissão de quinze minutos o filho de Bolsonaro fez duas perguntas a seu oráculo o que a vitória de Trump representava para o mundo e o que ocorreria na eleição brasileira em 2018 Sobre a primeira pergunta Olavo tergiversou e disse que o novo presidente norteamericano deveria destruir seus inimigos imediatamente senão não teria tréguas Depois sobre as eleições no Brasil alertou que a direita deveria tomar cuidado para não rachar pois uma divisão de votos levaria à derrota Existiam pontos em comum entre a realidade do Brasil e a de outros países assolados pela onda direitista como Itália Hungria Israel Filipinas Turquia Polônia Reino Unido e Estados Unidos Em geral eram países que viviam momentos de crise econômica ou instabilidade política o que favorecia a construção de bodes expiatórios com a ajuda das redes sociais A estratégia de comunicação da eleição de Trump por exemplo liderada pelo empresário e milionário Steve Bannon seguiu esse caminho com críticas à tolerâ ncia aos imigrantes à globalização que transferira empregos para a China ao importar seus produtos e à desconstrução de valores tradicionais No Brasil os vilões foram os petistas e os partidos corruptos da Nova República que haviam criado um Estado inchado e leis brandas para punir os culpados Também impunham valores esquerdistas e degenerados A narrativa da direita tentava convencer pela emoção instigando o medo a insegurança e a revolta A imposição dos valores globalistas e marxistas dos tempos de Lula e de Barack Obama tinha deixado tudo de pernas para o ar As acusações eram direcionadas a ativistas dos movimentos LGBT que buscavam fragilizar a família e incentivar o comportamento homossexual nas escolas primárias ao movimento negro que impunha a noção de raça sobre a de indivíduo criando tensões despropositadas aos ambientalistas que sob o pretexto de evitar o aquecimento climático queriam minar o motor da economia capitalista ou entregar a Amazônia aos estrangeiros O rompimento com a tradição anunciava a direita bolsonarista empurrava parte dos brasileiros para um lugar desconhecido Resgatar os valores transmitidos pelos pais avós e bisavós da época em que todos sabiam o que era certo e errado quem mandava na casa e na família a diferença entre homem e mulher dos tempos em que havia ordem e previsibilidade podia trazer a sensação de paz e segurança O bolsonarismo se propunha a engatar essa marcha a ré com a ajuda das novas ferramentas digitais As campanhas virais que impulsionaram o impeachment de Dilma Rousseff no Brasil e o sucesso eleitoral de Trump seriam a inspiração da campanha digital que elegeria Bolsonaro presidente A possibilidade de manipular a revolta das massas nunca havia sido tão acessível Nos Estados Unidos Steve Bannon foi diretor da Cambridge Analytica filiada da empresa inglesa Strategic Communication Laboratories SCL criada pelo empresário Robert Mercer especializada em marketing hiperindividualizado Com base em milhares de dados pessoais colhidos nos perfis de usuários das redes sociais a Cambridge direcionava mensagens ou notícias não importava se verdadeiras ou falsas para manipular o comportamento de seus alvos e induzir o voto em determinado candidato Em 2014 a empresa tinha armazenado cerca de 50 milhões de perfis do Facebook A Cambridge e o Facebook seriam acusados depois da vitória de Trump de fornecer sem autorização dados de usuários em ações consideradas decisivas para definir o resultado eleitoral 12 Em 2017 Eduardo Bolsonaro se aproximou desses grupos de influenciadores direitistas com a ajuda de um dos alunos mais aplicados de Olavo de Carvalho Filipe Martins que durante a campanha presidencial foi assessor do PSL Formado em relações internacionais pela Universidade de Brasília Martins tinha trabalhado na embaixada dos Estados Unidos na capital federal onde entrou em contato com o site Breitbart News e Steve Bannon Martins já escrevia para sites brasileiros de extrema direita como Terça Livre Mídia Sem Máscara e Senso Incomum Junto com Eduardo e Carlos Bolsonaro o zero dois Martins teve papel importante na campanha de Jair Bolsonaro à Presidência ajudando a mobilizar a rede de sites blogs e replicadores de notícias que vinha se fortalecendo desde as manifestações contra Dilma Rousseff Essa máquina de desinformação foi levada para dentro do governo de Jair Bolsonaro e apelidada internamente de gabinete do ódio por ministros e assessores do Palácio do Planalto Martins virou assessor especial da presidência e também ganhou um apelido Robespirralho que fazia referência ao radicalismo do líder jacobino da Revolução Francesa Robespierre Durante as eleições brasileiras as mentiras disseminadas principalmente através do WhatsApp chegaram a níveis degradantes Olavo de Carvalho por exemplo afirmou em sua página que Fernando Haddad oponente de Bolsonaro na eleição defendia o incesto Estou lendo um livrinho do Haddad onde ele defende a tese encantadora de que para implantar o socialismo é preciso primeiro derrubar o tabu do incesto K it gay é fichinha Haddad quer que os meninos comam suas mães O cientista político Marcos Coimbra analisou as pesquisas eleitorais e afirmou que a estratégia da campanha bolsonarista de focar em valores morais foi decisiva sobretudo para mudar o voto dos evangélicos que correspondem a 30 do eleitorado13 A mudança na intenção de votos dos evangélicos teria ocorrido no período de 26 de setembro a 5 de outubro principalmente entre as mulheres religiosas de classe média baixa A confiança nos políticos dos diversos partidos forjados na Nova República havia ido à lona A fúria contra os políticos despertada depois de junho de 2013 cresceria com a popularidade de agentes da lei e autoridades prontas a travar guerra contra os criminosos de colarinhobranco Perdiam pontos os políticos ganhavam pontos os militares os juízes e os policiais que se diziam dispostos a impor a ordem perdida E se prometessem tudo isso com discursos autoritários e truculentos ainda melhor As redes sociais e inúmeros comunicadores guiados por teóricos da conspiração ajudaram a construir uma narrativa capaz de fazer ferver e depois direcionar esse caldeirão de emoções contra as minorias os políticos e as instituições democráticas Foram tempos loucos violentos e doentios Tempos de Jair Bolsonaro o capitão da República das Milícias Ubuntu Flexibilizar as regras para porte posse e venda de armas reduzir o controle dos homicídios cometidos pela polícia Se eu tivesse que pensar em duas mudanças legislativas para facilitar a vida dos paramilitares no Brasil essas estariam em primeiro lugar Não apenas porque a venda de armas e munições é fonte complementar de receita dos milicianos mas também porque os homicídios têm sido um dos principais instrumentos de poder desses grupos O presidente não decepcionou sua base de apoio Como prometeu durante a campanha Bolsonaro editou duas semanas depois de assumir um primeiro decreto de flexibilização da posse de armas e de diminuição dos controles de fiscalização sobre elas com permissão até para o cidadão comum comprar fuzis Em maio de 2020 um novo decreto do governo ampliava o porte de armas autorizando diversas categorias profissionais a andar armadas na rua Era o cumprimento de promessas de campanha de estímulo ao mercado formal mas que ajudavam os negócios do mercado do crime O Congresso conseguiu barrar os dois decretos forçando o governo a negociar mudanças O presidente no entanto seguia tentando fragilizar os órgãos de controle e ampliar os limites de compra de armas e munições alcançando pequenas vitórias para facilitar a vida principalmente dos atiradores e colecionadores Os resultados apareceram No primeiro semestre de 2020 139 mil armas haviam entrado em circulação no país um total superior aos doze meses de 20181 Armar a população era uma meta obsessiva do governo Bolsonaro Em fevereiro de 2019 o ministro da Justiça Sergio Moro apresentou um projeto de lei que chamou de anticrime No pacote de medidas a ser apresentado ao Congresso uma delas determinava que o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicála se o excesso ocorrer de escusável medo surpresa ou violenta emoção em casos de legítima defesa A legítima defesa já era obviamente um direito garantido em lei Entre 2018 e 2019 mais de 12 mil homicídios foram cometidos pela polícia em supostas ações de legítima defesa o que tornou as corporações brasileiras as mais letais do mundo em números absolutos Em um cenário em que a violência da polícia vinha batendo recordes sucessivos sem que as instituições conseguissem coibir ou fiscalizar os excessos a proposta aumentava o descontrole sobre a corporação Se a impunidade já imperava o projeto de lei passava um recado é permitido exterminar O Congresso mais uma vez conseguiu barrar as propostas mais polêmicas do pacote que foi parcialmente aprovado Ainda assim nas ruas das grandes cidades a violência seguiu batendo recordes mesmo durante a pandemia As tropas das polícias militares eram forte base de apoio do governo Bolsonaro logo cumpriu diversas promessas de campanha Nomeou ministros obscurantistas para as pastas da Educação das Relações Exteriores do Meio Ambiente e da recémcriada pasta da Mulher Família e Direitos Humanos Também levou militares para o governo Tendo à frente os generais Hamilton Mourão Braga Netto Augusto Heleno Luiz Eduardo Ramos e Fernando Azevedo uma grande tropa fardada ganhou cargos na burocracia civil Até julho de 2020 segundo informações dos próprios ministérios já haviam passado pelo governo ou estavam nas pastas e em algumas autarquias mais de 250 militares2 Dez dos 23 ministros tinham origem militar Levantamento feito pela Folha de SPaulo indicou um crescimento de 33 de militares da ativa em cargos comissionados no governo Bolsonaro Eles ocupavam 2558 postos3 Pouco mais de três décadas depois do início da Nova República as Forças Armadas voltavam a ocupar postoschave no governo O ministro da Justiça Sergio Moro deixou o governo em abril de 2020 O exjuiz saiu acusando o presidente Bolsonaro de tentar intervir na Polícia Federal do Rio de Janeiro que investigava Flávio Bolsonaro no caso das rachadinhas O sargento Fabrício Queiroz preso preventivamente dois meses depois ganhou o direito de cumprir pena em prisão domiciliar por meio de um habeas corpus concedido pelo presidente de plantão do Superior Tribunal de Justiça João Otávio de Noronha A mulher de Queiroz Márcia Aguiar que estava foragida também recebeu o benefício A máquina de incitação contra bodes expiatórios passou a rodar no Palácio do Planalto e foi para as mãos de um grupo de funcionários que formavam o gabinete do ódio Liderados por Filipe Martins Carlos e Eduardo Bolsonaro o núcleo deu prosseguimento aos ataques contra opositores e à disseminação de mentiras iniciados durante a campanha O governo sempre negou a existência de um grupo que espalhava fake news até que o próprio Facebook derrubou diversas páginas de seus integrantes A beligerâ ncia continuou durante a pandemia do coronavírus Bolsonaro atacou epidemiologistas e médicos que recomendaram o isolamento social como a forma mais segura naquele momento de desacelerar contaminações e mortes e de evitar o caos no sistema de saúde Também vociferou contra os governadores que seguiam recomendações de médicos e cientistas agrediu a imprensa que noticiava e explicava sobre a gravidade da situação e demitiu dois ministros seus da Saúde médicos que tentavam controlar e reduzir os danos e as mortes causados pela epidemia substituindoos por um militar sem experiência na área Portanto não foi de espantar que em agosto de 2020 o Brasil tivesse alcançado o segundo lugar no ranking mundial de mortes pela Covid 19 com mais de 100 mil vítimas atrás apenas dos Estados Unidos Mesmo assim Bolsonaro seguia apoiado por mais de um terço da população brasileira4 Minha conversa com Lobo o exmiliciano entrevistado no primeiro capítulo havia me ajudado a pegar e a puxar o fio daquele emaranhado de fatos e desembaraçálo ao longo deste livro A linha de raciocínio de Lobo de defender o homicídio como instrumento para a obtenção de obediência e de ordem foi a mesma que contribuiu para a formação dos diversos grupos armados que passaram a disputar territórios no Rio Ao fim da pesquisa para este livro uma conversa que tive com os irmãos Jerominho e Natalino me permitiu saber ainda mais sobre a lógica dessa escolha reforçando os argumentos de Lobo Acusados em meados dos anos 2000 de serem os fundadores da Liga da Justiça os dois carregam nas costas um conjunto considerável de denúncias Carminha filha de Jerominho e sobrinha de Natalino também participou da conversa organizada para um projeto paralelo do qual participo liderado pelo cineasta Fernando Gronstein Foram duas horas e meia de um papo online com a família que estava em casa em Campo Grande na zona oeste do Rio de Janeiro Jerominho e Natalino são representantes de um tempo em que os paramilitares matavam em público em plena luz do dia com diversos tiros num só corpo para passar recados aos rivais Natalino foi apelidado de Mata Rindo pelos policiais Na época as mortes associadas a conflitos como esses foram estimadas em pelo menos sessenta casos a maior parte sem autoria comprovada por medo das testemunhas Em 2007 e 2008 os dois foram presos e condenados e passaram uma temporada de quase dez anos em presídios federais isolados com direito a raras horas de banho de sol em um lugar em que suicídios e surtos de prisioneiros eram comuns Foram soltos em outubro de 2018 Pouco mais de um ano depois Jerominho se candidatou a prefeito do Rio mas desistiu por problemas no coração Carminha sua filha que em 2008 também esteve presa por 45 dias em um presídio federal para homens assumiu a cabeça da candidatura tendo o pai como vice A chapa se chamava Coração Valente Durante o batepapo realizado por vídeo por causa da pandemia o que não esfriou o entusiasmo do trio Jerominho e Natalino se mostraram carismáticos Cantaram jingles antigos dos tempos em que Jerominho foi candidato a vereador em ritmo de funk com direito ao som de bateria eletrônica feito com a voz No fim nos convidaram para um churrasco com violão e samba para depois que saísse a vacina da Covid19 Aos 71 anos Jerominho não assustava mais com seu jeito de avô bonachão uma grande barriga e rosto vermelho Natalino aos 64 era o tipo risonho que se calava respeitoso quando o irmão mais velho começava a falar Eles me lembraram os coronéis dos sertões do Brasil reinventados nas periferias urbanas cariocas Assim como tinha me ocorrido no encontro com Lobo enquanto eu os ouvia me perguntava como duas personalidades distintas podiam conviver em um único indivíduo Habitavam o mesmo corpo o médico e o monstro O matador e o homem cordial Claro que eu não estava diante de pessoas com dupla personalidade O carisma e a violência não eram traços opostos mas complementares na formação dessas autoridades que mandavam nos bairros Foi para onde a conversa se dirigiu Jerominho e Natalino assim como Lobo e outras figuras importantes no crime quando matavam acreditavam agir em defesa de uma causa Os dois contaram que eram policiais em Campo Grande bairro onde moravam e passaram a ajudar os vizinhos em razão das imensas carências do local Ofereciam garrafas de oxigênio a comunidades pobres e criaram um centro comunitário que ampliou o atendimento à população Segundo Jerominho como ele era um policial conhecido na região moradores o procuravam para resolver problemas Conforme sua fama crescia os pedidos também aumentavam Certa vez ele baleou três ladrões que tentaram roubar sua filha Carminha na porta de casa A partir daí tornouse inevitável construir uma aliança de homens armados para se protegerem contra inimigos bem como pensar em fontes para financiar o grupo De acordo com os promotores o financiamento se deu inicialmente pelo controle do transporte alternativo na região Mais tarde outras fontes de receita surgiriam A violência vista dessa ótica ganha um papel instrumental Quando imposta pela defesa de uma causa coletiva em favor dos mais fracos ajuda na garantia da ordem e da obediência às regras Como uma ação pedagógica O homicídio ensinaria aos demais o destino dos ladrões que ousavam desobedecer Essa modalidade de assassinato portanto era vista como um antídoto ao roubo e ao tráfico de drogas formas de violência consideradas covardes desrespeitadoras das regras e geradoras de imprevisibilidade Assassinatos encarados desse ponto de vista podem levar à ordem que por sua vez traz segurança Já o roubo e o tráfico são sinônimos de desordem provocam medo e uma sensação de vulnerabilidade Por isso os esquadrões da morte foram criados e aplaudidos Eles vendiam a ideia de que eliminavam ladrões em nome da segurança O mesmo caminho foi seguido por outros grupos como a Invernada de Olaria a Scuderie Le Cocq as polícias mineiras da Baixada Fluminense os justiceiros de São Paulo Todos alegavam matar em defesa dos fracos mas acabavam matando em defesa dos próprios interesses À medida que a venda de drogas aumentava os traficantes passaram a se armar para seguir no jogo Houve diversos confrontos A violência desses grupos armados traficantes e paramilitares em vez de promover a obediência estimulou reações rivalidades vinganças e uma espiral de mortes Quando o Estado e a Justiça abrem mão de suas funções a disputa é definida pela lei do mais forte Bolsonaro venceu a eleição de 2018 porque parte dos brasileiros foi seduzida pela ideia da violência redentora Diante da crise econômica e da descrença na política os eleitores escolheram um justiceiro para governálos Como se o país decidisse abandonar suas instituições democráticas para se tornar uma enorme Rio das Pedras gerida por princípios milicianos Sem dúvida há espaço para aprender e amadurecer depois do surto bolsonarista A tristeza e a depressão chegaram porque o Brasil prometido pela Nova República não aconteceu Bolsonaro foi o sintoma dessa desesperança O momento de achar os culpados Como dizia Darcy Ribeiro contudo somos ainda um povo em ser na dura tarefa de encontrar o próprio destino há um país em busca de uma teoria sobre si mesmo que em vez de olhar para fora e se frustrar com o que não conseguiu ser precisa olhar para dentro e compreender melhor quem é Para encontrar esse rumo a via a ser trilhada depende da política Uma construção que necessita do diálogo entre representantes dos interesses em jogo para fortalecer os laços de solidariedade É preciso compreender aonde se quer chegar refletir sobre os valores coletivos para garantir um contrato que contemple interesses gerais e direitos individuais A obediência a esse pacto vai ocorrer conforme as regras do jogo sejam vistas como justas e legítimas A violência quando aclamada como solução alerta para a fragilidade do pacto abrindo espaço para a ruptura e a guerra fratricida Desde seu ingresso na política Marielle aspirava ajudar a construir esse diálogo Foi eleita vereadora do Rio de Janeiro em 2016 com uma campanha inspirada no ubuntu filosofia sulafricana que em 1994 serviu de base para que Nelson Mandela e o bispo Desmond Tutu costurassem um pacto para a reconstrução do país no pósapartheid Eu sou porque nós somos era o slogan da candidata Marielle que pregava entendimento entre as diferenças em contraposição à guerra As transformações contudo levam tempo e exigem esforço Depois do assassinato de Marielle uma das últimas mensagens que ela escreveu nas redes sociais continua a ressoar Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe Bolsonaro veio com a proposta de acirrar a guerra O surto que levou os eleitores a optar por essa via já faz parte da história brasileira mas se tudo der certo será passageiro Permanece a mensagem deixada por Marielle a apontar o único caminho possível Priscila Pezato Bruno Paes Manso é autor de A guerra A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil Todavia 2018 em coautoria com Camila Nunes Dias É jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP Bruno Paes Manso 2020 Todos os direitos desta edição reservados à Todavia Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 capa Pedro Inoue composição Jussara Fino leitura jurídica Luís Francisco Carvalho Filho preparação Ciça Caropreso checagem Luiza Miguez revisão Huendel Viana Tomoe Moroizumi versão digital Antonio Hermida Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Paes Manso Bruno 1971 A república das milícias Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro Bruno Paes Manso São Paulo Todavia 1ª ed 2020 304 páginas ISBN 9786556920672 1 Situação política 2 Segurança pública 3 Milícias 4 Rio de Janeiro I Título CDD 3209 Í ndices para catálogo sistemático 1 Situação política Segurança pública 3209 todav ia Rua Luís Anhaia 44 05433020 São Paulo SP T 55 11 3094 0500 wwwtodavialivroscombr Notas 2 Os elos entre o passado e o futuro 1 Balanço publicado em reportagem da revista piauí Luigi Mazza Flávio os condenados e os condecorados piauí 22 fev 2019 Disponível em httpspiauifolhauolcombrflaviooscondenadoseoscondecorados Acesso em 16 jul 2020 2 Moção 26502003 Disponível em httpalerjln1alerjrjgovbrscpro0307nsfe4bb858a5b3d42e383256cee00 6ab66a7c5e3718a895341783256dc9004b6f49OpenDocument Acesso em 16 jul 2020 3 Moção 31802004 Disponível em httpalerjln1alerjrjgovbrscpro0307nsfe00a7c3c8652b69a83256cca00 646ee520f1a3fbde44a5c283256e4d007055ecOpenDocument Acesso em 16 jul 2020 4 Disponível em httpswwwcamaralegbrinternetsitaqwebTextoHTMLasp etapa5nuSessao291352OnuQuarto30nuOrador2nuInsercao 0dtHorarioQuarto0958sgFaseSessaoBCData27102005txApelid oJAIR20BOLSONARO20PPRJtxFaseSessaoBreves20Comunic aC3A7C3B5estxTipoSessaoExtraordinC3A1ria20 20CDdtHoraQuarto0958txEtapa Acesso em 13 ago 2020 5 Disponível em httpswwwcamaralegbrinternetSitaqWebTextoHTMLasp etapa5nuSessao138152OnuQuarto13nuOrador1nuInsercao 0dtHorarioQuarto1454sgFaseSessaoBCData12082003 Acesso em 16 jul 2020 6 Disponível em httpwww3alerjrjgovbrlotusnotesdefaultasp id58urll3rhcwfszxjqmjawni5uc2yvogi5ownhmzhlmdc4mjzkyjazmju2ntm wmda0nmzkzjevyzcyywy4odi5ntqwzwfkzdgzmju3yjzimda2mjuyotkt3blbkrv y3vtzw50Jkv4cgfuzfnly3rpb249msnfu2vjdglvbje Acesso em 16 jul 2020 7 No livro Mito ou verdade que escreveu sobre o pai 8 Ibid 9 Disponível em httpalerjln1alerjrjgovbrtaqalerj2006nsf5d50d39bd976391b83256536 006a2502d8acec134b8797f983257b6b0064c41fOpenDocument Acesso em 13 ago 2020 10 Disponível em httpswwwcamaralegbrinternetsitaqwebTextohtmlasp etapa3nuSessao326253OnuQuarto20nuOrador1nuInsercao 0dtHorarioQuarto1548sgFaseSessaobc202020202020 2020Data17122008txApelidojair20bolsonarotxFaseSessaoBr eves20ComunicaC3A7C3B5es20202020202020 20202020dtHoraQuarto1548txEtapaCom20redaC3A7C 3A3o20final Acesso em 17 jul 2020 3 As origens em Rio das Pedras e na Liga da Justiça 1 Levantamento feito em 2020 pela Outdoor Social Inteligência OSI para a formação G10 das Favelas bloco econômico com as dez maiores comunidades brasileiras 2 Instituto Pereira Passos IPP Sistemas de Assentamentos de Baixa Renda Sabren Disponível em httppcrjmapsarcgiscomappsMapJournalindexhtml appid4df92f92f1ef4d21aa77892acb358540 Acesso em 17 jul 2020 3 Esse histórico do processo de ocupação de Rio das Pedras e do papel da associação de moradores está em Favela cidade e cidadania em Rio das Pedras In Marcelo Burgos A utopia da comunidade Rio das Pedras uma favela carioca Rio de Janeiro PUCRio Loyola 2002 4 Depoimento de Maria do Socorro Tostes no processo que investigava a tentativa de homicídio que ela sofreu em 2008 O seu marido Félix Tostes fora assassinado no ano anterior 5 Estimativa fornecida por testemunhas ao DisqueDenúncia e revelada na CPI das Milícias em 2008 6 Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar ação de milícias no Rio de Janeiro CPI das Milícias feito em 2008 ver Ignácio Cano e Thais Duarte No Sapatinho A evolução das milícias no Rio de Janeiro 20082011 Rio de Janeiro Fundação Heinrich Böll 2012 7 Relatório final da CPI das Milícias 8 Depoimento do delegado Marcus Neves à CPI das Milícias em 2008 9 Nilton Claudino contou sua história em Minha dor não sai no jornal piauí ago 2011 Disponível em httpspiauifolhauolcombrmateriaminhadornaosainojornal Acesso em 21 ago 2020 Em abril de 2019 ele deu entrevista ao programa Conversa com Bial disponível em httpsgloboplayglobocomv7546170 Acesso em 21 ago 2020 10 Números da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro Disponível em httppiauifolhauolcombrlupawp contentuploads201805milicianospresosbalancopng Acesso em 17 jul 2020 4 Fuzis polícia e bicho 1 Projeto do Instituto de PósGraduação dos Estudos Internacionais e Desenvolvimento localizado em Genebra publicou o relatório Small Arms Survey As armas e a cidade O estudo foi realizado pelos pesquisadores James Bevan Small Arms Survey e Pablo Dreyfus Viva Rio com a colaboração de Walter Barros Departamento Técnico e Científico da Polícia do Rio DPTC Marcelo de Souza Nascimento Instituto de Estudos da Religião Iser e Júlio Cesar Purcena Viva Rio 2 Ver Instituto Sou da Paz De onde vêm as armas do crime apreendidas no Sudeste Análise do perfil das armas de fogo apreendidas em 2014 Disponível em httpsoudapazorgoque fazemosconhecerpesquisascontroledearmasasarmasdocrime showdocumentos3563 Acesso em 17 jul 2020 3 Daniel Veloso Hirata e Carolina Christoph Grillo Operações policiais no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Fundação Heinrich Böll 2019 4 Levantamento feito pela plataforma Fogo Cruzado Disponível em httpsfogocruzadoorgbr Acesso em 17 jul 2020 5 Zuenir Ventura Cidade partida São Paulo Companhia das Letras 1994 p 17 6 David Maciel de Mello Neto Esquadrão da Morte Outra categoria de acumulação social da violência no Rio de Janeiro Dilemas v 10 n 1 2017 7 Para a história do Esquadrão Suicida e do Esquadrão da Morte ver David Maciel de Mello Neto op cit 8 Informações do relatório final da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro 9 Relato do jornalista Laurindo Ernesto que na época trabalhava no Última Hora ao programa Fora de Pauta 10 Relatório final da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro 2015 p 320 5 Facções e a guerra dos tronos 1 Alba Zaluar e Luiz Alberto Pinheiro de Freitas Cidade de Deus A história de Ailton Batata o sobrevivente Rio de Janeiro FGV 2017 2 Carlos Amorim CV PCC A Irmandade do Crime Rio de Janeiro Record 2003 3 Ibid 4 Márcio Santos Nepomuceno e Renato Homem Marcinho Verdades e Posições O direito penal do inimigo Rio de Janeiro Gramma 2017 5 Ibid 6 Marcos Alvito As cores de Acari Uma favela carioca Rio de Janeiro FGV 2001 7 Marcelo Rezende e Milton Costa Carvalho Um rei à Bangu Placar 14 mar 1980 Disponível em httpswwwbangunetbrinformacaoreportagens19800314php Acesso em 13 ago 2020 8 A história da ascensão de Uê na cena do crime do Rio foi contada no livro Enjaulados Presídios prisioneiros gangues e comandos Rio de Janeiro Gryphus 2009 na seção escrita pelo jornalista Marcelo Auler sobre o Rio de Janeiro 9 A história de Lillo Lauricella foi contada pelo jurista e exsecretário Nacional Antidrogas Wálter Maierovitch disponível em httpwwwibgforgbrindexphp dataidsecao3dataidmateria1195 Acesso em 20 jul 2020 e na reportagem Corleones do Brasil da Revista Superinteressante disponível em httpssuperabrilcombrhistoriacorleonesdobrasil Acesso em 20 jul 2020 10 Palloma Valle Menezes Os rumores da pacificação A chegada da UPP e as mudanças nos problemas públicos no Santa Marta e na Cidade de Deus Dilemas v 7 n 4 pp 66584 2014 11 Dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 12 Dados do Instituto de Segurança Pública do Estado 6 Marielle e Marcelo 1 Sobre a postura mais discreta e as mudanças na forma de agir dos paramilitares desde 2008 os sociólogos Ignácio Cano e Thais Duarte publicaram em 2012 o estudo No Sapatinho A evolução das milícias no Rio de Janeiro 20082011 Rio de Janeiro Fundação Heinrich Böll 2012 2 Carina Bacelar Luã Marinatto e Renan Rodrigues Jornada de trabalho de policiais militares pode ser mexida Extra 15 mar 2018 Disponível em httpsextraglobocomcasosdepoliciajornadadetrabalhodepoliciais militarespodesermexida22491313html Acesso em 21 jul 2020 3 Informações extraídas de inquéritos das Operações da Polícia Federal Black Ops Hurricane e Escambo 4 Conforme investigação da Polícia Federal e denúncia feita pelo Ministério Público Federal que subsidiou a operação Segurança Pública SA 5 Levantamento feito pelo jornalista Flávio Costa Em dez anos 53 milicianos citados em CPI foram assassinados no Rio UOL 16 abr 2018 Disponível em httpsnoticiasuolcombrcotidianoultimas noticias20180416emdezanos53milicianoscitadosemcpiforam assassinadosnoriohtm Acesso em 21 jul 2020 7 As milícias 5G e o novo inimigo em comum 1 Thiago Antunes Polícia cobrava propina de R 500 mil ao mês e R 1 milhão para uso de caveirão O Dia 7 jun 2017 Disponível em httpsodiaigcombrconteudoriodejaneiro20170607policia cobravapropinader500milaomeser1milhaoparausode caveiraohtml Acesso em 13 ago 2020 2 Estimativa da Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Propriedade Imaterial DRCPIM 3 Roberta Pennafort A polícia vai mirar na cabecinha e fogo diz novo governador do Rio O Estado de S Paulo 1 nov 2018 Disponível em httpspoliticaestadaocombrnoticiaseleicoesapoliciavaimirarna cabecinhaefogodiznovogovernadordorio70002578109 Acesso em 22 jul 2020 4 Ancelmo Gois Witzel ouve de Bolsonaro Eu tenho um parafuso a menos mas você tem dois O Globo 15 dez 2018 Disponível em httpsblogsogloboglobocomancelmopostwitzelouvedebolsonaro eutenhoumparafusomenosmasvocetemdoishtml Acesso em 22 jul 2020 5 Sérgio Ramalho Polícias mataram 881 pessoas em 6 meses no RJ Nenhuma em área de milícia UOL 20 ago 2019 Disponível em httpsnoticiasuolcombrcotidianoultimasnoticias20190820policias mataram881pessoasem6mesesnorjnenhumaemareade miliciahtm Acesso em 13 ago 2020 6 G1 Witzel diz que em outros lugares do mundo poderia ter autorização para jogar míssil em bandidos da Cidade de Deus G1 14 jun 2019 Disponível em httpsg1globocomrjriode janeironoticia20190614emdiscursowitzelfalaemjogarmissilem traficantesnacidadededeusghtml Acesso em 22 jul 2020 7 Clara Velasco Felipe Grandin e Thiago Reis Número de pessoas mortas pela polícia cresce no Brasil em 2019 assassinatos de policiais caem pela metade G1 16 abr 2020 Disponível em httpsg1globocommonitordaviolencianoticia20200416numerode pessoasmortaspelapoliciacrescenobrasilem2019assassinatosde policiaiscaempelametadeghtml Acesso em 22 jul 2020 8 A informação consta no livro Os porões da contravenção Jogo do bicho e ditadura militar A histórica aliança que profissionalizou o crime organizado Rio de Janeiro Record 2015 de Aloy Jupiara e Chico Otávio 9 Ibid 10 Alguns textos consultados no debate sobre economia no Rio de Janeiro são Bruno Leonardo Barth Sobral A crise no Rio não deve ser tratada como crise no Rio Brasil Debate 6 maio 2017 disponível em httpsbrasildebatecombracrisenorionaodevesertratadacomo crisedorio Acesso em 13 ago 2020 Observatório dos Benefícios Jogando Luz na Escuridão disponível em httpsapublicaorgwp contentuploads201611RelatoCC81rioObservatoCC81riodos BenefiCC81ciospdf Acesso em 13 ago 2020 Mauro Osório e Maria Helena Versiani O papel das instituições na trajetória econômica social do estado do Rio de janeiro Cadernos do Desenvolvimento Fluminense Rio de Janeiro n 2 jul 2013 8 Cruz Ustra Olavo e a ascensão do capitão 1 Elio Gaspari A ditadura acabada Rio de Janeiro Intrínseca 2016 2 Luiz Maklouf Carvalho O cadete e o capitão São Paulo Todavia 2019 3 Flávio Bolsonaro Jair Messias Bolsonaro Mito ou verdade Rio de Janeiro Altadena 2017 4 Relatório da Comissão Nacional da Verdade 5 A discussão sobre as influências sofridas pelo Exército está aprofundada no livro A Casa da Vovó Uma biografia do DOICodi 19691991 o centro de sequestro tortura e morte da ditadura militar São Paulo Alameda 2014 de Marcelo Godoy 6 Ver Brasil nunca mais São Paulo Vozes 2014 7 O relato está no livro de Flávio Bolsonaro op cit 8 Camila Mattoso e Italo Nogueira Gabinete de Jair Bolsonaro abasteceu rachadinha por meio da filha de Queiroz indicam extratos bancários Folha de SPaulo 12 ago 2020 Disponível em httpswww1folhauolcombrpoder202008gabinetedejairbolsonaro abasteceurachadinhapormeiodafilhadequeirozindicamextratos bancariosshtml Acesso em 17 ago 2020 9 Gabriela Cariello e Marco Grillo Como ganhou corpo a onda de fake news sobre Marielle Franco O Globo 23 mar 2018 Disponível em httpsogloboglobocomriocomoganhoucorpoondadefakenews sobremariellefranco22518202 Acesso em 22 jul 2020 10 Disponível em httpdappfgvbrpesquisadafgvdappidentificauso derobosemate5debatenotwittersobremortedemariellefranco e em httpdappfgvbrmortedemariellefrancomobilizamaisde567mil mencoesnotwitterapontalevantamentodafgvdapp Acesso em 22 jul 2020 11 O conteúdo da palestra foi divulgado em reportagem de Rodrigo Vizeu General critica políticos em palestra e pede despertar para a luta patriótica Folha de SPaulo 19 out 2015 Disponível em httpswww1folhauolcombrpoder2015101695840generalcritica politicosempalestraepededespertarparaalutapatrioticashtml Acesso em 22 jul 2020 12 Essas discussões sobre o papel da mídia e das redes sociais no Brasil e nos Estados Unidos se inspiram nos debate feitos no grupo Jornalismo Direito e Liberdade sobre o texto de Ciro Marcondes Filho Hora de reescrever as teorias da Comunicação Questões Transversais Revista de Epistemologias da Comunicação v 7 n 14 Disponível em httprevistasunisinosbrindexphpquestoesarticleview19765 Acesso em 22 jul 2020 13 A análise feita por Marcos Coimbra foi divulgada por Ciro Marcondes e pelo site Paz e Bem Ver Milhões de evangélicas pobres decidiram a eleição em favor de Bolsonaro É preciso conversar com elas Paz e Bem 20 fev 2019 Disponível em httpspazebemorgsociedade100512milhoesdeevangelicaspobres decidiramaeleicaoemfavordebolsonaroeprecisoconversarcom elas Acesso em 24 ago 2020 Ubuntu 1 Levantamento feito pelo programa de variedades Fantástico Quase 140 mil novas armas de fogo são registradas no Brasil só em 2020 G1 19 jul 2020 Disponível em httpsg1globocomfantasticonoticia20200719quase140milnovas armasdefogosaoregistradasnobrasilsoem2020ghtml Acesso em 22 jul 2020 2 Informações obtidas via Lei de Acesso à Informação pelo site Fiquem Sabendo jul 2020 3 Ranier Bragon e Camila Matoso Presença de militares da ativa no governo federal cresce 33 sob Bolsonaro e mais que dobra em 20 anos Folha de SPaulo 18 jul 2020 Disponível em httpswww1folhauolcombrpoder202007presencademilitaresda ativanogovernofederalcresce33sobbolsonaroemaisquedobraem 20anosshtml Acesso em 22 jul 2020 4 Em agosto de 2020 pesquisa Datafolha indicou que o presidente alcançou aprovação recorde com 37 dos brasileiros afirmando que consideram seu governo ótimo ou bom Ver DW Aprovação de Bolsonaro bate recorde no auge da pandemia UOL 14 ago 2020 Disponível em httpsnoticiasuolcombrultimas noticiasdeutschewelle20200814aprovacaodebolsonarobaterecorde noaugedapandemiahtm Acesso em 17 ago 2020 A GUERRA A ASCENSÃO DO PCC E O MUNDO DO CRIME NO BRASIL Bruno Paes Manso Camila Nunes Dias A Guerra a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil Manso Bruno Paes 9788588808041 344 páginas Compre agora e leia Uma reportagem de alta temperatura que comprova a falência da segurança pública no Brasil Os autores entrevistaram diversos integrantes do PCC e revelam as entranhas das organizações criminosas Este livro é uma reportagem capaz de fixar a fisionomia do crime no Brasil Os autores obtiveram relatos inéditos de integrantes das facções e contam essa história sob um ângulo inédito e revelador Geridas de dentro dos presídios as facções criminosas se profissionalizaram Quem assumiu a dianteira desse processo foi o PCC responsável por um grau inédito de organização nos presídios brasileiros Criada em 1993 meses após o Massacre do Carandiru quando 111 presos foram mortos pela polícia a facção passou a ditar as regras do crime nos presídios de São Paulo impôs sua influência sobre outros estados e agora se internacionaliza a uma velocidade vertiginosa Nunca essa realidade foi retratada com tintas tão fortes Compre agora e leia RAIVA BOB WOODWARD Raiva Woodward Bob 9786556920771 480 páginas Compre agora e leia Nesta nova e explosiva reportagem do lendário jornalista Bob Woodward que revelou os meandros da presidência de Donald Trump no bestseller Medo Trump na Casa Branca o leitor conhecerá o momento exato em que o presidente norteamericano foi avisado da ameaça representada pela Covid19 Conforme era informado de que o vírus poderia atingir a escala da Gripe Espanhola que matou 50 milhões de pessoas ao redor do mundo em 1918 Trump aparecia em público minimizando o perigo da pandemia Ao longo de sete meses Woodward gravou dezessete entrevistas com Trump num raro e detalhado vislumbre de sua mente O que emerge aqui é um presidente combativo em negação mas também ocasionalmente em dúvida afrontado pelas ameaças que vê à sua presidência ou como ele diz pela dinamite atrás de todas as portas Woodward o jornalista que trouxe à tona o caso Watergat e e que vem há décadas desnudando o poder em Washington acompanhou o presidente Trump nos momentos decisivos de 2020 Ele revela um presidente que age por instinto seguindo os hábitos e o estilo que definiram seus três primeiros anos no poder A partir de centenas de horas de entrevistas com o alto escalão do governo bem como de inúmeros documentos confidenciais diários agendas emails e cartas Woodward mostra como membros do gabinete tentavam manter o país a salvo enquanto Trump desmantelava qualquer tentativa de decisão colegiada nos assuntos de segurança nacional O livro traz com exclusividade vinte e cinco cartas trocadas entre Trump e Kim Jong Un um retrato inédito da amizade entre os dois líderes descrita pelo nortecoreano como saída de um filme de fantasia Raiva é um trabalho monumental Sua ampla documentação é base para uma narrativa dramática que detalha os bastidores da Casa Branca num momento de profunda crise doméstica e internacional Um dos maiores jornalistas de todos os tempos W oodw ard conseguiu acesso sem precedentes aos corredores do poder O resultado é um livro que precisa ser lido hoje mas que já nasce como um clássico do jornalismo Compre agora e leia O CADETE A VIDA DE JAIR BOLSONARO NO QUARTEL LUIZ MAKLOUF CARVALHO E O CAPITÃO O cadete e o capitão Maklouf Carvalho Luiz 9786580309368 256 páginas Compre agora e leia Uma investigação sobre um momento controverso na trajetória de Jair Bolsonaro o abandono da carreira militar e o ingresso na vida política Jair Bolsonaro tornouse uma figura pública em 1986 quando assinou na revista Veja um artigo em que reclamava do baixo soldo pago aos militares Um ano depois nas páginas da mesma revista reapareceu numa reportagem que revelava um plano de estourar bombas em locais estratégicos do Rio de Janeiro A revista publicou um desenho que detalhava o plano O croqui supostamente de autoria do capitão comprovaria a conspiração em curso no Exército Instado a prestar contas Bolsonaro foi considerado culpado no primeiro julgamento e mais tarde inocentado pelo Superior Tribunal Militar stm Após a decisão da corte deixou a farda passou à reserva e ingressou na política Esta é a reportagem mais completa já escrita sobre esse período pouco conhecido O autor examinou a documentação do processo reproduzida no livro e escutou as mais de cinco horas de áudio da sessão secreta ambos disponíveis no stm Também entrevistou personagens que atuaram no caso entre jornalistas de Veja e militares colegas de Bolsonaro Além de reunir indícios suficientes para apontar que a autoria do croqui como sustentou Veja até o fim era mesmo do capitão Maklouf reconstitui um episódio decisivo não apenas para a trajetória do presidente eleito em 2018 mas também para a redemocratização e o jornalismo no Brasil Compre agora e leia A alma perdida Olga Tokarczuk Joanna Concejo A alma perdida Tokarczuk Olga 9786556920689 40 páginas Compre agora e leia Ilustrada por Joanna Concejo vencedora da Menção Especial do Prêmio Bologna Ragazzi 2018 A alma perdida selecionada no White Ravens 2019 é a nova obraprima da escritora polonesa Olga Tokarczuk vencedora do Prêmio Nobel de Literatura Um livro que encanta enternece e faz pensar Era uma vez um homem que trabalhava muito e quase não prestava atenção no tempo que passava diante de seus olhos Não que sua vida fosse ruim Ele apenas sentia que tudo ao seu redor estava plano como se estivesse se movendo na folha de um caderno de matemática inteiramente coberta por quadradinhos iguais e onipresentes Esta é uma história que leva o leitor a buscar a si mesmo conduzindoo a um desenlace maravilhoso e inesperado como só os grandes contos de fadas são capazes de fazer Uma história que se abre para o futuro sem respostas mas com inúmeras e fascinantes perguntas destinadas a todas as idades Compre agora e leia OLGA TOKARCZUK SOBRE OS OSSOS DOS MORTOS Sobre os ossos dos mortos Tokarczuk Olga 9786580309702 256 páginas Compre agora e leia A aclamada autora mistura thriller e humor nesta reflexão sobre a condição humana e a natureza Vencedora do NOBEL DE LITERATURA Vencedor do MAN BOOKER INTERNATIONAL PRIZE 2018 Subversivo macabro e discutindo temas como mundo natural e civilização este livro parte de uma história de crime e investigação convencional para se converter numa espécie de suspense existencial Uma das grandes vozes humanistas da Europa segundo o jornal The Guardian Olga Tokarczuk oferece um romance instigante sobre temas como loucura injustiça e direitos dos animais Compre agora e leia