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Cad.Est.Ling., Campinas, (22):97-107, Jan./Jun. 1992\n\nANÁLISE CRÍTICA DO ARTIGO \"CRIATIVIDADE E GRAMÁTICA\" DE CARLOS FRANCHI\n\nHERONIDES MAURÍLIO DE MELO MOURA\nUFSC\n\n0. INTRODUÇÃO\n\nO artigo de Carlos Franchi, \"Criatividade e Gramática\", traz uma importante contribuição para uma discussão que, nos últimos anos, tem sido travada em torno do ensino da gramática no sistema educacional. Neste debate, linguistas, gramatcistas e educadores têm se perguntado se é válido o ensino da gramática, e, em caso positivo, que concepção de gramática deve ser utilizada na prática pedagógica e que estratégias devem ser desenvolvidas no ensino dessa gramática.\n\nO artigo de Carlos Franchi propôs alternativas que merecem uma reflexão atenta. Este meu trabalho objetiva não apenas resenhar o artigo citado, mas desenvolver algumas questões.\n\nO trabalho será dividido em duas partes. A primeira tentará captar as linhas de argumentação principais do artigo, sem se preocupar em acompanhar passo a passo essa argumentação. Esta primeira parte terá um caráter puramente interpretativo. Na segunda parte tecerei alguns comentários em torno de certas questões abordadas pelo texto. Para enriquecer a análise, introduzirei algumas rápidas noções da filosofia da linguagem de Wittgenstein, especialmente o conceito de jogos linguísticos. Por outro lado, discutirei o problema do papel didático a ser reservado à descrição gramatical metalinguística no ensino da gramática. Por fim, ilustrarei com uma análise concreta a ideia de que a criatividade linguística se manifesta através das regras gramaticais.\n\n1. INTERPRETAÇÃO\n\nO autor parte do pressuposto de que um dos principais objetivos do ensino, de um modo geral, é estimular a criatividade dos educandos. A partir disso, tentará demonstrar que a prática gramatical pode ser criativa, o que, por si só, justifica o ensino da gramática nas escolas. Trata-se, portanto, de desvendar a criatividade da linguagem e de tentar estimular essa criatividade na prática pedagógica gramatical. O desejo que alguns educadores têm manifestado de expulsar a gramática das escolas, ou então reduzir maximamente seu papel no ensino da língua materna, assenta em uma visão equivocada da linguagem e consequentemente da gramática. Um dos objetivos do artigo é esclarecer para os professores que somente com uma visão não limitada da linguagem se torna possível fazer do ensino da gramática uma atividade criadora.\n\nPara desvendar a criatividade da linguagem, o autor se pergunta sobre a natureza da própria criatividade. O que é criatividade? Em que medida ela se manifesta nas atividades humanas?\n\nPor meio de uma breve recensão histórica, o autor vai delimitando o conceito de criatividade. Em primeiro lugar, pode-se dizer que a criatividade está inserida em práticas que supõem a existência de regras. Ou seja, a criatividade não é uma \"inspiração\", uma \"sublimação\" do mundo das regras, da norma estruturada: é uma atividade que trabalha com regras.\n\nE tais regras existem porque a atividade humana (em praticamente todas as áreas) é uma prática social, compartilhada. Ora, uma prática social sempre pressupõe regras, ou, em outros termos, uma relação intersubjetiva. Só na relação de sujeito para sujeito, de um eu para outro eu, de um homem para outro homem, é que as práticas adquirem significado, seja na vida social, na arte ou na ciência.\n\nPor outro lado, o relacionamento do sujeito com o mundo é uma atividade eminentemente criadora: o homem está constantemente intervindo na estruturação do real. O elemento criador se faz presente até mesmo na prática científica. O cientista não é apenas o observador passivo de uma realidade que lhe é totalmente estranha: ele reordena e recria essa realidade por meio de suas teorias, marcadas pela provisoriedade.\n\nTemos então duas características básicas da criatividade. Em primeiro lugar, ela se manifesta em práticas compartilhadas, intersubjetivas e como tais sujeitas a regras. Por outro lado, ela está na base de todas as atividades humanas, que se caracterizam por serem ativas e não passivas.\n\nE nessas bases filosóficas que se diz que o ensino deve priorizar a criatividade. Porque, se impedíssemos os alunos de serem criativos, estaríamos cerceando a liberdade humana, entendida aqui como a capacidade de renovar e reinterpretar as práticas sociais.\n\nPois bem, Franchi argumenta que essas mesmas características da criatividade se estendem à linguagem. Mas para se compreender a argumentação do autor, é necessário entender antes que o pensamento não é apenas instrumento para a apreensão da realidade; o próprio pensamento é um formador e transformador da realidade. Ora, a linguagem está intimamente relacionada ao pensamento. Dessa forma, a linguagem é também criadora, transformadora. A linguagem não é apenas um espelho das imagens do mundo. Ao contrário, nossa visão do mundo se forma, recorta-se em imagens, a partir das significações linguísticas. A linguagem se baseia em regras. Entretanto, estas regras estão abertas à criatividade. Os recursos expressionais da linguagem oferecem diversas opções aos falantes.\n\nEsta é uma das principais ideias do artigo: a linguagem deixa os caminhos abertos à expressão. Suas regras não têm caráter coercitivo; elas apen as indicam possibilidades expressivas. Então por que não estudar as estruturas lingüísticas, se através delas podemos expressar melhor nosso ponto de vista, formar nossa própria interpretação do real?\n\nMas é preciso compreender também outro ponto relevante. A linguagem é uma práxis histórica. Em outros termos, a linguagem é uma prática que está inserida em contextos sociais. Isolar a linguagem, despojá-la do meio onde funciona, é retirar dela toda sua capacidade expressiva. As condições de significação da linguagem estão intimamente relacionadas ao uso dela se faz na sociedade. As formas lingüísticas adquirem significações dentro do que Franchi denomina \"contexto vital\".\n\nPortanto, a prática lingüística não é uma atividade isolada, solitária. A criatividade do sujeito só pode se manifestar no jogo interacional, na relação do eu com outros, seja na argumentação, no diálogo, nas ordens, nos pedidos, etc.\n\nCom tudo isso, vê-se que a linguagem é um fenômeno complexo, que exige muito prática e muitos exercícios. E não é assim que a criança aprende suas primeiras performances lingüísticas, através da prática?\n\nEm resumo, podemos dizer que a criatividade é uma utilização das potencialidades da linguagem. Ou seja, a criatividade é de uma prática. De modo que, quanto mais o falante domina os recursos expressivos de uma gramática, mais ele pode ser criativo, ou seja, instaurar suas próprias significações no campo da linguagem.\n\nAgora retornamos a questões centrais discutidas no artigo: que concepção de gramática devemos utilizar na prática pedagógica? E que estratégias devem ser utilizadas no ensino dessa gramática?\n\nPara Carlos Franchi, essa concepção é a seguinte: gramática é o estudo das condições lingüísticas de significação. Ou seja, a prática pedagógica da gramática deve propiciar aos alunos a compreensão de como os recursos expressivos (sintáticos, morfológicos, fonológicos) condicionam e possibilitam as diversas formas de significar a realidade. Nessa passagem da estrutura formal para a significação (que é a própria essência da linguagem) é que se deve centrar a prática pedagógica. Assim, por exemplo, o ensino das regras de formação de palavras tem um interesse subsidiário: o importante é, dentro de um certo paradigma, escolher aquele termo que corresponde à intenção expressiva que queremos transmitir. Essa passagem recurso formal --> significação ocorre na mais simples escolha lexical. A gramática, enquanto expressividade, encontra-se presente nas menores gotas de linguagem.\n\nPor exemplo, no seguinte paradigma, a escolha de um ou outro sintagma nominal representa um certo matiz de significação: ruas pequenas e\nruazinhas\nruelas\n\n\"Ruas pequenas\" é uma forma mais descritiva, analítica. \"Ruazinhas\" é uma forma mais pessoal, íntima. \"Ruelas\" é uma forma que talvez acentue a pequenez da rua...\n\nO tipo de atividade proposta por Franchi, apesar de informal, é muito estimulante. Podemos ver a língua \"funcionando\", e cada estrutura adquirindo a significação que o falante quer ou pensa ter dar.\n\nCom base nessa concepção de gramática, onde se pratica a variedade de recursos expressivos que o falante tem à sua disposição para efetuar a construção do sentido, podem ser elaboradas diversas estratégias de ensino. O importante é que o aluno, junto com a turma, deve operar sobre a linguagem, formar e transformar textos, \"perceber nesse trabalho a riqueza das formas lingüísticas\".\n\nEntretanto, não tem sido esta a concepção de gramática utilizada nas escolas. Essas tendências históricas podem ser observadas na concepção de gramática:\n\na) sistema nocional descritivo\nb) condições de \"uso\"- gramáticas normativas e prescritivas\n\nA primeira tendência corresponde a uma metalinguagem teórica, e a segunda à prescrição de um determinado \"padrão\" de uso.\n\nO autor pôs a mostrar as fragilidades dessas duas concepções A metalinguagem da gramática tradicional já foi suficientemente criticada por muitos autores; Franchi apenas reforça alguns pontos, como a crítica às \"categorias nocionais\" e a confusão de critérios no estabelecimento da teoria. Por outro lado, aponta o caráter autoritário e repressivo da gramática prescritiva.\n\nNa segunda parte deste trabalho, discutirei o problema de opor o ensino da gramática como metalinguagem ao ensino como práxis.\n\n2. COMENTÁRIOS\n\nIntroduzirei aqui alguns conceitos da filosofia da linguagem de Wittgenstein. O objetivo é tentar enriquecer a proposta de gramática pedagógica defendida por Carlos Franchi.\n\nWittgenstein critica a noção de linguagem como nomenclatura. Para ele, não existe uma realidade estruturada anterior à linguagem. Ou seja, as palavras não dão nomes às coisas que existem por si mesmas, como partes constitutivas do real. Em outros termos, a linguagem não é um espelho da realidade.\n\nLembremos que esta também é a concepção de Saussure. \"Não existem ideias Pré-estabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua\" (Saussure, Curso: 130).\n\nÉ assim que se manifesta o caráter criador da linguagem, ressaltado por Franchi. A linguagem é um elemento de estruturação do real, e não um reflexo de um mundo que se desenha além da linguagem.\n\nEssa concepção é muito importante numa prática pedagógica que se pretenda libertadora e criativa, pois mostra aos alunos que as imagens que formamos do mundo não são independentes da linguagem com que as expressamos. Descobrindo como a linguagem \"molda\" as ideias e imagens, que, a partir de um determinado texto, formamos do mundo, os alunos adquirem a capacidade de reinterpretar e recriar essas ideias e imagens, reinterpretando o texto. Por outro lado, ele o faz ter consciência das imagens do mundo que tal tipo de texto está transmitindo.\n\nVejamos dois exemplos concretos, um de leitura e outro de produção de textos. Na minha experiência como professor de língua portuguesa no ensino superior, costumava realizar a análise de editoriais de jornais, junto com meus alunos. É justamente tal tipo de discurso tentando conduzir o leitor a determinadas conclusões. A atividade que eu propunha à turma era analisar a estrutura de um editorial, ver como se dava sua sequência argumentativa, a utilização dos operadores argumentativos e conectivos lógicos, a contradição de fatos e opiniões, etc. Muitas vezes descobríamos que um editorial fazia uma opinião na verdade, utilizava como pressuposto consensual uma afirmação polêmica, enfatizava aspectos que corroboravam a argumentação, ocultando outros que lhe eram contrários, etc. Com esse tipo de análise, muitas vezes repensávamos as conclusões a que tínhamos chegado numa primeira leitura \"ingênua\". Em outros termos, reinterpretávamos a imagem do mundo que o editorial queria transmitir a partir de uma reinterpretation da estrutura do texto.\n\nOutro exemplo, agora na produção de textos. Aparentemente, uma descrição objetiva parece ser uma modalidade de discurso \"neutro\", que sempre transmite uma imagem \"real\" do objeto tal como ele é. Na verdade, podemos averiguar, na prática pedagógica, que nem sempre é assim. Na produção de uma descrição, pode-se querer atingir vários objetivos expressivos. Desse modo uma descrição pode ressaltar determinados aspectos estáticos em relação aos dinâmicos, o objeto isolado ou em relação a uma série de outros, etc. Numa atividade como esta, o aluno tem que estar consciente de que ele pode utilizar diferentes recursos expressivos para formular diferentes descrições de um mesmo objeto, obtendo o efeito de sentido que ele deseja. Ele deve averiguar, na prática, que tem à sua disposição diferentes recursos expressivos caso queira produzir uma descrição num folheto de venda (propaganda), num relatório técnico, num texto literário, etc.\n\nA criatividade da linguagem reside, em suma, na capacidade que o usuário tem de produzir diferentes interpretações da realidade.\n\nHá ainda outra ideia de Wittgenstein que eu gostaria de introduzir nestes comentários. Trata-se da noção de \"jogos lingüísticos\". Para Wittgenstein, a linguagem é um jogo, com os falantes correspondendo aos jogadores e as regras gramaticais e discursivas correspondendo às regras do jogo. Não existe apenas um tipo de jogo - os jogos na verdade, são os mais diversos tipos e apresentam diferentes tipos de regras. Essa mesma diversidade existe nos jogos linguísticos. Através deles, realizamos diversas atividades, em correspondência com vários aspectos da sociedade humana. Ou, para comparar com Franchi, cada jogo linguístico se realiza no seu \"contexto vital\". Outro ponto importante: assim como não existe uma regra válida para todos os tipos de jogos existentes, é impossível determinar uma mesma função para todos os jogos linguísticos.\n\nOs jogos linguísticos servem para realizar uma série de atividades. Vejamos algumas: Commandar, e agir segundo comandos - Descobrir um objeto conforme a aparência ou conforme medidas - Relatar um acontecimento - Conjecturar sobre o acontecimento - Expor uma hipótese e prová-la - Inventar uma história; Ler - cantar uma cantiga de roda - Resolver enigmas - Fazer uma anedota; Contar - traduzir de uma língua para outra - Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar\" (Wittgenstein, 1984: 19). ouvir o interlocutor e só falar no momento apropriado, etc? Pois bem, se desde a infância pratiquemos este \"jogo\" na escola, poderíamos ter aprendido mais conscientemente a especificidade deste discurso: \"Então o sentido do diálogo não é o sentido do que este aquele diz: é ao contrário, o sentido constituído pelo confronto das ações dos interlocutores\" (Geraldi et al, 1985:154). Pelo que foi dito até agora, a gramática pedagógica deve ser uma prática que capacite os alunos a seguirem seus próprios caminhos dentro dos jogos linguísticos. Nesse sentido, a alternativa de Carlos Franchi se afasta da proposta de Mário Perini (1986), para quem uma descrição mais 'racional' da língua portuguesa atingiria, por si só, o objetivo de uma gramática pedagógica. Em outras palavras, basta elaborar, segundo Perini, uma metalinguagem gramatical com bases na ciência filanística para que o rendimento do ensino gramatical seja mais satisfatório. Entretanto, concordo com o que parece ser a opinião de Carlos Franchi: por mais sofisticada e científica que seja uma teoria metalinguística, ela por si só não predisposição dos alunos a uma melhor utilização dos recursos expressivos de sua língua. Um aluno pode perfeitamente identificar \"elipses e constituintes vazios\", conhecer a diferença entre \"classes e funções\", e não ter a capacidade de expressar seu ponto de vista numa argumentação escrita ou mesmo num diálogo. Parece-me que a proposta de Carlos Franchi está mais próxima daquela defendida por Celso Pedro Luft (1985): \"Importante é compreender que o aluno não precisa 'aprender' a língua. Precisa, sim, da gramática implícita, interiorizada na primeira e na segunda infância, com os elementos próprios dos modelo culto padrão. E precisa aprender a ler e escrever, ter contato constante com bons textos, e descobrir, com o professor e toda a classe, as regras expressionais de seu idioma\" (id.:109). \"O ensino tem de ocupar-se com o manejo da língua\" (id.: 107). Não obstante, a posição de Carlos Franchi quanto ao problema do ensino gramatical como práxis ou como metalinguagem descritiva não me parece inteiramente clara. Ele define três tipos de atividade: atividade lingüística, atividade epilinguística e atividade metalinguística. A atividade lingüística é aquela que se dá \"naturalmente\", fora do âmbito da escola. A atividade epilinguística é aquela prática estimulada e consciente da linguagem, com variação dos recursos expressivos e formais como meio de obter novos efeitos de sentido: é um trabalhar sobre a linguagem, como aquele exercício proposto pelo Padre Matos. A atividade metalinguística é uma descrição formal dos fatos da linguagem, seja pela teoria da gramática tradicional, seja pela ciência linguística. Carlos Franchi prioriza as atividades epilinguísticas, o que se encontra em consonância com sua concepção de gramática como passagem das formas lingüísticas às significações. Todavia, resta perguntar: em que momento da educação escolar devem ser introduzidas noções metalinguísticas? Ou elas simplesmente não devem desempenhar qualquer papel na educação gramatical dos alunos, devendo ser regladas aos Cursos de Letras, onde se preparam os professores que, estes sim, devem ter conhecimentos teóricos? Carlos Franchi afirma que \"um dia\" os alunos, depois de exercitarem amiudadamente os recursos expressivos do idioma, estarão aptos a elaborar hipóteses metalinguísticas. O autor não explica quando será \"esse dia\", e suas afirmações parecem implicar em que as atividades metalinguísticas em nada contribuem para a prática pedagógica, devendo ser consideradas um procedimento acessório e suplementar. Nesse ponto discordo um pouco do autor. Acredito, como ele, que o ensino básico (1º grau) deve se voltar, talvez exclusivamente, às atividades epilinguísticas. Contudo, no 2º grau, quando os alunos já deveriam estar mais amadurecidos na utilização consciente dos recursos expressivos do idioma, seria de bom alvitre mesclar práticas epilinguísticas e metalinguísticas. Seria interessante, por exemplo, que os alunos conhecessem noções teóricas como paradigma, sintagma, sintagma nominal, classe de palavras, etc, no campo da sintaxe; morfema, alomorfe, etc, no campo da fonologia, campos semânticos, sinonímia, etc, no campo da semântica. Todas essas noções já teriam sido intuitivamente \"aprendidas\" no 1º grau; no 2º grau elas seriam explicitamente teorizadas. É preciso esclarecer que advogo esta ideia não para que os alunos dominem a teoria pela teoria. A minha ideia é que certos conceitos gramaticais facilitam a compreensão por parte do aluno dos mecanismos linguísticos que, bem utilizados, favorecem a expressividade. Ou seja, teorizar sobre a sistematicidade dos fatos gramaticais deve vir em auxílio da concepção de gramática pedagógica adotada por Carlos Franchi. Os conceitos teóricos devem propiciar aos alunos novos instrumentos para a utilização das potencialidades da língua. Em resumo, as atividades metalinguísticas devem ser um procedimento didático complementar, e não suplementar, às atividades epilinguísticas, contanto que esteja subjacente a estas atividades a concepção da gramática como condições linguísticas da significação. É importante ressaltar que o momento de intensificação das práticas metalinguísticas que proponho aqui (2º grau), é apenas uma sugestão. As decisões quanto a isto devem provir de um debate de todos os professores e educadores envolvidos. Por outro lado, resta ainda o importante problema do ensino do português no curso básico das diferentes áreas do ensino superior. Creio que o deve ser dar, novamente, ênfase às atividades epilinguísticas, de produção e interpretação de textos, agora envolvendo discursos mais específicos: textos técnicos, argumentativos, políticos, jornalísticos, etc. O papel da metalinguagem gramatical nesses cursos é algo a ser debatido. Para ilustrar a ideia de que a criatividade na linguagem é uma prática que envolve regras, gostaria de analisar brevemente duas frases que constituem implicaturas, segundo a definição de P. Grice. Nessas duas frases, somente o contexto de enunciação é que permite decifrar o sentido real das mensagens. A primeira frase, escrita num cartaz com a figura um cão cabisbaixo e tristonho, é a seguinte: 1a) Eu gostaria muito de poder entrar... O cartaz está afixado na entrada de um supermercado. Parece-me que nenhum leitor desse cartaz deixaria de interpretar essa frase como: 1b) É proibido entrar com cães (e outros animais). Ou seja, trata-se de uma forma criativa, não-literal, de expressar uma proibição pura e simples. O efeito da frase 1a é certamente mais marcante que o efeito direto da frase 1b. A implicatura contextual é usada como forma de polidez. A minha hipótese é que, para obter essa interpretação não-literal, a partir do contexto, o emissor da frase teve de lançar mão de uma regularidade linguística, que denominarei \"desejo condicional\". Essa regularidade se expressa pela presença de um verbo de volição (querer, gostar, desejar, etc) e talvez também o futuro do pretérito, indicando que alguma condição impede que o desejo expresso seja realizado. A partir dessas marcas, e utilizando o contexto, o receptor interpreta a frase (num processo inconsciente, é claro). Assim, na frase 1a, ocorre o seguinte processo de decodificação: o receptor entende que o a ação manifesta um desejo (o verbo gostar) e ao mesmo tempo que esse desejo é apenas uma hipótese, ou seja, uma condição impede de ele seja satisfeito. Interpretadas essas marcas, o receptor recorre ao contexto: por que esse cão, aqui e agora, está expressando um desejo não realizado? Ora, logo o receptor descobre que a mensagem apenas chama atenção para o fato de que existe uma condição que impede o desejo do cão de se realizar (caso um cão pudesse se expressar linguisticamente). Ou seja, a frase 1a chama atenção para o fato de que é impossível um cão entrar naquele supermercado. É essa proibição que torna o desejo do cão um \"desejo condicional\". Nesse caso, um desejo que não pode se realizar. Comprovando o fato de que a marca linguística é importante para a decodificação dessa mensagem, vemos que a frase ficaria um pouco estranha se retirássemos o verbo do condicional (futuro do pretérito) e o colocássemos no presente: 1c) Eu quero muito entrar aqui. Essa frase seria um pouco ambígua. Vejamos outro exemplo que apresenta a mesma regularidade linguística. Ele foi extraído de Ilari e Geraldi (1985:75): \"Ele (o autor) e um colega passam uma semana viajando a serviço. Acabam de retornar e estão na casa do colega, que é pai de uma menina de aproximadamente 4 anos. Os três - pai, colega e criança - estão brincando no quarto da menina a esta, em momento, dirige-se ao pai dizendo: (2a) Papai, eu queria brincar com você! Evidentemente, temos aqui outro caso de implicar num sentido não-literal. A criança usou de sua criatividade para dizer, de um modo \"esperto\", que queria o amigo do pai longe dail. Certamente ela conseguiu seu objetivo entre sorrisos dos adultos. Se tivesse dito um modo direto, seco.\n\n(2b) Papai, não quero que esse homem brinque com a gente. talvez tivesse chateado ou o pai, ou o amigo. Mas o importante é ressaltar é que a criatividade dessa criança utiliza uma regularidade linguística, que denomininei \"desejo condicional\".\n\nA interpretação é a seguinte. Os receptores (pai e amigo) percebem que ela manifesta um desejo (pelo verbo querer), mas um desejo que, em dadas condições, (pelo futuro do pretérito), não está sendo realizado. Então os receptores se perguntam: por que ela diz isso? Só o contexto poderia determinar. Que condição impede que ela brinque com o pai (se ela já está brincando com o pai)?! Evidentemente, o \"desejo condicional\" que ela expressa chama atenção não para o fato de que ela deseja brincar com o pai, mas para o fato de que ela quer brincar só com o pai. Em outras palavras, o contexto indica que a condição para que o desejo se realize é que o amigo faça o favor de se retirar. Veja-se que na frase 1a 2a a mensagem chama atenção para a condição na qual o desejo da criança se realizaria. Frisemos que é o contexto que indica a condição que faz com que o \"desejo\" seja expresso como irrealizado.\n\nO objetivo desta rápida análise foi apenas mostrar que, conforme a ideia de Franchi, a criatividade se manifesta por meio das regras linguísticas. É evidente que não estou propondo que se ensine esse tipo de análise numa gramática pedagógica, a sim enfatizando o fato de que se praticando os meandros da linguagem é que o aluno pode obter algum nível de criatividade. Os exemplos acima são de frases \"inconscientes\" e \"naturais\" - mas a práticas linguística pode mostrar aos alunos a maneira pela qual, a um nível mais consciente, eles podem obter determinados efeitos de significação utilizando os recursos expressivos do idioma.\n\nBIBLIOGRAFIA\n\nFRANCHI, Carlos (1987). \"Criatividade e Gramática\". Trabalhos em Linguística Aplicada. IEL - UNICAMP, Campinas, n° 9, p. 5-45.\n\nGERALDI, J.W. et all (1985) \"Operadores de argumentação e diálogo\". Cadernos de Estudos Lingüísticos. IEL - UNICAMP, Campinas, n° 9, p. 143-157.