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é para canalizar tal devoção e mais largamente para permitir o prolongamento do triunfo da presença real que a Igreja instaura uma nova festa dedicada ao próprio sacramento eucarístico o Corpus Christi Realizada em Liège desde os anos 1240 ela é oficializada pelo papa Urbano IV em 1264 e floresce sobretudo sob o estímulo do papa de Avignon Clemente V no início do século XIV No momento dessa festividade solene a hóstia consagrada exibida em um ostensório transparente e assim tornada visível a todos os fiéis é levada em procissão sob um pálio através da cidade depois é celebrado um ofício especial chamado Corpus Christi cuja redação é devida a Tomás de Aquino A procissão que faz sair o objeto sagrado de seu próprio lugar o que não deixa de ser perigoso exibe o poder sacralizado do clero que toma posse do espaço urbano graças à deambulação de seu emblema maior a hóstia Nos últimos séculos da Idade Média a devoção eucarística adquire incessantemente importância crescente cujo reverso é o horror suscitado pelas narrativas de profanação da hóstia Frequentes a partir do século XIII elas são comumente utilizadas contra os judeus que são acusados assim de repetir contra o sacramento o crime cometido contra Jesus mas sobretudo afiançam o realismo eucarístico que prova da presença real é melhor do que uma hóstia que sangra De resto fora as narrativas de profanação milagres cada vez mais frequentes concorrem para exacerbar o culto eucarístico assim o Menino Jesus aparece nas mãos do sacerdote no momento da elevação como na visão do rei Eduardo o Confessor relatada por Mateus Paris no século XIII como vista na figura 31 na p 363 a não ser que a hóstia sangue acima do altar ou se transforme em carvão ardente na boca de um mau sacerdote Enfim entre os simples fiéis o desejo de ver a hóstia não se enfraquece concorrendo sempre com a prática da comunhão A eucaristia tornase assim nos três últimos séculos da Idade Média um supersacramento superior a todos os outros pois permite o contato de maneira repetida com a presença corporal de Cristo Miri Rubin Por que uma doutrina eucarística tão nova é formulada entre os séculos XI e XII Podese sem muita dificuldade sustentar que essa revolução doutrinal está em estreita relação com duas transformações sociais maiores desse mesmo período o encelulamento e a acentuação da separação entre clérigos e laicos Com toda a evidência a doutrina da presença real ressalta a eminência do ritual eucarístico e lhe confere uma sacralidade espetacular reforçada Ela atribui então um poder simbólico ampliado ao sacerdote capaz de realizar um ato tão extraordinário como a transmutação do pão em carne e do vinho em sangue A um só tempo fora do domínio do natural ou contranatureza diz o teólogo Simão de Tournai e indispensável à salvação de todos a operação realizada pelo sacerdote reforça sua sacralidade e justifica a distância que separa 31 Cristo aparece miraculosamente na hóstia c 125560 abadia de SaintAlbans ou Westminster História do santo rei Eduardo Cambridge University Library Ee359 p 37 fl 27 Celebrando a missa o sacerdote faz o gesto característico da elevação da hóstia É então que segundo o relato por vezes atribuído a Mateus Paris o santo rei Eduardo o Confessor teria tido a visão do Menino Jesus nas mãos do sacerdote no lugar da hóstia Esse tipo de milagre mencionado em vários relatos a partir do século XII é uma maneira de confirmação exemplar da doutrina da transubstanciação e da presença real Com efeito como fazer entender de melhor modo que a hóstia se torna realmente o corpo de Cristo e que este se torna realmente presente pelas palavras e pelos gestos do sacerdote clérigos e laicos Podemos então afirmar a existência de um laço fundamental entre o reforço do poder clerical e o desenvolvimento da nova teologia da eucaristia Miri Rubin Isso é tornando ainda mais claro pelo fato de que no século XII no mesmo momento em que é instaurado o realismo eucarístico o cálice é salvo casos excepcionais retirado dos laicos e o sacerdote passa a ser o único a comungar sob as duas espécies A distância entre clérigos e laicos é marcada assim por uma diferença ritual bem visível e uma reivindicação dos 362 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 363 partidários de Hus no século XV é que ela seja abolida e que se restitua aos laicos a comunhão sob as duas espécies De maneira ainda mais clara a maior parte dos hereges notadamente os cátaros e os lolardos e depois os reformados contesta radicalmente a doutrina da presença real transformada no fundamento do poder exorbitante reivindicado pela casta sacerdotal Realismo eucarístico lugar sagrado e comunhão eclesial Se o realismo eucarístico responde às necessidades de uma sociedade fundada sobre a separação radical entre clérigos e laicos contribui igualmente para o ordenamento espacial do sistema feudal Com efeito a presença real valoriza o ritual local que se realiza em cada igreja sobre cada altar ali naquele exato lugar está verdadeiramente presente o corpo de Cristo Ora um evento tão extraordinário como a presença real do Salvador não pode se produzir senão em um lugar fortemente sacralizado vigorosamente extraído do espaço terrestre normal É por isso que o realismo eucarístico está estreitamente ligado à nova doutrina do lugar eclesiástico estabelecida no mesmo momento e igualmente desprovida de fundamento nas Escrituras ou na Patrística como bem demonstrou Dominique IognaPrat Nos primeiros séculos do cristianismo a questão do lugar onde seria realizada a celebração tem pouca importância ela é quase sem interesse e qualquer mesa por mais modesta que seja pode servir de altar A reticência em relação ao enraizamento espacial das práticas de culto domina então Michel Lauwers e Agostinho faz ainda esta pergunta irônica São os muros que fazem os cristãos Uma primeira transformação intervém no fim do século IV quando a presença de relíquias no altar é julgada útil e mais tarde em 401 considerada indispensável para a celebração da missa santo Ambrósio explica que do mesmo modo que as almas dos mártires aparecem sob o altar celeste do Apocalipse os corpos dos santos devem se encontrar sob o altar terrestre O lugar deixa de ser indiferente e a geografia sagrada de que falamos começa a se estabelecer durante a Alta Idade Média os grandes santuários perfumados e rutilantes em meio a um mundo mal iluminado e malcheiroso aparecem como fragmentos de paraíso Peter Brown A prática conserva entretanto certa maleabilidade e na época carolíngia é necessário condenar a celebração da eucaristia nas residências privadas e relembrar a indispensável presença das relíquias no altar É somente nos séculos XI e XII que o uso de um lugar sagrado é objeto de uma justificativa precisa tornada necessária pela contestação dos hereges Aqueles que são interrogados pelo Sínodo de Arras em 1205 e os discípulos de Pedro de Bruis no século seguinte pretendem voltar à prática antiga e negam radicalmente a necessidade do edifício cultual Tratase a seus olhos de uma realidade material desprovida de todo valor enquanto somente a reunião dos fiéis e seu engajamento espiritual no ato da prece deveriam importar Diante desse ataque que visando à igrejaedifício ameaça a Igrejainstituição os clérigos são obrigados a reagir e afirmar uma doutrina do lugar eclesial enfatizando seu caráter necessário e sua sacralidade Assim embora seja necessário reconhecer com Agostinho que Deus está em todo lugar e não aprisionado em algum lugar é possível afirmar a necessidade de um lugar especial onde Deus esteja mais presente do que alhures Atos de Arras de um lugar próprio que é a morada privilegiada de Deus e o quadro das preces mais eficazes Pedro o Venerável Se todas as justificativas sublinham que o edifício cultual só tem sentido porque abriga a assembleia dos fiéis não é menos claro que ele seja o símbolo da instituição sacerdotal e de seu poder sagrado Toda religião demanda um lugar onde os objetos do culto são venerados e onde as pessoas se ligam de modo mais íntimo àquilo que foi instituído diz ainda o abade de Cluny Doravante o lugar sagrado é bem constituído pelo seu coração o altar e seu duplo invólucro a igreja consagrada por um ritual de dedicação progressivamente fundamentado e o cemitério também ele objeto de uma consagração Do ponto de vista dos clérigos o lugar sagrado assim definido é o único onde se opera de maneira ao mesmo tempo tão permanente e tão intensa o contato entre os homens e Deus todavia ele pode se produzir alhures em situações excepcionais até mesmo miraculosas enquanto a simples prece em qualquer lugar é dotada de uma eficácia mais limitada Além disso o lugar de culto consiste de uma conjunção particular do espiritual e do material segunda parte capítulo IV Ele é feito de pedras e um corpo material inscrevese em seu coração a relíquia mas e é isso que os contestadores não querem nem ouvir ele é espiritualizado pelo ritual da consagração que o transforma em imagem da Jerusalém celeste É por isso que nesse lugar e através do sacrifício ritual que nele se desenrola uma comunicação privilegiada pode se estabelecer entre a terra e o céu entre os homens e o divino Assim o realismo eucarístico junto com a doutrina do lugar eucarístico que o acompanha aporta uma contribuição decisiva para a valorização do centro de cada entidade paroquial e então para a polarização do espaço feudal Mas o sacramento eucarístico não se contenta em exaltar e exigir ao mesmo tempo a dignidade do lugar sagrado onde ele se realiza ele introduz igualmente à dimensão universal da Igreja Como toda refeição a eucaristia é um rito comunitário e como aquele que é oferecido em sacrifício é o próprio Senhor faz a provação ritual não somente da comunidade de indivíduos presentes mas da comunidade de todos os cristãos vivos ou mortos A refeição eucarística faz 364 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 365 entrar assim na comunhão da Igreja universal terrestre e celeste Não se pode com efeito ignorar que a expressão corpo de Cristo designa ao mesmo tempo a hóstia consagrada e a Igreja segunda parte capítulo IV Tornar realmente presente o corpo de Cristo na hóstia é então fazer existir a Igreja como corpo e como comunidade universal Incorporando o corpo de Cristo a hóstia os fiéis incorporamse ao corpo de Cristo a Igreja Então o sacramento eucarístico valorizado ao extremo pela presença real manifesta ritualmente a unidade da cristandade A partir daí todas as igrejas onde advém a presença real de Cristo podem aparecer seja como centros seja como microcosmos à imagem do macrocosmo da cristandade e em estreita conjunção com ele Mas a articulação do local e do universal manifestase também por uma dualidade entre as relíquias associadas a uma figura santa que remete em geral a uma inserção local e à hóstia que como corpo de Cristo assume um valor sobretudo universal Se o altar é o lugar dessa dupla inserção o edifício eclesial o é igualmente pois ao mesmo tempo é associado ao santo que é o seu titular e à Igreja celeste do qual é a imagem No coração de cada paróquia se observa então o seguinte complexo no centro do centro o altar associado tanto ao corporeliquia de um santo como ao corpohóstia de Cristo depois o lugar eclesial sacralizado reproduzindo no mais das vezes a forma do corpo crucificado de Jesus enfim o cemitério consagrado lugar dos corposmortos É esse dispositivo concêntrico de corpos associados que assegura a polarização do espaço local e a estabilidade dos seres vivos que o ocupam ao mesmo tempo que põe cada lugar particular em comunhão com o corpoIgreja da cristandade e em correspondência com a Igreja celeste A instituição eclesial consegue assim por um jogo de articulações e remissões associar a comunidade restrita a paróquia e a comunidade ampla a cristandade reforçando a coesão tanto de uma como de outra A imagem concêntrica do mundo Não se pode concluir este capítulo sem extravasar as fronteiras da cristandade e evocar brevemente as concepções da terra e do universo Estas prolongam de resto a visão concêntrica do espaço analisada até aqui Devese de início relembrar a importância das margens da cristandade zonas de conquista e de integração tardia tanto em direção ao Norte e Leste como na Península Ibérica Para além estendese o mundo não cristão aquele dos conflitos e das trocas com os muçulmanos e mais longe a África profunda e o Extremo Oriente Essas paragens não são totalmente ignoradas desde antes da exploração metódica das costas africanas pelos portugueses o prestígio ameaçador dos tártaros nos anos 1220 e desde a estabilização do Império Mongol a esperança de obter a conversão de seu chefe o Grande Khan suscita uma notável corrente de viajantes e de trocas que se esgota somente por volta de 1400 O papado envia uma dezena de embaixadas em particular a dos franciscanos João do Plan Carpin em 1245 e Guilherme de Rubrouck em 1253 Procuramse os discípulos de são Tomás suposto apóstolo das Índias e algumas conversões são obtidas Os irmãos Polo ao mesmo tempo movidos por seus negócios e embaixadores da cristandade chegam à China pela primeira vez em 1266 de onde trazem uma mensagem de Kubilai solicitando ao papa pregadores da fé católica depois em 1275 dessa vez com o jovem Marco autor do Livro das maravilhas ficando dezesseis anos a serviço do Grande Khan voltando depois para Veneza via Sumatra e Índia Embora os relatos desses viajantes tragam novas informações sobre um mundo do qual sublinham a ordem e a riqueza eles não impedem absolutamente que o Oriente continue sendo o domínio do imaginário e do maravilhoso o conhecimento adquirido em campo aglutinase às lendas preexistentes mais do que as substitui Paul Zumthor Lá vivem povos monstruosos que são já descritos pelos autores antigos como Plínio e Solino e que Isidoro de Sevilha e Rábano Mauro fazem entrar no saber compartilhado pelos clérigos medievais inclusive pelos mais doutos como Alberto o Grande ou Roger Bacon os cinocéfalos homens com cabeça de cachorro que se comunicam latindo os panócios bizarramente dotados de orelhas gigantescas os ciapodos com um único pé tão grande que eles o utilizam para se proteger do sol os homens sem cabeça que têm o rosto no tronco os opistópodes que têm os pés invertidos com os calcanhares virados para a frente sem falar nos ciclopes nos pigmeus e outros gigantes figura 32 na p 368 Lá ainda na Grande Muralha da China são prisioneiros Gog e Magog os povos que se abaterão sobre a cristandade no final dos tempos Na Ásia igualmente ou na Etiópia encontrase o Preste João soberano de um reino cristão onde reinam a justiça a paz e a abundância A carta que se supõe que ele endereçou ao imperador de Bizâncio circula no Ocidente a partir do século XIII e conhece difusão crescente até o século XVI O papa Alexandre III envialhe uma mensagem em 1177 numerosos príncipes sonham selar uma aliança com ele e todos os viajantes que se aventuram no Oriente esforçamse para localizar o mítico reino de João Mesmo se o saber geográfico é objeto de maior atenção a partir do século XII e sobretudo a partir do fim do século XIII com o aperfeiçoamento dos portulanos cartas costeiras fundadas sobre a observação e uma estimativa das distâncias as mappae mundi representações do mundo mais do que mapas só podiam ser extremamente esquemáticas e no essencial fantásticas Assim a 366 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 367 32 Os povos lendários dos confins segundo as miniaturas do Livro das maravilhas 141112 Bibliothèque Nationale de France Paris ms fr 2810 fls 29v e 76v Este manuscrito do Livro das maravilhas compilação de relatos de viagem foi encomendado pelo duque de Borgonha João Sem Medo a fim de oferecêlo a seu tio o duque João de Berry O relato notadamente de Marco Polo foi abundantemente ilustrado muitas vezes forçando sua dimensão maravilhosa Aqui o iluminador o mestre de Boucicaut mostra os cinocéfalos das ilhas Adamá enquanto Marco Polo menciona somente homens tão feios que se pareciam com cachorros Do mesmo modo quando o texto evoca as raças extremamente selvagens da Sibéria a pintura as traduz recorrendo ao repertório clássico dos povos lendários um homem sem cabeça com o rosto no tronco um ciapodo protegendose do sol com seu enorme pé e um ciclope O fundo da miniatura mostra esboços de paisagens características do início do século XV 33 Mappa mundi de Ebstorf c 123035 BaixaSaxônia obra destruída Este vasto mapamúndi de três metros e meio de diâmetro foi realizado pelo monastério beneditino de Ebstorf Ele retoma adaptandoo o esquema clássico dos mapas em T a Ásia na metade superior a Europa no quarto inferior esquerdo a África embaixo à direita o conjunto formando um círculo cercado pelo oceano Os dois últimos continentes são separados pela principal zona marítima de cor escura que corresponde ao Mediterrâneo As diferentes regiões são indicadas umas ao lado das outras sem preocupação com a forma dos territórios O mapamúndi é entretanto saturado de informações Jerusalém ao centro edifícios emblemáticos dos diferentes povos conhecidos monstros e espécies dos confins da terra por exemplo Gog e Magog além da Muralha da China O mundo é circular e uno à imagem de Cristo cuja cabeça aparece a leste os pés a oeste e as mãos ao norte e ao sul mappa mundi de Ebstorf gigantesca imagem de três metros e meio de diâmetro realizada em um monastério beneditino de Luxemburgo por volta de 1235 retoma como a maior parte das representações medievais o esquema em T que divide o disco terrestre em três partes no alto a Ásia embaixo à direita a África embaixo à esquerda a Europa figura 33 na p 369 Jerusalém ocupa o umbigo do mundo ao mesmo tempo que aquele do corpo de Cristo cuja cabeça as mãos e os pés aparecem nos quatro pontos cardeais A terracorpo de Cristo forma um vasto e único continente drenado por uma densa rede de rios entre os quais o Ganges na Índia e o Nilo na África e mares estreitos Aqui o mundo terrestre é uno porque ele é o Cristo e sua periferia é ocupada pelo oceano Reencontrase assim na escala do mundo a visão concêntrica que ordena os espaços da cristandade um centro espaços cada vez mais distantes todavia soldados pela metáfora corporal depois a periferia da periferia o oceano imensidão líquida bem adequada para marcar o desconhecido supremo e a exterioridade radical para um mundo fundado sobre o vínculo com a terra Tal imagem é unanimemente partilhada independentemente do fato de que se conceba a Terra como sendo plana ou esférica As duas ideias coexistiram durante a Idade Média dando lugar muitas vezes a misturas mais ou menos coerentes William Randles Para os partidários da Terra plana como Cosmas Indicopleustas e Isidoro de Sevilha o oceano marca o limite do disco terrestre habitado de um só lado Em revanche João de Mandeville cujo Livro redigido em 1356 e destinado a grande sucesso fornece uma espécie de síntese do saber geográfico medieval admitindo na sequência de autores como Beda o Venerável Guilherme de Conches ou Brunetto Latini 1250 o caráter esférico da Terra inteiramente redonda como uma maçã Não sem contradições ele afirma que o mundo é habitado em todas as suas partes e estima ser possível explorar todos os mares do globo a despeito dos riscos de tal empresa A concepção esférica do mundo é confirmada pela redescoberta de Ptolomeu autor grego do século II cuja obra é traduzida e transformada em mapas em Florença 1409 depois em Augsburgo 1482 Se desde o século XIII a esfericidade ganha terreno entre a maioria de autores ela se torna ao longo dos séculos seguintes a concepção unânime dos homens de saber Assim por volta de 1410 é um mundo esférico que é descrito pela Imago Mundi do cardeal Pedro de Ailly uma obra sobre a qual Cristóvão Colombo meditará e anotará abundantemente Mas a oposição entre as formas plana e esférica da Terra não é talvez a mais determinante sem dúvida porque este ponto é indiferente em relação à representação concêntrica do espaço então dominante A questão principal que ocupa os espíritos no final da Idade Média consiste principalmente em avaliar os riscos em que se incorre ao se afastar do mundo habitado conhecido o ecúmeno e se lançar na imensidão do oceano que a bordeja problema desta feita extremamente dependente da percepção concêntrica e da oposição interiorexterior Para todos tratandose de zonas eminentemente periféricas o perigo só pode ser considerável E como se disse a força de Cristóvão Colombo não está em sua opção em favor da forma esférica pouco singular e não desprovida de ambiguidade mas no fato de estar convencido em decorrência de erros de cálculos que acentuavam os de Ptolomeu e contra a opinião corrente partilhada especialmente pela comissão encarregada de avaliar o seu projeto que entre o Ocidente e a Ásia havia apenas um mar estreito reduzindo consideravelmente assim a exterioridade ameaçadora do desconhecido oceânico Enfim a concepção do universo projeta na escala cósmica a representação concêntrica do espaço Ela se funda com efeito sobre o modelo grego das esferas celestes formulado notadamente por Aristóteles No centro encontrase a Terra cercada de esferas ocupadas pelos diferentes astros conhecidos começando pela Lua e pelo Sol seguidos pelos planetas como Marte e Vênus A Idade Média prolonga com frequência essa imagem de esferas celestes dispondo no céu empíreo a hierarquia das nove ordens angélicas Assim o universo inteiro organizase segundo uma lógica concêntrica de modo que macrocosmo e microcosmo se correspondem conforme a lógica cristã das correspondências Até o fim da Idade Média a possibilidade de pensar um universo infinito debatida pelos teólogos do século XIV permanece marginal o franciscano Tomás Bradwardine mestre em Oxford é a exceção e sem verdadeiro alcance Ainda será preciso esperar três séculos para que desabem as esferas celestes que mantinham unido o belo cosmo de Aristóteles Alexandre Koyré Desde 1584 Giordano Bruno lança entretanto afirmações tão contrárias à lógica do espaço polarizado medieval que elas acabam por lhe valer a fogueira Não existem pontos no espaço que possam formar polos definidos e determinados para a nossa Terra da mesma maneira esta não forma um polo definido e determinado para nenhum outro ponto do espaço A partir de pontos de vista diferentes todos podem ser vistos como centro ou como pontos da circunferência A Terra não é o centro do universo ela só é central em relação ao nosso próprio espaço circundante Desde que suponhamos um corpo de tamanho ínfimo devese renunciar a lhe atribuir um centro ou uma periferia De linfinito universo e mundi CONCLUSÃO DOMINÂNCIA ESPACIAL NA IDADE MÉDIA DOMINÂNCIA TEMPORAL HOJE A partir daqui é possível contar entre as características fundamentais do feudalismo a tensão entre fragmentação e unidade a articulação entre encelulamento paroquial e o fato de pertencer à cristandade assim como a articulação entre stabilitas loci e mobilidade tratandose deste último ponto é possível distinguir de uma parte e outra da norma social de vínculo ao solo distanciamentos positivos a deambulação penitencial e depois a peregrinação e a cruzada e distanciamentos negativos a vagabundagem e o banimento Três elementos ao menos concorrem para tal resultado Em primeiro lugar a criação da malha paroquial ordena cada célula em torno de um polo formado pelo edifício cultual sacralizado e o cemitério consagrado tendo em seu coração o altar e suas relíquias onde a eucaristia faz ocorrer a presença de Cristo e realiza a unidade da Igreja universal Em segundo lugar o desenvolvimento sistemático da oposição interiorexterior notadamente pela prática de peregrinação associa as experiências da exterioridade ao perigo e reforça o vínculo com o próprio lugar protetor e familiar Enfim o estabelecimento de uma geografia sagrada estrutura um espaço heterogêneo e hierarquizado polarizado pelos santos e suas relíquias Esta organização que assegura o máximo de estabilidade possível ao mesmo tempo que permite as trocas necessárias e que fixa os homens na região de conhecimento ao mesmo passo que afirma o fato de pertencerem a uma entidade tida como universal sugere quanto a contribuição da Igreja ao ordenamento da sociedade feudal é decisiva Não é surpreendente que uma das contribuições maiores da Igreja à organização das colônias americanas tenha consistido de uma prática sistemática de deslocamentos e reagrupamentos das populações indígenas as reducciones e congregaciones que criam novas aldeias cujo centro é evidentemente uma igreja no caso de Bartolomeu de Las Casas por exemplo notase desde seus primeiros projetos de colonização pacífica em 1551 e 1520 uma verdadeira obsessão para organizar os índios em aldeias Como fruto de sua secular experiência na congregatio hominum da Europa Ocidental a Igreja sabe que o controle das populações passa por seu reagrupamento e sua fixação ao solo Tal é em todo caso o princípio indispensável ao funcionamento da sociedade feudal ocidental e igualmente ao que parece do feudalismo dependente implantado no Novo Mundo Se o feudalismo é caracterizado por uma dominação espacial isso não ocorre mais hoje No mundo contemporâneo é o tempo que parece constituir o ponto nodal da organização social pois com base no assalariamento e no cálculo do tempo de trabalho forma sempre dominante das relações de produção desenvolveramse consequências múltiplas para seres apressados submetidos à tirania dos relógios e à compulsão de saber que horas são Uma regra faz sentir seus efeitos sobre todos os aspectos da vida tempo é dinheiro Inversamente na sociedade medieval o coração da organização social e das relações de produção dependia da relação com o espaço a primeira condição do funcionamento do sistema feudal era a fixação dos homens ao solo sua integração com uma célula espacial restrita na qual se entrelaçam sem se sobrepor poder senhorial comunidade aldeã e quadro paroquial uma célula na qual deviam ser batizados quitar as obrigações eclesiais e senhoriais e por fim ser enterrados para se juntar na morte à comunidade dos ancestrais Hoje quando o lugar está em via de não ser mais percebido como uma dimensão necessária dos seres e dos eventos quando as manifestações da mercadoria podem ocorrer indiferentemente em qualquer ponto do globo estamos em via de perder esse sentido da localização Nós vivemos é verdade o paradoxo de uma globalização fragmentada que multiplica as fronteiras exacerba sangrentas loucuras de identidade e requer um desenvolvimento mundial desigual Entretanto o mercado prolonga nos domínios que o favorecem sua obra de homogeneização e de banalização espaciais iniciada no século XVIII a tal ponto que a uniformização mercantil mina sorrateiramente a especificidade dos lugares e que as possibilidades técnicas de mobilidade e de comunicação levam por vezes a esquecer a espacialidade como dimensão intrínseca da existência humana a qual não poderia existir a não ser estando aí em algum lugar No momento em que as fábricas e os escritórios são incessantemente deslocados em busca de uma mão de obra menos custosa poderseia dizer que a deslocalização tornase uma característica geral do mundo contemporâneo na medida em que a extensão sem limites do mercado tende a eclipsar a dimensão espacial e a fazer desaparecer a relação com o próprio lugar como traço fundamental da experiência humana É sintomático que o principal castigo imposto pelas justiças modernas fora a pena de morte e apesar do recurso à proibição de moradia seja a prisão privação de liberdade e entrada à capacidade de deslocamento localização forçada por decorrência Na Idade Média a prisão era uma pena muito acessória enquanto o banimento era ao contrário essencial Hannah Zaremzka Ruptura do laço entre o indivíduo e seu lugar o exílio era uma quase morte social pois os banidos tinham grande dificuldade para refazer sua vida alhures Nesta sociedade de honra vale mais ser um homem morto que um homem ultrajado De certo modo o exílio é pior que a morte Claude Gauvard Ao inverso do princípio de stabilitas loci o banimento constituía uma obrigação de deslocamento deslocalização forçada ou seja o exato inverso do castigo carcerário Coerção principalmente espacial de um lado coerção essencialmente temporal do outro aí está dito de modo muito esquemático uma das marcas de distinção radical entre o mundo medieval e o mundo contemporâneo Resumo A igreja articulação do local e do universal No capítulo A igreja articulação do local e do universal do livro A civilização feudal do ano mil à colonização da América de Jérôme Baschet o autor explora como a Igreja desempenhou um papel fundamental na Idade Média conectando o local e o universal O capítulo aborda vários tópicos importantes incluindo a alteração da doutrina eucarística o realismo eucarístico o lugar sagrado e a comunhão eclesial bem como a imagem concêntrica do mundo Baschet destaca como a crença na presença real de Cristo no pão e no vinho consagrados se tornou uma questão central na Idade Média A adoção do realismo eucarístico pelos escolásticos reforçou a importância do lugar sagrado como as igrejas onde os fiéis podiam ter acesso à comunhão eucarística A comunhão eclesial também é discutida enfatizando a importância da participação na vida da Igreja e na comunhão com outros fiéis Essa ideia ajudou a promover um senso de unidade entre os cristãos independentemente de sua origem geográfica Baschet também apresenta a imagem concêntrica do mundo que colocava a Terra no centro central do universo cercado pelas esferas celestiais e pelos diversos níveis hierárquicos terrestres A Mappa Mundi de Ebstorf um mapa medieval famoso por sua representação visual dessa visão do mundo é mencionada como um exemplo disso Assim o capítulo destaca como a Igreja foi fundamental para a articulação do local e do universal na Idade Média Através de suas crenças e práticas a Igreja ajudou a moldar a cultura e as relações sociais dessa época tornandose uma instituição poderosa e influente Resumo A igreja articulação do local e do universal No capítulo A igreja articulação do local e do universal do livro A civilização feudal do ano mil à colonização da América de Jérôme Baschet o autor explora como a Igreja desempenhou um papel fundamental na Idade Média conectando o local e o universal O capítulo aborda vários tópicos importantes incluindo a alteração da doutrina eucarística o realismo eucarístico o lugar sagrado e a comunhão eclesial bem como a imagem concêntrica do mundo Baschet destaca como a crença na presença real de Cristo no pão e no vinho consagrados se tornou uma questão central na Idade Média A adoção do realismo eucarístico pelos escolásticos reforçou a importância do lugar sagrado como as igrejas onde os fiéis podiam ter acesso à comunhão eucarística A comunhão eclesial também é discutida enfatizando a importância da participação na vida da Igreja e na comunhão com outros fiéis Essa ideia ajudou a promover um senso de unidade entre os cristãos independentemente de sua origem geográfica Baschet também apresenta a imagem concêntrica do mundo que colocava a Terra no centro central do universo cercado pelas esferas celestiais e pelos diversos níveis hierárquicos terrestres A Mappa Mundi de Ebstorf um mapa medieval famoso por sua representação visual dessa visão do mundo é mencionada como um exemplo disso Assim o capítulo destaca como a Igreja foi fundamental para a articulação do local e do universal na Idade Média Através de suas crenças e práticas a Igreja ajudou a moldar a cultura e as relações sociais dessa época tornandose uma instituição poderosa e influente