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Bahserikow Centro de Medic Indígena da Amazôn concepções e práti de saúde indíge wi cina nia icas ena Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia concepções e práticas de saúde indígena Universidade Federal do Amazonas J O Ã O P A U L O L I M A B A R R E T O 596 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L BAHSERIKOWI CENTRO DE MEDICINA INDÍGENA DA AMAZÔNIA CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DE SAÚDE INDÍGENA Resumo Pretendese neste artigo refl etir aspectos de confl itos ontológicos entre o modelo de conhecimento indígena e o modelo universal de conhecimento a partir de uma experiencia desagradável para não dizer discriminatória vivenciada durante o ano de 2009 Por outro lado este fato acabou por servir de embião para criação do Bahserikowi Centro de Medicina Indígena A apresentação visa basicamente refl etir como o imaginário construído pelas socieda des sobre o índio sobretudo a classe médica tem uma visão equivocada sobre conhecimentos e práticas indígenas O modelo de conhecimento indígena considera que a doença e saúde não se restringem ao aspecto biológico Antes ao contrário envol vem aspectos cosmopolíticos que condicionam a prática da boa saúde Sai assim do entendimento restrito de algo biológico e conecta o indivíduo numa teia de relações com outros seres com os waimahsã com os animais os especialistas com seus parentes e outras pessoas Palavraschave Bahsserikowi Biomedicina Bahsese BAHSERIKOWI INDIGENOUS MEDICINE CENTER OF THE AMAZON INDIGENOUS HEALTH CONCEPTIONS AND PRACTICES Abstract This manuscript intends to refl ect on aspects of ontological confl icts between the indigenous knowledge model and the universal knowledge model based on an unpleasant not to mention discriminatory experience during 2009 On the other hand this fact served as an inspiration for the creation of Bahserikowi Indigenous Medicine Center The presentation aims basically to refl ect on how the imaginary constructed by societies about the Indian especially the medical class has a misconception about indigenous knowledge and practices The indigenous knowledge model considers that disease and health are not restricted to the biological aspect Rather on the contrary 597 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia they involve cosmopolitical aspects which condition the practice of good health It thus comes out of the restricted understanding of something biological and it connects the individual in a net of relations with other beings with the waimahsã with the animals the specialists with their relatives and other people Keywords Bahsserikowi biomedicine Bahsese BAHSERIKOWI CENTRO DE MEDICINA INDÍGENA DE LA AMAZONIA CONCEPCIONES Y PRÁCTICAS DE SALUD INDÍGENA Resumen Este artículo pretende refl ejar aspectos de confl ictos ontológicos entre el modelo de conocimiento indígena y el modelo universal de conocimiento a partir de una experiencia desagradable por no decir discriminatoria vivenciada durante el año 2009 Por otro lado este hecho terminó sirviendo de embrión para la creación del Bahserikowi Centro de Medicina Indígena La presentación básicamente considera cómo el imaginario construido por las sociedades sobre el indio sobre todo la clase media tiene una visión equivocada sobre conocimientos y prácticas indígenas El modelo de conocimiento indígena considera que la enfermedad y la salud no se restringen al aspecto biológico Al contrario involucra aspectos cosmopolíticos que condicionan la práctica de la buena salud Se sale así del entendimiento restringido de algo biológico y conecta al individuo en una red de relaciones con otros seres con los waimahsã con los animales los especialistas con sus parientes y otras personas Palabras clave Bahsserikowi Biomedicina Bahsese João Paulo Lima Barreto1 jplbarretogmailcom 598 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L Este artigo discute basicamente confl i tos entre modelos biomédicos e conce ções de doenças e práticas de saúde a partir da perspetiva indígena na região do Alto Rio NegroAM O objetivo é apontar como o modo de pensar a doença é também o modo de pensar o equilíbrio e desequilíbrio do cosmos portanto não tendo como pressupos to a noção de indivíduo e os limites de espaços físicos ou corpos meramente orgânicos A partir dessa discussão a intenção é problematizar políticas pú blicas de saúde prestadas aos povos indígenas e o lugar dos especialistas indígenas em processos de cura com foco na implementação do Centro de Medicina Indígena da Amazônia se diado na cidade de Manaus2 Como capital do Estado do Amazonas Manaus concentra a maior diversida de de povos indígenas como Arapas so Apurinã Baniwa Bará Barassana Baré Deni Dessano Hupda Itana Jamamadi Yanomami Yskarino Kam beba Kokama Kanamari Karapãna Korubo Kubeo SatereMaué Man chineri Mati Maraguá Marubo Mira nha Mirititapuia Munduruku Mura Piratapuya Tariano Tikuna Tukano Tuyuka Wayway e Wanano Maraguá que somam segundo estimativa da FUNAI de Manaus uma população de 30 mil indivíduos aproximadamente O Centro de Medicina Indígena da Amazônia foi fundado no dia 06 de junho de 2017 por minha iniciati va como membro do povo Yepamah sã Tukano e com apoio dos Kumuã pajés Manoel Lima da etnia Tuyuca Ovídio Lemos Barreto e José Maria Barreto ambos da etnia Yepamahsã e com a colaboração de jovens indíge nas Ivan Barreto Cleofa Barreto Jo sivan Barreto da etnia Yepamahsã e da jovem indígena Carla Fernandes da etnia Dessana O centro conta com a parceria da Coordenação das Organi zações Indígenas da Amazônia Brasi leira Coiab do Núcleo de Estudo da Amazônia Indígena NEAIUFAM além do apoio da agência de comuni cação Amazônia Real A iniciativa é fruto de experiências pessoais e familiares ao longo de doze anos algumas negativas e outras posi tivas no confronto entre o modelo de conhecimentos indígenas e a ciência sobretudo com o modelo de tratamen to de saúde biomédico Muitos concei tos criados pela ciência para entender ou desvendar o sistema de conheci mentos indígenas produziram um ima ginário distorcido e muito distante das concepções indígenas Por exemplo o pajé costuma ser imaginado como um velhinho que tem poder de transitar entre o universo dos deuses ou dos mortos que conversa com os animais plantas ou minerais para adquirir po deres sobrenaturais É um imaginário muito exotizante que a mídia ou os livros didáticos além da própria ci ência difunde na sociedade não indí gena Dessa forma conceitos como mito religião xamanismo maloca benzimento magia e feitiçaria têm con duzido a um imaginário equivocado e distanciado das epistemologias pro priamente indígenas A estrutura do texto inicia com um acontecimento que motivou a criação do centro para então aprofundar con cepções indígenas sobre o cosmos e 599 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia seus habitantes assim como a forma ção e atuação de especialistas em curas entre os yepamahsã A BIOMEDICINA NA FACA A criação do Bahserikowi está em co nexão com o episódio que aconteceu com minha família em especial com minha sobrinha Um acontecimento que infelizmente está longe de ser um fato isolado Muitos casos semelhantes têm acontecido nos hospitais de Ma naus com os pacientes indígenas Em janeiro de 2009 minha sobrinha Luciane Trurriyo Barreto encaminha da pelo DSEI do município de São Gabriel da Cachoeira e acompanhada de seu pai José Maria Barreto veio à capital do Amazonas para tratamento depois de ser picada por uma cobra Apresentando grave estado de saúde logo foi internada Passados dois dias meu irmão José Maria me ligou deses perado do hospital me dizendo que os médicos tinham decidido amputar o pé da minha sobrinha O diagnóstico do médico considerava que a situação era grave e que o pé ferido estava necro sando muito rapidamente e essa situa ção colocava em risco a vida da meni na Meu irmão me falava também que os médicos já estavam fazendo cirur gia vascular e que toda pele da palma do pé tinha sido retirada Isso causava desespero tanto dela quanto do seu pai Nessa época eu estava para concluir o curso de graduação em Filosofi a pela Universidade Federal do Amazonas UFAM e ao mesmo tempo cursava Direito na Universidade do Estado Amazonas UEA Com a notícia da amputação do pé da minha sobrinha fui ao encontro do meu irmão Deses perado ele relatava os fatos e falava da pressão e ameaça que a assistente so cial e a equipe médica faziam para ele consentir a amputação dizendo que a fi lha dele morreria em menos de três dias caso não fosse realizado tal pro cedimento Meu irmão buscava forças para convencer os médicos de que aquilo não era necessário e sugeria rea lizar um tratamento à base do bahsese e ervas medicinais Antes disso porém fomos consultar nossos especialistas kumuã yepamahsã Tukano Dois eram meus tios ou tro meu pai Eles nos garantiam que não era necessário amputar naquele momento era preciso recorrer ao tra tamento com bahsese e plantas medici nais que eles mesmos garantiam fazer Estavam certos também que tais pro cedimentos no entanto não excluíam o tratamento médico que deveria con tinuar mas sem amputação Com a garantia dada pelos nossos es pecialistas partimos para dialogar com os médicos do hospital Nossa propos ta foi imediatamente rejeitada e a de cisão pela amputação do pé de minha sobrinha foi mantida Instalouse aí um grande confl ito entre nós e os médicos Fomos acusados dentre outras coisas de obstruir o trabalho médico Meu irmão foi ameaçado de ser denuncia do ao Conselho Tutelar pela assistente social do hospital e pela Casa de Assis tência Social ao Índio CASAI Corríamos contra o tempo para adiar a data de amputação pois estávamos 600 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L decididos a lutar para que o tratamento com bahese e plantas medicinais fosse realizado juntamente com os procedi mentos da medicina Passamos a mo bilizar o Ministério Público Federal e o fato passou a repercutir na mídia Exigimos outra reunião com a equipe médica Nesse meio tempo meu irmão levava remédio à base de planta medi cinal e bahsese escondidos dos médicos para a menina no hospital Diante da grande repercussão nos meios de comunicação de massa a equipe médica do hospital aceitou realizar mais uma reunião conosco Achávamos com isso que estava ga rantido o tratamento conjunto mas não foi o que aconteceu Na sala de reunião num lado sentouse a equipe médica e no outro sentamos nós e nossos especialistas O chefe da equi pe médica sem muita conversa de modo raivoso e arrogante dirigiuse a meu pai perguntando por que o se nhor acha que não deve amputar o pé de sua neta Meu pai sem falar bem o português começou a responder dizendo que do ponto de vista dele como kumu o pé de sua neta não estava necrosado pois a cor roxa do pé era uma reação do sangue com o veneno da cobra O mé dico visivelmente irritado interrom peu a fala de meu pai e esmurrando na mesa disse eu estudei oito anos para ter autoridade para decidir o que é que melhor para um paciente enquan to o senhor com muito respeito não frequentou um dia sequer a medicina Dizendo isso se retirou levando consi go toda a equipe A partir desse momento nossa luta passou a ser a retirada de minha so brinha do hospital Confesso que não foi fácil pois o tempo todo a equipe médica ameaçava nos processar e sus tentava a necessidade de fazer a ampu tação Após vários dias fi nalmente reti ramos a menina do hospital e levamos para a Casa de Apoio do município de São Gabriel da Cachoeira Lá ela teve acompanhamento e tratamento dos kumuã à base de bahsese e ervas medici nais sem interromper os medicamen tos que fi caram sob supervisão de uma técnica de enfermagem Com a repercussão do fato na mídia uma equipe de outro hospital público decidiu convidarnos para uma con versa Durante a reunião nossos es pecialistas tiveram oportunidade de apresentar suas técnicas e formas de tratamento à base de bahsese e plan tas medicinais Num diálogo bastante sincero levando em conta os riscos e probabilidades de sucesso foi feito um acordo formal para o tratamento con junto Com tal acordo a menina foi internada no hospital Assim todas as vezes em que as enfermeiras faziam o curativo no pé de minha sobrinha os kumuã entravam com procedimentos de bahsese Como resultado desse esforço o pé da minha sobrinha não foi amputado perdendo apenas alguns movimentos como consequência Hoje ela vive na comunidadealdeia São Domingos Sávio no Rio Tiquié alto Rio Negro longe da cidade e dos médicos No confl ito ontológico entre nós e os médicos estava em jogo os conceitos 601 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia formatados acerca dos nossos conhe cimentos indígenas falsos e vagamente formados ou conhecidos por eles As sim os médicos do hospital carrega dos de um imaginário sobre pajelança e não sei o que mais achavam que os ku muã entrariam no hospital adornados de cocares com colares de dentes de onças pintados cantando e dançando sob som de tambores e maracás As concepções indígenas de doença e saúde não se restringem ao aspec to biológico Esse é o ponto Antes o contrário envolvem aspectos cosmo políticos que condicionam a prática da boa saúde Sai assim do entendimento restrito de algo biológico e conecta o indivíduo numa teia de relações com outros seres com os waimahsã com os animais os especialistas com seus pa rentes e outras pessoas Da nossa parte partimos da ideia de que é preciso somar esforços e dar visibilidade às concepções técnicas e práticas de tratamento de saúde desen volvido pelos especialistas indígenas yai kumuã e baya doravante chamados de pajés no mesmo nível do valor mé dico O fato que aconteceu com minha so brinha Luciane foi minha maior ins piração e incentivo para a criação do Centro de Medicina Indígena da Ama zônia Sua luta e nossa luta contrapon do a biomedicina colocando nossas concepções e práticas na mesa de ne gociação e no mesmo nível de valor trouxe um resultado muito positivo e nos convenceu defi nitivamente de que era importante ampliar essa luta e nos sos valoresconhecimentos indígenas Foi com isso e é com isso em men te que criamos o Centro de Medicina Indígena da Amazônia na cidade de Manaus Um lugar onde queremos co locar isso em prática valorizando os especialistas que exercem este ofício na maioria das vezes alheios e à mar gem da sociedade como um todo mui tas vezes atendendo o mesmo público os mesmos pacientes que o um hospi tal atende Esse quadro é bastante real em Manaus e seus municípios sobre tudo no município de São Gabriel da Cachoeira onde a maioria é indígena Com a iniciativa em nenhum momen to queremos colocar em questão o modelo ofi cial de tratamento de saúde Queremos simplesmente oferecer a oportunidade para as pessoas que acre ditam que a saúde perpassa por outras vias de tratamentos terem também o direito de os acessar Assim o Centro de Medicina Indígena é mais uma op ção um canal que possibilita ao públi co uma opção de tratamento por vias de tecnologias indígenas baseadas em outros parâmetros que não os da me dicina ocidental A proposta é ter o Centro como um espaço de circuito de especialistas indí genas de todos os povos Mas no mo mento não temos recurso fi nanceiro para criar essa política Já tivemos ma nifestação dos Yanomami dos Apurinã e Marubo para vir passar um período no Centro atendendo as pessoas Mas isso implica em ter recurso fi nanceiro para trazêlos e manter eles na cidade e no centro o que no momento não temos condições entretanto logo pre tendemos alcançar esse objetivo 602 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L Aqueles que buscam tratamento costu mam fi car direito no Centro Mas há casos que os Kumuã fazem atendimen to domiciliar desde que a pessoa inte ressada ofereça estrutura pois ainda não temos condição para transporte de especialistas e estrutura em geral Não temos nenhum projeto ou vínculo com poder público para disponibilizar o atendimento gratuito aos interessados Mantemos os especialistas com taxa que cobramos com os tratamentos das pessoas A ajuda de custo aos especialistas e aos jovens indígenas colaboradores é dividida de acordo com a arrecadação mensal E também o mantimento da equipe com transporte alimentação e pagamento de água energia material de limpeza material de expedientes etc Assim não se tem salário fi xo Nesses quatro meses de funciona mento do Centro já passaram mais de 500 pessoas pelo centro indígenas e nãoindígenas na maioria mulheres de faixa etária de 30 a 50 anos de ida de Estamos num prédio localizado no centro histórico da cidade com duas salas de consultas e de tratamento Temos colabores como atendentes e intérpretes O protocolo é seguido de diagnóstico análise de complexidade da doença tempo de tratamento res trições alimentares e sexuais em alguns casos e acompanhamento Há duas principais formas de tratamentos bah sese benzimento e uso de plantas me dicinais Ambas não produzem efeitos colaterais As pessoas se surpreendem porque não encontram equipamentos sofi sticados nas salas de consultas Fizemos parceria com uma associa ção apurinã de Tapauá para forne cerem remédio à base de vegetais e animais Essa associação já vinha desenvolvendo os remédios há mais de 20 anos com o acompanhamento da UFAM Em todos os remédios há data de fabricação e data de venci mento o que achamos muito impor tante para dar segurança às pessoas Mas nosso projeto é criar viveiros plantar e produzir farmacopeia indí gena Entretanto há remédios feitos à base de plantas que é de domínio de alguém neste caso somente solici tamos seu fornecimento sem aquela pessoa revele seu segredo Tudo isso está em discussão e experimentação nesses quatros meses de existência do Centro O Centro não se restringe apenas à consulta e tratamento de saúde sen do também um lugar dinamizador e incentivador de novos centros de medicina indígena em outras regiões do Brasil Dito de modo bastante su cinto a iniciativa quer contrapor a política de dependência química dos povos indígenas imposta pela polí tica de tratamento de saúde ofi cial promovendo um debate sobre outras formas de tratamento e concepções sobre saúde Neste sentido o Bahserikowi visa de forma ampla constituir um espaço de diálogo com outros saberes sejam eles indígenas ou não a fi m de promover o intercâmbio cultural e a produção de conhecimento na área da saúde e outros campos Na concepção indí gena existe uma distinção muito clara daquelas doenças que a biomedicina 603 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia pode resolver sobretudo com siste ma de cirurgias e outras doenças que somente os especialistas indígenas po dem fazer tratamento cura Nesse sentido os dois conhecimentos podem atuar conjuntamente Como antropólogo yepamahsu tukano sou idealizador do Centro e busco ar ticular politicamente e divulgar a expe riência da implantação do Centro em todos os níveis nas associações indíge nas nas universidades nas escolas e na mídia promovendo debate e diálogo entre a biomedicina e conhecimentos indígenas Também sou pesquisador e faço exercício de pensar o pensamento indígena com objetivo de fundamen tar teoricamente as concepções e téc nicas de tratamento de doenças a partir de epistemologias indígenas Articular parcerias também faz parte do meu trabalho além de incentivar diretamen te os jovens e especialistas envolvidos no Centro COSMOPOLÍTICAS DO CONHECI MENTO Existem vários modos de explicar en tender organizar e manipular o mun do que designamos como conhecimento A ciência como conhecimento que se pretende universal organiza a realidade em três grandes reinos isto é o reino animal reino vegetal e reino mineral Cada reino por sua vez é organizado em campos de conhecimentos especí fi cos como ciências humanas ciências exatas e ciências biológicas e são arti culados em disciplinas como Sociolo gia Antropologia História Geografi a Direito Física Química Geologia Biologia Medicina Enfermagem etc Essa organização em campos de co nhecimentos específi cos nada mais é do que o desejo de controlar e separar fenômenos sociais e naturais de modo a agenciálos para o benefício político econômico e social Entre os povos do Alto Rio Negro conhecer o mundo signifi ca necessa riamente estabelecer relações cosmo políticas sem dividilas em relações sociais e meio natural Consideramos que todos os ambientes dos espaços aquáticos terrafl oresta e aéreo3 são habitados por outros seres humanos denominados de waimahsã na língua ye pamahsã que doravante são traduzidos como espíritos Essa noção de espaços mais inclusiva está articulada com bah sese benzimentos e a interação dos hu manos como waimahsã habitantes dos respectivos ambientes A tradição intelectual indígena de ver de pensar e de organizar o mundo os seres e as coisas de relacionar de manipular e perceber as mudanças está ancorada numa epistemologia que não é aquela que aprendemos nas escolas e nas universidades convencionais Ela está ancorada na cosmologia e na cos mopolítica que são a base de conheci mento e fi o condutor de pensamento e das práticas indígenas Para novas gera ções são transmitidas de maneira orga nizada e sistemática como teorias de conhecimentos pelos seus detentores conhecidos como yai kumu ou baya A relação cosmopolítica portanto é um dos princípios básicos para bem vi ver na concepção dos yepamahsã Man ter uma relação harmoniosa com os 604 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L waimahsã seres que habitam em todos os espaços cósmicos que são donos dos lugares e responsáveis pelos ani mais vegetais minerais e temperatura do mundo terrestre é uma necessidade para manter em equilíbrio social e am biental Assim os yepamahsã têm noção clara de espaço aquático espaço terrafl oresta e espaço aéreo que por sua vez estão subdivididos em espaços menores dos quais podem ser entendidos como ambientes Mais do que espaços de concentração de determinados obje tos seja vegetal animal ou mineral os ambientes são defi nidos e identifi ca dos como bahsakawiseri casas de wai mahsã tal qual como as moradas dos humanos Assim uma cachoeira uma corredeira um lago uma serra uma fl oresta de terra fi rme um buritizal ou caranazal um barreiro dentre outros é identifi cado e organizado como bah sakawiseri casas de waimahsã Quem são os waimahsã A tarefa de defi nir ou traduzir os waimahsã é bas tante complexa Uma parte de acordo com o kumu Ovídio Lemos Barreto do povo yepamahsã conta que nos tempos de surgimento todos os humanos es tavam sob condição de waimahsã Sob esta condição que fi zeram a longa via gem de surgimento de humanos En tretanto no destino fi nal na passagem de condição de waimahsã para a condi ção de humanos alguns grupos foram preteridos pelo demiurgo Yepaoãku mas passaram a habitar nos ambien tes de todos os espaços do cosmo com as mesmas qualidades e capacida des dos humanos para serem responsá veis e guardiões das coisas como vege tais animais minerais da temperatura chuva noite dia etc Eles waimahsã só podem ser vistos por um especialista isto é yai ou kumu conhecidos como xamãs Es ses seres são por fi m a própria ex tensão humana devendo sua exis tência e reprodução ao fenômeno do devir isto é a continuidade da vida após a morte sendo assim a origem e o destino dos humanos seu início e seu fi m É com estes waimahsã habitantes de diferentes ambientes que os especialistas in dígenas se comunicam e adquirem conhecimentos Barreto 2013 Assim todos os ambientes do cos mos são habitados por humanos O bem viver dos humanos sem doença ou estar bem de saúde depende da interação e comunicação como esses humanos Caso não ocorra a comu nicação com esses donos dos lugares que são ao mesmo tempo responsáveis pelos bichos e as coisas eles podem deferir confl itos sociais surtos de do enças escassez de recursos naturais e desequilíbrio ambiental como formas de vinganças Por essa razão para o usufruto de qualquer recurso natural ou para ocupação de espaço pelos hu manos é preciso primeiro comunicar se com esses sujeitos sob mediação dos especialistas yai kumu ou baya Em relação aos humanos waimahsã são também detentores de conhecimentos primários de kihtiukuse narrativas mí ticas bahsese conjuntos de benzimen tos e bahsmori conjuntos de rituais e práticas sociais O acesso e aquisição de tais conhecimentos pelos humanos se dá principalmente durante o perí odo de formação momento em que 605 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia os neófi tos são conectados ao domí nio ou às moradas de waimahsã pelo yai formador utilizando os elementos kahpi ou wiõ rapé como elementos agenciadores Os professores dos hu manos são os waimahsã Estes possuem uma estrutura de ensino bastante so fi sticado tanto quanto o laboratório Os humanos necessariamente devem interagir e manter a comunicação com os waimahsã para aquisição de conheci mentos Dessa forma o equilíbrio e desequilí brio do cosmos seja ambiental social e de doenças perpassa necessariamente nas relações entre essas categorias de pessoas a saber waimahsã e humanos que estão conectados num sistema de interdependência em que cada catego ria tem seu tipo específi co de conhe cimentos e pode atuar indistintamente DOENÇAS TRATAMENTOS E CURAS O exercício de refl exividade antropoló gica feito por nós indígenas yepamahsã do Núcleo de Estudo da Amazônia Indígena NEAI em conjunto com os antropólogos nãoindígenas e pro fessores feznos concluir que o sis tema de conhecimento yepamhasã está ancorado em três grandes conceitos abstratos Kihtiukuse Bahsese e Bahsamo ri4 a partir dos quais podem ser organi zados campos de conhecimentos mais específi cos Em nossa equipe de pes quisadores desenvolvemos uma obra intitulada Omerõ que está no prelo em que os tematizamos Resumidamente Kihtiuhkusse é o con junto de narrativas míticas que são o resultado das tramas sociais vivencia das pelos demiurgos e responsáveis pela origem do mundo dos seres das coisas das paisagens das serras das cachoeiras das corredeiras da fl o restavegetação Bahsesse5 é quando o kihtiuhkusse é utilizado pelos ku muã para comunicação e interação com os waimahsã assepsia de alimen tos e habilidade de invocar elementos e princípios curativos contidos nos tipos de vegetais animais e minerais Já Bahsamori6 é quando o kihtiuhkusse é acessado para composição musical du rantes as festas de dabucuri que envol vem os cantos danças instrumentos musicais práticas agrícolas práticas de caça e pesca etc Ainda de acordo com nossa pesquisa coletiva sobre conhecimentos os in dígenas podemos dividir as causas de doenças entre aquelas causadas pelos ataques de Waimhasã aquelas causadas pela alimentação doenças autoprovo cativas e sonhos e por fi m agressões interpessoais ou feitiçaria Como comentado os ambientes são considerados casas de waimahsã que são responsáveis pelos recursos natu rais de seu entorno e aos animais que circulam nos ambientes Para utilizar tais recursos os humanos necessaria mente devem negociar com os waimah sã caso contrário esses seres deferem ataques contra a pessoa utilizando os meios como picada de cobra acidente fatal e doenças que podem ser mortais Para circular nos ambientes os huma nos devem pedir licença desses donos dos lugares sobretudo nos momentos mais vulneráveis da vida como no pe ríodo de gestação menstruação etc O 606 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L mais importante bahsero benzimento é o wetidareró para estas situações Wetidarero é uma arte de comunicação com os humanos invisíveis formula do pelo especialista com o objetivo de evitar os ataques dos waimahsã es pecialmente naqueles momentos mais vulneráveis e quando as pessoas se deslocam para os diferentes lugares habitação de waimahsã para a prática de pesca caça e coleta Os elementos utilizados como veículo de comuni cação nesses casos são o cigarro ou o urucum Outra fonte de doenças são os alimen tos seja animal vegetal e frutas Toda comida é portadora em potencial de doenças pois são carregadas de mi crorganismo capazes de atacar a saú de humana Para isso as frutas devem passar por processo de assepsia feito por meio de bahsese benzimento pelo kumu pajé Essa categoria é chamada pelos Tuka no de Baábokasé doenças causadas pelo alimento Isso ocorre no consumo waik rã animais wai peixes e yok d hka vegetal Por exemplo con sumir baábaáse comidaalimentos depois de momentos senviveis e de maior vulnerabilidade como após uso de plumas de resguardo pré ou pós parto após terem visto e terem conta to com miriã jurupari Uma das reco mendações principais é de moderação no consumo de certos alimentos que contem certos elementos como peixes e carnes de caça que contêm muita sé gordura metafisicamente estas gorduras ficam impregnadas see sãse no corpo da pessoa que ingeriu no sangue no estômago no fígado no coração nas veias na pele e na car ne seesãse as gorduras invisivelmente impregnadas fazem surgir e aparecer àquelas kamib k feridas e infecções dermatológicas que podem vir a se rem incuráveis De mesma forma o consumo e a ingestão de frutas da roça ou do mato consideradas sek ose oleosas e gordurosas como açaí patauá buriti umari inajá ucu qui cunuri uacu provocam também este fenômeno de seesãse impregnação das gorduras e causam kamib k Outra recomendação importante é a moderação no consumo de p õbaase assados e tãbaase assados ou enterra dos na brasa embrulhados com folhas que pode causar além do kamib k visto como nos casos precitados uma série de omeperi b s se distúrbios audi tivos wisisé salivação excessiva notur na dipetisé palidez excessiva p apetisé emagrecimento dimehã obesidade kematise sonhos estranhos witõda uhsé queima da massa encefálica e matisé loucura Outra forma de causa de doenças é au toprovocação do corpo sobretudo nas mulheres No período de sua menstru ação ou gestação a mulher pode con trair doenças Para evitar as complica ções as mulheres devem se submeter à prevenção adotar dieta adotar certos comportamentos específi cos e fi car sob cuidados do kumu As doenças do descuido poder ser do útero doenças do fígado da mama da garganta feridas e coceiras no corpo além de doenças como fogo selvagem A mais grave pode ser a gestação de 607 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia criança defi ciente Além disso podem ter difi culdade de ter parto natural Para tudo isso tem bahsese benzimen tos específi cos Há ainda doenças que são causadas por agressões interpessoais vulgarmente conhecido de feitiçaria seró pehtise é um assunto complexo e delicado de modo que mesmo aqueles que sabem e tem conhecimentos não estão dis postos a contar comunicar comentar e informar os nãoespecialistas sobre o tema para não revelar como se formula e faz esta categoria avessa do conjunto dos bahsese mas se limitam em indicar o que acontece com a vítima e possí veis sintomas Nesse sentido quase to dos conhecem as doenças provocadas por seró pehtise mas nem todos conhe cem o tratamento e a cura somente alguns especialistas Os especialistas afi rmam que a pessoa com habilidade de agressão por meio dos bahsese tem uma vida curta na medida em que o agressor pode ser atingido com weopeose e bia doase antidoto de feitiçaria de sua própria agressão OS ESPECIALISTAS YEPAMAHSÃ Nas sociedades indígenas do alto Rio Negro existem três categorias de es pecialistas yai kumu e baya que são agenciadores cósmicos e cosmopolíti cos São sujeitos que passaram por uma rigorosa formação e treinamentos sob orientação de especialista formador Conectando no domínio de waimahsã adquiriram kihtiukuse bahsese e bahsa mori conhecimentos considerados fun damentais para a existência humana O yai kumu e baya são como detentores de Bahsese Para efetuar tratamento antes de tomar qualquer providência os especialistas primeiro fazem diag nósticos através de séries de pergun tas O objetivo é descobrir exatamen te a origem e causa da doença Feito o diagnóstico lança mão dos bahsese especifi co para curar aquela doença Os elementos utilizados podem variar entre tabaco breu enzima vegetal água chá e outros como perfume gel etc Como dito acima bahsese é habili dade de invocar elementos e princípios curativos contidos nos tipos de vege tais animais e minerais sobre os ele mentos para ser tratado o paciente Já a utilização de plantas medicinais na atenção à saúde que pode ser vege tal da mata e planta do quintal Não é qualquer pessoa que domina as plantas Isso também requer formação conhe cimento e habilidade para manipular a planta para ter poder de cura de doen ças Os especialistas yai kumu ou baya são humanos e quase demiurgos pois pau tamse como extensão de demiurgos seres que deram origem à plataforma terrestre fl oresta rios animais vege tais e minerais Os demiurgos também deram origem aos waimahsã e humanos como sua extensão de vida dotando lhes de capacidades e costumes es pecífi cos Foi por meio de bahsese que os demiurgos fi zeram surgir todas as coisas Assim aquele que domina kihti ukusebahsesebahsemori possui capacida de de recriar reorganizar o cosmos e manipular suas partículas para o bem ou para o mal 608 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L O nome adotado pela pessoa é funda mental para se tornar especialista pois traz a presença da potência criadora e mantenedora de tudo quanto há ou seja kihtiukusebahsesebahsemori O do mínio desses conhecimentos coloca o especialista no patamar de recriador mantenedor ou destruidor tal qual como os demiurgos versados nas nar rativas míticas Outro fator importante da nominação é sua capacidade de in serir a pessoa na estrutura cosmológica e cosmopolítica além de conferir entre seus pares uma função social Dito de outra forma o nome é omerõ força uma potência que pode ser desenvol vida pela pessoa para ser bom espe cialista Omerõ está intimamente rela cionado ao conjunto dos bahsese e aos modos de ação do especia lista yepamahsã kumu yaí baya e bahsegʉ Omerõ diz respeito a for ça do coração força da mente e também a força que o especia lista mantém no seu corpo para então lançar mão dos bahsese A origem dessa força capacidade de criar ou destruir está direta mente ligada a Buhpo sendo que este é considerado o próprio omerõ Desse modo essa força existe desde da origem dos Yepa mahsã narrada no conjunto dos kihti ukuse A potência do õmero no coração está relacionada ao ato de realizar o bahsero de co ração do recémnascido heripo rã bahsese que consiste na co municação do especialista com Yepa Oãku para que seja lançado mão do nome da criança Este nome é extraído de um repertó rio conhecido e fechado de no mes yepamahsã que por sua vez vão ser dados de acordo com as potencialidades e características inerentes a criança calma agi tação sendo anunciado de Yepa Oãku para o especialista No ato de dar o nome no momento do heriporã bahsese a criança não só está interligada a estrutura cos mológica yepamahsã como tam bém adquire o seu õmero que por sua vez é um fragmento do omerõ do próprio Yepa Oãku Isso possibilita aos Yepamahsã acionar os diferentes tipos de bahsese podendo assim interagir com os waimahsã e também com os seus semelhantes Assim o nome dado a partir do heriporã bahse se é o próprio omerõ Acerca do omerõ designado como potência da mente e também como for ça que o especialista mantém no seu corpo referese a essa força direcionada para realização do bahsero O õmero localizase na porta da boca do especialista com essa força juntamente com a intencionalidade do especia lista a utilização das narrativas das classificações e também do murupu ukuse o sopro adquire os atributos de cura e de comu nicação entre os Yepamahsã e os waimahsã e comunicação dos hu manos entre si Omerõ et alli 2016 no prelo Na teoria toda pessoa yepamahsu singular tem potencialidade de ser especialista mas isso tem preço Tra dicionalmente o cuidado do corpo para ser especialista começa logo após o parto a criança recémnascida é cercada de cuidados pelos seus pais que se sujeitam a severas regras e in 609 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia terdições Nesse período a criança recémnascida depende da conduta dos pais para que os waimahsã não os agridam Quando passa essa fase o cuidado passa a ser pessoal com a reclusão e um rigoroso regime de controle alimentar e sexual além de subme ter ao acompanhamento do yai mais experiente Depois dessa investida é ativado o poder a força o omerõ Isso conecta a pessoa defi nitivamente na estrutura cosmológica e cosmopolíti ca isto é ao domínio dos demiurgos e dos waimahsã com os quais passa a se comunicar e interagir O investimento do corpo é a base para ser bom especialista O corpo é preparado com investimentos de adereços que não são visíveis a pes soas comuns Essas são condições para expandirse para qualidade de original próximo aos demiurgos e waimahsã se tornando pessoa com força de invocar elementos e princí pios curativos contidos nos tipos de vegetais animais e minerais para tra tar as doenças de modo a transfor mar determinados elementos água tabaco enzima vegetal entre outros em agentes protetivos e curativos além da habilidade de provocar os fe nômenos naturais como raios e tro voadas e usar qualidades de animais para determinadas fi nalidades Outra função do especialista é pro mover diálogo constante com os seres waimahsã visando manter o cosmos equilibrado com condições habitáveis aos seres humanos As sim a relação entre os humanos e os waimahsã se fundamenta no in tercâmbio recíproco de vitalidade Se o intercâmbio for violado pode acontecer o desequilíbrio social político econômico e ambiental Para isso os especialistas aparecem como o principal meio de comuni cação com os seres de diferentes domínios e espaços Portanto o desequilíbrio é entendido como um conjunto de manifestações anormais que compromete negati vamente a organização cosmológica e cosmopolítica afetando a vida so cial política econômica e ambiental Tal desequilíbrio pode se manifestar sob formas de surtos de doenças acidentes de grandes proporções confl itos sociais guerras nascimen to de muitas crianças com defi ciência física ou mental grandes impactos de fenômenos naturais escassez de re cursos naturais desequilíbrio de bio indicadores entre outros fenômenos anormais Uma vez no ano de 2016 meu pai Ovídio Lemos Barreto a convite de uma equipe de médicos dermatologis tas do Hospital Tropical participou do tratamento de dois pacientes indígenas durante um mês Nesse período que freqüentava os ambientes do hospital ele olhava para alguns pacientes so bretudo as mulheres e logo dizia que a doença era conseqüência de ataque dos waimahsã ou conseqüência de ali mentação que por descuidos durante seus momentos de maior vulnerabili dade de vida como período de mens truação de gravidez ou pósparto teria circulado nos ambientes estranhos sem proteção ou se alimentado sem fazer 610 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L bahsese O kumu Ovídio Barreto fazia diagnóstico do paciente só ao vêlo Partindo da noção de contaminação ia relacionando as doenças com o modo de vida do paciente O mundo dos waimahsã é o la boratório a verdadeira escola dos humanos um espaço onde os neófi tos adquirem conhecimentos treina mentos técnicas de diagnósticos e de cura de doenças antes de exercer o ofi cio entre seus pares Assim dife rentemente da noção antropológica comum de que os especialistas são sujeitos que tem capacidade ou dom de se comunicar com os deuses ou com os mortos eles são líderes espi rituais guardiões de conhecimentos além de serem formadores de novos especialistas Acionam os kihtiukuse bahsese e bahsamori para resolver pro blemas cotidianas seja para cura de enfermidades ou para a reorganiza ção do cosmos mantendo interlocu ção com os waimahsã dos domínios aquático terrafl oresta e aéreo para que suas forças estejam em equilíbrio No cotidiano os especialistas são requisitados para várias fi nalidades sobretudo para elaborar os bahsese de cura de doenças para o bahsese de proteção contra os ataques dos waimahsã para o bahsese de primeiro banho pósparto para o bahsese de proteção da moça durante a primeira menstruação para o bahsese de prote ção da casa da família do trabalho e contra o ataque dos inimigos São acionados ainda para a elaboração de bahsese de assepsia de alimentos7 para o bahsese de feridas para bahsese de doenças do seio mama para o bahsese de diarréias para dor de ca beça dor de barriga dor de dentes dores musculares etc Os especialistas também podem ser acionados para infernizar a vida de seus desafetos podendo provocar a aceleração de partículas para atacar ou contraatacar por exemplo ao invocar raios e trovoadas de grande intensida de sobre uma casa ou sobre uma pes soa Podem também acionar os bichos sobretudo as cobras venenosas para atacar um inimigo Outra possibilidade de ação do especialista é o uso de rou pa sutiró de predadores para certas fi nalidades Minha experiência pessoal foi ter meu avô paterno yai chamado Pon ciano yai como interlocutor quando era adolescente Ele me contava suas aventuras de especialista e como acionava as partículas ou fenômenos naturais para atacar seus desafetos Assim fez até estar à beira de sua morte Atualmente tenho meu pai o kumu Ovídio Lemos Barreto como seu sucessor Outro 8kumu é meu tio Manoel Lima Tuyuca e o meu irmão José Maria Barreto está a caminho de se tornar kumu Os três atuam no Bahserikowii O centro acabou de ser inaugurado e ainda não sabemos como será seu futuro mas nossa intenção é que ele possa fortalecer os conhecimentos in dígenas nos confl itos ontológicos com a medicina mas fortalecendo também as alianças possíveis para tratamentos que possam articular essas diferentes formas de curar e viver 611 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia NOTAS 1 Indígena do povo Yepamahsã Tuka no nascido na aldeia São Domingos no município de São Gabriel da Cachoeira AM Graduado em Filosofi a Mestre e Doutorando em Antropologia Social pelo programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Fe deral do Amazonas Pesquisador do Nú cleo de Estudos da Amazônia Indígena NEAI e Idealizador do Centro de Me dicina Indígena 2 Quero agradecer ao Professor Gilton Mendes dos Santos e a Professora Valéria Macedo pelo apoio e incentivo para es crever este texto Trocas de idéias e suas sugestões foram fundamentais para a cons trução do texto 3 A concepção de organização de espaços cósmicos como espaço aquático terra fl oresta e aéreo foi em minha Dissertação de Mestrado autor 2013 Nesse trabalho apenas o espaço aquático foi trabalhado com detalhes como base para a discus são da presença dos waimahsã no universo aquático Posteriormente o espaço terra fl oresta foi trabalhado por Dagoberto Azevedo 2016 e o espaço aéreo por Ga briel Maia 2016 4 Um exercício de refl exividade coletiva de um grupo de estudantes indígenas de pósgraduação em Antropologia So cial no âmbito do projeto Rios e Redes desenvolvidos pelo Núcleo de Estudo da Amazônia IndígenaNEAI permitiu conceituar os conhecimentos Tukano em três grandes campos de conhecimentos que são Kihtiukuse bahsese e bahsamori doravante denominamos de trindade por razão de ser uma coisa indivisível do ponto de vista dos especialistas indíge nas Tukano O resultado dessa pesquisa conjunto vai ser publicado com o Título OMERÕ Constituição e circulação dos conhecimentos Yepamahsã tukano no prelo 5 Bahsese foi trabalhado pelo Dagoberto Azevedo Tukano em 2016 na disser tação de Mestrado com uma riqueza de detalhes sobre os conjuntos de bahsese benzimentos acionados pelos especia listas indígenas nas suas experiências co tidianas seja para comunicar com os se res que habitam nos domínios da terra fl oresta a assepsia de alimentos e bahsese para acionar princípios curativos e pro tetivos 6 Bahsamori foi trabalhado pelo Gabriel Sodré Maia Tukano em 2016 na disser tação de Mestrado no qual trata das prá ticas sociais dos povos indígenas do Alto Rio Negro as práticas sociais doravante denominados de rituais acompanhando o calendário cosmológicos e seus bioindica dores Mostrando que as práticas sociais são meios de atualização e circulação de conhecimentos 7 Para os povos indígenas do alto Rio Ne gro todos os alimentos frutas peixes caça até mesmo a água são tidos como veículos de doenças que necessariamente devem passar pela assepsia para neutralizar o potencial de causar as doenças REFERÊNCIAS Azevedo DL 2016 Forma e Conteúdo do Bahsese Yepamahsã Tukano Fragmentos Do Espaço DiTaNuhku TerraFlores ta Dissertação de Mestrado Antropolo gia Social Universidade Federal do Ama zonas ManausAM Barreto João Paulo Lima 2013 WaiMah sã Peixes e Humanos um ensaio de An tropologia Indígena Manaus dissertação de mestradoPPGAS UFAM 612 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L Maia GS 2016 Bahsamori o tempo as estações e as etiquetas sociais dos Yepa mahsã tukano Dissertação de Mestrado Antropologia Social Universidade Federal do Amazonas ManausAM OMERÕ 2015 Constituição e circulação dos conhecimentos Yepamahsã tukano no prelo
Texto de pré-visualização
Bahserikow Centro de Medic Indígena da Amazôn concepções e práti de saúde indíge wi cina nia icas ena Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia concepções e práticas de saúde indígena Universidade Federal do Amazonas J O Ã O P A U L O L I M A B A R R E T O 596 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L BAHSERIKOWI CENTRO DE MEDICINA INDÍGENA DA AMAZÔNIA CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DE SAÚDE INDÍGENA Resumo Pretendese neste artigo refl etir aspectos de confl itos ontológicos entre o modelo de conhecimento indígena e o modelo universal de conhecimento a partir de uma experiencia desagradável para não dizer discriminatória vivenciada durante o ano de 2009 Por outro lado este fato acabou por servir de embião para criação do Bahserikowi Centro de Medicina Indígena A apresentação visa basicamente refl etir como o imaginário construído pelas socieda des sobre o índio sobretudo a classe médica tem uma visão equivocada sobre conhecimentos e práticas indígenas O modelo de conhecimento indígena considera que a doença e saúde não se restringem ao aspecto biológico Antes ao contrário envol vem aspectos cosmopolíticos que condicionam a prática da boa saúde Sai assim do entendimento restrito de algo biológico e conecta o indivíduo numa teia de relações com outros seres com os waimahsã com os animais os especialistas com seus parentes e outras pessoas Palavraschave Bahsserikowi Biomedicina Bahsese BAHSERIKOWI INDIGENOUS MEDICINE CENTER OF THE AMAZON INDIGENOUS HEALTH CONCEPTIONS AND PRACTICES Abstract This manuscript intends to refl ect on aspects of ontological confl icts between the indigenous knowledge model and the universal knowledge model based on an unpleasant not to mention discriminatory experience during 2009 On the other hand this fact served as an inspiration for the creation of Bahserikowi Indigenous Medicine Center The presentation aims basically to refl ect on how the imaginary constructed by societies about the Indian especially the medical class has a misconception about indigenous knowledge and practices The indigenous knowledge model considers that disease and health are not restricted to the biological aspect Rather on the contrary 597 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia they involve cosmopolitical aspects which condition the practice of good health It thus comes out of the restricted understanding of something biological and it connects the individual in a net of relations with other beings with the waimahsã with the animals the specialists with their relatives and other people Keywords Bahsserikowi biomedicine Bahsese BAHSERIKOWI CENTRO DE MEDICINA INDÍGENA DE LA AMAZONIA CONCEPCIONES Y PRÁCTICAS DE SALUD INDÍGENA Resumen Este artículo pretende refl ejar aspectos de confl ictos ontológicos entre el modelo de conocimiento indígena y el modelo universal de conocimiento a partir de una experiencia desagradable por no decir discriminatoria vivenciada durante el año 2009 Por otro lado este hecho terminó sirviendo de embrión para la creación del Bahserikowi Centro de Medicina Indígena La presentación básicamente considera cómo el imaginario construido por las sociedades sobre el indio sobre todo la clase media tiene una visión equivocada sobre conocimientos y prácticas indígenas El modelo de conocimiento indígena considera que la enfermedad y la salud no se restringen al aspecto biológico Al contrario involucra aspectos cosmopolíticos que condicionan la práctica de la buena salud Se sale así del entendimiento restringido de algo biológico y conecta al individuo en una red de relaciones con otros seres con los waimahsã con los animales los especialistas con sus parientes y otras personas Palabras clave Bahsserikowi Biomedicina Bahsese João Paulo Lima Barreto1 jplbarretogmailcom 598 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L Este artigo discute basicamente confl i tos entre modelos biomédicos e conce ções de doenças e práticas de saúde a partir da perspetiva indígena na região do Alto Rio NegroAM O objetivo é apontar como o modo de pensar a doença é também o modo de pensar o equilíbrio e desequilíbrio do cosmos portanto não tendo como pressupos to a noção de indivíduo e os limites de espaços físicos ou corpos meramente orgânicos A partir dessa discussão a intenção é problematizar políticas pú blicas de saúde prestadas aos povos indígenas e o lugar dos especialistas indígenas em processos de cura com foco na implementação do Centro de Medicina Indígena da Amazônia se diado na cidade de Manaus2 Como capital do Estado do Amazonas Manaus concentra a maior diversida de de povos indígenas como Arapas so Apurinã Baniwa Bará Barassana Baré Deni Dessano Hupda Itana Jamamadi Yanomami Yskarino Kam beba Kokama Kanamari Karapãna Korubo Kubeo SatereMaué Man chineri Mati Maraguá Marubo Mira nha Mirititapuia Munduruku Mura Piratapuya Tariano Tikuna Tukano Tuyuka Wayway e Wanano Maraguá que somam segundo estimativa da FUNAI de Manaus uma população de 30 mil indivíduos aproximadamente O Centro de Medicina Indígena da Amazônia foi fundado no dia 06 de junho de 2017 por minha iniciati va como membro do povo Yepamah sã Tukano e com apoio dos Kumuã pajés Manoel Lima da etnia Tuyuca Ovídio Lemos Barreto e José Maria Barreto ambos da etnia Yepamahsã e com a colaboração de jovens indíge nas Ivan Barreto Cleofa Barreto Jo sivan Barreto da etnia Yepamahsã e da jovem indígena Carla Fernandes da etnia Dessana O centro conta com a parceria da Coordenação das Organi zações Indígenas da Amazônia Brasi leira Coiab do Núcleo de Estudo da Amazônia Indígena NEAIUFAM além do apoio da agência de comuni cação Amazônia Real A iniciativa é fruto de experiências pessoais e familiares ao longo de doze anos algumas negativas e outras posi tivas no confronto entre o modelo de conhecimentos indígenas e a ciência sobretudo com o modelo de tratamen to de saúde biomédico Muitos concei tos criados pela ciência para entender ou desvendar o sistema de conheci mentos indígenas produziram um ima ginário distorcido e muito distante das concepções indígenas Por exemplo o pajé costuma ser imaginado como um velhinho que tem poder de transitar entre o universo dos deuses ou dos mortos que conversa com os animais plantas ou minerais para adquirir po deres sobrenaturais É um imaginário muito exotizante que a mídia ou os livros didáticos além da própria ci ência difunde na sociedade não indí gena Dessa forma conceitos como mito religião xamanismo maloca benzimento magia e feitiçaria têm con duzido a um imaginário equivocado e distanciado das epistemologias pro priamente indígenas A estrutura do texto inicia com um acontecimento que motivou a criação do centro para então aprofundar con cepções indígenas sobre o cosmos e 599 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia seus habitantes assim como a forma ção e atuação de especialistas em curas entre os yepamahsã A BIOMEDICINA NA FACA A criação do Bahserikowi está em co nexão com o episódio que aconteceu com minha família em especial com minha sobrinha Um acontecimento que infelizmente está longe de ser um fato isolado Muitos casos semelhantes têm acontecido nos hospitais de Ma naus com os pacientes indígenas Em janeiro de 2009 minha sobrinha Luciane Trurriyo Barreto encaminha da pelo DSEI do município de São Gabriel da Cachoeira e acompanhada de seu pai José Maria Barreto veio à capital do Amazonas para tratamento depois de ser picada por uma cobra Apresentando grave estado de saúde logo foi internada Passados dois dias meu irmão José Maria me ligou deses perado do hospital me dizendo que os médicos tinham decidido amputar o pé da minha sobrinha O diagnóstico do médico considerava que a situação era grave e que o pé ferido estava necro sando muito rapidamente e essa situa ção colocava em risco a vida da meni na Meu irmão me falava também que os médicos já estavam fazendo cirur gia vascular e que toda pele da palma do pé tinha sido retirada Isso causava desespero tanto dela quanto do seu pai Nessa época eu estava para concluir o curso de graduação em Filosofi a pela Universidade Federal do Amazonas UFAM e ao mesmo tempo cursava Direito na Universidade do Estado Amazonas UEA Com a notícia da amputação do pé da minha sobrinha fui ao encontro do meu irmão Deses perado ele relatava os fatos e falava da pressão e ameaça que a assistente so cial e a equipe médica faziam para ele consentir a amputação dizendo que a fi lha dele morreria em menos de três dias caso não fosse realizado tal pro cedimento Meu irmão buscava forças para convencer os médicos de que aquilo não era necessário e sugeria rea lizar um tratamento à base do bahsese e ervas medicinais Antes disso porém fomos consultar nossos especialistas kumuã yepamahsã Tukano Dois eram meus tios ou tro meu pai Eles nos garantiam que não era necessário amputar naquele momento era preciso recorrer ao tra tamento com bahsese e plantas medici nais que eles mesmos garantiam fazer Estavam certos também que tais pro cedimentos no entanto não excluíam o tratamento médico que deveria con tinuar mas sem amputação Com a garantia dada pelos nossos es pecialistas partimos para dialogar com os médicos do hospital Nossa propos ta foi imediatamente rejeitada e a de cisão pela amputação do pé de minha sobrinha foi mantida Instalouse aí um grande confl ito entre nós e os médicos Fomos acusados dentre outras coisas de obstruir o trabalho médico Meu irmão foi ameaçado de ser denuncia do ao Conselho Tutelar pela assistente social do hospital e pela Casa de Assis tência Social ao Índio CASAI Corríamos contra o tempo para adiar a data de amputação pois estávamos 600 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L decididos a lutar para que o tratamento com bahese e plantas medicinais fosse realizado juntamente com os procedi mentos da medicina Passamos a mo bilizar o Ministério Público Federal e o fato passou a repercutir na mídia Exigimos outra reunião com a equipe médica Nesse meio tempo meu irmão levava remédio à base de planta medi cinal e bahsese escondidos dos médicos para a menina no hospital Diante da grande repercussão nos meios de comunicação de massa a equipe médica do hospital aceitou realizar mais uma reunião conosco Achávamos com isso que estava ga rantido o tratamento conjunto mas não foi o que aconteceu Na sala de reunião num lado sentouse a equipe médica e no outro sentamos nós e nossos especialistas O chefe da equi pe médica sem muita conversa de modo raivoso e arrogante dirigiuse a meu pai perguntando por que o se nhor acha que não deve amputar o pé de sua neta Meu pai sem falar bem o português começou a responder dizendo que do ponto de vista dele como kumu o pé de sua neta não estava necrosado pois a cor roxa do pé era uma reação do sangue com o veneno da cobra O mé dico visivelmente irritado interrom peu a fala de meu pai e esmurrando na mesa disse eu estudei oito anos para ter autoridade para decidir o que é que melhor para um paciente enquan to o senhor com muito respeito não frequentou um dia sequer a medicina Dizendo isso se retirou levando consi go toda a equipe A partir desse momento nossa luta passou a ser a retirada de minha so brinha do hospital Confesso que não foi fácil pois o tempo todo a equipe médica ameaçava nos processar e sus tentava a necessidade de fazer a ampu tação Após vários dias fi nalmente reti ramos a menina do hospital e levamos para a Casa de Apoio do município de São Gabriel da Cachoeira Lá ela teve acompanhamento e tratamento dos kumuã à base de bahsese e ervas medici nais sem interromper os medicamen tos que fi caram sob supervisão de uma técnica de enfermagem Com a repercussão do fato na mídia uma equipe de outro hospital público decidiu convidarnos para uma con versa Durante a reunião nossos es pecialistas tiveram oportunidade de apresentar suas técnicas e formas de tratamento à base de bahsese e plan tas medicinais Num diálogo bastante sincero levando em conta os riscos e probabilidades de sucesso foi feito um acordo formal para o tratamento con junto Com tal acordo a menina foi internada no hospital Assim todas as vezes em que as enfermeiras faziam o curativo no pé de minha sobrinha os kumuã entravam com procedimentos de bahsese Como resultado desse esforço o pé da minha sobrinha não foi amputado perdendo apenas alguns movimentos como consequência Hoje ela vive na comunidadealdeia São Domingos Sávio no Rio Tiquié alto Rio Negro longe da cidade e dos médicos No confl ito ontológico entre nós e os médicos estava em jogo os conceitos 601 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia formatados acerca dos nossos conhe cimentos indígenas falsos e vagamente formados ou conhecidos por eles As sim os médicos do hospital carrega dos de um imaginário sobre pajelança e não sei o que mais achavam que os ku muã entrariam no hospital adornados de cocares com colares de dentes de onças pintados cantando e dançando sob som de tambores e maracás As concepções indígenas de doença e saúde não se restringem ao aspec to biológico Esse é o ponto Antes o contrário envolvem aspectos cosmo políticos que condicionam a prática da boa saúde Sai assim do entendimento restrito de algo biológico e conecta o indivíduo numa teia de relações com outros seres com os waimahsã com os animais os especialistas com seus pa rentes e outras pessoas Da nossa parte partimos da ideia de que é preciso somar esforços e dar visibilidade às concepções técnicas e práticas de tratamento de saúde desen volvido pelos especialistas indígenas yai kumuã e baya doravante chamados de pajés no mesmo nível do valor mé dico O fato que aconteceu com minha so brinha Luciane foi minha maior ins piração e incentivo para a criação do Centro de Medicina Indígena da Ama zônia Sua luta e nossa luta contrapon do a biomedicina colocando nossas concepções e práticas na mesa de ne gociação e no mesmo nível de valor trouxe um resultado muito positivo e nos convenceu defi nitivamente de que era importante ampliar essa luta e nos sos valoresconhecimentos indígenas Foi com isso e é com isso em men te que criamos o Centro de Medicina Indígena da Amazônia na cidade de Manaus Um lugar onde queremos co locar isso em prática valorizando os especialistas que exercem este ofício na maioria das vezes alheios e à mar gem da sociedade como um todo mui tas vezes atendendo o mesmo público os mesmos pacientes que o um hospi tal atende Esse quadro é bastante real em Manaus e seus municípios sobre tudo no município de São Gabriel da Cachoeira onde a maioria é indígena Com a iniciativa em nenhum momen to queremos colocar em questão o modelo ofi cial de tratamento de saúde Queremos simplesmente oferecer a oportunidade para as pessoas que acre ditam que a saúde perpassa por outras vias de tratamentos terem também o direito de os acessar Assim o Centro de Medicina Indígena é mais uma op ção um canal que possibilita ao públi co uma opção de tratamento por vias de tecnologias indígenas baseadas em outros parâmetros que não os da me dicina ocidental A proposta é ter o Centro como um espaço de circuito de especialistas indí genas de todos os povos Mas no mo mento não temos recurso fi nanceiro para criar essa política Já tivemos ma nifestação dos Yanomami dos Apurinã e Marubo para vir passar um período no Centro atendendo as pessoas Mas isso implica em ter recurso fi nanceiro para trazêlos e manter eles na cidade e no centro o que no momento não temos condições entretanto logo pre tendemos alcançar esse objetivo 602 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L Aqueles que buscam tratamento costu mam fi car direito no Centro Mas há casos que os Kumuã fazem atendimen to domiciliar desde que a pessoa inte ressada ofereça estrutura pois ainda não temos condição para transporte de especialistas e estrutura em geral Não temos nenhum projeto ou vínculo com poder público para disponibilizar o atendimento gratuito aos interessados Mantemos os especialistas com taxa que cobramos com os tratamentos das pessoas A ajuda de custo aos especialistas e aos jovens indígenas colaboradores é dividida de acordo com a arrecadação mensal E também o mantimento da equipe com transporte alimentação e pagamento de água energia material de limpeza material de expedientes etc Assim não se tem salário fi xo Nesses quatro meses de funciona mento do Centro já passaram mais de 500 pessoas pelo centro indígenas e nãoindígenas na maioria mulheres de faixa etária de 30 a 50 anos de ida de Estamos num prédio localizado no centro histórico da cidade com duas salas de consultas e de tratamento Temos colabores como atendentes e intérpretes O protocolo é seguido de diagnóstico análise de complexidade da doença tempo de tratamento res trições alimentares e sexuais em alguns casos e acompanhamento Há duas principais formas de tratamentos bah sese benzimento e uso de plantas me dicinais Ambas não produzem efeitos colaterais As pessoas se surpreendem porque não encontram equipamentos sofi sticados nas salas de consultas Fizemos parceria com uma associa ção apurinã de Tapauá para forne cerem remédio à base de vegetais e animais Essa associação já vinha desenvolvendo os remédios há mais de 20 anos com o acompanhamento da UFAM Em todos os remédios há data de fabricação e data de venci mento o que achamos muito impor tante para dar segurança às pessoas Mas nosso projeto é criar viveiros plantar e produzir farmacopeia indí gena Entretanto há remédios feitos à base de plantas que é de domínio de alguém neste caso somente solici tamos seu fornecimento sem aquela pessoa revele seu segredo Tudo isso está em discussão e experimentação nesses quatros meses de existência do Centro O Centro não se restringe apenas à consulta e tratamento de saúde sen do também um lugar dinamizador e incentivador de novos centros de medicina indígena em outras regiões do Brasil Dito de modo bastante su cinto a iniciativa quer contrapor a política de dependência química dos povos indígenas imposta pela polí tica de tratamento de saúde ofi cial promovendo um debate sobre outras formas de tratamento e concepções sobre saúde Neste sentido o Bahserikowi visa de forma ampla constituir um espaço de diálogo com outros saberes sejam eles indígenas ou não a fi m de promover o intercâmbio cultural e a produção de conhecimento na área da saúde e outros campos Na concepção indí gena existe uma distinção muito clara daquelas doenças que a biomedicina 603 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia pode resolver sobretudo com siste ma de cirurgias e outras doenças que somente os especialistas indígenas po dem fazer tratamento cura Nesse sentido os dois conhecimentos podem atuar conjuntamente Como antropólogo yepamahsu tukano sou idealizador do Centro e busco ar ticular politicamente e divulgar a expe riência da implantação do Centro em todos os níveis nas associações indíge nas nas universidades nas escolas e na mídia promovendo debate e diálogo entre a biomedicina e conhecimentos indígenas Também sou pesquisador e faço exercício de pensar o pensamento indígena com objetivo de fundamen tar teoricamente as concepções e téc nicas de tratamento de doenças a partir de epistemologias indígenas Articular parcerias também faz parte do meu trabalho além de incentivar diretamen te os jovens e especialistas envolvidos no Centro COSMOPOLÍTICAS DO CONHECI MENTO Existem vários modos de explicar en tender organizar e manipular o mun do que designamos como conhecimento A ciência como conhecimento que se pretende universal organiza a realidade em três grandes reinos isto é o reino animal reino vegetal e reino mineral Cada reino por sua vez é organizado em campos de conhecimentos especí fi cos como ciências humanas ciências exatas e ciências biológicas e são arti culados em disciplinas como Sociolo gia Antropologia História Geografi a Direito Física Química Geologia Biologia Medicina Enfermagem etc Essa organização em campos de co nhecimentos específi cos nada mais é do que o desejo de controlar e separar fenômenos sociais e naturais de modo a agenciálos para o benefício político econômico e social Entre os povos do Alto Rio Negro conhecer o mundo signifi ca necessa riamente estabelecer relações cosmo políticas sem dividilas em relações sociais e meio natural Consideramos que todos os ambientes dos espaços aquáticos terrafl oresta e aéreo3 são habitados por outros seres humanos denominados de waimahsã na língua ye pamahsã que doravante são traduzidos como espíritos Essa noção de espaços mais inclusiva está articulada com bah sese benzimentos e a interação dos hu manos como waimahsã habitantes dos respectivos ambientes A tradição intelectual indígena de ver de pensar e de organizar o mundo os seres e as coisas de relacionar de manipular e perceber as mudanças está ancorada numa epistemologia que não é aquela que aprendemos nas escolas e nas universidades convencionais Ela está ancorada na cosmologia e na cos mopolítica que são a base de conheci mento e fi o condutor de pensamento e das práticas indígenas Para novas gera ções são transmitidas de maneira orga nizada e sistemática como teorias de conhecimentos pelos seus detentores conhecidos como yai kumu ou baya A relação cosmopolítica portanto é um dos princípios básicos para bem vi ver na concepção dos yepamahsã Man ter uma relação harmoniosa com os 604 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L waimahsã seres que habitam em todos os espaços cósmicos que são donos dos lugares e responsáveis pelos ani mais vegetais minerais e temperatura do mundo terrestre é uma necessidade para manter em equilíbrio social e am biental Assim os yepamahsã têm noção clara de espaço aquático espaço terrafl oresta e espaço aéreo que por sua vez estão subdivididos em espaços menores dos quais podem ser entendidos como ambientes Mais do que espaços de concentração de determinados obje tos seja vegetal animal ou mineral os ambientes são defi nidos e identifi ca dos como bahsakawiseri casas de wai mahsã tal qual como as moradas dos humanos Assim uma cachoeira uma corredeira um lago uma serra uma fl oresta de terra fi rme um buritizal ou caranazal um barreiro dentre outros é identifi cado e organizado como bah sakawiseri casas de waimahsã Quem são os waimahsã A tarefa de defi nir ou traduzir os waimahsã é bas tante complexa Uma parte de acordo com o kumu Ovídio Lemos Barreto do povo yepamahsã conta que nos tempos de surgimento todos os humanos es tavam sob condição de waimahsã Sob esta condição que fi zeram a longa via gem de surgimento de humanos En tretanto no destino fi nal na passagem de condição de waimahsã para a condi ção de humanos alguns grupos foram preteridos pelo demiurgo Yepaoãku mas passaram a habitar nos ambien tes de todos os espaços do cosmo com as mesmas qualidades e capacida des dos humanos para serem responsá veis e guardiões das coisas como vege tais animais minerais da temperatura chuva noite dia etc Eles waimahsã só podem ser vistos por um especialista isto é yai ou kumu conhecidos como xamãs Es ses seres são por fi m a própria ex tensão humana devendo sua exis tência e reprodução ao fenômeno do devir isto é a continuidade da vida após a morte sendo assim a origem e o destino dos humanos seu início e seu fi m É com estes waimahsã habitantes de diferentes ambientes que os especialistas in dígenas se comunicam e adquirem conhecimentos Barreto 2013 Assim todos os ambientes do cos mos são habitados por humanos O bem viver dos humanos sem doença ou estar bem de saúde depende da interação e comunicação como esses humanos Caso não ocorra a comu nicação com esses donos dos lugares que são ao mesmo tempo responsáveis pelos bichos e as coisas eles podem deferir confl itos sociais surtos de do enças escassez de recursos naturais e desequilíbrio ambiental como formas de vinganças Por essa razão para o usufruto de qualquer recurso natural ou para ocupação de espaço pelos hu manos é preciso primeiro comunicar se com esses sujeitos sob mediação dos especialistas yai kumu ou baya Em relação aos humanos waimahsã são também detentores de conhecimentos primários de kihtiukuse narrativas mí ticas bahsese conjuntos de benzimen tos e bahsmori conjuntos de rituais e práticas sociais O acesso e aquisição de tais conhecimentos pelos humanos se dá principalmente durante o perí odo de formação momento em que 605 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia os neófi tos são conectados ao domí nio ou às moradas de waimahsã pelo yai formador utilizando os elementos kahpi ou wiõ rapé como elementos agenciadores Os professores dos hu manos são os waimahsã Estes possuem uma estrutura de ensino bastante so fi sticado tanto quanto o laboratório Os humanos necessariamente devem interagir e manter a comunicação com os waimahsã para aquisição de conheci mentos Dessa forma o equilíbrio e desequilí brio do cosmos seja ambiental social e de doenças perpassa necessariamente nas relações entre essas categorias de pessoas a saber waimahsã e humanos que estão conectados num sistema de interdependência em que cada catego ria tem seu tipo específi co de conhe cimentos e pode atuar indistintamente DOENÇAS TRATAMENTOS E CURAS O exercício de refl exividade antropoló gica feito por nós indígenas yepamahsã do Núcleo de Estudo da Amazônia Indígena NEAI em conjunto com os antropólogos nãoindígenas e pro fessores feznos concluir que o sis tema de conhecimento yepamhasã está ancorado em três grandes conceitos abstratos Kihtiukuse Bahsese e Bahsamo ri4 a partir dos quais podem ser organi zados campos de conhecimentos mais específi cos Em nossa equipe de pes quisadores desenvolvemos uma obra intitulada Omerõ que está no prelo em que os tematizamos Resumidamente Kihtiuhkusse é o con junto de narrativas míticas que são o resultado das tramas sociais vivencia das pelos demiurgos e responsáveis pela origem do mundo dos seres das coisas das paisagens das serras das cachoeiras das corredeiras da fl o restavegetação Bahsesse5 é quando o kihtiuhkusse é utilizado pelos ku muã para comunicação e interação com os waimahsã assepsia de alimen tos e habilidade de invocar elementos e princípios curativos contidos nos tipos de vegetais animais e minerais Já Bahsamori6 é quando o kihtiuhkusse é acessado para composição musical du rantes as festas de dabucuri que envol vem os cantos danças instrumentos musicais práticas agrícolas práticas de caça e pesca etc Ainda de acordo com nossa pesquisa coletiva sobre conhecimentos os in dígenas podemos dividir as causas de doenças entre aquelas causadas pelos ataques de Waimhasã aquelas causadas pela alimentação doenças autoprovo cativas e sonhos e por fi m agressões interpessoais ou feitiçaria Como comentado os ambientes são considerados casas de waimahsã que são responsáveis pelos recursos natu rais de seu entorno e aos animais que circulam nos ambientes Para utilizar tais recursos os humanos necessaria mente devem negociar com os waimah sã caso contrário esses seres deferem ataques contra a pessoa utilizando os meios como picada de cobra acidente fatal e doenças que podem ser mortais Para circular nos ambientes os huma nos devem pedir licença desses donos dos lugares sobretudo nos momentos mais vulneráveis da vida como no pe ríodo de gestação menstruação etc O 606 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L mais importante bahsero benzimento é o wetidareró para estas situações Wetidarero é uma arte de comunicação com os humanos invisíveis formula do pelo especialista com o objetivo de evitar os ataques dos waimahsã es pecialmente naqueles momentos mais vulneráveis e quando as pessoas se deslocam para os diferentes lugares habitação de waimahsã para a prática de pesca caça e coleta Os elementos utilizados como veículo de comuni cação nesses casos são o cigarro ou o urucum Outra fonte de doenças são os alimen tos seja animal vegetal e frutas Toda comida é portadora em potencial de doenças pois são carregadas de mi crorganismo capazes de atacar a saú de humana Para isso as frutas devem passar por processo de assepsia feito por meio de bahsese benzimento pelo kumu pajé Essa categoria é chamada pelos Tuka no de Baábokasé doenças causadas pelo alimento Isso ocorre no consumo waik rã animais wai peixes e yok d hka vegetal Por exemplo con sumir baábaáse comidaalimentos depois de momentos senviveis e de maior vulnerabilidade como após uso de plumas de resguardo pré ou pós parto após terem visto e terem conta to com miriã jurupari Uma das reco mendações principais é de moderação no consumo de certos alimentos que contem certos elementos como peixes e carnes de caça que contêm muita sé gordura metafisicamente estas gorduras ficam impregnadas see sãse no corpo da pessoa que ingeriu no sangue no estômago no fígado no coração nas veias na pele e na car ne seesãse as gorduras invisivelmente impregnadas fazem surgir e aparecer àquelas kamib k feridas e infecções dermatológicas que podem vir a se rem incuráveis De mesma forma o consumo e a ingestão de frutas da roça ou do mato consideradas sek ose oleosas e gordurosas como açaí patauá buriti umari inajá ucu qui cunuri uacu provocam também este fenômeno de seesãse impregnação das gorduras e causam kamib k Outra recomendação importante é a moderação no consumo de p õbaase assados e tãbaase assados ou enterra dos na brasa embrulhados com folhas que pode causar além do kamib k visto como nos casos precitados uma série de omeperi b s se distúrbios audi tivos wisisé salivação excessiva notur na dipetisé palidez excessiva p apetisé emagrecimento dimehã obesidade kematise sonhos estranhos witõda uhsé queima da massa encefálica e matisé loucura Outra forma de causa de doenças é au toprovocação do corpo sobretudo nas mulheres No período de sua menstru ação ou gestação a mulher pode con trair doenças Para evitar as complica ções as mulheres devem se submeter à prevenção adotar dieta adotar certos comportamentos específi cos e fi car sob cuidados do kumu As doenças do descuido poder ser do útero doenças do fígado da mama da garganta feridas e coceiras no corpo além de doenças como fogo selvagem A mais grave pode ser a gestação de 607 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia criança defi ciente Além disso podem ter difi culdade de ter parto natural Para tudo isso tem bahsese benzimen tos específi cos Há ainda doenças que são causadas por agressões interpessoais vulgarmente conhecido de feitiçaria seró pehtise é um assunto complexo e delicado de modo que mesmo aqueles que sabem e tem conhecimentos não estão dis postos a contar comunicar comentar e informar os nãoespecialistas sobre o tema para não revelar como se formula e faz esta categoria avessa do conjunto dos bahsese mas se limitam em indicar o que acontece com a vítima e possí veis sintomas Nesse sentido quase to dos conhecem as doenças provocadas por seró pehtise mas nem todos conhe cem o tratamento e a cura somente alguns especialistas Os especialistas afi rmam que a pessoa com habilidade de agressão por meio dos bahsese tem uma vida curta na medida em que o agressor pode ser atingido com weopeose e bia doase antidoto de feitiçaria de sua própria agressão OS ESPECIALISTAS YEPAMAHSÃ Nas sociedades indígenas do alto Rio Negro existem três categorias de es pecialistas yai kumu e baya que são agenciadores cósmicos e cosmopolíti cos São sujeitos que passaram por uma rigorosa formação e treinamentos sob orientação de especialista formador Conectando no domínio de waimahsã adquiriram kihtiukuse bahsese e bahsa mori conhecimentos considerados fun damentais para a existência humana O yai kumu e baya são como detentores de Bahsese Para efetuar tratamento antes de tomar qualquer providência os especialistas primeiro fazem diag nósticos através de séries de pergun tas O objetivo é descobrir exatamen te a origem e causa da doença Feito o diagnóstico lança mão dos bahsese especifi co para curar aquela doença Os elementos utilizados podem variar entre tabaco breu enzima vegetal água chá e outros como perfume gel etc Como dito acima bahsese é habili dade de invocar elementos e princípios curativos contidos nos tipos de vege tais animais e minerais sobre os ele mentos para ser tratado o paciente Já a utilização de plantas medicinais na atenção à saúde que pode ser vege tal da mata e planta do quintal Não é qualquer pessoa que domina as plantas Isso também requer formação conhe cimento e habilidade para manipular a planta para ter poder de cura de doen ças Os especialistas yai kumu ou baya são humanos e quase demiurgos pois pau tamse como extensão de demiurgos seres que deram origem à plataforma terrestre fl oresta rios animais vege tais e minerais Os demiurgos também deram origem aos waimahsã e humanos como sua extensão de vida dotando lhes de capacidades e costumes es pecífi cos Foi por meio de bahsese que os demiurgos fi zeram surgir todas as coisas Assim aquele que domina kihti ukusebahsesebahsemori possui capacida de de recriar reorganizar o cosmos e manipular suas partículas para o bem ou para o mal 608 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L O nome adotado pela pessoa é funda mental para se tornar especialista pois traz a presença da potência criadora e mantenedora de tudo quanto há ou seja kihtiukusebahsesebahsemori O do mínio desses conhecimentos coloca o especialista no patamar de recriador mantenedor ou destruidor tal qual como os demiurgos versados nas nar rativas míticas Outro fator importante da nominação é sua capacidade de in serir a pessoa na estrutura cosmológica e cosmopolítica além de conferir entre seus pares uma função social Dito de outra forma o nome é omerõ força uma potência que pode ser desenvol vida pela pessoa para ser bom espe cialista Omerõ está intimamente rela cionado ao conjunto dos bahsese e aos modos de ação do especia lista yepamahsã kumu yaí baya e bahsegʉ Omerõ diz respeito a for ça do coração força da mente e também a força que o especia lista mantém no seu corpo para então lançar mão dos bahsese A origem dessa força capacidade de criar ou destruir está direta mente ligada a Buhpo sendo que este é considerado o próprio omerõ Desse modo essa força existe desde da origem dos Yepa mahsã narrada no conjunto dos kihti ukuse A potência do õmero no coração está relacionada ao ato de realizar o bahsero de co ração do recémnascido heripo rã bahsese que consiste na co municação do especialista com Yepa Oãku para que seja lançado mão do nome da criança Este nome é extraído de um repertó rio conhecido e fechado de no mes yepamahsã que por sua vez vão ser dados de acordo com as potencialidades e características inerentes a criança calma agi tação sendo anunciado de Yepa Oãku para o especialista No ato de dar o nome no momento do heriporã bahsese a criança não só está interligada a estrutura cos mológica yepamahsã como tam bém adquire o seu õmero que por sua vez é um fragmento do omerõ do próprio Yepa Oãku Isso possibilita aos Yepamahsã acionar os diferentes tipos de bahsese podendo assim interagir com os waimahsã e também com os seus semelhantes Assim o nome dado a partir do heriporã bahse se é o próprio omerõ Acerca do omerõ designado como potência da mente e também como for ça que o especialista mantém no seu corpo referese a essa força direcionada para realização do bahsero O õmero localizase na porta da boca do especialista com essa força juntamente com a intencionalidade do especia lista a utilização das narrativas das classificações e também do murupu ukuse o sopro adquire os atributos de cura e de comu nicação entre os Yepamahsã e os waimahsã e comunicação dos hu manos entre si Omerõ et alli 2016 no prelo Na teoria toda pessoa yepamahsu singular tem potencialidade de ser especialista mas isso tem preço Tra dicionalmente o cuidado do corpo para ser especialista começa logo após o parto a criança recémnascida é cercada de cuidados pelos seus pais que se sujeitam a severas regras e in 609 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia terdições Nesse período a criança recémnascida depende da conduta dos pais para que os waimahsã não os agridam Quando passa essa fase o cuidado passa a ser pessoal com a reclusão e um rigoroso regime de controle alimentar e sexual além de subme ter ao acompanhamento do yai mais experiente Depois dessa investida é ativado o poder a força o omerõ Isso conecta a pessoa defi nitivamente na estrutura cosmológica e cosmopolíti ca isto é ao domínio dos demiurgos e dos waimahsã com os quais passa a se comunicar e interagir O investimento do corpo é a base para ser bom especialista O corpo é preparado com investimentos de adereços que não são visíveis a pes soas comuns Essas são condições para expandirse para qualidade de original próximo aos demiurgos e waimahsã se tornando pessoa com força de invocar elementos e princí pios curativos contidos nos tipos de vegetais animais e minerais para tra tar as doenças de modo a transfor mar determinados elementos água tabaco enzima vegetal entre outros em agentes protetivos e curativos além da habilidade de provocar os fe nômenos naturais como raios e tro voadas e usar qualidades de animais para determinadas fi nalidades Outra função do especialista é pro mover diálogo constante com os seres waimahsã visando manter o cosmos equilibrado com condições habitáveis aos seres humanos As sim a relação entre os humanos e os waimahsã se fundamenta no in tercâmbio recíproco de vitalidade Se o intercâmbio for violado pode acontecer o desequilíbrio social político econômico e ambiental Para isso os especialistas aparecem como o principal meio de comuni cação com os seres de diferentes domínios e espaços Portanto o desequilíbrio é entendido como um conjunto de manifestações anormais que compromete negati vamente a organização cosmológica e cosmopolítica afetando a vida so cial política econômica e ambiental Tal desequilíbrio pode se manifestar sob formas de surtos de doenças acidentes de grandes proporções confl itos sociais guerras nascimen to de muitas crianças com defi ciência física ou mental grandes impactos de fenômenos naturais escassez de re cursos naturais desequilíbrio de bio indicadores entre outros fenômenos anormais Uma vez no ano de 2016 meu pai Ovídio Lemos Barreto a convite de uma equipe de médicos dermatologis tas do Hospital Tropical participou do tratamento de dois pacientes indígenas durante um mês Nesse período que freqüentava os ambientes do hospital ele olhava para alguns pacientes so bretudo as mulheres e logo dizia que a doença era conseqüência de ataque dos waimahsã ou conseqüência de ali mentação que por descuidos durante seus momentos de maior vulnerabili dade de vida como período de mens truação de gravidez ou pósparto teria circulado nos ambientes estranhos sem proteção ou se alimentado sem fazer 610 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L bahsese O kumu Ovídio Barreto fazia diagnóstico do paciente só ao vêlo Partindo da noção de contaminação ia relacionando as doenças com o modo de vida do paciente O mundo dos waimahsã é o la boratório a verdadeira escola dos humanos um espaço onde os neófi tos adquirem conhecimentos treina mentos técnicas de diagnósticos e de cura de doenças antes de exercer o ofi cio entre seus pares Assim dife rentemente da noção antropológica comum de que os especialistas são sujeitos que tem capacidade ou dom de se comunicar com os deuses ou com os mortos eles são líderes espi rituais guardiões de conhecimentos além de serem formadores de novos especialistas Acionam os kihtiukuse bahsese e bahsamori para resolver pro blemas cotidianas seja para cura de enfermidades ou para a reorganiza ção do cosmos mantendo interlocu ção com os waimahsã dos domínios aquático terrafl oresta e aéreo para que suas forças estejam em equilíbrio No cotidiano os especialistas são requisitados para várias fi nalidades sobretudo para elaborar os bahsese de cura de doenças para o bahsese de proteção contra os ataques dos waimahsã para o bahsese de primeiro banho pósparto para o bahsese de proteção da moça durante a primeira menstruação para o bahsese de prote ção da casa da família do trabalho e contra o ataque dos inimigos São acionados ainda para a elaboração de bahsese de assepsia de alimentos7 para o bahsese de feridas para bahsese de doenças do seio mama para o bahsese de diarréias para dor de ca beça dor de barriga dor de dentes dores musculares etc Os especialistas também podem ser acionados para infernizar a vida de seus desafetos podendo provocar a aceleração de partículas para atacar ou contraatacar por exemplo ao invocar raios e trovoadas de grande intensida de sobre uma casa ou sobre uma pes soa Podem também acionar os bichos sobretudo as cobras venenosas para atacar um inimigo Outra possibilidade de ação do especialista é o uso de rou pa sutiró de predadores para certas fi nalidades Minha experiência pessoal foi ter meu avô paterno yai chamado Pon ciano yai como interlocutor quando era adolescente Ele me contava suas aventuras de especialista e como acionava as partículas ou fenômenos naturais para atacar seus desafetos Assim fez até estar à beira de sua morte Atualmente tenho meu pai o kumu Ovídio Lemos Barreto como seu sucessor Outro 8kumu é meu tio Manoel Lima Tuyuca e o meu irmão José Maria Barreto está a caminho de se tornar kumu Os três atuam no Bahserikowii O centro acabou de ser inaugurado e ainda não sabemos como será seu futuro mas nossa intenção é que ele possa fortalecer os conhecimentos in dígenas nos confl itos ontológicos com a medicina mas fortalecendo também as alianças possíveis para tratamentos que possam articular essas diferentes formas de curar e viver 611 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Bahserikowi Centro de Medicina Indígena da Amazônia NOTAS 1 Indígena do povo Yepamahsã Tuka no nascido na aldeia São Domingos no município de São Gabriel da Cachoeira AM Graduado em Filosofi a Mestre e Doutorando em Antropologia Social pelo programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Fe deral do Amazonas Pesquisador do Nú cleo de Estudos da Amazônia Indígena NEAI e Idealizador do Centro de Me dicina Indígena 2 Quero agradecer ao Professor Gilton Mendes dos Santos e a Professora Valéria Macedo pelo apoio e incentivo para es crever este texto Trocas de idéias e suas sugestões foram fundamentais para a cons trução do texto 3 A concepção de organização de espaços cósmicos como espaço aquático terra fl oresta e aéreo foi em minha Dissertação de Mestrado autor 2013 Nesse trabalho apenas o espaço aquático foi trabalhado com detalhes como base para a discus são da presença dos waimahsã no universo aquático Posteriormente o espaço terra fl oresta foi trabalhado por Dagoberto Azevedo 2016 e o espaço aéreo por Ga briel Maia 2016 4 Um exercício de refl exividade coletiva de um grupo de estudantes indígenas de pósgraduação em Antropologia So cial no âmbito do projeto Rios e Redes desenvolvidos pelo Núcleo de Estudo da Amazônia IndígenaNEAI permitiu conceituar os conhecimentos Tukano em três grandes campos de conhecimentos que são Kihtiukuse bahsese e bahsamori doravante denominamos de trindade por razão de ser uma coisa indivisível do ponto de vista dos especialistas indíge nas Tukano O resultado dessa pesquisa conjunto vai ser publicado com o Título OMERÕ Constituição e circulação dos conhecimentos Yepamahsã tukano no prelo 5 Bahsese foi trabalhado pelo Dagoberto Azevedo Tukano em 2016 na disser tação de Mestrado com uma riqueza de detalhes sobre os conjuntos de bahsese benzimentos acionados pelos especia listas indígenas nas suas experiências co tidianas seja para comunicar com os se res que habitam nos domínios da terra fl oresta a assepsia de alimentos e bahsese para acionar princípios curativos e pro tetivos 6 Bahsamori foi trabalhado pelo Gabriel Sodré Maia Tukano em 2016 na disser tação de Mestrado no qual trata das prá ticas sociais dos povos indígenas do Alto Rio Negro as práticas sociais doravante denominados de rituais acompanhando o calendário cosmológicos e seus bioindica dores Mostrando que as práticas sociais são meios de atualização e circulação de conhecimentos 7 Para os povos indígenas do alto Rio Ne gro todos os alimentos frutas peixes caça até mesmo a água são tidos como veículos de doenças que necessariamente devem passar pela assepsia para neutralizar o potencial de causar as doenças REFERÊNCIAS Azevedo DL 2016 Forma e Conteúdo do Bahsese Yepamahsã Tukano Fragmentos Do Espaço DiTaNuhku TerraFlores ta Dissertação de Mestrado Antropolo gia Social Universidade Federal do Ama zonas ManausAM Barreto João Paulo Lima 2013 WaiMah sã Peixes e Humanos um ensaio de An tropologia Indígena Manaus dissertação de mestradoPPGAS UFAM 612 Amazôn Rev Antropol Online 9 2 594 612 2017 Barreto J P L Maia GS 2016 Bahsamori o tempo as estações e as etiquetas sociais dos Yepa mahsã tukano Dissertação de Mestrado Antropologia Social Universidade Federal do Amazonas ManausAM OMERÕ 2015 Constituição e circulação dos conhecimentos Yepamahsã tukano no prelo