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A PARTE QUE NÃO FALTA NA UNIVERSIDADE Mônica de Menezes Santos Universidade Federal da Bahia Um ser incompleto com cara de pizza faltando um pedaço1 vaga pelo mundo em busca daquilo que lhe falta E nesse vagar por planícies montanhas pântanos e matagais procurando preencher a lacuna esse ser deparase com situaçõesemoções que o mundo tem a lhe oferecer o ardor do sol o frescor da chuva o álgido da neve o aroma da flor a leveza da borboleta a imensidão dos oceanos o encontro com os mais diversos seres minhocas besouros outras partes pequenas grandes pontudas quadradas escorregadias delicadas inadequadas Ao passo que procura o ser incompleto também vive aventuras experimenta quedas tropeços desilusões e a alegria de existir apesar do que falta Oh busco a parte que falta em mim por terras e mares sem fim asse o pudim faça o quindim estou buscando a parte que falta em mim SILVERSTEIN 2013 ele cantava Até que um dia encontra aquilo que procura a parte que tem a medida certa do encaixe a parte que lhe falta E ao ter colada nele aquela que seria a última peça de um quebracabeça embora imaginasse que finalmente seria pleno feliz descobre que a vida é muito mais complexa do que imaginava Rolou para longe e por estar completo rolou mais rápido Mais rápido Do que jamais rolara Tão rápido que nem podia parar para conversar com uma minhoca ou sentir o aroma de uma flor rápido demais para que a borboleta pousasse nele Idem Ao se tornar inteiro o ser perde a possibilidade de viver novas experiências e por isso opta por permanecer faltando sempre a vagar a viver na travessia por planícies montanhas pântanos e matagais E talvez a melhor conclusão do livro possa ser retirada de um verso de um poema de Manuel de Barros A maior riqueza do homem é a sua incompletude BARROS 1998 1 Fabrício Corsaletti no texto da quarta capa O certo é que este é um livro infantojuvenil de um autor conhecido por escrever obras embora aparentemente simples sobretudo pela extensão normalmente são bem curtos os seus livros e pelas características das ilustrações sem ornamentações extremamente densas para as crianças Shel Silverstein escritor norte americano que ficou conhecido como um autor que fazia para crianças uma literatura descrita como Whimsical que pode ser traduzido como algo incomum estranho em um sentido engraçado ou incômodo O seu primeiro livro A árvore generosa 1969 foi considerado por seu editor Willian Colle inadequado pois O problema com esse seu livro é que não é um livro pra crianças triste demais e também não é para adultos simples demais COLLE apud BELLÉ 2014 O comentário do editor de Silverstein reafirma uma compreensão não rara de que a literatura infantojuvenil deve se abster de temas tristes densos Mais do que isso de que a literatura infantojuvenil deve ser simples acessível divertida de estrutura e linguagem fáceis bem diferente da literatura destinada ao adulto Com o objetivo de expandir as discussões acerca do que se julga adequado ou não para as crianças e adolescentes reportome a outra obra infantojuvenil uma brasileira agora e a alguns episódios ocorridos em torno dela O ritual no Jardim romance do escritor baiano Mayrant Gallo que foi recusado por algumas editoras porque seus analistas consideraram ser a obra inapropriada para a faixa etária em questão conforme nos atesta o próprio autor em depoimento enviado por email uma editora do Rio de Janeiro e esta talvez tenha sido a melhor resposta que recebi frisou que o livro tinha valor mas não era uma obra destinada ao público infantojuvenil Uma terceira de São Paulo alegou que os leitores jovens não teriam capacidade de compreender a descontinuidade dos capítulos2 A história em resumo narra as traquinagens indagações descobertas e tragédias na vida de três crianças os irmãos Fifi Bebel e Dudu em uma Rio de Janeiro atemorizada por notícias que pelo rádio chegavam da Segunda Grande Guerra e desbotavam os ensolarados dias de verão daquela família de classe média Tratase portanto de um enredo simples Todavia duas questões fizeram com que os editores considerassem ser a obra inadequada para o público infantojuvenil alguns dos temas aludidos no livro e ainda o caráter fragmentário da narrativa 2 Depoimento de Mayrant Gallo enviado por email em 06 de maio de 2011 Grifo meu No que se refere aos temas a obra aborda de modo bastante sutil poético delicado questões como morte e doença infantil preconceito social e racial pobreza violência sexualidade guerras etc No fragmento Bebel revelada por exemplo o tema é a descoberta da sexualidade pela personagem que tem 9 anos de idade Eis um trecho Vento violento entrando esvoaçando a leveza do quarto Da cômoda voam papéis vão ao chão ornatos leves Uma revista sofre no ar sérias avarias Passa a fúria inicial descai fria brisa circulando Circulando em torno ao corpinho nu de Bebel que se contrai pleno de desejos GALLO 2011 p 102 Não obstante Freud já tenha chocado a sociedade de sua época mapeando diferentes fases da sexualidade infantil e assim rompendo com a imagem da criança como um ser inocente assexuado e depois dele tantos outros já apresentaram estudos a respeito esse é ainda um dos temas tabus na literatura destinada à infância e à adolescência mesmo na contemporaneidade pois apesar das imensas transformações nos modos de conceber a infância desde a sua emergência até os dias atuais existe ainda uma compreensão por parte de alguns autores pais e professores de que para crianças e adolescentes não serve o que se julga feio sujo estranho triste não é permitido o conhecimento do corpo do sexo da morte Há inclusive receitas sobre o que escrever como escrever que linguagens utilizar e de quais assuntos tratar na produção de obras para crianças e adolescentes conforme depoimento de Bartolomeu Campos de Queirós reconhecido por obras que fogem aos estereótipos do gênero o qual diz espantarse com pessoas capazes de traçar cânones normas ensinando como construir um texto para os pequenos muito diálogo muita ação frases curtas sem esquecer o humor Nada de tristezas QUEIRÓS 1997 p 4243 Ainda sobre O ritual no jardim acredito que muito mais que as temáticas foi por conta da estrutura fragmentada e supostamente demasiado difícil da obra para crianças e adolescentes que a obra foi recusada por muitos editores O romance é composto de pequenos contos 90 ao todo nesta edição com a qual trabalho que para usar as palavras do próprio autor foram ordenados atemporal e livremente sob a ótica da cronologia dos instintos infantis GALLO 2011 p 4 Mas além dessa desordem autoral e talvez mais por isso o próprio leitor poderá montar e remontar a história de acordo com o seu desejo uma vez que os fragmentos podem funcionar como peças de um mosaico um divertido brinquedo um local de trabalho aberto às interferências deste que se configurará como um coautor da narrativa o leitor No caso o leitor infantojuvenil Foi Walter Benjamin quem nos ensinou no seu seminal ensaio Livros infantis velhos e esquecidos que os fragmentos os resíduos os locais de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível interessam especialmente às crianças uma vez que as mesmas têm aptidão para os detritos para as sobras Restos de madeiras retalhos de tecidos pedaços de tijolos etc atraem as crianças muito mais que os brinquedos prontos pois a partir desses produtos residuais elas poderão constituir seu próprio mundo de coisas um pequeno mundo inserido no grande BENJAMIN 2002 p 58 Aliandonos as proposições do filósofo alemão não poderíamos pensar que se as crianças têm aptidão pelos materiais residuais com os quais poderão montar seu próprio mundo não estariam elas aptas a lidar com obras fragmentadas como a escrita por Mayrant Gallo Não seriam elas capazes de ler compreender interagir e participar do jogo narrativo proposto por esse autor A literatura infantojuvenil é o único gênero literário designado a partir de seu leitor tendo surgido justamente quando se construiu a ideia de particularidade infantil que diferencia a criança do adulto E essa especificidade do público é determinante para a escolha da linguagem dos temas e da forma da abordagem dos temas pois a criança supostamente não experienciou os mesmos acontecimentos que os adultos nem recebeu a mesma carga de conhecimento e portanto seguindo essa linha de raciocínio não seria capaz de apreender as mesmas informações e com a mesma linguagem Por isso ao escrever para uma criança um adulto necessitaria adequar seu discurso a esse outro Esse empenho de adequação é o que macula muitas vezes o gênero pois o autor corre o risco de incorrer numa postura superior formadora pedagógica O esforço de adaptação que origina o gênero é o responsável por exemplo pela simplificação banalizadora que marca muitas obras infantojuvenis brasileiras Mas esse mesmo esforço pode também na contramão resultar na produção de obras polissêmicas altamente metafóricas e metonímicas nas quais o diálogo entre os diferentes o adulto e a criança se estabelece para além da pedagogia da moralidade da vontade de um adulto de formar uma criança como é o caso a meu ver de A parte que falta de Shel Silverstein e O ritual no jardim de Mayrant Gallo A simplificação banalizadora referida acima que assinala muitas obras infantojuvenis brasileiras também é percebida pela estudiosa Ana Maria Clark Peres no ensaio Literatura infantojuvenil para que fazer Ao dar conta ainda que sumariamente de pesquisa realizada por ela na qual cotejou títulos destinados à infância e à adolescência publicados em 1ª edição na Argentina e no Brasil em 2007 Peres identifica nas obras brasileiras cuidado na preparação e impressão dos originais com destaque para ilustrações inventivas inovação temática apresentação de temas caros à contemporaneidade mas ainda persistência do didatismo via por exemplo livros de autoajuda ou repletos de lições de ecologia entre outras apelo ao infantil através de uma simplificação da linguagem textos com frases sempre curtas em registro necessariamente coloquial presença quase obrigatória do humor final feliz resolução dos conflitos busca de harmonia etc PERES 2008 p 08 A estudiosa informa que no mercado brasileiro nesses primeiros anos do século XXI têm sido lançadas maciçamente produções destinadas à infância e à adolescência sendo que muitas delas apresentam textos instigantes que não pressupõem leitores incapazes débeis No entanto segundo ela isso não se dá com a maioria Obviedades repetições lugares comuns e um tom falsamente maternal marcado por diminutivos são alguns dos traços de uma considerável parte da literatura infantojuvenil produzida no Brasil na atualidade Traços estes que certamente deixariam Walter Benjamin indignado se considerarmos que para ele a criança exige do adulto uma representação clara e compreensível mas não infantil BENJAMIN 2002 p 57 Essa postura pedagógica adotada pela literatura infantojuvenil desde o seu surgimento gerou e ainda gera desconfianças por parte de setores especializados da teoria e da crítica literária dificultando sua legitimação enquanto disciplina a ser estudada nos Cursos de Letras principalmente porque o gênero não disfarça sua suscetibilidade às interferências externas especialmente à pedagogia e ao mercado e apesar das revoluções teóricas ocorridas pós 1968 com o pósestruturalismo o qual mudou radicalmente as formas de se entender a literatura em sua relação com o contexto e com o próprio homem e também a própria compreensão do que é literatura existe ainda uma crença por parte de muitos estudiosos da literatura na autonomia da arte Assim sendo um texto como o da literatura infantojuvenil tão eivado por motivações e desejos externos não seria digno de pertencer ao rol daqueles considerados belas letras Sobre a questão da dificuldade de legitimação dos textos literários destinados à infância e a adolescência na academia o professor da Cardiff University no Reino Unido Peter Hunt autor reconhecido de inúmeras obras teóricas críticas e historiográficas sobre o tema que publicou no Brasil pela Cosac Naify o livro Crítica teoria e literatura infantil compreende que para muitos acadêmicos a literatura infantil não é assunto ou melhor dizendo não é um assunto adequado ao estudo acadêmico HUNT 2010 p 27 e elenca alguns dos motivos para tal desconsideração que seriam as supostas simplicidade efemeridade acessibilidade e a destinação das obras a um público definido como inexperiente e imaturo Mas é ele também que elenca alguns dos motivos para se estudar a literatura infantojuvenil na universidade dentre os quais destaco a o fato de as obras infantojuvenis alcançarem grande influência social e educacional e de serem importantes tanto em termos políticos quanto econômicos b a questão de as obras destinadas à infância e a adolescência serem do ponto de vista histórico uma contribuição valiosa à história social literária e bibliográfica e do ponto de vista contemporâneo vitais para a alfabetização e para a cultura c e ainda porque tais textos estão entre os mais interessantes e experimentais no uso de técnicas de multimídias combinando palavra imagem forma e som Como professora de literatura infantojuvenil no Curso de Letras da Universidade Federal da Bahia corroboro com os argumentos de Hunt e enumero outros a partir da minha experiência pois tenho percebido um crescente interesse por parte dos discentes alunos do curso de letras e de pedagogia em se debruçarem criticamente sobre o texto literário destinado à infância e à adolescência A explicação para procura dos alunos consiste a meu ver no fato desses dois cursos serem responsáveis pela formação de professores para o ensino fundamental e médio os quais em sala de aula inevitavelmente necessitarão trabalhar ou já trabalham com a leitura do texto destinado à infância e à adolescência A procura pela disciplina consiste portanto numa demanda mais das vezes política dos alunosprofessores por métodos que os auxiliem no trabalho em sala de aula com texto literário infantojuvenil Especialmente porque as salas de aula dos ensinos fundamental e médio podem e devem se configurar em palcos para o debate de questões cruciais que têm emergido no cenário brasileiro contemporâneo tais como os preconceitos raciais étnicos e linguísticos a homofobia entre outras coisa Temas estes que povoaram e atualmente ainda povoam os livros infantojuvenis Dessa forma para condução de tais debates bem como para uma leitura crítica e contextualizada dessas obras exigese cada vez mais o envolvimento e o preparo do professor O que reitera a necessidade de se edificar um lugar cada vez mais potente para o ensino e a pesquisa da literatura infantojuvenil no âmbito dos estudos literários acadêmicos Considero ainda que é importante estudar literatura infantojuvenil considerando o que Silviano Santiago chama de ato critico Para o estudioso mineiro por conta do texto literário ter se tornado uma mercadoria o grande desafio hoje é a leitura crítica das obras contemporâneas pelo viés da qualidade SANTIAGO 2004 p 167 Qualidade pra mim no que se refere à literatura infantojuvenil tem a ver principalmente com o modo como essa literatura dialoga com os seus provavéis leitores as crianças e os adolescentes Em meio a imensa quantidade de obras de literatura infantojuvenil publicadas anualmente no Brasil urge discutir problematizar enfim urge expor as motivações para o menosprezo que muitas produções impingem aos seus leitores E na minha concepção é na da universidade no lugar no qual são formados professores que devemos engendrar esse espaço para a construção de uma pedagogia mais digna porque é claro que não podemos nos furtar à pedagogia Além disso também é importante estudar literatura infantojuvenil porque a mesma é literatura e para além dos conhecimentos históricos linguísticos antropológicos que pode transmitir a literatura é como nos ensina Deleuze um empreendimento de saúde A leitura da A parte que falta ou de O ritual no jardim pelas crianças por exemplo obras que além de serem escritas numa linguagem altamente metafórica e de não subestimarem o leitor infantojuvenil abordam com coragem e sutileza temas essenciais para a formação da crianças fazem as crianças experimentarem antes de vivenciarem a complexidade da vida através contato com os primeiros aspectos da existência humana Por tudo isso essa parte o estudo da literatura infantojuvenil não deve faltar na Universidade Referências BARROS Manuel de Retrato do artista quando coisa Rio de Janeiro Record 1998 BELLÉ Junior Era uma vez A densidade da literatura infantil In Revista da Cultura no 78 São PauloJaneiro de 2014 GALLO Mayrant O ritual no jardim In Três infâncias Anajé Casarão do verbo 2011 HUNT Peter Crítica e literatura infantil In Crítica teoria e literatura infantil Trad Cid Knipel São Paulo Cosac Naify 2010 QUEIRÓS Bartolomeu Campos de Menino temporão In PAULINO Graça org O jogo do livro infantil textos selecionados para formação de professores Belo Horizonte Dimensão 1997 p 4243 SANTIAGO Silviano A crítica literária no jornal In O cosmopolitismo do pobre Belo Horionte Ed da UFMG 2004 p 157167 PERES Ana Maria Clark Literatura infantojuvenil para que fazer In Suplemento literário de Minas Gerais nº 1306 Belo Horizonte out de 2007 Secretaria do Estado de Minas Gerais SILVERSTEIN Shel A parte que falta Trad Alípio Correia de Franca Neto São Paulo Cosac Naify 2013 Ilustrações do autor