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História ·
Método Didático
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Eloiza Dias Neves\nProfessora Adjunta\nUFF / PUC\nSiape 014508915\n\nCAPÍTULO\n\n5\n\nO SABER E AS\nFIGURAS DO APRENDER\n\nNascer é ingressar em um mundo no qual estar-se-á submetido à obrigação de\naprender. Ninguém pode escapar dessa obrigação, pois o sujeito só pode \"tor-\nnar-se\" apropriando-se do mundo.\n\nSão muitas as maneiras, no entanto, de apropriar-se do mundo, pois exis-\ntem muitas \"coisas\" para aprender. Aprender pode ser adquirir um saber, no\nsentido estrito da palavra, isto é, um conteúdo intelectual (\"meter coisas na\ncabeça\", como os jovens dizem): significa, então, aprender a gramática, a ma-\ntemática, a data da batalha de Marignan, a circulação do sangue, a história da\narte... Mas, aprender pode ser também dominar um objeto ou uma atividade\n(atar os cordões dos sapatos, nadar, ler...), ou entrar em formas relacionais\n(cumprimentar uma senhora, seduzir, mentir...). A questão do \"aprender\" é\nmuito mais ampla, pois do que a do saber¹. É mais ampla em dois sentidos:\nprimeiro, como acabo de ressaltar, existem maneiras de aprender que não con-\nsistem em apropriar-se de um saber, entendendo como conteúdo de pensamen-\nto; segundo, ao mesmo tempo em que se procura adquirir este tipo de saber,\nmantém-se, também, outras relações com o mundo.\n\nDesse segundo ponto é que partirei. Qualquer tentativa para definir um\npro sujeito de saber? obriga, in fine, a reintroduzir na discussão outras di-\mensoes do sujeito. Sistematicamente, qualquer tentativa para definir \"o saber\"\nfaz surgir um sujeito que mantém com o mundo uma relação mais ampla do\nque a relação de saber. BERNARD CHARLOT\n\n1 Não há saber sem relação com o saber\n\nAdquirir saber permite assegurar-se um certo domínio do mundo no qual se\nvive, comunicar-se com outros seres e partilhar o mundo com eles, viver certas\nexperiências e, assim, tornar-se maior, mais seguro de si, mais independente.\nExistem outras maneiras, entretanto, para alcançar os mesmos objetivos. Pro-\ncura-se saber e instalar-se num certo tipo de relação com o mundo; mas exis-\ntem outros. Assim, a definição do homem enquanto sujeito de saber se con-\nfirma à pluralidade das relações que ele mantém com o mundo.\n\nÉ o caso da filosofia clássica, que define a essência do homem pela Razão,\na mente, o entendimento; em suma, qualquer que seja o nome que lhe é dado,\npela faculdade que lhe permite ser um puro sujeito de saber. Ao longo de sua\nhistória, embora sob formas variadas, ela encena o combate da Razão contra\nas paixões, as emoções, e, em última instância, o corpo. Trata-se, na verdade,\nde cortar todos os vínculos do sujeito com o mundo, para considerar apenas\numa: a relação do sujeito enquanto Razão com o saber enquanto Ideia.\n\nNão é tão fácil assim, porém, desvelar esse feixe de vínculos que une o\nsujeito, de múltiplas maneiras, com o mundo e com os outros. Dispensar as\npaixões e convocar a Razão é uma bela ambição, mas, para isso, a própria\nRazão não deve ser a máscara com a quais as paixões se escondem. Marx, Freud,\nNietzsche, Bourdieu, Foucault e vários outros têm-nos ensinado que a ideolo-\ngia, o inconsciente, o desejo de poder, a dominação simbólica, a vontade de\ncontrolar, vigiar e punir tomam emprestadas à Razão suas formas e suas argu-\nmentações. A Razão é uma forma de relação com o mundo que constantemente\nse reverte de outras formas, que não pertencem ao domínio da Razão: atrás\ndo sujeito de saber, a análise traz à tona as outras dimensões do sujeito.\n\nSignificaria isso que esse sujeito de saber não passa de um charlatão e um\nescravo? Seria incorrer no erro cometido pelo relativismo epistemológico,\nquando, em nome da impossibilidade de desvincular o sujeito do saber de suas\noutras relações com o mundo, chega a negar toda e qualquer especificidade da\nesse sujeito. Se a Razão (ou qualquer outro nome que se lhe dê por exemplo, a\natividade científica) não é uma forma autônoma de relação com o mundo; em\nainda assim, é uma forma específica. O sujeito de saber desenvolve uma ativi-\ndade que lhe é própria: argumentação, verificação, experimentação, vontade\nde demonstrar, provar, validar. Essa atividade é também a ação do sujeito sobre\nele mesmo: tomar o partido da Razão e do saber é endossar exigências e proi-\nbições relativas a si próprio. Essa atividade implica ainda uma forma de rela-\nção com os outros, percebidos como comunidade intelectual. Por fim, seria\nfácil mostrar que essa atividade do sujeito de saber supõe e sugere uma certa\nrelação com a linguagem e o tempo. Por certo, essa atividade pode ser carregada\n INFORMAÇÃO/CONHECIMENTO/SABER DA RELAÇÃO COM O SABER\n\npelas \"paixões\", pela ideologia, pelo inconsciente, até por um empren-\ndimento voluntário de engodo. Embora um tal processo contradiga sua especificidade\nepistemológica, não a aniquila.\n\nTudo somado, aparece ao mesmo tempo que o sujeito de saber mantém\ncom o mundo uma relação, específica; nem por isso, deixa de estar \"enganjado\"\n em outros tipos de relações com o mundo. Ao contrário, é presa constante de\n um duplo processo, que o incita a retirar-se do mundo (em seu \"lar\", seu jar-\ndim, seu sótão, ou seu laboratório) e que o leva a \"sitiá-lo\" para entender,\nque se o aprenda sob essa forma específica de relação com o mundo. Em\n\noutras palavras, não se poderia, para definir a relação com o saber, partir do\nsujeito de saber (da Razão); pois, para entender o sujeito de saber, é preciso\naprender sua relação com o saber³.\n\nTampouco pode-se partir da questão \"que é o saber?\", isto é, de uma\ndefinição do saber em sua acepção geral. Tal tentativa não deixa de ter interes-\nse, mas chega, conforme vemos, à ideia de que não há saber senão para um\nsujeito \"engajado\" em uma certa relação com o saber.\n\nAssim, J.M. Monteil (1985) dedica-se a distinguir a informação, o conhe-\ncimento, a saber. A informação é um dado que é objeto, pode ser arma-\nzenada, estocada, inclusive em um barulho de dados; está \"sob a primazia da\nobjetividade\". O conhecimento é o resultado de uma experiência pessoal liga-\nda à atividade de um sujeito provido de qualidades afetivo-cognitivas; como\n tal, é \"intransmissível\", está \"sob a primazia da subjetividade\". Assim como a\ninformação, o saber está \"sob a primazia da objetividade\"; mas, é uma infor-\nmatação de que o sujeito se apropria. Desse ponto de vista, é uma informa-\nção, por isso desvirtuada do \"involúcrio dogmático no qual a subjetividade\n tenda a instalá-lo\". O saber é produzido pelo sujeito confrontado a outros su-\n jeitos, é construído em \"quadros metodológicos\". Pode, portanto, \"entrar na\nordem do objeto\"; e torna-se, então, \"um produto comunicável\", uma \"infor-\nmação disponível para outrem\".\n\nA análise parece-me pertinente: não há saber senão para um sujeito, não\nhá saber senão organizado de acordo com relações internas, não há saber se-\n não produzido em uma \"confrontação interpessoal\". Em outras palavras, a\nideia de saber implica a de sujeito, de atividade do sujeito, de relação do sujei-\nto com os outros (que co-constroem, controlam, validam, partilham essa saber).\n\nAs análises de J.M. Monteil, pois, vão ao encontro das de J. Schlanger\n(1978) que, ao interrogar-se sobre o que é o saber, conclui: \"não pode haver se-\nber fora da situação cognitiva, não pode haver saber em si\". \"O saber é uma relação, um produto e um resultado, relação do sujeito que conhece com seu mundo, resultado dessa interação. É verdade que o saber assim produzido aparece a seguir como um objeto autônomo; ou que leva, por exemplo, a falar de um saber encerrado nos livros. Isso, porém, equivale a dar uma forma de substância ao que primeiro é atividade e relação. Como diz muito bem J. Schlanger, não há saber em si, o saber é uma relação. Essa relação, acrescentarei eu, é uma forma de relação com o saber. Ou, ainda: eis a questão da relação com o saber é tão importante, é porque o saber é relação. Essa ideia do saber como relação é ao mesmo tempo apreendida e desconhecida por aqueles que se dedicam a elaborar um inventário empírico dos diferentes tipos de saber (por exemplo, Malglaive, 1990). Assim, existiriam os seguintes: prático, teórico, processual, científico, profissional, operativo, etc. Os tipos de saber são tratados como espécies e classificados em meticulosos inventários à maneira de Linné. Há aí uma intuição correta: o saber não existe senão sob formas específicas. O erro, no entanto, consiste em acreditar-se que o que pode ser assim definido espécies e variedades, quando, na verdade, são formas específicas de relação com o mundo. Tal erro precipita os como têm enormes dificuldades. Assim, que é que, em um saber, possibilita considera-lo “prático”? Não é o próprio saber que é prático, mas sim, o uso que é feito dele, em uma relação prática com o mundo. Essa distinção permite evitar falsos debates. Por exemplo, quando um engenheiro utiliza um enunciado de física dos materiais, deve-se falar em um saber científico ou em um saber prático? Não é porque o engenheiro utiliza para aplicá-lo, em uma prática. Ou seja, em um impasse. Na verdade, esse enunciado não é nem científico, nem prático, como tal. Como tal, é um enunciado, não existindo motivo nenhum para que lhe acrescentem adjetivos. Não obstante, foi produzido em uma relação científica com o mundo (através de experimentação, validação por uma comunidade, etc.) e será reconhecido como científico por qualquer pessoa que se inscreva integralmente em tal relação com o mundo. Esse enunciado, todavia, é mobilizado pelo engenheiro em uma relação prática com o mundo (isto é, em uma relação finalizada e contextualizada). Em outras palavras, a relação com esse saber que é “científica” ou “prática”, não, esse saber em si mesmo. mentos e saberes; e, nesse sentido, é exato dizer-se que há saber nas práticas, mas, novamente, isso não quer dizer que sejam um saber. Mas, replicar-se-á, existem coisas que se aprendem com a prática e que, entretanto, não são sabidas por aqueles que “não têm prática”. Assim, um vendedor ou um professor de escola primária reagirá, “por instinto”, de maneira pertinente, em tal ou qual situação, o que não saberia fazer quem não tivesse a prática da venda ou do ensino. Isso é verdade, mas, ainda, deve ser interpretado. Quem “tem prática” vive em um mundo onde percebe indícios que outros não veriam, dispõe de pontos de referencia e de um leque de respostas para quais outros estariam desprovidos. A prática não é cega, ela tem ferramentas e organiza seu mundo; ela supõe, e produz, o aprender. Mas esse aprender, que é domínio de uma situação, não é da mesma natureza, nem em seu processo, nem em seu produto, que o saber enunciável como saber-objeto, se quiser chamar “saber” (saber prático...) essa forma do aprender, que assim seja. Mas isso equivale a atribuir um mesmo nome a relações com o mundo, processos e produtos que não são da mesma ordem. Essa experiência tem mostrado que isso induz a muita ambigüidade e confusão. Resumamos. Não há jeito de saber e parece há saber sem uma certa relação com o mundo, que vem a ser, ao mesmo tempo e por isso mesmo, uma relação com o saber. Essa relação com o mundo é também relação consigo mesmo e relação com os outros. O saber apresenta-se sob a forma de “objetos”, de enunciados desconexos que supõe relações que parecem ser autônomos, ter existência, sentido e valor por si mesmos e como tais. Esses enunciados, porém, são formas substantivadas (Schlanger, 1978) de uma atividade, de relações e de uma relação com o mundo. Não há saber que não esteja inscrito em relações de saber. O saber é construído como uma história coletiva que é da mente humana e das atividades do homem e estará submisso a processos coletivos de validação, capitalização e transmissão. Como tal, é o produto de relações epistemológicas entre os homens. Não obstante, os homens mantêm com o mundo e entre si (inclusive quando são “homens de ciência”) relações que não são apenas epistemológicas. Assim sendo, as relações de saber são, mais amplamente, relações sociais. Essas relações de saber são necessárias para construir o saber, mas, também, para apoiar-lo após sua construção: um saber científico válido enquanto a comunidade científica o reconhecer como tal, enquanto uma sociedade continuar considerando que se trate de um saber que tem valor e merece ser transmitido. Essa saber de construção coletiva é apropriado pelo sujeito. Isso só é possível se esse sujeito se instalar na relação com o mundo que a constituição desse saber supõe. Não há saber sem uma relação do sujeito com esse saber. me vimos, no entanto, o sujeito jamais é um puro sujeito de saber: mantém com o mundo relações de diversas espécies. Também, um enunciado que possa ser investido em uma relação com o mundo que seja uma relação de saber pode também ser investido em um outro tipo de relação com o mundo: o aluno aprenderá para evitar uma nota baixa ou uma surra, para passar de ano, para ter uma boa profissão mais tarde, para agradar ao professor que considera simpático, etc. Nesse caso, a apropriação do saber é frágil, pois esse saber pouco apoio recebe do tipo de relação com o mundo (descontextualização, objetividade, argumentação...) que lhe dá um sentido específico; e adquire sentido em outro sistema de sentido. Nesse caso também, a apropriação do saber não é acompanhada pela instalação em uma forma específica de relação com o mundo e não surte quase nenhum efeito na formação, nem, tampouco, de “transferência”. As análises precedentes trazem várias consequências, de diversas ordens. Primeiro, uma consequência metodológica. Se postularmos primeiro o sujeito, para iniciar, a seguir, a procura do saber, ou, ao contrário, primeiro o saber, para iniciar a procura do sujeito, fica impossível pensar a relação com o saber. O que devemos postular, de imediato, é essa relação. Segundo, essas análises têm consequências teóricas. Assim, por diversas vezes, tendo falado, em nosso livro de 1992 (Charlot, Bautier e Rochex), em alunos para quem o saber “tem um sentido e um valor como tal”. Existe aí uma insuficiência na expressão e na análise. De modo geral, os saberes nascem das relações induzidas e supostas por sua apropriação. Em outras palavras, um saber só tem sentido e valor por referência às relações que supõe e produz com o mundo, consigo, com os outros. Por fim, essas análises têm, muito evidentemente, importantes conseqüências pedagógicas. Se o saber é relação, o processo que leva a adotar uma relação de saber com o mundo é que deve ser o objeto de uma educação intelectual e, não, a acumulação de conteúdos intelectuais. Cuidado, porém: esse processo não é puramente cognitivo e didático. Trata-se de levar uma criança a inscrever-se em um certo tipo de relação com o mundo, consigo e com os outros, que proporciona prazer, mas sempre implica a renúncia, provisória ou profunda, de outras formas de relação com o mundo, consigo e com os outros. Nesse sentido, a questão do saber sempre é uma questão identitária, também. Entende-se melhor, assim, a profundidade das novelas que Annie Arnaut dedicou à sua história de escola (notadamente, Les armoies vides, 1974) e a pertinência do termo “trânsfuga” que J.P. Terrail utiliza para designar essas crianças. de famílias populares que mudam de mundo graças ao sucesso escolar (Terrail, 1990). Ainda no plano pedagógico, entende-se melhor também o erro dos que, há vários anos, invadem os meios de comunicação de massas para combater, em nome da Razão, qualquer tentativa de inovação pedagógica. Pretendem-se os herdeiros dos que travaram, ao longo da História, o combate da Razão contra paixões (versão filosófica), ou contra o obscurantismo (versão republicana). Nobre e grande ambição, louvável exigência ética e política, que nos lembra que o homem é passível de educação e que o acesso às formas mais elaboradas da atividade intelectual é virtualmente prometido a todo indivíduo que pertença à espécie humana. Endosso esse princípio e essa exigência. Mas isso não resolve o problema da educação, que é precisamente o de saber como pode ser atualizado o que é dado ao homem apenas potencialmente; como a Razão humana, presente de maneira virtual em cada criança, o consegue efetivamente. Para responder essa pergunta, a filosofia clássica desenvolvia uma teoria da depuração: a disciplina liberta a criança das paixões, das emoções, do mal, etc., e a Razão triunfa. Para responder, de minha parte, procurarei compreender qual é o tipo de relação com o mundo e com o saber que a criança deve construir, com a ajuda da escola, para ter acesso ao pleno uso das potencialidades escondidas na mente humana. O discurso sobre a Razão que alguns intelectuais espalham nos meios de comunicação de massas apresenta a particularidade de não responder essa pergunta e, até, de não permitir, de maneira obstinada, que ela seja feita? O combate não é mais o da Razão contra as paixões, mas o da Razão contra a Pedagogia! Não é isso senão um conservadorismo social e pedagógico, pudicamente coberto pelo véu de Condorcet! Com efeito, a Razão está virtualmente presente em cada homem, seu uso torna-se otimizado somente através da educação; uma educação que permita descobrir outra forma de relação com o mundo que não a construída no dia-a-dia das famílias populares. Negar-se a tomar em consideração as dificuldades específicas enfrentadas pelos filhos das famílias populares para acessar ao uso otimizado da Razão é querer negar-lhes o acesso a esse uso; e isso, em nome da universalidade da Razão! A defesa dos privilégios em nome do universal é a força profunda de todas as ideologias, tanto mais mistificadoras, no caso, quanto se apresentam como portadoras dos direitos da Razão. 2 As figuras do \"aprender\" Todo ser humano aprende; e não aprende-se, não se tornaria humano. Aprender, no entanto, não equivale a adquirir um saber, entendendo como conteúdo intelectual: a apropriação de um saber-objeto não é senão uma das figuras do aprender. Há aí uma questão-chave para compreender-se a experiência escolar; e, particularmente, a experiência do fracasso escolar. Quando começamos nossa pesquisa sobre os \"colégios\", apresentamos que aprender nem sempre tinha o mesmo sentido para os docentes e para os alunos. Conhecíamos esta cena, uma questão clássica: o professor envia uma criança para o quadro e pede-lhe pra recitar a lição, o aluno rapidamente perde pé, o professor o manda de volta a seu lugar, censurando-o rudemente por não ter aprendido (\"como sempre...\"), o aluno sai resumindo (\"eu tinha aprendido isso...\"). Muitas vezes, o aluno está de boa fé, o professor também: acontece que eles não dão o mesmo sentido da palavra aprender. Mesmo preparados, nos surpreendemos muitas vezes com a extensão dos mal-entendidos. O exemplo mais marcante que eu conheço foi-me dado por uma estudante: ao interrogar uma criança de sete anos de idade, que repetia a segunda série, e lhe perguntar o que fazia, quando não conseguia ler uma palavra, recebeu esta resposta: \"se eu não sei ler uma palavra, leio outra\". A resposta é lógica, ao menos, na lógica desse aluno que, como muitos outros, mantêm uma relação binária com o saber: só se pode aprender o que já se sabe; quando não se sabe, não se pode aprender. De maneira mais geral, muitos alunos instalam-se em uma figura do aprender que não é pertinente para a aquisição de saber e, portanto, para seu exercício na escola. 2.1 As figuras do aprender: referências Façamos o inventário das figuras sob as quais o saber e o \"aprender\" se apresentam para as crianças. As crianças são confrontadas com a necessidade de aprender, ao encontrarem, em um mundo já presente: objetos-saberes, isto é, objetos aos quais um saber está incorporado: livros, monumentos e obras de arte, programas de televisão \"culturais...\"; objetos cujo uso deve ser aprendido, desde os mais familiares (escova de dentes, cordões do sapato...) até os mais elaborados (máquina fotográfica, computador...); atividades a serem dominadas, de estatuto variado: ler, nadar, desmontar um motor; dispositivos relacionais nos quais há que entrar e formas relacionais das quais se devem apropriar, quer se trate de agradecer, quer de iniciar uma relação amorosa. Ante esses objetos, essas atividades, esses dispositivos e formas, o indivíduo que \"aprende\" não faz a mesma coisa; o aprendizado não passa pelos mesmos processos. Existe aí um problema cuja dimensão não é apenas cognitiva e didática. A questão é mais radical: aprender será exercer que tipo de atividade? Analisar esse ponto é trabalhar a relação com o saber enquanto relação epistêmica. Essa abordagem epistêmica, no entanto, não esgota o inventário das figuras do aprender. Aprender, é exercer uma atividade em situação: em um local, em um momento da sua história e em condições de tempo diversas, com ajuda de pessoas que ajudam a aprender. A relação com o saber é relação com o mundo, em um sentido geral, mas é, também, relação com esses mundos particulares (meios, espaços...) nos quais a criança vive e aprende. A esse respeito, não posso propor um inventário tão formalizado como aquele que acabo de elaborar no nível epistêmico; isso requer pesquisas. Posso, entretanto, adiantar alguns pontos de referências. Os locais nos quais a criança aprende possuem estatutos diferentes do ponto de vista do aprendizado. Alguns são simplesmente locais onde se vive (por exemplo, um conjunto residencial). Outros dedicam-se a uma atividade específica que não é a educação ou a instrução (por exemplo, a empresa). Outros, por fim, têm como função própria a de educar, instruir, formar: um local pode, aliás, assumir várias funções, que se sobrepõem. A família é espaço de vida, célula econômica (de produção ou consumo) e grupo afetivo que dialoga, à atividade espiritual; mas elas contribuem também para formar: é também um espaço de vida. Admitindo-se que as diversas atividades desenvolvidas em uma sociedade não são regidas pela mesma lógica, a importância desta questão surge imediatamente: existem locais mais adequados do que outros para implementar tal ou qual figura do aprender. Nesses locais, as crianças aprendem ao contato de pessoas com as quais mantêm relações, que assumem formas diversas (pais, professores, monitores, animadores esportivos ou socioculturais, mas também vizinhos, amigos...). Mesmo se essas pessoas têm a tarefa específica de instruir ou educar, não podem ser reduzidas a essas tarefas. Assim, um professor instrui e educa, mas é, também, agente de uma instituição, representante de uma disciplina do ensino, indivíduo singular, ou menos, simpático. As relações que um aluno mantém com seu professor são sobreterminadas: são relações com seu saber, com seu profissionalismo, com seu estatuto institucional, com sua pessoa. Uma vez mais, a questão é importante: o aluno pode atribuir outros sentidos a uma relação definida, em princípio, como relação de saber (o professor também, aliás). Por fim, a situação do aprendizado não é apenas marcada pelo local e pelas pessoas, mas também por um momento. Aprender, sob qualquer figura que seja, é sempre aprender em um momento de minha história, mas, também, 68\nBERNARD CHARLOT\n\nem um momento de outras histórias: as da humanidade, da sociedade na qual eu vivo, do espaço no qual eu aprendo, das pessoas que estão encarregadas de ensinar-me. “A relação pedagógica é um momento, isto é, um conjunto de percepções, de representações, de projetos atuais que se inscrevem em uma apropriação dos passados individuais e das projeções - que cada um constrói - do futuro”13. Novamente, é importante a questão: aprende-se porque se tem oportunidades de aprender, em um momento em que se está, mais ou menos, disponível para aproveitar essas oportunidades; às vezes, entretanto, a ocasião não voltará a surgir: aprender é, então, uma obrigação (ou uma “chance” que se deixou passar).\n\nQualquer que seja a figura do aprender, o espaço do aprendizado é, portanto, um espaço-tempo partilhado com outros homens. O que está em jogo nesse espaço-tempo não é meramente epistêmico e didático. Estão em jogo também relações com os outros e relações consigo próprio: quem sou eu, para os outros e para mim mesmo, eu sou capaz de aprender isso, ou que não o consigo?\n\nAnalisar esse ponto é trabalhar a relação com o saber enquanto relação identitária.\n\nVoltar-e, sucessivamente, a essas questões, a epistêmica e a identitária.\n\n2.2 A relação epistêmica com o saber\n\no inventário das figuras do aprender permite encontrar as três formas de relação epistêmica com o saber, que identificamos a partir dos discursos dos colegas (Charlot, Bautier e Rochex, 1992).\n\nDo ponto de vista epistêmico, aprender pode se apropriar-se de um objeto virtual (o “saber”), encarando em objetos empíricos (por exemplo, os livros), abrigado em locais (a escola...), possuído por pessoas que já percorreram o caminho (os docentes...). Aprender, então, é “colocar coisas na cabeça”, tomar posse de saberes-objeto, de conteúdos intelectuais que podem ser designados, de maneira precisa (o teorema de Pitágoras, os galo-roman...s...), ou imprecisa (“na escola, se aprende um montão de coisas”). Aprender é uma atividade de apropriação de um saber que não se possui, mas cuja existência é depositada em objetos, locais, pessoas. Essas, que já trilharam o caminho que eu devo seguir, podem ajudar-me a aprender, isto é, executar uma função de acompanhamento, de mediação. Aprender é passar da não-posse à posse, da identificação de um saber virtual à sua apropriação real. Essa relação epistêmica é relação com um saber-objeto. Ora, o saber só pode assumir a forma de objeto através da linguagem; melhor ainda, da linguagem escrita, da qual me confere uma existência aparentemente independente de um sujeito (Lahire, 1993a e b). Também, chamamos objetivação-denominação o processo epistêmico que constituiu, em um mesmo movimento, um saber-objeto e um sujeito consciente de ter-se apropriado do saber. O saber aparece então como existente em si\n
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Eloiza Dias Neves\nProfessora Adjunta\nUFF / PUC\nSiape 014508915\n\nCAPÍTULO\n\n5\n\nO SABER E AS\nFIGURAS DO APRENDER\n\nNascer é ingressar em um mundo no qual estar-se-á submetido à obrigação de\naprender. Ninguém pode escapar dessa obrigação, pois o sujeito só pode \"tor-\nnar-se\" apropriando-se do mundo.\n\nSão muitas as maneiras, no entanto, de apropriar-se do mundo, pois exis-\ntem muitas \"coisas\" para aprender. Aprender pode ser adquirir um saber, no\nsentido estrito da palavra, isto é, um conteúdo intelectual (\"meter coisas na\ncabeça\", como os jovens dizem): significa, então, aprender a gramática, a ma-\ntemática, a data da batalha de Marignan, a circulação do sangue, a história da\narte... Mas, aprender pode ser também dominar um objeto ou uma atividade\n(atar os cordões dos sapatos, nadar, ler...), ou entrar em formas relacionais\n(cumprimentar uma senhora, seduzir, mentir...). A questão do \"aprender\" é\nmuito mais ampla, pois do que a do saber¹. É mais ampla em dois sentidos:\nprimeiro, como acabo de ressaltar, existem maneiras de aprender que não con-\nsistem em apropriar-se de um saber, entendendo como conteúdo de pensamen-\nto; segundo, ao mesmo tempo em que se procura adquirir este tipo de saber,\nmantém-se, também, outras relações com o mundo.\n\nDesse segundo ponto é que partirei. Qualquer tentativa para definir um\npro sujeito de saber? obriga, in fine, a reintroduzir na discussão outras di-\mensoes do sujeito. Sistematicamente, qualquer tentativa para definir \"o saber\"\nfaz surgir um sujeito que mantém com o mundo uma relação mais ampla do\nque a relação de saber. BERNARD CHARLOT\n\n1 Não há saber sem relação com o saber\n\nAdquirir saber permite assegurar-se um certo domínio do mundo no qual se\nvive, comunicar-se com outros seres e partilhar o mundo com eles, viver certas\nexperiências e, assim, tornar-se maior, mais seguro de si, mais independente.\nExistem outras maneiras, entretanto, para alcançar os mesmos objetivos. Pro-\ncura-se saber e instalar-se num certo tipo de relação com o mundo; mas exis-\ntem outros. Assim, a definição do homem enquanto sujeito de saber se con-\nfirma à pluralidade das relações que ele mantém com o mundo.\n\nÉ o caso da filosofia clássica, que define a essência do homem pela Razão,\na mente, o entendimento; em suma, qualquer que seja o nome que lhe é dado,\npela faculdade que lhe permite ser um puro sujeito de saber. Ao longo de sua\nhistória, embora sob formas variadas, ela encena o combate da Razão contra\nas paixões, as emoções, e, em última instância, o corpo. Trata-se, na verdade,\nde cortar todos os vínculos do sujeito com o mundo, para considerar apenas\numa: a relação do sujeito enquanto Razão com o saber enquanto Ideia.\n\nNão é tão fácil assim, porém, desvelar esse feixe de vínculos que une o\nsujeito, de múltiplas maneiras, com o mundo e com os outros. Dispensar as\npaixões e convocar a Razão é uma bela ambição, mas, para isso, a própria\nRazão não deve ser a máscara com a quais as paixões se escondem. Marx, Freud,\nNietzsche, Bourdieu, Foucault e vários outros têm-nos ensinado que a ideolo-\ngia, o inconsciente, o desejo de poder, a dominação simbólica, a vontade de\ncontrolar, vigiar e punir tomam emprestadas à Razão suas formas e suas argu-\nmentações. A Razão é uma forma de relação com o mundo que constantemente\nse reverte de outras formas, que não pertencem ao domínio da Razão: atrás\ndo sujeito de saber, a análise traz à tona as outras dimensões do sujeito.\n\nSignificaria isso que esse sujeito de saber não passa de um charlatão e um\nescravo? Seria incorrer no erro cometido pelo relativismo epistemológico,\nquando, em nome da impossibilidade de desvincular o sujeito do saber de suas\noutras relações com o mundo, chega a negar toda e qualquer especificidade da\nesse sujeito. Se a Razão (ou qualquer outro nome que se lhe dê por exemplo, a\natividade científica) não é uma forma autônoma de relação com o mundo; em\nainda assim, é uma forma específica. O sujeito de saber desenvolve uma ativi-\ndade que lhe é própria: argumentação, verificação, experimentação, vontade\nde demonstrar, provar, validar. Essa atividade é também a ação do sujeito sobre\nele mesmo: tomar o partido da Razão e do saber é endossar exigências e proi-\nbições relativas a si próprio. Essa atividade implica ainda uma forma de rela-\nção com os outros, percebidos como comunidade intelectual. Por fim, seria\nfácil mostrar que essa atividade do sujeito de saber supõe e sugere uma certa\nrelação com a linguagem e o tempo. Por certo, essa atividade pode ser carregada\n INFORMAÇÃO/CONHECIMENTO/SABER DA RELAÇÃO COM O SABER\n\npelas \"paixões\", pela ideologia, pelo inconsciente, até por um empren-\ndimento voluntário de engodo. Embora um tal processo contradiga sua especificidade\nepistemológica, não a aniquila.\n\nTudo somado, aparece ao mesmo tempo que o sujeito de saber mantém\ncom o mundo uma relação, específica; nem por isso, deixa de estar \"enganjado\"\n em outros tipos de relações com o mundo. Ao contrário, é presa constante de\n um duplo processo, que o incita a retirar-se do mundo (em seu \"lar\", seu jar-\ndim, seu sótão, ou seu laboratório) e que o leva a \"sitiá-lo\" para entender,\nque se o aprenda sob essa forma específica de relação com o mundo. Em\n\noutras palavras, não se poderia, para definir a relação com o saber, partir do\nsujeito de saber (da Razão); pois, para entender o sujeito de saber, é preciso\naprender sua relação com o saber³.\n\nTampouco pode-se partir da questão \"que é o saber?\", isto é, de uma\ndefinição do saber em sua acepção geral. Tal tentativa não deixa de ter interes-\nse, mas chega, conforme vemos, à ideia de que não há saber senão para um\nsujeito \"engajado\" em uma certa relação com o saber.\n\nAssim, J.M. Monteil (1985) dedica-se a distinguir a informação, o conhe-\ncimento, a saber. A informação é um dado que é objeto, pode ser arma-\nzenada, estocada, inclusive em um barulho de dados; está \"sob a primazia da\nobjetividade\". O conhecimento é o resultado de uma experiência pessoal liga-\nda à atividade de um sujeito provido de qualidades afetivo-cognitivas; como\n tal, é \"intransmissível\", está \"sob a primazia da subjetividade\". Assim como a\ninformação, o saber está \"sob a primazia da objetividade\"; mas, é uma infor-\nmatação de que o sujeito se apropria. Desse ponto de vista, é uma informa-\nção, por isso desvirtuada do \"involúcrio dogmático no qual a subjetividade\n tenda a instalá-lo\". O saber é produzido pelo sujeito confrontado a outros su-\n jeitos, é construído em \"quadros metodológicos\". Pode, portanto, \"entrar na\nordem do objeto\"; e torna-se, então, \"um produto comunicável\", uma \"infor-\nmação disponível para outrem\".\n\nA análise parece-me pertinente: não há saber senão para um sujeito, não\nhá saber senão organizado de acordo com relações internas, não há saber se-\n não produzido em uma \"confrontação interpessoal\". Em outras palavras, a\nideia de saber implica a de sujeito, de atividade do sujeito, de relação do sujei-\nto com os outros (que co-constroem, controlam, validam, partilham essa saber).\n\nAs análises de J.M. Monteil, pois, vão ao encontro das de J. Schlanger\n(1978) que, ao interrogar-se sobre o que é o saber, conclui: \"não pode haver se-\nber fora da situação cognitiva, não pode haver saber em si\". \"O saber é uma relação, um produto e um resultado, relação do sujeito que conhece com seu mundo, resultado dessa interação. É verdade que o saber assim produzido aparece a seguir como um objeto autônomo; ou que leva, por exemplo, a falar de um saber encerrado nos livros. Isso, porém, equivale a dar uma forma de substância ao que primeiro é atividade e relação. Como diz muito bem J. Schlanger, não há saber em si, o saber é uma relação. Essa relação, acrescentarei eu, é uma forma de relação com o saber. Ou, ainda: eis a questão da relação com o saber é tão importante, é porque o saber é relação. Essa ideia do saber como relação é ao mesmo tempo apreendida e desconhecida por aqueles que se dedicam a elaborar um inventário empírico dos diferentes tipos de saber (por exemplo, Malglaive, 1990). Assim, existiriam os seguintes: prático, teórico, processual, científico, profissional, operativo, etc. Os tipos de saber são tratados como espécies e classificados em meticulosos inventários à maneira de Linné. Há aí uma intuição correta: o saber não existe senão sob formas específicas. O erro, no entanto, consiste em acreditar-se que o que pode ser assim definido espécies e variedades, quando, na verdade, são formas específicas de relação com o mundo. Tal erro precipita os como têm enormes dificuldades. Assim, que é que, em um saber, possibilita considera-lo “prático”? Não é o próprio saber que é prático, mas sim, o uso que é feito dele, em uma relação prática com o mundo. Essa distinção permite evitar falsos debates. Por exemplo, quando um engenheiro utiliza um enunciado de física dos materiais, deve-se falar em um saber científico ou em um saber prático? Não é porque o engenheiro utiliza para aplicá-lo, em uma prática. Ou seja, em um impasse. Na verdade, esse enunciado não é nem científico, nem prático, como tal. Como tal, é um enunciado, não existindo motivo nenhum para que lhe acrescentem adjetivos. Não obstante, foi produzido em uma relação científica com o mundo (através de experimentação, validação por uma comunidade, etc.) e será reconhecido como científico por qualquer pessoa que se inscreva integralmente em tal relação com o mundo. Esse enunciado, todavia, é mobilizado pelo engenheiro em uma relação prática com o mundo (isto é, em uma relação finalizada e contextualizada). Em outras palavras, a relação com esse saber que é “científica” ou “prática”, não, esse saber em si mesmo. mentos e saberes; e, nesse sentido, é exato dizer-se que há saber nas práticas, mas, novamente, isso não quer dizer que sejam um saber. Mas, replicar-se-á, existem coisas que se aprendem com a prática e que, entretanto, não são sabidas por aqueles que “não têm prática”. Assim, um vendedor ou um professor de escola primária reagirá, “por instinto”, de maneira pertinente, em tal ou qual situação, o que não saberia fazer quem não tivesse a prática da venda ou do ensino. Isso é verdade, mas, ainda, deve ser interpretado. Quem “tem prática” vive em um mundo onde percebe indícios que outros não veriam, dispõe de pontos de referencia e de um leque de respostas para quais outros estariam desprovidos. A prática não é cega, ela tem ferramentas e organiza seu mundo; ela supõe, e produz, o aprender. Mas esse aprender, que é domínio de uma situação, não é da mesma natureza, nem em seu processo, nem em seu produto, que o saber enunciável como saber-objeto, se quiser chamar “saber” (saber prático...) essa forma do aprender, que assim seja. Mas isso equivale a atribuir um mesmo nome a relações com o mundo, processos e produtos que não são da mesma ordem. Essa experiência tem mostrado que isso induz a muita ambigüidade e confusão. Resumamos. Não há jeito de saber e parece há saber sem uma certa relação com o mundo, que vem a ser, ao mesmo tempo e por isso mesmo, uma relação com o saber. Essa relação com o mundo é também relação consigo mesmo e relação com os outros. O saber apresenta-se sob a forma de “objetos”, de enunciados desconexos que supõe relações que parecem ser autônomos, ter existência, sentido e valor por si mesmos e como tais. Esses enunciados, porém, são formas substantivadas (Schlanger, 1978) de uma atividade, de relações e de uma relação com o mundo. Não há saber que não esteja inscrito em relações de saber. O saber é construído como uma história coletiva que é da mente humana e das atividades do homem e estará submisso a processos coletivos de validação, capitalização e transmissão. Como tal, é o produto de relações epistemológicas entre os homens. Não obstante, os homens mantêm com o mundo e entre si (inclusive quando são “homens de ciência”) relações que não são apenas epistemológicas. Assim sendo, as relações de saber são, mais amplamente, relações sociais. Essas relações de saber são necessárias para construir o saber, mas, também, para apoiar-lo após sua construção: um saber científico válido enquanto a comunidade científica o reconhecer como tal, enquanto uma sociedade continuar considerando que se trate de um saber que tem valor e merece ser transmitido. Essa saber de construção coletiva é apropriado pelo sujeito. Isso só é possível se esse sujeito se instalar na relação com o mundo que a constituição desse saber supõe. Não há saber sem uma relação do sujeito com esse saber. me vimos, no entanto, o sujeito jamais é um puro sujeito de saber: mantém com o mundo relações de diversas espécies. Também, um enunciado que possa ser investido em uma relação com o mundo que seja uma relação de saber pode também ser investido em um outro tipo de relação com o mundo: o aluno aprenderá para evitar uma nota baixa ou uma surra, para passar de ano, para ter uma boa profissão mais tarde, para agradar ao professor que considera simpático, etc. Nesse caso, a apropriação do saber é frágil, pois esse saber pouco apoio recebe do tipo de relação com o mundo (descontextualização, objetividade, argumentação...) que lhe dá um sentido específico; e adquire sentido em outro sistema de sentido. Nesse caso também, a apropriação do saber não é acompanhada pela instalação em uma forma específica de relação com o mundo e não surte quase nenhum efeito na formação, nem, tampouco, de “transferência”. As análises precedentes trazem várias consequências, de diversas ordens. Primeiro, uma consequência metodológica. Se postularmos primeiro o sujeito, para iniciar, a seguir, a procura do saber, ou, ao contrário, primeiro o saber, para iniciar a procura do sujeito, fica impossível pensar a relação com o saber. O que devemos postular, de imediato, é essa relação. Segundo, essas análises têm consequências teóricas. Assim, por diversas vezes, tendo falado, em nosso livro de 1992 (Charlot, Bautier e Rochex), em alunos para quem o saber “tem um sentido e um valor como tal”. Existe aí uma insuficiência na expressão e na análise. De modo geral, os saberes nascem das relações induzidas e supostas por sua apropriação. Em outras palavras, um saber só tem sentido e valor por referência às relações que supõe e produz com o mundo, consigo, com os outros. Por fim, essas análises têm, muito evidentemente, importantes conseqüências pedagógicas. Se o saber é relação, o processo que leva a adotar uma relação de saber com o mundo é que deve ser o objeto de uma educação intelectual e, não, a acumulação de conteúdos intelectuais. Cuidado, porém: esse processo não é puramente cognitivo e didático. Trata-se de levar uma criança a inscrever-se em um certo tipo de relação com o mundo, consigo e com os outros, que proporciona prazer, mas sempre implica a renúncia, provisória ou profunda, de outras formas de relação com o mundo, consigo e com os outros. Nesse sentido, a questão do saber sempre é uma questão identitária, também. Entende-se melhor, assim, a profundidade das novelas que Annie Arnaut dedicou à sua história de escola (notadamente, Les armoies vides, 1974) e a pertinência do termo “trânsfuga” que J.P. Terrail utiliza para designar essas crianças. de famílias populares que mudam de mundo graças ao sucesso escolar (Terrail, 1990). Ainda no plano pedagógico, entende-se melhor também o erro dos que, há vários anos, invadem os meios de comunicação de massas para combater, em nome da Razão, qualquer tentativa de inovação pedagógica. Pretendem-se os herdeiros dos que travaram, ao longo da História, o combate da Razão contra paixões (versão filosófica), ou contra o obscurantismo (versão republicana). Nobre e grande ambição, louvável exigência ética e política, que nos lembra que o homem é passível de educação e que o acesso às formas mais elaboradas da atividade intelectual é virtualmente prometido a todo indivíduo que pertença à espécie humana. Endosso esse princípio e essa exigência. Mas isso não resolve o problema da educação, que é precisamente o de saber como pode ser atualizado o que é dado ao homem apenas potencialmente; como a Razão humana, presente de maneira virtual em cada criança, o consegue efetivamente. Para responder essa pergunta, a filosofia clássica desenvolvia uma teoria da depuração: a disciplina liberta a criança das paixões, das emoções, do mal, etc., e a Razão triunfa. Para responder, de minha parte, procurarei compreender qual é o tipo de relação com o mundo e com o saber que a criança deve construir, com a ajuda da escola, para ter acesso ao pleno uso das potencialidades escondidas na mente humana. O discurso sobre a Razão que alguns intelectuais espalham nos meios de comunicação de massas apresenta a particularidade de não responder essa pergunta e, até, de não permitir, de maneira obstinada, que ela seja feita? O combate não é mais o da Razão contra as paixões, mas o da Razão contra a Pedagogia! Não é isso senão um conservadorismo social e pedagógico, pudicamente coberto pelo véu de Condorcet! Com efeito, a Razão está virtualmente presente em cada homem, seu uso torna-se otimizado somente através da educação; uma educação que permita descobrir outra forma de relação com o mundo que não a construída no dia-a-dia das famílias populares. Negar-se a tomar em consideração as dificuldades específicas enfrentadas pelos filhos das famílias populares para acessar ao uso otimizado da Razão é querer negar-lhes o acesso a esse uso; e isso, em nome da universalidade da Razão! A defesa dos privilégios em nome do universal é a força profunda de todas as ideologias, tanto mais mistificadoras, no caso, quanto se apresentam como portadoras dos direitos da Razão. 2 As figuras do \"aprender\" Todo ser humano aprende; e não aprende-se, não se tornaria humano. Aprender, no entanto, não equivale a adquirir um saber, entendendo como conteúdo intelectual: a apropriação de um saber-objeto não é senão uma das figuras do aprender. Há aí uma questão-chave para compreender-se a experiência escolar; e, particularmente, a experiência do fracasso escolar. Quando começamos nossa pesquisa sobre os \"colégios\", apresentamos que aprender nem sempre tinha o mesmo sentido para os docentes e para os alunos. Conhecíamos esta cena, uma questão clássica: o professor envia uma criança para o quadro e pede-lhe pra recitar a lição, o aluno rapidamente perde pé, o professor o manda de volta a seu lugar, censurando-o rudemente por não ter aprendido (\"como sempre...\"), o aluno sai resumindo (\"eu tinha aprendido isso...\"). Muitas vezes, o aluno está de boa fé, o professor também: acontece que eles não dão o mesmo sentido da palavra aprender. Mesmo preparados, nos surpreendemos muitas vezes com a extensão dos mal-entendidos. O exemplo mais marcante que eu conheço foi-me dado por uma estudante: ao interrogar uma criança de sete anos de idade, que repetia a segunda série, e lhe perguntar o que fazia, quando não conseguia ler uma palavra, recebeu esta resposta: \"se eu não sei ler uma palavra, leio outra\". A resposta é lógica, ao menos, na lógica desse aluno que, como muitos outros, mantêm uma relação binária com o saber: só se pode aprender o que já se sabe; quando não se sabe, não se pode aprender. De maneira mais geral, muitos alunos instalam-se em uma figura do aprender que não é pertinente para a aquisição de saber e, portanto, para seu exercício na escola. 2.1 As figuras do aprender: referências Façamos o inventário das figuras sob as quais o saber e o \"aprender\" se apresentam para as crianças. As crianças são confrontadas com a necessidade de aprender, ao encontrarem, em um mundo já presente: objetos-saberes, isto é, objetos aos quais um saber está incorporado: livros, monumentos e obras de arte, programas de televisão \"culturais...\"; objetos cujo uso deve ser aprendido, desde os mais familiares (escova de dentes, cordões do sapato...) até os mais elaborados (máquina fotográfica, computador...); atividades a serem dominadas, de estatuto variado: ler, nadar, desmontar um motor; dispositivos relacionais nos quais há que entrar e formas relacionais das quais se devem apropriar, quer se trate de agradecer, quer de iniciar uma relação amorosa. Ante esses objetos, essas atividades, esses dispositivos e formas, o indivíduo que \"aprende\" não faz a mesma coisa; o aprendizado não passa pelos mesmos processos. Existe aí um problema cuja dimensão não é apenas cognitiva e didática. A questão é mais radical: aprender será exercer que tipo de atividade? Analisar esse ponto é trabalhar a relação com o saber enquanto relação epistêmica. Essa abordagem epistêmica, no entanto, não esgota o inventário das figuras do aprender. Aprender, é exercer uma atividade em situação: em um local, em um momento da sua história e em condições de tempo diversas, com ajuda de pessoas que ajudam a aprender. A relação com o saber é relação com o mundo, em um sentido geral, mas é, também, relação com esses mundos particulares (meios, espaços...) nos quais a criança vive e aprende. A esse respeito, não posso propor um inventário tão formalizado como aquele que acabo de elaborar no nível epistêmico; isso requer pesquisas. Posso, entretanto, adiantar alguns pontos de referências. Os locais nos quais a criança aprende possuem estatutos diferentes do ponto de vista do aprendizado. Alguns são simplesmente locais onde se vive (por exemplo, um conjunto residencial). Outros dedicam-se a uma atividade específica que não é a educação ou a instrução (por exemplo, a empresa). Outros, por fim, têm como função própria a de educar, instruir, formar: um local pode, aliás, assumir várias funções, que se sobrepõem. A família é espaço de vida, célula econômica (de produção ou consumo) e grupo afetivo que dialoga, à atividade espiritual; mas elas contribuem também para formar: é também um espaço de vida. Admitindo-se que as diversas atividades desenvolvidas em uma sociedade não são regidas pela mesma lógica, a importância desta questão surge imediatamente: existem locais mais adequados do que outros para implementar tal ou qual figura do aprender. Nesses locais, as crianças aprendem ao contato de pessoas com as quais mantêm relações, que assumem formas diversas (pais, professores, monitores, animadores esportivos ou socioculturais, mas também vizinhos, amigos...). Mesmo se essas pessoas têm a tarefa específica de instruir ou educar, não podem ser reduzidas a essas tarefas. Assim, um professor instrui e educa, mas é, também, agente de uma instituição, representante de uma disciplina do ensino, indivíduo singular, ou menos, simpático. As relações que um aluno mantém com seu professor são sobreterminadas: são relações com seu saber, com seu profissionalismo, com seu estatuto institucional, com sua pessoa. Uma vez mais, a questão é importante: o aluno pode atribuir outros sentidos a uma relação definida, em princípio, como relação de saber (o professor também, aliás). Por fim, a situação do aprendizado não é apenas marcada pelo local e pelas pessoas, mas também por um momento. Aprender, sob qualquer figura que seja, é sempre aprender em um momento de minha história, mas, também, 68\nBERNARD CHARLOT\n\nem um momento de outras histórias: as da humanidade, da sociedade na qual eu vivo, do espaço no qual eu aprendo, das pessoas que estão encarregadas de ensinar-me. “A relação pedagógica é um momento, isto é, um conjunto de percepções, de representações, de projetos atuais que se inscrevem em uma apropriação dos passados individuais e das projeções - que cada um constrói - do futuro”13. Novamente, é importante a questão: aprende-se porque se tem oportunidades de aprender, em um momento em que se está, mais ou menos, disponível para aproveitar essas oportunidades; às vezes, entretanto, a ocasião não voltará a surgir: aprender é, então, uma obrigação (ou uma “chance” que se deixou passar).\n\nQualquer que seja a figura do aprender, o espaço do aprendizado é, portanto, um espaço-tempo partilhado com outros homens. O que está em jogo nesse espaço-tempo não é meramente epistêmico e didático. Estão em jogo também relações com os outros e relações consigo próprio: quem sou eu, para os outros e para mim mesmo, eu sou capaz de aprender isso, ou que não o consigo?\n\nAnalisar esse ponto é trabalhar a relação com o saber enquanto relação identitária.\n\nVoltar-e, sucessivamente, a essas questões, a epistêmica e a identitária.\n\n2.2 A relação epistêmica com o saber\n\no inventário das figuras do aprender permite encontrar as três formas de relação epistêmica com o saber, que identificamos a partir dos discursos dos colegas (Charlot, Bautier e Rochex, 1992).\n\nDo ponto de vista epistêmico, aprender pode se apropriar-se de um objeto virtual (o “saber”), encarando em objetos empíricos (por exemplo, os livros), abrigado em locais (a escola...), possuído por pessoas que já percorreram o caminho (os docentes...). Aprender, então, é “colocar coisas na cabeça”, tomar posse de saberes-objeto, de conteúdos intelectuais que podem ser designados, de maneira precisa (o teorema de Pitágoras, os galo-roman...s...), ou imprecisa (“na escola, se aprende um montão de coisas”). Aprender é uma atividade de apropriação de um saber que não se possui, mas cuja existência é depositada em objetos, locais, pessoas. Essas, que já trilharam o caminho que eu devo seguir, podem ajudar-me a aprender, isto é, executar uma função de acompanhamento, de mediação. Aprender é passar da não-posse à posse, da identificação de um saber virtual à sua apropriação real. Essa relação epistêmica é relação com um saber-objeto. Ora, o saber só pode assumir a forma de objeto através da linguagem; melhor ainda, da linguagem escrita, da qual me confere uma existência aparentemente independente de um sujeito (Lahire, 1993a e b). Também, chamamos objetivação-denominação o processo epistêmico que constituiu, em um mesmo movimento, um saber-objeto e um sujeito consciente de ter-se apropriado do saber. O saber aparece então como existente em si\n