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Boaventura de Sousa Santos A CRUEL PEDAGOGIA DO VÍRUS ALMEDINA Boaventura de Sousa Santos A Cruel Pedagogia do Vírus AUTOR Boaventura de Sousa Santos EDITOR EDIÇÕES ALMEDINA SA Rua Fernandes Tomás nºs 7680 3000167 Coimbra Tel 239 851 904 Fax 239 851 901 wwwalmedinanet editoraalmedinanet DESIGN DE CAPA FBA Abril 2020 Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva responsabilidade dos seus autores Toda a reprodução desta obra por fotocópia ou outro qualquer processo sem prévia autorização escrita do Editor é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infrator BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SANTOS Boaventura de Sousa A Cruel Pedagogia do Vírus ISBN 9789724084961 CDU 347 ÍNDICE Capítulo 1 Vírus tudo o que é sólido se desfaz no ar Capítulo 2 A trágica transparência do vírus Capítulo 3 A sul da quarentena Capítulo 4 A intensa pedagogia do vírus as primeiras lições Capítulo 5 O futuro pode começar hoje Capítulo 1 Vírus tudo o que é sólido se desfaz no ar Existe um debate nas ciências sociais sobre se a verdade e a qualidade das instituições de uma dada sociedade se conhecem melhor em situações de normalidade de funcionamento corrente ou em situações excepcionais de crise Talvez os dois tipos de situação sejam igualmente indutores de conhecimento mas certamente que nos permitem conhecer ou relevar coisas diferentes Que potenciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus A normalidade da excepção A actual pandemia não é uma situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade Desde a década de 1980 à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do sector financeiro o mundo tem vivido em permanente estado de crise Uma situação duplamente anómala Por um lado a ideia de crise permanente é um oximoro já que no sentido etimológico a crise é por natureza excepcional e passageira e constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor estado de coisas Por outro lado quando a crise é passageira ela deve ser explicada pelos factores que a provocam Mas quando se torna permanente a crise transformase na causa que explica tudo o resto Por exemplo a crise financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas políticas sociais saúde educação previdência social ou a degradação dos salários E assim obsta a que se pergunte pelas verdadeiras causas da crise O objectivo da crise permanente é não ser resolvida Mas qual é o objectivo deste objectivo Basicamente são dois legitimar a escandalosa concentração de riqueza e boicotar medidas eficazes para impedir a iminente catástrofe ecológica Assim temos vivido nos últimos quarenta anos Por isso a pandemia vem apenas agravar uma situação de crise a que a população mundial tem vindo a ser sujeita Daí a sua específica periculosidade Em muitos países os serviços públicos de saúde estavam mais bem preparados para enfrentar a pandemia há dez ou vinte anos do que estão hoje A elasticidade do social Em cada época histórica os modos de viver dominantes trabalho consumo lazer convivência e de antecipar ou adiar a morte são relativamente rígidos e parecem decorrer de regras escritas na pedra da natureza humana É verdade que eles se vão alterando paulatinamente mas as mudanças passam quase sempre despercebidas A irrupção de uma pandemia não se compagina com esta morosidade Exige mudanças drásticas E de repente elas tornamse possíveis como se sempre o tivessem sido Tornase possível ficar em casa e voltar a ter tempo para ler um livro e passar mais tempo com os filhos consumir menos dispensar o vício de passar o tempo nos centros comerciais olhando para o que está à venda e esquecendo tudo o que se quer mas que só se pode obter por outros meios que não a compra A ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo em que vivemos cai por terra Mostrase que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas Como foram expulsas do sistema político as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandémicas dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros Ou seja as alternativas voltarão da pior maneira possível A fragilidade do humano A rigidez aparente das soluções sociais cria nas classes que tiram mais proveito delas um estranho sentimento de segurança É certo que sobra sempre alguma insegurança mas há meios e recursos para a minimizar sejam eles os cuidados médicos as apólices de seguro os serviços de empresas de segurança a terapia psicológica as academias de ginástica Este sentimento de segurança combinase com o de arrogância e até de condenação para com todos aqueles que se sentem vitimizados pelas mesmas soluções sociais O surto viral pulveriza este senso comum e evapora a segurança de um dia para o outro Sabemos que a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados mas mesmo assim cria se com ela uma consciência de comunhão planetária de algum modo democrática A etimologia do termo pandemia diz isso mesmo todo o povo A tragédia é que neste caso a melhor maneira de sermos solidários uns com os outros é isolarmonos uns dos outros e nem sequer nos tocarmos É uma estranha comunhão de destinos Não serão possíveis outras Os fins não justificam os meios O abrandamento da actividade económica sobretudo no maior e mais dinâmico país do mundo tem óbvias consequências negativas Mas tem também algumas consequências positivas Por exemplo a diminuição da poluição atmosférica Um especialista da qualidade do ar da agência espacial dos EUA NASA afirmou que nunca se tinha visto uma quebra tão dramática da poluição numa área tão vasta Quererá isto dizer que no início do século XXI a única maneira de evitar a cada vez mais iminente catástrofe ecológica é por via da destruição maciça de vida humana Teremos perdido a imaginação preventiva e a capacidade política para a pôr em prática É também conhecido que para controlar eficazmente a pandemia a China accionou métodos de repressão e de vigilância particularmente rigorosos É cada vez mais evidente que as medidas foram eficazes Acontece que a China por muitos méritos que tenha não tem o de ser um país democrático É muito questionável que tais medidas pudessem ser accionadas ou accionadas com igual eficácia num país democrático Quer isto dizer que a democracia carece de capacidade política para responder a emergências Pelo contrário The Economist mostrava no início deste ano que as epidemias tendem a ser menos letais em países democráticos devido à livre circulação de informação Mas como as democracias estão cada vez mais vulneráveis às fake news teremos de imaginar soluções democráticas assentes na democracia participativa ao nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação e não para o empreendedorismo e competitividade a todo o custo A guerra de que é feita a paz O modo como foi inicialmente construída a narrativa da pandemia nos media ocidentais tornou evidente a vontade de demonizar a China As más condições higiénicas nos mercados chineses e os estranhos hábitos alimentares dos chineses primitivismo insinuado estariam na origem do mal Subliminarmente o público mundial era alertado para o perigo de a China hoje a segunda economia do mundo vir a dominar o mundo Se a China era incapaz de prevenir tamanho dano para a saúde mundial e além disso de o superar eficazmente como confiar na tecnologia do futuro proposta pela China Mas terá o vírus nascido na China A verdade é que segundo a Organização Mundial de Saúde a origem do vírus ainda não está determinada É por isso irresponsável que os meios oficiais do EUA falem do vírus estrangeiro ou mesmo do coronavírus chinês tanto mais que só em países com bons sistemas públicos de saúde os EUA não são um deles é possível fazer testes gratuitos e determinar com exactidão os tipos de influenza ocorridos nos últimos meses Do que sabemos com certeza é que muito para lá do coronavírus há uma guerra comercial entre a China e os EUA uma guerra sem quartel que como tudo leva a crer terá de terminar com um vencedor e um vencido Do ponto de vista dos EUA é urgente neutralizar a liderança da China em quatro áreas o fabrico de telemóveis as telecomunicações de quinta geração a inteligência artificial os automóveis eléctricos e as energias renováveis A sociologia das ausências Uma pandemia desta dimensão provoca justificadamente comoção mundial Apesar de se justificar a dramatização é bom ter sempre presente as sombras que a visibilidade vai criando Por exemplo os Médicos Sem Fronteiras estão a alertar para a extrema vulnerabilidade ao vírus por parte dos muitos milhares de refugiados e imigrantes detidos nos campos de internamento na Grécia Num desses campos campo de Moria há uma torneira de água para 1300 pessoas e falta sabão Os internados não podem viver senão colados uns aos outros Famílias de cinco ou seis pessoas dormem num espaço com menos de três metros quadrados Isto também é Europa a Europa invisível Como estas condições prevalecem igualmente na fronteira sul dos EUA também aí está a América invisível E as zonas de invisibilidade poderão multiplicarse em muitas outras regiões do mundo e talvez mesmo aqui bem perto de cada um de nós Talvez baste abrir a janela Capítulo 2 A trágica transparência do vírus Os debates culturais políticos e ideológicos do nosso tempo têm uma opacidade estranha que decorre da sua distância em relação ao quotidiano vivido pela grande maioria da população os cidadãos comuns la gente de a pie como dizem os latinoamericanos Em particular a política que devia ser a mediadora entre as ideologias e as necessidades e aspirações dos cidadãos tem vindo a demitirse dessa função Se mantém algum resíduo de mediação é com as necessidades e aspirações dos mercados esse megacidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu nem tocou ou cheirou um cidadão estranho que só tem direitos e nenhum dever É como se a luz que ele projecta nos cegasse De repente a pandemia irrompe a luz dos mercados empalidece e da escuridão com que eles sempre nos ameaçam se não lhe prestarmos vassalagem emerge uma nova claridade A claridade pandémica e as aparições em que ela se materializa O que ela nos permite ver e o modo como for interpretado e avaliado determinarão o futuro da civilização em que vivemos Estas aparições ao contrário de outras são reais e vieram para ficar A pandemia é uma alegoria O sentido literal da pandemia do coronavírus é o medo caótico generalizado e a morte sem fronteiras causados por um inimigo invisível Mas o que ela exprime está muito além disso Eis alguns dos sentidos que nela se exprimem O invisível todopoderoso tanto pode ser o infinitamente grande o deus das religiões do livro como o infinitamente pequeno o vírus Em tempos recentes emergiu um outro ser invisível todopoderoso nem grande nem pequeno porque disforme os mercados Tal como o vírus é insidioso e imprevisível nas suas mutações e tal como deus Santíssima Trindade incarnações é uno e múltiplo Exprimese no plural mas é singular Ao contrário de deus os mercados é omnipresente neste mundo e não no mundo do além e ao contrário do vírus é uma bendição para os poderosos e uma maldição para todos os outros a esmagadora maioria dos humanos e a totalidade da vida não humana Apesar de omnipresentes todos estes seres invisíveis têm espaços específicos de acolhimento o vírus nos corpos deus nos templos os mercados nas bolsas de valores Fora desses espaços o ser humano é um ente semabrigo transcendental Sujeitos a tantos seres imprevisíveis e todopoderosos o ser humano e toda a vida nãohumana de que depende não podem deixar de ser iminentemente frágeis Se todos estes seres invisíveis continuarem activos a vida humana será em breve se o não é já uma espécie em extinção Está sujeita a uma ordem escatológica e aproximase do fim A intensa teologia que é tecida à volta dessa escatologia contempla vários níveis de invisibilidade e de imprevisibilidade O deus o vírus e os mercados são as formulações do último reino o mais invisível e imprevisível o reino da glória celestial ou da perdição infernal Só ascendem a ele os que se salvam os mais fortes os mais santos os mais jovens os mais ricos Abaixo desse reino está o reino das causas É o reino das mediações entre o humano e o não humano Neste reino a invisibilidade é menos rarefeita mas é produzida por luzes intensas que projectam sombras densas sobre ele Este reino é composto por três unicórnios Sobre o unicórnio escreveu Leonardo da Vinci O unicórnio através da sua intemperança e incapacidade de se dominar e devido ao deleite que as donzelas lhe proporcionam esquece a sua ferocidade e selvajaria Ele põe de parte a desconfiança aproximase da donzela sentada e adormece no seu regaço Assim os caçadores conseguem caçá lo Ou seja o unicórnio é um todopoderoso feroz e selvagem que no entanto tem um ponto fraco sucumbe à astúcia de quem o souber identificar Desde o século XVII os três unicórnios são o capitalismo o colonialismo e o patriarcado São os modos de dominação principais Para dominarem eficazmente têm de ser destemperados ferozes e incapazes de se dominar como adverte Da Vinci Apesar de serem omnipresentes na vida dos humanos e das sociedades são invisíveis na sua essência e na essencial articulação entre eles A invisibilidade decorre de um sentido comum inculcado nos seres humanos pela educação e pela doutrinação permanentes Esse sentido comum é evidente e é contraditório ao mesmo tempo Todos os seres humanos são iguais afirma o capitalismo mas como há diferenças naturais entre eles a igualdade entre os inferiores não pode coincidir com a igualdade entre os superiores afirmam o colonialismo e o patriarcado Este sentido comum é antigo e foi debatido por Aristóteles mas só a partir do século XVII entrou na vida das pessoas comuns primeiro na Europa e depois no resto do mundo Ao contrário do que pensa Da Vinci a ferocidade destes três unicórnios não assenta apenas na força bruta Assenta também na astúcia que lhes permite desaparecer quando continuam vivos ou parecer fracos quando permanecem fortes A primeira astúcia revelase em múltiplas artimanhas Assim o capitalismo aparentou ter desaparecido numa parte do mundo com a vitória da Revolução Russa Afinal apenas hibernou no interior da União Soviética e continuou a controlála a partir de fora capitalismo financeiro contrainsurgência Hoje em dia o capitalismo consegue a sua maior vitalidade no seio do seu maior inimigo de sempre o comunismo num país que em breve será a primeira economia do mundo a China Por sua vez o colonialismo dissimulou o seu desaparecimento com as independências das colónias europeias mas de facto continuou metamorfoseado de neocolonialismo imperialismo dependência racismo etc Finalmente o patriarcado induz a ideia de estar moribundo ou enfraquecido em virtude das vitórias significativas dos movimentos feministas nas últimas décadas mas de facto a violência doméstica a discriminação sexista e o feminicídio não cessam de aumentar A segunda astúcia consiste em capitalismo colonialismo e patriarcado surgirem como entidades separadas que nada têm que ver umas com as outras A verdade é que nenhum destes unicórnios em separado tem poder para dominar Só os três em conjunto são todopoderosos Ou seja enquanto houver capitalismo haverá colonialismo e patriarcado O terceiro reino é o reino das consequências É o reino em que os três poderes todopoderosos mostram a sua verdadeira face É esta a camada que a grande maioria da população consegue ver embora com alguma dificuldade Este reino tem hoje duas paisagens principais onde é mais visível e cruel a escandalosa concentração de riquezaextrema desigualdade social e a destruição da vida do planetaiminente catástrofe ecológica É ante estas duas paisagens brutais que os três seres todo poderosos e suas mediações mostram aquilo a que nos conduzem se continuarmos a considerálos todopoderosos Mas serão eles todo poderosos Ou não será a sua omnipotência apenas o espelho da induzida incapacidade dos humanos de os combater Eis a questão A realidade à solta e a excepcionalidade da excepção A pandemia confere à realidade uma liberdade caótica e qualquer tentativa de a aprisionar analiticamente está condenada ao fracasso dado que a realidade vai sempre adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela Teorizar ou escrever sobre ela é pôr as nossas categorias e a nossa linguagem à beira do abismo Como diria André Gide é conceber a sociedade contemporânea e a sua cultura dominante em modo de mise en abyme Os intelectuais são os que mais deviam temer esta situação Tal como aconteceu com os políticos os intelectuais também deixaram em geral de mediar entre as ideologias e as necessidades e as aspirações dos cidadãos comuns Medeiam entre si entre as suas pequenasgrandes divergências ideológicas Escrevem sobre o mundo mas não com o mundo São poucos os intelectuais públicos e também estes não escapam ao abismo destes dias A geração que nasceu ou cresceu depois da Segunda Guerra Mundial habituouse a ter um pensamento excepcional em tempos normais Perante a crise pandémica têm dificuldade em pensar a excepcão em tempos excepcionais O problema é que a prática caótica e esquiva dos dias foge à teorização e exige ser entendida em modo de subteorização Ou seja como se a claridade da pandemia criasse tanta transparência que nos impedisse de ler e muito menos reescrever o que fôssemos registando no ecrã ou no papel Dois exemplos Logo no irromper da crise pandémica Giorgio Agamben insurgiuse contra o perigo da emergência de um Estado de excepção O Estado ao tomar medidas de vigilância e de restrição da mobilidade sob o pretexto de combater a pandemia adquiriria poderes excessivos que poriam em causa a própria democracia Esta advertência faz sentido e foi premonitória em relação a alguns países nomeadamente a Hungria Mas foi escrita num momento em que os cidadãos tomados de pânico constatavam que os serviços nacionais de saúde não estavam preparados para combater a pandemia e exigiam que o Estado tomasse medidas eficazes para evitar a propagação do vírus A reacção não se fez esperar e Agamben teve de voltar atrás Ou seja a excepcionalidade desta excepção não lhe permitiu pensar que há excepções e excepções e que em face disso teremos de distinguir no futuro não apenas entre Estado democrático e Estado de excepcão mas também entre Estado de excepção democrático e Estado de excepção antidemocrático O segundo exemplo diz respeito a SlavojŽižek que na mesma altura afirmou que a pandemia demonstrava que o comunismo global era a única solução futura A proposta vinha no seguimento das suas teorias em tempos normais mas era inteiramente descabida em tempo de excepção excepcional Também ele teve de reconsiderar Por muitas razões tenho defendido que o tempo dos intelectuais de vanguarda acabou Os intelectuais devem aceitarse como intelectuais de retaguarda devem estar atentos às necessidades e às aspirações dos cidadãos comuns e saber partir delas para teorizar De outro modo os cidadãos estarão indefesos perante os únicos que sabem falar a sua linguagem e entender as suas inquietações Em muitos países esses são os pastores evangélicos conservadores ou os imãs do islamismo radical apologistas da dominação capitalista colonialista e patriarcal Capítulo 3 A sul da quarentena Qualquer quarentena é sempre discriminatória mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população Neste capítulo porém analiso outros grupos para os quais a quarentena é particularmente difícil São os grupos que têm em comum padecerem de uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela Tais grupos compõem aquilo a que chamo de Sul Na minha concepção o Sul não designa um espaço geográfico Designa um espaçotempo político social e cultural É a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela exploração capitalista pela discriminação racial e pela discriminação sexual Proponhome analisar a quarentena a partir da perspectiva daqueles e daquelas que mais têm sofrido com estas formas de dominação e imaginar também da sua perspectiva as mudanças sociais que se impõem depois de terminar a quarentena São muitos esses colectivos sociais Selecciono uns poucos As mulheres A quarentena será particularmente difícil para as mulheres e nalguns casos pode mesmo ser perigosa As mulheres são consideradas as cuidadoras do mundo dominam na prestação de cuidados dentro e fora das famílias Dominam em profissões como enfermagem ou assistência social que estarão na linha da frente da prestação de cuidados a doentes e idosos dentro e fora das instituições Não se podem defender com uma quarentena para poderem garantir a quarentena de outros São elas também que continuam a ter a seu cargo exclusiva ou maioritariamente o cuidado das famílias Poderia imaginar se que havendo mais braços em casa durante a quarentena as tarefas poderiam ser mais distribuídas Suspeito que assim não será em face do machismo que impera e quiçá se reforça em momentos de crise e de confinamento familiar Com as crianças e outros familiares em casa durante 24 horas o stress será maior e certamente recairá mais nas mulheres O aumento do número de divórcios em algumas cidades chinesas durante a quarentena pode ser um indicador do que acabo de dizer Por outro lado é sabido que a violência contra as mulheres tende a aumentar em tempos de guerra e de crise e tem vindo a aumentar agora Uma boa parte dessa violência ocorre no espaço doméstico O confinamento das famílias em espaços exíguos e sem saída pode oferecer mais oportunidades para o exercício da violência contra as mulheres O jornal francês Le Figaro noticiava em 26 de Março com base em informações do Ministério do Interior que as violências conjugais tinham aumentado 36 em Paris na semana anterior Os trabalhadores precários informais ditos autónomos Depois de quarenta anos de ataque aos direitos dos trabalhadores em todo o mundo por parte das políticas neoliberais este grupo de trabalhadores é globalmente dominante ainda que sejam muito significativas as diferenças de país para país O que significará a quarentena para estes trabalhadores que tendem a ser os mais rapidamente despedidos sempre que há uma crise económica O sector de serviços onde abundam será uma das áreas mais afectadas pela quarentena No dia 23 de Março a Índia declarou a quarentena por três semanas envolvendo 13 mil milhões de habitantes Considerando que na Índia entre 65 e 70 dos trabalhadores pertencem à economia informal calculase que 300 milhões de indianos ficaram sem rendimentos Na América Latina cerca de 50 dos trabalhadores empregamse no sector informal Do mesmo modo no caso do Quénia ou Moçambique devido aos programas de reajustamento estrutural dos anos 198090 a maioria dos trabalhadores é informal Isto significa que dependem de um salário diário mesmo os que possuem um emprego formal gozam de poucos benefícios contratuais A indicação por parte da OMS para trabalhar em casa e em autoisolamento é impraticável porque obriga os trabalhadores a escolher entre ganhar o pão diário ou ficar em casa e passar fome As recomendações da OMS parecem ter sido elaboradas a pensar numa classe média que é uma pequeníssima fracção da população mundial O que significa a quarentena para trabalhadores que ganham diaadia para viver diaadia Arriscarão desobedecer à quarentena para dar de comer à sua família Como resolverão o conflito entre o dever de alimentar a família e o dever de proteger as suas vidas e a vida desta Morrer de vírus ou morrer de fome eis a opção Os trabalhadores da rua Os trabalhadores da rua são um grupo específico dos trabalhadores precários Os vendedores ambulantes para quem o negócio isto é a subsistência depende exclusivamente da rua de quem nela passa e da sua decisão sempre imprevisível para o vendedor de parar e comprar alguma coisa Há muito tempo que os vendedores vivem em quarentena na rua mas na rua com gente O impedimento de trabalhar para os que vendem nos mercados informais das grandes urbes significa que potencialmente milhões de pessoas não terão dinheiro sequer para acorrer às unidades de saúde se caírem doentes ou para comprar desinfetante para as mãos e sabão Quem tem fome não pode ter a veleidade de comprar sabão e água a preços que começam a sofrer o peso da especulação Noutros contextos os uberizados da economia informal que entregam comida e encomendas ao domicílio São eles que garantem a quarentena de muitos mas para isso não se podem proteger com ela O seu negócio vai aumentar tanto quanto o risco Os semabrigo ou populações de rua Como será a quarentena de quem não tem casa Os semabrigo que passam as noites nos viadutos nas estações de metro ou de comboio abandonadas nos túneis de águas pluviais ou túneis de esgoto em tantas cidades do mundo Nos EUA chamamlhes os tunnel people Como será a quarentena nos túneis Não terão passado toda a vida em quarentena Sentirseão mais livres do que aqueles que são agora obrigados a viver em casa Verão na quarentena uma forma de justiça social Os moradores nas periferias pobres das cidades favelas barriadas slums caniço etc Segundo dados da ONU Habitat 16 mil milhões de pessoas não tem habitação adequada e 25 da população mundial vive em bairros informais sem infraestruturas nem saneamento básico sem acesso a serviços públicos com escassez de água e de eletricidade Vivem em espaços exíguos onde se aglomeram famílias numerosas Em resumo habitam na cidade sem direito à cidade já que vivendo em espaços desurbanizados não têm acesso às condições urbanas pressupostas pelo direito à cidade Sendo que muitos habitantes são trabalhadores informais enfrentam a quarentena com as mesmas dificuldades acima referidas Mas além disso dadas as condições de habitação poderão cumprir as regras de prevenção recomendadas pela OMS Poderão manter a distância interpessoal nos espaços exíguos de habitação onde a privacidade é quase impossível Poderão lavar as mãos com frequência quando a pouca água disponível tem de ser poupada para beber e cozinhar O confinamento em alojamentos tão exíguos não terá outros riscos para a saúde tão ou mais dramáticos do que os causados pelo vírus Muitos destes bairros são hoje fortemente policiados e por vezes sitiados por forças militares sob o pretexto de combate ao crime Não será esta afinal a quarentena mais dura para estas populações Os jovens das favelas do Rio de Janeiro que sempre foram impedidos pela polícia de ir ao domingo à praia de Copacabana para não perturbar os turistas não sentirão que já viviam em quarentena Qual a diferença entre a nova quarentena e a original que foi sempre o seu modo de vida Em Mathare um dos bairros periféricos de pessoas com baixa renda em Nairobi Quénia 68 941 pessoas vivem num quilómetro quadrado Tal como em muitos contextos similares no mundo as famílias partilham uma sala que também é cozinha quarto e sala de estar Como é que se lhes pode pedir autoisolamento É possível o auto isolamento num contexto de permanente héteroisolamento imposto pelo Estado Deve salientarse que para os moradores das periferias pobres do mundo a actual emergência sanitária vem juntarse a muitas outras emergências Segundo nos informam os companheiros e companheiras da Garganta Poderosa um dos mais notáveis movimentos sociais de bairros populares da América Latina além da emergência sanitária causada pela pandemia os moradores enfrentam várias outras emergências É o caso da emergência sanitária decorrente de outras epidemias ainda não debeladas e da falta de atenção médica Neste ano foram já registados 1833 casos de dengue em Buenos Aires Só na Villa 21 um dos bairros pobres de Buenos Aires registaramse 214 casos Por coincidência na Villa 21 70 da população não tem água potável É o caso também da emergência alimentar porque se passa fome nos bairros e os modos comunitários de a superar cantinas populares merendas colapsam ante o aumento dramático da procura Se as escolas fecham acaba a merenda escolar que garantia a sobrevivência das crianças É finalmente o caso da emergência da violência doméstica particularmente grave nos bairros e da permanente emergência da violência policial e da estigmatização que ela acarreta Os internados em campos de internamento para refugiados imigrantes indocumentados ou populações deslocadas internamente Segundos dados da ONU são 70 milhões São populações que em grande parte vivem em permanente quarentena e em relação às quais a nova quarentena pouco significa enquanto regra de confinamento Mas os perigos que enfrentam no caso de o vírus se propagar entre eles serão fatais e ainda mais dramáticos do que os que enfrentam as populações das periferias pobres Por exemplo no Sudão do Sul onde mais de 16 milhão de pessoas estão deslocadas internamente são necessárias horas se não dias para chegar às unidades de saúde e a principal causa de morte é muitas vezes evitável causada por doenças para as quais já há remédios malária e diarreia No caso dos campos de internamento às portas da Europa e dos EUA a quarentena causada pelo vírus impõe o dever ético humanitário de abrir as portas dos campos de internamento sempre que não for possível criar neles as mínimas condições de habitabilidade e de segurança exigidas pela pandemia Os deficientes Têm sido vítimas de outra forma de dominação além do capitalismo do colonialismo e do patriarcado o capacitismo Tratase da forma como a sociedade os discrimina não lhes reconhecendo as suas necessidades especiais não lhes facilitando acesso à mobilidade e às condições que lhes permitiriam desfrutar da sociedade como qualquer outra pessoa De algum modo as limitações que a sociedade lhes impõe fazem com que se sintam a viver em quarentena permanente Como viverão a nova quarentena sobretudo quando dependem de quem tem de violar a quarentena para lhes prestar alguma ajuda Como já há muito se habituaram a viver em condições de algum confinamento sentirseão agora mais livres que os nãodeficientes ou mais iguais a eles Verão tristemente na nova quarentena alguma justiça social Os idosos Este grupo particularmente numeroso no Norte global é em geral um dos grupos mais vulneráveis mas a vulnerabilidade não é indiscriminada Aliás a pandemia obriganos a uma maior precisão nos conceitos que usamos Afinal quem é idoso Ainda segundo a Garganta Poderosa a diferença de esperança de vida entre dois bairros de Buenos Aires o bairro pobre de Zavaleta e o bairro nobre de Recoleta é de cerca de vinte anos Não surpreende que os líderes das comunidades sejam considerados de idade madura pela comunidade e jovens líderes pela sociedade em geral As condições de vida prevalecentes no Norte global levaram a que boa parte deles fosse depositada a palavra é dura mas é o que é em lares casas de repouso asilos Segundo as posses próprias ou da família esses alojamentos podem ir de cofres de luxo para jóias até depósitos de lixo humano Em tempos normais os idosos passaram a viver nestes alojamentos como espaços que garantiam a sua segurança Em princípio a quarentena causada pela pandemia não deveria afectar grandemente a sua vida dado viverem já em permanente quarentena O que sucederá quando devido à propagação do vírus esta zona de segurança se transforma em zona de alto risco como está a acontecer em Portugal e em Espanha Estariam mais seguros se pudessem voltar às casas onde viveram toda a vida no caso improvável de elas ainda existirem Os familiares que por exclusiva conveniência própria os alojaram em lares não sentirão remorsos por sujeitar os seus idosos a um risco que lhes pode ser fatal E os idosos que vivem isolados não correrão agora um risco maior de morrer sem que ninguém dê conta Ao menos os idosos que vivem nos bairros pobres do mundo podem morrer com a pandemia mas não morrerão sem ninguém dar conta Há ainda a acrescentar que sobretudo no Sul global epidemias anteriores levaram a que os idosos tivessem de prolongar a sua vida activa Por exemplo a epidemia do SIDA matou e continua a matar pais jovens ficando os avós com a responsabilidade do agregado familiar Se os avós morrerem as crianças correm um risco muito alto de desnutrição e fome e finalmente de morte A lista dos que estão a sul da quarentena está longe de ser exaustiva Basta pensar nos presos e nas pessoas com problemas de saúde mental nomeadamente depressão Mas o elenco seleccionado mostra duas coisas Por um lado ao contrário do que é veiculado pelos media e pelas organizações internacionais a quarentena não só torna mais visíveis como reforça a injustiça a discriminação a exclusão social e o sofrimento imerecido que elas provocam Acontece que tais assimetrias se tornam mais invisíveis em face do pânico que se apodera dos que não estão habituados a ele Capítulo 4 A intensa pedagogia do vírus as primeiras lições Lição 1 O tempo político e mediático condiciona o modo como a sociedade contemporânea se apercebe dos riscos que corre Esse modo pode sernos fatal As crises graves e agudas cuja letalidade é muito significativa e muito rápida mobilizam os media e os poderes políticos e levam a que sejam tomadas medidas que no melhor dos casos resolvem as consequências da crise mas não afectam as suas causas Pelo contrário as crises graves mas de progressão lenta tendem a passar despercebidas mesmo quando a sua letalidade é exponencialmente maior A pandemia do coronavírus é o exemplo mais recente do primeiro tipo de crise No momento em que escrevo já matou cerca de 40 000 pessoas A poluição atmosférica é o mais trágico exemplo do segundo tipo de crise Como noticia o The Guardian de 5 de Março segundo a Organização Mundial de Saúde a poluição atmosférica que é apenas uma das dimensões da crise ecológica mata anualmente 7 milhões de pessoas Segundo a Organização Mundial de Meteorologia o gelo da Antártida está a derreter seis vezes mais rapidamente do que há quatro décadas e o gelo da Gronelândia quatro vezes mais rapidamente do que se previa Segundo a ONU temos dez anos para evitar a subida de 15 graus de temperatura global em relação à época préindustrial e em qualquer caso vamos sofrer Apesar de tudo isto a crise climática não suscita uma resposta dramática e de emergência como a que a pandemia está a provocar E o pior é que enquanto a crise da pandemia pode ser de algum modo revertida ou controlada a crise ecológica já é irreversível e agora há apenas que procurar mitigála Mas mais grave ainda é o facto de as duas crises estarem ligadas A pandemia do coronavírus é uma manifestação entre muitas do modelo de sociedade que se começou a impor globalmente a partir do século XVII e que está hoje a chegar à sua etapa final É este o modelo que está hoje a conduzir a humanidade a uma situação de catástrofe ecológica Ora uma das características essenciais deste modelo é a exploração sem limites dos recursos naturais Essa exploração está a violar de maneira fatal o lugar da humanidade no planeta Terra Esta violação traduzse na morte desnecessária de muitos seres vivos da Mãe Terra nossa casa comum como defendem os povos indígenas e camponeses de todo o mundo hoje secundados pelos movimentos ecologistas e pela teologia ecológica Essa violação não ficará impune As pandemias tal como as manifestações da crise ecológica são a punição que sofremos por tal violação Não se trata de vingança da Natureza Tratase de pura autodefesa O planeta tem de se defender para garantir a sua vida A vida humana é uma ínfima parte 001 da vida planetária a defender Lição 2As pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga É evidente que são menos discriminatórias que outras violências cometidas na nossa sociedade contra trabalhadores empobrecidos mulheres trabalhadores precários negros indígenas imigrantes refugiados sem abrigo camponeses idosos etc Mas discriminam tanto no que respeita à sua prevenção como à sua expansão e mitigação Por exemplo os idosos estão a ser vítimas em vários países de darwinismo social Grande parte da população do mundo não está em condições de seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde para nos defendermos do vírus porque vive em espaços exíguos ou altamente poluídos porque são obrigados a trabalhar em condições de risco para alimentar as famílias porque estão presos em prisões ou em campos de internamento porque não têm sabão ou água potável ou a pouca água disponível é para beber e cozinhar etc Lição 3Enquanto modelo social o capitalismo não tem futuro Em particular a sua versão actualmente vigente o neoliberalismo combinado com o domínio do capital financeiro está social e politicamente desacreditada em face da tragédia a que conduziu a sociedade global e cujas consequências são mais evidentes do que nunca neste momento de crise humanitária global O capitalismo poderá subsistir como um dos modelos económicos de produção distribuição e consumo entre outros mas não como único e muito menos como o que dita a lógica da acção do Estado e da sociedade Ora foi isto o que aconteceu nos últimos quarenta anos sobretudo depois da queda do Muro de Berlim Impôsse a versão mais antisocial do capitalismo o neoliberalismo crescentemente dominado pelo capital financeiro global Esta versão do capitalismo sujeitou todas as áreas sociais sobretudo saúde educação e segurança social ao modelo de negócio do capital ou seja a áreas de investimento privado que devem ser geridas de modo a gerar o máximo lucro para os investidores Este modelo põe de lado qualquer lógica de serviço público e com isso ignora os princípios de cidadania e os direitos humanos Deixa para o Estado apenas as áreas residuais ou para clientelas pouco solventes muitas vezes a maioria da população as áreas que não geram lucro Por opção ideológica seguiuse a demonização dos serviços públicos o Estado predador ineficiente ou corrupto a degradação das políticas sociais ditada pelas políticas de austeridade sob o pretexto da crise financeira do Estado a privatização dos serviços públicos e o subfinanciamento dos que restaram por não interessarem ao capital E chegámos aos nossos dias com os Estados sem capacidade efectiva para responderem eficazmente à crise humanitária que se abateu sob os seus cidadãos A fractura entre a economia da saúde e a saúde pública não podia ser maior Os governos com menos lealdade ao ideário neoliberal são os que estão a actuar mais eficazmente contra a pandemia independentemente do regime político Basta mencionar a Taiwan Coreia do Sul Singapura e China No actual momento de choque as instituições financeiras internacionais FMI os bancos centrais e o Banco Central Europeu incitam os países a endividaremse mais do que já estão para fazer face aos gastos de emergência ainda que lhes permita alargar os prazos de pagamento O futuro proposto por estas instituições só escapará aos mais distraídos a póscrise será dominada por mais políticas de austeridade e maior degradação dos serviços públicos onde isso ainda for possível É aqui que a pandemia opera como um analista privilegiado Os cidadãos sabem agora o que está em causa Haverá mais pandemias no futuro e provavelmente mais graves e as políticas neoliberais continuarão a minar a capacidade do Estado para responder e as populações estarão cada vez mais indefesas Tal ciclo infernal só pode ser interrompido se se interromper o capitalismo Lição 4A extremadireita e a direita hiperneoliberal ficam definitivamente esperase descreditadas A extremadireita tem vindo a crescer um pouco por todo o mundo Caracterizase pela pulsão anti sistema a manipulação grosseira dos instrumentos democráticos incluindo o sistema judicial o nacionalismo excludente a xenofobia e o racismo a apologia do Estado de excepção securitário o ataque à investigação científica independente e à liberdade de expressão a estigmatização dos adversários concebidos como inimigos o discurso de ódio o uso das redes sociais para comunicação política em menosprezo dos veículos e media convencionais Defende em geral o Estado mínimo mas é pródiga nos orçamentos militares e forças de segurança Ocupa um espaço político que por vezes lhes foi oferecido pelo fracasso rotundo de governos provindos da esquerda mas que se entregaram ao catecismo neoliberal sob a ardilosa ou ingénua crença na possibilidade de um capitalismo de rosto humano um oximoro desde sempre ou pelo menos nos tempos de hoje Nalguns países a extremadireita associase a versões altamente politizadas e conservadoras da religião o evangelismo pentecostal em vários países da América Latina o catolicismo reacionário na Europa o hinduísmo político na Índia budismo radical no Myanmar o islamismo radical no Médio Oriente Defende as políticas neoliberais por vezes com extremismo superior à ortodoxia do FMI A extremadireita namora e é namorada pelos partidos de direita convencionais sempre que estes precisam de apoio às versões menos extremas de políticas neoliberais Na presente crise humanitária os governos de extremadireita ou de direita neoliberal falharam mais do que os outros na lutam contra a pandemia Ocultaram informação desprestigiaram a comunidade científica minimizaram os efeitos potenciais da pandemia utilizaram a crise humanitária para chicana política Sob o pretexto de salvar a economia correram riscos irresponsáveis pelos quais esperamos serão responsabilizados Deram a entender que uma dose de darwinismo social seria benéfica a eliminação de parte das populações que já não interessam à economia nem como trabalhadores nem como consumidores ou seja populações descartáveis como se a economia pudesse prosperar sobre uma pilha de cadáveres ou de corpos desprovidos de qualquer rendimento Os exemplos mais marcantes são a Inglaterra os EUA o Brasil a Índia as Filipinas e a Tailândia Lição 5O colonialismo e o patriarcado estão vivos e reforçamse nos momentos de crise aguda As manifestações são múltiplas eis algumas delas As epidemias de que o novo coronavírus é a mais recente manifestação só se transformam em problemas globais graves quando as populações dos países mais ricos do Norte global são atingidas Foi isso que sucedeu com a epidemia da SIDAAIDS Em 2016 a malária matou 405 mil pessoas a esmagadora maioria em África e isso não foi notícia Os exemplos podiam multiplicarse Por outro lado os corpos racializados e sexualizados são sempre os mais vulneráveis perante um surto pandémico Os seus corpos estão à partida mais vulnerabilizados pelas condições de vida que lhes são impostas socialmente pela discriminação racial ou sexual a que são sujeitos Quando o surto ocorre a vulnerabilidade aumenta porque estão mais expostos à propagação do vírus e se encontram onde os cuidados de saúde nunca chegam favelas e periferias pobres da cidade aldeias remotas campos de internamento de refugiados prisões etc Realizam tarefas que envolvem mais riscos quer porque trabalham em condições que não lhes permitem protegerse quer porque são cuidadoras da vida de outros que têm condições para se proteger Por último em situações de emergência as políticas de prevenção ou de contenção nunca são de aplicação universal São pelo contrário selectivas Por vezes são aberta e intencionalmente adeptas do darwinismo social propõemse garantir a sobrevivência dos corpos socialmente mais valorizados os mais aptos e os mais necessários para a economia Outras vezes limitamse a esquecer ou negligenciar os corpos desvalorizados Lição 6 O regresso do Estado e da comunidade Os três princípios de regulação das sociedades modernas são o Estado o mercado e a comunidade Nos últimos quarenta anos foi dada prioridade absoluta ao princípio do mercado em detrimento do Estado e da comunidade A privatização dos bens sociais colectivos tais como a saúde a educação a água canalizada a electricidade os serviços de correios e telecomunicações e a segurança social foi apenas a manifestação mais visível da prioridade dada à mercantilização da vida colectiva Mais insidiosamente o próprio Estado e a comunidade ou sociedade civil passaram a ser geridos e avaliados pela lógica do mercado e por critérios de rentabilidade do capital social Isto sucedeu tanto nos serviços públicos como nos serviços de solidariedade social Foi assim que as universidades públicas foram sujeitas à lógica do capitalismo universitário com os rankings internacionais a proletarização produtivista dos professores e a conversão dos estudantes em consumidores de serviços universitários Foi também assim que surgiram as parcerias público privadas quase sempre um mecanismo de transferência de recursos públicos para o sector privado Foi finalmente assim que as organizações de solidariedade social entraram no comércio da filantropia e do cuidado As pandemias mostram de maneira cruel como o capitalismo neoliberal incapacitou o Estado para responder às emergências As respostas que os Estados estão a dar à crise variam de Estado para Estado mas nenhum pode disfarçar a sua incapacidade a sua falta de previsibilidade em relação a emergências que têm vindo a ser anunciadas como de ocorrência próxima e muito provável Estou certo de que nos próximos tempos esta pandemia nos dará mais lições e de que o fará sempre de forma cruel Se seremos capazes de aprender é por agora uma questão em aberto Capítulo 5 O futuro pode começar hoje A pandemia e a quarentena estão a revelar que são possíveis alternativas que as sociedades se adaptam a novos modos de viver quando tal é necessário e sentido como correspondendo ao bem comum Esta situação tornase propícia a que se pense em alternativas ao modo de viver de produzir de consumir e de conviver nestes primeiros anos do século XXI Na ausência de tais alternativas não será possível evitar a irrupção de novas pandemias as quais aliás como tudo leva a crer podem ser ainda mais letais do que a actual Ideias sobre alternativas certamente não faltarão mas poderão elas conduzir a uma acção política no sentido de as concretizar No curto prazo o mais provável é que finda a quarentena as pessoas se queiram assegurar de que o mundo que conheceram afinal não desapareceu Regressarão sofregamente às ruas ansiosos por voltar a circular livremente Irão aos jardins aos restaurantes aos centros comerciais visitarão parentes e amigos regressarão às rotinas que por mais pesadas e monótonas que tenham sido parecerão agora leves e sedutoras No entanto o regresso à normalidade não será igualmente fácil para todos Quando se reconstituirão os rendimentos anteriores Estarão os empregos e os salários à espera e à disposição Quando se recuperarão os atrasos na educação e nas carreiras Desaparecerá o Estado de excepção que foi criado para responder à pandemia tão rapidamente quanto a pandemia Nos casos em que se adoptaram medidas de protecção para defender a vida acima dos interesses da economia o regresso à normalidade implicará deixar de dar prioridade à defesa da vida Haverá vontade de pensar em alternativas quando a alternativa que se busca é a normalidade que se tinha antes da quarentena Pensarseá que esta normalidade foi a que conduziu à pandemia e conduzirá a outras no futuro Ao contrário do que se possa pensar o imediato pósquarentena não será um período propício a discutir alternativas a menos que a normalidade da vida a que as pessoas quiserem regressar não seja de todo possível Tenhamos em mente que no período imediatamente anterior à pandemia havia protestos massivos em muitos países contra as desigualdades sociais a corrupção e a falta de protecção social Muito provavelmente quando terminar a quarentena os protestos e os saques voltarão até porque a pobreza e a extrema pobreza vão aumentar Tal como anteriormente os governos vão recorrer à repressão até onde for possível e em qualquer caso procurarão que os cidadãos baixem ainda mais as expectativas e se habituem ao novo normal Na ausência de alternativas outras pandemias ocorrerão mas essa probabilidade deixa de ser uma questão política É que os políticos que enfrentaram esta crise já não serão os que terão de enfrentar a próxima A meu ver só não será assim se a cidadania organizada partidos políticos movimentos e organizações sociais mobilizações espontâneas de cidadãos e cidadãs resolver pôr fim à separação entre processos políticos e processos civilizatórios que ocorreu simbolicamente a partir da queda do Muro de Berlim Com este acontecimento político consolidouse a partir do Norte global a ideia de que não havia alternativa ao capitalismo e a tudo o que ele acarreta Até então pelo menos desde o início do século XX o debate sobre alternativas ao capitalismo ocorria no seio do processo político e este na medida em que as discutia assumia uma dimensão civilizatória Eram postas na agenda de debate alternativas económicas sociais políticas e culturais que apontavam para horizontes pós capitalistas modelos de desenvolvimento de vida e de sociedade que atenuariam a agressão cada vez mais intensa à natureza induzida pelo capitalismo e tudo o que ele envolve A grande maioria de tais alternativas nada tinha que ver com as soluções que vigoravam do outro lado do Muro de Berlim o socialismo soviético mas a simples existência destas legitimava que se discutissem outras alternativas Nisto consistia a articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios Com a queda do Muro de Berlim esta articulação desfezse Os debates políticos passaram a cingirse à gestão das soluções propostas ou impostas pela desordem capitalista vigente e os debates civilizatórios na medida em que continuaram passaram a ocorrer fora dos processos políticos Esta separação foi fatal porque com ela as sociedades deixaram de poder pensar em alternativas de vida que tornassem menos provável a ocorrência de fenómenos como o aquecimento global os desastres ditos naturais a perda da biodiversidade a ocorrência cada vez mais frequente de acontecimentos meteorológicos extremos tsunamis ciclones inundações secas subida do nível do mar decorrente do degelo dos glaciares e em resultado de tudo isso a maior ocorrência de epidemias e de pandemias cada vez mais globais e letais Só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios será possível começar a pensar numa sociedade em que humanidade assuma uma posição mais humilde no planeta que habita Uma humanidade que se habitue a duas ideias básicas há muito mais vida no planeta do que a vida humana já que esta representa apenas 001 da vida existente no planeta a defesa da vida do planeta no seu conjunto é a condição para a continuação da vida da humanidade De outro modo se a vida humana continuar a pôr em causa e a destruir todas as outras vidas de que é feito o planeta Terra é de esperar que essas outras vidas se defendam da agressão causada pela vida humana e o façam por formas cada vez mais letais Nesse caso o futuro desta quarentena será um curto intervalo antes das quarentenas futuras A nova articulação pressupõe uma viragem epistemológica cultural e ideológica que sustente as soluções políticas económicas e sociais que garantam a continuidade da vida humana digna no planeta Essa viragem tem múltiplas implicações A primeira consiste em criar um novo senso comum a ideia simples e evidente de que sobretudo nos últimos quarenta anos vivemos em quarentena na quarentena política cultural e ideológica de um capitalismo fechado sobre si próprio e a das discriminações raciais e sexuais sem as quais ele não pode subsistir A quarentena provocada pela pandemia é afinal uma quarentena dentro de outra quarentena Superaremos a quarentena do capitalismo quando formos capazes de imaginar o planeta como a nossa casa comum e a Natureza como a nossa mãe originária a quem devemos amor e respeito Ela não nos pertence Nós é que lhe pertencemos Quando superarmos esta quarentena estaremos mais livres das quarentenas provocadas por pandemias