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AUTO DA BARCA DO INFERNO GIL VICENTE Obra anotada e atualizada para a grafia do português corrente pela equipa da LusoLivros Esta obra respeita as regras do Novo Acordo Ortográfico A presente obra encontrase sob domínio público ao abrigo do artº 31 do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos 70 anos após a morte do autor e é distribuída de modo a proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício da sua leitura Dessa forma a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância Foi a generosidade que motivou a sua distribuição e sob o mesmo princípio é livre para a difundir Para encontrar outras obras de domínio público em formato digital visitenos em httplusolivrosnet Auto de moralidade criado por Gil Vicente em dedicação à sereníssima e muito católica rainha Leonor nossa senhora e representado por sua ordem ao poderoso príncipe e muito alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome Começa a declaração e argumento da obra Primeiramente no presente auto pressupõemse que no momento em que acabamos de morrer chegamos subitamente a um rio o qual por força teremos de passar num dos dois batéis que estão atracados num porto Um deles vai em direção ao paraíso e o outro para o inferno Os tais batéis têm cada um os seus comandantes na proa o do paraíso um anjo e o do inferno um comandante infernal e um companheiro O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Pajem que lhe segura um manto muito comprido com uma mão e uma cadeira de espaldas com a outra O comandante do Inferno começa o seu pregão mesmo antes do Fidalgo se aproximar DIABO À barca à barca venham lá Que temos gentil maré dirigindose ao companheiro Ora põe o barco à ré vira a traseira do barco COMPANHEIRO DO DIABO Está feito está feito DIABO Bem feito está Vai agora em má hora Esticar aquele palanco corda E desocupar aquele banco Para a gente que virá falando para o ar À barca à barca huu Depressinha que se quer ir Oh que tempo para partir Louvores a Belzebu dirigindose ao companheiro Mas então que fazes tu Limpa todo aquele leito espaço entre o Mastro e a Popa do barco COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixame esse cu Liberta aquela poja corda com que se vira a vela E afrouxa aquela driça corda com que se levanta a vela COMPANHEIRO Ohoh caça Ohoh iça iça DIABO Oh que caravela esta Põe bandeiras que é festa Vela ao alto Âncora a pique Ó poderoso Dom Henrique Cá vindes vós Que coisa é essa Aproximase o Fidalgo e chegando ao barco infernal diz FIDALGO Esta barca para onde vai Que assim está apercebida preparada DIABO Vai para a ilha perdida E há de partir daqui a nada FIDALGO E para lá vai a senhora DIABO Sou um senhor Ao vosso serviço FIDALGO Pareceme isto um cortiço uma embarcação reles DIABO Porque a vedes daí de fora FIDALGO Pois sim e por que terra passais DIABO Para o inferno senhor FIDALGO Uma terra semsabor sem piada nenhuma DIABO O quê Mas também disso zombais FIDALGO E que passageiros achais Para tal embarcação DIABO Vejovos eu em feição Para ir no nosso cais FIDALGO Parecete a ti assim DIABO Em que esperas ter guarida salvação FIDALGO Que deixo na outra vida Quem reze sempre por mim DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi Tu que viveste a teu prazer Pensando cá guarnecer salvareste Por aqueles que lá rezam por ti Embarcai agora embarcai Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira Como também passou o vosso pai FIDALGO O quê O quê O quê É lá que ele está DIABO Vai ou vem Embarcai depressa Pelo que em vida escolheste Assim cá vos contentais E como pela morte passastes Tereis que passar o rio FIDALGO Não há aqui outro navio DIABO Não senhor que este preparaste E assim que expiraste morreste Me deste logo sinal FIDALGO E que sinal foi esse tal DIABO De que vós vos contentastes que estava condenado FIDALGO Para a outra barca me vou Já ao pé da outra barca Oh da barca Para onde ís Oh barqueiros Não me ouvis Respondeime Olá Ó O Anjo ignorao Por deus aviado estou perdido Quanto a isto é já pior Que jericocins salvanor Mas que burro com o devido respeito Pensam que eu sou um grou um corvo ou uma ave que diz coisas sem sentido ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais Pois morri tão sem aviso Se a barca do Paraíso É esta em que navegais ANJO Esta é Que desejais FIDALGO Que me deixeis embarcar Sou fidalgo de solar É bom que me recolhais ANJO Não se embarca tirania Neste batel divinal FIDALGO Não sei porque negais entrada À minha senhoria ANJO Para a vossa fantasia vaidade Muito pequena é esta barca FIDALGO Para senhor de bom nome Não há aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio a prancha e apetrechos para se subir para o barco Levaime desta ribeira ANJO Não vindes cá a pensar De entrar neste navio Aquele ali vai mais vazio Ali a cadeira entrará O rabo caberá E todo vosso senhorio Ireis ali mais espaçoso Vossa fumosa senhoria arrogante A pensar na vossa tirania Contra o pobre povo queixoso E porque de generoso Desprezaste os pequenos Acharvosei tanto menos Quanto mais foste fumoso arrogante Quer o Anjo dizer com isto que quer que o Fidalgo reflita e perceba que quanto mais ele era arrogante e mau mais ele perdia o valor da sua própria pessoa Grita o Diabo da sua barca DIABO À barca à barca senhores Oh que maré tão de prata Um ventozinho que mata E valentes remadores Diz a cantar Vós me vireis à mão À mão me vireis FIDALGO Para o Inferno então O inferno será para mim Oh triste Enquanto vivi Não pensei que seria Pensei que era fantasia Pensava ser adorado Confiei no meu estado E não vi que me perdia Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura tristeza DIABO Embarque vossa doçura Que cá nos entenderemos Tomareis um par de remos Veremos como remais E chegando ao nosso cais Verá como bem vos serviremos FIDALGO Esperaime vós aqui Voltarei à outra vida Para ver a minha dama querida Que se quer matar por mim DIABO Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Ó namorado sandeu atraiçoado cornudo O maior que já vi FIDALGO Como poderá isso ser Ela que me escrevia todos os dias DIABO Quantas mentiras que lias E tu doido de prazer FIDALGO Para que está a escarnecer Se não havia quem me quisesse mais bem DIABO Assim deverias viver amém Como ela te havia de querer O Diabo goza com o Fidalgo dizendolhe que ele deveria viver tanto quanto a namorada o amava ou seja nem mais um segundo de vida FIDALGO Isso quanto ao que eu conheço DIABO Pois estando tu a morrer Estava ela a requebrarse a ter relações sexuais Com outro de menos preço FIDALGO Dáme licença te peço Que vá ver a minha mulher DIABO E ela se te voltar a ver Despenharseá de um cabeço Tudo quanto ela hoje rezou Entre os seus gritos e gritas Foi a dar graças infinitas A quem a desassombrou a libertou FIDALGO Quanto ela bem chorou DIABO E não há choro de alegria FIDALGO E as lástimas que dizia DIABO A sua mãe lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Aqui está a prancha Ponha o pé FIDALGO Entremos pois se assim é DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Que entretanto virá mais gente FIDALGO Ó barca como és ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao rapaz da cadeira DIABO Tu não entras cá Vaite daqui Essa cadeira está cá a mais Coisa que esteve na igreja Não se há de embarcar aqui Aqui darlheão outras de marfim Mais chicotadas de dores Dadas com tais lavores Que ficará fora de si Falando novamente para o ar À barca à barca boa gente Que queremos dar à vela É chegar a ela É chegar a ela Aproximaivos aproximaivos Muitos e de boa mente Oh que barca tão valente Aparece um Onzeneiro e pergunta ao barqueiro do Inferno dizendo Indivíduo que vive a emprestar dinheiro aos outros e a cobrar depois juros altos Eram os banqueiros da altura ONZENEIRO Para onde navegais DIABO Oh Em que má hora chegais Onzeneiro meu parente Porque tardastes vós tanto ONZENEIRO Mais ainda eu quisera tardar Na safra do apanhar Na tarefa de ganhar dinheiro Deume Saturno o quebranto a morte Saturno era o deus romano do Tempo DIABO Ora muito me espanto por ver Não vos salvar o dinheiro ONZENEIRO Nem para o barqueiro Me deixaram ficar com algo O Onzeneiro referese novamente às mitologia grega segundo a qual os mortos teriam que atravessar o rio Aqueronte pagando uma moeda ao barqueiro de nome Caronte pela passagem Queixase ele de que não o deixaram levar nenhum do seu dinheiro consigo quando morreu nem para pagar ao tal barqueiro da lenda DIABO Ora então entrai entrai aqui ONZENEIRO Não hei eu de aí embarcar DIABO Oh Que gentil recear E que divertido para mim ONZENEIRO Ainda agora faleci Deixame escolher um batel DIABO Oh São Pimentel Porque não irás aqui ONZENEIRO E para onde é a viagem DIABO É para onde tu hás de ir ONZENEIRO E vamos já partir DIABO Não penses em mais linguagem Deixate de mais conversas ONZENEIRO Mas para onde é a passagem DIABO Para a infernal comarca ONZENEIRO Dix Não vou eu em tal barca uma interjeição de espanto Aquela outra tem avantagem melhor aspeto Dirigese à barca do Anjo e diz ONZENEIRO Oh da barca Olá Ó Haveis já de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu para o Paraíso vou ANJO Pois quanto a mim muito fora estou não contes comigo De te levar para lá Aquela outra barca te aceitará Ali vai quem enganou ONZENEIRO Porquê ANJO Porque esse bolsão Ocuparia todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio ANJO Não no teu coração ONZENEIRO Lá me ficou de roldão perdida A minha fazenda e alheia riqueza ANJO Ó onzena como és feia ozena usura avareza E filha da maldição Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz ONZENEIRO Oh da barca Oh Demo barqueiro Sabeis vós no que me fundo penso Quero lá voltar ao mundo E trazer o meu dinheiro Aquele outro marinheiro Porque me viu vir sem nada Deume tanta borregada insultos Como os barqueiros lá do Barreiro DIABO Entra entra E remarás Não percamos mais a maré ONZENEIRO Todavia DIABO Por força assim é Como fizeste cá entrarás Irás servir Satanás Porque sempre ele te ajudou ONZENEIRO Oh triste de mim Quem me cegou DIABO Calate que depois chorarás Ao entrar o Onzeneiro no batel encontra o Fidalgo embarcado e diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdês Também está cá vossa senhoria FIDALGO Dê ao demo a cortesia DIABO Que ouvi Falai vós em ser cortês Vós fidalgo que penseis Que estais na vossa pousada Darvosei tanta pancada Como a um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao barqueiro do Inferno PARVO Oh desta DIABO Quem é PARVO Eu sou É esta a nossa naviarra DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Ah Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Oh Pelo pesar do meu avô dor choro Resumindo Vim a adoecer E em má hora fui morrer E nela para mim só E numa altura em que estava só DIABO E de que morreste PARVO De quê Acho que de caganeira DIABO De quê PARVO De caga merdeira Que má rabugem que te dê um insulto DIABO Entra Põe aqui o pé PARVO Ó pá Que não tombe o zambuco a barcaça Expressão do Parvo que quer dizer que o Diabo está a apressálo Ou seja com tanta pressa não vá a barcaça virase DIABO Entra tolo eunuco Que nos vai embora a maré PARVO Aguardai aguardai um pouco E aonde havemos nós de ir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Haaa DIABO Ao Inferno Entra cá PARVO Ao Inferno Espera lá Ui Ui É a Barca do cornudo Pêro de Vinagre Beiçudo Lenhador de Alverca uh uh SAPATEIRO da Candosa Entrecosto de carrapato Ui Ui Caga no sapato Filho de uma grande aleivosa prostituta A tua mulher é tinhosa E há de parir um sapo Achatado num guardanapo Neto de uma cagosa Ladrão de cebolas Ui Ui Excomungado das igrejas Burrelas cornudo sejas Toma o pão que te caiu A mulher que te fugiu Para Ilha da Madeira toma aquilo que mereces Cornudo até à mangueira Toma o pão que te caiu Uh Uh Lançote uma pulha um manguito Toma toma Pica naquela Hump Hump Caga na vela Cabeça de grulha Perna de cigarra velha Caganita de coelha Pelourinho da Pampulha Mija na agulha mija na agulha Chega o Parvo ao batel do Anjo diz PARVO Oh da barca ANJO Que me queres PARVO Queresme passar além ANJO Quem és tu PARVO Talvez alguém ANJO Tu passarás se quiseres Porque em todas os teus afazeres Por malícia não erraste Da tua simpleza te bastastes Para gozar dos prazeres Espera no entanto aí Veremos se vem mais alguém Merecedor de tal bem Que deva entrar aqui Vem Sapateiro com o seu avental e carregado de formas de sapatos Chega ao batel infernal e diz SAPATEIRO Ó da barca DIABO Quem vem aí Oh Santo sapateiro honrado Como vens tão carregado SAPATEIRO Mandaramme vir assim E para onde é a viagem Os objetos que as personagem carregam representam os pecados que cometeram em vida DIABO Para o lago dos danados SAPATEIRO E os que morrem confessados Onde têm a sua passagem DIABO Não digas tais linguagem Esta é a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa E da puta dessa barcagem Como poderá isso ser Sendo eu confessado e comungado Expressão que dizer não quero esse convite para nada mesmo que fosse para uma festa DIABO Tu morreste excomungado Mesmo sem o saberes O que esperavas depois de viver Fazendo dois mil engano Tu roubaste em trinta anos O povo com a tua mestria com o teu oficio Embarca esta barca é para ti Que há já muito que te espero SAPATEIRO Pois digote que não quero DIABO Mas hás de ir sim sim SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi Não me hão elas de agora prestar valer DIABO Ouvir missa depois roubar É caminho para aqui SAPATEIRO E as ofertas que servirão as esmolas E as horas dos finados as rezas e os velórios que se faziam quando alguém estava a morrer para essa pessoa ir para o céu DIABO E os dinheiros mal cobrados Que foi da tua satisfação SAPATEIRO Oh Não brinques oh cordovão mentiroso Nem à puta da badana da velha ou seja da tua mãe ou da tua avó Se é esta traquitana Para ir o João Antão Ora juro a Deus que mete graça Dirigese à barca do Anjo e diz SAPATEIRO Oh da santa caravela Poderás levarme nela ANJO A tua carga te embaraça SAPATEIRO Não há caridade que Deus me faça Isto em qualquer lugar irá ANJO Aquela barca que ali está Leva quem rouba de praça descaradamente Oh almas embaraçadas desavergonhadas SAPATEIRO Ora muito eu me maravilho me espanto Por terdes por grão peguilho por incómodo Quatro forminhas cagadas Que podem bem ir aí aconchegadas Aí num cantinho dessa barca umas coisas insignificantes referindose à formas dos sapatos que trazia consigo ou seja os seus pecados ANJO Se tivesses vivido direito Elas eram cá escusadas Diz o Anjo que se o Sapateiro vivido com retidão não trazia agora nada carregado consigo SAPATEIRO Então determinais Que eu vá cozer ao Inferno ANJO Escrito estás no caderno Das ementas infernais O sapateiro volta à barca dos danados e diz SAPATEIRO Oh barqueiros Que aguardais Vamos venha prancha logo E levaime àquele fogo Não nos detenhamos mais Vem um Frade com uma rapariga pela mão um escudo e uma espada na outra e um capacete debaixo do capuz E ele mesmo fazendo uma vénia começa a dançar cantando FRADE Tairairairarã taririrã tarairairairã tairirirã tãtã taririmrimrã Huhá DIABO Que é isso padre Quem vem lá FRADE Deo gratias Sou cortesão Graças a Deus Sou homem da corte De todos os personagens usados por Gil Vicente nesta peça o Frade é o mais criticado Certamente era o que mais fazia rir ao público da época pois era em si gozado por todas as camadas sociais DIABO Sabes também o tordião Canto que uma pessoa trauteia quando faz uma dança improvisada Também pode significar um tipo de dança feita sem ordem nem compasso certo FRADE Pois então Ora se não sei DIABO Pois entrai Eu tocarei E faremos um serão uma festa Essa dama é vossa FRADE Por minha eu a tenho E sempre a tive como minha DIABO Fizestes bem que é formosa Mas não vos punham lá grossa censuravam No vosso convento santo FRADE Eles lá fazem outro tanto Diz o Frade perante a admiração do Diabo de que os outros frades também tinham amantes como a dele DIABO Que coisa tão preciosa Entrai padre reverendo FRADE E para onde levais a gente DIABO Para aquele fogo ardente Que não temestes vivendo FRADE Juro a Deus que não te entendo E este hábito de nada vale as veste religiosas DIABO Gentil padre mundanal A Belzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela fé de Jesus Cristo Que eu não posso entender isto Hei de eu ser condenado Um padre tão enamorado E tanto dado à virtude Assim Deus me dê saúde Que eu estou muito admirado DIABO Não penses em mais detença demora Embarcai e partiremos Tomareis um par de ramos FRADE Não ficou isso em avença em acordo DIABO Pois dada está já a sentença FRADE Por Deus Essa é que era ela Não vai em tal caravela A minha senhora Florença Como assim Só por ser namorado E folgar com uma mulher Há de um frade de se perder Com tanto salmo rezado DIABO Ora estás bem aviado Estás bem aviado ou por outras palavras estás bem servido é uma expressão que quer dizer que essa determinada pessoa está numa má situação FRADE Direi eu bem corrigido DIABO Devoto padre marido Haveis de cá pingado haveis cá lugar guardado O Frade descobre a cabeça tirando o capuz apareceulhe o capacete e diz o Frade Muitas ordem religiosas da idade média foram fundadas por monges guerreiros Os monges guerreiros por exemplo das ordens militares do Templo dos Hospitalários de Calatrava mais tarde Ordem de Avis e de Santiago de Espada desempenharam um papel muito importante nas lutas das Cruzadas FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO Ó padre Frei Capacete Isso mais parece um barrete FRADE Sabeis é da ordem A espada é roloa ordinária E este escudo rolão reles Advém de ralé algo que é comum DIABO Dê Vossa Reverencia lição De esgrima que é coisa boa Começou o frade a dar lição de esgrima com a espada e o escudo e diz desta maneira FRADE Deo gratias Damos caçada Para sempre contra uns Um fendente ora pois Golpe de esgrima normalmente feito de cima para baixo com o punho Esta é a primeira levada o primeiro ataque Alto Levantai a espada Uma estocada e um revés E depressa recolher os pés Que todo o cuidado é pouco Quando o recolher se tarda O ferir não é prudente Ora então Muito depressa Cortai na segunda guarda Guardeme Deus da espingarda Entendese por aqui por espingarda um tipo de arma como um mosquete ou a uma besta que existiam no seculo XVI Não a conceção de espingarda que surgiu um século depois E do homem ousado Aqui estou tão bem guardado Como uma palha na albarda a sela dos cavalos Fico com meia espada Óh lá Protegei as queixadas as caras DIABO Oh que valentes levadas ataques FRADE Isto ainda não é nada Damos outra vez caçada Contra uns mais um fendente E cortando com destreza Eis aqui a sexto feitada golpe Daqui saio com uma guia reviravolta E um revés da primeira Esta é o quinta verdadeira Oh Quantos assim eu feria Um padre que tal aprendia No Inferno há de ter pingos lugar Ah Não se preza a São Domingos Com tanta descortesia Voltou a tomar a rapariga pela mão dizendo Vamos à barca da Glória Começou o Frade a fazer o tordião e foram os dois a dançar até o batel do Anjo desta maneira FRADE Tarararairã tariririrã rairairã taririrã taririrã Huhá Deo gratias Há lugar cá Para minha reverência E a senhora Florença Também entrará cá PARVO Andor daqui para fora Roubaste o trinchão frade pedaço de carne referindose à rapariga que o frade trazia FRADE Senhora dáme a vontade querme parecer Que este feito mal está Vamos para onde havemos de ir Não se praza Deus com a ribeira E não vejo aqui maneira Senão enfim concrudir de aceitar as coisas têm de ser DIABO Haveis padre de vir FRADE Agasalhaime lá a Florença E cumprase essa sentença Apressemonos a partir Assim que o Frade foi embarcado veio uma Alcoviteira de nome Brízida Vaz a qual chegando à barca infernal diz desta maneira Uma alcoviteira era uma mulher de má fama ligada ao negócio da prostituição do qual ela era gerente e a tudo o que lhe estava ligado ou também a negócios fraudulentos de crendices pagãs como as mezinhas e remédios de cura O povo tomavaas como feiticeiras BRÍZIDA Ó da barca ó lá DIABO Quem chama BRÍZIDA BrízidaVaz DIABO dirigindose ao companheiro Mas o que espera ela rapaz Porque não entra ela já COMPANHEIRO Diz que não há de entrar cá Sem a Joana de Valdês Jona de Valdês já tinha sido anteriormente mencionada pelo Onzeneiro Devia ter sido uma personagem conhecida na época Há quem aponte que poderia ter sido uma amante do Bispo de A Valdês que tinha uma amante com a alcunha de Lucrécia não confundir com a infame Lucrécia Bórgia filha do Papa Alexandre VI a quem certamente o nome foi imitado DIABO Entrai vós e remai BRÍZIDA Eu não quero aí entrar DIABO Que saboroso recear BRÍZIDA Não é essa barca que eu cato procuro DIABO Não trazes vós muitos fatos BRÍZIDA O que me convém levar DIABO E o que tens para embarcar BRÍZIDA Seiscentos virgos postiços E três arcas de feitiços Que não podem mais levar hímens postiços usado pelas prostitutas para passarem por virgens Três armários de mentir E cinco cofres de enleios seduções E alguns furtos alheios Como joias de vestir Guardaroupa de encobrir Enfim casa movediça E um estrado de cortiça Com dois coxins de cobrir almofadas A maior carga era Essas moças que vendia Dessa mercadoria Trago eu muita boa fé Brízida Vaz traz consigo todos os apetrechos inerentes aos seus pecados que consistia em criar e fornecer meninas para os homens da época em particular para os fidalgos e autoridades eclesiásticas DIABO Ora ponde aqui o pé BRÍZIDA Ui E vou é para o Paraíso DIABO E quem te disse a ti isso BRÍZIDA Hei de lá ir nessa maré Eu sou uma mártir tal Açoites tenho levado E tormentos suportado Que ninguém me foi igual Se eu fosse para o fogo infernal Lá iria todo o mundo À outra barca lá ao fundo Me vou que é mais real relativo à realeza As prostitutas e as suas madames recebiam efetivamente chicotadas como castigo da justiça quando era apanhadas e sentenciada pelos tribunais Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo BRÍZIDA Barqueiro mano dos meus olhos Deita a prancha a Brízida Vaz ANJO Eu não sei quem te cá traz BRÍZIDA Peçoo de joelhos Pensais que trago piolhos Anjo de Deus minha rosa Eu sou aquela preciosa Que dava as moças aos molhos em grandes quantidades A que criava as meninas Para os cónegos da Sé padres e bispos Passaime por vossa fé Meu amor minhas boninas margaridas malmequeres Olho de perlinha fina pérola Eu sou apostolada Angelada e maritizada E fiz coisas muito divinas Santa Úrsula não converteu Tantas raparigas como eu Todas salvas pelo meu por mim E nenhuma se perdeu E graças Àquele do Céu Que todas acharam dono Pensais que dormia sono Nem ponto se me perdeu Nada me escapou à atenção ANJO Ora vai além embarcar Ali não estarás a importunar BRÍZIDA Pois estouvos eu contar O porque me haveis de levar ANJO Não penses em importunar Que não podes vir aqui BRÍZIDA E que má hora eu servi Pois não me há de aproveitar Volta Brízida Vaz à Barca do Inferno dizendo Ó barqueiros da má hora Venha a prancha pois aqui me vou Já há muito que aqui estou E pareço mal estar cá fora DIABO Ora entrai minha senhora E sereis bem recebida Se vivestes santa vida Vós o sentireis agora Assim que Brízida Vaz embarcou veio um Judeu com um bode às costas e chegando ao batel dos danados diz JUDEU Quem aí vai Ó marinheiro DIABO Oh Em que má hora vieste JUDEU De quem é esta barca que preste DIABO Esta barca é do barqueiro JUDEU Passaime que vos pago em dinheiro DIABO E o bode há cá vir JUDEU Pois também o bode há de ir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como passarei O bode era o animal de sacrifício da religião judaica DIABO Eu não passo cabrões JUDEU Eis aqui quatro tostões E mais vos pagarei Pela vida do Semifará Peçovos me passeis o cabrão Quereis mais outro tostão Nome Judeu possivelmente o da própria personagem DIABO Nem tu nem ele hão de vir cá JUDEU Porque não irá o judeu Onde vai Brízida Vaz E o senhor meirinho consente Ó senhor meirinho não irei eu Meirinho era uma expressão para uma figura autoritária ligado aos oficiais da justiça e por conseguinte à fidalguia O Judeu apela pois à autoridade do Fidalgo que está na barca Há aqui uma crítica velada pois predominava a ideia naquela altura de que os Judeus ricos controlavam a justiça e escavam assim muitas vezes à justiça DIABO E o fidalgo que lhe importa JUDEU Não manda ele este batel CORREGEDOR coronel Castigai este sandeu tolo Azará pedra miúda desgraçado Lodo charco fogo lenha Caganeira que te venha Má corrença que te acuda diarreia Por Deus que te sacuda Com a beca nos focinhos Fazes gozo dos meirinhos Diz filho da cornuda A beca é um tipo de veste de uso característico dos juízes têm sua origem nos trajes sacerdotais dos romanos PARVO Roubaste a cabra cabrão Pareceme vós a mim Um gafanhoto de Almeirim Chacinado num seirão morto numa festa Gil Vicente trata esta figura com um grande antisemitismo ódio ao povo Judeu sendo até repudiado pelo próprio Diabo mas à época tal como em muitas situações ao longa da história mundial havia efetivamente um grande ódio contra o povo Judeu incitado sobretudo pela igreja católica O Judeu era sempre visto como uma pessoa de mau caráter ganancioso rico por ser corrupto e fraudulento O facto de um Judeu ter sido morto por uma multidão em determinado sitio seria algo possível de ter ocorrido DIABO Judeu ali te passarão Porque vão mais despejados mais vazios referindose à barca do paraíso PARVO Ele mijou nos finados nos mortos Na igreja de São Gião 1 E comia a carne da panela No dia de Nosso Senhor 2 Goza com o salvador E mija na caravela 3 1 Antigamente os mortos eram enterrados debaixo das lajes da igreja 2 Quer dizer que comia carne na sextafeira santa em que diz a tradição se deve fazer jejum ou não comer carne não respeitando assim a doutrina católica 3 A caravela é a própria a igreja católica Já na bíblica se diz que a igreja é um barco DIABO Vamos vamos Demos à vela E vós Judeu ireis à toa Que sois muito ruim pessoa Levai o cabrão na trela Esta frase do Diabo tem dado azo a muito tipo de interpretação porque Gil Vicente não deixou explicito o que queria dizer efetivamente Diz o consenso geral que com isto o Diabo está a dizer que o Judeu é tão mau que vai para o inferno à toa ou seja não na barca mas a reboque ou num outro barco mais pequeno ou puxado por uma corda conforme queiram traspor essa ideia para o palco Outra interpretação diz que ele efetivamente entra dentro da barca já que ir á toa pode significar ir de qualquer maneira e a própria Brizida Vaz usa essa mesma expressão num diálogo seu mais à frente referindose a entrar mais alguém dentro da barca à toa Pode no entanto significar que o Judeu é tão mau que nem direito tem a entrar na barca e que tal como o rapaz da cadeira do Fidalgo terá que ir à toa ou seja terá que andar a errar a vaguear por ali Esta última ideia não é assim tão descabida já que está associada ao mito do Judeu Errante aquele que por castigo foi negada a morte e a entrada tanto no céu como no inferno e que anda a vaguear pelo mundo até ao fim dos tempos Vem um Corregedor carregado de manuscritos e chegando à barca do Inferno com sua vara na mão diz O corregedor era o magistrado um juiz administrativo e judicial que representava a Coroa em cada uma das comarcas de Portugal CORREGEDOR Ó da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz DIABO Oh amante de perdiz Que gentil carga trazeis O Diabo goza com o corredor pois perdiz é uma ave que se dizia usar como pagamento para subornar alguém pedindolhe favores Ao dizer que o corregedor é um apreciador de perdizes está a dizer que ele era um juiz que aceitava subornos CORREGEDOR Pela minha aparência percebereis Que não é ela do meu jeito que não costumo levar carga DIABO Como vai lá o direito CORREGEDOR Nestes autos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos O que diz aí nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poremos CORREGEDOR Como À terra dos demos Há de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor Embarcai e remaremos Ora entrai já que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris não Não isso está prescrito nas leis Era costume as pessoas ligadas à justiça estudarem o latim pois as primeiras leis fundaramse no direito romano e como tal o domínio do latim estava ligado à erudição O povo da altura não tinha no entanto o latim como algo que lhes fosse completamente desconhecido pois as missas a que se impunha que todos assistissem aos domingos eram todas ditas em latim um facto que só em meados de 1900 é que se abandonou Por outro lado o português arcaico da época era por si também ainda muito próximo do latim romano por isso é que as frases e expressões latinas utilizadas entre o corregedor e o Diabo eram à altura compreendidas mais ou menos bem pelo público geral DIABO Ita Ita Dai cá a mão sim sim em latim Remaremos um remo destes Fazei conta que nascestes Para ser nosso companheiro dirigindose ao companheiro diabrete Que fazes tu barzoneiro preguiçoso Estende essa prancha Prestes despachate CORREGEDOR Oh Renego da viagem E de quem me há de levar Há aqui meirinho do mar Juiz ou magistrado DIABO Não há tal costumagem costume CORREGEDOR Não entendo esta barcagem Nem hoc nom potest esse E isso não pode ser DIABO Ora se vos parecesse se vós pensais Que não sei mais dessa linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Oh Videtis qui petatis Vede que pedis Super jure magestatis algo acima do direito de majestade Tem o vosso mando vigor DIABO Quando éreis ouvidor Nonne accepistis rapina não aceitaste suborno Pois ireis agora à bolina à vela Onde a nossa pessoa for Oh E que isca é esse papel Para um fogo que eu cá sei CORREGEDOR Domine memento mei SenhorDeus lembraivos de mim DIABO Non es tempus bacharel Não há tempo bacharel Imbarquemini in batel embarcai no batel Quia Judicastis malitia que a justiça é maldita Bacharel é um grau académico CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit Eu sempre agi com justiça DIABO E as peitas dos judeus peitas peitos das aves subornos Que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu não o tomava não era comigo Eram lá percalços seus Nom som pecatus meus não são meus pecados Peccavit uxore mea quem pecou foi a minha esposa DIABO Et vobis quoque cum ea E vós também com ela A Deus não temeste E de grande modo enriqueceste Sanguinis laboratorum com o sangue dos que trabalham Ignorantis peccatorum Pecaste ignorandoos Ut quid eos non audistis E porque não os atendeste CORREGEDOR Vós barqueiros nonne legistis não lestes Que o dinheiro quebra os penedos as montanhas E que os direitos ficam quedos parados suspensos Sed aliquid tradidistis Se algo é dado em troca DIABO Ora entrai nestes negros fados Ireis para ao lago dos cães E vereis os escrivães Como estão tão prosperados ricos CORREGEDOR E na terra dos danados Estão os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas Estão lá bem fragoados martelados como era o metal na forja Estando o Corregedor nesta conversa com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado de livros e diz o Corregedor ao Procurador O procurador é um mandatário da Justiça aqui a representar a classe dos advogado CORREGEDOR Ó senhor Procurador PROCURADOR Beijovos as mãos Juiz Que diz este barqueiro Que diz DIABO Que sereis bom remador Entrai bacharel doutor E ireis a dar à bomba bomba de bombear um mecanismo que retirava a água que entrava dentro dos barcos PROCURADOR Este barqueiro zomba Gostais de ser gozador Essa gente que aí está Para onde a levais DIABO Para as penas infernais PROCURADOR Dix Eu é que não vou para lá uma interjeição de espanto Outro navio ali está Muito melhor assombrado de melhor aspecto DIABO Ora estás bem aviado Entra em muito má hora CORREGEDOR Confessastesvos doutor PROCURADOR Bacharel sou Não tive tempo Não pensei que era preciso Nem de morte a minha dor E vós senhor Corregedor CORREGEDOR Eu muito bem me confessei Mas tudo quanto roubei Encobri ao confessor PROCURADOR Porque se o não tornais devolveres Não vos querem absolver E é muito mau devolver Depois que o apanhais de ter roubado DIABO Pois porque não embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo Porque esperamos por Deus DIABO Imbarquemini in barco meo Embarcai no meu barco Para quê esperais mais Vãose ambos ao batel da Glória e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Ó barqueiro dos gloriosos Passainos neste batel ANJO Oh Pragas para papel E para as almas odiosos Como vindes preciosos Sendo filhos da ciência CORREGEDOR Oh habeatis clemência tende clemência E passainos como vossos PARVO Ó homens dos breviário livros Rapinastis coelhorum vós rapinaste coelho Et pernis perdigotorum e pernas de perdiz Para além de mijar nos campanários CORREGEDOR Oh Não nos sejais contrários não seja mau ou não nos complique mais a situação Pois não temos outra ponte PARVO Beleguinis ubi sunt1 onde estão os carcereiros Ego latinus macairos2 o meu latim é macarrónicomaravilhoso 1 Beleguins eram os oficiais da Justiça Juane o Parvo está a reivindicar que alguém venha prender aqueles dois 2 Frase cómica dirigida provavelmente ao público porque o seu latim é uma grande trapalhada ANJO A justiça divinal Mandavos vir carregados Porque têm de ser embarcados Naquele batel infernal CORREGEDOR Oh Não atende São Marçal Com a ribeira nem com o rio Penso que é desvario Fazernos tamanho mal Diz o corregedor que São Marçal não encontra aquele sitio para lhes atender as preces e os salvar PROCURADOR Que ribeira é esta tal PARVO Parecesme vós a mim Como um cagado nebri 1 Mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis 2 embarcai na má barcaça tradução provável 1 O Parvo continua a fazer o seu papel de denunciador daqueles que aparecem junto à barca do paraíso chegando inclusive a dizer de onde é que eles vêm e ofendendoos com isso nebri é uma palavra da falcoaria que se refere ao falcãonebri cagado nebri é pois um insulto uma ave de rapina cagada ou seja mal feita que vinha das terras do Sardoal 2 mais uma frase humorística a tentar imitar o latim mas sem o conseguir CORREGEDOR Venha a negra prancha para cá Vamos ver esse segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que cá se dirá E assim que os dois entraram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor para a Brízida Vaz porque a conhecia CORREGEDOR Oh Em má hora vos vejo Senhora Brízida Vaz BRÍZIDA Já nem aqui estou em paz Pois nem aqui me deixais Cada hora a mim sentenciada Foi justiça que vós mandastes fazer Brízida com estas palavras queixase de que em vida fartavase de ser perseguida pela lei e que fora sentenciada muitas vezes pelo Corregedor CORREGEDOR E vós volta a tecer E a urdir outra meada E responde o corregedor que Brizida voltava sempre a fazer o mesmo apesar das sentenças que lhe eram dadas BRÍZIDA Diz ó juiz da alçada Vem lá o Pêro de Lisboa Leváloemos à toa E irá também nesta barcada O Pêro de Lisboa dizem os historiadores que era um escrivão muito conhecido na altura em Lisboa pela má fama É pois uma paródia dirigida a uma figura da época que já lhe apontava o inferno como destino final Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal aventurados diz o barqueiro ao que chega DIABO Vamos embora enforcado Que diz lá o Garcia Moniz Figura provavelmente conhecida à época cuja identidade é hoje desconhecida e dada a muita suposição Seria alguém importante na corte portuguesa ENFORCADO Eu te direi que ele diz Que fui bemaventurado Em morrer dependurado pendurado Como o tordo na buiz armadilha E diz que os feitos que eu fiz Me fazem canonizado me fazem santo DIABO Entra cá e governarás guiarás o barco Até às portas do Inferno ENFORCADO Não é essa a nau que eu quero DIABO Digote eu que aqui irás ENFORCADO Oh Isso não por Barrabás Então se Garcia Moniz dizia Que os que morrem como eu Ficam livres de Satanás O criminoso que foi libertado no lugar de Cristo a pedido da população enraivecida E disse que Deus quisera De ser eu enforcado E que fosse Deus louvado Pois em boa hora eu nascera E que o Senhor me escolhera E que por bem vi os beleguins pelo seu bem foi levado aos oficiais da justiça E com isto mil latins Muito lindos feitos de cera Mil latins serão os discursos jurídicos e religiosos de cera serão as velas Para o enforcado um condenado simplório faz tudo parte da mesma coisa E no passo derradeiro Disseme nos meus ouvidos Que o lugar dos escolhidos Era a forca e o Limoeiro O Limoeiro era uma prisão da altura em Lisboa com a reputação de ser muito dura Nem guardião do mosteiro Tinha tão santa gente Como o Afonso Valente Que é agora carcereiro DIABO Davate consolação isso Ou algum esforço Pergunta o Diabo ao Enforcado se aqueles suplícios que passara na prisão mais as rezas de penitência lhe valeram de alguma coisa O Diabo pergunta isto como já se verá para saber se o enforcado morreu arrependido dos seus pecados e se o seu sofrimento lhe serviu de expiação dos males que antes cometera e se encontrou salvação da sua alma através das palavras das rezas ENFORCADO Aquele com a corda ao pescoço De muito pouco serve a pregação E apenas leva a devoção De que há de voltar a jantar Mas quem há de estar no ar há de ser pendurado pela forca Aborrecese com o sermão DIABO Entra entra no batel Que ao Inferno hás de ir ENFORCADO O Moniz esteve a mentir Disseme que com São Miguel Eu jantaria pão e mel Assim que fosse enforcado Ora eu já passei o meu fado E já feito é o burel e já passei o que tinha a passar Burel era um tecido de artesanal feito de lã Já é feito o burel era uma expressão utilizada para dizer que o trabalho já está feito ou cumprido ou já se fez o que se tinha a fazer Agora não sei o que é isto Ele não me falou ele em ribeira Nem em barqueiro nem em barqueira Apenas no Paraíso Isto muito no seu juízo E que era santo o meu baraço era abençoada a minha corda Eu não sei que aqui faço Que é desta glória improviso que espécie de glória é esta DIABO Faloute no Purgatório ENFORCADO Disse que era o Limoeiro que o purgatório era a prisão E com ele o saltéiro o livro de salmos E o pregão vitatório o discurso que se dizia antes de se enforcar alguém E que era muito notório Que aqueles disciplinados aqueles castigos Eram horas dos finados eram bênçãos para os condenados E missas de São Gregório DIABO Querote desenganar Se o que tivesses aceitado Certo era que te salvavas Mas não o quiseste aceitar Diz o Diabo que se os tormentos e as rezas que o Enforcado levou na prisão lhe tivessem servido como expiação dos seus pecados terseia salvado Mas como não levou os castigos as rezas a sério para pedir perdão pelos erros do passado vai para o inferno Diz o Diabo para todos os que estão dentro do seu barco Alto Todos a alevantar Que está em seco o batel Alevantese Frei Babriel Ajudai ali a apanhar O Diabo repara que a maré está a abaixar e quer pôr todos a trabalhar para se ir embora dá ordens em especifico ao Frade Vêm Quatro Cavaleiros a cantar os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor e acrescentamento de Sua santa fé católica morreram a lutar contra os mouros Absoltos a culpa e pena como privilégio que os que assim morrem têm dos mistérios da Paixão dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assim cantavam é a seguinte CAVALEIROS À barca à barca segura Barca bem guarnecida À barca à barca da vida Senhores que trabalhais Pela vida transitória Memória por Deus memória lembraivos por Deus lembraivos Deste temeroso cais À barca à barca mortais Barca bem guarnecida À barca à barca da vida Cuidado pecadores que Depois da sepultura Neste rio está a ventura o destino De prazeres ou de dores À barca à barca senhores Barca muito nobrecida nobre À barca à barca da vida E passando à frente da proa do batel dos danados assim a cantar com suas espadas e escudos disse o barqueiro da perdição desta maneira DIABO Cavaleiros vós passais E não perguntais para onde ireis 1º CAVALEIRO Vós Satanás que presumis Cuidado com quem falais 2º CAVALEIRO Vós que nos querereis Vejo que não nos conhece bem Nós morremos nas Partes dAlém E não queirais saber mais DIABO Entrai cá Que coisa é essa Que eu não consigo entender isso CAVALEIROS Quem morre por Jesus Cristo Não vai em tal barca como essa Voltam a prosseguir cantando no seu caminho direitos à barca da Glória e assim que chegam diz o Anjo ANJO Ó cavaleiros de Deus Por vós estou a esperar Que morrestes a lutar Por Cristo Senhor dos Céus Sois livres de todo mal Mártires da Santa Igreja Que quem morre em tal peleja luta Merece a paz eternal E assim embarcam FIM