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Dias Gomes O Pagador de Promessas O Pagador de Promessas Dias Gomes Copyright c Ediouro Publicações SA Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 190298 É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização prévia por escrito da editora CIP Brasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Gomes Dias 1922 O pagador de promessas Alfredo Dias Gomes 36ª ed Rio de Janeiro Ediouro 2002 Coleção Prestígio ISBN 8500913916 Teatro brasileiro Literatura CDD 86992 CDU8690812 EDIOURO PUBLICAÇÕES SA Rio de Janeiro Sede Dept de vendas e expedição Rua Nova Jerusalém 345 CEP 21042230 Rio de Janeiro RJ Tel 21 38828240 8323 8284 Fax 21 38828212 8313 Email livrosediourocombr São Paulo Av Bosque da Saúde 1432 Jardim da Saúde CEP 04142082 São Paulo SP Tel 11 55893300 Fax vendas 11 55893300 ramal 233 Email ediouroediourocombr Email Vendas vendaspediourocombr Internet wwwediourocombr Dias Gomes Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador Bahia a 19 de outubro de 1922 Aí realizou seus primeiros estudos passando a residir no Rio de Janeiro a partir de 1935 Cursou várias carreiras entre as quais Direito e Engenharia sem concluir nenhuma delas Escreveu sua primeira peça teatral aos 15 anos A Comédia dos Moralistas obtendo com ela o prêmio do Serviço Nacional do Teatro Mais tarde aos 19 anos viu sua primeira obra encenada PédeCabra com sucesso de público e de crítica sendo saudado por Viriato Corrêa o mais importante crítico da época como aquele que seria mais cedo ou mais tarde o autor mais importante do teatro brasileiro Nessa sua primeira fase como dramaturgo Dias Gomes escreveu ainda Amanhã Será Outro Dia Doutor Ninguém Zeca Diabo João Cambão quase todas encenadas por Procópio Ferreira Alguns textos desta fase permanecem inéditos no teatro como O Pobre Gênio Eu Acuso o Céu Sinhazinha O Homem que não Era Seu e Beco sem Saída que foram apresentados apenas pelo rádio anos mais tarde Em todos eles Dias revela já a preocupação de questionar a realidade brasileira ou como diria Anoto Rosenfeld de oferecer uma imagem crítica da realidade brasileira naquilo que é caracteristicamente brasileiro e naquilo que é tipicamente humano A partir de 1944 Dias Gomes estendeu suas atividades ao rádio para o qual foi levado por Oduvaldo Vianna pai tendo atuado em várias emissoras de São Paulo e do Rio escrevendo e dirigindo programas Foi diretor artístico da Rádio Bandeirantes de São Paulo da Rádio Clube do Brasil Rio e da Rádio Nacional Rio Nessa fase publicou quatro romances Amanhã será Outro Dia Um Amor e Sete Pecados A Dama da Noite e Quando É Amanhã Em 1954 após nove anos de ausência do teatro fez nova experiência cênica com Os Cinco Fugitivos do Juízo Final produzida por Jaime Costa com direção de Bibi Ferreira Mas foi em 1960 com O Pagador de Promessas que retornou definitivamente ao teatro O estrondoso sucesso nacional e internacional desta peça fez com que seu nome atravessasse as fronteiras do país sendo hoje Dias Gomes talvez o nosso dramaturgo mais conhecido e mais representado no exterior Vertido para o cinema O Pagador de Promessas conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962 além de vários outros prêmios nacionais e internacionais Seu texto está traduzido para os seguintes idiomas inglês francês russo polonês espanhol italiano vietnamita hebraico grego e servo croata tendo sido encenado nos Estados Unidos seis produções Polônia quatro produções União Soviética Cuba Espanha Itália Grécia Israel Argentina Uruguai Equador Peru México Vietnã do Norte durante a guerra e Marrocos Na década de sessenta Dias Gomes escreveu ainda as seguintes peças A Invasão A Revolução dos Beatos Odorico O BemAmado O Berço do Herói proibida pela censura O Santo Inquérito O Túnel Dr Getúlio Sua Vida e Sua Glória e Vamos Soltar os Demônios Em 1969 pressionado pela censura que vetara vários textos seus e sentindo que dificilmente poderia continuar sua obra teatral a menos que se adaptasse às novas limitações impostas pelo regime vigente preferiu experimentar um novo meio de expressão a televisão Sem trair a sua temática levou para a TV suas preocupações políticas e sociais escrevendo uma série de telenovelas que deram ao gênero um alto nível artístico e uma linguagem própria Verão Vermelho Assim na Terra Como no Céu Bandeira 2 O BemAmado O Espigão Roque Santeiro proibida pela censura Saramandaia e Sinal de Alerta constituem um ciclo que repete na TV a tentativa de pintar um vasto painel de nossa realidade levando ao espectador a consciência da necessidade de transformála A partir de 1978 após novo período de afastamento durante o qual apenas se preocupou com reencenações de suas peças em todo o mundo Dias Gomes voltou a escrever para o teatro As Primícias foi publicada em livro e O Rei de Ramos foi encenada com enorme sucesso Segundo Anotol Rosenfeld autor de um dos mais inteligentes estudos sobre a sua obra esta no seu todo se apresenta repleta de esplêndidas invenções povoada de uma humanidade exemplar na glória e na miséria Distinguemna a imaginação rica a variedade de caracteres vivos a extraordinária latitude da escala emocional indo dos comoventes destinos de Zé do Burro e Branca Dias ao riso amargo de O Berço do Herói e Dr Getúlio e à franca gargalhada de Odorico Aberta ao sublime sensível à grandeza trágica a obra recorre ao mesmo tempo aos variados enfoques do humor do sarcasmo e da ironia para lidar com os aspectos frágeis ou menos nobres da espécie humana Por isso a obra é amorável e respira futuro Prêmios Prêmio Nacional de Teatro INL 1960 Prêmio Governador do Estado SP 1960 Prêmio Melhor Peça Brasileira APCT 1960 Prêmio Padre Ventura CICT 1962 Prêmio Melhor Autor Brasileiro ABCT 1962 Prêmio Governador do Estado da Guanabara 1962 Laureada no III Festival Internacional de Teatro em Kalsz Polônia Em Versão Cinematográfica Palma de Ouro do Festival de Cannes 1962 1 Prêmio do Festival de S Francisco EUA 1962 Critic s Award do Festival de Edimburgo Escócia 1962 I Prêmio do Festival da Venezuela 1962 Laureada no Festival de Acapulco México 1962 Prêmio Saci S Paulo 1962 Prêmio Governador do Estado SP 1962 Prêmio Cidade de S Paulo 1962 Prêmio Humberto Mauro Para Janete com amor Para Páscoal Longo e Edison Carneiro Personagens ZédoBurro Rosa Marli Bonitão Padre Sacristão Guarda Beata Galego Minha Tia Repórter Fotógrafo Dedé CospeRima Secreta Delegado Mestre Coca Monsenhor Manoelzinho SuaMãe e a Roda de Capoeira Ação Salvador Época Atual Primeiro Ato Primeiro Quadro Ao subir o pano a cena está quase às escuras Apenas um jato de luz da direita lança alguma claridade sobre o cenário Mesmo assim após habituar a vista o espectador identificará facilmente uma pequena praça onde desembocam duas ruas Uma à direita seguindo a linha da ribalta outra à esquerda ao fundo de frente para a platéia subindo encadeirada e sinuosa no perfil de velhos sobrados coloniais Na esquina da rua da direita vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta com uma escadaria de quatro ou cinco degraus Numa das esquinas da ladeira do lado oposto há uma vendola onde também se vende café refresco cachaç a etc a outra esquina da ladeira é ocupada por um sobrado cuja fachada forma ligeira barriga pelo acúmulo de andares não previsto inicialmente O calçamento da ladeira é irregular e na fachada dos sobrados vêem se alguns azulejos estragados pelo tempo Enfim é uma paisagem tipicamente baiana da Bahia velha e colonial que ainda hoje resiste à avalancha urbanística moderna Devem ser aproximadamente quatro e meia da manhã Tanto a igreja como a vendola estão com suas portas cerradas Vem de longe o som dos atabaques dum candomblé distante no toque de Iansan Decorrem alguns segundos até que ZédoBurro surja pela rua da direita carregando nas costas uma enorme e pesada cruz de madeira A passos lentos cansado entra na praça seguido de Rosa sua mulher Ele é um homem ainda moço de 30 anos presumíveis magro de estatura média Seu olhar é morto contemplativo Suas feições transmitem bondade tolerância e há em seu rosto um quê de infantilidade Seus gestos são lentos preguiçosos bem como sua maneira de falar Tem barba de dois ou três dias e trajase decentemente embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira Rosa parece pouco ter de comum com ele É uma bela mulher embora seus traços sejam um tanto grosseiros tal como suas maneiras Ao contrário do marido tem sangue quente É agressiva em seu sexy revelando logo à primeira vista uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar Vestese como uma provinciana que vem à cidade mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos que possui ZédoBurro vai até o centro da praça e aí pousa a sua cruz equilibrandoa na base e num dos braços como um cavalete Está exausto Enxuga o suor da testa ZÉ Olhando a igreja É essa Só pode ser essa Rosa pára também junto aos degraus cansada enfastiada e deixando já entrever uma revolta que se avoluma ROSA E agora Está fechada ZÉ É cedo ainda Vamos esperar que abra ROSA Esperar Aqui ZÉ Não tem outro jeito ROSA Olhao com raiva e vai sentarse num dos degraus Tira o sapato Estou com cada bolha dágua no pé que dá medo ZÉ Eu também Contorcese num ritus de dor Despe uma das mangas do paletó Acho que os meus ombros estão em carne viva ROSA Bem feito Você não quis botar almofadinhas como eu disse ZÉ Convicto Não era direito Quando eu fiz a promessa não falei em almofadinhas ROSA Então se você não falou podia ter botado a santa não ia dizer nada ZÉ Não era direito Eu prometi trazer a cruz nas costas como Jesus E Jesus não usou almofadinhas ROSA Não usou porque não deixaram ZÉ Não nesse negócio de milagres é preciso ser honesto Se a gente embrulha o santo perde o crédito De outra vez o santo olha consulta lá os seus assentamentos e diz Ah você é o Zédo Burro aquele que já me passou a perna E agora vem me faze r nova promessa Pois vá fazer promessa pro diabo que o carregue seu caloteiro duma figa E tem mais santo é como gringo passou calote num todos os outros ficam sabendo ROSA Será que você ainda pretende fazer outra promessa depois desta Já não chega ZÉ Sei não a gente nunca sabe se vai precisar Por isso é bom ter sempre as contas em dia Ele sobe um ou dois degraus Examina a fachada da igreja à procura de uma inscrição ROSA Que é que você está procurando ZÉ Qualquer coisa escrita pra a gente saber se essa é mesmo a igreja de Santa Bárbara ROSA E você já viu igreja com letreiro na porta homem ZÉ É que pode não ser essa ROSA Claro que é essa Não lembra o que o vigário disse Uma igreja pequena numa praça perto duma ladeira ZÉ Corre os olhos em volta Se a gente pudesse perguntar a alguém ROSA Essa hora está todo o mundo dormindo Olhao quase com raiva Todo o mundo menos eu que tive a infelicidade de me casar com um pagador de promessas Levantase e procura convencêlo Escute Zé já que a igreja está fechada a gente podia ir procurar um lugar pra dormir Você já pensou que beleza agora uma cama ZÉ E a cruz ROSA Você deixava a cruz aí e amanhã de dia ZÉ Podem roubar ROSA Quem é que vai roubar uma cruz homem de Deus Pra que serve uma cruz ZÉ Tem tanta maldade no mundo Era correr um risco muito grande depois de ter quase cumprido a promessa E você já pensou se me roubassem a cruz eu ia ter que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da roça até aqui Sete léguas ROSA Pra quê Você explicava à santa que tinha sido roubado ela não ia fazer questão ZÉ É o que você pensa Quando você vai pagar uma conta no armarinho e perde o dinheiro no caminho o turco perdoa a dívida Uma ova ROSA Mas você já pagou a sua promessa já trouxe uma cruz de madeira da roça até à igreja de Santa Bárbara Está aí a igreja de Santa Bárbara está aí a cruz Pronto Agora vamos embora ZÉ Mas aqui não é a igreja de Santa Bárbara A igreja é da porta pra dentro ROSA Oxente Mas a porta está fechada e a culpa não é sua Santa Bárbara deve saber disso que diabo ZÉ Pensativo Só se eu falasse com ela e explicasse a situação ROSA Pois então fale ZÉ Ergue os olhos para o céu medrosamente e chega a entreabrir os lábios como se fosse dirigir se à santa Mas perde a coragem Não não posso ROSA Por que homem Santa Bárbara é tão sua amiga Você não está em dia com ela ZÉ Estou mas esse negócio de falar com santo é muito complicado Santo nunc a respond e em língua da gente não se pode saber o que ele pensa E além do mais isso também não é direito Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja tenho que levar Andei sete léguas Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro ROSA E pra você não se sujar com a santa eu vou ter que dormir no chão no hotel do padre Olhao com raiva e vai deitarse num dos degraus da escada da igreja E se tudo isso ainda fosse por alguma coisa que valesse a pena ZÉ Você podia não ter vindo Quando eu fiz a promessa não falei em você só na cruz ROSA Agora você diz isso Dissesse antes ZÉ Não me lembrei Você também não reclamou ROSA Sou sua mulher Tenho que ir pra onde você for ZÉ Então Ros a ajeitase da melhor maneira possível no degrau enquanto ZédoBurro não menos cansado do que ela faz um esforço sobrehumano para não adormecer Cochila montando guarda à sua cruz Subitamente irrompem na praça Marli e Bonitão Ela tem na realidade vinte e oito anos mas aparenta mais dez Pintase com algum exagero mas mesmo assim não consegue esconder a tez amarelo esverdeada Possui alguns traços de uma beleza doentia uma beleza triste e suicida Usa um vestido muito curto e decotado já um tanto gasto e fora de moda mas ainda de bom efeito visual Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertarse de uma tirania que no entanto é necessária ao seu equilíbrio psíquico a exploração de que é vítima por parte de Bonitão vem em parte satisfazer um instinto maternal frustrado Há em seu amor e em seu aviltamento em sua degradação voluntária muito de sacrifício maternal ao qual não falta inclusive um certo orgulho Bonitão é insensível a tudo isso Ele é frio e brutal em sua profissão Encara a exploração a que submete Marli e outras mulheres como um direito que lhe assiste ou melhor um dom que a natureza lhe concedeu juntamente com seus atributos físicos Em seu entender sua beleza máscula e seu vigor sexual aliados a um direito natural de subsistir justificam plenamente seu modo de vida É de estatura um pouco acima da média forte e de pele trigueira amulatada A ascendência negra é visível embora os cabelos sejam lisos reluzentes de gomalina e os traços regulares com exceção dos lábios grossos e sensuais e das narinas um tanto dilatadas Vestese sempre de branco colarinho alto sapatos de duas cores Descem a ladeira ela na frente a passos rápidos Ele a segue como se viessem já de uma discussão BONITÃO Espere Não adianta andar depressa MARLI É melhor discutirmos isso em casa BONITÃO Alcançaa e obriga a parar torcendolhe violentamente o braço Não vamos resolver aqui mesmo Não tenho nada que discutir com você MARLI Livrase dele com um safanão mas seu rosto se contrai dolorosamente Estúpido BONITÃO Ande vamos deixar de masmas Passe pra cá o dinheiro MARLI Tira do bolso do vestido um maço de notas e entrega a ele Não podia esperar até chegar em casa BONITÃO Chega mais para perto do jato de luz e conta as notas rapidamente Só deu isto MARLI Só A noite hoje não foi boa Você viu o castelo estava vazio BONITÃO E aquele galego que estava conversando com você quando cheguei MARLI Uma boa conversa Queria se fretar comigo Ficou mangando a noite toda e não se resolveu BONITÃO Mete subitamente a mão no decote de Marli e tira de entre os seios uma nota Sua vaca Ele faz menção de darlhe um bofetão ela corre e refugiase atrás da cruz ZédoBurro desperta de sua semi sonolência MARLI Eu precisava desse dinheiro Pra pagar o quarto você sabe BONITÃO Não gosto de ser tapeado Por que não pediu MARLI E você dava BONITÃO Claro que não Guarda o dinheiro na carteira Isso ia fazer falta no meu orçamento Tenho compromissos e você bem sabe que não gosto de pedir dinheiro emprestado É uma questão de feitio MARLI E eu que faço pra pagar o quarto Já devo dois meses e a dona anda me olhando atravessado BONITÃO Indiferente É um problema seu Tenho muita coisa em que pensar MARLI Eu sei eu sei no que você pensa BONITÃO Sorri e há em seu sorriso uma sombra de ameaça Penso por exemplo que você de três meses pra cá está fazendo muito pouco A Matilde está fazendo quase o dobro MARLI Compreende a ameaça avança para ele sacudida pelo ciúme e pelo pavor de perdêlo Eu sei você está dando em cima daquela arreganhada Ela mesma anda dizendo BONITÃO Eu não dou em cima de mulher nenhuma você sabe disso É uma questão de princípios MARLI Quer dizer que é ela quem está dando em cima de você BONITÃO Ela perguntou se eu estava precisando de dinheiro MARLI Ansiosamente E você BONITÃO Eu só pedi umas informações de ordem técnica arrecadação diária etc MARLI Agarrao freneticamente pelos braços Bonitão voc ê não aceitou o dinheiro dela aceitou Voc ê não aceitou o dinheiro daquela vagabunda BONITÃO Olhaa friamente E que tinha se aceitasse Eu também preciso viver MARLI Mas o que eu lhe dou não chega BONITÃO Você compreende eu também tenho ambições Se eu não tivesse qualidades bem Mas eu sei que tenho qualidades É justo que viva de acordo com essas qualidades MARLI Mas o que lhe falta Eu não tenho lhe dado tudo que você me pede Se for preciso dou mais ainda Não pense que é por medo de que você me largue pela Matilde não Alisa sua roupa e admirao maternalmente É porque tenho prazer em ver você vestido com a roupa que eu dei com os sapatos que eu comprei e com a carteira recheada de notas que eu ganhei pra você Tenho orgulho sabe BONITÃO Desvencilhase dela Pois então veja se na próxima vez não esconde dinheiro no decote Tenho certeza de que a Matilde não é capaz de um gesto feio desses MARLI Ela é capaz de coisas muito piores Se você quiser eu lhe conto BONITÃO Bruscamente Não quero ouvir nada Quero é que você vá pra casa MARLI Decepcionada Você não vai comigo BONITÃO Não vou ficar um pouco mais por aqui Vá na frente que daqui a pouco eu apareço por lá MARLI Enciumada E o que é que você vai ficar fazendo na rua a uma hora dessas BONITÃO Com muita seriedade Ora mulher eu preciso trabalhar Acende um cigarro abstraindose da presença de Marli que o fita como um cão escorraçado pelo dono Só então este se mostra intrigado com a cruz no meio da praça Examinaa curiosamente e por fim dirigese a ZédoBurro É sua Zé balança a cabeça em sinal afirmativo Marli vai até à escada da igreja sentase num degrau sem se incomodar com Rosa deitada mais acima tira os sapatos e movimenta os dedos doloridos BONITÃO Nota a igreja faz uma associação de idéias Encomenda ZÉ Não promessa BONITÃO A princípio parece não entender depois ri Gozado ZÉ Não acho BONITÃO Não falei por mal Eu também sou meio devoto Até uma vez fiz promessa pra Santo Antônio ZÉ Casamento BONITÃO Não ela era casada ZÉ E conseguiu a graça BONITÃO Consegui O marido passou uma semana viajando ZÉ E o senhor pagou a promessa BONITÃO Não pra não comprometer o santo ZÉ Nunca se deve deixar de pagar uma promessa Mesmo quando é dessas de comprometer o santo Garanto que da próxima vez Santo Antônio vai se fingir de surdo E tem razão BONITÃO O senhor compreende Santo Antônio ia ficar mal se soubessem que foi ele quem fez o trouxa viajar Nota que Marli ainda não se foi Que é que você ainda está fazendo aí MARLI Esperando você BONITÃO Vai a ela Já lhe disse que vou depois Vai ficar agora grudada em mim MARLI Levantase Escute Bonitão você não podia deixar eu ficar ao menos com aquela nota BONITÃO Já lhe disse que não Não insista MARLI Mas eu preciso pagar o quarto BONITÃO O quarto é seu não é meu MARLI Mas o dinheiro é meu É justo que eu fique ao menos com algum BONITÃO É justo por quê MARLI Porque fui eu que trabalhei BONITÃO E desde quando trabalhar dá direito a alguma coisa Quem lhe meteu na cabeça essas idéias Olhaa de cima a baixo com desconfiança Está virando comunista Marli fitao com ódio e sai bruscamente pela direita Bonitão acompanhaa com o olhar e depois sorri tira o dinheiro do bolso e torna a contálo ZÉ Candidamente Esse dinheiro é dela mesmo BONITÃO Guarda o dinheiro Bem esta é uma maneira de olhar as coisas E toda coisa tem pelo menos duas maneiras de ser olhada Uma de lá pra cá outra de cá pra lá Entendeu ZÉ Não BONITÃO Não vale a pena explicar É uma questão de sensibilidade ZÉ O senhor é marido dela BONITÃO Não sou assim uma espécie de fiscal do imposto de renda Sobe como se fosse sair mas se detém diante de Rosa cujo vestido levantado deixa ver um palmo de coxa ROSA Abre os olhos sentindo que está sendo observada Que é BONITÃO Nada estava só olhando Rosa conserta o vestido BONITÃO Não deve ser lá muito confortável essa cama Rosa olhao com raiva BONITÃO Olhaa mais detidamente E olhe que você bem merece coisa melhor ROSA Diga isso a ele Aponta ZédoBurro BONITÃO A ele ROSA Meu marido BONITÃO Ah você também veio pagar promessa ROSA Eu não ele E por causa dele estou dormindo aqui no batente de uma igreja como qualquer mendiga Sentase ZÉ Não deve faltar muito para abrir a igreja O senhor sabe que horas são BONITÃO Consulta o relógio Um quarto para as cinco ZÉ Sabe a que horas abre a igreja BONITÃO Não não é bem o meu ramo ZÉ Mas às seis horas deve ter missa Hoje é o dia de Santa Bárbara ROSA Ressentida Às seis horas Tenho que aguentar mais de uma hora ainda neste batente duro E a promessa não é minha BONITÃO É capaz da porta da sacristia já estar aberta ZÉ O senhor acha BONITÃO Padre acorda cedo ZÉ Às cinco horas BONITÃO Então tem que se preparar para a missa das seis ZÉ É verdade BONITÃO Por que o senhor não vai ver ZÉ É Hesita um pouco BONITÃO A porta é do lado de lá ZÉ Rosa você vigia a cruz eu vou dar a volta não demoro Sai BONITÃO Pode ir sem susto que eu ajudo a tomar conta de sua cruz Depois que ZédoBurro sai das duas ROSA Só que uma ele carrega nas costas e a outra se quiser que vá atrás dele Levantase BONITÃO E voc ê não é mulher para andar atrás de qualquer homem ao contrário é uma cruz que qualquer um carrega com prazer ROSA Com recato mas no fundo envaidecida Ora me deixe BONITÃO Palavra Seu marido não lhe faz justiça Isso não é trato que se dê a uma mulher mesmo sendo mulher da gente ROSA Se ele faz pouco de mim faz pouco do que é dele BONITÃO Não discuto Só acho que você não é mulher para dormir em batente de igreja Tem qualidades para exigir mais boa cama com colchão e melhor companhia ROSA Não fale em cama pra quem tem o corpo moído como eu BONITÃO Tão cansada assim ROSA Duas noites sem dormir sete léguas no calcanho BONITÃO Sete léguas Quantos quilômetros ROSA Sei lá só sei que sete vezes amaldiçoei aquele dia em que fui roubar caju com ele na roça dos padres BONITÃO Ah foi assim ROSA A gente faz cada besteira BONITÃO Quanto tempo faz ROSA Oito anos BONITÃO E você casou com ele ROSA Casei BONITÃO Sem gostar ROSA Depois de um tempo Gostava sim Sabe na roça o homem é feio magro sujo e mal vestido Ele até que era dos melhores Tinha um sítio BONITÃO E daí ROSA Daí eu achei que ele garantia tudo que eu queria da vida homem e casa A gente quando é franga com licença da palavra tem merda na cabeça BONITÃO Algo interessado Ele tem um sítio é ROSA Tinha agora tem só um pedaço Dividiu o resto com os lavradores pobres BONITÃO Por quê ROSA Fazia parte da promessa BONITÃO Que é que está esperando Virar santo ROSA Não brinque Pelo caminho tinha uma porção de gente querendo que ele fizesse milagre E não duvide Ele é capaz de acabar fazendo Se não fosse a hora garanto que tinha uma romaria aqui atrás dele BONITÃO Depois de cumprir a promessa ele vai voltar pra roça ROSA Vai BONITÃO E você ROSA Também Por quê BONITÃO Se você viesse pra cidade eu podia lhe garantir um bonito futuro ROSA Fazendo o quê BONITÃO Isso depois se via ROSA Eu não sei fazer nada BONITÃO Seguraa por um braço Mulheres como você não precisam saber coisa alguma a não ser o que a natureza ensinou Rosa puxa o braço bruscamente depois de manter por alguns segundos um olhar de desafio ROSA Não faça isso Ele pode voltar de repente BONITÃO Ele deve ter ido acordar o padre Volta a aproximarse dela ROSA Desvencilhase dele novamente Me solte Volta a sentarse na escada Eu queria era dormir Dava a vida por uma cama com um lençol branco e uma bacia dágua quente onde meter os pés BONITÃO Eu posso lhe arranjar um hotelzinho aqui perto Rosa lançalhe um olhar hostil BONITÃO Isso sem segundas intenções só pra você dormir descansar dessa romaria ROSA Não quero me meter em encrencas BONITÃO Não há nenhum perigo de encrenca Sou muito cotado com o porteiro do hotel e tenho boas relações com a polícia Nesta zona todos respeitam o Bonitão ROSA Quase sensualmente Bonitão BONITÃO Vaidoso É um apelido ROSA Olhao de cima a baixo BONITÃO Sentase junto dela ROSA Não chegue perto estou muito suada BONITÃO No hotel tem banheiro para quem andou sete léguas um banho de chuveiro e depois uma cama com colchão de mola ROSA Colchão de mola mesmo BONITÃO Então ROSA Nunca dormi num colchão de mola Deve ser bom BONITÃO Uma delícia Entra ZédoBurro pela direita Bonitão levantase ZÉ Tudo fechado Tem jeito não ROSA Revoltada E eu que aguente este batente duro até Deus sabe lá que horas ZÉ Paciência Rosa Seu sacrifício fica valendo ROSA Pra quem Pra Santa Bárbara Eu não fiz promessa nenhuma ZÉ Oxente Melhor ainda Amanhã quando você fizer a santa já está lhe devendo ROSA Nunca vi santo pagar dívida Volta a deitarse no degrau BONITÃO Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível A senhora faz mal em ser tão descrente Quem sabe se Santa Bárbara já não está providenciando o pagamento dessa dívida E quem sabe se não escolheu a mim pra pagador ZÉ Muito ingenuamente O senhor não era fiscal do imposto de renda Agora é pagador de Santa Bárbara BONITÃO Meu caro com o custo de vida aumentando dia a dia a gente tem que se virar Mas não é esse o caso Digo que Santa Bárbara já deve estar tratando de liquidar o débito hoje contraído com sua senhora porque me fez passar por aqui esta noite ZÉ Não vejo nada de mais nisso BONITÃO Porque o senhor não sabe que eu posso em cinco minutos arranjar uma boa cama com colchão de mola num hotel perto daqui ZÉ Pra ela BONITÃO E pro senhor também ZÉ Eu não posso Tenho que esperar abrir a igreja Se soubesse que não iam roubar a cruz BONITÃO Rapidamente Oh não a cruz não deve ficar sozinha Esta zona está cheia de ladrões A cruz é de madeira e a madeira está caríssima ZÉ É o que eu acho Não devo sair daqui BONITÃO Mas eu posso ficar tomando conta enquanto o senhor e sua senhora vão descansar ZÉ O senhor BONITÃO E por que não ZÉ Mas a igreja pode demorar a abrir Pelo menos uma hora ainda BONITÃO Eu espero Sua esposa me contou a caminhada que fizeram o senhor carregando nas costas essa cruz através de léguas e léguas para cumprir uma promessa Isso me comoveu ZÉ Mas não é justo Não foi o senhor quem fez a promessa ROSA Ele está querendo ajudar Zé ZÉ Mas não é direito Eu prometi cumprir a promessa sozinho sem ajuda de ninguém E essa história de dormir no hotel não está no trato BONITÃO E sua senhora está no trato ZÉ Rosa Não ela pode ir BONITÃO Nesse caso se quiser que eu leve sua senhora ao menos ela descansa enquanto espera pelo senhor ZÉ Você quer Rosa Quer ir esperar por mim no hotel Voltase para Bonitão É hotel decente BONITÃO Fingindose ofendido Ora o senhor acha que ia indicar ZÉ Desculpe é que sempre ouvi dizer que aqui na cidade BONITÃO Pode confiar em mim ZÉ É longe daqui BONITÃO Não basta subir aquela ladeira ZÉ Que é que você diz Rosa ROSA Percebendo o jogo de Bonitão Quero não Zé Prefiro ficar aqui com você ZÉ Ainda agora mesmo você estava se queixando BONITÃO Não é pra menos Deve estar exausta Sete léguas ZÉ Afinal de contas você tem razão a promessa é minha não é sua Vá com o moço não tenha acanhamento BONITÃO Eu vou com ela até lá apresento ao porteiro que é meu conhecido sim porque uma mulher sozinha o senhor sabe eles não deixam entrar depois volto para lhe dizer o número do quarto Daqui a pouco depois de cumprir a sua promessa o senhor vai pra lá ZÉ Se o senhor fizesse isso era um grande favor Eu não posso me afastar daqui BONITÃO Nem deve Primeiro Santa Bárbara ROSA Zé é melhor eu ficar com você ZÉ Pra que Rosa Assim você vai logo descansar numa boa cama não precis a ficar aí deitada nesse batente frio BONITÃO Um perigo Pode pegar uma pneumonia ROSA Inicia a saída Pára hesitante Pressente o perigo que vai correr Procura com o olhar fazer ZédoBurro compreender o seu receio Zé ZÉ Ahn sim Enfia a mão no bolso tira um maço de notas Pode ser que precise pagar adiantado ROSA Recebe o dinheiro Encara o marido Talvez seja melhor depois de entregar a cruz você mandar também rezar uma missa em ação de graças ZÉ Sem entender o alcance da sugestão É não é má idéia Rosa sobe a ladeira e Bonitão a segue BONITÃO Saindo Volto num minuto ZÉ Está bem Sentase ao pé da cruz e procura uma maneira de apoiar o corpo sobre ela Aos poucos é vencido pelo sono As luzes se apagam em resistência Segundo Quadro As luzes voltam a acenderse lentamente até dia claro Ouvemse distante ruídos esparsos da cidade que acorda Um ou outro buzinar foguetes estouram saudando Iansan a Santa Bárbara nagô e o sino da igreja começa a chamar para a missa das seis Mas nada disso acorda ZédoBurro Entra pela ladeira a Beata Toda de preto véu na cabeça passinho miúdo vem apressada como se temesse chegar atrasada Passa por ZédoBurro e a cruz sem notálos Pára diante da escada e resmunga Fica a critério da direção utilizar neste quadro figurantes que descerão a ladeira e entrarão na igreja BEATA Porta fechada É sempre assim A gente corre com medo de chegar atrasada e quando chega aqui a port a está fechada Por que não abrem primeiro a porta pra depois tocar o sino Não primeiro tocam o sino depois abrem a porta Isso é esse sacristão Pára de resmungar ao ver a cruz Ajeita os óculos como se não acreditasse no que está vendo Aproximase e examina detalhadamente a cruz e o seu dono adormecido Sua expressão é da maior estranheza Virgem Santíssima Neste momento abrese a porta da igreja e surge o Sacristão É um homem de perto de 50 anos Sua mentalidade porém anda aí pelos quatorze Usa óculos de grossas lentes é míope O cabelo teima em cairlhe na testa acentuando a aparência de retardado mental Ele parece bêbedo de sono Boceja largamente ruidosamente depois de abrir a primeira banda da porta Espreguiçase e solta um longo gemido Depois que abre toda a porta encostase por um momento no portal e cochila sem dar pela Beata que se aproxima BEATA Dálhe uma leve cotovelada Ei rapaz SACRISTÃO Desperta muito assustado Sim Padre já vou BEATA Que padre coisa nenhuma SACRISTÃO Ah é a senhora BEATA Vou me queixar ao Padre Olavo dessa mania de bater o sino antes de abrir a porta da igreja Eu ouço o toque venho pondo as tripas pela boca chego aqui e a porta ainda está fechada SACRISTÃO Também por que a senhora vem logo na missa das seis Por que não vem mais tarde BEATA Malcriada Porque quero Porque não é da sua conta Aponta para a cruz Que é isso SACRISTÃO Isso o quê BEATA Está vendo não Uma cruz enorme no meio da praça SACRISTÃO Apura a vista Ah sim agora percebo é uma cruz de madeira e parece que há um homem dormindo junto dela BEATA Vista prodigiosa a sua Claro que é uma cruz de madeira e que há um homem junto dela O que eu quero saber é a razão disso SACRISTÃO Não sei como quer que eu saiba Por que a senhora não pergunta a ele BEATA Bruscamente Eu é que não vou perguntar coisa nenhuma SACRISTÃO Talvez ele tenha desgarrado da procissão BEATA Que procissão De Santa Bárbara A procissão ainda não saiu E já viu alguém carregar cruz em procissão Nem na do Senhor Morto Benzese e entra apressadamente na igreja O Sacristão aproximase de ZédoBurro curioso E quando entra Bonitão pela ladeira Ele vê a igreja aberta estranha BONITÃO Oxente SACRISTÃO Olhao aparvalhado É uma cruz mesmo BONITÃO E que pensou você que fosse Um canhão Aproximase de ZédoBurro Sono de pedra não acordou nem com os foguetes de Santa Bárbara Dizem que é assim que dormem as pessoas que têm a consciência tranquila e a alma leve Cínico Eu também sou assim quando caio na cama é um sono só Sacode ZédoBurro Camarado oh meu camarado ZÉ Desperta Oh já é dia BONITÃO Já E a igreja já está aberta você pode entregar o carreto ZÉ Levantase com dificuldade os músculos adormecidos e doloridos É verdade BONITÃO Eu voltei aqui pra lhe dizer o número do quarto de sua mulher É o 27 Um bom quarto no segundo andar Apressadamente Pelo menos foi o que o porteiro me garantiu ZÉ Ah obrigado BONITÃO O hotel é aquele ali o primeiro logo depois de subir a ladeira e dobrar à direita Hotel Ideal Eu demorei um pouco porque fiquei jogando damas com o porteiro SACRISTÃO Vivamente interessado Ganhou BONITÃO Empatamos SACRISTÃO Ah eu também sou louco por damas BONITÃO Examinao de cima a baixo Francamente ninguém diz Padre Olavo surge na porta da igreja SACRISTÃO Como se tivesse sido surpreendido em falta Padre Olavo ZÉ Preciso falar com ele Sacristão dirigese apressadamente à igreja Pára na porta ante o olhar intimidador de Padre Olavo É um padre moço ainda Deve contar no máximo quarenta anos Sua convicção religiosa aproximase do fanatismo Talvez no fundo isto seja uma prova de falta de convicção e autodefesa Sua intolerância que o leva por vezes a chocarse contra princípios de sua própria religião e a confundir com inimigos aqueles que estão ao seu lado não passa talvez de uma couraça com que se mune contra uma fraqueza consciente PADRE Para o Sacristão Que está fazendo aí SACRISTÃO À guisa de defesa Estava conversando com aqueles homens PADRE E eu lá dentro à sua espera para ajudar à missa Repara em Bonitão e ZédoBurro Quem são SACRISTÃO Não sei Um deles quer falar com o senhor ZÉ Adiantase Sou eu Padre Inclinase respeitoso e beijalhe a mão PADRE Agora está na hora da missa Mais tarde se quiser ZÉ É que eu vim de muito longe Padre Andei sete léguas PADRE Sete léguas Para falar comigo ZÉ Não pra trazer esta cruz PADRE Olha a cruz detidamente E como a trouxe num caminhão ZÉ Não Padre nas costas SACRISTÃO Expandindo infantilmente a sua admiração Menino PADRE Lançalhe um olhar enérgico Psiu Cale a boca Seu interesse por ZédoBurro cresce Sete léguas com essa cruz nas costas Deixe ver seu ombro ZédoBurro despe um lado do paletó abre a camisa e mostra o ombro Sacristão espichase todo para ver e não esconde a sua impressão SACRISTÃO Está em carne viva PADRE Parece satisfeito com o exame Promessa ZÉ Balança afirmativamente a cabeça Pra Santa Bárbara Estava esperando abrir a igreja SACRISTÃO Deve ter recebido dela uma graç a muito grande Padre faz um gesto nervoso para que o Sacristão se cale ZÉ Graças a Santa Bárbara a morte não levou o meu melhor amigo PADRE Padre parece meditar profundamente sobre a questão Mesmo assim não lhe parece um tanto exagerada a promessa E um tanto pretensiosa também ZÉ Nada disso seu Padre Promessa é promessa É como um negócio Se a gente oferece um preço recebe a mercadoria tem que pagar Eu sei que tem muito caloteiro por aí Mas comigo não É toma lá dá cá Quando Nicolau adoeceu o senhor não calcula como eu fiquei PADRE Foi por causa desse Nicolau que você fez a promessa ZÉ Foi Nicolau foi ferido seu Padre por uma árvore que caiu num dia de tempestade SACRISTÃO Santa Bárbara A árvore caiu em cima dele ZÉ Só um galho que bateu de raspão na cabeça Ele chegou em casa escorrendo sangue de meter medo Eu e minha mulher tratamos dele mas o sangue não havia meio de estancar PADRE Uma hemorragia ZÉ Só estancou quando eu fui no curral peguei um bocado de bosta de vaca e taquei em cima do ferimento PADRE Enojado Mas meu filho isso é atraso Uma porcaria ZÉ Foi o que o doutor disse quando chegou Mandou que tirasse aquela porcaria de cima da ferida que senão Nicolau ia morrer PADRE Sem dúvida ZÉ Eu tirei Ele limpou bem a ferida e o sangue voltou que parecia uma cachoeira E que de que o doutor fazia o sangue parar Ensopava algodão e mais algodão e nada Era uma sangueira que não acaba mais Lá pelas tantas o homenzinho virou pra mim e gritou corre homem de Deus vai buscar mais bosta de vaca senão ele morre PADRE E o sangue estancou ZÉ Na hora Pois é um santo remédio Seu vigário sabia Não sendo de vaca de cavalo castrado também serve Mas há quem prefira teia de aranha PADRE Adiante adiante Não estou interessado nessa medicina ZÉ Bem o sangue estancou Mas Nicolau começou a tremer de febre e no dia seguinte aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido eu saí de casa e Nicolau ficou Não pôde se levantar Foi a primeira vez que isso aconteceu em seis anos eu saí fui fazer compras na cidade entrei no Bar do Jacob pra tomar uma cachacinha passei na farmácia de seu Zequinha pra saber das novidades tudo isso sem Nicolau Todo mundo reparou porque quem quisesse saber onde eu estava era só procurar Nicolau Se eu ia na missa ele ficava esperando na porta da igreja PADRE Na porta Por que ele não entrava Não é católico ZÉ Tendo uma alma tão boa Nicolau não pode deixar de ser católico Mas não é por isso que ele não entra na igreja É porque o vigário não deixa Com grande tristeza Nicolau teve o azar de nascer burro de quatro patas PADRE Burro Então esse que você chama de Nicolau é um burro Um animal ZÉ Meu burro sim senhor PADRE E foi por ele por um burro que fez essa promessa ZÉ Foi é bem verdade que eu não sabia que era tão difícil achar uma igreja de Santa Bárbara que ia precisar andar sete léguas pra encontrar uma aqui na Bahia BONITÃO Que assistiu a toda a cena um pouco afastado solta uma gargalhada grosseira Ele se estrepou Padre Olavo olhao surpreso como se só agora tivesse notada a sua presença Bonitão pára de rir quase de súbito desarmado pelo olhar enérgico do padre ZÉ Mas mesmo que soubesse eu não deixava de fazer a promessa Porque quando vi que nem as rezas do preto Zeferino davam jeito PADRE Rezas Que rezas ZÉ Seu vigário me disculpe mas eu tentei tudo Preto Zeferino é rezador afamado na minha zona Sarna de cachorro bicheira de animal peste de gado tud o iss o ele cura com duas rezas e três rabiscos no chão Todo o mundo diz e eu mesmo uma vez estava com uma dor de cabeça danada que não havia meio de passar Chamei preto Zeferino ele disse que eu estava com o Sol dentro da cabeça Botou uma toalha na minha testa derramou uma garrafa dágua rezou uma oração o sol saiu e eu fiquei bom PADRE Você fez mal meu filho Essas rezas são orações do demo ZÉ Do demo não senhor PADRE Do demo sim Você não soube distinguir o bem do mal Todo homem é assim Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de Deus E não sabe se caminha para o céu ou para o inferno ZÉ Para o inferno Como pode ser Padre se a oração fala em Deus Recita Deus fez o Sol Deus fez a luz Deus fez toda a claridade do Univers o grandioso Com sua Graça eu te benzo te curo Vaite Sol da cabeça desta criatura para as ondas do Mar Sagrado com os santos poderes do Padre do Filho e do Espírito Santo Depois rezou um Padre Nosso e a dor de cabeça sumiu no mesmo instante SACRISTÃO Incrível PADRE Meu filho esse homem era um feiticeiro ZÉ Como feiticeiro se a reza é pra curar PADRE Não é pra curar é para tentar E você caiu em tentação ZÉ Bem eu só sei que fiquei bom Noutro tom Mas com o Nicolau não houve reza que fizesse ele levantar Preto Zeferino botou o pé na cabeça do coitado diss e uma porção de orações e nada Eu já estava começando a perder a esperança Nicolau de orelhas murchas magro de se contar as costelas Não comia não bebia nem mexia mais com o rabo para espantar as moscas Eu vi que nunca mais ia ouvir os passos dele me seguindo por toda a parte como um cão Até me puseram um apelido por causa disso ZédoBurro Eu não me importo Não acho que seja ofensa Nicolau não é um burro como os outros É um burro com alma de gente E faz isso por amizade por dedicação Eu nunca monto nele prefiro andar a pé ou a cavalo Mas de um modo ou de outro ele vem atrás Se eu entrar numa casa e me demorar duas horas duas horas ele espera por mim plantado na porta Um burro desses seu padre não vale uma promessa PADRE Secamente contendo ainda a sua indignação Adiante ZÉ Foi então que comadre Miúd a me lembrou por que eu não ia no candomblé de Maria de Iansan PADRE Candomblé ZÉ Sim é um candomblé que tem duas léguas adiante da minha roça Com a consciência de quem cometeu uma falta mas não muito grave Eu sei que seu vigário vai ralhar comigo Eu também nunca fui muito de frequentar terreiro de candomblé Mas o pobre Nicolau estava morrendo Não custava tentar Se não fizesse bem mal não fazia E eu fui Contei pra MãedeSanto o meu caso Ela disse que era mesmo com Iansan dona dos raios e das trovoadas Iansan tinha ferido Nicolau pra ela eu devia fazer uma obrigação quer dizer uma promessa Mas tinha que ser uma promessa bem grande porque Iansan que tinha ferido Nicolau com um raio não ia voltar atrás por qualquer bobagem E eu me lembrei então que Iansan é Santa Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma cruz de madeira de minha roça até a Igreja dela no dia de sua festa uma cruz tão pesada como a de Cristo PADRE Como se anotasse as palavras Tão pesada como a de Cristo O senhor prometeu isso a ZÉ A Santa Bárbara PADRE A Iansan ZÉ É a mesma coisa PADRE Grita Não é a mesma coisa Controlase Mas continue ZÉ Prometi também dividir minhas terras com os lavradores pobres mais pobres que eu PADRE Dividir Igualmente ZÉ Sim padre igualmente SACRISTÃO E Nicolau quero dizer o burro ficou bom ZÉ Sarou em dois tempos Milagre Milagre mesmo No outro dia já estav a de orelha em pé relinchando E uma semana depois todo o mundo me apontava na rua Lá vai ZédoBurro com o burro de novo atrás Ri E eu nem dava confiança E Nicolau muito menos Só eu e ele sabíamos do milagre Como que retificando Eu ele e Santa Bárbara PADRE Procurando inicialmente controlarse Em primeiro lugar mesmo admitindo a intervenção de Santa Bárbara não se trataria de um milagre mas apenas de uma graça O burro podia terse curado sem intervenção divina ZÉ Como Padre se ele sarou de um dia pro outro PADRE Como se não o ouvisse E além disso Santa Bárbara se tivesse de lhe conceder uma graça não iria fazêlo num terreiro de candomblé ZÉ É que na capela do meu povoado não tem uma imagem de Santa Bárbara Mas no candomblé tem uma imagem de Iansan que é Santa Bárbara PADRE Explodindo Não é Santa Bárbara Santa Bárbara é uma santa católica O senhor foi a um ritual fetichista Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu esse sacrifício ZÉ Não Padre foi a Santa Bárbara Foi até a igreja de Santa Bárbara que prometi vir com a minha cruz E é diante do altar de Santa Bárbara que vou cair de joelhos daqui a pouco pra agradecer o que ela fez por mim PADRE Dá alguns passos de um lado para outro de mão no queixo e por fim detémse diante de Zédo Burro em atitude inquisitorial Muito bem E que pretende fazer depois depois de cumprir a sua promessa ZÉ Não entendeu a pergunta Que pretendo Voltar pra minha roça em paz com a minha consciência e quite com a santa PADRE Só isso ZÉ Só PADRE Tem certeza Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo ZÉ Eu PADRE Sim voc ê que acaba de repetir a Via Crucis sofrendo o martírio de Jesus Voc ê que presunçosamente pretende imitar o Filho de Deus ZÉ Humildemente Padre eu não quis imitar Jesus PADRE Corta terrível Mentira Eu gravei suas palavras Voc ê mesmo disse que prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo ZÉ Sim mas isso PADRE Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda maior ZÉ Qual Padre PADRE A de igualarse ao Filho de Deus ZÉ Não Padre PADRE Por que então repete a Divina Paixão Para salvar a humanidade Não para salvar um burro ZÉ Padre Nicolau PADRE É um burro com nome cristão Um quadrúpede um irracional A Beata sai da igreja e fica assistindo à cena do alto da escada ZÉ Mas Padre não foi Deus quem fez também os burros PADRE Mas não à Sua semelhança E não foi para salválos que mandou seu Filho Foi por nós por você por mim pela Humanidade ZÉ Angustiadamente tenta explicarse Padre é preciso explicar que Nicolau não é um burro comum o senhor não conhece Nicolau por isso é um burro com alma de gente PADRE Pois nem que tenha alma de anjo nesta igreja você não entrará com essa cruz Dá as costas e dirigese à igreja O sacristão trata logo de segui lo ZÉ Em desespero Mas Padre eu prometi levar a cruz até o altarmor Preciso cumprir a minha promessa PADRE Fizessea então numa igreja Ou em qualquer parte menos num antro de feitiçaria ZÉ Eu já expliquei PADRE Não se pode servir a dois senhores a Deus e ao diabo ZÉ Padre PADRE Um ritual pagão que começou num terreiro de candomblé não pode terminar na nave de uma igreja ZÉ Mas Padre a igreja PADRE A igreja é a casa de Deus Candomblé é o culto do diabo ZÉ Padre eu não andei sete léguas para voltar daqui O senhor não pode impedir a minha entrada A igreja não é sua é de Deus PADRE Vai desrespeitar a minha autoridade ZÉ Padre entre o senhor e Santa Bárbara eu fico com Santa Bárbara PADRE Para o Sacristão Feche a porta Quem quiser assistir à missa que entre pela porta da sacristia Lá não dá para passar essa cruz Entra na igreja A Beata entra também apressadament e atrás do padre O Sacristão prontamente começa a fechar a porta da igreja enquanto ZédoBurro no meio da praça nervos tensos olhos dilatados numa atitude de incompreensão e revolta parece disposto a não arredar pé dali Bonitão um pouco afastado observa tendo nos lábios um sorriso irônico A porta da igreja se fecha de todo enquanto um foguetório tremendo saúda Iansan CAI O PANO LENTAMENTE Segundo Ato Primeiro Quadro Aproximadamente duas horas depois Abriuse a vendola e o Galego aparece trepad o num caixote amarrando um cordão com bandeirolas vermelhas e brancas que vai da porta da venda ao sobrado do lado oposto Zé e sua cruz continuam no meio da praça Ouvese um pregão Beiju olha o beiju Logo após surge no alto da ladeira uma preta em trajes típicos com um tabuleiro na cabeça Ela desce a ladeira e ao passar pelo Galego saúda MINHA TIA Iansan lhe dê um bomdia GALEGO Espanhol Gracias Minha Tia Minha Tia vai até à igreja e aí junto dos degraus pára A critério da direção e em momentos em que não prejudiquem a ação transeuntes cruzarão a praça durante todo o ato MINHA TIA Para o Galego Quer vir aqui dar uma mãozinha pra sua tia meu branco Galego apressase a ir ajudála Retira primeiro o cavalete que está sobre o tabuleiro abreo depois ajudaa a tirar o tabuleiro da cabeça e colocálo em cima do cavalete MINHA TIA Santa Bárbara lhe pague Nota ZédoBurro Oxente Que é aquilo GALEGO Não sei Já estava acá quando abri a venda Parece maluco Volta a pregar as bandeirolas enquanto Minha Tia põese a arrumar o fogareiro procura acendêlo Desce a ladeira passo mole preguiçoso Dedé CospeRima Mulato cabeleira pixaim sob o surrado chapéu de coco um adorno necessário à sua profissão de poeta comerciante Traz embaixo do braço uma enorme pilha de folhetos abecês romances populares em versos E dois cartazes um no peito outro nas costas Num se lê ABC da Mulata Esmeralda uma obraprima e no outro Saiu agora tá fresco ainda O que o cego Jeremias viu na Lua DEDÉ declama Bom dia Galego amigo dia assim eu nunca vi para saudar Iansan não repare eu lhe pedi me empreste por obséquio dois dedos de parati GALEGO É com esta história de hacer versos usted sempre me leva na conversa entra na venda e dá a volta por trás do balcão É boa mesmo essa do cego Jeremias Serve o parati DEDÉ Bombástico teatral Uma epopéia Uma nova Ilíada onde Tróia é a Lua e o cavalo de Tróia é o cavalo de São Jorge Tira um exemplar e coloca sobre o balcão Em paga do parati GALEGO Si pêro yo prefiro la otra la da mulata Esmeralda DEDÉ Uma prova de bom gosto Galego Troca os folhetos É também uma obraprima Lembra Castro Alves modéstia à parte Bebe o parati de um trago Referese às bandeirinhas Bandeirinhas vermelhas e brancas as cores de Iansan Depois diz que não crê em candomblé GALEGO Yo no creo pêro hay quem crea E yo soy um comerciante DEDÉ Somos dois Estende novamente o cálice Mais uma dose Esta eu pago amanhã Galego faz cara feia mas enche de novo o cálice A Beata entra da direita e detémse junto a Minha Tia ao ver ZédoBurro Mostrase surpresa e indignada BEATA É o cúmulo Ainda está aí MINHA TIA Não vai abrir a igreja hoje Iaiá Dia de Santa Bárbara BEATA Lança um olhar acusador a ZédoBurro Não enquanto esse indivíduo não for embora MINHA TIA Que foi que ele fez BEATA Quer entrar com essa cruz na igreja MINHA TIA Só isso BEATA E você acha pouco Acha que Padre Olavo ia permitir MINHA TIA Oxente Por que não Foi promessa que ele fez BEATA Foi Mas promessa de candomblé Pra uma tal de Iansan que Deus me perdoe Benzese Dirigese para a esquerda e ao passar por ZédoBurro insultao Herege Sobe a ladeira seguida do olhar de comovedora incompreensão de ZédoBurro DEDÉ Que ouviu a conversa Para o Galego Vou ver se Minha Tia me dá um abará Atravessa a praça Não sem mostrarse intrigado e curioso ao passar por ZédoBurro Bom dia Minha Tia MINHA TIA Bom dia seu Dedé Oferece Acarajé abará beiju Vem benzer DEDÉ Aponta Um abará Pago daqui a pouco quando entrar o primeiro dinheiro MINHA TIA Eu já sabia Entrega o abará embrulhado numa folha de bananeira DEDÉ Referindose a ZédoBurro Que história é essa MINHA TIA O Senhor ouviu DEDÉ Ouvi MINHA TIA Com respeito Obrigação pra Iansan Toca com as pontas dos dedos o chão e a testa DEDÉ Por isso o Padre não deixou ele entrar MINHA TIA É coitado DEDÉ Chegou a fechar a porta MINHA TIA O senhor entende DEDÉ Entendo não MINHA TIA O Padre é um homem tão bom DEDÉ A senhora acha MINHA TIA Então Ele é tão amigo dos pobres faz tanta caridade Sei não O Guarda entra pela direita Vai direto a ZédoBurro É um homem que procura safarse dos problemas que se lhe apresentam Sua noção do dever coincid e exatamente com o seu temor à responsabilidade Seu maior desejo é que nada aconteça a fim de que a nada ele tenha que impor a sua autoridade No fundo essa autoridade o constrange terrivelmente e mais ainda o dever de exercêla GUARDA Olá amigo ZÉ Olá GUARDA Referese à cruz É para a procissão de Santa Bárbara ZÉ Não GUARDA Porque a procissão não sai daqui sai do Mercado aqui perto e vai até à igreja da Saúde ZÉ Não tenho nada com essa procissão GUARDA E o senhor está aqui fazendo o quê Esperando a festa Ainda é muito cedo São oito e meia da manhã Só na parte da tarde é que isso pega fogo ZÉ Estou aqui desde quatro e meia da manhã GUARDA Quatro e meia Coça a cabeça preocupado O senhor deve ser um devoto e tanto Mas acontece que escolheu um mau lugar ZÉ A culpa não é minha GUARDA Sim eu sei não foi o senhor quem inventou a festa de Santa Bárbara Mas eu também não tenho culpa de ser guarda Minha obrigação é facilitar o trânsito tanto quanto possível ZÉ Sinto muito mas não posso sair daqui GUARDA Sua paciência começa a esgotarse Ai ai ai ai ai eu estou querendo me entender com o senhor ZÉ Irritandose também um pouco Eu também estou querendo me entender com o senhor e com todo o mundo Mas acho que ninguém me entende Dedé CospeRima que assistiu a toda a cena não resiste à curiosidade e vem presenciála mais de perto Minha Tia também acompanha tudo com interesse ZÉ Aquela mulher me chamou de herege o Padre fechou a porta da igreja como se eu fosse Satanás em pessoa Eu ZédoBurro devoto de Santa Bárbara DEDÉ Mas afinal o que é que o senhor quer ZÉ Que me deixem colocar esta cruz dentro da igreja nada mais Depois prometo ir embora E já estou vexado mesmo por isto DEDÉ Foi promessa Promessa que ele fez GUARDA Raciocina operação que lhe parece custar tremendo esforço físico Promessa colocar a cruz dentro da igreja Não vejo dificuldade nenhuma nisso Falase com o padre e ZÉ Se o senhor conseguir que ele abra a porta e me deixe entrar está tudo resolvido GUARDA Pensa mais um pouco vê que não há outra maneira de resolver o problema decidese Pois bem eu vou falar com ele Dirigese para a porta da igreja Ante os olhares de grande expectativa do Galego de Dedé de Minha Tia DEDÉ Não vou lá ajudar também porque eu e esse padre estamos de relações cortadas Sai GUARDA Bate na porta várias vezes sem resultado encosta o rosto na porta e chama Padre Abra um instante por favor Segundos após abrese uma fresta e surge por ela a cabeça do Sacristão receoso GUARDA Quero falar com o padre SACRISTÃO Certificase de que não há perigo abre um pouco mais a porta Entre Guarda tira o quepe e entra Sacristão fecha a porta rapidamente Rosa desce a ladeira Vem um pouco apressada como se temesse não mais encontrálo ali Mas quando vê ZédoBurro diminui o passo tranquilizase em parte Não perde entretanto um certo ar culposo procura disfarçar ROSA Você ainda está aí Nota a igreja fechada A igreja não abriu ZÉ Abriu sim Mas o Padre não quer me deixar entrar com a cruz ROSA Por quê ZÉ Balança a cabeça na maior infelicidade Não sei Rosa não sei Há duas horas que tento compreender mas estou tonto tonto como se tivesse levado um coice no meio da testa Já não entendo nada parece que me viraram pelo avesso e estou vendo as coisas ao contrário do que elas são O céu no lugar do inferno o demônio no lugar dos santos ROSA Refletindo na própria experiência É isso mesmo de repente a gente percebe que é outra pessoa Que sempre foi outra pessoa é horrível ZÉ Mas não é possível Rosa Eu sempre fui um homem de bem Sempre temi a Deus ROSA Concentrada em seu problema Zé isso está parecendo castigo ZÉ Castigo Castigo por quê Por eu ter feito uma promessa tão grande Por ter sido no terreiro de Maria de Iansan Mas se santa Bárbara não estivesse de acordo com tudo isso não tinha feito o milagre ROSA Zé esqueça Santa Bárbara Pense um pouco em nós ZÉ Em nós ROSA Em mim Zé ZÉ Em você ROSA Sim Zé em mim sua mulher ZÉ Que é que você quer Não dormiu não descansou ROSA Sem fitálo Zé vamos embora daqui ZÉ Agora ROSA Sim agora mesmo ZÉ Não posso Você sabe que eu não posso voltar antes de chegar ao fim da promessa Não ia ter sossego o resto da vida ROSA Você acredita demais nas coisas Zé É porque você não pensa no que pode acontecer ROSA Mais do que já aconteceu ZÉ Que aconteceu A caminhada as noites sem dormir e agora ser xingado como a figura do diabo Tudo isso é nada comparado com o castigo que pode vir ROSA Mas se o Padre não quer deixar você entrar com a cruz que é que você ainda vai ficar fazendo aqui ZÉ O Guarda foi falar com ele Estou esperando Como que desculpandose por não pensar na situação dela Você se quiser pode ir comer qualquer coisa ROSA Ante a impossibilidade de comunicar a ele o seu problema Já tomei café no hotel ZÉ Não era bom o hotel que aquele camarada arranjou ROSA Muito bom Tinha até pia no quarto e colchão de mola ZÉ Fiquei um pouco preocupado ROSA Ferida pela falta de ciúmes dele Comigo ZÉ Você num hotel sozinha Cidade grande a gente nunca sabe Se bem que o moço garantiu que era hotel de família ROSA Não tinha então que ter cuidado O moço era de toda confiança Tão amável tão prestativo REPÓRTER Entra acompanhado do Fotógrafo Lá está ele Vai a Zé enquanto o Fotógrafo circula à procura de ângulos O Repórter é vivo e perspicaz Dirige um cumprimento entusiasta a ZédoBurro Bom dia amigo Aperta efusivamente a mão de ZédoBurro Parabéns O senhor é um herói ZÉ com estranheza Herói REPÓRTER Com entusiasmo Sim sete léguas carregando esta cruz Calcula o peso Pesada hem Sete léguas quarenta e dois quilômetros A maior marcha que eu fiz foi de vinte e quatro quilômetros no Serviço Militar E o fuzil não pesava tanto assim Ri mas seu riso murcha como um balão ante o ar de desconfiança de Rosa e ZédoBurro Oh desculpe eu sei que o senhor fez uma promessa A comparação não foi muito feliz Para o Fotógrafo Carijó pode bater uma chapa Posa de frente para ZédoBurro de caderno e lápis em punho Finja que está falando comigo ZÉ Começa a impacientarse Fingir que estou falando pra quê REPÓRTER E dentro de algumas horas o Brasil inteiro vai saber O senhor vai ficar famoso ZÉ Contrariado Mas eu não quero ficar famoso eu quero ROSA Interrompe em tom de repreensão Que é isso Zé Seja mais delicado com o moço Ele é da gazeta REPÓRTER Mulher dele ROSA Sou Também andei sete léguas meu pé tem cada calo dágua deste tamanho REPÓRTER Maravilhoso E em quanto tempo cobriram o percurso ROSA Não entendeu Como REPÓRTER Quero dizer quando saíram de lá de sua cidade ROSA Da roça Saímos ontem de manhãzinha Cinco horas da manhã REPÓRTER A que horas chegaram aqui ROSA Antes das cinco REPÓRTER Fizeram o percurso então em 24 horas Com uma cruz que deve pesar Olha interrogativamente para ZédoBurro ZÉ Contrariado Não sei não pesei REPÓRTER Por menos que pese é um record Sob este aspecto podemos considerar um grande feito esportivo Uma prova de resistência física para Rosa e de dedicação Rosa sorri envaidecida sentindose heroína também REPÓRTER Mas como nasceu a idéia dessa peregrinação As perguntas são feitas a ZédoBurro mas este recusase a respondêlas ROSA Não nasceu idéia nenhuma O burro adoeceu ia morrer ele fez promessa pra Santa Bárbara REPÓRTER O burro Que burro ROSA O Nicolau ZÉ Irritado Por quê O senhor também vai achar que o meu burro não vale uma promessa REPÓRTER Não de mod o algum eu eu apenas não sabia então tud o isso quarenta e dois quilômetros a cruz tudo por causa de um burro Repentinamente antevendo o interesse que despertará a reportagem Fabuloso ROSA E não foi só isso Ele prometeu também repartir o sítio com aquela cambada de preguiçosos ZÉ Que preguiçosos Gente que quer trabalhar e não tem terra REPÓRTER Repartir o sítio digame o senhor é a favor da reforma agrária ZÉ Não entende Reforma agrária Que é isso REPÓRTER É o que o senhor acaba de fazer em seu sítio Redistribuição das terras entre aqueles que não as possuem ZÉ E não estou arrependido moço Fiz a felicidade de um bocado de gente e o que restou pra mim dá e sobra REPÓRTER Toma notas É a favor da reforma agrária ZÉ É bem verdade que se o meu burro não tivesse ficado doente eu não tinha feito isso REPÓRTER Mas e se todos os proprietários de terra fizessem o mesmo Se o governo resolvesse desapropriar as terras e dividilas entre os camponeses ZÉ Seria muito bem feito Cada um deve trabalhar o que é seu REPÓRTER Ofensiva É contra a exploração do homem pelo homem O senhor pertence a algum partido político ZÉ Com alguma vaidade dissimulad a num sorris o modesto Já quiseram me fazer vereador qual ROSA O que atrapalhou foi o burro REPÓRTER O burro Por quê ROSA Aonde ele vai o burro vai atrás Se ele fosse eleito o burro também tinha que ser REPÓRTER É mas desta vez seu ZÉ ZédoBurro seu criado REPÓRTER seu ZédoBurro o senhor será eleito com burro e tudo Confidencial Escute aqui será que essa história da promessa não é um golpe para impressionar o eleitorado ZÉ Ofendido Golpe REPÓRTER E de mestre Avalio a agitação que o senhor fez com isso Pelas estradas no caminho até aqui deve terse juntado uma verdadeira multidão para vêlo passar ZÉ É tinha ROSA Muito moleque também REPÓRTER E imaginem a volta A chegada à sua cidade em carro aberto banda de música foguetes ZÉ O senhor está maluco Não vai haver nada disso REPÓRTER Vai Vai porque o meu jornal vai promover Só faço questão de uma coisa que o senhor nos dê a exclusividade Que não conceda entrevistas a mais ninguém Noutro tom É claro que o senhor terá uma compensação Faz com o indicador e o polegar um gesto característico e também a publicidade Primeira página com fotografias o senhor e sua senhora mandaremos fotografar também o burro em poucas horas o senhor será um herói nacional ZÉ Profundamente contrariado Moço eu acho que o senhor não me entendeu ninguém ainda me entendeu REPÓRTER Sem lhe dar atenção O diabo foi o senhor ter escolhido um dia como o de hoje Sábado Amanhã é domingo o jornal não sai Só segundafeira E o nosso Departamento de Promoções precisaria preparar a coisa Podemos dar o furo na edição de hoje mas o barulho mesmo só segundafeira Quando o senhor pretende voltar ZÉ Por mim já estava de volta Abrese parcialmente a porta da igreja O Sacristão deixa o Guarda passar e torna a fechála O Guarda vem ao encontro de ZédoBurro que o aguarda sem muita esperança GUARDA Balança a cabeça desanimado Não consegui nada ZÉ O senhor falou com o padre GUARDA Falei argumentei não adiantou E ainda tive que ouvir um sermão deste tamanho Ele acha que em vez de ir pedir para deixar o senhor entrar na igreja eu devia era leválo preso Claro que eu não vou fazer isso mas o senhor bem que podia ter arranjado uma promessinha menos complicada ROSA Também acho GUARDA Porque não adianta o senhor ficar aqui o padre já disse que não abre a porta e não abre mesmo eu conheço ele REPÓRTER Ótimo Mas isso é ótimo Assim temos um pretexto para adiar a entrega da cruz para segundafeira Dará tempo então de organizarmos tudo As entrevistas as apresentações no rádio e a sua volta triunfal com batedores e banda de música ZÉ Cada vez mais contrariado e mais infeliz Moço eu vim a pé e vou voltar a pé ROSA Ela vislumbrou nas palavras do Repórter uma possibilidade confusa de libertação ouviuas num entusiasmo crescente Oxente Não seja estúpido homem O moço está querendo ajudar a gente ZÉ Então ele que me ajude a convencer o vigário a abrir a porta REPÓRTER Eu vou já entrevistar o vigário Mas fique certo de uma coisa seja qual for o seu objetivo uma publicidadezinha não fará mal algum Pisca o olho para ZédoBurro que não percebe a insinuação Carijó bata mais uma chapa Para ZédoBurro Quer fazer o favor de carregar a cruz Para Rosa A senhora também ZédoBurro fica indeciso sem palavras para traduzir a sua indignação ROSA Vamos Zé Empurrao para baixo da cruz e colocase a seu lado numa atitude forçada O Guarda também procura discretamente aparecer na fotografia A cena é caricatural com Rosa escancarandose num sorriso de dentifrício ZédoBurro vergado ao peso da cruz e de sua imensa infelicidade E o Guarda de peito estufado disputando honrosamente a sua participação no acontecimento GALEGO Sai da venda apressado e dirigese ao Fotógrafo Um momento O senhor não podia fazer aparecer também o meu estabelecimento Sabe uma publicidadezinha Fotógrafo colocase de molde a aparecer no fundo a venda Galego corre para junto do balcão e posa REPÓRTER Ótimo Pode bater Carijó O Fotógrafo bate a chapa REPÓRTER Obrigado Esta vai sair hoje na primeira página Para o Fotógrafo Vamos agora entrevistar o vigário GUARDA É melhor o senhor ir pela porta da sacristia ZÉ Eu levo o senhor até lá REPÓRTER Não gosta da idéia Não acho melhor o senhor esperar aqui ZÉ Com decisão Mas eu quero ir com o senhor REPÓRTER Cede de má vontade Está bem Sai com ZédoBurro e o Fotógrafo Ouvemse buzinas insistentes GUARDA Garanto que agora o padre vai abrir a igreja Não há quem não tenha medo da imprensa Olha na direção da direita Eu vou pra lá que a coisa está piorando Sai pela direita Bonitão desce a ladeira e pára na vendola Rosa o vê e não esconde a sua emoção BONITÃO Para o Galego Uma dupla GALEGO Olá Bonitão Usted por aqui de madrugada Serve a cachaça ROSA Vai à venda e encostase no balcão ao lado de Bonitão Um café moço BONITÃO Ainda ROSA Ainda BONITÃO Não sei como você aguenta ROSA Eu também não BONITÃO Ele desconfiou de alguma coisa ROSA Nada Ele só pensa na cruz e na promessa BONITÃO Sabe que eu fui pra casa dormir e não consegui ROSA Por quê BONITÃO Fiquei pensando em você ROSA Melhor que não pense BONITÃO Está arrependida ROSA Estou BONITÃO Agora é um pouco tarde ROSA Não é não Uma noite a gente pode apagar BONITÃO A gente pode apagar uma porção de noites Isso não deixa marca ROSA Em mim deixou Nem sei como ele não vê Dá até raiva Dá vontade de contar tudo BONITÃO Não é má idéia Ele não é homem violento Podia era largar voc ê aqui na cidade e voltar sozinho pra roça Isso resolvia tudo ROSA Resolvia o quê BONITÃO Sua vida Você tem futuro ROSA Adianta não Minha sina é essa mesma Às vezes eu tenho vontade sim de arrumar a trouxa e ganhar a estrada Mas não tenho coragem E se tivesse não ia saber pra onde ir BONITÃO Quando eu era menino fui guia de cego ROSA Não estou cega E sabia muito bem o que estava fazendo Como sei também que sou capaz de fazer de novo se ele não me levar daqui Mesmo sem querer BONITÃO Se você não se livrar dele vai acabar idiota como ele ROSA Procurando uma justificativa para sua falta de coragem Ele precisa de mim BONITÃO Ele tem o burro ROSA Estúpido BONITÃO Não quis comparar ROSA Ele é muito homem fique sabendo BONITÃO Se é assim por que você tem tanta sede ROSA Ela se sente cada vez mais empurrada para ele como para um abismo e não há nela precisamente um desejo de resistir ao salto definitivo Há apenas a imens a fraqueza da pessoa humana no momento das grandes decisões Que tinha você de aparecer aqui de novo BONITÃO Foi você quem veio falar comigo ROSA Você me obriga a fazer o que eu não quero BONITÃO Ri cônscio de seu poder de sedução Que culpa tenho eu de ter nascido com tantas qualidades Ela vai voltar ao centro da praça Ele a segura pelo braço BONITÃO Baixo Espere ROSA Idem Está louco BONITÃO Pelo jeito ele ainda vai ficar muito tempo aí Entendeu ROSA Soltase dele com um safanão Não entendo nada Você é doido e eu estou ficando doida também BONITÃO Ele não pode sair de junto da cruz Mas você pode pode ir descansar no hotel ou mesmo ir rezar em outra igreja pedir a outro santo pra ajudar a convencer o padre a abrir a porta Um reforço sempre é bom Entra ZédoBurro Rosa e Bonitão disfarçam MINHA TIA Detendoo E então ZÉ Eles não quiseram que eu entrasse Acham melhor falar com o Padre em particular MINHA TIA Assume uma atitude de extrema cumplicidade Meu filho eu sou ekédi no candomblé da Menininha Mais logo o terreiro está em festa Você fez obrigação pra Iansan Iansan está lá pra receber ZÉ Ele não entende Como MINHA TIA Eu levo você lá Você leva a cruz e a santa recebe Você fica em paz com ela ZÉ Iansan MINHA TIA Foi ela quem lhe atendeu ZÉ Mas a igreja MINHA TIA Mande o padre pro inferno Leve a sua cruz no terreiro Eu vou com você ZÉ Hesita um pouco e por fim reage com veemência Não não foi num terreiro que eu disse que ia levar a cruz foi numa igreja Numa igreja de Santa Bárbara MINHA TIA Santa Bárbara é Iansan E Iansan está lá Vai baixar nos seus cavalos Vamos ZÉ Não Não é a mesma coisa Não é a mesma coisa Abrese a porta da igreja e surgem Repórter Fotógrafo e Sacristão REPÓRTER Para o Sacristão O senhor acha que o padre não deixa mesmo ele entrar SACRISTÃO O senhor não ouviu ele dizer É Satanás Satanás sob um dos seus múltiplos disfarces REPÓRTER Satanás disfarçado em Jesus Cristo acho que é um pouco forte Em todo caso isso é lá com ele Eu confesso que não sou muito entendido na matéria O que interessa é mantêlo aqui pelo menos até segundafeira Se for preciso mandarei vir comida e bebida Contanto que ele não vá embora antes de segundafeira ZédoBurro dá um passo em direção à igreja Sacristão assustase SACRISTÃO Com licença senhores com licença Entra e fecha a porta precipitadamente Fotógrafo vai à vendola REPÓRTER Vindo a ZédoBurro Nada feito meu camarada O padre é uma rocha Procura estimulálo a resistir Mas ele vai acabar cedendo Se você não arredar pé daqui ele vai ter que abrir a igreja Eu lhe garanto Agora a causa não é somente sua é também do nosso jornal E sendo do nosso jornal é do povo ZédoBurro olhao como se procurasse inutilmente entender um ser vindo de outro planeta REPÓRTER Eu o aconselho a resistir Afinal de contas é um direito Direito que o senhor adquiriu em 42 quilômetros de via crucis Eu confio no senhor Para Rosa Leia o meu jornal hoje à tarde Vai ser um estouro Sai seguido do Fotógrafo BONITÃO Jornalistas é ROSA É Com vaidade Tiraram o meu retrato Será que vão publicar mesmo BONITÃO Se estivesse nua eu garantia Assim não sei Neste momento entra Marli pela direita Ao ver Bonitão junto a Rosa avança para ele em atitude agressiva MARLI Eu sabia Tinha que estar atrás de algum rabodesaia BONITÃO Que é que você vem fazer aqui MARLI Venho saber por que o senhor não apareceu em casa esta noite BONITÃO Que casa MARLI A minha casa BONITÃO Estava indisposto Fui para o meu hotel MARLI Mede Rosa de alto a baixo Sim eu estou vendo a sua indisposição BONITÃO Em voz contida mas enérgico Não faça escândalo MARLI Por quê Está com medo do marido dela BONITÃO Não estou com medo de ninguém mas não vou deixar você fazer a senhora passar vexame MARLI Irônica A senhora se ela é senhora eu sou donzela BONITÃO Autoritário Marli me obedeça MARLI Está querendo bancar o machão na frente dela é BONITÃO Eu não tenho nada com ela MARLI Você passou a noite com ela O rosto de ZédoBurro se cobre de sombras e ele busca nos olhos de Rosa uma explicação Ela não o fita BONITÃO Segura Marli por um braço violentamente Vamos para casa MARLI Não Primeiro quero tirar isso a limpo Quero que essa vaca saiba que você é meu Com orgulho Meu Grita para Rosa Esta roupa foi comprada com o meu dinheiro Esta e todas as que ele tem BONITÃO Perde a paciência ameaçador Se você não for para casa imediatamente nunca mais eu deixo você me dar nada MARLI Deixandose arrastar por ele na direção da direita Ele é meu ouviu Fique com seu beato e deixe ele em paz É meu homem É meu homem Há uma pausa terrivelmente longa na qual ZédoBurro apenas fita Rosa silenciosamente sob o impacto da cena Em seu olhar lêse a dúvida a incredulidade e sobretudo o pavor diante de um mundo que começa a desmoronar As luzes se apagam em resistência Segundo Quadro Três horas da tarde ZédoBurro e Ros a continuam no meio da praça Minha Tia com seu tabuleiro na porta da igreja o Galego na venda Dedé CospeRima entra da direita ABC da Mulata Esmeralda romance completo contando toda a vida de Esmeralda desde o nascimento no Beco das Inocências até a morte por trinta facadas na Rua da Perdição Oferece a ZédoBurro 10 cruzeiros ZédoBurro recusa com um gesto DEDÉ Lê declamando Ai meu Senhor do Bonfim daime muita inspiração daime rima e muita métrica pra fazer a descrição das penas de Esmeralda na Rua da Perdição Para ZédoBurro Estava pensando sabe que essa sua briga com o Padre dava um abecê Quer eu escrevo ZÉ Com decisão Não DEDÉ Por que não quer Abecê em versos ficava bonito ZÉ Não DEDÉ Versos que modéstia à parte são lidos pela Bahia inteira Com intenção Inclusive pelo Padre Olavo e não é por me gabar meu camarada mas aqui como me vê poeta pela graça da Virgem e do Senhor do Bonfim eu sou um homem temido Quando eu anuncio que vou escrever um folheto contando as bandalheiras desse ou daquele deputado ah menino não tarda o fulano me procurar pra adoçar meus versos Faz com os dedos um sinal característico de dinheiro Se eu anunciar nesta tabuleta que vou escrever o ABC de Zédo Burro tenho certeza de que o Padre abre logo a porta e vem ele mesmo carregar a cruz Zé olhao com desconfiança ROSA Que é preciso pra isso DEDÉ Bem o consentimento dele em primeiro lugar E em segundo sabe papel está pela hora da morte a tipografia está cobrando os olhos da cara ROSA Ah é preciso pagar DEDÉ Aí uns cinco contos pra ajudar Vai a Zé Mas garanto o resultado ZÉ Vigorosamente Não quero que faça nada DEDÉ Olhe que o senhor se arrepende Garanto que basta anunciar o Padre se borra todo ZÉ Corta irritado Não quero já disse DEDÉ Está bem Quem perde é o senhor O senhor e a Poesia nacional Mestre Coca desce a ladeira gingando e pára na vendola É um mulato alto musculoso e ágil Veste calças brancas boca de sino e camisa de meia COCA Buenas GALEGO Opa DEDÉ Boa tarde Mestre Coca COCA Dedé CospeRima precisa arranjar um serviço de homem meu camarada Para o Galego Me dá um porongo Galego serve a cachaça Ouvemse trovões longínquos Dia de Santa Bárbara tem que roncar trovoada DEDÉ Já largou a estiva Mestre Coca COCA Já Descarreguei um cargueiro holandês até à uma hora e caí no mundo Hoje dia de Iansan não é dia de carregar peso é dia de vadiar DEDÉ Vamos ter capoeira hoje COCA Mais logo Mais logo vamos ter vadiação Vou jogar com Manoelzinho SuaMãe Nota ZédoBurro Me disseram que tinha aqui um homem querendo entrar na igreja com uma cruz e o Padre não queria deixar GALEGO É esse aí COCA Mas lugar de cruz não é dentro da igreja DEDÉ É mais parece que a cruz é pra Iansan e o Padre não gostou da história COCA E fechou a porta DEDÉ Não é de admirar Outro dia ele não quis proibir que eu vendesse meus livros aqui na porta da igreja COCA Por quê DEDÉ Disse que o ABC da Mulata Esmeralda era indecente Falou isso num sermão E de lá pra cá essas beatas quando passam por mim viram a cara como se eu fosse a pintura do Cão GALEGO No me gustan los padres Pero esse está haciendo um buen servido Por causa dele a freguesia aumentou e já fui até fotografado DEDÉ Se ele quisesse eu fazia o Padre abrir a porta em dois tempos GALEGO Nada Deixa el hombre aí Quanto mais demorar mejor DEDÉ Vou dar um pulo até o Mercado de Santa Bárbara COCA Ah lá a festança já começou é de hoje Capoeira roda de samba está bom que está danado DEDÉ Tem turista COCA Vi uns gringos DEDÉ Vou até lá Sobe a ladeira com os folhetos embaixo do braço ROSA Para o marido Sabe que horas são Três horas da tarde Você não está com fome ZÉ Não Vá ali na mulher no tabuleiro compre qualquer coisa pra você Tira do bolso uma nota Rosa toma a nota e vai a Minha Tia MINHA TIA Que é Iaiá ROSA Qualquer coisa pra matar a fome MINHA TIA Precisa mesmo É de hoje que vosmincês estão aí ROSA Desde manhã cedo MINHA TIA Fitando Zé do Burro com simpatia e incredulidade E ele parece um homem tão bom SECRETA O tira clássico Chapéu enterrado até os olhos mãos nos bolsos inspira mais receio que respeito À primeira vista tanto pode ser o representante da lei como o fugitivo da lei Entra pela direita e atravessa a cena lentamente em direção à vendola Ao passar por Zé do Burro demora nele um olhar de desabusada curiosidade Uma dupla Olha em torno procurando alguém consulta o relógio ROSA Durante a entrada do Secreta esteve escolhendo alguns quitutes no tabuleiro da baiana Recebe os agora embrulhados em folha de banana das mãos da preta Paga MINHA TIA Diga a ele que não desanime Iansan tem força Rosa leva os quitutes para Zé do Burro Este recusa com um gesto Entra da direita o Guarda com um jornal na mão GUARDA Vejam a Primeira página com retrato e tudo Mostra o jornal a Rosa que corre ansiosamente ROSA Meu retrato GUARDA Eu também saí ROSA Examina o retrato Hum o senhor saiu muito bem é cópia fiel GUARDA Sorri vaidoso É eu acho que saí bem vou levar pra minha mulher ROSA Quem saiu mal fui eu Faz uma careta de desagrado Horrível GUARDA Não ligue Fotografia de gazeta é assim mesmo ZÉ Sua atitude para com Rosa é agora de recalcada e surda revolta Embora ele não pareç a ter certeza ainda de sua infidelidade instintivamente começa a perceber que ela se encontra do outro lado do lado daqueles que por este ou aquele motivo não o compreendem ou fingem não compreendêlo Afinal que é que diz aí GUARDA Como se só agora lhe ocorresse ler a reportagem Ah sim lê O novo Messias prega a revolução ZÉ Estranha Revolução Espicha o pescoço e lê por cima do ombro do guarda GUARDA É revolução Está aqui Continua Sete léguas carregando uma cruz pela reforma agrária e contra a exploração do homem pelo homem Entreolhamse sem entender ZÉ Eu bem achei que aquele camarada não era certo da bola GUARDA Continuando a ler Para o vigário da paróquia de Santa Bárbara é Satanás disfarçado Quem será afinal Zé do Burro Um místico ou um agitador O povo o olha com admiração e respeito pelos caminhos por onde passa com sua cruz mas o vigário expulsa o do templo No entanto ZédoBurro está disposto a lutar até o fim Acho que o moço não entendeu bem o seu caso Olhao com certa desconfiança Ou então fui eu que não entendi Dá o jornal a ZédoBurro Podem ler mas não joguem fora Iniciando a saída Quero levar pra casa Sai ROSA Zé não estou gostando disso ZÉ Nem eu ROSA Não entendi bem o que botaram na gazeta mas uma coisa me diz que isso não é bom ZÉ Não esconde o ressentimento que guarda dela Bem Maria de Iansan diss e que a promessa tinha que ser bem grande Com certeza Santa Bárbara achou que não era bastante o que eu prometi e está cobrando o restante Fita Rosa Ou está me castigando por eu ter prometido tão pouco ROSA Então eu também estou sendo castigada ZÉ Ou pode ser que esteja me fazendo passar por tudo isso pra me experimentar Pra ver se eu desisto da promessa Santa Bárbara esta me tentando e ainda há pouco quase que eu caio ROSA Quando ZÉ Quando aquela sujeita disse tudo aquilo O sangue me subiu na cabeça e se eu me deixo tentar tinha matado um homem ou uma mulher Ia preso e não podia cumprir a promessa Pensei nisso naquela hora e aguentei tudo calado Foi uma prova Tudo isso é uma provação ROSA Agarrandose a uma justificativa para sua própria falta Deve ser sim É a única explicação pra tudo que aconteceu Santa Bárbara me usou pra pôr você à prova ZÉ Mas Santa Bárbara não teria feito isso se não conhecesse você melhor que eu ROSA Veemente Eu senti Zé senti que havia uma vontade mais forte do que a minha me empurrando pra lá E você ajudando Você também é culpado Eu não queria ir e você insistia Não é pra me desculpar mas se tudo é obra de Santa Bárbara o que é que eu podia fazer ZÉ Podia resistir à tentação como eu tenho resistido ROSA Era diferente Não era a mim que ela estava pondo à prova Era a você E se ela é santa se ela pode fazer milagre pode me obrigar a fazer o que eu não quero como obrigou Pode botar o diabo no meu corpo como botou Mas isso não vai acontecer mais Acho até que isso nem aconteceu Pois se foi uma provação divina ZÉ Não muito convencido Esse assunto nós vamos resolver depois na volta Lê o jornal Entra Bonitão pela direita e vai diretamente à vendola Aproximase do Secreta Traz um jornal embaixo do braço BONITÃO Em voz baixa disfarçadamente Você veio depressa Para o Galego Uma dose Galego serve SECRETA Idem Que é que você quer falar comigo Se é sobre a sua volta à Polícia BONITÃO Corta sorrindo Não nada disso Nem estou pensando mais em voltar Estou muito bem de vida SECRETA Mas tome cuidado Estão com sua ficha em dia BONITÃO Ri Não acredito Vocês vivem comendo mosca Olha aí Indica com o olhar ZédoBurro No meu tempo esse cabra já estava no xilindró Noutro tom E vocês me expulsaram SECRETA Quem é ele BONITÃO Mostrando o jornal Tome leia Vocês nem lêem gazeta e querem estar em dia O Secreta põese a ler o jornal atentamente dando de vez em quando uma mirada para Zédo Burro como a comprovar as afirmativas Bonitão atira uma nota sobre o balcão SECRETA Você já conversou com ele BONITÃO Já O homem é perigoso Banca o anjo de procissão mas não é à toa que o padreco dali de frente fechou a igreja e jurou que ele não entra SECRETA É mas a coisa é esquisita BONITÃO Eu se fosse você guardava ele por uns dias SECRETA Também não pode ser assim Tenho que investigar depois comunicar ao Comissário BONITÃO Qual vocês não sabem trabalhar Dá o flagra no homem SECRETA Flagra de quê Ele não está fazendo nada BONITÃO Como não Agitação social SECRETA Venha comigo BONITÃO Iniciando a passagem Ele vai lhe contar a história de um burro mas não vá nessa conversa GALEGO Para Mestre Coca Polícia estão querendo prender el hombre COCA Está certo não Fazer promessa não é crime ZédoBurro recebe Bonitão e Secreta com desconfiança Ros a mostra certo constrangimento diante de Bonitão Este apresenta o Secreta BONITÃO Um amigo Quer conversar com vocês quer ajudar SECRETA Olá Zé Dentro dele uma revolta de proporções imprevisíveis começa a crescer Ajudar todo o mundo quer ajudar Arrebata o jornal das mãos de Rosa e o faz em pedaços ROSA Assustada Não faça isso homem É do Guarda Ele pediu pra guardar ZÉ O Guarda também quer ajudar Repete como uma obsessão Todos querem ajudar Seu olhar que começa a ser agora um olhar de fera acuada cai sobre Bonitão Todos SECRETA O senhor sabe que suas idéias são muito perigosas ZÉ Perigosas SECRETA O senhor não devia dizer isso no jornal E muito menos aqui em praça pública Porque isso pode lhe dar muita aporrinhação ZÉ Mais do que já tive SECRETA Por muito menos tenho visto muita gente ir parar no xadrez ROSA Xadrez SECRETA Estou avisando como amigo ZÉ Amigo Já vi que estou cercado de amigos É amigo por todo lado Cada qual querendo ajudar mais do que o outro SECRETA O senhor é um revoltado ZÉ Não era não Mas estou ficando SECRETA É por isso que está aqui desde esta madrugada ZÉ É Inflamandose E daqui não saio enquanto não fizer com que todo mundo me entenda Todo mundo SECRETA Como pretende fazer isso ZÉ Como sei lá mas tem de haver um jeito tem de haver um jeito Desesperado A vontade que eu tenho é de jogar uma bomba Inicia um gesto como se atirasse uma bomba contra a igreja mas o braço se imobiliza no ar ele percebe a heresia que ia proferir deixa o braço cair e ergue os olhos para o céu Que Deus me perdoe Secreta e Bonitão trocam olhares significativos ZédoBurro avança dois ou três passos em direção à igreja isolase do grupo e grita a plenos pulmões Padre Padre Dedé desce a ladeira e fica assistindo à cena curioso Padre eu andei sete léguas pra vir até aqui Deus é testemunha Ainda não comi hoje e não vou comer até que abra a porta Um dia dois um mês vou morrer de fome na porta da sua igreja padre Galego deixa a vendola e vem para o meio da praça no momento em que surgem também na ladeira dois tocadores de berimbau de instrumento em punho Colocamse ao lado de Mestre Coca e ficam apreciando ZÉ Gritando alucinadamente Padre é preciso que me ouça padre Abrese de súbito a porta da igreja e entra o Padre O Sacristão atrás dele amedrontado Grande silêncio O Padre avança até o começo da escada PADRE Que pretende com essa gritaria Desrespeitar esta casa que é a casa de Deus ZÉ Não Padre lembrar somente que ainda estou aqui com a minha cruz PADRE Estou vendo E essa insistência na heresia mostra o quanto está afastado da igreja ZÉ Está bem Padre Se for assim Deus vai me castigar E o senhor não tem culpa PADRE Tenho sim Sou um sacerdote Devo zelar pela glória do Senhor e pela felicidade dos homens ZÉ Mas o senhor está me fazendo tão infeliz padre PADRE Sinceramente convicto Não Estou defendendo a sua felicidade impedindo que se perca nas trevas da bruxaria ZÉ Padre eu não tenho parte com o Diabo tenho com Santa Bárbara PADRE Agora para toda a praça Estive o dia todo estudando este caso Consultei livros textos sagrados Naquele burro está a explicação de tudo É Satanás Só mesmo Satanás podia levar alguém a ridicularizar o sacrifício de Jesus ROSA Não Padre não PADRE Por que não ROSA Porque eu conheço ele É um bom homem Até hoje só fez o bem PADRE Lúcifer também foi anjo ROSA É até bom demais Nunca fez mal a ninguém nem mesmo a um passarinho É capaz de repartir o que é dele com os outros De deixar de comer até pra dar de comer a um burro É um homem bom isso eu garanto PADRE Como pode garantir ROSA Sou mulher dele Vivo com ele Durmo na mesma cama como na mesma mesa PADRE Isso não quer dizer nada ROSA Com mais veemência Como é que não Entra o Guarda da direita e se detém no meio da praça PADRE Lúcifer iludiu o Senhor até o último momento Leva o dedo em riste Mas eu conheço seus adeptos Mesmo quando se disfarçam sob a pele do cordeiro Mesmo quando se escondem atrás da cruz de Cristo A mesma cruz que querem destruir Mas não destruirão Não destruirão Neste momento entra Monsenhor O Padre está no auge de sua cólera Ao ver Monsenhor seu braço se imobiliza no ar como ante uma aparição sobrenatural PADRE Monsenhor SACRISTÃO Monsenhor Otaviano PADRE Grita para a praça Deixem passar Monsenhor Todos abrem passagem e se curvam respeitosamente Monsenhor avança para a igreja Ao passar por Zédo Burro este lhe cai aos pés e beijalhe a mão MONSENHOR Paternal magnânimo Já sei Estou tratando do seu caso Entra na igreja seguido dos seminaristas do Padre e do Sacristão Fechase a porta GUARDA É Monsenhor Otaviano Deve ter vindo a mando do Arcebispo ROSA E o Padre ficou apavorado quando viu ele reparou DEDÉ Com certeza o Arcebispo mandou puxar as orelhas do Padre MINHA TIA Bem feito GALEGO Se deixam el hombre entrar prejudicam nuestro negócio ZÉ Com esperança Será será que o Arcebispo chegou a saber GUARDA Ora a cidade inteira já sabe O rádio já deu COCA Não se fala noutra coisa da Cidade Baixa até a Cidade Alta ZÉ E ele vir até aqui por causa disso ROSA É porque veio trazer alguma ordem E ordem do Arcebispo DEDÉ Mandou o Padre deixar de ser besta COCA Mandou abrir a porta MINHA TIA Eu disse Iansan tem força Agora ele vai entrar Vai entrar ZÉ Eu sabia que Santa Bárbara não ia me desamparar Abrese a porta da igreja Surgem Monsenhor e Padre seguidos do Sacristão Há um grande silêncio de expectativa MONSENHOR Venho aqui a pedido de Monsenhor Arcebispo S Excia está muito preocupado com o vulto que está tomando este incidente e incumbiume pessoalmente de resolver a questão A fim de dar uma prova da tolerância da igreja para com aqueles que se desviam dos cânones sagrados ZÉ Interrompe Padre eu sou católico Não entend o muita coisa do que dizem mas queria que o senhor entendesse que eu sou católico Pode ser que eu tenha errado mas sou católico MONSENHOR Pois bem Vamos lhe dar uma oportunidade Se é católico renegue todos os atos que praticou por inspiração do Diabo e volte ao seio da Santa Madre Igreja ZÉ Sem entender Como Padre MONSENHOR Abjure a promessa que fez reconheça que foi feita ao Demônio atire fora essa cruz e venha sozinho pedir perdão a Deus ZÉ Cai num terrível conflito de consciência O senhor acha mesmo que eu devia fazer isso MONSENHOR É sua únic a maneira de salvarse A igreja católic a concede a nós sacerdotes o direito de trocar uma promessa por outra ROSA Incitandoo a ceder Zé talvez fosse melhor ZÉ Angustiado Mas Rosa se eu faç o isso estou faltando à minha promessa seja Iansan seja Santa Bárbara estou faltando MONSENHOR Com a autoridade de que estou investido eu o liberto dessa promessa já disse Venha fazer outra PADRE Monsenhor está dand o uma prova de tolerância cristã Resta agora voc ê escolher entre a tolerância da Igreja e a sua própria intransigência ZÉ Pausa O senhor me liberta mas não foi ao senhor que eu fiz a promessa foi a Santa Bárbara E quem me garante que como castigo quando eu voltar pra minha roça não vou encontrar meu burro morto MONSENHOR Decida Renega ou não renega MINHA TIA Êparrei Maleme pra ele minha mãe COCA Maleme ZÉ Não Não posso fazer isso Não posso arriscar a vida do meu burro PADRE Então é porque você acredita mais na força do demônio do que na força de Deus É porque tudo que fez foi mesmo por inspiração do diabo MONSENHOR Nada mais posso fazer então Atravessa a praça e sai ZÉ Corre na direção de Monsenhor Monsenhor Me deixe explicar No auge do desespero Me deixe explicar PADRE Que ninguém agora nos acuse de intolerantes E que todos se lembrem das palavras de Jesus Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas e farão tão grandes sinais e prodígios que se possível fora enganariam a muitos ZÉ Padre eu não quero enganar ninguém PADRE Enganaria a muitos sim E muitos o seguiriam ao sair daqui ZÉ Eu não quero que ninguém me siga PADRE Mas seguiriam como já o seguiram pelas estradas sem saber que seguiam a Satanás ZÉ Subitamente fora de si corre para a cruz levantaa nos braços como um aríete e grita Padre Por Santa Bárbara ou por Satanás vou colocar esta cruz dentro da igreja custe o que custar PADRE Ante a decisão que vê estampada no rosto de ZédoBurro recua amedrontado Eis a prova um católico não ameaça invadir a casa de Deus Guarda Prenda esse homem E ante a investida de ZédoBurro que caminha para a igreja corre seguido do Sacristão e cerra a porta no momento mesmo em que Zé sobe os degraus Este revoltado e vencido atira a cruz contra a porta A cruz tomba estrondosamente sobre a escada ZédoBurro sentase num dos degraus e esconde o rosto entre as mãos COCA Para os tocadores de berimbau Fiquem aqui Vou chamar o resto do pessoal Sobe a ladeira BONITÃO Para o Secreta Que está esperando Não está convencido ainda SECRETA Faz um sinal afirmativo com a cabeça Espere Sai pela direita ROSA Que percebeu a troca de palavras entre o Secreta e Bonitão Espere o quê Quem é ele BONITÃO Um secreta ROSA Começando a compreender Polícia Você Você denunciou BONITÃO Daqui a pouco você vai ficar livre desse idiota ROSA Horrorizase ante a idéia da traição Você não devia ter feito isso Não devia BONITÃO É pro seu bem Pro nosso bem ROSA Angustiada pelo conflito de consciência que se apossa dela Não assim não Eu não queria assim BONITÃO Agora está feito Rosa se debate em seu conflito de um lado sua noção de lealdade gerando um repúdio natural à delação Do outro todos os seus recalques sexuais sua ânsia de libertação de realização mesmo como mulher que Bonitão veio despertar Enquant o isso ZédoBurro sentad o nos degraus da igreja sofre uma crise nervosa Soluça convulsivamente Os tocadores de berimbau fazem gemer a corda de seus instrumentos E lentamente enquanto as luzes de cena se apagam CAI O PANO Terceiro Ato Entardecer A praç a está cheia de gente Na escadaria da igreja ZédoBurro e Rosa Na vendola o Galego À frente da vendola formouse uma roda de capoeira Dois tocadores de berimbau um de pandeiro e um de recoreco sentados num banco e os camaradas formando um círculo ao centro do qual de cócoras diante dos músicos estão Mestre Coca e Manoelzinho SuaMãe Dedé CospeRima está entre os componentes da roda e Minha Tia não se encontra em cena Choram os berimbaus e Rosa dominada pela curiosidade aproximase da roda MESTRE DO CORO Canta Sinhazinha que vend e aí Vend o arroz do Maranhão Meu sinhô mando vende Na terra do Salomão Aruandê Camarado CORO É É Aruandê Camarado MESTRE Galo canto CORO Ê ê Aruandê Camarado MESTRE Cocorocó CORO Ê ê Aruandê Camarado MESTRE Goma de goma CORO Ê ê Goma de goma Camarado MESTRE Ferro de mata CORO Ê ê Ferro de mata Camarado MESTRE É faca de ponta CORO Ê ê Faca de ponta Camarado MESTRE Vamos embora CORO Ê ê Vamos embora Camarado MESTRE Pro mundo afora CORO Ê ê Pro mundo afora Camarado MESTRE Dá volta ao mundo CORO Ê ê Volta do mundo Camarado E tem início o jogo Mestre Coca e Manoelzinho SuaMãe percorrem a roda virando o corpo sobre as mãos e começam a lutadança cuja coreografia é ditada pelo toque do berimbau DEDÉ Grita Quero ver um rabodarraia Mestre Coca UMA VOZ Manoelzinho SuaMãe é porreta no aú OUTRA VOZ Eu queria vê isso à vera MESTRE DO CORO Quem te ensino essa mandinga Foi o nego de sinhá O nego custo dinhero dinhero custo ganha Camarado CORO Cai cai Catarina sarta de má vem vê Dalina MESTRE DO CORO Amanhã é dia santo dia de corpo de Deus Quem tem roupa vai na missa quem não tem faz como eu CORO Cai cai Catarina sarta de má vem vê Dalina MESTRE DO CORO Minino quem foi teu mestre quem te ensino a joga Só discipo que aprendo meu mestre foi Mangangá na roda que ele esteve outro mestre lá não há Camarado CORO Cai cai Catarina sarta de má vem vê Dalina Rosa apreensiva nervosa desinteressase da capoeira vai até a ladeira olha para o alto ansiosamente como se esperasse alguém depois volta pra junto do marido Muda o ritmo do jogo MESTRE DO CORO Panha a laranja no chão ticotico ai se meu amo fô simbora eu não fico CORO Panha a laranja no chão ticotico MESTRE DO CORO Minha camisa é de renda de bico CORO Panha a laranja no chão ticotico MESTRE DO CORO Ai se meu amo fô simbora eu não fico E novamente muda o jogo agora rápido com os dois jogadores empenhandose em golpes de espantosa agilidade no ritmo cada vez mais acelerado da música MESTRE DO CORO Santa Bárbara que relampuê Santa Bárbara que relampuá CORO Santa Bárbara que relampuê Santa Bárbara que relampuá MESTRE DO CORO Vou pidi a Santa Bárbara Pra ela me ajudá CORO Santa Bárbara que relampuê Santa Bárbara que relampuá Esse estribilho é repetido várias vezes em ritmo cada vez mais rápido até que Minha Tia surge no alto da ladeira e marca num canto sonoro MINHA TIA Óia o caruru Cessa de repente o canto e o acompanhamento Os jogadores param de jogar MINHA TIA É o caruru de Santa Bárbara minha gente A roda de capoeira se desfaz alegremente Todos cercam Minha Tia que vai instalar seu tabuleiro no local costumeiro ajudada pelos capoeiristas Apenas os músicos continuam nos seus bancos e Mestre Coca vai à vendola Rosa também permanece junto do marido demonstrando um nervosismo uma ansiedade crescente A capoeira não deve durar mais que dois minutos a fim de não quebrar a continuidade dramática da peça DEDÉ O primeiro caruru é meu Minha Tia Minha Tia enche um prato e colocao de lado no chão DEDÉ Pra quem é esse MINHA TIA É pra Santa Enche outro prato dá a Dedé Agora sim é seu Dedé recebe o prato e dirigese à vendola COCA Tira do bolso uma nota e colocaa sobre o balcão Aposto cem GALEGO Coloca uma nota sobre a de Mestre Coca Casado COCA Fica na mão de quem Dedé vem se aproximando De Dedé CospeRima DEDÉ Também quero entrar nessa aposta COCA O Galego diz que o padreco não deixa o homem entrar Eu digo que vai acabar entrando hoje mesmo com cruz e tudo GALEGO Entra nada Yo conheç o esse padre Moç a com vestido decotad o no entra nesta igreja Yo mismo já vi ele parar la missa até que uma turista americana de calças compridas se retirasse DEDÉ E eu digo que o homem entra mas não hoje amanhã O Padre quer humilhar ele primeiro mas depois vai ficar com medo dele ir se queixar pra Santa Bárbara e vai abrir a porta GALEGO Pero usteds no entenderam la cosa Ele no fez promessa pra Santa Bárbara Fez para Iansan num candomblé COCA E que tem isso GALEGO Tem que candomblé és candomblé e igreja és igreja COCA E a Santa não é a mesma DEDÉ Não o Galego tem razão A santa pode ser a mesma mas o Padre tem medo da concorrência e quer defender o seu negócio COCA Mas não adianta Iansan tem força O homem entra GALEGO Nem Iansan nem todos os orixás do candomblé fazem ele entrar DEDÉ Entra sim Amanhã ele entra Num tom de mistério E não se admirem se for eu que fizer ele entrar GALEGO Usted DEDÉ Sim eu Dedé CospeRima COCA E como DEDÉ Ah isso é segredo profissional COCA Então se ele entrar hoje ganho eu Se entrar amanhã ganha você Se não entrar ganha o Galego DEDÉ Fechado COCA Bota cem pratas Estende a mão DEDÉ Segura o prato com ua mão com a outra remexe os bolsos Não tenho ainda não mas de noite eu lhe dou COCA Desconfiado Vê lá hem Dá o dinheiro ao Galego Por via das dúvidas fica com o dinheiro Galego MANOELZINHO Aproximase de Mestre Coca Tu tá um bicho na capoeira Mestre Coca COCA Você é quem diz MANOELZINHO Tinha ido lá pro mercado pensando que ia ser lá a vadiação Lá me disseram que tinha vindo todo mundo pra cá COCA Por causa do homem da cruz MANOELZINHO Diz que ele quer cumprir obrigação pra Iansan UM CAPOEIRA Quer botar essa cruz lá dentro da igreja OUTRO CAPOEIRA E já quiseram até prender ele MANOELZINHO Só por causa disso UM CAPOEIRA Então MANOELZINHO Não pode COCA Não pode e não vão fazer O homem não fez nada DEDÉ Aproximase de ZédoBurro Amanhã amanhã você entra meu camarada Lhe garanto Vou hoje pra casa escrever a história desse padre Sei umas coisas dele e se precisar a gente inventa Amanhã vou chegar aqui com uma tabuleta Aguardem O padre que fechou a casa de Deus Vai ver se ele abre ou não abre a porta Ou abre ou vai ter que me passar uma gaita pra não publicar os versos Pisca o olho e afastase MINHA TIA Para Rosa Não quer também Iaiá ROSA Não MINHA TIA Caruru de Santa Bárbara Antigamente a gente fazia isso e era de graça Hoje com a vida do jeito que está a gente tem mesmo é que cobrar GALEGO Atravessa a praça com um prato de sanduíches na mão e vai a ZédoBurro Pero yo no cobro nada Oferece Oferta da casa ZÉ Pra mim GALEGO Si para usted Cachorroquente Después trarê un cafezito ZÉ Não obrigado GALEGO Pod e aceitar sin constrangimento E podemos até hacer um negócio Se usted promete no arredar pé de cá yo me comprometo a fornecer comida e bebida gratuitamente para los dos ZÉ Não não tenho fome GALEGO Muito preocupado Pero asi usted no poderá resistir ZÉ Não importa GALEGO Oferece a Rosa A senhora não quer ROSA Não estou com vontade GALEGO Encolhe os ombros conformado Bien Volta à venda ZÉ Ele observa a intranquilidade indisfarçável de Rosa que a todo o momento olha assustada para a ladeira ou para a rua esperando ver surgir a polícia Que é que você tem ROSA Nada Queria era ir embora ZÉ Sozinha ROSA Não com você ZÉ Com intenção Pensei que estivesse farta de mim ROSA Nervosamente Estou farta é dessa palhaçada Estamos aqui bancando os bobos Toda essa gente está rindo de nós Zé Quem não está rindo está querendo se aproveitar É uma gente má que só pensa em fazer mal Sacodeo pelos ombros como para chamálo à realidade Largue a cruz onde está Zé e vamos embora pra nossa roça antes que seja tarde demais ZÉ De que é que você está com medo ROSA De tudo ZÉ Não é de você mesma ROSA Também Mas já não sou eu quem corre perigo é você ZÉ Que perigo ROSA Voc ê não vê Não sente Não respira Está no ar E cad a minuto que passa aumenta o perigo Olha para todos os lados como fera acuada Esta praça está ficando cada vez menor como se eles estivessem fechando todas as saídas Voltase para ele com veemência Vamos embora Zé enquanto é tempo ZÉ Desconfiado Que deu em você assim de repente ROSA Não é de repente desde que chegamos que eu estou querendo voltar Você foi que teimou em ficar Por mim você tinha largado aí essa cruz e voltado no mesmo pé Com intenção A esta hora já estava na estrada longe daqui e nada tinha acontecido ZÉ Você acha que depois de andar sete léguas eu ia voltar sem cumprir a promessa ROSA Você já pagou essa promessa Zé Não é sua culpa se há gente sempre disposta a ver demônios em toda a parte até mesmo naqueles que estão do seu lado e que odeiam também o demônio É gente que vai acabar enxergando na própria sombra a figura do diabo Entreabrese a porta da igreja e surge na fresta a cabeça do Sacristão que ao ver ZédoBurro torna a entrar e fechar a porta ROSA Está vendo O Padre mandou ver se você ainda estava aqui não vai abrir a porta enquanto a gente não for embora Vamos Zé ZÉ Reage com irritação procurando combater em si mesmo o desejo de ir Não já disse que não Só arredo pé daqui depois de levar a cruz lá dentro da igreja Secret a entra na direita e atravessa a praç a em direção à vendola observando dissimuladamente ZédoBurro Ao vêlo Rosa não esconde a sua inquietação Acompanhao com um olhar amedrontado até a vendola SECRETA Para o Galego Uma meladinha Galego serve a cachaça com mel ZÉ Notando a apreensão de Rosa Que há ROSA Ele não é nosso amigo ZÉ E que tem isso ROSA Ouvi dizer que é da polícia ZÉ Não sou nenhum criminoso não fiz mal a ninguém ROSA Por isso mesmo que eu tenho medo porque você não sabe fazer mal e eles sabem Mestre Coca e Manoelzinho vão à vendola encostamse no balcão junto do Secreta GALEGO Que van hacer com o homem SECRETA Deixe que eu cuido disso COCA Mas ele não fez nada SECRETA Lança a Mestre Coca um olhar de intimidação E é melhor não se meterem onde não são chamados Secreta bebe a cachaça de um trago coloca uma moeda sobre o balcão e volta a atravessar a cena com ar misterioso saindo pela rua da direita Mestre Coca e Manoelzinho trocam um olhar de solidariedade ROSA Ele só veio ver se a gente ainda estava aqui vamos aproveitar antes que ele volte ZÉ Deixe de bobagem Não sou menino que quando brinca com fogo mija na cama Põese a picar fumo com uma faquinha MARLI Entra da direita atravessa a cena lentamente num andar provocante DEDÉ Referindose a Marli Boa moça Só que casou com a humanidade Mestre Coca ri MARLI Na vendola para o Galego Viu Bonitão GALEGO Já esteve aqui várias vezes hoy MARLI Referindose a Rosa Eu sei e sei também o motivo GALEGO Festa de Iansan MARLI Não é bem Iansan é outro orixá ROSA Para ZédoBurro Vou ali preciso falar com aquela mulher ZÉ Que é que você ainda tem que falar com ela Não lhe basta a vergonha que ela lhe fez passar ROSA Mas eu preciso Zé Eu preciso Vai à vendola ZédoBurro a segue com um olhar de profunda desilusão Preciso falar com você MARLI Hostil estranhando Comigo ROSA Ou melhor com ele Bonitão Onde está ele MARLI Sujeita sem vergonha Dá em cima do meu homem e ainda tem o descaramento de vir me pedir pra dizer onde ele está Não lhe basta o seu Precisa do meu pra se contentar ROSA Não preciso do seu homem pra nada Quero só falar com ele pra evitar uma desgraça MARLI Ameaçadora Se você quer mesmo evitar uma desgraça o melhor é deixar ele em paz ROSA Mas eu tenho que falar com ele Juro que é assunto sério MARLI Você pode enganar o trouxa do seu marido Mas a mim não ROSA Onde ele mora MARLI Mora comigo ROSA Mentira Eu sei que ele mora num hotel MARLI Pois vá lá atrás dele pra ver o que lhe acontece ROSA Reagindo Pare com isso que eu não tenho medo de você MARLI Nem eu de você As duas se olham desafiadoramente a ponto de quase se atracarem ZédoBurro que ouviu a discussão aproxima se ZÉ Rosa você perdeu a cabeça Não sabe qual é o seu lugar Discutindo na rua com uma completa a frase com um gesto de desprezo MARLI Com uma o quê seu beato pamonha Carola duma figa A mulher dando em cima do homem da gente e ele agarrado aí com essa cruz Isso também faz parte da promessa ROSA Cale essa boca Não se meta com ele Ele não tem nada com isso MARLI Não tem Não é seu marido ROSA É mas não se rebaixa a discutir com você MARLI Medeo de cima a baixo com mais desprezo ainda Corno manso Dálhe as costas bruscamente e sobe a ladeira Galego solta uma gargalhada que corta de súbito ante o olhar ameaçador de ZédoBurro Este num gesto instintivo ergue a pequena faca de picar fumo ROSA Zé GALEGO Intimidado Perdon no se puede dar confiança a essas mujeres ZÉ Para Rosa num tom que revela sua desilusão sua revolta e sua decisão de não mais deixarse iludir Esta noite a gente vai embora ROSA E por que não agora ZÉ Vamos deixar passar o dia de Santa Bárbara ROSA De noite talvez seja tarde ZÉ Tarde pra quê ROSA Pra voltar ZÉ O que você ainda queria falar com aquele sujeito ROSA Pedir pra ele deixar você em paz ZÉ A mim ROSA Ele denunciou você à polícia ZÉ Mas eu sou um homem de bem Nunca tive nada com a polícia ROSA Eu sei Mas eles torcem as coisas Confundem tudo Angustiada Zé Ouça o que eu digo A gente devia ganhar a estrada agora mesmo Neste minuto O Repórter e o Fotógrafo entram pela direita a tempo de ouvirem a última fala de Rosa REPÓRTER Eh que é isso Já estão pensando em ir embora ZÉ Hostil Vou embora quando quiser não tenho que dar conta disso a ninguém Dá as costas ao Repórter ostensivamente e volta para junto da cruz na escadaria da igreja O Fotógrafo conversa qualquer coisa com os componentes da roda de capoeira e sai seguido de Mestre Coca e mais três ou quatro REPÓRTER Vocês não estão falando sério não Sim porque eu espero que vocês cumpram o que prometeram Meu jornal está cumprindo Já tomei todas as providências para que sua estada aqui até segundafeira seja a mais agradável possível ROSA Como Neste instante entram os capoeiristas conduzindo primeiro uma tenda de pano já armada e em seguida um colchão de molas Na tenda há um letreiro Oferta da Casa da Lona No colchão há outro Gentileza da Loja Sonho Azul Com enorme espanto de ZédoBurro e Rosa eles colocam a barraca no meio da praça e o colchão dentro da barraca REPÓRTER Fomos aos nossos clientes e eles se dispuseram prontamente a colaborar conosco Entra o Fotógrafo trazendo uma mesinha e um aparelho de rádio de pilha que coloca também na barraca ZÉ Surpreso O senhor trouxe essas coisas pra nós REPÓRTER Bem julgamos que um pouco de conforto durante esses dias não reduzirá também o valor de sua promessa Além disso segunda feira depois da entrada triunfal na igreja o senhor percorrerá a cidade em carro aberto com batedores num percurso que irá daqui até a redação do nosso jornal De lá irá ao Palácio do Governo onde será recebido pelo Governador Zé vai dizer qualquer coisa e ele o interrompe Já sei vai dizer que se o vigário de Santa Bárbara não o deixar entrar em sua igreja o Governador vai também lhe bater com a porta na cara Não se preocupe Já estamos mexendo os pausinhos E se o senhor puder dizer uma palavrinha a favor do candidat o oficial nas próximas eleições estará tudo arranjado ROSA Por favor leve tudo isso daqui Nós estamos de partida REPÓRTER De partida Não não pode ser isso seria um desastre para mim O jornal já fez despesas já compramos foguetes contratamos uma banda de música para a volta ROSA A volta vai ser hoje mesmo REPÓRTER Hoje Mas não dá tempo Não está nada preparado O que é que a senhora pensa Que é assim tão simples organizar uma promoção de venda É muito fácil pegar uma cruz jogar nas costas e andar sete léguas Mas um jornal é uma coisa muito complexa Mobilizar todos os departamentos para dar cobertura e depois eu já lhe disse amanhã é domingo não tem jornal ROSA Irritandose E qual é o meu Que se dane o seu jornal Eu quero é ir embora daqui O Zé tem razão vocês todos querem ajudar ajudar ajudam mas é a desgraçar a vida da gente REPÓRTER Está precisando de alguma ajuda particular ROSA Estou A Polícia anda rondando a praça REPÓRTER A Polícia ROSA Um secreta Estão querendo levar ele preso REPÓRTER Por quê ROSA Pensa um pouco Talvez porque ele é bom demais E o resto é gente safada REPÓRTER Hum bem me pareceu que por trás dessa história do burro da promessa havia qualquer coisa uma intenção oculta e um objetivo político A polícia naturalmente percebeu também ROSA Mas ele não tem nenhuma intenção a não ser a de pagar a promessa REPÓRTER Sorri descrente É claro que a senhora não vai dizer Nem ele também Mas podem contar comigo e com o meu jornal Se ele for preso daremos toda a cobertura Abriremos manchetes na primeira página Será uma maravilha para ele ROSA Maravilha Maravilha ser preso REPÓRTER Todo líder precisa ser preso pelo menos uma vez ROSA Líder eu acho que o senhor é maluco O senhor esse padre a polícia todos E eu também se não me cuidar vou acabar ficando Olha ansiosamente para o alto da ladeira REPÓRTER Chama de parte o Fotógrafo Preparese daqui a pouco é capaz de haver um bafafá Rosa angustiada volta para junto do marido ROSA Desista Zé Desista ZÉ Por que você não senta aqui e espera até a hora de ir embora ROSA Sentase num degrau É o jeito é esperar DEDÉ Vai a eles com seus folhetos E enquanto espera deve aproveitar para melhorar sua cultura O ABC da Mulata Esmeralda modéstia à parte é uma verdadeira jóia da literatura brasileira Por 10 Cruzeiros apenas o senhor poderá ler os mais inspirados versos que uma mulat a jamais inspirou ZédoBurro balança negativamente a cabeça Dedé vai a Minha Tia DEDÉ Poesia está muito por baixo Minha Tia Quem está por cima é o caruru Aproximase da roda de capoeira ZédoBurro sobe um ou dois degraus fita revoltado a porta cerrada MINHA TIA Para ZédoBurro Não desanime moço Hoje é dia de Iansan mulher de Xangô Orixá dos raios e das tempestades Mais nos terreiros ela está descendo no corpo dos seus cavalos Vai falar com ela moço vai pedir a proteção de Iansan que tudo quanto é porta há de se abrir Ouvemse trovões mais fortes que da vez anterior Óia Aponta para o céu Iansan está falando Abaixase toca o chão com a ponta dos dedos depois a testa e saúda Iansan Eparrei minha mãe Neste momento surge Bonitão na ladeira Rosa levantase movida por uma mola ZédoBurro com os olhos pregados na porta da igreja não o vê Não vê que os olhares de Rosa e Bonitão se cruzam de um extremo a outro da praça É que ele da ladeira faz para ela um gesto convidandoa a acompanhálo Rosa hesita presa de tremendo conflito Olha para ZédoBurro para Bonitão Este a espera certo de que ela acabará por ir ao seu encontro Minha Tia Galego e Dedé percebem o que se passa e aguardam atentamente Vendo que ela não se decide Bonitão dá de ombros sorri e acena num gesto curto de despedida Inicia a subida da ladeira mas pára depois de dar dois ou três passos fora do ângulo visual de Rosa e ZédoBurro Ela como que atraída por um ímã inicia o movimento para seguilo quando ZédoBurro voltase ZÉ Aonde vai Rosa ROSA Detémse Vou ali já volto ZÉ Ali aonde ROSA No hotel onde dormi Lembrei agora que esqueci lá o meu lenço Avança mais na direção da ladeira ZÉ Rosa ROSA Pára já na altura da ladeira vê Bonitão à sua espera Que é ZÉ Num apelo e numa advertência que é quase uma súplica Deixe esse lenço pra lá ROSA Hesita ainda um pouco Não posso Zé Eu preciso dele ZÉ Compro outro pra você Rosa ROSA Pra quê Zé gastar dinheiro à toa é daquele que eu gosto Sobe a ladeira Bonitão passa o braço pela cintura dela e os dois sobem a ladeira Galego e Dedé CospeRima trocam olhares significativos DEDÉ Canta Quem corta e prepara o pau quem cava e faz a gamela toma a si todo o trabalho e depois fica sem ela O sino da igreja começa a tocar as AveMarias A Beata surge no alto da ladeira apressada Ao passar pela roda de capoeira que novamente se anima tem um ar de repulsa e indignação BEATA Falta de respeito Bem em frente da igreja Este mundo está perdido MINHA TIA Oferece Caruru Iaiá BEATA Pára junto a ela Quê MINHA TIA Caruru de Iansan BEATA Como se ouvisse o nome do diabo Iansan E que é que eu tenho com dona Iansan Sou católica apostólica romana não acredito em bruxarias MINHA TIA Adiscurpe Iaiá mas Iansan e Santa Bárbara não é a mesma coisa BEATA Não é não senhora Santa Bárbara é uma santa E Iansan é é coisa de candomblé que Deus me perdoe benzese repetidas vezes e sai CORO Quem corta e prepara o pau Quem cava e faz a gamela Toma a si todo o trabalho E depois fica sem ela Mestre Coca entra correndo COCA A ZédoBurro Meu camarada trate de ir embora Estão lhe arrumando uma patota ZÉ O quê COCA Chegou um carro da Polícia Eles estão com o Padre na sacristia MINHA TIA Vieram por causa dele COCA Então ZÉ Mas eu não roubei não matei ninguém DEDÉ Quer um conselho Experiência própria com a polícia é melhor fugir do que discutir COCA Ande depressa que nós aguentamos eles aqui até você ganhar o mundo ZÉ Não eu não vou fugir como qualquer criminoso se estou com a minha consciência tranquila DEDÉ Ele não se separa da cruz COCA A gente esconde a cruz MINHA TIA E de noite ele leva ela pra Iansan COCA Vamos todo mundo levar Todos os capoeiras da Bahia MINHA TIA É a mesma coisa meu filho Iansan é Santa Bárbara Eu lhe mostro lá no peji a imagem da santa COCA É preciso se decidir meu camarada Antes que seja tarde ZÉ Balança a cabeça sentindose perdido e abandonado Santa Bárbara me abandonou Por quê eu não sei não sei ROSA Desce a ladeira correndo Zé Não adianta não adianta mais Falei com ele mas não adianta A Polícia já está aí Vem cercar a praça COCA Eu não disse DEDÉ É preciso andar depressa meu irmão MINHA TIA Some daqui meu filho ROSA Vamos Zé ZÉ Santa Bárbara me abandonou Rosa ROSA Se ela abandonou você abandone também a promessa Quem sabe se não é ela mesma que não quer que você cumpra o prometido ZÉ Não mesmo que ela me abandone eu preciso ir até o fim ainda que já não seja por ela que seja só pra ficar em paz comigo mesmo Subitamente abrese a porta da igreja e entram o Delegado o Secreta o Guarda o Padre e o Sacristão SECRETA Aponta para ZédoBurro É esse aí Avança para ZédoBurro seguido do Delegado e do Guarda GUARDA Como que se desculpando Eu já cansei de pedir a ele pra sair daqui seu Delegado não adiantou DELEGADO Faz o Guarda calar com um gesto autoritário Seus documentos ZÉ Estranha Documentos DELEGADO Carteira de identidade ZÉ Tenho não DELEGADO Outra carteira outro documento qualquer ZÉ Moço eu vim só pagar uma promessa A Santa me conhece não precisava trazer carteira de identidade DELEGADO Sorri irônico Pagar uma promessa pensa que nós somos idiotas SECRETA Não demora e ele conta a história do burro DELEGADO Ele vai contar essas histórias todas mas é na Delegacia Vamos acompanheme ZÉ Seu olhar vai do Delegado ao Secreta e ao Guarda sem entender o que se passa Acompanhar o senhor pra quê DELEGADO Mais tarde você verá Sou delegado deste distrito Obedeça ZÉ Não posso Não posso sair daqui DELEGADO Não pode por quê COCA Promessa seu Delegado Ele é crente DELEGADO O Padre disse que ele ameaçou invadir a igreja Pediu garantias SECRETA Eu mesmo ouvi ele dizer que ia jogar uma bomba Todo mundo aqui é testemunha DELEGADO Uma bomba hem Vamos à Delegacia quero que o senhor me explique isso tudo direitinho SECRETA Vamos Segura ZédoBurro por um braço mas este se desvencilha Que é Vai reagir GUARDA Apaziguador Acho melhor o senhor obedecer DELEGADO Se ele reagir pior para ele Não estou disposto a perder tempo e conheço de sobra esses tipos Só se entregam mesmo é a bala ROSA Não ZÉ Os senhores devem estar enganados Devem estar me confundindo com outra pessoa Sou um homem pacato vim só pagar uma promessa que fiz a Santa Bárbara Aponta para o Padre Aí esta o vigário para dizer se é mentira minha PADRE É mentira sim E não somente mentira também um sacrilégio ZÉ Padre o senhor não pode dizer que é mentira que eu não fiz essa promessa PADRE Sim talvez tenha feito por inspiração de Satanás Há quem diga que não estamos mais em época de acreditar em bruxas No entanto elas ainda existem Mudaram talvez de aspecto como Satanás mudou de métodos É mais difícil combatêlas agora porque são inúmeros os seus disfarces Mas o objetivo de todas continua a ser um só a destruição da Santa Madre Igreja DELEGADO Padre este homem PADRE Este homem teve todas as oportunidades para arrependerse Deus é testemunha de que fiz todo o possível para salválo Mas ele não quer ser salvo Pior para ele DELEGADO Que ganhou decisão com o sermão do Padre Sim pior para ele Avança um passo na direção de ZédoBurro que recua e fica encurralado contra a parede ZÉ Decidido a resistir Não Ninguém vai me levar preso Não fiz nada pra ser preso DELEGADO Se não fez não tem o que temer será solto depois Vamos à Delegacia ROSA Não Zé não vá GUARDA É melhor na Delegacia o senhor explica tudo DEDÉ Não caia nessa meu camarado ZÉ Agora eu decidi só morto me levam daqui Juro por Santa Bárbara só morto SECRETA Vê a faca na mão de ZédoBurro Tome cuidado Chefe que ele está armado Observa a atitude hostil dos capoeiras E essa gente está do lado dele COCA Estamos mesmo E aqui vocês não vão prender ninguém DELEGADO Não vamos por quê MANOELZINHO Porque não está direito DELEGADO Estão querendo comprar barulho COCA Vocês que sabem DELEGADO Não se metam senão vão se dar mal SECRETA E é melhor que se afastem ROSA Zé ZÉ Me deixe Rosa Não venha pra cá ZédoBurro de faca em punho recua em direção à igreja Sobe um ou dois degraus de costas O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço fazendo com que a faca vá cair no meio da praça ZédoBurro corre e abaixase para apanhála Os policiais aproveitam e caem sobre ele para subjugálo E os capoeiros caem sobre os policiais para defendêlo ZédoBurro desaparece u na onda humana Ouvese um tiro A multidão se dispersa como num estouro de boiada Fica apenas Zé doBurro no meio da praça com as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto ROSA Num grito Zé corre para ele PADRE Num começo de reconhecimento de culpa Virgem Santíssima DELEGADO Para o Secreta Vamos buscar reforço Sai seguido do Secreta e do Guarda O Padre desce os degraus da igreja em direção do corpo de ZédoBurro ROSA Com rancor Não chegue perto PADRE Queria encomendar a alma dele ROSA Encomendar a quem Ao Demônio O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada Bonitão surge na ladeira Mestre Coca consult a os companheiros com o olhar Todos compreendem a sua intenção e respondem afirmativamente com a cabeça Mestre Coc a inclinase diant e de ZédoBurro segurao pelos braços os outros capoeiras se aproximam também e ajudam a carregar o corpo Colocamno sobre a cruz de costas com os braços estendidos como um crucificado Carregamno assim como numa padiola e avançam para a igreja Bonitão segura Rosa por um braço tentando levála dali Mas Rosa o repele com um safanão e segue os capoeiras Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira Intimidados o Padre e o Sacristão recuam a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz sobre ela o corpo de ZédoBurro O Galego Dedé e Rosa fecham o cortejo Só Minha Tia permanece em cena Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça MINHA TIA Encolhese toda amedrontada toca com as pontas dos dedos o chão e a testa Êparrei minha mãe E O PANO CAI LENTAMENTE 0 SEBASTIANA SIQUEIRA E SILVA O PAGADOR DE PROMESSAS UM DRAMA TRÁGICO EM TEMPOS MODERNOS UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA JOÃO PESSOA 2009 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES COORDENAÇÃO DE PÓSGRADUAÇÃO EM LETRAS O Pagador de Promessas Um drama trágico em tempos modernos Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras Área de Concentração Literatura e Cultura Linha de Pesquisa Tradição e Modernidade Orientadora Professora Drª Sandra Luna João Pessoa PB 2009 2 L 732i Silva Sebastiana Siqueira O Pagador de Promessas um drama trágico em tempos modernos Sebastiana Siqueira e Silva João Pessoa 2009 Orientadora Profª Drª Sandra Luna Dissertação Mestrado em Letras UFPBCCHLA Dias Gomes O Pagador de Promessas Drama Literatura brasileira Tragédia Moderna UFPBBC 3 Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras Programa de Pósgraduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba Banca examinadora Profª Drª Sandra Luna PPGLUFPB Orientadora Profª Drª Elisalva Madruga Dantas UFPB Prof Dr Elri Bandeira de Souza UFCG 4 RESUMO Esta pesquisa visa a uma análise crítica e interpretativa da dramaturgia de Dias Gomes o alvo de investigação recaindo sobre o drama social O Pagador de Promessas 1959 A base teórica para este estudo parte do conceito de tragédia na tradição filosófica e literária considerando as formulações de Aristóteles e suas orientações sobre as tragédias gregas na Poética Levando em consideração que Aristóteles define a ação como a alma da tragédia atentase inicialmente para as categorias dramáticas que aparecem como elementos textuais na construção do mythos Essas categorias mesmo que originalmente percebidas em relação ao contexto grego foram sendo reformuladas com o passar dos séculos atualizandose sob novas perspectivas históricas Foi assim que a tragédia antiga se tornou drama social Na modernidade Hegel acrescentou às categorias dramáticas aristotélicas a noção de conflito estabelecendo as bases para uma abordagem dialética que seria essencial à compreensão da tragédia antiga e do drama moderno As proposições de Hegel reapareceriam na maior parte dos estudos críticos e teóricos posteriores dentre os quais nas contribuições de Peter Szondi e Raymond Williams estando também presentes em trabalhos mais recentes de autores que examinamos tais como Anatol Rosenfeld e Sandra Luna dentre outros Essas penetrações teóricas mostraramse imprescindíveis à compreensão crítica da peça de Dias Gomes Embora apresentando traços de composição textual que nos permitem enquadrála como drama social O Pagador de Promessas constróise em termos estruturais nos moldes de uma tragédia ainda que moderna atualizando categorias estéticas da tradição clássica O drama de Dias Gomes incorpora na história do teatro brasileiro moderno personagens que socialmente se situam em mundos tão diferentes que o protagonista não entende nem é entendido pelos outros personagens do drama o que leva o herói em direção ao seu fim trágico Nessa trama a ação construída com base em acirrados conflitos de culturas opostas aproxima o texto ficcional da realidade revelando as contradições sociais que caracterizam os personagens e emprestando não apenas verossimilhança à peça mas encaminhando uma ação que força um fim comovente produzindo neste drama moderno um efeito catártico que o aproxima das antigas tragédias grecolatinas Palavras chave Drama tragédia moderna Dias Gomes O Pagador de Promessas Literatura brasileira 5 ABSTRACT This work aims at a critical and interpretative analyses of Dias Gomes dramatic work the focus of investigation being placed on the social drama O Pagador de Promessas The theoretical basis for this study departs from the concept of tragedy in the philosophical and literary tradition considering Aristotles propositions and his comments on the Greek tragedies in his Poetics Taking into account that Aristotle defines action as the soul of a tragedy we focus initially on the dramatic categories that emerge as textual elements in the construction of the mythos These categories even if originally perceived in relation to the Greek context were reformulated throughout the centuries being actualized under new historical perspectives It was thus that ancient tragedy was transformed into social drama In modern times Hegel added to the aristotelean dramatic categories the notion of conflict thus establishing the basis for a dialectical approach that would be essential to the understanding of both ancient tragedy and modern drama Hegels propositions would reappear later in most theoretical and critical studies among them in the contributions of Peter Szondi and Raymond Williams being also present in more recent works by authors we examined such as Anatol Rosenfeld and Sandra Luna These theoretical interrelations were determinant to the critical understanding of Dias Gomesplay Though presenting features of textual composition that enable us to define it as a social drama O Pagador de Promessas is constructed in structural terms as a tragedy modern as it is actualizing aesthetic categories of the classical tradition 6 This play by Dias Gomes incorporates in the history of Brazilian modern theatre characters socially placed in so different worlds that the protagonist neither understands now is understood by the other characters of the drama which leads the hero towards his tragic end In this plot the action constructed on the basis of sharp conflicts of opposed cultures approaches the fictional text to reality revealing the social contradictions that shape the characters providing verisimilitude to the play and forcing the development of an action that is moving thus producing this modern drama a Kathartic effect that places it closer to the ancient Greek Latin tragedies Keywords Dias Gomes O Pagador de Promessas Drama Modern tragedy Brazilian literature 7 A meus pais José Joaquim e Maria Siqueira in memoriam A Welson e C Eduardo meus filhos A José Evangelista esposo A Heitor e M Clara netos A Leirismar e Leila noras 8 AGRADECIMENTOS À Professora Drª Sandra Luna a abnegada orientadora Devo a Sandra muitas idéias e lições de confiança de respeito de vida e dedicação aos estudos literários Sandra respeitou e compreendeu minhas limitações incentivandome a investigar as possíveis certezas e a desconfiar sempre dos caminhos aparentemente fáceis A você a minha grande admiração Ao meu irmão Manuel in memoriam Às minhas irmãs Ana Hozana Heloísa Lourdes Zezinha Hermínia e Irene por acreditarem Aos meus filhos Welson e Carlos Eduardo por me apoiarem em tudo até mesmo na aquisição de livros para a minha pesquisa Ao esposo José Evangelista por compreender as minhas constantes viagens e minha dedicação aos estudos ficando pouco tempo para dedicação a ele Aos professores doutores Diógenes André Vieira Milton Marques Júnior Helder Pinheiro e Genilda Azeredo com seus ensinos poéticos Luís Antônio Mousinho pelas valiosas contribuições também fora das aulas com as indicações de bibliografias que me foram muito úteis Às professoras doutoras Elisalva Madruga Dantas e Liane Schneider que além de ministrarem competentemente aulas de literatura que me transformaram a mente foram também coordenadoras do PPGL durante todo o mestrado sempre solícitas e gentis A Rose secretária do PPGL pela atenção competência e cordialidade 9 A Rainério dos Santos Lima pelo envio de sua dissertação de mestrado que me permitiu compreender a estrutura de uma dissertação A Bernardina que nos deu uma digna assistência durante o ano de 2008 A Dias Gomes in memoriam 10 Em 68 todas as luzes se apagaram A minha geração violentamente castrada enfrentou a estranha situação de a própria realidade ser considerada subversiva pelos militares pois ela era injusta o governo sabia disso e a proibiu nos palcos Restaram duas opções ou você se adaptava ao regime e não questionava nada ou partia para um texto de metáforas caminho que alguns autores encontraram para continuar resistindo e denunciando De todas as artes acho o teatro a mais atuante Foi uma das primeiras manifestações culturais no Brasil e serviu de propósitos catequéticos e políticos Era a conquista do índio para o Deus branco e consequentemente para o senhor branco A valorização do teatro era evidente pois se não fosse eles teriam escrito romances ou pintado quadros Mas não Anchieta escreveu e encenou peças Dias Gomes 11 SUMÁRIO Introdução 12 Capítulo I Fundamentos do Drama Trágico 17 1 O drama em suas origens 17 2 A Poética aristotélica e os fundamentos do drama trágico 24 3 A permanência do trágico nas transformações do gênero dramático 33 4 Hegel e a moderna teorização sobre a ação 42 Capítulo II O teatro de Dias Gomes e a Crítica Social 49 1 Dias Gomes biografia 49 2 Misticismo Popular e crítica social na obra de Dias Gomes 65 Capítulo III O Pagador de Promessas um drama trágico em tempos modernos 72 Considerações finais 105 Referências bibliográficas 111 12 INTRODUÇÃO O que é escrito sem esforço é geralmente lido sem prazer Samuel Johnson escritor inglês 17091784 Na presente dissertação estudaremos a dimensão trágica no drama social O Pagador de Promessas de Dias Gomes Ele foi contista romancista e teatrólogo O Pagador de Promessas1 não é a sua primeira peça mas com certeza é uma das melhores tornando seu autor conhecido e admirado no Brasil todo e mais tarde em muitos países quando o texto passou a ser traduzido para diversas línguas O PP foi escrita em 1958 e apresentada em julho de 1960 Porém em 1942 nosso dramaturgo já havia estreado com a comédia Péde Cabra encenada no Rio de Janeiro e depois em São Paulo por Procópio Ferreira por quem foi contratado Suas peças neste período tinham caráter mais cômico embora já explorassem as questões sociais e foram consideradas como representativas da primeira fase do dramaturgo A segunda fase se deu a partir de 1960 com a apresentação de O PP A terceira fase iniciase em 1978 quando voltou a escrever para o teatro depois de um longo afastamento dedicandose apenas às encenações das suas peças já existentes Com o golpe militar de 1964 Dias Gomes sofreu perseguições muitas de suas peças foram proibidas algumas delas no dia da estréia como no caso de O Berço do Herói Em 1º de abril de 1964 trabalhava na Rádio Nacional quando esta foi ocupada pelos militares ele foi demitido Durante dez anos escreveu para a televisão sempre fiel aos seus temas no teatro 1 Ao longo desta dissertação usaremos O PP para O Pagador de Promessas 13 A peça O PP deu projeção internacional a Dias Gomes foi traduzida para mais de uma dúzia de idiomas e encenada em quase todo o mundo Foi adaptada para o cinema pelo próprio autor Dias Gomes que em 1962 recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes No mesmo ano recebeu o prêmio Cláudio de Sousa da Academia Brasileira de Letras com a peça A Invasão O Ato Institucional número 1 o demitiu da Rádio Nacional da qual era diretor artístico enquanto isto O PP estreava em Washington e A Invasão era encenada em Montevidéu A partir daí participou de diversas manifestações contra a censura e em defesa da liberdade de expressão Apesar da censura não interrompeu a produção teatral e várias de suas peças foram encenadas de 1968 a 1980 Veremos que a obra de Dias Gomes é muito variada nos conteúdos e na forma bem heterogênea no que se refere ao valor e às próprias aspirações artísticas mas se distingue apesar de tudo pela unidade fundamental Unidade no que se refere aos valores político sociais Suas peças deixam passar uma visão crítica um homem insatisfeito com a realidade do Brasil e do mundo no seu período histórico Mesmo sob forte censura ele passava subjacentes às suas obras críticas da realidade brasileira segundo uma imagem mais perfeita de acordo com normas morais e sociais que julgava mais humanas A literatura será sempre vista de uma forma ou de outra como expressão de valorizações múltiplas onde estarão também os aspectos políticos e sociais fatores marcantes na obra de Dias Gomes sobretudo pelo viés da dramaturgia 14 Dias Gomes inquietavase com a realidade social sob aspectos múltiplos e complexos Voltavase para as camadas baixas da sociedade salientando os conflitos entre suas culturas por exemplo campo x cidade por vezes considerando conflitos religiosos sobretudo o sincretismo existente no Brasil não respeitado por teólogos e beatos Esses conflitos garantem intensidade dramática às suas peças No caso de O Pagador de Promessas essa dramaticidade se intensifica a tal ponto que a peça assume feições de tragédia Desse modo o estudo sobre a ação em PP não poderia distanciarse das orientações aristotélicas e hegelianas Conceitos formulados por Aristóteles na Poética como hamartia peripeteia anagnorisis catástrofe catarse etc embora formulados em relação às tragédias gregas são ainda reconhecidos em textos teatrais modernos Assim também as ponderações de Hegel sobre o texto dramático suas reflexões sobre a centralidade do conflito a dialética entre ação e caracterização ainda são bases teóricas imprescindíveis para se entender a estruturação do gênero dramático Os resultados obtidos a partir dessas bases teóricas amplamente discutidas no primeiro capítulo dessa dissertação levamnos a buscar em outros teóricos e críticos literários subsídios para aprofundar noções sobre as relações entre a tragédia antiga e o drama moderno Lessing Peter Szondi Raymond Williams Anatol Rosenfeld Sandra Luna todos com teorias críticas que nos dão respaldo para embasar os estudos de um drama social moderno com um fim trágico como é o caso do corpus objeto desta dissertação Entendemos não haver dúvidas de que a tragédia dos gregos difere muito da arte trágica que hoje conhecemos como drama porém é fato também que entre a tragédia 15 antiga e o drama moderno há uma estreita relação de pertença a uma mesma tradição tradição que já em suas origens clássicas propiciou bases para um estudo teórico que até nossos dias permanece como obra basilar para a compreensão dos fundamentos do drama trágico a Poética de Aristóteles onde podemos encontrar o alicerce de toda a teorização sobre o gênero trágico As abordagens críticoteóricas que fazemos sobre O Pagador de Promessas consideramno como um drama social de cunho trágico chamando a atenção dos leitoresespectadores para o grande abismo entre as camadas rurais e as urbanas bem como para o sincretismo religioso raiz dos conflitos da peça em estudo Tratase de uma trama complexa a despeito do caráter simples do protagonista Um homem da zona rural da Bahia faz uma promessa para que seu burro de nome Nicolau ficasse curado de ferimentos causados pela queda de um raio e o burro se cura Daí começam os conflitos que levam o herói Zédo Burro ao fim trágico A dramaturgia de Dias Gomes moderna e sempre levando em conta o social nesta peça põe em destaque a ingenuidade do camponês a sua firmeza de propósitos e a intransigência da igreja através de seus representantes Nossa trajetória tenta comprovar que se a tragédia nos moldes gregos morreu o trágico ainda acontece nos dramas modernos quando saem de cena o mundo mítico e a linguagem elevada e solene os temas assumindo um caráter mais privado tornamse mais domésticos Mesmo assim a definição hegeliana de tragédia nos mostra que a catarse objetivo da tragédia não desaparece nos dramas modernos porque estes conservam o tom 16 trágico nas ações que representam como é o caso do corpus em estudo O Pagador de Promessas Muitas peças modernas conservam no seu desenrolar aspectos trágicos às vezes com fortes semelhanças em relação às tragédias antigas sobretudo no que diz respeito à construção estrutural da ação ajustandose ao antigo modelo aristotélico embora voltandose prioritariamente para questões sociais envolvendo como protagonistas pessoas simples do povo como é o caso do nosso herói ZédoBurro em vez de príncipes reis e rainhas que povoavam o universo das tragédias clássicas Revisitar a dramaturgia de Dias Gomes é tentar produzir contribuições críticas à recente história da dramaturgia brasileira moderna principalmente à arte teatral pós1960 muito estudada sob perspectivas políticas e sociais mas ainda clamando por estudos que estabeleçam a necessidade de diálogos entre Tradição e Modernidade sobretudo no que diz respeito à categoria do trágico 17 I FUNDAMENTOS DO DRAMA TRÁGICO 1 O drama em suas origens Investigar o universo dramático dos nossos tempos evidencia uma grande diferença em relação ao drama de tempos remotos quando o que era conhecido como arte trágica correspondia à tragédia uma das mais valorizadas formas artísticas da antigüidade A tragédia é de fato uma obra literária pertencente ao gênero dramático no sentido essencial do termo já que escrita para ser encenada consubstancia o significado grego da palavra drama que quer dizer ação A tragédia surge na Grécia antiga por volta do século VI aC originandose de um culto ao deus da fertilidade Dioniso ou aos heróis mortos Segundo as hipóteses que vinculam a origem do drama a Dioniso os ditirambos cantos corais alegres ou tristes em homenagem ao deus evoluíram para o diálogo dando o primeiro passo na direção da arte dramática Atribuise a Aríon o nome de ditirambo para canto trágico versificado o qual o tirano Psístrato 560527 aC fez entoar por sátiros2 Elevando não apenas a adoração de Dioniso a culto oficial de Atenas mas aceitando as inovações de Aríon e convidando Téspis para organizar as festas das chamadas dionisíacas urbanas Psístrato 2 Sátiros Gr Satyroi gênios da natureza também chamados silenos participantes do séqüito de Dioniso Os sátiros eram representados com a parte inferior do corpo igual ao de um cavalo ou de um bode e a parte superior igual ao de um homem Em ambos os casos eles ostentavam uma cauda longa e volumosa como a de um cavalo e um membro viril descomunal e permanentemente ereto Quando não estavam perseguindo as ninfas vítimas preferidas de seu insaciável apetite sexual eles se divertiam dançando no campo e bebendo com Dioniso Aos poucos seu aspecto bestial foise atenuando e seus membros inferiores tornaramse humanos mas sua cauda sobreviveu como característica de sua animalidade KURY Mário da Gama Dicionário de Mitologia Grega e Romana Rio de Janeiro 6ª Ed Jorge Zahar Editor 2001 p 353 18 inaugurou a tradição que iria ser perpetuada através dos séculos Devese a Téspis portanto segundo alguns autores a dramatização mais intensa do ditirambo visto que contrapôs ao coro e ao seu corifeu um respondedor o primeiro ator ou seja o protagonista A tragédia grega tal como é reconhecida na sua fase clássica sem dúvida rende homenagem a Dioniso cujo altar se encontra no meio da orquestra tanto assim que o coro dionisíaco permanece nela como núcleo ritual do culto e como forma lírica de expressão musical da ação Posteriormente a tragédia foi aperfeiçoada por Ésquilo que ampliou a parte do diálogo acrescentando um segundo ator instituiu o uso da máscara e do coturno tipo de bota até perto do joelho usada pelos atores trágicos Foi Sófocles quem acrescentou um terceiro ator tritagonista e aumentou o número de coreutas de doze para quinze Com o passar do tempo a tragédia adquiriu técnicas mais sofisticadas Por exemplo Eurípedes inventou o deusexmachina mecanismo que permitia fazer descer do alto um deus que entrava em cena para resolver impasses da trama Mesmo assim o teatro trágico grego permaneceu com uma estrutura relativamente simples em termos de encenação embora os textos dramáticos exibissem extrema profundidade e complexidade enquanto artefatos literários Os textos das tragédias gregas que hoje conhecemos pertencem todos ao século V aC Nesse período no contexto da vida pública ateniense o teatro ocupava posição privilegiada dentre as formas de representação artística as encenações das tragédias e das comédias ocorrendo durante os festivais religiosos em homenagem a Dioniso eventos que reuniam 19 públicos compostos por milhares de pessoas Não apenas esse caráter popular do teatro grego mas também a qualidade dos textos escritos em linguagem elevada e dramatizando em cena as tramas trágicas ocorridas a heróis míticos seres grandiosos experimentando desgraças terríveis comoventes tudo isso emprestava ao teatro grego uma enorme importância Podemos afirmar com segurança que os gregos não apenas criaram a grande arte trágica mas realizaram grandes feitos no campo das tragédias Uma das características que muito distanciam as tragédias gregas da dramaturgia moderna diz respeito ao coro O coro na antiguidade grega não era apenas um apêndice das tragédias ele constituía uma parte muito importante para o encadeamento das ações suas canções líricas entrelaçandose aos diálogos para introduzir na peça informações comentários avaliativos reflexões sobre os personagens e suas ações Por tudo isso o coro era parte fundamental das tragédias Sobre isso Luna informanos É certo que há peças que dão mais peso aos diálogos dramáticos do que ao coro O fato de ser essa tendência mais facilmente observável em Eurípedes o mais jovem dos três tragediógrafos portanto aquele cuja produção é em conjunto a mais tardia parece ter sido outro fator de favorecimento dessas convicções em relação ao coro como um apêndice que o tempo teria pouco a pouco extirpado da tragédia num processo cronologicamente evolutivo sem contradições3 Apesar de considerar que Eurípedes e outros poetas não utilizam o coro como agente dramático para Aristóteles isso seria uma falha nas composições desses tragediógrafos Na verdade Aristóteles recomenda a utilização plena desse recurso dramático na construção de uma tragédia ideal Luna lamenta que todas as tragédias produzidas depois de Eurípedes se tenham perdido o que nos impede de tecer reflexões mais conclusivas sobre o processo de 3 LUNA Sandra Arqueologia da ação trágica o legado grego João Pessoa Idéia 2005 p 101 20 construção dramática em obras mais tardias É importante salientar que mesmo nas tragédias em que os coros aparentem ter um papel meio reduzido no que se refere ao literário no desenvolvimento da ação por não interferir efetivamente no diálogo dramático teatralmente esse coro está sempre presente no palco mascarado e trajado como manda o figurino pronto a cantar e a bailar4 É ainda Luna que nos informa Assim se como diz Aristóteles a tragédia é essencialmente ação mesmo que o coro não tenha sido bem aproveitado em sua interação dialógica com os atores sua presença no palco pode ter outras implicações valiosas para o desenvolvimento dessa ação que precisa ser compreendida em termos mais abrangentes Nesse caso a perspectiva teatral parece mesmo importante já que nos obriga a considerar a presença efetiva do coro na orchêstra ainda quando a dramaticidade dos diálogos faça parecer supérfluas suas intervenções líricas Isso mostra o quanto as considerações sobre a dimensão cênica da ação podem favorecer soluções menos reducionistas mais coerentes com a reconhecida habilidade dos tragediógrafos e com a complexa tessitura das tragédias5 Para muitos estudiosos o coro é uma representação do público da cidade dos homens ou das mulheres Também é considerado como representando a visão de mundo do século V aC Outros consideram o coro como um grupo de portavozes da tradição ou ainda como uma estratégia para amplificar as emoções evocadas pela trama ou para espalhar temor e piedade à platéia O coro teria ainda como mencionado anteriormente a função de trazer para o palco informações importantes para o desenvolvimento da trama Sobretudo porque as mais aclamadas tragédias se iniciam in medias res havendo necessidade de esclarecimento de acontecimentos anteriores fundamentais à compreensão da ação pela platéia 4 LUNA Sandra op cit p 102 5 LUNA Sandra op cit p 103 21 Outra característica peculiar às grandes tragédias da antiguidade e ausentes no teatro da modernidade são as máscaras6 Elas eram emblemas do teatro trágico dos gregos seu uso era essencial tanto para os atores quanto para os membros dos coros As máscaras também eram usadas pelos atores das comédias e das sátiras Aristóteles nem menciona o uso das máscaras mas talvez por ser um uso tão inerente ao teatro que ele achou dispensável mencionar Não se sabe ao certo quais as razões psicológicas culturais ou até espirituais que tenham levado os gregos a utilizar máscaras nas suas representações teatrais Temse contudo a certeza de que isto era convenção teatral Sobre o assunto diz Luna É bom lembrar também que os membros dos coros de ditirambos não portavam máscaras fato que rasura as hipóteses baseadas no uso de máscaras como decorrência de influências religiosas Isso quer dizer que em se considerando a tese aristotélica sobre a origem da tragédia a partir da arte ditirâmbica é preciso aceitar que as máscaras foram adotadas depois do desligamento do drama em relação aos ditirambos A relação entre o teatro trágico e as máscaras é tema quase obrigatório em relatos sobre a tragédia grega não apenas em estudos mais específicos mas também nas introduções dos tradutores em prefácios e notas aos textos gregos sendo que usualmente os autores ou veiculam idéias derivadas da associação entre as máscaras e o espírito míticoreligioso da tragédia como por exemplo Lesky ou invocam as máscaras como evidência da impossibilidade de atuações realistas nos palcos trágicos como sugere por exemplo DW Lucas mas também John Jones que formulará proposições teóricas baseadas nessa evidência Outros autores associam as duas vertentes para falar das máscaras trágicas7 Em nota de rodapé esclarece a autora Informações esparsas sobre o uso das máscaras nas tragédias também sugerem uma espécie de evolução não sendo possível entretanto aferir a validade desses comentários Ao que parece Téspis lambuzava as faces dos atores com folhas de vinha ou chumbo branco o cosmético da época tendo depois introduzido máscaras de linho em suas peças Outras fontes sugerem que o dramaturgo Coérilo teria aperfeiçoado a máscara Frínico teria sido responsável pela introdução de máscaras de mulheres e assim pela inserção de personagens femininas e Ésquilo teria feito uso de máscaras aterrorizantes e altamente coloridas8 6 Alguns autores modernos utilizaram máscaras em suas peças mas esse recurso nos palcos contemporâneos é anticonvencional artifício simbólico de expressão cênica recurso que caracteriza o teatro expressionista por exemplo As máscaras serviam de caixa de ressonância para aumentar o som da voz p 114 7 LUNA Sandra op cit p 114 8 LUNA Sandra op cit p 115 22 Notase que os tragediógrafos mais afamados fizeram uso das máscaras em suas encenações trágicas É evidente que não há um histórico ou uma teoria dos gregos sobre isto o uso convencional das máscaras mas é possível entender ao estudarse as tragédias e suas representações a importância dos coros e das máscaras no teatro grego Tudo isto nos leva a considerações sobre outra característica do teatro grego A ênfase na retórica arte apreciada por aquele povo informanos que a linguagem era algo bem cultivado na vida cultural de Atenas Podese dizer isto com base no poder da palavra que tinham os personagens trágicos que eram sempre grandes oradores A tessitura dos textos trágicos mostra o cuidado que havia na linguagem apurada e muito se comenta sobre a influência dos sofistas no poder de argumentação naquele momento histórico em que floresceram as grandes tragédias No século V aC a língua grega encontravase no seu apogeu literário A respeito da importância dada ao discurso nas tragédias gregas diz Luna O fato é que em Atenas a cidade das palavras para usarmos uma expressão de Goldhill tanto os sofistas quanto os tragediógrafos irão ponderar sobre a linguagem em vários sentidos isolando conceitos para análise opondo logos e logos examinando o poder da palavra sobretudo em relação à persuasão e ao logro aferindo a relação entre a palavra e o mundo experimentando o controle e a manipulação entre sentido e referência promovendo o embate entre discursos igualmente retóricos dessa forma minando as certezas com relação aos conceitos e aos valores que estes exprimem enfim denunciando ousadamente os limites os poderes e principalmente os perigos da palavra9 Embora muito cuidadosos com a linguagem os gregos não desenvolveram uma teoria do trágico que envolvesse uma concepção de mundo Reflexões filosóficas sobre o trágico 9 LUNA Sandra op cit p 123 23 procedem de filósofos dos tempos modernos Mesmo assim foi a partir das tragédias gregas que os pensadores do trágico formularam suas idéias No dizer de Albin Lesky Qualquer tentativa para determinar a essência do trágico tem de necessariamente partir das palavras que a 6 de junho de 1824 disse Goethe ao Chanceler Von Muller todo o trágico se baseia numa contradição inconciliável Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação desaparece o trágico10 As palavras de Goethe nos permitem fazer reflexões numa determinada direção que visa à tragédia grega Podemos dizer que a verdadeira tragédia está sempre ligada a uma seqüência de acontecimentos de ações dinâmicas Aristóteles no capítulo VI da Poética reconhece a tragédia como imitação não de pessoas mas de ações e de vida Ela é o resultado de um mundo que se apresenta como choque entre forças opostas que configuram o mítico e o racional A questão do religioso e do mítico está intimamente ligada à história sóciopolítico econômica da Grécia Da religião vai surgir a mitologia na qual os literatos e dramaturgos gregos se inspiram para escrever Entretanto as tragédias dramatizam os mitos em relação aos problemas sociais e políticos do seu próprio tempo Jean Pierre Vernant falando sobre a tragédia grega diz o seguinte 10 LESKY Albin A Tragédia Grega Trad J Guinsburg São Paulo Perspectiva 2006 p 31 24 A tragédia não é apenas uma forma de arte é uma instituição social que pela fundação dos concursos trágicos a cidade coloca ao lado de seus órgãos políticos e judiciários Instaurando sob a autoridade do arconte epônimo no mesmo espaço urbano e segundo as mesmas normas institucionais que regem as assembléias ou os tribunais populares um espetáculo aberto a todos os cidadãos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se torna de certo modo como objeto de representação e se desempenha a si própria diante do público Mas se a tragédia parece assim mais que outro gênero qualquer enraizada na realidade social isso não significa que seja um reflexo dela Não reflete essa realidade questionaa Apresentandoa dilacerada dividida contra ela própria tornaa inteira problemática O drama traz à cena uma antiga lenda de herói Esse mundo lendário para a cidade constitui o seu passado um passado bastante longínquo para que entre as tradições míticas que encarna e as novas formas de pensamento jurídico e político os contrastes se delineiem claramente mas bastante próximo para que os conflitos de valor sejam ainda dolorosamente sentidos e a confrontação não cesse de fazerse11 O mundo da cidade é questionado e contestado em seus valores fundamentais mesmo assim não há dúvidas de que a tragédia dos gregos difere muito da arte trágica que hoje conhecemos como drama Contudo também é fato que entre a tragédia antiga e o drama moderno há uma relação estreita de pertença a uma mesma tradição tradição que já em suas origens clássicas propiciou a elaboração de um estudo teórico que até hoje permanece como obra basilar para a compreensão dos fundamentos do drama trágico a Poética de Aristóteles texto no qual se pode encontrar o alicerce de toda a teorização sobre o gênero trágico 2 A Poética aristotélica e os fundamentos do drama trágico É Aristóteles quem examina e define em sua Poética12 segundo elementos formais e conteudísticos a tragédia e a epopéia Afirma o filósofo que a tragédia e a epopéia estão de acordo em imitarem ações de homens superiores ressaltando que a imitação narrativa em 11 VERNANT JeanPierre O mito e a tragédia na Grécia antiga São Paulo Perspectiva 2005 p 10 12 ARISTÓTELES Poética Trad Prefácio introdução comentário e apêndices de Eudoro de Sousa Imprensa Nacional Casa da Moeda Departamento Editorial da INCM Rio de Janeiro 7ª edição 2003 25 versos deve ter uma estrutura dramática como a da tragédia e que excetuando a melopéia e o espetáculo cênico estratégias dramáticas como reconhecimentos peripécias e catástrofes também são necessários para a poesia épica13 Embora seu objetivo seja classificálos como gêneros distintos Aristóteles parece ter consciência de que tragédia e epopéia se interrelacionam e coincidem no objeto de imitação em diversos recursos de estilos e elementos estruturais Diferem quanto à representação do tempo e do espaço Enquanto a tragédia para Aristóteles deveria ser representada em uma só revolução do sol evitando cenas que se passassem em múltiplos lugares a epopéia podia representar ações que decorrem em muitos anos e em vários lugares a exemplo da Odisséia de Homero o mito que abrange vinte anos e o herói tem paradas em vários lugares Quanto à comédia diverge da tragédia porque esta imita homens de índole elevada e aquela homens de baixa índole Diferentemente da epopéia a tragédia grega é composta de ações concentradas interrompidas apenas pela intervenção do coro Há diferenças significativas entre epopéia e tragédia enquanto na epopéia as ações do homem o leva ao encontro do destino na tragédia as ações do homem levao de encontro a ele O erro do herói é fundamental como parte da ação que desencadeia a sorte trágica Segundo Aristóteles a tragédia se define nos seguintes termos É pois a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado completa e de certa extensão em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do drama imitação que se efectua não por narrativa mas mediante actores e que suscitando o temor e a piedade tem por efeito a purificação dessas emoções14 13 ARISTÓTELES Op cit p 104 e 105 14 ARISTÓTELES Op cit capítulo VI p 110 26 Essa definição prendese aos limites aristotélicos do drama sério de sua representação e inclui o trágico como algo que desencadeia o temor e a piedade nos leitores ou espectadores da cena No capítulo VII Aristóteles ao dizer que a ação é a parte mais importante da tragédia afirma que esta é uma imitação de uma ação que é completa constituindo um todo de certa magnitude tendo portanto princípio meio e fim Aristóteles já era bem explícito à propósito da unidade da ação No capítulo VIII da Poética ele diz o seguinte Uno é o mito mas não por se referir a uma só pessoa como crêem alguns pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários respeitantes a um só indivíduo entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma Muitas são as acções que uma pessoa pode praticar mas nem por isso elas constituem uma acção una Por conseguinte tal como é necessário que nas demais artes miméticas una seja a imitação quando o seja de um objecto uno assim também o mito porque é imitação de acções deve imitar as que sejam unas e completas e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que uma vez suprimido ou deslocado um deles também se confunda ou mude a ordem do todo Pois não faz parte de um todo o que quer seja quer não seja não altera esse todo15 Os capítulos VII e VIII da Poética de Aristóteles tratam ainda da ação Fica claro que para ele a unidade de ação não se define só pela unicidade mas pela coerência orgânica o que importa é a unidade estrutural das partes devendo o poeta empregar apenas o que é essencial Diz Aristóteles no cap IX da Poética que dos mitos e ações simples os episódicos são os piores O episódico seria a ação na qual a relação entre um e outro episódio não é necessária nem causalmente articulada 15 ARISTÓTELES Op cit capítulo VIII p 114 e 115 27 Eudoro de Sousa comentando a segunda parte do capítulo VIII da Poética faz oposição entre o acontecido e o disperso no tempo história e o acontecível ligado por conexão causal poesia Acontecido e acontecível são ambos verossímeis mas é necessário apenas que na poesia os acontecimentos reais ou imaginados sejam ligados por conexão causal Aristóteles insiste no mais importante o efeito da tragédia deve resultar unicamente da composição dos fatos da intriga da ínfima conexão das ações É dessa cuidadosa construção da trama que deve surgir a catástrofe e consequentemente o efeito trágico a katharsis A katharsis está estritamente relacionada com a mimesis e atua nos espectadores ou leitores provocando temor e compaixão causando a purificação de tais paixões O termo katharsis é um termo técnico usado pela medicina do tempo de Aristóteles significando purgação Também era empregada na linguagem religiosa como sinônimo de expiação ou purificação Diz Roger Samuel que analogicamente se usa também em sentido psíquico como processo pelo qual se purgam as paixões ou tensões da alma Essa será uma acepção mais próxima do entendimento da katharsis no mundo moderno Argumenta A katharsis na concepção de Aristóteles não pode ser conceituada apenas pela visão do leitor pois ela faz parte da natureza do fenômeno literário estando intimamente ligada à mimesis na manifestação da Poiesis Quando a mimesis está completamente desabrochada há a katharsis ela é a experiência operada pela arte de totalidade tanto no sentido subjetivo como no objetivo O grau mais acabado de libertação promovida pela criação artística onde a mimesis instaura o valor que constitui um apelo de todos os homens Aristóteles chama de katharsis 16 16 SAMUEL Rogel Manual de Teoria literária Petrópolis Vozes 1985 p 60 e 61 28 A tragédia como modalidade do drama tematiza tensionalmente uma situação limite daí podendo decorrer mais nitidamente a katharsis Para alguns autores toda arte opera a katharsis pois ela enche o homem de um prazer paz tal que pode ser chamado de plenitude Mas é em relação à tragédia que o conceito se esboça como efeito trágico Centralizada no espectador podese classificar de duas maneiras a katharsis pela ação da tragédia Ele se sentiria purificado aliviado ao se colocar nas experiências dolorosas por que passa a herói ou ao contrário a visualização dos tormentos alheios proporcionaria aos espectadores a purificação e alívio dos próprios temores Alfredo Leme Carvalho17 considerando o desejo de alguns autores de expandir as emoções catárticas diznos que Aristóteles fala apenas da catarse dessas emoções entendendo então claramente que se trata apenas das emoções de temor e piedade Luna conclui que para Aristóteles é positivo o efeito da arte trágica sobre os homens e isso apontaria para uma reação do filósofo à concepção platônica sobre a poesia imitativa Diz a autora Enquanto Platão encorajava os homens a sufocar suas paixões exercitando a abstinência e por isso mesmo desmerecia a arte por reconhecer nesta um meio de incitar as paixões Aristóteles sugere com a catarse que a arte tem realmente o poder de reproduzir nos homens estados emocionais sendo que esse processo de reprodução de estados emocionais através da arte trágica opera no sentido de educar essas emoções18 Como o efeito da katharsis se dá no espectador o público pensase em compreendêla por esse referente Mas para que a katharsis produza o efeito necessário deve fazer parte do 17 CARVALHO Alfredo Leme Coelho de Interpretação da Poética de Aristóteles São José do Rio Preto SP Ed Rio Pretense 1998 p 166 18 LUNA Sandra Arqueologia da Ação Trágica O legado grego João Pessoa Idéia 2005 p 215 29 fenômeno literário e como tal deve ser pensada em relação à própria construção da ação dramática Aristóteles distingue as ações entre simples e complexas A ação simples de uma obra é linear não há o que poderíamos chamar de mudança de fortuna Diz Aristóteles no capítulo X Dos mitos uns são simples outros complexos porque tal distinção existe por natureza entre as ações que eles imitam Chamo acção simples aquela que sendo una e coerente do modo acima determinado efectua a mutação de fortuna sem peripécia ou reconhecimento acção complexa denomino aquela em que a mudança se faz pelo reconhecimento ou pela peripécia ou por ambos conjuntamente É porém necessário que a peripécia e o reconhecimento surjam da própria estrutura interna do mito de sorte que venham a resultar dos sucessos antecedentes ou necessária ou verossimilmente Porque é muito diverso acontecer uma coisa por causa de outra ou acontecer meramente depois de outra19 O próprio Aristóteles explica a diferença entre ação simples e ação complexa pois ele dá o conceito de peripécia peripetéia e reconhecimento ou agnição anagnorisis elementos da ação complexa A peripetéia corresponde a um tratamento dramático da inversão da situação uma estratégia para surpreender a audiência e amplificar o efeito trágico O reconhecimento é uma espécie de iluminação ocorrendo quando o herói reconhece a verdadeira natureza do antagonista da situação geral ou dele mesmo caso de Édipo Aristóteles cita a tragédia Édipo Rei de Sófocles como exemplo da mais bela de todas as formas de reconhecimento porque se dá juntamente com a peripécia e isto suscita temor e piedade provando que a tragédia é imitação de ações que despertam tais sentimentos como resultantes de suas ações 19 ARISTÓTELES Op cit Cap X p 117 30 Aristóteles considera a ação mais importante que os caracteres pois é daquela que depende a felicidade ou infelicidade das personagens Entendese portanto que as tragédias devem imitar ações que suscitem emoções como a piedade e temor de preferência complexas incluindo a peripécia e a anagnorisis Contudo se nisto estiverem envolvidos homens muito bons que passem da boa fortuna para a desgraça tal acontecimento causaria repulsa também o inverso não deve acontecer homens muito maus que passem da má fortuna para a felicidade Para Aristóteles a situação mais adequada é a de um homem razoavelmente bom que cai na desgraça não por depravação moral mas por um erro involuntário hamartia Ao longo dos séculos diz Luna20 muitas foram as discussões e comentários sobre a hamartia Perguntouse muito se o erro trágico tal como sugerido por Aristóteles na Poética poderia ser interpretado como erro intelectual ou como falta moral Após minuciosa pesquisa sobre a semântica da palavra hamartia no contexto grego e depois de considerar outros escritos de Aristóteles a autora conclui que em uma tragédia perfeita a catástrofe virá não como conseqüência de uma deficiência moral que se apresente como traço do caráter do agente do erro mas por um erro involuntário Eudoro de Sousa em seus comentários do capítulo XIII da Poética esclarece que a mutação da fortuna tem que ser conseqüência de algum erro afirma também que a verdadeira natureza da hamartia não diz do caráter do herói trágico mas é antes uma parte estrutural do mito complexo e o correlato da anagnorisis e é provavelmente por que ela pode residir fora da própria ação dramática que Aristóteles não a menciona juntamente com a 20 LUNA Sandra Op cit p 277 31 peripécia o reconhecimento e a catástrofe como o caso de Édipo em que o erro acontecera anos antes Como causa da ação trágica é a hamartia que fornece a plausível razão para a reversa fortuna do herói21 É bom observar que há tragédias gregas cujas catástrofes se originam de erros voluntários cometidos por personagens que sabem bem o que estão fazendo a exemplo da Medéia de Eurípedes que mata os próprios filhos conscientemente levada pelo ciúme No capítulo XV da Poética Aristóteles trata de caracteres Neste capítulo e também no XVIII observase como o caráter influi nas idéias mais pertinentes à teoria da ação o que não surpreende porque segundo Aristóteles as personagens assumem caracteres para efetuar ações e não o inverso ou seja o caráter é como que a fonte da qual decorre a ação São enumeradas por Aristóteles as quatro qualidades do caráter bondade conveniência semelhança e coerência Essas quatro qualidades dizem respeito aos caracteres O primeiro e mais importante é que devem ser bons Há caráter quando as palavras e as ações derem a conhecer alguma tendência se esta for boa é bom o caráter Esta bondade é possível em toda a categoria de pessoas Segundo Aristóteles há a bondade de mulher mas seu caráter é inferior ao do homem e o do escravo é insignificante22 A segunda qualidade do caráter é a conveniência para Aristóteles há um caráter de virilidade mas não convém à mulher ser viril ou terrível esta deve ser qualidade de 21 SOUSA Eudoro de Op cit p 173 e 174 22 ARISTÓTELES Poética Op cit p 177 32 personagens homens embora se tenha exemplos de mulheres fortes como Antígona Electra e outras A terceira qualidade do caráter é a semelhança é bem distinta da bondade e da conveniência tal como foram explicados A semelhança segundo Luna poderia ser compreendida como verossimilhança ou seja mesmo quando os personagens representassem mitos ancestrais suas caracterizações deveriam ser verossímeis A quarta qualidade do caráter é a coerência mesmo que a personagem a representar não seja coerente nas suas ações porém é necessário que no drama ela seja incoerente coerentemente Todo o tratado de Aristóteles nos lembra que as regras de verossimilhança e necessidade têm de governar tanto a ação mítica como os atos e as palavras das personagens o que aliás são dois aspectos da mesma ação dramática Aristóteles no capítulo XXIII volta a comparar a epopéia com a tragédia chega a dizer que Homero está maravilhosamente acima de todos os outros poetas mas acaba por considerar a tragédia um gênero superior à epopéia estabelecendo diferenças entre ambos tanto quanto aos episódios como quanto à extensão Diz ainda Aristóteles que a tragédia não pode apresentar muitas partes das ações ao mesmo tempo mas só aquela que na ação se apresenta entre atores mas a epopéia por ser narrativa pode narrar várias ações simultâneas Contudo no final da Poética no capítulo 33 XXVI Aristóteles afirma que a tragédia supera a epopéia e explica resumidamente a argumentação sobre a superioridade da tragédia Talvez seja a superioridade da tragédia o que a fez atravessar os séculos e milênios sendo um gênero preferido por muitos escritores Mesmo que a tragédia tenha se transformado em drama na modernidade muitas de suas características se conservam até a atualidade 3 A Permanência do Trágico nas Transformações do Gênero Dramático Pretendemos investigar e comentar a partir de autores de destaque no assunto as transformações que ocorreram no gênero dramático e que modificaram a estruturação da tragédia mas sem abandonar a busca de um efeito trágico Essas transformações ocorridas ao longo dos séculos mas radicalmente alteradas com o advento do Romantismo produziram um subgênero que hoje chamamos de drama moderno ou drama social em nosso entender um herdeiro legítimo da tragédia enquanto dramatização do trágico Alguns marcos do percurso histórico do drama devem ser lembrados para que possamos entender sua evolução como processo e atribuir sentido às ocorrências salientadas Segundo Peter Szondi23 o drama moderno surge no Renascimento e se constrói partindo unicamente da produção das relações subjetivas O diálogo tornase o meio 23 SZONDI Peter Teoria do drama moderno Trad Luiz Sérgio Repa São Paulo Cosac Naify 2001 34 lingüístico por excelência no Renascimento após a supressão do prólogo do coro e do epílogo o monólogo é esporádico Em volta dessas interrelações diz Szondi acomodamse temáticas importantes e o drama se apresenta em linhas gerais sobretudo o drama elizabetano sob três modalidades a comédia a tragédia e a peça histórica de Shakespeare A professora Sandra Luna24 em ponto de vista não muito diferente de Szondi considera a modernidade dramática o período que se inicia com o Renascimento e enfatiza como características fundamentais a esse drama moderno o culto à razão ao livre arbítrio ao sujeito e a sua consciência noções básicas da moderna teorização sobre a tragédia que assume assim fortes traços distintivos em relação à tragédia grega É o que nos diz em semelhantes palavras Rosenfeld A transcendência cede terreno à imanência o outro mundo a este o céu à terra A perspectiva coloca a consciência humana e não a divindade no centro ela projeta tudo a partir deste foco central25 Nesse novo momento histórico conceitos como herói trágico ação trágica erro trágico e justiça poética são pensados sem se perder de vista a posição do sujeito racional diante das forças que se fazem trágicas Porém não dá para desprezar o peso da tradição medieval e latina no mundo trágico da modernidade É fácil verificar em peças de Shakespeare e de muitos outros dramaturgos modernos influências da obra de Sêneca e da tradição religiosa da Idade Média 24 LUNA Sandra A tragédia no Teatro do tempo das origens clássicas ao drama moderno João Pessoa Idéia 2008 p 129 25 ROSENFELD Anatol O teatro épico 4 ed São Paulo Perspectiva 2000 p 55 35 Shakespeare 15641616 combina o conflito trágico de suas tramas com destacadas rupturas em relação ao modelo aristotélico misturas de situações trágicas e cômicas liberdade no manejo do espaço e do tempo alternâncias entre prosa e verso enredo centrado no caráter do herói introdução de personagens de baixa condição social e fatos episódicos que contudo não comprometem a unidade de ação A cena dos coveiros no ato V de Hamlet é uma revelação do novo tratamento dado por Shakespeare à tragédia diversidade de espaço comicidade ironia e personagens baixos26 Ainda vale lembrar a importante função dos solilóquios e dos apartes nesta e em outras tragédias do dramaturgo inglês Ainda que guarde uma consciência cristã o drama elisabetano é inteiramente secular e Shakespeare conforme observa Raymond Williams não é herdeiro dos gregos mas o exemplo maior de um novo tipo de tragédia na relação entre a trajetória do herói e a ordem pública há uma diferença substancial em relação à tragédia grega na medida que na tragédia Shakespeariana já interagem de forma intrincada o caráter a falha trágica e a ação em curso O crítico da Nova Esquerda inglesa identifica no entanto na tragédia renascentista um ponto de contato com o modelo grego 26 SHAKESPEARE William Hamlet Trad Pietro Nassetti São Paulo SP Ed Martin Claret 2002 36 A mais importante permanência para a subseqüente história do drama foi a de uma ordem pública no centro da qual acontece não obstante a tragédia pessoal O herói é ainda usualmente o homem de posição o príncipe Uma ordem pode nascer ou cair com ele ser afirmada ou rompida por meio dele mesmo quando aquilo que o impulsiona é uma energia pessoal27 O valor e a funcionalidade das transgressões formais mencionadas fizeram com que a tragédia shakspeariana fosse valorizada por Lessing no século XVIII e se transformasse na grande referência para românticos como Victor Hugo e Alexandre Dumas pai Mas nem tudo na obra de Shakespeare é ruptura Ao se apropriar da tradição latina e ao centralizar a ordem pública no drama o autor de Rei Lear não abriu mão do estilo elevado de personagens nobres e de finais catastróficos o que o mantém no rol dos que perpetuaram a tragédia clássica Luna esclarecenos que no século XVIII a maior contribuição à crítica e à dramaturgia provém dos escritos de Lessing28 Lessing era opositor dos preceitos neoclássicos desejava libertar o drama de tais preceitos A mais importante contribuição de Lessing é ao mesmo tempo rejeição ao neoclassicismo uma defesa de Shakespeare e uma defesa da tragédia burguesa Ele próprio escrevia peças de acordo com tais convenções29 Williams continua baseado em Lessing afirmando que o verdadeiro herdeiro de Shakespeare seria a nova tragédia nacional burguesa um gênero que herda da tragédia o tratamento sério da ação mas que propõe o rebaixamento dos heróis e de sua linguagem 27 WILLIAMS Raymond Tragédia moderna Trad Betina Bischof São Paulo Cosac Naify 2002 p 122123 28 LUNA Op cit p 158 29 WILLIAMS Op cit p 49 37 O século XVIII pode ser chamado século de transição cheio de avanços e retrocessos em direção ao Romantismo e a esse novo drama burguês Voltaire revolucionário político e admirador da Antiguidade clássica propõe a volta da poesia ao palco como reação à vulgarização que se encaminhava pela influência do teatro popular Mas para Diderot o drama deveria mostrar a verdade o burguês no seu cotidiano no meio da sua família profissão e em seu espaço social Lessing defende um teatro nacional burguês afirmando que a catarse poderia vir de personagens semelhantes aos espectadores não apenas marcando o destino de reis e príncipes Concentrava seu pensamento teórico nos aspectos mais concretos das representações dramáticas sem fugir de todo às regras aristotélicas Propunha uma dramaturgia onde a razão e a criação não se dissociassem A arte aparecia como objetivo mais importante não em relação a regras ou a convenções mas em busca de essências que se revelassem efetivas Nesse sentido é que Lessing era seguidor de Aristóteles Era assim que ele atacava a tragédia clássica francesa procurando demonstrar que essa vertente do drama por seu rigor formal não estava de acordo com as idéias de Aristóteles nem correspondia às novas realidades sociais Rosenfeld apresenta o seguinte argumento de Lessing Sendo a catarse o objetivo último da peça segundo Aristóteles e Lessing o que se impõe é usar todos os recursos que a produzam mesmo ferindo as chamadas regras Ora o infortúnio daqueles cujas circunstâncias se aproximam das nossas penetrará segundo Lessing com mais profundeza em nossa alma sendo que os nomes de príncipes e heróis podem dar a uma peça pompa e majestade mas nada contribuem para a emoção isto é a catarse Para um público burguês será muito mais fácil identificarse e sofrer com o destino de um burguês do que com as vicissitudes de um rei ou de uma princesa30 30 ROSENFELD Op cit p 64 38 Há quem discuta estas afirmações visto que a tese de Lessing de que o gênio não precisa se ater à pureza dos gêneros e a regras fixas exerce muita influência sobre os teóricos e dramaturgos do PréRomantismo e Romantismo posteriores Ainda neste caso o grande modelo será Shakespeare O PréRomantismo opunhase ao racionalismo dos iluministas e afirmava o idealismo de Rousseau Defende o individualismo anárquico exaltando os aspectos mágicos e metafísicos da obra de Shakespeare Lembramos que Shakespeare foi mestre no apelo ao sobrenatural para intensificação do efeito trágico Os fantasmas que aparecem em Hamlet Macbeth Julius Caesar e Richard III não agridem a verossimilhança embora para os classicistas a aparição de fantasmas não era algo aceitável como verossímil31 Raymond Williams32 chamou este momento préromântico de desordem social Desde a época da Revolução Francesa a idéia de tragédia pode ser vista como uma resposta de maneiras variadas a uma cultura em mudança e movimentação conscientes A ação da tragédia e a ação da história foram conscientemente vinculadas uma a outra Segundo Raymond Williams Goethe e Schiller tinham abandonado em suas obras fundamentais a rebeldia da mocidade por uma disciplina clássica as peças deles são difíceis de se enquadrar no drama na tragédia ou mesmo na comédia Mesmo assim nelas dominam o pensamento burguês e o homem é representado como senhor de suas vontades característica maior do drama moderno Fausto de Goethe junta a um só tempo elementos dramáticos 31 LUNA Op cit p 160161 32 WILLIAMS Op cit p 90 39 épicos e líricos Tendo se iniciado em 1770 e só concluído em 1831 reflete segundo muitos autores as duas fases do poeta alemão a préromântica e a clássica Envolvida por uma visão cósmica e certo mistério religioso a ação em Fausto configura uma situação trágica onde triunfam a vontade do sujeito o individualismo burguês e a busca da libertação estas são posições típicas do pensamento iluminista e préromântico Fausto tende para a queda ao fazer um pacto com o diabo mas sua vinculação com ideais elevados o levam a ser arrebatado pelos anjos do senhor A despeito dessa época de contendas acerca dos parâmetros de construção da dramaturgia trágica a partir do século XVIII ficam sedimentadas as bases para a aceitação do drama social É Luna que nos fornece informações para argumentarmos sobre a crise ou morte da tragédia e o nascimento do drama Baseada nas idéias de Lessing aponta encaminhamentos para a dramaturgia trágica do final do século XVIII São mudanças radicais a substituição da linguagem poética elevada por uma linguagem prosaica em decorrência do rebaixamento de personagens revela que assim como o mundo é outro também o teatro mudou Em vez de reis rainhas príncipes e nobres como heróis e heroínas da tragédia o palco trágico opta agora por pessoas comuns nos papéis de protagonistas aspectos que já apontavam para o Romantismo europeu opondose ao teatro neoclássico Os ingleses também tiveram importantes participações em obras dramáticas na modernidade mas não foram apenas eles que tentaram a dramaturgia trágica nesse momento 40 de experimentação romântica Goethe Schiller Vitor Hugo Musset Stendhal e muitos outros autores dos séculos XVIII e XIX se destacaram na direção deste sonho de revigoração do teatro inspirados em Shakespeare como modelo para o teatro do futuro Neste sentido diz Luna A bem da verdade não eram apenas os versos de Shakespeare que ressoavam aos ouvidos dos poetas esperançosos por uma revigoração do teatro Dentre as complexidades do Romantismo europeu a condenação ao teatro Neoclássico vinha de par com a aclamação ao teatro grego Mais uma vez se afirma a contribuição de Lessing sem a qual o acolhimento à dramaturgia antiga teria provavelmente sido obstaculado pela interpretações que dela fizeram os cultores dos dogmas classicistas Demonstrando de forma convincente como os ideais de Aristóteles expressos na Poética haviam sido mal interpretados pelos neoclássicos Lessing conseguiu iluminar o que considerava uma espécie de genialidade trágica segundo ele presente tanto nos escritos dos tragediógrafos gregos quanto nos textos shakespeareanos Não é por acaso que a noção romântica do sublime pôde se esboçar em relação a Ésquilo e a Shakespeare33 Observase com isso que o séc XVIII foi um marco na história do drama Diante de toda a valorização que os poetas românticos deram ao teatro trágico este século teve uma efervescência tão grande que produziu transformações severas na dramaturgia trágica sendo reconhecido como o tempo em que ocorreu a morte da tragédia e o nascimento do drama moderno Luna baseada em estudos de Steiner aponta as causas que levaram à chamada morte da tragédia Para o autor a tragédia sucumbiu devido ao rebaixamento temático em conseqüência das novas tendências surgidas no Romantismo dentre elas a linguagem prosaica o uso de ações mais simples do cotidiano e o rebaixamento dos personagens que passaram a ser representantes do povo comum34 33 LUNA Op cit p 189190 34 LUNA Op cit p 190 41 Na verdade a sociedade moderna do século XIX em cuja composição dominam novos atores a burguesia e o proletariado criando e vivendo uma nova dinâmica vai aos poucos produzindo meios artísticos mais adequados a sua representação e expressão dando continuidade e aprofundando o processo que se inicia no século XVIII Nela a sociedade hegemônica vive a ilusão da ascensão pelo trabalho a crença nas suas próprias forças enquanto no passado os laços consangüíneos legitimavam a posição do nobre Nesse novo contexto marcado por um pensamento cada vez mais secular e relativista a tragédia tradicional não poderia ter o mesmo acolhimento de outrora Há de ser considerado um outro fator de ordem social o novo público de teatro diferentemente da nobreza letrada desprovido de cultura literária e desejoso de consumir tramas patéticas com finais felizes condiciona pelo menos em parte a produção teatral do período Saem de cena o mundo mítico e a linguagem elevada e solene Os temas têm um caráter mais privado tornamse mais domésticos A Nobreza e a divindade eram vinculadas O herói deixa de ser símbolo e vive agora a sua catástrofe desvinculada da religiosidade sem que seu destino abale o da cidade Os personagens da classe burguesa que apareciam apenas na comédia passam a protagonistas nesse novo formato que já não é tragédia é drama O novo gênero se distingue pela busca de realismo e de verdade social Elementos formais como diálogo tempo presente e caráter absoluto das peças tendem a se tornar insuficientes com a crescente incorporação de temáticas como o passado o 42 isolamento a solidão dos personagens e a situação da classe operária Conforme Szondi35 à medida em que esses conteúdos se precipitam como forma o grande desafio do drama tradicional é servirlhes de modelo é abranger novas realidades o que começa a ocorrer a partir do Romantismo e se impõe por volta de 1880 Porém uma ação não deixa de ser trágica por incorporar novas temáticas ter seu enunciado em prosa abandonar o gesto grandioso ou ser protagonizada por burgueses ou operários sobretudo quando se pode manter a excelência e a dignidade de tais personagens O drama social assim como a tragédia ainda gravita em torno de uma trama cujos elementos estruturais pertencem em larga medida ao universo trágico teorizado por Aristóteles muito embora a modernidade também tenha contribuído significativamente para a teorização do drama 4 Hegel e a Moderna Teorização Sobre a Ação Em se tratando de drama moderno não podemos esquecer Hegel e suas contribuições teóricas com a sua Estética Sobre a arte de imitar diz Hegel que o homem deseja com a imitação da natureza experimentarse a si próprio mostrar habilidade e regozijarse por ter fabricado uma coisa com aparência natural Recomenda que a imitação seja fiel no máximo que puder ao objeto imitado Quando fala de tragédia mostra que a vê como conflito de forças eternas individualizadas através de personagens em luta 35 SZONDI Op cit p 30 e 31 43 O que se encontra assim destruído no desenlace de um conflito trágico é unicamente a particularidade unilateral que incapaz de se submeter a esta harmonia se inclina demasiado até ao abismo ao trágico da ação ou vêse pelo menos forçada na medida do possível a renunciar aos seus fins36 Hegel também contribui com informações sobre a ação nos textos dramáticos Na hierarquia que adotamos a ação ocupa o terceiro lugar depois do estado geral do mundo e da situação determinada e vimos que a ação supõe a presença de circunstâncias que conduzem a colisões com ações e reações Presentes estas circunstâncias é difícil prever onde deve a ação começar O que à primeira vista parece um começo pode ser apenas o resultado de complicações anteriores e é possível que sejam estas que fornecem o ponto de partida caso não sejam já por sua vez o resultado de colisões anteriores etc Na casa de Agamenon por exemplo Ifigênia expia em Áulida as faltas e as desgraças da casa Aqui seria o começo constituído com a salvação de Ifigênia por Diana que a leva para Táurida mas este acontecimento é a conseqüência de complicações anteriores particularmente do sacrifício executado em Áulis provocado por sua vez pelo ultraje feito a Menelau a quem Paris rapta Helena e assim sucessivamente até ao famoso ovo de Leda Do mesmo modo o ponto de partida do assunto tratado na Ifigênia em Táurida é o assassínio de Agamenon e toda a série de dramas cujo teatro é a casa de Tântalo O mesmo acontece com o ciclo das lendas tebanas Só a poesia poderia cumprir com rigor a tarefa que consiste em representar a ação com todo o cortejo das circunstâncias que a precederam e nas quais cada uma delas condiciona a que lhe sucede37 Com estes argumentos de Hegel podemos lembrar que já para Aristóteles o texto dramático deveria iniciar in medias res Hegel chega a citar a Ilíada de Homero como exemplo que já se inicia com a cólera de Aquiles Não dá para discordar pois são as situações e o conflito que nos movem a excitações que podem provocar temor e piedade e desencadear a katharsis objetivo da tragédia que não desaparece nos dramas modernos porque estes conservam o tom trágico como é o caso do corpus em estudo O Pagador de Promessas A definição hegeliana de tragédia constróise sobre um conflito de substância ética Assim sendo é limitada a determinadas culturas e temporalidades Afirma Hegel que para 36 HEGEL Georg Wilhehn Frederich Curso de Estética o belo na arte São Paulo Martins Fontes 1996 p 251 37 HEGEL G W Frederich Op cit p 249 44 haver a verdadeira ação trágica é indispensável o princípio de liberdade e independência individual ou pelo menos autodeterminação a vontade de encontrar no eu a livre causa e a origem do ato pessoal38 Discute também Hegel o pathos e o caráter define o pathos como o verdadeiro centro o verdadeiro domínio da arte É através dele que o espectador chega ao sentimento de temor ou piedade porque faz vibrar e ressoar uma corda que todo homem tem na sua alma Só uma alma nobre é capaz de pôr no seu pathos toda a riqueza de sua interioridade de uma emoção muito forte exacerbada e ao mesmo tempo capaz de exteriorizar até a superfície e ir às formas perfeitas Diz ainda Hegel que o pathos para ser concreto em si como exige a arte do ideal deve ser a representação de um espírito rico e total E isto leva ao terceiro aspecto da ação e do caráter o individualismo nas suas emoções a subjetividade nos seus sentimentos Sobre o caráter diz Hegel que este constitui o verdadeiro centro da representação artística Na tragédia moderna a questão da resolução é mais difícil porque as personagens são mais individualizadas A própria justiça diz o autor é mais abstrata podendo até mesmo aparecer como resultado de circunstâncias externas promovendo dessa forma o choque suscitando a piedade39 Diz ainda Hegel que cada herói de Homero representa um conjunto real de propriedades e traços de caráter Aquiles é um herói juvenil mas a força juvenil não exclui a 38 HEGEL G W Frederich Op cit p 267 39 HEGEL G W Frederich Op cit p 270 45 afirmação de outras qualidades humanas Esses argumentos de Hegel são contribuições que influenciam as novas perspectivas do drama moderno efetivamente construído com ênfase especial nos processos de caracterização acentuando sobretudo a subjetividade e a liberdade dos personagens No gênero dramático diz Hegel40 o mundo objetivo é apresentado objetivamente como na Épica porém mediado pela interioridade dos sujeitos como na Lírica Diz ainda que historicamente o surgir do drama pressuporia tanto a objetividade da Épica como a subjetividade da Lírica visto que a Dramática unindo as duas não se satisfaz com nenhuma das esferas separadas Com o drama moderno as máscaras e o acompanhamento do coro desaparecem para dar lugar aos jogos fisionômicos aos mais variados gestos e modulações da voz Isso apontaria para o forte investimento do drama moderno nos processos de caracterização Ainda é o próprio Hegel quem diz que a individualização dramática deve ser tão poética viva e cheia de interesse que faça o espectador esquecer tudo o que está fora do drama a realidade lá fora Uma individualização superficial também não satisfaz nem agrada ao espectador O indivíduo dramático deve ser intensamente vivo completo com mentalidade e caráter que se harmonizem com a ação e os fins desta que é convencer o público ou o leitor daquilo que representa com um caráter vivo verossímil Contudo diz Hegel o efeito dramático vem da ação e não da exposição dos caracteres em si mesmo não depende dos fins determinados nem de sua realização Neste ponto Hegel 40 HEGEL G W Frederich Op cit p 267 46 cita Aristóteles quando ele diz que a ação dramática tem duas fontes a reflexão e o caráter mas o principal e o fim é que os indivíduos não atuem para representar caracteres mas que estejam envolvidos na ação e se manifestem de acordo com ela Diz Hegel sobre o drama O drama não pode porém limitarse aos simples meios de que a poesia dispõe Em vez de relatar acontecimentos e empreendimentos do passado a exemplo da poesia épica ou de exprimir tal como o faz a poesia lírica o mundo subjectivo o drama propõese figurar uma acção presente e real pelo que há de usar de todos os meios adequados para tal A acção presente emana certamente de uma fonte interior e deixase perfeitamente exprimir mediante palavras mas por outro lado a acção está orientada para o exterior e exige a participação total do homem com os seus movimentos corporais as expressões fisiognómicas dos sentimentos com a maneira como enquanto homem afecta os outros homens e as reacções que provoca O indivíduo assim representado nas suas relações com a realidade exterior necessita de uma ambiência também exterior de um lugar determinado em que possa evoluir e actuar41 Para Hegel a ação dramática é necessariamente conflituosa Em suas próprias palavras A poesia dramática nasceu da nossa necessidade de ver os atos e as situações da vida humana representados por personagens que relatem os fatos e expressem os intentos mediante breves ou longos discursos A ação dramática não se limita porém à calma e simples progressão para um fim determinado pelo contrário decorre essencialmente num meio repleto de conflitos e de oposições porque está sujeita às circunstâncias paixões e caracteres que se lhe opõem Por sua vez estes conflitos e oposições dão origem a ações e reações que num determinado momento produzem o necessário apaziguamento O que vemos assim diretamente são fins individualizados sob a forma de caracteres vivos e de situações ricas em conflitos caracteres e situações que se entrecruzam e determinam reciprocamente procurando cada caráter e cada situação afirmarse e ocupar o primeiro lugar em detrimento dos outros até que se processe o apaziguamento final42 Vêse então que a colisão ou conflito deve causar modificação no estado de harmonia que depois deve voltar ao estado harmônico O desenlace de um conflito trágico é exatamente 41 HEGEL G W Frederich Op cit p 413 42 HEGEL Estética Poesia Trad Álvaro Ribeiro Lisboa Guimarães Editores 1964 p 375 376 47 a particularidade unilateral que acaba por sucumbir ao abismo ao trágico da ação por ser incapaz de se submeter à harmonia Para mostrar melhor a notável diferença que sob este aspecto separa a tragédia moderna da antiga diz Hegel43 basta indicar o Hamlet de Shakespeare o qual se baseia num conflito semelhante ao de Sófocles em Electra Em Hamlet tratase do assassínio de um rei e pai e do casamento da mãe com o assassino Porém aquilo que entre os poetas gregos obtém uma justificação moral é apresentado em Shakespeare sob a aparência de um crime hediondo do qual a mãe de Hamlet está inocente de forma que o filho para se vingar basta se voltar apenas para o rei que matou o próprio irmão Hamlet o pai O conflito não acontece em torno do fato de o filho para realizar uma vingança moral transgredir outro princípio moral mas ao redor do caráter pessoal de Hamlet Diz ainda Hegel O carácter trágico dos conflitos e do desenlace só está indicado nos casos em que se trata de fazer prevalecer uma concepção mais elevada Na ausência de tal necessidade nada justifica a dor e a desgraça É o tema que está na base do drama esse gênero intermediário entre a tragédia e a comédia e que mais acima caracterizei já de modo geral Porém entre nós o drama procura comover mediante temas hauridos quer na vida burguesa e familiar44 Assim notase que os dramas atuais mesmo tendo dentro de si acontecimentos trágicos são muito diferentes das tragédias da antiguidade grega e mesmo do tempo de Shakespeare Porém temos desenlace trágico em algumas de nossas peças como conseqüência de circunstâncias adversas e de acidentes exteriores situações e acidentes que poderiam ter sido 43 HEGEL G W Frederich Op cit p 484 e 496 44 HEGEL G W Frederich Op cit p 484 e 496 48 diferentes e que poderiam ter tido como conseqüência um desfecho feliz A impressão que se tem é que a individualidade moderna pela particularidade do caráter das circunstâncias e do encadeamento das ações cai na instabilidade das coisas terrestres e é nesse sentido que os personagens heróicos têm de conformarse à sorte que lhes cabe O que se conclui é que em nossos dias o trágico que aparece em nossos dramas representase de maneira bem diferente das tragédias antigas mas conserva ainda fortes marcas de tragicidade ou seja embora as razões do drama sejam outras elas ainda inspiram temor e piedade como é o caso de O Pagador de Promessas de Dias Gomes Gota Dágua de Chico Buarque e muitas outras O fato é que muitas destas peças modernas conservam no seu desenrolar aspectos trágicos às vezes com semelhanças com as tragédias antigas sobretudo no que diz respeito à construção estrutural da ação ajustandose ao antigo modelo aristotélico mesmo quando em relação a sua temática esse drama moderno se volta para questões sociais 49 II O teatro de Dias Gomes e a Crítica Social 1 Dias Gomes biografia Dias Gomes Alfredo de Freitas Dias Gomes foi contista romancista e teatrólogo Uma das principais peças teatrais do autor foi O Pagador de Promessas a qual foi encenada pela primeira vez a 29 de julho de 1960 no TBC Teatro Brasileiro de Comédia em São Paulo momento em que Dias Gomes ainda era quase desconhecido Dirigida por Flávio Rangel marcou o início da segunda fase do teatro de Dias Gomes e sua consagração como um dos mais destacados dramaturgos contemporâneos do Brasil Dizemos segunda fase porque a primeira estreou em 1942 com a comédia PédeCabra encenada no Rio de Janeiro e depois em São Paulo por Procópio Ferreira que com ele excursionou por todo o país Em seguida escreveu as peças O homem que não era seu e João Cambão Em 1943 a sua peça Amanhã será outro dia foi encenada pela Comédia Brasileira Neste mesmo ano assinou contrato de exclusividade com Procópio Ferreira para a montagem de várias peças subseqüentes Antes de 1960 as peças de Dias Gomes tinham um caráter mais cômico mesmo que já explorasse as questões sociais conservandoas na terceira fase que foi a partir de 1978 quando voltou a escrever para o teatro depois de longo afastamento dedicandose apenas às encenações das suas peças já existentes Dias Gomes era baiano nascido no bairro da Canela em Salvador a 19 de outubro de 1922 e falecido em 1999 no Rio de Janeiro na rua do Bom Gosto nome que depois foi 50 mudado para rua João das Botas Aos onze anos estudou numa escola que funcionava num sobrado onde morou Castro Alves Em 1935 mudouse para o Rio de Janeiro onde o irmão mais velho ia servir o exército como oficialmédico Não foi um estudante brilhante iniciou Engenharia não terminou Cursou Direito até o terceiro ano quando abandonou o curso Só conseguiu se encontrar dizem os estudiosos quando começou a escrever peças de teatro desenvolvendo a aptidão que desde a infância lhe acenava como sua verdadeira vocação Em 1944 Dias Gomes ingressou no rádio onde fez de tudo um pouco foi redator narrador ensaiador diretor artístico e ator continuava ligado ao ofício de escrever que conhecia tão bem Adaptou centenas de peças romances contos e novelas da literatura universal para diversos programas em sucessivas emissoras paulistanas Iniciou seu trabalho de radialista na Rádio Panamericana recémfundada por Oduvaldo Viana pai De 1945 a 1947 trabalhou nas Emissoras Associadas Em 1948 na rádio América Em 1949 na Rádio Bandeirantes Entre os vários programas que criou e desenvolveu na rádio Paulista destacamse os grandes teatros cujos nomes variavam de acordo com a emissora Grande Teatro Panamericano Grande Teatro Bandeirantes etc A permanência em São Paulo durou até 1950 quando se casou com Janete Emmer colega de rádio e escritora que depois ficou conhecida como Janete Clair telenovelista de sucesso Dessa união nasceriam Guilherme Denise e Alfredo De volta ao Rio trabalhou ainda algum tempo nas emissoras associadas de lá e transferiuse em 1952 para a Rádio Clube do Brasil 51 Em 1953 complicouse um pouco a sua vida Ele viajou para Moscou participando de uma delegação brasileira nas comemorações do Dia do trabalho soviético O fato foi um escândalo além de ser demitido da Rádio Clube do Brasil houve também uma ferrenha perseguição ao autor por parte de Carlos Lacerda Sem emprego e com o nome na lista negra como comunista Dias Gomes teve que driblar a situação por nove meses para sobreviver escrevia programas para a TV Tupi usando os nomes de três amigos que assinavam para ele e negociavam seus textos Em 1954 sai da lista negra sendo contratado pela Standard Propaganda Três anos depois ingressou na Rádio Nacional onde permaneceu até 1964 comandando o programa Todos cantam sua Terra A personagem Branca Dias de O Santo Inquérito foi descoberta por Dias Gomes graças a esse programa de pesquisa folclórica Em 1960 estreou O Pagador de Promessas que foi um sucesso é sua peça mais encenada até o momento Em primeiro de abril de 1964 com o golpe militar começou um período de novas perseguições a Dias Gomes A Rádio Nacional foi ocupada e a demissão dele aconteceu pelo Ato Institucional número 1 Censurado dedicase ao teatro continuando o que chamava de a segunda fase da sua criação iniciada com o Pagador de Promessas e continuada com a Invasão a Revolução dos Beatos o BemAmado O Santo Inquérito e outras peças que enfocam muito as questões sociais Em 1969 pressionado pela censura que havia barrado vários textos seus e sentindo a dificuldade de continuar sua obra teatral usou de estratégia e levou à TV as suas 52 preocupações políticas e sociais escrevendo uma série de telenovelas que a partir daí foram valorizadas tanto pelo aspecto artístico como pela linguagem própria O BemAmado Roque Santeiro proibido pela censura Saramandaia e Sinal de Alerta compõem o ciclo que repete na TV a tentativa de mostrar um vasto painel de nossa realidade levando ao espectador a consciência da necessidade de transformála A partir de 1978 após novo período de afastamento durante o qual se preocupou apenas com reencenações de suas peças em todo o mundo Dias Gomes voltou a escrever para o teatro As Primícias foi publicada em livro e O Rei de Ramos foi encenada com enorme sucesso Segundo Anatol Rosenfeld autor de um dos mais inteligentes estudos sobre a sua obra esta no seu todo se apresenta repleta de esplêndidas invenções povoada de uma humanidade exemplar na glória e na miséria Distinguemna a imaginação rica a variedade de caracteres vivos a extraordinária latitude da escala emocional indo dos comoventes destinos de Zé do Burro e Branca Dias ao riso amargo de O Berço do Herói e Dr Getúlio e à franca gargalhada de Odorico Aberta ao sublime sensível à grandeza trágica a obra recorre ao mesmo tempo aos variados enfoques do humor do sarcasmo e da ironia para lidar com os aspectos frágeis ou menos nobres da espécie humana Por isso a obra é amorável e respira futuro45 Dias Gomes foi muito premiado mas foi também o mais censurado suas peças foram proibidas muitas vezes no dia da estréia como no caso de O Berço do Herói em 1965 O próprio Dias Gomes comentou Entendi logo que o sistema não me permitia encenar outras peças principalmente após o Ato Institucional número 5 de 196846 Por causa disso aceitou o convite e o desafio de escrever para a televisão em 1969 Durante dez anos escreveu para a televisão sempre fiel aos seus temas no teatro Muitos de seus personagens de telenovelas nasceram a partir de suas peças teatrais como o 45 DIAS GOMES Alfredo de Freitas O Pagador de Promessas 35ª ed Rio de Janeiro Ediouro In prefácio 2001 p 4 46 DIAS GOMES Alfredo de Freitas O Berço do Herói Rio de Janeiro Ed Civilização 1965 p 142 53 Tucão de Bandeira 2 personagem de Dr Getúlio sua vida e sua glória ou Odorico Paraguaçu personagem de o BemAmado Em 1979 volta ao teatro com a peça O Rei de Ramos inaugurando uma terceira fase de seu teatro que teve ascensão com o mural dramático Campeões do Mundo escrito em 1979 e encenado em 1980 A obra de Dias Gomes é muito variada nos conteúdos e na forma bem heterogênea por sinal no que se refere ao valor e às próprias aspirações artísticas mas se distingue apesar de tudo pela unidade fundamental Unidade no que se refere aos valores políticosociais Suas peças deixam passar uma visão crítica um homem insatisfeito com a realidade do Brasil e do mundo no seu período histórico Analisar criticamente a realidade do Brasil segundo uma imagem mais perfeita segundo normas morais e sociais que ele julgava mais humanas deixando passar tudo isto nas entrelinhas subjacentes às suas críticas são aspectos constantes nas obras do escritor A literatura é sempre de uma ou de outra forma expressão de valorizações múltiplas onde se manifesta também os aspectos políticos sociais fatores como afirmamos muito marcantes na obra de Dias Gomes Mas a tradição crítica que se instala pelo viés da dramaturgia é de longa data Observase na tradição dramática uma série significativa de textos que se colocam em oposição à sociedade a que pertencem sem apresentar o sonho de como deveria ser uma sociedade ideal apresentam contudo parâmetros para a construção de utopias 54 Os persas por exemplo é a primeira peça histórica ocidental e já se apresentava como uma obra política É sabido hoje que Ésquilo visava com essa peça não só celebrar a vitória dos gregos sobre os persas mas advertir seus compatriotas que poderiam também cair em semelhante desastre Eurípedes em As Troianas aponta terríveis acusações de crueldade ao próprio povo Aristófanes critica fortemente a democracia ateniense que se fundamentava numa concepção conservadora Shakespeare em Macbeth propõe a imagem do bom estadista em face do usurpador47 Segundo o crítico Eric Bentley o artista não raro se revela como o rebelde sadio ou como homem não ajustado ao sistema sóciopolítico de sua época Sobretudo o dramaturgo não pode omitirse à tarefa de proporcionar aos espectadores com certa freqüência espetáculos perturbadores que suscitem insatisfação com conformismo Isto porque a ação dramática é por definição construída com conflitos e crises Dias Gomes pertence aos rebeldes sadios aos dramaturgos que produzem com suas obras toques de perturbação O propósito crítico do autor é visível nas nove peças reunidas em um volume nas quais realizase a crítica social e política através de processos dramáticos O Pagador de Promessas e O Santo Inquérito são tragédias quase no sentido pleno do termo pelo menos é isso que tentaremos demonstrar em nossa análise da primeira A Invasão é um quadro naturalista que apresenta um recorte da vida de um grupo humano Odorico o Bem Amado e o Berço do Herói são tragicomédias de forte caráter farsesco sobretudo O Bem 47 ROSENFELD Anatol O Mito e o Herói no Moderno Teatro Brasileiro Col Debates p 56 São Paulo Perspectiva 1996 55 Amado O túnel é uma espécie de parábola política Vamos Soltar os Demônios é uma peça psicológica de desmascaramento segundo Anatol Rosenfeld na qual o autor nos moldes de um drama matrimonial critica precisamente o intelectual que costuma criticar a realidade Também no caso do intelectual a realidade está longe de alcançar o seu sonho A Revolução dos Beatos e Dr Getúlio são peças que se apóiam em tipos tradicionais de brasileiros populares no Bumbameuboi e no enredo e desfile carnavalesco das escolas de samba É característica das obras de Dias Gomes o cunho popular bem acentuado sentese que são peças de uma dramaturgia em favor do povo As peças do autor transpiram vida popular brasileira com uma linguagem saborosa rica em regionalismos expandindose num diálogo espontâneo e comunicativo de grande eficácia cênica O povo simples brasileiro vive chora e ri nas peças de formas tão autênticas que lhes garante identificação nacional Há nas peças do autor a comicidade que às vezes caricatura e engendra personagens típicas com graça e falas populares Mesmo O Pagador de Promessas com seu caráter trágico tem aspectos humorísticos como a situação do jornalista distorcendo as palavras de ZédoBurro e colocando o mesmo como um revolucionário de reforma agrária e contra a exploração do homem pelo homem Ressaltese contudo que essas representações do brasileiro sobretudo do povo simples totalmente inserido nos seus costumes e situações assumem muitas vezes com Dias Gomes significados universais A comicidade porém se abranda e se aprofunda pelo viés humorístico e pela benevolência com que são vistas as fraquezas humanas48 48 ROSENFELD Anatol O Mito e o herói no moderno teatro brasileiro São Paulo Perspectiva 2ª Ed 1996 p 57 56 Como bem diz Anatol Rosenfeld A dramaturgia de Dias Gomes apresenta e analisa em todas as peças um mundo de condições atitudes e tradições fornecedoras de forças mancomunadas com a inércia a estreiteza ou a hipocrisia mundo carregado de pressões e conflitos que tende a suscitar a luta pela liberdade pela emancipação pela dignidade e pela valorização humanas49 Como já mencionado foi logo cedo que Dias Gomes iniciouse na literatura como romancista e dramaturgo mas é só com O Pagador de Promessas que se impôs como um dos autores mais destacados do teatro brasileiro da contemporaneidade Hoje a história de Zédo Burro é bem conhecida pelo povo brasileiro Esse personagem em paga de uma promessa a Iansam Santa Bárbara que salvou seu burro Nicolau atingido por um raio percorre sete léguas com uma enorme cruz a fim de colocála em uma igreja em Salvador junto ao altar da Santa Defrontase no entanto com a resistência decidida do vigário da igreja O conflito se desenvolve com a lógica de cada um ZédoBurro e o Padre o encadeamento rigoroso das cenas levando ao desfecho trágico A unidade de ação tempo e espaço aproximaria a obra da tragédia clássica se o ambiente as personagens populares e a prosa gostosa de marcas regionais não estivessem em desacordo com essa antiga tradição aristocrática Abrimos um parênteses para situar a nossa compreensão da peça a partir das palavras do próprio autor 49 ROSENFELD Anatol O Mito e o herói no moderno teatro Brasileiro São Paulo Perspectiva 2ª ed 1996 p 57 57 O próprio autor Dias Gomes segundo palavras suas impressas no programa do espetáculo do TBC e mais recentemente através de uma mesaredonda teria posto naou inferido na peça razões de ordem políticosocial e resumido no seu depoimento para a televisão o problema do filme como o problema da liberdade Não negamos as condições políticas e sociais que permitiram a existência de um humílimo Zé do Burro tampouco o sincretismo religioso existente na Bahia e outros fatores responsáveis pela eclosão de sua tragédia Apenas negamos a insinuação se é que interpretamos bem as palavras do autor de que vencidas determinadas situações de ordem políticosocial e instaurada a autêntica liberdade do homem não mais haveriam condições para o aparecimento calvário e morte de um Zé do Burro Estamos totalmente em desacordo Na sua expressão local sem dúvida o personagem e a subseqüente intriga deixariam de existir não porém na sua essência A nós o problema se apresenta inerente a um aspecto da condição humana e não a um processo histórico podendo ser transposto para qualquer outro plano ou tempo Seria o problema da absoluta pureza do personagem unívoco devorado pelo cotidiano sem os julgamentos intermediários sem os pequenos elos e pontes de raciocínio totalmente inteiriça ausente de condições para manusear e viver o senso comum Podemos facilmente imaginar um Zé do Burro colocado em um outro extremo cultural o ambiente universitário de um país da Europa por exemplo O excêntrico e ingênuo professor seduzido pela idéia fixa de sua obra de valor ou não não vem ao caso inteiramente fiel a ela lentamente destruído pelo bom senso e o equilíbrio de todo um grupo pela sua intolerância ou incompreensão50 Interessante notar essa distância que separa os dois autores enquanto para Dias Gomes o eixo do conflito dramático em O Pagador de Promessas depende da perspectiva histórica social política e dramática Rosenfeld o interpreta em sua dimensão existencial universalista Em ambos os casos faz sentido pensar na peça como uma tragédia moderna ou como um drama social moderno com caráter trágico Um conflito como este de o Pagador de Promessas pode ser encarado por duas faces Primeiro um pouco de humanidade de compaixão por parte dos representantes da Igreja teria ajudado a resolver a questão segundo o que sobressai como elemento dramático é menos a intolerância do que a desoladora imensa distância que separa no Brasil gente rica e gente pobre gente da cidade e gente do campo Segundo Décio de Almeida Prado51 esta peça oferece um impressionante e fiel testemunho da falta de integração das camadas rurais com a 50 ROSENFELD Anatol op cit p 63 51 PRADO Décio de Almeida In Teatro em Progresso São Paulo Perspectiva 2002 p 171 58 vida dos civilizados ZédoBurro para todos os efeitos não pertence ao mundo dos civilizados Não há diálogo possível entre ele e os cidadãos da cidade Ao se dirigir a palavra a ZédoBurro não deve ser de homem para homem como deveria ser mais de pai para filho de adulto para criança segundo Décio de Almeida Prado A respeito do herói de sua peça o próprio Dias Gomes afirma em nota de abertura ao Pagador de Promessas O Pagador de Promessas nasceu principalmente dessa consciência que tenho de ser explorado e impotente para fazer o uso da liberdade que em princípio me é concedida Da luta que travo com a sociedade quando desejo fazer valer o meu direito de escolha para seguir o meu próprio caminho e não aquele que ela me impõe Do conflito interior que me debato permanentemente sabendo que o preço da minha sobrevivência é a prostituição total ou parcial ZédoBurro faz aquilo que eu desejaria fazer morre para não conceder Não se prostitui E sua morte não é inútil não é um gesto de afirmação individualista porque dá consciência ao povo que carrega o seu cadáver como bandeira52 As obras de Dias Gomes sugerem em termos ficcionais algumas das causas básicas dos movimentos messiânicos de que ele sempre faz uso mostrando não só os lados negativos mas também o que neles se manifesta de energia pureza solidariedade e heroísmo lamentavelmente encaminhados para comportamentos irracionais e desvinculados da realidade O Pagador de Promessas não é contra a igreja ou o Estado diz o próprio autor mas mostra o abismo que há entre as culturas rurais e urbanas Zé do Burro encarna o que há de grande e admirável naquela humanidade espezinhada e ao mesmo tempo a representa em todo o seu primitivismo e atraso em relação 52 DIAS GOMES O Pagador de Promessas In Teatro de Dias Gomes Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1972 p 11 59 aos aspectos de visão citadina do meado do séc XX afigurando comoventes traços humorísticos Aqui cabe um comentário sobre o ponto de vista de Sheilla Diab Maluf Na gênese da formação social brasileira apresentase a idéia de uma unidade fragmentada desde a colonização de natureza ibérica representada por espanhóis e portugueses Teríamos portanto a idéia do múltiplo constituindo o uno decorrente do processo histórico da formação dessa civilização que fundamenta o destino histórico da sociedade brasileira numa relação de forças antagônicas que constitui a duplicidade herdada da civilização ibérica 53 Na atualidade as forças antagônicas subsistem e bem destacadas entre os cidadãos rurais e os letrados das cidades Isso está bem claro na falta de comunicação entre Zé do Burro o padre e a sociedade de Salvador Como já vimos as peças de Dias Gomes sempre mostram questões sociais de maneira bastante efetiva manejando bem as palavras avisando a todos do sofrimento das classes menos favorecidas A Invasão apesar de diferente de O Pagador de Promessas trata de problemas de um grupo de favelados no Rio de Janeiro que perderam os seus barracos no morro em conseqüência de uma enxurrada Não podendo reconstruílos devido à intervenção da polícia segundo ela para prevenir novas calamidades mas para alguns personagens por estar ela mancomunada com interesses de grilagem os favelados invadem um prédio em construção paralisada há vários anos A peça documenta um fato real que se tornou notícia como o caso da Favela do Esqueleto 53 MALUF Sheila Diab AQUINO Ricardo Brgide orgs Maceió EDUFAL e Salvador EDUFBA 2005 p 150 e 151 60 Se observarmos com cuidado todos os dramas do autor enfim têm caráter social Falam sempre do povo simples de seus problemas e sofrimentos causados pelo descaso daqueles que dominam o poder mesmo quando os moldes de construção dramática diferem No caso de A Invasão Ao recorte espacial ao mesmo tempo sociológico corresponde o temporal cerca de oito meses uma fatia da vida atribulada dos favelados O palco simultâneo dá certo cunho narrativo épico à peça visto pressupor um narrador encoberto selecionando momentos em que ilumina este ou aquele apartamento ao contrário da ação una e contínua do drama tradicional ação autoimpulsionada pela lógica interna do encadeamento causal das cenas A peça com efeito não visa a apresentar primordialmente uma ação Retrata uma situação à maneira de muitas peças naturalistas fato comprovado pela estrutura de recorte ou fatia de vida Por isso a peça não tem propriamente começo a invasão da propriedade alheia não é o começo de uma ação e sim a continuação de uma situação anterior essencialmente semelhante apesar de agora ainda mais instável do que antes Tampouco a peça tem fim pois a morte de Mané Gorila o explorador dos favelados não trará nenhuma modificação da situação fundamental A peça poderia em si continuar o que evidentemente não é o caso de O Pagador de Promessas A escolha do prédio invadido em vez do morro para retratar a situação justificase dramaticamente pelo valor demonstrativo e exemplar da intensificação da instabilidade habitual A normalidade é levada paradoxalmente ao extremo processo teatral legítimo Tensões normais de uma existência precária e desprotegida em barracos de que ninguém sabe a quem pertencem administrados por parasitas como Mané Gorila e dos quais os inquilinos podem ser expulsos a qualquer momento por intervenção de forças naturais ou humanas são radicalizadas pela ameaça mais direta de expulsão e se revestem de vigoroso poder comunicativo sem que se rompa a normalidade da situação54 Como nos ensina Décio de Almeida Prado55 a verdadeira dramaturgia nacional surge da consciência crítica acerca da nossa realidade representada nos textos pelos personagens brasileiros que se revelam cada vez mais coerentes a partir da década de 1940 com Nelson Rodrigues quando muitos dramaturgos assumem e buscam salvação pelo popular A dramaturgia de Dias Gomes é a favor do povo Dias Gomes mostra em cada peça sua essa preocupação com os problemas das massas menos favorecidas Com a comédia Odorico O BemAmado voltase à Bahia A peça tem 54 ROSENFELD Anatol op cit p 167168 55 PRADO Décio de Almeida O teatro e o modernismo In Peças pessoas personagens o teatro brasileiro de Procópio Ferreira a Cacilda Becker São Paulo Companhia das Letras 1993 p 1539 61 teor humorístico linguagem saborosa e se situa numa pequena cidade de veraneio do litoral O que desencadeia a ação da comédia é a localização distante do cemitério em outra cidade Os que acompanham o defunto têm três léguas para andar Daí não surpreender que o demagogo Odorico político da espécie de Floro se eleja ao prometer aos eleitores Queremos um cemitério uma necrópole de localização próxima Bom governante minha gente é aquele que governa com os olhos no futuro E o futuro de todos nós é o Campo Santo56 A tragicomédia O Berço do Herói assemelhase em alguns pontos à comédia anterior sobretudo no tema central de se valorizar a morte em vez da vida Reaparece também o típico político agora o Major Chico Manga chefe de uma pequena cidade baiana Eis uma rubrica que o caracteriza Negocista demagogo elegendose à custa da ignorância de uns e da venalidade de outros convicto entretanto de ser credor da gratidão de todos pelas benfeitorias que tem conseguido pela cidade E talvez o seja até certo ponto É dessa classe de políticos bem numerosa aliás entre nós que acha que o relativo bem que fazem os absolve de todo o mal que espalham O que se deve fazer é tirar o maior proveito possível do mal em favor do bem57 Em Odorico é o cemitério que exige um defunto nesta farsa trágica toda a cidade vive de um morto como os urubus da carniça O suposto finado herói da Segunda Guerra Mundial é o motivo do grande progresso da cidade que lhe foi berço cidade que ergueulhe uma estátua e que graças ao filho famoso tornouse centro de indústrias de turismo e vida noturna 56 ROSENFELD Anatol op cit p 70 57 ROSENFELD Anatol op cit p 71 62 Pode parecer paradoxal que o autor de personagens como ZédoBurro e Branca Dias de O Santo Inquérito critique nesta peça a idéia do herói Mas podese entender que Dias Gomes não é contra o herói em geral mas apenas contra certo tipo de herói É possível que se possa distinguir em suas peças duas categorias de heróis o primeiro poderia ser chamado herói representativo por representar exemplarmente pela sua opção e ação a grandeza humana o segundo pode ser definido como herói operativo já que lhe são atribuídas individualmente ações de grande importância e grande alcance58 Zé do Burro personagem principal de O Pagador de Promessas é com certeza um herói representativo mesmo sem lhe faltar potencialidades operativas No entanto estas não podem se criar na cidade moderna precisamente por ele ser um herói de traços míticos provindo de um mundo de padrões mentais arcaicos remotamente comparável ao mítico tempo dos heróis descrito por Rosenfeld in O Mito e o herói no moderno teatro Brasileiro espécie de far west ou terra de cangaceiros O herói mítico é responsável pela totalidade da sua ação pelos meios pelos fins e pela execução59 O problema de ZédoBurro é dele e só dele Completamente solitário Ele não pode delegálo a ninguém A sua responsabilidade não pode ser distribuída entre muitos como ocorre na cidade onde as múltiplas mediações fazem com que o mérito seja de muitos da mesma forma como a culpa Da sua consciência de herói de traços primitivos na força admirável de ZédoBurro enquanto representativo das virtualidades humanas mostrando integridade mantida com 58 DIAS GOMES Alfredo de Freitas O Pagador de Promessas In Teatro de Dias Gomes Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1972 p 11 59 ROSENFELD Anatol op cit p 72 e 73 63 firmeza contra todos os obstáculos percebese também a sua fraqueza operativa no mundo moderno Após esta peça Dias Gomes diz Rosenfeld criou uma heroína representativa como Branca Dias confirmando que coragem caráter e dignidade são qualidades fundamentais desta personagem poética num grande recuo temporal Inquisição mais ou menos em 1750 O Santo Inquérito é uma tragédia singela de uma moça ingênua de profunda fé cristã cuja sinceridade e inocência em choque com o dogma rígido com a linguagem hermética e as suspeitas sumosas da Inquisição acabam envolvendoa em malentendidos que lhe agravam cada vez mais a situação precária de neta de cristãos novos60 Dr Getúlio sua vida e sua glória recorre à forma teatral do enredo das escolas de samba assim como A Revolução dos Beatos se inspira no bailado popular do BoiBumbá Dr Getúlio sua vida sua glória caracterizase por uma forma teatral genuinamente popular autenticamente brasileira embora já existisse desde a antiguidade tipos semelhantes de teatros de desfile e procissão Dias Gomes e Ferreira Gullar formulam de modo claro seu propósito Inicialmente tínhamos um tema e um tema bem brasileiro Precisávamos desenvolvêlo de uma forma bem brasileira e popular O tema pedia isso A presença do povo na saga getuliana quer como objeto quer como sujeito quer oprimido quer revoltado quer acusando quer idolatrando era de tal ordem que não havia como recusar a esse povo os papéis de narrador e personagem A forma de enredo possibilitava ambas as coisas61 A saga de Vargas se faz representar por uma Escola de Samba projetando a história brasileira recente muita complexa a partir da visão mítica e singela do povo Mais uma vez se pode reconhecer o caráter social dos dramas de Dias Gomes Com um aspecto ligeiramente absurdo manifesto na triunfal abolição das regras da verossimilhança a pequena peça mostra 60 ROSENFELD Anatol O Mito e o herói no moderno teatro brasileiro p 76 São Paulo Perspectiva 1996 61 DIAS GOMES apud ROSENFELD O Mito e o herói no moderno teatro Brasileiro p 79 64 que o homem é um ser extremamente adaptável flexível mesmo nas circunstâncias mais extravagantes da vida cotidiana Outra significante peça de Dias Gomes é Vamos Soltar os Demônios Diz Rosenfeld que o autor parece ter se inspirado em certos motivos de Quem tem medo de Virgínia Woolf de Eduard Albee Mas os motivos são dinamizados de modo autônomo e adaptados às atualidades brasileiras Vamos Soltar os Demônios como as outras peças de Dias Gomes explora questões sociais e políticas neste caso há uma certa medida já que pela análise psicológica tão acentuada os enfoques sociais e políticos de modo geral ficam em segundo plano Sérgio personagem principal desta peça é um intelectual contemporâneo é exatamente o oposto de ZédoBurro que é ingênuo e representante dos grandes contrastes culturais entre habitantes das cidades e os tipicamente rurais O fim é insólito e teatralmente sugestivo jogando com alusões parabólicas mas tampouco deixa de inspirar dúvidas Se a peça lembra em vários dos seus trechos uma Walpurgisnacht isto é uma noite de bruxaria e demônios a recitação do Apocalipse repetida como um ritual vem a ser o exorcismo parafraseando em ambos os casos a peça de Albee A libertação e purificação conjugamse com o ato sexual e a catarse do orgasmo O ato do amor deve ser um momento de revelação entre dois seres humanos Dele depende a criação da vida e através dele alcançamos o prazer carnal aquele estado de bemaventurança que nos reconcilia com Deus e é a derrota das bestas do Apocalipse Por maior que seja a transcendência atribuída ao ato sexual enquanto verdadeiramente amoroso é difícil admitir que tenha tamanha relevância no campo sugerido pelo intelectual Isso sem deixar de respeitar as complexas teorias atuais que põem em referência sexo e estrutura social sexo e luta de classes sexo e política Em todo o caso sempre se pode esperar uma dose de ironia tanto por parte do personagem como por parte do autor que o criou62 62 ROSENFELD Anatol op cit p 85 65 A peça O Túnel mostra Dias Gomes ainda na plena posse de sua força criativa Contudo para alguns críticos o andar desta peça não é muito favorável ao tipo de teatro correspondente ao talento do autor Na verdade alguns críticos exageram em considerar Dias Gomes como autor de uma única peça O lance excepcional de O Pagador de Promessas Porém as análises das peças mostram que esse tipo de crítica não se justifica mesmo com altos e baixos a obra do autor se apresenta repleta de esplêndidas criações cheias de humanidades exemplares no apogeu e na miséria As obras se distinguem pela imaginação rica a variedade de caracteres vivos com um lado bastante emocional indo dos comoventes destinos de ZédoBurro e Branca Dias ao riso amargo de O Berço do Herói e Dr Getúlio e à gostosa gargalhada de Odorico Aberta ao sublime sensível à grandeza trágica a obra recorre ao mesmo tempo aos variados enfoques do humor do sarcasmo e da ironia para lidar com os aspectos frágeis ou menos nobres da espécie humana63 2 Misticismo Popular e Crítica Social na Obra de Dias Gomes Analisar as peças teatrais para obter uma visão de certas realidades brasileiras diz Rosenfeld tem base na crença de que a ficção reflete de algum modo a realidade As duas peças O Pagador de Promessas e A Revolução dos Beatos são obviamente obras ficcionais embora a segunda se refira em parte a personalidades e fatos 63 ROSENFELD Anatol op cit p 85 66 históricos Porém as personalidades históricas na medida que se defrontam com outras imaginárias passam também ao campo ficcional e passam a ser fictícias por desempenharem papéis num mundo criado pelo autor mundo que não é rigorosamente histórico não é real nem autônomo nem independente do texto dramático Segundo Rosenfeld Se por razões ontológicas e epistemológicas o ser de ficção se distingue claramente de outros modos e de conhecimentos podese acusar um repórter ou um historiador de enunciados errados ou falsos ou mesmo de mentira e fraude Mas acusações desse tipo são absurdas em face da ficção mais ainda na ficção teatral em que só falam personagens e não um narrador cujo conteúdo não tem que obrigatoriamente corresponder à realidade referida mas tem a função de caracterizar as personagens e de suscitar a ação dramática desempenhar a função estética64 Isto não exclui que o autor nos comunique o seu ponto de vista quer através do contexto total da peça quer através de um narrador explícito Essa comunicação reduzida a um teor puramente cognoscitivo em termos filosóficos ou científicos é geralmente muito pobre65 Também não se pode exigir da ficção mesmo da realista uma igualdade ponto a ponto com a realidade Mesmo a ficção dita realista tem roupagem personagens fictícias nuances inventadas pelo autor ou narrador Esse mundo de ficção nunca pode ser almejado pelo historiador pois a intenção dele é darnos a própria realidade dos fatos A ficção pode proporcionarnos uma imagem viva forte e colorida embora indireta da realidade66 Ela nos leva a viver imaginativamente com uma intensidade que nenhuma leitura científica nos possibilitaria mas ela tenderá enquanto ficção a comunicarnos uma 64 ROSENFELD Anatol op cit p 88 65 ROSENFELD Anatol op cit p 88 e 89 66 ROSENFELD Anatol op cit p 89 67 interpretação da realidade às vezes trágica às vezes polêmica satírica ou humanística por meio de experiências vividas É preciso acrescentar todavia que a ficção terá valor de documentação somente quando conferida com dados científicos com os resultados da pesquisa dedicada ao mundo que na obra de ficção é proposta em termos imaginários A ficção transmite uma experiência muitas vezes subjetiva embora por isso mesmo intensa com forte cunho de verdade de vida Apresentanos aspectos parciais selecionados perspectivas pessoais da realidade Já vimos que como arte ela não pode ser valorizada em função da verdade científica Os critérios de valorização têm de ser estéticos e nessa valorização o valor cognoscitivo se subordina a outros momentos Isso porém não impede que se use a obra fictícia como documentação conquanto com a consciência um tanto atribulada É perfeitamente possível que obras esteticamente menos valiosas tenham valor de documentação superior ao de obras primas ainda que estas certamente apresentem uma visão mais profunda e coerente da realidade mais apta a ser vivida intensamente pelo apreciador Neste sentido a ficção enriquecerá os dados da ciência vitalizandoos impregnandoos de plasticidade e de matrizes emocionais como de outro lado os dados da ciência ampliarão e darão maior precisão crítica à apreensão e apreciação da obra67 Por tudo que temos analisado Dias Gomes é um excelente conhecedor da realidade dramatizada por ele nas suas peças A Revolução dos Beatos e O Pagador de Promessas são pertinentes à cultura brasileira mostrando na segunda o abismo que há entre a cultura da cidade e a do mundo rural Toda esta análise contudo é modesta para relatar o fenômeno do misticismo popular e do fanatismo religioso tal como as peças de Dias Gomes o apresentam Se O Pagador de Promessas nos sugere o misticismo popular através do diálogo e do comportamento do herói respaldado por alguns elementos subjacentes A Revolução dos Beatos ocorre no centro mesmo do fanatismo religioso em Juazeiro A ação se passa em 1920 quando o Padre Cícero tinha cerca de 75 anos Ainda com vigor e força carismática atraindo inúmeras romarias de 67 ROSENFELD Anatol p 89 68 lugares longínquos reunindo em Juazeiro massas ansiosas de amparo sobrenatural e cura milagrosa68 O mundo que Dias Gomes nos apresenta nas duas peças referidas é um mundo estranho para o cidadão da cidade mais ou menos integrado na civilização ocidental do século XX O autor é habilidoso ao convidarnos para viver o drama de ZédoBurro o herói de O Pagador de Promessas e dos beatos de Juazeiro É convincente pois ninguém ignora que a promessa e o respectivo pagamento depois de atendida a súplica é um costume antigo e conhecido por todos Mas para Rosenfeld A promessa de ZédoBurro é cercada de circunstâncias tão particulares e estranhas que o autor impõe à nossa consciência um imenso salto para participar da consciência de Zé Rosenfeld chega a dizer que este salto é maior do que aquele que nos faz identificarmos com Antígone heroína de uma peça escrita há cerca de 2500 anos na Grécia antiga que arrisca a vida para enterrar seu irmão do que Zé ao sacrificar a vida para levar a cruz dentro da igreja pagando assim a dívida a Santa Bárbara ou melhor Iansan deusa africana do raio que feriu Nicolau o burro de Zé do Burro que fez a promessa pela cura e salvação de seu animal de estimação Vejamos o que nos diz Anatol Rosenfeld 68 ROSENFELD Anatol op cit p 6364 69 Verificase e talvez seja isso o tema fundamental da peça a falta absoluta de comunicação entre os dois Brasis Zé e a gente da cidade falam como se vivessem em planetas diversos A situação lembra a do poema de Mário de Andrade buscando sem êxito a palavra certa para se dirigir ao seringueiro Décio de Almeida Prado salienta com precisão que Zé entra em choque não somente contra a Igreja com cujo expoente se desentende sem reconciliação possível mas é toda a cidade de Salvador com as suas prostitutas e os seus rufiões um deles lhe desencaminha a esposa os seus jornalistas e os seus negociantes interesseiros os seus delegados e os seus padres bem falantes que ele não consegue compreender O jornalista transforma as convicções mais profundas do herói em manchetes Zé salienta Décio de Almeida Prado não sabe raciocinar nos termos universais e abstratos da cidade Apenas sente intui Podese acrescentar que Zé vive de fato num estágio mágicomítico A promessa não é para ele um símbolo um dever assumido uma prova espiritual autoimposta É realidade material plena como um negócio É toma lá dá cá É uma coisa real segundo os padrões de um mundo arcaico em que se pode destruir uma pessoa atingindo o que a representa o nome escrito a sombra ou a impressão do corpo deixada no leito É tão real como a sopa de lentilhas e a bênção por assim dizer material de Isaac que funciona como uma injeção e cuja força mágica se transmite como um tesouro de geração a geração69 Bem se vê que Zé vive num mundo onde a palavra é a própria realidade e não representação simbólica dela É tão intransigente quanto o Padre Olavo diferenciandose deste contudo justamente por estar inserido em uma realidade mítica enquanto o esclarecido padre advoga suas razões à luz de um dogmatismo racionalista A respeito de O Pagador de Promessas Décio de Almeida Prado nos diz ainda o seguinte Um conflito como este pode ser encarado por duas faces Por um lado não se discute como deixa entrever Dias Gomes que um pouco de simples humanidade de compreensão psicológica por parte dos representantes da Igreja teria ajudado a contornar a questão Por outro todavia o que sobressai como elemento dramático é menos a intolerância do que a desoladora distância que separa no Brasil gente rica e gente pobre gente da cidade e gente do campo Não queremos empregar a palavra mágica alienação que vem ultimamente servindo de diagnóstico e panacéia para todas as nossas enfermidades políticas e artísticas basta pronunciála e o mal fica logo esconjurado é inegável porém que O Pagador de Promessas oferece um impressionante e fiel testemunho da falta de integração das camadas rurais em nossa vida de civilizados Zé do Burro para todos os efeitos não pertence ao nosso universo Entre ele e nós quase não há diálogo possível quando condescendemos em dirigirlhe a palavra não é de homem para homem como deveria ser mas de pai para filho de adulto para criança Esse parecenos ser o sentido político da peça70 69 ROSENFELD Anatol op cit p 91 70 PRADO Décio de Almeida O Pagador de Promessas In Teatro em Progresso p 171 São Paulo Perspectiva 2002 70 Notase com as palavras de Prado quando transcreve idéias de Dias Gomes que há um plano social e outro ainda mais importante na obra do dramaturgo que é o humano Nesta peça vêse que a Igreja não deixa de ter razão Para o catolicismo o sincretismo mistura de religiões é inaceitável Ao ser chamado o Monsenhor superior hierárquico para solucionar o problema este quis encontrar soluções conciliatórias mas Zé do Burro é que permaneceu intransigente fiel aos seus próprios propósitos O próprio Dias Gomes advertenos de que o drama é um protesto contra todas as formas de intolerância e não apenas a religiosa Mas existem outros ângulos sob os quais considerar a peça Para começar a perspectiva de Zé do Burro em o Pagador de Promessas não entra em choque somente contra a Igreja É toda a cidade de Salvador com as suas prostitutas e os seus rufiões os seus jornalistas e os seus negociantes interesseiros os seus delegados e os seus padres bem falantes que ele tem imensa dificuldade de compreender O Pagador de Promessas oferece um impressionante e real testemunho da falta de integração das camadas rurais em nossa vida de civilizados Notase que Zé do Burro em sua ingenuidade não pertence ao universo citadino no qual ele interage As tramas dos dramas de Dias Gomes são mesmo polêmicas mas não irreais pois falam de acontecimentos que mesmo ficcionais são verossímeis Porém mostram o terrível abismo que há entre os letrados e moradores das cidades e os sacrificados habitantes das 71 zonas rurais Quanto às questões religiosas a religiosidade do brasileiro é uma constante nas obras de Dias Gomes assim como os conflitos sociais Vejamos o que diz o próprio Dias Gomes a respeito de seus trabalhos e suas dificuldades com o sistema Comentando seu esquema de trabalho em telenovelas o autor poderá ilustrar com suas próprias palavras seu compromisso com uma arte do povo para o povo pelo povo daí inclusive sua devoção às telenovelas pelo seu largo alcance às massas Admiro as pessoas organizadas mas eu não sou Não estabeleço início ou fim para um trabalho que escrevo Antes de tudo faço a pesquisa e a criação das linhas gerais da trama estabelecendo o estilo e o ambiente que ela terá Surge daí uma sinopse Entretanto dentro dessas linhas gerais não estão previstos todos os personagens ou o fim da história Muita coisa pode mudar e tudo pode ser criado À proporção que escrevo os capítulos novas idéias vão surgindo e nem mesmo eu sei o que virá depois Contudo não se pode parar não existe a possibilidade de ficar esperando um momento de inspiração para um autor de novelas pois ele precisa escrever um capítulo por dia Aliás é necessário modificar essas condições de trabalho Se o autor continuar a ter que escrever seis capítulos por semana e esses capítulos continuarem a ser gravados a toque de caixa todo o esforço de um bom texto esbarrará nessa limitação Isso não diminui a nossa capacidade de criação mas diminui a qualidade dessa criação A telenovela devia ser uma forma nova de arte dramática adaptada ao seu tempo e decorrente de uma evolução tecnológica cada vez mais surpreendente Uma arte popular de massas com uma linguagem acessível a todas as camadas sociais 71 Concluise pois que a dramaturgia de Dias Gomes seja a teatral ou a televisiva independentemente de uma maior ou menor oportunidade para lapidação dos textos cumpre se sempre em função de um duplo objetivo falar do povo e esclarecer o povo É sob essa perspectiva tratando da tragédia ocorrida a um pobre e humilde camponês que se constrói a trama de O Pagador de Promessas 71 DIAS GOMES Entrevista à Folha de São Paulo 1990 entrevistador Edigard Ribeiro de Amorim 72 III O Pagador de Promessas um drama trágico em tempos modernos Cada etapa de evolução da humanidade cria a sua língua e sua maneira de ver e ler o mundo Antonio Candido O Pagador de Promessas é um texto complexo Embora construído de maneira a traduzir em sua própria forma e linguagem a simplicidade que constitui e move seu protagonista em direção ao trágico a estrutura da peça entrelaça categorias dramáticas num jogo intrincado que produz níveis diversos de significação Podemos iniciar a análise deste drama social pela primeira rubrica feita pelo próprio Dias Gomes para introduzir o primeiro ato composto de 2 quadros Devem ser aproximadamente quatro e meia da manhã Tanto a igreja como a vendola estão com suas portas cerradas Vem de longe o som dos atabaques dum candomblé distante no toque de Iansan Decorrem alguns segundos até que Zédo Burro surja pela rua da direita carregando nas costas uma enorme e pesada cruz de madeira A passos lentos cansado entra na praça seguido de Rosa sua mulher Ele é um homem ainda moço de 30 anos presumíveis magro de estatura média Seu olhar é morto contemplativo Suas feições transmitem bondade tolerância e há em seu rosto um quê de infantilidade Seus gestos são lentos preguiçosos bem como sua maneira de falar Tem barba de dois ou três dias e trajase decentemente embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira Rosa parece pouco ter de comum com ele É uma bela mulher embora seus traços sejam um tanto grosseiros tal como suas maneiras Ao contrário do marido tem sangue quente É agressiva em seu sexy revelando logo à primeira vista uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar Vestese como uma provinciana que vem à cidade mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos que possui ZédoBurro vai até o centro da praça e aí pousa a sua cruz equilibrandoa na base e num dos braços como um cavalete Está exausto Enxuga o suor da testa72 Dias Gomes dá às rubricas do drama uma função de destaque Muitas são longas principalmente as que abrem os atos e também os quadros Além de projetarem os cenários 72 DIAS GOMES Alfredo de Freitas O pagador de promessas 35ª edição Rio de Janeiro Ediouro Publicações S A 2001 p 1314 73 fornecem indicações sobre movimentos cênicos gestos e falas dos atores apresentando também detalhes do caráter das personagens com descrições físicas e psicológicas que assumem no texto função dramática essencial ao desenvolvimento da ação As rubricas podem ser consideradas como elemento dos dramas modernos visto que nas tragédias clássicas eram desconhecidas A tessitura dramática da peça é como dito anteriormente complexa mas sua trama se deixa resumir num relato simples cujo eixo central se constrói a partir das ações e reações de ZédoBurro um homem da zona rural da Bahia que faz uma promessa para que seu burro de nome Nicolau fique curado de ferimentos causados pela queda de um raio O burro se cura A tragédia se anuncia A promessa feita pelo protagonista ZédoBurro consistia em distribuir parte de seu sítio com trabalhadores pobres e carregar uma cruz muito pesada até a Igreja de Santa Bárbara em Salvador ZédoBurro decide pagar rigorosamente o prometido Divide parte de seu sítio com agricultores pobres e constrói uma enorme cruz partindo com sua esposa Rosa para Salvador um percurso de sete léguas passam duas noites sem dormir e chegam finalmente à capital baiana às quatro e meia da manhã do dia de Santa Bárbara Muito cansados encontram as portas da igreja ainda fechadas e ficam esperando que sejam abertas Nesse ínterim Rosa é seduzida por Bonitão um cafetão daquelas paragens O padre Olavo ao ser informado de que a promessa de ZédoBurro havia sido feita num terreiro de umbanda recusase radicalmente a recebêlo em sua igreja Se o padre é irredutível Zé 74 também o é em sua crença não desiste da obrigação religiosa Espera o dia inteiro na praça a fim de que o padre resolva deixálo entrar conforme sua promessa A presença daquele camponês chama atenção por ser estranho ao meio e atrai uma gama de curiosos oportunistas e exploradores O padre Olavo se sente ameaçado pela situação derivada da presença daquele homem e pede reforço policial Os capoeiras simpáticos à causa do sertanejo resolvem defendêlo enfrentando a polícia quando esta procura prendêlo Na confusão o herói é atingido por uma bala e cai morto Os capoeiras estendem seu corpo na cruz e o introduzem na igreja de Santa Bárbara sem que o padre e o sacristão possam fazer nada Tal como anunciado na primeira rubrica a ação vai mostrar que Rosa e ZédoBurro são mesmo muito diferentes embora procedam de um mesmo meio social e formem um casal Enquanto ele acha que a promessa deve ser cumprida à risca para ela o que foi feito até aquele momento é suficiente Enquanto ele permanece inabalável em sua espera à porta da igreja ela se deixa levar pela sedução de Bonitão A ação vai finalmente confirmar um contraste fundamental entre os dois personagens enquanto ele é determinado e intransigente em seu ideal o que o leva a um fim trágico ela oscila em relação aos seus valores é insegura defende o marido mas não resiste a seu oposto o Bonitão ficando assim entre o desejo e o remorso As tragédias conseguem seu efeito catártico devido à empatia estratégia estabelecida para envolver o leitor ou espectador com o protagonista da ação que se revelará trágica O dramaturgo consolida esse propósito utilizandose de diversos meios por exemplo ao 75 descrever ZédoBurro como homem simples de bom caráter exausto após tão grande sacrifício de conduzir por sete léguas uma cruz tão pesada quanto a de Cristo Essa simplicidade ingênua de Zé ganha ainda maior significação empática quando a peça o faz interagir com outros personagens que o traem o desprezam ou humilham Nesse sentido o próprio contraste entre o seu caráter e o de Rosa assim como a traição da própria esposa conferem empatia ao personagem central criando ainda uma relação de conflito que não deixa de ser significativa para o desenrolar da ação Contudo o trágico nesse drama acontece com bastante eficácia na representação do conflito central que não é o conflito amoroso entre Zé e Rosa mas um conflito religioso A recusa do sincretismo por parte da Igreja Católica aparece como efetivo pano de fundo Logo se percebe que o que move o Padre Olavo a impedir o pagamento da promessa diz respeito ao abismo que separa as manifestações populares das formas ideológicas das elites Notese contudo que a ação da peça não recebe um tratamento maniqueísta não se trata exatamente da luta do bem contra o mal Cada indivíduo em ação no conflito interage a partir de suas próprias premissas que não podem ser desvinculadas dos círculos sociais ou das instituições que representam E mais embora as razões de cada parte se justifiquem devese levar em conta a dificuldade de comunicação entre elas o grande abismo que as separa barreira que se pode sentir com muita nitidez comparandose a linguagem do camponês Zé com articulações muito simples e mal manejadas à linguagem culta do Padre Olavo É assim que se gera um 76 conflito que se arrasta até o fim da peça O mecanismo trágico da peça sendo impulsionado de um lado pela ação ingênua de ZédoBurro de outro pela intolerância do padre cada postura estando respaldada em fatores de ordem social presentes na trama Destaquese nesse drama social a atenção concedida pelo dramaturgo a uma categoria básica das tragédias clássicas a unidade de ação Tudo acontece em torno do protagonista do começo até o fim da peça sem desvio do foco da ação Assim como há unidade de ação as categorias de tempo e espaço também são respeitadas Todo o drama com suas ações acontece em um só dia num único lugar na frente da igreja de Santa Bárbara em Salvador Essa observância às três unidades menos que um procedimento de obediência a regras clássicas é uma forma bastante efetiva de produzir concentração de efeitos uma estratégia essencial à construção do universo dramático Notese ainda o forte investimento na verossimilhança O PP põe em movimento uma situação crível possível de acontecer em nossa sociedade estabelecida sob grandes contrastes A tragédia é um gênero antigo que ainda subsiste na literatura dos tempos modernos apresentandose em sua dimensão universal por tratar de problemas de flagelo humano mas projetandose também em elementos formais estruturais embora inserindo camadas históricas que desvelam o contexto social no qual o drama trágico ocorre O drama moderno o PP apresenta ainda outra característica formal da tragédia antiga o início in medias res ou seja começa num ponto estratégico em meio às coisas importantes como as tragédias A ação começa quando Zé do Burro já está na frente da igreja com a cruz para oferecer a Santa 77 Bárbara como pagamento da promessa que fez pela saúde do seu burro Nicolau daí em diante assuntos passados como a doença do burro causada por um raio e a divisão das terras de Zé do Burro com agricultores pobres são recuperadas através de estratégias retrospectivas como flashback Interessante é notar que esse artifício não apenas contribui para a economia temporal da trama mas torna a causa do conflito trágico impossível de ser removida já que a promessa foi feita num tempo anterior à ação representada em cena Já entendemos que ZédoBurro é portador de qualidades como a pureza e a inocência num mundo cheio de truques e artimanhas que excluem os indivíduos que possuem tais qualidades Zé é um homem que para cumprir uma promessa divide seu sítio com lavradores pobres e carrega uma cruz no percurso de sete léguas com o objetivo de depositála no interior de uma igreja Como o padre não lhe permite o ingresso na igreja ZédoBurro obstinase em permanecer diante da porta na esperança de que se convençam de seu santo propósito O conflito religioso produz diversos marcos de significação social e literária A promessa fora feita a Iansan figura de crendice popular que embora corresponda à Santa Bárbara não participa exatamente da biografia dos santos cristãos Projetase assim um primeiro aspecto dos contrastes tão explorados na peça O incidente criado assume com o correr das horas as proporções da cidade e o pacato ZédoBurro tornase vítima de uma tragédia tanto no sentido cotidiano e midiático das notas policiais da imprensa como no sentido técnico dado ao gênero teatral Uma bala precipitada liquidao ao fim do conflito No 78 mesmo espírito irônico manipulado pelos trágicos gregos ZédoBurro que não conseguira entrar vivo na igreja é transportado morto ao seu interior em cima da cruz que pretendera carregar até o altar Mas é natural que se indague por que o herói fez tão estranha promessa Por que teima em cumprila até o fim apesar de ter sido desobrigado por um ministro da Igreja A resposta espantaria talvez pela simplicidade ZédoBurro quer agradecer a cura de Nicolau Quem é Nicolau Um burro seu companheiro dileto que não o largava hora nenhuma do dia ou da noite ZédoBurro é homem primário simplório até natural do sertão da Bahia e pagando uma promessa numa igreja de Salvador Um homem portador de muita dignidade coragem e firmeza em seus propósitos Não há contudo pedantismo em suas reações de criatura essencialmente popular alheia a raciocínios mais complexos Sua psicologia se define no conflito dramático pela crença na intervenção sobrenatural que não permite recuo da parte dele tornandoo ao mesmo tempo heróico e frágil O autor Dias Gomes joga muito bem com a falta de defesa do herói forjando uma situação que rapidamente se encaminha para outros interesses mostrando a desproteção de um homem num mundo governado por forças que lhe são superiores Aí está implicado certamente o próprio conceito de tragédia Estranhamente são Rosa sua mulher e o Padre que pela investidura religiosa deveria compreendêlo melhor que traçam o caminho desastroso de ZédoBurro Os outros co atores embora assumindo funções secundárias acabam por sufocar o protagonista Não 79 tivesse Rosa entrado no mecanismo corrupto da cidade defenderia o marido Se o Padre Olavo esquecesse um pouco os preceitos teológicos e se inspirasse de fato na caridade cristã evitaria que se consumasse a catástrofe Daí se entende que O PP constitui uma crítica ao formalismo clerical que coloca sob uma mesma rubrica problemas tão diferentes Já vimos em nossa fundamentação teórica como segundo Hegel um conflito será tão mais trágico quanto mais as partes nele envolvidas tenham igualmente razões legítimas Diante do conflito entre o padre e o camponês podese deduzir que os dois lados não deixam de ter suas razões Do ponto de vista católico a mistura de religiões é inadmissível Para ZédoBurro retroceder e desistir do cumprimento da promessa é algo impensável não pode falhar com a santa que o atendeu Há contudo como em toda tragédia um momento para deliberação que poderia afastar o herói da catástrofe Em toda grande tragédia existe sempre um instante de deliberação ética que permitiria suspender o trágico Por exemplo no Édipo Rei de Sófocles o herói é instado diversas vezes a interromper sua investigação sobre o assassino de Laio na Antígona também de Sófocles Creonte é alertado para a injustiça que irá cometer ao condenar Antígona na Medéia de Eurípedes o coro pede à heroína que desista de matar os filhos O problema é que esses heróis justamente pelo caráter que assumem nas peças jamais retrocedem Ou seja aquilo mesmo que os torna grandes provoca seus erros trágicos Em O PP a igreja representada pelo Monsenhor superior hierárquico chamado para resolver a disputa procura fazer concessões ao oferecer soluções conciliatórias ZédoBurro 80 é que as rejeita cometendo assim um erro trágico uma hamartia como nas tragédias gregas Para ele uma promessa é uma promessa que não pode ser quebrada sob qualquer circunstância Numa análise simplista talvez seja ele o intransigente o fanático o intolerante não os homens da cidade que são acostumados a negociar e mudar de opinião Contudo essa intransigência é justamente o que o torna digno e heróico Por trás de sua bondade e humildade há uma grande convicção uma certeza interior duros como uma rocha firme Voltando às rubricas há nelas muitas descrições de personagens secundários da trama mas nenhuma é tão longa quanto a que apresenta Marli prostituta e Bonitão cafetão Vejamos a descrição a seguir ZÉ Então Rosa ajeitase da melhor maneira possível no degrau enquanto ZédoBurro não menos cansado do que ela faz um esforço sobrehumano para não adormecer Cochila montando guarda à sua cruz Subitamente irrompem na praça Marli e Bonitão Ela tem na realidade vinte e oito anos mas aparenta mais dez Pintase com algum exagero mas mesmo assim não consegue esconder a tez amarelo esverdeada Possui alguns traços de uma beleza doentia uma beleza triste e suicida Usa um vestido muito curto e decotado já um tanto gasto e fora de moda mas ainda de bom efeito visual Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertarse duma tirania que no entanto é necessária ao seu equilíbrio psíquico a exploração de que é vítima por parte de Bonitão vem em parte satisfazer um instinto maternal frustrado Há em seu amor e em seu aviltamento em sua degradação voluntária muito de sacrifício maternal ao qual não falta inclusive um certo orgulho Bonitão é insensível a tudo isso Ele é frio e brutal em sua profissão Encara a exploração a que submete Marli e outras mulheres como um direito que lhe assiste ou melhor um dom que a natureza lhe concedeu juntamente com seus atributos físicos Em seu entender sua beleza máscula e seu vigor sexual aliados a um direito natural de subsistir justificam plenamente seu modo de vida É de estatura um pouco acima da média forte e de pele trigueira amulatada A ascendência negra é visível embora os cabelos sejam lisos reluzentes de gomalina e os traços regulares com exceção dos lábios grossos e sensuais e das narinas um tanto dilatadas Vestese sempre de branco colarinho alto sapatos de duas cores Descem a ladeira ela na frente a passos rápidos Ele a segue como se viessem já de uma discussão73 73 DIAS GOMES op cit p 17 81 Estas são as primeiras personagens que veem ZédoBurro e Rosa sua mulher na frente da igreja de Santa Bárbara antes do amanhecer naquele fatídico dia em que se consumou a tragédia de ZédoBurro O diálogo com os dois foi longo Sobretudo com Bonitão que não perdeu tempo em arquitetar a sedução de Rosa fazendose de solidário com a situação dos dois ZédoBurro e Rosa tem o pudor a timidez as dificuldades de gestos e de palavras das pessoas do campo Os habitantes da cidade demonstram ao contrário vários graus de desembaraço da simples desenvoltura ao cinismo Daí formase um quadro social de grande brilho que realça ainda mais a simplicidade e sinceridade do protagonista O primeiro quadro do primeiro ato quando ainda é madrugada desenvolvese em torno dos dois protagonistas e Marli e o rufião Bonitão Interessante é notar como enquanto num primeiro momento ZédoBurro interage com personagens representativos do pecado da vida mundana no segundo quadro do primeiro ato é que surgem a beata o sacristão e o padre Olavo ou seja personagens representativos da salvação do perdão da santidade ZédoBurro não pertence contudo a nenhum desses mundos nem se define como pecador nem como santo Ajustase bem à definição aristotélica de herói trágico como ser que nem é eminentemente bom nem mau embora propenda mais para o bem Para Aristóteles essa caracterização é a mais comovente porque é a que permite maior identificação do público ao herói 82 Como se pode ver há muitas camadas de significação entranhadas na construção da trama Vale a pena então acompanhar o desenvolvimento da ação de forma mais detida atentando para elementos de composição dramática implicados nas rubricas e nas falas dos personagens Só uma análise que focalize detalhes pode dar uma visão mais nítida da riqueza do texto e da profundidade de sua dimensão trágica Observese por exemplo como se representa no texto a disparidade entre a posição de ZédoBurro e a do Padre Olavo O conflito estabelecido em termos formais estruturais tornase ainda mais acentuado quando se considera a linguagem e o pensamento implicados nas ações dos dois personagens Vejamos o diálogo abaixo PADRE Explodindo Não é Santa Bárbara Santa Bárbara é uma santa católica O senhor foi a um ritual fetichista Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu esse sacrifício ZÉ Não Padre foi a Santa Bárbara Foi até a igreja de Santa Bárbara que prometi vir com a minha cruz E é diante do altar de Santa Bárbara que vou cair de joelhos daqui a pouco pra agradecer o que ela fez por mim PADRE Dá alguns passos de um lado para outro de mão no queixo e por fim detémse diante de ZédoBurro em atitude inquisitorial Muita bem E que pretende fazer depois depois de cumprir a sua promessa ZÉ Não entendeu a pergunta Que pretendo Voltar pra minha roça em paz com a minha consciência e quite com a santa PADRE Só isso ZÉ Só PADRE Tem certeza Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo ZÉ Eu PADRE Sim você que acaba de repetir a Via Crucis sofrendo o martírio de Jesus Você que presunçosamente pretende imitar o Filho de Deus ZÉ Humildemente Padre eu não quis imitar Jesus PADRE 83 Corta terrível Mentira Eu gravei suas palavras Você mesmo disse que prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo ZÉ Sim mas isso PADRE Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda maior ZÉ Qual Padre PADRE A de igualarse ao Filho de Deus ZÉ Não Padre PADRE Por que então repete a Divina Paixão Para salvar a humanidade Não para salvar um burro Pelo trecho do diálogo entre Zé e Padre Olavo notase que o padre está decidido a cumprir o que prometeu nesta igreja você não entra com esta cruz74 É bom notarmos que o padre quer distorcer as intenções de Zé quando pergunta Muito bem E que pretende fazer depois depois de cumprir a sua promessa Depois das respostas despretensiosas de Zé o padre interpela tem certeza Não vai pretender ser olhado como o novo Cristo O padre projeta intenções e conseqüências que não estavam nem de longe no pensamento de ZédoBurro No protagonista o dramaturgo certamente problematiza a liberdade do indivíduo autônomo que é um pressuposto da forma dramática Mesmo que Dias Gomes não diga literalmente que o indivíduo ZédoBurro é desrespeitado na sua liberdade é possível se inferir essa assertiva nas entrelinhas do drama sobretudo se considerarmos que ZédoBurro representa o indivíduo em oposição a forças institucionais e sociais representadas na peça pelo Padre Olavo e outros antagonistas 74 DIAS GOMES In O Pagador de Promessas op cit p 38 84 Estabelecese portanto ali na frente da igreja não apenas uma crise da comunicação entre as partes em questão mas preparase o terreno para o adentramento de outras forças conflituosas na construção da trama Em seu pensamento rude ZédoBurro não consegue entender o que diz o padre que por sua vez não aceita compreender a rudez do pensamento de Zé Do conflito surge a crise pois nem o padre nem o protagonista está disposto a ceder Ao se tornar acirrado o conflito vai chamando atenção de populares à medida que o dia vai amanhecendo e a cidade acordando Mais tarde entram em jogo interesses de propaganda mercantil Nesse caso notase como o misticismo ingênuo de Zé seu despreparo sua credulidade sua confiança são aproveitados ou manipulados por interesses políticos e comerciais Entre a mentalidade de Zé e dos citadinos há um choque que revela e expõe claramente o mundo do nosso herói Não é entendido por ninguém nem entende nada do que ocorre Moço eu acho que o senhor não me entendeu ninguém ainda me entendeu PP p 53 Neste ponto Zé se reconhece só acontece então um comovente momento de anagnorisis o protagonista reconhece sua solidão o descompasso entre seus objetivos simples e a complexa rede de reações que sua intenção provoca característica das antigas tragédias gregas Mais uma vez se constata então elementos da tragédia antiga nessa peça de Dias Gomes Do ponto de vista da estrutura não se pode negar contudo que O PP apresenta os elementos dominantes do drama moderno É uma estrutura em 3 atos os dois primeiros têm dois quadros cada um e o terceiro tem apenas um quadro Além disso põe no centro da cena 85 personagens baixos falando uma linguagem simples e vivenciando conflitos existenciais fortemente arraigados em contradições da ordem social e política Sua composição entretanto remetenos à tradição das grandes tragédias desenvolvendose em um eixo unitário coerente e unificado com princípio meio e fim Em relação aos chamados personagens baixos é possível notar que na ação esses populares são identificados por apelidos Zé do Burro Bonitão Minha Tia Dedé Cospe Rima Mestre Coca Galego da vendola etc Mesmo Rosa um nome próprio parece mais sugestivo de um tipo feminino que de uma identidade É possível afirmar ainda que mesmo os representantes da classe dominante são referidos a partir de seus papéis institucionais o que reforça de um lado o aspecto social e institucional do drama de outro seu caráter trágico Delegado Monsenhor Secreta Repórter e a ausência de nomes próprios mostranos não exatamente a peça como uma tragédia privada mas um drama trágico que ao enlaçar em sua trama representantes do poder do Estado da Igreja e dos meios de comunicação como antagonistas do herói configuram uma situação que desde as origens do drama se apresenta como essencial a um gênero que enquadra a luta do ser no mundo Interessante é que esse anonimato generalizado é ao mesmo tempo índice de ênfase em tipos e instituições sociais históricas e forma de alçar o drama a uma dimensão universal se os opressores são antes tipos que personagens eles representam os opressores de todos os tempos numa leitura alegórica 86 Notese ainda nesse sentido que embora o padre Olavo tenha nome próprio na hora de uma decisão mais efetiva seu poder é insuficiente ele precisa mandar chamar o monsenhor A representação da vida do povo servindose de uma perspectiva trágica numa sociedade de classes utilizada por Dias Gomes no corpus em análise opõese em tudo ao individualismo notável de ZédoBurro Dias Gomes mostra o mundo de Zé com muito cuidado nos pormenores do sincretismo que funde candomblé e religião católica nos aspectos da medicina popular tão importante naquele ambiente pobre campo das atividades dos rezadores o que assustou o Padre Olavo e criou entre ele e Zé um abismo intransponível A essa atmosfera de imaginação mítica pertence também o burro amigo íntimo do dono Zé o considera como seu igual e se refere a ele com um carinho admirável ZédoBurro é como veremos um herói fortemente individualizado e para isto podemos nos reportar a Raymond Williams que nos informa Na tragédia moderna a questão toda da resolução é mais difícil porque as personagens são mais individualizadas A própria justiça é mais abstrata mais fria podendo até mesmo aparecer como a mera contingência de circunstâncias externas promovendo simplesmente dessa forma o choque ou suscitando a piedade A reconciliação quando acontece ocorre de forma freqüente no interior da personagem e será mais complexa e muitas vezes menos satisfatória porque é a personagem em si e desse modo o destino individual que são enfatizados acima da substância ética que a personagem representa75 ZédoBurro é de fato um herói individual ninguém o entende nem mesmo Rosa sua mulher que reclama o tempo todo da situação a que está submetida Contudo o destino que ele cumpre parece transcender o destino individual apresentandose como representação de 75 WILLIAMS Raymond Tragédia Moderna São Paulo Cosac Naify 2002 p 56 87 um herói que nem pode deixar de existir e nem pode escapar ao trágico Ou seja sua força é também sua fraqueza Sobre isto podemos também ver em Hegel A individualização dramática deve ser tão poética tão viva e tão cheia de interesse que nos faça esquecer tudo o que lhe é exterior ou então deve representarse como uma forma exterior que só tem valor pelo geral e pelo espiritual que em si envolve76 As tragédias conseguem seu efeito cartático graças à empatia estratégia construída para o envolvimento do leitor ou espectador com o protagonista Ao descrever Zé como um homem simples de boa índole exausto após uma via crucis o dramaturgo procura viabilizar esse propósito É logo no primeiro quadro do segundo ato o dia amanhecido que começam a aparecer outras personagens como Minha Tia Galego da Vendola e Dedé Cospe Rima que já chega declamando versos populares Vão chegando cada vez mais personagens e todos ficam curiosos com a cena na frente da igreja de Santa Bárbara que permanece fechada A presença do Monsenhor da Imprensa da polícia dos interesses de mercado dá a peça o caráter público da tragédia e sugere uma relativa semelhança com o modelo grego O cenário não podia ser outro teria que ser a cidade sede dos poderes hegemônicos das forças que entram em conflito Notase que a Beata insulta Minha Tia por esta ser devota de Iansan A polícia e os capoeiras não se entendem porque estes infringem a ordem imposta por aqueles Como vimos no primeiro ato Marli é vítima da extorsão do próprio companheiro e este já se mostra interessado em explorar as qualidades de Rosa O galego da vendola torce para que o 76 HEGEL op cit p 406 88 impasse entre Zé e padre Olavo dure muito porque isso favorece seu comércio pelo agrupamento de pessoas O repórter procura manipular Zé e Rosa procurando dar um grande furo de reportagem para o seu jornal O padre Olavo insiste em manter a posição da igreja a história do candomblé lhe parece uma ameaça demoníaca Rosa é seduzida por Bonitão o que não é surpresa seu caráter já nos é dado na rubrica inicial do primeiro ato Não está interessada em cruz nem em promessas para Santa Bárbara ou Iansan ela quer mesmo é viver No entanto ao ceder aos seus impulsos e à provocação de Bonitão sente remorsos pois o casamento em seu mundo é sinônimo de fidelidade Zé se importa com Rosa mas nas circunstâncias em que se encontra seu apego ao burro e à cruz consome todas as suas energias Uma das mais efetivas formas de produzir tensão dramática nessa peça consiste na estratégia explorada pelo dramaturgo na construção de vários diálogos Tratase da capacidade que têm os citadinos de subverter os sentidos do discurso simples de ZédoBurro Os diálogos são elaborados cuidadosamente representando a linguagem e a cultura de cada uma das partes e com notável freqüência apropriamse da fala de Zé para distorcer o sentido de suas palavras Notese por exemplo a esperteza do repórter interessado em destacar seu jornal com uma reportagem diferente e de primeira mão REPÓTER Mas como nasceu a idéia dessa peregrinação As perguntas são feitas a Zédo Burro mas este recusase a respondêlas ROSA Não nasceu idéia nenhuma O burro adoeceu ia morrer ele fez promessa para Santa Bárbara REPÓRTER O burro Que burro ROSA 89 O Nicolau ZÉ Irritado Por quê O senhor também vai achar que o meu burro não vale uma promessa REPÓTER Não de modo algum eu eu apenas não sabia então tudo isso quarenta e dois quilômetros a cruz tudo por causa de um burro Repentinamente antevendo o interesse que despertará a reportagem Fabuloso ROSA E não foi só isso Ele prometeu também repartir o sítio com aquela cambada de preguiçosos ZÉ Que preguiçosos Gente que quer trabalhar e não tem terra REPÓRTER Repartir o sítio digame o senhor é a favor da reforma agrária ZÉ Não entende Reforma agrária Que é isso REPÓRTER É o que o senhor acaba de fazer em seu sítio Redistribuição das terras entre aqueles que não as possuem ZÉ E não estou arrependido moço Fiz a felicidade de um bocado de gente e o que restou pra mim dá e sobra REPÓRTER Toma notas É a favor de reforma agrária ZÉ É bem verdade que se o meu burro não tivesse ficado doente eu não tinha feito isso REPÓRTER Mas e se todos os proprietários de terra fizessem o mesmo Se o governo resolvesse desapropriar as terras e dividilas entre os camponeses ZÉ Ah era muito bem feito Cada um deve trabalhar o que é seu REPÓRTER Anota É contra a exploração do homem pelo homem O senhor pertence a algum partido político77 Pelos diálogos que acabamos de ler é possível sentir como Zé fica acuado sem compreender nem ser compreendido Até Rosa sua esposa demonstra insatisfação quando diz E não é só isso Ele prometeu também repartir o sítio com aquela cambada de preguiçosos Zé está só com sua resistência em entrar na igreja e depositar a cruz só isso O repórter diz Repartir o sítio digame o senhor é a favor da reforma agrária Linguagem e projeto que Zé desconhecia Diz ainda o repórter que sabia manejar as palavras na direção de seus objetivos tomando nota pergunta é contra a exploração do homem pelo 77 DIAS GOMES O Pagador de Promessas Rio de Janeiro Ediouro 35ª ed 2001 p 51 90 homem O senhor pertence a algum partido político78 Há muita diferença entre o pensamento de segundas intenções e sensacionalismo do repórter e a sinceridade de Zé No segundo quadro do segundo ato surge MestreCoca que depois de beber uma cachaça na vendola do Galego interroga me disseram que tinha aqui um homem querendo entrar na igreja com uma cruz e o padre não queria deixar79 Aparece também o secreta que causa mais receio que respeito Vejamos SECRETA O tira clássico Chapéu enterrado até os olhos mãos nos bolsos inspira mais receio que respeito À primeira vista tanto pode ser o representante da lei como o fugitivo da lei Entra pela direita e atravessa a cena lentamente em direção à vendola Ao passar por ZédoBurro demora nele um olhar de desabusada curiosidade Uma dupla Olha em torno procurando alguém consulta o relógio80 Aparece também o guarda apresentando o jornal do dia mostrando que também havia saído no jornal e começa ler a reportagem agora a objetivação efetiva da distorção feita pelo repórter em relação às reais ações e intenções de ZédoBurro Observese no diálogo abaixo o título dado à reportagem GUARDA Como se só agora lhe ocorresse ler a reportagem Ah sim lê O novo Messias prega a revolução ZÉ Estranha Revolução Espicha o pescoço e lê por cima do ombro do guarda GUARDA É revolução Está aqui Continua Sete léguas carregando uma cruz pela reforma agrária e contra a exploração do homem pelo homem Entreolhamse sem entender ZÉ Eu bem achei que aquele camarada não era certo da bola 78 DIAS GOMES op cit p 51 e 52 79 DIAS GOMES op cit p 63 80 DIAS GOMES op cit p 64 91 GUARDA Continua a ler Para o vigário da paróquia de Santa Bárbara é Satanás disfarçado Quem será afinal ZédoBurro Um místico ou um agitador O povo o olha com admiração e respeito pelos caminhos por onde passa com sua cruz mas o vigário expulsao do templo No entanto ZédoBurro está disposto a lutar até o fim Acho que o moço não entendeu bem o seu caso Olhao com certa desconfiança Ou então fui eu que não entendi Dá o jornal a ZédoBurro Podem ler Mas não joguem fora Iniciando a saída Quero levar pra casa Sai ROSA Zé não estou gostando disso ZÉ Nem eu ROSA Não entendi bem o que botaram na gazeta mas uma coisa me diz que isso não é bom ZÉ Não esconde o ressentimento que guarda dela Bem Maria de Iansan disse A promessa tinha que ser bem grande Com certeza Santa Bárbara achou que não era bastante o que eu prometi e está cobrando o restante Fita Rosa Ou está me castigando por eu ter prometido tão pouco ZédoBurro é ingênuo mas não esconde a sua desconfiança da infidelidade de Rosa conforme o que lemos Zé não esconde o ressentimento que sente dela Os diálogos continuam entre Zé o padre e Rosa O padre enchese de cólera e afirma que aquilo é obra de satanás compara Zé a Lúcifer quando diz Lúcifer iludiu o Senhor até o último momento Leva o dedo em riste Mas eu conheço seus adeptos Mesmo quando se disfarçam sob a pele do cordeiro Mesmo quando se escondem atrás da cruz de Cristo A mesma cruz que querem destruir Mas não destruirão Não destruirão PP p 64 Notese como essa comparação condiz com a ideologia religiosa do padre ao mesmo tempo em que se afasta completamente da caracterização de ZédoBurro desde o início da peça referido como simples ingênuo O sincretismo expressão religiosa das camadas mais populares é o elemento de ligação entre ZédoBurro e os setores subalternos da grande cidade Esse elemento é muito importante na trama da peça Zé vem do interior mas traz consigo a mistura de crenças bem 92 mais comum no povo simples Macumba candomblé umbanda são para a cúpula da Igreja nuances do mal pois suas origens fogem do cânone católico É essa a razão da posição intolerante assumida pelo padre Olavo Uma promessa pela cura de um burro seria para as elites da cidade o cúmulo do absurdo A não ser que as aspirações de Zé fossem outras como pensam o Repórter e o Delegado ou então estivessem sob tentação do Demônio como afirma o padre Mas essas opiniões não são as mesmas de Mestre Coca os capoeiras e Minha Tia Estes até em alguns momentos agem como preocupados com o protagonista COCA a ZédoBurro Meu camarada trate de ir embora Estão lhe arrumando uma patota MINHA TIA Vieram por causa dele COCA Então DEDÉ Quer um conselho Experiência própria com a polícia é melhor fugir do que discutir COCA Ande depressa que nós agüentamos eles aqui até você ganhar o mundo A gente esconde a cruz MINHA TIA E de noite ele leva ela para Iansan COCA Vamos todo mundo levar Todos os capoeiras da Bahia O pagador de promessas 90 e 9181 Com a generalização Coca sugere a identificação de um grupo social os capoeiras da Bahia com o protagonista Vêse que as pessoas que tentam defender Zé do Burro simples povão nem seus nomes aparecem os personagens que têm nomes têm apenas apelidos como vemos nos diálogos de toda a peça A promessa é uma espécie de juramento muito sério entre o devoto e o santo aquele que faz a promessa pode ser castigado se não a cumprir à risca A trama é cheia de manifestações da cultura e da religiosidade do povo Para Zé e o povo em geral Iansan e Santa Bárbara são uma santa só 81 DIAS GOMES op cit p 90 e 91 93 De acordo com Rosenfeld a conduta de ZédoBurro marcao como tipo de messias virtual enquanto a peça sugere ao mesmo tempo contexto espiritual e social em que tal redentor tipo apóstolo ou penitente pode vingar e suscitar as esperanças sebastianistas do povo mísero pobre em tudo No mundo apresentado por Dias Gomes o anseio da vinda do libertador é tão forte que pelo caminho a Salvador grande número de caboclos segue o santo todos convencidos de que fará milagres E diz Rosa E não duvide de Zé ele é capaz de acabar fazendo se não fosse a hora garanto que tinha uma romaria aqui atrás dele82 As esperanças de Zé parecem se acender com a chegada do Monsenhor Otaviano ao qual beijalhe as mãos e ouve do mesmo Vim tratar do seu caso83 Os ânimos de Zé contudo caem em desespero quando ouve o Monsenhor dizer Abjure a promessa que fez reconheça que foi feita ao Demônio atire fora essa cruz e venha sozinho pedir perdão a Deus84 O nosso herói cai num terrível conflito de consciência mas continua firme com sua promessa mesmo com o incentivo de Rosa para que ele cedesse às orientações do Monsenhor O desespero de Zé é tão grande que ele se transtorna e parte na direção da igreja com a cruz como vemos a seguir ZÉ Subitamente fora de si corre para a cruz levantaa nos braços como um aríete e grita Padre Por Santa Bárbara ou por Satanás vou colocar esta cruz dentro da igreja custe o que custar PADRE 82 DIAS GOMES op cit p 53 83 DIAS GOMES op cit p 70 84 DIAS GOMES op cit p 71 94 Ante a decisão que vê estampada no rosto de ZédoBurro recua amedrontado Eis a prova um católico não ameaça invadir a casa de Deus Guarda Prenda esse homem E ante a investida de ZédoBurro que caminha para a igreja corre seguido do Sacristão e cerra a porta no momento mesmo em que Zé sobe os degraus Este revoltado e vencido atira a cruz contra a porta A cruz tomba estrondosamente sobre a escada ZédoBurro sentase num dos degraus e esconde o rosto entre as mãos85 É puro desespero a atitude desse solitário herói diante de um conflito tão grande um sentimento de incompreensão e desilusão que reflete a grande ansiedade que lhe invade a alma Mestre Coca que está observando prevê a crise dramática e diz para os tocadores de berimbau Fiquem aqui Vou chamar o resto do pessoal86 Bonitão sempre por perto incentiva o secreta a prender Zé porque seu interesse está em Rosa como podemos observar no diálogo abaixo COCA Para os tocadores de berimbau Fiquem aqui Vou chamar o resto do pessoal Sobe a ladeira BONITÃO Para o Secreta Que está esperando Não está convencido ainda SECRETA Faz um sinal afirmativo com a cabeça Espere Sai pela direita ROSA Que percebeu a troca de palavras entre o Secreta e Bonitão Espere o quê Quem é ele BONITÃO Um secreta ROSA Começando a compreender Polícia Você Você denunciou BONITÃO Daqui a pouco você vai ficar livre desse idiota ROSA Horrorizase ante a idéia da traição Você não devia ter feito isso Não devia BONITÃO É pro seu bem Pro nosso bem ROSA Angustiada pelo conflito de consciência que se apossa dela Não assim não Eu não queria assim BONITÃO Agora está feito 85 DIAS GOMES op cit p 73 86 DIAS GOMES op cit p 73 95 Rosa se debate em seu conflito de um lado sua noção de lealdade gerando um repúdio natural à delação Do outro todos os seus recalques sexuais sua ânsia de libertação de realização mesmo como mulher que Bonitão veio lhe despertar Enquanto isso ZédoBurro sentado nos degraus sofre uma crise nervosa Soluça convulsivamente Os tocadores de berimbau fazem gemer a corda de seus instrumentos87 Rosa está em conflito mas como vemos ela está se sentindo mulher o que foi despertado pelo rufião Bonitão Mais uma vez se compreende como são dramáticas as motivações dos personagens para as suas ações E assim termina o segundo quadro do segundo ato O terceiro ato que só tem um quadro iniciase ao entardecer quando a praça já está cheia de gente inclusive com uma roda de capoeiras Surge agora na ação da peça um coro iniciando o terceiro ato É mais uma semelhança com as tragédias antigas gregas nas quais o coro era imprescindível como diz Aristóteles no cap XVIII da sua Poética Mas precisamos observar que o coro desta obra é formado por populares de diversos segmentos que agem por curiosidade e por solidarização com o nosso herói ZédoBurro Neste coro há o mestre cujo nome não aparece mas que poderia ser associado ao Corifeu das tragédias clássicas Podemos ilustrar o início do terceiro ato com os cantos do coro que nesse momento não chega a ter função direta no desenvolvimento da ação a não ser pelo efeito que provoca 87 DIAS GOMES op cit p 73 96 por um lado embelezando o drama com intervenções musicais e danças por outro demarcando no contexto de uma sociedade desunida um grupo coeso que ao final da peça vai dar cumprimento à promessa de ZédoBurro transportando seu corpo e sua cruz para a igreja MESTRE DO CORO Quem te ensinô essa mandinga Foi o nego de sinhá O nego custô dinheiro dinheiro custô ganhá Camarado CORO Cai cai Catarina santa de má vem vê Dalina MESTRE DO CORO Amanhã é dia santo dia de corpo de Deus Quem tem roupa vai na missa quem não tem faz como eu CORO Cai cai Catarina santa de má vem vê Dalina MESTRE DO CORO Minino quem foi teu mestre quem te ensinô a joga Só discipo que aprendo meu mestre foi Mangangá na roda que ele esteve outro mestre lá não há Camarado CORO Cai cai Catarina santa de má vem vê Dalina Rosa apreensiva nervosa desinteressase da capoeira vai até a ladeira olha para o alto ansiosamente como se esperasse alguém depois volta pra junto do marido Muda o ritmo do jogo MESTRE DO CORO Panha a laranja no chão ticotico ái se meu amô fô simbora eu não fico CORO Panha a laranja do chão ticotico MESTRE DO CORO Minha camisa é de renda de bico CORO Panha a laranja no chão ticotico MESTRE DO CORO Ai se meu amô fô simbora eu não fico88 88 DIAS GOMES op cit p 77 97 E assim o drama vai acontecendo com a ação acompanhada por populares alguns até fazem apostas sobre a possibilidade de o padre abrir ou não a igreja Mestre Coca diz que Zé entra ainda naquele dia Galego da vendola diz que ele não entra de jeito nenhum e Dedé Cospe Rima diz que ele entra mas no dia seguinte e casam o dinheiro da aposta Os capoeiras começam também a dar opiniões torcendo por ZédoBurro Muitos outros populares se chegam ao grupo como Manoelzinhosuamãe e Minha Tia devota de Iansan O secreta também se aproxima e incentivado por Bonitão sua intenção é prender o nosso herói Rosa desconfia das intenções do secreta e do jornalista e começa a chamar o marido para irem embora mas ele resiste diz que só irá depois que depositar a cruz junto ao altar de Santa Bárbara Em linhas gerais os personagens da cidade estão empenhados em tirar vantagens da presença de ZédoBurro em negarlhe a realização da promessa ou dar outros sentidos às palavras de Zé O delegado Bonitão DedéCospeRima e o Galego da vendola têm situações confortáveis se comparadas à de Minha Tia Marli e MestreCoca Claro que Marli como amante de Bonitão não tem nenhum motivo para estar solidária a Zé e Rosa pois esta lhe aparece como rival Os outros não entendem as razões do padre MinhaTia até convida Zé a pagar a promessa no terreiro de Iansan que para ela era a mesma Santa Bárbara MinhaTia está ansiosa para encontrar uma saída para o impasse do nosso herói e diz 98 Não desanima moço Hoje é dia de Iansan mulher de Xangô Orixá dos raios e das tempestades Mais logo nos terreiros ela está descendo no corpo dos seus cavalos Vai falar com ela moço vai pedir a proteção de Iansan que tudo quanto é porta há de se abrir Eparrei minha mãe89 Quanto a Rosa seu discurso contém alguns presságios sobretudo depois que ela enxerga com clareza o modo como cada um quer ajudar seu marido No seu medo cheia de dúvidas sobre o que poderá acontecer ela se coloca ao lado do companheiro e apela Você não vê Não sente Não respira Está no ar e cada minuto que passa aumenta o perigo olha para todos os lados como fera acuada Esta praça está ficando cada vez menor como se eles estivessem fechando todas as saídas Volta se para ele com veemência Vamos embora Zé enquanto é tempo90 Há outra passagem em que Rosa parece adivinhar que algo ruim pode acontecer se deixarem para voltar à noite Mas Zé não dá ouvidos está obstinado em pagar a promessa exatamente como prometeu Diz ele a Rosa que noites sem dormir ser xingado de figura do diabo pode ser nada comparado ao castigo que pode vir se não pagar a promessa do jeito que prometeu Na passagem a seguir podese sentir que há ambigüidade e prolepses91 gradação e exagero neste apelo de Zé ao padre Padre não andei sete léguas para vir até aqui Deus é testemunha Ainda não comi hoje e não vou comer até que abra a porta Um dia dois um mês vou morrer de fome na porta da sua igreja padre92 89 DIAS GOMES PP op cit p 88 90 DIAS GOMES PP op cit p 82 91 Prolepses antecipação uma figura de estilo pela qual se antecipa ou adianta o enunciado do argumento ou uma ação como se já tivesse ocorrido 92 DIAS GOMES PP op cit p 38 99 Notase nestas palavras o caráter místico e heróico do protagonista Não aceita alimento o dia inteiro seu objetivo é o alimento espiritual e não o físico Rosa diferentemente alimenta seu corpo em duplo sentido Zé na sua teimosia não percebe que sozinho não consegue alcançar seu objetivo93 O repórter de vez em quando chamao de herói Esse qualificativo é uma ironia visto que a ação do Repórter acaba sendo decisiva na queda do herói com seu noticionário sensacionalista que atrai a polícia e encaminha a uma peripécia no final trágico de ZédoBurro É inegável que Zé é um herói moderno com as qualidades e firmeza de propósito que o aproximam do herói no sentido clássico da personalidade que empenha sua vida por uma causa relevante como no caso do herói Édipo Rei e Antígona entre outros das tragédias antigas ZédoBurro que defende uma causa aparentemente pequena e quase ridícula adquire relevo e pathos pela relação com o Padre e pelos valores que passa a defender caracterizando assim um herói da dramaturgia brasileira moderna No terceiro ato da peça como visto já muita gente está presenciando a cena visto ser o dia da festa de Santa Bárbara O toque dos berimbaus mais parece choro como se anunciasse um acontecimento funesto A presença de muita gente espectadores do povo nos acontecimentos finais marcam definitivamente o tom de tragédia social94 93 SOUSA Elri Bandeira In Por Uma Militância teatral MACIEL Diógenes André Vieira João Pessoa Bagagem de Idéia 2005 p 152 94 SOUSA Elri Bandeira Op cit p 151 100 Zé com idéia fixa parece indiferente a tudo A polícia aproximase e Mestre Coca aconselhao a fugir DedéCospeRima Minha Tia todos pedem que ele vá embora Porque não há nada a fazer Porém Mestre Coca ao lado dos capoeiras tenta enfrentar a polícia SECRETA Vê a faca na mão de ZédoBurro Tome cuidado Chefe que ele está armado Observa a atitude hostil dos capoeiras E essa gente está do lado dele COCA Estamos mesmo E aqui vocês não vão prender ninguém DELEGADO Não vamos por quê MANOELZINHO Porque não está direito DELEGADO Estão querendo comprar barulho COCA Vocês que sabem PP 165166 Na agitação uma bala vinda não se sabe de onde atinge o protagonista que cai morto Está consumada a ação trágica da peça Chega então o delegado que se junta ao secreta e ao guarda intimandoo a acompanhálos à delegacia Zé reage e diz que não vai porque não cometeu nenhum crime Observemos os diálogos finais do nosso drama ZÉ Agora eu decidi só morto me levam daqui Juro por Santa Bárbara só morto SECRETA Vê a faca na mão de ZédoBurro Tome cuidado Chefe que ele está armado Observa a atitude hostil dos capoeiras E essa gente está do lado dele COCA Estamos mesmo E aqui vocês não vão prender ninguém DELEGADO Não vamos por quê MANOELZINHO Porque não está direito DELEGADO Estão querendo comprar barulho COCA Vocês que sabem DELEGADO Não se metam senão vão se dar mal SECRETA E é melhor que se afastem ROSA Zé 101 ZÉ Me deixe Rosa Não venha pra cá ZédoBurro de faca em punho recua em direção à igreja Sobe um ou dois degraus de costas O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço fazendo com que a faca vá cair no meio da praça É aqui que o nosso herói comete mais um erro trágico que o levará à morte como veremos ZédoBurro com o sangue quente próprio do nordestino corre e abaixase para apanhála Os policiais aproveitam e caem sobre ele para subjugálo E os capoeiras caem sobre os policiais para defendêlo ZédoBurro desapareceu na onda humana Ouvese um tiro A multidão se dispersa como num estouro de boiada Fica apenas Zédo Burro no meio da praça com as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto ROSA Num grito Zé corre para ele PADRE Num começo de reconhecimento de culpa Virgem Santíssima DELEGADO Para o Secreta Vamos buscar reforço Sai seguido do Secreta e do Guarda O Padre desce os degraus da igreja em direção do corpo de ZédoBurro ROSA Com rancor Não chegue perto PADRE Queria encomendar a alma dele 102 ROSA Encomendar a quem Ao Demônio O padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada Bonitão surge na ladeira Mestre Coca demonstrando liderança consulta os companheiros com o olhar Todos compreendem a sua intenção e respondem afirmativamente com a cabeça Mestre Coca inclinase diante de ZédoBurro segurao pelos braços os outros capoeiras se aproximam também e ajudam a carregar o corpo Colocamno sobre a cruz de costas com os braços estendidos como um crucificado Carregamno assim como numa padiola e avançam para a igreja Bonitão segura Rosa por um braço tentando levála dali Mas Rosa o repele com um safanão e segue os capoeiras Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira Intimidados o Padre e o Sacristão recuam a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz sobre ela o corpo de ZédoBurro O Galego Dedé e Rosa fecham o cortejo Só Minha Tia permanece em cena Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça95 MINHA TIA Encolhese toda amedrontada toca com as pontas dos dedos o chão e a testa Êparrei minha mãe96 Voltamos a afirmar que nem toda a cidade colabora no crime Os capoeiras igualmente mal vistos pela polícia adotam outra posição Como bem diz o Prof Elri Bandeira de Souza em seu artigo intitulado Do trágico nO Pagador de Promessas Nesse momento os capoeiras abandonam a condição de figurantes meras ilustrações do espaço social e tomam parte decisiva no desfecho da peça levando o corpo morto de Zé e sua cruz para dentro da igreja A ação intransigente do protagonista a intolerância do padre a falha de caráter de Rosa a ação de Bonitão e do Repórter selam o desfecho trágico O conflito social dissimulado pelo conflito religioso evidencia o caráter social da tragédia A estratégia do dramaturgo que busca a empatia do leitor espectador para com o protagonista é a mesma que o aproxima desses personagens populares97 Reconhecemos ao final do drama sua semelhança com tragédia clássica a trama sendo construída com base nas unidades de ação tempo e lugar Também se percebe o esforço do dramaturgo para transformar em herói trágico um humilde lavrador buscando a dignidade dos 95 DIAS GOMES op cit p 95 96 DIAS GOMES op cit p 9495 97 SOUSA Elri Bandeira Op cit p 153 103 heróis clássicos e a volição excessiva dos heróis modernos Essa construção do protagonista é altamente eficaz para despertar uma tomada de consciência crítica em relação aos conflitos engendrados pela trama ZédoBurro e o sincretismo vencem com a decisão dos capoeiras que ao verem Zé morto no chão ao receber uma bala vinda não se sabe de onde colocam o corpo dele sobre a cruz e entram na igreja sem que ninguém possa impedir E assim a promessa de Zé foi paga porém de um modo que nem ele nem ninguém esperava um final com peripécia e inspirando temor e piedade tal como ocorriam os finais catastróficos das tragédias gregas Sobre isto podemos ilustrar com o que diz Hegel em sua Estética Poesia O que se encontra assim destruído no desenlace de um conflito trágico é unicamente a particularidade unilateral que incapaz de se submeter a esta harmonia se inclina demasiado até o abismo ao trágico da acção ou vêse pelo menos forçada na medida do possível a renunciar aos seus fins Recordaremos a este respeito aquela definição de Aristóteles segundo a qual a tragédia agiria pelo temor e pela piedade98 Os presentes ao fim de ZédoBurro têm razões para temor e piedade mas há também uma espécie de purgação ou purificação catártica na medida em que Zé não sucumbiu diante das pressões No dizer de Hegel A acção individual que visa em circunstâncias determinadas realizar um fim ou impor a superioridade de um carácter adopta necessariamente uma atitude de isolamento levanta contra si a paixão oposta e assim se geram inevitáveis conflitos Em princípio o lado trágico consiste em que ambas as partes opostas têm igualmente razão ao passo que na realidade cada uma concebe o verdadeiro conteúdo positivo do seu fim e do seu carácter como uma negação do fim e do carácter adversos e combate o que as torna igualmente culpadas99 98 HEGEL op cit p 436 99 HEGEL op cit p 436437 104 Na análise de o PP notamos que dentro das perspectivas do Padre Olavo e de Zé do Burro ambos têm razão nas suas intransigências Sobre a ação trágica nos diz Raymond Williams reportandose a Hegel Na versão hegeliana da ação trágica reivindicações válidas mas parciais entram em conflito inevitável na resolução trágica elas são reconciliadas mesmo à custa da destruição das personagens que as defendiam100 Dias Gomes homem declaradamente de esquerda tendo enfrentado perigos e proscrição fez questão de exaltar o destemor o sacrifício realizado em nome de uma idéia superior O Pagador de Promessas é ao mesmo tempo um notável drama social e uma comovente tragédia moderna 100 WILLIAMS Raymond op cit p 56 105 CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma palavra posta fora de lugar estraga o pensamento mais bonito Voltaire escritor francês 16941778 Estudamos a dramaturgia de Dias Gomes em O PP sob a perspectiva trágica de representações de ações humanas em conflito na realidade social Consideramos a peça um drama moderno que conserva no seu desenrolar características das tragédias antigas tais como unidade de ação de tempo e espaço apresentando ainda vários outros elementos que concorrem para o fim trágico do herói provocando uma comoção piedosa e aterrorizante que se aproxima da Katarsis que como vimos é o objetivo último da tragédia Justamente por perceber na construção estrutural da peça dimensões que nos remetem às tragédias clássicas é que julgamos conveniente nos reportar primeiramente às orientações aristotélicas em busca de mais subsídios para fundamentar nosso estudo Ficou claro que a obra em tela embora um texto de caráter social mostrou que o trágico ainda subsiste em dramas modernos Aristóteles formulou conceitos literários tendo como horizonte as tragédias gregas produzidas no século V aC porém é inegável a validade de suas proposições em tempos historicamente posteriores Respeitandose a análise empírica de cada texto dramático os pressupostos aristotélicos permitemnos discernir na elaboração de tramas trágicas conceitos que foram sendo atualizados em diferentes momentos históricos da tradição dramática 106 reelaborados assumindo outras nuanças na literatura dramática moderna Isto significa que a utilização da Poética como referencial teórico na investigação das obras dramáticas funciona como estratégia crítica basilar embora não esgote absolutamente as significações implicadas na dimensão trágica do drama moderno A passagem na dramaturgia da representação de personagens nobres em linguagem elevada para a dramatização das classes sociais baixas caracterizouse ao mesmo tempo como um momento no qual a dramaturgia tenta configurar artisticamente a realidade social e como uma estratégia de construção de conflitos que chama a si outras linhas de aferição teórica A chamada crise do drama como teorizada por Peter Szondi na dialética entre conteúdo de expressão e forma de expressão resultado da necessidade de representar os processos sociais ocasionou a busca por novas formas de expressão adequadas aos anseios das novas temáticas O drama passou então a considerar sujeitos isolados com as subjetividades constantemente em crise vivenciando choques tensos e cruéis sobretudo quando se configuram como embates típicos dos conflitos de classe que caracterizam a sociedade capitalista Daí termos também apelado à formulação teórica de autores que se debruçaram sobre o drama moderno sobretudo sob a perspectiva das relações entre Tradição e Modernidade Foi assim que examinamos proposições de Hegel Lessing George Steiner Peter Szondi Anatol Rosenfeld e Sandra Luna No tocante à dramaturgia brasileira moderna a 107 representação das pessoas comuns nas peças teatrais não é contribuição exclusiva de Dias Gomes em O PP Muitas outras peças deste e de outros dramaturgos exploram diferenças culturais e sociais Contudo esse é um forte traço de composição do nosso autor A Invasão A Revolução dos Beatos O Santo Inquérito e outras peças sempre apontam para personagens representantes das camadas sociais baixas encenando situações que denunciam os abismos intransponíveis entre as classes A criatividade de Dias Gomes e a representação da nossa realidade fazem com que a sua ficção seja verossímil recomendação que se estende desde Aristóteles até nossos dias Aliás essa adequação da peça à tradição aristotélica é o que nos permitiu vincular o texto às antigas tragédias A trama da peça é complexa envolve peripécia e anagnorisis terminando tragicamente com a morte do herói ZédoBurro A promessa feita pelo protagonista instaura as condições para o conflito trágico O padre Olavo ao ser informado de que a promessa fora feita num terreiro de umbanda recusase radicalmente a receber o protagonista em sua igreja Se o padre é irredutível Zé também o é em sua crença não desiste da obrigação religiosa e espera o dia inteiro A presença daquele camponês chama atenção por ser estranho ao meio e atrai uma multidão de curiosos além de oportunistas e exploradores Padre Olavo se sente ameaçado e busca reforço policial Os capoeiras se põem em defesa do nosso herói enfrentando a polícia quando esta ameaça prendêlo Na confusão o herói é atingido por uma bala e cai morto Acontece então uma peripécia tornando a peça complexa como explica 108 Aristóteles no capítulo X de Poética Não se sabe quem atirou mas Zé entra finalmente na igreja se não pelas próprias iniciativas mas estendido sobre a cruz que tinha carregado por muitos quilômetros ZédoBurro cometeu dois erros trágicos como os heróis das tragédias gregas ocasionando duas instâncias de hamartia O primeiro erro de Zé foi ter feito a promessa num terreiro de Iansan achando que era a mesma Santa Bárbara No sincretismo religioso do mundo em que ele vivia era sim a mesma coisa portanto o erro foi involuntário O segundo erro esse efetivamente dramatizado na peça foi ter reagido à prisão enfrentando a polícia de faca na mão Mesmo sendo uma ação voluntária a situação caótica e a reação desesperada do protagonista faz esse erro também parecer involuntário ação espontânea e não planejada resultante das fortes pressões do momento Isso torna o seu fim ainda mais comovente Neste momento ele já estava se reconhecendo só já havia constatado essa verdade numa cena de anagnorisis como nas tragédias antigas numa grande perplexidade quando disse antes que ninguém o entendia nem mesmo Rosa sua esposa Observamos a estruturação lógica da trama em três atos os dois primeiros com dois quadros e o terceiro com um quadro produzindo uma ordem coerente de começo meio e fim como afirmamos verossímil pois o escritor baiano imita o real organizandoo no texto dramático que convida o leitorespectador a entender os fenômenos sociais revelando motivações ideológicas que movem os sujeitos ficcionais mesmo os secundários em direção 109 a conflitos que a cada momento se inflamam piorando a situação de ZédoBurro numa tremenda incomunicabilidade pelas barreiras instransponíveis das idéias dos comportamentos das linguagens citadinas e rurais das classes ricas e pobres Os mais cultos como o Padre e o repórter não perdem tempo em distorcer as palavras do nosso herói com significações que Zé nunca pretendeu formular nem sabia o que era ZédoBurro tornase então um herói individualizado isolado em suas condições como afirmam Williams e Hegel Dias Gomes produziu então um drama moderno de caráter social Lembremos que as subjetividades das personagens secundárias sem nomes próprios somente com apelidos Mestre Coca Minha Tia Dedé Cospe Rima Galego da vendola Secreta o Repórter Bonitão etc caracterizam ou reafirmam a peça como drama social moderno mostrando o imenso abismo que há nesse universo ficcional que se quer representativo do real A entrada do herói morto sobre a cruz que fez e carregou levado por capoeiras sem nomes próprios naquela igreja que ele insistiu tanto em entrar vivo mostra além do aspecto social a força do povo quando se une num objetivo comum Nem o padre Olavo nem policiais e repórteres puderam impedir a entrada na igreja não por um devoto mas por um grupo deixando claro o poder da coletividade em busca de justiça social qualquer que seja até mesmo o sincretismo religioso das camadas simples da nossa sociedade cheia de contrastes de diversas formas Contudo mesmo que referenciando as injustiças as lutas e as contradições sociais o PP também dramatiza a frágil condição humana Há nesse universo conflituoso da vida 110 social o drama intensamente comovente de um herói solitário incompreendido que paga com sua própria vida o preço da sobrevivência da arte trágica O PP é sim um drama profundamente trágico em tempos modernos 111 BIBLIOGRAFIA ARISTÓTELES A Poética Tradução Prefácio introdução comentário e apêndices de Eudoro de Sousa Imprensa Nacional Porto Portugal Casa da Moeda 2003 A Poética Clássica Tradução de Jaime Bruna São Paulo Cultrix 1981 A Política Trad Torrieri Guimarães São Paulo Ed Martin Claret 2003 AUERBACH Erich Mimesis a representação da realidade na literatura ocidental 2 ed São Paulo Perspectiva 1987 BONNICE Thomas ZOLIN Lúcia Osana Teoria Literária Abordagens Históricas Tendências Contemporâneas Maringá PR Ed UEM BOSI Alfredo O Ser e o Tempo da Poesia São Paulo Cultrix 1990 O Conto Brasileiro Contemporâneo São Paulo Cultrix 1974 CAMPEDELLI Samira Dias Gomes Literatura comentada São Paulo Abril Educação 1982 CAMPEDELLI Samire Youssef Teatro brasileiro do século XX São Paulo Scipione 1995 112 CANDIDO Antonio Literatura e Sociedade Estudos de teoria e história literária 8ª ed São Paulo T A Queiroz Editor 1976 A personagem de Ficção 6 ed São Paulo Perspectiva 1981 O Discurso e a Cidade 3 ed São Paulo Duas cidades Ouro sobre azul 2004 CARVALHO Alfredo Leme Coelho de Interpretação da Poética de Aristóteles São Paulo Ed RioPretense 1998 COHEN Jean Estrutura da linguagem poética Trad Álvaro Lorencini São Paulo Cultrix EDUSP 1974 COSTA Iná Camargo Dias Gomes um dramaturgo nacionalpopular Dissertação mestrado São Paulo Departamento de Filosofia FFLCH USP 1987 COSTA Lígia Militz da A Tragédia Estrutura e história São Paulo Ática 1988 DIAS GOMES Alfredo de Freitas O Pagador de Promessas São Paulo Ediouro 2001 35ª edição Campeões do Mundo Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1980 O Bem Amado R Janeiro Civilização Brasileira 1962 113 A Invasão R Janeiro Civilização Brasileira 1960 O Santo Inquérito São Paulo Círculo do Livro 1966 Literatura comentada Seleção de textos notas estudos históricos e críticos e exercícios por Samira Campedelli São Paulo Abril Educação 1ª ed 1982 A Revolução dos Beatos Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1961 Roque Santeiro Rio de Janeiro Central Globo de Produção 1975 EAGLETON Terry Teoria da Literatura uma introdução 5ª ed São Paulo Martins Fontes 2003 EURIPEDES As Bacas O Mito de Dionísio Trad Jaa Torrano São Paulo Editora Hucitec 1995 Medéia In A tragédia Grega Trad Mário da Gama Kury 5ª ed Vol 3 Rio de Janeiro Jorge Zahar editor 2001 As troianas In A Tragédia Grega Trad Mário da Gama Kury 5ª ed Vol 3 Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001 114 Hipólito In A Tragédia Grega Trad Mário da Gama Kury 5ª ed Vol 3 Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001 FERNANDES Cleudemar Alves Análise do Discurso Reflexões Introdutórias São Carlos Claraluz 2007 GARRET Almeida Frei Luís de Sousa 20ª ed Portugal Porto Editora 1985 GOETHE Fausto São Paulo SP Ed Martins Claret 2002 trad da editora HEGEL G W Friedrich Curso de Estética O Belo na Arte Trad Orlando Vitorino São Paulo Martins Fontes 1996 A Estética a idéia e o ideal O Belo Artístico ou o Ideal coleção os pensadores Trad Orlando Vitorino São Paulo Nova Cultural Ltda 1999 A Estética Poesia Trad Álvaro Ribeiro Lisboa Guimarães Editores 1964 HESILDO Teogonia A origem dos deuses Trad Jaa Torrano São Paulo Iluminuras Ltda 2001 HOLANDA Chico Buarque de PONTES Paulo Gota dÁgua 28ª ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira S A 1995 HORÁCIO Poética Clássica Trad Jaime Bruna São Paulo Ed Cultrix 1981 115 IVONE Tavares de Lucena Maria Angélica de Oliveira e Rosemary Evaristo Barbosa orgs Análise do Discurso das movências de Sentido às nuanças do re dizer João Pessoa PB Ideia 2004 JÚNIOR Raimundo Magalhães Biblioteca Educação é Cultura Rio de Janeiro MEC Teatro 1 Bloch FENAME 1980 KURY Mário da Gama Dicionário de Mitologia Grega e Romana 6ª ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 LESKY Albin A Tragédia Grega Trad J Guinsburg São Paulo Perspectiva 2003 LESSING Gothold Ephraim De Teatro e Literatura Introdução e notas de Anatol Rosenfeld São Paulo EPU 1992 Tradução portuguesa J Guinsburg LUKACS Georg Teoria do Romance Trad De Alfredo Margarido São Paulo Editorial Presença 1978 LUNA Sandra Arqueologia da Ação Trágica o legado grego João Pessoa PB Ideia 2005 A tragédia no Teatro do Tempo das origens clássicas ao drama moderno João Pessoa PB Ideia 2008 116 MACHADO Maria Clara Teatro II Biblioteca Educação é Cultura Rio de Janeiro MEC Bloch FENAME Vol 7 1980 MACIEL Diógenes ANDRADE Valéria Por uma militância teatral org João Pessoa PB Editora BagagemIdeia 2005 MACIEL Diógenes Ensaios do nacionalpopular no teatro brasileiro moderno João Pessoa PB Editora Universitária 2004 Dramaturgia fora da estante João Pessoa PB Ideia 2007 MAGALDI Sábato Suplemento Literário de O Estado de São Paulo 23071960 Panorama do Teatro Brasileiro Moderno São Paulo Global 2004 MALUF Sheila Diab AQUINO Ricardo Big de orgs Reflexões sobre a Cena Maceió EDUFAL Salvador EDUFBA 2005 MILLER Artur A Morte do Caixeiro Viajante Trad Flávio Rangel São Paulo Victor Civita 1980 MOISÉS Massaud Dicionário de termos literários Ed Revista e ampliada São Paulo Cultrix 2001 PLATÃO A República Livro III e X p 74 a 111 e o Livro X p 293 a 319 Trad Pietro Nassetti Porto Alegre Martin Claret 2002 117 A República Tradução Pietro Nassetti São Paulo Ed Martin Claret 2002 POUND Ezra ABC da literatura Trad Augusto de Campos e José Paulo Paes São Paulo Cultrix 1989 PRADO Décio de Almeida O Pagador de Promessas In Teatro em Progresso Crítica teatral 19551964 São Paulo Perspectiva S A Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno São Paulo Perspectiva 2001 O Teatro Brasileiro Moderno São Paulo Perspectiva 2008 ROUBINE Jean Jacques Introdução às Grandes Teorias do Teatro Tradução André Teles Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2003 ROSENFELD Anatol O mito e o Herói no Moderno Teatro Brasileiro 2ª ed São Paulo Perspectiva 1996 O Teatro Épico São Paulo Perspectiva 1997 SEHOPENHAUER Arthur O Mundo como Vontade e Representação Trad Wolfgang Leomaar e Maria Lúcia Melo São Paulo Nova Cultural 1999 Parerga e Paralipomessa capítulos V VIII XII XIV Trad Wolfgang Leomar e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola São Paulo Cultural 1999 118 SHAKESPEARE William Romeu e Julieta Trad F Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes São Paulo Victor Civita 1981 Macbeth Trad Jean Melville São Paulo Martim Claret 2007 Otelo O Mouro de Veneza Trad Heldegard Feist 9ª ed São Paulo Scipione 1994 Hamlet São Paulo Ed Martin Claret 2002 Rei Lear Trad Pietro Nassetti São Paulo Martin Claret 2002 SÓFOCLES Electra In A Tragédia Grega Trad Mário da Gama Kury 4ª ed Vol 4 Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 Édipo Rei Trad Cicília Casas São Paulo Scipione 2002 Édipo Rei Trad Jean Melville São Paulo Martin Claret 2007 Antígona Trad Jean Melville São Paulo Martin Claret Ltda 2007 SOUSA Elri Bandeira de O trágico no Pagador de Promessas In Por uma militância teatral Diógenes Maciel org João Pessoa BagagemIdeia 2005 p 139 SZONDI Peter Teoria do Drama Moderno 1880 1950 Trad Luiz Sérgio Repor São Paulo Cosac Naify 2001 119 VERNANT Jean Pierre Mito e Tragédia na Grécia Antiga São Paulo Perspectiva 2005 WILLIAMS Raymond Tragédia Moderna Trad Betina Bischof São Paulo Cosac Naify 2002 WILLIAMS Tennessee Um Bonde Chamado Desejo Trad Vadin Nikitin São Paulo Ed Peixonato Neto 2004 CENTRO UNIVERSITÁRIO FUNORTE CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO ANA CAROLINE LIMA SILVA JOYCE NAIRA TEIXEIRA DE ALMEIDA FILOMENA LUCIENE CORDEIRO REIS DIREITO E VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA AS MULHERES CONHECENDO A REALIDADE BRASILEIRA POR MEIO DA LEI Nº 141882021 E DA REVISTA MARIE CLAIRE MONTES CLAROS MG 2022 ANA CAROLINE LIMA SILVA JOYCE NAIRA TEIXEIRA DE ALMEIDA FILOMENA LUCIENE CORDEIRO REIS DIREITO E VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA AS MULHERES CONHECENDO A REALIDADE BRASILEIRA POR MEIO DA LEI Nº 141882021 E DA REVISTA MARIE CLAIRE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora do curso de graduação em Direito do Centro Universitário Funorte como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Direito Orientadora Profa Dra Filomena Luciene Cordeiro Reis anacarolinesilvasoufunortecomb r joycealmeidasoufunortecombr filomenareisfunorteedubr MONTES CLAROS MG 2022 RESUMO Introdução O Protocolo de Manchester é um sistema de classificação de pacientes atendidos em serviço de urgência que determina a preferência no atendimento em função da gravidade da situação clínica não tendo a função de enquadrar este paciente em um diagnóstico Esse sistema é utilizado em muitos países para a classificação de risco de pacientes que buscam os serviços de urgência e emergência no entanto não há estudos publicados que abordem a validação desse protocolo para ser utilizado no Brasil dentro dos critérios estabelecidos pela literatura Objetivo Identificar como as vítimas da violência psicológica podem provar esse tipo de violência por meio da análise de periódico revista Marie Claire e da Lei nº 141882021 Metodologia A pesquisa será bibliográfica e documental constituindo se com caráter qualitativo analítico e descritivo O estudo da violência psicológica contra a mulher se embasará de publicações que compõem a literatura sobre o assunto bem como instrumentos jurídicos e políticos que tratam da proteção da mulher em especial a Lei nº 1418821 Serão analisados depoimentos das vítimas de violência publicados na revista feminina Marie Claire de acordo com as orientações metodológicas para estudo de periódicos Palavraschave Dignidade da Pessoa Humana Violência Contra Mulheres Violência Psicológica Contra Mulheres Protocolo de Manchester Lei nº 141882021 SUMÁRIO 1INTRODUÇÃO4 11 Objetivos7 111 Objetivo geral7 112 Objetivos específicos7 12 Justificativa7 2 METODOLOGIA PROPOSTA 9 3 CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO 10 4 ORÇAMENTO 11 REFERÊNCIAS12 4 1 INTRODUÇÃO O princípio da dignidade da pessoa humana é a base da Constituição Federal da República do Brasil de 1988 CFRB1988 É um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito o qual constitui um dos elementos que compõem o mínimo existencial sendo compreendido como a garantia das necessidades vitais de cada indivíduo Está previsto no artigo 5º CFRB1988 que Todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida à liberdade à igualdade à segurança e à propriedade nos termos seguintes BRASIL 1988 Segundo Moraes em seu livro Direito Constitucional dignidade é conceituada como Um valor espiritual e moral inerente à pessoa que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas constituindose um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar de modo que somente excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos e a busca ao Direito à Felicidade MORAES 2006 p 10 Nesse sentido a dignidade da pessoa humana é infrigida quando ocorrem situações de violência A violência no ordenamento jurídico é descrita como um constrangimento físico ou moral exercido sobre alguém que obriga essa pessoa a fazer o que lhe é imposto A sociedade nos dias atuais convive cotidianamente com a violência praticada contra as mulheres contrariando o ordenamento jurídico que a criminaliza e a divulgação dessa violência por meios de comunicação Desse modo a Lei nº 113402006 também conhecida como Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher dispostas no Capítulo II artigo 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher entre outras I a violência física entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal II a violência psicológica entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações comportamentos crenças e decisões mediante ameaça constrangimento humilhação manipulação isolamento vigilância 5 constante perseguição contumaz insulto chantagem violação de sua intimidade ridicularização exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação Redação dada pela Lei nº 13772 de 2018 III a violência sexual entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação ameaça coação ou uso da força que a induza a comercializar ou a utilizar de qualquer modo a sua sexualidade que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio à gravidez ao aborto ou à prostituição mediante coação chantagem suborno ou manipulação ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos IV a violência patrimonial entendida como qualquer conduta que configure retenção subtração destruição parcial ou total de seus objetos instrumentos de trabalho documentos pessoais bens valores e direitos ou recursos econômicos incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades V a violência moral entendida como qualquer conduta que configure calúnia difamação ou injúria BRASIL 2006 Essas formas de agressão são complexas pervesas e geralmente não ocorrem isoladas uma das outras além de trazerem graves consequências para a mulher Qualquer das agressões seja ela física psicológica moral sexual e patrimonal constitui um ato de violação dos direitos humanos Nesse sentido pensar a questão de gênero é imprescindível Scott apud Ferreira Santos e Silva define gênero como O conceito de gênero enfatiza todo um sistema de relações que embora possa incluir o sexo não é por ele determinado nem determina diretamente a sexualidade remetendo que em sua origem as questões de gênero traziam um significado distinto do atual visto que se baseava na ideia de sexo determinado pela biologia o que no decorrer do tempo criouse a necessidade de ampliar esse debate perante a diversidade construída pela sociedade bem como pelos movimentos mutáveis que perpassa SCOTT apud FERREIRA SANTOS SILVA 2015 p 5 Os atos violentos contra as mulheres podem se manifestar de diversas formas como violência física sexual psicológica e até a morte Essa violência atinge mulheres de todas as classes sociais raçasetnias e de todos os níveis de escolaridade bem como se expressa por meio de ameaças medo controle humilhação indiferença ciúme patológico desqualificação intimidação tortura Essa forma de violência provoca sérios danos psicológicos nas mulheres como insegurança frustação medo e sentimento de ansiedade e afeta a autoestima e a saúde da vítima Embora a temática da violência contra a mulher especialmente no âmbito das relações domésticas constitua o tema mais amplo da nossa pesquisa 6 tomamos especificadamente como o principal objetivo de análise a violência psicológica presente nas relações conjugais isto é aquela modalidade específica de violência definida pela Lei n º 141882021 que instituiu o crime de violência psicológica contra a mulher no Código Penal A violência psicológica pode ser a mais difícil de perceber pois muitas vezes as pessoas próximas ou própria vítima conseguem perceber o que está acontecendo Diferentemente da violência física que deixa marcas visíveis no corpo o abuso psicológico não é evidente Essa é uma grande questão acerca dessa violência pois na prática como comprovar esse tipo de crime E como identificar que se é vítima de violência psicológica Ressaltase que as vítimas encontram dificuldade em provar esse tipo de violência mesmo sendo uma grave violação aos direitos humanos das mulheres e que produz reflexos diretos na sua saúde mental e física A Lei nº 141882021 que alterou o Código Penal foi sancionada recentemente e prevê punição para os agressores Mesmo que já estivesse prevista na Lei Maria da Penha é importante ter um tipo penal específico principalmente para as pessoas possam compreender melhor essa ação violadora dos direitos humanos das mulheres Além da punição essa lei pode ajudar a sociedade a se prevenir e a buscar ajuda Quando uma mulher relata essa violência devese ter muita atenção tendo em vista que a violência psicológica faz parte de um ciclo que pode ser englobar agressões físicas e até feminicídio Assim delineouse o objetivo geral da pesquisa que é identificar como as vítimas da violência psicológica podem provar esse tipo de violência Mas para ter uma resposta mais eficaz para esse objetivo geral traçaramse os seguintes objetivos específicos identificar o surgimento da violência psicológica na relação conjugal analisar os efeitos causados às vítimas de violência psicológica comprender a falta de percepção e consciência das vítimas de violência psicológica analisar a importância da Lei 1418821 e do programa Sinal Vermelho entender o papel do psicólogo no tratamento das consequências causadas pela violência psicológica e a importância da conscientização da violência psicológica Os métodos do estudo bibliográfico tiveram como tipo de pesquisa as revistas femininas Esse tema partiu de uma perspectiva em entender os motivos que causam a violência psicológica os danos causados às vítimas desse tipo de 7 violência e como essa violência se tornou crime através da Lei 1418821 e o programa Sinal Vermelho Nessa senda o principal objetivo é identificar as principais causas e consequências da violência psicológica sofrida pelas mulheres especificamente elencando como as mulheres podem provar esse tipo de violência e as consequências psicológicas vivenciadas pelas mulheres brasileiras vítimas dessa violência 11Objetivos 111 Objetivo geral Identificar como as vítimas da violência psicológica podem provar esse tipo de violência por meio da análise de periódico revista Marie Claire e da Lei nº 141882021 112 Objetivos específicos Historizar a violência contra as mulheres em especial a violência psicológica na relação conjugal por meio de bibliografias Analisar os efeitos causados às vítimas de violência psicológica através dos depoimentos relatados na revista Marie Claire Averiguar por meio dos depoimentos relatados nas fontes de pesquisa como as mulheres vítimas de violência sobretudo psicológica tem a percepção e consciência da situação Estudar a Lei 1418821 bem como o Programa Sinal Vermelho que aborda a temática Examinar e analisar casos concretos de violência psicológica e a importância da conscientização da violência psicológica através dos relatos na revista Marie Claire 12 Justificativa 8 A reflexão acerca do impacto da violência psicológica e os sérios danos causados por ela na vida das mulheres vítimas fere os direitos humanos e por isso é de urgente e extrema importância estudála na academia Contemporaneamente a sociedade convive cotidianamente com a violência praticada contra mulheres Essa realidade decorre de diversos fatores A condição histórica de submissão das mulheres desde períodos remotos constatam a sua historicidade Contextos sociais se concretizam efetivamente em realidades das mulheres sofredoras dessa modalidade de violência Por essa razão tornase tão difícil sua desconstrução Embora a Lei Maria da Penha tenha sido promulgada em 2006 com o objetivo de proteger as mulheres da violência doméstica e familiar uma grande parcela ainda se sente desrespeitada As estatísticas apontam que uma a cada cinco mulheres sofreu algum tipo de violência Nesse sentido com o objetivo de refletir sobre a temática o estudo será de relevância social acadêmica e jurídica 9 2 METOLOGIA PROPOSTA A pesquisa será bibliográfica e documental constituindose com caráter qualitativo analítico e descritivo O estudo da violência psicológica contra a mulher se embasará de publicações que compõem a literatura sobre o assunto bem como instrumentos jurídicos e políticos que tratam da proteção da mulher em especial a Lei nº 1418821 Serão analisados depoimentos das vítimas de violência publicados na revista feminina Marie Claire de acordo com as orientações metodológicas de Luca buscar as fontes e formar uma série representativa localizar as publicações no contexto da história da imprensa analisar as características do material tais como papel impressão e periodicidade caracterizar o material de acordo com as características analisadas identificar e caracterizar a equipe responsável pela publicação identificar o públicoalvo identificar as fontes de receita e analisar todo o material consoante a problemática do presente trabalho PINSKY et al 2008 p 142 Em relação à abordagem a pesquisa será qualitativa visto que se analisará os dados Em relação ao objetivo procurará compreender o porquê das coisas e abordará o que poderia eou deveria ser feito Nesse tipo de pesquisa os dados analisados são nãométricos suscitados e de interação e se valem de diferentes abordagens GERHARDT SILVEIRA 2009 p32 Sobre a natureza o estudo será uma pesquisa aplicada cujo objetivo é gerar conhecimentos para a aplicação prática dirigidos à solução de problemas específicos GERHARDT SILVEIRA 2009 p35 Será um estudo descritivo pois narrará os fatos que envolvem a violência contra a mulher através da análise documental cujo procedimento bibliográfico terá como arcabouço teórico livros monografias e artigos científicos encontrados nos meios eletrônicos Scielo Google Acadêmico e autores como Osaiki 2021 Sousa e Ritt 2021 Firmino e Pereira 2021 Fernandes Ávila e Cunha 2021 Bonfim e Pessoa 2021 entre outros A pesquisa será documental pois examinará jurisprudências legislações e a revista Maire Claire GERHARDT SILVEIRA 2009 consistindo em uma investigação científica observando minúcias como localizar 10 identificar e analisar um número significativo de bases de dados existentes e consistentes 3 CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO Quadro 1 Cronograma da pesquisa referente aos anos de 2021 e 2022 Etapas Jan Fev Mar Maio Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Definição do projeto de pesquisa X X Entrega da versão final do projeto X Qualificação do projeto X Coleta de dados X X X Análise ou interpretação dos dados X X X Desenvolvimento da escrita do TCC X X X X Revisão ortográfica X Defesa do artigo X 11 4 ORÇAMENTO Quadro 2 Orçamento referente às despesas da pesquisa Especificações das despesas Quantidade Valor unitário em R Total em R Revisão ortográfica e gramatical 2 10000 20000 Impressão 100 025 2500 Banner 1 8000 8000 Internet 10 13900 139000 Papel ofício A4 2 2500 5000 Pendrive 1 5000 5000 Encadernação 6 6000 600 Total 185500 Fonte Comércio de Pirapora MG Fonte dos recursos Próprios autores 12 REFERÊNCIAS BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03constituicaoconstituicaocompiladohtm Acesso em 23 set 2021 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 02 abr 2022 BRASIL Lei nº 14188 de 28 de julho de 2021 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato201920222021leiL14188htm Acesso em 02 abr 2022 FERREIRA Amanda Cristina de Souza SANTOS Ana Carla dos SILVA Thaíres Lima da Gênero e relações de opressão breves reflexões Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito Centro de Ciências Jurídicas Universidade Federal da Paraíba n 01 Ano 2015 Disponível em httpperiodicosufpbbrojs2indexphpgedindex Acesso em 02 abr 2022 GERHARDT Tatiana Engel SILVEIRA Denise Tolfo Orgs Métodos de pesquisa Porto Alegre RS Editora da UFRGS 2009 MORAES Alexandre de Direito Constitucional 19 ed São Paulo Atlas 2006 PINSKY et all Orgs Fontes históricas São paulo Contexto 2008 CENTRO UNIVERSITÁRIO FUNORTE CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO ANA CAROLINE LIMA SILVA JOYCE NAIRA TEIXEIRA DE ALMEIDA FILOMENA LUCIENE CORDEIRO REIS DRAMATICIDADE E TRAGICIDADE EM O PAGADOR DE PROMESSAS UMA ANÁLISE DA COMPLEXIDADE DOS PERSONAGENS E DA CRÍTICA SOCIAL NA OBRA DE DIAS GOMES MONTES CLAROS MG 2022 ANA CAROLINE LIMA SILVA JOYCE NAIRA TEIXEIRA DE ALMEIDA FILOMENA LUCIENE CORDEIRO REIS DRAMATICIDADE E TRAGICIDADE EM O PAGADOR DE PROMESSAS UMA ANÁLISE DA COMPLEXIDADE DOS PERSONAGENS E DA CRÍTICA SOCIAL NA OBRA DE DIAS GOMES Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora do curso de graduação em Direito do Centro Universitário Funorte como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Direito Orientadora Profa Dra Filomena Luciene Cordeiro Reis anacarolinesilvasoufunortecomb r joycealmeidasoufunortecombr filomenareisfunorteedubr MONTES CLAROS MG 2022 RESUMO A peça O Pagador de Promessas de Dias Gomes é uma obra fundamental do teatro brasileiro conhecida por sua profunda exploração de temas como fé sacrifício e o conflito entre o sagrado e o profano Este estudo busca analisar os elementos de dramaticidade e tragicidade na peça destacando como esses elementos são empregues por Dias Gomes para aprofundar a complexidade dos personagens e a crítica social implícita na obra O objetivo geral deste artigo é analisar os elementos de dramaticidade e tragicidade na peça O Pagador de Promessas e como esses elementos são utilizados para aprofundar a complexidade dos personagens e a crítica social implícita na obra A escolha de O Pagador de Promessas como objeto de estudo justificase pela sua relevância no cenário teatral brasileiro e mundial A obra aborda temas universais e oferece uma crítica contundente à sociedade brasileira da época o que a torna um objeto de estudo valioso tanto do ponto de vista literário quanto cultural A metodologia adotada será qualitativa utilizando a análise textual e a crítica literária como principais ferramentas O estudo será desenvolvido em cinco etapas revisão bibliográfica análise textual análise da construção dos personagens exploração da crítica social implícita e estudo do impacto e recepção da obra Estas etapas permitirão uma compreensão aprofundada das técnicas narrativas de Dias Gomes e da relevância contínua da peça Palavraschave dramaticidade tragicidade crítica social SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO4 2 OBJETIVOS5 21 OBJETIVO GERAL5 22 OBJETIVOS ESPECÍFICOS5 3 JUSTIFICATIVA6 4 METOLOGIA6 41 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA7 2 ANÁLISE TEXTUAL7 42 ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DOS PERSONAGENS7 43 EXPLORAÇÃO DA CRÍTICA SOCIAL IMPLÍCITA8 44 ESTUDO DO IMPACTO E DA RECEPÇÃO DA OBRA8 5 CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO9 REFERÊNCIAS10 4 1 INTRODUÇÃO A peça O Pagador de Promessas de Dias Gomes é uma obraprima do teatro brasileiro reconhecida tanto por sua relevância cultural quanto por sua profundidade temática Escrita em 1958 e encenada pela primeira vez em 1960 a peça destacase por explorar temas universais como fé sacrifício e o conflito entre o sagrado e o profano Além disso a obra ganhou projeção internacional ao ser adaptada para o cinema e premiada com a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1962 O Pagador de Promessas se insere no contexto do drama social moderno mas sua estrutura revela influências da tragédia clássica conforme apontado por estudiosos como Sebastiana Siqueira e Silva em sua dissertação O Pagador de Promessas Um drama trágico em tempos modernos 2009 Silva destaca que a peça de Dias Gomes embora moderna em seu enfoque e contexto incorpora elementos trágicos que remontam às tradições gregas tais como a construção de um herói trágico e o desenvolvimento de conflitos insuperáveis que culminam em um fim catastrófico Este estudo tem como objetivo analisar os elementos de dramaticidade e tragicidade em O Pagador de Promessas e como esses elementos são utilizados por Dias Gomes para aprofundar a complexidade dos personagens e a crítica social implícita na obra A peça aborda de forma crítica e reflexiva as tensões sociais e religiosas presentes na sociedade brasileira da época utilizandose de uma narrativa envolvente e personagens bem construídos para questionar e criticar a hipocrisia e as injustiças sociais A análise dos elementos trágicos na obra de Dias Gomes requer uma compreensão dos fundamentos do drama trágico estabelecidos por Aristóteles na Poética e posteriormente desenvolvidos por teóricos como Hegel Peter Szondi e Raymond Williams Segundo Aristóteles a tragédia é uma imitação de uma ação séria e completa que desperta temor e piedade conduzindo à catarse Em O Pagador de Promessas esses elementos são atualizados e adaptados ao contexto brasileiro resultando em uma peça que embora socialmente engajada mantém a essência da tragédia clássica 5 Os personagens da peça especialmente ZédoBurro são desenvolvidos com uma profundidade que reflete suas complexidades e contradições internas Zé doBurro com sua ingenuidade e determinação tornase um herói trágico cujas boas intenções o levam a um desfecho inevitavelmente catastrófico A construção de personagens tão ricos e multifacetados é um dos aspectos que conferem à obra sua dramaticidade intensa e seu impacto duradouro Além da análise dos personagens este estudo explorará as críticas sociais implícitas na obra relacionandoas ao contexto histórico e cultural do Brasil na década de 1960 O Pagador de Promessas não apenas reflete as tensões sociais da época mas também oferece uma crítica contundente à hipocrisia religiosa e às desigualdades sociais temas que permanecem relevantes até hoje A relevância de O Pagador de Promessas no cenário teatral brasileiro e mundial bem como sua capacidade de suscitar debates sobre questões sociais e humanas justifica a escolha desta peça como objeto de estudo Ao analisar os elementos de dramaticidade e tragicidade na obra este estudo busca contribuir para uma compreensão mais profunda das técnicas narrativas de Dias Gomes e da significância contínua de sua obra no campo da crítica literária e teatral 2 OBJETIVOS 21 OBJETIVO GERAL O objetivo deste artigo é analisar os elementos de dramaticidade e tragicidade na peça O Pagador de Promessas e como esses elementos são utilizados por Dias Gomes para aprofundar a complexidade dos personagens e a crítica social implícita na obra 22 OBJETIVOS ESPECÍFICOS Identificar e Descrever os Elementos de Dramaticidade e Tragicidade Mapear e detalhar os principais elementos dramáticos e trágicos presentes na peça destacando cenas e diálogos chave que exemplifiquem essas características 6 Analisar a Construção dos Personagens Examinar como Dias Gomes desenvolve a complexidade dos personagens principais especialmente ZédoBurro e como suas características e ações contribuem para a dramaticidade e tragicidade da narrativa Explorar a Crítica Social Implícita Investigar as críticas sociais subjacentes na obra relacionandoas com o contexto histórico e cultural do Brasil na época em que a peça foi escrita e encenada Estudar o Impacto das Principais Cenas Analisar cenas chave da peça e como elas contribuem para a evolução da trama e para o desenvolvimento dos temas de dramaticidade e tragicidade Avaliar o Impacto e a Recepção da Obra Estudar como a peça foi recebida pelo público e pela crítica ao longo dos anos e como seu impacto e relevância evoluíram desde seu lançamento até os dias atuais 3 JUSTIFICATIVA A escolha de O Pagador de Promessas como objeto de estudo justificase pela sua relevância no cenário teatral brasileiro e mundial Escrita por Dias Gomes a peça aborda temas universais como a fé o sacrifício e o confronto entre o sagrado e o profano através de uma narrativa rica em dramaticidade e tragicidade A obra ganhou reconhecimento internacional incluindo a Palma de Ouro no Festival de Cannes o que ressalta sua importância cultural e artística Explorar os elementos de dramaticidade e tragicidade na peça permite uma compreensão mais profunda das técnicas narrativas e dos recursos estilísticos utilizados por Dias Gomes para transmitir sua mensagem Além disso a análise da complexidade dos personagens e da crítica social implícita na obra oferece insights valiosos sobre a sociedade brasileira da época e seus desafios Este estudo também contribui para o campo da crítica literária e teatral fornecendo uma análise detalhada e contextualizada de uma obraprima do teatro brasileiro Ao investigar como os elementos de dramaticidade e tragicidade são utilizados na peça esperase revelar novas camadas de significado e enriquecer o debate acadêmico sobre a obra de Dias Gomes e sua relevância contínua 4 METOLOGIA 7 A metodologia adotada para este estudo será qualitativa utilizando a análise textual e a crítica literária como principais ferramentas O estudo será desenvolvido em cinco etapas principais conforme descrito a seguir 41 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Realizar uma revisão abrangente da literatura existente sobre os conceitos de dramaticidade e tragicidade na literatura e no teatro Além disso será realizado um levantamento dos principais estudos críticos sobre a obra O Pagador de Promessas Esta revisão ajudará a contextualizar a pesquisa e fornecerá um embasamento teórico para a análise Atividades Identificar e selecionar livros artigos acadêmicos e ensaios críticos relevantes Estudar e sintetizar os conceitos de dramaticidade e tragicidade Compilar e resumir as análises críticas já realizadas sobre O Pagador de Promessas 2 ANÁLISE TEXTUAL Realizar uma leitura detalhada e minuciosa da peça O Pagador de Promessas com foco na identificação e descrição dos elementos de dramaticidade e tragicidade Esta análise textual será estruturada em torno das seguintes atividades Atividades Leitura completa da peça para uma compreensão geral Identificação e anotação das passagens que apresentam elementos de dramaticidade e tragicidade Análise detalhada das cenas e diálogos chave que exemplificam esses elementos 42 ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DOS PERSONAGENS Examinar a construção dos personagens principais especialmente Zédo Burro Rosa e Padre Olavo Esta etapa visa entender como Dias Gomes desenvolve 8 a complexidade dos personagens e como suas características e ações contribuem para a dramaticidade e tragicidade da narrativa Atividades Descrever as características principais de cada personagem Analisar as motivações conflitos internos e desenvolvimento ao longo da peça Relacionar a construção dos personagens com os temas de dramaticidade e tragicidade 43 EXPLORAÇÃO DA CRÍTICA SOCIAL IMPLÍCITA Investigar as críticas sociais subjacentes na obra relacionandoas com o contexto histórico e cultural do Brasil na época em que a peça foi escrita e encenada Esta etapa permitirá entender como a obra reflete e critica a sociedade brasileira do período Atividades Contextualizar historicamente a peça destacando os principais eventos e características sociais da época Identificar e analisar as passagens da peça que fazem críticas sociais explícitas ou implícitas Relacionar as críticas sociais encontradas na peça com a dramaticidade e a tragicidade 44 ESTUDO DO IMPACTO E DA RECEPÇÃO DA OBRA Analisar como O Pagador de Promessas foi recebida pelo público e pela crítica ao longo dos anos e como seu impacto e relevância evoluíram desde seu lançamento até os dias atuais Esta análise ajudará a contextualizar a importância contínua da peça Atividades Coletar dados sobre a recepção inicial da peça e sua adaptação para o cinema Examinar críticas contemporâneas e modernas sobre a obra 9 Analisar o impacto cultural e artístico da peça ao longo dos anos Ferramentas e Técnicas Leitura e Análise Textual Para a leitura detalhada e a identificação de elementos de dramaticidade e tragicidade na peça Revisão de Literatura Utilização de bases de dados acadêmicas para a busca de artigos e livros relevantes Análise de Conteúdo Técnicas de análise de conteúdo serão aplicadas para interpretar e categorizar os dados coletados durante a revisão bibliográfica e a análise textual 5 CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO Quadro 1 Cronograma da pesquisa referente ao ano de 2025 Etapas Jan Fev Mar abril maio Jun jul ago set out nov dez Revisão Bibliográfica X X Análise Textual X X Análise da Construção dos Personagens X X Exploração da Crítica Social Implícita X X Estudo do Impacto e da Recepção da Obra X Redação do X X 10 Artigo Revisão do Artigo X Submissão do Artigo X REFERÊNCIAS ARISTÓTELES Poética Tradução de Eudoro de Sousa 7ª edição Rio de Janeiro Imprensa Nacional Casa da Moeda 2003 SILVA Sebastiana Siqueira e O Pagador de Promessas Um drama trágico em tempos modernos Dissertação de Mestrado Universidade Federal da Paraíba João Pessoa 2009 SZONDI Peter Teoria do Drama Moderno Tradução de Luiz Sérgio Repa São Paulo Cosac Naify 2001 WILLIAMS Raymond Tragédia Moderna Tradução de Betina Bischof São Paulo Cosac Naify 2002