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VINDA À AMÉRICA 1778 HAVIA UMA MENINA e seu tio a vendeu escreveu o sr Íbis em sua caligrafia elaborada e perfeita A história é essa o resto é detalhe Existem histórias verídicas em que a trajetória de cada indivíduo é exclusiva e trágica mas o pior da tragédia é que já a ouvimos antes então não nos permitimos sentila em toda a sua intensidade Criamos uma carapaça em torno dela como uma ostra que lida com uma partícula invasora dolorosa revestindoa com suaves camadas de pérola para processála É assim que andamos e conversamos e agimos dia sim dia não imunes à perda e à dor dos outros Se deixássemos que isso nos tocasse seríamos derrubados ou transformados em santos mas na maior parte das vezes não encosta em nós Não permitimos que o faça Hoje à noite quando você estiver comendo tente refletir existem crianças no mundo que passam fome milhares delas uma quantidade maior do que a mente humana é capaz de assimilar em que um erro de um milhão para mais ou para menos pode ser perdoado Talvez lhe cause desconforto refletir sobre isso ou talvez não mas ainda assim você comerá Existem relatos de que se deixarmos esses sentimentos adentrarem nosso coração eles nos infligirão cortes profundos Veja ali está um bom homem bom a seus próprios olhos e aos olhos de seus amigos ele é fiel e leal a sua esposa adora seus filhos pequenos e cuida deles com todo o carinho ama seu país se dedica a seu trabalho sempre fazendo o melhor que pode Então com eficiência e benevolência ele extermina judeus ele aprecia a música que soa ao fundo para deixálos mais calmos aconselha os judeus a não se esquecerem do número de identificação ao entrarem nas duchas avisa que muitas pessoas esquecem o próprio número e pegam a roupa errada ao saírem do banho Isso tranquiliza os judeus eles dizem a si mesmos que haverá vida após as duchas Mas eles se enganam Nosso homem supervisiona a equipe que leva os corpos até os fornos e se ele se sente mal é porque ainda permite que o extermínio das pragas o afete Ele sabe que se fosse um bom homem de verdade sentiria apenas alegria conforme a terra é purificada da infestação Deixeo aí causanos um corte profundo demais Ele está próximo demais e isso dói Havia uma menina e seu tio a vendeu Dito dessa forma parece muito simples Nenhum homem proclamou Donne é uma ilha e ele estava enganado Se não fôssemos ilhas estaríamos perdidos afogados nas tragédias uns dos outros Nós nos insulamos uma palavra que significa literalmente lembrese transformado em ilha diante da tragédia alheia devido a nossa natureza de ilha e devido ao aspecto repetitivo das histórias Conhecemos o formato dessas histórias e ele nunca muda Houve um ser humano que nasceu viveu e de alguma forma morreu Pronto Você pode preencher os detalhes a partir de sua própria experiência Uma história tão pouco original quanto qualquer outra uma vida tão singular quanto qualquer outra As vidas são como flocos de neve únicos em cada detalhe e capazes de formar padrões já vistos antes mas tão semelhantes uns aos outros quanto ervilhas dentro de uma vagem e você já olhou para ervilhas dentro de uma vagem Digo já olhou mesmo para elas Após um minuto de exame atento não há como não enxergar as diferenças entre elas Precisamos de histórias individuais Sem os indivíduos vemos apenas números mil mortos cem mil mortos as baixas podem chegar a um milhão Com histórias individuais as estatísticas se transformam em pessoas mas até isso é uma mentira pois as pessoas continuam a sofrer em quantidades que também entorpecem e carecem de sentido Olhe veja a barriga inchada do menino e as moscas que andam pelos olhos dele os membros esqueléticos seria mais fácil se você soubesse o nome dele sua idade seus sonhos seus medos Se o visse por dentro E se fosse não seria um desserviço à irmã dele que repousa na terra ardente a seu lado uma figura distorcida e estirada uma caricatura de criança humana E agora que nos solidarizamos com a dor dessas crianças elas são mais importantes para nós do que outras mil crianças atingidas pela mesma fome mil outras vidas jovens que logo se tornarão comida para as crianças contorcidas de fome das próprias moscas as larvas Traçamos nossos limites em torno desses momentos de dor e permanecemos em nossas ilhas e assim eles não são capazes de nos ferir São então cobertos por uma camada suave segura lustrosa para que assim eles possam cair como pérolas de nossa alma sem causar dor genuína A ficção permite que nos esgueiremos para dentro dessas outras cabeças desses outros lugares e olhemos por outros olhos E então na história paramos antes de morrer ou morremos ilesos na pele de terceiros e no mundo além da história viramos a página ou fechamos o livro e continuamos com nossa vida Uma vida que é como todas as outras diferente de todas as outras E a verdade pura e simples é esta havia uma menina e seu tio a vendeu Era isto que diziam no lugar de onde a menina veio nunca dá para ter certeza de quem é o pai de uma criança mas a mãe ah disso se podia ter certeza A linhagem e a propriedade eram transferidas pela matrilinearidade mas o poder permanecia nas mãos dos homens um homem detinha posse total dos filhos de sua irmã Houve uma guerra naquele lugar uma guerra pequena nada além de uma rusga entre os homens de dois povoados rivais Foi quase uma discussão Um povoado venceu a discussão um povoado perdeu A vida como commodity pessoas como propriedades Por milhares de anos a escravidão havia feito parte da cultura daquela região Os escravagistas árabes tinham destruído o último dos grandes reinos da África Oriental e as nações da África Ocidental tinham destruído umas às outras Não havia nada condenável ou incomum no fato de o tio vender os gêmeos embora gêmeos fossem considerados seres mágicos e o tio os temesse o bastante para não lhes dizer que seriam vendidos para que eles não ferissem sua sombra e o matassem Os gêmeos tinham doze anos Ela se chamava Wututu a ave mensageira ele Agasu o nome de um rei morto Eram crianças saudáveis e por serem gêmeas menino e menina disseramlhes muitas coisas sobre os deuses e por serem gêmeas elas ouviram o que lhes disseram e se lembraram O tio delas era um homem gordo e preguiçoso Se possuísse mais cabeças de gado talvez tivesse aberto mão de um animal e não das crianças mas ele não possuía Vendeu os gêmeos Deixemos o tio de lado ele não prosseguirá conosco nesta narrativa Sigamos os gêmeos Eles foram obrigados a marchar junto com outros escravos capturados ou vendidos na guerra por dezenove quilômetros até um pequeno posto avançado Ali os gêmeos e outros treze foram comprados por seis homens com lanças e facas que os fizeram rumar para o oeste na direção do mar e depois por muitos quilômetros ao longo da costa Agora eram quinze escravos ao todo as mãos restringidas com amarras frouxas presos um ao outro pelo pescoço Wututu perguntou ao irmão o que aconteceria com eles Não sei respondeu ele Agasu era um menino que sorria com frequência seus dentes eram brancos e perfeitos e ele os exibia ao sorrir e seus sorrisos felizes deixavam Wututu feliz também Mas agora ele não estava sorrindo Tentou mostrar coragem para a irmã mantendo a cabeça erguida e os ombros firmes orgulhoso ameaçador e cômico como um filhote de cachorro com o pelo das costas eriçado O homem atrás de Wututu na fila com uma cicatriz no rosto disse Eles nos venderão para os diabos brancos que vão nos levar para a terra deles do outro lado da água E o que vão fazer com a gente lá perguntou Wututu O homem não falou nada Hein insistiu Wututu Agasu tentou alertar a irmã com o olhar Eles não tinham permissão para conversar ou cantar enquanto andavam É possível que eles nos comam disse o homem Foi o que me contaram É por isso que precisam de tantos escravos Estão sempre com fome Wututu começou a chorar Não chore irmã disse Agasu Eles não vão comer você Eu protejo você Nossos deuses também Mas Wututu continuou chorando o coração cada vez mais pesado sentindo dor e raiva e medo de um modo que só uma criança é capaz de sentir pura e absolutamente Ela não conseguiu dizer a Agasu que não tinha medo de ser devorada pelos diabos brancos Tinha certeza de que sobreviveria Ela chorava porque o irmão talvez tivesse o mesmo destino e não sabia se conseguiria protegêlo Eles chegaram a um posto avançado e foram mantidos lá por dez dias Na manhã do décimo dia foram retirados da cabana onde haviam sido aprisionados nos últimos dias o espaço ficara muito abarrotado conforme homens chegavam de muito longe alguns tendo percorrido centenas de quilômetros trazendo suas próprias correias ou fileiras de escravos Eles foram conduzidos até o porto e Wututu avistou o barco que os levaria embora Seu primeiro pensamento foi que a embarcação era imensa e o segundo que ela era pequena demais para comportar todos eles Parecia pairar sobre a água O bote do navio ia e vinha levando os cativos até o navio onde eram agrilhoados e distribuídos nos convéses inferiores por marinheiros alguns dos quais tinham pele bronzeada ou vermelha como tijolo com narizes pontudos e barbas estranhas que os faziam parecer monstros Alguns dos marinheiros lembravam pessoas do povo dela lembravam os homens que a haviam feito marchar pela costa Os homens as mulheres e as crianças foram separados empurrados para áreas diferentes no convés Era impossível abrigar devidamente todos os escravos eram muitos então mais uma dúzia de homens foi acorrentada no convés superior embaixo dos pontos onde a tripulação prendia suas redes Wututu foi deixada junto com as crianças não com as mulheres e não foi acorrentada apenas trancada Agasu foi obrigado a ficar com os homens em correntes espremido como uma sardinha Fedia debaixo do convés embora a tripulação o tivesse lavado após remover a carga anterior O odor havia se entranhado na madeira o cheiro de medo e bílis e diarreia e morte de febre e loucura e ódio Wututu se sentou no espaço quente com as outras crianças seu suor se misturando ao delas Uma onda fez um menino cair em cima da menina e ele pediu desculpas em uma língua que Wututu não reconheceu Ela tentou sorrir para ele na penumbra O navio zarpou navegando vigorosamente pela água Wututu se perguntou sobre o lugar de onde vinham os homens brancos embora nenhum deles fosse branco de verdade tinham a pele escura queimada pelo mar e pelo sol Será que a comida na terra deles era tão escassa que precisavam ir até a dela para buscar gente para comer Ou seria ela uma iguaria uma guloseima rara para um povo que comia tantas coisas que só mesmo carne de pele negra nas panelas conseguia fazêlos salivar No segundo dia da viagem o navio enfrentou uma tormenta não muito forte mas os conveses do navio chegaram a pular e a tombar e o cheiro de vômito se uniu à mistura de cheiros de urina e fezes líquidas e suor A chuva jorrava pelas fendas de ventilação no teto do convés dos escravos Depois de uma semana de viagem e bem distante da terra os escravos foram liberados dos grilhões Avisaramlhes que qualquer ato de desobediência qualquer confusão que arranjassem receberia uma punição mais severa do que eles jamais haviam imaginado Pela manhã os cativos comiam feijão e biscoito de água e sal com um pouco de suco de limão azedo o bastante para fazêlos contorcer o rosto tossir e engasgar e alguns gemiam e grunhiam quando o suco era servido Mas eles não podiam cuspir se fossem flagrados cuspindo ou fingindo beber recebiam chicotadas ou surras No jantar comiam carne salgada O sabor era desagradável e a superfície cinzenta da carne exibia um brilho colorido como um arcoíris Isso foi no começo Conforme a viagem prosseguia a carne piorava Sempre que podiam Wututu e Agasu se reuniam e encolhidos num canto conversavam sobre a mãe a terra natal os amigos Às vezes Wututu contava ao irmão as histórias que a mãe lhes contara como as de Elegba o mais ardiloso dos deuses que era os olhos e os ouvidos da Grande Mawu no mundo que levava mensagens a Mawu e trazia suas respostas À noite para fugirem da monotonia do longo trajeto os marinheiros faziam os escravos cantarem e dançarem as músicas de suas terras nativas Wututu deu sorte de ter sido colocada com as crianças Elas ficavam abarrotadas e eram constantemente ignoradas mas o que esperava as mulheres era bem pior Em alguns navios negreiros as escravas eram estupradas repetidas vezes pela tripulação apenas um direito implícito da jornada Aquele navio não era assim o que não significava que não aconteciam estupros Cem homens mulheres e crianças morreram na viagem e foram jogados ao mar alguns deles nem mortos estavam ainda mas o frio verde do oceano os despertou da febre final e eles afundaram se debatendo se afogando perdidos Wututu e Agasu estavam em um navio holandês mas eles não sabiam disso e tanto faria se tivesse sido inglês português espanhol ou francês Os tripulantes negros do navio de pele ainda mais escura que a de Wututu diziam aos cativos aonde ir o que fazer quando dançar Certa manhã a menina percebeu que um dos guardas negros a encarava Ela estava comendo quando o homem se aproximou e ficou olhando para ela sem falar nada Por que você faz isso perguntou ela ao homem Por que você serve aos diabos brancos Ele abriu um sorriso como se aquela pergunta fosse a coisa mais engraçada que já tivesse ouvido Então se abaixou um pouco seus lábios quase roçando a orelha da menina e o hálito quente imediatamente deixou Wututu enjoada Se você fosse mais velha disse ele eu a faria gritar de alegria com o meu pênis Talvez eu faça hoje à noite Já vi como você dança bem Ela o encarou com seus olhos castanhos e respondeu sem alterar o tom de voz até sorrindo na verdade Se você puser isso dentro de mim eu vou arrancar com meus dentes lá de baixo Sou uma bruxa e tenho dentes muito afiados Ela ficou satisfeita quando viu a expressão do homem mudar Ele não falou mais nada e se afastou As palavras haviam saído de sua boca mas não foram palavras dela Wututu não pensara nelas nem as criara Não ela percebeu que as palavras eram de Elegba o ardiloso Mawu criara o mundo e depois graças aos ardis de Elegba perdera o interesse nele A esperteza e a ereção dura como ferro de Elegba é que haviam falado pela menina que a haviam possuído por um instante e naquela noite antes de dormir ela agradeceu ao deus Alguns cativos se recusaram a comer Eles foram açoitados até engolirem a comida colocada em sua boca embora os golpes tenham sido severos o bastante para matar dois dos homens Ainda assim ninguém mais no navio tentou se libertar através da fome Um homem e uma mulher tentaram se matar pulando na água A mulher conseguiu O homem foi resgatado e amarrado ao mastro e então chicoteado durante quase um dia até suas costas se banharem em sangue e foi deixado lá o dia dando lugar à noite Não recebeu nada para comer e nada para beber além da própria urina No terceiro dia ele delirava e sua cabeça ficara inchada e macia como um melão velho Quando os desvairos chegaram ao fim ele foi jogado ao mar E pelos cinco dias seguintes à tentativa de fuga os cativos voltaram às correntes e aos grilhões Foi uma longa viagem ruim para os cativos e pouco agradável para os tripulantes que haviam aprendido a endurecer o coração e a fingir que aquele trabalho era igual a qualquer outro apenas fazendeiros conduzindo gado Eles aportaram em um dia bonito e quente em Bridgetown Barbados e os cativos foram levados do navio para a praia em botes pequenos saídos do cais e depois conduzidos até a praça do mercado onde mediante certa dose de gritos e golpes de porrete foram organizados em fileiras Um apito soou e a praça se encheu de homens de rosto vermelho que cutucavam apertavam gritavam examinavam chamavam avaliavam resmungavam E foi naquele momento que Wututu e Agasu se separaram Foi muito rápido um homem abriu a boca de Agasu olhou seus dentes sentiu os músculos dos braços assentiu e então outros dois homens levaram o menino embora Ele não ofereceu resistência Olhou para Wututu e gritou Tenha coragem Ela fez que sim com a cabeça aos prantos sua visão sendo manchada pelas lágrimas Juntos eles eram gêmeos mágicos poderosos Separados eram duas crianças marcadas pela dor Ela só veria o irmão uma única vez depois daquele dia e nunca em vida Eis o que aconteceu com Agasu Primeiro eles o levaram para uma fazenda de especiarias onde o chicoteavam diariamente pelas coisas que fazia e pelas que não fazia também lhe ensinaram um mínimo de inglês e lhe deram o nome de Inky Jack Jack Carvão por causa da escuridão de sua pele Quando ele fugia os homens o caçavam com cachorros e o traziam de volta e lhe cortavam um dedo do pé com uma talhadeira para lhe ensinar uma lição que ele jamais esqueceria Ele tentou passar fome mas quando se recusou a comer quebraram seus dentes da frente e lhe empurraram um mingau ralo goela abaixo e suas únicas opções eram engolir a comida ou sufocar Mesmo naqueles tempos os senhores preferiam escravos nascidos em cativeiro aos trazidos da África Os que haviam nascido em liberdade sempre tentavam fugir ou morrer e de uma forma ou de outra lá se iam os lucros Com dezesseis anos Inky Jack foi vendido junto com outros escravos para uma plantation de cana em St Domingue Chamaramno de Hyacinth Jacinto o escravo grande de dentes quebrados Lá o jovem conheceu uma velha de seu antigo povoado A mulher havia sido uma escrava doméstica antes de seus dedos ficarem retorcidos e rígidos demais por causa da artrite Ela lhe disse que os brancos separavam os cativos que viessem da mesma cidade do mesmo povoado da mesma região para evitar insurreições Eles não gostavam quando os escravos conversavam em sua própria língua Hyacinth aprendeu um pouco de francês e alguns ensinamentos da Igreja Católica Todos os dias ele cortava cana desde muito antes de o sol nascer até depois de o sol se pôr Gerou muitas crianças Junto com outros escravos se embrenhava pela floresta em plena madrugada ainda que fosse proibido para dançar a calinda para cantar para DamballaWedo o deusserpente que surgia na forma de uma serpente negra Ele cantou para Elegba para Ogum Shangô Zaka e muitos outros todos os deuses que os cativos haviam levado à ilha escondidos na mente e no coração Os escravos nas plantations de açúcar de St Domingue raramente viviam mais de uma década O tempo livre que lhes era concedido duas horas no calor do meiodia e cinco horas na escuridão da noite das onze às quatro era também o único momento que eles tinham para plantar e preparar a própria comida pois eles não eram alimentados pelos senhores apenas recebiam pequenos pedaços de terra para cultivar e obter seu alimento e era também o momento que eles tinham para dormir e sonhar Ainda assim eles aproveitavam esse tempo para se reunir e dançar e cantar e louvar O solo de St Domingue era fértil e os deuses de Daomé do Congo e do Níger fincaram ali raízes vigorosas e cresceram exuberantes e imensos e profundos e prometeram liberdade àqueles que os louvassem à noite nas florestas Hyacinth tinha vinte e cinco anos de idade quando uma aranha mordeu sua mão direita O local da mordida infeccionou e a carne das costas da mão necrosou em pouco tempo o braço inteiro estava inchado e roxo e a mão fedia latejava e ardia Fizeramno beber rum fajuto e aqueceram a lâmina de um facão no fogo até ela brilhar vermelha e branca Cortaram fora o braço dele na altura no ombro com uma serra e o cauterizaram com a lâmina ardente Ele passou uma semana caído de febre Depois voltou ao trabalho O escravo de um braço só chamado Hyacinth participou da revolta dos escravos de 1791 O próprio Elegba se apossou de Hyacinth na floresta cavalgandoo como um homem branco cavalgava um cavalo e falou através dele Hyacinth não se lembrava muito do que fora dito mas os outros que o acompanharam disseram que ele lhes havia prometido a liberdade Ele se lembrava apenas da ereção rígida e dolorosa e de erguer as duas mãos a que ele tinha e a que não possuía mais para a lua Um porco foi morto e os homens e as mulheres da plantation beberam o sangue quente do animal jurando lealdade e criando uma irmandade Eles se declararam um exército de libertação e fizeram mais votos aos deuses de todas as terras de onde haviam sido roubados Se morrermos em batalha contra os brancos disseram uns aos outros renasceremos na África em nossos lares em nossas tribos Havia outro Hyacinth no grupo então passaram a chamar Agasu de Grande Braço Ele combateu louvou sacrificou planejou Viu seus amigos e suas amadas morrerem e continuou combatendo Eles combateram por doze anos uma luta enlouquecida e sangrenta contra os senhores de terra contra as forças trazidas da França Eles combateram e continuaram combatendo e o impossível aconteceu e eles venceram Em primeiro de janeiro de 1804 foi declarada a independência de St Domingue que logo viria a ser conhecido pelo mundo como República do Haiti Grande Braço não viveu para ver a independência se concretizar Ele morreu em agosto de 1802 pela baioneta de um soldado francês No momento exato da morte de Grande Braço que antes fora chamado Hyacinth e antes disso Inky Jack e que no coração sempre fora Agasu sua irmã que ele havia conhecido como Wututu que fora chamada Mary na primeira plantation nas Carolinas e Daisy quando se tornara escrava doméstica e Sukey quando a venderam à família Lavere mais abaixo em Nova Orleans sentiu a baioneta fria penetrar por entre as costelas e começou a gritar e a chorar descontroladamente Suas filhas gêmeas ainda bebês acordaram e começaram a chorar também Elas eram cor de café com creme ao contrário dos filhos negros que ela havia parido na plantation quando ela própria era pouco mais que uma criança filhos que ela não via desde que eles tinham quinze e dez anos A menina do meio havia morrido um ano antes quando foi vendida para longe Sukey fora açoitada muitas vezes desde que eles haviam desembarcado em uma ocasião esfregaram sal em suas feridas e em outra ela apanhou com tanta força e por tanto tempo que durante dias ela não conseguiu se sentar nem permitir que nada tocasse suas costas Ela fora estuprada várias vezes quando era mais nova por homens negros que haviam sido obrigados a partilhar o estrado de madeira com ela e por homens brancos Ela havia sido acorrentada Mas não chorara Desde que seu irmão fora tirado dela Sukey havia chorado apenas uma vez Foi na Carolina do Norte quando vira a comida para as crianças escravas e para os cachorros ser despejada no mesmo comedouro e vira seus filhos pequenos disputarem os restos com os cachorros Ela viu isso acontecer um dia e havia visto antes todos os dias naquela plantation e voltaria a ver muitas vezes mais antes de ir embora ela viu isso naquele dia e isso lhe partiu o coração Ela fora bonita por um tempo Mas os anos de dor haviam cobrado seu preço e ela já não era mais bonita Seu rosto era enrugado e havia sofrimento demais naqueles olhos castanhos Onze anos antes quando ela tinha vinte e cinco seu braço direito se atrofiara Nenhum dos brancos soubera dizer o que havia acontecido A carne pareceu escorrer dos ossos e agora seu braço direito pendia ao lado do corpo nada mais do que um braço esquelético coberto de pele e quase imóvel Depois disso ela se tornou uma escrava doméstica A família Casterton proprietária daquela plantation ficou impressionada com as habilidades dela na cozinha e no cuidado com a casa mas o braço atrofiado da criada incomodava a sra Casterton então ela foi vendida para a família Lavere que estava passando um ano fora da Louisiana o sr Lavere era um homem gordo e alegre que precisava de uma cozinheira e de uma criada para serviços gerais e que não sentia nem um pouco de repulsa pelo braço atrofiado da escrava Daisy Quando um ano depois eles voltaram à Louisiana a escrava Sukey foi junto Em Nova Orleans as mulheres iam até ela e também os homens atrás de curas e encantos de amor e pequenos amuletos pessoas negras sim claro mas também as brancas A família Lavere fazia vista grossa Talvez eles gostassem do prestígio de ter uma escrava que fosse temida e respeitada Porém não lhe venderiam a liberdade Sukey ia ao bayou tarde da noite e dançava a calinda e a bamboula Como os dançarinos em St Domingue e os dançarinos em sua terra natal os dançarinos no bayou usavam uma cobra preta como voudon mesmo assim os deuses da terra natal dela e os de outras nações africanas não possuíram aquelas pessoas como haviam possuído o irmão dela e as pessoas de St Domingue Mas ela continuava a invocálos e a chamar seus nomes a suplicar favores Ela ouviu quando os brancos falaram sobre a revolta em St Domingo como eles diziam e sobre como aquilo estava fadado ao fracasso Imagine só Uma terra de canibais e depois reparou quando eles pararam de falar no assunto A impressão era de que os brancos fingiam que nunca havia existido um lugar chamado St Domingue muito menos um com o nome de Haiti palavra que jamais era mencionada Era como se toda a nação americana tivesse decidido que se acreditasse bastante faria com que uma ilha caribenha inteira deixasse de existir por pura e simples força de vontade Uma geração de filhos dos Lavere cresceu sob o olhar atento de Sukey O mais novo incapaz de dizer Sukey na infância chamaraa de Mama Zouzou e o nome pegou Agora o ano era 1821 e Sukey estava com cinquenta e poucos anos Parecia muito mais velha Ela conhecia mais segredos do que a velha Sanité Dédé que vendia doces na frente do Cabildo mais do que Marie Saloppé que chamava a si mesma de rainha vodu as duas eram mulheres de cor livres enquanto Mama Zouzou era uma escrava e morreria escrava ou era o que seu mestre havia anunciado A jovem que veio até ela para descobrir o que havia acontecido com seu marido se apresentara como Viúva Paris Tinha seios firmes juventude orgulho Seu corpo tinha sangue africano e sangue europeu e sangue indígena Sua pele era avermelhada e seu cabelo era de um preto lustroso Seus olhos eram pretos e arrogantes Seu marido Jacques Paris talvez estivesse morto Ele era três quartos branco de acordo com o cálculo que se fazia dessas coisas e era o filho bastardo de uma família que já tivera prestígio no passado um dos muitos imigrantes que haviam fugido de St Domingue e um homem tão livre quanto sua bela e jovem esposa Meu Jacques Ele morreu perguntou a Viúva Paris Ela era uma cabeleireira que ia de casa em casa fazer penteados nas damas elegantes de Nova Orleans antes de seus compromissos sociais tão estressantes Mama Zouzou consultou os ossos e balançou a cabeça Ele está com uma mulher branca em algum lugar ao norte daqui disse ela Uma mulher branca de cabelo dourado Ele está vivo Não havia mágica alguma naquela descoberta Todo mundo em Nova Orleans sabia com quem exatamente Jacques Paris havia fugido e qual era a cor do cabelo dela Mama Zouzou ficou surpresa ao constatar que a Viúva Paris ainda não sabia que Jacques estava enfiando seu pintinho mulato em uma menina rosada lá em Colfax todas as noites Bom pelo menos nas noites em que ele não estava tão bêbado que só conseguia usálo para mijar Talvez ela soubesse Talvez tivesse vindo por outro motivo A Viúva Paris visitava a velha escrava uma ou duas vezes por semana Depois de um mês ela passou a trazer presentes para a velha laços de cabelo um bolo de semente de alcaravia um galo preto Mama Zouzou disse a moça é hora de você me ensinar tudo o que sabe Sim respondeu Mama Zouzou que sabia como o mundo funcionava Além do mais a Viúva Paris confessara que tinha nascido com os dedos dos pés colados o que significava que ela era gêmea e havia matado a irmã no útero Que escolha Mama Zouzou tinha Ela ensinou à moça que duas nozesmoscadas presas em um barbante em volta do pescoço até o barbante se romper curam sopros cardíacos e que um pombo que nunca voou se for aberto e colocado na cabeça do paciente aplacará uma febre Ela lhe mostrou como fazer uma bolsa de desejos uma bolsinha de couro contendo treze moedas de um centavo nove sementes de algodão e pelos de um porco preto e mostrou como esfregar a bolsa para fazer com que os desejos se realizassem A Viúva Paris aprendeu tudo o que Mama Zouzou lhe ensinou mas ela não se interessava muito pelos deuses Nem um pouco Ela preferia se ater às questões práticas Ficou maravilhada ao descobrir que se mergulhasse uma rã viva em mel e a colocasse em um formigueiro depois quando os ossos estivessem limpos e brancos um olhar mais atento encontraria um osso achatado em forma de coração e outro com um gancho o osso com o gancho deve ser preso à roupa da pessoa cujo amor é desejado enquanto o osso com forma de coração deve ser guardado em segurança pois se for perdido a pessoa amada se voltará contra você como um cão raivoso Isso feito pronto a pessoa amada será conquistada Ela descobriu que pó de cobra ressecada se colocado no pó facial de uma inimiga causará cegueira e que é possível fazer uma inimiga se afogar obtendose uma roupa de baixo dela virandoa do avesso e enterrandoa à meianoite sob um tijolo Mama Zouzou mostrou à Viúva Paris a Raiz Maravilhosa do Mundo as grandes e as pequenas raízes de John the Conqueror e também um pouco de sangue de dragão e ervagato e potentilha Ela a ensinou a preparar chá de definhar e água de me siga e água faireShingo Tudo isso e mais um pouco Mama Zouzou ensinou à Viúva Paris Ainda assim no final foi uma decepção para a velha Ela fez o possível para transmitir as verdades ocultas o conhecimento profundo para contar de Elegba de Mawu de AidoHwedo da serpente voudon e do resto mas a Viúva Paris agora lhe direi o nome com que ela nasceu o nome que mais tarde se tornou famoso era Marie Laveau Mas essa não era a grande Marie Laveau da qual você já ouviu falar era sua mãe que com o tempo viria a ser a Viúva Glapion não tinha interesse algum nos deuses da terra do outro lado do oceano Se St Domingue havia sido uma terra negra exuberante para o crescimento dos deuses africanos aquela terra com o milho e os melões as lagostas e o algodão era estéril e infértil Ela não liga reclamou Mama Zouzou para Clémentine sua confidente que trabalhava de lavadeira para muitas das casas naquele distrito lavando cortinas e colchas Clémentine tinha um jardim de queimaduras no rosto e um de seus filhos havia morrido escaldado quando um caldeirão de cobre tombou Então não ensine disse Clémentine Eu ensino mas ela não vê o que é precioso Ela só vê o que pode ser feito com os ensinamentos Eu dou diamantes mas ela só se importa com o vidro bonito Eu dou uma demibouteille do melhor vinho clarete e ela bebe água de rio Eu dou codorna e ela só deseja comer rato Então por que você persiste perguntou Clémentine Mama Zouzou deu de ombros e seu braço atrofiado tremeu Ela não tinha a resposta Poderia dizer que ensinava por estar grata por continuar viva e ela estava já vira muitos morrerem Poderia dizer que sonhava com o dia em que os escravos se levantariam tal como se levantaram e foram derrotados em LaPlace mas ela sabia no íntimo que sem os deuses da África eles jamais superariam seus captores brancos jamais voltariam à terra natal Quando ela acordou naquela noite terrível quase vinte anos antes e sentiu o aço frio entre as costelas foi aí que a vida de Mama Zouzou acabou Agora ela era alguém que não vivia que apenas odiava Se você lhe perguntasse sobre o ódio ela jamais mencionaria a menina de doze anos em um navio fétido isso havia sido encoberto em sua mente foram açoites e surras demais noites demais em grilhões despedidas demais dor demais Mas ela poderia falar sobre o filho e sobre quando arrancaram o polegar dele quando o mestre descobriu que o menino sabia ler e escrever Ela poderia falar da filha com doze anos e já grávida de oito meses de um capataz e do buraco que cavaram na terra vermelha para acomodar a barriga grávida de sua filha e depois a açoitaram até fazer as costas dela sangrarem Apesar do buraco cavado cuidadosamente sua filha havia perdido o bebê e a vida em uma manhã de domingo quando todos os brancos estavam na igreja Dor demais Louveos disse Mama Zouzou à jovem Viúva Paris no bayou uma hora após a meianoite As duas estavam com o peito desnudo e suavam no ar úmido da noite e a pele delas se realçava ao luar O marido da Viúva Paris Jacques cuja morte três anos mais tarde apresentaria diversas características notáveis contara a Marie um pouco sobre os deuses de St Domingue mas ela não se importava O poder vinha dos rituais não dos deuses Juntas Mama Zouzou e a Viúva Paris entoavam e batiam os pés e gemiam no pântano Elas cantavam para as serpentes negras a mulher de cor livre e a escrava com o braço atrofiado Isto é muito maior do que a sua prosperidade e o fracasso dos seus inimigos disse Mama Zouzou Muitas palavras das cerimônias palavras que no passado ela conhecia palavras que seu irmão também conhecera essas palavras haviam fugido de sua memória Ela disse à bela Marie Laveau que as palavras não importavam apenas as melodias e as batidas e ali cantando e batendo nas serpentes negras no pântano ela teve uma visão estranha Ela viu o ritmo das canções o ritmo da calinda o ritmo da bamboula todos os ritmos da África equatorial disseminandose lentamente por aquela terra da meianoite até todo o país tremer e se mover ao ritmo dos velhos deuses de cujo reino ela havia saído E compreendeu de alguma forma ali no pântano que nem mesmo isso seria suficiente Ela se virou para a bela Marie e viu a si mesma pelos olhos da jovem uma mulher velha de pele negra rosto enrugado um braço magro caído inerte ao lado do corpo os olhos de uma pessoa que viu seus filhos brigarem pela comida do comedouro com os cachorros Viu a si mesma e percebeu pela primeira vez a repulsa e o medo que a outra mulher sentia por ela E então ela riu e se abaixou e pegou com a mão boa uma cobra comprida como um galho de árvore e grossa como uma corda de navio Aqui disse ela Isto será nosso voudon Ela soltou a cobra sem resistência dentro de um cesto que a pálida Marie havia levado E então ao luar a segunda visão a possuiu uma última vez e ela viu o irmão Agasu não o menino de doze anos que ela vira no mercado de Bridgetown tanto tempo antes mas um homem imenso careca e sorridente com dentes quebrados e as costas marcadas por cicatrizes profundas Na mão ele segurava um facão O braço direito era apenas um cotoco Ela estendeu a mão esquerda a mão boa Fique fique mais um pouco sussurrou ela Irei aí Irei até você logo logo E Marie Paris achou que a velha estivesse falando com ela 1 What impact did slavery have on human society Can access to food in countries be influenced by this factor 2 How can you relate Neil Gaimans chapter with social issues Use quotes 3 Do we still have slaverylike jobs Cite examples PRECISO ATÉ HOJE AS 1500 DA TARDE ESSAS PERGUNTAS SÃO RELACIONADAS AO LIVRO CAPÍTULO DEUSES AMERICANOS