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GÊNERO UMA CATEGORIA ÚTIL PARA ANÁLISE HISTÓRICA JOAN SCOTT TRADUÇÃO Christine Rufino Dabat Maria Betânia Ávila Texto original Joan Scott Gender a useful category of historical analyses Gender and the politics of history New York Columbia University Press 1989 Nota das tradutoras A divulgação desta produção foi devidamente autorizada pela autora Joan Scott Joan Scott é professora da Escola de ciências Sociais do Instituto de altos Estudos de Princeton Nova Jersey É especialista na história do movimento operário no século XIX e do feminismo na França É sem dúvida uma das mais importantes teóricas sobre o uso da categoria gênero em história GÊNERO UMA CATEGORIA ÚTIL PARA ANÁLISE HISTÓRICA JOAN SCOTT Gênero categoria que indica por meio de desinências uma divisão dos nomes baseada em critérios tais como sexo e associações psicológicas Há gêneros masculino feminino e neutro Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Os que se propõem a codificar os sentidos das palavras lutam por uma causa perdida porque as palavras como as ideias e as coisas que elas significam têm uma história Nem os professores da Oxford nem a academia Francesa foram inteiramente capazes de controlar a maré de captar e fixar os sentidos livres do jogo da invenção e da imaginação humana Mary Wortley Montagu acrescentava a ironia à sua denúncia do belo sexo meu único consolo em pertencer a este gênero é ter certeza de que nunca vou me casar com uma delas fazendo uso deliberadamente errado da referência gramatical 1 Ao longo dos séculos as pessoas utilizaram de forma figurada os termos gramaticais para evocar traços de caráter ou traços sexuais Por exemplo a utilização proposta pelo Dicionário da Língua Francesa de 1876 era Não se sabe qual é o seu gênero se é macho ou fêmea falase de um homem muito retraído cujos sentimentos são desconhecidos 2 Gladstone fazia esta distinção em 1878 Atena não tinha nada do sexo a não ser gênero nada de mulher a não ser forma 3 Mais recentemente recentemente demais para que possa encontrar seu caminho nos dicionários ou na enciclopédia das ciências sociais as feministas começaram a utilizar a palavra gênero mais seriamente no sentido mais literal como uma maneira de referirse à organização social da relação entre os sexos A relação com a gramática é ao mesmo tempo explícita e cheia de possibilidades inexplotadas Explicita porque o uso gramatical implica em regras formas que decorrem da designação de masculino ou feminino cheia de possibilidades inexplotadas porque em vários idiomas indoeuropeus existe uma terceira categoria o sexo indefinido ou neutro Na gramática gênero é compreendido como um meio de classificar fenômenos um sistema de distinções socialmente acordado mais do que uma descrição objetiva de traços inerentes Além disso as classificações sugerem uma relação entre categorias que permite distinções ou agrupamentos separados No seu uso mais recente o gênero parece ter aparecido primeiro entre as feministas americanas que queriam insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual O gênero sublinhava também o aspecto relacional das definições normativas das feminilidades As que estavam mais preocupadas com o fato de que a produção dos estudos femininos centravase sobre as mulheres de forma muito estreita e isolada utilizaram o termo gênero para introduzir uma noção relacional no nosso vocabulário analítico Segundo esta opinião as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão de qualquer um poderia existir através de estudo inteiramente separado Assim Nathalie Davis dizia em 1975 Eu acho que deveríamos nos interessar pela história tanto dos homens quanto das mulheres e que não deveríamos trabalhar unicamente sobre o sexo oprimido do mesmo jeito que um historiador das classes não pode fixar seu olhar unicamente sobre os camponeses Nosso objetivo é entender a importância dos sexos dos grupos de gênero no passado histórico Nosso objetivo é descobrir a amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual nas várias sociedades e épocas achar qual o seu sentido e como funcionavam para manter a ordem social e para mudála 4 Ademais e talvez o mais importante o gênero era um termo proposto por aquelas que defendiam que a pesquisa sobre mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas no seio de cada disciplina As pesquisadoras feministas assinalaram muito cedo que o estudo das mulheres acrescentaria não só novos temas como também iria impor uma reavaliação crítica das premissas e critérios do trabalho científico existente Aprendemos escreviam três historiadoras feministas que inscrever as mulheres na história implica necessariamente a redefinição e o alargamento das noções tradicionais do que é historicamente importante para incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva quanto as atividades públicas e políticas Não é exagerado dizer que por mais hesitante que sejam os princípios reais de hoje tal metodologia implica não só em uma nova história das mulheres mas em uma nova história 5 A maneira como esta nova história iria simultaneamente incluir e apresentar a experiência das mulheres dependeria da maneira como o gênero poderia ser desenvolvido como uma categoria de análise Aqui as analogias com a classe e a raça eram explícitas com efeito asos pesquisadorases de estudos sobre a mulher que tinham uma visão política mais global recorriam regularmente a essas três categorias para escrever uma nova história 6 O interesse pelas categorias de classe de raça e de gênero assinalavam primeiro o compromisso do a pesquisadora com a história que incluía a fala dosas oprimidosas e com uma análise do sentido e da natureza de sua opressão assinalava também que essesas pesquisadoresas levavam cientificamente em consideração o fato de que as desigualdades de poder estão organizadas segundo no mínimo estes três eixos A ladainha classe raça e gênero sugere uma paridade entre os três termos que na realidade não existe Enquanto a categoria de classe está baseada na teoria complexa de Marx e seus desenvolvimentos posteriores da determinação econômica e da mudança histórica as de raça e de gênero não veiculam tais associações Não há unanimidade entre osas que utilizam os conceitos de classe Algunsas pesquisadoresas utilizam a noção de Weber outrosas utilizam a classe como uma fórmula heurística temporária Além disso quando mencionamos a classe trabalhamos com ou contra uma série de definições que no caso do Marxismo implica uma ideia de causalidade econômica e uma visão do caminho pelo qual a história avançou dialeticamente Não existe este tipo de clareza ou coerência nem para a categoria de raça nem para a gênero No caso de gênero o seu uso comporta um elenco tanto de posições teóricas quanto de simples referências descritivas às relações entre os sexos elases utilizaram as formulações antigas que propõem explicações causais universais Estas teorias tiveram no melhor dos casos um caráter limitado porque elas tendem a incluir generalizações redutoras ou simples demais estas minam não só o sentido da complexidade da causalidade social tal qual proposta pela história como disciplina mas também o engajamento feminista na elaboração de análises que levam à mudança Um exame crítico destas teorias mostrará os seus limites e permitirá propor uma abordagem alternativa7 As abordagens utilizadas pela maioria dosas historiadoresas se dividem em duas categorias distintas A primeira é essencialmente descritiva isto é ela se refere à existência de fenômenos ou realidades sem interpretar explicar ou atribuir uma causalidade O segundo uso é de ordem causal ele elabora teorias sobre a natureza dos fenômenos e das realidades buscando entender como e porque aqueles tomam a forma que eles têm Mas isso é só um aspecto Gênero como substituto de mulheres é igualmente utilizado para sugerir que a informação a respeito das mulheres é necessariamente informação sobre os homens que um implica no estudo do outro Este uso insiste na ideia de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens que ele é criado dentro e por esse mundo Esse uso rejeita a validade interpretativa da ideia das esferas separadas e defende que estudar as mulheres de forma separada perpetua o mito de que uma esfera a experiência de um sexo tem muito pouco ou nada a ver com o outro sexo Além disso o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas como aquelas que encontraram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior O gênero se torna aliás uma maneira de indicar as construções sociais a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres O gênero é segundo essa definição uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado 8 Com a proliferação dos estudos do sexo e da sexualidade o gênero se tornou uma palavra particularmente útil porque ele oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens Apesar do fato dosas pesquisadoresas reconhecerem as relações entre o sexo e o que os sociólogos da família chamaram os papéis sexuais estesas não colocam entre os dois uma relação simples ou direta O uso do gênero coloca ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade No seu uso recente mais simples gênero é sinônimo de mulheres Livros e artigos de todo tipo que tinham como tema a história das mulheres substituíram durante os últimos anos nos seus títulos o termo de mulheres pelo termo de gênero Em alguns casos este uso ainda que referindose vagamente a certos conceitos analíticos trata realmente da aceitabilidade política desse campo de pesquisa Nessas circunstâncias o uso do termo gênero visa indicar a erudição e a seriedade de um trabalho porque gênero tem uma conotação mais objetiva e neutra do que mulheres O gênero parece integrarse na terminologia científica das ciências sociais e por consequência dissociarse da política pretensamente escandalosa do feminismo Neste uso o termo gênero não implica necessariamente na tomada de posição sobre a desigualdade ou o poder nem mesmo designa a parte lesada e até agora invisível Enquanto o termo história das mulheres revela a sua posição política ao afirmar contrariamente às práticas habituais que as mulheres são sujeitos históricos legítimos o gênero inclui as mulheres sem as nomear e parece assim não se constituir em uma ameaça crítica Este uso do gênero é um aspecto que a gente poderia chamar de procura de uma legitimidade acadêmica pelos estudos feministas nos anos 1980 Esses usos descritivos do gênero foram utilizados pelosas historiadoresas na maioria dos casos para mapear um novo terreno Na medida em que osas historiadoresas sociais se voltavam para novos temas de estudo o gênero dizia respeito apenas a temas como as mulheres as crianças as famílias e as ideologias do gênero Em outros termos esse uso do gênero só se refere aos domínios tanto estruturais quanto ideológicos que implicam em relações entre os sexos Porque na aparência a guerra a diplomacia e a alta política não têm explicitamente a ver com essas relações O gênero parece não se aplicar a esses objetivos e portanto continua irrelevante para a reflexão dosas historiadoresas que trabalhavam sobre o político e o poder Isso tem como resultado a adesão a certa visão funcionalista baseada em última análise sobre a biologia e a perpetuação da ideia das esferas separadas na escrita da história a sexualidade ou a política a família ou a nação as mulheres ou os homens Mesmo se nesse uso o termo gênero afirma que as relações entre os sexos são sociais ele não diz nada sobre as razões pelas quais essas relações são construídas como são ele não diz como elas funcionam ou como elas mudam No seu uso descritivo o gênero é portanto um conceito associado ao estudo das coisas relativas às mulheres O gênero é um novo tema novo campo de pesquisas históricas mas ele não tem a força de análise suficiente para interrogar e mudar os paradigmas históricos existentes Algunsas historiadoresas estavam naturalmente conscientes desse problema daí os esforços para empregar teorias que possam explicar o conceito de gênero e explicar a mudança histórica De fato o desafio é a reconciliação da teoria que era concebida em termos gerais ou universais com a história que estava tratando do estudo de contextos específicos e da mudança fundamental O resultado foi muito eclético empréstimos parciais que enviesam a força de análise de uma teoria particular ou pior que empregam os seus preceitos sem ter consciência das suas implicações ou então tentativas para esclarecer a mudança porque elas se embasavam nas teorias universais e só conseguem mostrar temas imutáveis ou ainda estudos maravilhosos e cheios de imaginação nos quais a teoria é entretanto tão escondida que esses estudos não podem ser utilizados como modelos para outras pesquisas Como frequentemente as teorias que inspiraram osas historiadoresas não foram claramente articuladas em todas as suas implicações parece digno de interesse empregar algum tempo nesse exame É unicamente através de tal exercício que se pode avaliar a utilidade dessas teorias e talvez articular uma abordagem teórica mais poderosa posições teóricas 9 A primeira um esforço inteiramente feminista que tenta explicar os origens do patriarcado A segunda se sitúa no seio de uma tradição marxista e procura um compromisso com as críticas feministas A terceira fundamentalmente dividida entre o pósestruturalismo francês e as teorias angloamericanas das relações de objeto inspirase nas várias escolas de psicanálise para explicar a produção e a reprodução da identidade de gênero do sujeito As teóricas do patriarcado concentraram sua atenção na subordinação das mulheres e encontraram a explicação na necessidade do macho dominar as mulheres Na adaptação engenhosa de Hegel Mary OBrien define a dominação masculina como um efeito do desejo dos homens de transcender a sua privação dos meios de reprodução da espécie O princípio da continuidade de geração restituiu a primazia da paternidade e obscureceu o labor real e a realidade social do trabalho das mulheres no parto A fonte da libertação das mulheres se encontra numa compreensão adequada do processo de reprodução numa avaliação das contradições entre a natureza do trabalho reprodutivo das mulheres e a mistificação ideológica masculina deste 10 Para Sulaimith Firestone a reprodução era também aquela amarga armadilha para as mulheres Entretanto na sua análise mais materialista a libertação das mulheres viria das transformações da tecnologia de reprodução que poderia no futuro próximo eliminar a necessidade do corpo das mulheres como agentes de reprodução da espécie 11 Se a reprodução era a chave do patriarcado para algumas para outras a resposta se encontrava na sexualidade em si As formulações audaciosas de Catherine Mackinnon são criações próprias mas ao mesmo tempo são características de certa abordagem A sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo o que nos pertence mais e no entanto nos é mais alienado A reificação sexual é o processo primário da sujeição das mulheres Ele alia o ato à palavra a construção à expressão a percepção à coerção o mito à realidade O homem come a mulher sujeito verbo objeto 12 Continuando sua analogia com Marx Mackinnon propôs como método de análise feminista no lugar do materialismo dialético os grupos de consciência Expressando a experiência comum de reificação dizia patriarcado e o capitalismo que são separados mas em interação como no caso em que a análise desenvolvida se refere mais estritamente aos debates marxistas ortodoxos sobre os modos de produção a explicação das origens e das transformações de sistemas de gêneros se encontra fora da divisão sexual do trabalho Afinal de contas famílias lares e sexualidade são produtos da mudança dos modos de produção É assim que Engels concluía as suas explorações na Origem da Família 15 é sobre isso que se baseia a análise da economista Heidi Hartmann Ela insiste sobre a necessidade de considerar o patriarcado e o capitalismo como dois sistemas separados mas em interação Porém à medida que desenvolve a sua argumentação a causalidade econômica se torna prioritária e o patriarcado está sempre se desenvolvendo e mudando como uma função das relações de produção 16 Os primeiros debates entre as feministas marxistas giravam em torno dos mesmos problemas a rejeição do essencialismo daqueles que defendem que as exigências da reprodução biológica determinavam a divisão sexual do trabalho pelo capitalismo o caráter fútil da integração dos modos de reprodução nos debates sobre os modos de produção que reprodução permanece uma categoria oposta e não tem um estatuto equivalente ao de modo de produção o reconhecimento que os sistemas econômicos não determinam de forma direta as relações de gênero e que de fato a subordinacão das mulheres é anterior ao capitalismo e continua sob o socialismo a busca apesar de tudo de uma explicação materialista que exclua as diferenças físicas e naturais 17 Uma tentativa importante de sair desse círculo vem de Joan Kelly no seu ensaio A Dupla Visão da Teoria Feminista onde ela defende que os sistemas econômicos e os sistemas de gênero agiam reciprocamente uns sobre os outros para produzir experiências sociais e históricas que nenhum dos dois sistemas era causal mas que ambos operavam simultaneamente para reproduzir as estruturas sócioeconômicas e as estruturas de dominação masculina de uma ordem social particular A ideia de Kelly de que os sistemas de gênero teriam uma existência independente se constituiu numa abertura conceitual decisiva mas sua vontade de permanecer no quadro marxista levoua a dar ênfase à causalidade econômica inclusive no que diz respeito à determinação dos sistemas de gênero A relação entre os sexos ocorre em função de estruturas de gênero 18 Kelly introduziu a ideia de uma realidade social baseada no sexo mas ela tinha tendência a enfatizar o caráter social mais do que o sexual dessa realidade e muitas vezes o uso que ela fazia do social era concebido em termos de relações econômicas de produção Uma comparação entre as tentativas das feministas marxistas americanas exploratórias e relativamente abrangentes e as das suas homólogas inglesas mais estreitamente ligadas à política de uma tradição marxista forte e viável revela que as inglesas têm tido mais dificuldades em desafiar os limites de explicações estritamente deterministas Essa dificuldade se expressa da forma mais espetacular nos recentes debates que foram publicados na New Left Review entre Michele Barrett e seussuas críticosas que a acusavam de abandonar uma análise materialista da divisão sexual do trabalho no capitalismo 22 Ela se expressa também pelo fato de que os pesquisadores que tinham iniciado uma tentativa feminina de reconciliação entre a psicanálise e o marxismo e que tinham insistido na possibilidade de certa fusão entre os dois escolham hoje uma ou outra dessas posições teóricas 23 A dificuldade para as feministas inglesas e americanas que trabalhams nos quadros do marxismo é aparente nas obras que eu mencionei aqui O problema com o qual elas se defrontam é o inverso daqueles que a teoria do patriarcado coloca No interior do marxismo o conceito de gênero foi por muito tempo tratado como subproduto de estruturas econômicas mutantes o gênero não tem tido o seu próprio estatuto de análise As duas escolas se interessam pelos processos através dos quais foi criada a identidade do sujeito as duas centram o seu interesse nas primeiras etapas do desenvolvimento da criança com o objetivo de encontrar indicações sobre a formação da identidade de gênero As teóricas das relações de objeto colocam a ênfase sobre a influência da experiência concreta a criança vê ouve têm relações com as pessoas que cuidam dela particularmente naturalmente com os seus pais ao passo que os pósestruturalistas sublinham o papel central da linguagem na comunicação interpretação e representação de gênero para os pósestruturalistas linguagem não designa unicamente as palavras mas os sistemas de significação as ordens simbólicas que antecedem o domínio da palavra propriamente dita da leitura e da escrita Outra diferença entre essas duas escolas de pensamento diz respeito ao inconsciente que para Chodorow é em última instância suscetível de compreensão consciente enquanto para Lacan não é Para as lacanianas o inconsciente é um fator decisivo na construção do sujeito Ademais é o lugar de emergência da divisão sexual e por essa razão um lugar de instabilidade constante para o sujeito sexuado Nos anos recentes as historiadoras feministas têm sido atraídas por essa teoria ou porque elas permitem fundamentar conclusões particulares para observações gerais ou porque elas parecem oferecer uma formulação teórica importante no que diz respeito ao gênero Cada vez mais osas historiadoresas que trabalham com o conceito de cultura feminina citam as obras de Chodorow e Gilligan como provas e como explicações das suas interpretações aquelas que têm problemas com a teoria feminista se viram em direção a Lacan Afinal de contas nenhuma dessas teorias me parece inteiramente utilizada pelosas historiadoresas um olhar mais atento sobre cada uma delas poderia ajudar a explicar o porquê Minhas reticências frente à teoria das relações de objeto provêm do seu literalismo do fato de que ela faz depender a produção da identidade de gênero e a gênese da mudança de estruturas de interrelação relativamente pequenas Tanto a divisão do trabalho na família quanto as tarefas atribuídas a cada um dos pais têm um papel crucial na teoria de Chodorow O produto do sistema dominante ocidental é uma divisão nítida entre masculino e feminino o sentido feminino do Eu é fundamentalmente ligado ao mundo o sentido masculino do Eu é fundamentalmente separado do mundo 24 Segundo Chodorow se os pais fossem mais envolvidos nos deveres parentais e mais presentes nas situações domésticas os resultados do drama edipiano seriam provavelmente diferentes 25 Essa interpretação limita o conceito de gênero à esfera da família e à experiência doméstica e para oa historiadora ela não deixa meios de ligar esse conceito nem o indivíduo com outros sistemas sociais econômicos políticos ou de poder Sem dúvida está implícito que as disposições sociais que exigem que os pais trabalhem e as mães cuidem da maioria das tarefas de criação dos filhos estruturam a organização da família Mas a origem dessas disposições sociais não está clara nem o porquê delas serem articuladas em termos da divisão sexual do trabalho Não se encontra também nenhuma interrogação sobre o problema da desigualdade em oposição àquele da simetria Como podemos explicar no seio dessa teoria a associação persistente da masculinidade com o poder e o fato de que os valores mais altos estão investidos na virilidade do que na feminilidade Como podemos explicar o fato de que as crianças aprendem essas associações e avaliações mesmo quando elas vivem fora de lares nucleares ou dentro de lares onde o marido e a mulher dividem as tarefas parentais Eu acho que não podemos fazer isso sem dar certa atenção aos sistemas de significados isto é às maneiras como as sociedades representam o gênero o utilizam para articular regras de relações sociais ou para construir o sentido da experiência Sem o sentido não tem experiência e sem processo de significação não tem sentido A linguagem é o centro da teoria lacaniana é a chave de acesso da criança à ordem simbólica Através da linguagem é construída a identidade de gênero Segundo Lacan o falo tem que ser lido de forma metafórica O drama edipiano faz com que a criança conheça os termos da interação cultural já que a ameaça de castração representa o poder as regras da lei do pai A relação da criança com a Lei depende da diferença sexual da sua identificação imaginária ou fantasmmática com a masculinidade ou feminilidade Em outros termos a imposição das regras da interação social é inerente e especificamente de gênero já que a relação feminina com o falo é obrigatoriamente diferente da relação masculina Mas a identificação de gênero mesmo quando ela aparece como sendo coerente e fixa é de fato extremamente instável Da mesma forma que os sistemas de significações as identidades subjetivas são processos de diferenciação e de distinção que exigem a supressão das ambiguidades e dos elementos opostos a fim de assegurar de criar a ilusão de uma coerência e uma compreensão comuns O princípio de masculinidade baseiase na repressão necessária dos aspectos femininos do potencial bissexual do sujeito e introduz o conflito na oposição entre o masculino e o feminino Desejos reprimidos são presentes no inconsciente e constituem uma ameaça permanente para a estabilidade da identificação de gênero negando sua unidade e subvertendo sua necessidade de segurança Ademais as ideias conscientes do masculino e do feminino não são fixas já que elas variam segundo os usos do contexto Portanto existe sempre um conflito entre a necessidade que o sujeito tem de uma aparição de totalidade e a imprecisão da terminologia a relatividade do seu significado e sua dependência em relação à repressão 26 Esse tipo de interpretação torna problemáticas as categorias homem e mulher sugerindo que o masculino e o feminino não são características inerentes e sim construções subjetivas ou fictícias Essa interpretação implica também que o sujeito se encontra num processo constante de construção e oferece um meio sistemático de interpretar o desejo consciente e inconsciente referindose à linguagem como um lugar adequado para a análise Enquanto tal eu acho instrutiva No entanto me incomoda a fixação exclusiva sobre as questões relativas ao sujeito individual e a tendência a reificar como a dimensão principal do gênero o antagonismo subjetivamente produzido entre homens e mulheres Ademais mesmo ficando em aberto a maneira como o sujeito é construído a teoria tende a universalizar as categorias e a relação entre o masculino e o feminino A consequência para osas historiadoresas é uma leitura redutora dos dados do passado Mesmo se esta teoria leva em consideração as relações sociais relacionando a castração com a proibição e a lei ela não permite a introdução de uma noção de especificidade e de variabilidade históricas O falo é o único significante o processo de construção do sujeito de gênero é em última instância previsível já que é sempre o mesmo Se nós pensarmos a construção da subjetividade em contextos históricos e sociais como sugere a teórica de cinema Teresa de Lauretis não há meio de precisar estes contextos nos termos propostos por Lacan De fato mesmo na tentativa de Lauretis a realidade social isto é as relações materiais econômicas e interpessoais que são de fato sociais e numa perspectiva mais ampla históricas parecem se situar à revelia do sujeito 27 Falta uma maneira de conceber a realidade social em termos de gênero O problema do antagonismo sexual nessa teoria tem dois aspectos primeiro ele projeta certa dimensão eterna mesmo quando ela tem historicidade como em Sally Alexander Sua leitura de Lacan a conduziu à conclusão de que antagonismo entre os sexos é um aspecto inevitável da aquisição da identidade sexual Se o antagonismo é sempre latente é possível que a história não possa oferecer uma solução mas unicamente a reformulação e reorganização permanente da simbolização da diferença e da divisão sexual do trabalho 28 Talvez seja o meu otimismo incurável que me deixa ética frente a esta formulação ou então o fato de que eu ainda não consegui me desfazer da episteme que Foucault chamava de Idade Clássica Seja o que for a formulação de Alexander contribuiu para a fixação da opinião binária masculinofeminino como a única relação possível e como um aspecto permanente da condição humana Essa perpetua mais do que coloca em questão o que Denise Riley chama de insuportável aparência de eternidade da polaridade sexual Riley escreve o caráter historicamenta construído da oposição entre o masculino e o feminino produz como um dos seus efeitos justamente a aparência de uma oposição invariável e monótona entre homens e mulheres 29 contexto a maneira como opera qualquer oposição binária revertendo e deslocando a sua construção hierárquica em lugar de aceitála como real como óbvia ou como estando na natureza das coisas 33 Em certo sentido as feministas sem dúvida só fizeram isto durante anos A história do pensamento feminista é uma história de recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e feminino nos seus contextos específicos é uma tentativa de reverter ou deslocar seus funcionamentos Osas historiadoresas feministas estão atualmente em condições de teorizar as suas práticas e de desenvolver o gênero como uma categoria de análise II As preocupações teóricas relativas ao gênero como categoria de análise só apareceram no final do século XX Elas estão ausentes na maior parte das teorias sociais formuladas desde o século XVIII até o começo do século XX De fato algumas dessas teorias construíram a sua lógica sob analogias com a oposição masculinofeminino outras reconheceram uma questão feminina outras ainda preocuparamse com a formação da identidade sexual subjetiva mas o gênero como o meio de falar de sistemas de relações sociais ou entre os sexos não tinha aparecido Esta falta poderia explicar em parte a dificuldade que as feministas contemporâneas têm tido de integrar o termo gênero em conjuntos teóricos préexistentes e em convencer os adeptos de uma ou de outra escola teórica que o gênero faz parte do seu vocabulário O termo gênero faz parte das tentativas levadas pelas feministas contemporâneas para reivindicar certo campo de definição para insistir sobre o caráter inadequado das teorias existentes em explicar desigualdades persistentes entre mulheres e homens A meu ver é significativo que o uso da palavra gênero tenha emergido num momento de grande efervescência que em certos casos toma a forma de uma evolução dos paradigmas científicos em direção a paradigmas literários da ênfase colocada sobre a causa em direção à ênfase colocada sobre o sentido misturando os gêneros da pesquisa segundo a formulação do antropólogo Clifford Geertz 34 Em outros casos essa evolução toma a forma de debate teórico entre aqueles que afirmam a transparência dos fatos e aqueles que insistem sobre a ideia de que qualquer realidade é interpretada ou construída entre aqueles que defendem e aqueles que colocam em questão a ideia de que o homem é o senhor racional do seu próprio destino No espaço aberto por esse debate do lado da crítica da ciência desenvolvida pelas ciências humanas e da crítica do empirismo e do humanismo que desenvolvem os pósestruturalistas as feministas não só começaram a encontrar uma via teórica própria como elas também encontraram aliados cientistas e políticos É nesse espaço que nós devemos articular o gênero como uma categoria de análise O que poderiam fazer osas historiadoresas que afinal de contas viram a sua disciplina rejeitada por certos teóricos recentes como uma relíquia do pensamento humanista Eu não acho que tenhamos que deixar os arquivos ou abandonar o estudo do passado mas eu acho em contrapartida que temos que mudar alguns dos nossos hábitos de trabalho e algumas das questões que colocamos Temos que examinar atentamente os nossos métodos de análise clarificar as nossas hipóteses operativas e explicar como pensamos que a mudança se dá Em lugar de procurar as origens únicas temos que conceber processos tão ligados entre si que não poderiam ser separados É evidente que escolhemos problemas concretos para estudar e esses problemas constituem começos ou tomados sobre processos complexos mas são processos que temos que ter sempre presentes em mente Temos que nos perguntar mais frequentemente como as coisas aconteceram para descobrir porque elas aconteceram Segundo a formulação de Michelle Rosaldo temos que procurar não uma causalidade geral e universal mas uma explicação significativa Me parece agora que o lugar das mulheres na vida socialhumana não é diretamente o produto do que ela faz mas do sentido que as suas atividades adquirem através da interação social concreta 35 Para fazer surgir o sentido temos que tratar do sujeito individual tanto quanto da organização social e articular a natureza das suas interrelações pois ambos têm uma importância crucial para compreender como funciona o gênero e como se dá a mudança Enfim precisamos substituir a noção de que o poder social é unificado coerente e centralizado por alguma coisa que esteja próxima do conceito foucaultiano de poder entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso nos campos de forças 36 No seio desses processos e estruturas tem espaço para um conceito de realização de história é fornecido pelo tratamento da ideologia vitoriana da mulher no lar como se ela fosse criada num bloco só como se ela só tivesse sido colocada em questão posteriormente enquanto que ela foi tema permanente de divergências de opinião Um outro exemplo vem dos grupos religiosos fundamentalistas de hoje que querem necessariamente ligar as suas práticas à restauração do papel tradicional das mulheres supostamente mais autêntico enquanto na realidade tem poucos antecedentes históricos que testemunhariam a realização inconteste de um tal papel O objetivo da nova pesquisa histórica é explodir a noção de fixidade descobrir a natureza do debate ou da repressão que leva a aparência de uma permanência eterna na representação binária dos gêneros Esse tipo de análise tem que incluir uma noção do político tanto quanto uma referência às instituições e organizações sociais Esse é o terceiro aspecto das relações de gênero Algunsmas pesquisadoresas notadamente antropólogosas reduziram o uso da categoria de gênero ao sistema de parentesco fixando o seu olhar sobre o universo doméstico e na família como fundamento da organização social Precisamos de uma visão mais ampla que inclua não só o parentesco mas também em particular para as sociedades modernas complexas o mercado de trabalho um mercado de trabalho sexualmente segregado faz parte do processo de construção do gênero a educação as instituições de educação socialmente masculinas não mistas ou mistas fazem parte do mesmo processo o sistema político o sufrágio masculino universal faz parte do processo de construção do gênero Não tem muito sentido limitar essas instituições à sua utilidade funcional para os sistemas de parentesco ou sustentar que as relações contemporâneas entre homens e mulheres são produtos de sistemas anteriores de parentesco baseados nas trocas de mulheres 37 O gênero é construído através do parentesco mas não exclusivamente ele é construído igualmente na economia na organização política e pelo menos na nossa sociedade opera atualmente de forma amplamente independente do parentesco O quarto aspecto do gênero é a identidade subjetiva Conferências estabelecem distribuições de poder um controle ou um acesso diferencial aos recursos materiais e simbólicos o gênero tornase implicado na concepção e na construção do poder em si O antropólogo francês Maurice Godelier formulou isso desta forma não é a sexualidade que produz fantasmas na sociedade mas sobretudo a sociedade que fantasma na sexualidade o corpo As diferenças entre os corpos que são ligados ao sexo são constantemente solicitadas para testemunhar as relações e fenômenos sociais que não tem nada a ver com a sexualidade Não só testemunhar mas testemunhar a favor isto é legitimar 42 seu sentido mais tradicional isto é não diz respeito ao governo e ao Estado nação Primeiro porque se trata de um território praticamente inexplorado já que o gênero foi percebido como uma categoria antitética aos negócios sérios da verdadeira política Depois porque a história política que ainda é o modo dominante da interrogação histórica foi o bastião de resistência à inclusão de materiais ou de questões sobre as mulheres e o gênero partir de considerações sobre as necessidades do estado Um exemplo importante é fornecido pela argumentação de Louis de Bonaud em 1816 sobre as razões pelas quais a legislação da Revolução Francesa sobre o divórcio devia ser revogada Da mesma forma que a democracia política permite ao povo parte fraca da sociedade política se rebelar contra o poder estabelecido da mesma forma o divórcio verdadeira democracia doméstica permite à esposa parte mais fraca se rebelar contra a autoridade do marido a fim de manter o Estado fora do alcance do povo é necessário manter a família fora do alcance das esposas e das crianças 51 Bonaud começa com uma analogia para estabelecer em seguida uma correspondência direta entre o divórcio e a democracia Retomando argumentos bem mais antigos a respeito da boa ordem familiar com fundamento da boa ordem do estado a legislação que estabeleceu essa posição redefiniu os limites da relação marital Da mesma forma na nossa época os ideólogos políticos conservadores gostariam de fazer passar toda uma série de leis sobre a organização e o comportamento da família que modificariam as práticas atuais A ligação entre os regimes autoritários e o controle das mulheres tem sido bem observada mas não foi estudada a fundo Num momento crítico para a hegemonia jacobina durante a Revolução Francesa na hora em que Stalin tomou o controle da autoridade na época da operacionalização da política nazista na Alemanha ou do triunfo aiatolá Khomeini no Irã em todas essas circunstâncias os dirigentes que se afirmavam legitimavam a dominação a força a autoridade central e o poder soberano identificandoos ao masculino os inimigos os outsiders os subversivos e a fraqueza eram identificados ao feminino e traduziram literalmente esse código em leis que colocam as mulheres no seu lugar proibindo sua participação na vida política tornando o aborto ilegal proibindo o trabalho assalariado das mães impondo códigos de vestuário às mulheres 52 Essas ações e sua programação têm pouco sentido em si mesmas Na maioria dos casos o estado não tinha nada de imediato ou nada material a ganhar com o controle das mulheres Essas ações só podem adquirir um sentido se elas são integradas a uma análise da construção e da consolidação de um poder Uma afirmação de controle ou de força tomou a forma de uma política sobre as mulheres Nesses exemplos a diferença sexual tem sido concebida em termos de dominação e de controle das mulheres Eles podem nos dar ideias sobre os diversos tipos de relações de poder que se constroem na história moderna mas essa relação particular não constitui um tema político universal Segundo modos diferentes por exemplo o regime democrático do Século XX tem igualmente construido as suas ideologias políticas a partir de conceitos de gênero que se traduziram em políticas concretas o Estado Providência por exemplo demonstrou seu paternalismo protetor através de leis dirigidas às mulheres e às crianças 53 Ao longo da história alguns movimentos socialistas ou anarquistas recursaram completamente as metáforas de dominação apresentando de forma imaginativa suas críticas aos regimes e organizações sociais particulares em termos de transformação de identidade de gênero Os socialistas utópicos na França e na Inglaterra nos anos de 1830 e 1840 conceberam sonhos de um futuro harmonioso em termos de naturezas complementares de indivíduos ilustrados pela união do homem e da mulher o indivíduo social 54 Os anarquistas europeus eram conhecidos desde muito tempo pela sua recusa das convenções como o casamento burguês mas também pelas suas visões de um mundo no qual as diferenças sexuais não implicariam em hierarquia Tratase de exemplos de ligações explícitas entre o gênero e o poder mas elas só são uma parte da minha definição de gênero como um modo primeiro de significar as relações de poder Frequentemente a ênfase colocada sobre o gênero não é explícita mas constitui no entanto uma dimensão decisiva da organização da igualdade e desigualdade As estruturas hierárquicas baseiamse em compreensões generalizadas da relação pretensamente natural entre o masculino e o feminino A articulação do conceito de classe no século XIX baseavase no gênero Quando por exemplo na França os reformadores burgueses descreviam os operários em termos codificados como femininos subordinados fracos sexualmente explorados como os prostitutas os dirigentes operários e socialistas respondiam insistindo na posição masculina da classe operária produtores fortes protetores das mulheres e das crianças Os termos desse discurso não diziam respeito explicitamente ao gênero mas eram reforçados na medida em que se referenciavam a ele A codificação de gênero de certos termos estabelece e naturalizava seus significados Nesse processo as definições normativas do gênero historicamente situadas e tomadas como dados se reproduziram e se integraram na cultura da classe operária francesa 55 Os temas da guerra da diplomacia e da alta política aparecem frequentemente quando osas historiadoresas da história política tradicional colocam em questão a utilidade do gênero para o seu trabalho Mas lá também temos que olhar além dos atores e do valor literal das suas palavras As relações de poder entre as nações e o estatuto dos súditos coloniais se tornaram compreensíveis e portanto legítimos em termos de relações entre masculino e feminino a legitimação da guerra sacrificar vidas de jovens para proteger o estado tomou formas diversificadas desde o apelo explícito à virilidade a necessidade de defender as mulheres e as crianças que de outra forma seriam vulneráveis até a crença no dever de que teriam os filhos que servir aos seus dirigentes ou rei seu pai e até associações entre masculinidade e potência nacional 56 A alta política ela mesma é um conceito de gênero porque estabelece sua importância decisiva de seu poder público as razões de ser e a realidade da existência da sua autoridade superior precisamente graças à exclusão das mulheres do seu funcionamento O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi concebido legitimado e criticado Ele se refere à oposição masculinofeminino e fundamenta ao mesmo tempo seu sentido Para reivindicar o poder político a referência tem que parecer segura e fixa fora de qualquer construção humana fazendo parte da ordem natural ou divina Desta forma a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornamse os dois parte do sentido do poder ele mesmo Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema por inteiro Se as significações de gênero e de poder se constroem reciprocamente como é que as coisas mudam De um ponto de vista geral respondese que a mudança pode ter várias origens transtornos políticos de massa que coloquem as ordens antigas em causa engendram novas podem revisar os termos e portanto a organização do gênero na sua procura de novas formas de legitimação Mas eles podem não fazêlo noções antigas de gênero serviram igualmente para validar novos regimes 57 Crises demográficas causadas pela fome pestes ou guerras colocaram às vezes em questão as visões normativas do casamento heterossexual quando foi o caso em certos meios de certos países no decorrer dos anos 20 mas também provocaram políticas natalistas que insistiram na importância exclusiva das funções maternas e reprodutivas das mulheres 58 A transformação das estruturas de emprego pode modificar as estratégias de casamento Ela pode oferecer novas possibilidades para a construção da subjetividade mas elas podem também ser vividas como novo espaço de atividade para filhas e esposas obedientes 59 que elas participaram dos grandes e pequenos eventos da história humana O gênero legitimou a emergência de carreiras profissionais 60 Para citar o título de um artigo recente da feminista francesa Luce Irigaray o sujeito da ciência é sexuado 61 Qual é a relação entre a política do Estado e da descoberta do crime de homossexualidade 62 Como as instituições sociais têm incorporado o gênero nos seus pressupostos e na sua organização Já houve conceitos de gênero realmente igualitários sobre os quais foram projetados ou o mesmo baseado sistemas políticos Para uma argumentação contra a utilização do gênero para sublinhar o aspecto social da diferença sexual v Moira Gatens JanuaryFebruary 1985 p108120 Voir aussi Hugh Armstrong et Pat Armstrong Beyond Sexless Class and Classless Sex Studies in Political Economy 10 Winter 1983 p 744 Hugh Armstrong et Pat Armstrong Comments More on Marxist feminism Studies in Political Economy 15 Fall 1984 p 17984 et Jane Jenson Gender and reproduction or Babies and the state article unpublished June 1985 p17 Para formulações teóricas anteriores ver Papers on Patriarchy Conference London 1976 Sou grata a Jane Kaplan que me indicou esta publicação e que aceitou compartilhar comigo seu exemplar e suas idéias Para a posição psicanalítica ver Sally Alexander Women class and sexual difference History Workshop 17 Spring 1984 p 12535 No decorrer dos seminários da Universidade de Princeton no início de 1986 Juliet Mitchell parecia voltar a das a prioridade à análise materialista do gênero Para uma tentativa de ir além do impasse feminista marxista ver Coward Patriarchal Precedents Ver também a tentativa americana brilhante iniciada nesta direção por Gayle Rubin em The Traffic in Women Notes on the political Economy of sex in Rayner R Reiter ed Towards an Anthropology of Women New York 1975 p 1678 Nancy Chodorow The Reproduction of Mothering Psychoanalysis and the Sociology of Gender Berkeley Calif 1978 p 169 Elisabethan Culture Representations 2 Spring 1983 p6194 et Lynn Hunt Hercules and the radical Image in the French Revolution Representations 2 Spring 1983 p 95117 p 383446 Sobre a Terceira República na França ver Steven Hause Womens Suffrage and Social Politics in the French Third Republic Princeton NJ 1984 Um tratamento muito interessante de um caso recente é o artigo de Maxime Molyneux Mobilization Without Emancipation Womens Interest the state and Revolution in Nicarágua Feminist Studies Summer 1985 p 2254
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GÊNERO UMA CATEGORIA ÚTIL PARA ANÁLISE HISTÓRICA JOAN SCOTT TRADUÇÃO Christine Rufino Dabat Maria Betânia Ávila Texto original Joan Scott Gender a useful category of historical analyses Gender and the politics of history New York Columbia University Press 1989 Nota das tradutoras A divulgação desta produção foi devidamente autorizada pela autora Joan Scott Joan Scott é professora da Escola de ciências Sociais do Instituto de altos Estudos de Princeton Nova Jersey É especialista na história do movimento operário no século XIX e do feminismo na França É sem dúvida uma das mais importantes teóricas sobre o uso da categoria gênero em história GÊNERO UMA CATEGORIA ÚTIL PARA ANÁLISE HISTÓRICA JOAN SCOTT Gênero categoria que indica por meio de desinências uma divisão dos nomes baseada em critérios tais como sexo e associações psicológicas Há gêneros masculino feminino e neutro Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Os que se propõem a codificar os sentidos das palavras lutam por uma causa perdida porque as palavras como as ideias e as coisas que elas significam têm uma história Nem os professores da Oxford nem a academia Francesa foram inteiramente capazes de controlar a maré de captar e fixar os sentidos livres do jogo da invenção e da imaginação humana Mary Wortley Montagu acrescentava a ironia à sua denúncia do belo sexo meu único consolo em pertencer a este gênero é ter certeza de que nunca vou me casar com uma delas fazendo uso deliberadamente errado da referência gramatical 1 Ao longo dos séculos as pessoas utilizaram de forma figurada os termos gramaticais para evocar traços de caráter ou traços sexuais Por exemplo a utilização proposta pelo Dicionário da Língua Francesa de 1876 era Não se sabe qual é o seu gênero se é macho ou fêmea falase de um homem muito retraído cujos sentimentos são desconhecidos 2 Gladstone fazia esta distinção em 1878 Atena não tinha nada do sexo a não ser gênero nada de mulher a não ser forma 3 Mais recentemente recentemente demais para que possa encontrar seu caminho nos dicionários ou na enciclopédia das ciências sociais as feministas começaram a utilizar a palavra gênero mais seriamente no sentido mais literal como uma maneira de referirse à organização social da relação entre os sexos A relação com a gramática é ao mesmo tempo explícita e cheia de possibilidades inexplotadas Explicita porque o uso gramatical implica em regras formas que decorrem da designação de masculino ou feminino cheia de possibilidades inexplotadas porque em vários idiomas indoeuropeus existe uma terceira categoria o sexo indefinido ou neutro Na gramática gênero é compreendido como um meio de classificar fenômenos um sistema de distinções socialmente acordado mais do que uma descrição objetiva de traços inerentes Além disso as classificações sugerem uma relação entre categorias que permite distinções ou agrupamentos separados No seu uso mais recente o gênero parece ter aparecido primeiro entre as feministas americanas que queriam insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual O gênero sublinhava também o aspecto relacional das definições normativas das feminilidades As que estavam mais preocupadas com o fato de que a produção dos estudos femininos centravase sobre as mulheres de forma muito estreita e isolada utilizaram o termo gênero para introduzir uma noção relacional no nosso vocabulário analítico Segundo esta opinião as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão de qualquer um poderia existir através de estudo inteiramente separado Assim Nathalie Davis dizia em 1975 Eu acho que deveríamos nos interessar pela história tanto dos homens quanto das mulheres e que não deveríamos trabalhar unicamente sobre o sexo oprimido do mesmo jeito que um historiador das classes não pode fixar seu olhar unicamente sobre os camponeses Nosso objetivo é entender a importância dos sexos dos grupos de gênero no passado histórico Nosso objetivo é descobrir a amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual nas várias sociedades e épocas achar qual o seu sentido e como funcionavam para manter a ordem social e para mudála 4 Ademais e talvez o mais importante o gênero era um termo proposto por aquelas que defendiam que a pesquisa sobre mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas no seio de cada disciplina As pesquisadoras feministas assinalaram muito cedo que o estudo das mulheres acrescentaria não só novos temas como também iria impor uma reavaliação crítica das premissas e critérios do trabalho científico existente Aprendemos escreviam três historiadoras feministas que inscrever as mulheres na história implica necessariamente a redefinição e o alargamento das noções tradicionais do que é historicamente importante para incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva quanto as atividades públicas e políticas Não é exagerado dizer que por mais hesitante que sejam os princípios reais de hoje tal metodologia implica não só em uma nova história das mulheres mas em uma nova história 5 A maneira como esta nova história iria simultaneamente incluir e apresentar a experiência das mulheres dependeria da maneira como o gênero poderia ser desenvolvido como uma categoria de análise Aqui as analogias com a classe e a raça eram explícitas com efeito asos pesquisadorases de estudos sobre a mulher que tinham uma visão política mais global recorriam regularmente a essas três categorias para escrever uma nova história 6 O interesse pelas categorias de classe de raça e de gênero assinalavam primeiro o compromisso do a pesquisadora com a história que incluía a fala dosas oprimidosas e com uma análise do sentido e da natureza de sua opressão assinalava também que essesas pesquisadoresas levavam cientificamente em consideração o fato de que as desigualdades de poder estão organizadas segundo no mínimo estes três eixos A ladainha classe raça e gênero sugere uma paridade entre os três termos que na realidade não existe Enquanto a categoria de classe está baseada na teoria complexa de Marx e seus desenvolvimentos posteriores da determinação econômica e da mudança histórica as de raça e de gênero não veiculam tais associações Não há unanimidade entre osas que utilizam os conceitos de classe Algunsas pesquisadoresas utilizam a noção de Weber outrosas utilizam a classe como uma fórmula heurística temporária Além disso quando mencionamos a classe trabalhamos com ou contra uma série de definições que no caso do Marxismo implica uma ideia de causalidade econômica e uma visão do caminho pelo qual a história avançou dialeticamente Não existe este tipo de clareza ou coerência nem para a categoria de raça nem para a gênero No caso de gênero o seu uso comporta um elenco tanto de posições teóricas quanto de simples referências descritivas às relações entre os sexos elases utilizaram as formulações antigas que propõem explicações causais universais Estas teorias tiveram no melhor dos casos um caráter limitado porque elas tendem a incluir generalizações redutoras ou simples demais estas minam não só o sentido da complexidade da causalidade social tal qual proposta pela história como disciplina mas também o engajamento feminista na elaboração de análises que levam à mudança Um exame crítico destas teorias mostrará os seus limites e permitirá propor uma abordagem alternativa7 As abordagens utilizadas pela maioria dosas historiadoresas se dividem em duas categorias distintas A primeira é essencialmente descritiva isto é ela se refere à existência de fenômenos ou realidades sem interpretar explicar ou atribuir uma causalidade O segundo uso é de ordem causal ele elabora teorias sobre a natureza dos fenômenos e das realidades buscando entender como e porque aqueles tomam a forma que eles têm Mas isso é só um aspecto Gênero como substituto de mulheres é igualmente utilizado para sugerir que a informação a respeito das mulheres é necessariamente informação sobre os homens que um implica no estudo do outro Este uso insiste na ideia de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens que ele é criado dentro e por esse mundo Esse uso rejeita a validade interpretativa da ideia das esferas separadas e defende que estudar as mulheres de forma separada perpetua o mito de que uma esfera a experiência de um sexo tem muito pouco ou nada a ver com o outro sexo Além disso o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas como aquelas que encontraram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior O gênero se torna aliás uma maneira de indicar as construções sociais a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres O gênero é segundo essa definição uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado 8 Com a proliferação dos estudos do sexo e da sexualidade o gênero se tornou uma palavra particularmente útil porque ele oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens Apesar do fato dosas pesquisadoresas reconhecerem as relações entre o sexo e o que os sociólogos da família chamaram os papéis sexuais estesas não colocam entre os dois uma relação simples ou direta O uso do gênero coloca ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade No seu uso recente mais simples gênero é sinônimo de mulheres Livros e artigos de todo tipo que tinham como tema a história das mulheres substituíram durante os últimos anos nos seus títulos o termo de mulheres pelo termo de gênero Em alguns casos este uso ainda que referindose vagamente a certos conceitos analíticos trata realmente da aceitabilidade política desse campo de pesquisa Nessas circunstâncias o uso do termo gênero visa indicar a erudição e a seriedade de um trabalho porque gênero tem uma conotação mais objetiva e neutra do que mulheres O gênero parece integrarse na terminologia científica das ciências sociais e por consequência dissociarse da política pretensamente escandalosa do feminismo Neste uso o termo gênero não implica necessariamente na tomada de posição sobre a desigualdade ou o poder nem mesmo designa a parte lesada e até agora invisível Enquanto o termo história das mulheres revela a sua posição política ao afirmar contrariamente às práticas habituais que as mulheres são sujeitos históricos legítimos o gênero inclui as mulheres sem as nomear e parece assim não se constituir em uma ameaça crítica Este uso do gênero é um aspecto que a gente poderia chamar de procura de uma legitimidade acadêmica pelos estudos feministas nos anos 1980 Esses usos descritivos do gênero foram utilizados pelosas historiadoresas na maioria dos casos para mapear um novo terreno Na medida em que osas historiadoresas sociais se voltavam para novos temas de estudo o gênero dizia respeito apenas a temas como as mulheres as crianças as famílias e as ideologias do gênero Em outros termos esse uso do gênero só se refere aos domínios tanto estruturais quanto ideológicos que implicam em relações entre os sexos Porque na aparência a guerra a diplomacia e a alta política não têm explicitamente a ver com essas relações O gênero parece não se aplicar a esses objetivos e portanto continua irrelevante para a reflexão dosas historiadoresas que trabalhavam sobre o político e o poder Isso tem como resultado a adesão a certa visão funcionalista baseada em última análise sobre a biologia e a perpetuação da ideia das esferas separadas na escrita da história a sexualidade ou a política a família ou a nação as mulheres ou os homens Mesmo se nesse uso o termo gênero afirma que as relações entre os sexos são sociais ele não diz nada sobre as razões pelas quais essas relações são construídas como são ele não diz como elas funcionam ou como elas mudam No seu uso descritivo o gênero é portanto um conceito associado ao estudo das coisas relativas às mulheres O gênero é um novo tema novo campo de pesquisas históricas mas ele não tem a força de análise suficiente para interrogar e mudar os paradigmas históricos existentes Algunsas historiadoresas estavam naturalmente conscientes desse problema daí os esforços para empregar teorias que possam explicar o conceito de gênero e explicar a mudança histórica De fato o desafio é a reconciliação da teoria que era concebida em termos gerais ou universais com a história que estava tratando do estudo de contextos específicos e da mudança fundamental O resultado foi muito eclético empréstimos parciais que enviesam a força de análise de uma teoria particular ou pior que empregam os seus preceitos sem ter consciência das suas implicações ou então tentativas para esclarecer a mudança porque elas se embasavam nas teorias universais e só conseguem mostrar temas imutáveis ou ainda estudos maravilhosos e cheios de imaginação nos quais a teoria é entretanto tão escondida que esses estudos não podem ser utilizados como modelos para outras pesquisas Como frequentemente as teorias que inspiraram osas historiadoresas não foram claramente articuladas em todas as suas implicações parece digno de interesse empregar algum tempo nesse exame É unicamente através de tal exercício que se pode avaliar a utilidade dessas teorias e talvez articular uma abordagem teórica mais poderosa posições teóricas 9 A primeira um esforço inteiramente feminista que tenta explicar os origens do patriarcado A segunda se sitúa no seio de uma tradição marxista e procura um compromisso com as críticas feministas A terceira fundamentalmente dividida entre o pósestruturalismo francês e as teorias angloamericanas das relações de objeto inspirase nas várias escolas de psicanálise para explicar a produção e a reprodução da identidade de gênero do sujeito As teóricas do patriarcado concentraram sua atenção na subordinação das mulheres e encontraram a explicação na necessidade do macho dominar as mulheres Na adaptação engenhosa de Hegel Mary OBrien define a dominação masculina como um efeito do desejo dos homens de transcender a sua privação dos meios de reprodução da espécie O princípio da continuidade de geração restituiu a primazia da paternidade e obscureceu o labor real e a realidade social do trabalho das mulheres no parto A fonte da libertação das mulheres se encontra numa compreensão adequada do processo de reprodução numa avaliação das contradições entre a natureza do trabalho reprodutivo das mulheres e a mistificação ideológica masculina deste 10 Para Sulaimith Firestone a reprodução era também aquela amarga armadilha para as mulheres Entretanto na sua análise mais materialista a libertação das mulheres viria das transformações da tecnologia de reprodução que poderia no futuro próximo eliminar a necessidade do corpo das mulheres como agentes de reprodução da espécie 11 Se a reprodução era a chave do patriarcado para algumas para outras a resposta se encontrava na sexualidade em si As formulações audaciosas de Catherine Mackinnon são criações próprias mas ao mesmo tempo são características de certa abordagem A sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo o que nos pertence mais e no entanto nos é mais alienado A reificação sexual é o processo primário da sujeição das mulheres Ele alia o ato à palavra a construção à expressão a percepção à coerção o mito à realidade O homem come a mulher sujeito verbo objeto 12 Continuando sua analogia com Marx Mackinnon propôs como método de análise feminista no lugar do materialismo dialético os grupos de consciência Expressando a experiência comum de reificação dizia patriarcado e o capitalismo que são separados mas em interação como no caso em que a análise desenvolvida se refere mais estritamente aos debates marxistas ortodoxos sobre os modos de produção a explicação das origens e das transformações de sistemas de gêneros se encontra fora da divisão sexual do trabalho Afinal de contas famílias lares e sexualidade são produtos da mudança dos modos de produção É assim que Engels concluía as suas explorações na Origem da Família 15 é sobre isso que se baseia a análise da economista Heidi Hartmann Ela insiste sobre a necessidade de considerar o patriarcado e o capitalismo como dois sistemas separados mas em interação Porém à medida que desenvolve a sua argumentação a causalidade econômica se torna prioritária e o patriarcado está sempre se desenvolvendo e mudando como uma função das relações de produção 16 Os primeiros debates entre as feministas marxistas giravam em torno dos mesmos problemas a rejeição do essencialismo daqueles que defendem que as exigências da reprodução biológica determinavam a divisão sexual do trabalho pelo capitalismo o caráter fútil da integração dos modos de reprodução nos debates sobre os modos de produção que reprodução permanece uma categoria oposta e não tem um estatuto equivalente ao de modo de produção o reconhecimento que os sistemas econômicos não determinam de forma direta as relações de gênero e que de fato a subordinacão das mulheres é anterior ao capitalismo e continua sob o socialismo a busca apesar de tudo de uma explicação materialista que exclua as diferenças físicas e naturais 17 Uma tentativa importante de sair desse círculo vem de Joan Kelly no seu ensaio A Dupla Visão da Teoria Feminista onde ela defende que os sistemas econômicos e os sistemas de gênero agiam reciprocamente uns sobre os outros para produzir experiências sociais e históricas que nenhum dos dois sistemas era causal mas que ambos operavam simultaneamente para reproduzir as estruturas sócioeconômicas e as estruturas de dominação masculina de uma ordem social particular A ideia de Kelly de que os sistemas de gênero teriam uma existência independente se constituiu numa abertura conceitual decisiva mas sua vontade de permanecer no quadro marxista levoua a dar ênfase à causalidade econômica inclusive no que diz respeito à determinação dos sistemas de gênero A relação entre os sexos ocorre em função de estruturas de gênero 18 Kelly introduziu a ideia de uma realidade social baseada no sexo mas ela tinha tendência a enfatizar o caráter social mais do que o sexual dessa realidade e muitas vezes o uso que ela fazia do social era concebido em termos de relações econômicas de produção Uma comparação entre as tentativas das feministas marxistas americanas exploratórias e relativamente abrangentes e as das suas homólogas inglesas mais estreitamente ligadas à política de uma tradição marxista forte e viável revela que as inglesas têm tido mais dificuldades em desafiar os limites de explicações estritamente deterministas Essa dificuldade se expressa da forma mais espetacular nos recentes debates que foram publicados na New Left Review entre Michele Barrett e seussuas críticosas que a acusavam de abandonar uma análise materialista da divisão sexual do trabalho no capitalismo 22 Ela se expressa também pelo fato de que os pesquisadores que tinham iniciado uma tentativa feminina de reconciliação entre a psicanálise e o marxismo e que tinham insistido na possibilidade de certa fusão entre os dois escolham hoje uma ou outra dessas posições teóricas 23 A dificuldade para as feministas inglesas e americanas que trabalhams nos quadros do marxismo é aparente nas obras que eu mencionei aqui O problema com o qual elas se defrontam é o inverso daqueles que a teoria do patriarcado coloca No interior do marxismo o conceito de gênero foi por muito tempo tratado como subproduto de estruturas econômicas mutantes o gênero não tem tido o seu próprio estatuto de análise As duas escolas se interessam pelos processos através dos quais foi criada a identidade do sujeito as duas centram o seu interesse nas primeiras etapas do desenvolvimento da criança com o objetivo de encontrar indicações sobre a formação da identidade de gênero As teóricas das relações de objeto colocam a ênfase sobre a influência da experiência concreta a criança vê ouve têm relações com as pessoas que cuidam dela particularmente naturalmente com os seus pais ao passo que os pósestruturalistas sublinham o papel central da linguagem na comunicação interpretação e representação de gênero para os pósestruturalistas linguagem não designa unicamente as palavras mas os sistemas de significação as ordens simbólicas que antecedem o domínio da palavra propriamente dita da leitura e da escrita Outra diferença entre essas duas escolas de pensamento diz respeito ao inconsciente que para Chodorow é em última instância suscetível de compreensão consciente enquanto para Lacan não é Para as lacanianas o inconsciente é um fator decisivo na construção do sujeito Ademais é o lugar de emergência da divisão sexual e por essa razão um lugar de instabilidade constante para o sujeito sexuado Nos anos recentes as historiadoras feministas têm sido atraídas por essa teoria ou porque elas permitem fundamentar conclusões particulares para observações gerais ou porque elas parecem oferecer uma formulação teórica importante no que diz respeito ao gênero Cada vez mais osas historiadoresas que trabalham com o conceito de cultura feminina citam as obras de Chodorow e Gilligan como provas e como explicações das suas interpretações aquelas que têm problemas com a teoria feminista se viram em direção a Lacan Afinal de contas nenhuma dessas teorias me parece inteiramente utilizada pelosas historiadoresas um olhar mais atento sobre cada uma delas poderia ajudar a explicar o porquê Minhas reticências frente à teoria das relações de objeto provêm do seu literalismo do fato de que ela faz depender a produção da identidade de gênero e a gênese da mudança de estruturas de interrelação relativamente pequenas Tanto a divisão do trabalho na família quanto as tarefas atribuídas a cada um dos pais têm um papel crucial na teoria de Chodorow O produto do sistema dominante ocidental é uma divisão nítida entre masculino e feminino o sentido feminino do Eu é fundamentalmente ligado ao mundo o sentido masculino do Eu é fundamentalmente separado do mundo 24 Segundo Chodorow se os pais fossem mais envolvidos nos deveres parentais e mais presentes nas situações domésticas os resultados do drama edipiano seriam provavelmente diferentes 25 Essa interpretação limita o conceito de gênero à esfera da família e à experiência doméstica e para oa historiadora ela não deixa meios de ligar esse conceito nem o indivíduo com outros sistemas sociais econômicos políticos ou de poder Sem dúvida está implícito que as disposições sociais que exigem que os pais trabalhem e as mães cuidem da maioria das tarefas de criação dos filhos estruturam a organização da família Mas a origem dessas disposições sociais não está clara nem o porquê delas serem articuladas em termos da divisão sexual do trabalho Não se encontra também nenhuma interrogação sobre o problema da desigualdade em oposição àquele da simetria Como podemos explicar no seio dessa teoria a associação persistente da masculinidade com o poder e o fato de que os valores mais altos estão investidos na virilidade do que na feminilidade Como podemos explicar o fato de que as crianças aprendem essas associações e avaliações mesmo quando elas vivem fora de lares nucleares ou dentro de lares onde o marido e a mulher dividem as tarefas parentais Eu acho que não podemos fazer isso sem dar certa atenção aos sistemas de significados isto é às maneiras como as sociedades representam o gênero o utilizam para articular regras de relações sociais ou para construir o sentido da experiência Sem o sentido não tem experiência e sem processo de significação não tem sentido A linguagem é o centro da teoria lacaniana é a chave de acesso da criança à ordem simbólica Através da linguagem é construída a identidade de gênero Segundo Lacan o falo tem que ser lido de forma metafórica O drama edipiano faz com que a criança conheça os termos da interação cultural já que a ameaça de castração representa o poder as regras da lei do pai A relação da criança com a Lei depende da diferença sexual da sua identificação imaginária ou fantasmmática com a masculinidade ou feminilidade Em outros termos a imposição das regras da interação social é inerente e especificamente de gênero já que a relação feminina com o falo é obrigatoriamente diferente da relação masculina Mas a identificação de gênero mesmo quando ela aparece como sendo coerente e fixa é de fato extremamente instável Da mesma forma que os sistemas de significações as identidades subjetivas são processos de diferenciação e de distinção que exigem a supressão das ambiguidades e dos elementos opostos a fim de assegurar de criar a ilusão de uma coerência e uma compreensão comuns O princípio de masculinidade baseiase na repressão necessária dos aspectos femininos do potencial bissexual do sujeito e introduz o conflito na oposição entre o masculino e o feminino Desejos reprimidos são presentes no inconsciente e constituem uma ameaça permanente para a estabilidade da identificação de gênero negando sua unidade e subvertendo sua necessidade de segurança Ademais as ideias conscientes do masculino e do feminino não são fixas já que elas variam segundo os usos do contexto Portanto existe sempre um conflito entre a necessidade que o sujeito tem de uma aparição de totalidade e a imprecisão da terminologia a relatividade do seu significado e sua dependência em relação à repressão 26 Esse tipo de interpretação torna problemáticas as categorias homem e mulher sugerindo que o masculino e o feminino não são características inerentes e sim construções subjetivas ou fictícias Essa interpretação implica também que o sujeito se encontra num processo constante de construção e oferece um meio sistemático de interpretar o desejo consciente e inconsciente referindose à linguagem como um lugar adequado para a análise Enquanto tal eu acho instrutiva No entanto me incomoda a fixação exclusiva sobre as questões relativas ao sujeito individual e a tendência a reificar como a dimensão principal do gênero o antagonismo subjetivamente produzido entre homens e mulheres Ademais mesmo ficando em aberto a maneira como o sujeito é construído a teoria tende a universalizar as categorias e a relação entre o masculino e o feminino A consequência para osas historiadoresas é uma leitura redutora dos dados do passado Mesmo se esta teoria leva em consideração as relações sociais relacionando a castração com a proibição e a lei ela não permite a introdução de uma noção de especificidade e de variabilidade históricas O falo é o único significante o processo de construção do sujeito de gênero é em última instância previsível já que é sempre o mesmo Se nós pensarmos a construção da subjetividade em contextos históricos e sociais como sugere a teórica de cinema Teresa de Lauretis não há meio de precisar estes contextos nos termos propostos por Lacan De fato mesmo na tentativa de Lauretis a realidade social isto é as relações materiais econômicas e interpessoais que são de fato sociais e numa perspectiva mais ampla históricas parecem se situar à revelia do sujeito 27 Falta uma maneira de conceber a realidade social em termos de gênero O problema do antagonismo sexual nessa teoria tem dois aspectos primeiro ele projeta certa dimensão eterna mesmo quando ela tem historicidade como em Sally Alexander Sua leitura de Lacan a conduziu à conclusão de que antagonismo entre os sexos é um aspecto inevitável da aquisição da identidade sexual Se o antagonismo é sempre latente é possível que a história não possa oferecer uma solução mas unicamente a reformulação e reorganização permanente da simbolização da diferença e da divisão sexual do trabalho 28 Talvez seja o meu otimismo incurável que me deixa ética frente a esta formulação ou então o fato de que eu ainda não consegui me desfazer da episteme que Foucault chamava de Idade Clássica Seja o que for a formulação de Alexander contribuiu para a fixação da opinião binária masculinofeminino como a única relação possível e como um aspecto permanente da condição humana Essa perpetua mais do que coloca em questão o que Denise Riley chama de insuportável aparência de eternidade da polaridade sexual Riley escreve o caráter historicamenta construído da oposição entre o masculino e o feminino produz como um dos seus efeitos justamente a aparência de uma oposição invariável e monótona entre homens e mulheres 29 contexto a maneira como opera qualquer oposição binária revertendo e deslocando a sua construção hierárquica em lugar de aceitála como real como óbvia ou como estando na natureza das coisas 33 Em certo sentido as feministas sem dúvida só fizeram isto durante anos A história do pensamento feminista é uma história de recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e feminino nos seus contextos específicos é uma tentativa de reverter ou deslocar seus funcionamentos Osas historiadoresas feministas estão atualmente em condições de teorizar as suas práticas e de desenvolver o gênero como uma categoria de análise II As preocupações teóricas relativas ao gênero como categoria de análise só apareceram no final do século XX Elas estão ausentes na maior parte das teorias sociais formuladas desde o século XVIII até o começo do século XX De fato algumas dessas teorias construíram a sua lógica sob analogias com a oposição masculinofeminino outras reconheceram uma questão feminina outras ainda preocuparamse com a formação da identidade sexual subjetiva mas o gênero como o meio de falar de sistemas de relações sociais ou entre os sexos não tinha aparecido Esta falta poderia explicar em parte a dificuldade que as feministas contemporâneas têm tido de integrar o termo gênero em conjuntos teóricos préexistentes e em convencer os adeptos de uma ou de outra escola teórica que o gênero faz parte do seu vocabulário O termo gênero faz parte das tentativas levadas pelas feministas contemporâneas para reivindicar certo campo de definição para insistir sobre o caráter inadequado das teorias existentes em explicar desigualdades persistentes entre mulheres e homens A meu ver é significativo que o uso da palavra gênero tenha emergido num momento de grande efervescência que em certos casos toma a forma de uma evolução dos paradigmas científicos em direção a paradigmas literários da ênfase colocada sobre a causa em direção à ênfase colocada sobre o sentido misturando os gêneros da pesquisa segundo a formulação do antropólogo Clifford Geertz 34 Em outros casos essa evolução toma a forma de debate teórico entre aqueles que afirmam a transparência dos fatos e aqueles que insistem sobre a ideia de que qualquer realidade é interpretada ou construída entre aqueles que defendem e aqueles que colocam em questão a ideia de que o homem é o senhor racional do seu próprio destino No espaço aberto por esse debate do lado da crítica da ciência desenvolvida pelas ciências humanas e da crítica do empirismo e do humanismo que desenvolvem os pósestruturalistas as feministas não só começaram a encontrar uma via teórica própria como elas também encontraram aliados cientistas e políticos É nesse espaço que nós devemos articular o gênero como uma categoria de análise O que poderiam fazer osas historiadoresas que afinal de contas viram a sua disciplina rejeitada por certos teóricos recentes como uma relíquia do pensamento humanista Eu não acho que tenhamos que deixar os arquivos ou abandonar o estudo do passado mas eu acho em contrapartida que temos que mudar alguns dos nossos hábitos de trabalho e algumas das questões que colocamos Temos que examinar atentamente os nossos métodos de análise clarificar as nossas hipóteses operativas e explicar como pensamos que a mudança se dá Em lugar de procurar as origens únicas temos que conceber processos tão ligados entre si que não poderiam ser separados É evidente que escolhemos problemas concretos para estudar e esses problemas constituem começos ou tomados sobre processos complexos mas são processos que temos que ter sempre presentes em mente Temos que nos perguntar mais frequentemente como as coisas aconteceram para descobrir porque elas aconteceram Segundo a formulação de Michelle Rosaldo temos que procurar não uma causalidade geral e universal mas uma explicação significativa Me parece agora que o lugar das mulheres na vida socialhumana não é diretamente o produto do que ela faz mas do sentido que as suas atividades adquirem através da interação social concreta 35 Para fazer surgir o sentido temos que tratar do sujeito individual tanto quanto da organização social e articular a natureza das suas interrelações pois ambos têm uma importância crucial para compreender como funciona o gênero e como se dá a mudança Enfim precisamos substituir a noção de que o poder social é unificado coerente e centralizado por alguma coisa que esteja próxima do conceito foucaultiano de poder entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso nos campos de forças 36 No seio desses processos e estruturas tem espaço para um conceito de realização de história é fornecido pelo tratamento da ideologia vitoriana da mulher no lar como se ela fosse criada num bloco só como se ela só tivesse sido colocada em questão posteriormente enquanto que ela foi tema permanente de divergências de opinião Um outro exemplo vem dos grupos religiosos fundamentalistas de hoje que querem necessariamente ligar as suas práticas à restauração do papel tradicional das mulheres supostamente mais autêntico enquanto na realidade tem poucos antecedentes históricos que testemunhariam a realização inconteste de um tal papel O objetivo da nova pesquisa histórica é explodir a noção de fixidade descobrir a natureza do debate ou da repressão que leva a aparência de uma permanência eterna na representação binária dos gêneros Esse tipo de análise tem que incluir uma noção do político tanto quanto uma referência às instituições e organizações sociais Esse é o terceiro aspecto das relações de gênero Algunsmas pesquisadoresas notadamente antropólogosas reduziram o uso da categoria de gênero ao sistema de parentesco fixando o seu olhar sobre o universo doméstico e na família como fundamento da organização social Precisamos de uma visão mais ampla que inclua não só o parentesco mas também em particular para as sociedades modernas complexas o mercado de trabalho um mercado de trabalho sexualmente segregado faz parte do processo de construção do gênero a educação as instituições de educação socialmente masculinas não mistas ou mistas fazem parte do mesmo processo o sistema político o sufrágio masculino universal faz parte do processo de construção do gênero Não tem muito sentido limitar essas instituições à sua utilidade funcional para os sistemas de parentesco ou sustentar que as relações contemporâneas entre homens e mulheres são produtos de sistemas anteriores de parentesco baseados nas trocas de mulheres 37 O gênero é construído através do parentesco mas não exclusivamente ele é construído igualmente na economia na organização política e pelo menos na nossa sociedade opera atualmente de forma amplamente independente do parentesco O quarto aspecto do gênero é a identidade subjetiva Conferências estabelecem distribuições de poder um controle ou um acesso diferencial aos recursos materiais e simbólicos o gênero tornase implicado na concepção e na construção do poder em si O antropólogo francês Maurice Godelier formulou isso desta forma não é a sexualidade que produz fantasmas na sociedade mas sobretudo a sociedade que fantasma na sexualidade o corpo As diferenças entre os corpos que são ligados ao sexo são constantemente solicitadas para testemunhar as relações e fenômenos sociais que não tem nada a ver com a sexualidade Não só testemunhar mas testemunhar a favor isto é legitimar 42 seu sentido mais tradicional isto é não diz respeito ao governo e ao Estado nação Primeiro porque se trata de um território praticamente inexplorado já que o gênero foi percebido como uma categoria antitética aos negócios sérios da verdadeira política Depois porque a história política que ainda é o modo dominante da interrogação histórica foi o bastião de resistência à inclusão de materiais ou de questões sobre as mulheres e o gênero partir de considerações sobre as necessidades do estado Um exemplo importante é fornecido pela argumentação de Louis de Bonaud em 1816 sobre as razões pelas quais a legislação da Revolução Francesa sobre o divórcio devia ser revogada Da mesma forma que a democracia política permite ao povo parte fraca da sociedade política se rebelar contra o poder estabelecido da mesma forma o divórcio verdadeira democracia doméstica permite à esposa parte mais fraca se rebelar contra a autoridade do marido a fim de manter o Estado fora do alcance do povo é necessário manter a família fora do alcance das esposas e das crianças 51 Bonaud começa com uma analogia para estabelecer em seguida uma correspondência direta entre o divórcio e a democracia Retomando argumentos bem mais antigos a respeito da boa ordem familiar com fundamento da boa ordem do estado a legislação que estabeleceu essa posição redefiniu os limites da relação marital Da mesma forma na nossa época os ideólogos políticos conservadores gostariam de fazer passar toda uma série de leis sobre a organização e o comportamento da família que modificariam as práticas atuais A ligação entre os regimes autoritários e o controle das mulheres tem sido bem observada mas não foi estudada a fundo Num momento crítico para a hegemonia jacobina durante a Revolução Francesa na hora em que Stalin tomou o controle da autoridade na época da operacionalização da política nazista na Alemanha ou do triunfo aiatolá Khomeini no Irã em todas essas circunstâncias os dirigentes que se afirmavam legitimavam a dominação a força a autoridade central e o poder soberano identificandoos ao masculino os inimigos os outsiders os subversivos e a fraqueza eram identificados ao feminino e traduziram literalmente esse código em leis que colocam as mulheres no seu lugar proibindo sua participação na vida política tornando o aborto ilegal proibindo o trabalho assalariado das mães impondo códigos de vestuário às mulheres 52 Essas ações e sua programação têm pouco sentido em si mesmas Na maioria dos casos o estado não tinha nada de imediato ou nada material a ganhar com o controle das mulheres Essas ações só podem adquirir um sentido se elas são integradas a uma análise da construção e da consolidação de um poder Uma afirmação de controle ou de força tomou a forma de uma política sobre as mulheres Nesses exemplos a diferença sexual tem sido concebida em termos de dominação e de controle das mulheres Eles podem nos dar ideias sobre os diversos tipos de relações de poder que se constroem na história moderna mas essa relação particular não constitui um tema político universal Segundo modos diferentes por exemplo o regime democrático do Século XX tem igualmente construido as suas ideologias políticas a partir de conceitos de gênero que se traduziram em políticas concretas o Estado Providência por exemplo demonstrou seu paternalismo protetor através de leis dirigidas às mulheres e às crianças 53 Ao longo da história alguns movimentos socialistas ou anarquistas recursaram completamente as metáforas de dominação apresentando de forma imaginativa suas críticas aos regimes e organizações sociais particulares em termos de transformação de identidade de gênero Os socialistas utópicos na França e na Inglaterra nos anos de 1830 e 1840 conceberam sonhos de um futuro harmonioso em termos de naturezas complementares de indivíduos ilustrados pela união do homem e da mulher o indivíduo social 54 Os anarquistas europeus eram conhecidos desde muito tempo pela sua recusa das convenções como o casamento burguês mas também pelas suas visões de um mundo no qual as diferenças sexuais não implicariam em hierarquia Tratase de exemplos de ligações explícitas entre o gênero e o poder mas elas só são uma parte da minha definição de gênero como um modo primeiro de significar as relações de poder Frequentemente a ênfase colocada sobre o gênero não é explícita mas constitui no entanto uma dimensão decisiva da organização da igualdade e desigualdade As estruturas hierárquicas baseiamse em compreensões generalizadas da relação pretensamente natural entre o masculino e o feminino A articulação do conceito de classe no século XIX baseavase no gênero Quando por exemplo na França os reformadores burgueses descreviam os operários em termos codificados como femininos subordinados fracos sexualmente explorados como os prostitutas os dirigentes operários e socialistas respondiam insistindo na posição masculina da classe operária produtores fortes protetores das mulheres e das crianças Os termos desse discurso não diziam respeito explicitamente ao gênero mas eram reforçados na medida em que se referenciavam a ele A codificação de gênero de certos termos estabelece e naturalizava seus significados Nesse processo as definições normativas do gênero historicamente situadas e tomadas como dados se reproduziram e se integraram na cultura da classe operária francesa 55 Os temas da guerra da diplomacia e da alta política aparecem frequentemente quando osas historiadoresas da história política tradicional colocam em questão a utilidade do gênero para o seu trabalho Mas lá também temos que olhar além dos atores e do valor literal das suas palavras As relações de poder entre as nações e o estatuto dos súditos coloniais se tornaram compreensíveis e portanto legítimos em termos de relações entre masculino e feminino a legitimação da guerra sacrificar vidas de jovens para proteger o estado tomou formas diversificadas desde o apelo explícito à virilidade a necessidade de defender as mulheres e as crianças que de outra forma seriam vulneráveis até a crença no dever de que teriam os filhos que servir aos seus dirigentes ou rei seu pai e até associações entre masculinidade e potência nacional 56 A alta política ela mesma é um conceito de gênero porque estabelece sua importância decisiva de seu poder público as razões de ser e a realidade da existência da sua autoridade superior precisamente graças à exclusão das mulheres do seu funcionamento O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi concebido legitimado e criticado Ele se refere à oposição masculinofeminino e fundamenta ao mesmo tempo seu sentido Para reivindicar o poder político a referência tem que parecer segura e fixa fora de qualquer construção humana fazendo parte da ordem natural ou divina Desta forma a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornamse os dois parte do sentido do poder ele mesmo Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema por inteiro Se as significações de gênero e de poder se constroem reciprocamente como é que as coisas mudam De um ponto de vista geral respondese que a mudança pode ter várias origens transtornos políticos de massa que coloquem as ordens antigas em causa engendram novas podem revisar os termos e portanto a organização do gênero na sua procura de novas formas de legitimação Mas eles podem não fazêlo noções antigas de gênero serviram igualmente para validar novos regimes 57 Crises demográficas causadas pela fome pestes ou guerras colocaram às vezes em questão as visões normativas do casamento heterossexual quando foi o caso em certos meios de certos países no decorrer dos anos 20 mas também provocaram políticas natalistas que insistiram na importância exclusiva das funções maternas e reprodutivas das mulheres 58 A transformação das estruturas de emprego pode modificar as estratégias de casamento Ela pode oferecer novas possibilidades para a construção da subjetividade mas elas podem também ser vividas como novo espaço de atividade para filhas e esposas obedientes 59 que elas participaram dos grandes e pequenos eventos da história humana O gênero legitimou a emergência de carreiras profissionais 60 Para citar o título de um artigo recente da feminista francesa Luce Irigaray o sujeito da ciência é sexuado 61 Qual é a relação entre a política do Estado e da descoberta do crime de homossexualidade 62 Como as instituições sociais têm incorporado o gênero nos seus pressupostos e na sua organização Já houve conceitos de gênero realmente igualitários sobre os quais foram projetados ou o mesmo baseado sistemas políticos Para uma argumentação contra a utilização do gênero para sublinhar o aspecto social da diferença sexual v Moira Gatens JanuaryFebruary 1985 p108120 Voir aussi Hugh Armstrong et Pat Armstrong Beyond Sexless Class and Classless Sex Studies in Political Economy 10 Winter 1983 p 744 Hugh Armstrong et Pat Armstrong Comments More on Marxist feminism Studies in Political Economy 15 Fall 1984 p 17984 et Jane Jenson Gender and reproduction or Babies and the state article unpublished June 1985 p17 Para formulações teóricas anteriores ver Papers on Patriarchy Conference London 1976 Sou grata a Jane Kaplan que me indicou esta publicação e que aceitou compartilhar comigo seu exemplar e suas idéias Para a posição psicanalítica ver Sally Alexander Women class and sexual difference History Workshop 17 Spring 1984 p 12535 No decorrer dos seminários da Universidade de Princeton no início de 1986 Juliet Mitchell parecia voltar a das a prioridade à análise materialista do gênero Para uma tentativa de ir além do impasse feminista marxista ver Coward Patriarchal Precedents Ver também a tentativa americana brilhante iniciada nesta direção por Gayle Rubin em The Traffic in Women Notes on the political Economy of sex in Rayner R Reiter ed Towards an Anthropology of Women New York 1975 p 1678 Nancy Chodorow The Reproduction of Mothering Psychoanalysis and the Sociology of Gender Berkeley Calif 1978 p 169 Elisabethan Culture Representations 2 Spring 1983 p6194 et Lynn Hunt Hercules and the radical Image in the French Revolution Representations 2 Spring 1983 p 95117 p 383446 Sobre a Terceira República na França ver Steven Hause Womens Suffrage and Social Politics in the French Third Republic Princeton NJ 1984 Um tratamento muito interessante de um caso recente é o artigo de Maxime Molyneux Mobilization Without Emancipation Womens Interest the state and Revolution in Nicarágua Feminist Studies Summer 1985 p 2254