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Gestão de Recursos Humanos ·
Ética
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1 Ética e verdade O caminho fundamental para a realização da felicidade, finalida- de da ética, é a verdade. Esta é a proposição norteadora deste livro. Torna-se fundamental, pois, ter bem claro o que é a verdade, ainda que essa pergunta, feita por Pilatos a Jesus (Jo 18,37-38), ainda hoje não tenha respostas unânimes. Classicamente, a verdade foi definida como a exata coincidência entre o que se diz de um objeto e o que o objeto é em si mesmo. É o acordo entre o pensamento e a realidade, é a adequação entre a inteligência e o ser. Estar de posse da verdade é apropriar-se do mundo de forma objetiva, realista, livre de ilusões, distorções e projeções do sujeito que procura conhecê-la. Podemos perguntar se é possível conhecer a verdade, isto é, apre- ender o real na sua essência, traduzir o ser em uma ideia que seja a sua exata representação. Estudos sobre a capacidade cognitiva do ser hu- mano chegam a dizer que o que o ser humano apreende da realidade pode não ser a realidade, visto que o cérebro e os sentidos filtram a realidade. Preferimos problematizar a questão seguindo uma linha histórica, a partir de alguns autores e correntes filosóficas. Devemos ter o cuidado de evitar tanto o dogmatismo daqueles que pensam ter encontrado a verdade toda quanto o relativismo daqueles que negam a possibilidade de algum conhecimento verdadeiro. De fato, não conseguimos ter a posse da verdade toda, isto é, não somos capazes de ter o conhecimento absoluto de toda a reali- dade. A razão não é capaz de explicar, por exemplo, a nossa origem no universo. Existimos no mundo e não sabemos de onde viemos. A verdade acerca da nossa origem é mistério. Geralmente as pessoas atribuem a Deus a origem de todas as coisas. Entenda-se por Deus o conceito utilizado para designar o princípio primeiro criador de to- dos os seres. Como criador, Deus é o motor de cada movimento que chamamos vida. No entanto, Deus é imóvel, pois se movesse te- ríamos que nos perguntar qual o motor que o moveu. Se Deus é o criador de tudo, Ele não pode ter nenhum antecedente. Deus é um criador incriado, que não foi criado por nada ou ninguém. Por isso, Ele é um motor imóvel. Gera movimento sem se mover, como a perfeição estética da obra de arte que, despretensiosamente, emo- ciona quem a contempla. Como princípio primeiro, Deus é total. Nada lhe falta, pois tudo dele se origina: é perfeito. Ora, se eu nasci, se eu não me criei, urge concluir que existe, ou pelo menos existiu, um Criador. Se o universo e a vida humana nasceram da matéria, como acreditam os materialistas, estamos dizendo que o Deus, cria- dor de todas as coisas, incriado, total e perfeito, é a matéria. Se o universo e a vida humana nasceram de um espírito criador, como acreditam os espiritualistas, estamos dizendo que o Deus é um es- pírito. Mas isso nós nunca vamos saber. É mistério. Essa verdade nos é inacessível, mas temos certeza em afirmar que tal preposição é verdadeira, pois se Deus é criador, total e o ser humano é cria- tura, parte do todo, é impossível à parte conhecer o que é maior do que si mesmo. Mesmo se o conhecesse em sua experiência, Deus é inefável, pois como pode a palavra, que é finita, expressar o que por definição é infinito? Seria como pedir a uma criança que só do- mina o conjunto dos números naturais que fizesse operações com radicais do conjunto dos números reais. Como demonstrado a partir desse exemplo, não somos capazes de aprender a realidade toda, mas este próprio reconhecimento é uma verdade. Isso significa que, embora não seja possível conhecer a verdade toda, alguma verdade nos é possível alcançar. Recusa- mos assim a postura niilista de quem se recusa a perguntar pela ver- dade e também a posição fundamentalista de quem pensa que seu conhecimento é a verdade absoluta. Ao afirmar que a felicidade é a meta de la vida humana e que o ca- minho para alcançá-la é a verdade, estamos propondo que existem premissas decididamente verdadeiras que constituem a base para a construção de uma vida feliz. Não podemos negar, mesmo reco- nhecendo a limitação da razão, que alguns postulados sobre a reali- dade são verdadeiros. Se um indivíduo se joga do vigésimo quinto andar de um edifício, podemos afirmar, com certeza, que seu en- contro com o chão vai levá-lo à morte. Do mesmo modo, se uma pessoa compra um carro usado, considerando que ele está em um ótimo estado e depois descobre que o seu motor está condenado, podemos dizer que ele não estava de posse da verdade acerca do au- tomóvel que adquiriu. Fica estabelecido, portanto, como fio condutor de nossa refle- xão, que a verdade é o caminho para a realização da felicidade, meta do ser humano, finalidade da ética. Ser feliz depende, assim, da acei- tação da realidade como ela é. Tal aceitação depende do conheci- mento que se pode ter dela. Torna-se necessário refletir sobre o que é o conhecimento e como ele se organizou ao longo do pensamento filosófico, em busca da verdade. Teremos, assim, condições de rela- cionar a compreensão acerca da verdade do conhecimento com a ética, demonstrando que a afirmação ou a negação da possibilidade do conhecimento verdadeiro determinam diferentes concepções de ética. 1.1 Conhecimento e verdade 1.1 Conhecimento e verdade O objetivo de todo o conhecimento é a apropriação da verdade. Conhecer é o ato pelo qual o sujeito representa o objeto. Quando esta representação é feita tal como o objeto é, tem-se um conheci- mento verdadeiro. Quando a representação não coincide com o que o objeto é, tem-se um conhecimento falso. O conhecimento consis- te, portanto, na relação de dois elementos fundamentais, sujeito e objeto, sendo que o primeiro produz acerca do segundo uma repre- sentação. O sujeito pode estar neutro diante do objeto, mas pode também projetar-se nele de modo a colocar nele o que é seu e não dele. O objeto, por sua vez, desdobra-se em o que ele é em si, real, e como ele aparece para o sujeito, fenômeno. O fenômeno pode não ser exatamente o real, pois a maneira como o sujeito aprende a ma- nifestação do ser pode ser diferente do ser. Paul Tillich (1987) diria que a representação verdadeira de um ser “é o resultado de expectativas desiludidas em nosso encontro com a realidade” (p. 91). Vale a pena transcrever o seu exemplo: Encontramos uma pessoa, e as impressões que recebemos dela produzem em nós expectativas quanto a seu comportamento futuro. Algumas dessas expectativas serão desiludidas e provocarão o desejo de uma compreensão mais profunda de sua personalidade, em comparação com a qual a primeira compreensão era "superficial". Novas expectativas surgem e se mostram igualmente parcialmente desiludidas, levando-nos à pergunta por um nível ainda mais profundo de sua personalidade. Finalmente podemos ter êxito descobrindo sua estrutura de personalidade real, verdadeira, a essência e poder de seu ser. Daí então não mais seremos decepcionados. Podemos ainda ficar surpreendidos; mas essas surpresas podem ser esperadas se uma personalidade é objeto de conhecimento. A verdade de algo é aquele nível de seu ser cujo conhecimento afasta expectativas erradas e consequentes desapontamentos (TILLICH, 1987: 91). Talvez seja por isso que se costuma dizer que o ser humano aprende com o sofrimento. Este se manifesta no momento em que o sujeito é surpreendido com alguma realidade que de alguma forma ele não esperava. O sofrimento revela que o indivíduo estava ignorante acerca da realidade. Ao trazer à tona a precariedade de seu conhecimento, o sujeito está aprendendo, está tornando o seu conhecimento mais profundo. Tal proposição se mostra muito interessante porque ousa sugerir que o sofrimento psíquico é acompanhado de alguma ignorância do sujeito que sofre em relação ao tema de sua dor. Por isso, o sofrimento psíquico é fonte de aprendizagem. A representação verdadeira de um objeto depende, portanto, do máximo de informações sobre a vida e sobre o sujeito que busca o conhecimento, isto é, do autoconhecimento. O que uma pessoa diz da realidade pode revelar o que a realidade é, mas pode revelar também como o sujeito se projeta sobre a realidade que ele quer conhecer. A decodificação da simbolização feita pela pessoa lhe permite conhecer a si mesma. 1.2 Uma ideia de verdade em Platão Na Antiguidade Clássica, na cidade grega de Atenas, um filósofo, de apelido Platão (428/427-347 a.C.), (seu verdadeiro nome era Aristócles), usou de uma alegoria para ilustrar as suas ideias. Vamos nos valer dela para discutir o problema do conhecimento e sua relação com a verdade e a ética. O Mito da Caverna, como é chamada, é uma história fictícia, que supunha a existência de uma habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz. Estão lá dentro, desde a infância, alguns homens, algemados de pernas e pescoços de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar para frente. São incapazes de voltar a cabeça por causa das correntes. Serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles. Entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no gênero dos tapumes que os homens colocam diante do público para mostrar suas habilidades por cima deles. Ao longo deste muro passam homens que transportam toda espécie de objetos. Uns passam falando, outros seguem calados. Nestas condições, os prisioneiros, incapazes de volver o rosto para trás, veem somente as sombras dos homens e objetos que passam por detrás deles, sombras essas projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna. Assim, mesmo que fossem capazes de conversar uns com os outros, os cativos julgariam estar a nomear objetos reais o que viam diante de si. Se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo, quando algum dos transeuntes falasse, os prisioneiros julgariam que a voz era da sombra que passava diante deles. Assim, pessoas nessas condições estariam cometendo o erro de achar que a realidade era a mera sombra dos objetos reais. Supondo que um dos prisioneiros fosse solto das correntes e pudesse endireitar-se de repente, mover o pescoço, andar a ponto de sair da caverna e olhar para a luz, ele sentiria dor e o deslumbramento impedir-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora. Sentindo os seus olhos doerem, voltar-se-ia para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os lá de fora. Mas se essa volta à caverna não fosse possível, o prisioneiro liberto sentiria os olhos doídos e sequer seria capaz de ver alguma coisa. Precisaria se habituar se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso para as imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas na água, e, por último, para os próprios objetos. A partir de então seria capaz de contemplar o que há no céu e o próprio céu, durante a noite, olhando a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que fosse o Sol e o seu brilho de dia. Finalmente, seria capaz de contemplar o Sol, não já a sua imagem na água, ou em qualquer objeto, mas a ele mesmo, no seu lugar. Quando se lembrasse de sua primitiva habitação e do saber que lá possuía, é provável que não quisesse regressar àquelas ilusões e viver do mundo antigo, pois não conseguiria mais achar que o que se via de dentro da caverna seja a realidade. Se imaginarmos, ainda, que o cativo que se libertou tenha voltado à caverna, ele precisaria então de um tempo para adaptar a vista à penumbra. Seus antigos companheiros diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão. No caso do ex-prisioneiro tentar libertar os outros prisioneiros para que fossem lá fora ver a vida de verdade, é bem provável que estes últimos se voltem contra o primeiro e o considerem enlouquecido ou herege ou subversivo. Se o ex-cativo insistir em levar os companheiros à verdade, é também bem provável que seria até mesmo morto. A partir da analogia da caverna, Platão procura demonstrar que a verdade é possível de ser conhecida. O conhecimento da verdade exige que a pessoa se liberte das aparências, do mundo das ilusões e das sombras e tenha força para vencer as dificuldades do aprendizado, simbolizadas pela dor nos olhos. Dessa alegoria podemos retirar importantes considerações. Primeira: a pessoa que está iludida acerca da verdade das coisas, isto é, aquela que está vendo a sombra, a aparência, e tomando-a pela rea lidade, acredita firmemente que está de posse da verdade. Isso quer dizer que o juízo que um indivíduo faz da realidade pode estar equi- vocado, mas naquele momento é o que considera verdadeiro. Desta afirmação podemos deduzir uma segunda consideração: ninguém erra convicto do erro que está cometendo. A constatação de que o indivíduo errou, embora possa ser percebida por terceiros imediata- mente, só é percebida por ele a posteriori. Terceiro: quem conhe- ce a verdade não consegue mais tomar a aparência pelo real. Uma vez conhecida a verdade, é impossível à pessoa voltar à ignorância. Se o sujeito sabe que a sombra não é a realidade, mas uma projeção dela, não é possível voltar a acreditar que a sombra é o real. É igual pasta de creme dental: depois que apertou a bisnaga, é impossível que o creme volte para embalagem pelo mesmo orifício. Esse prin- cípio é o que Platão chamou de homologia entre o conhecimento e a virtude. Se você conhece o bem é impossível não praticá-lo. E se não pratica é porque não o conhece. A partir do pensamento de Platão, podemos considerar que a verdade é a adequação entre o ser e a ideia. Para Platão, a verdade pode ser conhecida desde que o sujeito se eleve ao Mundo das Ideias e se liberte das ilusões da caverna. Uma vez contemplada a ideia de Bem, ela passa a nortear as condutas da pessoa de modo imperati- vo. A verdade, nessa concepção, é universal, pois ela não muda. O que muda são as aparências (as sombras), nunca a ideia (a realidade de fora da caverna). A aparente mudança da realidade só ocorre no âmbito do mundo sensível. 1.2.1 A ética normativa As ideias de Platão levam à formulação de um modelo ético que podemos chamar de normativo ou de ética da convicção. Ao avaliar se uma conduta é correta do ponto de vista ético, ela deve ser avaliada à luz da ideia de Bem, representada, no mito, pelo Sol. A partir do momento que o Bem é contemplado, as ações humanas são necessariamente norteadas por sua luz. Antes de tomar uma de- cisão, o sujeito se pergunta se sua conduta está de acordo com os princípios éticos, entre os quais o mais importante é o Bem. Se as- sim for, ele está obrigado a agir. Caso contrário, está obrigado a não tomar aquela decisão. Nesse sentido, o valor se impõe de modo im- perativo, como norma, à conduta humana, mesmo que ela produza alguma perda ou sacrifício. Os resultados da conduta estão entre parêntesis. Eles não são levados em consideração no momento da escolha da conduta (Figura 1). Figura 1. A ética normativa: o princípio ético se impõe à conduta, apesar de eventuais resultados negativos que a conduta possa provocar. Em outra obra de Platão há uma passagem que ilustra de modo categórico o modelo normativo de ética. Sócrates estava preso e es- perava o dia da sua condenação, quando Críton, nome que dá título ao diálogo, visita-o e propõe um plano de fuga. Sócrates pondera que a decisão só poderia ser tomada se estivesse de acordo com o princípio da justiça. Pela boca de Sócrates, Platão diz: Devemos examinar, antes de mais nada, se é justo ou injus- to sair daqui sem a permissão dos atenienses, pois se é justo devemos tentá-lo, mas se é injusto, devemos abandonar a ideia (PLATÃO, 1981: 89). Sócrates acabou por demonstrar que não seria justo sair da pri- são sem o consentimento da lei. Resultado: foi condenado à morte, obrigado a beber cicuta. No pensamento de Platão, portanto, o va- lor ético, como o bem ou a justiça, impõe-se de modo imperativo à conduta, mesmo que as consequências desta ação sejam de algum modo prejudiciais. O resultado da ação se torna secundário em re- lação à prioridade que é dada à conformidade com os valores éti- cos. Nesse sentido, ser ético impõe sacrifícios. Como podemos perceber, a convicção de que a verdade pode ser conhecida determina um modelo de ética, que chamamos de normativo. Se eu sei o que é justo, se eu conheço verdadeiramente a justiça, a ação justa se impõe de modo imperativo ao meu compor- tamento. A pergunta que hoje podemos fazer é a seguinte: o que nos garante que estejamos agindo verdadeiramente conforme a jus- tiça? O que é a justiça? É possível ter um conhecimento universal do que seja justo? Para Platão, em seu tempo, a possibilidade do conhecimento da justiça não era posta em dúvida. Reconhecia-se a divergência entre as opiniões acerca do justo, mas se considerava que o filósofo, aquele que se libertou das correntes que o aprisionavam ao mundo das aparências, era capaz de ver a verdade e agir de acordo com o critério da justiça. Isso significa que apenas os filósofos tinham o privilégio de serem justos, pois a maioria dos indivíduos estava presa às ilusões da caverna, incapazes de distinguir a sombra do ob- jeto que a originou. A certeza era proporcionada pela razão, ao pas- so que as dúvidas e a incerteza eram frutos das opiniões, da discus- são sem a fundamentação racional. Tal concepção de ética fundamentou uma concepção aristocrá- tica de política, pois, para Platão, só deveria governar aquele que contemplou a ideia de Bem, ou seja, o filósofo. A sofocracia, ou go- verno dos sábios, seria mais eficiente que a democracia, pois o jul- gamento popular quase sempre deixar-se-ia levar pelas aparências: Não acreditas que se disse muito acertadamente que não devem ser consideradas todas as opiniões dos homens, mas algumas apenas, e não as de todos os homens, mas a de al- guns apenas? [...] Um homem que se exercita no ginásio ou- virá a ofensa ou o louvor do primeiro passante ou somente aqueles do médico ou monitor que o dirige o ginásio? (PLA- TÃO, 1981: 87-88). Hoje, este modelo de ética sofre as mesmas críticas que são fei- tas ao conceito clássico de verdade. Do mesmo modo que se duvida da possibilidade de se alcançar a verdade, duvida-se da possibilidade de se conhecer valores universais que determinem a ação do sujeito. Usando da analogia com o Mito da Caverna: o que garante ao cati- vo que se libertou das correntes que o que ele esteja vendo lá fora seja realmente o real? Por que não se dizer que estes objetos e indi- víduos também são sombras de outra realidade? Modernamente fa- lando, podem ser objetos virtuais projetados por computador ou, ainda, clones de outros seres. Existe realmente a realidade lá de fora, o mundo das essências, ou a realidade não é nada mais do que as aparências? 1.3 Uma ideia de verdade em Maquiavel e a ética dos resultados A crise do modelo normativo de ética se origina junto com a gênese do período moderno, cujos eventos que merecem destaque, para o nosso propósito, são o pensamento de Maquiavel e a nova maneira de se pensar a possibilidade do conhecimento, com Des- cartes e Kant. Inicialmente, procuramos desvendar o conceito de verdade subjacente ao pensamento de Maquiavel, filósofo italiano do século XVI. Veremos que o conceito não é diferente daquele implícito nas ideias de Platão. Maquiavel consideraria possível co- nhecer a verdade, concebida como adequação entre a ideia e a reali- dade. Mas afirma claramente que a realidade está em contínua mu- dança, o que exige uma contínua mudança das ideias para que elas possam se adequar à realidade. Em Platão, existem dois mundos, representados pela caverna (mundo sensível) e pelo mundo lá de fora (Mundo das Ideias). Já em Maquiavel a única realidade é a da nossa existência sensível. Não existe uma realidade metafísica, como postula Platão. Maquiavel contribuiu, com seu pensamento político, para a per- da do referencial ético greco-medieval. Revela-se, em suas ideias, a quebra da unidade da reflexão sobre o comportamento ético, até en- tão estabelecida pelo ethos religioso que perpassa toda a Idade Mé- dia. O modelo normativo perde a sua razão de ser, pois o que im- porta é o sucesso da ação política. O respeito a valores que se im- põem de forma imperativa à ação humana torna-se empecilho à ação política eficiente.
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1 Ética e verdade O caminho fundamental para a realização da felicidade, finalida- de da ética, é a verdade. Esta é a proposição norteadora deste livro. Torna-se fundamental, pois, ter bem claro o que é a verdade, ainda que essa pergunta, feita por Pilatos a Jesus (Jo 18,37-38), ainda hoje não tenha respostas unânimes. Classicamente, a verdade foi definida como a exata coincidência entre o que se diz de um objeto e o que o objeto é em si mesmo. É o acordo entre o pensamento e a realidade, é a adequação entre a inteligência e o ser. Estar de posse da verdade é apropriar-se do mundo de forma objetiva, realista, livre de ilusões, distorções e projeções do sujeito que procura conhecê-la. Podemos perguntar se é possível conhecer a verdade, isto é, apre- ender o real na sua essência, traduzir o ser em uma ideia que seja a sua exata representação. Estudos sobre a capacidade cognitiva do ser hu- mano chegam a dizer que o que o ser humano apreende da realidade pode não ser a realidade, visto que o cérebro e os sentidos filtram a realidade. Preferimos problematizar a questão seguindo uma linha histórica, a partir de alguns autores e correntes filosóficas. Devemos ter o cuidado de evitar tanto o dogmatismo daqueles que pensam ter encontrado a verdade toda quanto o relativismo daqueles que negam a possibilidade de algum conhecimento verdadeiro. De fato, não conseguimos ter a posse da verdade toda, isto é, não somos capazes de ter o conhecimento absoluto de toda a reali- dade. A razão não é capaz de explicar, por exemplo, a nossa origem no universo. Existimos no mundo e não sabemos de onde viemos. A verdade acerca da nossa origem é mistério. Geralmente as pessoas atribuem a Deus a origem de todas as coisas. Entenda-se por Deus o conceito utilizado para designar o princípio primeiro criador de to- dos os seres. Como criador, Deus é o motor de cada movimento que chamamos vida. No entanto, Deus é imóvel, pois se movesse te- ríamos que nos perguntar qual o motor que o moveu. Se Deus é o criador de tudo, Ele não pode ter nenhum antecedente. Deus é um criador incriado, que não foi criado por nada ou ninguém. Por isso, Ele é um motor imóvel. Gera movimento sem se mover, como a perfeição estética da obra de arte que, despretensiosamente, emo- ciona quem a contempla. Como princípio primeiro, Deus é total. Nada lhe falta, pois tudo dele se origina: é perfeito. Ora, se eu nasci, se eu não me criei, urge concluir que existe, ou pelo menos existiu, um Criador. Se o universo e a vida humana nasceram da matéria, como acreditam os materialistas, estamos dizendo que o Deus, cria- dor de todas as coisas, incriado, total e perfeito, é a matéria. Se o universo e a vida humana nasceram de um espírito criador, como acreditam os espiritualistas, estamos dizendo que o Deus é um es- pírito. Mas isso nós nunca vamos saber. É mistério. Essa verdade nos é inacessível, mas temos certeza em afirmar que tal preposição é verdadeira, pois se Deus é criador, total e o ser humano é cria- tura, parte do todo, é impossível à parte conhecer o que é maior do que si mesmo. Mesmo se o conhecesse em sua experiência, Deus é inefável, pois como pode a palavra, que é finita, expressar o que por definição é infinito? Seria como pedir a uma criança que só do- mina o conjunto dos números naturais que fizesse operações com radicais do conjunto dos números reais. Como demonstrado a partir desse exemplo, não somos capazes de aprender a realidade toda, mas este próprio reconhecimento é uma verdade. Isso significa que, embora não seja possível conhecer a verdade toda, alguma verdade nos é possível alcançar. Recusa- mos assim a postura niilista de quem se recusa a perguntar pela ver- dade e também a posição fundamentalista de quem pensa que seu conhecimento é a verdade absoluta. Ao afirmar que a felicidade é a meta de la vida humana e que o ca- minho para alcançá-la é a verdade, estamos propondo que existem premissas decididamente verdadeiras que constituem a base para a construção de uma vida feliz. Não podemos negar, mesmo reco- nhecendo a limitação da razão, que alguns postulados sobre a reali- dade são verdadeiros. Se um indivíduo se joga do vigésimo quinto andar de um edifício, podemos afirmar, com certeza, que seu en- contro com o chão vai levá-lo à morte. Do mesmo modo, se uma pessoa compra um carro usado, considerando que ele está em um ótimo estado e depois descobre que o seu motor está condenado, podemos dizer que ele não estava de posse da verdade acerca do au- tomóvel que adquiriu. Fica estabelecido, portanto, como fio condutor de nossa refle- xão, que a verdade é o caminho para a realização da felicidade, meta do ser humano, finalidade da ética. Ser feliz depende, assim, da acei- tação da realidade como ela é. Tal aceitação depende do conheci- mento que se pode ter dela. Torna-se necessário refletir sobre o que é o conhecimento e como ele se organizou ao longo do pensamento filosófico, em busca da verdade. Teremos, assim, condições de rela- cionar a compreensão acerca da verdade do conhecimento com a ética, demonstrando que a afirmação ou a negação da possibilidade do conhecimento verdadeiro determinam diferentes concepções de ética. 1.1 Conhecimento e verdade 1.1 Conhecimento e verdade O objetivo de todo o conhecimento é a apropriação da verdade. Conhecer é o ato pelo qual o sujeito representa o objeto. Quando esta representação é feita tal como o objeto é, tem-se um conheci- mento verdadeiro. Quando a representação não coincide com o que o objeto é, tem-se um conhecimento falso. O conhecimento consis- te, portanto, na relação de dois elementos fundamentais, sujeito e objeto, sendo que o primeiro produz acerca do segundo uma repre- sentação. O sujeito pode estar neutro diante do objeto, mas pode também projetar-se nele de modo a colocar nele o que é seu e não dele. O objeto, por sua vez, desdobra-se em o que ele é em si, real, e como ele aparece para o sujeito, fenômeno. O fenômeno pode não ser exatamente o real, pois a maneira como o sujeito aprende a ma- nifestação do ser pode ser diferente do ser. Paul Tillich (1987) diria que a representação verdadeira de um ser “é o resultado de expectativas desiludidas em nosso encontro com a realidade” (p. 91). Vale a pena transcrever o seu exemplo: Encontramos uma pessoa, e as impressões que recebemos dela produzem em nós expectativas quanto a seu comportamento futuro. Algumas dessas expectativas serão desiludidas e provocarão o desejo de uma compreensão mais profunda de sua personalidade, em comparação com a qual a primeira compreensão era "superficial". Novas expectativas surgem e se mostram igualmente parcialmente desiludidas, levando-nos à pergunta por um nível ainda mais profundo de sua personalidade. Finalmente podemos ter êxito descobrindo sua estrutura de personalidade real, verdadeira, a essência e poder de seu ser. Daí então não mais seremos decepcionados. Podemos ainda ficar surpreendidos; mas essas surpresas podem ser esperadas se uma personalidade é objeto de conhecimento. A verdade de algo é aquele nível de seu ser cujo conhecimento afasta expectativas erradas e consequentes desapontamentos (TILLICH, 1987: 91). Talvez seja por isso que se costuma dizer que o ser humano aprende com o sofrimento. Este se manifesta no momento em que o sujeito é surpreendido com alguma realidade que de alguma forma ele não esperava. O sofrimento revela que o indivíduo estava ignorante acerca da realidade. Ao trazer à tona a precariedade de seu conhecimento, o sujeito está aprendendo, está tornando o seu conhecimento mais profundo. Tal proposição se mostra muito interessante porque ousa sugerir que o sofrimento psíquico é acompanhado de alguma ignorância do sujeito que sofre em relação ao tema de sua dor. Por isso, o sofrimento psíquico é fonte de aprendizagem. A representação verdadeira de um objeto depende, portanto, do máximo de informações sobre a vida e sobre o sujeito que busca o conhecimento, isto é, do autoconhecimento. O que uma pessoa diz da realidade pode revelar o que a realidade é, mas pode revelar também como o sujeito se projeta sobre a realidade que ele quer conhecer. A decodificação da simbolização feita pela pessoa lhe permite conhecer a si mesma. 1.2 Uma ideia de verdade em Platão Na Antiguidade Clássica, na cidade grega de Atenas, um filósofo, de apelido Platão (428/427-347 a.C.), (seu verdadeiro nome era Aristócles), usou de uma alegoria para ilustrar as suas ideias. Vamos nos valer dela para discutir o problema do conhecimento e sua relação com a verdade e a ética. O Mito da Caverna, como é chamada, é uma história fictícia, que supunha a existência de uma habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz. Estão lá dentro, desde a infância, alguns homens, algemados de pernas e pescoços de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar para frente. São incapazes de voltar a cabeça por causa das correntes. Serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles. Entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no gênero dos tapumes que os homens colocam diante do público para mostrar suas habilidades por cima deles. Ao longo deste muro passam homens que transportam toda espécie de objetos. Uns passam falando, outros seguem calados. Nestas condições, os prisioneiros, incapazes de volver o rosto para trás, veem somente as sombras dos homens e objetos que passam por detrás deles, sombras essas projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna. Assim, mesmo que fossem capazes de conversar uns com os outros, os cativos julgariam estar a nomear objetos reais o que viam diante de si. Se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo, quando algum dos transeuntes falasse, os prisioneiros julgariam que a voz era da sombra que passava diante deles. Assim, pessoas nessas condições estariam cometendo o erro de achar que a realidade era a mera sombra dos objetos reais. Supondo que um dos prisioneiros fosse solto das correntes e pudesse endireitar-se de repente, mover o pescoço, andar a ponto de sair da caverna e olhar para a luz, ele sentiria dor e o deslumbramento impedir-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora. Sentindo os seus olhos doerem, voltar-se-ia para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os lá de fora. Mas se essa volta à caverna não fosse possível, o prisioneiro liberto sentiria os olhos doídos e sequer seria capaz de ver alguma coisa. Precisaria se habituar se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso para as imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas na água, e, por último, para os próprios objetos. A partir de então seria capaz de contemplar o que há no céu e o próprio céu, durante a noite, olhando a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que fosse o Sol e o seu brilho de dia. Finalmente, seria capaz de contemplar o Sol, não já a sua imagem na água, ou em qualquer objeto, mas a ele mesmo, no seu lugar. Quando se lembrasse de sua primitiva habitação e do saber que lá possuía, é provável que não quisesse regressar àquelas ilusões e viver do mundo antigo, pois não conseguiria mais achar que o que se via de dentro da caverna seja a realidade. Se imaginarmos, ainda, que o cativo que se libertou tenha voltado à caverna, ele precisaria então de um tempo para adaptar a vista à penumbra. Seus antigos companheiros diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão. No caso do ex-prisioneiro tentar libertar os outros prisioneiros para que fossem lá fora ver a vida de verdade, é bem provável que estes últimos se voltem contra o primeiro e o considerem enlouquecido ou herege ou subversivo. Se o ex-cativo insistir em levar os companheiros à verdade, é também bem provável que seria até mesmo morto. A partir da analogia da caverna, Platão procura demonstrar que a verdade é possível de ser conhecida. O conhecimento da verdade exige que a pessoa se liberte das aparências, do mundo das ilusões e das sombras e tenha força para vencer as dificuldades do aprendizado, simbolizadas pela dor nos olhos. Dessa alegoria podemos retirar importantes considerações. Primeira: a pessoa que está iludida acerca da verdade das coisas, isto é, aquela que está vendo a sombra, a aparência, e tomando-a pela rea lidade, acredita firmemente que está de posse da verdade. Isso quer dizer que o juízo que um indivíduo faz da realidade pode estar equi- vocado, mas naquele momento é o que considera verdadeiro. Desta afirmação podemos deduzir uma segunda consideração: ninguém erra convicto do erro que está cometendo. A constatação de que o indivíduo errou, embora possa ser percebida por terceiros imediata- mente, só é percebida por ele a posteriori. Terceiro: quem conhe- ce a verdade não consegue mais tomar a aparência pelo real. Uma vez conhecida a verdade, é impossível à pessoa voltar à ignorância. Se o sujeito sabe que a sombra não é a realidade, mas uma projeção dela, não é possível voltar a acreditar que a sombra é o real. É igual pasta de creme dental: depois que apertou a bisnaga, é impossível que o creme volte para embalagem pelo mesmo orifício. Esse prin- cípio é o que Platão chamou de homologia entre o conhecimento e a virtude. Se você conhece o bem é impossível não praticá-lo. E se não pratica é porque não o conhece. A partir do pensamento de Platão, podemos considerar que a verdade é a adequação entre o ser e a ideia. Para Platão, a verdade pode ser conhecida desde que o sujeito se eleve ao Mundo das Ideias e se liberte das ilusões da caverna. Uma vez contemplada a ideia de Bem, ela passa a nortear as condutas da pessoa de modo imperati- vo. A verdade, nessa concepção, é universal, pois ela não muda. O que muda são as aparências (as sombras), nunca a ideia (a realidade de fora da caverna). A aparente mudança da realidade só ocorre no âmbito do mundo sensível. 1.2.1 A ética normativa As ideias de Platão levam à formulação de um modelo ético que podemos chamar de normativo ou de ética da convicção. Ao avaliar se uma conduta é correta do ponto de vista ético, ela deve ser avaliada à luz da ideia de Bem, representada, no mito, pelo Sol. A partir do momento que o Bem é contemplado, as ações humanas são necessariamente norteadas por sua luz. Antes de tomar uma de- cisão, o sujeito se pergunta se sua conduta está de acordo com os princípios éticos, entre os quais o mais importante é o Bem. Se as- sim for, ele está obrigado a agir. Caso contrário, está obrigado a não tomar aquela decisão. Nesse sentido, o valor se impõe de modo im- perativo, como norma, à conduta humana, mesmo que ela produza alguma perda ou sacrifício. Os resultados da conduta estão entre parêntesis. Eles não são levados em consideração no momento da escolha da conduta (Figura 1). Figura 1. A ética normativa: o princípio ético se impõe à conduta, apesar de eventuais resultados negativos que a conduta possa provocar. Em outra obra de Platão há uma passagem que ilustra de modo categórico o modelo normativo de ética. Sócrates estava preso e es- perava o dia da sua condenação, quando Críton, nome que dá título ao diálogo, visita-o e propõe um plano de fuga. Sócrates pondera que a decisão só poderia ser tomada se estivesse de acordo com o princípio da justiça. Pela boca de Sócrates, Platão diz: Devemos examinar, antes de mais nada, se é justo ou injus- to sair daqui sem a permissão dos atenienses, pois se é justo devemos tentá-lo, mas se é injusto, devemos abandonar a ideia (PLATÃO, 1981: 89). Sócrates acabou por demonstrar que não seria justo sair da pri- são sem o consentimento da lei. Resultado: foi condenado à morte, obrigado a beber cicuta. No pensamento de Platão, portanto, o va- lor ético, como o bem ou a justiça, impõe-se de modo imperativo à conduta, mesmo que as consequências desta ação sejam de algum modo prejudiciais. O resultado da ação se torna secundário em re- lação à prioridade que é dada à conformidade com os valores éti- cos. Nesse sentido, ser ético impõe sacrifícios. Como podemos perceber, a convicção de que a verdade pode ser conhecida determina um modelo de ética, que chamamos de normativo. Se eu sei o que é justo, se eu conheço verdadeiramente a justiça, a ação justa se impõe de modo imperativo ao meu compor- tamento. A pergunta que hoje podemos fazer é a seguinte: o que nos garante que estejamos agindo verdadeiramente conforme a jus- tiça? O que é a justiça? É possível ter um conhecimento universal do que seja justo? Para Platão, em seu tempo, a possibilidade do conhecimento da justiça não era posta em dúvida. Reconhecia-se a divergência entre as opiniões acerca do justo, mas se considerava que o filósofo, aquele que se libertou das correntes que o aprisionavam ao mundo das aparências, era capaz de ver a verdade e agir de acordo com o critério da justiça. Isso significa que apenas os filósofos tinham o privilégio de serem justos, pois a maioria dos indivíduos estava presa às ilusões da caverna, incapazes de distinguir a sombra do ob- jeto que a originou. A certeza era proporcionada pela razão, ao pas- so que as dúvidas e a incerteza eram frutos das opiniões, da discus- são sem a fundamentação racional. Tal concepção de ética fundamentou uma concepção aristocrá- tica de política, pois, para Platão, só deveria governar aquele que contemplou a ideia de Bem, ou seja, o filósofo. A sofocracia, ou go- verno dos sábios, seria mais eficiente que a democracia, pois o jul- gamento popular quase sempre deixar-se-ia levar pelas aparências: Não acreditas que se disse muito acertadamente que não devem ser consideradas todas as opiniões dos homens, mas algumas apenas, e não as de todos os homens, mas a de al- guns apenas? [...] Um homem que se exercita no ginásio ou- virá a ofensa ou o louvor do primeiro passante ou somente aqueles do médico ou monitor que o dirige o ginásio? (PLA- TÃO, 1981: 87-88). Hoje, este modelo de ética sofre as mesmas críticas que são fei- tas ao conceito clássico de verdade. Do mesmo modo que se duvida da possibilidade de se alcançar a verdade, duvida-se da possibilidade de se conhecer valores universais que determinem a ação do sujeito. Usando da analogia com o Mito da Caverna: o que garante ao cati- vo que se libertou das correntes que o que ele esteja vendo lá fora seja realmente o real? Por que não se dizer que estes objetos e indi- víduos também são sombras de outra realidade? Modernamente fa- lando, podem ser objetos virtuais projetados por computador ou, ainda, clones de outros seres. Existe realmente a realidade lá de fora, o mundo das essências, ou a realidade não é nada mais do que as aparências? 1.3 Uma ideia de verdade em Maquiavel e a ética dos resultados A crise do modelo normativo de ética se origina junto com a gênese do período moderno, cujos eventos que merecem destaque, para o nosso propósito, são o pensamento de Maquiavel e a nova maneira de se pensar a possibilidade do conhecimento, com Des- cartes e Kant. Inicialmente, procuramos desvendar o conceito de verdade subjacente ao pensamento de Maquiavel, filósofo italiano do século XVI. Veremos que o conceito não é diferente daquele implícito nas ideias de Platão. Maquiavel consideraria possível co- nhecer a verdade, concebida como adequação entre a ideia e a reali- dade. Mas afirma claramente que a realidade está em contínua mu- dança, o que exige uma contínua mudança das ideias para que elas possam se adequar à realidade. Em Platão, existem dois mundos, representados pela caverna (mundo sensível) e pelo mundo lá de fora (Mundo das Ideias). Já em Maquiavel a única realidade é a da nossa existência sensível. Não existe uma realidade metafísica, como postula Platão. Maquiavel contribuiu, com seu pensamento político, para a per- da do referencial ético greco-medieval. Revela-se, em suas ideias, a quebra da unidade da reflexão sobre o comportamento ético, até en- tão estabelecida pelo ethos religioso que perpassa toda a Idade Mé- dia. O modelo normativo perde a sua razão de ser, pois o que im- porta é o sucesso da ação política. O respeito a valores que se im- põem de forma imperativa à ação humana torna-se empecilho à ação política eficiente.