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Direito ·
Direito Processual Penal
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15 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 O Papel do Inquérito Policial no Processo de Incriminação no Brasil algumas reflexões a partir de uma pesquisa Michel Misse1 Resumo Este artigo apresenta questões derivadas da experiência obtida com a pesquisa sobre o inquérito policial no Brasil coordenada pelo autor Argumen tando que não se deve confundir o modelo do inquérito policial existente no Brasil com a mera investigação policial o autor sustenta que no inquérito bra sileiro reúnemse atribuições próprias à polícia e atribuições que em outros países são cumpridas sob o controle direto do Ministério Público ou do instituto do Juizado de Instrução Com isso o inquérito brasileiro passa a ser um extraor dinário dispositivo de poder nas mãos dos delegados de polícia uma peça que tende a prevalecer durante todo o processo legal de incriminação Palavraschave Inquérito Policial Incriminação Polícia Processo Penal Brasil A experiência em realizar uma pesquisa empírica sobre o inquérito poli cial no Brasil demonstrou o quanto ainda desconhecemos a respeito das práticas que integram as diferentes etapas do processo de incriminação no Brasil2 Realizada em quatro capitais Belo Horizonte Porto Alegre Recife e Rio de Janeiro e na capital federal a pesquisa revelou importantes aspectos dessas práticas bem como da contabilidade oficial produzida pelos operado res da Polícia judiciária e do Ministério Público confirmando e reatualizando observações produzidas nos poucos trabalhos anteriores publicados a respei to dessa etapa do trabalho da polícia3 No entanto constatou não apenas a complexidade inexplorada desse campo de pesquisas como as enormes difi culdades institucionais postas aos pesquisadores que se interessam pelo tema Objetivo neste artigo apresentar algumas reflexões suscitadas pela experi ência de campo no Rio de Janeiro especialmente nas entrevistas e grupos fo cais realizados com delegados inspetores e promotores e nos diálogos que mantive com os demais pesquisadores que participaram daquele projeto 1 Professor do De partamento de So ciologia da UFRJ Email misseifcs ufrjbr 2 Cf Misse M org O Inquérito Policial no Brasil uma pesquisa empí rica Rio de Janeiro FenapefBooklink 2010 A pesquisa foi encomendada pela FENAPEF Fe deração Nacional de Policiais Fede rais e realizada sob a minha coor denação nacional Foram coordena dores regionais o Dr Arthur Trindade Costa Distrito Fe deral a Dra Joana Domingues Vargas Belo Horizonte o Dr José Luiz Ratton Jr Recife e o Dr Rodrigo Guiringhelli de Azevedo Porto Alegre 3 Cf especialmen te Roberto Kant de Lima A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro Rio Foren se Universitária 1994 Recebimento 10112010 16 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 Acredito que algumas hipóteses que desenvolverei nesta reflexão pode rão ser úteis para as novas incursões sociológicas que provavelmente se rão feitas nos próximos anos sobre o processo de incriminação no Brasil Um modelo analítico e sua aplicação empírica É sempre preciso insistir que na modernidade o crime não existe na nature za do evento mas na interação social em que uma parte acusa moralmente a conduta da outra e sendo bemsucedida obtém a institucionalização daquele curso de ação idealmente tipificado como crime nos códigos penais4 A con dição moderna desse processo que costuma ser chamado de criminalização é que haja um Estado que controle territorialmente a administração da justiça e que para tanto detenha o monopólio legítimo do uso da violência no exercício desse controle Não importa aqui se essa parte vitoriosa é também o estamento ou a classe social dominante ou se há hegemonia dessa classe na sociedade ou se sua vitória na consagração de tal lei decorreu de sua posição de poder ou dominação legítima Aqui para nossa argumentação interessa apenas que se sublinhe que na modernidade a reação moral vitoriosa por ter dado continui dade à consciência moral tradicional ou produzido uma nova reação moral foi capaz de institucionalizar em código escrito uma conduta como crime e definir institucionalmente os procedimentos necessários à sua elucidação bem como as condições de adjudicação da pena ao sujeito do crime Se a reação moral assim descrita for vitoriosa suposto é considerar que haverá uma maioria moral que suportará a norma jurídica nas interações cotidianas e na aplicação da lei Também é suposto considerar que o Estado se democrati camente instituído buscará de forma eficiente incriminar igualmente todos os cidadãos que transgridam essa norma moral já que está também agora ju ridicamente institucionalizada Desse modo nessa sociedade a representação social comum será a de que as transgressões serão comumente administradas pelo Estado uma vez que os cidadãos as façam conhecidas de seus agentes A estes será reservada uma responsabilidade moral e institucional ainda maior por representarem os dois coletivos aqui expressos pelas categorias políticas de Sociedade e Estado Para distinguir o processo de criminalização que levou a instituir em lei a norma vitoriosa da efetiva interpretação de eventos como crimes por indiví duos em contextos singulares e por agências em cumprimento da lei sugeri o uso do termo criminação Aqui interessa seguir os procedimentos con cretos que selecionam os eventos que serão efetivamente tratados como cri mes e não apenas sua referência típicoideal nos códigos criminalizadores 4 Cf Becker Outsi ders p 147 ss Mis se 1999 cap 4 17 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 Do mesmo modo é preciso também distinguir dentre os eventos tratados como crimes aqueles que conduzirão à incriminação de seu suposto autor Em suma nem toda criminalização de um curso de ação definido em lei será realiza da em todos os eventos que sejam experimentados por indivíduos apenas uma parte será criminada isto é interpretada como crime Desta parte apenas uma parcela será levada ao conhecimento das agências policiais como demonstram as pesquisas de vitimização E finalmente apenas uma fração dos eventos cri minados portanto efetivamente interpretados como crimes será finalmente selecionada para processamento legal por essas agências que procederão à in criminação de seu suposto auto5 Para que haja criminação não basta que se considere apenas a dimensão cogni tiva que interpreta o evento como crime é preciso agregar o interesse em levar adiante o reconhecimento cognitivo ao conhecimento de uma agência de prote ção no caso o Estado de modo a convencêla não apenas quanto ao aspecto cognitivo mas também quanto à validez e à racionalidade em iniciar o processo de incriminação Quando há uma situação que facilite essa demonstração como nos chamados flagrantes delitos em que há evidência por testemunhos e pro vas o processamento é praticamente imediato de um ponto de vista institucio nal Quando a demonstração não é evidente mas exige investigação e produção de provas podese ou não iniciar o inquérito a depender da avaliação da auto ridade policial De qualquer modo em ambos os casos há seleção institucional dos ilegalismos que ganharão o nome de crime e a busca de seus supostos auto res tanto na agência policial quanto no processamento judicial6 Compreender a lógica em uso dessa seleção institucional é o primeiro passo para se chegar à explicação de como uma transgressão pode se transformar em norma e outra transgressão em crime MISSE 2010 Se do ponto de vista processual a toda criminação seguese a demanda de in criminação na prática isso pode se inverter a demanda social de punição pode levar e tem levado à incriminação preventiva No passado como agora há um processo social que estabiliza por assim dizer em tipos sociais a expectativa de reiteração do sujeito no crime mais que isso tende a assimilar o crime ao sujeito de tal modo que a periculosidade do sujeito baseada no que se supõe ser sua propensão natural ao crime passa a ser decodificada por traços que ele apresente A seleção desses traços como no processo de estigmatização interliga causalmente variáveis de pobreza urbana baixa escolaridade e pre conceitos de cor e marca ao que se espera que seja uma carreira criminosa Esse processo geralmente começa no fim da infância e início da adolescência e tende a constituir uma subjetivação adequada ao rótulo imposto particular mente quando esse é acompanhado de experiências traumáticas com diferen tes tipos de autoridades familiares escolares policiais etc A condensação da 5 Cf Misse org 2008 Para análises de fluxo do Sistema de Justiça Criminal no Brasil podem ser consultados Var gas 2007 Misse Vargas 2009 Cano Duarte 2010 Ribei ro 2010 6 Ver Kant de Lima 1994 2008 Misse 2006 Misse org 2010 18 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 experiência criminal com o recurso à violência a sua rotulagem e o processo de estigmatização que se lhe segue enclausura o crime no sujeito constituindose assim a sujeição criminal no próprio processo de subjetivação A esse sujeito criminal o bandido reservase a demanda de incriminação preventiva e no limite sua eliminação física como solução social para um sujeito irrecuperá vel algo como um homo sacer Agamben cuja morte não produzirá demanda de punição seja por indiferença pública quanto ao destino do bandido seja por acreditarse ou desejarse que esse é o fim que se lhe destina Assim independentemente da percepção de que o sistema policialjudicial falha ao apresentar altos índices de impunidade há paralelamente uma demanda de solução extrajudicial para aqueles que assujeitados ao crime não dispõem mais de recursos de persuasão quanto à sua recuperabilidade na prisão Não é à toa que no limite o último recurso seja a conversão religiosa como forma de livrarse do crime expulsandoo de si num exercício de transe religioso como no exorcismo a que se entregam muitos condenados nos variados rituais de aflição dirigidos por pastores neopentecostais7 No Brasil a prática da degola operação de cortar a cabeça do assujeitado criminal não deixa de ser sintomática a cabeça simboliza a identidade do su jeito criminal sua cara seu cérebro sua mente criminosa É antiga a prática no Brasil quando se trata de demonstrar que se eliminou o sujeito do crime seja qual for o crime no messianismo no cangaço na guerrilha derrotada Os grupos de extermínio que atuavam no Rio e na Baixada Fluminense nos anos 60 e 70 preferiam a humilhação da cabeça à sua degola os corpos apareciam com os fios de nylon que os havia torturado enrolados nos pescoços das víti mas acompanhados de cartazes ilustrados com caveiras e tíbias com dizeres que assinalavam a eliminação de mais um bandido A sujeição criminal no Bra sil persiste como um dos principais obstáculos à disseminação de um proces so de criminalização moderno e racionallegal O volume de suspeitos mortos pela polícia no Rio de Janeiro em confronto supostamente legal por exemplo apresenta cifras macabras e estranhas em dez anos sete mil suspeitos foram mortos Se comparados a pouco mais de quatrocentos policiais mortos em ser viço no mesmo período ficamos sem saber se os suspeitos são tão perigosos assim ou se preferem a morte à rendição ou se já rendidos foram executados friamente Quando escapam à morte não poucas vezes o conseguiram graças a um acordo com policiais a sujeição criminal serve assim à corrupção de agentes públicos pois nas situaçõeslimite quando o custo excede qualquer racionalidade o processo de criminalização é um extraordinário produtor de mercadorias políticas MISSE 2010 Todo o investimento feito no Brasil no sentido de construirse um siste ma de administração da justiça moderno esbarrou como ainda esbarra no 7 Ver a propósito o excelente estudo de Cesar Pinheiro Tei xeira 2010 19 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 predomínio de uma tradição inquisitorial que privilegia mais a cabeça do su posto autor e dos envolvidos no evento do que a definição da situação em que se deu o crime A sujeição criminal antecipase à busca de evidencias empíricas no processo de construção da verdade real eis o eufemismo através do qual a polícia distingue a sua verdade da verdade judicial Para poupar tempo e esforços basta apertar suspeitos e testemunhas para obter a verdade isto é a versão dos fatos Uma vez que essa é a estratégia então a tomada de depoi mentos por escrito com fé pública em cartório na delegacia toma a forma de uma instrução criminal preliminar sem contraditório cujo nome é inquérito policial Roberto Kant de Lima LIMA 1994 2007 o primeiro a demonstrar essas par ticularidades da polícia e da justiça no Brasil tem insistido em seus trabalhos para a diferença entre esse modelo de construção da verdade de tradição inqui sitorial e o vigente em países de tradição predominantemente igualitária como os Estados Unidos da América Essa perspectiva comparativa tem a vantagem de esclarecer nos contrastes as especificidades de cada modelo e a predominân cia em um e outro de características que ultrapassam o processo penal para compreender aspectos e dimensões mais gerais das sociedades em que se de senvolveram essas práticas O inquérito policial é a peça mais importante do processo de incriminação no Brasil É ele que interliga o conjunto do sistema desde o indiciamento de suspei tos até o julgamento A sua onipresença no processo de incriminação antes de ser objeto de louvação é o núcleo mais renitente e problemático de resistência à modernização do sistema de justiça brasileiro Por isso mesmo o inquérito po licial transformouse também numa peça insubstituível a chave que abre todas as portas do processo e que poupa trabalho aos demais operadores do processo de incriminação os promotores e juízes Em primeiro lugar é preciso não confundir o inquérito policial com a investigação policial O inquérito é mais que o resultado sumário de uma investigação é uma peça composta de laudos técnicos depoimentos tomados em cartório e de um relatório juridicamente orientado assinado por um delegado de polícia bacha rel em direito em que já se encontram nomeados pelos indícios indiciados os suspeitos que a investigação encontrou É uma iniciativa administrativa que só pode ser decidida por um delegado de polícia que por meio de uma portaria instaura o inquérito Uma vez instaurado ele não pode mais ser interrompido pela polícia nem por ninguém terá que prosseguir até que se transforme em ação penal ou seja arquivado por falta de elementos para que prossiga seu ca minho para o judiciário É totalmente escrito deve ser por lei entranhado no processo o que significa que não pode ser separado do processo em nenhum momento e pode chegar em alguns casos a dezenas de volumes 20 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 Por lei uma vez constatado que houve crime através de uma verificação preli minar da informação é obrigatória a instauração do inquérito policial Na prática o grande volume de ocorrências criminais que chegam diariamente às delegacias obrigaria o delegado a selecionar o que seria e o que não se ria objeto de um inquérito No passado resolviase o problema evitando regis trarse a ocorrência a polícia tomava conhecimento do fato mas decidia não registrálo no livro de tombo pois isso obrigaria o delegado a instaurar o in quérito Com a crescente exigência de que os registros de ocorrência fossem a base das estatísticas policiais e como em vários eventos fossem exigidos por outras repartições públicas e empresas privadas documentos que comprovas sem o registro da ocorrência em delegacia para comprovações variadas como furto ou roubo de bens segurados entre outras passouse a registrar todas as ocorrências que chegavam ao conhecimento da delegacia Abrir inquérito policial para todas elas seria criar o caos tanto nas delegacias quanto nas va ras criminais é o que me disseram consensualmente delegados e promotores Disseram mais que quando um delegado está com alguma bronca ele segue a lei abre inquérito para todos os crimes que lhe chegam ao conhecimento Soluções foram sendo criadas por acordo entre as autoridades policiais o Mi nistério Público e os juízes embora transgredindo a lei que continua obrigando a instaurar o inquérito para todos os casos A principal solução encontrada no Estado do Rio de Janeiro foi transformar a verificação preliminar de informa ção prevista na lei cujo objetivo era apenas a de constatar se houve mesmo crime processo de criminação em uma VPI Verificação de Procedência de Investigação cujo objetivo é avaliar se vale a pena ou não instaurar um inquérito para aquele caso Uma VPI pode estar aberta quando ainda os investigado res verificam da possibilidade ou não de ter uma autoria para aquele crime ou pode ser suspensa quando essa possibilidade é momentaneamente negada e ela acondicionada em uma pasta vai aguardar em um armário ou arquivo o aparecimento de algum fato novo que possa justificar a abertura do inquérito A VPI é uma investigação preliminar para avaliar se vale a pena ou não continuar a investigar aprofundar a investigação e instaurar assim o inquérito Não chega ao conhecimento nem do Ministério Público nem do juiz permanece todo o tempo na esfera da polícia o que contraria o princípio da obrigatoriedade do inquérito policial criado exatamente para que o MP e o juiz possam a qualquer momento inspecionar e fiscalizar como está acontecendo a investigação policial No Rio de Janeiro foram criadas também centrais de inquérito no Mi nistério Público para dar agilidade ao acompanhamento dos inquéri tos antes que seguissem para o juiz e para as varas criminais Com isso os inquéritos deixaram de ser enviados diretamente aos juízes passaram 21 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 a ser encaminhados primeiro às centrais de inquérito Apenas os flagrantes e os inquéritos que implicam medidas cautelares continuaram a seguir direta mente para os juízes e para as varas criminais Soluções pragmáticas para me lhorar a capacidade de processamento de um grande volume de ocorrências que reconhecem que na prática os delegados sempre usaram informalmente seu poder discricionário e que os juízes e promotores jamais fiscalizaram rotinei ramente o andamento desses inquéritos No entanto ao serem adotadas essas soluções voltam a indicar a permanência do caráter inquisitorial do processo de incriminação no Brasil que o legislador pensava atenuar com as exigências de obrigatoriedade de instauração do inquérito para diminuir a discricionari dade do delegado e dar transparência a suas ações e sua fiscalização pelo juiz e depois pelo MP Indicam também o quanto o inquérito policial não deve ser confundido com a investigação policial tal como essa ocorre em outros países Uma descrição dos procedimentos de um inquérito policial em um caso de homicídio doloso Acompanhei há alguns anos um caso que envolveu o homicídio de uma jorna lista de uma cidade próxima ao Rio de Janeiro A vítima que chamarei de S foi encontrada morta próxima à linha dágua de uma praia oceânica numa manhã por pescadores Chamada a polícia chegou ao local uma patrulha da PM que constatou tratarse de crime comunicando o fato à delegacia de polícia do muni cípio Cheguei ao local logo que correu a notícia de que um corpo fora encontra do na praia e pude verificar que havia um soldado da policial militar guardando o corpo da curiosidade de banhistas que chegavam à praia naquele momento Chamado o rabecão o veículo utilizado pelo Instituto Médico Legal para a remo ção do cadáver este demorou cerca de seis horas para chegar ao local e cumprir sua função Enquanto aguardavase o rabecão um perito fotografou as condi ções em que se encontrava o corpo Logo chegou a notícia de que a vítima fora vista à noite num dos quiosques da orla da praia cerca de duzentos metros do local onde o corpo foi encontrado Bebia com conhecidos pouco antes da meia noite naquele quiosque Fui com o perito ao quiosque para constatar que este acabara de ser lavado por um de seus funcionários que nos disse que nada sabia do acontecido O perito foi embora e eu ao sair encontrei um par de sandálias jogado próximo à calçada Achei que poderia ser da vítima e chamei o soldado da PM Este pegou o par de sandálias e me perguntou se eu poderia leválos à delegacia já que ele não poderia sair do local enquanto o rabecão não chegasse Embora estranhasse o pedido que significava alteração do local do crime levei as sandálias ao delegado e familiares de S as reconheceram como pertencentes à vítima O delegado me convidou a prestar depoimento o que foi feito na pre sença de um escrivão que ouvia o que eu contava e escrevia do seguinte modo 22 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 O depoente afirmou que conhecia a vítima de longa data que foi avisa do que ela possivelmente estaria morta na praia de P que lá chegando confirmou tratarse de S que lá estava um policial militar guardando o corpo que acompanhou o perito a um quiosque próximo pois achava que ela poderia ter sido morta lá que em lá chegando nada encontra ram que o quiosque e a calçada do quiosque tinha sido lavada naque la manhã que ao se despedir do perito viu as sandálias jogadas no meiofio próximo ao quiosque que chamou o policial militar para Passei a acompanhar as investigações e o andamento do inquérito na delegacia Os conhecidos que acompanharam a vítima no quiosque foram localizados a partir de sua identificação pelo empregado do quiosque e prestaram depoimen tos ao delegado Tive acesso à cópia dos depoimentos e pude perceber que os envolvidos eram jovens filhos de empresários conhecidos da cidade Eles disse ram à polícia o mesmo que tinham se despedido da vítima e entrado no carro de um deles O carro teria permanecido no estacionamento enquanto viram a vítima se afastar a pé em direção a uma rua Um dos depoentes afirma no de poimento que eles permaneceram no carro mantendo relações sexuais assim que viram que a vítima havia sumido de suas vistas Disseram também que não havia mais ninguém nas redondezas a não ser o dono do quiosque que o estava fechando a essa hora O delegado após tomar vários depoimentos de familiares da vítima e de outras pessoas entre os quais o meu e com base nos laudos médicolegais que cons tataram que a vítima fora agredida com violência antes de ser morta por asfixia mecânica ainda que sem indicação de sevícia ou relação sexual decidiu indi ciar os dois jovens e o empregado do quiosque como suspeitos de autoria do homicídio Uma vez indiciados o delegado pode pedir uma medida cautelar no caso a prisão provisória ou preventiva ao juiz que pode concedêla ou não Nesse caso o delegado não pediu por considerar que eles não dificultariam as investigações e por se tratar de jovens sem antecedentes criminais de família conhecida e com residência fixa na cidade Familiares amigos e colegas da vítima organizaram manifestações e fizeram pressão através da imprensa para que o crime não ficasse impune O Ministério Público no entanto não denunciou os jovens indiciados com base no inquérito policial O advogado de defesa havia pedido que fosse feita a reconstituição do crime no local À noite nas imediações do quiosque com a presença de policiais promotores jornalistas e familiares da vítima pude assistir à impos sível reconstituição pois os jovens não tinham como reconstituir o que nega vam ter acontecido Estavam acabrunhados pelo fato de sua defesa ter revela do sua identidade homossexual até então não assumida publicamente nem para suas próprias famílias No entanto havia entre familiares da vítima a 23 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 desconfiança de que essa revelação era uma estratégia para demonstrar que eles não teriam interesse sexual na vítima A impossível reconstituição conven ceu o Ministério Público de que a denúncia era frágil e que o inquérito havia sido mal conduzido Havia volumes de papéis com pequena capacidade de con vencimento quanto à culpabilidade daqueles jovens e a acusação baseavase praticamente no fato de que eles eram as únicas pessoas presentes no local do crime próximos à hora em que se supunha que a vítima fora morta O lau do médicolegal não foi capaz no entanto de precisar a hora exata e não ha via qualquer testemunha do crime Não havia também impressões digitais que comprovassem a participação dos suspeitos no crime O inquérito policial foi e voltou várias vezes entre delegacia e central de inquéritos sem que o pedido de novas diligências pudesse ser atendido pela polícia que passou a considerar o caso sem solução No entanto a pressão da opinião pública continuava a se manifestar um documentário sobre a vítima e sobre a incapacidade de se fazer justiça no caso foi realizado e sua exibição em sessão especial na Câmara de Vereadores da cidade produziu seus efeitos Passado um pouco mais de um ano houve uma tentativa de estupro na mes ma área do quiosque à noite e a polícia militar avisada pela vítima conseguiu deter o veículo em que fugia o suspeito No veículo foram encontradas peças íntimas que seriam de S Levado à delegacia e confrontado com familiares de S descobriuse que se tratava de um professor de artes marciais desemprega do e caracterizado como uma pessoa agressiva conhecido de S Inicialmente negando em seu depoimento ter qualquer coisa com o assassinato de S o tal professor foi indiciado por tentativa de estupro e preso Alguns dias depois ob tive a cópia de seu depoimento prestado na mesma delegacia em que prestei depoimento um ano antes em que relatava em detalhes como atacou e esga nou S por ela ter se recusado a fazer sexo com ele e o humilhado Com a prisão preventiva decretada o suspeito voltou a negar o crime e disse ter sido espanca do na delegacia para confirmar sua versão Apesar disso ele permaneceu mais alguns anos na prisão provisória até que fosse julgado e condenado Uma frase do seu depoimento no inquérito policial nunca saiu de minha lem brança ao narrar os detalhes do assassinato que teria cometido ele referiuse à violência com que arrancou o sutiã de S Embora todos os familiares e ami gos soubessem que S não costumava usar sutiãs o fato foi desprezado pela polícia por se achar que ele se enganara ou a confundira com outra vítima Os jovens de classe média inicialmente indiciados não chegaram a ser presos em momento algum A impossível reconstituição provara sua inocência Não havia também uma motivação convincente para que eles praticassem o crime Já no caso do professor de capoeira desempregado e agressivo não houvera necessi dade de reconstituição Era evidente a sua culpabilidade como convincentes as 24 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 suas motivações ainda que ele as negasse O Ministério Público acatou o in quérito e o denunciou O inquérito prosseguiu o seu caminho as testemunhas foram novamente ouvidas e ele foi condenado Já havia cumprido em prisão preventiva parte da pena a que fora condenado Alguns anos depois não con segui localizálo cumprindo pena em nenhum dos presídios do Estado do Rio de Janeiro Não se trata aqui de avaliar se os procedimentos foram ou não corretos mas de descrever o peso do inquérito policial em todo o processo a sua força per suasiva transcrita em cartório com fé pública No julgamento o inquérito não comparece por inteiro mas por alusão Mas a sua presença dominante está no modo como forma a culpa de um suspeito numa etapa em que nem o Mi nistério Público nem a Defensoria Pública acionada nesse caso estavam pre sentes Quando o contraditório começa o inquérito já está pronto não resta senão a retórica dos contendores Como lembra Kant de Lima nessa fase já não se busca a argumentação por evidências periciais que possam ser intersub jetivamente partilhadas O consenso é tornado impossível por uma contenda cujas armas são garimpadas nos depoimentos que constituem a maior parte do inquérito policial a matriz de uma verdade judicial contaminada por es crito e com fé pública pela inquisitio dos testemunhos livrados ao escrivão Em compensação o peso do inquérito policial na elucidação de crimes graves é muito baixo se comparado à onipresença dos flagrantes efetuados pelas polí cias militares Até que ponto portanto podemos dizer que o inquérito policial é na sua forma atual indispensável O peso do inquérito policial na taxa de elucidação policial de crimes graves Uma das delegacias que recebeu em um dos anos passados a mais alta pre miação na rodada de premiações da Altus no Rio de Janeiro8 foi justamente es colhida pela excelência de seu trabalho Não há no entanto contradição quan do verificamos que essa mesma delegacia apresentou os seguintes indicadores de processamento de todas as ocorrências durante o ano de 2008 Foram apenas 97 os inquéritos enviados à justiça referentes às ocor rências registradas no mesmo ano eles somaram em média 235 dias 8 A Altus promove anualmente um concurso para pre miar as melhores delegacias em es cala nacional e inter nacional com base em indicadores de qualidade de gestão 25 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 entre o registro do fato e o envio ao Ministério Público Levandose em conta que naquele ano a delegacia registrou quase 10 mil ocorrências9 das quais cer ca de um terço delas de natureza grave 47 homicídios dolosos consumados ou tentados 11 homicídios culposos 16 crimes sexuais violentos e cerca de 36 mil roubos o resultado do trabalho de um ano na delegacia é evidentemente muito baixo menos de 1 por cento dos registros de crimes graves chegaram a ser envia dos à justiça no mesmo período como inquéritos relatados Os procedimentos enviados ao JECRIM Juizado Especial Criminal referemse aos delitos de menor gravidade que permitem composição entre as partes e que não exigem investiga ção A maior parte dos procedimentos adotados foram VPIs Verificação de Pro cedência da Investigação quase todas suspensas o que indica dificuldades em dar prosseguimento à investigação com vistas a instaurar os respectivos inquéritos Para quem pensa que o problema é de gestão é preciso assinalar que este não é o caso Essa delegacia foi premiada exatamente por apresentar excelentes indicadores de gestão Onde está o problema então Vejamos mais de perto argumentos e questões postas por policiais delegados e promotores reunidos separadamente em grupos focais na pesquisa realizada no Rio de Janeiro A primeira constatação é que ninguém quer acabar com o modelo do inquérito policial Os delegados argumentam que ele é indispensável pois é exatamente por já ser feito sob orientação jurídica que a investigação policial pode ser apro veitada nas instâncias posteriores Ministério Público e Judiciário Não o fosse e além de serem perdidos os testemunhos irrepetíveis obtidos com fé pública através do inquérito seriam também perdidas outras provas obtidas sem valor judicial É o inquérito que confere valor judicial à investigação policial Esta sem a orientação e a coordenação de um delegado formado em direito seria facil mente desacreditada no Ministério Público Os promotores por sua vez não acham que poderiam dispensar o inquérito policial gostariam de também ter o direito de dirigir as investigações e de relatálo No limite poderiam concordar em dispensar o inquérito em sua forma atual juridicamente orientado caso lhes fosse dado o direito de promover a investigação sob o seu estrito controle O inquérito policial confere grande poder a quem o controla Daí a relevân cia que lhe foi dada pelo legislador ao exigir que fosse sempre instaurado em qualquer situação em que se comprovasse a existência de um crime Era uma maneira de o juiz controlar a discricionariedade dos delegados de polí cia Quando a obrigatoriedade é abandonada na prática o inquérito acaba por se constituir como o principal dispositivo da discricionariedade na esfera po licial Instaurálo ou não por exemplo pode transformálo numa mercadoria política do mesmo modo poder indiciar uma autoria num inquérito policial quando se sabe que a polícia não poderá mais interromper ou arquivar o in quérito é um enorme poder atribuído aos delegados e aos seus policiais10 9 Em lugar da es timativa de 14 mil como saiu publica do em Misse 2008 p 42 10 Delegados cos tumam ter os seus homens de con fiança um grupo de policiais que os acompanham quan do são removidos ou transferidos de uma delegacia a ou tra ou de uma co ordenação a outra No Rio de Janeiro essas remoções que representam um poder político nas mãos do chefe da polícia podem chegar a alcançar em número a tota lidade dos policiais como aconteceu em 2001 quando foram contabilizadas mais de 7 mil remoções em um único ano Na época o efetivo da polícia civil no Rio era de cerca de 7 mil policiais 26 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 O inquérito policial reúne nas mãos dos delegados de polícia estágios que em outros países estão separados ou que são controlados pelo Ministério Público ou pelo instituto do Juizado de Instrução O delegado controla a investigação policial e controla a forma legal de expor seus resultados para a apreciação do Ministério Público Este em geral apenas avaliza o trabalho do delegado ou o envia de volta para novas diligências A maior parte das peças que cons tituem o inquérito policial é meramente burocrática e cartorial O registro da ocorrência por exemplo que é fundamental para dar início à elucidação do crime registra mais procedimentos policiais que propriamente as circunstân cias em que ocorreu o evento ali registrado11 As peças periciais quando soli citadas chegam atrasadas à investigação e apenas a tempo de constarem do inquérito muitas vezes sem qualquer esclarecimento da dinâmica do crime Os depoimentos transcritos que em alguns casos podem desdobrarse em vários volumes de texto servem apenas para orientar sua repetição nas fases seguintes quando não funcionam para protelar a remessa dos autos ao MP12 Ao encerrar essas reflexões motivadas pelo impacto que a experiência dessa pesquisa nos causou gostaria de acrescentar que não se pode atribuir todos os problemas da Justiça Criminal brasileira à polícia e muito menos ao mo delo do inquérito policial Há muitos outros fatores intervenientes a que in felizmente não temos como controlar no estágio atual de informações a que tivemos acesso nessa área no Brasil Se o modelo do inquérito policial adotado no Brasil contribui para a baixa capacidade de resolução judicial dos conflitos e crimes da sociedade brasileira é certo que também funciona adequadamen te para a preservação e reprodução de um sistemaarquipélago em que sa beres concorrentes não se entendem adequadamente O inquérito percorre o arquipélago dandolhe a aparência de um continente embora os resultados alcançados sejam pífios e a degola a sujeição criminal extrajudicial muitas vezes seja a demanda e a solução daqueles que por não confiarem mais na administração da justiça pelo Estado preconizam a justiça pelas próprias mãos Abstract This article presents questions derived from experience obtained through research into police inquiries in Brazil coordinated by the author Ar guing that the police inquiry model in Brazil should not be confused with mere police investigation the author maintains that in Brazil such inquiries combine roles and responsibilities proper to the police with roles that in other countries fall under the direct control of the Public Prosecution Service or the investiga tive court institute Therefore the Brazilian inquiry becomes an extraordinary instrument of power in the hands of police chiefs a brief that tends to prevail throughout the whole legal and incrimination process Keywords Police Inquiry Incrimination Police Criminal Procedure Brazil 11 Em uma pesqui sa sobre armas de fogo e homicídios no Rio de Janeiro que coordenei a pedido da Assembleia Le gislativa do Estado do Rio de Janeiro só obtive informações sobre as circunstân cias do homicídio em apenas 20 dos registros de ocor rências Mesmo no Programa Delegacia Legal que pretendia superar a cartoria lização da polícia pesquisadores en contraram o mesmo resultado MIRAN DA et al 2010 p 29ss 12 Uma das formas mais comuns de protelação de um in quérito para o qual não há interesse em prosseguir com as investigações é a de intimar testemu nhas que já depu seram a reiterar ou confirmar o que já disseram meses ou anos atrás 27 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 Referências Bibliográficas Becker H 2009 Outsiders Rio de Janeiro Zahar Cano I Duarte T L 2010 A mensuração da impunidade no sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro Segurança Justiça e Cidadania ano 2 n 4 SENASP Ministério da Justiça Lima R K 1994 A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro Seus dilemas e parado xos Rio de Janeiro Forense Universitária 2007 Ensaios de Antropologia e de Direito Rio de Janeiro Lumen Juris Miranda A P M Oliveira M B Paes V 2010 A reinvenção da cartorializa ção análise do trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em Delegacias Legais referentes a homicídios dolosos na cidade do Rio de Ja neiro Segurança Justiça e Cidadania ano 2 n 4 SENASP Ministério da Justiça Misse M 2006 Crime e Violência no Brasil Contemporâneo Rio de Janeiro Lumen Juris Misse M org 2008 Acusados e Acusadores Rio de Janeiro RevanFaperj Misse M org 2010 O Inquérito Policial no Brasil uma pesquisa empírica Rio de Janeiro BooklinkFenapef Misse M Vargas J D 2009 A produção decisória do sistema de justiça crimi nal no Rio de Janeiro ontem e hoje um estudo preliminar Revista Brasileira de Ciencias Criminais n 77 237260 Ribeiro L M L 2010 Administração da Justiça Criminal na cidade do Rio de Janeiro uma análise dos casos de homicídio Rio de Janeiro Tese de Doutorado em Sociologia IUPERJUCAM Teixeira CP 2009 A construção social do exbandido um estudo sobre su jeição criminal e pentecostalismo Rio de Janeiro Dissertação de Mestrado em Sociologia IFCSPPGSAUFRJ Vargas JD 2007 Análise comparada do fluxo do sistema de justiça para o cri me de estupro Dados Revista de Ciências Sociais v 50 n 4 671698 RESENHA CRÍTICA O PAPEL DO INQUÉRITO POLICIAL NO PROCESSO DE INCRIMINAÇÃO NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO A obra do professor de Sociologia Michel Misse traz uma reflexão crítica acerca da utilização do inquérito policial como um mecanismo de incriminação no Brasil O autor argumenta que o inquérito além de ser uma simples investigação exerce uma função de poder que centraliza várias etapas do processo de incriminação desde a investigação inicial até o julgamento influenciando fortemente o resultado final O estudo é fundamentado em uma pesquisa abrangente e traz à discussão questões centrais do sistema de justiça criminal brasileiro o qual muitas vezes perpetua desigualdades sociais e injustiças 2 ESTRUTURA DO INQUÉRITO POLICIAL O inquérito policial no Brasil não pode ser comparado com a investigação policial em outros países onde as funções de investigação e acusação são separadas Aqui o inquérito concentra as funções nas mãos dos delegados de polícia Esse fator o torna uma ferramenta poderosa que orienta tanto o Ministério Público quanto o juiz nas decisões sobre quem será processado e julgado Isso cria uma dependência excessiva do que foi apurado pela polícia muitas vezes sem uma investigação cautelosa Ao contrário do que acontece em outras jurisdições onde o Ministério Público ou um juiz de instrução supervisiona as investigações no Brasil o inquérito é quase praticamente controlado pela polícia Essa concentração de poder faz com que seja um item valioso no sistema de justiça mas também traz problemas pois muitas vezes o processo sofre influência das percepções ou interesses do próprio delegado 3 DISCRICIONARIEDADE E PODER O delegado tem a liberdade de decidir quais casos merecem ser investigados a fundo e quais podem ser arquivados ou simplesmente ignorados Isso abre espaço para práticas arbitrárias onde o tratamento de um caso pode depender de interesses políticos pressões sociais ou preconceitos pessoais e não de critérios objetivos de justiça Muitas vezes vemos na mídia um verdadeiro aparato para as coletivas de imprensa dos delegados O inquérito policial ainda pode ser usado como uma barganha pois quem controla o processo tem o poder de decidir quem será incriminado ou não Esse tipo de poder cria um ambiente propício para a corrupção e o favorecimento de determinadas pessoas ou grupos 4 SUJEIÇÃO CRIMINAL E O ESTIGMA SOCIAL Jovens de baixa renda e moradores de áreas marginalizadas são frequentemente rotulados como criminosos mesmo antes de serem formalmente acusados de qualquer crime Esses indivíduos são alvos da polícia e acabam presos ou incriminados com base em pouca ou nenhuma evidência apenas por se encaixarem em um perfil social que é visto como suspeito O processo de estigmatização começa cedo e tende a perpetuar a exclusão social dessas pessoas Elas não apenas têm mais chances de serem paradas e investigadas pela polícia como também são vistas pela sociedade como criminosos em potencial o que dificulta qualquer tentativa de reintegração ou mudança de vida Tratase de um verdadeiro preconceito racismo estrutural 5 COMPARAÇÕES E CRÍTICAS Enquanto o Brasil opera com um modelo inquisitorial onde a busca pela verdade depende muito da confissão e do controle policial sistemas como o norteamericano garantem maior transparência e o direito ao contraditório desde as primeiras fases da investigação Aqui a centralização do poder nas mãos do delegado e a falta de supervisão externa comprometem a imparcialidade do processo Desta forma o sistema favorece práticas autoritárias e não garante que a investigação seja conduzida de forma imparcial No inquérito muitas vezes as provas e depoimentos são coletados com base em pressões ou confissões obtidas sob condições questionáveis Isso cria um processo que em vez de buscar a verdade dos fatos reforça preconceitos e estigmas resultando em decisões judiciais que podem ser injustas ou arbitrárias 6 CONCLUSÕES O inquérito policial no Brasil nada mais é do que uma peça burocrática e discriminatória contrariando os ideais de ser um mecanismo na busca por justiça Enquanto o inquérito mantiver a estrutura concentrada nas mãos da polícia e sendo usado de forma discricionária o sistema de justiça brasileiro terá dificuldades para se modernizar e atender às demandas de uma sociedade mais democrática e justa O artigo do professor Misse traz uma valiosa reflexão sobre os desafios do sistema de justiça criminal no Brasil especialmente no que diz respeito à transparência equidade e direitos humanos Ao expor as falhas e limitações do inquérito policial oportuniza uma reflexão sobre a necessidade de reformas estruturais para que se alcance um sistema de justiça mais eficaz e justo
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15 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 O Papel do Inquérito Policial no Processo de Incriminação no Brasil algumas reflexões a partir de uma pesquisa Michel Misse1 Resumo Este artigo apresenta questões derivadas da experiência obtida com a pesquisa sobre o inquérito policial no Brasil coordenada pelo autor Argumen tando que não se deve confundir o modelo do inquérito policial existente no Brasil com a mera investigação policial o autor sustenta que no inquérito bra sileiro reúnemse atribuições próprias à polícia e atribuições que em outros países são cumpridas sob o controle direto do Ministério Público ou do instituto do Juizado de Instrução Com isso o inquérito brasileiro passa a ser um extraor dinário dispositivo de poder nas mãos dos delegados de polícia uma peça que tende a prevalecer durante todo o processo legal de incriminação Palavraschave Inquérito Policial Incriminação Polícia Processo Penal Brasil A experiência em realizar uma pesquisa empírica sobre o inquérito poli cial no Brasil demonstrou o quanto ainda desconhecemos a respeito das práticas que integram as diferentes etapas do processo de incriminação no Brasil2 Realizada em quatro capitais Belo Horizonte Porto Alegre Recife e Rio de Janeiro e na capital federal a pesquisa revelou importantes aspectos dessas práticas bem como da contabilidade oficial produzida pelos operado res da Polícia judiciária e do Ministério Público confirmando e reatualizando observações produzidas nos poucos trabalhos anteriores publicados a respei to dessa etapa do trabalho da polícia3 No entanto constatou não apenas a complexidade inexplorada desse campo de pesquisas como as enormes difi culdades institucionais postas aos pesquisadores que se interessam pelo tema Objetivo neste artigo apresentar algumas reflexões suscitadas pela experi ência de campo no Rio de Janeiro especialmente nas entrevistas e grupos fo cais realizados com delegados inspetores e promotores e nos diálogos que mantive com os demais pesquisadores que participaram daquele projeto 1 Professor do De partamento de So ciologia da UFRJ Email misseifcs ufrjbr 2 Cf Misse M org O Inquérito Policial no Brasil uma pesquisa empí rica Rio de Janeiro FenapefBooklink 2010 A pesquisa foi encomendada pela FENAPEF Fe deração Nacional de Policiais Fede rais e realizada sob a minha coor denação nacional Foram coordena dores regionais o Dr Arthur Trindade Costa Distrito Fe deral a Dra Joana Domingues Vargas Belo Horizonte o Dr José Luiz Ratton Jr Recife e o Dr Rodrigo Guiringhelli de Azevedo Porto Alegre 3 Cf especialmen te Roberto Kant de Lima A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro Rio Foren se Universitária 1994 Recebimento 10112010 16 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 Acredito que algumas hipóteses que desenvolverei nesta reflexão pode rão ser úteis para as novas incursões sociológicas que provavelmente se rão feitas nos próximos anos sobre o processo de incriminação no Brasil Um modelo analítico e sua aplicação empírica É sempre preciso insistir que na modernidade o crime não existe na nature za do evento mas na interação social em que uma parte acusa moralmente a conduta da outra e sendo bemsucedida obtém a institucionalização daquele curso de ação idealmente tipificado como crime nos códigos penais4 A con dição moderna desse processo que costuma ser chamado de criminalização é que haja um Estado que controle territorialmente a administração da justiça e que para tanto detenha o monopólio legítimo do uso da violência no exercício desse controle Não importa aqui se essa parte vitoriosa é também o estamento ou a classe social dominante ou se há hegemonia dessa classe na sociedade ou se sua vitória na consagração de tal lei decorreu de sua posição de poder ou dominação legítima Aqui para nossa argumentação interessa apenas que se sublinhe que na modernidade a reação moral vitoriosa por ter dado continui dade à consciência moral tradicional ou produzido uma nova reação moral foi capaz de institucionalizar em código escrito uma conduta como crime e definir institucionalmente os procedimentos necessários à sua elucidação bem como as condições de adjudicação da pena ao sujeito do crime Se a reação moral assim descrita for vitoriosa suposto é considerar que haverá uma maioria moral que suportará a norma jurídica nas interações cotidianas e na aplicação da lei Também é suposto considerar que o Estado se democrati camente instituído buscará de forma eficiente incriminar igualmente todos os cidadãos que transgridam essa norma moral já que está também agora ju ridicamente institucionalizada Desse modo nessa sociedade a representação social comum será a de que as transgressões serão comumente administradas pelo Estado uma vez que os cidadãos as façam conhecidas de seus agentes A estes será reservada uma responsabilidade moral e institucional ainda maior por representarem os dois coletivos aqui expressos pelas categorias políticas de Sociedade e Estado Para distinguir o processo de criminalização que levou a instituir em lei a norma vitoriosa da efetiva interpretação de eventos como crimes por indiví duos em contextos singulares e por agências em cumprimento da lei sugeri o uso do termo criminação Aqui interessa seguir os procedimentos con cretos que selecionam os eventos que serão efetivamente tratados como cri mes e não apenas sua referência típicoideal nos códigos criminalizadores 4 Cf Becker Outsi ders p 147 ss Mis se 1999 cap 4 17 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 Do mesmo modo é preciso também distinguir dentre os eventos tratados como crimes aqueles que conduzirão à incriminação de seu suposto autor Em suma nem toda criminalização de um curso de ação definido em lei será realiza da em todos os eventos que sejam experimentados por indivíduos apenas uma parte será criminada isto é interpretada como crime Desta parte apenas uma parcela será levada ao conhecimento das agências policiais como demonstram as pesquisas de vitimização E finalmente apenas uma fração dos eventos cri minados portanto efetivamente interpretados como crimes será finalmente selecionada para processamento legal por essas agências que procederão à in criminação de seu suposto auto5 Para que haja criminação não basta que se considere apenas a dimensão cogni tiva que interpreta o evento como crime é preciso agregar o interesse em levar adiante o reconhecimento cognitivo ao conhecimento de uma agência de prote ção no caso o Estado de modo a convencêla não apenas quanto ao aspecto cognitivo mas também quanto à validez e à racionalidade em iniciar o processo de incriminação Quando há uma situação que facilite essa demonstração como nos chamados flagrantes delitos em que há evidência por testemunhos e pro vas o processamento é praticamente imediato de um ponto de vista institucio nal Quando a demonstração não é evidente mas exige investigação e produção de provas podese ou não iniciar o inquérito a depender da avaliação da auto ridade policial De qualquer modo em ambos os casos há seleção institucional dos ilegalismos que ganharão o nome de crime e a busca de seus supostos auto res tanto na agência policial quanto no processamento judicial6 Compreender a lógica em uso dessa seleção institucional é o primeiro passo para se chegar à explicação de como uma transgressão pode se transformar em norma e outra transgressão em crime MISSE 2010 Se do ponto de vista processual a toda criminação seguese a demanda de in criminação na prática isso pode se inverter a demanda social de punição pode levar e tem levado à incriminação preventiva No passado como agora há um processo social que estabiliza por assim dizer em tipos sociais a expectativa de reiteração do sujeito no crime mais que isso tende a assimilar o crime ao sujeito de tal modo que a periculosidade do sujeito baseada no que se supõe ser sua propensão natural ao crime passa a ser decodificada por traços que ele apresente A seleção desses traços como no processo de estigmatização interliga causalmente variáveis de pobreza urbana baixa escolaridade e pre conceitos de cor e marca ao que se espera que seja uma carreira criminosa Esse processo geralmente começa no fim da infância e início da adolescência e tende a constituir uma subjetivação adequada ao rótulo imposto particular mente quando esse é acompanhado de experiências traumáticas com diferen tes tipos de autoridades familiares escolares policiais etc A condensação da 5 Cf Misse org 2008 Para análises de fluxo do Sistema de Justiça Criminal no Brasil podem ser consultados Var gas 2007 Misse Vargas 2009 Cano Duarte 2010 Ribei ro 2010 6 Ver Kant de Lima 1994 2008 Misse 2006 Misse org 2010 18 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 experiência criminal com o recurso à violência a sua rotulagem e o processo de estigmatização que se lhe segue enclausura o crime no sujeito constituindose assim a sujeição criminal no próprio processo de subjetivação A esse sujeito criminal o bandido reservase a demanda de incriminação preventiva e no limite sua eliminação física como solução social para um sujeito irrecuperá vel algo como um homo sacer Agamben cuja morte não produzirá demanda de punição seja por indiferença pública quanto ao destino do bandido seja por acreditarse ou desejarse que esse é o fim que se lhe destina Assim independentemente da percepção de que o sistema policialjudicial falha ao apresentar altos índices de impunidade há paralelamente uma demanda de solução extrajudicial para aqueles que assujeitados ao crime não dispõem mais de recursos de persuasão quanto à sua recuperabilidade na prisão Não é à toa que no limite o último recurso seja a conversão religiosa como forma de livrarse do crime expulsandoo de si num exercício de transe religioso como no exorcismo a que se entregam muitos condenados nos variados rituais de aflição dirigidos por pastores neopentecostais7 No Brasil a prática da degola operação de cortar a cabeça do assujeitado criminal não deixa de ser sintomática a cabeça simboliza a identidade do su jeito criminal sua cara seu cérebro sua mente criminosa É antiga a prática no Brasil quando se trata de demonstrar que se eliminou o sujeito do crime seja qual for o crime no messianismo no cangaço na guerrilha derrotada Os grupos de extermínio que atuavam no Rio e na Baixada Fluminense nos anos 60 e 70 preferiam a humilhação da cabeça à sua degola os corpos apareciam com os fios de nylon que os havia torturado enrolados nos pescoços das víti mas acompanhados de cartazes ilustrados com caveiras e tíbias com dizeres que assinalavam a eliminação de mais um bandido A sujeição criminal no Bra sil persiste como um dos principais obstáculos à disseminação de um proces so de criminalização moderno e racionallegal O volume de suspeitos mortos pela polícia no Rio de Janeiro em confronto supostamente legal por exemplo apresenta cifras macabras e estranhas em dez anos sete mil suspeitos foram mortos Se comparados a pouco mais de quatrocentos policiais mortos em ser viço no mesmo período ficamos sem saber se os suspeitos são tão perigosos assim ou se preferem a morte à rendição ou se já rendidos foram executados friamente Quando escapam à morte não poucas vezes o conseguiram graças a um acordo com policiais a sujeição criminal serve assim à corrupção de agentes públicos pois nas situaçõeslimite quando o custo excede qualquer racionalidade o processo de criminalização é um extraordinário produtor de mercadorias políticas MISSE 2010 Todo o investimento feito no Brasil no sentido de construirse um siste ma de administração da justiça moderno esbarrou como ainda esbarra no 7 Ver a propósito o excelente estudo de Cesar Pinheiro Tei xeira 2010 19 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 predomínio de uma tradição inquisitorial que privilegia mais a cabeça do su posto autor e dos envolvidos no evento do que a definição da situação em que se deu o crime A sujeição criminal antecipase à busca de evidencias empíricas no processo de construção da verdade real eis o eufemismo através do qual a polícia distingue a sua verdade da verdade judicial Para poupar tempo e esforços basta apertar suspeitos e testemunhas para obter a verdade isto é a versão dos fatos Uma vez que essa é a estratégia então a tomada de depoi mentos por escrito com fé pública em cartório na delegacia toma a forma de uma instrução criminal preliminar sem contraditório cujo nome é inquérito policial Roberto Kant de Lima LIMA 1994 2007 o primeiro a demonstrar essas par ticularidades da polícia e da justiça no Brasil tem insistido em seus trabalhos para a diferença entre esse modelo de construção da verdade de tradição inqui sitorial e o vigente em países de tradição predominantemente igualitária como os Estados Unidos da América Essa perspectiva comparativa tem a vantagem de esclarecer nos contrastes as especificidades de cada modelo e a predominân cia em um e outro de características que ultrapassam o processo penal para compreender aspectos e dimensões mais gerais das sociedades em que se de senvolveram essas práticas O inquérito policial é a peça mais importante do processo de incriminação no Brasil É ele que interliga o conjunto do sistema desde o indiciamento de suspei tos até o julgamento A sua onipresença no processo de incriminação antes de ser objeto de louvação é o núcleo mais renitente e problemático de resistência à modernização do sistema de justiça brasileiro Por isso mesmo o inquérito po licial transformouse também numa peça insubstituível a chave que abre todas as portas do processo e que poupa trabalho aos demais operadores do processo de incriminação os promotores e juízes Em primeiro lugar é preciso não confundir o inquérito policial com a investigação policial O inquérito é mais que o resultado sumário de uma investigação é uma peça composta de laudos técnicos depoimentos tomados em cartório e de um relatório juridicamente orientado assinado por um delegado de polícia bacha rel em direito em que já se encontram nomeados pelos indícios indiciados os suspeitos que a investigação encontrou É uma iniciativa administrativa que só pode ser decidida por um delegado de polícia que por meio de uma portaria instaura o inquérito Uma vez instaurado ele não pode mais ser interrompido pela polícia nem por ninguém terá que prosseguir até que se transforme em ação penal ou seja arquivado por falta de elementos para que prossiga seu ca minho para o judiciário É totalmente escrito deve ser por lei entranhado no processo o que significa que não pode ser separado do processo em nenhum momento e pode chegar em alguns casos a dezenas de volumes 20 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 Por lei uma vez constatado que houve crime através de uma verificação preli minar da informação é obrigatória a instauração do inquérito policial Na prática o grande volume de ocorrências criminais que chegam diariamente às delegacias obrigaria o delegado a selecionar o que seria e o que não se ria objeto de um inquérito No passado resolviase o problema evitando regis trarse a ocorrência a polícia tomava conhecimento do fato mas decidia não registrálo no livro de tombo pois isso obrigaria o delegado a instaurar o in quérito Com a crescente exigência de que os registros de ocorrência fossem a base das estatísticas policiais e como em vários eventos fossem exigidos por outras repartições públicas e empresas privadas documentos que comprovas sem o registro da ocorrência em delegacia para comprovações variadas como furto ou roubo de bens segurados entre outras passouse a registrar todas as ocorrências que chegavam ao conhecimento da delegacia Abrir inquérito policial para todas elas seria criar o caos tanto nas delegacias quanto nas va ras criminais é o que me disseram consensualmente delegados e promotores Disseram mais que quando um delegado está com alguma bronca ele segue a lei abre inquérito para todos os crimes que lhe chegam ao conhecimento Soluções foram sendo criadas por acordo entre as autoridades policiais o Mi nistério Público e os juízes embora transgredindo a lei que continua obrigando a instaurar o inquérito para todos os casos A principal solução encontrada no Estado do Rio de Janeiro foi transformar a verificação preliminar de informa ção prevista na lei cujo objetivo era apenas a de constatar se houve mesmo crime processo de criminação em uma VPI Verificação de Procedência de Investigação cujo objetivo é avaliar se vale a pena ou não instaurar um inquérito para aquele caso Uma VPI pode estar aberta quando ainda os investigado res verificam da possibilidade ou não de ter uma autoria para aquele crime ou pode ser suspensa quando essa possibilidade é momentaneamente negada e ela acondicionada em uma pasta vai aguardar em um armário ou arquivo o aparecimento de algum fato novo que possa justificar a abertura do inquérito A VPI é uma investigação preliminar para avaliar se vale a pena ou não continuar a investigar aprofundar a investigação e instaurar assim o inquérito Não chega ao conhecimento nem do Ministério Público nem do juiz permanece todo o tempo na esfera da polícia o que contraria o princípio da obrigatoriedade do inquérito policial criado exatamente para que o MP e o juiz possam a qualquer momento inspecionar e fiscalizar como está acontecendo a investigação policial No Rio de Janeiro foram criadas também centrais de inquérito no Mi nistério Público para dar agilidade ao acompanhamento dos inquéri tos antes que seguissem para o juiz e para as varas criminais Com isso os inquéritos deixaram de ser enviados diretamente aos juízes passaram 21 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 a ser encaminhados primeiro às centrais de inquérito Apenas os flagrantes e os inquéritos que implicam medidas cautelares continuaram a seguir direta mente para os juízes e para as varas criminais Soluções pragmáticas para me lhorar a capacidade de processamento de um grande volume de ocorrências que reconhecem que na prática os delegados sempre usaram informalmente seu poder discricionário e que os juízes e promotores jamais fiscalizaram rotinei ramente o andamento desses inquéritos No entanto ao serem adotadas essas soluções voltam a indicar a permanência do caráter inquisitorial do processo de incriminação no Brasil que o legislador pensava atenuar com as exigências de obrigatoriedade de instauração do inquérito para diminuir a discricionari dade do delegado e dar transparência a suas ações e sua fiscalização pelo juiz e depois pelo MP Indicam também o quanto o inquérito policial não deve ser confundido com a investigação policial tal como essa ocorre em outros países Uma descrição dos procedimentos de um inquérito policial em um caso de homicídio doloso Acompanhei há alguns anos um caso que envolveu o homicídio de uma jorna lista de uma cidade próxima ao Rio de Janeiro A vítima que chamarei de S foi encontrada morta próxima à linha dágua de uma praia oceânica numa manhã por pescadores Chamada a polícia chegou ao local uma patrulha da PM que constatou tratarse de crime comunicando o fato à delegacia de polícia do muni cípio Cheguei ao local logo que correu a notícia de que um corpo fora encontra do na praia e pude verificar que havia um soldado da policial militar guardando o corpo da curiosidade de banhistas que chegavam à praia naquele momento Chamado o rabecão o veículo utilizado pelo Instituto Médico Legal para a remo ção do cadáver este demorou cerca de seis horas para chegar ao local e cumprir sua função Enquanto aguardavase o rabecão um perito fotografou as condi ções em que se encontrava o corpo Logo chegou a notícia de que a vítima fora vista à noite num dos quiosques da orla da praia cerca de duzentos metros do local onde o corpo foi encontrado Bebia com conhecidos pouco antes da meia noite naquele quiosque Fui com o perito ao quiosque para constatar que este acabara de ser lavado por um de seus funcionários que nos disse que nada sabia do acontecido O perito foi embora e eu ao sair encontrei um par de sandálias jogado próximo à calçada Achei que poderia ser da vítima e chamei o soldado da PM Este pegou o par de sandálias e me perguntou se eu poderia leválos à delegacia já que ele não poderia sair do local enquanto o rabecão não chegasse Embora estranhasse o pedido que significava alteração do local do crime levei as sandálias ao delegado e familiares de S as reconheceram como pertencentes à vítima O delegado me convidou a prestar depoimento o que foi feito na pre sença de um escrivão que ouvia o que eu contava e escrevia do seguinte modo 22 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 O depoente afirmou que conhecia a vítima de longa data que foi avisa do que ela possivelmente estaria morta na praia de P que lá chegando confirmou tratarse de S que lá estava um policial militar guardando o corpo que acompanhou o perito a um quiosque próximo pois achava que ela poderia ter sido morta lá que em lá chegando nada encontra ram que o quiosque e a calçada do quiosque tinha sido lavada naque la manhã que ao se despedir do perito viu as sandálias jogadas no meiofio próximo ao quiosque que chamou o policial militar para Passei a acompanhar as investigações e o andamento do inquérito na delegacia Os conhecidos que acompanharam a vítima no quiosque foram localizados a partir de sua identificação pelo empregado do quiosque e prestaram depoimen tos ao delegado Tive acesso à cópia dos depoimentos e pude perceber que os envolvidos eram jovens filhos de empresários conhecidos da cidade Eles disse ram à polícia o mesmo que tinham se despedido da vítima e entrado no carro de um deles O carro teria permanecido no estacionamento enquanto viram a vítima se afastar a pé em direção a uma rua Um dos depoentes afirma no de poimento que eles permaneceram no carro mantendo relações sexuais assim que viram que a vítima havia sumido de suas vistas Disseram também que não havia mais ninguém nas redondezas a não ser o dono do quiosque que o estava fechando a essa hora O delegado após tomar vários depoimentos de familiares da vítima e de outras pessoas entre os quais o meu e com base nos laudos médicolegais que cons tataram que a vítima fora agredida com violência antes de ser morta por asfixia mecânica ainda que sem indicação de sevícia ou relação sexual decidiu indi ciar os dois jovens e o empregado do quiosque como suspeitos de autoria do homicídio Uma vez indiciados o delegado pode pedir uma medida cautelar no caso a prisão provisória ou preventiva ao juiz que pode concedêla ou não Nesse caso o delegado não pediu por considerar que eles não dificultariam as investigações e por se tratar de jovens sem antecedentes criminais de família conhecida e com residência fixa na cidade Familiares amigos e colegas da vítima organizaram manifestações e fizeram pressão através da imprensa para que o crime não ficasse impune O Ministério Público no entanto não denunciou os jovens indiciados com base no inquérito policial O advogado de defesa havia pedido que fosse feita a reconstituição do crime no local À noite nas imediações do quiosque com a presença de policiais promotores jornalistas e familiares da vítima pude assistir à impos sível reconstituição pois os jovens não tinham como reconstituir o que nega vam ter acontecido Estavam acabrunhados pelo fato de sua defesa ter revela do sua identidade homossexual até então não assumida publicamente nem para suas próprias famílias No entanto havia entre familiares da vítima a 23 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 desconfiança de que essa revelação era uma estratégia para demonstrar que eles não teriam interesse sexual na vítima A impossível reconstituição conven ceu o Ministério Público de que a denúncia era frágil e que o inquérito havia sido mal conduzido Havia volumes de papéis com pequena capacidade de con vencimento quanto à culpabilidade daqueles jovens e a acusação baseavase praticamente no fato de que eles eram as únicas pessoas presentes no local do crime próximos à hora em que se supunha que a vítima fora morta O lau do médicolegal não foi capaz no entanto de precisar a hora exata e não ha via qualquer testemunha do crime Não havia também impressões digitais que comprovassem a participação dos suspeitos no crime O inquérito policial foi e voltou várias vezes entre delegacia e central de inquéritos sem que o pedido de novas diligências pudesse ser atendido pela polícia que passou a considerar o caso sem solução No entanto a pressão da opinião pública continuava a se manifestar um documentário sobre a vítima e sobre a incapacidade de se fazer justiça no caso foi realizado e sua exibição em sessão especial na Câmara de Vereadores da cidade produziu seus efeitos Passado um pouco mais de um ano houve uma tentativa de estupro na mes ma área do quiosque à noite e a polícia militar avisada pela vítima conseguiu deter o veículo em que fugia o suspeito No veículo foram encontradas peças íntimas que seriam de S Levado à delegacia e confrontado com familiares de S descobriuse que se tratava de um professor de artes marciais desemprega do e caracterizado como uma pessoa agressiva conhecido de S Inicialmente negando em seu depoimento ter qualquer coisa com o assassinato de S o tal professor foi indiciado por tentativa de estupro e preso Alguns dias depois ob tive a cópia de seu depoimento prestado na mesma delegacia em que prestei depoimento um ano antes em que relatava em detalhes como atacou e esga nou S por ela ter se recusado a fazer sexo com ele e o humilhado Com a prisão preventiva decretada o suspeito voltou a negar o crime e disse ter sido espanca do na delegacia para confirmar sua versão Apesar disso ele permaneceu mais alguns anos na prisão provisória até que fosse julgado e condenado Uma frase do seu depoimento no inquérito policial nunca saiu de minha lem brança ao narrar os detalhes do assassinato que teria cometido ele referiuse à violência com que arrancou o sutiã de S Embora todos os familiares e ami gos soubessem que S não costumava usar sutiãs o fato foi desprezado pela polícia por se achar que ele se enganara ou a confundira com outra vítima Os jovens de classe média inicialmente indiciados não chegaram a ser presos em momento algum A impossível reconstituição provara sua inocência Não havia também uma motivação convincente para que eles praticassem o crime Já no caso do professor de capoeira desempregado e agressivo não houvera necessi dade de reconstituição Era evidente a sua culpabilidade como convincentes as 24 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 suas motivações ainda que ele as negasse O Ministério Público acatou o in quérito e o denunciou O inquérito prosseguiu o seu caminho as testemunhas foram novamente ouvidas e ele foi condenado Já havia cumprido em prisão preventiva parte da pena a que fora condenado Alguns anos depois não con segui localizálo cumprindo pena em nenhum dos presídios do Estado do Rio de Janeiro Não se trata aqui de avaliar se os procedimentos foram ou não corretos mas de descrever o peso do inquérito policial em todo o processo a sua força per suasiva transcrita em cartório com fé pública No julgamento o inquérito não comparece por inteiro mas por alusão Mas a sua presença dominante está no modo como forma a culpa de um suspeito numa etapa em que nem o Mi nistério Público nem a Defensoria Pública acionada nesse caso estavam pre sentes Quando o contraditório começa o inquérito já está pronto não resta senão a retórica dos contendores Como lembra Kant de Lima nessa fase já não se busca a argumentação por evidências periciais que possam ser intersub jetivamente partilhadas O consenso é tornado impossível por uma contenda cujas armas são garimpadas nos depoimentos que constituem a maior parte do inquérito policial a matriz de uma verdade judicial contaminada por es crito e com fé pública pela inquisitio dos testemunhos livrados ao escrivão Em compensação o peso do inquérito policial na elucidação de crimes graves é muito baixo se comparado à onipresença dos flagrantes efetuados pelas polí cias militares Até que ponto portanto podemos dizer que o inquérito policial é na sua forma atual indispensável O peso do inquérito policial na taxa de elucidação policial de crimes graves Uma das delegacias que recebeu em um dos anos passados a mais alta pre miação na rodada de premiações da Altus no Rio de Janeiro8 foi justamente es colhida pela excelência de seu trabalho Não há no entanto contradição quan do verificamos que essa mesma delegacia apresentou os seguintes indicadores de processamento de todas as ocorrências durante o ano de 2008 Foram apenas 97 os inquéritos enviados à justiça referentes às ocor rências registradas no mesmo ano eles somaram em média 235 dias 8 A Altus promove anualmente um concurso para pre miar as melhores delegacias em es cala nacional e inter nacional com base em indicadores de qualidade de gestão 25 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 entre o registro do fato e o envio ao Ministério Público Levandose em conta que naquele ano a delegacia registrou quase 10 mil ocorrências9 das quais cer ca de um terço delas de natureza grave 47 homicídios dolosos consumados ou tentados 11 homicídios culposos 16 crimes sexuais violentos e cerca de 36 mil roubos o resultado do trabalho de um ano na delegacia é evidentemente muito baixo menos de 1 por cento dos registros de crimes graves chegaram a ser envia dos à justiça no mesmo período como inquéritos relatados Os procedimentos enviados ao JECRIM Juizado Especial Criminal referemse aos delitos de menor gravidade que permitem composição entre as partes e que não exigem investiga ção A maior parte dos procedimentos adotados foram VPIs Verificação de Pro cedência da Investigação quase todas suspensas o que indica dificuldades em dar prosseguimento à investigação com vistas a instaurar os respectivos inquéritos Para quem pensa que o problema é de gestão é preciso assinalar que este não é o caso Essa delegacia foi premiada exatamente por apresentar excelentes indicadores de gestão Onde está o problema então Vejamos mais de perto argumentos e questões postas por policiais delegados e promotores reunidos separadamente em grupos focais na pesquisa realizada no Rio de Janeiro A primeira constatação é que ninguém quer acabar com o modelo do inquérito policial Os delegados argumentam que ele é indispensável pois é exatamente por já ser feito sob orientação jurídica que a investigação policial pode ser apro veitada nas instâncias posteriores Ministério Público e Judiciário Não o fosse e além de serem perdidos os testemunhos irrepetíveis obtidos com fé pública através do inquérito seriam também perdidas outras provas obtidas sem valor judicial É o inquérito que confere valor judicial à investigação policial Esta sem a orientação e a coordenação de um delegado formado em direito seria facil mente desacreditada no Ministério Público Os promotores por sua vez não acham que poderiam dispensar o inquérito policial gostariam de também ter o direito de dirigir as investigações e de relatálo No limite poderiam concordar em dispensar o inquérito em sua forma atual juridicamente orientado caso lhes fosse dado o direito de promover a investigação sob o seu estrito controle O inquérito policial confere grande poder a quem o controla Daí a relevân cia que lhe foi dada pelo legislador ao exigir que fosse sempre instaurado em qualquer situação em que se comprovasse a existência de um crime Era uma maneira de o juiz controlar a discricionariedade dos delegados de polí cia Quando a obrigatoriedade é abandonada na prática o inquérito acaba por se constituir como o principal dispositivo da discricionariedade na esfera po licial Instaurálo ou não por exemplo pode transformálo numa mercadoria política do mesmo modo poder indiciar uma autoria num inquérito policial quando se sabe que a polícia não poderá mais interromper ou arquivar o in quérito é um enorme poder atribuído aos delegados e aos seus policiais10 9 Em lugar da es timativa de 14 mil como saiu publica do em Misse 2008 p 42 10 Delegados cos tumam ter os seus homens de con fiança um grupo de policiais que os acompanham quan do são removidos ou transferidos de uma delegacia a ou tra ou de uma co ordenação a outra No Rio de Janeiro essas remoções que representam um poder político nas mãos do chefe da polícia podem chegar a alcançar em número a tota lidade dos policiais como aconteceu em 2001 quando foram contabilizadas mais de 7 mil remoções em um único ano Na época o efetivo da polícia civil no Rio era de cerca de 7 mil policiais 26 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 O inquérito policial reúne nas mãos dos delegados de polícia estágios que em outros países estão separados ou que são controlados pelo Ministério Público ou pelo instituto do Juizado de Instrução O delegado controla a investigação policial e controla a forma legal de expor seus resultados para a apreciação do Ministério Público Este em geral apenas avaliza o trabalho do delegado ou o envia de volta para novas diligências A maior parte das peças que cons tituem o inquérito policial é meramente burocrática e cartorial O registro da ocorrência por exemplo que é fundamental para dar início à elucidação do crime registra mais procedimentos policiais que propriamente as circunstân cias em que ocorreu o evento ali registrado11 As peças periciais quando soli citadas chegam atrasadas à investigação e apenas a tempo de constarem do inquérito muitas vezes sem qualquer esclarecimento da dinâmica do crime Os depoimentos transcritos que em alguns casos podem desdobrarse em vários volumes de texto servem apenas para orientar sua repetição nas fases seguintes quando não funcionam para protelar a remessa dos autos ao MP12 Ao encerrar essas reflexões motivadas pelo impacto que a experiência dessa pesquisa nos causou gostaria de acrescentar que não se pode atribuir todos os problemas da Justiça Criminal brasileira à polícia e muito menos ao mo delo do inquérito policial Há muitos outros fatores intervenientes a que in felizmente não temos como controlar no estágio atual de informações a que tivemos acesso nessa área no Brasil Se o modelo do inquérito policial adotado no Brasil contribui para a baixa capacidade de resolução judicial dos conflitos e crimes da sociedade brasileira é certo que também funciona adequadamen te para a preservação e reprodução de um sistemaarquipélago em que sa beres concorrentes não se entendem adequadamente O inquérito percorre o arquipélago dandolhe a aparência de um continente embora os resultados alcançados sejam pífios e a degola a sujeição criminal extrajudicial muitas vezes seja a demanda e a solução daqueles que por não confiarem mais na administração da justiça pelo Estado preconizam a justiça pelas próprias mãos Abstract This article presents questions derived from experience obtained through research into police inquiries in Brazil coordinated by the author Ar guing that the police inquiry model in Brazil should not be confused with mere police investigation the author maintains that in Brazil such inquiries combine roles and responsibilities proper to the police with roles that in other countries fall under the direct control of the Public Prosecution Service or the investiga tive court institute Therefore the Brazilian inquiry becomes an extraordinary instrument of power in the hands of police chiefs a brief that tends to prevail throughout the whole legal and incrimination process Keywords Police Inquiry Incrimination Police Criminal Procedure Brazil 11 Em uma pesqui sa sobre armas de fogo e homicídios no Rio de Janeiro que coordenei a pedido da Assembleia Le gislativa do Estado do Rio de Janeiro só obtive informações sobre as circunstân cias do homicídio em apenas 20 dos registros de ocor rências Mesmo no Programa Delegacia Legal que pretendia superar a cartoria lização da polícia pesquisadores en contraram o mesmo resultado MIRAN DA et al 2010 p 29ss 12 Uma das formas mais comuns de protelação de um in quérito para o qual não há interesse em prosseguir com as investigações é a de intimar testemu nhas que já depu seram a reiterar ou confirmar o que já disseram meses ou anos atrás 27 Revista Sociedade e Estado Volume 26 Número 1 JaneiroAbril 2011 Referências Bibliográficas Becker H 2009 Outsiders Rio de Janeiro Zahar Cano I Duarte T L 2010 A mensuração da impunidade no sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro Segurança Justiça e Cidadania ano 2 n 4 SENASP Ministério da Justiça Lima R K 1994 A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro Seus dilemas e parado xos Rio de Janeiro Forense Universitária 2007 Ensaios de Antropologia e de Direito Rio de Janeiro Lumen Juris Miranda A P M Oliveira M B Paes V 2010 A reinvenção da cartorializa ção análise do trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em Delegacias Legais referentes a homicídios dolosos na cidade do Rio de Ja neiro Segurança Justiça e Cidadania ano 2 n 4 SENASP Ministério da Justiça Misse M 2006 Crime e Violência no Brasil Contemporâneo Rio de Janeiro Lumen Juris Misse M org 2008 Acusados e Acusadores Rio de Janeiro RevanFaperj Misse M org 2010 O Inquérito Policial no Brasil uma pesquisa empírica Rio de Janeiro BooklinkFenapef Misse M Vargas J D 2009 A produção decisória do sistema de justiça crimi nal no Rio de Janeiro ontem e hoje um estudo preliminar Revista Brasileira de Ciencias Criminais n 77 237260 Ribeiro L M L 2010 Administração da Justiça Criminal na cidade do Rio de Janeiro uma análise dos casos de homicídio Rio de Janeiro Tese de Doutorado em Sociologia IUPERJUCAM Teixeira CP 2009 A construção social do exbandido um estudo sobre su jeição criminal e pentecostalismo Rio de Janeiro Dissertação de Mestrado em Sociologia IFCSPPGSAUFRJ Vargas JD 2007 Análise comparada do fluxo do sistema de justiça para o cri me de estupro Dados Revista de Ciências Sociais v 50 n 4 671698 RESENHA CRÍTICA O PAPEL DO INQUÉRITO POLICIAL NO PROCESSO DE INCRIMINAÇÃO NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO A obra do professor de Sociologia Michel Misse traz uma reflexão crítica acerca da utilização do inquérito policial como um mecanismo de incriminação no Brasil O autor argumenta que o inquérito além de ser uma simples investigação exerce uma função de poder que centraliza várias etapas do processo de incriminação desde a investigação inicial até o julgamento influenciando fortemente o resultado final O estudo é fundamentado em uma pesquisa abrangente e traz à discussão questões centrais do sistema de justiça criminal brasileiro o qual muitas vezes perpetua desigualdades sociais e injustiças 2 ESTRUTURA DO INQUÉRITO POLICIAL O inquérito policial no Brasil não pode ser comparado com a investigação policial em outros países onde as funções de investigação e acusação são separadas Aqui o inquérito concentra as funções nas mãos dos delegados de polícia Esse fator o torna uma ferramenta poderosa que orienta tanto o Ministério Público quanto o juiz nas decisões sobre quem será processado e julgado Isso cria uma dependência excessiva do que foi apurado pela polícia muitas vezes sem uma investigação cautelosa Ao contrário do que acontece em outras jurisdições onde o Ministério Público ou um juiz de instrução supervisiona as investigações no Brasil o inquérito é quase praticamente controlado pela polícia Essa concentração de poder faz com que seja um item valioso no sistema de justiça mas também traz problemas pois muitas vezes o processo sofre influência das percepções ou interesses do próprio delegado 3 DISCRICIONARIEDADE E PODER O delegado tem a liberdade de decidir quais casos merecem ser investigados a fundo e quais podem ser arquivados ou simplesmente ignorados Isso abre espaço para práticas arbitrárias onde o tratamento de um caso pode depender de interesses políticos pressões sociais ou preconceitos pessoais e não de critérios objetivos de justiça Muitas vezes vemos na mídia um verdadeiro aparato para as coletivas de imprensa dos delegados O inquérito policial ainda pode ser usado como uma barganha pois quem controla o processo tem o poder de decidir quem será incriminado ou não Esse tipo de poder cria um ambiente propício para a corrupção e o favorecimento de determinadas pessoas ou grupos 4 SUJEIÇÃO CRIMINAL E O ESTIGMA SOCIAL Jovens de baixa renda e moradores de áreas marginalizadas são frequentemente rotulados como criminosos mesmo antes de serem formalmente acusados de qualquer crime Esses indivíduos são alvos da polícia e acabam presos ou incriminados com base em pouca ou nenhuma evidência apenas por se encaixarem em um perfil social que é visto como suspeito O processo de estigmatização começa cedo e tende a perpetuar a exclusão social dessas pessoas Elas não apenas têm mais chances de serem paradas e investigadas pela polícia como também são vistas pela sociedade como criminosos em potencial o que dificulta qualquer tentativa de reintegração ou mudança de vida Tratase de um verdadeiro preconceito racismo estrutural 5 COMPARAÇÕES E CRÍTICAS Enquanto o Brasil opera com um modelo inquisitorial onde a busca pela verdade depende muito da confissão e do controle policial sistemas como o norteamericano garantem maior transparência e o direito ao contraditório desde as primeiras fases da investigação Aqui a centralização do poder nas mãos do delegado e a falta de supervisão externa comprometem a imparcialidade do processo Desta forma o sistema favorece práticas autoritárias e não garante que a investigação seja conduzida de forma imparcial No inquérito muitas vezes as provas e depoimentos são coletados com base em pressões ou confissões obtidas sob condições questionáveis Isso cria um processo que em vez de buscar a verdade dos fatos reforça preconceitos e estigmas resultando em decisões judiciais que podem ser injustas ou arbitrárias 6 CONCLUSÕES O inquérito policial no Brasil nada mais é do que uma peça burocrática e discriminatória contrariando os ideais de ser um mecanismo na busca por justiça Enquanto o inquérito mantiver a estrutura concentrada nas mãos da polícia e sendo usado de forma discricionária o sistema de justiça brasileiro terá dificuldades para se modernizar e atender às demandas de uma sociedade mais democrática e justa O artigo do professor Misse traz uma valiosa reflexão sobre os desafios do sistema de justiça criminal no Brasil especialmente no que diz respeito à transparência equidade e direitos humanos Ao expor as falhas e limitações do inquérito policial oportuniza uma reflexão sobre a necessidade de reformas estruturais para que se alcance um sistema de justiça mais eficaz e justo