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Psicologia ·
Direitos Humanos
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1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO uma contribuição à crítica da raiz dogmática do neopositivismo constitucionalista Luiz Edson Fachin Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUCSP Professor Titular de Direito Civil da UFPR e da PUCPR Carlos Eduardo Pianovski Mestre e Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR Professor de Direito Civil da PUCPR e da UNIBRASIL 1 Introdução A dignidade da pessoa humana imperativo ético existencial é também princípio e regra constitucional1 contemplado na ordem jurídica brasileira como fundamento da República perpassando por sua força normativa toda a racionalidade do ordenamento jurídico nacional Tratase de reconhecimento pelo direito de uma dimensão inerente a toda pessoa humana que antecede como princípio simultaneamente lógico e ético o próprio ordenamento jurídico Com efeito o mundo do dever ser que constituiria o direito como criação humana possui elementos metajurídicos que constituem condição de possibilidade para o próprio direito A expressão mundo do deverser na verdade é reflexo do patamar de abstração a que o positivismo exacerbado conduziu o direito forjando clivagem artificial que encerra o direito como paradoxo desse mesmo positivismo em uma dimensão metafísica Não há como admitir que uma 1 A respeito da dúplice dimensão de princípios e regras inerente às normas jusfundamentais ALEXY Robert Teoria de los Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estudios Políticos y Constitucionales 2002 2 expressão do espírito humano prepondere sobre o próprio ser humano que a elabora e ao qual concomitantemente ela se destina O princípio da dignidade da pessoa humana como bem se pode observar deve fazer referência à proteção da pessoa concreta não se reduzindo ao sujeito virtual2 abstratamente considerado reputado como mero elemento da relação jurídica ou centro de imputação Não se trata pois como será demonstrado adiante do sujeito de direito da codificação civil que se coloca em uma dimensão abstrata3 mas sim da pessoa concretamente considerada Ingo Sarlet nesta esteira aponta a dignidade da pessoa humana como uma qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade implicando neste sentido um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável além de propiciar e promover sua participação ativa e coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos4 Essa concepção toma a dignidade como atributo que se refere ao ser humano concretamente considerado Inferese ainda outro elemento de extrema relevância que não pode deixar de ser observado quando se trata do princípio em exame a dignidade da pessoa humana é imperativo que 2 Conforme Jussara MEIRELLES temse de um lado o que se pode denominar pessoa codificada ou sujeito virtual e do lado oposto há o sujeito real que corresponde à pessoa verdadeiramente humana vista sob o prisma de sua própria natureza e dignidade a pessoa gente O ser e o ter na codificação civil brasileira do sujeito virtual à clausura patrimonial In FACHIN Luiz Edson coord Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo Rio de Janeiro Renovar 1998 p 91 3 Acerca da noção de pessoa no Código Civil podese afirmar que a crítica se volta contra a abstração excessiva que se deu sobre o conceito no modelo privado que desaguou diretamente no Código Civil brasileiro E é por isso que não raro nos elementos da relação jurídica colocase o sujeito e aí se revela claramente que a pessoa não precede ao conceito jurídico de si próprio ou seja só é pessoa quem o Direito define como talFACHIN Luiz Edson Teoria Crítica do Direito Civil Rio de Janeiro Renovar 2000 p 85 4 SARLET Ingo Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais Na Constituição Federal de 1988 Porto Alegre Livraria do Advogado 2001 p 60 3 decorre de uma ética de alteridade que paira sobre o direito e deve necessariamente informálo A dignidade da pessoa humana pode ser concebida sob a dúplice dimensão de princípio e de valor5 A sua dimensão axiológica permite afirmar uma prevalência prima facie do valor dignidade a determinar toda concretização normativa ainda que não se afirme uma prevalência formal a priori do princípio Paulo da Mota Pinto observa a supremacia da dignidade da pessoa humana como valor ao afirmar que da garantia da dignidade humana decorre desde logo verdadeiro imperativo axiológico de toda ordem jurídica o reconhecimento de personalidade jurídica a todos os seres humanos acompanhado da previsão de instrumentos jurídicos nomeadamente direitos subjetivos destinados à defesa das refracções essenciais da personalidade humana bem como a necessidade de proteção desses direitos por parte do Estado6 Dessa afirmação emerge ainda a noção de dignidade da pessoa humana como uma tutela geral da personalidade tema que será retomado mais adiante que tem implicações no que tange a proteção da integridade moral física e psíquica da pessoa humana A inserção do princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição não é e não pode ser tomada como exercício retórico do legislador constituinte tratase de norma constitucional que como tal é vinculante Não há dúvida sendo a dignidade da pessoa humana valor que antecede o direito e o informa e ainda princípio elevado a fundamento da República acaba por se constituir valor supremo do sistema jurídico Por 5 Conforme Alexy a realização de um princípio não deixa de ser ao mesmo tempo realização de um valor Demais disso tanto princípios como valores são passíveis de ponderação ainda que os primeiros residam na seara deontológica e os último na seara axiológica ALEXY Robert Teoría de los Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estudios Políticos y Constitucionales 2002 6 Apud SARLET Ingo Op cit p 88 4 conseguinte afigurase um vetor fundamental na operacionalização dos institutos jurídicos tanto os de Direito Público como os de Direito Privado Sendo o princípio da dignidade da pessoa humana um componente éticojurídico inafastável ao qual se subordina todo o direito é estreme de dúvida que também no âmbito do Direito Civil impõese uma releitura dos institutos com vista a preservar e de promover a dignidade da pessoa humana As relações entre particulares inclusive e sobretudo naquilo que se refere a exercício de atividade de natureza econômica subordinamse ao pressuposto que é o respeito à pessoa do outro tomado como sujeito concreto dotado de dignidade Não há dúvida que o respeito à dignidade da pessoa humana se impõe às relações interprivadas É precisa a assertiva de Ingo Sarlet A dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e no nosso sentir da comunidade em geral de todos e de cada um condição dúplice esta que também aponta para uma simultânea dimensão defensiva e prestacional da dignidade7 Isso porque se a dignidade se refere à pessoa concreta esta não é tomada como indivíduo atomizado e abstrato mas em uma dimensão de intersubjetividade ou como leciona Carlos Fernandez Sessarego de coexistencialidade8 A preservação e a promoção da dignidade da pessoa humana passam pois pela disciplina das relações concretas de coexistencialidade É nessa dimensão que se dá a concretização do princípio da dignidade que a seu turno é tarefa do Estado de todos e de cada um O espaço 7 SARLET Ingo Op cit p 46 8 La revelación de la dimensión coexistencial de la persona a la par que permite reconocer la importancia del valor solidaridad dentro del derecho otorga sustento a la posición doctrinaria que postula que el derecho es intersubjetividad relación entre sujetos SESSAREGO Carlos Fernandez Derecho y Persona 2ª ed Trujillo Editora Normas Legales 1995 p 86 5 privado é por isso inequivocamente lugar fértil e propício à incidência do princípio Desse modo todos os institutos fundamentais do Direito Civil devem atender à dignidade da pessoa desde a propriedade funcionalizada passando pelas relações de família até as obrigacionais aí incluídos o contrato e a responsabilidade civil Fazse necessário nada obstante como etapa prévia à análise da operacionalização do princípio da dignidade da pessoa humana no Direito Civil o exame da concepção contemporânea a respeito do princípio Para isso mister é a análise das raízes filosóficas da racionalidade que em um dos muitos paradoxos da história afirmando a pessoa dotada de dignidade como um fim em si mesma conduziu à construção de um modelo de direito que em nome do patrimônio e do abstracionismo tecnicista de um cientificismo supostamente neutro acabou por negar ao ser humano concreto o lugar central das preocupações do jurídico Tratase pois de efetuar breve exame da noção kantiana a respeito da dignidade para que se possa em um segundo momento traçar a crítica ao desdobramento a que dadas leituras dessa noção conduziram o direito Dialeticamente entretanto buscarseá também recolher a contribuição dessa moral kantiana para a construção de uma ética de alteridade a informar a noção contemporânea de respeito à pessoa humana 2 Dignidade da pessoa humana e racionalismo notas sobre a matriz kantiana do conceito de dignidade A moral kantiana fundada na autonomia da vontade informada por uma razão pura prática conduziu à fórmula que traz como base a idéia de que o ser humano deve sempre ser tomado também como um fim e não 6 apenas como um meio9 Ainda que como meio seja tomado simultaneamente deverá ser um fim em si mesmo Essa concepção por demais conhecida pode ser reputada expressão fulcral da idéia de dignidade da pessoa humana no pensamento Moderno Tratase para Kant da condição de possibilidade do imperativo categórico que impõe um agir que possa ser elevado racionalmente à condição de regra universal10 Tomar o ser racional como fim é condição de possibilidade para sustentar a possibilidade universal de informar a autonomia do indivíduo pela razão prática Notase de plano que a moral kantiana é sob esse aspecto próxima daquilo que viria a se reputar uma ética da alteridade embora o fundamento seja diverso bem como a própria forma de se encarar a dimensão coexistencial do humano Não é moral por conseguinte a conduta que conduza a negar ao próprio sujeito ou a outrem a condição de fim em si mesmo Segundo Kant tudo o que se coloca como fim tem ou um preço ou uma dignidade Terá dignidade aquilo que não pode ser mensurado de modo a se lhe estabelecer preço O homem nessa esteira teria dignidade11 Daí porque não e possível falar em dignidade da pessoa humana sem mencionar a concepção kantiana a respeito do tema A discussão que daí emerge todavia diz respeito à suficiência ou não dessa razão prática kantiana para conduzir à compreensão da dignidade humana A formulação kantiana expressa no imperativo categórico é traço relevante que reflete a pretensão emancipatória da Modernidade que tem em Immanuel Kant um dos seus maiores expoentes 9 KANT Immanuel Fundamentos da Metafísica dos Costumes Rio de Janeiro Ediouro 10 KANT Immanuel Crítica da Razão Prática São Paulo Martins Fontes 2001 11 Kant Immanuel Fundamentos op cit 7 Para além disso mister é examinar a construção jurídica que se segue a Kant seja a chamada neokantiana que tem em Kelsen um de seus expoentes ou aquela que de um modo ou de outro se vincula a uma perspectiva racionalista ainda que não fundada diretamente na matriz kantiana como a da Escola Pandectista Isso porque se de um lado Kant proclama o ser humano dotado de dignidade como fim em si próprio é o pensador também a base para a construção teórica que distinguindo direito de moral conduziu já no século XX ao ápice do positivismo jurídico com a Teoria Pura do Direito de Kelsen A razão kantiana que serve de fundamento à dignidade por ele proclamada colocase em um lugar abstrato sendo integrada por juízos meramente formais Em outras palavras a dignidade humana de Kant poderia acabar por se reduzir sobretudo na formulação dos neokantianos à proclamação discursiva que se encontra em lugar formal abstrato A dignidade humana em Kant paradoxalmente pode receber leitura que a reduza a um desdobramento de uma razão metafísica O direito distinto da moral que também busca na matriz kantiana adequação à lei universal racionalmente aferível a partir do imperativo categórico acabou por se reduzir como fruto do racionalismo que culmina em Kelsen a um conjunto de conceitos dentre os quais se situa a própria pessoa Esta se transforma na elaboração jurídica dos que se seguem a Kant em centro de imputação normativa12 ou na formulação da Pandectística também racionalista ainda que não kantiana mero elemento da relação jurídica São esses os dois momentos da análise preliminar da dignidade da pessoa no Direito Civil de matriz racionalista a afirmação da dignidade 12 KELSEN Hans Teoria Pura do Direito Trad João Baptista Machado São Paulo Martins Fontes 1998 8 inclusive pela doutrina dos direitos de personalidade e a sua negação pela abstração da figura do sujeito 3 Individualismo patrimonialismo e abstração o legado do racionalismo dos séculos XVII a XIX para Direito Civil A pretensão emancipatória que informa a Modernidade deu lugar sob muitos aspectos ao paradoxo na negação do humano Boaventura de Souza Santos13 traz interessante diagnóstico sobre como um dos pilares de base da Modernidade acabou por se sobrepor ao outro vale dizer o pilar da emancipação foi colonizado pelo pilar da regulação A razão moderna que ao contrário do legado pela filosofia grega acabou por se reduzir quase que exclusivamente a uma razão instrumental conduz todo o saber a um viés cientificista A crença na previsibilidade e na possibilidade de controle dos eventos reduz o saber a uma noção de ciência que abstrai o objeto e o sujeito como entes entre os quais há inafastável cisão14 Essa razão instrumental é linear traçando puramente uma relação direta entre meios e fins O mercado situado por Boaventura no pilar da regulação é regido por essa racionalidade linear E a ciência do mesmo modo responde a essa ordem de idéias e de práxis Não se trata de coincidência uma vez que a mútua simbiose entre mercado e desenvolvimento científico constitui uma das marcas facilmente aferíveis na construção histórica da sociedades de mercado 13 SANTOS Boaventura de Souza A Crítica da Razão Indolente Contra o desperdício da experiência São Paulo Cortez 2001 14 Cisão esta que digase é rechaçada por Kant 9 A pretensão de controle e previsibilidade supostamente assegurados pela racionalidade instrumental constitui a bússola do pilar regulatório da Modernidade que se espraia por todos os saberes o direito inclusive Com efeito o jurídico em sua construção Moderna apesar da pretensão emancipatória é estruturado sobre essa razão instrumental regulatório que tem por objetivos centrais a previsibilidade e a segurança É discurso por demais conhecido e repetido à exaustão o de que o direito teria por função assegurar a paz social Tratase de reflexo da racionalidade regulatória que em nome de uma paz sobre a qual não se questiona a quem se destina estrutura um modelo de direito fundado em conceitos estáveis e em uma pretensão de neutralidade do operador jurídico O ser humano concreto se transforma em meio para essa estabilidade na medida em que não é ele o fim último o fim se apresenta na abstração do dado formal a que se denomina segurança jurídica Não se nega por óbvio que a segurança jurídica seja valor relevante até mesmo como instrumento de tutela da dignidade da pessoa O problema se situa na inversão de valores que faz da segurança princípio supremo corolário da clivagem real versus abstrato a que a cisão da razão Moderna conduziu o modelo de direito sob ela construído No que respeita especificamente ao Direito Civil três foram os caracteres fundamentais construídos com base nesse racionalismo fundado em uma razão instrumental individualismo patrimonialismo e abstração15 O individualismo e o patrimonialismo pode ser examinados em conjunto haja vista a intrínseca relação entre esses dois caracteres 15 FACHIN Luiz Edson Teoria Crítica do Direito Civil Rio de Janeiro Renovar 2003 10 4 Noções Introdutórias sobre a chamada repersonalização do Direito Civil A dignidade da pessoa humana tomada em sua concretude e não como ente abstrato situado em um lugar metafísico encontra seu lugar no Direito Civil na denominada repersonalização16 Podese dizer com efeito que a centralidade da pessoa no Direito Civil oitocentista somente se identifica no âmbito do discurso que insuflou a utopia Liberal leitmotiv da construção do Direito Privado Moderno consoante anteriormente explicitado Já se demonstrou entretanto como do discurso centrado em elemento puramente formal culminou a racionalidade que fez a dignidade da pessoa ser sobrepujada pelo patrimonialismo e pelo conceitualismo Repersonalizar o Direito Civil é portanto conforme as lições de Tepedino17 e Perlingieri18 colocar a pessoa humana no centro das preocupações no Direito Tratase de revisitar de algum modo a idéia de que o ser humano é dotado de dignidade e que constitui fim em si próprio O fundamento porém aqui é diverso daquele que informa a ordem de idéias defendida por Kant na dialética que nega a abstração kantiana emerge síntese que impõe a tutela da pessoa por sua condição de concretude de sujeito de necessidades O lugar metafísico em que se coloca a abstração do sujeito racional e ao menos neste ponto devese concordar com Nietszche19 está morto A dignidade da pessoa é dado concreto aferível no atendimento das necessidades que propiciam ao sujeito se desenvolver com efetiva 16 CARVALHO Orlando de A Teoria Geral da Relação Jurídica Coimbra Centelha 1981 17 TEPEDINO Gustavo Temas de Direito Civil Rio de Janeiro Renovar 2004 18 PERLINGIERI Pietro Perfis do Direito Civil Trad Maria Cristina de Cicco Rio de Janeiro Renovar 1997 19 A observação de Nietszche como e vê é aceita com reservas ante a dificuldade que decorre da ausência de uma ética de alteridade na obra do filósofo alemão A respeito da crítica à metafísica releva citar entre outras obras a Genealogia da Moral 11 liberdade que não se apresenta apenas em um âmbito formal mas se baseia também na efetiva presença de condições materiais de existência que assegurem a viabilidade real do exercício dessa liberdade Não se trata do individualismo abstrato do Liberalismo nem tampouco de concepção coletivista que coloca o todo como ente diverso dos seres concretos que o compõem ou seja como ente também abstrato a ocupar um lugar metafísico Tratase sim de proteger a pessoa humana em sua dimensão coexistencial cuja rede de relações constitui a sociedade Não é possível conceber o indivíduo sem o outro pelo que a tutela da dignidade humana é sempre interindividual baseada em uma ética de alteridade e jamais individualista20 Vem à tona nessa esteira a relevância dos direitos fundamentais sobretudo no que toca a discussão sobre sua eficácia nas relações interprivadas O Direito Privado contemporâneo e mais especificamente o Direito Civil vem deixando à margem as concepções individualistas do passado para se ocupar da proteção da dignidade da pessoa humana em dimensão coexistencial Nem por isso vale observar deixa de ser Direito Privado Este que tradicionalmente se ocupa do sujeito proprietário construído pela abstração dos conceitos passa a se ocupar do sujeito concreto que vale pelo que é sem que precise para adquirir relevância para o Direito Privado ser qualificado pelo ter Vale enfatizar que o relevante fenômeno da constitucionalização do Direito Civil não destrói a autonomia deste último A Constituição é assim 20 Anotese aqui a relevante reflexão de Maria Celina Bodin de Moraes ao vincular a dignidade da pessoa humana simultaneamente à liberdade e à solidariedade O Conceito de Dignidade Humana substrato axiológico e conteúdo normativo In Ingo Wolfgang Sarlet coord Constituição Direitos Fundamentais e Direito Privado 2a ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2006 p 107 150 12 uma regra maior que de há muito deixa de ser morada exclusiva das regras e princípios de Direito Público Os Direitos Fundamentais deixam de ser reputados apenas como direitos exercidos pelo indivíduo frente ao Estado mas passam a ser leitmotiv das relações entre pessoas concretas Essas relações constituem o objeto do Direito Privado e mais especificamente no que tange a proposta deste estudo do Direito Civil 5 Direitos Fundamentais e Direito Privado É lugar comum cogitar da distinção entre Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais estes incidiriam sobre as relações entre indivíduo e Estado ao passo que os Direitos de Personalidade diriam respeito à relação entre indivíduos Contemporaneamente entretanto essa distinção perde muito de sua razão de ser A eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais sobre as relações de Direito Privado conduz à conclusão de que a proteção civil aos Direitos de Personalidade nada mais é do que uma faceta dessa incidência dos Direitos Fundamentais sobre as relações interindividuais Seja essa eficácia horizontal ou vertical como admite Ingo Sarlet21 ao tratar do denominados poderes privados o fato é que se pode verificar com clareza espaço em que se apresenta identidade de fundamento entre dados Direitos Fundamentais e os Direitos de Personalidade ambos decorrem do princípio maior da tutela da dignidade da pessoa humana Essa reflexão permite um passo adiante não apenas os fundamentos são comuns mas o próprio conteúdo dos Direitos de Personalidade se 21 SARLET Ingo Wolfgang Direitos Fundamentais e Direito Privado algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais In A Constituição Concretizada Editora Livraria do Advogado Porto Alegre 2000 13 insere naquilo a que se pode denominar Direitos Fundamentais A distinção nesse passo que se fundava na clivagem entre público e privado e que aprisionava os Direitos Fundamentais ao âmbito público perde sentido Podese afirmar diante da concepção contemporânea a respeito da dignidade da pessoa humana e da relação entre Constituição e Direito Civil que os Direitos de Personalidade nada mais são que Direitos Fundamentais não havendo sentido na distinção outrora proclamada Nem todos os direitos fundamentais é certo são direitos de personalidade Estes conforme Rabindranath Capelo de Souza decorrem do complexo psíquicosomáticoambiental que constitui a personalidade humana22 O direito ao devido processo legal por exemplo é direito fundamental mas não é direito de personalidade Podese dizer nessa esteira que a construção jurídica dos Direitos de Personalidade constitui subconjunto do universo mais amplo de Direitos Fundamentais e que como tais aplicamse tanto às relações que envolvem o Estado como naquelas que envolvem apenas indivíduos23 Mais que isso diante possibilidade da eficácia direita e imediata dos direitos fundamentais nas relações interprivadas24 não mais se pode cogitar da restrição absoluta operada pela clivagem entre Direito Público e Direito Privado Ou seja não apenas os Direitos de Personalidade se aplicam às relações interprivadas mas os demais Direitos Fundamentais Não poderia ser diferente Restringir de modo absoluto a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana de status constitucional a limites definidos pelo legislador infraconstitucional na disciplina dos Direitos de Personalidade seria menoscabo pela Constituição e intolerável violação da própria dignidade da pessoa 22 SOUZA Rabindranath Capelo de O direito geral de personalidade Coimbra Ed Coimbra 1995 23 CANOTILHO JJ Gomes Curso de Direito Constitucional 21 ed São Paulo Saraiva 2000 p 372 24 Que não exclui por óbvio a eficácia mediata Nesse sentido UBILLOS Juan Maria Bilbao En que medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales In Ingo Wolfgang Sarlet coord Constituição Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2006 p 301 340 14 Impende reafirmar portanto que independente da existência ou não de previsão infraconstitucional a respeito de Direitos de Personalidade a dignidade da pessoa humana nas relações interprivadas é protegida pela aplicação Direitos Fundamentais inclusive em sua forma direta e imediata constituindo estes universo mas amplo que abrange os próprios Direitos de Personalidade Isso não significa todavia que a construção jurídica dos Direitos de Personalidade tenha se tornado desnecessária Não se pode deixar de ter em conta que mesmo antes do Direito Público o Direito Civil já debatia a proteção da pessoa por meio dos Direitos de Personalidade ainda que fulcrado na perspectiva de abstração que fundou o pensamento jurídico do século XIX Relevantes contribuições ao exame da dignidade da pessoa humana põem ser colhidas da análise da doutrina sobre os Direitos de Personalidade sobretudo no que tange a idéia de uma Tutela Geral da Personalidade É este o debate que será examinado a seguir 6 A Tutela Geral da Personalidade A polêmica doutrinária oitocentista em se apresentava a oposição entre os que sustentavam uma tutela geral da personalidade e os que preconizavam um tutela tipificada apresentase superada à luz das noções contemporâneas acerca do próprio fundamento dos direitos de personalidade25 Se for pertinente uma tutela específica a certos direitos dúvida não há de que essa proteção não é incompatível com uma tutela geral 25 A respeito do tema relevantes subsídios podem ser extraídos de SZANIAWSKI Elimar Direitos da Personalidade e sua Tutela São Paulo Revista dos Tribunais 1993 15 O que aqui se traz como questão de fundo a sobrepujar a polêmica é a análise da pertinência do exame da tutela geral da personalidade para a questão atinente à dignidade da pessoa Isso porque essa pertinência se revela na identificação do fundamento contemporâneo da tutela geral que reside precisamente no princípio da dignidade da pessoa humana Os direitos de personalidade da pessoa natural não têm por fundamento o dado abstrato da personalidade jurídica mas sim a personalidade como dado inerente ao sujeito concreto É como anteriormente exposto no que se infere do dizer de Capello de Souza um complexo psíquicosomáticorelacional ou seja é integrado pelos elementos físico e psíquico em conjunto com a relação desses elementos com o meio e sobretudo com outros sujeitos Isso conduz à conclusão de que não sendo os direitos de personalidade uma concessão do direito positivo desnecessário é tipificar cada direito de modo a inserilo no mundo do direito A visão contemporânea a respeito da idéia de sistema no direito e dos métodos de construção normativa demonstra que não se sustenta a noção de que a aplicação do direito se daria por meio da subsunção a modelos rígidos de relações jurídicas dependendo de respostas prontas que prescindam da problematização do caso concreto A personalidade que se apresenta como tutelada pelo direito não é pois mero objeto criado pela norma Impende distinguir pois a personalidade como dado concreto e a personalidade como atributo genérico que permite a alguém integrar relações jurídicas na condição de sujeito de direito26 26 MEIRELLES Jussara O ser e o ter na codificação civil brasileira do sujeito virtual à clausura patrimonial In Luiz Edson Fachin Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo Rio de Janeiro Renovar 1998 16 A personalidade definida à luz da abstração que marca o positivismo jurídico oitocentista e que adentra o século XX culminando em Kelsen nada mais é que atribuição normativa Em outras palavras ascende à condição de pessoa aquele que a quem a ordem jurídica concede tal condição Não é por certo como se vê a essa personalidade que se refere a tutela geral que aqui se está a explicitar Isso porque a dignidade da pessoa humana não é dado que nasce do direito positivo integrando dimensão que como exposto antecede o direito A gênese da tutela assim não reside na lei sendo desnecessário arrolar direitos para que eles possam receber proteção jurídica tudo aquilo que é inerente à personalidade o sujeito concreto é digno de proteção jurídica por dizer respeito à dignidade da pessoa humana Centrar a tutela geral a personalidade no princípio da dignidade da pessoa é portanto trazer como fundamento desses direitos o mesmo princípio que dá base aos direitos fundamentais 7 A Dignidade da pessoa humana e os três pilares do Direito Civil O princípioregra constitucional da dignidade da pessoa humana pode incidir direta e imediatamente sobre as relações de Direito Civil Não se afigura como sustentável a barreira dogmática que outrora se pretendia erigir entre Constituição e Direito Privado segundo a qual somente se admitia a incidência do texto constitucional sobre as relações interprivadas por meio do filtro das normas e princípios próprios ao Direito Civil construídos na Modernidade sob o leitmotiv do individualismo proprietário27 27 Sobre o individualismo proprietário ver por todos BARCELLONA Pietro Lindividualismo Proprietário Torino Boringhieri 1987 17 À luz dessa ordem de idéias revelase inequívoca a repercussão do princípio em tela na configuração do perfil contemporâneo dos pilares de base do direito civil contrato propriedade e família28 Se for certo que os direitos fundamentais podem possuir aplicação direta e imediata sobre as relações interprivadas por meio de sua eficácia horizontal ou mesmo vertical como bem ensina Ingo Sarlet no pertinente aos poderes privados parece adequado pretender sistematizar alguns desses possíveis efeitos por meio da análise das mais relevantes searas de incidência do princípio no Direito Civil Com efeito dúvida não há de que a aplicação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana parte da tópica uma vez que não se trata de formular um conceito exauriente e abstrato de dignidade mas sim zelar pela satisfação de necessidades fundamentais que propiciem aos sujeitos o livre desenvolvimento de capacidades individuais Utilizar princípios por certo é admitir ponderação de valores in concreto buscar superar a simples subsunção lógica em favor de métodos de decisão pelo que não cabe aqui a postura mecanicista da clivagem do discurso jurídico da valoração a priori das respostas prêt à porter De outro lado não contrasta com essa racionalidade a pretensão de apontar os aspectos por meio dos quais se pode identificar instrumentos de aplicação e repercussões diretas do princípio em tela para o Direito Civil contemporâneo A noção de que a norma jurídica se constrói topicamente não afasta a pertinência da sistematização decidir topicamente não é decidir casuisticamente pelo que a referência apta a definir as soluções tópicas se encontram no sistema As soluções topicamente obtidas a seu turno também são passíveis de sistematização devendose sempre ter em conta nada obstante que essa sistematização é instrumental não constituindo fim em si mesma 28 CARBONNIER Jean Flexible Droit Paris LGDJ 18 Inequívoco portanto ser relevante a investigação dos aspectos mais destacados que emergem da incidência do princípio da dignidade da pessoa humana sobre os três pilares de base do Direito Civil O exame que aqui se leva a efeito diante dos objetivos inerentes a este texto é limitado à identificação panorâmica das mais relevantes repercussões do princípio em foco nas titularidades trânsito jurídico e família sem pretensão de verticalização dos aspectos aqui aludidos Nesse plano podese partir da identificação da configuração contemporânea do direito de propriedade para localizar os limites e possibilidades da incidência do princípio da dignidade da pessoa humana sobre o pilar das titularidades O primeiro desses aspectos que se apresentam na seara das titularidades é a noção de função social da propriedade Se a história adverte ao estudioso e ao aplicador do direito que o discurso pertinente a função social ainda não logrou êxito em promover na plenitude esperada uma repersonalização do direito de propriedade mostrandose pertinente um repensar sempre de sentido emancipatório do conteúdo e do fundamento dessa funcionalização não se nega que no movimento dialético que conduz a historia seria um equívoco negar a pertinência da função social da propriedade para a busca da concretização da dignidade da pessoa no Direito Civil Como sustenta Perlingieri29 impõese uma funcionalização das situações subjetivas patrimoniais as situações existenciais do Ter em relação ao Ser da propriedade em relação ao sujeito seja ele titular ou não A noção de que a propriedade obriga que se extrai da Constituição de Weimar de 1919 foi dado marcante que ensejou nas décadas que se seguiram a preocupação dos ordenamentos jurídicos em adequarem um 29 PERLINGIEIRI Op cit 19 equilíbrio entre o atendimento de interesses individuais e coletivos na seara do direito de propriedade Se essa concepção originária de um dado coletivo merece um repensar não se pode negar que ela se apresentou como de extrema relevância para abrir fissuras na concepção puramente individualista herdada da construção Liberal Podese dizer sem embargo que talvez a repercussão mais relevante da incidência do princípio da função social da propriedade para o Direito Civil seja um dado reflexo dessa funcionalização a preocupação com a questão do acesso Permitir que mais pessoas passem a ter acesso a bens seja na condição de titulares ou de possuidores é por excelência o modo de propiciar existência digna aqueles que historicamente se colocavam a margem de um Direito Civil que destinava sua tutela apenas ao indivíduo proprietário Acesso a bens cabe ressaltar não se confunde necessariamente com direito de propriedade embora o acesso a esse direito se coloque também no âmbito de preocupações de um direito civil repersonalizado uma maior autonomização do direito a posse não mais visto como guarda avançada da propriedade também se vincula a essa pretensão de acesso A redução de prazos para aquisição por usucapião sobretudo se a posse atender a requisitos tendentes ao atendimento da função social da propriedade também é instrumento coerente com a proteção da dignidade da pessoa por meio do acesso Nessa seara cabe reconhecer mérito a nova codificação nada obstante as muitas críticas a que ela faz jus ao valorizar a possetrabalho e a questão atinente a moradia como hipóteses aptas a ensejar redução de prazos para aquisição por usucapião Podese apontar ainda em hermenêutica sistemática construtiva a existência no ordenamento jurídico brasileiro da tutela de um patrimônio 20 mínimo personalíssimo30 Tratase de subprincípio que pode por exemplo apresentarse como exceção de direito material a execução Tratase de reconhecer limites para a responsabilidade patrimonial do devedor por meio da vedação a pretensão de reduzilo a miserabilidade Tratase ainda não apenas de assegurar um mínimo existencial o que poderia se confundir com uma espécie de caridade pública ela própria não raro atentatória a dignidade mas sim de assegurar um patamar patrimonial que propicie um livre desenvolvimento de capacidades individuais Ainda na seara das situações subjetivas patrimoniais cabe passar da dimensão da propriedade estática à seara do trânsito jurídico que aqui se apresenta como o segundo pilar de base do Direito Civil Destacase nessa senda a figura do contrato tratase do instrumento por excelência do trânsito jurídico oferecendo dimensão dinâmica às titularidades Afigurandose como instrumento de trânsito econômico emerge a noção de contrato como instrumento de satisfação de necessidades Não há dúvida de que a função econômica do contrato constitui seu fiocondutor não se podendo perder de vista nada obstante isso que a compreensão do dado econômico em sentido lato passa pelo atendimento de necessidades existenciais Daí não haver total incompatibilidade entre a noção de contrato como instrumento de trânsito de bens e de interesses com a concepção de que ele serviria ao livre desenvolvimento da personalidade O atendimento de necessidades existenciais que também se qualificam como econômicas vem na esteira do atendimento da dignidade da pessoa Impende porém ter em conta que se a noção de proteção da dignidade da pessoa pretende ser leitmotiv do trânsito econômico efetuado por meio das vestes jurídicas do contrato cabe à lei impor balizamentos que 30 FACHIN Luiz Edson Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo Rio de Janeiro Renovar 2001 21 permitam ao contrato não transformarse em antítese da satisfação daquela mesma dignidade A configuração contemporânea da autonomia privada circunscrita pela lei de modo a propiciar a não afronta pelo contratante mais forte à liberdade do mais fraco é o elemento fulcral dessa incidência do princípio da dignidade da pessoa sobre os contratos Essa funcionalização da liberdade contratual expressão da autonomia privada à dignidade da pessoa tem status constitucional uma vez que em sentido amplo decorre do comando do artigo 170 da Constituição que expressamente prevê que a livre iniciativa será exercida em função da existência digna e da justiça social O princípio da boafé pode também ser reputado corolário quantum satis do princípio da dignidade da pessoa desde que sua leitura seja fincada na perspectiva de que se trata de princípio que vem dar vestes jurídicas a uma ética de alteridade e não apenas configurarse como instrumento assecuratório de uma segurança jurídica formal Por derradeiro temse o terceiro pilar do Direito Civil a família como seara fértil à aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana Como fenômeno sociológico apreendido por meio da porosidade do direito a família sofreu no século XX um processo por meio do qual suas funções pessoais se sobrepuseram às institucionais As relações familiares passaram a privilegiar o afeto a satisfação de aspirações coexistenciais Essa nova configuração do fenômeno familiar é apreendida pelo direito31 Com efeito passase a prescindir de modelos prédefinidos para admitir o ingresso de dada relação de natureza familiar no âmbito de pertinência do direito De um modelo único matrimonializado passase à 31 FACHIN Luiz Edson Direito de Família Elementos Críticos à luz do Novo Código Civil Brasileiro Rio de Janeiro Renovar 2004 22 família plural propiciando a apreensão jurídica dos fenômenos que no plano dos fatos caracterizamse como famílias32 Isso se deve ao fato de que o regramento da família pelo direito deixa de ter por escopo criar amarras em nome de uma suposta estabilidade institucional mas passa a ser instrumento de assistência à família na pessoa de cada um de seus membros Em outras palavras visa o direito a trazer elementos protetivos da dignidade da pessoa no âmbito de suas relações familiares propiciando sem o engessamento dos modelos fechados permitir que a entidade familiar sirva de instrumento ao livre desenvolvimento da personalidade de seus componentes Tratase de proteger um espaço de afeto e simultaneamente oferecer meios de tutela da dignidade dos componentes da família quando aquele se extingue e os vínculos se rompem Tratase do princípio eudemonista33 diretamente derivado do princípio da dignidade da pessoa humana A felicidade coexistencial objetivada pelo princípio eudemonista não é por óbvio produzida por meio da lei como a estabilidade artificial imposta pela perspectiva que valorava as funções institucionais da família como superiores às funções pessoais O objetivo aqui ao contrário é instrumental prestar assistência para propiciar que os sujeitos livremente busquem essa felicidade que por coexistencial não ignora o outro Por isso falar em dignidade da pessoa no direito de família não consiste em pura e simplesmente chancelar o desejo este é aspecto relevante mas não constitui o objeto imediato das preocupações do direito Com efeito a chancela plena do desejo de um componente da família pode gerar afronta à dignidade do outro Daí o sentido da coexistencialidade 32 PIANOVSKI RUZYK Carlos Eduardo Famílias Simultâneas da unidade codificada à pluralidade constitucional Rio de Janeiro Renovar 2004 33 OLIVEIRA José Lamartine Corrêa de MUNIZ Francisco José Ferreira Curso de direito de família 2 ª ed Curitiba Juruá 1998 23 como balizamento útil à incidência do princípio da dignidade da pessoa humana no direito de família não se dirige a assistência somente ao indivíduo atomizado nem tampouco ao coletivo abstrato mas sim à dimensão que emerge da relação entre o eu e o outro Outros princípios que refletem a incidência da dignidade da pessoa sobre o direito de família dizem respeito à igualdade entre os cônjuges e entre os filhos Quanto à filiação é cristalina a vedação constitucional a qualquer tratamento e designação discriminatórios pondo termo à aviltante distinção entre filhos legítimos e ilegítimos e dentre estes últimos naturais e espúrios O subprincípio da inocência também se põe ao lado da igualdade a densificar o princípio da dignidade da dignidade da pessoa humana nas relações pertinentes aos filhos A igualdade entre os cônjuges por sua vez reflete décadas de lutas pela emancipação feminina constituindo apreensão pelo direito da nova configuração social das relações familiares além de também densificar o princípio da dignidade da pessoa humana A relação entre dignidade e igualdade é evidente tornandose ainda mais flagrante tratandose da mulher casada que até a década de 60 do século XX não apenas se subordinava à hierarquia do chefe da família mas também sofria redução de sua capacidade jurídica pelo fato do casamento 8 À guisa de conclusão O caminho que pretende a construção de um direito civil emancipatório em oposição àquele centrado no individualismo proprietário passa necessariamente pelo princípio da dignidade da pessoa humana Tal sendo arrosta as concepções tradicionais do Direito Civil e do Direito Constitucional especialmente aquelas ancoradas nos ideais da Modernidade 24 O Direito Contemporâneo reclama assim à luz dessa principiológia axiológica de índole constitucional a superação das dicotomias antigas das fronteiras rígidas entre Direito Privado e Direito Público e ao mesmo tempo reafirmar singularidades que jamais podem deixar de impor conhecimento e reconhecimento das construções clássicas nomeadamente em matéria dos direitos de personalidade O desafio do presente é recolher a contribuição do pretérito e projetá la para o porvir problematizando teorias e práxis que acalentaram durante décadas ao menos no Brasil uma concepção insular de institutos e figuras jurídicas pouco apta a formar mentes e corações que a partir e por meio do discurso e da prática jurídica não reproduzam conhecimentos e sim se proponham a dar efetividade constante ao texto normativo constitucional
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1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO uma contribuição à crítica da raiz dogmática do neopositivismo constitucionalista Luiz Edson Fachin Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUCSP Professor Titular de Direito Civil da UFPR e da PUCPR Carlos Eduardo Pianovski Mestre e Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR Professor de Direito Civil da PUCPR e da UNIBRASIL 1 Introdução A dignidade da pessoa humana imperativo ético existencial é também princípio e regra constitucional1 contemplado na ordem jurídica brasileira como fundamento da República perpassando por sua força normativa toda a racionalidade do ordenamento jurídico nacional Tratase de reconhecimento pelo direito de uma dimensão inerente a toda pessoa humana que antecede como princípio simultaneamente lógico e ético o próprio ordenamento jurídico Com efeito o mundo do dever ser que constituiria o direito como criação humana possui elementos metajurídicos que constituem condição de possibilidade para o próprio direito A expressão mundo do deverser na verdade é reflexo do patamar de abstração a que o positivismo exacerbado conduziu o direito forjando clivagem artificial que encerra o direito como paradoxo desse mesmo positivismo em uma dimensão metafísica Não há como admitir que uma 1 A respeito da dúplice dimensão de princípios e regras inerente às normas jusfundamentais ALEXY Robert Teoria de los Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estudios Políticos y Constitucionales 2002 2 expressão do espírito humano prepondere sobre o próprio ser humano que a elabora e ao qual concomitantemente ela se destina O princípio da dignidade da pessoa humana como bem se pode observar deve fazer referência à proteção da pessoa concreta não se reduzindo ao sujeito virtual2 abstratamente considerado reputado como mero elemento da relação jurídica ou centro de imputação Não se trata pois como será demonstrado adiante do sujeito de direito da codificação civil que se coloca em uma dimensão abstrata3 mas sim da pessoa concretamente considerada Ingo Sarlet nesta esteira aponta a dignidade da pessoa humana como uma qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade implicando neste sentido um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável além de propiciar e promover sua participação ativa e coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos4 Essa concepção toma a dignidade como atributo que se refere ao ser humano concretamente considerado Inferese ainda outro elemento de extrema relevância que não pode deixar de ser observado quando se trata do princípio em exame a dignidade da pessoa humana é imperativo que 2 Conforme Jussara MEIRELLES temse de um lado o que se pode denominar pessoa codificada ou sujeito virtual e do lado oposto há o sujeito real que corresponde à pessoa verdadeiramente humana vista sob o prisma de sua própria natureza e dignidade a pessoa gente O ser e o ter na codificação civil brasileira do sujeito virtual à clausura patrimonial In FACHIN Luiz Edson coord Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo Rio de Janeiro Renovar 1998 p 91 3 Acerca da noção de pessoa no Código Civil podese afirmar que a crítica se volta contra a abstração excessiva que se deu sobre o conceito no modelo privado que desaguou diretamente no Código Civil brasileiro E é por isso que não raro nos elementos da relação jurídica colocase o sujeito e aí se revela claramente que a pessoa não precede ao conceito jurídico de si próprio ou seja só é pessoa quem o Direito define como talFACHIN Luiz Edson Teoria Crítica do Direito Civil Rio de Janeiro Renovar 2000 p 85 4 SARLET Ingo Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais Na Constituição Federal de 1988 Porto Alegre Livraria do Advogado 2001 p 60 3 decorre de uma ética de alteridade que paira sobre o direito e deve necessariamente informálo A dignidade da pessoa humana pode ser concebida sob a dúplice dimensão de princípio e de valor5 A sua dimensão axiológica permite afirmar uma prevalência prima facie do valor dignidade a determinar toda concretização normativa ainda que não se afirme uma prevalência formal a priori do princípio Paulo da Mota Pinto observa a supremacia da dignidade da pessoa humana como valor ao afirmar que da garantia da dignidade humana decorre desde logo verdadeiro imperativo axiológico de toda ordem jurídica o reconhecimento de personalidade jurídica a todos os seres humanos acompanhado da previsão de instrumentos jurídicos nomeadamente direitos subjetivos destinados à defesa das refracções essenciais da personalidade humana bem como a necessidade de proteção desses direitos por parte do Estado6 Dessa afirmação emerge ainda a noção de dignidade da pessoa humana como uma tutela geral da personalidade tema que será retomado mais adiante que tem implicações no que tange a proteção da integridade moral física e psíquica da pessoa humana A inserção do princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição não é e não pode ser tomada como exercício retórico do legislador constituinte tratase de norma constitucional que como tal é vinculante Não há dúvida sendo a dignidade da pessoa humana valor que antecede o direito e o informa e ainda princípio elevado a fundamento da República acaba por se constituir valor supremo do sistema jurídico Por 5 Conforme Alexy a realização de um princípio não deixa de ser ao mesmo tempo realização de um valor Demais disso tanto princípios como valores são passíveis de ponderação ainda que os primeiros residam na seara deontológica e os último na seara axiológica ALEXY Robert Teoría de los Derechos Fundamentales Madrid Centro de Estudios Políticos y Constitucionales 2002 6 Apud SARLET Ingo Op cit p 88 4 conseguinte afigurase um vetor fundamental na operacionalização dos institutos jurídicos tanto os de Direito Público como os de Direito Privado Sendo o princípio da dignidade da pessoa humana um componente éticojurídico inafastável ao qual se subordina todo o direito é estreme de dúvida que também no âmbito do Direito Civil impõese uma releitura dos institutos com vista a preservar e de promover a dignidade da pessoa humana As relações entre particulares inclusive e sobretudo naquilo que se refere a exercício de atividade de natureza econômica subordinamse ao pressuposto que é o respeito à pessoa do outro tomado como sujeito concreto dotado de dignidade Não há dúvida que o respeito à dignidade da pessoa humana se impõe às relações interprivadas É precisa a assertiva de Ingo Sarlet A dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e no nosso sentir da comunidade em geral de todos e de cada um condição dúplice esta que também aponta para uma simultânea dimensão defensiva e prestacional da dignidade7 Isso porque se a dignidade se refere à pessoa concreta esta não é tomada como indivíduo atomizado e abstrato mas em uma dimensão de intersubjetividade ou como leciona Carlos Fernandez Sessarego de coexistencialidade8 A preservação e a promoção da dignidade da pessoa humana passam pois pela disciplina das relações concretas de coexistencialidade É nessa dimensão que se dá a concretização do princípio da dignidade que a seu turno é tarefa do Estado de todos e de cada um O espaço 7 SARLET Ingo Op cit p 46 8 La revelación de la dimensión coexistencial de la persona a la par que permite reconocer la importancia del valor solidaridad dentro del derecho otorga sustento a la posición doctrinaria que postula que el derecho es intersubjetividad relación entre sujetos SESSAREGO Carlos Fernandez Derecho y Persona 2ª ed Trujillo Editora Normas Legales 1995 p 86 5 privado é por isso inequivocamente lugar fértil e propício à incidência do princípio Desse modo todos os institutos fundamentais do Direito Civil devem atender à dignidade da pessoa desde a propriedade funcionalizada passando pelas relações de família até as obrigacionais aí incluídos o contrato e a responsabilidade civil Fazse necessário nada obstante como etapa prévia à análise da operacionalização do princípio da dignidade da pessoa humana no Direito Civil o exame da concepção contemporânea a respeito do princípio Para isso mister é a análise das raízes filosóficas da racionalidade que em um dos muitos paradoxos da história afirmando a pessoa dotada de dignidade como um fim em si mesma conduziu à construção de um modelo de direito que em nome do patrimônio e do abstracionismo tecnicista de um cientificismo supostamente neutro acabou por negar ao ser humano concreto o lugar central das preocupações do jurídico Tratase pois de efetuar breve exame da noção kantiana a respeito da dignidade para que se possa em um segundo momento traçar a crítica ao desdobramento a que dadas leituras dessa noção conduziram o direito Dialeticamente entretanto buscarseá também recolher a contribuição dessa moral kantiana para a construção de uma ética de alteridade a informar a noção contemporânea de respeito à pessoa humana 2 Dignidade da pessoa humana e racionalismo notas sobre a matriz kantiana do conceito de dignidade A moral kantiana fundada na autonomia da vontade informada por uma razão pura prática conduziu à fórmula que traz como base a idéia de que o ser humano deve sempre ser tomado também como um fim e não 6 apenas como um meio9 Ainda que como meio seja tomado simultaneamente deverá ser um fim em si mesmo Essa concepção por demais conhecida pode ser reputada expressão fulcral da idéia de dignidade da pessoa humana no pensamento Moderno Tratase para Kant da condição de possibilidade do imperativo categórico que impõe um agir que possa ser elevado racionalmente à condição de regra universal10 Tomar o ser racional como fim é condição de possibilidade para sustentar a possibilidade universal de informar a autonomia do indivíduo pela razão prática Notase de plano que a moral kantiana é sob esse aspecto próxima daquilo que viria a se reputar uma ética da alteridade embora o fundamento seja diverso bem como a própria forma de se encarar a dimensão coexistencial do humano Não é moral por conseguinte a conduta que conduza a negar ao próprio sujeito ou a outrem a condição de fim em si mesmo Segundo Kant tudo o que se coloca como fim tem ou um preço ou uma dignidade Terá dignidade aquilo que não pode ser mensurado de modo a se lhe estabelecer preço O homem nessa esteira teria dignidade11 Daí porque não e possível falar em dignidade da pessoa humana sem mencionar a concepção kantiana a respeito do tema A discussão que daí emerge todavia diz respeito à suficiência ou não dessa razão prática kantiana para conduzir à compreensão da dignidade humana A formulação kantiana expressa no imperativo categórico é traço relevante que reflete a pretensão emancipatória da Modernidade que tem em Immanuel Kant um dos seus maiores expoentes 9 KANT Immanuel Fundamentos da Metafísica dos Costumes Rio de Janeiro Ediouro 10 KANT Immanuel Crítica da Razão Prática São Paulo Martins Fontes 2001 11 Kant Immanuel Fundamentos op cit 7 Para além disso mister é examinar a construção jurídica que se segue a Kant seja a chamada neokantiana que tem em Kelsen um de seus expoentes ou aquela que de um modo ou de outro se vincula a uma perspectiva racionalista ainda que não fundada diretamente na matriz kantiana como a da Escola Pandectista Isso porque se de um lado Kant proclama o ser humano dotado de dignidade como fim em si próprio é o pensador também a base para a construção teórica que distinguindo direito de moral conduziu já no século XX ao ápice do positivismo jurídico com a Teoria Pura do Direito de Kelsen A razão kantiana que serve de fundamento à dignidade por ele proclamada colocase em um lugar abstrato sendo integrada por juízos meramente formais Em outras palavras a dignidade humana de Kant poderia acabar por se reduzir sobretudo na formulação dos neokantianos à proclamação discursiva que se encontra em lugar formal abstrato A dignidade humana em Kant paradoxalmente pode receber leitura que a reduza a um desdobramento de uma razão metafísica O direito distinto da moral que também busca na matriz kantiana adequação à lei universal racionalmente aferível a partir do imperativo categórico acabou por se reduzir como fruto do racionalismo que culmina em Kelsen a um conjunto de conceitos dentre os quais se situa a própria pessoa Esta se transforma na elaboração jurídica dos que se seguem a Kant em centro de imputação normativa12 ou na formulação da Pandectística também racionalista ainda que não kantiana mero elemento da relação jurídica São esses os dois momentos da análise preliminar da dignidade da pessoa no Direito Civil de matriz racionalista a afirmação da dignidade 12 KELSEN Hans Teoria Pura do Direito Trad João Baptista Machado São Paulo Martins Fontes 1998 8 inclusive pela doutrina dos direitos de personalidade e a sua negação pela abstração da figura do sujeito 3 Individualismo patrimonialismo e abstração o legado do racionalismo dos séculos XVII a XIX para Direito Civil A pretensão emancipatória que informa a Modernidade deu lugar sob muitos aspectos ao paradoxo na negação do humano Boaventura de Souza Santos13 traz interessante diagnóstico sobre como um dos pilares de base da Modernidade acabou por se sobrepor ao outro vale dizer o pilar da emancipação foi colonizado pelo pilar da regulação A razão moderna que ao contrário do legado pela filosofia grega acabou por se reduzir quase que exclusivamente a uma razão instrumental conduz todo o saber a um viés cientificista A crença na previsibilidade e na possibilidade de controle dos eventos reduz o saber a uma noção de ciência que abstrai o objeto e o sujeito como entes entre os quais há inafastável cisão14 Essa razão instrumental é linear traçando puramente uma relação direta entre meios e fins O mercado situado por Boaventura no pilar da regulação é regido por essa racionalidade linear E a ciência do mesmo modo responde a essa ordem de idéias e de práxis Não se trata de coincidência uma vez que a mútua simbiose entre mercado e desenvolvimento científico constitui uma das marcas facilmente aferíveis na construção histórica da sociedades de mercado 13 SANTOS Boaventura de Souza A Crítica da Razão Indolente Contra o desperdício da experiência São Paulo Cortez 2001 14 Cisão esta que digase é rechaçada por Kant 9 A pretensão de controle e previsibilidade supostamente assegurados pela racionalidade instrumental constitui a bússola do pilar regulatório da Modernidade que se espraia por todos os saberes o direito inclusive Com efeito o jurídico em sua construção Moderna apesar da pretensão emancipatória é estruturado sobre essa razão instrumental regulatório que tem por objetivos centrais a previsibilidade e a segurança É discurso por demais conhecido e repetido à exaustão o de que o direito teria por função assegurar a paz social Tratase de reflexo da racionalidade regulatória que em nome de uma paz sobre a qual não se questiona a quem se destina estrutura um modelo de direito fundado em conceitos estáveis e em uma pretensão de neutralidade do operador jurídico O ser humano concreto se transforma em meio para essa estabilidade na medida em que não é ele o fim último o fim se apresenta na abstração do dado formal a que se denomina segurança jurídica Não se nega por óbvio que a segurança jurídica seja valor relevante até mesmo como instrumento de tutela da dignidade da pessoa O problema se situa na inversão de valores que faz da segurança princípio supremo corolário da clivagem real versus abstrato a que a cisão da razão Moderna conduziu o modelo de direito sob ela construído No que respeita especificamente ao Direito Civil três foram os caracteres fundamentais construídos com base nesse racionalismo fundado em uma razão instrumental individualismo patrimonialismo e abstração15 O individualismo e o patrimonialismo pode ser examinados em conjunto haja vista a intrínseca relação entre esses dois caracteres 15 FACHIN Luiz Edson Teoria Crítica do Direito Civil Rio de Janeiro Renovar 2003 10 4 Noções Introdutórias sobre a chamada repersonalização do Direito Civil A dignidade da pessoa humana tomada em sua concretude e não como ente abstrato situado em um lugar metafísico encontra seu lugar no Direito Civil na denominada repersonalização16 Podese dizer com efeito que a centralidade da pessoa no Direito Civil oitocentista somente se identifica no âmbito do discurso que insuflou a utopia Liberal leitmotiv da construção do Direito Privado Moderno consoante anteriormente explicitado Já se demonstrou entretanto como do discurso centrado em elemento puramente formal culminou a racionalidade que fez a dignidade da pessoa ser sobrepujada pelo patrimonialismo e pelo conceitualismo Repersonalizar o Direito Civil é portanto conforme as lições de Tepedino17 e Perlingieri18 colocar a pessoa humana no centro das preocupações no Direito Tratase de revisitar de algum modo a idéia de que o ser humano é dotado de dignidade e que constitui fim em si próprio O fundamento porém aqui é diverso daquele que informa a ordem de idéias defendida por Kant na dialética que nega a abstração kantiana emerge síntese que impõe a tutela da pessoa por sua condição de concretude de sujeito de necessidades O lugar metafísico em que se coloca a abstração do sujeito racional e ao menos neste ponto devese concordar com Nietszche19 está morto A dignidade da pessoa é dado concreto aferível no atendimento das necessidades que propiciam ao sujeito se desenvolver com efetiva 16 CARVALHO Orlando de A Teoria Geral da Relação Jurídica Coimbra Centelha 1981 17 TEPEDINO Gustavo Temas de Direito Civil Rio de Janeiro Renovar 2004 18 PERLINGIERI Pietro Perfis do Direito Civil Trad Maria Cristina de Cicco Rio de Janeiro Renovar 1997 19 A observação de Nietszche como e vê é aceita com reservas ante a dificuldade que decorre da ausência de uma ética de alteridade na obra do filósofo alemão A respeito da crítica à metafísica releva citar entre outras obras a Genealogia da Moral 11 liberdade que não se apresenta apenas em um âmbito formal mas se baseia também na efetiva presença de condições materiais de existência que assegurem a viabilidade real do exercício dessa liberdade Não se trata do individualismo abstrato do Liberalismo nem tampouco de concepção coletivista que coloca o todo como ente diverso dos seres concretos que o compõem ou seja como ente também abstrato a ocupar um lugar metafísico Tratase sim de proteger a pessoa humana em sua dimensão coexistencial cuja rede de relações constitui a sociedade Não é possível conceber o indivíduo sem o outro pelo que a tutela da dignidade humana é sempre interindividual baseada em uma ética de alteridade e jamais individualista20 Vem à tona nessa esteira a relevância dos direitos fundamentais sobretudo no que toca a discussão sobre sua eficácia nas relações interprivadas O Direito Privado contemporâneo e mais especificamente o Direito Civil vem deixando à margem as concepções individualistas do passado para se ocupar da proteção da dignidade da pessoa humana em dimensão coexistencial Nem por isso vale observar deixa de ser Direito Privado Este que tradicionalmente se ocupa do sujeito proprietário construído pela abstração dos conceitos passa a se ocupar do sujeito concreto que vale pelo que é sem que precise para adquirir relevância para o Direito Privado ser qualificado pelo ter Vale enfatizar que o relevante fenômeno da constitucionalização do Direito Civil não destrói a autonomia deste último A Constituição é assim 20 Anotese aqui a relevante reflexão de Maria Celina Bodin de Moraes ao vincular a dignidade da pessoa humana simultaneamente à liberdade e à solidariedade O Conceito de Dignidade Humana substrato axiológico e conteúdo normativo In Ingo Wolfgang Sarlet coord Constituição Direitos Fundamentais e Direito Privado 2a ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2006 p 107 150 12 uma regra maior que de há muito deixa de ser morada exclusiva das regras e princípios de Direito Público Os Direitos Fundamentais deixam de ser reputados apenas como direitos exercidos pelo indivíduo frente ao Estado mas passam a ser leitmotiv das relações entre pessoas concretas Essas relações constituem o objeto do Direito Privado e mais especificamente no que tange a proposta deste estudo do Direito Civil 5 Direitos Fundamentais e Direito Privado É lugar comum cogitar da distinção entre Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais estes incidiriam sobre as relações entre indivíduo e Estado ao passo que os Direitos de Personalidade diriam respeito à relação entre indivíduos Contemporaneamente entretanto essa distinção perde muito de sua razão de ser A eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais sobre as relações de Direito Privado conduz à conclusão de que a proteção civil aos Direitos de Personalidade nada mais é do que uma faceta dessa incidência dos Direitos Fundamentais sobre as relações interindividuais Seja essa eficácia horizontal ou vertical como admite Ingo Sarlet21 ao tratar do denominados poderes privados o fato é que se pode verificar com clareza espaço em que se apresenta identidade de fundamento entre dados Direitos Fundamentais e os Direitos de Personalidade ambos decorrem do princípio maior da tutela da dignidade da pessoa humana Essa reflexão permite um passo adiante não apenas os fundamentos são comuns mas o próprio conteúdo dos Direitos de Personalidade se 21 SARLET Ingo Wolfgang Direitos Fundamentais e Direito Privado algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais In A Constituição Concretizada Editora Livraria do Advogado Porto Alegre 2000 13 insere naquilo a que se pode denominar Direitos Fundamentais A distinção nesse passo que se fundava na clivagem entre público e privado e que aprisionava os Direitos Fundamentais ao âmbito público perde sentido Podese afirmar diante da concepção contemporânea a respeito da dignidade da pessoa humana e da relação entre Constituição e Direito Civil que os Direitos de Personalidade nada mais são que Direitos Fundamentais não havendo sentido na distinção outrora proclamada Nem todos os direitos fundamentais é certo são direitos de personalidade Estes conforme Rabindranath Capelo de Souza decorrem do complexo psíquicosomáticoambiental que constitui a personalidade humana22 O direito ao devido processo legal por exemplo é direito fundamental mas não é direito de personalidade Podese dizer nessa esteira que a construção jurídica dos Direitos de Personalidade constitui subconjunto do universo mais amplo de Direitos Fundamentais e que como tais aplicamse tanto às relações que envolvem o Estado como naquelas que envolvem apenas indivíduos23 Mais que isso diante possibilidade da eficácia direita e imediata dos direitos fundamentais nas relações interprivadas24 não mais se pode cogitar da restrição absoluta operada pela clivagem entre Direito Público e Direito Privado Ou seja não apenas os Direitos de Personalidade se aplicam às relações interprivadas mas os demais Direitos Fundamentais Não poderia ser diferente Restringir de modo absoluto a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana de status constitucional a limites definidos pelo legislador infraconstitucional na disciplina dos Direitos de Personalidade seria menoscabo pela Constituição e intolerável violação da própria dignidade da pessoa 22 SOUZA Rabindranath Capelo de O direito geral de personalidade Coimbra Ed Coimbra 1995 23 CANOTILHO JJ Gomes Curso de Direito Constitucional 21 ed São Paulo Saraiva 2000 p 372 24 Que não exclui por óbvio a eficácia mediata Nesse sentido UBILLOS Juan Maria Bilbao En que medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales In Ingo Wolfgang Sarlet coord Constituição Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2006 p 301 340 14 Impende reafirmar portanto que independente da existência ou não de previsão infraconstitucional a respeito de Direitos de Personalidade a dignidade da pessoa humana nas relações interprivadas é protegida pela aplicação Direitos Fundamentais inclusive em sua forma direta e imediata constituindo estes universo mas amplo que abrange os próprios Direitos de Personalidade Isso não significa todavia que a construção jurídica dos Direitos de Personalidade tenha se tornado desnecessária Não se pode deixar de ter em conta que mesmo antes do Direito Público o Direito Civil já debatia a proteção da pessoa por meio dos Direitos de Personalidade ainda que fulcrado na perspectiva de abstração que fundou o pensamento jurídico do século XIX Relevantes contribuições ao exame da dignidade da pessoa humana põem ser colhidas da análise da doutrina sobre os Direitos de Personalidade sobretudo no que tange a idéia de uma Tutela Geral da Personalidade É este o debate que será examinado a seguir 6 A Tutela Geral da Personalidade A polêmica doutrinária oitocentista em se apresentava a oposição entre os que sustentavam uma tutela geral da personalidade e os que preconizavam um tutela tipificada apresentase superada à luz das noções contemporâneas acerca do próprio fundamento dos direitos de personalidade25 Se for pertinente uma tutela específica a certos direitos dúvida não há de que essa proteção não é incompatível com uma tutela geral 25 A respeito do tema relevantes subsídios podem ser extraídos de SZANIAWSKI Elimar Direitos da Personalidade e sua Tutela São Paulo Revista dos Tribunais 1993 15 O que aqui se traz como questão de fundo a sobrepujar a polêmica é a análise da pertinência do exame da tutela geral da personalidade para a questão atinente à dignidade da pessoa Isso porque essa pertinência se revela na identificação do fundamento contemporâneo da tutela geral que reside precisamente no princípio da dignidade da pessoa humana Os direitos de personalidade da pessoa natural não têm por fundamento o dado abstrato da personalidade jurídica mas sim a personalidade como dado inerente ao sujeito concreto É como anteriormente exposto no que se infere do dizer de Capello de Souza um complexo psíquicosomáticorelacional ou seja é integrado pelos elementos físico e psíquico em conjunto com a relação desses elementos com o meio e sobretudo com outros sujeitos Isso conduz à conclusão de que não sendo os direitos de personalidade uma concessão do direito positivo desnecessário é tipificar cada direito de modo a inserilo no mundo do direito A visão contemporânea a respeito da idéia de sistema no direito e dos métodos de construção normativa demonstra que não se sustenta a noção de que a aplicação do direito se daria por meio da subsunção a modelos rígidos de relações jurídicas dependendo de respostas prontas que prescindam da problematização do caso concreto A personalidade que se apresenta como tutelada pelo direito não é pois mero objeto criado pela norma Impende distinguir pois a personalidade como dado concreto e a personalidade como atributo genérico que permite a alguém integrar relações jurídicas na condição de sujeito de direito26 26 MEIRELLES Jussara O ser e o ter na codificação civil brasileira do sujeito virtual à clausura patrimonial In Luiz Edson Fachin Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo Rio de Janeiro Renovar 1998 16 A personalidade definida à luz da abstração que marca o positivismo jurídico oitocentista e que adentra o século XX culminando em Kelsen nada mais é que atribuição normativa Em outras palavras ascende à condição de pessoa aquele que a quem a ordem jurídica concede tal condição Não é por certo como se vê a essa personalidade que se refere a tutela geral que aqui se está a explicitar Isso porque a dignidade da pessoa humana não é dado que nasce do direito positivo integrando dimensão que como exposto antecede o direito A gênese da tutela assim não reside na lei sendo desnecessário arrolar direitos para que eles possam receber proteção jurídica tudo aquilo que é inerente à personalidade o sujeito concreto é digno de proteção jurídica por dizer respeito à dignidade da pessoa humana Centrar a tutela geral a personalidade no princípio da dignidade da pessoa é portanto trazer como fundamento desses direitos o mesmo princípio que dá base aos direitos fundamentais 7 A Dignidade da pessoa humana e os três pilares do Direito Civil O princípioregra constitucional da dignidade da pessoa humana pode incidir direta e imediatamente sobre as relações de Direito Civil Não se afigura como sustentável a barreira dogmática que outrora se pretendia erigir entre Constituição e Direito Privado segundo a qual somente se admitia a incidência do texto constitucional sobre as relações interprivadas por meio do filtro das normas e princípios próprios ao Direito Civil construídos na Modernidade sob o leitmotiv do individualismo proprietário27 27 Sobre o individualismo proprietário ver por todos BARCELLONA Pietro Lindividualismo Proprietário Torino Boringhieri 1987 17 À luz dessa ordem de idéias revelase inequívoca a repercussão do princípio em tela na configuração do perfil contemporâneo dos pilares de base do direito civil contrato propriedade e família28 Se for certo que os direitos fundamentais podem possuir aplicação direta e imediata sobre as relações interprivadas por meio de sua eficácia horizontal ou mesmo vertical como bem ensina Ingo Sarlet no pertinente aos poderes privados parece adequado pretender sistematizar alguns desses possíveis efeitos por meio da análise das mais relevantes searas de incidência do princípio no Direito Civil Com efeito dúvida não há de que a aplicação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana parte da tópica uma vez que não se trata de formular um conceito exauriente e abstrato de dignidade mas sim zelar pela satisfação de necessidades fundamentais que propiciem aos sujeitos o livre desenvolvimento de capacidades individuais Utilizar princípios por certo é admitir ponderação de valores in concreto buscar superar a simples subsunção lógica em favor de métodos de decisão pelo que não cabe aqui a postura mecanicista da clivagem do discurso jurídico da valoração a priori das respostas prêt à porter De outro lado não contrasta com essa racionalidade a pretensão de apontar os aspectos por meio dos quais se pode identificar instrumentos de aplicação e repercussões diretas do princípio em tela para o Direito Civil contemporâneo A noção de que a norma jurídica se constrói topicamente não afasta a pertinência da sistematização decidir topicamente não é decidir casuisticamente pelo que a referência apta a definir as soluções tópicas se encontram no sistema As soluções topicamente obtidas a seu turno também são passíveis de sistematização devendose sempre ter em conta nada obstante que essa sistematização é instrumental não constituindo fim em si mesma 28 CARBONNIER Jean Flexible Droit Paris LGDJ 18 Inequívoco portanto ser relevante a investigação dos aspectos mais destacados que emergem da incidência do princípio da dignidade da pessoa humana sobre os três pilares de base do Direito Civil O exame que aqui se leva a efeito diante dos objetivos inerentes a este texto é limitado à identificação panorâmica das mais relevantes repercussões do princípio em foco nas titularidades trânsito jurídico e família sem pretensão de verticalização dos aspectos aqui aludidos Nesse plano podese partir da identificação da configuração contemporânea do direito de propriedade para localizar os limites e possibilidades da incidência do princípio da dignidade da pessoa humana sobre o pilar das titularidades O primeiro desses aspectos que se apresentam na seara das titularidades é a noção de função social da propriedade Se a história adverte ao estudioso e ao aplicador do direito que o discurso pertinente a função social ainda não logrou êxito em promover na plenitude esperada uma repersonalização do direito de propriedade mostrandose pertinente um repensar sempre de sentido emancipatório do conteúdo e do fundamento dessa funcionalização não se nega que no movimento dialético que conduz a historia seria um equívoco negar a pertinência da função social da propriedade para a busca da concretização da dignidade da pessoa no Direito Civil Como sustenta Perlingieri29 impõese uma funcionalização das situações subjetivas patrimoniais as situações existenciais do Ter em relação ao Ser da propriedade em relação ao sujeito seja ele titular ou não A noção de que a propriedade obriga que se extrai da Constituição de Weimar de 1919 foi dado marcante que ensejou nas décadas que se seguiram a preocupação dos ordenamentos jurídicos em adequarem um 29 PERLINGIEIRI Op cit 19 equilíbrio entre o atendimento de interesses individuais e coletivos na seara do direito de propriedade Se essa concepção originária de um dado coletivo merece um repensar não se pode negar que ela se apresentou como de extrema relevância para abrir fissuras na concepção puramente individualista herdada da construção Liberal Podese dizer sem embargo que talvez a repercussão mais relevante da incidência do princípio da função social da propriedade para o Direito Civil seja um dado reflexo dessa funcionalização a preocupação com a questão do acesso Permitir que mais pessoas passem a ter acesso a bens seja na condição de titulares ou de possuidores é por excelência o modo de propiciar existência digna aqueles que historicamente se colocavam a margem de um Direito Civil que destinava sua tutela apenas ao indivíduo proprietário Acesso a bens cabe ressaltar não se confunde necessariamente com direito de propriedade embora o acesso a esse direito se coloque também no âmbito de preocupações de um direito civil repersonalizado uma maior autonomização do direito a posse não mais visto como guarda avançada da propriedade também se vincula a essa pretensão de acesso A redução de prazos para aquisição por usucapião sobretudo se a posse atender a requisitos tendentes ao atendimento da função social da propriedade também é instrumento coerente com a proteção da dignidade da pessoa por meio do acesso Nessa seara cabe reconhecer mérito a nova codificação nada obstante as muitas críticas a que ela faz jus ao valorizar a possetrabalho e a questão atinente a moradia como hipóteses aptas a ensejar redução de prazos para aquisição por usucapião Podese apontar ainda em hermenêutica sistemática construtiva a existência no ordenamento jurídico brasileiro da tutela de um patrimônio 20 mínimo personalíssimo30 Tratase de subprincípio que pode por exemplo apresentarse como exceção de direito material a execução Tratase de reconhecer limites para a responsabilidade patrimonial do devedor por meio da vedação a pretensão de reduzilo a miserabilidade Tratase ainda não apenas de assegurar um mínimo existencial o que poderia se confundir com uma espécie de caridade pública ela própria não raro atentatória a dignidade mas sim de assegurar um patamar patrimonial que propicie um livre desenvolvimento de capacidades individuais Ainda na seara das situações subjetivas patrimoniais cabe passar da dimensão da propriedade estática à seara do trânsito jurídico que aqui se apresenta como o segundo pilar de base do Direito Civil Destacase nessa senda a figura do contrato tratase do instrumento por excelência do trânsito jurídico oferecendo dimensão dinâmica às titularidades Afigurandose como instrumento de trânsito econômico emerge a noção de contrato como instrumento de satisfação de necessidades Não há dúvida de que a função econômica do contrato constitui seu fiocondutor não se podendo perder de vista nada obstante isso que a compreensão do dado econômico em sentido lato passa pelo atendimento de necessidades existenciais Daí não haver total incompatibilidade entre a noção de contrato como instrumento de trânsito de bens e de interesses com a concepção de que ele serviria ao livre desenvolvimento da personalidade O atendimento de necessidades existenciais que também se qualificam como econômicas vem na esteira do atendimento da dignidade da pessoa Impende porém ter em conta que se a noção de proteção da dignidade da pessoa pretende ser leitmotiv do trânsito econômico efetuado por meio das vestes jurídicas do contrato cabe à lei impor balizamentos que 30 FACHIN Luiz Edson Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo Rio de Janeiro Renovar 2001 21 permitam ao contrato não transformarse em antítese da satisfação daquela mesma dignidade A configuração contemporânea da autonomia privada circunscrita pela lei de modo a propiciar a não afronta pelo contratante mais forte à liberdade do mais fraco é o elemento fulcral dessa incidência do princípio da dignidade da pessoa sobre os contratos Essa funcionalização da liberdade contratual expressão da autonomia privada à dignidade da pessoa tem status constitucional uma vez que em sentido amplo decorre do comando do artigo 170 da Constituição que expressamente prevê que a livre iniciativa será exercida em função da existência digna e da justiça social O princípio da boafé pode também ser reputado corolário quantum satis do princípio da dignidade da pessoa desde que sua leitura seja fincada na perspectiva de que se trata de princípio que vem dar vestes jurídicas a uma ética de alteridade e não apenas configurarse como instrumento assecuratório de uma segurança jurídica formal Por derradeiro temse o terceiro pilar do Direito Civil a família como seara fértil à aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana Como fenômeno sociológico apreendido por meio da porosidade do direito a família sofreu no século XX um processo por meio do qual suas funções pessoais se sobrepuseram às institucionais As relações familiares passaram a privilegiar o afeto a satisfação de aspirações coexistenciais Essa nova configuração do fenômeno familiar é apreendida pelo direito31 Com efeito passase a prescindir de modelos prédefinidos para admitir o ingresso de dada relação de natureza familiar no âmbito de pertinência do direito De um modelo único matrimonializado passase à 31 FACHIN Luiz Edson Direito de Família Elementos Críticos à luz do Novo Código Civil Brasileiro Rio de Janeiro Renovar 2004 22 família plural propiciando a apreensão jurídica dos fenômenos que no plano dos fatos caracterizamse como famílias32 Isso se deve ao fato de que o regramento da família pelo direito deixa de ter por escopo criar amarras em nome de uma suposta estabilidade institucional mas passa a ser instrumento de assistência à família na pessoa de cada um de seus membros Em outras palavras visa o direito a trazer elementos protetivos da dignidade da pessoa no âmbito de suas relações familiares propiciando sem o engessamento dos modelos fechados permitir que a entidade familiar sirva de instrumento ao livre desenvolvimento da personalidade de seus componentes Tratase de proteger um espaço de afeto e simultaneamente oferecer meios de tutela da dignidade dos componentes da família quando aquele se extingue e os vínculos se rompem Tratase do princípio eudemonista33 diretamente derivado do princípio da dignidade da pessoa humana A felicidade coexistencial objetivada pelo princípio eudemonista não é por óbvio produzida por meio da lei como a estabilidade artificial imposta pela perspectiva que valorava as funções institucionais da família como superiores às funções pessoais O objetivo aqui ao contrário é instrumental prestar assistência para propiciar que os sujeitos livremente busquem essa felicidade que por coexistencial não ignora o outro Por isso falar em dignidade da pessoa no direito de família não consiste em pura e simplesmente chancelar o desejo este é aspecto relevante mas não constitui o objeto imediato das preocupações do direito Com efeito a chancela plena do desejo de um componente da família pode gerar afronta à dignidade do outro Daí o sentido da coexistencialidade 32 PIANOVSKI RUZYK Carlos Eduardo Famílias Simultâneas da unidade codificada à pluralidade constitucional Rio de Janeiro Renovar 2004 33 OLIVEIRA José Lamartine Corrêa de MUNIZ Francisco José Ferreira Curso de direito de família 2 ª ed Curitiba Juruá 1998 23 como balizamento útil à incidência do princípio da dignidade da pessoa humana no direito de família não se dirige a assistência somente ao indivíduo atomizado nem tampouco ao coletivo abstrato mas sim à dimensão que emerge da relação entre o eu e o outro Outros princípios que refletem a incidência da dignidade da pessoa sobre o direito de família dizem respeito à igualdade entre os cônjuges e entre os filhos Quanto à filiação é cristalina a vedação constitucional a qualquer tratamento e designação discriminatórios pondo termo à aviltante distinção entre filhos legítimos e ilegítimos e dentre estes últimos naturais e espúrios O subprincípio da inocência também se põe ao lado da igualdade a densificar o princípio da dignidade da dignidade da pessoa humana nas relações pertinentes aos filhos A igualdade entre os cônjuges por sua vez reflete décadas de lutas pela emancipação feminina constituindo apreensão pelo direito da nova configuração social das relações familiares além de também densificar o princípio da dignidade da pessoa humana A relação entre dignidade e igualdade é evidente tornandose ainda mais flagrante tratandose da mulher casada que até a década de 60 do século XX não apenas se subordinava à hierarquia do chefe da família mas também sofria redução de sua capacidade jurídica pelo fato do casamento 8 À guisa de conclusão O caminho que pretende a construção de um direito civil emancipatório em oposição àquele centrado no individualismo proprietário passa necessariamente pelo princípio da dignidade da pessoa humana Tal sendo arrosta as concepções tradicionais do Direito Civil e do Direito Constitucional especialmente aquelas ancoradas nos ideais da Modernidade 24 O Direito Contemporâneo reclama assim à luz dessa principiológia axiológica de índole constitucional a superação das dicotomias antigas das fronteiras rígidas entre Direito Privado e Direito Público e ao mesmo tempo reafirmar singularidades que jamais podem deixar de impor conhecimento e reconhecimento das construções clássicas nomeadamente em matéria dos direitos de personalidade O desafio do presente é recolher a contribuição do pretérito e projetá la para o porvir problematizando teorias e práxis que acalentaram durante décadas ao menos no Brasil uma concepção insular de institutos e figuras jurídicas pouco apta a formar mentes e corações que a partir e por meio do discurso e da prática jurídica não reproduzam conhecimentos e sim se proponham a dar efetividade constante ao texto normativo constitucional